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Nascer do sol
Cordilheira dos Andes - Peru, 1538
Não havia escapatória.
Rompendo pela selva enevoada, Francisco de Almagro já há muito abandonara qualquer esperança de conseguir escapar aos caçadores que seguiam no seu encalço. Ofegante, agachou-se ao longo de um estreito trilho e recuperou o fôlego. Limpou o suor da testa com a manga. Ainda tinha vestida aquela túnica dominicana, de lã e seda pretas, mas esta apresentava-se agora suja e rasgada. Os seus captores incas tinham-no despojado de todas as suas posses, com exceção da túnica e da cruz. O xamã da tribo prevenira os outros para que não tocassem nos talismãs deste Deus «estrangeiro», temendo qualquer insulto à divindade daquele forasteiro.
Embora a pesada túnica fosse inadequada à fuga através da selva densa e coberta de nevoeiro dos Andes superiores, o jovem frade recusava-se a retirar o hábito. Tinha sido abençoado pelo papa Clemente quando Francisco fora ordenado e não se separaria dele. Mas isso não significava que não o pudesse alterar para melhor se adaptar à atual situação.
Pegou na bainha do hábito e rasgou-a até às coxas.
Uma vez com as pernas livres, Francisco pôs-se à escuta dos sons da perseguição. O chamamento dos caçadores incas já soava mais alto, ecoando pelo desfiladeiro atrás de si. Nem mesmo os gritos estridentes dos macacos agitados nas copas das árvores conseguiam disfarçar o crescente clamor dos seus captores. Em breve chegariam a si.
Ao jovem frade restava apenas uma esperança — uma hipótese de salvação — não para si mesmo, mas para o mundo.
Beijou a bainha rasgada do seu hábito e deixou-o cair de entre os dedos. Tinha de se apressar.
Endireitou-se demasiado depressa e a sua visão enturvou-se por um segundo. Francisco agarrou-se a um rebento, debatendo-se para não cair. Arquejou no ar rarefeito. Pequenas centelhas dançaram na sua visão. Àquela altitude, na cordilheira dos Andes, o ar não enchia convenientemente os pulmões e obrigava-o a descansar com frequência, mas não podia deixar-se deter pela sua falta de ar.
Afastando-se da árvore, Francisco lançou-se de novo pelo trilho, tropeçando e serpenteando. A hesitação nos seus passos não se devia apenas à altitude. Antes da sua execução marcada para aquela madrugada, fora sujeito uma sangria ritual e obrigado a ingerir um elixir amargo: chicha, uma bebida fermentada que fez, rapidamente, oscilar o chão por baixo dos seus pés. Agora em fuga e a correr, o esforço repentino aumentava o efeito da droga.
Enquanto corria, os membros da selva pareciam querer alcançá-lo, tentando aprisioná-lo. O caminho parecia inclinar-se, primeiro para um lado, depois para o outro. O coração batia-lhe forte na garganta; os ouvidos enchiam-se com um rugido crescente, que subjugava até o chamamento dos seus perseguidores. Francisco acabou por deixar a selva e quase tombou por um penhasco. Lá em baixo, descobriu a fonte do ruído estrondoso: águas de espuma branca que chocavam contra rochedos negros.
Uma parte da sua mente sabia que aquele devia ser um dos muitos afluentes que alimentavam o poderoso rio Urubamba, mas não tinha tempo a perder com topografia. O desespero enchia-lhe o peito e apertava-lhe o coração. Abria-se um fosso entre ele e o seu objetivo. A arquejar, Francisco apoiou as mãos nos joelhos arranhados. Só então se apercebeu da fina ponte de ervas entrançadas. Atravessava o fosso um pouco para a sua direita.
— Obrigado, meu Deus! — agradeceu ao Senhor, recorrendo ao português. Não falava a sua língua materna desde que tomara os votos, em Espanha. Só agora, com as lágrimas de frustração e medo a escorrerem-lhe pelo rosto, regressava à língua da sua infância.
Erguendo-se, avançou para a ponte e deslizou as mãos pelo ichu entrançado. Uma corda grossa, solitária, estendia-se sobre a largura do rio em baixo, com duas cordas mais pequenas, uma de cada lado, para ajudar no equilíbrio. Não fora pelo seu estado atual, talvez tivesse apreciado o feito de engenharia envolvido na construção da ponte, mas agora todos os seus pensamentos estavam virados para a fuga: colocar um pé à frente do outro, manter o equilíbrio.
Todas as suas esperanças residiam em alcançar o altar no topo do pico seguinte. Como acontecia em muitas montanhas da região, os incas reverenciavam e adoravam estes picos que se projetavam da selva. Mas para alcançar aquele objetivo, Francisco precisava, primeiro, de atravessar aquele fosso e, em seguida, de arrastar-se para fora da floresta até à rocha escarpada mais acima.
Teria ele tempo suficiente?
Virando-se, uma vez mais, para escutar os sons dos seus perseguidores, Francisco não conseguia ouvir mais do que o rolar do rio por baixo dele. Não fazia ideia da distância a que se encontrariam os caçadores, mas calculava que aproximassem rapidamente. Não se atrevia a demorar ou a temer a queda.
Francisco passou a palma da mão suada pelo couro cabeludo rapado, depois agarrou uma das duas cordas de apoio da ponte. Fechou com força os olhos por um momento e agarrou no outro cabo. Com um pai-nosso nos lábios, avançou pela ponte e começou a atravessar o fosso. Recusou-se a olhar para baixo, fixando antes os olhos no final da ponte.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, sentiu o pé esquerdo a tocar na pedra. Curvando-se de alívio, arrastou-se para fora da ponte e para a rocha sólida. Quase se deixou cair de joelhos, pronto a beijar e abençoar a Terra, mas um grito forte ergueu-se atrás dele. Uma lança enterrou-se profundamente na terra argilosa junto ao seu calcanhar. O cabo agitava-se devido ao impacto.
Francisco ficou imóvel, como um coelho assustado, depois ouviu outro grito. Olhando de relance para trás, viu um único caçador, que se erguia do lado oposto. Os seus olhos cruzaram-se por breves instantes, sobre o fosso.
Predador e presa.
Sob um toucado de penas azuis e vermelhas, o homem sorria-lhe. Envergava grossas correntes de ouro. Pelo menos, Francisco rezava para que fosse ouro. Estremeceu.
Sem hesitar, Francisco retirou da túnica um punhal de prata. A arma, roubada ao xamã, auxiliara-o na fuga. Teria agora de o voltar a servir. Agarrou numa das cordas que auxiliavam ao equilíbrio de quem atravessava a ponte. Jamais teria tempo de cortar a corda mais grossa, mas se cortasse as cordas de apoio os seus perseguidores teriam maior dificuldade em atravessar. Talvez não os detivesse, mas dar-lhe-ia algum tempo.
Os ombros protestaram enquanto ele serrava a trança de ervas secas. As cordas pareciam feitas de ferro. O homem chamou-o, falando calmamente na sua língua pagã. O frade não compreendia nenhuma das suas palavras, mas a ameaça e a promessa de dor eram claras.
O medo renovado alimentou os músculos de Francisco. Aplicou-se e cortou a corda, enquanto lágrimas quentes lhe marcavam o rosto enlameado. De repente, a corda cedeu sob a sua lâmina, saltando para longe. Uma das pontas bateu-lhe no rosto. Instintivamente, levantou a mão para tocar o ferimento. Os dedos ficaram ensanguentados, mas não sentiu nada.
Engolindo em seco, virou-se para a segunda corda. Uma outra lança bateu na rocha, na beira do penhasco, e caiu para o fosso. Uma terceira seguiu-se-lhe. Desta vez, mais perto.
Francisco ergueu os olhos de relance. Quatro caçadores alinhavam-se agora no lado oposto do fosso. O mais recente erguia uma quarta lança, enquanto o primeiro preparava habilmente o arco. Esgotara o seu tempo. Francisco fitou a corda de apoio em que não tocara. Era um suicídio ficar ali. Teria de esperar que o facto de ter cortado uma das cordas os abrandasse o suficiente.
Rodando sobre um dos calcanhares, mergulhou de novo na floresta do outro lado do fosso. O caminho subia consideravelmente, forçando-lhe as pernas e o peito. Ali as árvores eram menos próximas, a copa menos densa. Enquanto se debatia, a floresta ia-se tornando mais aberta a cada légua conquistada com esforço. Embora se sentisse grato por ver a selva começar a rarear, sabia que a falta de folhagem também o tornava um alvo mais fácil para os caçadores. A cada passo, esperava agora sentir uma seta emplumar-lhe as costas.
Tão perto... Senhor, não me abandoneis agora.
Recusava-se a olhar em frente, concentrando-se no chão por baixo dos seus pés. Lutava por colocar um pé à frente do outro. De repente, a luz explodiu à sua volta, enquanto o Senhor afastava pessoalmente as árvores e fazia brilhar a sua glória sobre ele. Arquejando, ergueu a cabeça. Até esse movimento simples era agora difícil. Com um passo, a selva ficou para trás. A luz crua do Sol que despontava ardia sobre as pedras vermelhas e pretas do pico árido.
Sentia-se demasiado cansado para uma oração de agradecimento. Esforçando-se por ultrapassar os últimos arbustos, usou mãos e pés para lutar por alcançar o cume. Tinha de acontecer ali. No altar sagrado.
Agora a chorar, mas incapaz de ouvir os seus próprios gemidos, arrastou-se até à laje de granito. Alcançando o altar de pedra, deixou-se cair sobre os calcanhares e ergueu o rosto para o céu. Gritava agora, não em oração, mas no simples reconhecimento de que ainda vivia, projetando a sua voz para que todos ouvissem.
O seu chamamento foi atendido. Os gritos agudos dos caçadores voltaram a ecoar a partir do desfiladeiro. Tinham atravessado o fosso e retomado a sua perseguição.
Francisco baixou o rosto do céu azul. À sua volta, estendendo-se até ao horizonte, estavam os inúmeros picos dos Andes. Alguns tinham os cumes cobertos de neve, mas na sua maioria eram tão áridos quanto aquele onde se encontrava ajoelhado. Por um momento, Francisco quase compreendeu o porquê de os incas adorarem as alturas daquelas montanhas. Ali, entre as nuvens e os céus, estava-se mais perto de Deus. Uma sensação de intemporalidade e promessa de eternidade parecia ecoar a partir do pesado silêncio. Até os caçadores se tinham silenciado, fosse por respeito pela montanha ou por um desejo de apanhar a sua presa desprevenida.
Francisco estava demasiado cansado para que isso o preocupasse.
O seu olhar pousou num outro pico que partilhava aquelas alturas. Mais abaixo, para oeste, duas montanhas fumegantes, caldeiras vulcânicas, crateras gémeas que fitavam os mesmos céus matutinos. Visto dali o par envolto em sombras assemelhava-se a um par de olhos explosivos e amaldiçoados.
Cuspiu na sua direção e ergueu o punho com o polegar preso entre dois dedos, num gesto que o deveria proteger do mal.
Francisco sabia o que se encontrava naqueles vales quentes. A partir do seu altar nas montanhas, batizou os vulcões gémeos.
— Ojos del Diablo — sussurrou... Os olhos do Diabo.
Estremecendo perante tal visão, virou-lhes as costas. Não podia fazer o que tinha de fazer, enquanto fitava aqueles olhos. Virava-se agora para este e para o sol nascente.
Ajoelhando-se perante a glória ardente, levou a mão ao interior da túnica e deslizou para o seu exterior a cruz que lhe pendia do pescoço. Tocou com o metal quente na testa. Ouro. Ali estava a razão pela qual os espanhóis tinham lutado para avançar através daquelas florestas estranhas, o sonho de tesouros e riquezas. Agora a sua cobiça e ganância ia amaldiçoá-los a todos.
Francisco virou o crucifixo e beijou a figura dourada pregada à sua superfície. Fora essa a razão para ele ter viajado até ali. Levar a palavra do Senhor àqueles selvagens, e agora a sua cruz era a única esperança para todo o mundo. Deslizou um dedo pelas costas da cruz, tocando nos entalhes que fizera, cuidadosamente, no ouro macio.
Que nos possa salvar a todos, rezou em silêncio, antes de voltar a aninhar a cruz dentro das suas vestes, para que repousasse perto do coração.
Francisco ergueu os olhos para a madrugada. Tinha de se assegurar de que os incas jamais lhe tirariam a cruz. Embora tivesse alcançado um dos locais sagrados dos incas — aquele altar natural no topo das montanhas — era necessário um último ato para garantir a segurança da cruz.
Uma vez mais deslizou o punhal de prata do xamã do interior da túnica.
Com uma oração de contrição nos lábios, pediu perdão pelo pecado que estava prestes a cometer. Ainda que pudesse condenar a sua alma, não tinha escolha. Com as lágrimas nos olhos, ergueu a faca e deslizou a lâmina pela garganta. A dor lancinante fê-lo largar o punhal dos dedos. Caiu sobre as mãos, o sangue jorrava-lhe da garganta para as pedras escuras.
Sob a luz da madrugada, o seu sangue vermelho brilhava intensamente contra a pedra negra. Foi a última coisa que viu ao morrer: o seu sangue vital a fluir sobre o altar inca, cintilando tão brilhante quanto o ouro.
DIA UM – Ruínas
Ruínas
Segunda-feira, 20 de agosto, 11h52
Segunda-feira, 20 de agosto, 11h52
Johns Hopkins University
Baltimore, Maryland
Os dedos do professor Henry Conklin tremiam ligeiramente enquanto desenrolava a derradeira camada de cobertores que envolviam o seu tesouro congelado. Susteve a respiração. Como se teria a múmia saído depois da viagem de quase cinco mil quilómetros desde os Andes? No Peru, tivera o cuidado de embrulhar e encaixotar os restos mortais congelados em gelo seco para a viagem até Baltimore, mas, num percurso tão longo, havia muita coisa que podia ter corrido mal.
Henry deslizou a mão pelo cabelo escuro, agora polvilhado por uma dose generosa de cabelos encanecidos desde que passara o seu sexagésimo aniversário, no ano anterior. Rezou para que as suas três últimas décadas de investigação e trabalho de campo dessem frutos. Não teria uma segunda oportunidade. O transporte da múmia desde a América do Sul esgotara quase todo o dinheiro que lhe restava da bolsa. E, nos dias de hoje, as novas bolsas eram atribuídas a investigadores muito mais jovens do que ele. Estava a transformar-se num dinossauro na A&M do Texas. Embora ainda fosse reverenciado, era agora mais mimado do que levado a sério.
Ainda assim, as ruínas de uma aldeia inca que descobrira recentemente no cimo dos Andes poderiam mudar tudo isso, em especial se comprovassem a sua teoria controversa.
Libertou cuidadosamente o derradeiro invólucro de linho. A névoa provocada pelo gelo seco a descongelar obscureceu-lhe momentaneamente a visão. Acenou para afastar a névoa, ao mesmo tempo que a figura contorcida surgia à sua frente, os joelhos dobrados, junto ao peito, os braços a abraçar as pernas, quase em posição fetal, tal como a tinha descoberto num túmulo pouco profundo no cimo do monte Arapa.
Henry fitou a sua descoberta. As órbitas antigas, abertas e ocas, fitavam-no sob as madeixas de fino cabelo preto que ainda se lhe agarravam ao crânio. Os lábios, secos e mirrados, revelavam os dentes amarelecidos. Os restos coçados das vestes fúnebres ainda se agarravam à pele curtida. Estava tão bem preservada que até as tintas negras da túnica rasgada brilhavam fortemente sob as luzes cirúrgicas do laboratório.
— Oh, céus! — exclamou uma voz por cima do seu ombro. — Isto é perfeito!
Henry saltou ligeiramente. Estava de tal modo mergulhado nos seus próprios pensamentos que se esquecera momentaneamente da presença de outros elementos na sala. Virou-se e viu-se ofuscado pelo brilho da luz de uma câmara. A repórter do Baltimore Herald desviou-se de trás do ombro dele, para se reposicionar para uma nova fotografia, sem nunca afastar a Nikon do rosto. O cabelo louro estava puxado sobre as orelhas num rabo de cavalo cingido e eficiente. Enquanto falava, foi tirando mais fotografias.
— Que idade estima que tenha, professor?
Pestanejando sob a brilho do flash, Henry recuou um passo para que os outros pudessem ver os restos mortais. Um par de cientistas aproximou-se, empunhando os seus instrumentos.
— Eu... eu estimaria que a mumificação remonta ao século... há cerca de quatrocentos a quinhentos anos.
A repórter baixou a câmara, mas não afastou os olhos da figura aninhada na mesa do aparelho de tomografia. Um pequeno esgar de nojo marcava-lhe o lábio superior.
— Não, referia-me à idade da pessoa mumificada quando morreu.
— Oh... — Ele ergueu os óculos de aros metálicos sobre o nariz. — Por volta dos vinte... É difícil ser exato apenas com um exame tão superficial.
Um dos dois cientistas, uma mulher pequena, na casa dos quarenta com cabelo escuro que lhe caía em madeixas sedosas ao longo das costas, olhou de relance para eles. Tinha estado a examinar a cabeça da múmia e segurava um depressor de língua.
— Tinha trinta e dois anos quando morreu — declarou num tom neutro. A pessoa que falara, a doutora Joan Engel, era diretora de patologia forense na Johns Hopkins University e uma velha amiga de Henry. O seu posto era uma das razões pelas quais levara aquela múmia para a Johns Hopkins. Ela aprofundou a sua afirmação: — Os terceiros molares estão parcialmente esmagados, mas pelo nível de desgaste nos segundos molares e pela falta de desgaste no terceiro, a minha estimativa deve ter uma margem de erro de três anos, para mais ou para menos. No entanto, os resultados da tomografia devem permitir-nos indicar a idade com uma exatidão ainda maior.
Traindo a sua aparente calma, os olhos cor de jade da cientista brilhavam fortemente enquanto falava, enrugando-se ligeiramente nos cantos. Não havia qualquer expressão de desagrado no seu rosto quando olhava para a múmia, nem mesmo quando mexeu nos seus restos ressequidos com os dedos enluvados. Henry sentiu que o entusiasmo dela espelhava o seu. Era bom saber que o entusiasmo de Joan pelos mistérios científicos não diminuíra desde os anos de estudante, quando a tinha conhecido. Regressou ao estudo da múmia, mas não antes de ter dirigido a Henry um olhar de desculpas por ter contradito a sua afirmação anterior e estimativa de idade.
O rosto de Henry enrubesceu, mais de embaraço do que de irritação. Ela mostrava-se tão arguta e certeira como sempre.
Engolindo em seco, tentou redimir-se. Virou-se para a repórter.
— Espero provar que estes restos mortais, encontrados neste local inca, não são, na verdade, incas, pertencendo antes a uma outra tribo de índios peruanos.
— Como assim?
— Há muito se sabe que os incas eram uma tribo guerreira que, muitas vezes, derrotava as tribos vizinhas e as consumia, literalmente. Construíam as suas cidades sobre estas outras, engolindo-as. Do meu estudo de Machu Picchu e de outras ruínas nas remotas terras altas dos Andes, nasceu a minha teoria de que os incas, cujas tribos provêm das terras baixas, não construíram estas cidades nas nuvens, antes se apoderaram delas ao derrotar uma tribo que ali residia antes deles, privando estes antepassados do lugar na história que lhes pertence, por direito, enquanto hábeis arquitetos destas cidades no cimo das montanhas. — Henry acenou na direção da múmia. — Espero que este tipo me ajude a corrigir este erro na história.
A repórter tirou mais uma fotografia, mas foi, em seguida, forçada a recuar pelo par de cientistas que avançavam no seu exame, descendo ao longo da múmia.
— O que o leva a pensar que esta múmia pode provar a sua teoria? — perguntou.
— O túmulo onde foi descoberta é mais antigo do que as ruínas incas em, pelo menos, um século, o que sugere que poderá pertencer a um dos verdadeiros construtores destas cidadelas na montanha. Além disso é bem mais alto do que a média dos incas da região... até as características do rosto são diferentes. Trouxe a múmia para aqui, para provar que não se trata de um elemento da tribo dos incas, mas de um dos verdadeiros arquitetos destas cidades excecionais. Com o mapeamento genético aqui disponível, poderei substanciar qualquer...
— Professor Conklin — voltou Joan a interrompê-lo. — Talvez queiras vir ver isto.
A repórter afastou-se para deixar passar Henry, a sua Nikon de novo erguida, de tal forma que lhe escondia metade do rosto. Henry posicionou-se entre os dois investigadores. Estes tinham estado a tatear a zona do tronco e da barriga do corpo. O assistente da doutora Engel, um jovem de cabelo alourado, de olhos grandes, estava curvado sobre a múmia. Cuidadosamente, ia removendo e extraindo um pedaço de cordão preso numa dobra de pele em redor do pescoço da múmia.
Joan apontou.
— A garganta foi cortada — disse ela, afastando a pele curtida e revelando os ossos por baixo dela. — Terei de realizar um exame microscópico para ter a certeza, mas diria que o ferimento ocorreu ante mortem. — Olhou de relance para Henry e a repórter. — Antes da morte — esclareceu. — E que, muito provavelmente, foi a causa da morte.
Henry acenou afirmativamente.
— Os incas gostavam de rituais sangrentos, muitos envolvendo a decapitação e o sacrifício humano.
O assistente da doutora Engel continuava a trabalhar na ferida, extraindo um pedaço de cordão do ferimento. Parou e olhou para o seu mentor.
— Acho que é uma espécie de colar — balbuciou e puxou o cordão. O movimento levou a que algo se movesse sob a túnica.
Joan ergueu os olhos para Henry, pedindo-lhe silenciosamente autorização para continuar.
Ele acenou com a cabeça.
Lentamente, o assistente puxou e libertou o colar do seu esconderijo. O que quer que dele pendesse foi cuidadosamente arrastado sob o tecido esfarrapado da túnica. De súbito, o material antigo rasgou-se e o objeto que pendia do cordão tombou, livre, para que todos o vissem.
Um arquejo ergueu-se das suas quatro gargantas. O ouro brilhava resplandecente sob os holofotes de halogénio do laboratório. Seguiu-se um floreado de flashes ofuscantes, quando a repórter tirou uma série de fotografias rápidas.
— É uma cruz — disse Joan, afirmando o óbvio.
Henry resmungou e aproximou-se mais.
— Não é apenas uma cruz. É um crucifixo dominicano.
A repórter falou com a câmara ainda colada ao rosto.
— O que significa isso?
Henry endireitou-se e acenou com a mão para uma inscrição em latim.
— A ordem missionária dominicana acompanhou os Conquistadores espanhóis durante os seus ataques aos índios da América Central e do Sul.
A repórter baixou a câmara.
— Então esta múmia é um desses padres espanhóis?
— Sim.
— Fixe!
Joan tocou na cruz com o depressor de língua.
— Mas acreditava-se que os incas não tinham mumificado nenhum dos seus conquistadores espanhóis.
— Até aqui — comentou amargamente Henry. — Suponho que, quando muito, esta descoberta será merecedora de uma nota de rodapé num qualquer artigo de jornal. — Os seus sonhos de provar a sua teoria viam-se obscurecidos pelo brilho do crucifixo de ouro.
Joan tocou-lhe na mão com um dedo enluvado.
— Não desesperes já. Talvez a cruz só tenha sido roubada a um dos espanhóis. Vamos fazer primeiro a tomografia e vejamos o que conseguimos descobrir sobre o nosso amigo.
Henry assentiu com a cabeça, mas no seu coração não guardava qualquer esperança verdadeira. Olhou de relance para a patologista. Os olhos dela brilhavam com genuína preocupação. Ele ofereceu-lhe um pequeno sorriso que ela, surpreendentemente, lhe devolveu. Henry lembrava-se daquele sorriso de há muito tempo. Tinham saído juntos algumas vezes, mas estavam ambos demasiado concentrados nos seus estudos para se tornarem mais do que meros conhecidos. E quando as suas carreiras divergiram, uma vez terminados os cursos, perderam o contacto um com o outro, com exceção da ocasional troca de postais de Natal. Mas Henry nunca esquecera aquele sorriso.
Ela tocou-lhe na mão, depois dirigiu-se ao assistente.
— Brent, podes informar o doutor Reynolds de que estamos prontos para iniciar o exame? — Virou-se para Henry e a repórter. — Terei de vos pedir que se juntem a nós na sala adjacente. Podem assistir ao procedimento do outro lado do vidro de chumbo da sala de controlo.
Antes de sair, Henry observou a múmia, para se assegurar de que estava adequadamente presa à mesa do aparelho de tomografia, e em seguida retirou o crucifixo do pescoço da figura. Levou-o consigo enquanto seguia os outros para fora da sala.
O cubículo adjacente estava repleto de computadores e filas de monitores. A equipa de investigação tinha planeado usar uma técnica chamada tomografia computorizada, ou CT, para obter múltiplas imagens radiográficas que o computador em seguida compilaria numa imagem tridimensional do interior da múmia, permitindo assim a realização de uma autópsia virtual sem danificar a múmia em si. Para além do contacto profissional, fora por aquela razão que Henry arrastara a múmia por meio mundo. A Johns Hopkins realizara já diversas análises a outras múmias do gelo peruanas no passado e ainda tinha o apoio da organização National Geographic para continuar a fazê-lo. As instalações incluíam também um laboratório de genética fantástico para mapear a ancestralidade e a genealogia, ideal para acrescentar dados concretos que lhe permitiriam substanciar as suas teorias controversas. Mas com a cruz dominicana na mão, Henry depositava agora pouca confiança no seu sucesso.
Uma vez no interior da sala de controlo, a porta, pesada devido ao escudo de chumbo, fechou-se firmemente atrás deles.
Joan apresentou-lhes o doutor Robert Reynolds, que lhes indicou as cadeiras, enquanto o técnico dava início à calibragem do scan.
— Sentem-se.
Enquanto os outros arrastavam cadeiras para junto da janela de observação, Henry permaneceu de pé, de modo a ver bem tanto os monitores como a janela que se abria para o tomógrafo e o seu paciente atual. A grande máquina branca enchia a metade do fundo da sala adjacente. A mesa que suportava a múmia projetava-se de um túnel estreito que conduzia ao coração da unidade.
— Aqui vamos nós — disse o doutor Reynolds enquanto teclava algo no seu terminal.
Henry saltou ligeiramente, quase deixando cair a cruz de ouro, quando um som forte irrompeu dos altifalantes que monitorizavam a sala. Através da janela viu a bandeja que segurava a figura contorcida a avançar lentamente em direção ao núcleo giratório do aparelho. Quando o topo da cabeça da múmia entrou no túnel, aos ruídos secos da máquina juntou-se um coro de fortes ruídos surdos, enquanto o aparelho começava a tirar fotografias.
— Bob — disse Joan —, gera primeiro uma imagem superficial dos ossos do rosto. Vejamos se conseguimos identificar o local de origem deste tipo.
— É algo que conseguem determinar a partir do crânio? — perguntou a repórter.
Joan acenou com a cabeça, mas não voltou as costas aos computadores.
— A estrutura do arco zigomático, a testa e o osso nasal são excelentes marcadores de ancestralidade e raça.
— Cá vem ela — anunciou o doutor Reynolds.
Henry virou as costas à janela para olhar por cima do ombro de Joan. Uma imagem a preto e branco surgiu no ecrã, um perfil transversal do crânio da múmia.
Joan colocou um par de óculos de leitura e aproximou mais do monitor a cadeira rangente. Inclinou-se para a frente para estudar a imagem.
— Bob, consegues rodá-la cerca de trinta graus?
O radiologista acenou com a cabeça, mordendo um lápis. Tocou em alguns botões, e o crânio rodou ligeiramente até os fitar de frente. Joan estendeu para ele uma pequena régua e fez algumas medições, franzindo o sobrolho. Tocou no ecrã com uma unha.
— Aquela sombra por cima da órbita direita. Podemos vê-la melhor?
Foram pressionadas algumas teclas e a imagem tornou-se maior. O radiologista tirou o lápis do meio dos dentes. Assobiou elogiosamente.
— O que é isso? — perguntou Henry.
Joan virou-se e baixou os óculos de modo a poder fitá-lo por cima dos aros.
— Um buraco. — Tocou no vidro para indicar a sombra triangular no plano do osso. — Não é natural. Alguém abriu um buraco neste crânio. E, tendo em conta a falta de formação calosa em redor do local, calculo que o procedimento tenha sido feito pouco depois da sua morte.
— Trepanação... a perfuração do crânio — disse Henry. — Já o vi antes, noutros crânios antigos de todo o mundo. Mas os mais minuciosos e complicados foram encontrados entre os incas. Estes eram considerados os cirurgiões mais hábeis na trepanação. — Henry permitiu-se uma centelha de esperança. Se o crânio tinha sido perfurado, talvez tivesse descoberto um índio peruano.
Joan terá lido os seus pensamentos.
— Odeio destruir as tuas esperanças, mas, com ou sem trepanação, esta múmia não é de alguém de ascendência sul-americana, sem sombra de dúvida. É claramente europeia.
Por alguns instantes, Henry não conseguiu encontrar a sua voz.
— Tens... tens a certeza?
Ela tirou os óculos e voltou a enfiá-los no bolso. Suspirou baixinho, claramente habituada a oferecer diagnósticos difíceis.
— Sim. Eu diria que veio da Europa Ocidental. Calculo que de Portugal. E se me deres mais tempo e oportunidade para a estudar, é provável que te consiga indicar a região exata. — Ela virou-se para o olhar nos olhos. — Lamento, Henry.
Ele reconheceu a empatia nos olhos dela. Com o coração repleto de desespero, esforçou-se por manter a compostura. Fitou a cruz dominicana que tinha na mão.
— Deve ter sido capturado pelos incas — acabou por dizer. — E, mais tarde, sacrificado aos seus deuses no cimo do monte Arapa. Se o seu sangue tiver sido derramado num local tão sagrado como esse, europeu ou não, seriam obrigados a mumificar os seus restos mortais. Provavelmente, foi por isso que permitiriam que ficasse com a cruz. Os que pereciam em locais sagrados eram honrados e não era permitido privar os seus corpos de quaisquer valores.
A repórter tinha estado a tirar notas apressadamente, embora se fizesse acompanhar por um gravador que também acompanhava a conversa.
— Vai dar uma boa história.
— Uma história, talvez... se calhar até um ou dois artigos de jornal... — Henry encolheu os ombros, tentando um sorriso fraco.
— Mas não era isso que pretendias — acrescentou Joan.
— Uma curiosidade intrigante, nada mais. Não lança qualquer nova luz sobre os incas.
— Talvez a tua escavação, que continua a decorrer no Peru, produza mais descobertas intrigantes — ofereceu a patologista.
— Há essa esperança. O meu sobrinho e alguns alunos de pós-graduação estão debruçados sobre as ruínas de um templo, neste preciso momento. Com alguma sorte terão melhores notícias para mim.
— E depois contas-me? — perguntou Joan com um sorriso. — Sabes que tenho acompanhado as tuas descobertas tanto através da National Geographic como das revistas de arqueologia.
— Tens? — Henry ergueu-se um pouco mais direito.
— Sim, tem sido tudo muito entusiasmante.
O sorriso de Henry abriu-se mais.
— Manter-te-ei sem dúvida a par de tudo. — E estava a falar a sério. Aquela mulher tinha um certo charme que Henry continuava a achar encantador. A isso somava-se uma figura generosa que a estéril bata de laboratório não conseguia esconder por completo. Henry sentiu um leve rubor aquecer-lhe o rosto.
— Joan, é melhor vires ver isto — disse o radiologista numa voz sussurrada. — Há algo de errado com a tomografia.
Joan voltou-se de novo para o monitor.
— O que foi?
— Estava a tentar tirar alguns planos sagitais médios para avaliar a densidade dos ossos. Mas todas as imagens interiores estão em branco. — Enquanto Henry observava, o doutor Reynolds percorreu uma séria de imagens, cada uma correspondendo a uma fatia mais profunda do interior do crânio. Mas todas as imagens interiores eram iguais: um borrão branco no monitor.
Joan tocou no ecrã com os dedos, como se isso lhe permitisse compreender as imagens.
— Não compreendo. Vamos recalibrar o aparelho e tentar outra vez.
O radiologista tocou num botão e o ruído constante do trabalhar da máquina cessou. Nessa altura aperceberam-se de um ruído mais agudo, que estivera escondido por trás do bater dos ímanes giratórios do aparelho. Jorrava dos altifalantes: um ruído intenso, agudo, como o ar que escapa da abertura de um balão apertado entre os dedos.
Os seus olhos foram atraídos pelos altifalantes.
— Que raio de barulho é esse? — perguntou o radiologista. Tocou nalgumas teclas. — O aparelho está completamente parado.
A repórter do Herald estava sentada mais perto da janela que dava para a sala do tomógrafo. Levantou-se repentinamente, derrubando a cadeira.
— Meu Deus!
— O que foi? — Joan levantou-se e foi juntar-se à repórter ao pé da janela, impedindo que Henry visse a sala.
Henry forçou caminho para lá delas, temendo pela sua frágil múmia.
— O que...? — Depois também ele o viu. A múmia continuava deitada na mesa do aparelho, à vista de todo o grupo. A cabeça e o pescoço agitavam-se sobre a mesa, restolhando contra a superfície metálica. A boca abriu-se, erguendo-se um lamento agudo da sua garganta desidratada. Henry sentiu que os joelhos fraquejavam.
— Meu Deus, está viva! — gemeu a repórter, horrorizada.
— Impossível — gaguejou Henry.
As convulsões que agitavam o corpo tornaram-se ainda mais violentas. O fino cabelo preto era furiosamente sacudido em redor da cabeça agitada como um milhar de cobras. Henry estava à espera de que a cabeça fosse, a qualquer momento, arrancada do pescoço, mas o que aconteceu de facto foi pior. Muito pior.
Como um melão podre, o topo do crânio da múmia desfez-se numa explosão. Um visco amarelo foi projetado do crânio salpicando a parede, o tomógrafo e a janela.
A repórter cambaleou para longe do vidro sujo. As pernas cederam sob o seu corpo. A boca entoava descontroladamente «Oh, meu Deus oh, meu Deus oh, meu Deus...»
Joan manteve-se calma, profissional. Abordou o radiologista em choque.
— Bob, precisamos de uma quarentena de Nível Dois para aquela sala. Rápido!
O radiologista limitou-se a olhar fixamente, sem pestanejar, enquanto as convulsões que tinham agitado a múmia paravam e ela jazia imóvel.
— Maldição — sussurrou por fim, para a janela imunda. — O que aconteceu?
Joan abanou a cabeça, continuando calma. Trocou os óculos e fitou a divisão.
— Talvez uma suave erupção de uma bolsa de gás — balbuciou. — Dado que a múmia foi congelada a elevada altitude, o metano da decomposição pode facilmente ter sido liberto de forma abrupta devido ao súbito arrefecimento. — Ela encolheu os ombros.
A repórter parecia, por fim, recomposta e tentou tirar uma fotografia, mas Joan impediu-a com a palma da mão. Joan abanou a cabeça. Não haveria mais fotografias.
Henry não se movera desde a erupção. Permanecia de pé, com a palma da mão contra o vidro. Fitava as ruínas da sua múmia e os salpicos brilhantes que cobriam as paredes e a máquina. Os detritos brilhavam intensamente, cintilando num amarelo rosado escuro sob as luzes de halogénio.
A repórter, a voz ainda abalada, acenou com a mão para a janela de chumbo imunda.
— Que raio é essa coisa?
Apertando o crucifixo dominicano no punho direito, Henry respondeu, a voz embotada pelo choque:
— Ouro.
17h14
Cordilheira dos Andes, Peru
— Escuta... e quase consegues ouvir os mortos a falar.
As palavras afastaram o nariz de Sam Conklin da terra. Fitou o jovem jornalista freelance da National Geographic.
Norman Fields sentou-se ao lado de Sam, um computador portátil aberto em cima dos joelhos, e fitou as ruínas envoltas pela selva. Uma mancha de lama deslizava pela face do homem, até ao pescoço. Embora usasse um casaco e um chapéu de cabedal, de design australiano, Norman não conseguia transmitir a imagem de um duro fotojornalista aventureiro. Usava óculos de grossas lentes que lhe ampliavam ligeiramente os olhos, pelo que parecia perpetuamente surpreendido e, embora se erguesse ligeiramente acima do metro e oitenta, era muito magro, todo ele ossos e membros desajeitados.
Sam rolou sobre o tapete de junco entretecido, apoiando-se num cotovelo.
— Desculpa, o que disseste, Norm? — perguntou.
— A tarde está tão silenciosa — sussurrou o companheiro, o sotaque de Boston a temperar as suas palavras. Norman fechou os olhos e respirou fundo. — Quase consegues ouvir as vozes antigas a ecoar a partir das montanhas.
Sam dispôs cuidadosamente o pincel minúsculo ao lado da pequena relíquia de pedra que tinha estado a limpar e sentou-se. Inclinou ainda mais para trás o chapéu de cowboy enlameado e limpou as mãos às calças Wrangler. Como tantas vezes antes, depois de ter estado a trabalhar durante várias horas sobre uma só pedra das ruínas, a beleza geral da antiga cidade inca voltou a deliciá-lo como um gole de cerveja fresca numa tarde quente no Texas. Era tão fácil perder-se nas delicadas atenções do pincel sobre a pedra e perder de vista a enormidade e envergadura do todo. Sam sentou-se para melhor apreciar a majestade sombria.
De repente, sentiu saudades do seu cavalo de corte, um Appaloosa malhado que ainda estava no rancho poeirento do tio às portas de Muleshoe, Texas. Ansiava por poder cavalgar entre as ruínas e seguir os seus carreiros serpenteantes até ao mistério da densa selva para lá da cidade. Deixou-se ficar sentado, com o fantasma de um sorriso estampado no rosto, a absorver a paisagem.
— Há algo místico em relação a este lugar — continuou Norman, recostando-se sobre as mãos. O ar cheirava a vida, como se alguma substância no vento encorajasse a uma vitalidade do espírito.
Sam tocou no braço do jornalista e concordou com ele, sentindo-se bem-disposto. A paisagem era uma visão maravilhosa.
Construída numa selada alta entre dois picos nos Andes, a recém-descoberta cidade na selva estendia-se por vários terraços ao longo de cento e trinta hectares. Cem degraus ligavam os vários níveis de alvenaria. De onde se encontrava, entre o que restava da Praça do Sol, Sam conseguia ver todas as ruínas pré-colombianas mais abaixo: das casas da cidade baixa realçadas pelas linhas de pedra desmoronada, à Escadaria das Nuvens que conduzia à Praça do Sol onde estavam empoleirados. Ali, como na cidade congénere de Machu Picchu, os incas tinham exibido toda a sua mestria arquitetónica, fundindo forma e função de modo a esculpir entre as nuvens uma cidade fortaleza.
No entanto, ao contrário da muito explorada Machu Picchu, aquelas ruínas ainda estavam em estado bruto. Descobertas pelo tio Hank há poucos meses, muito permanecia ainda escondido sob as vides e as árvores. Uma centelha de orgulho percorreu-o perante a recordação da descoberta.
O tio Hank tinha desenterrado aquela localização em antigas histórias passadas entre os quéchuas da região. Usando mapas escrevinhados à mão e pedaços de histórias, conduzira uma equipa, a partir de Machu Picchu, ao longo do rio Urubamba e, em apenas dez dias, descobriram as ruínas por baixo do monte Arapa. A descoberta recebera a atenção de todos os jornais profissionais e revistas populares. Alcunhada «As Ruínas das Nuvens», a fotografia do tio sorria a partir de muitas primeiras páginas. E era merecido: tratara-se de uma milagrosa demonstração de extrapolação e perícia arqueológica.
Claro que aquele sentimento podia ser influenciado pela simpatia que Sam nutria pelo tio. O tio Hank criara Sam desde o falecimento dos seus pais num acidente de viação quando tinha nove anos de idade. A esposa de Henry morrera de cancro nesse mesmo ano, cerca de quatro meses antes. Unidos pelo sofrimento, desenvolveram uma ligação profunda. Os dois tinham-se tornado quase inseparáveis. Por isso, não foi surpresa para ninguém que Sam tivesse seguido uma carreira arqueológica na A&M do Texas.
— Quase poderia jurar que se escutares atentamente — disse Norman — consegues ouvir o lamento dos guerreiros que chamam dos altos picos, os sussurros dos vendedores ambulantes e dos compradores da cidade baixa, as canções dos trabalhadores nos campos em socalcos do outro lado das muralhas.
Sam tentou escutar, mas tudo o que ouvia eram os fragmentos de conversas em vozes altas e o raspar das pás e picaretas que ecoavam de um buraco próximo. Tais ruídos não eram as vozes dos incas falecidos, mas dos trabalhadores e dos estudantes que se atarefavam no coração das ruínas. O buraco aberto conduzia a um poço que descia nove metros sempre a direito, terminando numa estrutura alveolar de salas e corredores escavados, uma estrutura subterrânea com vários níveis. Sam sentou-se mais direito.
— Devias ser poeta, Norman, não jornalista.
Norman suspirou.
— Basta que tentes ouvir com o coração, Sam.
Sam carregou ainda mais a sua pronúncia texana, sabendo o quanto irritava Norman, que viera de Boston.
— Neste momento, tudo o que consigo ouvir é a minha barriga. E não tem feito outra coisa senão queixar-se de que são horas de comer.
Norman franziu-lhe o sobrolho.
— Os texanos não têm poesia nenhuma na alma. Só ferro e pó.
— E cerveja. Não te esqueças da cerveja.
O computador portátil assinalou de súbito as seis da tarde, chamando a atenção de ambos.
Um gemido roufenho escapou dos estreitos confins da garganta de Sam.
— É melhor arrumarmos tudo antes que o Sol se ponha. — Quando a noite caísse, o local ficaria pejado de salteadores.
Norman assentiu com a cabeça e contorceu-se para agarrar nas malas que continham o seu equipamento fotográfico.
— Por faltar em ladrões de túmulos, ouvi tiros a noite passada — disse ele.
Sam franziu o sobrolho enquanto guardava os seus pincéis e pequenos cinzéis.
— O Guillermo teve de afugentar um bando de huaqueros. Estavam a tentar escavar um túnel até às nossas ruínas. Se o Gil não os tivesse encontrado, poderiam ter penetrado a escavação e destruído meses de trabalho.
— Ainda bem que o teu tio se lembrou de contratar segurança.
Sam acenou com a cabeça, mas ouviu o tom de desagrado na voz de Norman perante a referência a Guillermo Sala, o antigo polícia de Cusco responsável pela segurança da expedição. Sam partilhava o sentimento do jornalista. De cabelo e olhos negros, Gil exibia cicatrizes que Sam desconfiava não terem surgido todas em resultado do seu trabalho. Sam também se apercebera dos olhares sorrateiros que trocava com os colegas sempre que Maggie passava. As rápidas palavras em espanhol, trocadas por entre gargalhadas guturais, aqueciam o sangue de Sam.
— Alguém ficou ferido na troca de tiros? — perguntou Norman.
— Não, foram apenas tiros de aviso, para afugentar os ladrões.
Norman continuou a arrumar o seu equipamento.
— Achas que podemos encontrar um túmulo repleto de riquezas?
Sam sorriu.
— E descobrir o Tutankhamon do Novo Mundo? Não, não acho. É o sonho do ouro que atrai os ladrões, mas não o meu tio. O que o atraiu até aqui foi o conhecimento... e a verdade.
— Mas o que procura ele tão teimosamente? Eu sei que está à procura de provas da existência de uma outra tribo que antecedeu os incas, mas porquê esta necessidade obstinada de segredo. A certa altura tenho de enviar o meu relatório à National Geographic, para que tenham informação atualizada antes do próximo prazo.
Sam franziu o sobrolho. Não tinha uma resposta para dar a Norman. As mesmas perguntas tinham estado a ecoar na sua mente. O tio Hank guardava para si uma qualquer informação. Era sempre assim, com o professor. Em tudo o resto era bastante aberto, mas no que dizia respeito a assuntos profissionais, podia ser muitíssimo reservado.
— Não sei — acabou por dizer Sam. — Mas confio no professor. Se farejou alguma coisa, vamos ter de esperar.
Um grito ergueu-se de súbito do buraco escavado no terraço vizinho:
— Sam! Anda ver!
A cabeça de Ralph Isaacson coberta por um capacete emergiu do fosso, o entusiasmo a iluminar-lhe os olhos. Aquele homem grande, um colega de pós-graduação, provinha da Universidade do Alabama. Financiado por uma bolsa de futebol americano, tinha tido notas excelentes durante a licenciatura e conseguira obter uma bolsa de mérito para concluir o mestrado em arqueologia. Era tão inteligente quanto musculoso.
— Tens de ver isto! — A lâmpada de carboneto do capacete de Ralph brilhou na direção deles. — Alcançámos uma porta selada, com escritos!
— A porta está intacta? — gritou Sam, erguendo-se com entusiasmo.
— Sim! E a Maggie diz que não há vestígios de ter sido mexida.
Podiam estar perante a descoberta do que procuraram durante os últimos meses. Um túmulo ou câmara real intactos dentro das ruínas antigas. Sam ajudou Norman, sobrecarregado pelas muitas câmaras, a subir os degraus íngremes, em direção ao terraço mais alto da Praça do Sol.
— Achas...? — arquejou Norman.
Sam ergueu uma mão.
— Pode não ser mais do que a cave de um dos templos incas. Não deixemos crescer demasiado a esperança.
Quando alcançaram o terraço escavado, Norman já respirava com dificuldade. Ralph franziu o sobrolho, mostrando o seu desdém pelo cansaço do fotógrafo.
— Estás com problemas, Norman? Posso pedir à Maggie que ajude a carregar-te.
O fotógrafo revirou os olhos e refreou-se de comentar, demasiado sem fôlego para falar.
Sam juntou-se a eles no cimo da praça. Também respirava com dificuldade. Qualquer esforço realizado àquela altitude sobrecarregava os pulmões e o coração.
— Deixa-o em paz, Ralph — censurou. — Mostra-nos o que encontraste.
Ralph abanou a cabeça e indicou-lhes o caminho com a lâmpada do capacete. A ampla estatura do homem de cor enchia o fosso de noventa centímetros de largura, enquanto descia a escada. Ao contrário de Sam, Ralph não se dava bem com Norman. Desde que o fotógrafo dera a conhecer a sua orientação sexual, gerara-se entre os dois uma certa fricção. Criado numa região dos Estados Unidos profundamente protestante, conhecida como Bible Belt, Ralph parecia incapaz de ultrapassar certos preconceitos que nada tinham a ver com a cor. Mas Henry insistira que todos trabalhassem juntos. Fossem uma equipa. E os dois tinham desenvolvido uma cooperação mal-humorada.
— Idiota — murmurou Norman num sussurro, ajeitando o peso das câmaras.
Sam deu uma palmada no ombro do fotógrafo e olhou de relance para o buraco escavado. Os degraus da escada desciam nove metros até ao emaranhado de câmaras e corredores em baixo.
— Não deixes que ele te afete — disse Sam. Apontou na direção da escada. — Vai. Eu sigo-te.
Enquanto desciam, Ralph voltou a falar, as palavras uma vez mais num crescendo de entusiasmo.
— Recebemos os resultados da datação por carbono do nível mais fundo esta manhã. Ouviste, Sam? Ano 1100 depois de Cristo. Anteriores aos malditos incas em dois séculos.
— Eu ouvi — disse Sam. — Mas a margem de erro da datação ainda permite que questionemos o resultado.
— Talvez... mas espera até veres as gravações!
— São da imagética inca? — perguntou Sam.
— É demasiado cedo para o dizer. Quando descobrimos a porta, vim a correr buscar-vos. A Maggie está lá em baixo a tentar limpá-la. Achei que devíamos estar todos presentes.
Sam continuou a descida. A luz das lanternas brilhava em baixo, projetando a sua sombra para a parede do poço. Conseguia imaginar Maggie curvada, com o nariz a centímetros da porta, meticulosa com o pincel e as pinças, enquanto libertava a história daquelas pessoas dos séculos de lama e barro. Também conseguia imaginar o cabelo castanho-avermelhado preso num comprido rabo de cavalo, enquanto trabalhava, a maneira como se formavam pregas no nariz quando se concentrava, os pequenos sons de prazer que emitia quando descobria algo de novo. Se ao menos pudesse atrair um décimo da atenção que as pedras das ruínas recebiam dela.
Sam tropeçou num dos degraus da escada e teve de se segurar, agarrando-se rapidamente. Depois de mais três degraus, os pés tocaram na pedra. Desceu da escada e avançou para a gruta apertada do primeiro nível. Os candeeiros de sódio feriram-lhe os olhos, com a sua luminosidade, ao mesmo tempo que o odor pesado do solo revirado e do barro húmido lhe enchia as narinas. Aquele não era um túmulo poeirento e seco do Egito. A neblina constante e as tempestades que se abatiam frequentemente sobre a selva saturavam o solo no cimo dos Andes. Em vez de areia, os arqueólogos debatiam-se com raízes bolorentas e barro húmido para libertar os segredos escondidos da estrutura subterrânea. Em redor de Sam, o trabalho dos engenheiros antigos brilhava sob a luz, tijolos e pedras tão habilmente reunidos que nem sequer a lâmina de uma faca poderia deslizar entre eles. Contudo, nem mesmo uma tal conceção podia suportar plenamente o passar do tempo. Muitas áreas da estrutura subterrânea tinham sido enfraquecidas pelas raízes serpenteantes e por séculos de barro e solo acumulados.
Em volta de Sam, as ruínas gemiam. Era um ruído frequente, as pedras sob tensão, assentando depois de removido o barro e a terra que enchia as salas e os corredores, esvaziando-os. Os trabalhadores quéchuas locais tinham instalado uma gelosia de traves de apoio em madeira para sustentar os pilares e tetos antigos, danificados pelas raízes. Ainda assim a estrutura subterrânea gemia com o peso da terra que se acumulava sobre ela.
— Por aqui — disse Ralph, guiando-os para a escada de madeira que descia para o segundo nível de túneis e salas. No entanto, aquele não era o seu derradeiro destino. Depois de terem descido mais duas escadas, alcançaram os níveis mais fundos, quase quinze metros abaixo da superfície. Aquela secção ainda não fora completamente limpa ou mapeada. Avançando pela estrutura alveolar de estreitos túneis escavados e salas suportadas por estruturas de madeira, trabalhadores de tronco nu carregavam sacas de lama e destroços. Por norma, os túneis ecoavam com as vozes dos trabalhadores a entoar canções nativas, mas por ora os corredores estavam em silêncio. Até os trabalhadores desconfiavam da importância daquela descoberta.
O silêncio pairava como um cobertor de lã sobre as ruínas. O loquaz Ralph interrompera, por fim, o seu discurso sobre a descoberta da câmara selada. Os três avançaram em silêncio através dos últimos túneis que conduziam à sala mais distante. Uma vez chegado à antecâmara mais ampla, o trio, que tinha avançado com dificuldade em fila indiana através da passagem, espalhou-se. Sam conseguiu, por fim, ver algo mais do que as costas encurvadas de Norman Fields.
A câmara não era maior do que uma estreita garagem para um carro. No entanto, naquela pequena sala, enterrada quinze metros abaixo da superfície, Sam sentia que a história estava prestes a ser revelada. No lado mais distante da câmara erguia-se uma parede de pedra de cantaria erigida, uma vez mais, com tal mestria que os pedaços de granito encaixavam uns nos outros como um puzzle intrincado. Embora em muitos pontos estivesse ainda coberto de barro e lama, o trabalho tinha, claramente, sobrevivido ao passar dos anos e aos elementos. No entanto, por impressionante que fosse a sua arquitetura, o que se erguia no centro daquela parede chamou a atenção de todos: um rude arco de pedra, bloqueado por um bloco de pedra cuidadosamente cortado à medida. Três barras horizontais de um metal baço, cada uma delas com um palmo de largura, atravessavam a porta e estavam presos tanto à porta em si, quanto à ombreira.
Ninguém tinha atravessado aquela porta desde que os antigos a haviam selado.
Sam obrigou-se a respirar. O que quer que se encontrasse para lá daquela porta fechada era mais do que uma mera passagem para uma subcave. Quem quer que a tivesse selado pretendia proteger e preservar algo de enorme valor para a sua sociedade. Para lá daquele portal encontravam-se segredos escondidos há séculos.
Ralph quebrou por fim o silêncio.
— O raio da porta tem uma tranca melhor do que o Fort Knox!
Aquelas palavras quebraram o feitiço que a porta lançara sobre Sam. Apercebeu-se por fim da presença de Maggie, sentada de pernas cruzadas à frente do portal. Tinha o cotovelo pousado sobre um joelho e descansava o rosto na palma da mão. Os olhos estavam fixos na porta, a estudá-la. Não mostrou qualquer sinal de se ter apercebido da sua chegada.
Apenas Denal, o rapaz quéchua de treze anos que servia de tradutor, os saudou com um pequeno aceno de cabeça quando entraram. O jovem tinha sido contratado nas ruas de Cusco pelo tio de Sam. Criado no orfanato de uma missão católica, Denal tinha um domínio bastante bom do inglês. Além disso, era bem-educado. Encostado a uma viga de madeira à direita, Denal segurava entre os lábios um cigarro apagado. Fumar na escavação fora proibido, tanto para preservar o que pudessem descobrir, como para proteger a qualidade do ar nos túneis.
Sam olhou de relance à sua volta e apercebeu-se de que faltava alguém.
— Onde está o Philip? — perguntou. Quando o professor partiu para os Estados Unidos, Philip Sykes, o aluno de pós-graduação mais avançado, fora encarregue de supervisionar a escavação. Também deveria estar presente.
— O Sykes? — Maggie franziu o sobrolho. Um toque do seu sotaque irlandês invadiu-lhe a voz tensa. — Fez uma pausa. Saiu há mais de uma hora e ainda não voltou.
— Quem perde é ele — balbuciou Sam. Ninguém argumentou a favor de irem à procura do aluno de pós-graduação de Harvard, para que estivesse presente. Depois de ter assumido o título de líder da equipa, a atitude altiva de Philips irritara todos aqueles com quem lidava, até os estoicos quéchuas. Sam aproximou-se da porta. — Maggie, o Ralph referiu a presença de escritos. São legíveis?
— Ainda não. Limpei a lama, mas tive medo de raspar a superfície e danificar as gravações. O Denal enviou um dos trabalhadores em busca de um kit de limpeza com álcool, para esta fase final.
Sam inclinou-se para mais perto da passagem abobadada.
— Acho que é hematite polida — disse, ao mesmo tempo que esfregava a ponta de uma das barras. — Reparem na ausência de ferrugem. — Recuou para que Norman pudesse tirar algumas fotografias da porta intocada.
— Hematite? — perguntou Norman, enquanto media a luz da sala.
Ralph respondeu, enquanto o jornalista tirava fotografias.
— Os incas nunca descobriram a arte de fundir ferro, mas as montanhas estão repletas de hematite, um minério retirado do ponto de impacto de antigos asteroides. Todas as ferramentas incas encontradas até à data são feitas de pedra simples ou hematite, o que torna a construção das suas cidades sofisticadas ainda mais impressionante.
Depois de Norman ter tirado as suas fotografias, Maggie estendeu um dedo na direção da barra metálica mais alta, o dedo pairando sobre a sua superfície, como se temesse tocá-la. Com a ponta do dedo, deslizou pelo ponto onde a barra estava presa ao arco de pedra. Cada ferrolho tinha a espessura do polegar de um homem.
— Quem quer que tenha construído isto queria impedir que o quer que esteja no seu interior visse a luz do dia.
Antes que alguém lhe pudesse responder, um trabalhador de cabelos negros avançou para a câmara. Trazia frasquinhos de álcool e água destilada, bem como um punhado de pincéis.
— Talvez as gravações nos deem uma pista do que se encontra do outro lado — comentou Sam.
Sam, Maggie e Ralph pegaram em pincéis e começaram a passar a solução de álcool diluído nas barras. Norman ia olhando, enquanto os estudantes trabalhavam. Dedicando-se à barra do meio, o nariz e os olhos de Sam ardiam com os vapores à medida que o álcool atuava sobre a terra presa nos sulcos das inscrições no metal. Uma derradeira passagem com água destilada limpou o álcool, e panos limpos foram entregues aos três estudantes para que pudessem limpar os detritos soltos.
Sam esfregou suavemente o centro da sua barra em pequenos círculos suaves.
Maggie trabalhava no selo acima dele. Ralph no de baixo. Sam ouviu um ligeiro arquejo de Ralph. Maggie fez eco da sua surpresa.
— Santa Maria, é latim — disse ela. — Mas isso... isso é impossível!
Sam era o único que mantinha o silêncio. Não porque a sua barra estivesse em branco, mas porque aquilo que descobrira o deixara chocado. Afastou-se da barra parcialmente limpa. Tudo o que conseguia fazer era apontar para o seu centro.
Norman curvou-se para mais perto do local onde Sam estivera a trabalhar. Também ele nada disse, a única coisa que fez foi endireitar-se, de queixo caído.
Sam continuava a fitar o que havia descoberto. No centro da barra estava profundamente gravada uma cruz na qual fora montada uma figura minúscula de um homem crucificado.
— Jesus Cristo — praguejou Sam.
Guillermo Sala estava sentado num tronco no limite da floresta, uma espingarda apoiada no joelho. Enquanto o Sol se aproximava mais da linha do horizonte atrás de si, as árvores jovens que cresciam em redor das ruínas lançavam as suas sombras esguias sobre o chão, estendendo-se até ao poço quadrado a quinze metros de distância. A partir do buraco escancarado, a luz dos candeeiros iluminava o crepúsculo, engolindo as sombras que se projetavam na direção do poço. Até as sombras famintas sabiam o que havia lá em baixo, pensou Gil. Ouro.
— Podíamos cortar-lhes agora as gargantas — disse Juan, que se encontrava ao seu lado. Apontou com a cabeça na direção do círculo de tendas para onde os cientistas se tinham retirado, para estudar as gravações na porta do túmulo. — Lançar as culpas aos ladrões.
— Não. O assassínio de gringos atrai sempre demasiadas atenções — disse Gil. — Mantemos o plano. Esperamos pela calada da noite. Quando estiverem a dormir. — Deixou-se ficar sentado, pacientemente, enquanto Juan se agitava ao seu lado. Quatro anos numa prisão chilena tinham ensinado muito a Gil sobre o preço de se apressar.
Juan praguejou baixinho, enquanto Gil se limitava a ouvir os sons da floresta que despertava à sua volta. À noite, a floresta ganhava nova vida sob o luar. Todas as noites, o jogo da presa e do predador desenrolava-se nas sombras escuras. Gil adorava aquela hora da noite, quando a floresta despertava abandonando a sua inocência verdejante e revelando o seu coração negro.
Sim, podia esperar, como a selva, pela noite e pela Lua. Já esperara quase um ano. Primeiro, assegurando-se de que lhe era atribuída a segurança do acampamento, de seguida reunindo a equipa certa. O seu trabalho era guardar o túmulo e fizera-o diligentemente, não para poder preservar o passado para aquele grupo de cientistas americanos, mas para guardar os tesouros para si.
Aqueles americanos maricones ofendiam-no com a sua estupidez e com a cegueira que mostravam em relação à pobreza que os rodeava. Pilharem os túmulos do país em nome da história, quando a mais pequena das joias ali enterradas poderia alimentar uma família durante anos. Gil lembrou-se dos tesouros descobertos em 1988, na Pampa Grande, num túmulo moche incólume. Uma abundância de ouro e joias. Os camponeses, que não queriam mais do que algumas migalhas daquela ceifa de riquezas, tinham perecido às mãos dos guardas, para que os tesouros pudessem definhar em museus estrangeiros.
Uma tal tragédia jamais ocorreria ali. Aquela era a herança do seu povo! Deveriam ser eles a lucrar com o seu próprio passado!
A mão de Gil deslizou para a protuberância no seu colete. Um dos muitos presentes dos guerrilheiros de esquerda que viviam nas montanhas e que tinham ajudado Gil naquela sua aventura. Gil tocou na granada que guardava no bolso.
Deveria apagar o seu rasto depois de assaltarem o túmulo, mas se aqueles cientistas americanos pelotudos tentassem interferir... bem, havia sempre formas mais rápidas de morrer do que pelo gume de uma faca.
Maggie O’Donnel detestava latim. Não se tratava de um simples desagrado perante a língua morta, mas de um ódio profundamente sentido. Educada em colégios católicos rígidos, em Belfast, fora obrigada a estudar latim durante vários anos, e mesmo depois das muitas pancadas desferidas sobre os nós dos dedos pelas freiras sádicas, não conseguira aprender nada. Fitava agora as cópias de carbono das inscrições abertas sobre a mesa da tenda principal.
Sam empunhava uma lente sobre uma das cópias filigranadas da barra superior. Um candeeiro oscilava sobre a sua cabeça. Ele era o melhor epígrafo daquele grupo de estudantes, hábil no decifrar das línguas antigas.
— Acho que diz: Nos Christi defenete, mas não ponho a mão no fogo.
O jornalista, Norman Fields, espreitava por cima do ombro de Sam, a câmara a postos encostada à cintura.
— E que raio quer isso dizer? — perguntou Maggie amargamente, sentindo-se inútil, incapaz de contribuir para a tradução. Ralph Isaacson, que era igualmente fraco no que ao latim dizia respeito, pelo menos sabia cozinhar. Estava no exterior de tenda a tentar acender o fogão de campismo para começar a fazer o jantar.
Desde a partida do professor, a equipa esforçara-se para limpar as ruínas e catalogar de forma tanto quanto possível eficiente. Cada um deles tinha os seus próprios deveres. Todas as noites, Ralph cozinhava, deixando a limpeza nas mãos de Norman e Sam, enquanto Maggie e Philip se dedicavam à entediante tarefa de introduzir os relatórios do dia no computador.
Sam interrompeu os sonhos acordados de Maggie. Torceu o nariz enquanto tentava ler os escritos.
— Acho que diz «Cristo preserva-os» ou «Cristo protege-os» — disse. — Algo assim.
Philip Sykes, aluno doutoramento, estava deitado numa das camas, com um pano frio em cima dos olhos. A irritação por ter sido deixado de fora da descoberta ainda o perturbava, claramente.
— Errado — disse, num tom mordaz, sem se mover de onde estava deitado. — A tradução é Cristo protege-nos. A nós não a eles. — Seguiu a sua afirmação com um som de desdém.
Maggie suspirou. Não era de admirar que Philip soubesse latim tão bem. Mais uma razão para ela odiar a língua morta. Ele era uma constante fonte de conhecimentos triviais, pronto para corrigir de imediato os erros dos outros estudantes. Mas, embora se distinguisse no conhecimento de factos, faltava-lhe a experiência de campo, daí a sua presença naquela equipa. Precisava de horas de escavação para poder receber o doutoramento. Depois disso, Maggie desconfiava que o pedante nunca mais voltaria a deixar os corredores de marfim de Harvard, a sua alma mater, onde a cátedra de arqueologia que pertencera ao seu falecido pai decerto o esperava. A Ivy League continuava a ser um clube de rapazes. E Philip, sendo filho de um estimado colega, tinha uma chave.
Alongando os ombros, aproximou-se de Sam. Um bocejo escapou-lhe antes de se conseguir impedir. Tinha sido um dia longo que culminara numa atividade febril, a fotografar a porta, a fazer um molde de gesso das barras que a fechavam, a copiar os escritos com carbono, a registar e documentar tudo.
Sam dirigiu-lhe um pequeno sorriso e afastou o decalque da gravação da barra do meio. Continha apenas o crucifixo gravado na hematite metálica. Não incluía qualquer outro escrito. Sam baixou a lupa para a terceira e última cópia num fino papel vegetal.
— Esta barra tinha muita coisa escrita. Contudo, a letra é muito mais pequena e não está tão bem preservada — disse. — Só consigo ler uma parte.
— Bem, então o que consegues ler? — perguntou Maggie, deixando-se cair numa cadeira desdobrável junto da mesa. Uma dor de cabeça começava a despontar por trás da fonte direita.
— Dá-me alguns minutos. — Sam inclinou a cabeça para o lado, observando através da lente, de olhos semicerrados. O chapéu de cowboy Stetson, que normalmente lhe cobria a cabeça, num ângulo inclinado, repousava na mesa ao seu lado. O professor Conklin insistira para que mantivessem um mínimo de boas maneiras mesmo na floresta. Quando dentro das tendas, os chapéus saíam, e Sam mantinha o protocolo, embora o tio não estivesse presente. Sam recebera uma boa educação, pensou Maggie, disfarçando um pequeno sorriso. Fitava o sobrinho do professor. O cabelo louro escuro de Sam ainda se lhe agarrava ao crânio desenhando os contornos do chapéu.
Maggie resistiu ao desejo de estender a mão e lhe despentear o cabelo, para o libertar.
— Então, o que achas, Sam? Achas mesmo que foram os conquistadores espanhóis que gravaram essas barras?
— Quem mais o poderia ter feito? Os conquistadores devem ter percorrido o interior da pirâmide e deixado a sua marca. — Sam ergueu a cabeça, um franzir de sobrolho a marcar-lhe o rosto. — E se os espanhóis estiveram aqui, podemos dizer adeus a qualquer possibilidade de encontrarmos o túmulo intacto. Resta-nos apenas rezar para que os conquistadores nos tenham deixado algumas migalhas que confirmem a teoria do professor.
— Mas, de acordo com os textos, os espanhóis nunca descobriram quaisquer cidades na região. Não há qualquer referência a que os conquistadores alguma vez tenham esticado as suas mãos larápias até tão longe de Cusco.
Sam limitou-se a apontar para a mesa carregada de gravações em latim.
— Está aqui a prova. Pelo menos, isso é certo. Os conquistadores que chegaram até aqui não devem ter conseguido regressar aos seus batalhões em Cusco. Os nativos devem tê-los assassinado antes de conseguirem descer das montanhas. A descoberta desta cidade morreu com eles.
— Então, talvez não tenham tido a oportunidade para pilhar o túmulo — insistiu Maggie.
— Talvez...
Maggie sabia que as suas palavras de pouco serviam para convencer alguém. Também ela sabia que, se os conquistadores dispuseram de tempo para gravar aquelas barras, tinham tido mais do que tempo para pilhar o templo. Não sabia o que mais dizer, pelo que se deixou ficar afundada na cadeira.
Sam ergueu a voz.
— Muito bem. Isto é o melhor que consigo perceber desta confusão. Domine sospitate qualquer coisa qualquer coisa hoc sepulcrum caelo relinquemeus. Depois, algumas linhas que não consigo perceber de todo, seguido de ne peturbetur no final. É isso.
— E o que significa? — perguntou Maggie.
Sam encolheu os ombros e dirigiu-lhe um dos seus sorrisos espertinhos.
— Pareço-te romano?
— Oh, meu Deus! — exclamou Philip, atraindo a atenção de Maggie e Sam. Sentou-se de súbito. O pano caiu-lhe do rosto para o colo.
— O que foi? — Sam baixou a lupa.
— A última parte pode traduzir-se por: Entregamos este túmulo aos Céus. Que nunca seja perturbado.
Ralph entrou subitamente na tenda, trazendo nas mãos quatro canecas.
— Quem quer café? — Estacou quando viu que estavam todos parados, de olhos muito abertos. — O que aconteceu?
Sam foi o primeiro a revelar-se capaz de falar.
— Que tal abrirmos antes o champanhe? Um brinde a um bando de velhos conquistadores por terem protegido o nosso investimento.
— O quê? — perguntou Ralph, com uma careta de confusão.
Philip falou em seguida, a voz marcada por um entusiasmo contido.
— Senhor Isaacson, o nosso túmulo pode ainda estar intacto!
— Como é que...?
Maggie pegou numa das folhas de papel vegetal para onde tinham copiado as gravações. Ergueu-a na direção dele.
— Por Cristo, há que adorar o latim.
Sam quase não conseguia conter a excitação, enquanto esperava junto ao computador para se ligar ao site de Internet da universidade através da ligação por satélite. Estava sentado na tenda de comunicações com os outros estudantes reunidos atrás dele. A tenda era resistente às intempéries e tinha isolamento contra os elementos, protegendo o equipamento delicado das neblinas eternas da selva àquelas altitudes.
Sam olhou para o relógio pela centésima vez. Faltavam dois minutos para as dez da noite, a hora a que, todas as noites, Sam ou Philip informavam o professor sobre os progressos realizados na escavação. Aquela, contudo, era a primeira noite em que a equipa tinha notícias entusiasmantes para partilhar com o tio. Sam pressionou apressadamente as teclas, enquanto a ligação era estabelecida. Iniciou a transmissão de vídeo. A pequena câmara presa ao topo do monitor piscou o seu olho vermelho. A ligação de vídeo por satélite tinha sido um presente da National Geographic.
— Sorriam todos — murmurou Sam, enquanto terminava de ligar para a morada de Internet do tio.
O computador gemeu através da ligação e uma imagem de Henry apareceu tremeluzente no canto superior direito. Sam carregou em algumas teclas e a imagem encheu o ecrã. A transmissão de vídeo era fraca. Quando o tio acenou com a mão, para os saudar, os dedos moveram-se em arranques à frente do rosto.
Sam puxou o microfone para mais perto.
— Olá, professor.
O tio sorriu.
— Vejo que estão todos contigo esta noite. Devem ter algo para mim.
O rosto de Sam doía-lhe tão grande era o sorriso que tinha nos lábios, mas não ia entregar o prémio da equipa assim tão facilmente.
— Primeiro, faz-nos um resumo da múmia. Disseste ontem que a tomografia estava marcada para esta manhã. Como correu? — Sam arrependeu-se de ter feito a pergunta mal viu o rosto do tio ensombrar-se. Mesmo a quase cinco mil quilómetros de distância, Sam percebeu que o velho não tinha boas notícias. O sorriso de Sam desvaneceu-se. — O que aconteceu? — perguntou num tom mais sério.
Henry abanou a cabeça, uma vez mais num movimento intermitente, mas as palavras fluíam suavemente através do recetor.
— Estávamos certos em considerar que a múmia não era inca — começou —, mas, infelizmente, era europeia.
— O quê? — O choque sentido por Sam era partilhado pelos restantes.
Henry ergueu uma mão trémula.
— Tanto quanto consigo perceber, tratava-se de um sacerdote dominicano, provavelmente um frade.
Maggie inclinou-se na direção do microfone.
— E os incas mumificaram um dos seus mais odiados inimigos: o sacerdote de um Deus estrangeiro?
— Pois. É estranho. Planeio fazer alguma investigação aqui e ver se consigo mapear a história deste frade antes de regressar. Não era aquilo que queria provar, mas não deixa de ser intrigante.
— Em especial tendo em conta a descoberta que fizemos aqui — acrescentou Sam.
— Como assim? — perguntou Henry.
Sam falou-lhe da descoberta da porta selada e das inscrições em latim.
Henry assentia com a cabeça, quando Sam chegou ao final da sua descrição.
— Então os conquistadores descobriram realmente a aldeia. Raios. — Henry tirou lentamente os óculos e massajou as pequenas marcas no nariz. As palavras seguintes soaram mais como se o tio estivesse a pensar em voz alta.
— Mas o que terá acontecido há quinhentos anos? A resposta deve estar para lá dessa porta.
Sam quase conseguia ouvir o som das engrenagens em movimento na mente do tio.
Philip agarrou no microfone.
— Devemos abrir a porta amanhã?
Sam interrompeu-o antes que o tio pudesse responder.
— Claro que não. Acho que devíamos esperar até ao regresso do professor. Se se tratar de uma descoberta significativa, acho que precisamos do seu conhecimento e experiência para a explorar.
O rosto de Philip enrubesceu.
— Consigo lidar com tudo o que descobrirmos.
— Nem sequer conseguiste lidar...
Henry interrompeu, a voz séria e tensa.
— O senhor Sykes tem razão, Sam. Abram a porta amanhã. O que quer que se encontre do outro lado dessa porta selada pode ajudar à minha investigação aqui nos Estados Unidos. — Os olhos do tio deslizaram por todo o grupo. — E não é apenas no Philip que confio. Conto com todos vocês para prosseguirem tal como vos ensinei, de forma cautelosa e meticulosa.
Mesmo com estas últimas palavras, Sam apercebeu-se da expressão de satisfação maldosa no rosto Philip. O aluno de doutoramento de Harvard tornar-se-ia insuportável daí em diante. Os dedos de Sam agarravam a beira da mesa com raiva. Mas não se atrevia a questionar o tio. Soaria demasiado mesquinho.
— Sam — continuou o tio. — Gostaria de trocar algumas palavras em privado. — As palavras de Henry eram sérias e o seu tom de censura. — Os restantes podem ir dormir. Têm um longo dia pela frente, amanhã.
Um murmúrio ergueu-se dos outros enquanto se despediam e afastavam.
A voz de Henry seguiu-os a partir da tenda.
— E bom trabalho, malta!
Sam observou a partida dos outros. Philip foi o último a sair da tenda, mas não antes de ter exibido um tenso sorriso de triunfo nos lábios. A mão de Sam fechou-se num punho.
— Sam — disse baixinho o tio —, já foram todos?
Obrigando a mão a relaxar, Sam fitou de novo o tio.
— Sim, tio Hank — disse ele, assumindo uma postura mais familiar.
— Eu sei que o Philip consegue irritar toda a gente. Mas é um miúdo esperto. Se o Philip vier a ser metade do arqueólogo que era o pai, será um excelente académico. Por isso, dá-lhe alguma folga.
— Se o dizes...
— Digo. — Henry deslizou a cadeira para mais perto do computador, a imagem trémula cresceu no ecrã. — Agora, quanto à razão pela qual queria falar contigo em privado. Embora tenha dado voz ao meu apoio ao Philip, preciso que sejas os meus olhos e ouvidos amanhã. Tens muito mais experiência de escavação e estou a contar contigo para ajudares a orientar o Philip.
Sam não conseguiu conter um gemido.
— Tio Hank, ele jamais me dará ouvidos, já se acha o galo-mor da capoeira.
— Encontra uma forma, Sam. — Henry voltou a colocar os óculos, pondo um ponto final à questão. Fitou silenciosamente Sam, como se o avaliasse. — Para seres os meus olhos e ouvidos, precisarás de saber o que eu sei, Sam. Houve algumas coisas que escondi dos outros. Para amanhã avaliares adequadamente a vossa descoberta precisas de ser plenamente informado.
Sam endireitou-se mais. A sua irritação por causa de Philip desvaneceu-se num abrir e fechar de olhos.
— O que foi?
— Duas coisas. Primeiro, aconteceu algo estranho à múmia, aqui, na Johns Hopkins. — Henry explicou a explosão do crânio da múmia e a descarga dourada brilhante.
Sam erguera as sobrancelhas, que desenhavam um arco na testa.
— Credo, tio Hank, que raio lhe aconteceu?
— A patologista levantou a hipótese de ter ocorrido uma explosão de gás metano preso no interior da múmia, devido ao seu rápido descongelamento. Mas em quatro décadas de trabalho de campo, nunca vi nada assim. E aquela descarga... a doutora Engel está a tentar averiguar o que era. Talvez fique a saber mais dentro de alguns dias, mas até lá quero que mantenhas os olhos abertos. O mistério quanto ao que aconteceu nesta aldeia há cinco séculos pode ser respondido quando abrirem a porta.
— Estarei atento a quaisquer pistas e procederei com cautela, nem que tenha de obrigar o Philip a baixar a crista.
O tio riu-se.
— Mas lembra-te, Sam, os cavaleiros experientes sabem que é melhor controlar os cavalos teimosos apenas com um leve toque nas rédeas. Deixa o Philip pensar que é o líder e tudo vai correr bem.
Sam franziu o sobrolho.
— Ainda assim... porquê tanto secretismo, tio Hank?
Henry suspirou e abanou ao de leve a cabeça. De repente parecia muito mais velho do que era na realidade, os olhos estavam cansados.
— No mundo da investigação, os segredos são importantes. — Henry olhou de relance para Sam. — Lembra-te dos saqueadores. Mesmo nas regiões selvagens mais distantes dos Andes, algumas bocas soltas atraíram os caçadores de tesouros como o estrume atrai as moscas. O mesmo pode acontecer na comunidade de investigação. Línguas demasiado soltas podem arrasar bolsas, subsídios e posições. É uma dura lição que não gosto de ensinar.
— Podes confiar em mim.
Henry sorriu.
— Eu sei, Sam. Confio em ti plenamente. Teria de bom grado partilhado contigo tudo o que sei, mas não queria sobrecarregar-te com os segredos. Ainda não. Verás como pesam sobre o teu coração quando não consegues falar abertamente com os teus próprios colegas. Mas, neste momento, o desenrolar dos acontecimentos obriga-me a passar o fardo para os teus ombros. Tens de conhecer a última peça do puzzle, a razão pela qual tenho a certeza de que uma tribo mais antiga construiu esta cidade. — Henry inclinou-se ainda mais sobre o ecrã. — Acho que até sei quem foi.
— De que estás tu a falar? Quem? Este local tem a marca dos incas por todo o lado.
O tio ergueu uma mão.
— Eu sei. Nunca pus em causa que os incas ocuparam o local. Mas quem é que aí esteve antes? Li as histórias, registei histórias orais passadas de antepassado em antepassado de como o primeiro rei inca subiu às montanhas sagradas e descobriu a sua noiva numa cidade maravilhosa. Regressando com ela, fundou o império inca que haveria de durar centenas de anos. Por isso, mesmo nas suas histórias antigas, os incas admitiam que partilhavam as suas raízes com uma tribo estrangeira. Mas quem? É esse o mistério que ando a investigar há décadas. A minha investigação sobre este assunto conduziu à descoberta destas ruínas. Mas a resposta à derradeira questão, quem construiu esta cidade?, só a descobri o mês passado.
Sem palavras, a mente de Sam redemoinhava perante a ideia do quanto o tio lhe escondera.
— T... tu sabes mesmo quem construiu esta cidade?
— Deixa que te mostre. — Henry levou as mãos ao seu próprio rato e teclado e começou a percorrer os ficheiros. — Gostava de poder alegar que se tratou do brilhante resultado da minha investigação, mas na verdade tratou-se de um desses eventos fortuitos que parecem sempre impulsionar a arqueologia.
A imagem do tio encolheu para o canto do ecrã e eis que surgiu um esquema tridimensional da atual escavação. O pormenor da paisagem gerada por computador e das ruínas sobre a mesma impressionaram Sam. Recorrendo ao rato, Henry moveu a seta e o ecrã exibiu um grande plano aéreo das ruínas por cima da Praça do Sol. Um pequeno quadrado preto marcava o túnel de entrada para as ruínas subterrâneas.
— Eis a nossa escavação. O túnel para a estrutura subterrânea.
— Eu sei — contrapôs Sam —, mas o que tem isso a ver com...?
— Paciência, meu rapaz. — Henry dirigiu-lhe um sorriso forçado a partir do canto do ecrã. — O mês passado, por um acaso da sorte, recebi um CD-ROM de um colega investigador da Universidade de Washington, em St. Louis. Incluía mapas gerados por computador de várias pirâmides moches que estão, atualmente, a ser escavadas na Pampa Grande, ao longo da costa. A mais de novecentos e cinquenta quilómetros.
— Escavações moches? — Sam tentou recordar as suas lições sobre a região. Muitos séculos antes da ascensão da civilização inca, as tribos moches viviam ao longo dos trezentos quilómetros de costa peruana. Construtores de pirâmides e artesãos capazes de realizar intrincados trabalhos de metal, as suas tribos tinham prosperado entre o ano cem e o ano setecentos depois de Cristo. Depois, sem qualquer razão aparente, a sua civilização desapareceu.
Henry tocou em mais algumas teclas, e o computador de Sam dividiu-se, de modo a exibir duas imagens lado a lado. A da esquerda era o mapa aéreo das suas ruínas. A da direita um novo esquema por computador de uma pirâmide escalonada. O tio apontou para ela com um dedo.
— Aqui está a pirâmide da Pampa Grande. — Aproximou a imagem até à ponta da estrutura moche.
— Oh, céus! — arquejou Sam.
— Agora conheces o meu pequeno segredo. — As duas imagens fundiram-se, sobrepondo-se. Equivaliam na perfeição. — A Praça do Sol é, na verdade a ponta de uma pirâmide moche. As nossas ruínas são, na realidade, os rastos de uma pirâmide subterrânea. Um dos seus templos sagrados.
— Meu Deus, tio Hank! Porque estás a manter este segredo? Deverias anunciar a tua descoberta!
— Não. Não enquanto não tiver mais provas físicas. Eu tinha a esperança de que os investigadores aqui da Johns Hopkins fossem capazes de correlacionar os marcadores genéticos da múmia com uma linhagem moche, o que substanciaria as minhas alegações. Mas... — Henry encolheu os ombros. — Parece que os mistérios desta ruína perdida na selva crescem a cada nova peça que juntamos ao puzzle.
— Os moches — disse Sam, atordoado com toda aquela informação. Padres mumificados, crânios que explodem, pirâmides enterradas, estranhos avisos escrevinhados em latim... como é que tudo aquilo se alinharia?
Quando falou, o tio parecia ter lido os seus pensamentos.
— As respostas para todos estes mistérios podem estar para lá dessa porta, Sam. Quase o consigo sentir. Por isso, tem cuidado.
Guillermo observou o acampamento escuro. A meia-noite aproximava-se. Tanto o grupo de jovens cientistas quanto os trabalhadores quéchuas tinham-se retirado para as suas tendas. As únicas luzes que restavam eram as dispostas em redor da escavação.
Erguendo a sua espingarda, Gil fez sinal a Juan e Miguel.
Juan, a sua estrutura esquelética quase indiscernível sob a copa da floresta envolvente, tocou no companheiro. De costas largas, mas atarracado em altura, Miguel emergiu do limite da selva, curvado sob o peso de um grande saco de lona. Este continha as ferramentas de que iriam necessitar para abrir uma passagem pela porta do túmulo. Juan seguia-o, de picareta ao ombro.
Gil fez-lhes sinal para que avançassem para o terraço mais alto. Sabia que teriam de ser rápidos, mas não se queixou. Ainda tinham horas suficientes até ao raiar do dia, e a notícia de que havia uma boa probabilidade de o túmulo permanecer intacto intensificara a esperança de Gil numa descoberta significativa.
Juntou-se a Juan e Miguel junto à entrada do poço.
— Não façam barulho seus hijos de putas — silvou-lhes. Gil ligou o botão que permitia a passagem de corrente para o gerador que alimentava os candeeiros no subterrâneo. Fez sinal a Juan para ir primeiro, seguido por Miguel.
Gil continuou a observar o acampamento enquanto desciam. A floresta tropical que os rodeava, os seus limites iluminados por quatro holofotes posicionados como os pontos cardeais em redor das ruínas, ecoava os pios e os guinchos ocasionais da noite. Os sons da selva e o som soluçante do gerador do campo deveriam mascarar os esforços daquela noite.
Satisfeito, Gil pendurou a espingarda ao ombro e desceu a escada para se juntar aos outros.
— Ai, Dios mio, isto cá em baixo é um labirinto do caraças — sussurrou Juan, tristemente.
Miguel limitou-se a resmungar, cuspindo a hoja de coca que lhe enchia a boca. As folhas de coca mascadas ficaram coladas às pedras de granito trabalhadas.
Nenhum dos dois alguma vez descera às ruínas. Apenas Gil tinha um conhecimento íntimo dos túneis e divisões do edifício enterrado. Agachando-se, conduziu-os através do labirinto até ao último poço, que conduzia à porta selada.
Juan continuou a resmungar atrás de Gil, até ter entrado por completo na câmara e ter visto a porta.
— Jesu Christo! — exclamou o homem magro.
Gil permitiu-se um pequeno sorriso. A porta em arco, em pedra de cantaria, transmitia uma imagem de tempos antigos e tesouros escondidos. As barras resplandeciam sob o brilho do solitário candeeiro de sódio. Os escritos e o crucifixo eram uma mancha escura contra o metal prateado.
— Não temos a noite toda — disse Gil de repente.
Sabiam o que tinha de ser feito. Miguel deixou cair o saco de ferramentas com um clangor metálico e vasculhou o seu interior. Juan manobrou a picareta em movimentos precisos, soltando as pedras em redor dos ferrolhos. Em seguida, Miguel usou o pé de cabra e o martelo para libertar os ferrolhos. Passados uns minutos, a barra de cima tombou sobre a lama e a pedra sob os seus pés.
Juan limpou o suor da testa, abrindo mais o sorriso. A camisa de Miguel colava-se a ele como se tivesse acabado de sair de um rio. Até Gil, que não fizera mais do que supervisionar os trabalhos, deu por si a limpar o rosto a um lenço. A humidade eterna daqueles túmulos parecia agarrar-se a eles, como se reclamasse os três como seus.
Em curta sequência, as outras duas barras juntaram-se à primeira na lama. O pó de pedra pairava na divisão, ardendo-lhes nos olhos e irritando-lhes os narizes. Juan espirrou e praguejou uma torrente de vulgaridades.
Gil tocou-lhe no ombro.
— Um pouco de respeito pelos nossos antepassados, ese. Estão prestes a deixar-nos ricos. — Limpou a mancha de lama do rosto de Juan com o polegar. — Podres de ricos.
Com um movimento do braço, Gil ordenou aos dois companheiros que se afastassem. Agarrou no pé de cabra e aproximou-se do bloco de pedra solto.
— Vamos lá a ver, mamita, o que tens aí escondido há tanto tempo.
Gil enfiou a ponta do pé de cabra entre a pedra e a arcada, em seguida apoiou todo o seu peso no pé de cabra, os músculos dos ombros e das costas tensos. De repente, ergueu-se um estalo arranhado da porta e a pedra moveu-se.
Gil recuou, o rosto ainda vermelho do esforço. Acenou a Juan e Miguel.
— Empurrem-na.
Os dois homens encostaram os ombros à pedra solta e empurraram. O bloco de pedra tombou para a frente. O pó brotou da abertura da câmara mortuária como um fantasma coberto por uma mortalha, e um baque abafado ecoou através da divisão, quando a pedra bateu no chão, junto à entrada do túmulo.
Abanando uma mão para afastar a nuvem de pó do rosto, Gil avançou para a porta.
— Passem-me uma dessas luzes — disse, curvando-se junto à entrada.
Miguel lançou-lhe uma lanterna que retirou do saco de lona. Gil agarrou o seu comprido punho prateado.
— Tresanda aqui — disse Juan enquanto se juntava a Gil e fitava por cima do ombro dele.
— É um túmulo — disse Gil, acendendo a lanterna. — O que estavam à espera de... — As palavras morreram-lhe na boca quando a luz deslizou pelas escuras profundezas do túmulo, iluminando a passagem à sua frente. Para lá de um curto corredor havia uma câmara enorme com certa de trinta metros de comprimento e de largura. Gil contava descobrir pilhas de ossos e peças de barro espalhadas pelo chão, mas a sua lanterna revelou algo que jamais poderia ter imaginado, nem mesmo nos seus sonhos mais embriagados.
— Dios mio! — exclamou com a voz rouca de assombro.
Os seus parceiros reuniram-se de ambos os lados, incapazes de falar.
À sua frente, as paredes direita e esquerda da câmara quadrada estavam forradas com folhas de ouro. O raio da lanterna de Gil refletia-se e cintilava nas superfícies espelhadas, um brilho que quase os cegara depois dos túneis sombrios da escavação. Mas Gil ignorou tudo aquilo, a sua luz fixou-se num só objeto que repousava sobre a pedra mais distante da câmara, mesmo em frente ao trio ali reunido.
— Vamos ficar todos podres de ricos, mi amigos.
Do outro lado da câmara erguia-se um ídolo dourado com cerca de um metro e oitenta, a figura de um rei inca, que envergava um manto e uma coroa ritual, e empunhava um bordão encimado por um sol estilizado. O trabalho detalhado era tão real que o rosto da figura parecia prestes a gritar o seu aviso a qualquer momento. Mas não foi emitido qualquer protesto. O rei inca, esculpido a ouro, erguia-se silencioso enquanto Gil conduzia os restantes para a câmara.
Curvando-se, Gil passou pela porta. Não esperou pelos outros, avançou pelo curto corredor, seguindo a atração do ouro. Para lá da porta, conseguiu endireitar-se de novo. Gil susteve a respiração perante o que via. Tanto o teto como o chão estavam igualmente cobertos de metais preciosos, um padrão intrincado de lajes de ouro e prata, cada um com cerca de um metro de lado. O padrão do teto espelhava o do chão. Aos pés do ídolo estavam empilhados utensílios e armas, também estes esculpidos em metais preciosos e incrustados com rubis, safiras, ametistas e esmeraldas. Gil abanou a cabeça. A quantidade de riqueza era, em si mesma, impossível de abarcar.
Juan avançou por fim, para se deter ao lado de Gil. Demonstrava inquietação, intimidado pela descoberta. Quando falou, tentou agir como se nada daquilo o tivesse afetado, mas a voz fraquejava.
— En... então, vamos deitar mãos à obra.
Miguel juntara-se, entretanto, a eles e fez o sinal da cruz, fitando o rei dourado.
— Ele não é um dos teus parentes mortos, Miguel — disse Juan, brincando com o compadre. — Tem calma.
— Este sítio está amaldiçoado — balbuciou Miguel, os olhos muito abertos enquanto fitava a divisão. — Devíamos apressar-nos.
— O Miguel tem razão — concordou Gil. — Temos de nos apressar. Agarrar o que pudermos esta noite e esconder tudo na floresta. Regressaremos antes do raiar do dia e trataremos dos americanos e dos seus escanzelados trabalhadores índios. Com estes fora do caminho, poderemos chamar mais homens, em quem confiamos, para nos ajudarem a carregar todo este tesouro.
Juan começou a avançar pelo chão de lajes. Os tacões das botas ecoavam estranhamente na câmara vazia. Acenou com a cabeça para o monte de objetos preciosos deixados aos pés do ídolo.
— Quanto a mim, levamos as coisas pequenas. Deixamos o carregar e o içar dos objetos mais pesados para os outros. Obrigá-los a ganhar a sua parte.
Gil seguiu-o, com Miguel a morder-lhe os calcanhares.
— Quando acabarmos aqui, haverá o suficiente para todos. Nem cem homens conseguiriam gastar toda esta riqueza durante o seu tempo de vida.
Juan olhou de relance para trás, um grande sorriso estampado no rosto.
— Ai sim? A ver vamos.
A meio da câmara, a armadilha foi ativada. Juan pisou uma laje de prata e o de ouro correspondente por cima dele abriu-se. Uma cascata de prata — milhares de correntes finíssimas — abateu-se sobre o companheiro de Gil. Arquejando, Juan baixou-se ao mesmo tempo que a sua forma se via imediatamente envolta pelas finas correntes. Uma vez caídas, as correntes formavam uma espécie de cortina a partir do painel aberto, como uma catarata de prata congelada. As correntes tilintavam animadamente, enquanto Juan dançava entre elas, chocado mas claramente incólume. Os seus movimentos serviam apenas para o deixar ainda mais entrelaçado nelas.
— Mas que...? — começou Juan, estendendo um braço para afastar o emaranhado de prata. A mão afastou-se de súbito. — Merda, estão cheias de ganchos.
Gil apercebeu-se por fim das centenas de farpas de um centímetro que cintilavam ao longo do comprimento de cada corrente. As suas pontas estavam curvadas para cima, articuladas, de tal modo que não causavam qualquer dano ao cair do teto.
Gil estacou a meio do movimento que iniciara na direção de Juan. Merda, pensou, quando se apercebeu, de súbito, do perigo. Um aviso ergueu-se demasiado tarde dos seus lábios.
De repente, a cascata de correntes começou a girar violentamente em redor de Juan, ao mesmo tempo que subia. O homem gritou, o som animalesco do pânico e do medo. Juan foi erguido a uma altura de dois metros do chão pelas correntes farpadas, contorcendo-se nos ganchos que o apertavam, antes de o seu próprio peso o fazer cair ao chão.
Juan ergueu-se, apoiado nas mãos e nos joelhos. Grande parte da roupa tinha-lhe sido arrancada do corpo, juntamente com vastas extensões da pele. Ergueu o rosto na direção de Gil. A orelha esquerda desaparecera; o couro cabelo dilacerado pendia de um dos lados da cabeça. Os olhos eram ruínas ensanguentadas. Cego, Juan não conseguia fazer mais do que uivar. E então, Gil viu a pele de Juan começar a enegrecer nos locais onde os ganchos a tinham penetrado.
Veneno.
Ainda assim, Juan uivava em agonia, gatinhando, arrastando-se lentamente pelo chão. Mas não foi longe. O veneno chegou-lhe ao coração e ele tombou sobre as lajes de ouro e prata. O grito interrompido a meio.
Miguel avançou para ver como estava o amigo.
Gil agarrou com força a camisa de Miguel e obrigou-o a parar. Os dois homens partilhavam a laje dourada ao centro no chão. Enquanto os gritos do amigo ecoavam até se desvanecerem por completo, Gil conseguiu ouvir o tiquetaque e o gemido das engrenagens gigantescas escondidas atrás das lajes e das paredes à sua volta. Tinham entrado numa armadilha gigantesca.
Gil olhou à sua volta. Erguiam-se na laje que marcava o centro da sala. Estudou o ouro sob os seus pés.
— Deve ter sido construído para ser ativado apenas quando a pessoa entrasse completamente na divisão. — Fitou as lajes que conduziam ao ídolo de ouro e as que conduziam à porta. O tiquetaque das engrenagens fazia-se ouvir a toda a volta. Desconfiava que nenhum dos caminhos era, agora, seguro.
Miguel gemeu ao lado dele.
Gil franziu o sobrolho perante a enorme riqueza à sua volta. Sabendo que a morte pairava atrás de toda aquela beleza, o brilho do ouro começou a desvanecer-se.
— Estamos encurralados.
Aninhado no seu saco-cama em cima de uma cama de campismo, Sam despertou com um ruído de um qualquer animal a cheirar junto à entrada da sua tenda. À noite, opossuns e outras criaturas noturnas curiosas vagueavam constantemente pelos limites da floresta tropical determinados a investigar o acampamento. Mas o que quer que ali estivesse agora era grande. A sua sombra, projetada pelos holofotes do acampamento, ocupava uma grande secção da aba da tenda. Sam tentou lembrar-se se tinha prendido os fechos depois de correr o fecho-éclair da proteção contra mosquitos. O seu primeiro pensamento foi jaguar. Alguns desses grandes felinos tinham sido vistos ao longo do rio Urubamba que atravessava a selva abaixo das ruínas.
Tão silenciosamente quanto possível, Sam levou a mão à sua espingarda Winchester, uma herança do avô, passada de pais para filhos na família Conklin, remontando a 1884. Sam não ia a lado nenhum sem ela. A espingarda não era disparada há anos, sendo mais uma recordação e um amuleto da sorte do que uma arma. Mas naquele momento, descarregada, podia servir como um bom aríete.
Os dedos deslizaram sobre a madeira da coronha da espingarda.
O que quer que estivesse lá fora, agitou o pano da tenda perto dos seus dedos dos pés. Raios, ele tinha-se esquecido de fechar a tenda! Sam saltou do saco-cama e agarrou na espingarda.
Ao mesmo tempo que lançava para trás a espingarda, a aba abriu-se.
— Sam, estás acordado? — Maggie espreitou por baixo da aba e esforçou-se por bater ao de leve na lateral da tenda.
Sam baixou a espingarda e pousou-a no colo, o coração ainda a bater nos ouvidos. Engoliu em seco para limpar a garganta e obrigou a sua voz a assumir um tom descontraído.
— Sim, estou acordado, Maggie. O que se passa?
— Não conseguia dormir e pus-me a pensar naquelas gravações. Preciso de trocar umas ideias contigo.
Sam tinha algumas fantasias em que Maggie se esgueirava para a sua tenda na calada da noite, mas nenhuma delas envolvia debater gravações em latim antigo. Ainda assim, qualquer visita noturna de Maggie seria bem-vinda.
— Está bem. Dá-me um segundo.
Rolando para fora do saco-cama, enfiou as calças Wrangler por cima dos boxers. Numa noite assim tão sufocante, raramente se preocupava com uma t-shirt, mas com Maggie ali a modéstia era mais importante do que o conforto. Sam assentou um casaco de cabedal sobre os ombros.
Agarrando no seu chapéu de cowboy Stetson, abriu o fecho da tenda e avançou para a noite. O brilho prateado da Lua cheia banhava o campo, empalidecendo a luz dos quatro holofotes colocados nos extremos do acampamento. Afastou da testa o cabelo despenteado e prendeu-o por baixo do chapéu.
Maggie recuou. Envergavas ainda as mesmas calças caqui com um colete a condizer sobre uma camisa vermelho-sangue. A única indicação de que tinha feito um qualquer esforço para relaxar, naquela noite, era o facto de ter libertado o cabelo do seu rabo de cavalo habitual. Os caracóis de um castanho-avermelhado caíam-lhe sobre os ombros, cobertos de prata pela noite.
Enfeitiçado pelo jogo dos raios da Lua sobre as faces e os lábios de Maggie, Sam precisou de procurar a sua voz.
— Então... o que se passa?
Como era habitual, os olhos dela não pareciam ver Sam.
— Foram os escritos na última barra. A de baixo. As palavras e linhas em falta. O latim é uma língua estranha. Uma só palavra pode alterar o significado de toda a mensagem.
— Sim?
— E se não estivermos a ler bem? E se uma dessas palavras ou linhas em falta negar a nossa tradução?
— É possível que o faça... mas amanhã conheceremos a verdade. Quando penetrarmos no túmulo pela manhã, ou estará intacto ou não estará.
Um toque de irritação penetrou na voz dela.
— Sam, quero saber antes de abrirmos o túmulo. Não queres saber o que pretendiam os conquistadores verdadeiramente comunicar-nos com aquelas barras?
— Claro, mas as palavras estão ilegíveis.
— Eu sei, Sam... mas foi apenas uma limpeza com álcool. — Ela fitou-o com um olhar cúmplice.
De súbito, Sam percebeu o que levara Maggie a acordá-lo. Manteve os lábios fortemente cerrados. Dois anos antes, apresentara uma tese sobre a utilização de uma tinta fosforescente para detetar e realçar as imagens escritas ténues, gastas pelo tempo, em pedra e metal. A sua ideia fora ridicularizada por todos.
— Trouxeste o teu produto, não trouxeste? — perguntou Maggie.
— Não sei do que falas — balbuciou Sam. Não contara a ninguém, nem ao tio, que se tinha recusado a abandonar a teoria, passando anos a investigar as diversas viscosidades de diferentes tintas e gamas de luzes UV. Mantivera os seus estudos secretos, não querendo passar por uma nova humilhação até poder apresentar um teste no terreno, experimentando-o quando não houvesse mais ninguém por perto para o ridicularizar. De súbito apercebeu-se de que não era muito diferente do tio no que dizia respeito a guardar segredos.
Os olhos de Maggie cintilaram no escuro.
— Li a tua tese. Arranjaste maneira de o pôr a funcionar, não foi, Sam?
Sam ficou imóvel, a pestanejar. Como teria ela descoberto? Por fim, o choque desvaneceu-se o suficiente para que conseguisse falar.
— Eu acho que o resolvi, mas ainda não tive oportunidade de o aplicar no terreno.
Maggie apontou para as ruínas.
— Então, está na hora. Os outros já estão à nossa espera junto à entrada da escavação. — Ela virou-se para sair.
— Os outros?
Olhando de relance por cima do ombro, Maggie franziu o sobrolho.
— Claro, Sam... o Norman e o Ralph. Eles devem participar disto.
— Suponho que sim. — Sam revirou os olhos, preparando-se para ser humilhado caso falhasse. Pelo menos, Philip não tinha sido convidado. Sam não toleraria falhar à frente do senhor Harvard. — Deixa-me ir buscar os meus frascos e a luz UV.
Enquanto Sam levava a mão à aba da tenda, a selva irrompia subitamente numa cacofonia de guinchos e chamamentos. Mil pássaros ergueram-se do topo das árvores em redor do acampamento e desataram a voar.
Maggie deu um passo para mais perto de Sam.
— Mas que raio...?
Sam olhou de relance à sua volta, mas a floresta tropical depressa voltou a sossegar.
— Algo os deve ter assustado. — Ficou à escuta durante mais algum tempo, mas apenas o zumbido do gerador chegou aos seus ouvidos. A selva estava agora em silêncio, como um estranho assustador a fitá-los. Sam avaliou a floresta durante mais um instante, depois regressou à tenda. — Vou buscar as minhas coisas.
Apressou-se a entrar na tenda e a recolher a sacola onde guardava as tinturas e a lanterna ultravioleta especial. Enquanto estava a sair, os seus olhos repousaram na velha Winchester. Instintivamente, agarrou-a e lançou-a sobre o ombro, mas não antes de ter carregado rapidamente alguns cartuchos 44/40 no carregador da espingarda e ter metido ao bolso uma caixa de cartão com mais alguns. Depois de anos de acampamentos noturnos no Texas selvagem, Sam aprendera a estar preparado.
Ao emergir da tenda, encontrou Maggie que, de costas viradas para ele, fitava os limites da selva.
— Continua tudo diabolicamente silencioso — disse ela. — É como se a floresta estivesse a suster a respiração.
— Se queremos testar isto — disse Sam, ansioso por se pôr a caminho —, é melhor despacharmo-nos. A madrugada está a poucas horas de distância.
Maggie acenou com a cabeça, desviando relutantemente o olhar da selva.
Sam avançou em direção às ruínas em socalcos. Com a floresta tropical tão silenciosa, os seus passos nas pedras de granito pareciam inusitadamente sonoros. Sam deu por si a caminhar cautelosamente, com medo de perturbar o silêncio, como quem passeia pelo cemitério à meia-noite. Foi com felicidade que alcançou, por fim, o cume da Praça do Sol. A luz brilhou a partir do poço escavado.
Iluminadas pela luz fraca estavam duas figuras sombrias: uma magra e outra corpulenta. Norman e Ralph. Estavam ali parados afastados um do outro.
O antigo linebacker ergueu uma mão em sinal de saudação. Apontou na direção do poço.
— Quem é que deixou as lâmpadas acesas?
Maggie abanou a cabeça enquanto subia para o último nível plano da praça.
— Eu sei que as apaguei. — Observou as ruínas à sua volta. — O mais certo é que aquele idiota do Guillermo as tenha acendido durante as rondas e as tenha deixado ligadas. E já agora, por onde anda? Pensei que era suposto ele guardar este sítio.
— Provavelmente, está na floresta, atento a qualquer sinal dos salteadores da noite passada. Talvez tenha sido ele a assustar os pássaros.
A selva permanecia num silêncio de morte. Norman fitou a floresta negra.
— Nunca gostei da escuridão. Até me arrepio quando estou sozinho na minha câmara escura em casa.
Ralph provocou-o com uma espetacular imitação do tema de Twilight Zone. Norman fingiu não ouvir.
Sam desceu primeiro, enquanto Maggie e os outros o seguiam. Uma vez no fundo da escada, ajudou Maggie a sair dos degraus.
Ela virou-se para ele, a cabeça ligeiramente baixa, a palma da mão repousando ainda na dele.
— Ouviste alguma coisa agora mesmo?
Sam abanou a cabeça. Tudo o que conseguia ouvir era o bater do seu coração. Apercebeu-se de que a sua mão apertava a dela.
Ralph e Norman juntaram-se-lhes.
Maggie afastou a mão, escutou durante mais um instante, depois encolheu os ombros e avançou à frente a partir daí.
— Devem ser aqueles fantasmas incas — murmurou.
— Obrigado, Maggie — disse Norman num tom amargo. — Era mesmo isso que eu queria ouvir, quando estamos a percorrer umas ruínas pela calada da noite. Já tenho um pressentimento suficientemente mau em relação a isto.
Ralph começou uma vez mais a entoar o tema de Twilight Zone.
— Morde aqui, Isaacson — disse Norman num tom irritado.
— Eu não tenho essas tendências, Normie.
— Tens a certeza? Foste jogador de futebol americano, não foste? Com tantas palmadas no traseiro e saltos uns para cima dos outros?
— Cala-te.
— Credo — ripostou Maggie. — Calem-se lá os dois. Não consigo ouvir nada.
Seguindo atrás de Maggie, Sam ignorava-os a todos, perdido na observação dos movimentos de Maggie enquanto descia. Através das finas calças de algodão caqui, as pernas dela eram musculadas e firmes, ainda assim suficientemente curvilíneas para atrair o seu olhar. Sam engoliu em seco e limpou o suor da testa com um lenço. É uma colega, teve de recordar-se. Como no exército, o seu tio não gostava de confraternizações no terreno. Atenções indesejadas entre elementos de uma equipa podiam provocar demasiada tensão numa escavação pequena.
Ainda assim, olhar não tirava bocado.
Enquanto atravessavam o segundo nível da escavação, Sam maravilhou-se perante a revelação do tio. Aquilo fora, outrora, uma pirâmide moche! Era difícil de acreditar. Sam deslizou a palma da mão pelas paredes de granito.
À sua frente, Maggie voltou a parar, estacando com a mão na escada que os conduziria ao terceiro nível.
— Eu sei que ouvi alguma coisa — sussurrou ela. — Palavras... e algo a bater...
Sam esforçou-se por ouvir, mas continuava sem escutar nada. Olhou de relance para Ralph e Norman. Os dois homens abanaram as cabeças. Os olhos de Norman mostravam-se enormes por detrás dos óculos. Sam virou-se de novo para Maggie, pronto para afastar as suas preocupações, quando um grito explodiu vindo dos pisos inferiores, passando por eles como um pássaro assustado.
Maggie virou para Sam os olhos muito abertos.
Sam tirou a espingarda Winchester do ombro.
Gil estudou as lajes de metal à sua volta. As engrenagens do mecanismo escondido emitiam o seu tiquetaque e os seus gemidos por detrás das paredes.
Miguel partilhava consigo o quadrado de ouro, apertado contra o lado direito de Gil. Os olhos do homem atarracado estavam muito abertos de medo e orações sussurradas jorravam-lhe dos lábios.
Gil ignorou-o. Nenhum deus os poderia proteger ali. Cabia-lhes a eles sobreviver. Mas Gil não estava interessado apenas em sobreviver. Os seus olhos não paravam de deslizar para a riqueza aos pés do ídolo de ouro. Contando-os, Gil apercebeu-se de que quinze filas de lajes se encontravam entre ele e a estátua do rei inca, deixando outras quinze filas para trás. Quinze metros em ambos os sentidos. Era demasiado para saltar.
Franziu o sobrolho perante a armadilha, pressentindo que deveria haver uma chave para atravessar aquele piso. Girou num círculo lento. O padrão de lajes não era um simples xadrez, mas um complicado padrão entrecruzado de quadrados de ouro e prata. Não era muito diferente de alguns dos padrões geométricos que se podiam encontrar nas tapeçarias e roupas incas. Havia ali uma ordem, talvez até uma pista para um caminho seguro. Mas qual seria?
O cadáver de Juan jazia sobre uma laje de ouro vizinha, para onde se tinha conseguido arrastar antes de morrer. O sangue acumulara-se sob a sua forma silenciosa. Nenhuma outra armadilha fora desencadeada quando Juan se arrastara da laje de prata onde tinha, originalmente, espoletado a armadilha. Poderia ser essa a resposta? Seriam as lajes de ouro seguras e as de prata um perigo?
Só havia uma forma de descobrir.
Gil retirou do coldre a sua espingarda de cano curto e encostou-a às costelas de Miguel.
— Mexe-te — ordenou.
Miguel olhou de relance do cano da espingarda para o rosto de Gil.
— Que?
— Salta para aquele quadrado dourado. — Gil apontou com a cabeça na direção de uma laje para lá da laje de prata vizinha. A direção era a do ídolo de ouro. Se pretendiam arriscar as suas vidas, Gil queria apresentar algo que justificasse os seus esforços.
Miguel permanecia imóvel, a incredulidade e o horror estampados no rosto.
— Vai. Ou morres já aqui. — Gil pressionou a espingarda ainda com mais força contra Miguel.
O seu companheiro atarracado cambaleou um passo para trás, os calcanhares quase saindo do quadrado.
— Por favor, esse, não me obrigues a fazer isto.
— Faz o que te digo ou uso o teu cadáver para testar as lajes.
Miguel estremeceu, o seu olhar a saltitar entre a espingarda e o cadáver de Juan. Por fim, os seus ombros curvaram-se. Virou o rosto para o padrão mortífero, fez o sinal da cruz e saltou. As suas pernas estavam tão fracas de medo que quase não conseguiu saltar a curta distância. Aterrou com força e caiu de gatas na laje dourada.
Gil viu as pálpebras do homem fechadas com muita força enquanto ele ali ficava imóvel, esperando o pior. Mas nada aconteceu. Lentamente, Miguel abriu os olhos e ergueu-se trémulo. Virou-se para Gil com um sorriso fraco nos lábios.
Gil gritou-lhe, aliviado por descobrir que a sua teoria se revelava verdadeira.
— As lajes de ouro são seguras. Segue-as e conseguiremos entrar e sair daqui. — Ainda assim, Gil não ia arriscar a possibilidade de estar errado. Apontou com a espingarda. — Salta para a próxima e eu sigo-te.
Miguel assentiu com a cabeça. A laje de ouro seguinte ficava ao lado daquela onde se encontrava. Bastava-lhe pisá-la. Assim fez, lentamente. Uma vez mais, nada aconteceu. O mecanismo antigo limitou-se a emitir os seus estalidos contínuos atrás das paredes e do teto. Miguel avançou para a laje dourada seguinte, uma vez mais saltando sobre uma de prata. Continuava em segurança.
Enquanto o seguia, Gil viu que a atitude de Miguel se tornava mais relaxada, embora os seus lábios se continuassem a mover silenciosamente numa oração contínua. O par foi avançando lentamente através da câmara. Laje a laje, fila a fila, aproximaram-se do ídolo de ouro. Por fim chegaram à última fila entre eles e o tesouro. Todos as lajes eram de prata. A única de ouro era aquela sobre o qual se encontrava o ídolo e o tesouro.
Miguel virou-se para Gil com uma expressão que perguntava claramente então e agora?
Gil estudou o rei inca. Contra o pano de fundo de granito negro, os olhos da estátua pareciam fitá-los, trocista. Gil irritou-se. Não ia ser contrariado por um bando de adoradores de ídolos. Não quando estava assim tão perto.
Avançou para junto de Miguel, voltando a partilhar a sua laje. Nenhum deles se atrevia a atravessar aquela fila de lajes de prata até ao tesouro para lá deles, mas isso não significava que não conseguissem roubar a riqueza que se empilhava aos pés da estátua. Segurando a espingarda pela coronha, Gil estendeu a arma, esticando o braço sobre a prata em direção à estátua.
A ponta da sua espingarda quase não chegava ao tesouro. Gil moveu alguns dos artigos, procurando. Enquanto o fazia sustinha a respiração. E se estivesse ali outra armadilha? Os seus ouvidos atentos pareceram ter captado uma ligeira alteração na cadência das engrenagens do mecanismo... Estremeceu, mas nada aconteceu.
Gil praguejou baixinho. A espingarda agitava-se na ponta do seu braço esticado. Estava a ficar demasiado nervoso. Inspirou fundo para se aquietar, depois concentrou-se na tarefa, recusando-se a falhar. Cerrou os dentes e ignorou o crescente ardor do ombro em esforço. Por fim, os seus esforços recompensaram-no. Expôs um par de taças gémeas, uma de ouro outra de prata, incrustadas de rubis e esmeraldas, com um padrão serpenteante. Mas a característica que mais atraiu Gil foram as asas arqueadas das taças.
Algo que podia prender!
Deslizando o cano da espingarda pela asa de uma delas, ergueu a taça libertando-a da pilha. Inclinou a arma e a taça de prata deslizou pelo cano repousando contra o cabo de madeira. Gil puxou para si a arma e endireitou-se. Retirou o tesouro da arma e entregou-o a Miguel.
— Pela tua coragem, mi amigo.
Miguel segurou a taça nos seus dedos trémulos. Naquele tesouro havia riqueza suficiente para que o homem atarracado e a sua família pudessem descansar pelo resto das suas vidas. Miguel sussurrou uma oração de agradecimento.
Gil franziu o sobrolho e virou-lhe as costas. O seu companheiro devia estar a agradecer-lhe a ele, não ao seu Deus. Gil ajoelhou-se uma vez mais e estendeu a espingarda de modo a retirar a taça de ouro. Depressa a segunda taça estava nas suas mãos. Ali estava a sua recompensa. Conhecia um negociante de antiguidades roubadas que lhe pagaria o triplo do preço do ouro da taça por quaisquer artefactos incas intactos. Gil enfiou a taça no casaco e virou as costas à estátua.
Ponderou no que iria fazer a seguir. Tocou na granada que ainda tinha no colete. Tinha de proteger o que restava do tesouro até poder trazer uma equipa de demolições para sabotar as armadilhas. Uma vez desativado aquele aparato maldito, ele e a sua equipa poderiam recolher à vontade as restantes riquezas. Na sua mente, imaginou o único obstáculo aos seus planos: o grupo de americanos que dormiam aconchegados nas suas tendas. Apertou com mais força a espingarda. Não podiam ver o nascer do sol.
Tendo estabelecido o seu plano, Gil acenou a Miguel em direção à saída. O seu companheiro não necessitava de mais encorajamento, claramente satisfeito por escapar com aquele pequeno tesouro. Miguel saltou para o quadrado dourado seguinte. Este ergueu-se por baixo dele com um grito de engrenagens e alavancas. A laje, com Miguel sobre ele, voou na direção do teto, impelido por um grosso tronco de madeira. Por cima dele, a laje de prata correspondente no teto abriu-se deslizando. Espigões de prata foram lançados para baixo.
Miguel viu a sua morte e tentou libertar-se da laje, preferindo arriscar a queda, mas não foi suficientemente rápido. As pernas, dos joelhos para baixo, ficaram presas nos espigões, que lhe trespassaram o músculo e o osso. Miguel gritou; os seus ossos partiram-se como ramos frágeis enquanto se agitava preso nos espigões.
A laje de ouro desceu em seguida, deslizando calmamente para o seu devido lugar no padrão do chão. Manchada de sangue, estava agora vazia. Gil ergueu os olhos. Miguel pendia ainda pelas pernas presas aos espigões no teto.
O sangue escorria das pernas destruídas de Miguel. Ele agitou-se, os braços a empurrar as estacas. Conseguiu, por fim, conquistar a sua liberdade e caiu da altura de dois andares contra o chão metálico. Uma vez mais, o estalar dos ossos ressoou com o impacto.
Gil afastou o olhar quando Miguel caiu. Virou-se de novo para ele. Miguel jazia, destroçado, sobre os mosaicos. Apenas um dos seus membros permanecia intacto. O homem tentou erguer-se com o braço direito bom, mas a dor era demasiada. Voltou a deixar-se cair. Já não gritava. Estava demasiado fraco, demasiado chocado, apenas um gemido lhe escapava dos lábios. Fitou Gil com olhos suplicantes.
Gil não podia salvá-lo.
Erguendo a espingarda, Gil sussurrou.
— Lamento, esse. — Deu um tiro na testa de Miguel, a explosão da espingarda ensurdecedora no espaço fechado. Os gemidos de Miguel cessaram. O sangue correu num fio do pequeno buraco na testa.
Gil voltou a estudar os mosaicos. Tinha sido um de ouro a matar Miguel! Por que razão já não seriam seguros? Estaria a sua teoria errada desde o início ou teriam as regras mudado? Lembrou-se da alteração na cadência do mecanismo enquanto pescava o tesouro. Algo mudara. Gil fitou-o. Miguel aterrara num quadrado de prata sem quaisquer repercussões. Seriam agora os quadrados de prata os seguros? Ouro quando se aproximavam, prata ao partir. Poderia ser assim tão fácil?
Gil não tinha outro parceiro que pudesse forçar a correr o risco. Teria de testar pessoalmente a teoria. Cautelosamente, estendeu a espingarda e tocou com a coronha na laje seguinte: uma de prata. Não aconteceu nada. Mas será que isso provava algo? Talvez fosse necessário todo o seu peso para espoletar a armadilha. Lentamente, estendeu um dos pés e pousou-o no quadrado. Sustendo a respiração, apoiou o peso naquela perna, pronto para saltar para trás caso sentisse qualquer alteração na laje ou uma mudança no timbre das engrenagens. Em breve tinha uma perna na nova laje de prata e a outra na de ouro. Ainda assim, nada mudara.
Estremecendo, Gil levou a outra perna para a laje de prata. Manteve-se imóvel. Não lhe aconteceu mal algum. Estava seguro.
Suspirando para libertar a respiração que retera, limpou o suor dos olhos. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Não sabia quando as lágrimas tinham começado a cair.
Encontrava-se na laje de prata. A seguinte implicava saltar por cima de um quadrado de ouro. Antes que perdesse a coragem, saltou de espingarda na mão e aterrou com força sobre a laje de prata. Paralisou, mas continuava em segurança.
Sorrindo, endireitou-se e olhou para trás de relance, para o rei.
— Venci-te, sacana!
Virou-se para a saída e foi avançando cautelosamente, mas a maior velocidade, através da câmara. Foi a velocidade que lhe salvou a vida. Saltou de uma laje de prata para a sua vizinha, tendo abandonado a primeira quando esta se abriu por baixo dele. A alteração sob os seus pés ao saltar fê-lo cair com força na seguinte. Um jorro de água foi projetado de pequenas aberturas que surgiram na laje do teto correspondente. Choveram sobre o fosso que acabara de se abrir atrás dele. Gil rebolou. Um pouco da névoa tocou-lhe no rosto exposto; ardeu-lhe como se fosse fogo. Gil afastou-se. Ácido!
Tocou no rosto flamejante. A pele estava já repleta de bolhas e purulenta.
Gil estremeceu ao pensar na possibilidade de estar preso no fosso por baixo quando aquela chuva de ácido se abatesse sobre si. A sua morte seria lenta e dolorosa.
A chuva ardente terminou e a laje de prata deslizou, fechando o fosso. A morte estivera perto de o reclamar. Trémulo, tentou levantar-se.
Fitou a traiçoeira laje de prata. Prata! Equivocara-se. Só a sorte e o acaso o tinham levado até ali.
Perante aquela horrível constatação, virou o rosto para a saída. A fuga estava a três filas de distância, cerca de três metros. Sabia agora que não podia confiar em nenhuma das lajes. Teria de arriscar o salto. Se mergulhasse, talvez conseguisse lá chegar.
Gil fitou a espingarda. Não podia arriscar o peso. Deixou-a cair ao chão juntamente com o cinto de munições que trazia preso ao peito. Pegando na pesada taça de ouro, Gil fitou-a por um momento, depois voltou a guardá-la dentro do colete. Preferia morrer a perder o seu tesouro. Assim descalçou as botas. Além disso, descalço conseguia uma melhor aderência à superfície de prata da laje.
Uma vez pronto, recuou até ao limite mais distante, permitindo-se tanto impulso quanto possível, o que correspondia, no máximo, a dois curtos passos. Preparando-se, Gil fechou os olhos e, pela primeira vez em décadas, rezou ao seu Deus para que lhe desse força e sorte. Preparado, abriu os olhos e cerrou os punhos.
— É agora ou nunca — balbuciou.
Inclinando-se para a frente, correu os dois curtos passos, e depois lançou-se de cabeça, com toda a força das suas pernas. Voou sobre as filas de lajes e aterrou com força no chão de pedra, encolhendo-se o suficiente para levar com o grosso da colisão do lado esquerdo. Algo estalou no seu ombro enquanto rebolava para a curta passagem e parava contra a porta de pedra tombada.
Com uma careta, Gil ergueu-se. Ignorou a dor que lhe subia para o pescoço. Conseguira! Tateando o ombro, apercebeu-se de que o mais certo era que tivesse partido a clavícula. Nada de especial. Certa vez levara três tiros no peito. Por comparação, aquilo não passava de um arranhão.
Gil libertou a preciosa taça. Um dos seus rebordos estava ligeiramente dobrado devido ao peso da sua queda. Mas, como Gil, não sofrera qualquer dano real.
Avançando até aos limites do padrão mortífero, Gil ergueu o cálice e cuspiu na direção do distante rei inca, o ídolo de ouro luminoso contra a pedra negra.
— Hei de regressar e profanar-te! — praguejou.
Com aquela promessa, rodou sobre os calcanhares e fugiu.
Maggie ajoelhou-se junto ao cimo da escada que conduzia ao terceiro nível das ruínas.
— Vem lá alguém! — sussurrou, afastando Sam do seu ombro.
O instinto dizia-lhe que tinham de se esconder. Criada nas ruas de Belfast, Maggie sabia ouvir aquela voz interior. Sobreviver por entre a troca de tiros e os atentados constantes entre as fações irlandesas antagónicas e o exército britânico ensinara a Maggie O’Donnel o valor de um bom esconderijo.
— Venham — incitou Maggie, puxando Sam consigo. Norman e Ralph seguiram-nos.
Sam resistiu, erguendo a espingarda.
— Podem ser salteadores. Devíamos impedi-los.
— E fazer com que nos matem a todos, seu idiota? Não sabes quantos lá estão ou quão bem armados. Agora vamos!
Norman concordou.
— Ela tem razão. Os guerrilheiros de esquerda desta região, o Sendero Luminoso, estão bem equipados. AK-47 russas e coisas do género. Devíamos deixar qualquer investigação nas mãos da equipa de segurança.
Sam olhou na direção da escada, depois abanou a cabeça e seguiu Maggie. Ela conduziu o grupo a uma câmara lateral. Não havia qualquer candeeiro de sódio a iluminar aquela divisão. A escuridão engoliu-os.
— Mantenham-se agachados — avisou Maggie. — Mas preparem-se para fugir ao meu sinal.
Sam murmurou enquanto se baixava ao lado dela:
— Maggie O’Donnel, arqueóloga de combate.
Maggie conseguia apenas vislumbrar a forma de Sam como uma sombra mais escura entre as restantes, mas lograva imaginar o seu sorriso sarcástico.
— Sabem — acrescentou Ralph com um sussurro —, provavelmente é apenas o Gil ou um dos seus homens.
— E o grito? — disse Maggie.
— Tenho a certeza de que...
Maggie levou a mão ao joelho dele para silenciar o homem corpulento. Conseguiu ouvir o estalar da madeira enquanto alguém subia as escadas em baixo. Quem quer que as estivesse a subir fazia-o com pressa. Conseguia ouvir a sua respiração arquejante e a fuga apressada. Baixando-se para mais perto do chão de pedra, Maggie viu erguer-se do poço a cabeça do homem que trepava.
Reconheceu o cabelo preto e fino e a cicatriz branca com a forma de uma aranha na face de bronze. Guillermo Sala. O antigo polícia trepava freneticamente a escada, os seus pés quase escorregando. Maggie permitiu que um suspiro de alívio escapasse da sua garganta. Ralph tinha razão. Era apenas o guarda do acampamento.
Começou a levantar-se quando viu a grande queimadura purulenta no seu rosto. Estalava e sangrava. Gil passou a mão pelo rosto ferido e limpou o sangue à camisa. Tinha os olhos muito abertos, o branco dos olhos quase a cintilar sob a luz da lâmpada próxima da escada. Os lábios estavam cingidos de ódio, mas ela também pressentiu medo e choque a emanar do homem.
Maggie conhecia aquela expressão familiar. Um amigo de infância, Patrick Dugan, exibira o mesmo rosto chocado quando fora apanhado por uma bala perdida durante uma troca de tiros em Belfast. O rapaz erguera a cabeça demasiado cedo do seu esconderijo partilhado numa vala de drenagem à beira da estrada. Maggie já sabia que não o devia fazer. Mesmo quando o corpo de Patrick caíra ao seu lado, ela não se movera. A pressa era inimiga da perfeição. Tendo aprendido a sua lição, Maggie permanecia agora escondida e mantinha os outros atrás de si com um gesto da mão.
O que teria acontecido lá em baixo? O que poderia assustar um homem tão duro e corajoso quanto Gil?
Tal como na tarde daquele dia nas ruas de Belfast, Maggie sabia que a segurança residia nas sombras. Do limite da divisão, observou enquanto Gil levava a mão ao colete e tocava num objeto que lhe enchia o bolso. Pareceu ajudar o homem em pânico a acalmar-se, como uma velha que agarra um crucifixo.
Depois, de um outro bolso, retirou aquilo que parecia uma maçã verde com uma asa. Maggie demorou alguns segundos a reconhecer a peça de armamento, tão desajustada estava numa ruína inca antiga.
Que diabos! Uma granada!
Com um último olhar de relance para o poço, Gil ergueu-se e correu pelo túnel.
Escutando os passos que se afastavam, Maggie concluiu que não conseguia mover-se. Na sua mente, a granada continuava a fitá-la, uma arma familiar na guerra travada nas ruas da sua terra natal. O pânico da infância que tinha conseguido enterrar ergueu-se, ameaçando sufocá-la. As suas mãos tremiam. Cerrou os punhos, recusando-se a sucumbir ao ataque de pânico que se aproximava. Sentiu que a sua visão se agitava ligeiramente ao mesmo tempo que a respiração se tornava entrecortada.
Sam deve ter sentido a sua aflição.
— Maggie...? — Estendeu o braço para o ombro dela.
O seu toque incendiou-a. Ergueu-se de um pulo.
— Au, temos de sair daqui — disse ela, as palavras apressadas. — Agora!
Sam enterrou ainda mais o seu chapéu Stetson na cabeça.
— Porquê? É apenas o Guillermo.
Com uma expressão feroz, Maggie virou-se para Sam. O texano não vira a granada do homem. O que quer que tenha visto nos olhos dela fê-lo recuar um passo. Ela não tinha tempo para explicar os seus receios.
— Põe-te a andar, pateta! — uivou, o pânico intensificando o seu sotaque irlandês. Empurrou Sam em direção ao túnel e acenou aos outros para que o seguissem.
As longas pernas de Sam foram devorando a distância. Maggie seguiu-o, mantendo um olho no caminho atrás dela. À sua frente, Ralph conseguia acompanhar Sam, mas Norman, sobrecarregado com as câmaras, ficara para trás.
— Depressa — incitou o jornalista.
Norman olhou de relance para trás. O seu rosto era pálido sob o brilho dos candeeiros. Esforçou-se por aumentar a velocidade e diminuir a distância, enquanto os dois homens mais rápidos alcançavam a escada para o nível seguinte da escavação.
À frente, Sam subiu rapidamente os degraus de madeira com Ralph imediatamente atrás. Norman subiu de seguida. Maggie estava parada na base da escada, os ouvidos atentos a qualquer sinal de perigo atrás dela. Ao longe, ecoando das profundezas, pareceu-lhe ouvir um tiquetaque profundo, como o som de um grande relógio que abranda.
— Maggie, vamos! — sussurrou Sam num tom urgente imediatamente acima.
Maggie virou-se e descobriu a escada vazia. Por um instante, o tempo escapara-lhe. Era um dos sinais de um ataque que se aproximava. Agora não! Voou pela escada. Sam ajudou-a no último degrau, içando-a com os braços. A escada para a superfície estava a uma mão-cheia de metros de distância. Já de pé, Maggie seguia na frente.
Seguiu a linha ziguezagueante de candeeiros, luzes que tremeluziam enquanto ela passava a correr. Quando viu a base da escada, ouviu um gemido baixo que se erguia do poço para a superfície. Era Gil. Aparentemente, teria alcançado a praça acima.
Com o seu objetivo à vista e a brisa refrescante que provinha de cima encorajando-a, Maggie correu mais depressa.
Subitamente, as palavras ecoaram até ela:
— Engole isto, seu hijo de puta!
Maggie estacou quando um objeto duro caiu e saltitou ao longo do fosso aterrando aos pés da escada. Fitou incrédula o cilindro metálico verde. Repousava na lama ao lado de uma das vigas de madeira que funcionavam como apoio do poço principal. A granada!
Maggie virou-se de novo para Sam. Este emitiu um gemido quando ela chocou contra o seu peito.
— Para trás... para trás... para trás... — entoou.
O grupo caiu, emaranhado nos braços uns dos outros, longe da escada.
— O que...? — perguntou-lhe Sam ou ouvido.
Com a adrenalina acicatada nas suas veias, ela empurrou Sam e os restantes para uma câmara lateral.
A explosão apanhou-os na entrada. O abalo e a explosão de ar lançaram-nos para o outro lado da divisão. Bateram na parede oposta e caíram no chão de pedra numa pilha de membros.
Com as lâmpadas a tremeluzir à sua volta, Maggie pôs-se de joelhos. Para lá do zumbido que lhe enchia os ouvidos, ouviu Ralph a gemer ao seu lado. Maggie analisou os seus próprios ferimentos. Parecia estar incólume, mas quando observou os danos provocados pela granada para lá do pó que se dissipava, também da sua garganta escapou um gemido.
Estavam encurralados!
A passagem que conduzia à última escada era, agora, um acumulado de pedras e pó. A granada fizera colapsar o túnel de acesso à superfície, levando consigo uma boa secção do teto do primeiro nível. As pedras tinham caído num emaranhado gerado pelo deslizamento de terras.
À sua volta, o que restava das ruínas resmungava e gemia com a alteração na tensão. Nove metros de terra exerciam pressão, ameaçando destruir ainda mais as ruínas subterrâneas.
O que iriam eles fazer?
Então, as luzes tremeluziram uma última vez e desvaneceram-se. A escuridão engoliu-os.
— Estão todos bem? — perguntou Sam meio atordoado, a sua voz exagerada pelos ouvidos ensurdecidos.
Norman respondeu.
— Ótimo. Estou enterrado nove metros no subsolo... num túmulo. Mas tirando isso, estou ótimo.
— Eu também estou bem, Sam — acrescentou Ralph, com a sua bravata habitual já reduzida.
Sam tossiu, devido ao ar carregado de pó.
— Maggie?
Esta sentiu os seus membros ficarem rígidos e iniciarem os primeiros tremores característicos. Caiu no chão de pedra, quando o ataque se apoderou do seu corpo e arrastou consigo a consciência.
A última coisa que ouviu foi o grito estrangulado de Norman.
— Sam, há qualquer coisa de errado com a Maggie!
Gil fugiu da explosão do fosso, o rugido trespassando a selva silenciosa. Fumo e destroços, erguendo-se na noite, seguiram-no pela encosta até ao acampamento. Embora as pedras soltas lhe cortassem os pés descalços e o fizessem tropeçar, apressou-se a descer as escadas, praguejando contra si mesmo por ter abandonado as botas lá em baixo. Por que razão não lançara as botas e a espingarda para longe da armadilha antes de saltar? Mas já sabia a resposta. Entrara em pânico.
Por cima de si, um bando de papagaios assustados correu através do feixe de luz de um dos holofotes próximos. Uma explosão de plumas azuis e vermelhas através da noite escura sobressaltou-o. Enquanto a explosão ecoava ao longe, a selva respondia ao desafio da granada com os guinchos dos pássaros e os gritos dos macacos.
A selva despertara... tal como o acampamento lá em baixo.
As luzes acenderam-se dentro das tendas baratas dos trabalhadores. Sombras moviam-se já no interior enquanto os homens que dormiam iam despertando. Até uma das tendas dos estudantes despertava com um brilho quente.
Sem armas e companheiros, Gil não se atrevia a enfrentar sozinho o acampamento. Teria de reunir outros homens e regressar rapidamente para eliminar os americanos e os seus trabalhadores. Pelo menos a granada conseguira destruir a única entrada para as ruínas subterrâneas. O tesouro que se escondia nas profundezas ficaria protegido até poder regressar com homens e ferramentas de construção para as desenterrar. Sem qualquer preocupação com a possibilidade de «danificar o local frágil», a sua equipa arrancaria rapidamente o tesouro das profundezas. Um dia ou dois no máximo.
Contudo, antes de pode ir buscar mais homens, Gil tinha mais uma missão a completar ali no acampamento. Alcançando o aglomerado de tendas, deslizou para as sombras mais escuras entre dois dos abrigos mais toscos dos trabalhadores. Os rostos começavam a espreitar das tendas. Os seus olhos fixos, sem dúvida, na pluma de pó que ainda se erguia do local da escavação.
Ninguém viu Gil.
Enquanto deslizava pelas traseiras das tendas, podia ouvir palavras na língua quéchua gutural a serem trocadas numa tenda vizinha. Uma voz gritada erguia-se, também, do local onde os estudantes tinham os seus abrigos mais dispendiosos.
— Guillermo! Sam! O que aconteceu? — Era o líder pomposo daqueles estudantes maricones.
Gil ignorou a crescente troca de vozes. De uma pilha de ferramentas de trabalho, retirou silenciosamente uma picareta e uma lâmina de corte. Atravessando para a traseira de um dos abrigos, Gil usou a faca para abrir uma nova entrada. A lâmina afiada silvou através da tela grossa. Deslizando pelo buraco, Gil entrou na tenda com a sua picareta.
Estudou a sua presa: o sistema de comunicações por satélite. Felizmente, não precisava de destruir todo o equipamento. Havia um elo mais fraco. O pequeno computador em si. Grande parte do outro equipamento tinha peças extra, mas não a unidade central de processamento. Sem esta, o acampamento ficaria isolado e impedido de soar o alarme ou pedir ajuda.
Gil ergueu a picareta sobre o ombro e esperou. A clavícula fraturada protestou perante o peso da ferramenta de ferro, mas não teve de esperar muito tempo. Uma vez mais, a voz furiosa de Philip Sykes vociferava ordens frenéticas a partir da sua tenda, claramente assustado com a possibilidade de abandonar a proteção do seu abrigo:
— Senhor Sala, onde raio está?
Enquanto o aluno gritava, Gil enterrou a ponta afiada da picareta no centro do computador. Centelhas de cobalto floresceram no interior da tenda mergulhada nas sombras, mas depressa se desvaneceram. Gil não se deu ao trabalho de libertar a picareta ou de verificar se alguém se apercebera da sua sabotagem. Limitou-se a passar de novo pela abertura que fizera nas traseiras da tenda e a fugir.
Com todos os olhos virados para o túnel fumegante na praça mais acima, Gil deslizou para a selva sem que ninguém o visse, a faca na mão e a vingança no coração.
Apertava o cabo da faca no punho cerrado, os nós dos dedos brancos.
Ninguém levava a melhor sobre Guillermo Sala, muito menos um ídolo inca antigo!
— Depressa, Sam! — A voz de Norman era frenética na escuridão.
No negrume absoluto das ruínas do templo, Sam vasculhou o seu saco de ferramentas de investigação. Nenhum deles se lembrara de levar uma lanterna. Teria de improvisar. Às cegas, os seus dedos percorreram as garrafas tilintantes. A palma da mão chegou, por fim, à lâmpada de Wood, a luz ultravioleta que utilizava para tornar fluorescentes as tinturas que lhe permitiriam decifrar os escritos. Retirando-a do saco, Sam ligou-a.
Sob o brilho da luz ultravioleta, deparou-se com um quadro assustador. O pó que ainda pairava no ar devido à explosão brilhava como neve sob a estranha luz púrpura, mas de pouco servia para obscurecer os outros. Os dentes, a parte branca dos olhos e as roupas claras dos seus colegas brilhavam naquela luminosidade sobrenatural.
Norman Fields estava ajoelhado ao lado de Maggie. Esta fitava o teto, as costas erguiam-se arqueadas da pedra, os calcanhares enterrados no chão antigo. Norman segurava-lhe os ombros, enquanto Ralph pairava sobre eles como um fantasma. Norman ergueu os olhos para Sam.
— Ela está a ter uma espécie de ataque.
Sam aproximou-se deles.
— Deve ter batido com a cabeça. Talvez seja um traumatismo grave. — Ergueu a lâmpada para lhe examinar os olhos, mas a luz ultravioleta de pouco servia para iluminar as suas pupilas. Sob aquele brilho, os seus músculos faciais contorceram-se e entraram em convulsão; as pálpebras estremeceram. — Não consigo ter a certeza. — Sam examinou o rosto dos companheiros.
Nenhum deles sabia o que fazer.
Pequenos sons estrangulados escapavam-se da garganta de Maggie.
— Não devíamos impedir que engula ou morda a língua, ou algo assim? — disse Ralph, hesitante.
Sam acenou com a cabeça. A expressão de Maggie já assumira uma tonalidade vagamente arroxeada.
— Preciso de algo para lhe manter a boca aberta.
Norman levou a mão ao bolso de trás e retirou um pequeno lenço.
— Achas que isto serve?
Sam não fazia ideia, por isso pegou no pedaço de pano e torceu-o formando uma corda. Hesitou quando estendeu as mãos na direção de Maggie, sem saber ao certo o que fazer. Um pequeno fio de saliva deslizava pelo canto da boca dela. Embora colocar um freio de ferro na boca de um cavalo fosse algo a que estava habituado, aquilo era diferente. Sam lutou contra os seus receios.
Suavemente, tentou abrir a boca de Maggie, mas os músculos do seu maxilar estavam apertados e trémulos. Precisou de utilizar uma dose extra de força para lhe abrir a boca, mais do que teria imaginado. Por fim, usou o dedo para puxar para a frente a ponta da língua. A boca dela estava muito quente e húmida. Encolheu-se mas conseguiu posicionar o lenço entre os molares, prendendo-lhe a língua para baixo e impedindo-a de ranger os dentes.
— Bom trabalho — saudou Norman.
A respiração de Maggie parecia já mais estável.
— Acho que está a chegar ao fim — disse Ralph. — Vejam.
Os calcanhares de Maggie tinham interrompido o seu matraquear incessante e a costas relaxavam em direção ao chão.
— Graças a Deus — murmurou Sam.
Decorridos mais alguns segundos, as convulsões de Maggie pararam. Um braço ergueu-se, agitando-se debilmente no ar. Ela pestanejou algumas vezes, os seus olhos vidrados e cegos. Em seguida o olhar pousou nele e, de súbito, Sam soube que Maggie estava de volta. Ela fitou-o, visivelmente enfurecida.
Os seus dedos encontraram a mão de Sam que mantinha a mordaça no lugar. Afastou-a e cuspiu o pano.
— O que... o que estavam a tentar fazer? — Ela esfregou os lábios enquanto se sentava.
Norman salvou Sam de ter de explicar.
— Estavas a ter um ataque.
Maggie apontou para o lenço ensopado em saliva.
— E por isso tentaram sufocar-me? Para a próxima basta que me virem de lado. — Com uma mão descartou as explicações deles. — Quanto tempo estive inconsciente?
A custo Sam conseguiu, por fim, falar.
— Talvez uns dois minutos.
Maggie franziu o sobrolho.
— Raios. — Avançou para a parede de pedras e barro tombados que bloqueava a saída do templo subterrâneo.
Dada a falta de surpresa ou preocupação perante o ataque, Sam apercebeu-se de que este não tivera a sua origem num qualquer golpe na cabeça. Uma vez mais, só a custo conseguiu falar, a raiva libertando-lhe a língua.
— És epilética.
Lançando o cabelo para trás, Maggie virou-se para ele.
— Epilepsia idiopática. Tenho ataques periódicos desde a adolescência.
— Devias ter dito a alguém. O tio Hank sabe?
Maggie teve a decência de desviar o olhar.
— Não. Os ataques são tão pouco frequentes que nem sequer tomo qualquer medicação. E há três anos que não tinha qualquer ataque.
— Ainda assim, devias ter avisado o meu tio.
O fogo invadira-lhe as palavras.
— E ser expulsa desta escavação? Se o professor Conklin soubesse da minha epilepsia jamais me teria deixado vir.
Sam enfrentou a paixão dela com a sua.
— Talvez não devesse ter deixado. Não só é inseguro para ti, como puseste o meu tio em risco. Ele é responsável tanto moral como legalmente por esta escavação. Podia ser processado pelos teus parentes.
Maggie abriu a boca para argumentar, mas Norman interrompeu a discussão.
— Se já acabaram de debater historiais médicos e os pontos mais finos da lei do dano, será que poderei destacar o facto de que estamos enterrados sob nove metros de rocha instável?
Como que para enfatizar as suas palavras, as pedras gemeram sobre as suas cabeças e a terra deslizou com um silvo por entre duas grandes lajes de granito, seguindo até ao chão.
Ralph avançou:
— Por uma vez na vida concordo com o Norman, vamos mas é pôr-nos a andar daqui.
— Exatamente o que eu estava a dizer — acrescentou Norman.
Sam franziu uma vez mais o sobrolho a Maggie. As emoções guerreavam no seu peito. Não se arrependia das suas palavras — Maggie tinha a responsabilidade de dizer a alguém — mas desejava poder retirar e apagar a raiva da sua explosão. Temera por ela, o seu coração ficara apertado numa bola tensa, mas fora incapaz de dar voz a um tal sentimento. Por isso, dera por si a vociferar contra ela.
Sam virou-lhe as costas. Na verdade, parte dele compreendia o desejo de manter o segredo. Também ele teria feito o que fosse preciso para permanecer naquela escavação... até mentir.
Tossiu, aclarando a garganta.
— O Philip e os outros devem ter ouvido a explosão. Quando descobrirem as nossas tendas vazias, saberão que estamos aqui em baixo e virão à nossa procura. Hão de escavar para nos tirar daqui.
— Esperemos que o façam antes que fiquemos sem ar — acrescentou Norman.
Ralph avançou para se juntar ao grupo que agora se apertava perante a secção colapsada do túnel.
— Odeio ter de pôr a vida nas mãos de Philip.
Sam concordou.
— E se sobrevivermos, ele jamais deixará que nos esqueçamos disso.
No silêncio de morte daquele túmulo, era possível ouvir as pedras a estalar e a gemer sobre as suas cabeças. Sam olhou de relance, erguendo a lanterna. A terra deslizava por entre diversas pedras. A explosão tinha, claramente, desestabilizado as ruínas da pirâmide. Voltar a escavar aquele local para os salvar poderia muito bem fazer desabar todo o templo à volta deles e cabia a Philip Sykes compreendê-lo.
Abanando a cabeça, Sam baixou a lanterna. Não consegui imaginar situação pior.
— Ouviste alguma coisa? — perguntou Norman. O fotógrafo fitava agora não os destroços que bloqueavam a passagem, mas a zona atrás deles, as profundezas do templo.
Sam pôs-se à escuta. Depois também ele ouviu e virou-se. Um suave deslizar, como algo a ser arrastado através do piso de pedra das ruínas. Erguia-se das profundezas do labirinto de túneis e câmaras. Para lá do limite da luz, a partir da escuridão total, o som parecia estar a aproximar-se.
Philip Sykes já estava rouco de tanto gritar. Encontrava-se na abertura da sua tenda, descalço e com o roupão apertado em redor da sua esguia figura. Por que razão é que ninguém lhe respondia? No exterior da tenda, o acampamento estava em tumulto depois da explosão. Homens corriam pelas ruínas mergulhadas nas sombras, alguns deles armados com lanternas cuja luz balançava, outros brandindo as suas ferramentas de trabalho. Ninguém parecia saber o que tinha acontecido. Tiradas num dialeto índio nativo eram gritadas a partir do topo da Praça do Sol, onde a nuvem de pó, por fim, se dissipava. Mas Philip compreendia apenas uma mão-cheia de palavras em quéchua. Não o suficiente para decifrar o chamamento e as respostas frenéticas.
Olhou para o mostrador luminoso do seu relógio. Passava pouco da meia-noite, pelo amor de Deus. Diversos cenários desenrolaram-se na sua mente. Os saqueadores do dia anterior tinham regressado com melhores armas e estavam a atacar o acampamento. Ou talvez fossem os próprios trabalhadores índios quéchuas, um bando trigueiro e suspeito, que se tivesse amotinado. Ou talvez um dos três geradores tivesse simplesmente explodido.
Philip cingiu a gola do roupão contra o pescoço. Onde estavam os seus colegas? Por fim, o medo e a irritação impeliram-no a abandonar descalço a sua tenda. Espreitou em redor da sua tenda. Mais atrás, os outros três abrigos eram saliências escuras aninhadas na noite. Por que razão é que os outros não o tinham acordado? Estariam escondidos na escuridão?
Regressando à sua própria tenda, os olhos de Philip abriram-se mais. Talvez devesse fazer o mesmo. O seu abrigo iluminado era, sem dúvida, um alvo fácil para um qualquer atacante. Correu para o interior e apagou o candeeiro. Quando se voltou de novo para a entrada da tenda, uma enorme figura mergulhada nas sombras enchia a abertura. Philip arquejou.
Uma lanterna cegou-o.
— O que é que queres? — gemeu, sentindo os joelhos fracos.
A luz mudou de posição de modo a iluminar o rosto de um dos trabalhadores quéchuas. Philip não conseguia perceber qual dos muitos trabalhadores se encontrava junto à entrada da tenda. Para ele eram todos iguais. O homem balbuciou algumas palavras em quéchua, mas Philip não compreendeu nenhuma. Apenas o movimento da mão do homem, indicando que Philip o devia seguir, foi claro.
Ainda assim, Philip hesitou. Será que aquele homem queria fazer-lhe mal ou estaria a tentar ajudar? Se ao menos Denal, o diabrete imundo de Cusco que trabalhava como intérprete estivesse ali... Incapaz de comunicar, Philip sentia-se indefeso, isolado e encurralado, entre aqueles estrangeiros.
Uma vez mais, a figura mergulhada nas sombras acenou para que Philip o seguisse, depois afastou-se e virou-se para partir. Philip deu por si a correr atrás do homem na escuridão. Não queria continuar sozinho. Ainda descalço, apressou-se a acompanhá-lo.
Fora do abrigo da sua tenda, a noite revelara-se desagradável. Atravessava o roupão de Philip e tocava-lhe a pele. O homem conduziu-o às tendas dos outros estudantes. Uma vez ali chegado, abriu a aba que fechava a tenda de Sam e apontou a luz para o interior de modo que Philip pudesse ver. Vazia!
Philip recuou um passo e observou as ruínas. Se o sacana estava ali, por que razão é que não respondera aos seus chamamentos? O guia quéchua mostrou-lhe as outras tendas. Também estas se encontravam vazias. Sam, Maggie, Ralph, até o fotógrafo Norman, tinham desaparecido. O pânico, mais do que as brisas frias do topo das montanhas, fizeram tremer os membros de Philip. Onde estariam?
O trabalhador virou-se para ele. Os seus olhos eram sombras negras. Balbuciou algo na sua língua nativa. Tendo em conta o tom da voz, o índio estava igualmente preocupado.
Afastando-se ainda mais, Philip acenou com um braço para trás dele.
— Temos... temos de pedir ajuda — balbuciou por entre os dentes que batiam. — Temos de dizer a alguém o que se passa.
Philip virou-se e correu na direção da tenda de comunicações. O trabalhador quéchua seguiu-o com a lanterna. A sombra de Philip estremecia ao longo do caminho à sua frente. Precisava de alertar as autoridades. O que quer que estivesse a acontecer, Philip não podia lidar com aquilo sozinho.
Na tenda, Philip abriu o fecho-éclair e as molas com os dedos trémulos. Por fim, conseguiu abrir a aba e baixou-se para entrar. O trabalhador permaneceu no exterior, apontando a lanterna. Sob o feixe de luz, Philip fitou de olhos esbugalhados o equipamento de comunicações. Havia uma picareta cravada no núcleo do computador central.
Philip deixou-se cair de joelhos com um gemido.
— Oh, Céus... não.
Sam ergueu a sua espingarda Winchester, apontando-a na direção do corredor escuro que conduzia ao coração das ruínas. Um arrastar furtivo avançava na sua direção através da escuridão. Ecoava agora à sua volta.
Ao seu lado, Ralph apontava a lanterna ultravioleta de Sam na direção da escuridão. A sua iluminação pouco fazia para penetrar o poço de sombras. O que se encontrava no escuro permanecia um mistério.
Maggie e Norman erguiam-se atrás dos dois homens. Inclinando-se para a frente, Maggie sussurrou ao ouvido de Sam, a sua respiração quente no pescoço dele.
— O Gil estava a fugir de qualquer coisa. Algo que o assustou de morte.
Os braços de Sam estremeceram perante as suas palavras, quase deixando escorregar a espingarda.
— Não preciso de ouvir isso agora — silvou-lhe ele, tentando tornar as suas mãos mais firmes.
Ralph também ouvira as palavras dela. O antigo jogador de futebol americano engoliu ruidosamente em seco e ergueu ainda mais a lanterna, como se isso pudesse projetar o seu brilho para mais longe. Não o fez.
Sam estava farto daquele jogo de silêncios. Tossiu para aclarar a garganta e gritou:
— Quem está aí!
A resposta foi instantânea e ofuscante. A luz brilhou a partir do corredor escuro, tão forte que lhe fez arder os olhos. O grupo caiu para trás. O dedo de Sam estremeceu no gatilho, e apenas o instinto que o tio lhe incutira nas suas viagens de caça o impedira de disparar: nunca se dispara contra aquilo que não se consegue ver.
Sam manteve a espingarda apontada, mas refreou o dedo no gatilho. Uma voz guinchada, tímida e coberta de terror ecoou atrás da luz ofuscante.
— Ser eu! — A luz afastou-se subitamente dos rostos ali reunidos e foi brincar no teto. Uma pequena figura avançou.
Sam baixou a arma, agradecendo silenciosamente ao tio pelo seu treino no que dizia respeito à contenção.
— Denal? — Era o jovem índio que trabalhava como intérprete no acampamento. O rosto do rapaz estava pálido como cinza, os seus olhos brilhantes de medo. Sam assentou a espingarda no ombro.
— O que raio estás tu a fazer aqui em baixo?
O rapaz correu para a frente, mantendo agora a lanterna apontada para o chão. As palavras num inglês fraturado jorravam dele.
— Eu... eu ver Gil a esgueirar para aqui com Juan e Miguel. Com sacos de coisas. Por isso eu seguir eles.
Maggie avançou para junto do rapaz trémulo e envolveu-o com um braço.
— O que aconteceu?
Denal usou a mão livre para levar um cigarro aos lábios. Não o acendeu, mas a sua presença familiar pareceu acalmá-lo. Falou em volta do cigarro.
— Eu não saber... não ter a certeza. Depois de partir a porta selada...
— O quê! — arquejou Sam. Mesmo naquela situação difícil, uma tal traição chocou-o.
Denal limitou-se a acenar com a cabeça.
— Eu não ver muito. Eu ficar escondido. Eles passar pela porta... e... e... — Denal olhou de relance para Sam, os olhos assustados. — Depois eu ouvir gritos. Eu fugir. Esconder.
Maggie falou:
— Maldito. O sacana ia pilhar o túmulo mesmo debaixo dos nossos narizes.
— Mas claramente algo correu mal — acrescentou Norman com a voz tensa, olhando de relance na direção da parede de destroços atrás deles. Deu meia-volta. — Então e os outros dois? O Juan e o Miguel?
— Não saber. — Denal pareceu ver o bloqueio pela primeira vez. Avançou para a cascata de pedregulhos e barro. — Guillermo fugir... Eu esperar. Eu ter medo que os outros me pudessem apanhar. Mas ninguém sair. Depois grande bum. Pedras cair... eu fugir. — Denal ergueu a mão na direção da secção caída do templo. — Eu não dever vir sozinho. Eu dever avisar. Eu ser estúpido.
Sam retirou a sua lâmpada de Wood das mãos de Ralph e apagou o brilho ultravioleta.
— Estúpido? Pelo menos lembraste-te de trazer uma lanterna.
Maggie aproximou-se de Sam.
— Que vamos fazer?
— Vamos ter de esperar que o Philip se aperceba de que estamos aqui em baixo.
Norman franziu o sobrolho ao lado de Sam.
— Vamos ter de esperar muito tempo.
Denal avançou para eles.
— Porque não chamar com o walkie-talkie?
Sam franziu o sobrolho.
— Tal como as lanternas, foi mais uma das coisas que nenhum de nós se lembrou de trazer.
Denal levou a mão ao bolso de trás e libertou uma pequena unidade.
— Estar aqui.
Sam fitou o walkie-talkie. Um pequeno sorriso cresceu-lhe no rosto.
— Denal, nunca mais te voltes a chamar estúpido. — Pegou no rádio de bolso. — Se tu és estúpido, o que é que isso faz de todos nós?
Denal fitou com olhar sombrio os destroços.
— Encurralados.
Philip ainda estava ajoelhado na tenda de comunicações quando o rádio do acampamento irrompeu em estática. A voz ruidosa arrancou um arquejo ao estudante sobressaltado. Palavras emaranhadas fluíam por entre os guinchos da estática:
— ... pedras colapsaram... alguém que atenda.
Era inglês! Alguém com quem podia falar! Philip correu para o recetor. Tocou no botão de transmissão e falou.
— Daqui o acampamento base. Está aí alguém? Temos uma emergência! Câmbio!
Philip esperou por uma resposta. Com sorte alguém poderia enviar ajuda. A estática foi a única resposta durante alguns segundos; depois voltaram a formar-se palavras.
— Philip?... É o Sam.
Sam? Philip sentiu o coração apertado. Ergueu o recetor.
— Onde estás? Câmbio.
— Estamos presos nas ruínas do templo. O Gil fez explodir a entrada. — Sam explicou tudo sobre a traição do chefe da segurança. — Toda a estrutura está agora instável.
Philip agradeceu silenciosamente o anjo que o protegia e impedira de ser enterrado vivo com os restantes.
— Tens de enviar um pedido de SOS para Machu Picchu — concluiu Sam. — Vamos precisar de equipamento pesado.
Fitando a picareta cravada no processador danificado, Philip gemeu baixinho. Carregou no botão de transmissão.
— Não tenho como chamar ninguém, Sam. Alguém destruiu o sistema de satélite. Estamos isolados.
Houve mais uma longa pausa enquanto Philip aguardava pela resposta. Imaginou a torrente de palavrões que devia estar a fluir dos lábios do texano. Quando Sam voltou a falar, a sua voz soava furiosa.
— Muito bem, Philip, então assim que o dia raiar envia alguém a pé. Alguém rápido! E, entretanto, tens de analisar os danos à superfície quando o Sol se erguer. Se tu e os trabalhadores puderem iniciar uma escavação cautelosa, pelo menos começá-la, quando a ajuda chegar poderão avançar mais depressa. Não sei durante quanto tempo ainda teremos oxigénio aqui em baixo.
Philip acenou com a cabeça, embora Sam não o conseguisse ver. A sua mente estava presa a outras preocupações, como a sua própria segurança.
— Então e o Gil? — perguntou.
— O que é que tem? — A voz de Sam tinha um toque de irritação. — Decerto há muito que partiu.
— Mas, e se voltar?
Seguiu-se mais uma longa pausa.
— Tens razão. Se ele fez explodir o local e sabotou as comunicações, deve estar a planear regressar. É melhor que também posiciones alguns guardas.
Philip engoliu em seco, à medida que se ia apercebendo do perigo crescente que enfrentava. E se Gil regressasse com mais bandidos? Não tinham senão algumas espingardas de caça e um punhado de machetes. Seriam alvos fáceis para os saqueadores. Philip olhou de relance para o índio quéchua que ainda segurava a lanterna junto à entrada da tenda. E em quem poderia ele confiar no meio daqueles estrangeiros de pele trigueira?
Um gemido de estática chamou a atenção de Philip de novo para o rádio.
— Vou desligar agora, Philip. Tenho de conservar a bateria do walkie-talkie. Voltarei a comunicar contigo depois do nascer do sol para saber o aspeto das coisas a partir daí de cima. Está bem?
Philip segurava o recetor com uma mão que tremia agora ligeiramente.
— Está bem. Tento contactar-te às seis.
— Estaremos aqui. Câmbio e desligo.
Philip voltou a pousar o recetor na unidade de rádio e ergueu-se. No exterior da tenda, o pior da confusão do acampamento desperto a meio da noite parecia ter-se desvanecido. Philip atravessou a abertura da tenda e ergueu-se ao lado do pequeno índio quéchua.
Descalço, envergando apenas o seu roupão, Philip fitou a selva negra e as ruínas fumegantes. O frio da noite instalara-se nas profundezas dos ossos de Philip. Cingiu o roupão contra o corpo. No fundo do coração, uma parte de si desejava agora ter ficado preso no templo com os outros.
Pelo menos, não estaria tão sozinho.
DIA DOIS – Janan Pacha
Janan Pacha
Terça-feira, 21 de agosto, 7h12
Terça-feira, 21 de agosto, 7h12
Regency Hotel
Baltimore, Maryland
Enquanto a luz do início da manhã penetrava por entre os intervalos dos pesados cortinados do hotel, Henry sentou-se à pequena secretária de nogueira e fitou a fila de artefactos que recuperara da múmia: um anel de prata, um pedaço de pergaminho desbotado e ilegível, duas moedas espanholas, um punhal cerimonial de prata e a pesada cruz dominicana. Sentia que as pistas quanto ao destino do sacerdote estavam encerradas naqueles poucos artigos, como um puzzle teimoso. Se ao menos as conseguisse juntar a todas...
Henry abanou a cabeça e alongou as costas tensas, ao mesmo tempo que esfregava os olhos por baixo dos óculos. Devia estar com péssimo aspeto. Continuava com o fato cinzento enrugado que vestira na noite anterior, embora tivesse lançado o casaco para a cama desmanchada. Passara a noite toda acordado a estudar os objetos, não tendo conseguido dormir mais do que uma curta sesta por volta da meia-noite. Os artefactos chamavam-no constantemente de volta à secretária do quarto de hotel e à miscelânea de livros e periódicos que solicitara na biblioteca da Johns Hopkins. Simplesmente, não conseguia parar de trabalhar naquele puzzle, em especial depois da sua primeira descoberta.
Pegou no anel de prata do frade pela milionésima vez. Antes, removera cuidadosamente a sujidade da sua superfície e descobrira ténues letras em redor de um ícone heráldico central. Henry ergueu a sua lupa e leu o nome no anel: de Almagro. O apelido do frade dominicano. Aquela simples peça do puzzle fora suficiente para dar vida ao homem na mente de Henry. Já não se tratava apenas de uma múmia. Graças ao nome, tornara-se, de novo, alguém de carne e osso. Alguém com uma história, um passado, até uma família. Tanto poder apenas num nome.
Henry pousou a lupa, pegou na caneta e começou a acrescentar os últimos pormenores ao seu desenho do símbolo do anel. Uma parte correspondia, sem dúvida, a um brasão de família — decerto o brasão de Almagro —, mas uma segunda imagem fora incorporada em redor da heráldica da família: um crucifixo com um conjunto de sabres cruzados sobre o mesmo. O símbolo era vagamente familiar, mas Henry não conseguia localizá-lo.
— Quem eras tu, frade de Almagro? — balbuciou enquanto trabalhava. — O que fazias naquela cidade perdida? Porque te terão mumificado os incas? — Mordendo o lábio inferior em sinal de concentração, Henry terminou os últimos floreados do seu desenho, depois pegou no papel e fitou-o. — Terá de servir.
Olhou de relance para o relógio. Eram quase oito horas. Odiava telefonar tão cedo, mas não podia esperar mais tempo. Rodou a cadeira e levou a mão ao telefone, assegurando-se de que a unidade de fax portátil estava adequadamente ligada. Uma vez terminado, marcou o número.
A voz que respondeu era oficial e seca.
— Gabinete do arcebispo Kearney. Como posso ajudá-lo?
— Sou o professor Henry Conklin. Telefonei ontem para inquirir sobre como poderia obter acesso aos antigos registos da ordem.
— Sim, professor Conklin. O arcebispo Kearney tem estado à espera da sua chamada. Um momento por favor.
Henry franziu o sobrolho perante os modos do rececionista. Não estava à espera de falar pessoalmente com o arcebispo, mas com um qualquer funcionário menor no departamento de registos.
Uma voz firme mas calorosa atendeu-o.
— Ah, professor Conklin, a sua notícia sobre o padre mumificado gerou bastante agitação por aqui. Estamos muitíssimo interessados no que descobriu e em como poderemos ajudá-lo.
— Obrigado, mas não creio que seja um assunto que mereça perturbar Vossa Eminência.
— Na verdade, estou bastante intrigado. Antes de entrar para o seminário, fiz uma tese de mestrado sobre história europeia. A possibilidade de participar num estudo como o seu é mais uma honra do que um incómodo. Por isso, diga-me em que poderemos ser úteis?
Henry sorriu interiormente perante a sorte de ter descoberto um fã de história entre aqueles homens de hábito. Aclarou a garganta.
— Com a ajuda de Vossa Eminência e acesso aos arquivos da Igreja, tinha a esperança de poder reconstruir o passado do homem, talvez lançar alguma luz sobre o que aconteceu ao frade.
— Sem dúvida. O meu gabinete está ao seu dispor, pois se a múmia pertencer de facto a um frade da ordem dominicana merece ser santificado e enterrado como melhor se adequa a um sacerdote. É possível que existam ainda descendentes desse homem, pelo que considero adequado que os seus restos mortais sejam devolvidos à paróquia da família para que possa receber um enterro adequado.
— Concordo. Tentei recolher tanta informação quanto me foi possível sozinho, mas para obter mais necessitarei de aceder aos vossos registos. Até ver, fui capaz de determinar o apelido do homem: de Almagro. O mais certo é que fosse um frade do capítulo espanhol dos dominicanos do século dezasseis. Também consegui uma cópia do brasão da família do homem, que gostaria de lhe enviar.
— Hmm... século dezasseis... tratando-se de registos tão antigos, provavelmente teremos de procurar nos arquivos individuais das abadias. É possível que demore algum tempo.
— Presumi que assim fosse, mas achei que seria melhor começar antes de regressar ao Peru.
— Sim, e isso dá-me uma ideia de por onde começar. Vou-lhe enviar os arquivos do Vaticano, claro, mas também há uma Ordem Dominicana muito antiga, em Cusco, no Peru, dirigida pelo abade Ruiz, creio. Se esse sacerdote foi enviado como missionário para o Peru, a abadia local poderá ter algum registo.
Henry sentou-se mais direito na sua cadeira, o entusiasmo a alimentar todo o seu corpo. Claro! Devia ele próprio ter pensado nisso.
— Excelente, obrigado arcebispo Kearney. Desconfio que a sua ajuda se irá revelar inestimável na resolução deste mistério.
— Espero que sim. Vou pedir ao meu secretário que lhe dê o nosso número de fax. Estarei a aguardar a sua transmissão.
— Enviar-lha-ei de imediato. — Henry quase não prestou atenção quando foi de novo passado para o rececionista que lhe deu o número de fax. A sua mente agitava-se com todas as possibilidades. Se frei de Almagro tivesse estado no Peru bastante tempo, talvez encontrassem algumas cartas e relatórios seus na abadia de Cusco. Talvez até fosse possível encontrar nessas cartas alguma pista quanto à cidade perdida.
Henry voltou a pousar o recetor com os dedos trôpegos e deslizou o desenho do anel para a máquina de fax. Marcou e escutou o zumbido e o apito do fax a estabelecer a ligação.
Enquanto o desenho era enviado, Henry obrigou a mente a centrar-se no outro mistério que rodeava a múmia. Passara a noite a perseguir o passado daquele homem, mas agora que essa questão deixara as suas mãos permitiu-se especular sobre o último puzzle que dizia respeito à múmia. Algo que não transmitira ao arcebispo. Henry recordou a explosão do crânio da múmia e o jorro de ouro.
O que teria acontecido exatamente? Que substância seria aquela? Henry sabia que o arcebispo não podia ajudar a esclarecer esse assunto. Apenas uma pessoa o poderia fazer, alguém que, de qualquer modo, só procurava um pretexto para contactar. Desde que a voltara a reencontrar, passadas quase duas décadas, não conseguia tirar a mulher da sua mente.
O fax entoou as notas que assinalavam o fim da transmissão e Henry pegou no telefone. Marcou um segundo número. O telefone tocou cinco vezes até uma voz sem fôlego atender.
— Estou?
— Joan?
Uma voz confusa.
— Sim?
Henry imaginou o rosto magro da patologista, emoldurado pelo cabelo preto como um corvo. Ela quase não envelhecera: o rosto envolto nas sombras, os olhos divertidos. Nem mesmo a inteligência rápida e a curiosidade afiada tinham sido embotadas pelos anos de ensino. Henry sentiu, de súbito, dificuldade em falar.
— S... sou eu, o Henry. Eu... desculpa incomodar-te tão cedo.
A voz dela perdeu a sua frieza desapegada e aqueceu consideravelmente.
— Cedo? Apanhaste-me a chegar a casa do hospital.
— Trabalhaste a noite toda?
— Bem, estive a rever os scans da múmia, e... bem... — uma pequena pausa de embaraço —, perdi a noção do tempo.
Henry olhou de relance para o seu próprio fato enrugado e sorriu.
— Sei o que queres dizer.
— Então, descobriste algo novo?
— Juntei algumas coisas. — Relatou rapidamente a sua descoberta do nome do frade e a sua chamada para o arcebispo. — Então e tu? Alguma novidade pelo teu lado?
— Pouca coisa, mas gostava de me sentar contigo e rever as minhas conclusões. O material no crânio revelou-se muito incomum.
Antes que Henry se pudesse controlar ou pesar uma tal decisão, avançou.
— Que tal almoço, hoje? — Estremeceu perante tais palavras. Não queria soar tão desesperado. Sentiu o rosto a aquecer com a sua inépcia.
Uma longa pausa.
— Temo não poder almoçar.
Henry censurou-se por ser tão pouco profissional. Decerto, ela tinha visto para lá das suas palavras. Desde a morte de Elizabeth, perdera a capacidade para abordar uma mulher em termos românticos: não que tivesse sentido qualquer vontade de o fazer até àquele momento.
Joan continuou.
— Mas e se fosse jantar? Conheço um italiano simpático junto ao rio.
Henry engoliu em seco, esforçando-se por conseguir falar. Atrever-se-ia ele a esperar que ela estivesse a sugerir algo mais do que um jantar de colegas? Talvez a renovação dos velhos sentimentos? Mas já tinha passado tanto tempo. Tinham vivido tanto entre os seus anos na faculdade e o momento presente. Decerto qualquer centelha que outrora ardesse entre eles há muito se transformara em cinza. Não?
— Henry?
— Sim... sim, seria ótimo.
— Estás alojado no Sheraton, certo? Posso ir buscar-te por volta das oito horas. Isso se não te importares com um jantar tardio?
— Claro, por mim está ótimo. Como muitas vezes tarde, por isso não será um problema. E... e por acaso, hum... — A tagarelice nervosa de Henry foi, felizmente, interrompida pelo bipe de uma nova chamada. Tossiu, desajeitadamente. — Desculpa, Joan. Tenho outra chamada. Volto já.
Henry baixou o auscultador, inspirou fundo para se acalmar, depois carregou no botão para atender a outra linha.
— Sim?
— Professor Conklin?
Henry reconheceu a voz. Franziu o sobrolho.
— Arcebispo Kearney?
— Sim, queria apenas informá-lo de que recebi o seu fax e olhei para ele. O que vi foi, para mim, uma surpresa.
— Como assim?
— O emblema das espadas cruzadas sobre o crucifixo. Enquanto antigo historiador da Europa, é um emblema com que estou bastante familiarizado.
Henry pegou no anel de prata do frade e segurou-o à luz.
— Pensei que me parecia familiar, mas não consegui identificá-lo.
— Não me surpreende. É um ícone bastante arcaico.
— O que é?
— É a marca da Inquisição Espanhola.
Henry ficou com a respiração presa na garganta.
— Como? — Imagens de câmaras de tortura e carne dilacerada por ferros incandescentes desfilaram na sua mente. A fação negra do catolicismo há muito que fora banida e vilificada pelos séculos de mortes e torturas infligidas em nome da religião.
— Sim, pelo anel, parece que o nosso frade mumificado era um inquisidor.
— Meu Deus — praguejou Henry, esquecendo por um momento com quem estava a falar.
O arcebispo deixou escapar uma pequena gargalhada divertida.
— Achei que devia saber, mas agora tenho de ir. Vou enviar o seu pedido ao Vaticano e ao abade Ruiz, no Peru. Com sorte, descobriremos mais em breve.
O arcebispo desligou. Henry deixou-se ficar sentado, em choque, até o telefone que segurava ter tocado, sobressaltando-o.
— Oh, céus... Joan. — Henry voltou a puxar a chamada da patologista, que tinha deixado em espera. — Lamento ter demorado tanto tempo — disse, apressadamente —, mas era o arcebispo Kearney outra vez.
— O que queria ele?
Henry relatou o que ficara a saber, ainda abalado pela revelação.
Joan ficou em silêncio durante um momento, atordoada.
— Um inquisidor?
— Assim parece — disse Henry, recompondo-se. — Mais uma peça de um puzzle cada vez maior.
— Espantoso — respondeu Joan. — Parece que vamos ter ainda mais para debater durante o jantar desta noite.
Henry esquecera momentaneamente os planos para jantar.
— Sim, claro. Vemo-nos esta noite — respondeu com um entusiasmo genuíno.
— Estamos combinados. — Joan acrescentou rapidamente as suas despedidas, depois desligou.
Henry devolveu lentamente o auscultador ao descanso. Não sabia o que o surpreendia mais, se o facto de a múmia pertencer a um elemento da Inquisição Espanhola, se o facto de ter um encontro marcado.
Gil subiu as escadas do único hotel da aldeia de Villacuacha, no meio da selva. As tábuas de madeira gemiam sob o seu peso. Mesmo no interior da estalagem mergulhada nas sombras, o calor do fim da manhã não permitia uma fuga fácil. O calor abafado envolvia Gil como um cobertor pesado. Limpou a humidade do pescoço com o punho da manga rasgada e praguejou baixinho. A sua fuga noturna através da selva deixara-o arranhado e de mau humor. Não conseguira dormir mais do que uma curta sesta depois de ter marcado aquele encontro.
— É melhor que ele não se atrase — resmungou Gil, enquanto trepava ao terceiro patamar. Depois de fugir do acampamento dos americanos, Gil alcançara a estrada de terra batida que atravessava a floresta quando o Sol, por fim, despontou. Felizmente, dera de caras com um índio local, com uma mula e uma carroça de rodas tortas. Uma mão cheia de moedas tinha-lhe garantido transporte até à aldeia. Uma vez lá, Gil telefonara ao seu contacto, o homem que organizara a infiltração de Gil na equipa do americano. Tinham acordado um encontro ao meio-dia, naquele hotel.
Gil deu uma palmadinha na taça de ouro que mantinha no bolso. O seu contacto, um negociante de antiguidades, pagaria uma boa maquia por uma descoberta tão rara. E era bom que aquele recetador não hesitasse perante o preço de Gil. Se Gil queria manter a esperança de contratar uma equipa que lhe permitisse regressar à escavação e apoderar-se do local, precisaria de arranjar fundos rapidamente, em contado.
Gil deslizou a mão pela faca comprida que prendera no cinto. Se preciso fosse, convenceria o tipo a aceitar o seu preço. Não permitiria que nada se interpusesse entre ele e o seu tesouro, não depois do muito que já lhe custara.
No cimo das escadas, Gil apertou o penso que lhe cobria a bochecha queimada para o prender melhor. Receberia a sua recompensa por aquela cicatriz. Jurava-o. Com os dentes cerrados em sinal de determinação, Gil percorreu o estreito corredor. Encontrou a porta certa e bateu com os nós dos dedos.
Uma voz firme, masculina, respondeu-lhe.
— Entre.
Gil deitou a mão à porta. Estava destrancada. Avançou para o quarto e foi, de imediato, confrontado com duas coisas. Primeiro, a frescura do quarto. Sobre a sua cabeça, uma ventoinha de teto girava languidamente, criando uma agitação suave no ar, que parecia arrastar consigo a humidade. Dois conjuntos de portas francesas abriam-se de par em par, para uma pequena varanda sobranceira ao pátio abrigado do jardim do hotel. De um ponto para lá do calor húmido da selva fluía uma brisa fresca através das portas abertas para o quarto. Cortinas de renda branca dançavam sob a brisa suave, enquanto a fina rede mosquiteira que envolvia a cama oscilava suavemente como as velas de um navio.
Mas mais do que as brisas, o ocupante do quarto pareceu a Gil a fonte da frescura da divisão. Era a primeira vez que Gil se encontrava pessoalmente com o seu contacto. O homem alto estava sentado numa cadeira de rotim almofadada, virado para Gil, as costas voltadas para as portas duplas abertas. Completamente vestido de preto, dos sapatos à camisa desabotoada, o homem estava sentado de pernas cruzadas, relaxadamente, segurando numa mão uma bebida cujo gelo fazia tilintar. Pelo tom tisnado da pele tinha, claramente, ascendência espanhola. Olhos escuros fitavam Gil, avaliando-o sob o cabelo preto bem aparado. Um bigode fino desenhava o lábio superior do homem. Não sorria. O único movimento foi um rápido desviar dos olhos do homem na direção da outra cadeira presente no quarto, indicando que Gil se devia sentar.
Envergando ainda as roupas rasgadas e manchadas do suor, Gil sentia-se como um camponês perante a realeza. Não conseguia sequer despertar uma pequena dose de raiva justificada perante a atitude do homem. Sentiu nele uma dureza que jamais conseguiria igualar, nem se atreveria a desafiar. Gil obrigou a língua a mexer-se.
— Eu... tenho aquilo de que falámos.
O homem limitou-se a assentir com a cabeça.
— Nesse caso, só nos resta discutir o preço.
Gil sentou-se lentamente na cadeira. Deu por si empoleirado na beira do assento, não se sentindo confortável o suficiente para se recostar. De súbito, não havia nada que desejasse mais do que despachar aquele negócio, fosse qual fosse o preço. Ansiava por abandonar o frio daquele quarto, e trocá-lo pelo familiar calor sufocante da cidade buliçosa.
Gil não conseguia sequer fixar os seus olhos nos do homem. Deu por si a olhar pela janela, para o campanário da igreja da vila, a fina cruz branca contrastando contra o céu azul.
— Mostre-me o que encontrou — disse o homem, a bebida ainda a tilintar suavemente enquanto agitava as pedras de gelo no copo, voltando a chamar a si a atenção de Gil.
— Sim, claro. — Engolindo o nó que lhe apertava a garganta, Gil retirou do bolso o cálice amolgado e pousou-o sobre a mesa entre ambos. Os rubis e as esmeraldas brilharam fortemente em contraste com o seu enquadramento de ouro. Gil sentiu um certo regresso da sua determinação ao fitar o dragão incrustado que se enrolava na maciça taça de ouro. — E... e há mais — disse Gil. — Com homens suficientes e as ferramentas apropriadas, no final da semana poderia conseguir cem vezes isso.
Ignorando as palavras de Gil, o homem baixou o copo até à mesa e pegou na taça inca. Tomou nas mãos o cálice e ergueu-o à luz do Sol, depois examinou a sua superfície durante um período que lhe pareceu terrivelmente longo.
Gil apertava as mãos sobre o colo, enquanto esperava. Fitou a amolgadela ao longo do rebordo do cálice, enquanto o homem estudava o trabalho na taça. Gil temia que uma tal marca pudesse reduzir significativamente o preço. O tipo insistira para que quaisquer artefactos lhe fossem entregues intactos.
Enquanto o homem devolvia, por fim, o cálice à mesa, Gil atreveu-se a cruzar os seus olhos com os dele. Tudo o que ali descobriu foi raiva.
— A amolgadela... já... já lá estava — gaguejou Gil rapidamente.
O homem ergueu-se em silêncio e avançou para um pequeno balcão atrás de Gil. Este escutou enquanto o homem juntava mais gelo ao copo. Depois avançou para trás de Gil.
O chefe da segurança do acampamento não conseguia obrigar-se a virar o corpo. Limitou-se a fitar o tesouro sobre a mesa.
— Se não o quiser, eu... eu não o considerarei obrigado.
Sem se virar, Gil percebeu que o homem se inclinara na sua direção. Os pelos da parte de trás do pescoço eriçaram-se com os instintos dos seus antepassados cavernícolas. Gil sentiu, então, a respiração do homem nos seus ouvidos.
— Não passa de ouro comum. Inútil.
Apercebendo-se do perigo demasiado tarde, a mão de Gil saltou para a faca que prendera no cinto. Os dedos não descobriram senão uma bainha vazia. Antes que Gil conseguisse reagir, a sua cabeça foi puxada para trás e viu a sua própria faca na mão do homem. Não teve tempo sequer para se perguntar como lhe tinha sido retirada a faca. Um movimento do punho do homem e o punhal rasgou a garganta de Gil, um fino rasto de fogo de orelha a orelha. Gil foi empurrado para a frente e caiu no chão, enquanto o seu sangue era derramado sobre as tábuas branqueadas.
Rolando até ficar de costas, Gil viu o homem regressar ao balcão e retomar a bebida abandonada, enquanto Gil sufocava no seu próprio sangue.
— P... por favor... — gorgolejou, um braço erguido em súplica enquanto a luz na sala começava a desvanecer-se. O homem ignorou-o.
Com os olhos cheios de lágrimas, Gil virou-se de novo para a janela aberta e o crucifixo luminoso no céu azul. Por favor, assim não, orou silenciosamente. Mas também aí não encontrou salvação.
Depois de terminar a sua bebida, o homem fitou a forma imóvel de Guillermo Sala. A poça de sangue parecia quase negra face ao chão branco. Não sentia qualquer satisfação naquela morte. O chileno tinha servido o seu propósito e representava, agora, mais um risco do que um benefício à sua causa.
Com um suspiro atravessou a divisão, tendo o cuidado de não sujar de sangue os seus sapatos engraxados. Recuperou o tesouro inca que deixara em cima da mesa e sopesou-o por breves instantes, avaliando o seu valor uma vez removidas as pedras preciosas e a taça derretida num lingote. Não era a descoberta por que o seu grupo tinha esperado, mas teria de servir. Pela descrição que Gil fizera do cofre subterrâneo, havia ainda uma hipótese de obter um achado mais significativo. Recuando até à cama do quarto, pegou na sua pequena pasta de cabedal e guardou a taça no interior.
Observou o quarto. Quando a noite caísse já estaria limpo.
Com a sacola na mão, deixou o quarto e as suas brisas frescas trocando-as pelo calor húmido do estreito corredor e das escadas. Depressa a sua testa se encheu de suor. Ignorou-o. Tinha crescido naquelas terras altas húmidas e estava bem habituado ao calor sufocante. Nascido de sangue misto, meio espanhol e meio índio local, era um mestizo, um mestiço. Nem espanhol nem quéchua. Normalmente uma marca de desonra entre o povo das terras altas, conseguira a pulso alcançar uma posição de respeito.
Depois de ter atravessado o pequeno lobby do hotel, avançou para o sol do meio-dia. Os primeiros passos que deu no exterior fê-los cego pela luz forte. Protegendo os olhos contra o brilho forte, desceu os degraus e quase tropeçou numa mulher índia que segurava um bebé perto da base das escadas.
A mulher, envergando uma túnica e um xaile artesanais, ficou igualmente sobressaltada com ele. No entanto, enquanto ele se desculpava deixou-se cair de joelhos à sua frente, agarrando-se à perna das calças e erguendo para ele o bebé, envolto num cobertor de alpaca de cores brilhantes. Suplicou-lhe no seu quéchua antigo.
Ele sorriu benignamente e acenou com a cabeça em resposta. Pousando a pasta no último degrau, levou a mão à garganta e deslizou para o exterior a cruz peitoral de prata. Esta destacava-se contra as suas vestes negras. Ergueu a mão sobre a cabeça do bebé e ofereceu-lhe uma rápida bênção. Uma vez terminado, beijou a testa do bebé, pegou na sua pasta e continuou a percorrer a rua da aldeia em direção à sua igreja, o campanário sempre visível nas alturas a guiá-lo até casa.
A pequena mulher índia gritou atrás dele:
— Gracias! Obrigada, frei Otera!
Na escuridão do templo colapsado, o tempo parecia alongar-se. Maggie tinha a certeza de que se haviam passado dias inteiros, mas se o seu relógio estivesse correto iam apenas no dia seguinte perto do meio-dia. Estavam presos há menos de meio dia.
Com os braços cruzados sobre o peito, Maggie estudou os outros parada uns passos mais à frente no corredor principal. Com a espingarda ao ombro, Sam mantinha-se junto às pedras caídas, o walkie-talkie colado aos lábios. Desde madrugada, o texano tinha estabelecido contacto periódico com Philip, conservando a bateria do walkie-talkie tanto quanto possível, mas tentando ajudar o seu colega de estudos na avaliação do local em ruínas.
— Não! — gritou Sam para o walkie-talkie. — A pilha de destroços é tudo o que sustenta este nível da escavação. Se tentares escavar pelo poço original, lançarás o resto para cima de nós. — Uma longa pausa enquanto Sam escutava a resposta de Philip. — Merda, Philip! Escuta-me! Eu estou cá em baixo. Consigo ver como as paredes de apoio são sustentadas pelas pedras do bloqueio. Vais matar-nos. Descobre onde é que os salteadores tinham começado a abrir um túnel para o interior da escavação. Essa é a nossa melhor hipótese.
Sam franziu o sobrolho e abanou a cabeça para o walkie-talkie.
— O sacana está completamente apavorado lá em cima — disse a Maggie. — Está, como sempre, à procura da solução mais rápida.
Maggie dirigiu um leve sorriso a Sam. Pessoalmente, também ela procurava a solução mais rápida.
Ralph e Norman estavam reunidos em redor da sua única fonte de luz, a lanterna de Denal. Ralph erguera-a para que Sam analisasse a destruição e o estado do teto tombado. Norman tirara algumas fotografias depois das curtas sestas que tinham conseguido fazer durante a noite. Encontrava-se agora com a câmara pendurada por uma alça, apertada contra a barriga. Se sobrevivessem, Norman ia apresentar algumas fotografias da sua aventura dignas de um prémio. Ainda assim, tendo em conta o seu rosto pálido, Maggie tinha a certeza de que o fotógrafo tocaria de bom grado o Pulitzer pela oportunidade de escapar com vida.
— Cuidado!
O grito vindo de trás sobressaltou Maggie. Ela estacou, mas uma mão empurrou-a subitamente, fazendo-a tombar. Ela cambaleou alguns passos em frente no preciso instante em que uma grande laje de granito se abatia sobre as pedras atrás dela. Todo o templo tremeu. O pó sufocou-a durante alguns instantes.
Acenando com uma mão, Maggie virou-se e viu um Denal empoeirado a erguer-se. Entre eles estava um pedaço de rocha solta. Maggie ficou espantada pelo quão perto estivera de ser esmagada.
Sam estava já ao seu lado.
— Tens de manter um olho no teto — censurou-a.
— Não me digas, Sam. — Ela virou-se para o rapaz que trepava por cima da laje. A sua voz suavizou-se de gratidão.
— Obrigada, Denal.
Ele balbuciou qualquer coisa na sua língua nativa, mas ela não lhe conseguiu ver os olhos. Se a luz fosse melhor, Maggie estava certa de que o veria a corar. Ela ergueu-lhe o queixo e beijou-lhe o rosto. Quando se afastou, os olhos dele tinham-se tornado ainda maiores do que dois pires.
Maggie virou-se para poupar mais embaraços a Denal.
— Sam, talvez devêssemos descer mais um nível. — Apontou com uma mão para a rocha caída. — Estavas certo em relação à instabilidade desta área. Talvez estivéssemos mais seguros um pouco mais distantes.
Sam pensou naquela sugestão, retirando o seu chapéu Stetson e penteando o cabelo com os dedos enquanto estudava o teto.
— Talvez seja melhor.
Ralph avançou, erguendo a luz na direção do teto.
— Vejam como todas as lajes do teto estão desalinhadas.
Maggie estudou o teto. Ralph tinha um olhar apurado. Algumas das pedras quadradas estavam ligeiramente inclinadas, desalinhando-se alguns centímetros das restantes, arrancadas ao seu lugar pela explosão. Enquanto observavam, mais uma das pedras deslizou um centímetro.
Sam deve ter visto o mesmo. A sua voz estava trémula.
— Muito bem, vamos descer todos mais um piso.
Ralph assumiu a dianteira com a lanterna.
Norman seguia-o.
— Neste momento, adoraria poder beber um grande copo de limonada, cheio até à borda de gelo.
Sam assentiu com a cabeça.
— Se vais aceitar pedidos, Norm, eu preferia algo com um bocadinho de espuma. Talvez uma Corona alta numa caneca gelada com um toque de lima.
Maggie limpou o pó e o suor da testa enquanto os seguia.
— Na Irlanda, bebemos a nossa cerveja quente... mas neste momento, estou disposta a curvar-me perante o vosso rude hábito americano de a beber fria.
Ralph riu enquanto alcançava a escada.
— Duvido que os incas nos tenham deixado um frigorífico cá em baixo, mas não me importo de ir à procura. — Ralph fez sinal com a lanterna a Maggie para que esta descesse primeiro a escada enquanto iluminava o caminho.
O sorriso de Maggie desapareceu-lhe dos lábios enquanto ela se afastava da luz de Ralph e mergulhava na escuridão do nível seguinte. A animada troca de palavras perante a provação em que se encontravam pouco fez para afastar o verdadeiro terror; a escuridão para lá da luz estava sempre presente, recordando-lhes o quão precária era a sua situação.
Enquanto esperava por ordens, pensou nas últimas palavras de Ralph. O que é que os incas lhes teriam deixado ali em baixo? O que se encontraria no interior da câmara para lá daquela porta selada, e o que teria acontecido aos dois companheiros de Gil?
Quando os outros se lhe juntaram na base da escada do segundo nível, a curiosidade de Maggie estava ao rubro. Além disso, se se concentrasse naqueles mistérios, talvez conseguisse ignorar um pouco o facto de estar enterrada sob quinze metros de um templo em colapso. Se a ansiedade se tornasse demasiado intensa...
Maggie abanou a cabeça. Não voltaria a perder o controlo. Com uma pontada de culpa, observou Sam a descer a escada. Depois do seu ataque na noite anterior, não fora completamente honesta com ele. Mostrara-se incapaz de explicar que os primeiros sintomas dos seus «ataques» tinham tido o seu início depois de ter testemunhado a morte de Patrick Dugan numa vala à beira da estrada em Belfast. Mais tarde, os médicos tinham sido incapazes de encontrar qualquer causa fisiológica para os seus ataques, embora o consenso fosse o de que estes seriam, muito provavelmente, uma forma de pânico grave. Afastou a culpa crescente. Os pormenores não diziam respeito a Sam. Depois da sensação inicial de se encontrar numa armadilha, aceitara a situação. Enquanto se fosse mantendo distraída, estaria bem.
Não muito longe, Sam tentou o walkie-talkie. O rádio continuava a funcionar, mas a estática era um pouco pior àquela profundidade. Fez saber a Philip que se tinham reposicionado.
Uma vez terminado, Maggie avançou para Sam. Humedeceu os lábios.
— Gostaria de te pedir emprestada a lâmpada ultravioleta.
— Para quê?
— Quero ir ver que danos o Gil e os outros fizeram à escavação.
— Não posso permitir que andes por aí sozinha. Temos de nos manter juntos. — Ele começou a virar-lhe as costas.
Ela agarrou-o pelo ombro.
— Não era um pedido, Sam. Eu vou. Demoro apenas uns minutos.
Denal encontrava-se a uns poucos passos.
— Eu... ir consigo, menina Maggie.
Sam fitou-os e pareceu reconhecer nela a determinação.
— Está bem. Mas não se afastem durante mais de quinze minutos. Temos de conservar as fontes de luz, e não quero ter de andar atrás de vocês.
Maggie assentiu com a cabeça.
— Obrigada, Sam.
— Eu vou convosco — disse Norman, ajeitando a alça da câmara em redor do ombro.
Ralph também tinha algum interesse, mas Sam fê-lo desaparecer.
— Vocês os três vão indo. Eu e o Ralph vamos percorrer este nível com a lanterna e avaliar a integridade estrutural. — Retirou do bolso a lanterna e estendeu-a a Maggie, mas não a largou senão depois de uma última palavra de aviso. — Quinze minutos. Tem cuidado.
Ela ouviu a preocupação na sua voz firme e isso diminuiu um pouco a irritação na sua própria resposta.
— Eu sei, Sam — disse ela baixinho, tirando das suas mãos a lâmpada de Wood. — Não tens de te preocupar.
Ele sorriu, depois regressou ao walkie-talkie e à discussão que mantinha com Philip.
Maggie acendeu a luz ultravioleta e acenou aos seus dois companheiros para que a seguissem até à escada seguinte. Enquanto abandonavam a luz mais forte, a escuridão do templo engolia-os. Mais à frente, o brilho púrpura iluminava o quartzo nos blocos de granito, criando uma paisagem estrelada em miniatura que se estendia ao longo da passagem. Maggie seguia à frente, os outros mantinham-se próximos ao seu lado.
Enquanto percorriam a série de escadas até ao nível mais profundo da escavação, o coração de Maggie começou a bater cada vez mais ruidosamente nos seus próprios ouvidos. Em breve o bater do seu coração parecia vir de outro local que não o seu peito.
— Que barulho é esse? — perguntou Norman enquanto descia do degrau da última escada.
Denal respondeu, a sua voz um sussurro.
— Já ouvir antes. Depois de o senhor Sala ter gatinhado através daquela porta.
Maggie apercebeu-se de que o bater nos seus ouvidos não era o seu próprio coração, mas o baque externo de algo mais longe no templo. Reverberava, inclusivamente, através das pedras sob os seus pés.
— Parece-se um pouco com o trabalhar de um grande relógio — disse Norman.
Maggie ergueu a luz.
— Continuemos. — Comparado com o batimento sonoro vindo de baixo, a sua própria voz parecia o guincho de um rato.
Serpenteando através dos últimos túneis, Maggie em breve se erguia perante a porta violada. Os ferrolhos partidos marcavam o local dos selos que haviam sido destruídos. Na terra ao lado da abertura, as três barras de hematite gravada jaziam descartadas, todas elas estaladas e lascadas devido à utilização de um pé de cabra para as soltar. A ferramenta que criara tamanha ofensa permanecia apoiada na parede.
Denal curvou-se e pegou no pé de cabra, estimando o seu peso. Olhou de relance para Maggie. Ela não se importou que ele tivesse uma arma.
A abertura à sua frente estava parcialmente bloqueada pela pedra tombada que outrora selara a secção do templo à sua frente. Norman ajoelhou-se a alguma distância da abertura. Empurrou os óculos sobre a cana do nariz e tentou espreitar para o interior.
— Não consigo ver nada.
Maggie posicionou-se ao seu lado. Nenhum deles parecia disposto a aproximar-se mais da porta. Ela recordava-se ainda do terror nos olhos de Gil e na bolha ensanguentada no seu rosto. O que haveria ali?
Norman trocou um olhar com ela. Ela encolheu os ombros e avançou, a lanterna que segurava na mão estendida à sua frente como uma pistola. Fez uma pausa no limite da abertura, depois estendeu o braço através do seu limiar. O brilho estendia-se ao longo da curta passagem. Ali, aquele profundo tiquetaque soava muito mais ruidoso. Maggie semicerrou os olhos.
— Parece haver uma grande divisão logo à frente. Mas a luz não a alcança. — Ela olhou de relance por cima do ombro, para Norman.
— Talvez devêssemos esperar pelos outros — sussurrou o fotógrafo.
Maggie estava prestes a sugerir exatamente o mesmo, mas como Norman o sugerira primeiro, agora hesitava. Conseguia imaginar a expressão arrogante de Sam se ela não desse, pelo menos, uma espreitadela. Estavam a gastar a pilha da lâmpada de Wood para chegar até ali; deveriam, pelo menos, obter algo que justificasse o gasto.
— Vou entrar — disse ela, avançando antes que o medo a detivesse. Não permitiria que o terror paralisante da sua infância a dominasse agora.
— Então é melhor irmos todos — disse Norman, aproximando-se bastante da retaguarda dela enquanto ela começava a trepar a porta de pedra tombada.
Maggie ergueu-se sobre a obstáculo e ficou de pé no corredor. Norman e Denal juntaram-se-lhe.
— Vejam — disse ela, apontando com a lâmpada. — Há algo ali à frente, a refletir o brilho. — Intrigada, foi avançando lentamente.
— Espera — disse Norman. — Primeiro vamos ver o que nos espera.
Maggie virou-se para olhar para o fotógrafo que erguia a câmara.
— Não olhem diretamente para o flash — avisou.
Ela virou o rosto no preciso instante em que a câmara explodia por uma breve fração de segundo. Arquejou. Depois de tanto tempo, aquele brilho fazia-lhe arder os olhos. Mas a sua resposta atordoada não se devia apenas à dor. Iluminada apenas por uma fração de segundo, uma imagem da sala ficara-lhe gravada na retina.
— V... vocês viram aquilo? — perguntou.
Denal balbuciou qualquer coisa na sua língua nativa, claramente espantado.
Norman tossiu para clarear a garganta.
— Há ouro e prata por todo o lado.
Maggie ergueu a sua própria luz, o seu brilho púrpura parecia agora muito fraco.
— E aquela estátua... viram-na? Devia ter, pelo menos, dois metros de altura.
Norman avançou até junto dela enquanto Maggie avançava mais alguns passos. Denal continuava ao lado deles, empunhando o pé de cabra. Norman sussurrou:
— Dois metros. Não pode ser também de ouro, pois não?
Maggie encolheu os ombros.
— Quando os espanhóis chegaram, descreveram o Templo do Sol que encontraram em Cusco. O Coricancha. Dizia-se que as divisões tinham sido forradas com lajes de ouro maciço e, nas zonas mais interiores do templo, erguia-se um modelo em tamanho real de um milheiral. Talos, folhas, espigas, até a própria terra... tudo feito de ouro. — Por aquela altura tinham já alcançado a entrada da divisão. Maggie ajoelhou-se e deslizou uma mão suavemente sobre a placa de ouro aos seus pés. — Espantoso... devemos ter descoberto mais um Templo do Sol.
Norman mantinha-se imóvel.
— O que é aquilo ali? No chão.
Maggie ergueu-se de novo.
— De que falas?
Ele apontou para uma sombra escura no limite da luz que empunhava. Maggie ergueu ainda mais a lâmpada. O seu brilho refletia-se no ouro e na prata como o luar derramado sobre um lago calmo. Encontrava-se ali uma ilha negra, uma ondulação no lago. Maggie preparou-se para se aproximar ainda mais com a luz, um pé no limite do chão metálico.
Denal impediu-a de continuar, estendendo o pé de cabra à frente do seu caminho.
— Não, menina Maggie — murmurou. — Cheirar mal aqui.
— Ele tem razão — disse Norman. — Que fedor é este?
Agora que lhe chamavam a atenção para isso, Maggie apercebeu-se de um fedor subjacente que lhe chegava através do odor enjoativo do barro húmido e do bolor. Apontou para a câmara com a cabeça.
— Faz aquilo outra vez, Norman.
Acenando com a cabeça, o fotógrafo ergueu a câmara enquanto Maggie virava de novo os olhos para o chão. O flash explodiu iluminando a divisão. Maggie praguejou e cambaleou para trás, para longe das lajes.
— Credo!
Ela tapou a boca. Estava a fitar a ilha escura no chão da divisão quando o flash de Norman explodira. O rosto torturado estava ainda impresso na sua mente. O corpo dilacerado e contorcido, os olhos muito abertos com a morte, e o sangue... tanto sangue. Para lá do primeiro encontrava-se um segundo corpo, mais próximo da parede oposta.
— Juan e Miguel — balbuciou Denal.
Seguiu-se um longo silêncio.
— Não foi o Gil que lhes fez aquilo, pois não? — perguntou Norman. — Que os assassinou pelo ouro?
Maggie abanou lentamente a cabeça. A forma mutilada de Juan tornara-se apenas um alto mergulhado nas sombras. Enquanto fitava, o matraquear do coração de uma qualquer besta gigantesca continuava a ecoar pela sala do tesouro. Reconhecia-a agora pelo que era, o tiquetaque das grandes engrenagens por detrás das paredes e do chão da sala.
O aviso gravado nos selos da sala penetrou de súbito a mente de Maggie: Entregamos este túmulo aos Céus. Que nunca seja perturbado.
— Maggie?
Ela virou-se para Norman.
— Não. Não foi o Gil quem os assassinou. Foi a sala.
Antes que Norman pudesse reagir, a câmara estremeceu violentamente, lançando-os a todos ao chão. Maggie aterrou com força perto do início do padrão de lajes que cobria o chão, o que a deixou sem fôlego. Arquejando em busca de ar, arrastou-se para trás, pressentindo o perigo.
— O que foi aquilo? — gritou Norman.
Maggie moveu a lanterna. Através da entrada para o túmulo, uma densa nuvem de pó rolou na direção deles. Ela tentou falar.
— Ai! Credo! Para cima... para cima! — incitou-os Maggie.
— O que se passa? — insistiu Norman, enquanto o pânico se apoderava da sua voz.
Maggie empurrou-o em direção à saída.
— Maldição! Mexe-te, Norman! O raio do templo está a colapsar!
Sam foi ver como estava Ralph. O grande homem de cor ergueu-se, atordoado, apoiando-se nos braços. O couro cabeludo sofrera um corte quando uma secção do teto cedera. Felizmente um ruído vindo de cima avisou-os de que o céu estava prestes a abater-se sobre as suas cabeças.
— Estás bem? — perguntou Sam, sacudindo o pó das suas calças Wrangler.
Ralph ajoelhou-se.
— Sim, acho que sim. — Tocou, hesitante, no alto ensanguentado na testa. — Nunca tinha sido placado por uma laje de granito.
— Não saias daqui — avisou Sam. Foi buscar a lanterna que lhe tinha caído. — Vou ver o que aconteceu.
Ralph franziu o sobrolho e pôs-se de pé.
— Nem penses. Mantemo-nos juntos.
Sam acenou com a cabeça. Para dizer a verdade, não queria investigar sozinho. Aquele nível do templo era quase uma nuvem sólida de sedimentos e pó dos deslizamentos. Sam tossiu, tapando a boca e o nariz com a curva interior do cotovelo.
— Por aqui — balbuciou. Conduziu-os até ao poço que dava acesso ao primeiro nível do templo.
Ralph gemeu quando o que restava da escada destruída se tornara visível um pouco mais à frente.
— Isto não pode ser bom.
E não era. A subida estava bloqueada por uma pilha caótica de grandes pedras talhadas, como se uma criança tivesse derrubado a sua construção em blocos.
— O primeiro nível deve ter desabado por completo — disse Sam.
O walkie-talkie que Sam colocara à cintura produziu um som estático. Agarrou nele e ouviu a voz frenética de Philip.
— ... bem? Reportem, raios! Câmbio!
Sam carregou no botão para transmitir.
— Philip, daqui Sam. Estamos bem. — Por cima das suas cabeças, o teto gemia ominosamente; a terra escorria. — Mas não sei durante quanto tempo. Como está a correr a escavação de uma nova entrada a partir da base da montanha?
Estática... depois...
— ... encontrámos a entrada dos saqueadores. Mal a começámos... pelo menos dois dias... mandei pedir ajudar, mas não sei quanto tempo... — A estática sobrepôs-se à voz fraca do colega de estudos, mas Sam tinha, ainda assim, percebido o pânico.
— Merda, dois dias... — resmungou Ralph. — O templo não vai aguentar tanto tempo.
Sam tentou obter mais informações junto de Philip, mas só chegavam até ele alguns fragmentos de palavras.
— Vou tentar reposicionar-me para obter uma melhor receção — gritou Sam para o rádio. — Aguarda!
Voltou a prender o walkie-talkie.
— Vamos à procura dos outros. Para confirmarmos que estão bem.
Ralph acenou com a cabeça.
— De qualquer modo talvez seja melhor que nos instalemos no nível mais baixo. — Uma vez mais, ouviram um pequeno gemido sobre as suas cabeças. — Parece que este templo vai desabar um nível de cada vez.
Sam seguiu à frente, avançando através dos corredores.
— Esperemos que nos salvem antes de ficarmos sem níveis.
Ralph nada tinha a acrescentar e seguiu-o em silêncio.
Precisamente quando estavam a chegar à escada que dava acesso ao terceiro piso, Sam viu Norman espreitar pelo poço, os seus olhos muito abertos sob a luz da lanterna. O fotógrafo ergueu uma mão para se proteger do brilho.
— Graças a Deus que estão bem! — disse Norman apressadamente. — Não sabíamos o que iríamos encontrar.
Denal seguiu-o. Sam apercebeu-se da presença do pé de cabra na mão do adolescente, mas não teceu qualquer comentário.
Maggie trepou, por fim.
— O que aconteceu? — perguntou com a voz tensa e desligou a lâmpada de Wood.
— O nível superior colapsou — disse Sam, e contou rapidamente como tinham conseguido fugir no último instante. — Com os patamares superiores tão instáveis, achámos que seria melhor procurar abrigo no quinto nível. Para jogar pelo seguro.
— Então, mantemos as cabeças tão baixas quanto possível — disse Maggie.
Norman fitou a escada.
— Isso significa voltar a descer.
Sam viu o olhar preocupado que Maggie e Norman trocaram.
— O que foi?
— Encontrámos, lá em baixo, o Juan e o Miguel — disse Norman.
Pelo tom de voz e pela expressão de Norman, Sam percebeu que os homens não estavam vivos.
— O que lhes aconteceu?
Foi Maggie quem respondeu.
— É melhor veres por ti mesmo — disse, e virou costas.
Em silêncio, o grupo desceu as escadas até à secção mais profunda do templo. Sam em breve se viu a fitar os selos da porta espalhados.
— Os sacanas... — balbuciou num sussurro enquanto se curvava junto à entrada.
— Já pagaram pelos seus crimes, Sam — disse Maggie, secamente. — Vem. — Ela fez-lhe sinal para que passasse para a sala seguinte, depois acompanhou-o, mantendo-se ao seu lado.
Com a lanterna, Sam assimilou rapidamente a cena da câmara seguinte. Não deixou que o feixe de luz se demorasse demasiado em qualquer um daqueles corpos destroçados. Por um momento, teve um flashback súbito do momento em que vira os corpos ensanguentados dos próprios pais serem transportados de maca. Preso pelo cinto de segurança ao banco de trás do Ford da família, Sam escapara ao acidente fatal apenas com um braço partido. Esfregava agora o antebraço.
— O q... que lhes aconteceu?
— O túmulo está repleto de armadilhas — disse Maggie, acenando em seguida para a sua frente. — Ouve o mover das engrenagens debaixo do chão. Trata-se de uma engenhoca maldita preparada para apanhar salteadores.
— Pensei que os incas não tivessem tal tecnologia.
— Não, mas alguns dos índios da costa eram bastante avançados no que diz respeito à construção de roldanas para os seus sistemas de irrigação. Se tiverem ajudado aqui...? — Encolheu os ombros.
O feixe de luz de Sam fixou-se no rei inca de ouro que se erguia contra a parede de granito preto.
— Seja como for, está ali o isco. Um olhar para tamanho prémio e quem não correria de imediato? — Sam apontou a luz para o padrão de ouro e prata. Ele sabia reconhecer uma armadilha quando via uma.
— Eis um jogo que não gostaria de ter de jogar.
As pedras estremeceram sob os seus pés e um rugido arranhado ecoou a partir dos níveis mais acima.
— Poderemos ser forçados a isso — disse Maggie. — Reforçada pela maquinaria da armadilha, esta poderá ser a sala mais segura, caso o resto do templo desabe.
A voz de Ralph gritou-lhes a partir do limiar da porta.
— Sam, tenta falar de novo com o Sykes! Espicaça-o! Está tudo a desabar!
Sam desenganchou o walkie-talkie e voltou a ligá-lo. A estática jorrou dos altifalantes. Esta cessou quando Sam carregou no botão de transmissão.
— Philip, se consegues ouvir-me responde. Câmbio.
O ruído branco foi a única resposta, depois algumas palavras chegaram até eles:
— ... a tentar abrir mais o poço para podermos pôr mais homens a escavar... trabalhar vinte e quatro horas...
— Acelera, Philip! — insistiu Sam. — Isto mais parece um castelo de cartas.
— ... fazer o melhor... o raio dos trabalhadores não percebem... — Seguiu-se um guincho de estática prolongado.
— Isto é inútil — balbuciou Sam para si mesmo, com um abanar de cabeça. Levou o rádio aos lábios. — Informem-nos de hora a hora! — Desligou os walkie-talkies e virou-se para Maggie. — Temos um longo caminho à nossa frente.
Maggie encontrava-se de cabeça inclinada, a escutar os gemidos do templo tenso.
— Espero que tenhamos muito tempo — disse, com uma clara preocupação. Sam tentou envolver-lhe os ombros com o braço, mas ela afastou-o. — Estou bem.
Sam observou Maggie a afastar-se da sala. Com uma última passagem da luz sobre a câmara mortal, Sam virou-se para a seguir, mas o padrão de ouro e prata fixara-se na sua mente. Não se tratava de um axadrezado simples, mas de uma mistura complexa de passos ziguezagueantes com duas zonas de ilhas de ouro retangulares, uma do lado esquerdo superior e outra do lado direito inferior.
Sam parou, enquanto refletia no padrão. Era-lhe irritantemente familiar. Voltou de novo a sua atenção para o piso, lançando sobre ele a sua luz.
— O que se passa? — perguntou Maggie atrás dele.
— Espera um segundo. — Sam avançou até ao limite da câmara. Ergueu-se em silêncio, deixando que a sua mente se acalmasse. Havia ali uma pista. Ele sabia que havia. Os cadáveres dos dois homens tinham-no distraído, o choque impedira-o de o ver. — Meu Deus — balbuciou Sam.
Maggie regressou, cautelosamente, ao seu lado.
— O que foi?
Sam acenou com a luz através das trinta filas de lajes com perto de um metro de lado. — Tinhas razão em relação ao envolvimento de outros índios peruanos. Isto não é inca.
— Como assim? — perguntou Maggie. — A estátua parece mesmo inca.
— Não me refiro à estátua. Os incas provavelmente acrescentaram-na mais tarde. Refiro-me ao chão, à sala em si. Às armadilhas.
— Não compreendo.
— Olha para o padrão. É tão grande que quase não o via. — Sam apontou com o feixe de luz da sua lanterna. — As diversas tribos do antigo Peru... os paracas, os huaris, os nascas, os moches, mesmo os incas... nenhuma delas tinha uma linguagem escrita. Mas os seus pictogramas e ideogramas, descobertos em desenhos e nos têxteis urdidos, eram elaborados e únicos em cada tribo. Olha para este padrão. Os dois retângulos dourados em cantos opostos, ligados por linhas ziguezagueantes, serpenteantes. Onde é que já viste isto antes?
Maggie aproximou-se mais um passo.
— Meu Deus, tens razão. É um pictograma enorme. — Ela virou-se para enfrentar Sam, os olhos muito abertos de entusiasmo. — É moche, não inca.
— Foi tal como o tio Hank concluiu — balbuciou Sam, a sua voz espantada. — Estamos numa pirâmide moche.
— O quê? Quando é que o professor Conklin mencionou a cultura moche?
Sam apercebeu-se de que tinha falado demais, revelando o segredo do tio. Sam suspirou. Tendo em conta as circunstâncias, manter quaisquer segredos parecia agora ridículo.
— Escuta, Maggie, há algo que o meu tio escondeu de todos. — Sam relatou rapidamente como o professor tinha descoberto que a Praça do Sol era igual à ponta de uma pirâmide moche encontrada junto à costa. — Fez a descoberta imediatamente antes de partir com a múmia.
Maggie franziu o sobrolho.
— Então, eu não era a única a guardar segredos...
Sam corou, recordando-se da reprimenda que dera a Maggie por esta ter mantido certos factos escondidos.
— Desculpa.
Seguiu-se um longo silêncio. Maggie falou, por fim.
— Faz um certo sentido. Tendo em conta a complexidade da sala, os moches eram melhores metalúrgicos do que os incas. Também construíam canais e sistemas de irrigação elaborados nas suas terras, com bombas rudimentares e engrenagens. Se havia tribo capaz de construir esta armadilha eram os moches. — Maggie acenou para o padrão. — Tu é que és o epígrafo especialista. O que significa isto?
Sam explicou usando a lanterna como ponteiro.
— Vê como o padrão em degraus se liga aos dois retângulos de ouro. Ilustra a ascensão de um espírito deste mundo para o reino dos espíritos e dos deuses. — Sam virou-se para Maggie. — No fundo, significa que isto é o portão para o Céu.
— Credo...
— Mas não é tudo. — Sam apontou a luz para o teto, onde as lajes desenhavam uma imagem invertida do padrão do chão. — Cada laje dourada no chão tem uma laje de prata correspondente no teto e vice-versa. Os moches... e nesse aspeto também os incas... acreditavam em dualismo. Na língua quéchua, yanantin e yanapaque. Imagem em espelho, luz e escuridão, em cima e em baixo.
— Yin e yang — balbuciou Maggie.
— Exatamente. O dualismo é comum em muitas culturas.
— Então o que estás a dizer... — Os olhos de Maggie deslizaram para os dois corpos mutilados.
Sam terminou a frase dela:
— Aqui também se encontra o portão para o Inferno.
Do outro lado das ruínas, Philip fitou o cume abatido. Todo o telhado do templo subterrâneo cedera sobre si mesmo, deixando para trás uma cova repleta de barro e pedregulhos com três metros de profundidade. Uma nuvem de pó pairava ainda em redor do topo afundado como um vulcão em erupção, os sedimentos a pairar eternos no ar húmido.
Philip permanecia perto do seu posto junto à tenda das comunicações, embora não devesse contactar Sam senão daí a meia hora. Envolveu o peito com os braços. Os trabalhadores quéchuas eram praticamente inúteis. Recorrer à mímica e a desenhos para transmitir as suas instruções eram as únicas formas de comunicar com o bando iletrado e, mesmo assim, era frequente não compreenderem as suas ordens.
No entanto, Philip começava a desconfiar que alguns dos «mal-entendidos» eram deliberados, em especial depois de ele ter insistido que os índios tentassem voltar a abrir o poço original, desafiando as ordens de Sam. A avaliação do texano depressa de mostrara válida; o templo colapsara ainda mais quando alguns trabalhadores tentaram soltar uma laje de granito particularmente grande. Um dos índios partiu a perna quando o telhado cedeu. Desde aí, os quéchuas tinham-se tornando mais fechados e lentos a acatar as suas ordens.
Da última vez que falara com Sam, Philip evitara referir, de forma deliberada, a sua própria culpabilidade pela quase tragédia. Felizmente, a comunicação deficiente salvara-o de ter de oferecer explicações detalhadas.
Philip olhou de relance para o limite da selva. Quanto mais não fosse, os trabalhadores tinham descoberto o túnel parcialmente escavado que os saqueadores começaram a abrir junto à base do monte coberto de vegetação. De acordo com os seus cálculos, estimava que seria necessário escavar mais uns doze metros de túnel antes de alcançar o templo em si, o que implicaria perto de quatro dias, mais do que a estimativa inicial de dois dias que dera a Sam.
— Isso se, entretanto, recebermos ajuda — resmungou. Caso contrário, os colegas estavam condenados. Ainda que o templo permanecesse de pé, o que era duvidoso, a água seria cada vez mais crucial. Mesmo com aquela humidade, a morte por desidratação representava um perigo real. A ajuda tinha de chegar. Recusava-se a ter as mortes dos outros nas mãos... ou no currículo. Se rebentasse um tal escândalo, com o seu nome a ele associado, arriscava-se a perder o seu lugar de professor associado em Harvard.
Philip protegeu os olhos do sol da tarde. Dois trabalhadores haviam partido de madrugada em busca de ajuda, correndo sobre as suas pernas compridas e esguias. Os dois jovens pareciam capazes de manter aquele ritmo durante todo o dia. Se assim fosse, deveriam estar a chegar à minúscula aldeia de Villacuacha e a um telefone a qualquer momento, e com uma resposta rápida era possível ter uma operação de resgate montada nos próximos dois dias.
Philip assentava todos os seus planos naquela esperança: salvamento. Com outros por perto, ficaria isento de qualquer culpabilidade direta. Ainda que os outros estudantes morressem, a responsabilidade não seria exclusivamente sua. A culpa partilhada enfraqueceria a nódoa no seu próprio registo.
Mas havia mais uma razão para rezar pelo aparecimento de salvadores. O Sol começava a pôr-se e Philip temia mais uma longa e negra noite com a floresta a gemer à sua volta. Guillermo Sala estava por ali algures, decerto à espera do momento certo para atacar.
Fitando a aldeia distante de Villacuacha, Philip enviou uma oração silenciosa aos dois mensageiros índios.
— Despachem-se, sacanas.
Ao longo de um trilho na floresta, frei Otera olhava de relance para o Sol que se punha, depois puxou o capuz do seu hábito de modo a tapar melhor a cabeça, mergulhando as suas feições nas sombras. Deviam chegar às ruínas por volta do meio-dia do dia seguinte.
— Vamos — ordenou, e abriu caminho.
Atrás dele, uma fila de cinco monges de hábitos castanhos avançava ao mesmo ritmo. O restolhar dos seus hábitos era o único som a perturbar o crepúsculo na floresta. A selva ficava sempre estranhamente silenciosa à medida que o Sol se começava a pôr, calada como se as criaturas da floresta sustivessem a respiração perante os perigos da noite que se aproximava. Em breve os predadores sombrios seriam de novo libertos para a caçada.
Foi esse silêncio carregado que permitiu que o frade de cabelos negros ouvisse o estalar de um ramo e a respiração entrecortada de alguém que se aproximava. Inclinou a cabeça. Não, eram dois homens que se aproximavam. Frei Otera ergueu um braço e, sem dizerem uma palavra, os outros estacaram. A Igreja treinara-os bem.
Num instante, dois índios de peito despido surgiram no trilho mais à frente. O suor brilhava nos seus corpos esguios, como se cintilassem sob os últimos raios de sol. Olhando bem, tornava-se óbvio que os dois homens, arranhados pelos espinhos e de membros trémulos, tinham percorrido uma longa distância e a passo rápido.
Com um franzir de sobrolho, os lábios do frade cingiram-se em duas linhas duras de satisfação. Embora odiasse a sua infância pobre entre os índios, esta revelava-se agora útil. Quando era rapazinho, fora perseguido e atormentado por não ser de sangue puro, um mestizo. Os trilhos da selva sombria tinham sido o seu único refúgio face ao ridículo constante, e conhecia aqueles trilhos na selva melhor do que muitos. Também sabia que qualquer tentativa para pedir ajudar teria de percorrer aquele trilho, e ele recebera as suas ordens. Frei Otera ergueu a palma da mão, em sinal de saudação.
O primeiro índio pareceu desconfiar do grupo de estranhos. E sabiamente, dado que as selvas eram os locais de caça de muitos guerrilheiros e salteadores. Mas em breve o reconhecimento dos seus hábitos e cruzes de prata encheram os olhos do índio. Ele caiu de joelhos, balbuciando os seus agradecimentos na gutural língua quéchua.
Frei Otera curvou a cabeça, cruzando os punhos dentro das mangas largas. Uma mão alcançara o cabo do punhal escondido numa bainha presa ao pulso.
— Não temas, meu filho. Acalma-te. Diz-me o que aconteceu.
— Frei... Padre, viemos de longe. Em busca de ajuda. Estamos ao serviço dos norte americanos no topo das montanhas. Houve um acidente. Um acidente terrível.
— Um acidente?
— Um túmulo subterrâneo que colapsou, encurralando os americanos. Vão morrer se não nos despacharmos.
Frei Otera abanou a cabeça tristemente.
— Terrível, de facto — murmurou no seu quéchua nativo, embora interiormente lhe desagradasse fazê-lo. A velha linguagem, uma rude derivação da língua inca chamada runa simi, era tão simples e básica, a língua dos pobres. E odiava que o facto de a falar tão fluentemente lhe recordasse as suas próprias raízes. Uma centelha de raiva ergueu-se no seu coração, mas manteve-a escondida nas sombras do seu capuz. Frei Otera escutou em silêncio enquanto o índio frenético explicava tudo sobre a explosão e o telefone por satélite danificado. Limitou-se a acenar a sua compreensão.
— Por isso, temos de nos apressar, Padre, antes que seja tarde demais.
Frei Otera lambeu os lábios. Então, só um dos americanos continuava à solta por entre as ruínas. Que sorte.
— Sim, temos de nos apressar — disse, concordando com o índio arquejante. — Fizeste bem em trazer-nos esta notícia, meu filho.
O índio baixou a cabeça, agradecido e aliviado.
Frei Otera passou pelo índio ajoelhado e aproximou-se do segundo.
— Também tu agiste bem, meu filho.
Aquele último índio permanecera em silêncio durante a troca de palavras e não se ajoelhara. Os seus olhos escuros tinham-se mantido desconfiados. Recuou um passo, sentindo o perigo, de algum modo, mas era demasiado tarde.
Frei Otera atacou com a lâmina comprida escondida no pulso, com um corte limpo. As mãos do homem ergueram-se velozes para a garganta cortada, tentando estancar o fluxo de sangue. Um jorro atingiu o hábito do frade, enquanto o índio caía de joelhos. Agora é demasiado tarde para rezares, ateu. Com um franzir de sobrolho, frei Otera usou as botas para fazer tombar para trás o homem gorgolejante.
Passando por cima do corpo, frei Otera prosseguiu o seu caminho pelo trilho. Não ouvira sequer um som quando os outros monges lidaram com o primeiro índio. Acenou com a cabeça, em sinal de satisfação.
A Igreja tinha-os treinado bem, sem dúvida.
Joan provou o vinho. Era um Merlot vintage decente, não demasiado seco, com um toque doce. Assentiu com a cabeça e o empregado encheu-lhe o resto do copo.
— Deve realçar muito bem o bife do lombo — comentou com um sorriso tímido.
Do outro lado da mesa iluminada por uma vela, Henry devolveu-lhe um sorriso.
— Patologista forense e, ainda para mais, conhecedora de vinhos. Tornaste-te uma mulher de muitas surpresas. Se bem me lembro, costumavas ser mais apreciadora de cerveja com tequila.
Ela refreou uma breve gargalhada.
— O tempo tem a capacidade para refinar os nossos gostos. Tal como um estômago que já não é capaz de tolerar tais excessos. — Joan fitou Henry. Este continuava a encher bem o fato escuro, um casaco cor de carvão com duas filas de botões sobre uma camisa branca e uma gravata de um rosa-pálido. As cores realçavam na perfeição os cabelos cinzentos que se intrometiam por entre o cabelo preto. De barba feita e impecavelmente vestido, era difícil acreditar que aquele homem estivera a palmilhar as florestas peruanas ainda na semana anterior. — E devo acrescentar que também tu és só surpresas, Henry. Os teus anos de trabalho no terreno não te fizeram mal.
Henry olhou de relance para o que restava da salada César, de garfo na mão. Tinha estampado no rosto um sorriso matreiro, uma expressão que levou Joan de volta aos seus anos de faculdade.
— Porquê, doutora Engel? — disse, em tom brincalhão. — Se não te conhecesse bem, diria que me estavas a tentar engatar.
Joan revirou os olhos.
— Era apenas um elogio, professor Conklin. Nada mais. Simples cortesia profissional. Digo o mesmo a todos os professores que nos visitam.
— Ah... então isso explica a tua atual popularidade. — Henry espetou o garfo num crouton, ao mesmo tempo que escondia um sorriso.
Joan fingiu-se insultada e bateu-lhe com o guardanapo na mão.
— Au! — Henry esfregou os nós dos dedos, como se estes lhe doessem. — Está bem, está bem... é melhor cingirmo-nos ao trabalho.
— Talvez seja melhor — disse ela com um sorriso cansado. Até ali, tinham passado a noite em atualizações mútuas sobre os respetivos passados. Joan anuiu com a cabeça, quando Henry lhe contou que a esposa morrera de cancro. Tomara conhecimento através de alguns amigos comuns. Fora mais ou menos na mesma altura em que o seu casamento chegara ao fim, num divórcio amargo. Depois, parecia que ambos se haviam entregado por completo às respetivas profissões, ganhando reputação nos seus campos. Durante aquele período, nenhum deles procurara qualquer relação íntima, ainda hesitantes devido aos corações feridos. Parecia que dor era dor, independentemente das circunstâncias.
— Conseguiste descobrir alguma coisa em relação ao ouro que se encontrava dentro do crânio da múmia? — perguntou Henry num tom mais sério.
Joan sentou-se mais direita, assumindo a sua postura mais profissional.
— Não muito. Apenas que não é, de todo, ouro. Trata-se de um líquido viscoso denso. À temperatura ambiente é moldável, como o barro quente. Desconfio que seja uma espécie de amálgama de metais pesados, talvez mercúrio misturado com algo mais. — Encolheu os ombros.
Henry franziu o sobrolho e abanou ao de leve a cabeça.
— Não faz sentido. As competências incas com o trabalho do metal não eram consideradas avançadas. Até a fundição do ferro estava para lá das suas capacidades. Acho estranho que fossem capazes de criar uma nova amálgama.
— Bem, devem ter aprendido alguma coisa. Encheram a cabeça da múmia com este metal estranho.
— Sim, suponho que sim...
— Mas porque achas que o fizeram? — perguntou ela. — Porquê encher este crânio?
— Não posso senão teorizar. Os incas reverenciavam a caixa craniana como fonte de poder. Transformavam, inclusivamente, os crânios dos inimigos mortos em canecas. Calculo que os incas temessem o deus cristão do frade e tenham realizado um ritual estranho para apaziguar a ira dessa divindade que lhes era estranha.
Joan torceu o nariz.
— E por isso abriram buracos no crânio daquele homem, retiraram o cérebro e encheram o espaço com a amálgama como oferta ao deus forasteiro?
Henry encolheu os ombros e assentiu com a cabeça.
— É uma teoria. Os incas parecem ter um fascínio com a trepanação. Ainda que contabilizasses os crânios com tais mutilações encontrados por todo o mundo, estes não igualariam, em número, os crânios incas. Por isso, aposto que o ato deverá ter um significado religioso. Mas até ver é apenas uma teoria.
— E não é má, suponho — disse ela com um sorriso. — Mas talvez amanhã tenha mais respostas para ti sobre a amálgama em si. Contactei o doutor Kirkpatrick da George Washington, um especialista em metalurgia. Ele deve-me um favor. Concordou em visitar-me amanhã e dar uma espreitadela à substância.
Henry animou-se perante tais palavras, os olhos cintilantes.
— Gostaria de estar presente quando ele examinar o material.
— Claro... — Joan sentiu-se momentaneamente atrapalhada. Tinha estado a pensar numa maneira de se encontrar com Henry outra vez antes da partida deste, e ali estava a oportunidade a cair-lhe no colo.
— Iss... isso seria maravilhoso... a tua companhia será bem-vinda em qualquer momento. — Joan deu uma palmada mental na testa. Porque estaria ela a agir com uma adolescente de língua presa? Tinha quarenta e oito anos, por amor de Deus. Quando é que aqueles jogos entre homens e mulheres se tornavam mais confortáveis?
Joan viu Henry a sorrir-lhe.
— Também gostaria de voltar a trabalhar ao teu lado.
Joan corou e limpou as mãos no guardanapo que tinha no colo. Foi poupada a ter de dizer mais alguma coisa pela chegada do empregado de mesa com dois pratos de bifes crepitantes. Os dois esperaram silenciosamente enquanto pratos e talhares eram trocados.
Depois de o empregado se ter afastado, Joan falou:
— Então, e pelo teu lado? Alguma novidade em relação a este frei de Almagro?
A voz de Henry tornou-se mais controlada.
— Não... ainda estou à espera de notícias dos homens do arcebispo.
Joan acenou com a cabeça.
— Quando estava a trabalhar no metal, pus-me a pensar se a cruz dominicana que encontraste será realmente de ouro, ou se não será de uma amálgama semelhante à que encontrámos no interior do crânio.
Henry ergueu rapidamente o olhar.
— Raios, nem tinha pensado nisso!
Ela apreciou a surpresa e a expressão de admiração nos olhos dele. Prosseguiu:
— Talvez não tenham sido os incas a criar o metal. Talvez tenham sido os conquistadores espanhóis.
Henry assentiu com a cabeça.
— Ora, aí está algo em que conseguia acreditar mais facilmente. Os conquistadores espanhóis! Talvez ao analisar o material, esse metalúrgico nos possa ajudar a desvendar, pelo menos, esse mistério.
Joan sorriu perante o entusiasmo de Henry. Não havia nada mais atraente do que um homem com o qual poderia partilhar a sua paixão pelos mistérios da ciência, em especial um tão belo quanto Henry.
— A primeira coisa que vou fazer ao regressar ao Sheraton — continuou Henry — é analisar a cruz com mais atenção.
Joan provou o bife. Estava perfeitamente malpassado. Ali, os chefs nunca dececionavam.
— Se o fizeres gostaria de saber o que te pareceu logo que possível.
— Nesse caso... se quiseres, já que me vais levar ao Sheraton, porque não sobes até ao meu quarto e vês por ti mesma. Depois de teres estado todo o dia a trabalhar com a amálgama serás uma avaliadora melhor do que eu.
Joan ergueu os olhos do bife para ver se havia mais algum convite por trás daquelas palavras. Não era de se deitar com todos os homens que despertassem o seu interesse, mesmo que se tratasse de um velho amigo... mas não se importaria de prolongar aquela noite.
Henry estava a cortar o seu próprio bife com uma concentração deliberada. Olhou de relance por cima dos óculos, os seus olhos avaliando a hesitação dela.
Joan tomou a sua decisão.
— Bem... sim, gostava de dar uma nova espreitadela à cruz.
Henry acenou com a cabeça, voltando a sua atenção de novo para o bife.
— Excelente.
Joan viu como o sorriso dele se abriu ainda mais. Sentiu que o seu próprio sorriso crescia também. Mais pareciam dois adolescentes num primeiro encontro.
Com a questão resolvida, ambos voltaram a atenção para a mesa e a qualidade do jantar. A restante conversa centrou-se nas simples jovialidades de dois comensais: uma análise da refeição, histórias partilhadas das respetivas profissões, até uma referência à tempestade que avançava em direção à costa, vinda da região dos Grandes Lagos. Quando serviram a sobremesa — um delicioso crème brûlée de baunilha com duas colheres — já ambos tinham ultrapassado o seu embaraço e abraçado um carinho confortável.
— O que nos aconteceu em Rice? — perguntou, por fim, Joan, sentindo-se confortável o suficiente para abordar o tópico desconfortável. — Porque não resultámos?
Henry deslizou os dedos pela caneca de café.
— Acho que ainda tínhamos muita vida pela frente. Tu querias ir para medicina. Eu queria fazer o meu mestrado na A&M do Texas. Acho que, na altura, não havia espaço para algo mais, muito menos para nos empenharmos numa relação.
— Os males de se procurar uma carreira — balbuciou Joan. Os seus pensamentos saltaram para o seu próprio marido. Esse fora o seu lamento mais comum em relação ao casamento. Ela nunca estava em casa, nunca estava presente para ele.
Henry bebeu um gole do seu café.
— Talvez. Suponho que sim. Mas depois conheci a Elizabeth e tu conheceste o Robert. — Henry encolheu os ombros.
— Hmm...
Henry suspirou e pousou o copo.
— Talvez devêssemos ir andando. Está a chegar a hora de contactar a minha equipa no Peru.
Joan olhou de relance para o relógio. Eram quase dez horas. Para onde correra o tempo?
— E eu tenho de começar o dia cedo, amanhã. Se ainda queremos dar uma olhadela à cruz esta noite, é melhor irmos indo.
Henry insistiu em pagar a conta depois de um leve protesto de Joan.
— É o mínimo que posso fazer depois de tudo o que tu fizeste — disse ele, agarrando na carteira. — Além disso, a conta será paga pela bolsa. — Dirigiu-lhe um sorriso enviesado.
Joan ergueu as palmas das mãos, abdicando de qualquer reivindicação sobre a conta.
— Se é o Estado a pagar, é toda tua.
Pouco depois, a seguir a uma curta viagem de carro, Joan deu por si a partilhar um elevador com o professor. Um certo nervosismo voltou a instalar-se à medida que o silêncio os envolvia. Henry remexeu nos botões do fato. As portas abriram com um tilintar no sétimo andar e os dois dirigiram-se ao quarto de hotel de Henry.
— Desculpa a confusão — disse enquanto usava a chave para abrir a porta. — Não estava à espera de companhia. — Henry segurou a porta aberta para que Joan pudesse passar.
Joan fitou as ruínas do quarto de hotel do professor. A cama tinha sido virada e o colchão esventrado, todas as gavetas tinham sido abertas e esvaziadas, até a televisão estava tombada de lado no tapete, com o painel traseiro desaparafusado.
— Meu Deus! — exclamou Henry, chocado.
— Disseste que estava uma confusão, mas não estava à espera disto — disse Joan numa tentativa débil de fazer uma piada.
Henry correu para o quarto, olhando para tudo o que o rodeava. Folheou alguns papéis, junto à secretária virada, e destapou o portátil. Pegou nele e testou-o. Um bipe, quando o ligou, revelou que não tinha sido danificado. Um suspiro de alívio escapou-lhe.
— Toda a minha investigação... graças a Deus.
Joan avançou cautelosamente para o interior da sala.
— Não devias mexer muito nisso. Vou chamar a segurança do hotel. Quem quer que tenha vandalizado o quarto pode ainda estar por perto.
Henry endireitou a secretária e pousou o computador.
— Porque não terão levado o meu portátil?
Joan respondeu, enquanto ligava para a receção.
— Desconfio que estavam atrás de caça mais grossa. Aposto que o artigo do Baltimore Herald desta manhã chamou a atenção de algum ladrãozeco.
Henry pareceu sobressaltado com aquelas palavras.
— A cruz! — Percorreu o quarto.
— Diz-me que a deixaste no cofre do hotel — disse Joan.
Henry abanou a cabeça e avançou para um dos esconsos na parede.
— Depois de ter viajado por tantos países estrangeiros, desenvolvi o meu próprio sistema de segurança.
Enquanto Joan relatava o assalto à receção, Henry usava um canivete suíço para desaparafusar um dos candeeiros da parede e alcançar a abertura atrás dele. Retirou dela uma pequena bolsa de veludo, pesada com o que quer que continha. Derramou para a palma da mão a grande cruz dominicana e o anel de prata.
Joan pousou o telefone.
— A segurança vem a caminho. Tiveste sorte, desta vez, Henry. Para a próxima, usa o cofre do hotel.
Henry olhou em redor do quarto.
— Acho que tens razão. Estes ladrões foram bastante minuciosos. — Joan manteve o silêncio, enquanto Henry examinava o quarto em desalinho. — Bem-vindo de volta à América — balbuciou amargamente.
Os olhos de Joan deslizaram para uma caixa de fato da Barney’s lançada para um canto. A fatura ainda estava presa à tampa. Fitou o elegante fato de Henry. Aparentemente, o professor tinha feito algumas compras de última hora para o «encontro» deles. Obrigou-se a refrear um pequeno sorriso e amaldiçoou silenciosamente os ladrões que tinham arruinado a sua noite.
Daí a nada, dois homens de grande estatura, vestidos com fatos azuis, surgiram junto à porta aberta. Mostraram-lhe a identificação e entraram.
— Já chamámos a polícia. Estarão aqui em breve para recolher o seu depoimento. Está a ser preparado um outro quarto para si.
Henry virou-se para Joan.
— Porque não voltas para casa? Posso tratar de tudo a partir daqui.
— Suponho que será melhor. Mas amanhã traz o crucifixo contigo para o laboratório. Vou pedir ao doutor Kirkpatrick que o veja. Ele há de saber, com maior certeza, se é ouro ou não.
Henry olhou em redor do quarto com uma expressão desamparada.
— Obrigado, assim farei.
Ela preparou-se para sair, mas ele impediu-a com um toque no braço. Joan virou-se e viu que ele lhe sorria.
— Por estranho que possa parecer tendo em conta o estado do meu quarto, passei uma noite agradável.
Joan apertou-lhe a mão e segurou-a durante uma fração de segundo mais do que seria profissionalmente necessário.
— Também eu. — Devolveu-lhe o sorriso, embora com um pouco mais de timidez. — Vemo-nos amanhã.
Joan não se virou, fingindo não o ter ouvido, quando na realidade temia que o rubor do seu rosto revelasse com demasiada clareza o que guardava no coração. Só quando se encontrava na segurança do elevador e as portas se fecharam é que pôde emitir um longo suspiro de alívio.
— Controla-te — disse ao elevador vazio, em tom de aviso. — Ele é um velho amigo. Nada mais.
Ainda assim, enquanto o elevador descia, um pequeno arrepio de prazer deslizou através dela. Mal podia esperar pelo dia seguinte.
Ao mesmo tempo que mais um desmoronamento de pedras ecoava vindo de cima, Sam olhou de relance para o teto a partir do ponto onde se encontrava ajoelhado. Os seus olhos saltaram para os outros, reunidos em torno das três barras de hematite. Norman fitava o teto com um pequeno mover de ombros. Ralph limitou-se a resmungar e a continuar a pincelar a tintura amarela na sua barra com um pequeno pincel. Denal estava sentado de um dos lados, deslizando as mãos lentamente pelo pé de cabra que mantinha no colo.
Apenas os olhos de Maggie se fixaram nos seus.
— O segundo piso já deve ter colapsado — sussurrou.
Sam assentiu com um suspiro profundo. Nenhum deles queria considerar o que isso significava. Olhou de relance para o relógio. Passava pouco das dez da noite. Àquela velocidade havia poucas hipóteses de que a pirâmide aguentasse intacta durante mais dois dias. Para se distrair em relação ao peso da rocha que, lentamente, se acumulava sobre eles, tentavam manter-se ocupados. A sugestão de Sam de que testassem as suas tinturas experimentais nas barras de hematite tinha sido aceite de má vontade.
— Então e agora? — perguntou Ralph. Espreguiçou-se para esticar as costas por ter estado tanto tempo curvado sobre a barra.
Sam aproximou-se um pouco mais.
— Em seguida precisas de limpar suavemente o excesso de tintura com a esponja embebida neste agente lipofílico. — Passou a Ralph a esponja seca e um frasco com uma solução límpida.
— Também estou pronta — disse Maggie e levou a mão à segunda esponja.
Com Sam a orientá-los, os outros dois estudantes em breve tinham preparado as suas barras para serem decifradas. Sam ergueu a lâmpada de Wood preta e acendeu-a.
— Muito bem, apaguem a lanterna.
Uma vez feito, a escuridão abateu-se subitamente sobre eles. Uma poça de luz arroxeada era tudo o que se erguia entre eles e a escuridão absoluta. Mergulhados no seu brilho, as duas barras brilhavam num verde suave e fluorescente. O grupo aproximou-se ainda mais.
— Espantoso — exclamou Maggie.
Sob a luz ultravioleta da lâmpada de Sam, os escritos antigos apresentavam uma clareza espantosa, as letras verdes brilhavam fortemente, tão nítidas quanto no dia em que tinham sido gravadas no metal.
— Fixe! — disse Ralph, dando uma palmadinha no ombro de Sam.
Refreando um grito de orgulho, Sam deslizou o dedo pelas letras, lendo cuidadosamente os escritos da primeira barra.
— Nos Christi defenete. Malum ne fugat. — Sam fez uma careta enquanto traduzia os gatafunhos em latim. — «Cristo protege-nos. Que o mal nunca escape.» — Um arrepio deslizou pelas costas de Sam.
— Não são propriamente as palavras que queres ouvir quando estás preso num túmulo a desabar — comentou Ralph.
— Em especial quando estás sentado mesmo ao lado da câmara assombrada — acrescentou Norman, fitando Sam. — O que disseste sobre o pictograma na câmara do lado? O portão para o Céu, o portão para o Inferno?
Sam acenou para afastar os receios do fotógrafo.
— Isso não passa de uma interpretação rudimentar a partir de um ponto de vista judaico-cristão. Os antigos habitantes do Peru não acreditavam num céu ou num inferno bíblicos, mas em três níveis de existência diferentes: janan pacha, o mundo superior; cay pacha, o nosso mundo; e uca pacha, o mundo inferior ou interior. Acreditavam que estes três mundos estão relacionados de perto e que certas áreas sagradas, chamadas pacariscas, eram os locais onde os três mundos se uniam. — Sam olhou por cima do ombro. — Tendo em conta os pictogramas da sala do lado, suponho que a câmara era reverenciada e protegida como um pacariscas.
Norman fitou a porta aberta para a câmara armadilhada.
— Um portão simultaneamente para os mundos superior e inferior.
— Exatamente.
Maggie deu uma cotovelada a Sam.
— Já chega! Passa mas é para a segunda barra.
Sam limpou a garganta e curvou-se sobre a hematite gravada, desta vez traduzindo enquanto deslizava um dedo pelas palavras em latim.
— «Senhor das alturas, mantém-nos em segurança. Nós te suplicamos. Entregamos este túmulo aos céus. Que nunca seja perturbado. Tende cuidado...» — Sam leu as duas últimas linhas e sentiu que a respiração se lhe prendia na garganta. Inclinou-se para longe da barra. — Oh, meu Deus!
Maggie inclinou-se ainda mais.
— O que foi?
Sam olhou de relance para os outros.
— «Para lá desta encontram-se as obras de Satanás, a vontade do Diabo. Selo esta passagem contra a Serpente do Éden, não vá a Humanidade ser para sempre condenada.»
Cinco pares de olhos viraram-se para a porta aberta.
— A Serpente do Éden? — perguntou Norman nervosamente.
Maggie explicou, a sua voz abafada.
— Génesis. A corruptora da Humanidade, a tentação do conhecimento proibido.
— Está assinado — disse Sam, devolvendo a atenção às barras de hematite. — Frei Francisco de Almagro, servo de nosso Senhor, 1535.
Ralph olhou de relance por cima do ombro de Sam.
— O teu tio não disse que achava que a múmia, provavelmente, era um frade dominicano?
Sam acenou com a cabeça.
— Sim, este pode muito bem ser o derradeiro testamento do tipo. Depois de ter selado o túmulo, deve ter sido morto por alguma razão. Mas porquê? — Sam voltou a apoiar-se sobre os calcanhares. — O que aconteceu aqui? O que haveria na sala do lado que tanto assustou este homem? Não podem ter sido apenas as armadilhas. Não com esta referência à Serpente do Éden.
Maggie apontou com a cabeça para a porta aberta.
— Qualquer que seja a resposta, está algures ali dentro, talvez tenha sido algo que os moches descobriram e que os incas conquistadores usurparam. Algo que pregou um susto dos diabos ao nosso frade morto.
— Quem me dera que o meu tio aqui estivesse — murmurou Sam. — Os conhecimentos dele davam-nos jeito.
Sobre as suas cabeças mais pedregulhos mudaram de posição, gemendo como ossos velhos.
— Não creio que o teu tio partilhasse desse desejo — disse Norman, fitando o teto.
Maggie levantou-se de súbito e foi buscar a lanterna.
— Quero voltar a olhar para aquela câmara.
Sam apercebeu-se como as pernas dela tremeram por um instante antes de ser capaz de dar mais um passo. Desconfiava que a curiosidade não era mais do que um desejo de se manter em movimento, de continuar atarefada e distraída. Levantou-se.
— Acompanho-te.
Ralph também se levantou.
— Eu e o Norman vamos verificar o piso imediatamente acima de nós.
Os olhos de Norman abriram-se.
— Vou?
Ralph lançou um olhar irado ao fotógrafo.
— Deixa de ser tão mariquinhas.
Norman franziu o sobrolho e pôs-se de pé.
— Oh, está bem. — Foi buscar a segunda lanterna. Denal encontrara uma lanterna extra no saco das ferramentas abandonado pelo bando de Gil.
— Sê rápido — avisou Sam. — Não é seguro aqui em cima e precisamos de conservar as baterias.
— Acredita em mim — disse Norman, com um revirar de olhos —, entre a companhia do Ralph e as lajes de granito a desmoronar, vou ser terrivelmente rápido.
Denal também se levantou. Posicionou-se ao lado de Sam e Maggie, tomando a sua própria decisão sobre o grupo a integrar.
Com um aceno, Norman e Ralph partiram.
— Vamos — disse Maggie atrás dele.
Sam e Denal seguiram-na, quando ela se agachou para atravessar a passagem. Sam apercebeu-se de que Denal tocara rapidamente na testa e fizera o sinal da cruz, com uma oração sussurrada nos lábios, antes de atravessar a passagem.
Em silêncio, o trio regressou à beira do piso de mosaicos. Ouro e prata refletiam fortemente a luz. O rei inca erguia-se tão luminoso quanto uma estrela amarela contra o granito preto trabalhado. O tiquetaque das máquinas ecoava ao ritmo abafado do bater do coração de Sam. Inclinando o seu chapéu Stetson, estudou o pictograma, deslizando o feixe da lanterna do retângulo dourado que representava o mundo físico cay pacha para o quadrado mais distante, que representava o mundo superior, janan pacha. Um ziguezague de mosaicos de ouro ligava as duas bases.
— Então? — perguntou ele. — E agora? — Sam mantinha a luz propositadamente afastada dos dois corpos no chão.
Como uma leoa enjaulada, Maggie andava para trás e para a frente, fitando o puzzle.
— Tem de haver uma forma de atravessar — murmurou. — Se o resolvermos, o mais certo é que o prémio que aqui se esconde seja revelado.
— A Serpente do Éden? — perguntou Sam.
Maggie virou-se para ele, os olhos brilhantes sob a luz refletida.
— Não queres saber a que se referiria ele?
— Sinceramente, neste momento preferia tirar daqui os nossos traseiros.
— Bem, até lá... — Maggie virou-se de novo para o pictograma de mosaicos. — Eu vou continuar a trabalhar. — Sem mais uma palavra, pisou uma das lajes douradas que compunham o retângulo de ouro naquela ponta.
— Não, menina Maggie! — gritou Denal.
Sam estendeu-lhe a mão, ao mesmo tempo, mas Maggie avançou para uma laje de ouro vizinha, fora do seu alcance.
— O que estás a fazer? — gritou.
Ela virou-se para trás: não para Sam, mas para o rapaz.
— Qual é o caminho mais seguro, Denal?
Sam olhou de relance para o lado. O jovem quéchua encontrava-se, trémulo, junto ao limite da zona de lajes, os olhos desvairados.
— Maggie, de que estás a falar? — perguntou Sam. — Ele não sabe.
— Sabe, sabe — frisou ela. — Quando aqui entrámos pela primeira vez, avisou-me para não pisar o chão. — Maggie fitou intensamente o rapaz. — Vi uma expressão de reconhecimento no teu rosto, Denal.
O rapaz recuou um passo.
Maggie prosseguiu.
— Já resolvi parte do dilema. Estou na secção do pictograma que representa o nosso mundo. — Apontou com a mão na direção do retângulo do lado oposto da sala. — E tenho de alcançar janan pacha, o mundo superior. Não é assim? Mas como é que me posso deslocar em segurança? O caminho dourado é demasiado óbvio.
Denal abanou a cabeça veementemente.
Sam baixou a lanterna.
— Maggie, o Denal não pode saber...
Maggie assumiu uma expressão mais dura e virou-se. Preparou-se para pisar uma das lajes de ouro que traçavam uma escada em direção ao retângulo distante.
— Não! — gritou Denal, de súbito. Com lágrimas nos olhos. — Eu dizer.
Em choque, Sam fitou o adolescente.
Ele pareceu ficar abatido sob o seu olhar.
— Os velhos amautas do meu povo contar histórias de lugares maus como este. Histórias muito antigas. Não ter a certeza absoluta. Mas dizer que a vida ser equilíbrio entre janan e cay. Que para andar entre eles, ser preciso equilibrar o Sol e a Lua.
— O Sol e a Lua? — repetiu Maggie. Olhou para o chão. — Ah, claro! Claro. — Maggie avançou para uma laje de prata vizinha.
— Maggie! Não!
Ela ignorou Sam e avançou para um quadrado de ouro.
— Para seguir a escadaria de ouro desenhada no pavimento, é necessário alternar cada passo com um de prata. Equilibrar a prata e o ouro, a Lua e o Sol.
Sam gritou.
— Não podes ter a certeza.
— Tenho a certeza. — Maggie continuou a atravessar a câmara, alternando entre a prata e o ouro e de novo a prata. Falava apressadamente, enquanto avançava pelo padrão. — Os incas achavam que o ouro era o suor do Sol, ao passo que a prata eram as lágrimas da Lua. O Sol e a Lua... o ouro e a prata...
Sam mantinha-se no limite da sala, incapaz de respirar.
Denal balbuciava na sua língua nativa, o medo óbvio na sua voz.
— Ela ir... mas não voltar.
Sam quase não o conseguia ouvir, tinha o coração preso na garganta.
Puxou pelo braço de Sam.
— A menina Maggie ter de parar — implorou. — Os amautas dizer que quem viajar para janan pacha jamais regressar. Ela ter de parar!
O aviso do rapaz alcançou, por fim, a consciência de Sam. Este saltou como se tivesse sido tocado pelas chamas.
— Maggie!
O pânico crescente na sua voz atraiu o olhar dela.
— O Denal diz que, se atravessares a sala, não poderás regressar!
Maggie olhou de relance para a parede mais distante, depois de novo para Sam. Permanecia na mesma laje, mas a sua voz tremia. — Iss... isso não faz sentido nenhum. Porque haveria a sala de ter apenas um sentido?
— Não sei. Mas esta não é a altura para o pôr à prova.
Maggie suspirou.
— Talvez tenhas razão... — Avançou para a laje de prata que acabara de deixar.
— Não! — gritou Denal.
O grito do rapaz salvou a vida de Maggie. Estremecendo, puxou a perna para trás no preciso momento em que a laje de prata se abria sob os seus pés.
— Cuidado! — gritou Sam. — Por cima de ti! — Tinha visto a laje de ouro correspondente no teto a abrir-se. Uma cerrada chuva de lanças jorrou, silvando e desaparecendo no poço que se abrira sob a laje de prata aberta.
Maggie recuou da cascata de lâminas, as pernas a estremecer ferozmente. Caiu de joelhos enquanto a laje de prata se voltava a fechar.
— Sam...?
Denal gesticulou loucamente e explicou:
— Ela não poder voltar. Se começar, a menina Maggie ter de acabar.
Os olhos dela estavam muito abertos de medo, enquanto fitava Sam a quase seis metros de distância. Conseguia ver o pânico a começar a instalar-se. O que haveria de fazer?
De súbito, toda a câmara foi violentamente sacudida. Um rugido trovejante acompanhou o movimento. Sam foi lançado ao chão. Maggie baixou-se, cobrindo a cabeça com os braços. Duas lajes de metal do teto deslocaram-se e caíram com um clangor sonoro.
Apenas Denal conseguiu manter o equilíbrio. O rapaz quéchua olhou de relance para a entrada da sala. O pó e as nuvens de sedimentos rolaram na direção deles.
— O templo! Está a desabar!
Sam voltou a levantar-se, ao mesmo tempo que o chão se aquietava.
— Oh, céus... O Norman e o Ralph...
Como se ouvissem o chamamento, as duas figuras irromperam de súbito através da nuvem de fuligem. A tossir, Ralph deslizou e parou ao lado de Sam. O grande homem de cor estava cinzento, da cabeça aos pés, devido ao pó de granito, tal como Norman atrás dele. O fotógrafo espirrou ruidosamente.
Ralph estava sem fôlego.
— Está tudo a desabar!
O gemido das pedras em deslocamento parecia chegar de todo o lado. O estrondo ocasional de quedas ainda irrompia regularmente, tão perto quanto a antecâmara anexa.
Norman limpou o nariz à manga.
— Já não há mais nada por cima de nós.
Ralph puxou Sam para a parede vizinha da curta passagem.
— Sente.
Sam pousou a mão na parede de pedras de granito empilhadas. Esta tremia por baixo da palma da sua mão, enquanto a pressão exercida pelas toneladas de blocos de granito e barro forçavam aqueles últimos pilares.
— Tudo o que vai mantendo este espaço em pé é a sorte — apercebeu-se Sam em voz alta.
Norman chamou-lhes repentinamente a atenção com um grito urgente. Apontou na direção do chão de lajes.
— A Maggie!
Sam virou-se. Várias lajes mais à frente, viu a estudante irlandesa caída de lado no mesmo mosaico de ouro. Os seus membros agitavam-se em espasmos. Estava a ter mais um ataque.
— O que raio está ela a fazer ali? — perguntou Ralph furiosamente.
— Não tenho tempo para explicar. — Sam soltou a espingarda e passou-a a Ralph. — Fica aqui! — acelerou para as lajes douradas.
Denal gritou um aviso, mas Sam ignorou o rapaz. Dançou entre a prata e o ouro ao mesmo tempo que avançava pelo padrão das escadas em direção a janan pacha. Ao alcançar o mosaico de Maggie, ajoelhou-se ao lado dela e segurou-lhe a cabeça no colo. O seu toque pareceu acalmá-la ligeiramente. Aproveitando a acalmia, acariciou-lhe o cabelo e chamou por ela baixinho. Os seus dedos trémulos aquietaram-se.
— Maggie... se me consegues ouvir, vem até mim. Segue a minha voz.
Um pequeno gemido escapou-lhe dos lábios.
— Vá lá, Maggie... precisamos de ti... não é hora de dormir a sesta.
As pálpebras agitaram-se, e depois ela fitou-o.
— Sam...?
Ele inclinou-se e abraçou-a com força. O cheiro do cabelo e do suor dela invadiu-lhe o nariz.
— Graças a Deus!
Maggie libertou-se do abraço dele e avaliou rapidamente o cenário.
— Não devias ter vindo até aqui — disse em tom de censura, mas não havia raiva na sua voz, apenas alívio. — O templo?
— Está a desmoronar-se à nossa volta. Este é o último nível intacto.
Maggie ergueu os olhos de relance para Sam, uma questão silenciosa nos olhos.
Sam respondeu:
— Uma hora, no máximo, calculo.
— O que havemos de fazer?
Ajudando-a a levantar-se, Sam pôs-se de pé. Maggie apoiava-se no braço dele em busca de apoio, as pernas ainda fracas. As palmas das mãos estavam quentes na sua pele exposta.
— Há pouco, deixaste-me a pensar. Por que razão teriam os moches ou os incas construído esta câmara só com um sentido?
Maggie abanou a cabeça.
Sam olhou de relance para a parede oposta.
— Não faz sentido... a não ser... a não ser que haja outra saída.
— Uma passagem secreta?
— Tem de haver mais do que esta câmara armadilhada. Para quê o aviso urgente do frade mumificado? Não há aqui nada. Tem de existir algo para lá desta câmara.
— Mas, se tens razão, onde fica a entrada?
Sam apontou para a grande estátua do rei inca. Esta parecia fitá-los, ouro a contrastar com o pano de fundo de granito.
— Se há quem possa saber, é ele. Deve haver uma pista no seu interior.
Sam fitou os olhos de Maggie.
— Então, vamos ter de atravessar até lá — disse ela engolindo em seco. Ofereceu a Sam um meio sorriso hesitante. — Um último puzzle.
O teto voltou a roncar ominosamente.
— Certo. Ou o resolvemos, ou podemos dizer adeus a este mundo.
Ralph gritou-lhes.
— O que estão vocês os dois a fazer? Estamos a ficar sem tempo!
Sam relatou rapidamente aquilo que planeavam fazer.
— Isso é de loucos! Estão a arriscar a vida com base numa pressuposição sem grandes provas!
Sam apontou na direção do teto.
— Eu prefiro arriscar a ficar simplesmente à espera de que o céu caia.
Ralph ficou sem resposta. Limitou-se a saltitar, nervosamente, de um pé para o outro.
— Muito bem, chefe, mas tem cuidado — disse, ao ceder.
Denal avançou para o chão de lajes, o rosto pálido.
— Eu ir convosco.
— Não! — gritaram Maggie e Sam em uníssono.
Denal continuou a avançar.
— Eu conhecer as histórias antigas. Eu ajudar. Eu não querer morrer sem dar luta. — Seguiu o mesmo caminho e juntou-se a eles. Ergueu os olhos para Sam. — Antes de morrer, a minha mamã ensinar-me a ser corajoso. Eu não envergonhar ela.
Sam fitou-o por um momento, depois deu uma palmada no ombro do rapaz.
— Obrigado, Denal.
O rapaz dirigiu-lhe um ténue sorriso, mas os seus olhos não paravam de saltar entre o rei inca e o padrão do chão. Com os dedos trémulos, foi buscar ao bolso um cigarro dobrado e deslizou-o por entre os lábios. Apercebeu-se de que Sam fitava o cigarro apagado e encarou-o com uma expressão desafiante.
— Vamos.
Sam virou-se para partir.
— Sabes que essas coisas vão prejudicar o teu crescimento.
— Não se eu não as acender — disse Denal, amargamente.
— Se encontrares uma saída — prosseguiu Sam —, podes fumar até os teus pulmões ficarem pretos.
Maggie seguia atrás deles.
— Não parem. O teto não vai aguentar para sempre.
Sam prosseguiu em silêncio. Cada passo sobre a laje seguinte era dado com uma crescente sensação de temor. Mas nada aconteceu. Entre Maggie e Denal, pareciam ter resolvido o enigma das lajes, mas e agora?
Sam chegou a meio da sala e parou.
Maggie chamou-o algumas filas mais atrás.
— Porque é que paraste?
Ele afastou-se para ela poder ver.
— Oh.
Sam teve um cuidado ainda maior ao avançar para a laje de ouro seguinte. O sangue tornava a superfície escorregadia. Teve o cuidado de não tocar no corpo dilacerado e nauseabundo de Juan que partilhava a mesma laje. Os olhos do morto pareciam segui-lo enquanto passava. Sam afastou o olhar, mas o cheiro era intenso no espaço fechado, e o cheiro metálico do sangue misturava-se com o odor térreo da putrefação. Avançou, suspirando sonoramente ao passar para o mosaico seguinte.
Ao longo de algumas filas, avançou mais depressa, feliz por escapar ao falecido. Nenhum dos outros dois falou enquanto o seguiam. Apenas o som das suas botas indicava que continuavam atrás dele. Mais ao fundo da sala, conseguia ouvir Ralph e Norman a balbuciar nervosamente, mas as palavras eram demasiado baixas para que as conseguisse compreender.
Por fim, Sam passou para as últimas quatro lajes de ouro que compunham o pictograma de janan pacha. Curvando-se aliviado, Sam apoiou as mãos nos joelhos. Fechou os olhos e agradeceu aos céus pela passagem segura.
Maggie e Denal juntaram-se a ele.
— Estão os dois bem? — perguntou Sam, endireitando-se.
Maggie não conseguia fazer mais do que acenar. O rosto brilhava com uma película de suor. O cigarro de Denal tremia-lhe entre os lábios, mas também acenou com a cabeça.
Sam olhou de relance para a parede. Estavam agora agrupados no canto superior esquerdo do pictograma. A última fila de lajes era de prata. Apenas a estátua em si, no meio da parede, se erguia sobre uma laje de ouro, entre uma pequena pilha de bugigangas de ouro e prata e ofertas.
— Então, e agora? Como é que alcançamos a estátua a partir daqui?
Maggie girou sobre si mesma, traçando um círculo lento.
— Escutem.
Sam franziu o sobrolho.
— O quê...? — Depois apercebeu-se daquilo a que se referia.
O mesmo aconteceu a Denal.
— Parou.
Sam inclinou a cabeça. Não havia rasto do tiquetaque da maquinaria que movia as armadilhas.
— Parou mal aqui chegámos — disse Maggie.
Sam anuiu com a cabeça.
— Ao seguirmos corretamente o caminho, deve ter sido desativada.
— Nesse caso, deve ser seguro seguir as lajes de prata até à estátua? — perguntou Maggie, olhando de relance para Denal.
O rapaz quéchua encolheu os ombros.
— Eu não saber.
Sam inspirou fundo para ganhar coragem e trocou as lajes de ouro pela fila de prata. Encolheu-se durante uns segundos, mas nada aconteceu. Olhou de relance para Maggie.
— As engrenagens continuam em silêncio — disse ela, fixando nele o olhar. — Não deve haver problema.
Sam avançou uma laje de cada vez até à estátua de ouro. Os outros seguiram-no. Não demoraram a ficar diante do guerreiro inca. Este parecia fitá-los por baixo do toucado. Os três observaram o seu adversário.
A estátua erguia-se com cerca de um metro e oitenta, mais alta do que a maioria dos homens, as costas encostadas a uma pequena arcada de prata na parede de granito. Numa mão segurava o bordão e na outra uma típica boleadeira inca, três pedras presas a um tendão llama.
— Vejam a coroa llautu — disse Sam, que apontava para o toucado entrançado da figura, encimado por três penas de papagaio e uma franja de borlas. — Isto faz dele, sem dúvida, um Sapa Inca. Um dos seus reis.
— Sim, mas o pormenor facial e o traçado realista da musculatura é diferente da habitual estilização inca — sussurrou Maggie. — É um trabalho tão perfeito quanto o David de Michelangelo.
Sam inclinou-se um pouco mais para estudar o rosto do rei antigo.
— Estranho. Claramente, o Sapa Inca aqui representado, seja ele quem for, era reverenciado como nenhum outro.
A um passo de distância, Denal tossiu, para clarear a garganta.
— A parede... não ser de pedra.
Sam virou as costas à estátua. O olhar do rapaz estava fixo não no ídolo de ouro, mas na parede negra atrás dele. O granito puro estendia-se a toda a volta.
— Como assim?
Maggie ficou de boca aberta.
— O que Denal está a dizer é que não é cantaria. Repara, não há linhas de junção ou encaixes. Não são blocos de pedra empilhados, como no templo.
Sam avançou para a pedra e deslizou sobre ela a mão.
— É uma parede de granito sólido.
Uma voz gritou do outro lado da sala.
— Encontraram alguma coisa? — Era Norman.
Sam virou a cabeça e berrou:
— Encontrámos a montanha! — Sam arqueou o pescoço e examinou a parede. — A pirâmide deve ter sido construída na base deste penhasco.
— Mas porquê? — perguntou Maggie.
Sam pensou em voz alta.
— Os incas reverenciavam as montanhas. Mas porquê construir um huaca, um lugar sagrado, aqui? O que teria este penhasco de tão especial?
Maggie respondeu ao fim de um momento:
— E... e se houvesse uma gruta?
Sam bateu com a mão contra a parede de granito.
— Claro. As grutas eram consideradas pacariscas, lugares místicos onde os três mundos das suas religiões se uniam. Eram frequentemente utilizadas como um local de ritual. Faz sentido!
— Mas onde fica a entrada? — perguntou Maggie.
— Não sei, mas a estátua deve ser uma chave. Reparaste no arco de prata atrás da estátua? É suficientemente grande para esconder uma abertura estreita.
Maggie e Sam regressaram para junto da estátua. Sam encostou-lhe um ombro e tentou empurrar o ídolo para o lado.
— Tem cuidado — avisou Maggie.
Denal mantinha-se por perto com um punho a cingir a garganta.
Mas não aconteceu nada. A estátua era inamovível.
— Maldição — praguejou Sam, tirando o chapéu de cowboy Stetson e penteando o cabelo húmido para trás com os dedos. — Esta coisa deve pesar quase uma tonelada.
Maggie franziu o sobrolho.
— A força bruta não é a resposta. Com a complexidade aqui apresentada, tem de existir um mecanismo que desbloqueie o caminho. — Afastou Sam com uma cotovelada e aproximou-se da estátua. Esticando-se em bicos dos pés, examinou-a mais de perto, o nariz a meros centímetros da superfície dourada. Lentamente, foi descendo pelo corpo da estátua.
Sam ia ficando cada vez mais impaciente, em especial quando o chão voltou a tremer.
— Este sítio não vai aguentar muito mais tempo — balbuciou.
— Aha! — exclamou Maggie. Virou-se para Sam, o rosto junto da cinta do rei inca. — Aqui está a resposta. — Apontou para o umbigo da estátua.
— De que estás tu a falar?
Maggie estendeu o braço e enfiou o dedo através do buraco. Todo o seu dedo foi engolido.
— Os incas consideravam o umbigo um local de poder. Acreditavam que a certa altura o umbigo uniu o mundo físico do homem aos deuses da criação.
Sam agachou-se com Denal.
— Mais uma fusão de mundos.
Maggie retirou o dedo do umbigo da estátua.
— É o buraco de uma fechadura. Agora só temos de encontrar a chave.
Sam endireitou-se, pensando em voz alta.
— O umbigo une os deuses de janan pacha à humanidade no mundo físico... ao cay pacha. Se esta câmara é um ponto onde os três mundos se unem... então a chave tem de ser algo do mundo inferior, de uca pacha.
Maggie agarrou-lhe o ombro, mostrando que compreendia.
— Ao inserir a chave na fechadura no umbigo, os três mundos voltam a unir-se.
— Sim, mas onde encontrar essa chave?
Denal tocou em Sam. Apontou para os pés da estátua, onde se encontrava uma pequena pilha de ouro e prata.
— Uca pacha está debaixo dos pés.
— Ui! Que idiotas que fomos, sem dúvida. — Maggie ajoelhou-se e começou a vasculhar por entre os objetos. — O mundo inferior! Por vezes, o melhor é esconder as coisas à vista de todos.
Sam juntou-se a ela. Enquanto percorria os objetos da pilha, ergueu uma figura de ouro de uma pantera com olhos de rubi, depois pô-la de parte.
— Há aqui riqueza suficiente para financiar uma pequena nação.
— E de nada nos servirá, se não sobrevivermos.
Como que para os recordar, o templo roncou e estremeceu, ao mesmo tempo que mais uma secção cedia. As lajes no alto tremeram e ressoaram. Uma das armadilhas ativou-se sozinha, espoletada pelo tremer do teto: um enorme bloco de granito gravado com o rosto de um demónio caiu e ficou embutido na laje de prata por baixo.
Maggie e Sam fitaram-se, amargamente.
Ralph gritou atrás deles, tossindo ao de leve.
— Acabou! Estamos encurralados, malta! Se houver outra saída, sugiro que a encontrem bem depressa!
Maggie sussurrou.
— A estrutura do chão e das armadilhas está a desmoronar-se. Se o Norman e o Ralph não se juntarem a nós...
— Tens razão. Continua à procura. — Sam levantou-se. — Ralph! Norman! Venham para cá! Já! — Os outros dois estudantes estavam encobertos por uma nuvem de pó de granito. Mas Ralph acenou com a lanterna, para lhes mostrar que tinham ouvido, e começou a avançar na direção deles.
Sam devolveu a atenção a Maggie.
— Já vêm a caminho. Alguma sorte?
Ela abanou a cabeça; a mão estremeceu enquanto ela percorria as peças.
— Não consigo pensar com clareza. E se deixar escapar alguma pista? Não vamos ter uma segunda oportunidade. — Um pequeno soluço escapou-lhe da garganta.
Sam ajoelhou-se ao lado dela.
— Havemos de sair daqui. — Envolveu-lhe os ombros com um braço e apertou-a com força.
Ela inclinou-se para o abraço dele, mantendo o silêncio durante vários segundos. Depois foi agitada por um último arrepio e pareceu voltar a relaxar. Deslizando de debaixo do braço dele, virou-se para Sam, o rosto poeirento marcado pelos trilhos traçados pelas lágrimas. Limpou o rosto e balbuciou:
— Obrigada, Sam.
Não eram precisas palavras. Ele acenou com a cabeça e regressou à sua própria busca ao lado dela. Trabalharam em equipa, vasculhando a pilha de objetos. Sam quase lançava para o lado o objeto que os salvaria, mas Maggie impediu-o, agarrando-lhe o pulso. Sam segurava um punhal de ouro, com trinta centímetros e um cabo de prata.
— O que foi?
— Olha para a gravação no punho.
Sam ergueu-o no feixe de luz da lanterna que Denal segurava. Exibia a figura de um homem de presas proeminentes. Sam reconheceu a figura das obras de olaria antigas.
— É o deus com presas Aiapaec.
Maggie acenou com a cabeça.
— Um deus das tribos moches!
Sam recordou a avaliação que o tio fizera da pirâmide enterrada. Esta era claramente moche. Ali estava mais uma prova para o tio.
— Isto vai deixar o tio Hank muito feliz... Isto, se conseguirmos sair daqui para lho mostrar. — Começou a pousar o punhal.
Maggie impediu-o de novo.
— Espera, Sam. Alguns eruditos dizem que é possível que os incas tenham incorporado o deus moche, Aiapaec, no seu próprio panteão de deuses. Mas os incas rebatizaram-no: Huamancantac!
— O deus do guano... das fezes de morcego? — Sam fitou-a como se ela estivesse louca. Onde quereria ela chegar? Depois compreendeu. — O deus dos morcegos... e das cavernas! Um espírito do mundo inferior, uca pacha!
Sam levantou-se de um salto, com o punhal na mão.
— Deve ser a chave! — exclamou Maggie.
Nesse momento, Ralph e Norman juntaram-se ao trio junto da estátua.
— Não sei o que vos deixou tão entusiasmados, mas sugiro que saiamos daqui. — Apontou na direção das traseiras da câmara.
Sam virou-se. Não havia traseiras da câmara. Com o pó a assentar depois das últimas grandes derrocadas, o lado oposto da divisão era um monte de blocos caídos.
— Credo! — Por cima da cabeça dele, um quarto dos pesados mosaicos do teto pendiam enviesados ou inclinados. E, em pano de fundo, o gemido contínuo de toneladas de granito fazia-se ouvir sobre as suas cabeças.
A voz de Norman era um guincho.
— Não temos para onde fugir.
— Talvez tenhamos — disse Sam. Virou-se e enfiou o punhal na barriga da estátua. Este afundou-se até ao nível do punho.
Nada aconteceu.
Norman levantou-se, fitando a faca empalada.
— Muito bem, Bruto, apunhalaste César. E agora?
Sam tentou girar a faca como uma chave, mas esta recusou mover-se. Tirou o punhal, os olhos fixos em Maggie.
— Estava convencida de que tinhas acertado. — Segurava o punhal de ouro entre ambos, apertando-o com força. — I... isto tem de ser a chave! — disse por entre dentes cerrados, a frustração fazendo-lhe tremer a voz. — Tem de ser!
Ao proferir a última palavra, o punhal mudou de forma nas suas mãos. A lâmina dourada moldou-se na forma de um relâmpago dentado. Brilhou fortemente sob o feixe de luz das lanternas. Sam quase deixou cair a faca, mas a mão esquerda aquietou a direita, segurando o punho com as duas mãos. — Mais alguém viu isto? Ou será que acabei de perder o juízo? — Sam deslizou os dedos pela faca, em busca do mecanismo que desencadeara a transformação. Não encontrou nada.
Uma nova cascata de pedra caiu atrás deles. Era o teto da câmara a colapsar, levando consigo metade das lajes superiores. O ressoar da pedra e do metal ecoaram fortemente. A morte avançava para eles num ranger de pedras, mas ninguém se mexeu.
Em vez disso, Maggie ergueu as mãos na direção do punhal, depois baixou-as de novo, claramente com receio de perturbar o milagre.
— É agora o símbolo de Pachacamac. O deus inca da criação. — Os seus olhos fixaram-se nos olhos esbugalhados de Sam. — Usa-o!
Sam anuiu com a cabeça e virou-se de novo para a estátua. A ponta do punhal tremia, mas Sam ergueu a faca até à barriga do rei inca. Precisou de mover um pouco o punhal para trás e para a frente até conseguir introduzir a lâmina por completo, mas com um último empurrão a faca deslizou até ao fundo.
O som tonitruante das engrenagens explodiu, suficientemente sonoro para abafar o cair dos pedregulhos atrás deles.
Enquanto Sam segurava com força o cabo do punhal, a estátua inca partiu-se a meio, da cabeça aos pés, a divisão surgindo do nada. As duas metades afastaram-se do cabo do punhal, bem como a arcada de prata atrás dela. Para lá da estátua, era revelada uma fissura natural na rocha.
Sam permanecia petrificado perante a estátua dividida ao meio, o punhal ainda na mão, a lâmina a apontar na direção da entrada da gruta.
— Deus do céu!
Em choque, Sam ergueu o punhal. Era uma vez mais a lâmina direita que tinham encontrado. Baixou o braço ao longo do corpo e virou-se para os outros. Um flash ofuscante da câmara de Norman apanhou-o desprevenido. Sam esfregou os olhos com a palma da mão.
— Para a próxima, podias avisar — resmungou.
— E arruinar essa tua expressão natural de espanto — respondeu Norman. — Nem penses.
Os outros desataram todos a falar ao mesmo tempo: espanto, maravilhamento e alívio ressoavam luminosos. Ralph apontou a lanterna na direção da garganta da fissura. Mergulhava profundamente no penhasco, para lá do alcance da luz de Ralph.
— Ouço algo que parece um curso de água — disse. — A gruta deve ser bastante funda.
— Ainda bem — disse Sam. Ergueu por fim o punhal, chamando a atenção dos outros. — Não faço ideia do que aconteceu aqui, mas é melhor pormo-nos a andar do templo, antes que este nos transforme em panquecas.
Dado que o teto continuava a cair atrás deles, ninguém se opôs. Passaram rapidamente por Sam em fila e mergulharam na frescura da gruta natural.
Ao passar por Sam, Ralph devolveu-lhe a espingarda Winchester.
— Agora tenho uma para mim — disse o homem encorpado, erguendo uma espingarda de alavanca de cano curto.
Sam reconheceu-a como a arma de Gil.
— Onde?
Ralph apontou com o polegar na direção do chão de mosaicos.
— Apanhei-a quando eu e o Norm atravessámos. O Gil deve ter fugido com demasiada pressa e abandonou-a. — Ralph sopesou o cinto de munições que levava ao ombro. — A desgraça de uns... é a sorte de outros.
— Com alguma sorte, também não precisaremos dela — disse Sam.
Ralph encolheu os ombros e prosseguiu para o túnel.
— Talvez seja melhor tentares contactar o Philip uma última vez — disse Maggie olhando de relance para a sala que se desmoronava. — Dizer-lhe que estamos em segurança e que não desista de nós. Com água e um abrigo, devemos ser capazes de sobreviver até que chegue ajuda.
— Tens razão. Na gruta, posso não conseguir falar com ele. — Sam esquecera-se completamente de Philip Sykes. Soltou o walkie-talkie da cintura, afastou-se do rebordo e ligou-o. A estática guinchou de imediato, quando Sam carregou no transmissor. — Sykes, consegues ouvir-nos? Câmbio?
A resposta foi imediata e entrecortada.
— ... vivos? Graças a Deus... o monte desapareceu todo... Estamos... tão depressa quanto possível? Câmbio.
Sam sorriu. Resumiu rapidamente a sua descoberta e o milagre do punhal.
— Por isso, vamos abrigar-nos na gruta até nos conseguires libertar. Apanhaste tudo? Câmbio.
A resposta foi ainda mais arranhada, à medida que a bateria do rádio ia enfraquecendo.
— ... gruta? Não se afastem demasiado. Vou tentar... — A estática abafou o resto.
Sam virou-se para olhar para os rostos pálidos dos amigos.
— Mexe-me esse traseiro, Philip! — gritou para o rádio. — E dá notícias ao tio Hank assim que possível!
A estática foi a sua única resposta. A bateria estava agora demasiado fraca para enviar um sinal através de todo aquele caos de pedra e barro sobre as suas cabeças. Sam praguejou num sussurro e desligou o rádio, para conservar a pouca energia que lhe restava. Rezou para que Philip tivesse percebido tudo.
Mordendo o lábio inferior, juntou-se aos outros. Para lá deles encontrava-se um poço de escuridão. Embora Sam se sentisse aliviado por escapar à pirâmide em desmoronamento, o aviso de frei de Almagro ainda lhe ecoava na mente: A Serpente do Éden... Que nunca seja perturbado.
Sam apontou para a gruta negra.
— Vamos.
O caminho através da pedra era estreito, pelo que avançaram em fila indiana. Ralph assumiu a liderança e Sam fechava atrás. No espaço apertado, Sam sentia-se como se a pedra o estivesse a esmagar. A certa altura tiveram de deslizar de lado, apertados entre duas paredes de granito. Uma vez ultrapassado o estreitamento, o som ecoante de um curso de água tornou-se mais sonoro. O som intensificou a sede de Sam. A língua parecia um pedaço de serapilheira na boca dele.
Ralph gritou da frente.
— Acho que se abre já aqui à frente. Venham.
Sam apressou-se a avançar, quase pisando os calcanhares de Maggie. Já estavam a trepar e a lutar para avançar através da passagem há perto de uma hora. Por fim, Sam sentiu uma brisa no ar. Pressentiu um espaço amplo à sua frente, uma sensação que os levou a todos a acelerar.
A passagem alargou por fim. A equipa podia agora avançar em grupo. Ralph, um passo à frente dos restantes, continuava a segurar a única lanterna.
— Há algo mais à frente — balbuciou.
O seu ritmo abrandou quando a passagem chegou ao fim. Ralph ergueu a lanterna.
— Não acredito! — arquejou
Sam concordou. Os outros ergueram-se em silêncio ao lado da única fonte de luz. Mais à frente erguia-se a câmara aberta, uma gruta com um canal mesmo no centro, por onde corria um rio. Mas não fora isso a despertar as reações de espanto. Pilares uniam o teto ao chão, gravados com figuras intrincadas e criaturas fantásticas a todo a extensão. Na pedra, prata embutida refletia as luzes da lanterna, olhos de milhares de figuras esculpidas, sentinelas de um mundo antigo.
Ralph baixou a luz.
— Vejam! — Mais à frente, na gruta escura, um caminho de ouro martelado serpenteava desde a passagem aberta até ao rio rumorejante, e seguia o seu curso para as profundezas do sistema de grutas. O caminho luminoso desaparecia numa curva na parede da gruta.
— Espantoso — disse Sam.
Ralph falava junto ao seu ombro.
— A outra câmara devia ser um engodo, uma armadilha que protegia o que se encontra mais à frente.
Sam avançou pousando, hesitante, uma bota no caminho de ouro.
— Mas, o que teremos nós descoberto?
Maggie afastou-se enquanto Norman tirava algumas fotografias.
— Descobrimos um lugar para descansar. E por agora isso basta.
Os restantes balbuciaram a sua concordância, a sede e a exaustão suplantando o maravilhamento e o mistério.
Até Sam concordou. Os mistérios podiam esperar pela manhã. Ainda assim, enquanto os outros avançavam ao longo do caminho de ouro que curvava em direção ao rio, Sam não pôde deixar de reparar que o trilho brilhante tinha uma clara semelhança com uma serpente ziguezagueante.
Uma serpente de ouro.
Henry sentou-se ao seu computador e observou o telefone no ecrã a estabelecer as ligações através dos nós da Internet, o zumbido do modem e o toque sincronizados.
— Vá lá, Sam, atende o raio do telefone — murmurou para si mesmo. Era pelo menos a décima vez que tentava contactar o acampamento no Peru.
Vários cenários desenrolavam-se na sua mente, do mundano, como uma falha no feed do satélite no local, a cenários mais assustadores nos quais o acampamento era atacado por saqueadores armados.
— Nunca devia ter saído de lá.
Henry olhou de relance para o relógio no canto superior direito do ecrã do seu portátil. Já passava das onze. Inspirou fundo, acalmando os seus nervos em franja. Podia haver uma razão mais simples para a falta de resposta. Devido ao assalto e à papelada que, em seguida, tivera de preencher junto da segurança do hotel, Henry falhara a chamada por vinte minutos. Os seus alunos, provavelmente, tinham desistido e já estariam a dormir profundamente nas suas tarimbas.
Ainda assim, Henry esperou mais uma vez que a linha estabelecesse o contacto até ao Peru. Observou o ícone surgir no ecrã, indicando que o satélite tinha sido contactado. O sinal saltou para a antena de transmissão metálica nos Andes. Henry susteve a respiração. Mas, uma vez mais, o sinal terminou, sem ligação.
— Raios! — Henry bateu com o punho na secretária enquanto o modem se desligava. Embora existisse um milhar de outras justificações para a falta de ligação, Henry sabia, no seu coração, que se passava algo de errado. Era um temor que o invadia. Já passara por um receio semelhante no passado, no dia em que o irmão Frank, o pai de Sam, faleceu num acidente de viação. Recordou aquela chamada às quatro da manhã, a sensação de terror gelado enquanto levava a mão ao auscultador. Sentia, agora, um temor semelhante.
Acontecera algo no Peru. Sabia-o.
Henry levou a mão uma vez mais ao computador, mas antes que esta tocasse nas teclas o telefone ao lado do portátil tocou ruidosamente, sobressaltando-o. Com o coração na garganta, fitou o auscultador, saltando de novo para aquela terrível manhã há tantos anos. Cerrou os punhos.
— Controla-te, Henry — disse para si mesmo, obrigando os dedos a relaxar. Fechando os olhos e controlando-se, agarrou no auscultador e levou-o ao ouvido. — Estou sim?
Respondeu-lhe uma voz de mulher.
— Henry? É a Joan.
Embora aliviado por ser apenas a sua colega, Henry reconheceu o stresse na voz dela. Não se tratava de uma chamada comum.
— Joan, o que se passa?
A sua preocupação súbita apanhou-a desprevenida. Ela balbuciou por um instante, depois falou:
— Eu... eu achei que devias saber. Passei pelo meu gabinete depois do nosso encontro... hum, do nosso jantar... e descobri que alguém tentou entrar na morgue onde estão armazenados os restos mortais da múmia. O segurança afugentou-os, mas não conseguiu apanhá-los.
— A múmia?
— Está bem. Os ladrões não chegaram sequer a passar a porta.
— Parece que a história daquela repórter do Herald atraiu mais moscas do que tínhamos desconfiado.
— Ou talvez as mesmas — acrescentou Joan. — Não tendo sido capazes de encontrar nada no teu quarto do hotel, vieram em seguida aqui. O que disse a polícia?
— Pouca coisa. Não pareciam particularmente interessados dado que nada fora roubado.
— Não procuraram impressões digitais nem nada?
Henry soltou uma gargalhada.
— Tens andado a ver demasiadas séries policiais. A única coisa que fizeram foi verificar as gravações nas câmaras de segurança do corredor.
— E?
— De nada serviu. As lentes da câmara tinham sido enegrecidas com tinta em spray.
Joan ficou em silêncio durante largos instantes.
— Joan?
— Fizeram o mesmo aqui. Foi assim que o guarda foi alertado. Apercebeu-se dos monitores enegrecidos.
— Então, achas que foi a mesma equipa de ladrões?
— Não sei.
— Bem, esperemos que o facto de terem escapado por um triz à segurança os impeça de tentarem de novo. — Mas Henry estava pouco convencido.
Joan suspirou sonoramente.
— Espero que tenhas razão. Desculpa ter-te incomodado.
— Não incomodaste. Eu estava a pé. — Henry evitou falar-se sobre a sua incapacidade em contactar Sam. Embora não fizesse qualquer sentido, Henry tinha a sensação de que os eventos daquela noite estavam de alguma forma interligados: o assalto ao hotel, a tentativa de entrada na morgue, a sua dificuldade em contactar Sam. Era um disparate, claro, mas os pelos na parte de trás do pescoço de Henry não se aquietavam.
— Devia deixar-te ir — disse Joan. — Vemo-nos de manhã.
Henry franziu o sobrolho numa expressão confusa, depois lembrou-se de que tinha combinado encontrar-se com Joan no laboratório. Depois da confusão daquela noite e da preocupação com o seu sobrinho, Henry esquecera por momentos o encontro que planeara com Joan.
— Sim, claro, vemo-nos então. Boa noite. — Imediatamente antes de desligar o telefone, acrescentou rapidamente: — Obrigado por teres ligado. — Mas ela já não estava em linha.
Henry desligou lentamente o telefone.
Fitou o ecrã do computador, depois desligou-o. Não havia razão para continuar a tentar contactar o acampamento. Sabia que não seria capaz. Fechando o portátil, sussurrou uma promessa a si mesmo.
— Se não conseguir contactar o acampamento até amanhã à noite, partirei no primeiro voo noturno. — Mas nem mesmo aquela decisão lhe acalmou os nervos tensos.
DIA TRÊS – Substância Z
Substância Z
Quarta-feira, 22 de agosto, 6h03
Quarta-feira, 22 de agosto, 6h03
Gruta
Cordilheira dos Andes, Peru
Sam estudou a lâmina de ouro do punhal sob a luz fraca projetada pela sua única lanterna. Tinha o último turno de guarda naquela noite. Os restantes estavam deitados atrás dele, enroscados na rocha plana do chão da gruta, as almofadas improvisadas com as t-shirts amarrotadas e as mochilas. Ralph ressonava suavemente, mas pelo menos dormia. Mais cedo, Sam fora incapaz de adormecer, com exceção de uma brevíssima sesta carregada de imagens pavorosas de pedras em queda e monstros invisíveis. Sentira-se aliviado quando Norman o chamara para que cumprisse o seu turno.
Sam afastou os olhos do punhal e ergueu-os para a gruta. À sua volta, olhos de prata estudavam-no a partir de dezenas de pilares entalhados, criaturas que eram meio humanas, meio animais. Deuses e espíritos incas. Não muito longe, o caminho de ouro refletia a luz fraca, uma veia brilhante na rocha escura. Sam imaginou as gerações de índios incas que devem ter percorrido aquele trilho. O caminho prosseguia ao longo da margem do rio mergulhando ainda mais naquele conjunto de grutas, e Sam ansiava por segui-lo. Mas o consenso do grupo era que deviam acampar ali, perto de uma fonte de água e da abertura da fissura, onde aguardariam pelo resgate. A exploração poderia vir mais tarde.
Olhando de relance para o relógio, Sam desconfiou que o Sol começava a erguer-se sobre as montanhas dos Andes. Ali em baixo, contudo, a escuridão parecia tornar-se cada vez mais profunda e infindável. O tempo perdia todo o significado; estendia-se em direção à eternidade.
Embora Sam tentasse ignorar a fome, o estômago roncava sonoramente. Há quanto tempo é que nenhum deles comia o que quer que fosse? Ainda assim, não se podia queixar. Pelo menos, com o rio, agora tinham água.
Precisava apenas de continuar a distrair-se em relação ao estômago.
Sam tocou com o dedo na lâmina do seu punhal de ouro, perguntando-se qual o mistério do seu mecanismo. Como ocorrera a transformação no dia anterior? Não conseguia sequer imaginar o que teria aberto o punhal transformando-o num raio dentado. Fizera-o com tal delicadeza e falta de fricção mecânica, que parecia ter-se derretido e assumido uma nova forma. O truque era demasiado convincente. O quão intrincada seria a tecnologia ali desenvolvida? O aviso de frei de Almagro quanto à Serpente do Éden sugeria uma fonte de conhecimento proibida, uma fonte de sabedoria que poderia corromper a Humanidade. Seria aquilo um exemplo?
A tosse de alguém chamou-lhe a atenção. Descalça, Maggie deslizava na direção dele. Mesmo despenteada era espantosa. Envergava apenas uma blusa fina, abotoada até ao peito, e os seios moviam-se sob o tecido. Sam sentiu a boca a secar. Baixou o olhar antes que se envergonhasse, mas o seu olhar descobriu apenas as suaves curvas da cinta e das pernas dela.
— Tens de parar de acariciar essa coisa, Sam — disse ela baixinho. — Não tarda as pessoas vão começar a falar.
— O quê? — disse Sam, engasgando-se, erguendo para ela os olhos de relance.
Maggie ofereceu-lhe um sorriso cansado e apontou com a cabeça na direção do punhal de ouro.
— Oh... — Sam guardou-o. — Então... não consegues dormir?
Ela encolheu os ombros, sentando-se ao seu lado.
— A rocha não faz um colchão lá muito simpático.
Sam acenou com a cabeça, permitindo-lhe aquela pequena inverdade. Desconfiava que a sua inquietude tinha a mesma origem da dele: uma preocupação que se afundara até aos ossos e a pressão omnipresente da escuridão à sua volta.
— Vamos conseguir sair daqui — disse ele num tom assertivo.
— Confiando no bom e velho Philip Sykes? — disse ela, revirando os olhos.
— Ele é um idiota, mas vai conseguir tirar-nos daqui.
Ela fitou um pilar vizinho e permaneceu em silêncio. Passado algum tempo, voltou a falar:
— Sam, queria agradecer-te novamente por teres ido ter comigo às lajes quando eu tive o último... aquele último ataque.
Ele começou a protestar que não era preciso agradecer-lhe.
Ela fê-lo parar tocando-lhe na mão.
— Mas preciso que saibas uma coisa... acho que te devo isso.
Sam virou-se para a encarar mais de frente.
— O quê?
— Não sou verdadeiramente epilética — disse ela baixinho.
Sam fez uma careta.
— Como assim?
— Os psicólogos diagnosticaram-me uma síndrome de stresse pós-traumático, uma forma extrema de ataque de pânico. Quando a tensão alcança um determinado nível — Maggie acenou com a mão no ar —, o meu corpo rebela-se. Manda a minha mente dar uma curva.
— Não compreendo. Isso não é um trauma de guerra?
— Nem sempre... Além disso há muitas formas de guerra.
Sam não queria insistir demasiado, mas o coração não lhe permitiu manter o silêncio.
— O que aconteceu?
Maggie observou Sam durante um longo momento, os seus olhos avaliando-o, pesando a sua sinceridade. Por fim, desviando o olhar, a sua voz tornou-se embargada.
— Quando eu tinha doze anos, vi um amigo de escola, Patrick Dugan, morrer vítima de uma bala perdida disparada por um sniper do IRA. Ele caiu nos meus braços enquanto eu me escondia numa vala na beira da estrada.
— Credo, que horrível...
— As balas não paravam de voar. Havia homens e mulheres a gritar, a chorar. Eu não sabia o que fazer. Por isso escondi-me por baixo do corpo do Patrick. — Maggie começou a tremer enquanto continuava com a sua história. — O... o sangue dele ensopou-me. Era quente, como um xarope aquecido. O cheiro era o de um matadouro...
Sam deslizou para mais perto de Maggie, puxando-a para si.
— Não tens de fazer isto...
Ela não se afastou dele, mas também não respondeu ao seu toque. Fitava, sem pestanejar, a escuridão, perdida, num pesadelo familiar.
— Mas o Patrick ainda estava vivo. Enquanto eu me escondia debaixo dele, ele gemia, demasiado baixo para que os outros o ouvissem. Suplicou-me que o ajudasse. Chorou pela mamã dele. Mas eu limitei-me a ficar ali escondida, a usar o corpo dele como um escudo enquanto o sangue a ensopava as minhas roupas. — Ela virou-se para Sam, a voz embargada. — Era quente, seguro. Nada me conseguiria arrastar do meu esconderijo. Deus me perdoe, obriguei os meus ouvidos a não ouvir as súplicas do Patrick por ajuda. — Um soluço escapou-lhe da garganta.
— Maggie, não passavas de uma criança.
— Eu podia ter feito alguma coisa.
— E podias também ter sido morta. De que teria isso servido ao Patrick Dugan?
— Jamais saberei — disse ela com o calor das lágrimas de despeito no rosto. Libertou-se dos braços de Sam e virou os olhos zangados e magoados na direção dele. — Pois não?
Sam não tinha uma resposta para lhe dar.
— Lamento — ofereceu debilmente.
Maggie limpou bruscamente o rosto.
— Foi então que começaram estes malditos ataques. Anos de comprimidos e terapia nada fizeram. Por isso, acabei com tudo. — Engoliu em seco. — É um problema meu, algo com que terei de viver... sozinha. É o meu fardo.
E o teu castigo autoimposto pela morte do Patrick, pensou Sam, mas manteve o silêncio. Quem era ele para a julgar? Invadiram-lhe a mente imagens das formas tensas dos seus pais a serem arrancados como pedaços de carne do carro desfeito, enquanto ele permanecia sentado, preso com o cinto no banco traseiro, a observar tudo. Culpa do sobrevivente. Era uma sensação a que se acostumara. Ainda era frequente acordar com os lençóis colados à pele húmida, o suor frio a ensopar-lhe o corpo.
As palavras seguintes de Maggie trouxeram-no de novo para a caverna escura.
— De futuro, Sam, não te arrisques por mim. Está bem?
— Eu... eu não posso prometer isso.
Ela fitou-o furiosa, as lágrimas iluminando-lhe os olhos.
— Maggie...?
Foram interrompidos pelo aparecimento de Norman.
— Desculpem, malta, mas tenho de tratar de um assunto — resmungou o fotógrafo, o cabelo espetado em todas as direções. Atravessou o caminho de ouro e dirigiu-se a um pedregulho não muito distante, aparentemente sem se aperceber da tensão entre os dois.
Sam virou-se para Maggie, mas esta recusou-se a cruzar o olhar com o dele. Levantou-se.
— Basta... basta que não arrisques a vida... — Enquanto ela se afastava, Sam ouviu-a balbuciar qualquer outra coisa. As palavras destinavam-se apenas a ela, mas a acústica da gruta transportara-as até ele. — Não quero mais uma morte nas minhas mãos.
Inclinando-se para a frente, pronto a segui-la para a consolar, Sam parou, depois voltou a relaxar e permaneceu no seu lugar. Não havia nada que pudesse dizer. Ele próprio ouvira inúmeras banalidades depois da morte dos pais. Não te culpes. Não há nada que pudesses fazer. Acidentes acontecem. Aquelas palavras também não o tinham ajudado. Mas pelo menos Sam contava com o seu tio Henry. Tendo perdido a sua própria esposa, o tio Hank parecia pressentir que havia coisas que tinham de ser enfrentadas a sós, trabalhadas em silêncio, em vez de sondadas e analisadas em busca de uma resposta. Fora o silêncio mais do que a dor que unira sobrinho e tio, como duas feridas irregulares que saram e cicatrizam juntas.
Sam observou Maggie a afastar-se, de ombros caídos. Ela tinha razão. Era o fardo dela. Ainda assim, Sam mal conseguia suprimir o impulso de correr até ela para a tomar nos braços e proteger.
Porém, antes que conseguisse fazer algo, um guincho levou Sam a virar-se. Ergueu-se de um salto, sacando do punhal. Avançou até onde tinha deixado a Winchester do avô, encostada a uma pedra.
Norman saiu a correr de trás de um pedregulho, ainda a fechar a braguilha, e olhando de relance, em pânico, para trás de si.
— O que se passa? — perguntou Sam enquanto Norman cambaleava até ao seu lado.
O fotógrafo demorou um instante a recuperar o fôlego. Um dos seus braços não parava de apontar na direção do pedregulho enquanto arquejava e tossia.
— A... atrás...
Ralph aproximou-se deles, maldisposto por ter sido acordado subitamente. Esfregou o sono dos olhos, a espingarda de alavanca de Gil agarrada com a outra mão.
— Raios, Norman. Gritas como uma rapariga.
Norman ignorou a vergastada de Ralph, o pânico demasiado grande para se preocupar com tal coisa.
— Eu... eu pensei que eram apenas... apenas zonas cobertas de líquenes ou manchas de uma pedra mais leve. Mas algo se moveu!
— Quem? De que estás tu a falar? — perguntou Sam.
Norman encolheu os ombros, depois pareceu, por fim, recuperar a compostura. Acenou na direção do pedregulho. Por aquela altura, Maggie e Denal já se encontravam a poucos passos de distância.
— Não tenho a certeza. — Ele conduziu-os de volta, mas desta vez manteve alguma distância em relação à pedra e ao que quer que se encontrasse do outro lado.
Sam permaneceu ao lado do fotógrafo. A pedra escura do lado oposto da rocha estava mergulhada nas sombras. Riscos de quartzo ou gesso branco corriam pela parede próxima da gruta.
— Não vejo nada.
Norman estendeu a mão na direção dos outros.
— Passem-me uma das luzes.
Denal avançou e entregou a segunda lanterna ao fotógrafo. Norman ligou-a; a luz trespassou a escuridão.
Sam recuou em choque. Não eram veios de quartzo ou gesso que corriam pelas paredes. Aqueles riscos pálidos fluíam, deslizando pelas paredes e acumulando-se aos seus pés. Naquele preciso momento, esses arroios corriam pelo chão em direção ao grupo ali reunido. Sam moveu a sua própria lanterna.
— Aranhas... — Cada uma tão pálida quanto a barriga de uma lesma e com cerca de um palmo. Deviam ser centenas... não, milhares delas.
Ralph recuou.
— Tarântulas.
— Tarântulas albinas — gemeu Maggie.
O exército prosseguia a sua marcha apressada. As batedoras avançavam pelos dois lados do pedregulho. Algumas pararam no ponto onde a rocha estava húmida e fumegava ligeiramente depois de Norman se ter aliviado, claramente atraídas pelo calor.
— É o calor do nosso corpo — disse Sam. — Estas criaturas malditas devem ser cegas e foram atraídas pelo ruído e pelo calor.
Atrás dele, Denal começou a palrar no seu quéchua nativo.
Sam virou-se. O jovem índio gesticulava na direção oposta, na direção do lado mais distante do caminho de ouro. Norman virou a lanterna para o local indicado por Denal. Enquanto um outro flanco do exército descia pela outra parede com as suas patas pálidas e peludas, Sam sentiu de súbito um terrível arrepio a subir-lhe pelas costas.
Sam arqueou o pescoço, erguendo a lanterna.
Por cima da sua cabeça, o teto estava coberto por uma massa de corpos em movimento, que se arrastavam, acasalavam, lutavam. Milhares de sacos de ovos em pêndulo pendiam de úteros de seda. O grupo de estudantes dera de caras com o principal ninho das tarântulas... e o exército de predadores estava à caça de uma presa. Moviam-se já ao longo dos pilares, como se as figuras neles gravadas as estivessem a dar à luz. O grupo correu para longe da sombra da monstruosidade, regressando ao acampamento.
Enquanto recuavam, Sam estudou as aranhas enormes. Dependentes dos parcos recursos que encontravam naquela gruta, as tarântulas tinham claramente evoluído de modo a assumir uma postura mais agressiva. Em vez de esperarem que a presa caísse nas suas teias, estas aranhas normalmente solitárias tinham adotado uma estratégia mais cooperativa. Juntando-se, podiam percorrer a gruta com maior sucesso em busca de quaisquer fontes potenciais de uma refeição de sangue, o seu grande número suficiente para abater uma presa de maiores dimensões, e Sam não tinha qualquer intenção de ser o prato seguinte.
— Muito bem, malta, acho que já ficámos mais tempo do que seria conveniente — disse. — Reúnam o equipamento e vamos pôr-nos a andar.
— Para onde? — perguntou Maggie.
— Há um caminho que percorre estas grutas, certo? Os índios que o forjaram devem tê-lo feito por alguma razão. Talvez haja uma saída. Alguém se opõe a descobrir?
Ninguém se opunha. Os cinco pares de olhos continuavam fixos nas tarântulas que os tentavam rodear.
Sam enfiou no colete o punhal de ouro e pegou na espingarda do avô. Fez sinal aos restantes para que recolhessem as suas poucas posses.
— Só uma lanterna — disse ele enquanto avançava pelo caminho. — Conservem a outra. Não quero ficar sem luz aqui em baixo. — Um arrepio percorreu Sam só de pensar em ficar ali encurralado, às cegas, com um pálido exército de predadores venenosos a rodeá-lo. Apertou a espingarda com mais força, mas sabia que esta de pouco lhe serviria caso as luzes se apagassem.
Norman seguiu a lanterna, olhando frequentemente de relance para trás de si.
— Enquanto nos mantivermos em movimento, as aranhas não te vão apanhar, Norman — disse Ralph com um franzir de sobrolho.
O fotógrafo continuava de olhar fixo no caminho que iam percorrendo.
— Mas lembrem-se... acabaram-se as pausas para a casa de banho. Não enquanto não vir a luz do dia.
Sam ignorou a conversa nervosa entre ambos. Não era aquilo que estava a deixar para trás que mantinha os nervos de Sam tão tensos quanto a corda de um arco, mas o caminho à sua frente. Onde raio os iria levar aquele caminho?
Infelizmente, só havia uma maneira de descobrir.
Enquanto avançavam, Norman balbuciou atrás dele.
— Leões e tigres e ursos, oh, céus...
Sam olhou de relance para trás, o sobrolho franzido numa expressão de confusão.
Norman acenou com a cabeça na direção do caminho de ouro.
— Faz-me lembrar a estrada de tijolos amarelos.
— Fantástico — resmungou Ralph —, agora o maricas acha que é a Dorothy.
— Quem me dera. Neste momento não me importava de um par de sapatos de rubi para me levarem para casa — resmungou Norman. — Ou mesmo para uma quinta no Kansas.
Sam revirou os olhos e continuou a avançar.
O que restava da longa manhã estendeu-se numa caminhada sem fim, na sua maioria seguindo uma inclinação constante. As costas e as pernas protestavam enquanto o sistema de grutas os ia conduzindo cada vez mais fundo através da montanha dos Andes. Não fora pela falta de comida e pela crescente exaustão, Sam talvez tivesse apreciado a vista: estalagmites gigantes, câmaras cavernosas com lagos límpidos que cintilavam numa suave fosforescência, cataratas que lançavam a sua neblina sobre o trilho de ouro, por vezes com borrifos refrescantes, até havia uma gruta de tal modo repleta de cristais rendilhados que parecia cheia de algodão doce. Era um país das maravilhas de beleza natural.
E, para onde quer que fossem, os pilares esculpidos iam marcando o caminho como sentinelas sombrias, que observavam o grupo a passar com os seus olhos de prata que nunca pestanejavam.
Mas por impressionantes que fossem as vistas, a recordação do que estava para trás nunca desapareceu por completo. As pausas para beber do curso de água eram frequentemente acompanhadas por olhares de relance em direção à retaguarda. Até ali não havia qualquer sinal de que tivessem sido seguidos pelo exército de tarântulas. Pareciam ter deixado as aranhas para trás.
Lentamente, a manhã deu lugar à tarde. A única diferença foi a breve pausa para almoçar, dividindo entre eles um par de barras de Milky Way que tinham encontrado escondidas na mala da câmara de Norman. Nunca um chocolate lhes soubera tão bem. Mas até aquele pequeno toque de paraíso foi de curta duração, e não fez mais do que aumentar a fome de todos. Os seus temperamentos tinham-se tornado irritáveis e a postura era mais séria enquanto avançavam ao longo da tarde.
Para piorar as coisas, uma pungência forte começou a encher o ar até então fresco da gruta. Torceram os narizes.
— Amoníaco. Parece que vamos a seguir o rasto de uma doninha fedorenta — comentou Sam.
— Talvez o ar se esteja a deteriorar-se — disse Norman com uma expressão preocupada no rosto fatigado.
— Não sejas tolo — ripostou Ralph. — O ar teria sido pior quando estávamos mais fundo.
— Não necessariamente — disse Maggie. Os seus olhos tinham-se semicerrado de desconfiança, fitando a escuridão para lá da luz. — Pelo menos, se houver uma fonte a emitir os gases tóxicos.
Ralph continuava de sobrolho franzido, claramente cansado e irritado.
— De que estás a falar?
Em vez de responder, Maggie virou-se para Sam.
— Todas aquelas tarântulas. Aparentemente, estavam bem alimentadas. O que raio é que aquelas coisas comem cá em baixo?
Sam abanou a cabeça. Não tinha resposta.
— Oh, céus! — A exclamação fora emitida por Norman, que assumira a liderança com a lanterna. O caminho de ouro conduzia, depois de um pequeno degrau, a uma gruta vizinha. Tendo em conta o eco da sua exclamação, a câmara era grande.
Os outros correram para o seu lado.
Maggie fitou a cena à sua frente, tapando a boca e o nariz com uma mão. O fedor fazia-lhes arder os olhos e os narizes.
— Ali está a resposta. A fonte da dieta das tarântulas.
Sam resmungou.
— Morcegos.
No alto da câmara vizinha, milhares de morcegos pretos e castanhos pendiam do teto ao qual se agarravam com os dedos, as asas apertando firmemente o corpo. Os mais jovens, esforçando-se por ficar lado a lado com os adultos, eram de um tom mais pálido, quase acobreado. Os seus guinchos agudos e subsónicos espalhavam o aviso quanto à presença de intrusos por toda a legião de criaturas aladas. Centenas abandonaram os seus poleiros de modo a levantar voo, cortando o ar.
A fonte do odor tornou-se imediatamente clara.
— Merda — praguejou Ralph.
— Exatamente — comentou taciturnamente Norman. — Merda de morcego.
O chão da caverna estava repleto de excrementos daquela legião de morcegos. O guano acumulado parecia ter, em alguns lugares, vários metros de profundidade. Os pilares gravados, conspurcados com os excrementos, erguiam-se por entre aquele caos malcheiroso. O fedor dos dejetos envelhecidos era suficientemente carregado para os fazer recuar como se tivessem sido esbofeteados.
Norman caiu para trás, tossindo e cuspindo. Dobrado pela cintura, apoiou-se nos joelhos, com vómitos.
A pele escura de Ralph parecia ter sido branqueada pela exposição corrosiva.
— Não podemos atravessar por aqui — disse ele. — Morreríamos antes de alcançar o outro lado.
— Não sem máscaras de gás — concordou Maggie.
Sam não ia discutir. Ele quase não conseguia ver, os seus olhos lacrimejavam com intensidade.
— Então... então, o que vamos fazer?
Foi Denal quem falou. Tinha-se mantido afastado da abertura da gruta e, como tal, fora o menos exposto. Mesmo agora, não estava virado de frente, mas de costas. Tinha um braço a apontar.
— Lá vêm elas outra vez.
Sam pestanejou para afastar os últimos ardores. Pegou na lanterna que se encontrava na posse de um Norman incapacitado. Vários metros ao longo do trilho de ouro, três ou quatro corpos brancos corriam pela passagem rochosa. Os batedores do exército das tarântulas.
— Para o diabo com isto — disse Ralph, dando voz à preocupação de todos.
— Então, e agora? — perguntou Maggie.
Sam olhou de relance para trás e para a frente. Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Sam ergueu a luz para chamar a atenção de todos.
— Mantenham-se calmos! De nada nos servirá entrar em pânico!
Nesse momento, a lanterna de Sam tremeluziu e apagou-se. A escuridão engoliu-os a todos, uma escuridão tão profunda que parecia que o mundo tinha desaparecido por inteiro. As vozes silenciaram-se de imediato.
Depois de ter inspirado fundo, Norman falou a partir da escuridão.
— Muito bem, agora já podemos entrar em pânico?
Joan fez sinal a Henry para que entrasse no laboratório.
— Fica à vontade — disse, para depois olhar de relance para o relógio de pulso. — O doutor Kirkpatrick deve chegar ao meio-dia.
Atrás dela, Henry parou na passagem para o conjunto de laboratórios, de olhos muito abertos.
— Tens aqui uma grande loja de brinquedos. Saíste-te bem desde que saíste da Rice.
Joan escondeu um sorriso de satisfação.
Lentamente, Henry vagueou pelo laboratório, o seu olhar deslizando pela pletora de equipamentos. Ao fundo da sala viam-se alinhados diversos equipamentos de diagnóstico e investigação: ultracentrifugadora, analisador de hematologia e química, espectrógrafo de massas, cromatógrafo, sequenciador genético. Ao longo de uma parede havia capuzes de proteção para lidar com substâncias perigosas; ao longo da outra havia armários, incubadoras e uma unidade refrigerada enorme.
Henry percorreu a fila de máquinas e olhou de relance para a sala vizinha.
— Meu Deus, até tens o teu próprio microscópio de eletrões. — Henri fitou-a e revirou os olhos. — Para conseguir reservar o nosso por um breve período tenho de os avisar, pelo menos, com uma semana de antecedência.
— Aqui, isso não é preciso. Hoje, o meu laboratório está ao teu dispor.
Henry avançou para uma mesa de trabalho central, em forma de U, e pousou a pasta de cabedal, os olhos percorrendo ainda, com apreço, a sala.
— Já tive sonhos assim...
Rindo para si mesma, Joan avançou para um armário de aço inoxidável trancado, destrancou-o, abriu-o e, com as duas mãos, extraiu um grande gobelé.
— Eis todo o material que extraímos das paredes e do chão do laboratório de radiologia.
Joan viu os olhos de Henry abrirem-se mais quando depositou o frasco à frente dele. Ele inclinou-se um pouco, empurrando os óculos mais para cima, no nariz.
— Não me tinha apercebido de que era tanto — disse ele. A substância amarela enchia metade do gobelé de litro. Cintilava brilhante, sob as luzes fluorescentes da sala.
Joan pegou num banquinho.
— Quanto à quantidade, calculo que teria enchido toda a cavidade craniana.
Henry pegou no gobelé. Joan apercebeu-se de que ele o agarrara rapidamente com a outra mão. O conteúdo era mais pesado do que parecia. Inclinou o jarro, mas a substância desconhecida recusou-se a fluir. Voltando a pousar o gobelé na mesa, comentou:
— Parece sólida.
Joan abanou a cabeça.
— Não é. — Agarrou numa vareta de vidro e enfiou-a no material, não sem algum esforço, como se a empurrasse através de um barro macio. Joan largou a vareta, e esta permaneceu direita no frasco. — Maleável, mas não sólida.
Henry tentou mover a vareta de vidro.
— Hmm... sem dúvida que não é ouro. Mas a tonalidade e o brilho são absolutamente iguais. Talvez tivesses razão ao considerá-la uma nova amálgama ou algo assim. Sem dúvida que nunca vi nada igual.
Joan olhou de relance para ele, de sobrancelhas erguidas.
— Ou talvez tenhas visto. Vamos compará-lo com a cruz de ouro. Trouxeste-a contigo, certo?
Ele assentiu com a cabeça. Virando-se de novo para a mesa, Henry marcou o código na pasta e abriu-a.
— Calculei que ficava mais segura comigo do que no hotel. — Retirou a cruz dominicana ornamentada e entregou-lha.
O trabalho era incrível. A figura de Cristo estendia-se, alongada e estilizada, sobre uma cruz em voluta; a dor da sua agonia esculpida na tensão dos membros, enquanto o rosto se mostrava repleto de graça apaixonada.
— Impressionante — disse.
— E sólido... por isso duvido que seja feita da mesma amálgama. — Henry pousou o crucifixo ao lado do gobelé. O estranho material da cruz cintilou e brilhou de igual modo.
— Tens a certeza?
Os olhos de Henry cruzaram-se com os dela sobre o aro dos óculos. Franziu o sobrolho.
— Vou deixar a derradeira avaliação para o teu especialista.
Joan levou a mão ao crucifixo.
— Posso?
— Claro, Joan.
A mão dela hesitou um instante, quando Henry usou o seu nome. A intimidade e o local onde se encontravam trazia de volta recordações de quando os dois tinham sido colegas durante um semestre, na cadeira de iniciação à biologia. Como era estranha e vívida a recordação desse momento. Mais do que um mero déjà-vu.
Sem cruzar o seu olhar com o dele, Joan retirou a cruz da mesa. O passado era o passado. Calculou o peso do crucifixo na palma da mão. Também este pesava mais do que parecia, mas será que com o ouro era sempre assim? Ela ergueu o crucifixo contra a luz, inclinando-o para um lado, depois para o outro, estudando-o.
Henry teorizou em voz alta, enquanto ela examinava a relíquia.
— É, sem dúvida, o trabalho de um artífice espanhol. Não se trata de uma obra inca. Se se confirmar que a cruz é composta pela mesma amálgama, saberemos com toda a certeza que foram os espanhóis a trazê-la para o Novo Mundo e não o contrário...
Ele continuou a falar, mas algo chamou a atenção de Joan. Os dedos dela sentiram pequenos riscos na superfície da parte de trás do crucifixo. Levou a mão ao bolso e retirou os óculos de leitura. Colocando-os no rosto, virou o crucifixo e semicerrou os olhos. Não se tratava da assinatura do artista ou de uma qualquer escritura arcaica. Em vez disso, pareciam alinhar-se, fila após fila, marcas finas. Cobriam toda a superfície da parte de trás do crucifixo.
— O que é isto? — perguntou Joan, interrompendo Henry.
Ele aproximou-se mais, ficando ombro com ombro ao lado dela. Joan apercebeu-se do ténue odor que ele libertava, uma mistura de aftershave e de um almiscarado mais rico. Tentou ignorá-lo.
— Estás a falar de quê? — perguntou ele.
— Aqui. — Joan apontou para as marcas com uma unha.
— Ah, já tinha reparado nelas. Creio que são o resultado da fricção da cruz contra o hábito do frade, que foi raspando lentamente o ouro macio com o passar dos anos.
— Mmm, talvez... mas parecem demasiado rítmicos, e algumas das marcas são bastante profundas e irregulares. — Joan virou-se ligeiramente para Henry, os seus narizes quase se tocando. A respiração dele deslizava-lhe pelo rosto, os olhos fixaram-se nas profundezas dos seus.
— O que sugeres?
Ela abanou a cabeça, recuando.
— Não sei. Gostaria de ver mais de perto.
— Como?
Joan conduziu-o ao canto da mesa onde estavam pousados os microscópios. Dirigiu-se a uma volumosa unidade binocular, com uma grande travessa de vidro por baixo.
— Um microscópio de dissecção. Por norma utilizo-o para estudar mais detalhadamente os tecidos grossos.
Pousou a cruz de rosto para baixo sobre a bandeja e acendeu a fonte de luz. Iluminada a partir de cima, o ouro brilhou com um fogo interior. Joan ajustou a luz de tal modo que esta brilhou obliquamente sobre o crucifixo. Curvando-se sobre a ocular, efetuou uma série de pequenos ajustes nas lentes. Sob a baixa ampliação, a superfície da cruz encheu o plano. As marcas no crucifixo tornavam-se claras, surgindo como entalhes profundos no metal, longos vales, claramente precisos e uniformes. Os riscos compunham uma série de minúsculos símbolos repetidos: quadrados grosseiros, círculos toscos, floreios horizontais e verticais, cardinais, ovais aninhadas.
— Olha para isto — disse Joan, afastando-se.
Henry curvou-se sobre o microscópio. Fitou-o durante alguns momentos, em silêncio, depois deixou escapar dos lábios um pequeno assobio.
— Tens razão. Isto não são riscos aleatórios. — O olhar dele saltou para o dela. — Acho que até há prata embutida em alguns dos sulcos. Talvez vestígios da ferramenta usada para abrir estas marcas.
— Tendo em conta o laborioso trabalho, houve decerto uma qualquer razão por trás de tanto esforço.
— Mas porquê? — Os lábios de Henry ficaram tensos, enquanto pensava sobre o novo mistério, depois os olhos semicerraram-se ligeiramente. Por fim, libertou a respiração. — Pode ser uma mensagem. Mas quem poderá sabê-lo com toda a certeza? Talvez não passe de uma oração comum. Uma bênção.
— Mas em código? E porquê na parte de trás da cruz? Deve significar algo mais.
Henry encolheu os ombros.
— Se o frade a tiver gravado como mensagem enquanto estava encarcerado, poderá ter sido a única maneira de a manter em segurança. Os incas reverenciavam os objetos de ouro. Se ele tivesse a cruz consigo ao morrer no altar, os incas manteriam o crucifixo junto do corpo.
— Se tiveres razão, a quem se destinaria a mensagem?
Henry abanou lentamente a cabeça, com um olhar pensativo.
— A resposta pode estar neste código.
Joan regressou ao microscópio. Retirou um bloco e uma caneta de uma gaveta, depois posicionou-se para copiar as marcas para o papel.
— Vamos ver. Sempre gostei de brincar com criptogramas. Se não tiver sorte, posso pedir a alguém do departamento de informática que o passe por um programa de desencriptação. Talvez sejam capazes de o resolver.
Henry erguia-se atrás dela, enquanto ela registava os escritos.
— Transformaste-te numa mulher de muitos talentos, doutora Joan Engel.
Joan escondeu o rubor que lhe invadiu o rosto, enquanto se concentrava na tarefa e copiava com cuidado as marcas. Trabalhou com rapidez e eficácia, sem precisar de erguer os olhos, enquanto anotava o que via. Depois de anos a tirar apontamentos enquanto estudava as amostras sob o microscópio, tornara-se hábil a escrever às cegas.
Em cinco minutos, jazia uma cópia na mesa ao seu lado. Fila após fila de símbolos alinhavam-se no papel amarelo. Ela endireitou-se da posição inclinada, alongando o pescoço tenso.
— Fica quieta. — Os dedos dele tocaram no nó dos músculos dos ombros tensos. Inicialmente, a pele dele era fria contra a dela, mas à medida que massajou o calor foi-se acumulando sob os dedos fortes, aquecendo-lhe os músculos doridos.
— Vejo que não perdeste o toque. — Ela inclinou-se para os dedos dele, recordando um outro tempo, um outro lugar. — Por isso, se eu te disser para parares, ignora-me.
— É o mínimo que posso fazer depois de toda a tua ajuda. — As suas próprias palavras estavam mais carregadas do que o habitual.
Um bater abrupto na porta do laboratório interrompeu o momento.
As mãos de Henry detiveram-se, depois ele afastou-se.
Joan virou-se na cadeira, os ombros e o pescoço ainda quentes do toque dele. Olhou de relance para o relógio.
— Deve ser o doutor Kirkpatrick. Chegou mesmo a horas.
Henry amaldiçoou a pontualidade perfeita do metalúrgico. Esfregou as mãos uma na outra, tentando limpar delas a memória da pele de Joan. Controla-te, homem. Pareces um adolescente apaixonado.
Observou Joan a afastar-se. Uma das suas mãos ergueu-se para tocar suavemente no pescoço. Depois voltou a puxar o cabelo preto para o seu lugar, um ondular noturno contra a bata branca. Com ou sem mistérios, naquele preciso momento tudo aquilo que desejava era passar mais alguns momentos a sós com ela.
Joan avançou até à porta, abriu-a e saudou o visitante.
— Dale, obrigada por teres vindo.
O doutor Dale Kirkpatrick, o especialista metalúrgico da George Washington University, era bastante mais alto do que Henry, mas muitíssimo magro, com um rosto alongado que raramente sorria. Tentava fazê-lo agora com resultados catastróficos, como um médico-legista a saudar os familiares enlutados.
— Qualquer coisa por uma colega.
Henry pressentiu que o homem ruivo tinha partilhado mais com Joan do que uma mera relação profissional. Os olhos dos dois cruzaram-se numa expressão embaraçosa e o aperto de mão de boas-vindas foi ligeiramente mais longo do que ditavam os costumes. Henry sentiu por ele um desagrado imediato. O homem envergava um dispendioso fato de seda e sapatos engraxados a brilhar. Os seus saltos batiam ruidosamente no chão enquanto avançava pela sala. Na mão esquerda transportava uma grande pasta com o equipamento.
Henry tossiu para limpar a garganta.
Joan virou-se.
— Dale, deixa-me apresentar-te o professor Henry Conklin.
O doutor Kirkpatrick estendeu a mão.
— O arqueólogo. — Era uma afirmação, não uma pergunta, mas Henry sentiu na sua voz um toque de desprezo.
Apertaram as mãos, de forma breve e seca.
— Agradeço a sua ajuda com este assunto — disse Henry. — Tem sido um mistério e tanto. Não conseguimos compreender esta amálgama ou o que quer que seja.
— Sim... bem, deixem-me ver. — A atitude do homem era educada, mas ligeiramente altiva, como se a sua mera presença pudesse trazer a luz à escuridão.
— Está ali — disse Joan, conduzindo-o até à mesa de trabalho.
Assim que lhe foi apresentado a enigma, o doutor Kirkpatrick inclinou a cabeça, estudando a estranha substância em silêncio. Joan começou a falar mas o especialista ergueu um dedo, silenciando-a. Henry sentiu o desejo irracional de lhe partir o dedo.
— Não é ouro — declarou por fim.
— Até aí já nós tínhamos percebido — disse Henry num tom azedo.
O homem olhou de relance para ele, erguendo uma sobrancelha.
— Sem dúvida, caso contrário não me teriam chamado, não é? — Virou-se de novo para o gobelé e agarrou a vareta de vidro que ainda estava enfiada no material. Mexeu-o com ela.
— Semissólida à temperatura ambiente — balbuciou. — Já averiguaram o ponto de fusão verdadeiro para a substância?
— Ainda não.
— Bem, isso é fácil. — O especialista disse a Joan o que necessitava. Em breve estavam reunidos em torno de uma tigela de cerâmica que aquecia sobre a baixa chama arroxeada de um bico de Bunsen. Uma amostra do metal enchia até meio a tigela, com um termómetro nele mergulhado.
O doutor Kirkpatrick ia falando enquanto o material aquecia lentamente sob o capuz de proteção.
— Se se tratar de uma amálgama de diferentes elementos, os metais constituintes devem ir-se separando à medida que vai fundindo.
— Já está fundido — disse Henry, acenando na direção da tigela.
Dale virou a sua atenção de novo para a tigela, de sobrolho franzido.
— Isto é impossível. Só está a aquecer há alguns segundos. Nem mesmo o ouro derrete a uma temperatura tão baixa.
Mas a observação de Henry revelou-se verdadeira. Utilizando umas pinças, Dale moveu a tigela. A substância parecia, agora, tão solta quanto um creme, mas de cor dourada. Ergueu os olhos para Joan.
— Qual é a temperatura?
O rosto de Joan ficou fechado de consternação.
— Trinta e sete graus Celsius.
Os olhos de Henry abriram-se consideravelmente.
— A temperatura do corpo.
Longe de uma fonte de calor, a tigela arrefeceu rapidamente e a substância metálica tornou-se túrgida enquanto o trio avaliava o resultado.
Henry foi o primeiro a falar.
— Não o vi dividir-se nos metais que o compõem, como disse que aconteceria. Isso significa que não se trata de uma amálgama?
— É demasiado cedo para o dizer. — Mas a voz de Dale perdera a sua altivez.
— O que se segue?
— Mais alguns testes. Gostaria de verificar a condutividade e a reação ao magnetismo.
Rapidamente, moldaram uma amostra do suave metal num cubo e introduziram nele dois elétrodos. Dale acenou com a cabeça e Joan ligou a bateria. Mal a corrente fluiu, o cubo derreteu numa espécie de lama espessa que deslizou pela bancada de trabalho.
— Desliga!
Joan carregou no botão. O material solidificou imediatamente. Dale tocou no metal.
— Está frio.
— O que acaba de acontecer? — perguntou Henry.
Dale limitou-se a abanar a cabeça. Não tinha resposta.
— Traz os ímanes da minha pasta.
Henry e Joan posicionaram os dois ímanes blindados um de cada lado de uma segunda amostra com a forma de um cubo. O doutor Kirkpatrick prendeu um potenciómetro do seu lado.
— Ao meu sinal, ergam as blindagens. — Aproximou-se mais do medidor. — Agora.
Joan e Henry abriram os escudos de chumbo. Tal como no caso do fluxo de eletricidade, o cubo derreteu-se como gelo num forno, deslizando pela mesa.
— Voltem a blindar os ímanes — ordenou Dale.
Assim que o fizeram, a substância parou instantaneamente de fluir sobre a mesa, estacando. Dale voltou a tocar no metal solidificado. Mostrava agora uma expressão preocupada.
— Bem? — perguntou Henry.
— Dizem que a substância explodiu, deixando o crânio da múmia quando foi exposto a uma tomografia computorizada.
— Sim — disse Joan. — Foi expelida por toda a divisão.
— Nesse caso, até os raios X utilizados pelo aparelho de tomografia computorizada afetam o metal — balbuciou Dale para si mesmo, batendo com uma caneta no limite da mesa. — Interessante...
Henry guardou os ímanes.
— Em que está a pensar?
Os olhos de Dale tornaram-se límpidos e concentrados. Virou-se para eles.
— A substância parece ser capaz de utilizar qualquer energia radiante com uma eficiência perfeita: corrente elétrica, radiação magnética, raios X. Absorve estas diversas energias para mudar de estado. — Tocou numa gota do metal solidificado. — Não creio, sequer, que seja libertado algum calor quando muda de forma. Trata-se de um exemplo perfeito de consumo de energia. Nem sequer desperdiça calor! Eu... nunca vi nada assim. É termodinamicamente impossível.
Henry estudou o conteúdo do gobelé.
— Está a sugerir que os raios X do aparelho desencadearam a explosão da múmia?
Ele assentiu com a cabeça.
— Bombardeado por tão grande quantidade de radiação concentrada, parte do material deve ter mudado de estado, desta feita de líquido a gás. A súbita expansão terá provocado uma explosão violenta, expelindo o metal liquefeito. Uma vez longe da radiação, regressou ao seu estado semissólido.
— Mas o que é? — perguntou Joan.
Ele voltou a erguer aquele dedo irritante.
— Deixa-me tentar mais uma coisa. — Pegando em mais um cubo do metal suave, espremeu-o como se fosse um pedaço de barro.
— Nunca solidifica por completo?
Joan abanou a cabeça.
— Não, até tentei congelá-lo, mas permaneceu maleável.
Dale virou-se no assento.
— Professor Conklin, pode passar-me uma das mangas de blindagem dos ímanes?
Henry tinha estado a envolver o último dos pesados ímanes num pano impregnado em cobre. Desfez o seu trabalho e entregou o pano a Dale.
— A manga bloqueia os efeitos do íman... para que eu não danifique acidentalmente algum aparelho eletrónico dispendioso de passagem. Bloqueia quase todas as formas de radiação.
Henry começou a perceber qual era o plano do especialista em metais.
Dale pegou no cubo de ouro e envolveu-o no pano preto. Uma vez completamente protegido, pousou de novo o cubo sobre a mesa. Em seguida pegou num cinzel e num martelo que retirou da sua mala. Posicionando o cinzel no limite do cubo, utilizou o malho para desferir sobre a ferramenta um golpe forte. Um bangue abafado foi a sua única resposta. O cubo resistiu ao cinzel.
Desenrolando rapidamente o cubo, Dale revelou a superfície intacta. Voltou a pegar no cinzel e, limitando-se a usar a força do polegar, fê-lo atravessar o cubo exposto. Explicou os resultados.
— À nossa volta existe sempre baixa radiação ambiente. Está sempre presente... diversas ondas de rádio locais, pulsações ultra-magnéticas dos fios elétricos do edifício, até radiação solar. Esta substância usa-as a todas! É por isso que permanece semissólida. Até os vestígios destas energias enfraquecem a sua solidez.
— Mas não compreendo — disse Joan. — Que tipo de metal ou amálgama poderia fazer isto?
— Nenhuma que eu alguma vez tenha visto ou de que tenha ouvido falar. — Dale ergueu-se de súbito, levantando cuidadosamente o cubo suave com as pinças de aço. Acenou na direção da sala vizinha, onde se encontrava o microscópio de eletrões. — Mas há uma maneira de olharmos mais de perto.
Henry depressa se viu a seguir os outros dois para a sala do lado. Levava consigo tanto o gobelé com o estranho metal, agora selado com rolha de borracha como o crucifixo dominicano da múmia. Joan e Dale já se tinham curvado, cabeça com cabeça, enquanto preparavam uma apara do metal para utilizar no microscópio de eletrões.
Henry avançou para uma pequena mesa afastada, pousando o gobelé e a cruz. O grande microscópio de eletrões ocupava todo o fundo da sala. A sua coluna ótica imensa erguia-se na direção do teto. Um conjunto de três monitores alinhava-se à sua frente.
Joan ligou a unidade, mexendo em botões e verificando rapidamente a calibragem de base. Dale acabou de preparar a amostra, prendendo-a no lugar na bandeja do scanner. Dirigiu a Joan um polegar erguido.
Henry, praticamente esquecido, franziu o sobrolho e afundou-se num banco junto à mesa.
Do outro lado da pequena sala, a coluna ótica começou a zumbir e a clicar, enquanto o filamento de tungsténio bombardeava a amostra com um feixe de eletrões. Dale apressou-se a assumir a posição ao lado de Joan perante os monitores. A patologista mexia no teclado, e os ecrãs floresciam com um brilho cinzento na sala mal iluminada. A palavra AGUARDE era visível até mesmo de onde Henry se encontrava.
— Quanto tempo irá demorar? — perguntou Henry.
Joan olhou de relance para ele, o seu rosto uma mistura de surpresa e embaraço. Deve, por fim, ter-se apercebido da pouca atenção que lhe prestara.
— Não muito. O microscópio de eletrões necessita de cerca de dez minutos para compilar e calcular uma imagem. — Joan ofereceu a Henry um sorriso débil, apologético, depois virou-lhe as costas.
Henry revirou os olhos e também ele se virou, desviando a sua atenção de novo para o crucifixo. Tocou com um dedo na sua superfície brilhante. Depois de ter testado a substância desconhecida, a cruz do frade era, sem dúvida, composta por ouro verdadeiro.
— Mero ouro — murmurou Henry para si mesmo. Pelo menos um mistério fora resolvido, mas isso ainda deixava outro enigma.
Agarrando no crucifixo, Henry virou-o para estudar a parte de trás e as filas de pequenos entalhes. O que estaria Francisco de Almagre a tentar dizer? Henry deslizou o dedo pelas marcas. Seria algum tipo de mensagem? Se assim fosse, o que tinha de tão importante? Enquanto Henry deslizava o dedo pela cruz, sentiu uma ligeira desconfiança, semelhante à da noite anterior quando tentara comunicar com o acampamento e falhara. Afastou aquelas preocupações irracionais. Estava a ser paranoico. Mas pela centésima vez nesse dia os seus pensamentos deslizaram para Sam e para os seus outros alunos. Como se estariam a sair na pirâmide enterrada? Talvez já tivessem descoberto as respostas para aqueles puzzles?
Henry agarrou o crucifixo entre as palmas das duas mãos, repousando a testa na ponta dos dedos. Tantas coisas estranhas rodeavam aquela escavação. Sentiu que havia uma ligação, uma forma de unir todas aquelas pontas: padres mumificados, metais misteriosos, criptas seladas. Mas qual seria a ligação? Henry sentiu os contornos do crucifixo contra a palma das mãos. Uma cruz de ouro e uma mensagem codificada. Poderia ser aquela a resposta?
Imaginou o jovem frade, curvado sobre a sua cruz, gravando aqueles entalhes com uma ferramenta afiada. Um trabalho laborioso realizado quando a morte se aproximava. Nas mãos de Henry talvez estivessem as últimas palavras daquele homem. Mas o que quereria ele dizer?
— O que haveria de tão importante? — sussurrou Henry.
A imagem da cruz surgiu cristalizada na mente de Henry, girando lentamente perante o seu olho interior.
Joan arquejou de súbito atrás dele, afastando-o do seu sonho. Ele virou-se. Ela olhava na direção dele, mas os seus olhos não fitavam Henry. Ele seguiu o caminho do olhar dela até ao seu cotovelo direito.
O gobelé repousava sobre a mesa onde Henry o tinha colocado. Ficou sem fôlego quando viu o seu conteúdo.
— Henry...?
O gobelé já não continha uma amálgama de metal cru. No seu interior, apoiado na lateral do vidro, estava uma cópia rude da cruz de ouro dominicana. De rude forma cruciforme, os pormenores estavam desfocados. A figura de Cristo não era mais do que uma sugestão sobre a sua superfície.
Joan e Dale aproximaram-se.
— Fez aquilo? — perguntou Dale.
Henry olhou de relance para o homem como se este estivesse louco. Apontou para a rolha que o selava.
— Está a brincar?
Enquanto observavam, a cruz pareceu perder parte dos seus pormenores. Os limites tornaram-se menos nítidos e a figura deslizou da cruz formando uma poça no fundo do gobelé. Ainda assim, a cruz em si mantinha a forma geral.
Henry tentou explicar:
— Só estava a pensar nela quando...
Um som agudo fez-se ouvir não muito longe, ruidoso na sala pequena.
Todos se viraram para ver os monitores a tremeluzir, piscando em seguida até assumirem imagens a cinzento.
— Talvez estejamos um passo mais perto de uma resposta — anunciou tacitamente o doutor Kirkpatrick, que recuava na direção dos monitores.
Henry e Joan seguiram-no. Os seus olhos cruzaram-se por breves instantes. Henry conseguia ver a consternação e algo que parecia medo nos olhos dela. Ainda antes de se aperceber do que estava a fazer, estendeu o braço e apertou-lhe a mão num gesto de reconforto. Ela reconheceu o gesto aproximando-se mais alguns centímetros de Henry.
Com um último olhar preocupado na direção da cruz dentro do frasco, Henry juntou-se aos outros diante dos monitores.
O doutor Kirkpatrick curvou-se sobre o teclado, com um dedo a deslizar pelo ecrã. No monitor via-se uma paisagem sobrenatural, um terreno rude de picos e vales de formas estranhas, como se alguém tivesse tirado uma fotografia a preto e branco da superfície de Marte.
— Isto é impossível — disse Dale. Apontou para uma secção do ecrã que ampliava um canto da paisagem. — Vejam. O metal é, na realidade, uma agregação de partículas minúsculas. Vejam como estão presas e interligadas.
No ecrã, a vista transversal revelava minúsculas estruturas de forma octogonal presas umas às outras por seis pernas articuladas. Cada estrutura minúscula estava presa às vizinhas mais próximas num padrão tetraédrico denso.
Joan estendeu o dedo para tocar numa das partículas cinzentas exibidas no monitor.
— Parecem quase orgânicos, como bacteriófagos virais, ou algo assim.
O metalúrgico resmungou, com uma mão a apontar para a paisagem em geral nos restantes ecrãs.
— Não, não é de todo viral. Tendo em conta o fraturamento e a matriz interna, a substância é claramente inorgânica. Quase diria cristalina na sua estrutura.
— Então que raio é? — perguntou Henry, por fim, cada vez mais irritado com o homem. — Metal, cristal, viral, vegetal, mineral?
O olhar do doutor Kirkpatrick saltou na direção da cruz no interior do gobelé, depois abanou a cabeça.
— Não sei. Mas se tivesse de adivinhar, escolhia todas as acima indicadas.
No limite da tenda de comunicações, Philip Sykes observava o Sol que começava a afundar-se em direção às montanhas. Era o segundo dia da sua vigília junto às ruínas colapsadas. O que fora outrora um monte envolto em selva que escondia o templo enterrado, era agora uma cratera e ruínas fragmentadas. Os limites dos pedregulhos de granito caídos e das lajes do templo projetavam-se do solo negro revirado como dentes partidos expostos.
Se não tivesse recebido a chamada de Sam, que o informara da descoberta do sistema de grutas natural, tê-los-ia acreditado a todos mortos. Durante o último meio dia, o monte deixara de se agitar ou descer. O som das rochas a roçar umas nas outras já não se erguia da terra. O local de escavação estava tão silencioso quanto um túmulo. O templo colapsara por completo.
Mas Sam tinha contactado.
Philip cerrou um punho. Parte dele desejava que o arrogante texano não o tivesse feito. Teria sido mais fácil considerá-los a todos mortos; assim Philip estaria livre para abandonar o local, deixar aqueles malditos índios e a selva negra. A cada hora que ali permanecia arriscava um ataque de Guillermo Sala. Abraçou o próprio corpo como se uma brisa gelada soprasse a partir do topo da montanha. Quem chegaria primeiro: o grupo de resgate que os dois índios tinham ido chamar ou os capangas de Gil que regressavam para terminar o trabalho?
A tensão roía os nervos de Philip.
— Se ao menos eu me pudesse ir embora.... — Mas sabia que tal não era possível, não antes de o túnel de salvamento estar terminado. Philip fitou os limites da selva.
Não muito longe, os chamamentos e cantos abafados dos trabalhadores quéchuas ecoavam do local de trabalho obscurecido no lado oposto do monte. O túnel dos saqueadores tinha sido escavado cerca de treze metros naquele dia. Embora os índios ainda fossem lançando olhares sombrios e palavras balbuciadas, Philip não podia censurar o seu trabalho árduo. A equipa dividira-se em três turnos e cavara com picaretas e pás durante toda a noite e todo o dia.
Era igualmente possível que a estimativa de Philip de dois dias para escavar e libertar os outros se revelasse, afinal, não muito disparatada.
Mas seria suficientemente rápido?
Uma confusão súbita ergueu-se no fundo da selva, onde alguns dos índios faziam uma pausa à sombra das árvores. Philip endireitou-se mais, como se o facto de ter mais alguns centímetros lhe permitisse perscrutar as sombras da floresta. Susteve a respiração.
Um índio, um dos trabalhadores, saiu a correr por entre as árvores. Acenou com um braço a Philip, num gesto universal que indicava que este se deveria aproximar. Philip recusou mover-se; até deu um passo atrás. Enquanto hesitava, as vozes dos índios foram ficando mais distintas à medida que outros se reuniam para lá do limite da floresta. Pelos sons felizes e aliviados, Philip calculou que o que quer que tivessem agora descoberto não representava uma ameaça.
Philip preparou-se inspirando fundo, depois avançou das alturas do acampamento em direção à floresta. Até mesmo o pequeno esforço de atravessar a clareira deixou Philip a sugar o ar por entre os dentes. A tensão e a exaustão tinham enfraquecido a sua capacidade para lidar com o ar rarefeito. A semente de uma dor de cabeça começara a florescer por trás da sua têmpora direita, quando por fim se aproximou do limite da floresta.
Antes de alcançar os seus limites, uma torrente de índios entusiasmados emergiu de entre as árvores. Reuniram-se à sua volta, de sorriso aberto, os dentes a brilhar ao sol do fim da tarde. Em breve o grupo de trabalhadores ultrapassou Philip, como se este fosse uma pedra no meio de um riacho. O caminho, por fim, abriu-se o suficiente para que Philip visse quem os índios conduziam ao acampamento.
Seis figuras, envoltas em hábitos castanhos como lama e calçando sandálias de cabedal, emergiram das árvores, os rostos calorosos e radiosos enquanto lançavam para trás os capuzes que lhes cobriam as cabeças. Dois apresentavam sorrisos nos rostos, mas não se tratava dos sorrisos amplos dos índios rudes, apenas semblantes simples e gentis.
Um dos homens de hábito era, claramente, o líder. Era mais alto do que os restantes e era o único com uma proeminente cruz de prata ao peito.
— Monges... — murmurou Philip espantado.
Um dos índios caiu de joelhos aos pés daqueles religiosos e curvou a cabeça para ser abençoado. Enquanto os outros monges colocavam as palmas das mãos sobre as cabeças e sussurravam orações em espanhol, o chefe do grupo aproximou-se de Philip.
O homem afastou o seu próprio capuz revelando um rosto forte e elegante envolto em cabelo negro.
— Ouvimos dizer que estavas em apuros, meu filho — disse ele simplesmente. — Sou frei Dominic Otera e viemos oferecer qualquer ajuda que nos seja possível.
Philip pestanejou. Inglês! O homem tinha falado em inglês! Suprimiu o desejo de se aproximar e abraçar o frade. Em vez disso, tentou recompor-se o suficiente para falar.
— Como... como é que...?
O monge ergueu uma mão.
— Durante a viagem por entre as pequenas aldeias vizinhas, encontrámos os índios que enviaste em busca de ajuda. Mandei-os para Villacuacha de modo a alertarem as autoridades, mas, entretanto, viemos oferecer as nossas orações e o nosso consolo na tragédia.
Philip sentiu-se curvar sobre si mesmo enquanto o fardo que carregava era, por fim, aliviado. Havia agora outros — outros que falavam inglês — que podiam partilhar a sua ansiedade. Philip deu por si a falar sem parar, incapaz de formular um pensamento claro, deixando escapar uma mistura de agradecimentos sentidos entrelaçados com as suas próprias preocupações. Nada daquilo fazia sentido.
Frei Otera avançou para Philip e pousou a palma da mão fria no seu rosto.
— Acalma-te, meu filho.
O seu toque permitiu que Philip se concentrasse.
— Sim... sim... onde estão os meus bons modos? Já viajaram muito e devem ter sede e fome.
O monge baixou a cabeça.
— O Senhor é todo o sustento de que necessitamos, mas sendo viajantes seria negligente da nossa parte recusar a tua hospitalidade.
Philip acenou com a cabeça como um tolo; não conseguia evitá-lo, de tal modo se sentia inebriado de alívio.
— Então, por favor, venham até à minha tenda. Tenho sumo e água, e posso preparar rapidamente umas sandes.
— É muito simpático da tua parte. Talvez então, longe da força do Sol, me consigas explicar o que aconteceu ao teu grupo.
Philip conduziu os monges até ao aglomerado das tendas, embora tivesse reparado que três tinham ficado para trás, continuando a distribuir as suas bênçãos entre os trabalhadores.
O frade apercebeu-se de que Philip tinha parado.
— Juntar-se-ão a nós mais tarde. O trabalho do Senhor deve vir sempre primeiro.
Virando-se, Philip acenou com a cabeça.
— Claro. — Em breve, Philip e o frade estavam abrigados na sua tenda pessoal, sentados nas cadeiras do acampamento. Pousada entre eles estava uma bandeja de queijos duros e carnes fatiadas. Os outros dois monges tinham aceitado timidamente copos de sumo de goiaba fresco e tinham-se retirado para o exterior, permanecendo na sombra da tenda, deixando que frei Otera e Philip pudessem conversar em paz.
Depois de ter provado o que Philip lhe oferecia, o frade recostou-se na cadeira de lona com um suspiro de gratidão.
— Muito delicioso e simpático. — Pousou as palmas das duas mãos nos joelhos, estudando Philip. — Agora diz-me, meu filho, o que aconteceu aqui? Como é que podemos ajudar?
Philip bebeu um gole de sumo e recompôs-se. Os simples deveres enquanto anfitrião tinham-lhe acalmado os nervos, mas não era capaz de cruzar o seu olhar com o do frade. Na tenda mal iluminada, os olhos do homem eram sombras escuras, penetrantes, poços que pareciam ver a sua alma. Philip tinha sido criado como presbiteriano, mas nunca fora particularmente religioso. No entanto, conseguia sentir o poder daquela figura calma que se sentava à sua frente, e o seu alívio inicial alterara-se lentamente, assumindo uma leve trepidação na presença do outro. Sabia que não lhe podia mentir; o monge conheceria o seu verdadeiro coração.
Pousando o copo, Philip começou a sua história da traição de Gil e da subsequente sabotagem.
— ... e depois da explosão, o templo continuou a colapsar sobre si mesmo, levando os que ficaram encurralados a mergulhar cada vez mais fundo. Não havia nada que eu pudesse fazer para os ajudar.
Frei Otera acenou uma vez com a cabeça, como se oferecesse a sua bênção.
— Fica em paz, Philip. Fizeste tudo o que podias.
Philip foi buscar força àquelas palavras. Ele tinha feito tudo o que podia. Sentou-se mais direito enquanto continuava a relatar o modo como os índios estavam a tentar escavar um poço de resgate, e como Sam e os restantes tinham descoberto um túnel secreto por trás do ídolo de ouro. Deu por si a falar e a falar. Até descreveu a descoberta da chave da estátua de Sam.
— Uma faca de ouro que de algum modo se transforma.
Os olhos do frade abriram-se muito quando narrou esta última parte, levando Philip a abrandar a sua narrativa. O monge interrompeu-o:
— Uma faca de ouro e um túnel escondido na montanha? — A voz do homem tornara-se estranhamente sombria e profunda.
— Sim — disse Philip, hesitantemente.
O frade permaneceu em silêncio durante um instante, depois regressou ao seu comportamento normal.
— Graças ao Senhor pela sua salvação. Pelo menos os teus amigos encontraram um abrigo seguro. O Senhor abre sempre caminho para aqueles que têm bom coração.
— Conto ter o poço de salvamento terminado dentro de dois dias, mais ou menos. Mas os índios que enviei podem trazer mais ajuda...?
Frei Otera levantou-se subitamente.
— Não temas. O Senhor cuidará de todos os presentes. Aos seus olhos, somos todos o seu amado rebanho. Mal algum nos acontecerá.
Philip ergueu-se rapidamente da sua própria cadeira, desejando acompanhar o frade.
O homem acenou-lhe para que se sentasse.
— Descansa, Philip, bem mereces. Fizeste o trabalho do Senhor, protegendo os teus amigos.
Deixando-se afundar de novo na cadeira, Philip suspirou enquanto frei Otera curvava a cabeça e emergia da tenda.
— Obrigado — disse, enquanto o monge se afastava.
Sozinho na sua tenda, Philip fechou os olhos por um momento. Acreditava-se capaz de dormir. O fardo já não era seu, e o ónus das suas ações questionáveis tinha sido absolvido.
Philip fitou a aba fechada da sua tenda. Recordou o poder escaldante que sentira no homem.
Frei Otera devia ser um homem verdadeiramente religioso.
Bem afastado das tendas, no limite da floresta, frei Otera encontrou-se com um dos monges que o acompanhavam. Otera obrigou os dedos a parar de tremer. Poderia ser verdade? Depois de tanto tempo?
O monge vasculhou a mala que trazia ao ombro e passou a Otera o rádio. Afastando-se alguns passos sob a copa das árvores, Otera selecionou o canal adequado para informar o seu superior.
Começou a falar espanhol.
— Foi estabelecido contacto. Câmbio.
Uma curta explosão de estática, depois uma resposta rápida.
— E a tua avaliação?
— Favorável. O local parece dourado. Repito, dourado. — Frei Otera apresentou um resumo tenso do que ficara a saber pelo aluno de rosto macilento.
Mesmo através das ondas hertzianas, frei Otera apercebeu-se do espanto contido e das palavras sussurradas em espanhol:
— El Sangre del Diablo.
Frei Otera estremeceu perante a mera referência àquele nome.
— E as suas ordens?
— Torna-te amigo desse estudante. Ganha a sua confiança. Depois põe esses trabalhadores a mexer. Escava o túnel. — Uma longa pausa, depois a sua derradeira ordem. — Uma vez estabelecido contacto, limpa o local... minuciosamente.
Pela primeira vez naquele dia, frei Otera sorriu. Deslizou os dedos pelo punhal que guardava na bainha presa ao pulso. O estudante altivo que ali encontrara fazia-o recordar todos aqueles jovens que outrora haviam desdenhado a pobreza de Otera, o seu sangue mestiço. Seria um prazer ver aquele americano implorar pela vida. Mas, mais importante, se aquilo que desconfiava fosse verdade, estavam em causa vitórias ainda maiores. Tinha esperado durante tanto tempo, suportado tantas indignidades daqueles missionários espanhóis que se achavam seus superiores. Não, se ele estivesse certo, mostrar-lhes-ia a todos o seu erro, a sua cegueira. Não mais seria evitado nem olhariam para ele de esguelha. Otera levou o rádio aos lábios duros, desempenhando o papel do bom soldado.
— Confirmo contacto e a limpeza do local. Compreendo. Câmbio e desligo.
Otera voltou a emergir da floresta e devolveu o rádio ao monge que se mantinha de guarda.
— E...? — perguntou o tipo, enquanto guardava o rádio.
Frei Otera endireitou a cruz peitoral.
— Temos luz verde.
Os olhos do outro homem mostraram o seu choque.
— Então é verdade! — O homem fez o sinal da cruz. — Que o Senhor nos proteja.
Frei Otera avançou de novo em direção ao acampamento. As palavras do rádio ecoando ainda na sua mente.
El Sangre del Diablo.
O Sangue do Diabo.
Maggie agarrou na segunda lanterna, os dedos trémulos. Carregou no botão com o polegar e a luz inundou a gruta escura, ofuscando-a por um instante. Os rostos pálidos dos seus colegas e do jovem índio fitavam-na ao longo do trilho. Naquele minuto de escuridão, mais tarântulas batedoras tinham-se juntado ao longo do trilho dourado. Pelas laterais, aproximavam-se mais aranhas, os seus membros albinos como estrelas-do-mar de patas pálidas contra as rochas negras.
Sam ergueu o chapéu Stetson e olhou de relance para a gruta tóxica, repleta de morcegos.
— Eu... eu não sei. Este espaço vai ficar repleto de tarântulas dentro de alguns minutos, mas não podemos atravessar a outra caverna, mergulhados em guano até à cintura, sem morrermos devido aos vapores. Tem de haver outra maneira.
Maggie deixou o trilho inca, avançando em direção ao curso de água subterrâneo. Este borbulhava no seu canal estreito, lançando pelo ar uma fina neblina.
— Nadamos — disse, num tom determinado, apontando a lanterna para as águas velozes.
— Nadamos? — perguntou Norman, com a voz a estalar. — Estás louca? Aquela água é de degelo. Morreremos de hipotermia.
Maggie virou-se.
— A corrente é veloz, mas relativamente constante ao longo desta secção das grutas. Saltamos para o seu interior e deixamos que a água nos transporte rapidamente através da gruta dos morcegos e para longe das aranhas. — Acenou com a mão na direção da fina neblina sobre o rio. — Isto até pode ajudar a proteger-nos um pouco do pior dos vapores tóxicos.
Sam pôs-se ao lado dela e olhou-a de relance com olhos elogiosos.
— A Maggie tem razão. Pode funcionar. Mas temos de nos manter juntos. Depois de passarmos pelos morcegos, teremos de sair da água o mais depressa possível. Se a corrente não nos matar, o frio poderá fazê-lo.
Denal aproximou-se do limite da margem do rio escavada na pedra. As águas corriam cerca de um metro abaixo da beira.
— Eu ir primeiro — disse, olhando para trás. — Para ter a certeza de que ser seguro.
— Não, Denal — disse Maggie e tentou alcançá-lo.
Ele afastou-se mais.
— Eu ser forte nadador. Se eu chegar ao outro lado, gritar. — Olhou de relance para os outros rostos. — Depois poder vir todos. Se não gritar, não vir.
Sam avançou para o rapaz.
— Eu faço-o, Denal. Tenho a lâmpada de Wood para iluminar o caminho. — Sam tocou no bolso do colete, mas este estava claramente vazio.
Denal retirou a lanterna do seu próprio bolso. Acendeu a sua luz arroxeada.
— Eu não pedir. Eu ir. — Depois o rapaz virou-se e saltou da margem.
— Denal! — gritou Sam, correndo para o rio.
Maggie impediu Sam de saltar atrás dele. Seguiu o curso do rapaz na corrente. Ele oscilou nas águas, que o lançavam para trás e para a frente no canal estreito, mas conseguiu manter a lanterna erguida, o seu brilho arroxeado um feixe na gruta escura. Depois o rio transportou-o para lá de uma curva na parede e ao longo do túnel.
— Maldito rapaz, roubou-me a lanterna — murmurou Sam, com uma mescla de respeito e preocupação na voz.
— Ele vai conseguir — disse Maggie.
A espera depressa se tornou intolerável. Ninguém se atrevia a falar não fossem perder o grito de Denal. Norman estava ao lado de Maggie, fitando em silêncio o curso negro das águas. O fotógrafo magro arrumou lentamente o seu equipamento no estojo à prova de água, para o caso de decidirem enfrentar as águas.
Apenas Ralph se mantinha no trilho, de olho nas aranhas.
— Aí vem o corpo do exército — avisou.
Maggie virou-se. Era como a espuma branca de uma onda que se aproximava do limite do alcance da sua luz.
— Vá lá, Denal, não nos falhes.
Como se o rapaz a tivesse ouvido, um grito agudo ecoou de uma zona mais distante nas grutas. Denal tinha conseguido.
— Graças a Deus — suspirou Sam. — Vamos sair daqui.
Norman terminou rapidamente de arrumar as coisas com um esgar estampado no rosto. Ralph aproximou-se deles, os olhos ainda fixos nas tarântulas.
Sam tirou a Winchester do ombro e fez sinal a Ralph para que fizesse o mesmo com a sua espingarda.
— Tenta manter a arma acima da água. É provável que as espingardas sobrevivam a uma curta viagem, mas prefiro tentar mantê-las secas.
Ralph virou-se por fim e fitou as águas com uma expressão de agonia.
— Para o diabo com a espingarda, só espero conseguir manter a minha própria cabeça à tona da água. — Ergueu o rosto para os outros três. — Não sei nadar.
— O quê? — exclamou Sam. — Porque não nos disseste isso antes?
Ralph encolheu os ombros.
— Porque a Maggie tinha razão. O rio é a única saída daqui.
Norman colocou-se perto dele.
— Eu fico perto do Ralph. Quanto estive no exército passei pelo resgate aquático.
Ralph franziu o sobrolho, incrédulo.
— Estiveste no exército?
— Três anos em Fort Ord, até ter sido dispensado durante uma caça às bruxas na minha base. — O rosto de Norman assumiu uma expressão amarga. — E ainda dizem que ninguém pergunta e ninguém revela.
Maggie olhou de relance para o magro fotógrafo, o seu olhar carregado de dúvida deslizando por ele da cabeça aos pés. Por fim, olhou de relance para a corrente veloz do rio.
— E percebes de salvamentos aquáticos?
Norman franziu o sobrolho.
— Hei, Marés Vivas não é o retrato da vida real mais fidedigno. Não precisas de grandes músculos ou seios volumosos para perceber de segurança e resgate aquático. — Norman olhou de relance na direção das águas velozes. — Está bem, talvez os seios volumosos. Um par de flutuadores nunca fez mal a ninguém.
Ralph abanou a cabeça.
— Eu cá me arranjo sozinho.
O rosto do fotógrafo ensombrou-se. Vociferou a Ralph:
— O diabo é que arranjas, brutamontes desmiolado. Deixa-te de posturas másculas e aceita a minha ajuda. Não vou propriamente tentar apalpar-te. Nem sequer fazes o meu género! — Norman empurrou o estojo da câmara em direção a Ralph, a voz séria. — Tem um revestimento de espuma. É suposto flutuar caso se vire uma jangada. Mantém essa porcaria apertada contra o peito e eu trato do resto.
Ralph recusou-se a agarrar o estojo durante um longo momento. Depois os seus ombros relaxaram e ele agarrou o estojo com relutância.
— Então e isto? — Ergueu a espingarda de Gil.
Sam deitou-lhe a mão.
— Eu trato das duas.
Estava prestes a agarrar a arma, mas Maggie apoderou-se dela primeiro.
— Duas armas farão demasiado peso, Sam. A lanterna é à prova de água e não pesa quase nada.
Sam hesitou, depois acenou com a cabeça.
— Ao primeiro sinal de problemas, larga a espingarda. Precisamos da luz mais do que de uma segunda arma.
Ela acenou perante o conselho.
— Vamos. As aranhas não vão gostar de ver a refeição a fugir.
Sam fez sinal a Norman e Ralph para que fossem primeiro, para o caso de haver problemas. Sam e Maggie segui-los-iam.
Norman deslizou para um pequeno rebordo na rocha logo acima da linha da água, girando os braços para manter o equilíbrio.
— Agora — gritou a Ralph.
O jogador de futebol corpulento mordeu o lábio inferior, apertou o estojo da câmara contra o peito, e saltou antes que o medo da água o fizesse recuar.
Maggie manteve a luz fixa neles. Norman mergulhou com suavidade, a sua forma esguia regressando à superfície mesmo ao lado do homem de cor que se agitava.
— Deita-te de costas! — gritou Norman, enquanto a corrente arrastava os dois para longe. — Agarra o estojo contra o peito!
Ralph esbracejou um pouco mais, tossindo água e esperneando freneticamente.
— Não te debatas!
Ralph obedeceu, por fim, virando-se de costas.
Norman nadou ao seu lado, uma mão no colarinho da camisa de Ralph, mantendo a cabeça do homem à tona de água. Enquanto os dois se afastavam, Norman emitiu um último aviso.
— Agarra bem esse estojo — cuspiu. — Se perderes as minhas câmaras, deixo que te afogues.
— Agora somos nós — disse Sam, enfiando o Stetson na mochila. — Estás pronta?
Maggie inspirou fundo e assentiu com a cabeça.
— Vais ficar bem? — perguntou ele, endireitando-se e fixando os seus olhos nos dela.
Maggie sabia que Sam se referia aos seus ataques de pânico, mais do que à ameaça das águas.
— A ideia foi minha, não foi? Vou ficar bem.
— Nesse, caso, podes ir primeiro — disse ele.
Maggie abriu a boca para argumentar, mas sentiu algo tocar-lhe na perna. Olhando para baixo de relance, viu uma tarântula do tamanho de um punho a trepar-lhe pelas calças caqui. Arquejando de nojo, afastou-a de si com um golpe da lanterna. Já não sentia qualquer vontade de discutir. Ergueu a arma de canos serrados de Gil acima da cabeça e saltou, de forma nada graciosa, para dentro de água.
As costas e as nádegas bateram na água num forte chapinhar. O breve ardor do impacto foi imediatamente substituído pelo frio da água que lhe apertou os pulmões. A sua cabeça regressou à tona de água com um grito de choque silencioso. Todos os músculos do corpo ficaram tensos e Maggie teve de obrigar os seus membros a mover-se. O frio ardia através das roupas e congelava-lhe a respiração nos pulmões.
Sam chapinhava mesmo atrás dela.
Antes mesmo que se conseguisse virar ou falar, a corrente agarrou nela e começou a transportá-la, velozmente, ao longo do canal. Maggie deixou-se flutuar de costas, as pernas esticadas à sua frente para as poder usar para se afastar de algum obstáculo invisível. Manteve a lanterna acima da água e usou a coronha da espingarda como remo, para a ajudar a continuar a flutuar.
Mesmo no limite do alcance da lanterna, viu Norman e Ralph a desaparecerem pela garganta do rio subterrâneo.
Sam gritou-lhe.
— Como te estás a aguentar?
Maggie franziu o sobrolho. Aquela não era a melhor altura para conversas. Cuspiu a água fria que lhe enchera a boca depois de uma ondulação súbita a ter apanhado de surpresa. A água gélida congelou-lhe o enchimento dos dentes.
— Ótima! — cuspiu.
Depois a corrente arrastou-a para a goela do túnel. O teto voava sobre a cabeça dela, suficientemente baixo para que a ponta da espingarda raspasse na rocha por cima dela. A fricção entre aço e rocha produzia pequenas centelhas. O guincho produzido pelo atrito era fantasmagoricamente sonoro no espaço apertado.
De forma igualmente repentina emergiram do túnel e penetraram na gruta dos morcegos. Os olhos de Maggie ficaram de imediato a arder, tal como o nariz. Por cima da sua cabeça, os morcegos voavam em círculos e pairavam nos limites do feixe da lanterna, continuando incomodados e desconfiados com a presença daqueles intrusos de duas patas. Uma pequena brecha, num dos cantos do teto abobadado, deixava entrar a luz do Sol. A via de entrada dos morcegos. Demasiado alta e demasiado pequena para lhes servir de alguma coisa.
Mas Maggie não tinha tempo para apreciar as vistas. A corrente tornara-se ainda mais rápida enquanto atravessavam aquela câmara, o que representava em simultâneo uma bênção e uma maldição. Embora as águas velozes gerassem uma nuvem de neblina que lavava a maior parte dos vapores do guano, também geravam mais espuma e lançavam o seu corpo de um lado para o outro com maior vigor.
Os membros de Maggie iam ficando cada vez mais pesados, à medida que o frio tentava congelar os seus ossos até ao tutano. A respiração tornou-se mais difícil. Desistiu de tentar manter a espingarda acima das águas e usou-a como leme para a impedir de bater com demasiada violência nas rochas bicudas de ambos os lados. Concentrou-se em manter a lanterna apontada em frente.
Agora, quase cega devido aos vapores e com o nariz a arder, Maggie arquejou e engasgou-se. De súbito sentiu algo no braço erguido, que o fazia descer com o peso, que lhe arranhava a pele. Pestanejando, Maggie viu um morcego enorme empoleirado no seu braço, as garras minúsculas a arranhá-la, as asas de pele a agitar-se loucamente. As presas afiadas cintilavam à luz da lanterna. Maggie deixou escapar um arquejo estrangulado. Olhos abertos e orelhas enormes viraram-se na direção do som. Com um grito, enfiou o braço debaixo de água, fazendo figas para que o isolamento da lanterna fosse suficiente para aguentar um pequeno mergulho. Estava com sorte; a lanterna continuou a brilhar debaixo de água, e o choque da corrente fria desalojou o grande morcego.
Este rebolou através das águas, batendo-lhe no ombro ao passar.
Maggie ergueu a lanterna para fora de água, remando ferozmente.
Depois o morcego agarrou-se de novo a ela. Maggie sentiu um pequeno puxão no cabelo que se arrastava atrás de si na água. Como um peixe no anzol, o morcego agarrara a sua presa. Agora, contorcendo-se e rebolando, ia subindo pelas madeixas emaranhadas. Maggie sentiu as garras minúsculas no couro cabeludo. O morcego guinchou loucamente, quase no seu ouvido.
O pedido de ajuda da criatura foi respondido das alturas. A gruta irrompeu em guinchos e piados subsónicos, como unhas arrastadas por um quadro preto. Por cima da sua cabeça, o teto pareceu abater-se, quando toda a colónia levantou voo em massa, mergulhando na direção do morcego emaranhado no cabelo de Maggie.
Oh, meu Deus! Ela bateu na criatura alada com a lanterna, tentado afastá-la de si, mas tudo o que o que conseguiu foi enfurecê-la ainda mais. As unhas arranharam-lhe o rosto gelado, traçando uma linha de fogo.
De repente surgiu uma mão, que afastou a lanterna.
— Não te mexas!
Era Sam. Este agarrou no morcego que se contorcia e arrancou-o ao emaranhado de cabelo, arrancando centenas de raízes juntamente com a criatura vil. Lançou o morcego para longe e este bateu na margem mais distante com um som molhado.
— Lá vêm eles!
Maggie quase não teve tempo para ver a nuvem negra que descia sobre eles e ainda menos para inspirar antes de Sam lhe empurrar a cabeça para debaixo de água. Maggie teria entrado em pânico, não fosse pelo facto de Sam a ter abraçado contra si, o corpo perto do dela, o toque a única fonte de calor no curso de água gelada. Ela entregou-lhe o controlo, deixando-o transportá-la, enquanto sustinha a respiração.
Pouco depois, o canal tornou-se mais direito e a corrente tornou-se rápida e homogénea. Maggie arriscou abrir os olhos. A lanterna ainda brilhava debaixo de água, iluminando o rosto de Sam. O cabelo louro dele, normalmente colado ao couro cabeludo pelo Stetson, agitava-se como finas algas à frente do rosto. Os seus olhos fixaram-se nos dela. Maggie foi buscar as suas forças àquele olhar firme. Ele puxou-a ainda mais contra si. Ela não resistiu.
A corrente arrastou-os rapidamente para longe, agitando-os para trás e para a frente. Os pulmões de Maggie gritavam por ar. Incapaz de aguentar mais, contorceu-se ao de leve nos braços de Sam e avançou para a superfície. Não arriscaria mais do que uma rápida inspiração.
Quando a cabeça emergiu das águas, Maggie tomou o ar nos seus pulmões gelados. Estava prestes a mergulhar de novo quando se apercebeu de duas coisas: o ar estava limpo do ardor fedorento e mesmo à sua frente um ténue brilho arroxeado iluminava a margem esquerda.
Sam emergiu ao lado dela, com um jorro de ar expelido.
Maggie ergueu a lanterna e apontou.
— Ali!
Sam virou-se. Enquanto se aproximavam do local, Maggie viu Norman a ajudar Ralph a emergir das águas. O enorme jogador de futebol arrastava-se de gatas. No cimo da margem, via-se Denal de pé iluminado pela luz fantasmagórica da lâmpada de Wood. Os dentes brilhavam num roxo esbranquiçado, quando ele acenou com a lâmpada por cima da cabeça, fazendo-lhes sinal.
Juntos, Maggie e Sam deram aos pés em direção à margem. Mas não tiveram de se esforçar muito. O canal curvava num fundo refluxo natural junta à curva. A corrente lançou Maggie e Sam para a bolsa de águas lentas. Com os membros dormentes do frio e as roupas ensopadas, saírem da água exigiu um esforço considerável. Como Ralph, Maggie deu por si a arrastar-se para a margem e a deixar-se cair de costas.
Sam deitou-se na rocha ao lado dela, lançando a Winchester para uma zona mais alta da margem de pedra.
— E queríamos nós manter as armas secas.
Norman avançou para junto de Maggie. Os dentes batiam descontroladamente enquanto falava.
— T... têm de continuar em movimento. E... e de despir essas roupas molhadas. — Despiu a sua própria t-shirt encharcada.
Maggie apercebeu-se que Denal já se despira, tendo ficado apenas de cuecas, e Ralph tirava, com um lento espernear, as calças que se lhe tinham colado às pernas.
— Ainda não estamos fora de perigo — continuou Norman. — A água estava muito próxima do ponto de congelação. Morreremos a menos que nos consigamos secar e aquecer.
Maggie viu que os seus membros tinham começado a tremer. Sam olhou para ela de relance.
— É s... só o frio — disse, sabendo o que ele estava a pensar.
— Levantem-se os dois — ordenou Norman num tom firme.
Resmungando, Sam levantou-se, enquanto o fotógrafo oferecia o braço a Maggie. Demasiado exausta para se opor, tomou a mão de Norman e deixou que ele a ajudasse a levantar.
— Agora, despe-te — disse ele.
Os dedos de Maggie estavam dormentes e azuis sob a luz da lanterna. Lutou com os botões e despiu a blusa, demasiado gelada e exausta para se preocupar com a exposição do corpo. Raios, pensou, enquanto abria o fecho-éclair, neste momento, corar não era má ideia.
Em breve estava apenas com as cuecas e o soutien encharcados.
Os outros mantinham os rostos educadamente virados, com a exceção de Denal que a fitava descaradamente. Contudo, mal o rapaz se apercebeu de que tinha sido apanhado a olhar, virou rapidamente o rosto.
Maggie franziu o sobrolho para esconder o sorriso. Deu uma palmada nos boxers molhados de Sam, quando passou por ele.
— O Norman disse que tínhamos de continuar a andar. Temos de manter-nos quentes.
Maggie conseguia sentir os olhos de Sam nas suas costas enquanto se afastava. Atrás dela, o texano balbuciou:
— Oh, não te preocupes. Continua a andar à minha frente vestida assim e ficarei bem quentinho.
Desta vez não conseguiu esconder o sorriso.
— I... isto deve conduzir a algum lado — disse Sam, tentando controlar o bater dos dentes, ao mesmo tempo que apontava para um caminho dourado que prosseguia ao longo do rio.
Ninguém respondeu, atarefados que estavam a tremer e a esfregar os membros gelados. A água gélida baixara a temperatura corporal de todos eles, e sem forma de acender uma fogueira todos corriam o risco de hipotermia. Precisavam de encontrar um local seco e quente... e depressa.
Sam, que avançara e assumira a liderança, chamou-os de repente. Com a lanterna a apontar por cima de uma elevação no trilho, a forma seminua de Sam era impressionante, iluminada pela luz de fundo. Maggie nunca se tinha apercebido do físico que o colega escondia debaixo das roupas largas. Com ombros largos, cintura estreita e pernas fortes, a pose de Sam era magnífica.
— Venham ver isto! — exclamou Sam, um sorriso rasgado no rosto.
Maggie viu Norman agarrar o estojo da câmara, enquanto trepava para se juntar aos outros.
À frente dela, estendendo-se por uma gruta tão grande quanto um estádio de futebol universitário, estava uma pequena cidade escura. A luz de Sam era a única fonte de iluminação, mas o seu brilho ténue não era suficiente para iluminar toda a câmara. Casas de tijolo, algumas com três andares de altura, pontilhavam o chão, enquanto pelas paredes viam-se, nível após nível, casas de granito empilhadas, como um emaranhado de blocos de brincar. As janelas vazias fitavam-nos. Através da cidade, luminosos apontamentos de ouro e prata decoravam muitas das casas. Mas o que mais lhes chamou a atenção foi o que se erguia no centro da cidade. Do outro lado da câmara, uma estátua de ouro gigantesca elevava-se na direção do teto, erguendo-se sobre os outros edifícios. Era semelhante àquela que guardara a entrada da gruta, mas estava demasiado distante e escura para que fosse possível distinguir quaisquer pormenores.
— Meu Deus — disse Norman —, é uma enorme aldeia subterrânea.
Enquanto Maggie avançava para junto de Sam, apercebeu-se do odor almiscarado da câmara, e percebeu que a conclusão de Norman estava errada. Reconheceu o cheiro: putrefação poeirenta misturada com o cheiro a especiarias das ervas usadas na mumificação.
— Isto não é uma aldeia — corrigiu, dirigindo-se a Norman —, mas uma necrópole. Uma das cidades subterrâneas dos mortos incas.
Esfregando os braços e batendo os pés frios, Sam concordou.
— Um túmulo... mas nunca tinha ouvido falar de nenhum tão grande ou elaborado.
O flash de Norman explodiu quando o fotógrafo tirou uma série de fotografias rápidas. A luz emitida congelou a imagem da cidade com uma nitidez espantosa.
— Talvez nos possamos instalar numa daquelas casas e aquecer. Aproveitar o calor dos nossos corpos, como fazem os aleútes nos seus iglus.
Maggie voltou a aperceber-se da dor profunda nos seus membros frios.
— Vale a pena tentar. — Avançou em direção aos arrabaldes da cidade, seguindo o trilho de ouro que terminava no limite da povoação.
Sam seguia atrás dela.
— Talvez tenha uma ideia melhor. — Mas não se alongou mais, quando Maggie olhou por cima do ombro. Limitou-se a acenar, para que ela não parasse.
Maggie virou-se de novo para a frente, mas não sem antes reparar na coloração arroxeada dos lábios do texano. Atrás de Sam, os outros não se saíam melhor. Os membros de Ralph agitavam-se e tremiam, enquanto os seguia. O homem de grandes dimensões parecia ser o que estava em pior estado. Tinha engolido muita água gelada enquanto viajavam pelo curso de água e não parecia bem.
Apressando-se, Maggie levou o grupo rapidamente ao longo de uma série de caminhos dourados ziguezagueantes, até ao fundo da gruta. Alcançou o limite da cidade e o forte cheiro a putrefação, como um local de compostagem antigo, encheu-lhe as narinas. Fitou as ruas daquela cidade dos mortos. Os túmulos da necrópole tinham sido construídos como casas, para manter felizes os espíritos dos falecidos, recordando-lhes as suas antigas vidas, rodeando-os com o familiar. As portas exibiam lintéis esculpidos que retratavam diversas criaturas fantasiosas, tanto mitológicas como zoomórficas: uma mistura de homem e animal.
Tal como os pilares que tinham assinalado o caminho.
Maggie tocou num, um cruzamento entre uma pantera e uma mulher.
— Retratam os deuses de uca pacha, protetores dos mortos.
Do outro lado da avenida, Sam estudava um fresco de cores fortes na lateral de um edifício de dois andares. Apontou.
— E aqui estão vários mallaqui... espíritos do submundo.
Norman aproximou-se deles.
— Odeio interromper a lição de história da arte, mas o Ralph não está com muito bom aspeto.
Maggie olhou de relance para trás. Ralph estava apoiado numa das portas, a cabeça pendurada. Mesmo apoiado, o seu corpo enorme oscilava ligeiramente.
— Temos de encontrar abrigo. De o aquecer.
Sam virou-se para Denal.
— Os teus fósforos ainda estão secos?
O rapaz acenou com a cabeça. Retirou um maço envolto em plástico de entre as roupas húmidas que levava penduradas no braço. Era a caixa de cigarros extra do rapaz, envolta numa pequena caixa de fósforos. Passou os fósforos a Sam.
Maggie avançou para o lado de Sam.
— Uma fogueira? Mas com que acendalha?
Em resposta, Sam afastou-se e entrou numa das casas mais próximas. Do interior, chegavam os sons de algo a ser mudado de lugar e empurrado, e Maggie compreendeu, horrorizada, o que Sam estava a planear. Sam recuou através da porta, arrastando algo consigo. Com um gemido, virou-se, lançando o fardo para a rua. Os ossos partiram-se e bateram, e o pó ergueu-se numa nuvem. Era uma múmia envolta em linho.
— São boas acendalhas — limitou-se a dizer Sam.
— Ugh! — respondeu Norman, enojado e tapando a boca.
Tendo sustido a respiração, Sam avançou para a múmia e retirou do saco a caixa de fósforos de Denal. Acendeu um fósforo e, em breve, o invólucro de linho fumegava. Pequenas chamas cresceram enquanto os ossos velhos e a pele seca no interior alimentavam o fogo. Chamas laranja erguiam-se cada vez mais alto.
Maggie, embora chocada com a fonte da acendalha, não deixou de se aproximar do calor bem-vindo.
Sam, que se apoiava agora numa parede, abarcou a necrópole que os rodeava com um movimento do braço.
— Quanto mais não seja, não temos de nos preocupar com a possibilidade de ficarmos sem madeira.
Ralph sentou-se tão perto das chamas quanto possível. Ao fim de uma hora, o calor chegara-lhe, por fim, aos ossos frios. Ali sentado, tentou ignorar a fonte da combustão. Uma mão mumificada erguia-se das chamas, estremecendo ligeiramente devido ao calor. Afastou os olhos.
Do outro lado do fogo, Sam desmontara as duas espingardas, limpara-as cuidadosamente e secara-as junto ao fogo. Maggie estava semiadormecida com o calor próximo, envolvendo Denal com um braço. O rapaz quéchua fitava as chamas, os olhos muito abertos e vidrados. O dia fora complicado para todos. Norman estava de pé a uns passos de distância. Tinha tirado algumas fotografias, mas Ralph apercebeu-se de que o fotógrafo, por muito cansado que se sentisse, estava desejoso de avançar mais profundamente através da cidade subterrânea. Mas não sozinho. A escuridão ali, mesmo com a fogueira, era como uma presença física, um estranho sombrio junto aos seus ombros.
Norman pareceu aperceber-se de que Ralph o observava. Aproximou-se mais.
— Como te sentes? — perguntou Norman.
Ralph afastou o olhar.
— Melhor.
Norman instalou-se no chão de pedra ao lado dele.
Sem conseguir conter-se, Ralph afastou-se uns centímetros.
Norman apercebeu-se da subtil mudança de posição.
— Não te preocupes, grandalhão, não me estou a atirar a ti.
Ralph censurou-se internamente. Os velhos padrões eram difíceis de apagar.
— Desculpa... — disse ele baixinho. — Não queria dizer nada.
— Sim, pois. Não podes ser apanhado sentado ao lado do maricas.
— Não é isso.
— Então o que é?
Ralph deixou pender a cabeça.
— Está bem, talvez seja. Fui criado como um batista sulista muito conservador. O meu tio Gerald até foi pastor da igreja. É o tipo de pensamento que nos é inculcado.
— E qual é a novidade? Os meus pais eram mórmon. Não ficaram propriamente encantados por saber que eu era gay. — Norman fungou. — Nem o exército, já agora. Fui expulso das duas famílias.
Ralph não conseguia encarar Norman. Embora tivesse sofrido com os preconceitos durante a sua vida, Ralph pelo menos contava com o apoio da sua família.
Norman voltou a levantar-se, com a câmara na mão.
De súbito, Ralph estendeu o braço e agarrou a mão de Norman. O fotógrafo magro estremeceu.
— Obrigado. Pelo que fizeste no rio.
Norman afastou a mão, sentindo-se de súbito incaracteristicamente desconfortável.
— Sem problemas. Mas não me tentes beijar. Não sou esse tipo de miúda.
— Não foi o que ouvi dizer — disse Ralph.
Norman virou-lhe as costas.
— Oh, céus, Ralph, o cómico. Já começo a sentir saudades do desportista preconceituoso.
Ao início da noite, Henry sentia-se ainda mais deslocado. Arrastava-se agora atrás de Joan e Dale Kirkpatrick enquanto avançavam através dos corredores desertos da Johns Hopkins. Àquela hora tardia, eram os últimos no edifício. Depois da infindável bateria de testes no laboratório retiravam-se para o gabinete de Joana para planear as experiências do dia seguinte.
Enquanto avançavam, os dois investigadores continuavam mergulhados numa conversa sobre o material misterioso.
— Temos de completar a análise cristalográfica da Substância Z — disse o metalúrgico de longos membros num sussurro entusiasmado, utilizando o nome que inventara para aquele estranho elemento.
Henry pressentiu que o homem começara já a planear em que revistas de investigação iria publicar as suas descobertas.
— E gostaria de ver como é que o material reage na presença de outra radiação, em especial os raios gama.
Joan assentiu com a cabeça.
— Vou falar com o laboratório nuclear. Estou certa de que poderão fazer alguma coisa.
Enquanto Henry avançava atrás deles, ergueu o gobelé com o material e estudou a rude réplica da cruz dominicana. A amostra Z. Os outros dois cientistas estavam concentrados nas árvores em vez de verem a floresta. Ali estava o mistério maior. Os atributos químicos e moleculares do material, embora intrigantes, não eram nada quando comparados com o facto de o material se ter transformado sozinho.
Nenhum dos outros dois parecia atribuir grande peso a esse facto. O metalúrgico atribuíra a transformação à proximidade do material à cruz de ouro, teorizando que alguma transferência de energia ou eletrões tinha levado o material a assumir aquela nova forma. «Todo o metal emite uma assinatura energética única», explicara Dale. «Tendo em conta a enorme sensibilidade da amostra à diversa radiação, o material deve responder ao ouro, alterando a sua matriz cristalina de modo a adequar-se à assinatura. É espantoso!»
Henry discordara, mas mantivera-se em silêncio. Sabia que a resposta estava noutro lugar. Lembrava-se de que tinha estado a pensar no código no crucifixo quando a transformação ocorrera. Não fora a proximidade da cruz que alterara a Substância Z, mas a proximidade de Henry. Algo acontecera, mas Henry não estava pronto para dar voz às suas loucas especulações, pelo menos para já. Não era assim que agia quando não tinha mais informações. Uma das primeiras lições que ensinava aos seus alunos: avançar com conhecimento, não especulação. Para Henry, a única coisa certa em relação à Substância Z era que esta não devia ser encarada com leviandade. Mas os outros dois cientistas faziam orelhas moucas aos seus apelos de cautela.
Com a mão direita tocou no crucifixo dominicano que repousava no bolso do seu casaco desportivo. Frei Francisco de Almagro sabia algo, algo que queria revelar ao mundo exterior, o seu derradeiro testamento. Henry desconfiava que as respostas aos mistérios da Substância Z não seriam encontrados em laboratórios nucleares ou instalações de investigação, mas antes nos rudes riscos na parte de trás da cruz do frade. Contudo, antes que pudesse dar voz às suas próprias opiniões ou conduzir as suas experiências, planeava decifrar o código antigo. E Henry sabia exatamente onde começar. No dia seguinte iria consultar o arcebispo. Talvez alguns antigos registos referissem um código usado entre os monges dominicanos.
— Aqui estamos — anunciou Joan. Retirou as chaves do bolso e avançou para abrir a porta. Agarrando a maçaneta, a porta cedeu sobre o seu toque. — Estranho. Está destrancada. Talvez me tenha esquecido...
Começava a abrir a porta quando Henry a impediu de forma súbita.
— Não! — Henry agarrou a patologista pelo cotovelo. Lembrando-se de que Joan tinha trancado a porta, afastou-a da abertura, tropeçando no balde das limpezas que se encontrava atrás de si. Quase não conseguiu manter o equilíbrio.
— Henry! — gritou ela em choque.
Dale Kirkpatrick franziu o sobrolho, como se o arqueólogo tivesse enlouquecido.
— O que está a fazer?
Henry não tinha tempo para explicar. Os sinais de perigo reverberavam pelas suas costas.
— Fujam!
Mas já era tarde.
Por trás do ombro de Dale, uma figura escura emergiu da porta do gabinete de Joan.
— Não se mexam — ordenou friamente o intruso.
Sobressaltado, o doutor Kirkpatrick virou-se, o rosto privado de toda a cor. Afastou-se vários passos, recuando na direção oposta a Henry e Joan.
O homem avançou para o corredor. Envergava um fato cor de carvão sobre uma camisa e uma gravata pretas; a sua pele era cor de cobre com feições hispânicas, cabelo cor de ébano e olhos escuros. Mas o que mais chamou a atenção de Henry foi a grande pistola que tinha na mão direita, na qual fora colocado um comprido silenciador. Brandia-a para um lado e para o outro, cobrindo ambos os lados do corredor.
— Qual de vocês tem o crucifixo de ouro? Entreguem-mo e deixo-vos viver.
Dale apontou rapidamente para Henry.
O assaltante virou o cano na sua direção.
— Professor Conklin, não me obrigue a disparar.
Nesse instante, o metalúrgico ficou sem coragem. Com as costas do atirador viradas para si, Dale decidiu fugir. Os seus sapatos caros traíram-no, os saltos duros bateram ruidosamente no piso de linóleo. O atirador nem sequer se virou. Limitou-se a apontar a pistola para trás e a disparar; o som do tiro foi abafado pelo silenciador, mas o efeito não. A força da bala fez o doutor Kirkpatrick perder o equilíbrio. Caiu ao chão de cabeça, deslizando vários metros antes de parar, deixando um trilho de sangue pelos mosaicos brancos. Tentou erguer-se uma vez, depois voltou a cair, uma poça escura espalhando-se sob o seu corpo.
— Agora, professor Conklin — disse o ladrão, estendendo a mão livre. — A cruz, por favor.
Antes que Henry conseguisse responder, um segundo homem de fato escuro avançou emergindo do gabinete de Joan. Olhou de relance para o metalúrgico caído, depois para o atirador. Falou rapidamente em espanhol, mas Henry compreendeu-o.
— Carlos, destruí toda a papelada e os ficheiros.
O líder, Carlos, olhou de relance para o homem. Baixou ligeiramente a pistola.
— E o computador?
— O disco rígido foi limpo e purgado.
Carlos anuiu com a cabeça.
Henry aproveitou a distração momentânea do recém-chegado para retirar o crucifixo dominicano do bolso do casaco e enfiá-lo no balde de limpeza tombado. Apenas Joan se apercebeu. Os seus olhos estavam muito arregalados devido ao medo.
Erguendo a pistola, Carlos virou-se para Henry.
— Estou a perder a paciência, professor. A cruz, por favor.
Henry avançou, colocando-se entre o atirador e Joan. Estendeu o gobelé com a cruz tosca. Esperava que a forma e a cor pudessem enganar os ladrões. Recusava-se a perder a antiga relíquia.
Os olhos do homem semicerraram-se desconfiados. Tomou o gobelé e segurou-o à sua frente. Mesmo distraído, a pistola nunca se desviou da sua mira, diretamente para o coração de Henry.
O cúmplice do atirador posicionou-se junto ao ombro do homem.
— É...?
Carlos ignorou o homem, continuando a fitar a imitação do crucifixo original. Palavras sussurradas de uma oração espanhola fluíram dos seus lábios, uma bênção. A seguir, a cruz no gobelé alterou-se, derretendo-se perante o olhar do homem e assumindo a forma de uma pirâmide perfeitamente simétrica.
Henry ficou de boca aberta.
O segundo homem caiu de joelhos.
— Dios mio!
Carlos baixou o gobelé, com as mãos trémulas.
— Encontrámo-la! — Exultante, virou-se para os seus cativos.
Henry recuou para junto de Joan. Ela apertava-lhe a mão ferozmente. Henry pressentiu que tinha cometido um grave erro. Os ladrões não estavam à procura do crucifixo dominicano por este ser de ouro, mas por terem desconfiado que fosse feito da Substância Z. Henry entregara-lhes, inadvertidamente, o troféu que tinham procurado. Quem eram aquelas pessoas?
Carlos acenou com a cabeça na direção de Henry e Joan, mas as suas ordens bruscas dirigiam-se ao seu companheiro.
— Silencia-os.
O segundo homem ergueu-se, sacando da sua própria arma, muito maior e mais intimidante do que a arma do líder.
— Espere! — suplicou Henry.
Ignorando-o, o homem apontou a pistola a Henry e disparou. O peito de Henry explodiu com o fogo. Joan gritou. Henry caiu de joelhos, a mão deslizando da de Joan. Ergueu os olhos de relance a tempo de ver o homem virar a arma na direção de Joan.
— Não! — gemeu, erguendo futilmente uma mão.
Tarde demais. Um tiro abafado.
Joan apertou o seu próprio peito e caiu. Virou os olhos chocados para Henry, depois baixou-os. Henry seguiu o seu olhar. Os seus dedos tinham retirado de entre os seios uma farpa emplumada, depois caiu para trás.
Henry olhou de relance para o seu próprio peito. Também ele não tinha nenhum buraco de bala ensanguentado, apenas um ponto vermelho de agonia emplumada. Dardos tranquilizantes?
Palavras, em espanhol, flutuavam à sua volta enquanto a droga fazia efeito.
— Traz os homens até aqui.
— Então e o morto?
— Deixa-o no gabinete juntamente com o corpo do contínuo.
O rosto de Carlos surgiu, de súbito, perto do de Henry. Os seus olhos negros trémulos eram enormes. Henry sentiu-se perdido neles.
— Vamos dar um curto passeio, professor. Bons sonhos.
Henry tombou, mas não antes de se ter apercebido da pequena cruz de prata que pendia de uma corrente em redor do pescoço do homem. Já a vira antes. Tratava-se de uma réplica exata daquela que encontrara no frade mumificado.
Uma cruz dominicana!
Antes que conseguisse refletir sobre o seu mais recente mistério, as garras negras da droga levaram-no consigo.
DIA QUATRO – Necrópole
Necrópole
Quinta-feira, 23 de agosto, 7h45
Grutas
Cordilheira dos Andes, Peru
Sam acordou no chão de pedra da gruta, quando alguém lhe tocou no flanco com um pé. O que seria agora? Resmungando um protesto, rolou para longe do fogo e deu com Norman de pé, não muito longe, fitando a necrópole escura. O fotógrafo tinha ficado com o último turno. Embora entre eles e o exército das tarântulas estivesse a gruta dos morcegos, ninguém estava disposto a correr riscos.
— O que foi? — perguntou Sam ensonado, ao mesmo tempo que esfregava os olhos. Depois dos trabalhos do dia anterior e da viagem quase mortal pelo curso de água gelado, não havia nada que desejasse mais do que mais meio dia no calor das chamas crepitantes. O cheiro era, inclusivamente, bastante agradável, tendo em conta a fonte de combustível, quase como canela queimada. Do núcleo da fogueira, um crânio estorricado fitava-o por entre as chamas. Espreguiçando-se, Sam levantou-se. — Porque é que me acordaste?
Norman não parava de fitar os túmulos mergulhados na sombra dos mortos incas.
— Está a ficar mais claro aqui dentro — disse, por fim.
Sam franziu o sobrolho.
— Estás a falar de quê? Alguém atirou mais um tronco para o fogo? — Olhou de relance para as três múmias atadas, empilhadas nas proximidades, como se fossem lenha, à espera de avivar as chamas.
Norman virou-se; tinha na palma da mão um pequeno aparelho. Era o seu fotómetro.
— Não. Enquanto estava de vigia fui fazendo algumas leituras. Desde as cinco da manhã, o fotómetro tem estado a medir velas crescentes. — Os óculos de Norman refletiam a luz da fogueira. — Sabes o que isso quer dizer?
Sam estava demasiado cansado para pensar àquela hora, não sem beber pelo menos um cantil de café. Sentou-se.
— Fala de uma vez.
— Madrugada — disse Norman, como se isso tornasse tudo claro.
Sam limitou-se a olhar para ele.
Norman suspirou.
— Não és mesmo uma pessoa madrugadora, pois não, Sam?
Por aquela altura, os outros elementos do grupo começavam a despertar nas suas camas improvisadas.
— O que se passa? — perguntou Maggie, ao mesmo tempo que bocejava.
— Adivinhas — disse Sam.
Norman lançou a Sam um olhar amargo e aproximou-se mais, de modo a poder dirigir-se ao grupo como um todo, enquanto falava.
— O meu fotómetro tem estado a registar sinais cada vez mais fortes desde esta madrugada.
Maggie sentou-se mais direita.
— A sério? — Ela olhou de relance para lá da luz da fogueira, perscrutando a gruta escura.
— Esperei algumas horas para ter a certeza. Não queria dar falsas esperanças a ninguém.
Sam levantou-se. Envergava apenas as calças. O colete estava ainda a secar ao lado do fogo. Tinha-o usado como almofada.
— Não estás a sugerir...?
Maggie interrompeu-o, as suas palavras carregadas de entusiasmo.
— Talvez o Norman tenha razão. Se as leituras forem mais fortes à medida que a manhã avança, a luz do Sol deve estar a chegar cá abaixo vinda de algum lado. — Bateu no ombro de Norman e abanou-o alegremente. — Meu Deus, deve haver uma saída por perto!
As palavras embrenharam-se na consciência de Sam. Uma saída! Sam avançou para junto dos dois.
— Tens a certeza de que não estás apenas a medir a oscilação na intensidade das chamas da lareira?
Norman franziu o sobrolho enquanto Ralph e Denal contornavam a fogueira para se juntarem ao grupo.
— Não, Sam. — Norman ergueu o aparelho. — Está, sem dúvida, a captar a luz do Sol.
Sam acenou com a cabeça, satisfeito com os conhecimentos do fotógrafo. Norman não era tolo nenhum. Sam semicerrou os olhos na gruta escura. A luz das chamas lançava as suas sombras para as paredes e refletia-se na estátua de ouro gigantesca no centro da cidade. Sam rezou que Norman estivesse correto nas suas conclusões.
— Então, vamos descobrir de onde vem a luz. Podes usar o fotómetro para localizar a origem?
— Talvez — disse Norman. — Se o mantiver protegido da luz e aumentar o F-stop... — Encolheu os ombros.
Ralph avançou com uma sugestão. Parecia ter regressado à sua habitual personalidade desde a provação do dia anterior, se bem que talvez um pouco mais submisso.
— Talvez o Norm e eu possamos contornar o acampamento e procurar o local onde a leitura da luz é mais forte. Isso deve dar-nos uma direção inicial.
Sam tocou no fotógrafo, quando este não respondeu de imediato.
— Norman?
O homem magro olhou de relance para a parede de escuridão no limite do círculo de luz gerado pela fogueira. Não parecia gostar muito da ideia de Ralph, mas acabou por admitir com relutância:
— É possível que resulte.
— Ótimo. — Sam esfregou as mãos e elaborou um plano. — Enquanto fazem o reconhecimento, vamos acabar de desmontar o acampamento. Levem a lanterna. Podem acendê-la e apagá-la à medida que vão fazendo as leituras. Mas tenham cuidado, as pilhas desta também se estão a gastar.
Ralph pegou na lanterna e testou-a, acendendo-a com o polegar.
— Teremos cuidado.
Norman olhou de relance para o fogo, depois para a escuridão.
— Se vamos fazer isto, é melhor apressarmo-nos. Não se sabe quando é que poderemos perder a luz do Sol. Até a passagem das nuvens pode bloquear as velas que se estendem até nós. — Ao contrário do que diziam as suas próprias palavras, Norman ainda hesitava, o rosto tenso.
Sam apercebeu-se da tensão do fotógrafo.
— O que se passa?
Norman abanou a cabeça.
— Nada. Vi demasiados filmes de terror foleiros.
— E depois?
— Dividir o grupo. Nos filmes de terror é quando o assassino começa a matar os alunos.
Sam deu uma gargalhada, pensando que o fotógrafo estava a fazer uma piada, mas Norman não sorria. O riso de Sam desvaneceu-se.
— Não estás mesmo a pensar...
De súbito algo enorme caiu sobre a fogueira. Pedaços flamejantes de linho e osso foram projetados, ardendo-lhes na pele nua e matraqueando pelo chão de pedra. Fumo ergueu-se e a escuridão ameaçou consumir o grupo, enquanto a fogueira era dispersa. Felizmente, um grande pedaço flamejante caiu sobre as múmias empilhadas nas proximidades e incendiou-as, devolvendo-lhes a luz. As sombras das várias piras dançaram nas paredes dos túmulos.
Sam girou, puxando Maggie para trás de si. Entre as ruínas do fogo original encontrava-se um grande bloco quadrado, claramente um tijolo de granito talhado pertencente a uma das estruturas. Ergueu os olhos de relance. Não havia qualquer cornija sobre eles de onde pudesse ter caído o bloco enorme.
Ralph deu voz aos pensamentos de Sam.
— Isto não foi um acidente. — O jogador de futebol americano do Alabama acendeu a lanterna e usou o seu feixe de luz para penetrar a escuridão, para lá do alcance das chamas.
— Vão buscar as armas — disse Sam. — Já.
Ralph assentiu com a cabeça, lançando a luz a Norman, depois agarrou na espingarda apoiada na parede de pedra. Sam curvou-se e recuperou a sua própria Winchester do lado da cama improvisada, onde a deixara depois de limpa e seca do mergulho no rio. Maggie manteve-se perto dele, Denal logo ao lado.
Com exceção do estalar e crepitar ocasional do fogo enquanto os ossos secos explodiam devido ao calor, não se conseguia ouvir mais nada. Contudo, à volta deles, Sam conseguia sentir movimento. As sombras dançavam nas luzes da fogueira, mas algumas das zonas de maior escuridão pareciam esquivar-se e deslizar. Estava ali alguma coisa e aproximava-se.
— Os fantasmas vieram buscar-nos — balbuciou Denal.
Maggie envolveu os ombros do rapaz com um braço. Reconfortava o rapaz, mas não discutia as suas palavras. A extensão da necrópole, iluminada pelas chamas e carregada de sombras volúveis, parecia tornar possíveis até os seus piores pesadelos.
Mas o que se movia pela necrópole era muito pior.
A lanterna de Norman encontrou um dos esquivos intrusos com o seu feixe. Este imobilizou-se por um instante, como um veado ofuscado pelos faróis de um carro, mas aquilo não era nenhum veado. Pálido como as tarântulas albinas, erguia-se sobre duas pernas, nu, encurvado, apoiando-se num braço comprido e fortemente musculado. Inicialmente, Sam pensou que seria um macaco, mas a criatura não tinha pelo, era completamente careca.
Silvou à luz — a eles —, os enormes olhos negros semicerraram-se em fendas furiosas, os dentes eram pontiagudos e afiados. Depois correu para longe da luz, desaparecendo na escuridão, movendo-se mais depressa do que Sam teria acreditado possível.
Tinha aparecido e desaparecido tão depressa que nenhum dos elementos do grupo teve tempo para comentar. Sam nem sequer se lembrara de erguer a espingarda; tal como Ralph. O feixe de luz de Norman estremeceu, enquanto o braço do fotógrafo tremia.
— Mas que raio era aquilo? — conseguiu Maggie sussurrar, por fim.
Sam encostou a Winchester ao ombro. Agora era possível ouvir ténues ecos a toda a volta: o raspar da pedra, silvos abafados, tosses guturais, até um uivo penetrante, claramente um desafio a ser emitido. Parecia que dezenas de criaturas os tinham encurralado, rodeado, mas a acústica das grutas era enganadora. Ralph fixou o seu olhar no de Sam, o medo cintilando fortemente nos olhos do homem corpulento.
— O que são? — repetiu Maggie.
— Mallaqui — respondeu Denal. Espíritos do submundo.
— E queriam que eu e o Ralph andássemos por aí sozinhos — disse Norman, a sua voz aguda, a lanterna a tremer. — Vamos aceitar as lições dos filmes de terror. A partir daqui, mantemo-nos juntos.
Ninguém se opôs. Na verdade, ninguém proferiu uma palavra.
Todos os olhares se fixaram no coração escuro da necrópole.
Henry acordou e desejou não o ter feito. A cabeça doía-lhe e latejava como se alguém tivesse estado as usar as fontes para um solo de bateria. A boca estava repleta de um ácido amargo, tão pegajoso como cola. Gemeu, porque isso era tudo aquilo que conseguia fazer de momento. Inspirando fundo várias vezes, concentrou-se em tentar compreender onde se encontrava. A única luz provinha de uma janela estreita posicionada bastante alto na parede traseira da sala minúscula.
Recordações do ataque nos corredores da Johns Hopkins regressaram. Uma das mãos subiu-lhe pelo peito, tocando no ponto sensível no seu centro. A farpa emplumada tinha desaparecido. Lentamente, ergueu o tronco e descobriu que estava deitado numa cama, fracamente almofadada por um colchão gasto. Envergava ainda as mesmas roupas: umas calças Levi’s e uma camisa cinzenta, apenas o casaco desportivo da Ralph Lauren tinha desaparecido. Lançando para o lado o fino cobertor de lã, Henry levantou-se.
O quarto era espartano. Ao lado da cama, as únicas peças de mobiliário eram uma secretária de aspeto desagradável encostada a um canto e um banco de orações colocado perante um simples crucifixo de madeira. Henry fitou a cruz, a sua profunda coloração vermelho-cereja realçada pelo gesso caiado da parede. Mentalmente, voltou a recordar a cruz dominicana de prata que pendia do pescoço do seu atacante. Que raio se estava a passar?
Rodou os pés para o chão, o que fez zumbir os seus ouvidos e lhe toldou a visão por uma fração de segundo. Inspirou fundo, mas não antes de se ter apercebido de um forte cheiro familiar proveniente do cobertor esfarrapado que cobria a cama. Tocou na lã áspera ligeiramente gordurosa. Levou a mão ao nariz e cheirou. Lama. A lã dos lamas era utilizada nos têxteis de mais fraca qualidade produzidos nos países da América do Sul, usada apenas pelos camponeses. Raramente era exportada.
Lentamente compreendeu. América do Sul?
Henry levantou-se rapidamente, oscilando por um momento nas pernas fracas, depois recuperou rapidamente as forças.
— Não, não pode ser!
Avançou para a única porta, pequena mas sólida. Testou o ferrolho. Trancado, claro. Deslocando-se para o centro do quarto, fitou a janela alta. Os pássaros assobiavam numa árvore próxima e uma brisa quente agitava as partículas de pó num raio de luz. Demasiada luminosidade. Henry calculou que aquele não fosse o mesmo dia em que tinha sido atingido pelo dardo tranquilizantes. Quanto tempo teria permanecido inconsciente? A fraca brisa transportava o cheiro do óleo de fritar, e ao longe erguiam-se os sons vagos de um mercado, as vozes estridentes vendendo as vitualhas em espanhol.
Henry sentiu o coração afundar-se ao compreender a realidade. Tinha sido raptado, levado para fora do país. Um outro rosto surgiu na sua mente: o cabelo liso da cor da noite, os olhos brilhantes, os lábios cheios. A respiração ficou-lhe presa na garganta enquanto se recordava de Joan a arrancar o dardo emplumado de entre os seios e a cair ao chão. Onde estaria ela?
Mais preocupado com Joan do que consigo mesmo, Henry avançou para a porta e bateu nesta com o punho, fazendo agitar as tábuas da sua estrutura. Antes que conseguisse, de facto, chamar alguém, uma pequena vigia foi aberta perto do topo da porta. Olhos escuros fitaram-no.
— Quero saber o que...!
A abertura fechou-se. Palavras abafadas, demasiado baixas para ouvir com clareza, foram trocadas ao longo do corredor. Alguém partiu rapidamente. Henry voltou a bater com o punho.
— Deixem-me sair daqui!
Não estava verdadeiramente à espera de uma resposta; libertava apenas a frustração. Por isso, ficou chocado quando alguém respondeu ao seu chamamento. Uma voz gritou-lhe de outro ponto no corredor.
— Henry? És tu?
O alívio inundou-lhe o peito, acalmando o seu sangue quente.
— Joan!
— Estás bem? — gritou ela.
— Ótimo. E tu?
— Dorida, enjoada e diabolicamente furiosa.
Henry apercebeu-se também do medo na sua voz. Não sabia o que dizer. Pedir-lhe desculpas por a ter envolvido naqueles problemas? Oferecer falsas promessas de salvamento? Tossiu para aclarar a garganta e respondeu.
— Desculpa... não foi lá grande segundo encontro, pois não? — disse.
Uma longa pausa... depois uma gargalhada suave.
— Já tive piores!
Henry encostou as palmas das duas mãos contra a porta. Ansiava por envolvê-la com os seus braços.
No exterior da cela, o som de alguém que se aproximava ecoou subitamente pelo corredor. Joan terá ouvido; ficou em silêncio. Henry susteve a respiração. Então, e agora? Uma voz, firme e seca, vociferava do outro lado da porta. Henry reconheceu a cadência de uma ordem.
O raspar do ferrolho a deslizar fez-se ouvir, depois a porta da cela foi aberta. Henry não sabia o que esperar, mas ficou em choque quando descobriu dois monges envergando os seus hábitos do lado de fora da cela. Os capuzes estavam descidos e crucifixos proeminentes pendiam de correntes de contas em redor do pescoço.
Henry recuou quando o seu olhar se fixou no rosto familiar do monge mais alto. Era o atirador da Johns Hopkins, aquele a quem chamavam Carlos. Uma vez mais, o homem segurava uma pistola, mas desta vez sem silenciador.
— Coopere, professor Conklin, e tudo irá correr bem.
— On... onde estou? O que querem de nós?
Carlos ignorou-o, fazendo antes sinal ao seu companheiro. O guarda avançou para uma outra porta mais abaixo no corredor e abriu o ferrolho. Abrindo a porta, vociferou em espanhol e retirou uma arma de uma abertura junto à cinta da túnica. Acenou com o cano, indicando ao ocupante que devia abandonar o quarto.
Joan emergiu cautelosamente, os seus olhos encontrando imediatamente os de Henry. Ele viu o claro alívio no seu olhar. As lágrimas cintilavam. Ela limpou bruscamente o rosto e não necessitou de mais insistência por parte do guarda para se juntar a Henry e a Carlos. Os seus olhos saltaram por um momento para a pistola na mão do monge mais alto, depois regressaram a Henry.
— O que fazemos aqui? — sussurrou. — O que querem eles?
Antes que Henry conseguisse responder, Carlos falou:
— Venham. As vossas dúvidas serão esclarecidas. — Girando sobre os calcanhares, o monge alto conduziu-os ao longo do corredor. O outro monge, de arma em riste, seguiu-os.
Joan deslizou a sua mão para a de Henry. Ele apertou-a, tentando transmitir-lhe o maior conforto possível. Se aqueles homens os quisessem mortos, não os teriam drogado e arrastado até ali. Mas onde seria ali? E o que quereriam eles? Só havia uma forma de descobrir.
Henry seguiu Carlos. Estudou o modo como a túnica do atirador fluía, as sandálias que tocavam silenciosamente nas lajes do chão. Porquê aqueles malditos disfarces?
Enquanto avançavam ao longo de um labirinto de corredores e subiam dois lanços de escadas, Joan permaneceu em silêncio ao seu lado. O seu passo era rígido. Passaram apenas por mais um monge no corredor, uma figura encolhida, de cabeça baixa. Este afastou-se para deixar passar a procissão, sem erguer o rosto. Ao passar, Henry ouviu uma oração balbuciada nos lábios do homem. Nunca ergueu os olhos.
Henry olhou de relance para trás; o monge continuara a percorrer o corredor, sem se aperceber ou sem querer saber das armas e dos prisioneiros.
— Estranho — balbuciou.
Por fim, Carlos parou perante um conjunto de grandes portas duplas, polidas e enceradas até brilhar. Mogno africano, calculou Henry, e dispendioso. Esculpido em relevo nas portas estava uma cordilheira montanhosa com aldeias que pontilhavam as encostas. Henry conhecia a vista. Já a vira muitas vezes ao visitar o Peru. Tratava-se de uma região conhecida nas montanhas dos Andes.
Henry franziu o sobrolho à porta enquanto Carlos batia.
Uma voz profunda respondeu:
— Entrada!
Carlos abriu as portas que se moveram nas dobradiças oleadas e revelaram uma divisão tão elegante quanto as portas de mogno. Um altar de orações ornamentado, adornado a prata e folha de ouro, erguia-se a um canto, enquanto, por baixo, um tapete de alpaca elaboradamente tecido almofadava os passos de Henry ao entrar. De ambos os lados, prateleiras repletas de volumes poeirentos enchiam as paredes do chão ao teto. No centro da divisão, repousava uma secretária gigantesca, em cuja ponta estava instalado um computador incongruente.
Atrás da imensa secretária, um homem de grandes dimensões, idoso mas ainda robusto, ergueu-se com um gemido da cadeira. O seu tamanho levava a que até a secretária parecesse pequena.
Mas Henry ignorou o homem e a divisão, os seus olhos atraídos para as amplas janelas mais além. No exterior erguia-se o campanário de uma igreja colonial imponente, que se erguia sobre a cidade que o rodeava. Henry fitou a paisagem de boca aberta, em choque. Reconheceu instantaneamente aquela estrutura e soube com toda a certeza onde estava: Cusco, no Peru. Para lá das janelas erguia-se a igreja espanhola de Santo Domingo, uma igreja dominicana construída sobre as ruínas de um Templo do Sol inca.
Henry olhou de relance para a divisão onde se encontrava. De súbito apercebeu-se de onde tinham estado presos. Os monges, a vista, até a figura que se erguia agora por detrás da secretária, sorrindo as suas boas-vindas...
Oh, meu Deus.
Henry avançou, os seus olhos repousando sobre o grande homem, o seu captor. As suas feições eram claramente espanholas, quase aristocráticas. Henry recordou a sua conversa com o arcebispo, em Baltimore. O bispo tinha prometido passar as perguntas do arqueólogo ao colega dominicano no Peru. Henry lembrou-se do nome referido pelo arcebispo.
— Abade Ruiz? — disse em voz alta.
O homem enorme curvou a cabeça em saudação.
— Professor Conklin, bem-vindo à abadia de Santo Domingo. — Pareceu imperturbado pelo facto de Henry o ter reconhecido. A circunferência do abade Ruiz equivalia à sua altura. O peito e a barriga enchiam a sotaina e a túnica negra. As suas grandes dimensões não pareciam suaves, era mais como um homem que fora, outrora, composto por músculo sólido, mas cuja forma se tornara mais avantajada com a idade.
Henry fitou o seu adversário. Sempre se considerara um bom avaliador de caráter, mas o abade baralhava-o. Os seus modos eram abertos e amigáveis. Com o seu cabelo grisalho, parecia um avô simpático. Mas Henry sabia, tendo em conta as circunstâncias, que um tal juízo não podia estar mais distante da verdade.
Joan mudou de posição ao lado de Henry.
— Conheces este homem?
Henry abanou a cabeça.
— Não exatamente.
O abade Ruiz fez sinal para que ocupassem um par de cadeiras de estofo exagerado.
— Professor Conklin e doutora Engel, por favor sintam-se à-vontade.
Henry aproximou-se mais da secretária.
— Prefiro ficar de pé até obter algumas respostas.
— Como queira — disse ele, mostrando uma expressão ferida. O abade regressou ao seu próprio assento, afundando-se nele com um suspiro.
Joan juntou-se a Henry junto à secretária.
— O que quer exatamente connosco, que diabo?
O abade franziu o sobrolho, a falsa cordialidade desaparecendo do seu rosto.
— Este é um lugar sagrado de Nosso Senhor. Refreie as suas blasfémias aqui.
— Blasfémias? — disse Henry em tom furioso. — Ali o seu monge matou um colega nosso, depois drogou-nos e raptou-nos. Quantos mandamentos, já para não falar em leis internacionais, é que ele violou?
— As regras seculares não nos interessam. Frei Carlos é um guerreiro do exército do Senhor e está acima de quaisquer regras internacionais. Quanto à alma de frei Carlos, não temam. Ele foi absolvido na Santa Confissão, os seus pecados foram perdoados.
Henry franziu o sobrolho. Eram todos loucos.
Joan falou.
— Muito bem... a alma de todos foi limpa, engomada, passada a ferro e dobrada. Agora, por que raio é que nos raptou?
O rosto do abade permaneceu tenso, furioso, a personagem de avô simpático desaparecida há muito.
— Por duas razões. Primeiro, queremos saber mais sobre aquilo que o professor Conklin descobriu naquelas ruínas dos Andes. E segundo, o que ambos ficaram a saber, nos Estados Unidos, graças à múmia.
— Não iremos cooperar — disse Henry em tom firme.
Ruiz tocou com um dedo no grande anel de sinete da mão direita, rodando-o repetidamente no dedo.
— Isso veremos — disse ele friamente. — A nossa ordem tornou-se hábil, com o passar dos séculos, em soltar as línguas.
O sangue de Henry gelou perante as palavras do homem.
— Quem são vocês?
Ruiz estalou a língua.
— Aqui quem faz as perguntas sou eu, professor Conklin. — O abade levou a mão a uma gaveta da secretária e abriu-a. Ergueu um objeto familiar do seu interior e pousou-o sobre a secretária. Era o gobelé do laboratório que continha a Substância Z. O material dourado permanecia sob a forma da pequena pirâmide. — Onde é que encontraram isto, exatamente?
Henry recordou a explosão da cabeça da múmia. Sentiu que era melhor não mentir, não enquanto não percebesse o quanto eles sabiam. Ainda assim, recusava-se a oferecer toda a verdade.
— Encontrámo-la... na posse de frei de Almagro.
Joan fitou-o com um olhar penetrante.
Os olhos do frade arregalaram-se.
— Nesse caso, o nosso velho colega alcançou o sucesso na sua missão. Ele tinha descoberto a fonte de el Sangre del Diablo.
O sobrolho de Henry franziu-se enquanto traduzia as palavras do abade.
— O sangue do Diabo?
Ruiz avaliou Henry em silêncio durante uns instantes, depois uniu os dedos à sua frente e falou lentamente.
— Sinto que sabe mais do que aquilo que dá a entender, professor Conklin. E embora tenhamos refinado as nossas ferramentas com o passar dos séculos, acredito que a pura honestidade possa conquistar a sua cooperação com maior facilidade e plenitude. Afinal de contas, é um homem de ciência e história... e a curiosidade poderá ganhar onde as ameaças falham. Está disposto a ouvir-me?
— Como se eu tivesse escolha...
O abade Ruiz levantou-se uma vez mais. Pegou no gobelé e fê-lo desaparecer por entre as pregas das suas vestes.
— Todos os homens têm livre-arbítrio, professor Conklin. É o que nos condena ou nos salva. — O abade contornou a secretária e acenou para que o monge de seu nome Carlos os guiasse. — O Sanctum — ordenou.
Henry apercebeu-se da expressão de choque do frade, que depois assentiu rapidamente e rodou sobre um calcanhar. Carlos abriu a porta do gabinete e conduziu-os ao exterior.
Sempre o bom soldado do Senhor, pensou Henry.
— Para onde nos leva agora? — perguntou Joan, mantendo-se ao lado de Henry.
Ruiz marchou ao lado deles enquanto voltavam a entrar no corredor.
— Vou revelar a verdade na esperança de que se mostrem igualmente abertos.
— A verdade sobre el Sangre del Diablo? — perguntou Henry, tentando obter mais informações. — Como sabe sobre isso?
O abade suspirou ruidosamente, parecendo pesar se deveria ou não responder. Por fim, falou.
— O metal foi descoberto pelos conquistadores espanhóis, aqui em Cusco. — O abade acenou com uma mão. — Foi encontrado no Templo do Sol sagrado dos incas.
— As ruínas por baixo da igreja de Santo Domingo? — perguntou Henry. O templo tinha sido descrito inicialmente pelo historiador Pedro de Cieza de Leon como um dos mais ricos em ouro e prata alguma vez descobertos no mundo. Mesmo as paredes do templo inca estavam cobertas por mosaicos de ouro com dois centímetros e meio de espessura, até os espanhóis o terem pilhado e arrasado, destruindo a estrutura até à base para erigir sobre ela a igreja do seu Deus.
— Exatamente — disse Ruiz com um suspiro. — O templo terá sido uma visão espantosa antes de ter sido pilhado. Uma pena, na verdade.
— E o Sangue do Diabo? — insistiu Joan. — Porquê esse nome?
O grupo chegou junto de uma longa escada em caracol que descia até ao coração da abadia. O abade avançou lentamente pelos degraus, a sua grande estrutura prejudicando o seu avançar. A sua respiração silvava ligeiramente enquanto falava.
— Os incas tinham nomes coloridos para a prata e o ouro: as lágrimas da Lua, o suor do Sol. Quando os conquistadores espanhóis tomaram conhecimento deste outro metal e testemunharam as suas propriedades sobrenaturais, declararam que o material era blasfemo, atribuindo-lhe o nome igualmente colorido el Sangre del Diablo. Sangue de Satanás.
Henry sentiu-se atraído por aquela história. Aquele era o seu campo de especialidade, mas nunca tinha ouvido tal história.
— Porque é que não existem registos desta descoberta?
O abade encolheu os ombros.
— Porque a Igreja foi chamada e concordou com os Conquistadores. O metal foi estudado, as suas propriedades incomuns registadas, e foi declarado pelo papa Paulo III, em 1542, uma abominação aos olhos de Nosso Senhor. Obra de Satanás. Os dominicanos que tinham acompanhado os espanhóis confiscaram todas as amostras e devolveram-nas a Roma, para serem purificadas. Todos os registos da descoberta do metal foram destruídos. Falar ou escrever sobre ele foi considerado o equivalente a comunicar com o Diabo. — O abade olhou de relance para as paredes enquanto seguiam frei Carlos. — Vários historiadores foram mortos na fogueira ao resistir ao decreto do papa, aqui, neste mesmo edifício. Cabia à nossa ordem o fardo de preservar o segredo.
— A vossa ordem... está constantemente a dizer isso, como se fossem independentes da Igreja Católica.
Ruiz franziu o sobrolho.
— Somos, sem sombra de dúvida, parte da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. — O abade afastou o olhar, demonstrando quase um sentimento de culpa. — Infelizmente, a maior parte de Roma esqueceu-nos. Com exceção de alguns homens no Vaticano, já ninguém conhece a verdadeira missão desta ordem.
— Que é...? — perguntou Henry.
Ruiz abanou a cabeça, ignorando a pergunta.
— Venha e verá.
Tinham chegado ao fundo da longa escadaria. Henry estimava que tivessem descido pelo menos uns quinze metros no subsolo. Uma corrente de lâmpadas despidas iluminava o caminho à sua frente. Henry olhou de relance para as paredes e sobressaltou-se ao ver o trabalho característico dos incas: gigantescos blocos de granito empilhados e unidos com imensa precisão.
O abade deve ter-se apercebido de que Henry deslizava a mão pela parede.
— Estamos agora por baixo da abadia. Como a igreja de Santo Domingo, também a abadia repousa sobre antigas fundações incas. Estas passagens fundem-se e ligam-se ao Templo do Sol.
— Vamos até lá? — perguntou Joan. — Até esse templo?
— Não... vamos a um local ainda mais espantoso.
Com Carlos ainda a liderá-los, o grupo percorreu o labirinto de passagens. Henry apercebeu-se da presença ocasional de pontes pedonais de madeira sobre secções abertas do chão de pedra. Inicialmente, atribuiu-as a zonas onde o antigo trabalho em pedra inca tivesse sucumbido a tremores de terra ou se tivesse simplesmente gasto. Depois, ao atravessar uma outra dessas pontes, apercebeu-se de que eram demasiado regulares e os fossos demasiado quadrados. De repente, desconfiou que saberia o destino do grupo.
— É o lugar do fosso! — disse Henry de rompante, fitando o acumular de corredores com as suas muitas voltas e reviravoltas.
— Então, já ouviu falar deste local? — disse Ruiz com um sorriso.
— O lugar do fosso? — perguntou Joan.
— Um labirinto subterrâneo. Um buraco infernal para onde os governantes incas lançavam os seus inimigos mais odiados. Estava repleto de fossos armadilhados revestidos por pedras afiadas. Também lançaram para o interior escorpiões, aranhas, cobras, até pumas feridos, para atormentar os prisioneiros.
Joan estudou as paredes à sua volta.
— Que terrível...
— Trata-se de uma das mais infames câmaras de tortura inca. Os conquistadores espanhóis escreveram abundantemente sobre ela. Estava, supostamente, localizada aqui em Cusco, mas acreditava-se ter sido há muito destruída. — Henry virou-se para o abade. — Aparentemente, não foi.
Carlos parou numa curva do corredor. Deteve-se junto a uma secção despida da parede de pedra, quase em sentido. Tendo em conta o semicerrar de olhos furioso, claramente o frade não concordava com a decisão do abade em levar até ali os cativos.
O abade Ruiz avançou para o lado de Carlos.
— Alcançámos o centro do labirinto. O Sanctum da nossa ordem.
Henry olhou de relance para cima e para baixo no corredor. Tudo o que via eram blocos de granito empilhados. Não havia qualquer sinal de uma porta.
O abade aproximou-se da parede nua e pressionou o grande anel de rubi contra uma pequena placa de aço inoxidável embutida num cubículo mergulhado nas sombras. Depois recuou enquanto o mover das engrenagens se fazia ouvir por detrás dos tijolos.
Henry retesou-se, sem saber o que esperar.
De súbito, uma secção da parede de granito desceu lentamente, afundando-se no chão. No interior ardia uma luz forte, os seus efeitos quase ofuscantes depois da semiobscuridade dos corredores. Com um gemido, a secção desceu por completo.
Quando o brilho se dissipou, Henry ficou de boca aberta.
Joan arquejou ao seu lado.
À sua frente encontrava-se uma grande câmara, do tamanho de um pequeno armazém. De um branco absoluto e com o brilho do aço inoxidável, tratava-se de um enorme laboratório topo de gama. Para lá das janelas e das portas de vidro seladas a vácuo, uma legião de figuras, envergando fatos estéreis, labutava em diversos postos de trabalho. Abafados pelas paredes de vidro, os acordes de Beethoven flutuavam para o exterior do laboratório.
Henry olhou de relance para o labirinto de pedra inca, depois para o laboratório tecnologicamente avançado.
— Muito bem, tem a minha atenção.
O ataque esperado nunca chegou. Tinha já passado uma hora, quando Sam se afastou da grande fogueira, de espingarda apoiada no ombro. A necrópole escura erguia-se mergulhada nas sombras à volta deles. A luz da lareira alcançava os túmulos mais próximos, mas a maior parte da cidade dos mortos estava mergulhada numa escuridão pastosa. Apenas a enorme estátua de ouro no centro da cidade refletia as chamas, um luminoso pilar de luz na gruta noturna.
Nada se movia.
— Talvez tenham partido — sussurrou Norman.
Sam discordou.
— Ainda aí estão.
— São as chamas — disse Maggie por fim, a sua voz aguda mas baixa, afastando momentaneamente os olhos dos homens da tensa vigília da necrópole. — Tentaram destruir a primeira fogueira, lançando-lhe aquela grande pedra. Mas foi apenas o acaso a incendiar a pilha de múmias, por acidente. Se o fogo se tivesse apagado por inteiro, estaríamos todos mortos.
— Como assim? — perguntou Norman.
— Eles temem as chamas — disse Sam, apercebendo-se de que Maggie tinha razão. Olhou para ela com um respeito renovado. — É isso que os faz manter a distância.
Ela assentiu com a cabeça.
— Tendo em conta a falta de pigmentação daquele que vimos, não se trata de uma criatura que costume receber a luz do Sol. O mais provável é que viva nas grutas.
— Mas o que era? — perguntou Ralph.
— Não sei — ripostou Maggie. A tensão estava a deixá-los a todos nervosos. Ela puxou Denal para o seu lado. Os olhos do rapaz estavam muito arregalados, com medo, tanto real como supersticioso. — Mas o que quer que fosse não era um espírito. Não era mallaqui. Era de carne e osso. Não sei... talvez algum tipo de gorila careca ou algo assim.
Ralph abanou a cabeça, reposicionando ligeiramente a espingarda. Sam calculava que o braço dele estivesse a ficar tão cansado quanto o seu.
— Não há relatos da presença de grandes macacos no continente sul-americano.
— Mas muitas partes dos Andes continuam por explorar — contrapôs Maggie. — Como esta.
— Mas parecia quase humano — disse Norman.
Sam não teria usado esse termo para descrever a criatura disforme e curvada apanhada no feixe de luz da lanterna. Voltou a recordar o rosto feral, dotado de dentes afiados. Não era de todo humano.
Maggie insistiu.
— Por todo o mundo, as pessoas têm vindo a relatar avistamentos de criaturas escondidas nas terras altas: o Sasquatch da Sierra Nevada, o Iéti dos Himalaias.
Ralph fungou.
— Excelente. E descobrimos o abominável homem das neves dos Andes.
O silêncio voltou a abater-se sobre o acampamento, a pressão da sua situação impedindo mais conversas. O silêncio absoluto instalou-se com exceção do estalar ou crepitar ocasional do fogo. Passado algum tempo, Sam começou a desejar que a afirmação inicial de Norman estivesse correta. Talvez as estranhas criaturas tivessem partido.
Depois, das profundezas da gruta, irrompeu um latido agudo, seguido por um som gutural que se ergueu a toda a volta.
Todos ficaram tensos. O dedo de Sam tocou ao de leve no gatilho da sua Winchester.
— Os nativos estão a ficar inquietos — sussurrou Norman.
Os chamamentos roucos e os sons desarticulados aumentaram de intensidade, ecoando agora através da gruta. Aparentemente, tinham sido rodeados por centenas de criaturas.
Os olhos de Sam tentaram penetrar a escuridão.
— Com ou sem fogo, podem estar a reunir coragem para atacar.
— O que fazemos? — perguntou Norman.
— Temos duas opções — respondeu Sam. — Uma, instalamo-nos num dos túmulos. Acendemos uma fogueira enorme perto da entrada e esperamos. Rechaçamo-los caso ataquem. — Sam levou a mão ao bolso. — Eu devo ter uma dúzia de cartuchos. E o Ralph tem cerca de trinta.
Maggie olhou de relance para a entrada estreita de um dos túmulos vizinhos. Tendo em conta a expressão cerrada, era óbvio que a ideia não lhe agradava.
— Ficaríamos encurralados lá dentro. Seríamos cercados, sem forma de escapar. E temo que o medo que têm do fogo possa diminuir.
— E se o fogo se apagar? — perguntou Norman. — Se ficarmos sem múmias enquanto ali estamos instalados, quem sairá em busca de mais?
Sam acenou com a cabeça perante as suas preocupações.
— Precisamente, não é lá grande escolha. Por isso, temos a hipótese número dois: tentamos encontrar uma saída. Usamos o fotómetro de Norman para nos guiar. Avançamos armados e com archotes. Se as chamas os assustam, empunhar paus em chamas poderá mantê-los à distância, pelo menos durante tempo suficiente para sairmos daqui.
Ralph erguia-se, de cabeça inclinada, escutando os uivos que se intensificavam à sua volta.
— O que quer que decidamos, é melhor que seja depressa.
— Como disse antes, estão a ficar cada vez mais confiantes porque não estamos a fazer nada — disse Maggie. — Mas se começarmos a andar, levando o fogo connosco, é possível que se assustem de novo. Além disso, talvez esta gruta seja a sua casa. Se for uma questão territorial, o facto de nos pormos em movimento, mostrando-lhes que vamos partir, poderá impedir que nos ataquem.
— São muitas suposições — contrapôs Ralph.
Maggie encolheu os ombros.
— Eu prefiro continuar a andar a ficar presa. Não me parece que seja sábio permanecer no mesmo local durante muito tempo. Eu voto a favor de partirmos.
— Eu também — acrescentou Denal rapidamente, a sua voz baixa e assustada.
Norman anuiu com a cabeça.
— Já aqui ficámos tempo mais do que suficiente.
Sam fitou Ralph.
O antigo jogador de futebol americano encolheu os ombros.
— Vamos levantar acampamento.
— Concordo. — Sam sentiu-se encorajado pela decisão unânime, mas rezou para que esta fosse a decisão certa. — Ralph e eu precisamos de manter os braços livres para as espingardas. Os restantes, agarrem num archote.
Enquanto as feras guinchavam e gritavam, Ralph e Sam mantinham a necrópole escura debaixo de olho. Os outros apressaram-se a preparar archotes improvisados. Uma outra múmia foi arrastada de um túmulo próximo, os seus membros foram arrancados, um para Denal, outro para Maggie e outro para Norman.
Norman recuou, brandindo uma magra perna mumificada.
— Já tinha ouvido falar em fazer uma perninha, mas isto é ridículo. — O seu rosto brilhava com o suor do esforço e da tensão. O fotógrafo avançou para a lareira e incendiou o pé nas chamas. — Algo me diz que vou para o Inferno por causa disto. — Olhou de relance em redor da necrópole. — Mas por outro lado, talvez já lá esteja.
Ignorando a conversa nervosa, Maggie e Denal seguiram o seu exemplo. Em breve erguia-se à frente de cada um deles um membro flamejante.
— Vou levar um archote extra, para o caso de ser preciso — disse Maggie apontando com o polegar para um braço partido que se projetava sob as alças da mochila. — Poderemos ir recolhendo mais pelo caminho, à medida que forem precisos.
— Se o pior acontecer — disse Norman —, também tenho o flash estroboscópico na câmara como último recurso.
— Então vamos embora — disse Sam. — Eu vou à frente. O Norman vem comigo. Vamos precisar do fotómetro dele para nos guiar. Maggie, consegues vir de lanterna e archote?
Ela assentiu com a cabeça.
— Então, segue-nos com o Denal. O Ralph irá guardar a retaguarda. Primeiro vamos atravessar a cidade. Sabemos que não há nenhuma saída atrás de nós... por isso a nossa melhor aposta é seguir em frente. — Sam fitou os outros. Ninguém lançou quaisquer objeções ao plano. — Vamos.
A equipa partiu. As avenidas entre os túmulos da necrópole eram suficientemente largas para que se conseguissem agrupar. Norman colocou-se de um dos lados de Sam, lendo o seu fotómetro, protegendo a unidade da luz do archote com o corpo. Maggie avançava do outro lado de Sam, com a lanterna a apontar para a frente. Denal mantinha-se junto a Maggie. Apenas Ralph seguia as anteriores indicações de Sam. Mantinha-se atrás e vigiava a retaguarda.
Enquanto avançavam pelo labirinto de ruas, em direção à parede distante da gruta, a anterior avaliação de Maggie revelou-se apenas parcialmente válida. A cacofonia de uivos esmoreceu. As criaturas tinham, claramente, sido abaladas pela deslocação das luzes, mas infelizmente não tão completamente quanto contaram. Os gritos e gemidos ainda ecoavam à sua volta e, pior ainda, os chamamentos pareciam mais próximos.
De repente, um disparo sonoro fez-se ouvir atrás deles. Sam virou-se, sentindo o coração na garganta, a sua Winchester a postos ao ombro. Ralph erguia-se a alguns metros de distância, o cano da espingarda a fumegar.
— Maldição! — gritou Sam, os ouvidos ainda a retinir da explosão. — Viste alguma coisa?
Ralph abanou a cabeça e franziu o sobrolho à necrópole mergulhada nas sombras.
— Foi apenas um tiro de aviso. Se o fogo não os afugentou por completo, pensei que a espingarda poderia chamar-lhes a atenção.
— Credo, quase me provocaste um enfarte! — exclamou Maggie. — Avisa-nos antes de o voltares a fazer.
Ralph olhou de relance para trás, a sua expressão mais atrapalhada.
— Desculpa. Precisava de fazer qualquer coisa. Aqueles gritos estavam a deixar-me arrepiado.
Norman levantou-se do chão de pedra onde se agachara.
— Volta a fazer isto e ficas a dever-me um par de cuecas.
Denal continuava junto de Maggie.
— Escutar — disse ele. — Agora silêncio.
Com o zumbido nos ouvidos a desaparecer, Sam apercebeu-se de que o rapaz tinha razão. Quando muito, o ato intempestivo de Ralph tinha subjugado os uivos. O silêncio na gruta era de morte.
— Talvez isso os tenha assustado — disse Norman esperançoso, sacudindo o pó da parte de trás das calças.
— Não contes com isso — disse Sam. — Vamos.
A equipa prosseguiu pelo labirinto de avenidas e ruas. Quem quer que tivesse concebido a necrópole não fora grande planeador, concluiu Sam. Não havia uma via direita e muitas das ruas terminavam em becos sem saída. O progresso, que Sam ia calculando através da proximidade à estátua de ouro central, era lento, a passo de caracol, e exigia muitos recuos e paragens para consultar o fotómetro de Norman.
— Vamos acabar por nos perder aqui — queixou-se Norman a certa altura, curvado sobre o fotómetro, protegendo o aparelho da luz do archote.
— Tem de haver uma saída — defendeu Sam.
O grupo ia ficando cada vez mais nervoso, não por causa dos uivos e dos sinais das criaturas, mas porque o silêncio começara a interferir com os seus nervos. Sem qualquer pista em relação ao paradeiro das criaturas, todas as sombras móveis e todos os raspares na rocha faziam estremecer Sam. Embora ninguém tivesse dito nada, todos sabiam que as criaturas ainda estavam por ali, graças a um qualquer instinto primitivo que os avisava da presença de predadores escondidos. A sensação de olhos que os fitavam, a sensação de que algo respirava na escuridão.
Enquanto prosseguiam, o silêncio tornou-se mais pesado. Já ninguém falava; até as queixas de Norman se desvaneceram. Sam olhou de relance para as alturas à sua volta, desejando que os uivos recomeçassem. Qualquer coisa era preferível àquele silêncio maldito.
Um grito rosnado ecoou sobre as suas cabeças. Maggie apontou a luz na direção do telhado de um túmulo vizinho. Rostos pálidos fitaram-nos. Olhos pretos, enormes, refletiam a luz; lábios revirados num grito penetrante expunham os dentes afiados.
— Para trás! — gritou Sam empurrando Denal e Maggie atrás de si.
Depois as criaturas saltaram, descendo dos telhados na direção deles.
A espingarda de Ralph disparou. Uma das criaturas deformadas contorceu-se no meio do ar, o sangue a jorrar do pescoço ferido. A criatura girou e caiu no chão de pedra, revirando-se e uivando.
Sam incitou os outros a recuar, avançando pela rua em sentido contrário. Espreitou ao longo do extenso cano da Winchester. Uma das criaturas ergueu-se da posição agachada que assumira na rua. Pela primeira vez, Sam conseguiu observar bem uma daquelas criaturas. Era pálida e desprovida de pelo, como a que tinham visto antes. Mas esta era mais magra, emaciada. Cada costela visível através da pele. Até os membros não eram mais do que ossos e couro pálido, repuxados como massa de rebuçado. Mas foi o rosto que fez Sam estacar. Era ligeiramente afocinhado como um urso, com dentes que pareciam ser todos caninos. Claramente carnívoro. Mas ainda mais desconcertante eram os enormes olhos pretos. Sam sentiu naquele olhar uma inteligência rudimentar: curiosidade misturada com fúria. Uma combinação letal.
Mas Sam também reconheceu neles cautela. A criatura emaciada olhou de relance para o companheiro ferido, que se contorcia ainda no chão. Quando se voltou, os olhos negros estavam semicerrados em fendas desconfiadas.
Silvou a Sam. Depois, num floreado de membros compridos e pálidos, desapareceu ao longo de uma rua lateral, avançando demasiado depressa para que os olhos humanos a seguissem. Sam não conseguiu sequer virar a tempo a mira da arma. Não era mais do que um fantasma branco desfocado.
Maldição, movia-se depressa demais.
Outras criaturas foram emergindo de todas as saídas, trepando de janelas negras, emergindo das portas estreitas. Enquanto se moviam, Sam apercebeu-se das diferenças subtis entre eles. Alguns pareciam modelos mais pequenos, enfezados, do que acabara de ver. Outros tinham corpos mais fo,rtes. Alguns até pareciam ter asas vestigiais na zona onde um ser humano teria as omoplatas. As únicas constantes claras eram os olhos negros, penetrantes e famintos, e a pele translúcida.
— Sam... à tua esquerda! — gritou Maggie.
Ele virou-se. Uma criatura, um brutamontes atarracado que segurava sobre a cabeça um tijolo enorme, corria na direção deles, sobre as pernas arqueadas.
Sam não teve senão um segundo para apontar. O instinto de anos de caça ao faisão e ao pato serviu-lhe agora bem. Fixou o seu alvo e apertou o gatilho. A bala acertou em cheio no peito da criatura; a força da colisão travou o seu impulso. Caiu sobre um joelho, deslizando ligeiramente. O sangue, escuro como petróleo na pele branca, deslizava-lhe pelo peito nu. O tijolo de pedra caiu-lhe dos dedos, rapidamente seguido pelo corpo da criatura.
Um outro tiro atraiu a sua atenção para a direita. Por aquela altura, Ralph estava a alguns passos de distância. Sam viu outra criatura caída no chão. Ralph recuou, acenando com um braço.
— Continuem!
Um grito avisou de novo Sam, mas desta feita não provinha da garganta de Maggie. Uma das criaturas de costas curvadas, uma fêmea de seios dependurados, espalmados como panquecas, uivou num ululante grito de ataque. As mãos pálidas empunhavam uma moca erguida.
Ele tentou virar a espingarda.
— Sam!
A moca foi brandida na sua direção, cortando o ar mais depressa do que o esperado. Sam recuou um passo. Mas não foi suficientemente rápido. A moca acertou no cano da Winchester com um ruído ensurdecedor. A espingarda foi-lhe arrancada das mãos e caiu ao chão com estrépito.
A mão de Sam ardia-lhe do golpe. A moca fez um novo movimento, desta feita em direção à cabeça dele. A fêmea gritou de triunfo. Desequilibrado, Sam não conseguiu sequer baixar-se.
Depois sentiu, repentinamente, a orelha a arder de dor. Gritou, simultaneamente de aflição e surpresa.
— Desculpa — arquejou Maggie, que empunhava o archote flamejante para lá do seu ombro, na direção do rosto do atacante.
Os olhos da criatura abriram-se mais, mostrando o terror que sentia perante o fogo. O seu grito de triunfo transformou-se num grito de horror. A moca caiu-lhe dos dedos trémulos, ao mesmo tempo que protegia o rosto com um braço.
Maggie contornou Sam, posicionando-se ao seu lado e agitando o archote.
A criatura correu para longe, virando-se, e trepou pela parede de um túmulo, desaparecendo. Uma vez mais movendo-se a uma velocidade sobrenatural.
Maggie virou-se para Sam, com um franzir de sobrolho feroz.
— Agarra na espingarda! — Voltou-se para Norman. — Usa os archotes. — Estendeu um braço na direção de Ralph, ao mesmo tempo que um outro tiro ecoava através da caverna. O homem de cor estava rodeado por todos os lados. — Vai ajudá-lo! Eu fico com o Sam e o Denal. Temos de nos proteger uns aos outros enquanto retiramos.
Norman começou a avançar na direção do antigo jogador de futebol encurralado, afugentando um par de formas abrutalhadas com o seu membro flamejante.
— Retirar para onde? — perguntou.
— Qualquer outro lado que não aqui! — respondeu Maggie.
Norman acenou com a cabeça, como se isso fosse resposta suficiente, e apressou-se a seguir em frente, penetrando na refrega que rodeava Ralph. Um aumento dos disparos e dos movimentos do archote depressa libertaram algum espaço em redor do homem alto e negro.
À sua esquerda, Sam ouviu Denal arquejar. Virando a espingarda, Sam viu o pequeno rapaz quéchua a recuar para longe de um trio de criaturas mais pequenas, versões anãs das que tinham atacado Sam. Arrastavam os pés pelo chão, apoiando-se nos nós dos dedos de um braço, espantosamente reminiscentes de pequenos macacos.
Usando a mão livre, Sam puxou Denal para trás de si, depois ergueu a espingarda. Apontou para o mais próximo dos três, quase à queima-roupa, e disparou, fazendo desaparecer a parte de trás do crânio da criatura. Pedaços do crânio salpicaram os outros dois, detendo-os.
— Recuem! — gritou Sam, levando Maggie e Denal para uma rua lateral enquanto os outros dois se aproximavam. Uma outra criatura arranhou Maggie a partir de um telhado, mas um movimento do archote afugentou-a.
Depois, o par de monstros que se arrastavam pela rua uivou e saltou, mas não sobre eles. As duas criaturas atacaram a que tombara, rasgando com dentes e garras, cravando na sua carne os focinhos ensanguentados.
Sam, Maggie e Denal prosseguiram a sua retirada.
— Que diabo são aquelas coisas? — balbuciou Maggie, horrorizada.
Sam não tinha resposta.
Mais e mais criaturas juntaram-se à refeição, atraídas pelo cheiro do sangue. Sem os archotes por perto, emergiam da todos os nichos e alcovas mergulhadas nas sombras. Estavam famintas. A ténue neutralidade que governara aquelas criaturas desaparecera com o cheiro a carne fresca e a sangue.
Uma voz ribombou de uma esquina.
— Sam! Maggie! — Era Ralph. — Não vos conseguimos alcançar! São demasiados!
Sam observou a carnificina. Impelidos pela sede de sangue, Sam temeu que o fogo não mais afugentasse aquelas criaturas.
— Não tentem chegar até nós! — gritou Sam. — Vamos seguir por aqui! Continuem em direção à estátua de ouro! Encontramo-nos lá!
Ao virar da esquina, soaram novos disparos.
Maggie apontou a lanterna para atrás. O caminho estava momentaneamente livre. O festim da outra rua atraíra a matilha como traças a uma chama.
— Depressa — incitou Maggie. — Quem sabe durante quanto tempo o alimento local satisfará aquelas bestas.
Sam não precisou de mais encorajamento. Levando Denal e Maggie à sua frente, incitou-os a acelerar ao longo das avenidas. Cegamente, viraram em todas as curvas que pareciam seguir na direção do gigantesco ídolo de ouro. À sua volta, os gritos dos monstros uivavam e ecoavam, impelindo-os a avançar. Sam recarregou a espingarda rapidamente, os dedos lutando por enfiar os cartuchos no lugar. Uma vez terminado, levou a arma ao ombro e encurtou a distância até Maggie.
— Como te estás a aguentar? — perguntou por entre os lábios tensos.
Ela olhou de relance para ele, o rosto pálido e brilhante de suor sob a luz do archote.
— Bem — disse. — Mas volta a perguntar-me quando pararmos de correr.
Sam estendeu a mão e apertou-lhe o cotovelo. Ele sabia o que ela queria dizer. Enquanto lutavam e fugiam, a profundidade do seu terror era controlada pela adrenalina. O choque perante a situação em que se encontravam ainda não os atingira em toda a sua plenitude.
Maggie tocou na mão de Sam.
— Eu vou ficar bem.
Sam ofereceu-lhe um débil sorriso.
— Havemos de sair daqui.
Ela assentiu com a cabeça, mas Sam sabia que ela não acreditava necessariamente nele. Nenhum deles era tolo. Aquelas criaturas eram claramente necrófagas e canibais. Tendo em conta a pele pálida e os olhos grandes, viviam há gerações naquelas grutas. Talvez há milénios. Cruzando-se entre si, em mutação... quem sabe o que teriam sido outrora? Uma espécie desconhecida de grande macaco, talvez até um qualquer homem pré-histórico. Mas se havia, de facto, uma saída daquelas grutas, porque não teriam as criaturas partido?
A mente de Sam agarrou-se àquele puzzle, mantendo os seus pensamentos longe do pânico. Talvez Denal estivesse certo. Talvez aquelas criaturas fossem mallaqui, espíritos do submundo. Se os incas se tivessem deparado com aquela tribo de criaturas encurraladas, teriam acreditado que se tratava de seres de ucha pacha, do nível mais baixo dos espíritos. Seria essa a razão para terem construído ali uma necrópole tão extensa? Teriam acreditado que aqueles monstros lhes protegeriam os mortos? Tendo em conta o ataque sofrido pelo grupo de Sam, as criaturas demoníacas tinham-se revelado excelentes cães de guarda.
Sam abanou a cabeça, inseguro em relação às suas próprias conclusões. Parte de si pressentia que uma peça vital daquele puzzle continuava em falta, mas, naquele momento, não poderia encontrar mais respostas.
Sam, Maggie e Denal continuaram a correr. Ao longe, os disparos ocasionais cortavam os gritos silvados, assinalando a presença de Ralph e Norman através da necrópole. Mas era raro, sobressaltando Sam de cada vez que uma explosão ecoava no interior da gruta.
— Espero que estejam bem — arquejou Maggie depois de uma rajada de disparos rápidos. Apoiou-se no parapeito da janela, para recuperar o fôlego.
— Eles vão conseguir. Com a força do Ralph e a esperteza do Norman, como podem falhar?
Maggie concordou. Inclinou-se para a frente para espreitar para lá da esquina seguinte.
— Meu Deus, ali está! — disse ela avançando. Fez sinal a Sam e Denal para que a seguissem.
Sam contornou a esquina e fitou a rua seguinte. Era comprida e direita, a primeira rua daquele tipo naquele labirinto maldito. Ao fundo da avenida ladeada de túmulos era possível ver a base da estátua. Vista mais de perto, a estátua pertencia, claramente, a um rei inca, um Sapa Inca, como a que guardava a entrada secreta para as grutas. A escultura erguia-se de braços no ar. As palmas das mãos a tocar no teto distante, com se segurasse um telhado sobre as suas cabeças.
Denal fitava-a, de boca aberta.
— É o mesmo rei — disse Maggie. Ergueu a lanterna. Devia ter, pelo menos, vinte andares de altura.
Mas Sam seguiu o braço erguido dela. Sob uma coroa llautu de penas e borlas, o rei parecia fitá-los com um ligeiro franzir de sobrolho no rosto aristocrático. Parecia que o mesmo rei também ali estava a ser honrado.
— Tens razão. Deve ser o Sapa Inca que conquistou a tribo moche original, a que construiu a pirâmide. Aposto que foi a sua maneira de pôr o seu selo nesta cidadela na montanha.
Maggie inclinou o pescoço.
— Não era um tipo muito subtil.
— Bem, vamos apresentar-nos. — Sam conduziu-os, ainda temeroso de um ataque dos habitantes da necrópole. Embora mantivesse a espingarda a postos, a rua parecia verdadeiramente vazia. Não se ouvia raspar. Os uivos penetrantes soavam ao longe.
Sam, apressando-se, pretendia mantê-los assim.
A rua revelou-se muito mais comprida do que parecia inicialmente. A estátua alta tornava a distância enganadoramente curta. De ambos os lados, os túmulos cresciam em tamanho e estatura à medida que progrediam em direção à praça central, pregando novas partidas à avaliação da distância.
A corrida inicial do grupo acabou por dar lugar a um avançar trôpego, sobre as pernas exaustas.
A lanterna de Maggie deslizava pelos ornamentos daqueles mausoléus elaborados. Alguns erguiam-se a quatro metros de altura, enfeitados com desenhos a ouro e prata, incrustados de rubis e esmeraldas. Criaturas fantasiosas — dragões, leopardos alados, híbridos homem/animal — adornavam as fachadas. Maggie deslizou um dedo por um mosaico elaborado que recriava uma procissão cerimonial.
— Estes túmulos deviam pertencer aos kapak, as classes mais altas — disse ela, arquejando.
Sam anuiu.
— Agrupados em redor dos pés do seu deus, o Sapa Inca. Repara na posição das palmas das mãos. Mais um símbolo de como o rei era uma ligação física entre o mundo superior e este.
Por fim, a fila de túmulos terminou e a praça estendeu-se até aos pés dourados da estátua. Sam esticou o pescoço. A estátua subia até ao teto da câmara.
— Uau...
Maggie não estava tão impressionada. Mantinha-se de costas para a visão espantosa, fitando a necrópole escura. Os uivos das criaturas faziam-se ouvir esporadicamente ao longe.
— Que diabo são aquelas criaturas? — balbuciou.
Sam avançou até ela.
— Não sei. Mas creio que têm uma inteligência rudimentar. Algumas usavam utensílios para atacar. Pedras e mocas.
— Também reparei, mas apenas as de membros mais grossos — disse Maggie. — Apercebeste-te disso?
Sam franziu o sobrolho e ergueu a espingarda.
— Estava um bocadinho ocupado a afugentá-los.
— Bem, é verdade. As outras limitavam-se a combater com os dentes e as unhas. Era como se a matilha estivesse dividida em quatro classes distintas. Cada uma com as suas próprias funções e habilidades.
— Como as abelhas? Operárias, zangões e rainha?
— Exatamente. Primeiro, foram aquelas magras e esgalgadas.
— Sim, vi uma dessas. Movem-se tão depressa como as chitas.
— Mas reparaste que nunca lutaram?
— Sim, agora que falas nisso. As mais magras apareceram primeiro, depois mantiveram-se à margem. — Sam olhou de relance para Maggie. — Mas o que serão? Uma espécie de batedores?
Maggie encolheu os ombros.
— Provavelmente.
Sam ponderou aquela teoria em silêncio. Recordou mentalmente a batalha.
— Então e aquelas coisas que mais pareciam pit bulls? Aquelas que não tinham medo das chamas.
— Uma outra classe. Reparaste na falta de órgãos genitais?
— Não estava propriamente a olhar lá para baixo. Mas se eram assexuadas, calculo o que estás a pensar: zangões, como no caso das abelhas.
Maggie acenou com a cabeça.
— Trabalhadores inférteis, de inteligência limitada. A ausência de medo em relação às chamas talvez se devesse mais à estupidez do que à coragem. Mas quem sabe?
— E as que tinham as armas? — perguntou. — Aquelas maiores, com músculos e estranhas asas vestigiais. Deixa-me adivinhar. Soldados.
Maggie abanou a cabeça.
— Ou talvez fossem apenas operários. Não sei. Mas viste aquele tipo gigantesco que se manteve afastado e parecia ladrar as suas ordens? Tenho a certeza de que é uma espécie de líder da matilha. Não vi nenhum maior do que ele.
— Isso são muitas conclusões e suposições para um vislumbre tão breve.
— Foi o que o teu tio nos ensinou a fazer. Extrapolar. Pegar em fragmentos minúsculos de um povo antigo e construir uma civilização.
— Ainda assim, sem mais informação, teria dificuldade em...
Denal puxou de súbito o braço livre de Sam.
Este baixou os olhos, de relance, para o rapaz.
Denal fitava a necrópole escura.
— Senhor Sam, eu não ouvir tiros da arma.
Sam virou-se, tal como Maggie. O franzir de sobrolho desta era vincado.
— O Denal tem razão — disse ela. — Já não ouvimos qualquer disparo há algum tempo.
Sam observou a cidade, em busca de um qualquer sinal de Norman e Ralph. Gritos ecoantes ainda se faziam ouvir na cidade escura.
— Talvez tenham conseguido escapar-lhes.
Maggie virou-se num círculo lento, fitando os túmulos. A partir daquele ponto, a necrópole erguia-se como uma tigela à sua volta. Sete avenidas partiam daquele ponto, como raios que penetravam o labirinto de túneis que os rodeavam.
— Não vejo qualquer sinal do archote do Norman.
Sam avançou até junto dela. Silêncio. Onde estariam? Teriam sido apanhados? O medo pelo que poderia ter acontecido aos amigos cingiu-o num punho cerrado.
— Devem estar por aí algures — disse ele, rapidamente. — Têm de estar.
Acossados por uma multidão de criaturas, Norman e Ralph recuaram pela porta de um túmulo, escondendo-se sob o lintel baixo. O fedor almiscarado e o odor a canela enchiam o espaço exíguo. Este acentuava a proximidade enjoativa do túmulo apertado. Para lá da porta, as criaturas pálidas miavam e rosnavam com as gargantas famintas.
Agitando o archote flamejante que ardera, entretanto, até ao joelho nodoso da perna mumificada, Norman fez recuar as criaturas para longe da porta. Até ali, as chamas, embora já fracas, mantinham-nos ao longe.
— Vá lá, Ralph — implorou Norman. Arriscou-se a olhar para trás de relance, os óculos deslizando pelo nariz escorregadio com o suor.
Mais fundo no túmulo, Ralph lutava contra a sua espingarda, debatendo-se com o ferrolho.
— Que porcaria mais inútil — praguejou. — Continua encravada.
— Bem, desencrava-a! — gritou Norman.
— Que raio achas que estou a tentar fazer? — Ralph atacou a espingarda com mais vigor, os músculos tensos nos braços grossos, mas sem mais sucesso. Quando Ralph ergueu o rosto, a sua expressão foi resposta suficiente.
— Merda. — Norman espetou o archote num rosto pálido que se aproximou demasiado. Com um uivo, o rosto feio desapareceu.
— Então, e agora? Estou a ficar exausto!
— Espera. — Atrás de si ouviu o som de uma respiração arfante. Norman não se atrevia a olhar para trás. As criaturas estavam a ficar mais arrojadas e tentavam arrancar-lhe o archote à medida que o medo das chamas se desvanecia em algumas das criaturas. Ralph apareceu ao seu lado, de voz tensa.
— Afasta-te!
Norman recuou quando o grande homem largou o fardo junto à porta. Tratava-se de uma múmia seca, enrolada em posição fetal.
— Incendeia-a — ordenou Ralph.
Norman levou o archote flamejante até junto das ligaduras de lã secas. O fumo ergueu-se em plumas, enchendo o espaço estreito. As chamas brilhantes, como a luz da salvação, floresceram no cadáver mumificado. Mais fumo encheu a câmara. Norman sentia os olhos a arder; tossiu roucamente.
— Afasta-te — avisou Ralph, que então pontapeou o molho flamejante através da entrada. Este deslizou e parou mesmo no exterior da porta, ardendo ainda mais fortemente.
As criaturas espalharam-se, guinchando como porcos assustados.
Norman recuou um passo, suspirando de alívio. Aquilo devia garantir-lhes algum tempo.
— Consegues pôr a espingarda a funcionar?
— Não sei. Está um cartucho encravado como a merda. Não estou a conseguir soltá-lo. — Ralph abanou a cabeça, fitando as chamas. — A nossa única esperança é que os outros vejam o fogo e venham averiguar.
— Mas não vão perceber que o fogo significa que estamos em apuros. E se tentássemos gritar por ajuda?
Ralph olhou para trás de relance, a impotência estampada no seu rosto. Abanou a cabeça.
— Não nos serviria de nada. A acústica neste espaço limitar-se-á a fazer saltar o som de um lado para o outro. — Ralph olhou de relance para Norman. — Mas estou aberto a quaisquer outras ideias brilhantes.
Norman mordeu o lábio inferior, virando-se num círculo lento, em busca de alguma resposta por entre as peças de olaria e ofertas dos mortos.
— Acho que talvez tenha uma ideia brilhante — exclamou, passando o archote a Ralph e depois vasculhando o saco da câmara que trazia às costas. Retirou do interior o flash e exibiu-o. — Uma ideia realmente brilhante!
— Em que estás a pensar?
Norman acenou com um braço para descartar a pergunta.
— Preciso de chegar àquela janela. — Apontou para uma fenda estreita por entre os tijolos perto do teto. Era demasiado pequena para que as criaturas conseguissem passar, mas serviria perfeitamente para as suas necessidades. — Preciso de uma ajudinha. Será que és mesmo forte?
Ralph franziu o sobrolho.
— Era capaz de levantar quatro tipos magrinhos como tu.
— Basta um tipo magrinho. — Norman pousou o saco da câmara no chão. — Dá-me uma ajudinha.
Agachando-se, Ralph ajudou Norman a subir-lhe do joelho para o ombro.
— Agora levanta-te — disse Norman, ajoelhando-se sobre os ombros de Ralph e equilibrando-se com uma mão na cabeça deste.
Exalando com força, Ralph endireitou-se, projetando Norman na direção do teto. Uma vez retomado o equilíbrio, silvou a Norman:
— Despacha-te com o que estás a fazer.
Norman ergueu-se até ao parapeito da janela e espreitou para o exterior. Conseguia ver até à estátua de ouro. Perfeito.
— Despacha-te! — disse Ralph lá em baixo.
Norman sentiu o equilíbrio alterar-se por baixo de si. Agarrou-se à borda da janela para não cair.
— Calma, rapagão!
— Despacha-te! Não és tão leve quanto pareces.
— Estás a dizer que sou gordo? — disse Norman, fingindo-se ofendido.
— Já basta de piadas. Não tens graça!
Norman resmungou.
— Qualquer um pode dar palpites. — Retirou o flash do bolso do colete. Tapando a lâmpada com a mão, acendeu a luz e segurou o flash através da janela. O seu brilho incandescente deslizava por entre os dedos. Mantendo o flash erguido, destapou a luz forte em explosões rápidas: três curtas, seguidas por três longas, que terminavam com três curtas. Depois Norman esperou alguns segundos e repetiu o sinal.
A luz incandescente revelava-se ofuscante refletida nas paredes dos túmulos à sua volta. Em breve o flash, continuamente aceso, aqueceu a ponto de queimar os dedos de Norman. Este fez mais uma sequência de sinais, depois apagou a lâmpada. Soprou para os dedos quentes. Teria de bastar.
Com um último olhar de relance para a estátua de ouro tão provocadoramente próxima, Norman afastou-se.
— O que estavas a fazer? — perguntou Ralph, enquanto Norman saltava desajeitadamente do seu poleiro. Ralph esfregou os ombros doridos.
— A fazer uma chamada para o cento e doze. — Norman voltou a guardar na mochila o seu flash. — Um SOS à moda antiga.
Ralph olhou de relance para o buraco.
— Esperto — balbuciou.
— Não tens de quê — reagiu Norman, orgulhoso do seu engenho. Endireitou-se, voltando a pôr ao ombro o saco da câmara. — Agora, só espero que alguém tenha visto o meu sinal.
De súbito, Norman sentiu algo a tocar-lhe no cabelo. Baixou-se e bateu-lhe; o seu pulso atingindo algo sólido. Guinchando com o choque, Norman rolou para o lado e virou-se.
Uma das criaturas continuava a tentar alcançá-lo através da janela aberta perto do teto, o braço esticado na sua direção. Norman recuou. Um rosto malicioso, repleto de dentes, surgiu virado de pernas para o ar na abertura e rosnou-lhes. Aparentemente, o plano inteligente de Norman tinha atraído alguém... infelizmente, não fora quem tinham esperado.
— Merda! — sussurrou Norman.
Sobre as suas cabeças, os sons de criaturas que arranhavam e raspavam começou a ecoar a partir do telhado. Parecia que centenas de corvos ali haviam pousado. No canto mais distante, uma das secções de pedra do telhado deslizou subitamente dois centímetros, com um gemido do granito.
Norman e Ralph viraram-se horrorizados para fitar a abertura por entre as lajes.
— Estão a tentar forçar a entrada! — rosnou Ralph.
— Mas que força têm estas coisas?
— Se forem em número suficiente, provavelmente são capazes de destruir tudo isto.
O raspar das garras e o gemido ominoso da pedra reverberaram através da câmara alta e estreita.
Norman afastou-se, depois olhou de relance na direção da única saída. As chamas da múmia ardente bloqueavam a porta. Estavam presos numa armadilha que eles próprios haviam criado.
— Eu e as minhas belas ideias — resmungou.
Maggie foi a primeira a ver o estroboscópio do flash de Norman.
— Ali! — gritou, atraindo a atenção de Sam e Denal. — Deus do céu, estão vivos. — Apercebera-se de um brilho vermelho um instante antes por entre o labirinto de túneis. Inicialmente, não tinha a certeza de serem eles. Agora sabia!
Sam posicionou-se ao lado dela. Tinha estado a contornar a base da estátua, também à procura.
— Onde?
Como resposta, uma segunda série de flashes explodiu através da necrópole. Não era muito longe, logo a seguir a uma das avenidas que partiam da praça central.
— Devem estar em apuros — disse Sam.
— Como assim? — perguntou Maggie, o seu júbilo dando lugar à preocupação.
— Trata-se do velho código Morse. É um sinal de SOS.
Maggie fitou a necrópole escura.
— O que vamos fazer?
Sam olhou de relance para ela.
— Tenho de os tentar ajudar. — O brilho da lanterna regressou, depois desvaneceu-se. — Devem estar encurralados.
Denal ergueu a voz, levantando o archote um pouco mais alto.
— Eu ir também.
— E nem pensem que fico aqui sozinha. — disse Maggie. — Vamos. — Começou a avançar para a avenida que conduzia de forma mais direta ao lugar onde os outros estudantes se encontravam encurralados. Uma mão puxou-a para trás.
— Não — disse Sam —, tu e o Denal ficam aqui.
Maggie virou-se, libertando-se das mãos dele.
— O diabo é que ficamos! Não vou aturar as tuas tretas chauvinistas, Sam.
— E não estou a pedir que o faças. Se conseguir libertar os outros, vamos ter de fugir como coelhos assustados com uma matilha de lobos no nosso encalço. Vamos precisar de um buraco onde nos esconder. — Sam voltou a contornar a estátua. Ergueu a espingarda e bateu com a coronha no tornozelo de ouro. Um som surdo reverberou pela perna fora.
— É oco — disse Maggie impressionada.
— E seria um bom esconderijo — disse Sam. — Quando estava a contornar a estátua, descobri uma porta do lado oposto. No calcanhar esquerdo do ídolo. — Sam levou a mão à cinta e retirou o punhal de ouro. Virou o cabo para Maggie. — Preciso que abras a fechadura antes que eu regresse com os outros.
Maggie aceitou o punhal e a responsabilidade.
— O meu pai foi ladrão quando era novo... esperemos que haja uma predisposição genética.
Sam sorriu-lhe.
— Sempre desconfiei que havia algo de criminoso em ti.
Maggie devolveu-lhe o sorriso.
— Eu vou abrir a porcaria da porta. Tu tens de regressar com os outros. — Ela ergueu o archote. — E tem cuidado.
Sam aproximou-se mais para receber o membro flamejante. Sob a luz do archote, ela conseguia ver a intensidade que ardia nos seus olhos azuis. Agarrando no archote, Sam permitiu que a sua mão se demorasse na dela.
— Tu também — disse ele, a voz ligeiramente mais tensa. Hesitou mais uns segundos.
Maggie ergueu o rosto para ele. Por momentos, achou que ia beijá-la, mas depois ele recuou.
— É melhor pôr-me a andar.
Maggie acenou com a cabeça. Algures dentro de si, num espaço raramente agitado, sentiu a desilusão e virou-se ligeiramente para se impedir de trair os seus sentimentos.
— Não faças nada de parvo — implorou.
Denal falou a curta distância.
— Já não vejo flashes. Pararam.
Sam virou-se... o ténue momento que tinham partilhado desvaneceu-se como brasas a dispersar. Avaliou a extensão da necrópole.
— Não pode ser bom sinal — disse ele baixinho.
— Depressa, Sam.
Assentindo com a cabeça, o texano ergueu a espingarda na direção do teto da gruta.
— Tapem os ouvidos.
Maggie e Denal assim fizeram, mas mesmo com as palmas a tapar com força os lados das cabeças o disparo da espingarda revelou-se ensurdecedor.
Depois de o som se ter desvanecido, Sam baixou a espingarda.
— Espero que isto os leve a perceber que a cavalaria vai a caminho.
Maggie franziu o sobrolho enquanto Sam avançava pela avenida.
E também as criaturas vão perceber, pensou friamente.
— Foi o Sam de certeza! — disse Ralph. — Ele deve ter visto o teu sinal!
Norman fitou a fenda por entre as lajes sobre a sua cabeça. Depois daquele tiro solitário, os dedos pálidos tinham voltado a escavar e puxar o granito, aumentando o espaço em mais dois centímetros. Olhos negros fitavam o par encurralado. Norman agitou o archote na direção dos rostos, mas sem grande efeito. O teto era demasiado alto. Eles limitaram-se a recuar, depois regressaram rapidamente.
— O Sam não vai cá chegar a tempo — balbuciou Norman. — Não a menos que consigamos encontrar uma forma de afastar aquelas ratazanas do telhado.
Ralph virou-se para a porta.
— Sou capaz de ter uma ideia.
Norman observou enquanto Ralph retirava o cinto de munições do ombro.
— Com a espingarda encravada, já não precisamos disto. — Ergueu a faixa de cabedal com mais de vinte balas intactas, depois avançou para a entrada.
Norman começava a compreender o plano de Ralph.
— Isso é capaz de funcionar.
— E também é capaz de abrir caminho para podermos sair. — Ralph lançou o cinto para as chamas. Num instante, as balas começaram a explodir como pipocas numa frigideira, cuspindo e estalando. No exterior, o ricocheteavam nas paredes dos túmulos vizinhos. A múmia sob o cinto foi completamente desfeita e alguns pedaços espalharam-se pela pedra.
Sobre as suas cabeças, as criaturas fugiram guinchando apressadamente, assustadas pelo ruído e pela cascata de detritos flamejantes. Norman aproximou-se da abertura para se assegurar de que tinham de facto fugido. Ergueu o archote na direção da fenda no telhado. Estava vazia. Já não havia rostos a espreitar nem dedos a arranhar. Sorriu.
— Está a resultar...
— Afasta-te! — gritou Ralph.
De súbito, fogo trespassou a perna de Norman. Deixando cair o archote, tombou no chão enquanto a agonia lhe subia em rajada até à barriga. Gritou, mantendo a boca aberta por um momento num grito silencioso, depois um gemido agudo escapou-lhe dos lábios:
— Meeeerda!
Num instante, Ralph estava ao seu lado, arrastando-o de novo para trás, na direção da parede mergulhada nas sombras.
— Raios, Norm, o que pensaste que estavas a fazer?
Norman não estava com vontade de debater as suas falhas. De dentes cerrados face à dor, fitava a perna direita. A forte humidade ensopava-lhe as calças na zona do joelho. A divisão começou a andar à roda.
— Foste atingido por um ricochete — explicou Ralph. Despiu a camisa. — Porque é que saíste do teu abrigo?
Norman resmungou e acenou com um braço na direção da fenda no teto.
— Queria ter a certeza... oh, que diabo... não estava a pensar. — O seu rosto ficou tenso, enquanto Ralph examinava a ferida. — Não tinha propriamente o hábito de lançar mãos-cheias de balas para as fogueiras quando era miúdo. Mas suponho que o meu treino no exército me devesse ter ensinado que não devia sair do meu abrigo.
— Não me parece que tenha atingido artérias principais — disse Ralph. — Não vejo jorros, mas tens o joelho desfeito. Vou ter de o ligar para o apoiar e impedir que continue a sangrar. — Ralph pegou na sua camisa de flanela grossa e começou a rasgá-la. Pegando numa das tiras, tocou na perna de Norman.
— Isto vai doer.
— Então é melhor não o fazermos — disse Norman amargamente, com uma careta.
Ralph franziu-lhe o sobrolho.
Norman suspirou e acenou-lhe para que se aproximasse.
— Oh, vá lá. Fá-lo de uma vez.
Acenando com a cabeça, Ralph pegou na perna e dobrou-a. O joelho de Norman explodiu de dor como se no seu interior tivesse sido detonado um pau de dinamite. Mas o pior foi o raspar doentio do osso no osso. Norman arquejou, com as lágrimas nos olhos.
— Ao menos sabes o que estás a fazer?
Ralph continuou o seu trabalho, ignorando a agonia. Envolveu as tiras da camisa de flanela, por várias vezes, em redor do joelho de Norman, da coxa até meio da canela.
— No Alabama State, os jogadores de futebol estavam constantemente a dar cabo dos joelhos. Quanto mais não seja, sei como aplicar uma ligadura de apoio rápida. — Ralph terminou o trabalho com um último puxão firme, atando firmemente a ligadura.
Norman tinha os punhos cerrados; contorcendo-se ligeiramente. Era como se algo de garras enormes estivesse agarrado ao seu joelho. E depois terminou.
O seu torturador afastou-se.
— Isto deve impedir-te de morrer.
Norman limpou as lágrimas dos olhos. A dor diminuíra.
— Tens um jeito especial para os doentes, doutor.
Ralph fitou-o por um momento, a preocupação vincada na testa enquanto observava o fotógrafo. Por fim, olhou de relance em direção à entrada. Estava sossegada. As balas tinham há muito parado de estalar no fogo.
— Agora, as más notícias. Temos de sair daqui. O meu truque não vai manter os monstros afastados durante muito tempo.
Norman olhou de relance para a porta. Pedaços da múmia desfeita e dispersa fumegavam para lá do limiar da porta, enquanto ao longe chamas crepitantes pontilhavam ainda o chão de pedra. Mas pelo menos a saída estava aberta. Acenou e ergueu um braço.
— Ajuda-me a levantar.
Ralph levantou-se, depois utilizou um antebraço musculoso para puxar Norman do chão.
Arquejando devido ao movimento, Norman teve o cuidado de não aplicar o peso sobre a perna ferida. Uma vez de pé, apoiou-se hesitantemente no calcanhar, avaliando a dose de pressão que conseguia suportar. A dor latejou, mas a ligadura de apoio manteve o joelho imobilizado. Norman saltitou uns passos, apoiando-se fortemente nos ombros largos de Ralph.
— Consegues?
Norman ergueu os olhos de relance. O suor perlava-lhe a testa devido àquele pequeno esforço. Sentia-se indisposto por causa do latejar contínuo na sua perna. Dirigiu a Ralph um sorriso doentio.
— Será que tenho outra escolha?
Sobre as suas cabeças, algo se agitou. As garras arranhavam de novo a pedra. Aparentemente, uma das criaturas permanecera ali escondida, mas agora com as ruas de novo silenciosas, descia. Os dois homens permaneceram imóveis, esforçando-se por escutar, esperando para ter a certeza de que a criatura se afastara. O silêncio manteve-se enquanto contavam até dez.
Não se atreveram a esperar mais. Se ali estava uma, podiam seguir-se mais.
— Vamos sair daqui — disse Norman.
Ralph agarrou no archote caído no chão. Atiçou as brasas para gerar uma chama mais intensa, depois pôs-se ao lado de Norman.
— Agarra-te ao meu ombro. Apoia-te em mim.
Norman não discutiu, mas refreou por um instante o homem de cor. A sua voz estava agora séria.
— Se nos virmos em apuros... deixa-me.
Ralph não respondeu.
Norman apertou com força o ombro daquele homem grande.
— Estás a ouvir-me?
— Não ouço conversa de tolos. — Ralph ergueu uma palma da mão na direção do rosto de Norman.
— Oh, não dês uma de Oprah, Ralph. Não vou falar com a mão. — Norman empurrou-o para que andasse. Cambalearam juntos em direção à porta. Norman continuava a falar para se distrair da dor. — Não estou a dizer que me devas atirar aos monstros como isco e fugir a correr. Estou apenas a dizer... sejamos práticos. Se nos virmos em apuros deixa-me num buraco qualquer e foge. Põe a trabalhar essas pernas de antigo jogador de futebol americano.
— Falaremos disso se necessário — murmurou Ralph. Ajudou Norman a passar pela porta baixa.
Norman endireitou-se e o par avançou cautelosamente para a rua. A avenida estava repleta de pedaços flamejantes de tecido. Parecia uma zona de guerra.
— Foi um espetáculo maior do que esperava.
— Mas pelo menos ajudou a afugentar aquelas criaturas — disse Ralph.
Norman olhou de relance para um lado e para o outro da rua. Ralph estava certo. Não havia sinal dos monstros.
— Graças a Deus. — Por ora estavam seguros.
— Vamos — disse Ralph. — Vamos pôr-nos a andar daqui para fora.
— Como queiras, chefe.
Ralph partiu, levando Norman a reboque, o seu ritmo lento, mas firme. Em breve tinham deixado para trás os restos fumegantes da múmia. Apenas o pequeno círculo de luz lançado pelo archote marcava o seu progresso. Norman segurava no flash com firmeza, preparado para afugentar quaisquer atacantes com a luz ofuscante, se necessário. A intervalos de um minuto, ia também lançando uma série de flashes estroboscópicos para indicar a sua localização de modo que Sam ou qualquer um dos outros os pudessem seguir.
Claro que os flashes de luz também indicavam a sua posição às criaturas da gruta, mas tratava-se de um risco calculado. Com Norman ferido, necessitavam de ajuda, de armas a sério, e isso requeria um sinal.
Norman ergueu o flash e lançou uma série de explosões ofuscantes na direção do teto.
— Sinto-me como a porcaria de um pirilampo.
Ralph franziu o sobrolho, desencorajando qualquer conversa. Já eram um alvo bastante visível.
Norman franziu o sobrolho perante a censura silenciosa do companheiro, mas manteve o silêncio, refreando uma resposta. Sabia que Ralph estava a ficar cada vez mais nervoso. O homem de grande porte começara a fazer pausas, olhando rapidamente de relance por cima do ombro, como se pressentisse que algo os seguia.
Norman não ouviu nada, mas a sua cabeça latejava agora de forma contínua. Ainda assim, sabia que Ralph estava enganado em relação a uma coisa. Se estavam a ser seguidos, não seriam as suas poucas palavras sussurradas a atrair as criaturas. Norman analisou a sua perna. O sangue ensopava lentamente as dobras da ligadura. Tendo em conta a falta de luz no local, desconfiava que os outros sentidos das criaturas seriam bastante apurados. Sou uma refeição em fuga, pensou Norman taciturnamente.
Prosseguiram em silêncio, dirigindo-se para a estátua de ouro. Não houve qualquer ataque, mas a gruta tornara-se estranhamente silenciosa. Apenas um uivo ocasional ressoava algures das profundezas da gruta. O ombro de Ralph revelou-se cada vez mais encurvado e tenso sob a mão apertada de Norman.
Por fim, Norman abrandou. Por aquela altura, o seu crânio parecia-lhe dois tamanhos abaixo do normal e os seus passos tinham-se tornado desorientados.
— Preciso de parar para descansar — sussurrou.
— Já? — silvou Ralph, os olhos muito abertos, fitando o ambiente à sua volta.
Norman largou o ombro de Ralph e saltitou até à parede de um túmulo próximo.
— Só uns instantes.
Ralph franziu o sobrolho e moveu o archote para mais perto de Norman. A frustração no seu rosto deu lugar à preocupação.
— Merda, Norman, estás com péssimo aspeto.
— Ainda bem, porque é mesmo assim que me sinto. — Norman deslizou pela fria parede de pedra e sentou-se.
Ralph agachou-se ao lado de Norman, os seus olhos fitando de novo a rua.
— Já não deve faltar muito.
Norman mordeu o lábio inferior, depois pronunciou as palavras que tinha estado a tentar não dizer durante os últimos minutos.
— Ralph, tens de continuar sozinho.
Ele abanou a cabeça, mas não antes de hesitar um instante, algo de que Norman se apercebeu.
— Não te posso deixar aqui.
— Sim, podes. — Norman tentou forçar para a sua voz tanta alegria fingida quanto possível. — Vou enfiar-me neste túmulo, enroscar-me com o seu habitante e esperar que vás buscar o texano com aquela sua grande espingarda.
Suspirando, Ralph considerou aquelas palavras.
— Talvez... — Levantou-se. Até avançou um passo. Depois virou-se subitamente para trás. — Que se lixe! Não me deixaste no rio e eu não vou deixar-te aqui! — Ralph estendeu-lhe o archote. — Pega nisto!
Norman agarrou no archote flamejante.
— O que vais...?
Ralph curvou-se e pegou em Norman por baixo dos dois braços, ignorando o seu guincho de protesto.
— Se for preciso, levo-te ao colo.
Norman contorceu-se por um instante, depois cedeu.
— Larga-me... se estás assim tão determinado, consigo aguentar um pouco mais.
Voltando a pousá-lo no chão, Ralph silvou ao seu ouvido.
— E não quero voltar a ouvir essa conversa de te abandonar.
Norman sorriu, interiormente aliviado por Ralph se ter recusado a partir.
— E eu que pensava que não te preocupavas.
As sobrancelhas de Ralph uniram-se num franzir de sobrolho.
— Põe mas é esse traseiro estropiado a andar.
Norman deu mais um passo em frente, enquanto Ralph o mantinha equilibrado.
— Espero que tenhas razão quando dizes que já não falta muito para a estátua. — Dando mais um passo doloroso em frente, Norman reparou que Ralph hesitava. A sua mão continuava a apertar o braço de Norman, mas ele não o seguia.
Por um instante, Ralph apertou com mais força, depois relaxou.
Norman virou-se.
— Porquê a demora?
A mão de Ralph deslizou do ombro de Norman. Os seus dedos tocaram debilmente no grosso pescoço, a incredulidade estampada no rosto. O sangue jorrava pelos dedos de Ralph. O grande homem de cor estendeu o braço para Norman, suplicante.
— F... foge! — gorgolejou Ralph.
Norman não se conseguia mover. Fitava, enfeitiçado, a lança de osso branco afiado que emergia como um ramo pelo lado do pescoço do amigo.
Ralph caiu de joelhos.
— R... raios! Foge!
Atrás de Ralph, uma criatura alta e pálida erguia-se nos seus membros magros. A criatura que os seguira saíra do seu esconderijo. Enormes olhos negros fitaram Norman enquanto a criatura erguia uma segunda lança de osso e saltava na sua direção, elevando-se sobre as costas de Ralph.
Norman recuou, mas foi demasiado lento na sua perna ferida. A criatura mergulhou na sua direção com a lança de osso erguida.
Agachando-se, Norman preparou-se para o impacto.
Mas Ralph gritou subitamente de raiva e lançou-se em frente. Agarrou o tornozelo da criatura quando esta passou por ele, o lineman a agarrar um passe atabalhoado. Puxou a criatura para longe de Norman e lançou-a pelo ar, contra a parede vizinha.
O seu crânio estilhaçou-se como uma casca de ovo.
Ao mesmo tempo que a sua carcaça colapsava num emaranhado de membros, o mesmo acontecia com Ralph. Bateu no chão com força, demasiado fraco para aparar a sua própria queda.
Norman correu para o seu lado, ignorando a dor quando caiu sobre as mãos.
— Não te mexas! Vou buscar ajuda! O Sam não pode estar longe. — Norman virou gentilmente o rosto do amigo para cima.
Olhos vidrados fitaram-no. Vazios.
A mão de Norman afastou-se. Ralph já tinha partido. Afastou-se gatinhando, as lágrimas toldando-lhe a visão.
À sua volta, a gruta ecoava de novo com uivos barulhentos e os gritos incompreensíveis das criaturas. Mais batedores. Tinham detetado sangue fresco e eram atraídos pela sua fome voraz.
Norman encostou a testa à pedra fria e inspirou fundo várias vezes. Estava demasiado cansado para correr, mas obrigou-se a levantar. Não permitiria que o sacrifício de Ralph fosse em vão. Olhando de relance para o corpo do amigo, ergueu-se de forma vacilante, de archote na mão.
Girou sobre o seu calcanhar bom e deu meia-volta. A menos de três metros de distância estava agachada mais uma daquelas vis criaturas: atarracada, de braços grossos e costas encurvadas. Rosnava a Norman.
Os olhos de Norman semicerraram-se de raiva. Agitou o seu archote.
— Vai-te lixar! — gritou, os punhos cerrados e a tremer. Aplicou todo o seu ódio e tristeza àquele grito, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto.
Como um veado assustado, os olhos da criatura abriram-se muito, claramente sobressaltada pela inusitada reação da presa ferida. Desconcertada, recuou, depois correu por uma rua lateral.
O grito de Norman terminou num soluço engasgado. Limpou o rosto, depois empurrou os óculos mais para cima no nariz e cambaleou em frente.
— É melhor que não se metam no meu caminho! Não estou com disposição para isso!
Maggie ajoelhou-se junto à porta no calcanhar da grande estátua. Tratava-se de um longo encaixe de prata, com cerca de meio metro de largura e dois de altura, quase ao nível das paredes de ouro que a rodeavam. Ficou surpreendida por Sam se ter sequer apercebido dela.
Enquanto Denal apontava a lanterna, tentou uma vez mais passar a ponta do punhal de ouro pela estreita frincha no centro da porta. Era, sem dúvida, um buraco de fechadura, mas até ali não houvera movimento algum da ponta do punhal de ouro que libertasse o ferrolho.
— Menina Maggie — disse Denal baixinho atrás dela, o feixe da lanterna estremecendo. Raramente falavam, e quando o faziam era em sussurros, temendo atrair os ouvidos dos predadores. — O senhor Sam já partir há muito tempo.
Ela imaginou Sam a esgueirar-se pela necrópole, sozinho, e bateu com o punho contra a superfície inclemente, em frustração.
— Eu sei disso, Denal! — silvou. Com exceção de uma rajada de tiros, que pareciam provenientes de uma metralhadora asmática, e um grito penetrante, não tinham existido quaisquer outras provas de que alguém, além das criaturas, continuasse a mover-se por ali.
O rapaz balbuciou uma ténue desculpa.
Suspirando, Maggie inclinou-se para trás, pousando o punhal no colo.
— Não queria gritar contigo, Denal. Eu é que devia pedir desculpas. É que... é que não consigo abrir esta porcaria e estão a contar comigo. — Maggie sentiu o aproximar das lágrimas.
Denal pousou a mão no ombro dela.
Até aquele pequeno consolo fez muito para acalmar os seus nervos frágeis. Inspirou fundo, estremecendo, e obrigou-se a acalmar-se. Olhando de relance para Denal, tocou ao de leve na sua mão.
— Obrigada. — Fitou os olhos assustados do rapaz, voltando depois a avaliar a porta. — Denal, desculpa ter-te metido nesta confusão.
— Não pedir desculpas. Ser escolha minha espiar Gil. Eu querer ajudar. A minha mamã, antes de morrer, dizer para ajudar os outros. Ser corajoso, Denal, dizer ela.
— A tua mãe devia ser uma mulher maravilhosa.
Denal refreou as lágrimas.
— Sim.
Bem, por Cristo, pensou ela silenciosamente, não vou permitir que o filho dessa mulher maravilhosa morra aqui em baixo.
Com uma determinação renovada, ergueu o punhal de ouro; a lâmina de trinta centímetros cintilou à luz da lanterna. Lembrou-se do truque realizado por Sam, ao transformar o punhal. Inclinou a faca e examinou o cabo esculpido, o deus com presas Huamancantac. Deslizou os dedos pelos contornos do punho. Não encontrou qualquer botão que desencadeasse a mudança.
— Como é que o fizeste, Sam?
Maggie olhou de relance para a porta, depois para a estátua. Precisava de pensar. Porquê uma porta na parte de trás de um calcanhar? O mito grego de Aquiles ocorreu-lhe. O guerreiro invencível cujo único ponto fraco era o calcanhar. Mas não existia um mito correspondente entre os incas ou qualquer uma das tribos do Peru.
Ainda assim, a coincidência não lhe saía da cabeça. Poderia haver alguma ligação? Muitos mitos atravessavam culturas e continentes. Só por nunca ter ouvido um tal mito inca não significava que não existisse. Sem uma linguagem escrita, grande parte da herança inca perdera-se com o passar dos anos. Talvez também as histórias do equivalente inca de Aquiles se tivessem perdido.
Erguendo o punhal, recordou o mito grego. O grande Aquiles fora, por fim, derrubado com um golpe no calcanhar. Mas não fora uma faca a derrubar o guerreiro protegido pela magia. Fora uma seta. Abanou a cabeça perante aqueles pensamentos inúteis.
Se ao menos fosses uma seta, sussurrou ao punhal.
Nas suas mãos, o cabo ficou subitamente frio e a lâmina de ouro estendeu-se e afunilou-se, florescendo na sua ponta a afiada cabeça de uma seta.
— Credo! — disse Maggie de rompante, levantando-se. Virou-se para Denal, segurando a faca transformada. — Olha!
Denal, contudo, fitava o outro lado, olhando a necrópole de boca aberta. Recuou na direção dela, erguendo um braço.
— Menina Maggie...?
Cravou o olhar no local que ele apontava. No limite mergulhado na sombra dos túmulos, agachavam-se formas pálidas, monstruosas. Tinham-se aproximado muito silenciosamente, não haviam deixado escapar nem um rosnido ou um gemido. Maggie percebeu que vários rostos fitavam a estátua gigante, mas nem todos. Vários pares de olhos famintos fitavam-nos diretamente.
Como se soubessem que tinham sido vistos, as criaturas começaram a deslizar, gatinhar e avançar, emergindo dos limites da necrópole. Silenciosas, como sombras retorcidas. Deviam ser pelo menos duas dúzias delas.
Maggie puxou Denal para trás, para o pequeno esconderijo entre os dois calcanhares do rei inca. Denal tinha uma lanterna e o que restava do seu único archote. Não lhes permitiria manter as hordas ao longe. Precisavam de ajuda. Maggie arriscou-se a dar um passo em frente e gritou com toda a força dos seus pulmões. Não havia razão para continuar a esconder-se no silêncio.
— Sam! Socorro! — O seu chamamento ecoou através da grande gruta.
Um par das criaturas mais próximas, enfurecidas pelo ruído, correu na direção dela. Eram da classe dos soldados da matilha, saltando nas suas pernas musculosas, os olhos semicerrados em fendas negras, as presas expostas. Assemelhavam-se a ursos sem pelo, os focinhos abertos enquanto atacavam.
Maggie brandiu a sua única arma, o punhal agora com a forma de uma seta. Se conseguisse matar um deles...
Aquele de entre os dois que estava mais próximo ergueu-se da sua corrida agachada, pronto para a atacar, depois os seus olhos saltaram para aquela arma. A criatura uivou como se tivesse sido atingida e caiu para trás, colidindo com o seu parceiro. Os dois emaranharam-se, as garras arranhando-se mutuamente enquanto se esforçavam por recuar. Os seus olhos semicerrados tinham-se aberto em puro pânico. Gemendo, recuaram para junto dos outros.
Maggie emergiu um pouco mais do seu esconderijo. Ergueu a arma bem alto. Um guincho de medo deslizou pelas criaturas ali reunidas. Como um cardume de peixes sobressaltados, deram meia-volta e fugiram.
Baixando a faca transformada, Maggie franziu o sobrolho à seta de ouro. O que tinha acontecido? Deslizou o dedo pelo cabo da seta. Olhou de relance para a porta trancada. Mais pela reação das criaturas do que por um qualquer conhecimento interior, Maggie desconfiou que detinha de facto a chave para a estátua inca. Era óbvio que a temiam. Mas porquê? Será que as criaturas tinham alguma recordação assustadora dos incas que outrora por ali haviam viajado com aquela estranha faca? Se assim fosse, como? Já se havia passado tanto tempo, pelo menos cinco séculos. Seria algum tipo de memória coletiva, um instinto genético entre aquela matilha variada?
Avançando em direção à porta de prata, Maggie estava determinada a pôr a sua teoria à prova. Agachando-se, deslizou a seta esguia através da fenda. Se aquela se revelasse a chave, isso sugeria igualmente que os incas tinham partilhado alguns mitos comuns com os gregos. Aquele facto, só por si, merecia toda uma tese de doutoramento. Sustendo a respiração, deslizou a seta até ao fundo.
Ouviu-se um pequeno clique... e a porta abriu-se.
Do outro lado encontrava-se uma câmara escura.
Maggie olhou para trás. Olhou de relance para a mão. Com a porta aberta, o punhal de ouro regressara à sua forma original. A longa lâmina cintilou sob a luz. Maggie ergueu a arma em direção à porta. Não esquecera as armadilhas da outra câmara. Ainda assim, só havia um caminho a seguir. Sem se virar, acenou com a mão livre na direção de Denal.
— Traz-me a lanterna.
Apontando a luz para a frente, apercebeu-se de que, para lá da porta, havia uma câmara pequena, sem adornos, o piso feito de ouro como a estátua. Era grande o suficiente para todos eles. Inclinou-se para a frente e ergueu a luz. Não parecia ter teto. O feixe ascendia pelo coração oco da estátua. Parecia prosseguir para sempre.
Voltando a emergir da estátua, deslizou a luz ao longo do comprimento do rei inca. Sobre a sua cabeça, as palmas das mãos de ouro erguidas seguravam o telhado da gruta. Para esconderijo, não era propriamente discreto.
Maggie virou-se para fitar a necrópole escura. Mas onde raio andavam os outros?
Sam estacou quando ouviu o pedido de ajuda gritado por Maggie. Olhou em frente, por um instante, para o labirinto de ruas. Durante a última meia hora não houvera sinais de Ralph ou Norman. A última coisa que ouvira fora um «vão-se lixar» explosivo, depois mais nada. As ruas permaneciam em silêncio.
Onde raio estão, rapazes?
Sam tinha de aceitar a possibilidade de ambos estarem perdidos. Em silêncio, pediu perdão, para o caso de estar errado, e deu meia-volta. Avançou de novo em direção à estátua, a correr. Já não tendo de procurar às cegas os dois homens, Sam podia mover-se mais depressa. Conhecia o caminho de volta à estátua, sabia quais as voltas certas e onde se encontravam os becos sem saída.
Alcançou a última rua, a avenida direita que seguia para a praça central. A partir dali, conseguia inclusivamente ver o brilho do archote de Maggie que realçava a base da estátua. Puxando o seu chapéu Stetson sobre a testa, avançou pela rua.
Ainda não dera dois passos quando um grito de dor lhe atraiu a atenção para a direita. Sam virou-se, de espingarda erguida. Descendo uma curta rua lateral, uma figura deslizava ao longo da parede esquerda, encurvada e fraca. A sua forma era demasiado escura para ser a de um dos predadores das grutas.
Sam ergueu o archote e, por sua vez, foi ofuscado por uma súbita explosão de luz. Alguém lhe gritava:
— Põe-te a andar, seu merdas!
Pestanejando perante o brilho, Sam baixou a espingarda.
— Norman?
A figura parara a alguns metros; uma voz mais baixa, mais fraca, respondeu-lhe.
— Uh, Sam? — Norman baixou o flash que tinha utilizado para ofuscar o texano.
Sam deixou escapar um grito e correu para o lado de Norman. A sua alegria rapidamente desapareceu quando viu o ferimento do fotógrafo.
— Onde está o Ralph?
Norman guardou o flash no bolso e limitou-se a abanar a cabeça. Os seus olhos não se cruzaram com os de Sam. Em vez disso, perguntou:
— E a Maggie e o Denal?
— Estão na estátua — disse Sam, a sua voz baixa. A perda de Ralph era como um peso morto sobre o seu peito, mas não tinham tempo para o chorar. Endireitou-se e estendeu um braço para puxar Norman para debaixo do seu. — Temos de nos apressar. Podem estar em apuros.
Norman recuou, afastando o braço de Sam. As lágrimas acumularam-se.
— Não permitirei que mais ninguém morra.
— Tretas, é só a tua perna. — Sam debateu-se com Norman e acabou por apanhar o ombro do fotógrafo por baixo do braço. — Como é que te safas numa corrida a três pernas?
Norman abriu a boca, claramente determinado a protestar, mas um rosnido feroz ergueu-se atrás deles das profundezas da rua. Ambos espreitaram de relance para trás; depois Norman apoiou-se mais pesadamente em Sam.
— Vamos descobrir.
Sam quase transportava ao colo o fotógrafo ferido, mas não ia deixar o homem para trás. Regressaram à rua principal e avançaram a passo rápido, coxeando e saltando. Os uivos aumentaram à sua volta. Pareciam estar a avançar paralelamente.
— É... é a minha perna — gemeu Norman ao ouvido de Sam. Começara a tentar afastar-se. — O sangue está a atraí-los. Se me deixares aqui, pode ser...
— Lamento, não servimos refeições a bordo — respondeu Sam, puxando Norman para si, recusando-se a permitir que o homem se sacrificasse.
Foram avançando apressadamente por entre os gritos cada vez mais fortes dos predadores. A estátua crescia demasiado lentamente à sua frente.
— Não vamos conseguir — disse Norman, acenando na direção de uma mão-cheia de formas pálidas que saltitavam pelos telhados atrás deles, movendo-se a uma incrível velocidade. Uma delas parou para uivar em direção ao teto da gruta.
— Batedores — disse Sam. — Viram-nos e estão a chamar reforços. — Sam manteve-se em movimento, virando a Winchester para trás e disparando uma bala. Fê-lo às cegas. A bala bateu numa parede e saltitou entre as paredes dos túmulos de ambos os lados. Algo gritou fora do alcance da sua luz.
Norman balbuciou com um sorriso de satisfação:
— Tens mesmo de ter cuidado com esses malditos ricochetes.
Colocando a arma ao ombro, Sam arrastou o fotógrafo consigo. A Winchester contava apenas com uma bala na câmara, depois Sam teria de a recarregar, o que significava parar. Não sobreviveriam a uma pausa.
Uma voz gritou-lhes do fundo da rua, atraída pelo disparo.
— Sam! Depressa! Encontrei uma forma de entrar na estátua! — Era Maggie. Ele viu a sua forma pequena no final da rua, delineada pela luz do archote.
— Então, entra! Já! — Uivou-lhe Sam em resposta.
— Ponham-se mas é a andar! Não se preocupem comigo!
Norman olhou de relance para a massa de criaturas que corria atrás deles.
— Pessoalmente, estava mais preocupado com eles — disse amargamente.
Com os pulmões a arder, as pernas doridas, Sam forçou-as a avançar ainda mais depressa. Esforçou-se por encurtar a distância para Maggie. Estava agora suficientemente perto para ver que os seus olhos se abriam consideravelmente ao ver a companhia que os seguia.
— Meu Deus — disse ela. — Depressa! — exclamou, correndo na direção deles.
— Para trás! — arquejou Sam.
Mas ela ignorou-o. Correu na direção deles com Denal no seu encalço. Enquanto Maggie se aproximava, foi agitando o punhal de ouro sobre a cabeça e assobiando uma nota penetrante, como um pastor que chama os seus cães.
Que raio achava ela que fazia?
Sam olhou ansiosamente de relance para trás de si. Os primeiros elementos daquela pálida legião desciam dos telhados para a rua, quase em cima deles. Sam empurrou Norman para a frente e virou-se para enfrentar o ataque iminente com uma só bala na sua Winchester.
Maggie apareceu ao lado de Sam.
— Não faças isso! — Baixou-lhe a espingarda e avançou. Brandia a longa lâmina.
— Maggie! — Mas para grande choque de Sam, o emaranhado de criaturas estacou, as suas garras raspando na pedra. Olhos negros fixavam-se na faca. Mesmo por cima das suas cabeças, os batedores recuavam das beiras dos telhados, retirando-se. Os que tinham sido apanhados nas ruas agacharam-se ao ver a faca. Recuaram lentamente.
Maggie fez sinal ao seu grupo para que fizesse o mesmo.
— Não sei durante quanto tempo o seu medo irá sobrepor-se à fome de carne fresca. — Maggie olhou de relance para o grupo com olhos preocupados. — Onde está o Ralph?
— Morto — disse Norman, baixinho.
— Oh, meu Deus, não... — murmurou Maggie, voltando a proteger o grupo com o punhal.
Sam mantinha-se junto ao ombro de Maggie. Olhou de relance entre o punhal e a matilha reunida.
— Por que razão o temem?
— Não sei — respondeu Maggie com a voz tensa, carregada pela notícia da morte de Ralph. — Neste momento, tudo o que me interessa é que funciona.
Sam concordava com ela, mas não conseguia impedir a sua mente de tentar compreender a estranha reação das criaturas. Lembrou-se da sua avaliação anterior de que as criaturas poderiam pertencer a alguma linhagem de macaco ou homem pré-histórico, criaturas das grutas que os incas tivessem descoberto ali em baixo e reverenciado como mallaqui, espíritos do submundo. Mas porque temeriam aquele velho punhal inca?
Sam franziu o sobrolho, pressentindo que ainda estava muito distante de uma verdadeira resposta em relação aos mistérios daquela gruta. Mas tal como Maggie dissera, a primeira coisa que um bom investigador fazia ao investigar algo de estranho era sobreviver.
De ambos os lados, a fileira de túmulos desapareceu de súbito. Tinham alcançado a praça central.
— Por aqui — disse Maggie, virando por fim as costas à massa de criaturas agachadas ao fundo da rua. Conduziu-os rapidamente para a porta que Sam avistara antes. Contornando o calcanhar, Sam viu-a agora aberta.
— Como é que a conseguiste abrir? — perguntou Sam.
Maggie entregou-lhe o punhal.
— Parece que a arma também é uma chave mestra. Também mudou para se adaptar a esta fechadura.
— Estás a brincar? — Sam rodou o punhal para um lado e para o outro, examinando-o. — Como é que funcionou?
Maggie franziu o sobrolho.
— O problema é esse. Na verdade, não sei.
Arquejando e silvando, Norman chegou junto deles, apoiando-se em Denal como se este fosse uma muleta humana.
— Temos companhia! — arquejou, apontando para trás.
Sam virou-se. As criaturas pálidas tinham recomeçado a avançar por entre as ruas mergulhadas nas sombras e penetrado na praça central. Começaram a ouvir-se rosnidos graves. Sam reuniu o grupo, levando-os através da porta para o calcanhar dourado.
— Parece que a fome está a ganhar.
Maggie entrou.
— Depressa, Sam! Ajuda-me com a porta!
Sem afastar os olhos da matilha em aproximação, Sam recuou até à entrada estreita. Enquanto a atravessava, a alça da espingarda ficou presa na dobradiça da porta. Sam puxou-a, mas isso fez apenas com que a alça de cabedal ficasse ainda mais presa.
— Maldição!
Sentindo a sua atrapalhação, uma das criaturas saltou em frente, rosnando e expondo os dentes e as garras. Um soldado. Quando se aproximou, silvou a Sam, a saliva espumando-lhe na boca, e varreu o ar com uma garra afiada tentando apanhar-lhe a garganta.
Recuando, Sam aparou o ataque com o punhal de ouro. A faca tocou na pele pálida, mas fora como um alfinete num touro. A criatura arquejou, gritando de raiva. O sangue salpicou Sam, projetado pelo ferimento, enquanto o texano continuava a tentar soltar a espingarda.
— Deixa-a! — gritou-lhe Maggie.
— É a nossa única arma! — Com uma mão na espingarda, Sam mantinha o punhal de ouro entre ele e o seu adversário. Outras criaturas pálidas guinchavam e gritavam agora atrás da ferida. Tinham sentido o cheiro do sangue.
Sam fitou os olhos da criatura que se erguia sobre ele. Naqueles poços negros, Sam sentiu uma inteligência sombria. Ergueu o braço ferido, o sangue vermelho deslizando pela sua pele pálida no ponto onde a faca o ferira. Um rosnar de ódio ergueu-se-lhe da garganta. Sam preparou-se para o golpe.
Mas em vez disso a criatura foi subitamente puxada para trás como se se tratasse de uma marioneta dirigida por uma mão invisível. O braço erguido tornou-se negro, a partir da mão com garras, espalhando-se depois ao longo do braço como um veneno flamejante. Plumas de fumo erguiam-se do membro. Uivando de dor, a criatura caiu para trás contra os outros elementos da sua espécie. O braço, agora queimado, desfez-se e caiu em cinzas, ainda assim continuando a arder. A criatura rebolou pelo chão de pedra. Em poucos segundos, o seu tronco pálido e os restantes membros enegreceram a ponto de se equipararem ao granito por baixo de si. O fumo desprendia-se em volutas em redor da figura que se contorcia; as chamas crepitavam através da pele estalada.
Sam sabia aquilo que estava a testemunhar. O raro fenómeno que já tinha sido documentado no passado, mas nunca testemunhado: Combustão espontânea.
Em choque, Sam recuou, tendo-se esquecido da espingarda. Agora que já não a puxava, a arma limitou-se a cair ao chão. Deixou-a onde ela caíra, brandindo antes o punhal.
Para lá da porta, as pálidas criaturas afastavam-se do seu parceiro carbonizado. A grande criatura não se movia, uma escultura de cinza no chão de pedra.
Maggie agachou-se e agarrou o cabo da Winchester, arrastando-a para a pequena câmara com eles.
— Ajuda-me com a porta.
Sam acenou com a cabeça. Olhou de relance para o punhal de ouro, depois prendeu-o cuidadosamente no cinto. Com as mãos livres, juntou-se a Maggie e puxaram a pesada porta, fechando-a. Uma vez fechada, o ferrolho trancou-a, com um clique.
Maggie encostou-se à entrada de prata.
— Agora devemos estar em segurança.
De súbito, o chão por baixo deles começou a ribombar. Todos ficaram tensos.
— Ótimo, tinhas de dizer isso. — Os olhos de Norman abriram-se muito, fitando o chão.
Por baixo dos seus pés erguia-se um borbulhar rouco. Parecia que um rio poderoso corria e redemoinhava por baixo do chão. O som tornou-se ensurdecedor, ecoando pela estátua oca sobre as suas cabeças.
— Mas o que raio é isto? — perguntou Maggie.
— Mais uma armadilha! — gritou Sam.
— Por aqui — disse o abade Ruiz, virando-se e percorrendo o longo corredor estreito.
Henry deixou-se ficar para trás, enquanto o abade prosseguia com a visita guiada ao complexo de investigação por baixo da Abadia de Santo Domingo. Joan, as roupas de rua agora cobertas pelo fato-macaco branco esterilizado do laboratório, avançava ao lado do homem encorpado enquanto, atrás deles, Henry marchava ao lado de frei Carlos, de rosto estoico, que observava o grupo sob as pálpebras semicerradas, desconfiado e vigilante. O quarteto, envergando agora fatos de laboratório brancos a condizer, parecia parte da equipa de investigação que trabalhava naquele conjunto de laboratórios. Apenas a Glock de 9 milímetros que Carlos empunhava com o punho cerrado sugeria o contrário.
Durante grande parte da tarde, o abade Ruiz fora saltando de laboratório em laboratório, realçando os estudos avançados que ali estavam a ser conduzidos: das ciências botânicas à medicina nuclear, passando até por um grande laboratório informático dedicado à descodificação do genoma humano. Henry realizou um cálculo mental. Escondido no coração do labirinto inca, aquela colmeia de laboratórios devia abarcar todo o coração da abadia. Henry nem acreditava que fora possível manter aquele complexo secreto durante tanto tempo.
Joan falou enquanto o abade Ruiz prosseguia pelo corredor, fazendo a mesma pergunta que também o estava a incomodar.
— Porquê mostrar-nos tudo isto?
Ruiz assentiu com a cabeça, claramente já à espera da pergunta.
— Como disse antes, para obter a vossa cooperação. Mas também para que compreendam o significado do nosso nível de compromisso, para que aquilo que vos vou mostrar a seguir seja encarado no devido contexto. — O abade virou o rosto suado para Henry e Joan. — Ainda que possa agir com fé na minha religião, desconfio que vocês necessitarão de provas mais concretas. Desconfio que, como o apóstolo Tomé, precisarão de colocar o dedo na ferida de Cristo antes de acreditarem no milagre que estão prestes a testemunhar.
Henry aproximou-se mais de Joan, falando pela primeira vez em mais de uma hora.
— Milagres? Essa é a primeira referência religiosa que o ouço fazer desde que descemos até aqui. O que estão verdadeiramente a fazer aqui? — Henry acenou com o braço de modo a abarcar todo o complexo, enquanto prosseguia pelo corredor. — Descontando os assassínios e os raptos, em que medida é que isto é um empreendimento da Igreja Católica?
O abade assentiu com a cabeça, num gesto cúmplice.
— Venham. Encontrarão a resposta já aqui à frente.
Mesmo com a Glock de 9 milímetros apontada aos rins, Henry estava estranhamente intrigado. Sendo um cientista e historiador, qualquer que fosse o mistério que aqui se escondesse Henry não precisava de uma arma para continuar a seguir o abade. Em que se teria envolvido?
Joan estendeu o braço e tomou-lhe a mão, quando se aproximaram do final do corredor. Embora os seus olhos também brilhassem de curiosidade, Henry conseguia perceber que ela se sentia nervosa. A palma da mão estava quente na dele. Puxou-a suavemente para o seu lado.
A bloquear o caminho havia uma imensa parede de aço inoxidável. Ao centro havia uma porta enorme, suficientemente grande para permitir a passagem de um elefante. Ferrolhos gigantescos mantinham a porta no lugar. De um dos lados estava uma fechadura eletrónica com leitor de palma da mão e teclado.
Era óbvio que à sua frente estava a câmara mais central do complexo, o coração do santuário.
Ruiz falou, sem se virar.
— Apenas os mais devotos alguma vez entraram nesta câmara. O que se encontra à nossa frente é a esperança de salvação e redenção da Humanidade.
Henry não se atreveu a falar, devido à enorme curiosidade. Não queria dizer nada que pudesse dissuadir o abade de abrir o cofre. Um homem tinha sido assassinado para manter aquele segredo e Henry estava determinado a descobrir que segredo era esse.
Joan não tinha uma igual devoção ao mistério.
— Porquê deixar-nos ver? — perguntou.
Ruiz continuou sem se virar. Os seus olhos estavam fixos na porta, a voz carregada de reverência.
— Todas as respostas estão ali dentro. — Pegou no anel de sinete e encostou-o a um nicho. O leitor de palmas das mãos iluminou-se e o abade assentou a palma da mão esquerda sobre a superfície; depois, com a outra mão escondida pelo corpo, introduziu o código que lhes daria entrada.
Grossas trancas abriram-se com o rolar de pesados rolamentos e os ferrolhos deslizaram suavemente para trás, libertando a porta. Enquanto o abade Ruiz recuava, a porta gigantesca abriu-se na direção deles. Devia ter, pelo menos, sessenta centímetros de espessura. Através da abertura, o odor perfumado do incenso deslizou para o exterior. Depois da esterilidade dos laboratórios, a fragrância era enjoativa. Uma brisa fresca transportava o cheiro, como se a divisão fosse refrigerada.
Mas nem o incenso nem o frio pareceram incomodar o abade Ruiz. O homem rotundo ergueu os braços numa súplica, enquanto a porta se abria lentamente.
Uma vez a porta completamente aberta, o abade entrou com solenidade e conduziu-os em frente. Não proferiu uma palavra, e Henry sentiu que falar agora seria uma blasfémia contra o momento. Manteve os lábios fechados, mas os olhos muito abertos de expectativa.
Enquanto o abade Ruiz avançava cautelosamente através da entrada, os sensores no interior do cofre acenderam um conjunto de luzes de halogéneo. A divisão iluminou-se numa explosão de claridade, como um nascer do sol subterrâneo.
Joan arquejou. Do lugar onde se encontrava, vira o que se encontrava à sua frente. Henry teve de contornar primeiro a forma eclipsante do abade para ver que mistério conteria aquela câmara. Enquanto ultrapassava o limiar da porta, a sua mão largou a de Joan. Henry tropeçou, atordoado, ao entrar na divisão.
A câmara gelada era um quadrado com cerca de dezoito metros de lado. Em cada canto um pequeno braseiro fumegava com um fino pau de incenso. Em cada uma das paredes de titânio viam-se penduradas monstruosas cruzes de prata, todas da altura de um homem. Um crucifixo ainda maior pendia do teto a uns três andares de altura.
Mas por espantoso que tudo isso fosse, não era nada comparado com o que se encontrava por baixo da cruz pendurada. No centro da divisão, sobre um altar de prata ornamentado, estava uma escultura de um homem em tamanho real. Henry aproximou-se mais. A figura repousava como se dormisse, envergando uma longa túnica, o cabelo comprido a servir de almofada, as mãos cruzadas sobre o ventre como se jazesse em paz. O rosto estava relaxado no sono. Uma paz profunda emanava da figura. Henry deslizou para o lado, de modo a ver melhor o rosto.
Sobre a testa da figura repousava uma coroa de espinhos.
Oh, céus!
Era a figura de Cristo... esculpida em ouro maciço!
Não, não era ouro... Henry não precisou de se aproximar mais para perceber o seu erro. Os holofotes de halogénio brilhavam sobre a figura de Cristo adormecido. O metal quase parecia fluir sob a luz. Não, aquilo não era ouro! Era el Sangre del Diablo. Toda aquela escultura em tamanho real fora moldada a partir do Sangue de Satanás.
Henry sentiu que os joelhos fraquejavam. As palavras fugiam-lhe. O frio da divisão invadiu-lhe os ossos. Não era de admirar que a divisão fosse refrigerada. Se estivesse à temperatura ambiente, o metal suave perderia o seu fino pormenor, como a cruz no laboratório da Johns Hopkins.
O abade Ruiz avançou para um simples banco de oração em madeira que se erguia em frente ao altar e ajoelhou-se na sua superfície dura, movendo os lábios numa oração silenciosa. Uma vez terminado, levantou-se, abriu o fato de laboratório esterilizado e tomou nas mãos o gobelé que continha a amostra dourada do laboratório de Joan. A substância ainda mantinha a rude forma piramidal. O abade Ruiz beijou as pontas dos dedos, depois desarrolhou o frasco e introduziu a mão no gobelé para retirar dele o seu conteúdo. Com delicadeza, as mãos grandes do homem desalojaram o metal do vidro e libertaram-no. Inclinando-se para a frente, colocou reverentemente a pirâmide no topo da escultura, perto das mãos postas da figura de Cristo.
— Venha — disse o abade solenemente, regressando ao banco de oração. — A descoberta é sua, a oferenda é sua, professor Conklin. Deveria partilhar isto.
Ruiz voltou a ajoelhar-se, curvando a cabeça em oração. Henry avançou para o lado do abade, com Joan ao seu lado. Carlos continuava de pé junto da porta, segurando a arma com firmeza, a expressão empedernida.
O abade Ruiz orou, as palavras balbuciadas, o rosto humildemente coberto pelas mãos.
Henry estudou a figura, a divisão. Não sabia o que esperar. Ainda assim, o que aconteceu chocou-o; Henry teve de pestanejar várias vezes para se assegurar que não se tratava de uma ilusão de ótica.
A pirâmide composta pela Substância Z derreteu-se e fluiu sobre a escultura. As mãos pousadas afastaram-se o suficiente para que o metal derretido fluísse sob elas. Os dedos dourados voltaram a aquietar-se, o fluxo de Substância Z formou um lírio perfeito, um botão evocativo e um caule esguio, apertado entre os dedos dourados de Cristo.
O abade suspirou e baixou as mãos, um sorriso beatífico estampado no rosto. Ergueu-se.
— O que aconteceu? — balbuciou Joan.
— A vossa amostra foi acrescentada à nossa... trazendo-nos um passo mais perto do nosso objetivo. — O abade recuou do altar, levando os outros consigo.
— Como é que fez aquilo? — perguntou Henry, apontando para a estátua.
— Testemunharam a razão pela qual o metal foi considerado demoníaco pelo Vaticano. É a propriedade mais peculiar de el Sangre del Diablo. — Ruiz virou-se para Joan. — Lemos as vossas notas e relatórios. Como vocês, aprendemos ao longo dos anos que o metal reage a quaisquer fontes de energia externas: eletricidade, raios X, radiação, energia térmica. Usa toda e qualquer fonte de energia com uma eficácia perfeita, alterando o seu estado de sólido para líquido. Mas o que ainda não tinham descoberto foi a propriedade que os incas demonstraram aos frades dominicanos que aqui chegaram primeiro.
— E que propriedade é essa? — perguntou Henry.
O olhar do abade Ruiz saltou para Henry.
— Também responde ao pensamento humano.
— O quê? — arquejou Joan.
Henry, embora chocado, manteve o silêncio. Recordou como a amostra tentou replicar a cruz dominicana quando a segurava e pensava no crucifixo.
O abade continuou.
— Com uma concentração completa, responderá às ondas alfa do cérebro, como aos raios X ou às micro-ondas. Derreter-se-á e fluirá assumindo a forma fixa na mente do suplicante, seja ela qual for.
— Impossível... — balbuciou Joan, mas a voz soou fraca.
— Não, não é impossível. O cérebro pode produzir emanações significativas. Quantificáveis e mensuráveis. No início dos anos setenta, experiências realizadas por grupos de estudo, tanto russos como da CIA, demonstraram que determinados indivíduos, de características únicas, conseguiam manipular objetos ou influenciar películas fotográficas sem nada mais do que a força da sua vontade. — Ruiz olhou de relance para a figura de Cristo. — Mas neste caso, não é o indivíduo que é único, mas a substância. Está sintonizada com as emanações do cérebro humano, com os pensamentos do homem.
Henry consegui por fim falar, embora quase se tivesse engasgado.
— Mas isto é uma experiência espantosa. Por... porquê o segredo?
— Para preservar a esperança da salvação da Humanidade — afirmou solenemente o abade Ruiz. — De acordo como o Santo Édito do papa Paulo III, em 1542, a nossa ordem espanhola dos dominicanos recebeu o fardo de recorrer a quaisquer meios para impedir que o metal corrompa a Humanidade. Para manter a sua existência em segredo e santificá-lo.
Henry semicerrou os olhos.
— Está sempre a dizer isso: a sua ordem. O que quer dizer com isso? Quem são vocês exatamente?
O abade fitou Henry como se avaliasse se ele era ou não merecedor de uma resposta. Quando falou fê-lo em voz baixa e com um toque de ameaça.
— Quem somos? A nossa ordem é uma das mais antigas ordens dominicanas, fundada no século treze. Chamaram-nos outrora os Guardiães do Interrogatório. Foi a nossa ordem que acompanhou os Conquistadores até ao Novo Mundo, a terra dos pagãos. Enquanto descobridores de el Sangre, foi-nos oferecida a tarefa de confiscar cada grama do metal demoníaco e sujeitar todos os que estavam associados à sua descoberta a interrogatório, até o conhecimento de el Sangre ter desaparecido do seio da Igreja.
Henry começou, lentamente, a compreender. Lembrou-se do símbolo das espadas cruzadas no anel de frei de Almagro.
— Oh, céus — balbuciou.
O abade Ruiz endireitou-se, sem vergonha alguma.
— Somos os últimos inquisidores.
Henry abanou a cabeça, incrédulo.
— Mas foram dissolvidos. Roma repudiou a Inquisição Espanhola no século dezanove.
— Apenas no nome... o Santo Édito do papa Paulo III nunca foi revogado.
— Por isso fugiram para aqui? — perguntou Henry.
— Sim, longe dos olhares curiosos e muito mais perto da fonte de el Sangre del Diablo. A nossa ordem considera esta missão demasiado vital para ser abandonada.
— Missão com que objetivo? — perguntou Joan. — Decerto com toda a investigação que têm vindo a realizar aqui não acreditam ainda que o metal esteja conspurcado pelo diabo?
Aquelas palavras geraram um sorriso paternalista no rosto do abade.
— Não. Pelo contrário, acreditamos agora que el Sangre está abençoado. — O sorriso cresceu perante a consternação nos rostos deles. — Para que o metal seja capaz de adivinhar a mente do homem e transformar os seus pensamentos numa realidade física, a mão de Deus tem de estar envolvida. Nos nossos laboratórios, a nossa ordem trabalha há séculos para refinar o material e para expandir a sua recetividade ao pensamento puro.
Henry franziu o sobrolho.
— Mas com que fim?
O abade respondeu num tom prático.
— Para que possamos alcançar a mente de Deus.
Henry não conseguiu esconder o choque. Joan aproximou-se mais dele, tocando-lhe na mão.
Ruiz prosseguiu:
— Acreditamos que com suficiente minério tecnologicamente refinado podemos criar um recipiente suficientemente sensitivo para receber a mente ou o espírito de Nosso Senhor.
— Só pode estar a brincar — arquejou Joan.
A expressão do abade revelou-se sombriamente estoica.
— Então, e depois? — perguntou Henry, sentindo que algo estava a ficar por dizer.
O abade inclinou a cabeça.
— Professor Conklin, esse é o segredo mais bem guardado da nossa seita. Mas se pretendemos conquistar a sua cooperação, suponho que tenha de saber tudo. A derradeira revelação. — Ruiz avançou para o altar. — Venha. Tem de compreender.
Henry pressentiu que o abade, embora pudesse falar de segredos guardados, na realidade apreciava o espetáculo dirigido aos seus convidados. Em alguns aspetos, isso preocupava Henry. Revelar aqueles segredos tão abertamente sugeria que a ordem não tinha qualquer genuína preocupação com a possibilidade de Joan ou Henry virem a partilhar aquele conhecimento com o mundo. A confiança do abade e a sua disponibilidade para falar, acima de tudo, deixavam Henry nervoso.
Uma vez no altar, o abade Ruiz acenou com um braço sobre a figura de ouro.
— Eis o nosso derradeiro objetivo.
— Não compreendo — disse Joan. Henry partilhava a sua confusão.
O abade tocou na escultura com um dedo trémulo.
— Eis um recetáculo vazio, que responde apenas aos nossos pensamentos. Mas com material em bruto suficiente, esperamos poder alcançar o espírito de Deus. Trazer a Sua vontade para esta forma física.
Henry fitou a forma adormecida de Cristo.
— Não está a sugerir...
— Acreditamos que foi pela providência que el Sangre foi deixado nas mãos da Igreja aquando da sua descoberta no Novo Mundo. Tratou-se de um desafio à nossa fé. Um teste de Deus. Se conseguirmos reunir uma quantidade suficiente desta substância divina, a mente de Deus avançará e penetrará no nosso recetáculo, dando-lhe vida. — O abade Ruiz virou-se para Henry, os seus olhos brilhantes de zelo. — O nosso objetivo é trazer um Deus vivo de volta a esta Terra.
— Está a falar sobre iniciar a Segunda Vinda! — exclamou Joan.
O abade Ruiz acenou com a cabeça, virando-se para fitar a figura de ouro.
— Cristo renascido, aqui na terra.
Henry abanou a cabeça. Aquilo era uma loucura.
— Então porquê nós? Para que precisa de nós?
Ruiz sorriu e levou-os para longe.
— Porque descobriram o que restava de frei Francisco de Almagro, um dos nossos predecessores. No século dezasseis, foi enviado em busca de um depósito de el Sangre que se dizia existir, um depósito tão grande que os incas alegavam que «corria do cimo das montanhas como água». Ele nunca regressou e presumimo-lo assassinado. Mas quando o arcebispo Kearney, em Baltimore, entrou em contacto comigo, a nossa esperança foi renovada. Talvez o nosso antepassado tivesse descoberto o filão, embora tendo perecido antes de partilhar connosco o conhecimento. — Olhou de relance para a figura adormecida de Cristo. — Esperamos, professor Conklin, que tenha encontrado o nosso caminho para alcançar Deus.
— Acredita, realmente, que esse filão mítico está na minha escavação?
O abade ergueu as sobrancelhas.
— O nosso agente no local tem-nos enviado notícias. Os sinais parecem promissores. Mas depois do acidente no templo subterrâneo, vamos demorar algum tempo a...
Henri ficou tenso.
— Que acidente? Do que está a falar?
O rosto de Ruiz ensombrou-se.
— Oh, sim, certo. Não teria como saber do colapso. — O abade relatou rapidamente o que acontecera nas ruínas.
O sangue desvaneceu-se do rosto de Henry.
— Mas não temam, embora os alunos tenham ficado encurralados, a sua última transmissão sugeria que tinham encontrado uma gruta natural onde abrigar-se.
— Preciso de ir para lá! Já! — disse Henry de repente, afastando-se das mãos de Joan. Qualquer interesse que pudesse ter sentido no que ali se desenrolava desvaneceu-se numa cinza fria. Oh, céus... esquecera por completo Sam. Nem sequer considerara que o seu sobrinho também poderia estar em perigo.
— Não há nada que possa fazer. Estou em contacto com os meus homens. Qualquer alteração, num sentido ou noutro, e dir-lhe-ei de imediato.
O sangue de Henry, que lhe desaparecera do rosto, regressou.
— Não conseguirá obter qualquer cooperação da minha parte! Não, enquanto eu não souber que o meu sobrinho está em segurança!
— Acalme-se, professor Conklin. Já enviei uma equipa de especialistas em minas para apoiar no salvamento.
Henry apertou as mãos uma na outra. Joan aproximou-se mais, envolvendo-lhe os ombros com um braço. Ele permanecia rígido sob aquele abraço. Depois da morte da esposa e do irmão, Sam era a sua única família. Henry não tivera espaço para mais ninguém. Se não se tivesse distraído com a sua antiga paixão da faculdade, talvez Henry tivesse pensado com maior clareza e evitado toda aquela confusão. Libertando-se dos braços de Joan, Henry falou com o abade por entre dentes cerrados.
— Se algum mal acontecer ao Sam por causa disto, mato-o.
O abade Ruiz recuou um passo, enquanto frei Carlos avançava com a sua Glock, num aviso a Henry. A voz do abade tremia ligeiramente.
— Tenho a certeza de que o seu sobrinho está em segurança.
Mais uma armadilha!
Enquanto o chão de ouro tremia sob os seus pés, Sam puxou Maggie para o lado. Esta tinha estado a tentar desbloquear a porta da estátua, mas esta fechara-se por completo atrás deles.
— Preparem-se! — gritou Sam sobre o rugido das águas que corriam por baixo. — Estejam prontos para agir! — Através dos tacões das suas botas, as reverberações subiam-lhe pelas pernas e provocavam-lhe um formigueiro nas costelas e na coluna.
A um passo de distância, Denal apoiava Norman; os olhos do jovem quéchua estavam tão abertos como pires.
O ribombar por baixo tornou-se ensurdecedor no espaço apertado e o chão oscilou sob as botas de Sam.
— Aguentem-se!
De súbito, o rugido encheu o espaço à sua volta; o chão tremeu como se estivesse a suster uma pressão imensa. Depois o som alto de ferrolhos a libertar-se ecoou à sua volta. A plataforma começou a subir rapidamente sob os seus pés. Norman caiu de joelhos, gritando de dor quando o seu membro ferido bateu no chão metálico. Mais ninguém falou, silenciados pelo medo, paralisados em posturas tensas.
A plataforma oscilou e saltou, mas prosseguiu no seu percurso ascendente: lentamente a início, depois mais depressa, girando vagarosamente ao ascender ao longo do poço. Sob os seus pés, o chão continuava a tremer com a força que o impelia.
— Hidráulica! — gritou Norman sobre o rugido. Denal ajudara-o a levantar-se.
— O quê? — perguntou Sam.
Maggie libertou-se do abraço de Sam e estudou o chão.
— Devem ter utilizado a força do rio subterrâneo, talvez de um afluente daquele que percorremos ontem a nado. É um elevador hidráulico!
Sam olhou para o poço acima deles.
— Mas, para onde nos leva?
Maggie franziu o sobrolho.
— Se quisessem matar os intrusos, esta seria uma forma demasiado elaborada de o fazerem — comentou Maggie, fitando o fluir das paredes lisas. — Acho que nos leva para o topo.
— Até ao telhado? — disse Sam, lembrando-se da postura do rei inca, de braços erguidos, as palmas das mãos no teto da caverna como se o apoiasse. Imaginou a forma da estátua. Era um percurso a direito.
— Esperemos que não se limite a esborrachar-nos lá em cima — disse Norman amargamente. — Isso seria arruinar um dia até aqui perfeito.
— Não me parece — respondeu Maggie, a sua voz insegura.
Denal gritou subitamente. Apontou para cima.
— Olhem!
Maggie virou a lanterna para cima, mas não era necessário. Lá bem acima, o final da passagem tornou-se visível, uma cúpula de ouro, o interior do crânio da estátua. A luz jorrava das frinchas abertas a espaços regulares no teto da superfície. Depois, como pétalas de uma flor, seis secções do teto abriram-se por completo. A luz forte do Sol jorrou sobre eles.
— É uma saída! — exclamou Sam. Tirou o Stetson da cabeça e deixou escapar um grito de alegria. — Conseguimos!
Norman acrescentou num tom mais comedido:
— Pelo menos, alguns de nós.
O sorriso de Sam desapareceu. Voltou a assentar o seu Stetson na cabeça, imaginando o rosto de Ralph. Norman tinha razão. Não lhe ficava bem festejar a sua própria salvação quando um dos seus amigos não estava ao seu lado.
Maggie aproximou-se mais de Sam. Os seus olhos estavam brilhantes, tanto de alívio quanto de tristeza. Inclinou o pescoço para estudar a cúpula que se abria.
Sam abraçou-a.
— Tenho a certeza de que o Ralph ficaria feliz por termos escapado.
— Talvez... — disse ela baixinho.
Ele abraçou-a com mais força.
— Os mortos não têm inveja dos vivos, Maggie... nem o Ralph, nem o teu amigo Patrick Dugan na Irlanda... — E àquela lista, Sam acrescentou silenciosamente os seus próprios pais.
Maggie inclinou-se apoiando-se nele, a sua voz cansada.
— Eu sei, Sam. Já ouvi tudo isso antes.
Abraçando-a, ele desistiu das palavras. Sabia que, por vezes, perdoar-se a si próprio por estar vivo era mais difícil do que enfrentar a morte em si. Era algo que se tinha de fazer sozinho.
Agora mais lentamente, o elevador subiu em direção à liberdade, e a plataforma atravessou a cúpula aberta. Por fim, parou. As seis secções da cúpula fecharam-se por completo. Sob os seus pés, o clicar dos ferrolhos fez oscilar o chão, trancando de novo a plataforma no seu lugar. Sob eles, o som das águas afastou-se, descendo pelo poço.
— Chegámos — disse Norman.
Depois da obscuridade da gruta, a luz do Sol do fim da tarde era ofuscante, mesmo filtrada através da densa neblina que parecia cobrir os céus sobre as suas cabeças.
— Mas onde raio estamos nós? — perguntou Sam, avançando. Inclinou o pescoço para olhar à sua volta.
Pareciam estar num vale de densa floresta. Paredes altas e íngremes de rochas pretas avermelhadas rodeavam-nos de todos os lados, impossíveis de escalar sem equipamento de montanhismo e uma perícia considerável. Sobre as suas cabeças, a neblina rolava e obscurecia a luz do Sol num brilho turvo.
— Que cheiro é este? — perguntou Norman.
O ar, rarefeito e quente, estava mesclado com o odor de ovos podres.
— Enxofre — disse Maggie. Rodou num círculo lento, depois apontou com um braço. — Vejam!
Perto da parede norte do vale, uma pluma de vapor erguia-se em direção aos céus a partir de uma frincha na base da rocha.
— Uma chaminé vulcânica — disse Sam. Esta região dos Andes peruanos ainda era geologicamente ativa, repleta de cones vulcânicos, alguns frios e silenciosos, outros libertando ainda os seus vapores. Quase todos os dias, tremores de terra agitavam as montanhas.
Maggie acenou com um braço.
— Isto não é um vale. Estamos numa caldeira vulcânica.
Norman coxeou para mais perto, os olhos fixos nas paredes de rocha. Franziu o sobrolho.
— Excelente. Por que razão é que, neste momento, me recordo do ditado «de mal a pior»?
Ignorando as palavras amargas do fotógrafo, Sam estudou as alturas à sua volta.
— Se tiveres razão, Maggie, devemos estar naquele aglomerado de picos vulcânicos a leste do nosso acampamento. — Apontou com a cabeça na direção de uma sombra escura a sul. Mais um cone, a sua silhueta rochosa tornada turva pelo vapor, parecia subir a partir da parede sul, erguendo-se sobre o seu vale vulcânico. — Vê quantos são.
Maggie acenou com a cabeça.
— Provavelmente tens razão. Esta região nunca foi explorada. Demasiado íngreme e perigosa para poder ser atravessada.
Denal falou, mantendo-se perto de Norman. Limpou a testa com a manga da camisa.
— Está quente, aqui — murmurou.
Sam concordou, tirando o seu Stetson e afastando do rosto o cabelo húmido. Àquela altitude, envergando apenas um colete, deveria ter frio à medida que o crepúsculo se aproximava, mas em vez disso a brisa ali era quente, quase amena.
— São as chaminés de vapor — explicou Maggie. — Mantêm este lugar quente e húmido.
— Como uma estufa tropical — disse Norman, os olhos fixos na floresta que rodeava a cúpula de ouro. — Vejam todas estas plantas. — Debateu-se por libertar a câmara.
À sua volta estendia-se uma floresta densa. Repleta de vides, o emaranhado de árvores estendia-se em todas as direções. A partir do ponto mais elevado do vale onde se encontravam, conseguiam ver alguns prados abertos, aberturas na cúpula da floresta, a maioria perto das omnipresentes chaminés vulcânicas. Em tudo o resto, entre aquelas paredes do cone vulcânico, a floresta parecia imperturbada. Sob as copas isolantes, florescera uma profusão de plantas selvagens. Fetos gigantes, com frondes mais compridas do que a altura de um homem, obscureciam o piso da floresta, enquanto centenas de orquídeas com flores amarelas do tamanho de um punho pendiam das fendas nas árvores. Até mesmo uma espécie de rosa da floresta trepava com as suas gavinhas espinhosas ao longo dos ramos e das vides.
Norman tirou algumas fotografias, enquanto os restantes vagueavam pelo limite da floresta.
No seu esplendor verdejante e florido, os pássaros assobiavam e cantavam de alarme, perturbados pela sua presença. Um pequeno bando de papagaios de asas azuis ergueu-se pelos céus enublados. Mais próximo, o chamamento dos macacos avisava-os para que se afastassem, ecoando nas paredes de rocha. Vislumbres dos seus corpos pequenos dardejavam e fluíam por entre as árvores e vides, explosões de pelo cor de fogo e caudas chicoteantes.
Para lá de toda aquela vegetação, o balbuciar das águas sobre a rocha garantia a presença de uma qualquer nascente próxima.
— Até parece um Éden perdido — disse Norman.
Sam acenou com a cabeça, embora uma semente de preocupação começasse a invadi-lo. Lembrou-se do aviso em latim gravado nas barras de hematite de Francisco de Almagro: Cuidado com a Serpente do Éden.
Um pensamento semelhante deve ter passado pela mente de Maggie. Os seus lábios estavam firmemente apertados, e tinha os olhos semicerrados de desconfiança.
— Temos companhia — sussurrou de súbito.
Sam ficou tenso, os seus olhos imediatamente alertas.
— O quê?
Maggie deteve-se imóvel, apenas os seus olhos se moviam, indicando a direção para onde olhar.
Atrás deles, fez-se ouvir o barulho repentino do metal. A cúpula encerrava-se de novo, desaparecia o único meio de escapar da caldeira vulcânica.
Sam procurou a secção da selva que Maggie indicara. Por fim, apercebeu-se da presença de um rosto pequeno nas sombras, que o fitava. A figura deve ter percebido que fora detetada e ergueu-se da posição agachada. Avançou por entre a espessa floresta. De outros pontos, mais sete homens deslizaram para a clareira em redor da cúpula de ouro.
Com a sua pele cor de café com leite e olhos escuros, os homens eram claramente de ascendência quéchua. Davam mais ou menos pela altura do ombro de Sam, mas tinham lanças bem mais compridas do que o texano. Envergavam as roupagens índias tradicionais: calças haura sem adornos e camisas fortemente decoradas com penas de papagaio e condor.
O líder, que envergava um toucado carmesim, avançou e falou firmemente na sua língua nativa.
Denal traduziu, de rosto tenso.
— Ele quer que o sigamos.
O pequeno caçador virou-se e regressou à floresta. Afastou uma fronde gigante de um feto e revelou um caminho escondido. O homem agachou-se para passar por baixo da folhagem e começou a percorrer o trilho. Os restantes caçadores deixaram-se ficar para trás, para garantir que Sam e o grupo o seguiam.
Ainda sem qualquer razão para os temer, Sam acenou aos companheiros.
— Vamos... talvez conheçam uma forma de regressarmos à escavação. — Ainda assim, fitando as suas longas armas, Sam apertou a Winchester contra o ombro. Se houvesse problemas, queria estar a postos.
Denal tocou no cotovelo de Sam. Os olhos do rapaz estavam semicerrados, também ele desconfiado. Parecia prestes a dizer algo, depois abanou a cabeça e retirou do bolso um cigarro dobrado. Balbuciou qualquer coisa na sua língua nativa enquanto enfiava o filtro entre os lábios.
— O que foi, Denal?
— Algo não estar certo — resmungou, mas não disse mais nada. Mais à frente, o rapaz ajudou Norman a passar sob a fronde e a percorrer o trilho.
Sam seguia no fim, com Maggie a seu lado. Enquanto a selva os engolia, avançaram em silêncio durante vários minutos.
— O que achas deles? — sussurrou Maggie por fim.
— Trata-se claramente de uma tribo quéchua. Há centenas como esta que continuam a viver como caçadores-recolectores na floresta.
Maggie apontou com o polegar na direção da clareira.
— E ignoram simplesmente uma cúpula feita de ouro?
Sam considerou as suas palavras. Ela estava certa. Os caçadores tinham parecido mais chocados por os verem a eles do que à grande riqueza que se encontrava atrás. A consternação de Denal também o incomodava. Que raio se estaria a passar?
Estudou os índios enquanto marchavam. Avançavam em silêncio, transportando com conforto as suas lanças, afastando as vides do seu caminho. Em breve, o caminho atravessou um pequeno riacho com uma série de grandes blocos de pedra estrategicamente colocados no seu curso. Quem seriam aqueles caçadores?
A resposta à sua pergunta surgiu após uma curva no trilho.
A densa selva abriu-se e uma aldeia apareceu como que por magia. O aglomerado de casas de pedra rodeava uma praça central e estendia-se em terraços que mergulhavam na selva; quase todas as casas estavam parcialmente enterradas na vegetação, mergulhadas nas sombras das árvores altas. Flores selvagens enfeitavam as pedras dos telhados e cresciam em pátios plantados. A fragrância dessas flores afastava o cheiro sulfúrico das chaminés vulcânicas.
Sam ficou a olhar, de boca aberta. Lamas e pequenos porcos avançavam por entre as ruas estreitas, enquanto homens e mulheres surgiam às portas e janelas para fitar os quatro estranhos. Devia haver ali mais de cem habitantes, envergando cushmas que pareciam ponchos, ou camisas de manga com pequenas capas, ou longas túnicas índias anacu.
As casas estavam tão decoradas quanto os seus habitantes: lintéis e janelas elaboradamente esculpidos, ao passo que adornos de prata e ouro cintilavam no sol poente.
Norman cambaleava à frente, apoiando-se no ombro de Denal. De uma porta, uma mulher jovem, que envergava um xaile llikla de lã, aproximou-se nervosamente de Norman. Segurava uma coroa de flores azuis entretecidas com penas de papagaio amarelas. O fotógrafo sorriu-lhe e curvou a cabeça. Aproveitando a oportunidade, a mulher avançou e enfiou o adorno feito à mão na cabeça do fotógrafo. Norman endireitou-se enquanto ela ria, levando a mão aos lábios, e se afastava, dançando.
Norman virou-se para Denal, tocando com os dedos no presente, mostrando um sorriso envergonhado.
— Será que isto fica bem com a minha camisa? — perguntou, continuando a cambalear em frente. O fotógrafo parecia não se aperceber do que haviam descoberto.
Sam e Maggie, contudo, permaneciam estáticos no limite da aldeia. Na sua mente, Sam retirou a floresta das casas e apagou as pessoas e os animais das árvores. Reconheceu o esquema da cidade. A praça central, as avenidas, as casas em terraços... era igual ao da necrópole em baixo!
Maggie agarrou-lhe o cotovelo.
— Sabes o que é este lugar? — sussurrou, fitando Sam de olhos muito abertos. — Isto não é uma tribo quéchua, que vai aguentando a sua existência.
Sam assentiu com a cabeça.
— Estes são os antepassados do Denal — concluiu ele, chegando à mesma conclusão de Maggie, a sua voz atordoada pelo choque.
Tinham-se deparado com uma aldeia inca viva!
À medida que o Sol se punha, Philip ouviu um som que não pensara voltar a ouvir: a rouca estática do rádio do acampamento. Ergueu-se de um salto, derrubando o banco em que estava sentado. Frei Otera e os outros monges estavam no local da escavação. Um par de mineiros experientes tinha chegado pouco depois do meio-dia e ajudava a dirigir os trabalhadores quéchuas.
Philip abriu a aba da tenda de comunicações e mergulhou no seu interior sombrio. Agarrou no recetor.
— Estou! — gritou para o transmissor. — Alguém me consegue ouvir?
Estática... depois uma resposta nervosa.
— ... ilip? É o Sam! A bateria dos walkie-talkies... conseguimos sair das grutas... — A estática aumentou.
Philip ajustou a antena do rádio.
— Sam! Responde! Onde é que estão?
As palavras lutaram por atravessar a estática.
— Estamos num dos vulcões... a leste, acho eu.
Philip sentiu que o seu coração cantava. Se os outros estavam em segurança, não havia razões para continuar a escavar o fosso. Tudo terminara! Em breve iria partir! Recordou o seu próprio apartamento em Harvard, onde os seus livros, o computador e os documentos estavam todos cuidadosamente organizados e catalogados. Olhou de relance para a camisa rasgada e as calças imundas. Depois daquela expedição, nunca mais iria realizar trabalho de campo!
A sua alegria fez com que deixasse escapar algumas das últimas palavras de Sam, mas já não importava.
— ... helicópteros ou qualquer outra forma de vigilância aérea. Vamos criar um sinal de fogo num dos cumes. Procura-nos! — Sam fez uma última pergunta. — Já conseguiste falar com o tio Hank?
Philip franziu o sobrolho e carregou no transmissor.
— Não, mas estou certo de que, por esta altura, a notícia já chegou a Cusco. A ajuda já começou a chegar. Não deve tardar.
A estática irrompeu quando Philip largou o botão.
A voz de Sam era mais fraca.
— Nem vais acreditar no que encontrámos aqui, Philip!
Ele revirou os olhos. Como se quisesse não saber. Mas as palavras seguintes de Sam afastaram a sua profunda apatia.
— Encontrámos uma tribo inca perdida!
Philip carregou no botão de transmissão.
— O quê?
— ... uma história demasiado longa... bateria está fraca... liga-me à mesma hora amanhã.
— Sam, espera!
— Procura o nosso sinal de fogo! — Depois o som da estática impediu qualquer outra comunicação.
Philip tentou voltar a falar com Sam durante alguns minutos, mas sem sucesso. Ou a bateria ficara demasiado fraca ou o sacana desligara o walkie-talkie. Philip pousou o recetor no seu lugar.
— Merda!
De súbito, o bater da lona chamou a sua atenção. A esguia figura de frei Otera deslizou para o interior. O monge alto endireitou-se junto à porta, delineado pelo Sol que se punha atrás dele, o rosto mergulhado nas sombras.
— Com quem está a falar? — perguntou o homem, em tom duro.
Philip calculou que o monge estivesse cansado dos esforços de escavação daquele dia. Erguendo-se, Philip fez-lhe sinal para que entrasse.
— Era o Sam! — disse entusiasmado. — Ele e os outros conseguiram sair das grutas!
Philip ficou agradado por ver a expressão de choque do homem.
— Como? Onde é que estão?
Depois de recontar rapidamente a história de Sam, Philip concluiu:
— Vamos precisar de alguma forma de identificar aquele sinal de fogo... um helicóptero ou algo assim.
O frade acenou com a cabeça, os olhos sombrios.
— Isso é bom — murmurou.
— Mas essa nem é a melhor das notícias — disse Philip com ar arrogante, como se a descoberta tivesse sido sua. — O Sam acha que encontrou um grupo de incas verdadeiros lá em cima, uma tribo perdida.
Os olhos de frei Otera saltaram na direção do estudante.
Philip arquejou perante aquilo que vislumbrou naquele olhar duro, algo feroz e perigoso. Recuou um passo, fazendo cair uma caneca abandonada. Quando se conseguiu controlar, frei Otera já estava a seu lado, agarrando-lhe com força o cotovelo.
— Estás bem? — perguntou o homem.
Estremecendo, Philip ergueu os olhos. O que quer que tivesse visto nos olhos daquele frade tinha desaparecido. Apenas o calor e a preocupação brilhavam no rosto do monge. Devia ter sido um truque de luz. Philip aclarou a garganta.
— Eu... eu estou bem.
Frei Otera soltou-lhe o cotovelo.
— Ótimo. Não gostaríamos que nada te acontecesse. — Deu meia-volta. — Tenho de partilhar esta boa notícia com os outros — disse. Então, baixou-se e abandonou a tenda.
Philip deixou escapar um longo suspiro de alívio. Não sabia o que teria frei Otera que o deixava tão nervoso. O tipo, afinal de contas, não passava de um reles monge. Ainda assim, Philip teve de massajar a pele de galinha dos braços. Havia algo naquele homem...
Sentado com Maggie nas escadas no limite da praça, Sam fitou as celebrações enfeitadas pelo fogo mais abaixo. Archotes e fogueiras ocupavam o espaço aberto no centro da aldeia inca. Os músicos empunhavam instrumentos de todas as dimensões e formas: tambores de pele de lama, pandeiretas que tilintavam com címbalos de prata, trompetes feitos de cabaças e madeira, flautas construídas com canas de diversos tipos, e até gaitas feitas com as rémiges de um condor das montanhas. Por toda a cidade, as vozes cantavam em celebração perante a chegada dos forasteiros.
Anteriormente, antes de o Sol se ter posto, o xamã da aldeia, o socyoc, tinha lançado os seus chumpirun místicos, um conjunto de pequenas pedras coloridas, para o chão, para ler a sua sina. O homem de rosto sombrio e tatuado estudara as pedras, depois erguera-se, elevando os braços, e declarara que o grupo de Sam era composto por emissários de Illapa, o deus do trovão, que ordenara a celebração daquela noite em sua honra.
Apesar das suas objeções, o pequeno grupo fora levado e tratado como realeza. Lavados, penteados e vestidos com roupas nativas, os elementos da equipa reuniram-se uma vez mais para o festim em celebração daquela noite. O jantar fora infindável, prato atrás de prato de comida local: porquinho-da-índia assado, feijões estufados com pedaços de carne de papagaio, uma salada feita de folhas de amaranto que mais pareciam espinafres cortadas com um tipo de cenoura nativa chamada arracacha, e tartes de ervas feitas com oca, da família da batata-doce. Depois de tanto tempo sem comer, o grupo ingerira demasiada comida, nada recusando não fossem ofender os seus anfitriões.
Apenas Norman comera pouco. Começara a ficar com febre devido aos seus ferimentos e retirara-se cedo para a cabana de pedra e lama que lhe fora atribuída. Denal seguira-o pouco depois, não se sentindo doente, apenas ensonado e exausto, deixando Sam e Maggie a assistir sozinhos ao resto das celebrações daquela noite.
Bocejando, Sam deslizou a mão até aos joelhos pela túnica bege que envergava agora e reajustou a capa yacolla curta e feita com nós, que lançara sobre um ombro. Não desejando afastar-se do seu Stetson, puxou o chapéu de cowboy sobre a testa.
Uma vez confortável, recostou-se sobre as mãos.
— Como é que estes tipos conseguiram manter-se escondidos aqui durante tanto tempo? — balbuciou.
Maggie agitou-se ao seu lado.
— Porque quiseram que assim fosse. — Envergava uma longa túnica castanho-avermelhada que lhe chegava aos tornozelos. Estava presa por uma faixa e um xaile a condizer branco como marfim. Deslizou o dedo pelo alfinete de ouro com a forma de um dragão que mantinha o xaile no lugar. — Apercebeste-te de que a maior parte da aldeia está propositadamente escondida na selva? Quase como camuflagem. Duvido, sequer, que os satélites fossem capazes de captar esta cidade escondida, em especial com toda a atividade geotérmica aqui à volta. Confundiria quaisquer scans térmicos.
Sam fitou os céus noturnos enublados. Poucas estrelas estavam visíveis.
— Hmm. É possível que tenhas razão.
Maggie mudou o rumo da conversa.
— Então, Sam, como é que te sentes ao ser um mensageiro do deus trovão?
Ele sorriu ociosamente.
— Com ou sem pedrinhas proféticas, acho que o xamã deve ter ouvido os ecos dos disparos das nossas espingardas. Creio que foi por isso que nos associaram ao Illapa.
Maggie olhou de relance para ele.
— Não tinha pensado nisso. É uma boa teoria.
Sam apreciou o elogio, sorrindo ligeiramente.
— Então e a necrópole lá em baixo? Como é que se enquadra em tudo isto? É quase uma imagem espelhada deste lugar.
Sam franziu o sobrolho.
— Não sei. Mas tendo em conta a localização, poderá ter alguma coisa a ver com os três níveis de existência inca. Se esta aldeia for considerada a parte do meio, ou mundo vivo, o cay pacha, então a aldeia em baixo desta seria, decerto, encarada como uca pacha, o submundo.
— O mundo dos mortos.
— Exato... uma necrópole.
Maggie franziu o sobrolho pensativa.
— Hmm... talvez. Mas se a tua teoria estiver correta, onde fica a terceira aldeia?
— Como assim?
— Os incas eram muito estruturados. Se construíram cidades idênticas nos mundos mais baixo e intermédio, tem de haver uma aldeia no mundo superior, janan pacha?
Sam abanou a cabeça, sentindo-se mais cansado.
— Não sei. Mas amanhã teremos mais respostas. Por ora, apreciemos a celebração em nossa honra. — Ergueu a sua caneca de chicha, uma bebida de milho fermentada, e bebeu um longo gole. Fez uma careta perante o gosto amargo.
Maggie recostou-se.
— Não gostas — brincou ela.
— Jamais substituirá uma garrafa fresca de Bud. Mas, raios, dá cá um coice. — Sam deu por si a ficar com a cabeça mais leve. Por aquela altura, a celebração já mergulhara noite fora. Até a Lua já se pusera.
Maggie sorriu e apoiou-se um pouco nele. Sam aproveitou a oportunidade e envolveu-a com um braço. Ela não o afastou, nem fez qualquer piada. Sam bebeu mais um gole da sua cerveja de milho. Esperou que o calor de momento não se devesse apenas à bebida fermentada.
À sua frente, um novo grupo iniciava uma dança elaborada em redor da fogueira central. Os celebrantes, homens e mulheres, tinham os rostos pintados a ouro e prata e dançavam a um ritmo preciso ao som de uma melodia tocada no crânio de um qualquer cervo da floresta, cujos chifres atuavam como flauta.
— É lindo — disse Maggie. — Como um sonho. As histórias que lemos parecem ganhar vida.
Sam puxou-a mais para si.
— Só gostava que o tio Hank estivesse aqui para o ver.
— E também o Ralph — disse Maggie baixinho.
Sam olhou de relance para a mulher nos seus braços. Ela fitava o fogo, os olhos ardentes, o brilho quente banhando-lhe o rosto.
Maggie deve ter sentido o seu escrutínio. Virou-se para ele, os rostos próximos, demasiado próximos.
— Mas tens razão, Sam — disse ela baixinho. — Antes... quando disseste que os mortos não têm inveja dos vivos. Tinhas razão. Nós estamos vivos... estamos aqui. E não devemos desperdiçar esta dádiva com a culpa e tristeza. Isso seria uma verdadeira tragédia.
Ele assentiu com a cabeça.
— É errado viver a vida como se já estivesse morto. — A sua voz não passava de um sussurro exalado. Sam recordou os seus anos a seguir à perda dos pais. Ele e o tio tinham partilhado juntos a sua tristeza, apoiando-se um no outro. Mas na verdade, os dois não eram diferentes de Maggie. Em parte, também tinham fechado as suas vidas aos forasteiros, usando a tragédia partilhada como uma barreira que impedia a aproximação dos outros. Era algo que já não queria.
Sam atreveu-se a aproximar-se um pouco mais de Maggie.
Ela fitou-lhe os olhos, os seus lábios ligeiramente apartados.
Ele inclinou-se mais para a frente, o coração a bater ao ritmo dos tambores... depois a música terminou de súbito. Um silêncio intenso abateu-se sobre a praça.
Maggie olhou de relance para a interrupção, que pusera fim a um momento íntimo.
— Parece que a festa acabou.
O coração de Sam estava apertado no seu peito. Não conseguia confiar na sua voz. Engoliu em seco, libertando a língua.
— Eu... calculo que sim — disse com dificuldade.
Uma figura avançou para eles. Era o xamã, cujo nome tinham descoberto ser Kamapak. O seu rosto tatuado exibia um amplo sorriso enquanto se aproximava, subindo os degraus. Sam e Maggie levantaram-se para o receber. Ele disse algo na sua língua nativa, erguendo os braços simultaneamente num sinal de agradecimento e despedida, claramente desejando-lhes boa noite. As fogueiras à volta estavam já a ser apagadas.
Mantendo-se de pé, a cabeça de Sam girava lentamente devido aos efeitos da cerveja de chicha. Recuperando forças por um instante, fitou as chamas que se apagavam, um espelho das suas esperanças interiores e paixões. Virou-se. Era demasiado doloroso de olhar.
Acompanhados pelo xamã, Sam e Maggie regressaram aos quartos que lhes tinham sido atribuídos. O inca continuava a falar entusiasticamente enquanto os conduzia.
Sam desejou a presença de Denal para traduzir, mas houve algumas palavras familiares que conseguiu discernir. Algo sobre um dos seus deuses míticos, Inkarri. Sem compreender, Sam limitou-se a sorrir e a acenar no modo universal dos não fluentes.
Quando alcançaram a fila de casas que rodeava a praça, Kamapak silenciou-se por fim e deu uma palmadinha no ombro de Sam. O xamã curvou a cabeça, afastando-se em seguida para supervisionar o fim da celebração.
Maggie fez uma pausa, observando-o afastar-se. O seu quarto ficava separado do dos homens. Sam mantinha-se desajeitadamente de pé, perguntando-se se aquele momento de há pouco poderia ser reacendido, mas as palavras de Maggie que se seguiram lançaram água fria sobre aquelas brasas.
— Que conversa foi aquela de Inkarri?
Sam encolheu os ombros, recordando a história épica do inca. Supostamente, Inkarri era o filho vivo de Inti, o Sol, e o último deus rei do seu povo. Dizia-se que tinha sido capturado pelos conquistadores espanhóis e decapitado, mas a sua cabeça decapitada não morreu. Fora roubada e escondida numa gruta sagrada, onde, até àquele dia, se encontrava supostamente a desenvolver um novo corpo. Quando o corpo estivesse completo, Inkarri erguer-se-ia de novo e restauraria os incas ao seu antigo esplendor.
Mas aquilo era, claro, apenas um mito. O último líder dos incas tinha sido Atahaulpa. Fora garroteado até à morte pelo exército espanhol liderado por Pizarro em 1533, e o seu corpo cremado. Sam abanou a cabeça.
— Quem sabe o que estaria o xamã a sugerir? Talvez pela manhã possamos pedir ao Denal que fale com ele.
Maggie franziu o sobrolho.
— Ainda assim, é estranho. Sempre pensei que aquele mito tinha a sua origem nas histórias dos conquistadores misturadas com histórias bíblicas trazidas pelos missionários, histórias da ressurreição de Cristo. É estranho ouvir o socyoc desta tribo isolada referir a mesma história.
— Bem, seja qual for a fonte, ele parecia sem dúvida entusiasmado.
Acenando com a cabeça, Maggie continuou a fitar a aldeia em socalcos enquanto as fogueiras se extinguiam e os archotes eram enterrados na areia. A escuridão espalhou-se pelas casas de pedra, engolindo-as. Por fim, ela suspirou e virou-lhe costas.
— Suponho que é melhor ir-me deitar. Amanhã temos um longo dia pela frente. Boa noite, Sam.
Ele acenou as suas despedidas, depois virou-se para o tapete de junco que pendia sobre a porta. Quando afastou a barreira, as histórias dos deuses incas desvaneceram-se em pano de fundo, substituídas pela memória de Maggie a fitá-lo, os olhos luminosos com a paixão prometida. O peito de Sam ainda lhe doía perante aquela interrupção inoportuna.
Talvez tivesse lido demasiado naquele momento fugaz. Ainda assim, sabia que a memória dos seus lábios assombraria os seus sonhos durante aquela noite.
Suspirando, enfiou-se no seu quarto.
DIA CINCO – Inkarri
Inkarri
Sexta-feira, 24 de agosto, 6h30
Sexta-feira, 24 de agosto, 6h30
Cusco, Peru
Joan passara a noite sem dormir. Sentara-se na pequena secretária da cela com um candeeiro minúsculo a iluminar o seu trabalho. A folha amarrotada de papel pautado amarelo estava aberta sobre a secretária de artemísia. O pequeno lápis que segurava na mão estava agora sem bico, a borracha gasta até ao toco metálico. Ainda assim, dedicava-se a tentar decifrar fila após fila de símbolos. Tratava-se da sua cópia manuscrita da mensagem codificada encontrada na parte de trás do crucifixo de frei Francisco de Almagro. Ninguém pensara em confiscar o papel, mas porque haveriam de o fazer? Só ela e Henry conheciam o significado dos símbolos ali escrevinhados.
Joan bateu com o lápis nos lábios.
— Que aviso nos tentas transmitir? — balbuciou pela milionésima vez desde que regressara à sua cela depois do jantar na noite anterior. Não fora capaz de dormir. A sua mente sentia-se afetada tanto pela preocupação devido ao cativeiro como pela curiosidade em relação às revelações no laboratório da abadia.
E o seu companheiro de detenção, ao fundo do corredor, não lhe oferecera qualquer consolo.
Depois de saber do perigo que o sobrinho corria, tornara-se distante dela, os seus olhos duros e furiosos, os seus modos fechados. Durante o jantar, não pronunciara uma única palavra. De facto, quase não tocara nas costeletas de cordeiro. Qualquer tentativa da parte dela de acalmar os seus receios obteve como reação uma rejeição educada.
Por isso, Joan regressara à sua cela, tensa e ansiosa. Por volta da meia-noite, começara a trabalhar no código depois de ter falhado as suas tentativas para adormecer.
Joan fitava o trabalho daquela noite. Grandes partes da mensagem tinham sido traduzidas, mas havia ainda muitas falhas. O seu sucesso até ali devera-se, acima de tudo, a uma grande pista fornecida pelo próprio abade Ruiz: o nome el Sangre del Diablo. Tendo em conta a ampla variedade de símbolos reunidos, Joan calculara já que cada marca correspondia a uma letra do alfabeto, um simples código de substituição. Por isso, tratou-se apenas de descobrir uma sequência de símbolos que pudesse corresponder à mesma sequência de letras de el Sangre del Diablo. Rezara para que algures no criptograma o frade tivesse escrito o nome.
E tinha!
Com essa mão-cheia de símbolos aos quais pudera atribuir letras específicas, foi uma questão de tentativa e erro para decifrar o resto do criptograma. Mas era difícil. Ela estava longe se ser fluente em espanhol. Gostaria que Henry ali estivesse para a ajudar — em especial porque era tão desconcertante compreender que os pedaços que tinha decifrado até então eram vislumbres das últimas palavras de um homem, o seu derradeiro aviso ao mundo.
Ela ergueu o papel. Sentiu um arrepio atravessá-la enquanto lia: Eis as minhas últimas palavras. Que Deus me perdoe... a Serpente do Éden... pestilência... O sangue de Satanás corrompe o bom trabalho de Deus... Prometeu detém a nossa salvação... rezar... que a Serpente jamais seja libertada.
Suspirando, Joan pousou o lápis e o papel, depois esfregou os olhos cansados. Aquilo era o melhor que conseguia. Frei de Almagro estava louco ou assustado de morte, mas depois do que havia testemunhado no cofre, no subsolo, Joan não podia garantir que os seus delírios não contivessem um grão de verdade. O que quer que tivesse encontrado, aterrorizara-o.
O som de passos em aproximação ecoou pelo corredor, interrompendo os seus devaneios.
Rapidamente, dobrou o papel amarelo e voltou a guardá-lo no bolso. Se conseguisse um momento em privado com Henry, procuraria a sua opinião... isto se ele lhe desse ouvidos. Lembrava-se de como Henry fora teimoso quando era jovem, de humores profundos e carregados que já na altura não era capaz de alcançar. Mas agora não permitiria que isso a impedisse. Nem que tivesse de o obrigar, fá-lo-ia ouvir. Francisco de Almagro temera algo nas montanhas, algo relacionado com aquele metal misterioso. Se o sobrinho de Henry estava mergulhado em tudo aquilo, Henry tinha de lhe dar ouvidos.
Ouviu bater abruptamente na porta, o som seguido pelo de uma voz.
— O abade deseja ver-vos aos dois. — A voz ríspida era de Carlos. Joan virou-se quando o tilintar das chaves abriu a porta.
Então, e agora?
Henry voltou a sentar-se no gabinete do abade. Filas de livros enchiam as paredes e as amplas janelas estavam ligeiramente abertas, permitindo-lhes ver a igreja de Santo Domingo, a sua cruz brilhante no sol da manhã. Atrás dele, um outro monge posicionara-se de guarda, de pistola na mão.
Mas Henry não via nada disso, tendo-se sentado curvado sobre si mesmo. Mentalmente, imaginava Sam enterrado sob montes de escombros e toneladas de blocos de granito. Cerrou os punhos. A culpa era sua. Em que estava ele a pensar quando deixou o local de escavação entregue a uma mão-cheia de estudantes inexperientes? Já sabia a resposta. Tinha ficado cego pela possibilidade de provar a sua teoria. Mais nada lhe importara. Nem mesmo a segurança de Sam.
O ranger das portas pesadas anunciou a chegada de mais alguém. Henry olhou de relance sobre o ombro e viu Joan acompanhada por Carlos, de olhos negros. Ela tinha as pálpebras inchadas e, tendo em conta o estado amarrotado da sua blusa e das suas calças, parecia que quaisquer tentativas para adormecer também se tinham revelado inúteis.
Joan não ofereceu qualquer sorriso a Henry quando entrou na sala. Mas porque haveria de o fazer? Tratava-se apenas de mais uma pessoa cuja vida tinha sido ameaçada pela loucura de Henry. Ele reentrara na vida dela apenas para a colocar em perigo.
— Sente-se — ordenou Carlos com rudeza à mulher. — O abade Ruiz juntar-se-á a vocês em breve. — O frade murmurou em seguida algo em espanhol ao outro guarda, as suas palavras demasiado apressadas e baixas para que Henry as conseguisse compreender. Depois, Carlos saiu.
Joan afundou-se na outra cadeira almofadada, perante a ampla secretária de mogno.
— Como te tens aguentado? — perguntou ela.
Henry não tinha qualquer vontade de conversar, mas ela merecia, pelo menos, a cortesia de uma resposta.
— Bem. E tu?
— O mesmo. Foi uma longa noite. — Joan olhou de relance para o guarda e aproximou-se um pouco mais. Tocou no joelho de Henry, fingindo intimidade, nada mais do que dois amantes que se consolavam. As suas palavras eram pouco mais do que sussurros. — Acho que decifrei grande parte do código no crucifixo da múmia.
Apesar do seu desespero, Henry sentiu-se eletrizado.
— O quê?
A sua reação sobressaltada chamou a atenção do guarda. O monge fitou-o, erguendo mais alto a pistola.
Henry baixou a voz, depois estendeu o braço e tocou no rosto de Joan. Não precisava de realizar um grande esforço para representar o papel de amante daquela mulher.
— O que queres dizer com isso? — sussurrou. — Deitei fora a cruz no laboratório.
Joan levou a mão ao bolso da blusa e puxou um dos cantos da folha amarela.
— A minha cópia.
Henry abriu muito os olhos. Ali estivera ele, toda a noite, abandonado à sua culpa e raiva, e Joan passara aquelas horas a trabalhar no criptograma do crucifixo. A vergonha enrubesceu-lhe o rosto. Mas, qual era a surpresa? Ela sempre fora muito desembaraçada.
Joan continuou em tons sussurrados:
— Avisa que este misterioso metal é perigoso. As suas últimas palavras parecem ter sido um aviso confuso sobre uma qualquer doença ou pestilência associada à Substância Z. Algo que acredito que a ordem desconhecia ... e ainda desconhece.
Henry sentiu-se atraído pelo mistério. Não podia ajudar Sam diretamente a partir dali, mas o conhecimento podia ser uma arma poderosa.
— O que temia ele?
Joan fez uma careta.
— Não consegui decifrar tudo. Há falhas e estranhas referências: a Serpente do Éden, o mito grego de Prometeu. — Ela fitou Henry intensamente. — Preciso da tua ajuda para o descobrir.
O olhar de Henry saltou para o guarda. Queria espreitar a tradução, mas não havia como fazê-lo com o guarda a olhar.
— A Serpente do Éden é, certamente, uma referência à tentação do conhecimento proibido na Bíblia, uma referência metafórica a algo que entusiasma e corrompe em simultâneo.
— Como a Substância Z, talvez.
Henry franziu um pouco o sobrolho.
— Talvez...
— Então, e a referência a Prometeu?
Henry abanou a cabeça.
— Não compreendo de todo essa ligação. Ele é um dos titãs míticos que roubou o fogo dos deuses e o ofereceu à Humanidade. Foi castigado ao ser acorrentado a uma rocha, sendo o seu fígado comido por um enorme abutre todos os dias.
Joan franziu o sobrolho.
— Estranho... porquê referir tal coisa?
Henry voltou a recostar-se na sua cadeira e considerou silenciosamente o mistério. Era praticamente inútil preocupar-se com Sam. Tirou os óculos e esfregou os olhos.
— Tem de haver uma razão.
— Isto presumindo que o homem ainda era são quando fez as gravações na cruz.
— Não sei. Deixa-me pensar sobre o assunto. De acordo com o abade Ruiz, Francisco andava em busca do filão, a fonte de el Sangre. Já conhecia a sua propriedade transformacional, por isso acredito que a nossa presunção inicial estava correta. Ele descobriu algo nas montanhas, algo que o fez mudar de ideias em relação ao metal.
— E algo que o assustou diabolicamente.
Henry assentiu com a cabeça.
— Mas ele também acabou por ser executado e mumificado, o que sugere que foi capturado pelos incas depois de ter feito esta descoberta. Se queria fazer chegar um aviso à ordem, uma mensagem na cruz seria um passo acertado, um risco calculado. Ele devia saber que os xamãs incas não mexeriam em quaisquer artigos pessoais, em especial de ouro, no corpo do falecido. Era a sua única hipótese de transmitir a mensagem, mesmo que não o pudesse fazer pessoalmente. Terá contado que o seu corpo fosse devolvido aos espanhóis, em vez de ser mumificado e enterrado.
— Então, o que sugere tudo isto?
Henry virou-se para Joan, com preocupação no olhar. Não tinha qualquer resposta.
Joan não pôde tecer qualquer comentário dado que a porta voltou a abrir-se. O abade Ruiz entrou na sala, o seu rosto vermelho, quer se devesse ao esforço ou ao entusiasmo. Carlos seguia-o e ocupou um lugar ao lado do guarda. Ruiz avançou até à sua secretária, suspirando enquanto descia o seu grande corpo até ao assento. Fitou Henry e Joan durante alguns momentos silenciosos.
— Trago boas notícias, professor Conklin. Esta manhã recebemos notícias das montanhas.
Henry sentou-se mais direito.
— Sam e os outros?
— Ficará satisfeito por saber que conseguiram sair do templo soterrado. Estão em segurança.
Henry refreou um soluço de alívio. Joan estendeu-lhe a mão e ele apertou-a, sentindo-se grato.
— Obrigado, meu Deus.
— É bom que se sinta grato — disse Ruiz. — Mas não é tudo.
Henry ergueu os olhos. Joan ainda lhe segurava a mão.
— Parece que treinou bem o seu sobrinho. — Ruiz exibia um sorriso rasgado.
— Como assim? — perguntou Henry, num tom duro.
— Ele e os colegas fizeram uma descoberta espantosa nas montanhas.
Henry semicerrou os olhos.
O abade recostou-se na sua cadeira, claramente apreciando o suspense.
— Encontrou uma tribo inca perdida, uma aldeia aninhada nas alturas de um cone vulcânico.
— O quê? — Em choque, Henry apertou ainda mais a mão de Joan. Não sabia o que pensar de um tal anúncio. Seria um truque do abade? Mas Henry não conseguia imaginar qualquer motivo para isso. — Tem... tem a certeza? — perguntou, consternado.
— É isso mesmo que vamos verificar — disse Ruiz. — Passei toda a manhã em preparativos e a pôr tudo em ordem para a nossa viagem.
— Nossa viagem?
— Sim, o senhor e eu. Vamos necessitar da sua experiência, professor Conklin. Também vamos precisar da sua presença para convencer o seu sobrinho a cooperar plenamente connosco. — O abade Ruiz falou rapidamente da mensagem enviada por Sam através do rádio e da fuga dos estudantes através das grutas até à localização escondida da aldeia. — Por isso, como vê, professor Conklin, não sabemos exatamente onde está localizado este vulcão. Existem centenas na zona. O seu sobrinho propôs enviar-nos um sinal acendendo um conjunto de fogueiras e consigo ao nosso lado estou certo de que ele o fará ainda mais depressa.
Henry estava chocado pela notícia. Era demasiado para assimilar de uma só vez. Sam estava em segurança, mas se Henry se envolvesse, se participasse no plano de Ruiz, podia colocar Sam em mais perigo. Por outro lado, no terreno, talvez tivesse a possibilidade de avisar o sobrinho, impedir qualquer esquema que Ruiz estivesse a orquestrar. Ali aprisionado, tinha poucas possibilidades de fazer o que quer que fosse para ajudar o sobrinho.
Joan apertou-lhe a mão, claramente sentindo a sua ânsia. Henry sentiu-se reconfortado pelo seu toque.
O abade Ruiz levantou-se.
— Está tudo pronto para que partamos de helicóptero dentro de dez minutos — disse ele. — Temos de nos apressar.
— Porquê? — perguntou Henry, colhendo a sua força em Joan.
Ruiz fitou Henry de cima a baixo.
— Porque acreditamos que o seu sobrinho descobriu mais do que uma tribo inca. É possível que tenha localizado o local do filão de el Sangre del Diablo. Por que outra razão permaneceria um pequeno clã de incas ainda ali escondido? A menos que estejam a guardar algo.
Joan e Henry trocaram olhares preocupados.
— Temos de nos despachar. — O abade acenou para Carlos, que avançou com o seu hábito, a Glock de 9 milímetros uma vez mais empunhada.
— Mexa-se — disse o guarda rudemente, encostando a arma à garganta de Henry.
O abade parecia ignorar os modos rudes do seu auxiliar. Como se lavasse as mãos do assunto, contornou a secretária e dirigiu-se à porta.
Sob ameaça de arma, Henry e Joan levantaram-se.
— Não — disse Carlos, ao mesmo tempo que apontava para Joan. — Você fica aqui.
As sobrancelhas de Joan revelaram o seu receio.
Ainda a segurar na sua mão, Henry puxou-a para mais perto.
— Ela vem comigo, ou não vou.
Junto à porta, o abade parou ao aperceber-se da agitação.
— Não tema, professor, a doutora Engel limitar-se-á a ficar aqui para garantir a sua cooperação. Desde que obedeça às minhas ordens, não lhe acontecerá mal algum.
— Que se lixe! Eu não vou! — disse Henry ferozmente.
Um aceno do abade e Carlos atacou mais depressa do que Henry foi capaz de reagir. O homem de grandes dimensões moveu o braço e esbofeteou Joan no rosto com um golpe sonoro. Ela caiu ao chão, um grito de surpresa nos lábios.
Henry pôs-se imediatamente ao seu lado, ajoelhando-se.
Ela ergueu as mãos do rosto pálido. Tinha os dedos ensanguentados, o lábio cortado.
Henry virou-se para fitar simultaneamente Ruiz e Carlos.
— Sacanas malditos! Não havia necessidade disso!
— E também não há necessidade de palavrões — disse Ruiz calmamente junto à porta. — A lição podia ter sido muito pior. Por isso vou voltar a convidá-lo, professor Conklin, por favor venha comigo. Não volte a desobedecer-me ou o Carlos não será tão clemente da próxima vez.
Joan afastou Henry.
— Vai — disse ela por entre lágrimas, a voz trémula. — F... faz o que eles dizem.
Ele inclinou-se para mais perto dela. Sabia que tinha de ir. Ainda assim...
— Não te posso abandonar aqui.
Ela ergueu-se sobre os joelhos e limpou o sangue que lhe escorria pelo queixo.
— Tens de o fazer — disse ela trémula, quase a soluçar. Em seguida Joan estendeu os braços e abraçou-o, deixando-se cair nos braços dele. Sussurrou-lhe ao ouvido, a sua voz abandonando o comportamento assustado em troca de um tom firme. — Vai, Henry. Ajuda o Sam.
Henry ficou chocado com a transformação, apercebendo-se subitamente que aquele comportamento de «mosca morta» era para enganar os seus captores.
Joan continuou:
— Se os sacanas tiverem razão em relação à presença do filão, só tu conheces o aviso do Francisco. Por isso, vai. Verei o que posso fazer a partir daqui.
Henry não conseguia encontrar palavras que equivalessem à força daquela mulher.
— Mas...?
Ela abraçou-o com mais força, fingindo um soluço, depois silvou-lhe ao ouvido:
— Oh, para com a treta chauvinista. Pensei que eras melhor do que isso. — Encostou o rosto ao dele. A sua voz tornou-se mais forte, uma vez mais para que Carlos e Ruiz a ouvissem. — Oh, por favor, vai... faz o que te pedirem. Por mim. Mas depois volta para mim!
Mesmo tendo em conta as circunstâncias, Henry não conseguiu refrear um sorriso tenso. Enterrou a sua expressão no cabelo espesso e escuro dela.
— Está bem, agora estás a abusar um bocadinho.
Ela beijou-lhe suavemente o lóbulo da orelha, o hálito quente no pescoço dele, a voz de novo um sussurro.
— Todas as palavras que pronunciei foram sentidas. É melhor que voltes para mim, Henry. Não permitirei que desapareças da minha vida como fizeste depois da faculdade.
Abraçaram-se durante uns segundos silenciosos. De seguida, ela afastou-o bruscamente com um empurrrão.
— Vai!
Henry levantou-se, o pescoço ainda quente do beijo dela. Viu novas lágrimas a escorrer do rosto de Joan e desconfiou que não seriam falsas.
— Eu volto — disse ele baixinho.
Carlos agarrou-o pelo cotovelo.
— Vamos — despejou amargamente, puxando-o dali.
Desta vez Henry não resistiu. Virou-se para a porta, mas não antes de ver Joan balbuciar-lhe um último aviso, os dedos ensanguentados tocando no bolso da camisa.
Enquanto Henry era levado para longe, a derradeira mensagem de Joan ecoava através dos seus pensamentos: simultaneamente um mistério e um aviso.
Tem cuidado com a Serpente.
Sam apercebeu-se de duas coisas quando acordou na manhã seguinte e se ergueu da sua cama de palha. Primeiro, espanto pelo facto de ter dormido de todo. À sua volta, espalhados pela divisão de pedra, estavam inúmeros exemplos do trabalho inca: olaria com desenhos pintados a esmalte, tapeçarias penduradas nas paredes, representando deuses em combate, simples utensílios de madeira e ferramentas de pedra. Tratava-se, de facto, de uma aldeia inca viva! Não conseguia acreditar que o sonho da noite anterior ainda fosse real.
Segundo, apercebeu-se de que a cerveja inca, chicha, gerava a mais dilacerante das ressacas. A cabeça latejava como um dos tambores da noite anterior e a língua parecia tão coberta de pelo quanto a cauda de um macaco.
— Meus Deus, e nem sequer bebi muito — gemeu. Espreguiçou-se, ajustou o pano de linho que lhe cingia os rins e que vestira na noite anterior e endireitou-se. — Deve ser da altitude — concluiu em voz alta.
Procurou a túnica, que encontrou num canto, e vestiu-a. Agarrando no seu chapéu Stetson dirigiu-se à porta. Apercebeu-se que Denal e Norman já estavam a pé. As suas camas encontravam-se vazias.
Empurrando para o lado a cortina de junco que tapava a entrada, Sam pestanejou contra o brilho doloroso da luz do final da manhã. Era demasiado forte para os seus olhos congestionados. Nas redondezas, os pássaros cantavam no topo das árvores, e um cheiro a lavanda quase sobrepujava o fedor omnipresente do enxofre das chaminés vulcânicas. Sam gemeu à manhã.
— Já não era sem tempo — disse Maggie não muito distante. Norman e Denal estavam ao seu lado. — Vais ficar feliz por saber que os incas também desenvolveram uma forma de café.
Sam ergueu as mãos e avançou, titubeante, em direção ao som da voz dela.
— Dá-me!
Os olhos ajustaram-se à luz e ele descobriu os três companheiros, que envergavam túnicas a condizer, agrupados em redor de duas mulheres que trabalhavam junto a um pequeno fogão de tijolo, com um forno aberto por baixo. O trio sorriu face ao seu estado lastimoso.
Sam aproximou-se. Sobre as pequenas aberturas do fogão de pedra repousavam sólidos tachos de barro, que borbulhavam com papas matinais e estufados. O cheiro de pão a cozer erguia-se do forno, juntamente com um outro odor que não conseguiu identificar.
Sam curvou-se e inspirou fundo o vapor que se erguia do forno, libertando a mente das teias de aranha que a haviam invadido.
— Esterco de lama — informou Maggie.
Sam endireitou-se.
— O quê?
— Usam esterco de lama para alimentar os fornos.
Recuando um passo, Sam franziu o sobrolho.
— Encantador.
As duas mulheres incas que estavam a cozinhar iam conversando entre si, lançando olhares ocasionais em direção aos forasteiros. Uma delas estava grávida, o ventre imensamente proeminente. Sam sabia que a ética de trabalho dos incas era forte. Todos trabalhavam. Tinham um ditado: Ama sua, ama lulla, ama quella. Não roubes, não mintas, não sejas preguiçoso. A única cedência à mulher grávida consistia na presença de um banquinho de madeira, o duho, que lhes concedia a oportunidade para repousar o peso enquanto trabalhavam. Era uma das raríssimas peças de mobiliário construídas pelos incas.
Sam aceitou uma caneca de uma mistura espessa e xaroposa de Maggie e fitou-a, indeciso.
— Ajuda — disse Maggie com um sorriso fraco. Aparentemente, também ela não escapara por completo aos efeitos da maldita bebida da noite anterior.
Sam bebeu um gole de café inca. Sabia a frutos secos, com um toque de canela. Satisfeito com o facto de saber melhor do que parecia, agradeceu a bebida. Bebeu em silêncio durante alguns momentos preciosos. Maggie tinha razão. O café inca ajudava a desanuviar a mente, mas os limites dos seus pensamentos pareciam desfiados. Jurou que nunca mais tocaria em chicha. Por fim, ergueu o rosto do vapor da sua caneca.
— Então, qual é o plano para esta manhã?
Norman respondeu-lhe.
— Manhã? É quase meio-dia, Sam. Estou pronto para uma curta siesta. — As palavras eram alegres, mas o rosto pálido traía-as. Sam não se tinha apercebido a princípio, mas a pele do fotógrafo assumira um brilho doentio. Sam apercebeu-se de que Norman teve de se apoiar pesadamente em Denal, quando cambaleou para longe da parede.
— Como está a perna? — perguntou Sam.
Norman levantou a ponta da túnica. Tinha o joelho ligado, mas estava obviamente inchado.
Uma das mulheres inclinou-se para mais perto, estudando a perna de Norman. Balbuciou algo em inca. Três pares de olhos viraram-se para Denal.
Este traduziu. Era uma sorte que a sua língua quéchua fosse tão semelhante ao inca nativo da qual derivava. Caso contrário, o grupo teria sentido grandes dificuldades em comunicar.
— Ela diz que o Norman tem de ir ao templo.
— Templo? — perguntou Sam.
— Não vou permitir que um curandeiro qualquer me deite as mãos — disse Norman, largando a bainha da túnica. — Vou aguentar até que chegue ajuda. Por falar nisso, já tentaste falar com o Philip no acampamento?
Sam abanou a cabeça, a preocupação em relação ao fotógrafo a enrugar-lhe os olhos.
— Vou tratar disso agora. Se não conseguirmos trazer um helicóptero até aqui esta noite, talvez seja melhor consultares o curandeiro local. Os incas eram famosos pela sua proficiência com medicamentos naturais. Até mesmo cirurgia.
Norman revirou os olhos.
— Não acredito que o meu seguro de saúde vá cobrir os custos.
Sam acenou com a mão, para que regressasse ao abrigo.
— Então, pelo menos, vai deitar-te. Vou ligar agora ao Sykes.
Denal ajudou Norman a regressar ao quarto. Sam seguiu-o para recuperar o walkie-talkie da mochila. Dirigiu um olhar a Norman quando o homem deixou escapar um grito suave depois de se ter instalado sobre a cama de palha.
— Assegura-te de que bebe bastantes líquidos — disse Sam a Denal. — Depois de o ajudares a instalar-se vem ter comigo. Vou precisar da tua ajuda como tradutor para falar com os nativos.
Sam deslizou em seguida pelo tapete de junco que cobria a porta e afastou-se alguns passos, ao mesmo tempo que ligava o rádio. O indicador de bateria estava no vermelho. Não ia durar muito mais sem ser recarregado.
— Sam chama a base. Sam chama a base. Câmbio.
Maggie aproximou-se para ouvir.
A resposta foi quase imediata.
— Já não era sem tempo, Conklin! — disse Philip num tom de lamúria. A estática cobria as palavras.
— Alguma sorte no que diz respeito a enviar um resgate? O Norman está bastante ferido e precisamos de uma evacuação rápida.
O entusiasmo na voz do colega era impossível de disfarçar por completo com o ruído branco.
— O teu tio está a caminho! O professor! Ele acaba de deixar Cusco! Deve chegar com um helicóptero e mantimentos amanhã de madrugada.
Maggie agarrou entusiasmada o cotovelo de Sam.
Philip continuou.
— Não consegui falar com ele. O rádio ainda está avariado. Mas foi enviada mensagem de Cusco para a aldeia próxima de Villacuacha e depois para a nossa base através de uma rede improvisada de walkie-talkies que uns monges estabeleceram esta manhã. Tomámos conhecimento há cerca de uma hora!
Sam sentia um conflito de emoções. O tio Hank estava a caminho! No entanto, os seus lábios continuavam marcados por uma expressão séria. Alimentara a esperança de serem resgatados no próprio dia, contudo uma tal não era realista. Estavam a centenas de quilómetros de um qualquer local com uma forma, mesmo que rudimentar, de aeroporto. Carregou no botão de transmissão.
— Excelentes notícias, Philip! Mas envia esse helicóptero cá para cima assim que possível. Apressa o tio Hank, se te for possível. Vamos manter uma fogueira acesa toda a noite, para o caso de ele ser capaz de cá chegar mais cedo. — A luz vermelha do indicador de bateria começou a piscar ominosamente. — Tenho de ir, Philip! Telefono-te ao pôr do sol para uma atualização.
A estática comeu grande parte da resposta de Philip. O ruído branco arranhado começara a trazer de volta a dor de cabeça residual de Sam. Praguejou e desligou o walkie-talkie. Esperava que aquela última mensagem tivesse chegado a Philip.
— Amanhã de madrugada — disse Maggie, o alívio óbvio na sua voz. Virou-se para fitar a aldeia. — Vai ser espantoso ter aqui o professor Conklin.
Sam avançou para o lado dela.
— Ainda estou preocupado com o Norman. Acho mesmo que devíamos falar com o Kamapak, o xamã. Tentar descobrir se os incas não terão, pelo menos, o equivalente a uma aspirina ou analgésico.
Um pouco mais ao lado, Denal curvou-se para passar pela cortina de juncos. Avançou em seguida até junto deles.
— Norman dormir — disse o rapaz, quando se juntou a eles, mas os lábios estavam tensos de preocupação.
— Talvez fosse melhor procurarmos o xamã — disse Maggie. — Podes ajudar-nos, Denal?
O jovem assentiu com a cabeça e virou-se na direção da aldeia.
— Eu perguntar. — Denal hesitou antes de se afastar, fitando as casas de olhos semicerrados. — Mas algo não estar bem aqui.
— Porque dizes isso?
— Não haver crianças — disse Denal, erguendo os olhos de relance para eles.
Maggie e Sam franziram o sobrolho, fitando-se, depois olharam para a extensão de casas de pedra.
— Claro que... — começou Sam a dizer, mas a voz desvaneceu-se. Não tinham visto crianças aquando da sua chegada no dia anterior, mas o Sol estava quase a pôr-se. A celebração prolongara-se noite dentro, pelo que a falta de crianças não parecera a Sam suficientemente estranha para ser notada.
— Ele tem razão — disse Maggie. — Estou a pé há pelo menos uma hora e também não vi quaisquer crianças.
Sam apontou na direção das duas mulheres que trabalhavam nos fornos.
— Mas ela está grávida. As crianças devem estar algures. Talvez as tenham escondido de nós por precaução.
Maggie torceu o nariz, não tendo ficado convencida.
— Parecem ter-nos aceitado de pronto. Sem guardas nem nada.
— Vamos perguntar — disse Sam, apontando com a cabeça na direção da inca grávida.
Conduziu os outros dois na direção do forno. Sam tocou em Denal.
— Pergunta-lhe onde são mantidas as crianças.
Denal aproximou-se mais e falou com a mulher. Esta parecia sentir-se desconfortável assim tão perto do rapaz. Protegeu a barriga com uma mão. A sua resposta foi claramente agitada, envolvendo muitos movimentos dos braços e acenos.
Sam olhou de relance para o local que ela indicava. Estava a apontar na direção de um cone vulcânico vizinho que se erguia sobre aquela caldeira.
Denal desistiu por fim e virou-se para Sam.
— Não há crianças. Ela diz que elas vão para janan pacha. O céu. — Denal acenou para o alto vulcão.
— Achas que são sacrifícios? — perguntou Maggie, chocada. O infanticídio e os rituais de sangue com crianças não eram inauditos na cultura inca.
— Mas todas as crianças?
Maggie aproximou-se da mulher. Fez um berço com os braços e moveu-os no sinal universal de quem embala um bebé.
— Wawas... wawas...? — perguntou, usando a palavra quéchua para bebé. Maggie apontou para a grande barriga de grávida da mulher.
Os olhos desta abriram-se chocados, depois semicerraram-se de raiva. Encostou uma mão à barriga.
— Huaca — disse em tom firme, para depois falar rapidamente em quéchua.
— Huaca. Local sagrado — traduziu Denal. — Ela diz que barriga ser casa apenas dos deuses, nada de crianças. Há muitos anos que não haver crianças. Todas ir para o templo.
A mulher virou-lhes as costas, ignorando-os. Claramente ofendida com o tipo de perguntas.
— Ao que achas que se refere, Sam? — perguntou Maggie.
— Não sei. Mas acho que temos mais uma razão para procurar aquele xamã. — Sam fez sinal a Denal e Maggie para que o seguissem. — Vamos procurar o Kamapak.
A busca acabou por revelar-se mais difícil do que Sam antecipara. Grande parte dos homens tinha ido trabalhar nos campos ou caçar, incluindo o xamã. Denal conseguiu obter algumas indicações junto dos poucos aldeãos que realizavam as suas tarefas perto dos limites da aldeia. O grupo de Sam depressa se viu a percorrer um trilho na floresta. Passaram por pomares e abacateiros cujos frutos estavam a ser colhidos e cujos ramos estavam a ser podados. E por um campo arado onde as filas de um cereal semelhante a quinoa alternavam com fileiras de milho, chili, feijão e abóbora. Numa área por semear, os homens usavam tacllas, ou arados de pé, para revirar o solo, enquanto as mulheres ajudavam, recorrendo a um simples sacho chamado lampa. Maggie e Sam pararam para observar o trabalho, espantados por ver aquelas antigas ferramentas incas a serem usadas.
— Nem acredito nisto — disse Sam, pela centésima vez naquele dia.
Denal tocou em Sam.
— Por aqui — disse, incitando-os a continuar.
Sam e Maggie seguiram-no, continuando a espreitar por cima do ombro. Penetraram na floresta e pouco depois chegaram a uma clareira. Aí encontraram o xamã com um punhado de outros homens. Molhos de madeira atada estavam empilhados em trenós. Os incas ali reunidos até podiam ser irmãos, todos eles homens fortes, musculosos. Apenas as tatuagens do xamã o distinguiam dos outros. Kamapak, inicialmente, ficou sobressaltado com a sua presença, depois sorriu abertamente e fez-lhes sinal para que avançassem. Falou rapidamente.
Denal traduziu.
— Ele dar-nos as boas-vindas. Diz que chegarmos mesmo a tempo de ajudar.
— Ajudar com quê?
— Com o transporte de madeira de volta à cidade. A noite passada, no banquete, as muitas fogueiras esgotaram as reservas.
Sam resmungou, a cabeça ainda a latejar ligeiramente devido à ressaca.
— Emissários dos deuses ou não, suponho que se espere que ganhemos o nosso sustento. — Sam assumiu a sua posição ao lado de Kamapak, pegando numa das muitas alças usadas para puxar o trenó. Denal posicionou-se ao seu lado.
Maggie seguia à frente, ajudando a afastar pedaços de rocha vulcânica e a abrir caminho.
Com seis homens a fazer o papel dos bois, arrastar o trenó revelou-se mais fácil do que Sam pensara. Ainda assim, um dos homens passou a Sam algumas folhas de uma planta de coca. Quando as mastigou, a cocaína nas folhas ajudou a contrabalançar os efeitos da altitude... e a ressaca. Sam sentiu que a cabeça lhe doía menos. Perguntou-se se as folhas poderiam ajudar a aliviar a febre e as dores de Norman.
Sentindo-se melhor, Sam falou com o xamã, enquanto puxava pelo trenó. Denal ia traduzindo.
As perguntas de Sam sobre as crianças foram recebidas com a mesma consternação.
— O templo recebe as nossas crianças das barrigas das mulheres. Tão perto de janan pacha — um novo aceno para o alto cone vulcânico que se erguia a sul — o deus Con abençoou o nosso povo. As nossas crianças são agora as suas crianças. Vivem em janan pacha. Oferendas a Con.
Maggie tinha estado à escuta e olhou de relance para trás. Sam encolheu os ombros, fitando-a. Con era um dos deuses das tribos do Norte. Nas histórias travara batalhas épicas com Pachacamac, criador do mundo. Mas dizia-se que fora o deus Con quem criara o homem na Terra.
— Esse tal templo — perguntou Sam, falando com a boca cheia de folhas agridoces —, podemos vê-lo?
Os olhos do xamã semicerraram-se. Abanou veementemente a cabeça.
— É proibido.
Dada a forte recusa do homem, Sam não insistiu mais no assunto. Contudo, pensou que de pouco lhes servia serem emissários do deus do trovão. Parecia que Illapa não fazia parte do sistema totémico da aldeia.
Maggie deslizou de novo para o lado de Sam. Sussurrou-lhe:
— Estava a pensar na observação de Denal acerca da falta de crianças e comecei a analisar a composição da aldeia. Há mais um grupo em falta nesta sociedade.
— Quem?
— Os idosos. Os velhos. Parecem ter todos uma idade aproximada... na casa dos vinte anos.
Sam tropeçou, quando se apercebeu de que Maggie tinha razão. Até o xamã parecia não ser muito mais velho do que Sam.
— Talvez tenham uma esperança média de vida baixa.
Maggie franziu o sobrolho.
— A vida aqui é bastante resguardada. Não há grandes predadores, se descontarmos as criaturas nas profundezas das grutas.
Sam virou-se para Kamapak e, com a ajuda de Denal, perguntou-lhe pela ausência de velhos.
A resposta dele foi igualmente críptica.
— O templo cuida de nós. Os deuses protegem-nos. — Tendo em conta a entoação concedida às palavras, era óbvio que se tratava de uma resposta antiga. E, ao que parece, uma resposta à maior parte das perguntas. Quando Maggie fez as suas próprias perguntas acerca dos cuidados de saúde e das doenças entre os membros da comunidade, recebeu a mesma resposta.
Virou-se para Sam.
— Parece que os velhos, os jovens, os fracos e os doentes acabam lá em cima.
— Achas que estão a ser sacrificados?
Maggie encolheu os ombros.
Sam pensou nas suas palavras, depois virou-se para Denal, experimentando uma abordagem diferente.
— Tenta descrever as criaturas que vimos nas grutas.
O rapaz franziu o sobrolho, cansado do seu papel de tradutor, mas fez o que Sam lhe pedia. O xamã foi franzindo as sobrancelhas à medida que ouvia o relato. Pediu que parassem o trenó. As suas palavras foram sussurradas e tinham um toque de ameaça, enquanto Denal as traduzia.
— Não devem falar daqueles que andam em uca pacha, o submundo. São mallaqui, espíritos, e é errado falar deles. — Com aquelas palavras, o xamã fez avançar o trenó.
Sam olhou de relance para a montanha vulcânica a sul.
— O céu lá em cima e o inferno por baixo de nós. Todos os reinos espirituais dos incas reunidos num só vale.
Uma pacariscas, um nexo mágico.
— O que achas que significa? — perguntou Maggie.
— Não sei. Mas ficarei feliz quando o tio Hank chegar.
Daí a nada a equipa conseguira levar a carga de madeira até ao limite da aldeia. Passava já bastante do meio-dia e os trabalhadores largaram os arneses e começaram a vaguear e entrar na aldeia em si. As casas estavam de novo repletas de conversas e gente feliz. Parecia que até os trabalhadores do campo tinham regressado para o descanso do meio-dia.
Sam, Maggie e Denal vaguearam de regresso aos seus abrigos. À frente, Sam apercebeu-se de que as mulheres que tinham estado a cozinhar nos fogões estavam agora a passar conchas de milho assado e estufado para tigelas de pedra. Sorriu, apercebendo-se de súbito da fome que tinha.
— Devíamos acordar o Norman — disse Maggie. — Ele devia tentar comer.
Denal correu à frente.
— Eu ir buscar — gritou-lhes o rapaz.
Maggie e Sam assumiram os seus lugares na fila à frente do fogão. Outros fogões na aldeia libertavam o seu vapor para o ar, como pequenas chaminés vulcânicas. Como na maioria das cidades incas, a aldeia estava dividida em diferentes ayllu, unidades familiares alargadas ou grupos. Cada ayllu tinha a sua própria cozinha a céu aberto. Entre os incas, as refeições eram sempre comidas no exterior, desde que o tempo o permitisse.
Quando chegaram ao primeiro lugar da fila, Sam recebeu uma tigela com um estufado fumegante encimado por uma concha de puré de milho assado. Enfiado neste estava um pequeno pedaço de carne seca, charqui, bife de lama seco e curado ao sol.
Sam estava a cheirá-lo quando Denal emergiu da porta próxima e se apressou na direção deles, o seu rosto infantil fechado e sério.
— O que foi? — perguntou Maggie.
— Ele desaparecer. — Denal olhou de relance à sua volta. — Eu encontrar cobertor e palha todos desarrumados.
— Desarrumados? — perguntou Sam.
Denal engoliu em seco, claramente preocupado e assustado.
— Como se lutar com alguém.
Maggie olhou de relance para Sam.
— Antes de entrarmos em pânico, vamos perguntar. — Sam acenou a Denal na direção da mulher grávida que distribuía o estufado. O rapaz interrompeu o serviço.
Denal falou rapidamente. A mulher acenou, um sorriso rasgado abrindo-se-lhe no rosto. Quando Denal se virou para Sam, não partilhava do sorriso dela.
— Eles levar Norman para o templo.
Ao final da tarde, Joan deu por si na companhia de um jovem monge, num dos muitos cubículos dos laboratórios nas profundezas do coração da abadia. Fiel à sua palavra, o abade deixara ordens para que Joan fosse tratada como uma hóspede. Como tal, o seu pedido para observar as investigações realizadas na abadia fora acedido, embora com relutância, sem que o seu cão de guarda pessoal alguma vez estivesse muito distante. Mesmo naquele momento, Joan conseguia ver Carlos através da janela de observação. Mantinha a palma de uma das mãos no coldre da pistola.
Um jovem monge chamado Anthony voltou a chamar-lhe a atenção.
— Claro que todos temos as nossas próprias teorias — disse ele em tom objetivo, num inglês fluente. — Não deixamos propriamente que a fé tolde a experiência. O abade diz sempre que a nossa fé deve suportar os rigores da ciência.
Joan assentiu com a cabeça e inclinou-se um pouco mais para perto do homem. Erguiam-se agora perante um conjunto de computadores e monitores. Vários técnicos trabalhavam a alguns cubículos de distância, envergando as mesmas roupas que eles, estéreis fatos de laboratório brancos, mas em tudo o resto estavam sós.
Anthony ligou o computador. Perto do seu cotovelo estava uma bandeja com amostras diminutas do metal inca, fila após fila de minúsculas gotas de ouro aninhadas em formas de plástico. Acabado de retirar do congelador, a leve neblina do gelo seco agarrava-se ainda à bandeja. Ficara a saber que o laboratório tentava compreender a natureza do metal numa tentativa de acelerar o desejado objetivo de trazer Cristo de volta à terra. Tinham já desenvolvido métodos de depurar o metal de impurezas contaminantes, realçando as capacidades milagrosas da substância.
Joan estudou as amostras minúsculas. Para testar a sua própria teoria, precisava de uma daquelas gotas de ouro. Mas como? As amostras estavam tão próximas, mas, com tantos olhos a observá-la, era como se a bandeja estivesse trancada atrás de barras de ferro. Joan cingiu mais os punhos, determinada a não falhar na sua missão. Precisava apenas de uma distração momentânea. Inspirando fundo, preparou-se.
— Estou quase pronto — disse o monge, trabalhando no teclado.
Tal como ela.
Joan apoiara o seio esquerdo com mais firmeza no ombro dele enquanto espreitava para a bandeja. Escolhera Anthony como seu guia devido à sua tenra idade; de rosto barbeado e cabelo escuro, não devia ter mais de vinte anos. Mas, além da sua idade impressionável, escolhera-o de entre todos os outros por uma outra razão. Quando entrara nos laboratórios, guiada por Carlos, Joan apercebera-se de que os olhos do jovem se tinham aberto numa expressão de apreço. Viu como o seu olhar se deteve nos seus seios e depois se afastou. Na Johns Hopkins, ensinara alunos de licenciatura suficientes para reconhecer quando um parecia interessado em mais do que uma formação universitária. Por norma, afastava discretamente os avanços, mas agora explorava aqueles sentimentos. Ali fechado entre monges, Joan desconfiava que o jovem poderia ser facilmente perturbado pelas atenções de uma mulher, e tendo em conta a presente reação do jovem, acertara em cheio.
Anthony engoliu em seco, as faces ruborizadas. Afastou-se ligeiramente do toque dela.
Joan aproveitou. Deslizou para o banco vizinho, indo repousar uma mão sobre o joelho do jovem.
— Estou sobretudo interessada em ouvir as tuas próprias teorias, Anthony. Já aqui estás há algum tempo. O que pensas de el Sangre del Diablo? — Apertou-lhe ligeiramente o joelho.
Anthony olhou de relance para a divisória de vidro, na direção de Carlos. A mão dela estava escondida pelos seus corpos. O jovem monge não se afastou desta vez, mas o seu rosto estava quase roxo. Sentava-se imóvel, rígido como uma estátua. Se a mão de Joan subisse um pouco mais ao longo da sua perna, o mais certo era ter descoberto o quão rígido estaria o jovem.
Passara toda a tarde a roçar nele, a tocar-lhe, a sussurrar-lhe perto do ouvido. Com elogios e apelos suaves, tinha por fim conseguido que a levasse àquele último laboratório, onde estavam a ser analisadas amostras daquele misterioso metal. Agora, começava a parte verdadeiramente complicada.
Joan inclinou a cabeça, atenta ao jovem monge.
— Então, diz-me o que pensas que é este metal, Anthony?
Ele quase se engasgou com as palavras:
— Talvez nan... nanobots.
Agora era a vez de Joan se sobressaltar, deixando a mão deslizar do joelho dele.
— Desculpa?
Anthony assentiu de pronto com a cabeça, relaxando ligeiramente, agora que podia falar de algo que lhe era familiar.
— Alguns de entre nós... os investigadores mais jovens... acreditam que talvez este metal seja, na realidade, uma densa acumulação de nanobots.
— Estás a falar de nanotecnologia? — disse Joan. Tinha lido alguns artigos teóricos que debatiam a possibilidade de construir máquinas subcelulares, os nanobots, capazes de manipular a matéria a nível molecular ou até mesmo atómico. Um artigo recente publicado na Scientific American descrevia uma primeira tentativa rude de construir estes robots microscópicos por cientistas da UCLA. Na sua mente, recordava a sua própria análise do metal sob o microscópio eletrónico: a minúscula matriz metálica de partículas ligadas por apêndices que pareciam ganchos. Mas nanobots? Impossível. O jovem claramente lera demasiada ficção científica.
— Venha ver — disse Anthony, subitamente entusiasmado por poder exibir-se para a sua plateia. Deitou a mão à bandeja e, com um par de pinças de aço inoxidável, ergueu dela uma das pequenas bolinhas de metal. Colocou-a na máquina à sua frente. — Cristalografia eletrónica — explicou. — Foi concebida por nós. Pode isolar uma unidade da estrutura cristalina do metal e construir uma imagem tridimensional. Veja. — Tocou no ecrã com as pinças.
Joan aproximou-se mais, indo buscar os óculos, esquecendo-se por um momento que tentava seduzir o jovem monge. Quando pediu a Anthony que lhe mostrasse o metal, não estava a pensar em vê-lo tão de perto. Mas, agora, a cientista em Joan estava intrigada.
No ecrã surgiu uma imagem, num detalhe cristalino, que girava lentamente de modo a revelar todas as superfícies. Joan reconheceu-a. Uma partícula microscópica do metal. Tinha forma octogonal, com seis apêndices filiformes: um em cima, um no fundo, e quatro que radiavam do centro. Na ponta de cada um deles havia quatro ganchos com garras minúsculas, como as garras de um pardal.
Anthony apontou para o ecrã com a ponta da caneta.
— Na sua forma genérica e na sua arquitetura, apresenta uma clara semelhança com o nanobot proposto pelo doutor Eric Drexler no seu livro Motores da Criação. Este teorizou uma máquina molecular em duas secções: computador e construtor. O cérebro e o músculo do nanobot, por assim dizer. — Tocou no núcleo central octogonal. — Eis o processador central, o seu cérebro programado, rodeado por seis nós, ou construtores, que manipulam os braços. — O jovem monge moveu o ponteiro ao longo dos finos ganchos semelhantes a garras. — Eis aquilo a que Drexler chama posicionadores moleculares.
Joan franziu o sobrolho.
— E achas que esta coisa consegue realmente manipular a matéria ao nível molecular?
— Porque não? — perguntou Anthony. — Temos enzimas nos nossos corpos neste preciso momento que agem como nanobots orgânicos naturais. Ou pense nas mitocôndrias dentro das nossas células... esses organelos não passam de centrais de energia microscópicas, que manipulam a matéria a nível atómico para produzir ATP, ou energia, para as nossas células. Até os milhares de vírus na natureza são formas de máquinas moleculares. — Olhou de relance para ela. — Como vê, a Mãe Natureza já o conseguiu. Os nanobots já existem.
Joan assentiu lentamente com a cabeça, voltando-se de novo para o ecrã.
— Esta coisa quase parece viral — balbuciou. Joan já assistira a surtos de bacteriófagos virais. Sob o microscópio eletrónico, assemelhavam-se a módulos lunares que aterravam nas membranas das células, mais máquinas do que organismos vivos. Aquela imagem levou-a a pensar num desses ensaios virais.
— O que disse? — perguntou Anthony.
Joan cerrou os lábios.
— Estava apenas a pensar em voz alta. Mas tens razão. Até os priões que provocam a doença das vacas loucas podem ser considerados nanobots. Todos manipulam o ADN a nível molecular.
— Sim, exatamente! Nanobots orgânicos — disse ele, o rosto corado de excitação. Apontou de novo para o ecrã. — Alguns de nós acreditam que estes serão os primeiros nanobots inorgânicos descobertos.
Joan franziu o sobrolho. Talvez fosse possível. Mas com que fim? perguntou-se. Qual seria o seu objetivo? Lembrou-se do aviso de frei de Almagro gravado no crucifixo. Ele estava assustado com uma qualquer pestilência associada ao metal. Se o monge estivesse correto, seria isso uma pista? Muitos dos nanobots «orgânicos» que tinha referido a Anthony — vírus, priões — eram vetores de doença. Pressentiu que, com mais tempo, seria capaz de desvendar o mistério. Em especial utilizando aquelas instalações, pensou, olhando de relance para o laboratório gigantesco.
Mas, primeiro, tinha uma experiência a realizar. Antes de entregar os vetores de doença, era sempre melhor conseguir esterilizá-los. E o frade morto sugerira-lhe uma forma no seu criptograma: Prometeu detém a nossa salvação.
Prometeu, o portador do fogo.
Seria essa a resposta? O fogo sempre fora o grande esterilizador. Joan lembrou-se da avaliação realizada por Dale Kirkpatrick, o perito em metalurgia. Este reparara que a Substância Z utilizava energia com uma eficiência perfeita. Mas e se o metal recebesse demasiado calor, por exemplo a partir de uma chama? Talvez, sensível como era, não fosse capaz de lidar com tal extremo.
Joan descera até ali para pôr à prova a sua teoria, roubar uma amostra do metal que pudesse usar nas experiências. Arriscou um rápido olhar de relance para frei Carlos. O seu cão de guarda estava claramente entediado, demasiado confiante nas defesas da abadia para se preocupar com uma mera mulher.
Descontraidamente, Joan retirou os óculos, depois inclinou-se um pouco mais sobre Anthony enquanto este deitava a mão a uma caneta. O jovem estremeceu perante o contacto súbito e afastou o braço. O seu cotovelo chocou contra os óculos de Joan, fazendo-os cair das suas mãos. Ela assegurou-se de que estes caíam sobre a bandeja de amostras preciosas. Algumas gotículas de ouro dançaram e rolaram sobre a secretária, como berlindes derramados.
Anthony ergueu-se de um salto.
— Lamento. Devia ter prestado mais atenção ao que estava a fazer.
— Não faz mal. Está tudo bem. — Joan desceu da cadeira. Rapidamente tomou na palma da mão duas daquelas gotas irrequietas. As outras caíram ao chão. Os técnicos acorreram para ajudar Anthony a reunir as amostras perdidas. Joan recuou.
Carlos surgiu subitamente ao lado dela, a arma em riste.
— O que aconteceu?
Joan apontou com uma mão, enquanto levava ao bolso as amostras roubadas com a outra. Acenou na direção da grande atividade.
— Ao que parece, nem mesmo este abençoado laboratório consegue escapar à terceira Lei de Murphy.
— E que lei é essa?
Joan virou um rosto inocente na direção de Carlos.
— As merdas acontecem.
Carlos franziu o sobrolho e agarrou nela por um cotovelo.
— Já aqui está em baixo há tempo suficiente. Vamos embora!
Ela não resistiu. Tinha aquilo que fora buscar... e mais ainda.
Do local onde se encontrava ajoelhado no chão do laboratório, Anthony ergueu um braço para se despedir. Ela agraciou-o com um sorriso e um aceno. O jovem merecia pelo menos isso.
Carlos conduziu-a rapidamente através do labirinto subterrâneo. Joan pensou que era adequado que a escória da Inquisição Espanhola tivesse acabado instalada no equivalente a uma câmara de tortura inca. Perguntou-se se a escolha de localização teria sido propositada. Um torturador que assume a residência do anterior.
Daí a nada, Joan viu-se de novo perante a porta da sua própria cela.
Carlos fez-lhe sinal para que entrasse.
Mas Joan hesitou, virando-se para ele.
— Suponho que não tenha um cigarro consigo. — Ela não fumava. Mas ele não sabia disso. Joan fez uma careta de desconforto fingido. — Já lá vão dois dias e não aguento mais.
— O abade proíbe-nos de fumar na abadia.
Joan franziu o sobrolho.
— Mas ele não está aqui, pois não?
Um verdadeiro sorriso invadiu-lhe os lábios. Olhou de relance para o corredor, ao mesmo tempo que um maço de tabaco lhe aparecia nas mãos. Nada como o segredo comunal de um fumador dissimulado. Ele tirou dois cigarros do maço.
— Tome.
Ela guardou um no bolso e enfiou o outro entre os lábios.
— Importa-se? — balbuciou ela em redor do filtro, inclinando-se para a frente em busca de lume.
O franzir de sobrolho perpétuo regressou, mas enfiou a mão na túnica e retirou um isqueiro. Acendeu a ponta do cigarro dela.
— Obrigada — disse Joan.
Ele limitou-se a acenar com a cabeça na direção da porta da cela.
Ela recuou, ergueu o ferrolho e entrou na cela.
— Essas coisas podem matá-la — balbuciou Carlos atrás dela, fechando e trancando a porta.
Joan ouviu os passos dele a afastarem-se, depois recostou-se contra a porta com um longo suspiro, o fumo deslizando-lhe dos lábios. Susteve um acesso de tosse. Conseguira. Depois de se permitir por uns momentos a saborear a vitória, afastou-se da porta e lançou-se ao trabalho. Era possível que descobrissem a falta das amostras.
Avançou para uma pequena secretária e sentou-se. Retirando o cigarro dos lábios, pousou-o cuidadosamente na beira da mesa. Temendo subitamente câmaras escondidas, Joan curvou-se sobre a secretária e consultou os resumos e artigos sobre nanotecnologia que o jovem monge lhe enviara. Planeava ler mais sobre a teoria daquele jovem monge. Enquanto afastava os documentos, uma frase destacada de uma tese pessoal chamou-lhe a atenção: Viemos a acreditar que cada estrutura em partículas do metal pode, na realidade, ser um tipo de aparelho de produção microscópico. Mas isto levanta duas questões. Com que propósito foi concebido? E quem o programou?
Joan endireitou-se ligeiramente, considerando as duas últimas perguntas. Nanotecnologia? Voltou a imaginar a forma cristalina do nanobot e os braços com ganchos. Se o jovem investigador estivesse correto, que raio seria o objetivo daquele metal estranho? Teria frei de Almagro descoberto a resposta há muito tempo? Fora isso o que o aterrorizara?
Inclinando-se sobre a secretária para esconder o que fazia, Joan deslizou uma das duas gotas de ouro. Independentemente da resposta, algo sabia com toda a certeza. Aquele metal aterrorizara o frade mumificado, e era possível que ele tivesse sugerido uma forma de o destruir.
Joan revirou a lágrima de ouro sobre o tampo da mesa de carvalho. Agora mais quente, o metal assemelhava-se a um pedaço de massa mole. Tinha de lidar com ele cautelosamente. Utilizando a caneta, removeu um pedacinho minúsculo com a ponta e colocou-o na mesa. Tinha de ser frugal. A amostra de teste era apenas do tamanho de uma pequena formiga.
Uma vez terminada, foi buscar o cigarro, sacudiu a cinza, e desceu a ponta brilhante na direção do metal.
— Muito bem, frei de Almagro. Vejamos se Prometeu é a nossa salvação.
Lambendo os lábios, tocou no ouro.
A reação não foi sonora, não passou de uma espécie de tosse, mas o resultado foi violento. O braço de Joan foi lançado para trás. O cigarro voou-lhe dos dedos. O fumo da madeira ergueu-se em volutas. O seu próprio arquejo de surpresa foi mais sonoro do que a explosão. Acenou com a mão na direção do fumo. Tinha sido aberto um buraco através do tampo de carvalho.
— Meu Deus — disse ela, agradecendo às estrelas por não ter usado toda a gota de metal. Teria destruído toda a secretária e, provavelmente, toda a parede atrás dela.
Olhou de relance para a porta, tentando ouvir passos que se aproximassem. Ninguém ouvira.
Com um ar sério, ergueu-se e avançou para a porta. Tocou no ferrolho, começando a imaginar um plano. Deslizou o dedo pelas amostras douradas que lhe restavam, sopesando-as, calculando. Tinha de transmitir aquela notícia, em especial a Henry.
Mas será que tinha metal volátil suficiente para abrir caminho até à liberdade? Provavelmente não... Afastou-se da porta. Por ora, iria esperar.
Tinha de esperar, ser tão paciente quanto frei de Almagro. Ele demorara quinhentos anos a transmitir a sua mensagem. Joan fitou o buraco fumegante na secretária... mas, por fim, alguém ouvira a mensagem.
Enquanto o Sol se punha, Henry esperava que o grande helicóptero reabastecesse na pista de aterragem envolta pela selva. A tripulação de seis homens do abade trabalhava para carregar os últimos mantimentos no porão de carga. Henry mantinha-se um pouco afastado, no limite da pista dilapidada. O vento produzido pelo rotor espalhara latas de combustível vazias e lixo pela faixa de terra batida. Não muito longe, à sombra de uma barraca de madeira, o abade Ruiz, que retirara o hábito e envergava agora um fato de safari caqui, discutia com um mecânico chileno de rosto tenso. Parecia que o preço do combustível era um tema aceso.
Henry virou-lhes as costas. À sua esquerda, dois dos acólitos armados do abade mantinham-se de guarda, assegurando que ele, um professor de sessenta anos, não tentava fugir para a selva. Mas os guardas eram desnecessários. Mesmo que pudesse desarmar os guardas e fugir, Henry jamais sobreviveria dez passos naquela selva.
Para lá do limite da floresta, Henry apercebera-se do brilho da luz do Sol sobre metal, guerrilheiros escondidos que protegiam o seu investimento. Aquela faixa sufocada pelas ervas era claramente uma base de traficantes de drogas e armas. Henry também se apercebera das caixas de vodca russa empilhadas ao lado da barraca. Central do mercado negro, calculou.
Resignou-se ao seu destino. Tinham viajado toda a tarde a partir de Cusco até àquela pista de aterragem sem marcações. A partir dali, estimava que seria uma viagem de quatro horas até outro ponto de reabastecimento secreto próximo de Machu Picchu, depois mais três ou quatro horas para chegar às ruínas. Alcançá-las-iam precisamente quando o Sol começasse a nascer no dia seguinte.
Tinha até lá para descobrir uma forma de impedir as ações do grupo do abade.
Henry recordava-se do breve contacto com Philip Sykes. O estudante soava claramente aliviado, mas também havia medo na sua voz. Henry amaldiçoou-se por ter colocado em apuros não só o seu próprio sobrinho, mas todos os outros estudantes. Tinha de descobrir uma forma de os proteger. Mas como?
Uma voz gritou de uma zona próxima do helicóptero. Os tanques estavam cheios e prontos para a fase seguinte da viagem.
— Carregamento completo! — gritou Ruiz sobre o som dos rotores. O abade entregou uma mão-cheia de notas ao chileno de lábios tensos. Aparentemente, fora estabelecido um preço.
Ao lado do helicóptero, os últimos caixotes da escavação e do equipamento de demolição continuavam à espera de serem carregados. Por entre o equipamento, Henry apercebeu-se de quatro caixas com letras cirílicas marcadas nas tábuas de madeira laterais. Tratava-se claramente de contrabando russo: granadas, espingardas de assalto AK-47, explosivo plástico. Carradas de armamento para uma equipa arqueológica, pensou Henry amargamente.
O abade fez sinal aos guardas de Henry para que o conduzissem de volta ao par de helicópteros. Henry não tinha qualquer ilusão. Ele era apenas mais uma peça de equipamento, mais uma ferramenta para ser usada, e depois descartada. A partir do momento em que o abade tivesse aquilo que queria, Henry desconfiava que iria acabar como o doutor Kirkpatrick na Johns Hopkins, deitado de rosto no chão, uma bala nas costas, tal como Joan, Sam e os outros estudantes.
Henry foi conduzido de volta ao helicóptero. Por ora, sabia que não devia resistir. Enquanto Joan estivesse cativa, ele tinha de ter paciência, de se manter alerta para o caso de surgir alguma oportunidade. Enquanto Henry atravessava a pista de terra batida, recordou o último momento que tinham tido juntos. Lembrava-se do cheiro do cabelo dela, do toque da pele enquanto lhe sussurrava ao ouvido, o calor da sua respiração no pescoço dele. As mãos dele foram ficando húmidas ao pensar no perigo que ela enfrentava. Mal algum lhe deveria acontecer. Nem agora nem mais tarde. Tinha de encontrar uma forma de a libertar.
O abade Ruiz era só sorrisos quando Henry alcançou o helicóptero que os aguardava.
— Vamos partir, professor Conklin — gritou ao subir para a cabina. — Vamos até às suas ruínas.
Franzindo o sobrolho perante os modos joviais do homem, Henry recebeu um ligeiro empurrão de um guarda para que avançasse. Uma vez no interior, Henry prendeu-se ao assento ao lado do abade.
Inclinando para a frente o seu grande corpo, Ruiz falou com o piloto, as cabeças próximas para que pudessem ouvir-se mutuamente. O piloto apontou para os auscultadores do rádio. Quando Ruiz se virou para Henry, o seu sorriso sumira.
— Parece que há mais problemas lá em cima — disse ele.
O coração de Henry bateu com mais força no peito.
— Do que está a falar?
— O seu sobrinho contactou por breves instantes com o estudante nas ruínas. Ao que parece, o fotógrafo da National Geographic está em apuros.
Henry lembrou-se da descrição que Philip fizera do ferimento de Norman. Não lhe tinha sido permitido falar o suficiente pra conseguir quaisquer pormenores, além de que o fotógrafo fora ferido e necessitava de atenção médica.
— O que se passa?
O abade estava a descer do helicóptero.
— Mudança de planos — disse ele, com um franzir de sobrolho profundo. — Tenho de negociar mais combustível, o suficiente para nos levar diretamente até às ruínas. Não haverá mais paragens.
Henry agarrou o braço de Ruiz.
— O que se passa?
Um dos guardas fez Henry afastar a mão, libertando o abade. Mas Ruiz respondeu:
— O seu sobrinho parece acreditar que os incas vão sacrificar o fotógrafo.
Henry ficou sobressaltado.
O abade Ruiz deu uma palmadinha no joelho de Henry.
— Não se preocupe, professor Conklin. Podemos não ser capazes de salvar o fotógrafo. Mas chegaremos lá antes que os outros sejam mortos. — Depois, o grande homem baixou-se para passar sob os rotores inativos, segurando sobre a cabeça o chapéu de safari.
Henry recostou-se no seu assento, cerrando os punhos. Rituais de sangue. Nem sequer imaginara uma tal possibilidade, mas tendo em conta as cerimónias religiosas incas, deveria tê-lo feito! Sam e os restantes estavam agora encurralados entre dois inimigos sedentos de sangue: os discípulos da Inquisição Espanhola e uma tribo perdida de guerreiros incas.
A partir do exterior da janela, Henry viu o abade a fazer sinal ao piloto erguendo um polegar enquanto os lacaios dos guerrilheiros rolavam dois tanques extra de combustível na direção do helicóptero que aguardava.
Semicerrando os olhos, Henry desconfiou que, da parte do abade, não era o altruísmo que motivava aquela mudança de planos. Não se tratava de salvar as vidas dos outros estudantes, mas de proteger a parte de Ruiz do que ali poderiam encontrar. Se Sam e os outros fossem mortos, era possível que o local do filão de Sangre se perdesse, talvez durante outros tantos séculos. O abade Ruiz não ia correr quaisquer riscos. Mais duas mãos-cheias de notas passaram para o agora sorridente chileno.
Sob a fuselagem do helicóptero, Henry sentiu o bater e o raspar dos tanques de combustível extra a serem carregados. O abade regressou ao helicóptero, apressando-se.
Henry inclinou a cabeça para trás, deixando que um suave gemido lhe escapasse da garganta.
Estavam a ficar sem tempo... todos eles.
Maggie observou Sam a andar para trás e para a frente no quarto de pedra, como um touro espicaçado que espera pela entrada na arena. Segurava o chapéu Stetson, apertando-o a ponto de deixar os nós dos dedos brancos, batendo com ele repetidamente contra a coxa. Com as suas próprias roupas lavadas e secas, tinha voltado a vestir as calças de ganga Wrangler e o colete. Maggie desconfiava que a mudança de roupa era um reflexo da raiva e frustração de Sam em relação aos incas.
Embora compreendesse a atitude de Sam, ela e Denal envergavam ainda as roupas incas largas, não querendo ofender os seus anfitriões.
Sam tentara, durante toda a tarde, obter autorização do xamã para aceder ao templo ou para trazer Norman de volta. A resposta de Kamapak fora sempre a mesma; Sam já conseguia traduzir sozinho, por aquela altura: «É proibido.» E sem forma de saber onde estava escondido aquele templo sagrado, não podiam planear o salvamento. O vale mergulhado em florestas cobria facilmente milhares de hectares. Estavam à mercê dos incas.
— Contactei o Philip e informei-o da situação — disse Sam, falando rapidamente e sem fôlego —, mas ele não ajuda nada!
Maggie avançou e impediu Sam de continuar a andar, tocando-lhe no braço.
— Acalma-te, Sam.
Os olhos de Sam estavam vidrados de culpa e frustração.
— A culpa é minha. Nunca o deveria ter deixado sozinho. Em que estava eu a pensar?
— Receberam-nos como parte da sua tribo, aceitaram-nos calorosamente. Não tinhas como antecipar uma coisa destas.
Sam abanou a cabeça.
— Ainda assim, deveria ter tomado precauções. Primeiro o Ralph... agora o Norman. Se ao menos eu... se ao menos tivesse...
— O quê? — perguntou Maggie, agarrando agora com força o braço de Sam. Ia obrigá-lo a escutá-la. Todos aqueles lamentos e autocensuras de nada lhe serviam. — Que terias feito, Sam? Se tivesses lá estado quando os incas chegaram, o que achas que poderias ter feito para os impedir? Qualquer resistência provavelmente teria resultado na morte de todos nós.
Sam estremeceu sob as mãos dela, o vidrado desaparecendo-lhe dos olhos.
— Então, o que fazemos? Esperamos que eles nos apanhem um a um?
— Usamos a cabeça, é isso que fazemos. Precisamos de pensar claramente. — Maggie largou Sam, confiante que ele agora a iria escutar. — Primeiro, não me parece que estejam a pensar em apanhar-nos um a um. O Norman estava ferido, por isso foi levado ao templo. Nós não estamos feridos.
— Talvez... — Sam olhou de relance para Denal, que se encontrava junto à cortina de junco que cobria a porta, espreitando para o exterior. Sam baixou a voz. — Mas então e ele? Também levam para lá as crianças.
— O Denal já passou da puberdade. Para os incas é um adulto. Duvido que esteja em risco.
— Mas viste como o fitam quando passa? É como se estivessem simultaneamente curiosos e um pouco confusos.
Maggie assentiu com a cabeça. E também temerosos, acrescentou silenciosamente. Mas não queria perturbar de novo Sam.
Denal falou a partir da porta.
— Vir pessoas.
Maggie também as ouviu. Os que se aproximavam não o faziam em segredo. O som de muitas vozes entusiasmadas fazia-se ouvir para lá do seu abrigo. Algumas começaram a cantar.
Sam avançou para se juntar a Denal.
— O que se passa?
Denal encolheu os ombros, mas Maggie viu as suas mãos tremerem um pouco enquanto seguravam aberto a cortina de junco. Sam pousou uma mão protetora no ombro do rapaz e agarrou na Winchester com a outra. Agora armado, Sam afastou a cortina. O texano emergiu, de costas direitas, numa postura de confronto.
Maggie apressou-se a juntar-se a eles. Não queria que Sam fizesse nada de impulsivo.
No exterior, o Sol pusera-se por completo. A noite ensombrara a aldeia em sulcos enquanto debatiam a provação de Norman. Por entre as casas, floresciam archotes, luminosos como estrelas na escuridão, enquanto a lua cheia sobre as suas cabeças servia como única fonte de iluminação.
Enquanto observavam, a praça vizinha encheu-se com um número crescente de incas. Alguns também traziam archotes, enquanto outros seguravam sobre as cabeças pedaços de pederneira que batiam um no outro lançando centelhas como pirilampos na noite. Do outro lado da praça, um tamborilar rítmico levou um punhado de mulheres incas a dançar, as suas túnicas agitando-se em redor das pernas. No centro da praça, foi acesa de súbito uma fogueira.
— Outra celebração — disse Maggie.
Um dos homens com as pederneiras aproximou-se, sorrindo-lhes com os dentes brancos. Bateu com as pedras, ao ritmo dos tambores. As flautas e as gaitas juntavam-se ao coro.
— Até parece a merda do Quatro de Julho — murmurou Sam.
— Trata-se, sem dúvida, de uma festa — concordou Maggie. — Mas o que estarão a celebrar? — Tendo em consideração a expressão assustada de Sam, Maggie desejou subitamente ter permanecido em silêncio. Aproximou-se dele, sabendo o que estava a pensar. Também estudara a cultura inca. Uma aldeia celebrava sempre depois de um ritual de sangue. Um sacrifício era uma ocasião alegre. — Não sabemos se isto tem alguma coisa a ver com Norman — argumentou Maggie.
— Mas também não sabemos se não tem — resmungou Sam.
Denal, que se tinha mantido mais perto da porta, avançou de repente.
— Olhem! — disse, apontando.
Do outro lado da praça, a massa de corpos que entrava afastou-se. Uma figura solitária vagueou por entre eles, envergando uma túnica cor de umbra e uma capa yacolla preta presa num dos ombros. Parecia atordoado e avançava com passos ligeiramente embriagados.
A voz de Sam era semelhante à confusão do homem.
— Norman?
Maggie agarrou o cotovelo de Sam.
— Santa mãe de Deus, é ele!
Os dois olharam de relance um para o outro antes de correrem na direção de Norman. À sua volta, os celebrantes divertiam-se. A música tornou-se mais ruidosa, os cânticos e cantares juntaram-se-lhe. Antes que conseguissem chegar ao lado de Norman, Kamapak surgiu do meio da multidão, bloqueando o seu caminho. Sob a luz da fogueira, as tatuagens do xamã eram como marcas de aranhas no rosto e no pescoço: símbolos abstratos do poder e estranhos dragões emplumados.
Sam preparou-se para levantar a espingarda, mas Maggie baixou-lhe o cano.
— Ouve-o.
O xamã falou num tom grandioso. Denal traduziu.
— O vosso amigo foi aceite como merecedor pelos deuses de janan pacha. Ele é agora ayllu, família, com o Sapa Inca.
— O Sapa Inca? — perguntou Maggie, que continuava a segurar o cano da espingarda de Sam. — Quem?
Mas o xamã já lhes virava as costas, convidando-os a avançar para junto de Norman. O fotógrafo pareceu vê-los por fim. Acenou com o braço frágil e cambaleou na direção deles. O rosto ainda estava pálido, não com a mesma compleição febril ou doente, mas mais como se estivesse em choque. Sam apressou-se para junto dele. Maggie e Denal permaneceram ao lado do xamã.
Kamapak testemunhou a reunião com claro prazer. Maggie repetiu a sua pergunta com a ajuda de Denal.
— Não compreendo. Sapa Inca? — Maggie nunca pensara que aquela aldeia tão pequena tivesse um líder distinto, muito menos um dos deuses reis reverenciados pelos incas. — Quem é o vosso Sapa Inca?
O xamã franziu o sobrolho quando Denal traduziu as suas palavras, depois falou lentamente. Denal virou-se para ela.
— Ele diz que já indicou o nome do Sapa Inca. Ser Inkarri. Ele viver no Templo do Sol.
— Inkarri...? — Maggie lembrou-se de que, na noite anterior, tinha sido feita referência ao deus guerreiro decapitado. O seu sobrolho franziu-se ainda mais.
Quaisquer perguntas possíveis foram interrompidas pelo ressurgimento de Sam com Norman.
— Não vão acreditar nisto — começou por dizer Sam. Acenou a Norman. — Mostra-lhe.
Norman ergueu a túnica e afastou-a o suficiente para revelar o joelho. Por um segundo, Maggie franziu o sobrolho, inclinando-se um pouco para a frente, mas nada viu de extraordinário.
— Não vejo... — Depois compreendeu como quem mergulha num lago gelado num dia quente. — Jesus, Maria, José!
O joelho de Norman estava curado. Não, não curado. Não havia qualquer sinal dos danos provocados pela bala. Não havia qualquer ferida, qualquer cicatriz. Era como se Norman nunca se tivesse ferido.
— Mas isso não é o mais espantoso — disse Norman, captando a atenção de Maggie e Sam.
— O quê? — perguntou o texano.
Norman levou as palmas das mãos ao rosto.
— Os meus olhos.
Maggie franziu o sobrolho.
— O que têm? — Ela apercebeu-se de que os grossos óculos do fotógrafo tinham desaparecido.
O fotógrafo olhou de relance pela praça, a sua voz revelando espanto.
— Consigo ver. A minha visão está perfeita.
Antes que qualquer um dos estudantes pudesse reagir, Kamapak ergueu os braços e a voz. As suas palavras ribombando sobre as paredes e estendendo-se sobre a praça, eram dirigidas não apenas a eles, mas a toda a tribo inca reunida.
— O que está ele a dizer? — perguntou Sam a Denal enquanto levava a espingarda ao ombro.
Antes que o rapaz pudesse responder, foi Norman quem falou, com uma voz abafada.
— Ele diz que esta noite, quando a Lua atingir o zénite, o Sapa Inca virá. Depois de muitos séculos, descerá do seu trono de ouro e caminhará por entre o seu povo.
Kamapak apontou para o grupo de estudantes.
Norman terminou, mostrando uma expressão de surpresa estampada no rosto:
— «Aqui se ergue o futuro da nossa tribo. Irão levar Inkarri de novo para cay pacha, o mundo intermédio. O reino dos incas irá recomeçar.»
Um rugido ergueu-se dos incas reunidos.
Apenas o seu grupo permaneceu em silêncio. Sam fitava de boca aberta. Maggie também não encontrava palavras, de tão espantada que estava. Como podia Norman ter percebido o que o xamã dissera? Denal aproximou-se mais de Maggie, os olhos fixos temerosamente em Norman.
Norman encolheu os ombros e disse:
— Não olhem para mim em busca de uma explicação, malta. Chumbei no primeiro ano de espanhol.
Enquanto a celebração prosseguia, Sam sentou-se com Norman nos degraus da praça. Queria respostas.
— Então, conta-nos o que aconteceu. O que é esse Templo do Sol?
Norman abanou a cabeça. Deslizou um dedo pelo joelho.
— Não sei.
— Como assim? — perguntou Maggie. Estava sentada do lado oposto de Norman, enquanto Denal repousava no degrau mais abaixo, os olhos ainda fixos na contínua celebração. O rapaz fumava um dos seus últimos cigarros preciosos. A ponta iluminava-se como um archote a cada longa inalação. Depois dos terrores daquele dia, Sam não podia privar Denal do seu único vício. — Qual era o aspeto do templo? — insistiu Maggie.
Norman virou-se para ela, os olhos simultaneamente perturbados e furiosos.
— A questão é essa... não sei.
— Então, o que é que sabes? — quis saber Sam.
Norman virou-se, o rosto brilhante na luz refletida das fogueiras.
— Lembro-me de ter sido arrancado da minha cama, no nosso quarto. Tentei dar luta, mas estava demasiado fraco para poder desferir mais do que alguns bons pontapés nos meus raptores. Em breve estava a ser transportado, sem qualquer gentileza, devo acrescentar, entre dois guerreiros, através de um longo caminho para sul. Depois de cerca de três quartos de hora, atingimos a parede sul da chaminé, com aquele outro grande vulcão preto a erguer-se por cima de nós. Havia uma subida íngreme e depois vi, de súbito, uma abertura negra na pedra. Um túnel, que passa pela lateral do vulcão.
— Para onde ia? — perguntou Sam, atraindo para si o olhar de Norman.
— Não sei. Mas vi a luz do dia no fundo do túnel. Tenho a certeza disso.
— Talvez esteja ligado ao outro vulcão — disse Maggie. — Um caminho para o janan pacha dos incas.
— Que mais? — perguntou Sam ao fotógrafo.
Norman abanou lentamente a cabeça.
— Lembro-me de ser transportado durante boa parte do caminho ao longo do túnel até surgir uma gruta lateral. Dela emergia a luz dos archotes. À medida que nos aproximávamos, alguém emergiu do seu interior, saudando os meus raptores com um cajado erguido. — O fotógrafo afastou o olhar e franziu o sobrolho.
— E?
— E depois disso, a minha mente é um vazio. Em seguida, lembro-me apenas de ser conduzido de volta ao túnel, os últimos raios do sol poente a cegar-me. — Norman mexeu na túnica que trazia vestida. — E estava a usar isto.
Maggie recostou-se no seu assento de pedra, o sobrolho cerrado, enquanto digeria a história de Norman.
— E consegues compreender a língua dos incas... — Ela abanou a cabeça. — Talvez se tenha tratado de um processo hipnótico. Isso poderia explicar a falta de memória. Mas o nível de cura, os joelhos, os olhos, isso está muito além de qualquer coisa que a medicina ocidental consiga fazer. É... é quase milagroso.
Sam franziu o sobrolho.
— Não acredito em milagres. Existe uma resposta. E está naquele templo. — O seu olhar cruzou-se com o de Norman. — Achas que consegues encontrar o caminho de volta?
Norman cerrou os lábios por um momento antes de falar.
— Acredito que sim. O trilho estava limpo e havia marcadores de pedra ao longo do caminho, separados por umas centenas de metros. Os guerreiros paravam e pronunciavam rapidamente algumas palavras balbuciadas, prosseguindo em seguida.
— Totens de oração — balbuciou Sam. Pelo menos Norman estava relativamente certo de que conseguiria encontrar o Templo do Sol, se necessário. Teria de ficar satisfeito com isso, por ora. No dia seguinte, chegaria o tio Hank, e Sam poderia deixar esses estranhos mistérios nas mãos especialistas do tio. Por preocupante e assustador que tivesse sido o dia, Sam estava igualmente aliviado por Norman ter sido curado, independentemente do como e do porquê.
Do outro lado da praça, os tambores ruidosos silenciaram-se e as dançarinas abrandaram e pararam. Uma mulher inca subiu sozinha para um pedestal de pedra e começou a cantar baixinho, a voz solitária na noite iluminada pelo fogo. Em breve, a multidão reunida juntou-se solenemente à sua canção, centenas de vozes que se erguiam como vapor em direção ao céu da meia-noite. Nas redondezas, Denal começou a cantar baixinho. Embora as palavras não tivessem sido traduzidas, Sam pressentiu alegria misturada com reverência, quase como um hino cristão.
As palavras de Maggie brincavam na sua mente. Milagres. Teriam os incas tropeçado numa qualquer fonte de cura maravilhosa? O equivalente à mítica fonte da juventude de Ponce de Leon. Sam sentiu a boca ficar seca, perante a ideia de tamanha descoberta.
Enquanto ouvia a multidão a cantar baixinho, Sam olhou para a praça; uma vez mais ficou espantado pelo facto de não haver crianças, bebés nos braços das mães ou crianças pequenas agarradas às suas saias. Tal como não havia idosos misturados com estes homens e mulheres mais jovens. Todos os rostos que se erguiam para a lua cheia sobre as suas cabeças eram demasiado uniformes, quase todos da mesma idade.
Quem eram aquelas pessoas? O que teriam descoberto? Sam sentiu um súbito arrepio, que nada tinha a ver com o vale refrescante.
Por fim, um murmúrio espalhou-se como uma onda pela praça. Os olhos de Sam foram atraídos para o lado sul da praça à medida que os celebrantes se iam ajoelhando. A pequena mulher que liderara os cânticos desceu do pedestal e ajoelhou-se também. Em breve apenas uma figura solitária permanecia de pé. Erguia-se do lado oposto, sem se mover, alta para um inca, com pelo menos um metro e oitenta. Empunhava um bordão com o símbolo de um sol estilizado no topo.
Maggie fez-lhes sinal para que também se ajoelhassem.
— Deve ser o Sapa Inca — sussurrou.
Sam ajoelhou-se, não querendo ofender aquele líder. Qualquer cooperação dependeria das suas boas graças.
O homem avançou lentamente por entre a multidão. Homens e mulheres curvaram as testas na direção das pedras enquanto ele passava. Ninguém falou. Embora não avançasse sobre a habitual liteira dourada dos Sapa Incas, o homem envergava as vestes dos reis: da coroa llautu de tranças entretecidas com penas de papagaio e borlas de lã vicunha vermelha, à longa túnica de dispendioso tecido cumbi decorada com aplicações de ouro e prata. Até as sandálias eram em pele de alpaca e estavam decoradas com rubis. Na mão direita, empunhava um longo bordão, tão alto quanto o homem em si, encimado por um sol estilizado de ouro do tamanho da palma de uma mão.
Norman balbuciou:
— O bordão. Lembro-me dele. Do túnel.
Sam olhou de relance para o fotógrafo e viu o medo nervoso do homem. Tocou no ombro de Norman num gesto de apoio.
Enquanto o rei se aproximava, Sam estudou as suas feições. Tipicamente incas: pele cor de café com leite, bochechas amplas, lábios fortes e cheios, olhos escuros e penetrantes. Em cada lóbulo da orelha pendia um disco onde estava gravado o ícone de um sol idêntico ao do cimo do seu bordão.
O Sapa Inca aproximou-se até ficar a menos de três metros do trio ajoelhado. Sam inclinou a cabeça numa demonstração de respeito. Não era adequado fitar diretamente um governante inca. Eles eram filhos do Sol e, como no caso do Sol, os olhos deveriam estar afastados da sua luminosidade. Ainda assim, Sam recusou-se a tocar com a cabeça nas pedras da praça.
O rei inca não pareceu ofender-se. O seu olhar era intenso mas não hostil. Com uma expressão de curiosidade ardente, deu mais um passo na direção deles. O rosto escondido pelas sombras brilhava sob a luz de um archote próximo, conferindo às suas faces coradas uma tonalidade de ouro acobreado.
Maggie arquejou.
Sam franziu o sobrolho perante aquela reação e atreveu-se a fitar mais abertamente o homem... depois também ele se apercebeu.
— Meu Deus... — balbuciou, em choque. Assim tão perto não havia como ignorar a semelhança, em especial com o archote a banhar o rosto do rei numa luz dourada. Já tinham visto aquele homem antes. Era igual à figura esculpida em ouro nas grutas, tanto o ídolo em tamanho real que guardava a sala armadilhada como a estátua imensa no centro da necrópole.
O Sapa Inca aproximou-se mais um passo. Sem a luz do archote a banhar-lhe o rosto, transformou-se de novo num homem. Estudou-os a todos durante uns momentos silenciosos. A praça apresentava-se tão silenciosa como um túmulo. Por fim, ergueu o bordão e saudou-os.
— Sou inca Inkarri — disse em inglês, a sua voz rouca e gutural. — Bem-vindos. Que Inti vos guarde na segurança da sua luz.
Sam continuava de joelhos, demasiado atordoado para se mover.
O rei bateu com o bordão duas vezes na pedra, depois ergueu-o bem alto. Ao seu sinal, gritos chilreados ergueram-se de centenas de gargantas. Homens e mulheres ergueram-se de um salto, os tambores trovejaram, as flautas e pandeiretas juntaram a sua leveza.
O Sapa Inca ignorou a agitação e baixou o bordão.
Kamapak emergiu como um fantasma por entre a multidão dançante. O rosto do xamã resplandecia de reverência radiante, as tatuagens quase brilhavam em contraste com a pele corada.
— Qoylluppaj Inkan, Inti Yayanchis — entoou, com uma ligeira vénia que começava na cinta, e continuou a falar. Mesmo sem tradução, Kamapak estava claramente a solicitar uma qualquer bênção àquele rei.
Quando o xamã terminou, o Sapa Inca resmungou uma resposta concisa e fez sinal a Kamapak para que se afastasse. O sorriso do xamã intensificou-se, tendo claramente obtido uma resposta favorável, e recuou. O rei acenou num gesto sério ao grupo de Sam, os olhos demorando-se por um momento em Denal; depois deu meia-volta e seguiu o xamã por entre os grupos de celebrantes.
— Parece que passámos o teste — disse Sam, voltando a respirar.
— E fomos sumariamente ignorados — acrescentou Maggie.
Sam virou-se para Norman.
— O que estavam a dizer?
O fotógrafo apoiou-se sobre os calcanhares, os olhos semicerrados.
— O Kamapak queria falar em privado com o rei — Norman fitou Sam — sobre nós.
Sam franziu o sobrolho.
— Em que sentido?
— Sobre o nosso futuro aqui.
Sam não gostava de como aquilo soava. Observou o xamã e o rei a afastarem-se na direção de um edifício de dois andares à esquerda da praça.
— O que pensas deste Sapa Inca? — perguntou a Maggie.
— Claramente teve alguma exposição ao mundo exterior. Aprendeu um pouco de inglês. Reparaste no rosto dele? Deve ser um descendente direto do antigo rei das estátuas.
Sam assentiu com a cabeça.
— A semelhança não me surpreende. Estamos perante um património genético fechado. Não há forasteiros capazes de diluir o sangue inca.
— Até à nossa chegada — disse Norman.
Sam ignorou as palavras do fotógrafo.
— Então, e o facto de alegar ser o mítico Inkarri?
Maggie abanou a cabeça.
— Quem é esse Inkarri? — perguntou Norman.
Maggie explicou rapidamente a história do rei decapitado que, de acordo com a profecia, regressaria para reconduzir os incas à sua antiga glória.
— A Segunda Vinda, por assim dizer — disse Norman.
— Certo — disse Maggie, franzindo ligeiramente o sobrolho. — Uma vez mais numa clara prova da influência cristã. Uma nova prova da existência de uma certa intromissão do Ocidente.
Sam não estava tão convencido.
— Mas se já saíram do vale, porque continuam escondidos?
Maggie acenou na direção de Norman.
— Claramente descobriram aqui alguma coisa. Algo que cura. Uma nascente vulcânica ou algo assim. Talvez a estejam a proteger.
Sam olhou de relance para Norman, voltando-se de novo para o rei inca que desapareceu no interior da casa com Kamapak. Todos os mistérios pareciam começar e terminar no templo. Se ao menos Norman se conseguisse lembrar do que tinha acontecido...
— Adorava ser uma mosquinha na parede durante a conversa deles — murmurou Maggie, fitando o outro lado da praça.
Norman anuiu com a cabeça.
Sam sentou-se mais direito.
— Porque não o fazemos?
— O quê? — perguntou Maggie, virando-se de novo para ele.
— Porque não os vamos escutar? Não há vidro nas janelas. O Norman compreende a linguagem deles. O que nos impede de o fazermos?
— Não sei — disse Norman amargamente —, talvez um bando de homens armados com lanças.
Maggie concordou.
— Não devíamos fazer nada que possa gerar desconfiança.
Sam, contudo, continuava a gostar da ideia. Depois de um dia passado a preocupar-se com o destino de Norman, estava cansado de ser mantido na ignorância. Pôs a Winchester ao ombro e levantou-se.
— Se o xamã e o rei estão a debater o nosso destino, quero saber o que decidem.
Maggie levantou-se, tentando agarrar-lhe o cotovelo.
— Temos de falar sobre isto.
Sam recuou do alcance dela.
— O que dizes, Norman? Ou preferes ser arrastado para o altar pela manhã? E não me refiro a um casamento.
Norman levou os dedos ao pescoço magro e levantou-se.
— Bem, quando pões a questão dessa maneira.
Maggie estava agora corada.
— Não é assim que devemos lidar com isto. É idiota e um risco para as vidas de todos nós.
O rosto de Sam enrubesceu.
— É melhor do que enfiar-me num buraco — disse, furioso — e rezar para que não me matem.
Maggie recuou face a ele, pestanejando de choque, uma expressão ferida estampada no rosto.
— Sacana...
Sam apercebeu-se de que Maggie pensara que ele se referia ao incidente na Irlanda, usando o trauma para desmontar a argumentação.
— Eu... eu não o disse com essa intenção — tentou explicar.
Maggie puxou Denal para o seu lado e virou-se de novo para Sam. As suas palavras foram dirigidas a Norman, num tom de censura.
— Tenta que não te matem. — Afastou-se em direção à fileira de casas.
Norman fitou as costas dela.
— Sam, tens mesmo de ter cuidado com o que dizes. Não é de admirar que tu e o teu tio ainda sejam solteiros.
— Eu não queria...
— Sim, eu sei... ainda assim... para a próxima pensa antes de falares. — Norman abriu caminho até ao limite da praça. — Vamos lá, James Bond, despachemos isto.
Sam observou Maggie enfiar-se no quarto, depois virou-se para seguir Norman. O coração que, há instantes, ardia era agora um carvão gasto, no peito.
— Sou cá um idiota.
Norman ouviu-o.
— Eu não vou discutir isso.
Sam franziu o sobrolho e puxou a aba do seu Stetson. Ultrapassou Norman com a sua passada furiosa.
— Vamos.
Enquanto as celebrações prosseguiam, alcançaram a casa atarracada, de dois andares. Era claramente a residência de um kapak, o nobre dos incas. As ombreiras da porta e das janelas eram de prata martelada. A luz da lareira emergia das janelas destapadas e era possível ouvir vozes abafadas no interior.
Sam olhou em volta para se assegurar de que ninguém os observava, depois puxou Norman para a viela estreita ao lado da casa. Estava apinhada de tralhas, permitindo apenas espaço suficiente para que se movessem em fila indiana. Sam avançou primeiro. Um pouco mais à frente, era possível ver uma luz tremeluzente que se erguia de um pátio fechado por um muro que lhes chegava ao ombro. Enquanto se aproximavam, Sam viu pequenas aberturas decorativas na parede: com a forma de estrelas e quartos crescentes. Um local perfeito para espiarem.
Fazendo sinal a Norman para que avançasse, Sam agachou-se junto a um dos buracos e espreitou. Do outro lado havia um pátio ajardinado central, rico em orquídeas e trepadeiras em flor. Papagaios adormecidos repousavam nos poleiros, as cabeças escondidas debaixo das asas. Por entre a vegetação que crescia desenfreada, uma fogueira ardia ao centro do pátio.
Dois vultos destacavam-se junto às chamas: Kamapak e Inkarri.
O xamã tocou numa das tatuagens com a ponta do dedo, balbuciando uma oração, depois abriu a bolsa chuspa e lançou uma pitada de pó para o fogo. Uma pluma de chamas azuis perseguiu as fagulhas em direção ao céu. Kamapak falou com o rei, enquanto avançava para o interior de um círculo traçado em redor da fogueira, lançando mais pó para as chamas.
Norman, que observava a partir de um buraco vizinho, traduziu. Os seus lábios estavam próximo dos ouvidos de Sam, as suas palavras um murmúrio.
O xamã falou.
— Como lhe disse, embora tenham a pele clara e tenham vindo de baixo, não são mallaqui, espíritos de uca pacha. São pessoas de verdade.
O rei acenou com a cabeça, fitando as chamas, pensativo.
— Sim, e o templo curou um deles. Inti aceita-os. — Inkarri fitou Kamapak. — Por outro lado, não são incas.
Kamapak terminou o ritual que tinha estado a desenvolver e avançou para um dos tapetes de junco, sentando-se no chão sem dificuldade, as pernas cruzadas debaixo do corpo.
— Não, mas também não vêm com a morte nos corações... como aqueles de há tanto tempo.
O rei sentou-se num tapete entretecido ao lado do xamã. A sua voz estava cansada.
— Quanto tempo é que já passou, Kamapak?
O xamã levou a mão a uma bolsa e retirou do seu interior um longo cordão repleto de nós. Estendeu-o sobre as pedras do pátio. Sam reconheceu-o como um quipu, um utensílio de contagem inca. Kamapak apontou para um nó.
— Aqui foi quando descobrimos os mochicos neste vale, quando os seus exércitos vieram, há quinhentos e trinta anos. — Deslizou os dedos ao longo de várias cordas. — E aqui foi quando morreu.
Sam afastou-se e fitou Norman, curioso. Morreu? O fotógrafo encolheu os ombros.
— Foi o que ele disse — afirmou Norman.
Franzindo o sobrolho, Sam começava a virar-se de novo para o muro quando uma ordem vociferada o sobressaltou. Archotes ardiam nas duas extremidades da viela. Sam e Norman estacaram, apanhados em flagrante. Ordens rudes estavam a ser-lhes gritadas.
— Q... querem que os acompanhemos — disse Norman.
Sam tocou na coronha da espingarda, depois pensou melhor. Primeiro esperaria para ver como tudo iria correr.
— Vamos.
Avançou para lá de Norman e deslizou pela viela em direção aos guardas que o esperavam. Rostos furiosos receberam-nos na praça. Um círculo de homens, alguns a empunhar archotes, todos armados com lanças, rodeou-os. A música tinha parado. Centenas de corpos suados olhavam na sua direção.
O xamã e o rei surgiram à porta. Um chorrilho de palavras foram trocadas entre os guardas e o xamã. O rei erguia-se estoicamente à porta.
Por fim, o Sapa Inca ergueu o seu bordão e todos se silenciaram. Virando-se para Sam, falou num inglês tenso.
— No templo, Inti sussurrou-me ao ouvido a vossa língua para que eu pudesse conversar convosco. Entrem. Conheçam aquilo que procuram descobrir em cantos escuros. — Inkarri virou-se e reentrou na morada imponente.
Kamapak franziu o sobrolho, claramente dececionado com eles, e acenou-lhes para que entrassem no mesmo pátio onde se desenrolava a conversa que tinham estado a ouvir.
O Sapa Inca apontou os tapetes tecidos no chão.
Sam e Norman sentaram-se.
O rei avançou até à fogueira, falando com as chamas.
— O que procuram? — perguntou.
Sam sentou-se mais direito.
— Respostas. Como por exemplo, quem é na verdade.
O Sapa Inca suspirou e acenou lentamente com a cabeça.
— Há quem me chame Inkarri. Mas dir-te-ei o meu nome verdadeiro, o meu primeiro nome, o meu nome mais antigo, para que me conheçam. O meu nome de nascimento é Pachacutec. Inca Pachacutec.
Sam franziu o sobrolho. Pachacutec era um nome que conhecia. Era o antigo fundador do império inca, o líder que expandira os incas a partir da cidade solitária de Cusco para um domínio que abarcava todas as terras entre as montanhas e a costa.
— É um descendente d’Aquele que Faz Tremer a Terra? — perguntou Sam, usando a alcunha inca para o seu fundador.
O rei fitou-o, irritado.
— Não, eu sou Aquele que Faz Tremer a Terra. Eu sou Pachacutec.
Sam franziu o sobrolho perante tal resposta. Impossível. Claramente aquele homem tinha a mesma ilusão de todos os reis, que era a encarnação dos seus antepassados, os mortos reencarnados nos vivos.
Kamapak falou na sua língua nativa. As mãos do xamã estavam muito animadas. Pegou na corda com nós, o quipu, onde o havia deixado. Sacudiu-o na direção deles.
Norman traduziu:
— Kamapak alega que todos aqui no vale têm mais de quatrocentos anos. Até mesmo o rei.
— Então, este Sapa Inca acredita que é o Pachacutec original.
Norman assentiu com a cabeça.
— O produto original.
Sam abanou a cabeça, afastando todo aquele misticismo inca. Mas num pequeno canto da sua mente, pensou na cura de Norman e nas suas novas capacidades. Passava-se ali algo sem dúvida milagroso, mas poderia aquela tribo ter vivido durante tanto tempo? Recordou os seus próprios pensamentos sobre a presença de uma fonte da juventude. Seria possível?
Sam fez a pergunta que o importunava desde que ali chegara.
— Fale-nos sobre o Templo do Sol.
Pachacutec olhou de relance para o símbolo do sol estilizado no bordão que tinha na mão, depois para a fogueira. O seu rosto assumiu uma expressão cansada, os olhos tão antigos que, por um momento, Sam quase conseguiu acreditar que o homem tinha vivido quinhentos anos.
— Para compreenderem, tenho de contar as histórias que ouvi de outras bocas — sussurrou. — Dos mochicos que visitaram antes de mim este local sagrado.
Sam sentiu um aperto no coração. Então, os moches sempre ali tinham estado primeiro! O tio Hank estava certo.
O Sapa Inca acenou para o xamã.
— Fala-lhes, Kamapak, da Noite dos Céus Flamejantes.
O xamã curvou a cabeça em reconhecimento e avançou para o limite da fogueira. A sua voz assumiu um tom sombrio. Norman traduziu.
— Sessenta anos antes de os exércitos do inca Pachacutec terem conquistado este vale, houve uma noite em que os céus se incendiaram com uma centena de rastos flamejantes, pedaços do sol flamejante que se perseguiam uns aos outros através dos céus negros. Caíram de janan pacha e aterraram nestas montanhas sagradas. O rei dos mochicos ordenou aos seus caçadores que reunissem esses pedaços do sol, tendo-os descoberto em ninhos fumegantes através das montanhas.
Sam deu por si a acenar com a cabeça. Tratava-se claramente da descrição de uma chuva de meteoritos.
Kamapak prosseguiu:
— O tesouro assim reunido foi trazido para o rei mochico. Ele chamou aos pedaços o ouro do sol, e escondeu o seu tesouro numa gruta aqui, no vale secreto.
Pachacutec interrompeu-o:
— Mas depois eu cheguei com os meus exércitos. Matei-lhes o rei e fiz dos mochicos meus escravos. Forcei-os a levarem-me até ao seu tesouro. Tive de matar muitos até me levarem até lá. Descobri uma gruta repleta da luz do Sol que podemos tocar e agarrar. Caí de joelhos. Percebi de imediato que se tratava do próprio Inti. O deus do Sol! — Os olhos do rei estavam carregados de uma glória e maravilhamento passados. Pareceu revitalizá-lo.
O xamã prosseguiu com a história, enquanto Norman traduzia.
— Para honrar Inti e castigar os mochicos por terem aprisionado o nosso deus, Pachacutec sacrificou todos os mochicos neste vale e na aldeia abaixo. Uma vez terminado, Pachacutec rezou durante sete dias e sete noites por um sinal de Inti. E foi ouvido!
O xamã abriu o seu saco e com uma oração balbuciada lançou um pedaço de pó arroxeado para o fogo; chamas azuis ergueram-se por um instante. Depois continuou:
— Em recompensa pela sua lealdade, um templo maravilhoso cresceu na gruta, um huaca construído com o ouro do sol dos mochicos. Neste templo sagrado, Inti curava os doentes e mantinha a morte afastada daqueles que honravam o deus Sol.
Sam teve de se obrigar a respirar. Teriam aqueles antigos índios descoberto verdadeiramente uma fonte da juventude do outro mundo? Bastou a Sam olhar para Norman, curado e a traduzir, para começar a acreditar.
— Pachacutec entregou a sua coroa ao filho e retirou-se para este vale, deixando o governo do império inca aos seus descendentes. Ele e alguns seguidores eleitos permaneceram aqui, a adorar Inti, sem nunca morrer. Pouco depois, até as crianças nascidas no vale foram transformadas em deuses pelo poder do templo e entregues como oferendas a janan pacha.
Com aquelas palavras, os olhos do rei saltaram para sul, onde pairava o alto vulcão vizinho. Uma certa expressão melancólica cresceu nos seus olhos.
Sam tinha de admitir que aquela história apresentava uma perversa lógica interna. Se os residentes daquele vale nunca morriam, sacrificar as crianças era uma boa forma de gerir a população. Os recursos daquele vale vulcânico não eram ilimitados e os contínuos nascimentos em breve esgotariam os recursos. A história também explicava a falta de residentes idosos. Ali ninguém envelhecia.
Pachacutec voltou a interromper, o seu tom era amargo.
— Mas o tempo de paz chegou ao fim. Passaram-se cem estações e chegaram homens em altos navios, homens com estranhos animais e línguas ainda mais estranhas.
— Os espanhóis — balbuciou Sam para si.
— Mataram o meu povo, expulsaram-no das suas casas. Como o jaguar, não havia como escapar aos seus dentes. Vieram até aqui. Falei com eles. Falei-lhes de Inti. Mostrei-lhes o templo e como ele nos protege. Os seus olhos tornaram-se famintos. Mataram-me, determinados a roubar Inti de nós.
— Mataram-no? — disse Sam antes que se conseguisse impedir.
Pachacutec esfregou a parte de trás do pescoço, como se tentasse massajar uma dor teimosa. Acenou com a outra mão para que Kamapak continuasse.
As palavras do xamã foram-se tornando mais ríspidas à medida que Norman as traduzia.
— Os espanhóis chegaram com cobiça no coração. E tal como Pachacutec tinha matado o rei mochico, os estrangeiros mataram o nosso rei. Pachacutec foi levado até ao centro da aldeia. — O xamã acenou na direção da praça. — E a sua cabeça foi separada do corpo.
O entusiasmo de Sam sobre a descoberta da fonte da juventude secou-lhe no peito. Aquela última história era claramente ridícula. E se aquela era falsa, então provavelmente também o seriam todas as outras. Meras fábulas contadas junto à lareira. O que quer que tivesse curado Norman nada tinha a ver com aquelas histórias. Ainda assim, Sam sentiu-se impelido a escutar até ao fim.
— Mas agora vive. Como é isso possível?
O xamã respondeu, baixando os olhos quase numa expressão de culpa.
— Na noite em que o Sapa Inca foi morto ouvi os espanhóis dizerem que iam queimar o seu corpo. Para o nosso povo, uma tal crueldade é pior do que a morte. Por isso esgueirei-me e roubei a cabeça do rei de onde esta jazia. Com os espanhóis no meu encalço levei o rei ao templo e rezei a Inti. Uma vez mais o deus ouviu-nos e provou o seu amor. — O xamã lançou mais um pedaço de pó para a lareira, claramente em sinal de respeito pelo seu deus.
Pachacutec prosseguiu com o que restava da história.
— O templo trouxe-me de volta da morte. Abri os olhos enquanto a minha cabeça jazia sobre o altar. Com a boca ensanguentada, avisei os estranhos sobre a raiva de Inti. Aquela demonstração da força de Inti transformou os guerreiros em mulheres. Gritaram, uivaram, puxaram pelos cabelos, e fugiram para longe. Os cães selaram a entrada inferior, mas a notícia da minha morte já tinha sido divulgada. Os assassinos foram capturados e o seu xamã sacrificado.
Sam franziu o sobrolho. Conhecia uma forma de pôr à prova a veracidade daquelas histórias.
— Qual era o nome desse xamã espanhol?
Kamapak respondeu, a voz tensa com um ódio antigo, as mãos fechadas em punhos:
— Francisco de Almagro.
Pachacutec franziu o sobrolho perante o nome e cuspiu para a fogueira.
— Tínhamos capturado esse cão xamã pelas suas blasfémias. Mas ele fugiu como um cobarde e conspurcou um lugar sagrado com o seu próprio sangue. Depois da sua morte, abrimos buracos no seu crânio para expulsar o seu deus e substituí-lo pelo nosso.
Sam ficou em choque. Recordou a história do tio sobre a substância dourada que explodira do crânio da múmia. As histórias antiga e moderna pareciam enquadrar-se. Mas aquilo que os dois propunham — a imortalidade —, como poderia isso ser verdade?
Enquanto a mente de Sam redemoinhava, o xamã terminou a história que Norman continuava a traduzir a partir da antiga língua inca.
— Depois da fuga dos forasteiros, o templo concedeu lentamente um novo corpo a Pachacutec, Inti avisou o nosso rei de que estes homens estranhos do outro lado do mar eram demasiado fortes e demasiado numerosos, e que Inti tinha de ser protegido. Por isso, o caminho para aqui foi selado. Permitimo-nos ser esquecidos. Mas Inti prometera a Pachacutec que chegaria o dia em que o caminho seria reaberto, um momento em que a dinastia inca poderia recomeçar. Quando esse dia viesse, pela nossa lealdade, tinha sido prometido ao nosso povo não apenas a devolução das suas terras, mas também o resto do mundo.
Por aquela altura, os olhos de Pachacutec ardiam de fogo e glória.
— Iremos a todos governar!
Sam assentiu com a cabeça.
— Inkarri renascido da sua gruta secreta.
Pachacutec virou as costas ao fogo e ao grupo ali reunido.
— Foi esse o nome que o meu povo me deu depois do meu renascimento. Inkarri, filho do Sol.
— Quando é que este caminho para o mundo lá em baixo será reaberto?
— Quando os deuses de janan pacha estiverem prontos para partir — respondeu Pachacutec, acenando com um braço em direção a sul. — Até lá, temos de viver como o templo nos diz. Todos os que ameacem Inti têm de ser sacrificados.
Também o xamã virou as costas. Norman traduziu baixinho, a cor a desaparecer-lhe do rosto.
— Mostraram a vossa má-fé esta noite, escondendo a vossa vergonha na calada da noite. — As suas últimas palavras soaram dolorosas. — De madrugada, quando o Sol se erguer e Inti puder ver a nossa lealdade, serão sacrificados ao nosso deus. O vosso sangue manchará a praça.
O xamã fez-lhes o sinal com a mão direita.
Sam levantou-se repentinamente, mas já era demasiado tarde. Os guerreiros incas apareceram das salas adjacentes e abateram-se sobre eles. Sam debateu-se, mas sem sucesso. A sua espingarda foi lançada às pedras. Papagaios perturbados gritavam das árvores.
— Não! — gritou Sam, mas nem o xamã nem o rei os fitaram enquanto eles eram arrastados para longe.
Envergando as suas próprias calças e camisa caqui, Maggie escondia-se nas sombras da parede do pátio. Sustendo a respiração, temendo mover-se, viu Sam e Norman serem arrastados para longe. Deus do Céu, o que iria ela fazer? Praguejou silenciosamente contra o texano teimoso. Ele tinha de carregar cegamente na direção do perigo. Virou-se e encostou as costas à parede de pedra. Escondendo-se, tão imóvel como um rato, escutara quase toda a história de Pachacutec e Inkarri e sabia que não havia como convencê-los a mudarem de ideias.
Pelo menos, escondera Denal antes de ali ter ido.
Ouvira a música na praça a parar abruptamente. Espreitara e vira que Sam e Norman tinham sido apanhados. Ainda que o instinto lhe dissesse para fugir com Denal para tão longe e tão depressa quanto possível, resistira-lhe. Aqueles dois eram amigos dela, e não podia abandoná-los sem tentar ajudar. Por isso, levara Denal até aos limites da floresta e dissera-lhe que se mantivesse escondido. A seguir, esgueirara-se até ali para saber qual o destino dos amigos.
Agora, já sabia. Maggie espreitou pelo buraco em forma de quarto crescente na parede do pátio. Estava vazio. Até o rei e o xamã tinham desaparecido. Maggie fitou o único motivo que ainda ali a mantinha. A espingarda Winchester de Sam jazia sobre as pedras de granito do pátio. Para que o salvamento pudesse ser bem-sucedido, precisaria daquela arma.
Ouvindo vozes, observou as divisões à sua volta em busca de algum sinal de movimento. Parecia não haver ninguém. As suas mãos tremiam de medo perante aquilo que estava prestes a tentar. Mordeu o lábio, recusando-se a permitir que o pânico lhe tomasse o coração. Sam e Norman dependiam dela. Inspirando fundo uma última vez, agarrou-se ao topo do muro, ergueu-se e passou uma perna por cima. Debateu-se por uns momentos, até que conseguiu passar para o outro lado.
Sentindo o coração a bater-lhe na garganta, Maggie desceu para o pátio. Uma arara azul e dourada agitou as penas, observando-a, ainda tensa devido à excitação anterior. Maggie desejou que a ave permanecesse em silêncio e esgueirou-se pelo limite da folhagem. A espingarda estava pousada a menos de dez metros de distância. Necessitava apenas de correr através do espaço aberto, agarrar na espingarda e depois fugir de novo, saltando o muro.
Soou bastante fácil até as pernas de Maggie começarem a tremer sob o seu corpo. Sabia que tinha de agir de imediato, caso contrário cederia ao pânico. Cerrando os punhos, emergiu das sombras das árvores e correu através das pedras. Assentou as mãos na coronha da espingarda precisamente quando soaram vozes atrás dela. Alguém regressava! Estacou como um veado encandeado pelos faróis de um carro, paralisada pelo medo. Não se conseguia mexer, não conseguia pensar.
De súbito, um dos troncos da fogueira estalou, o som tão ruidoso como um disparo de uma arma.
Foi o suficiente. Um arquejo de medo escapou-lhe da garganta, libertando-a. Agarrou na espingarda e correu, sem se importar que alguém a pudesse ouvir. O terror deu-lhe pernas. Fugiu através da folhagem e saltou o muro num instante.
Afundou-se nas sombras, grata, a espingarda cingida contra o peito.
Atrás de si as vozes tornavam-se mais sonoras. Engolindo o ar tão silenciosamente quanto lhe era possível, virou-se e espreitou para o pátio. Eram Kamapak e Pachacutec que regressavam. Observou o xamã tatuado atravessar o centro do pátio e lançar uma mão-cheia de pó para a fogueira. Chamas de cor azul dançaram até aos telhados, depois desceram.
Os dois homens falavam na sua língua nativa. A única palavra decifrável era o nome de Inkarri. O rei parecia relutante em fazer o que o xamã queria, mas por fim baixou os ombros e anuiu com a cabeça.
Endireitando-se e avançando para mais perto do fogo, Pachacutec levou a mão ao ombro e soltou o alfinete tupu de ouro que lhe segurava o manto. O tecido fino caiu como água que fluía do seu corpo, criando uma espécie de poça em redor dos seus tornozelos. O Sapa Inca libertou-se do manto, nu com exceção do toucado llautu e do bordão.
Maggie levou rapidamente a mão aos lábios, impedindo um grito de choque. Mas algo terá sido ouvido. O rei olhou de relance para o muro do pátio, fitando-o durante um longo momento, depois afastou o olhar.
O estômago de Maggie agitava-se com os ácidos que ameaçavam vir-lhe à boca. Mas ela sabia que não se podia mover. Não podia arriscar que o som dos seus pés sobre a pedra os alertasse ainda mais para a sua presença. Limitou-se a fitar.
Do pescoço para cima, a pele do rei era do tom café com leite familiar dos índios dos Andes, mas do pescoço para baixo a sua pele era tão pálida como algo que tivesse sido descoberto debaixo de uma pedra. Recordava a Maggie os predadores que assombravam as grutas no subsolo. Mas a pele de Pachacutec era ainda mais pálida, quase translúcida. Os vasos sanguíneos transportavam um sangue enegrecido sob a sua pele; os ossos eram como sombras enterradas. A barriga e o peito do homem eram lisos, sem pelos. Nem sequer mamilos ou um umbigo marcavam a superfície macia. Também não tinha sexo, faltando-lhe por completo a genitália externa.
Sem sexo e anormalmente liso, Maggie descobriu que apenas uma palavra lhe vinha à mente quando fitava aquela estranha aparição. Não formado. Era como se o corpo do rei fosse uma tábua rasa que aguardava por ser moldada, como um barro pálido.
Oh, meu Deus. A constatação tomou-a.
A história de Inkarri era verdadeira!
DIA SEIS – A Serpente do Éden
A Serpente do Éden
Sábado, 25 de agosto, 4h48
Sábado, 25 de agosto, 4h48
Cordilheira dos Andes, Peru
Henry olhou pela janela do helicóptero que se inclinava sobre as ruínas despojadas da selva. Não dormira toda a noite. A preocupação e o medo tinham-no mantido acordado, enquanto voavam sobre a selva escura. Ainda não conseguira imaginar um plano que lhe permitisse gorar os objetivos dos seus captores. E sem a paragem adicional para reabastecer, o voo a partir da pista dos guerrilheiros tinha sido encurtado. O tempo estava a esgotar-se.
Em baixo, o acampamento ainda se encontrava mergulhado na escuridão. O Sol ainda não se erguera. Apenas um conjunto de luzes de trabalho perto da base da pirâmide iluminava a escavação. Aparentemente, mesmo depois das notícias de que os estudantes tinham logrado escapar, os trabalhos para abrir o templo prosseguiam. Os homens do abade procuravam todos os pedaços do seu precioso Sangre del Diablo.
O abade, que usava uns auscultadores de rádio, gritava sobre o rugido dos rotores.
— Chegámos, professor Conklin! Presumo que não precise de lhe recordar o que acontecerá se não cooperar em pleno!
Henry abanou a cabeça. Joan. Continuava refém na abadia. O castigo por qualquer falha da sua parte seria infligido a ela. Henry tossiu para aclarar a garganta e apontou para os auscultadores de rádio do abade.
— Antes de aterrarmos, quero falar com a doutora Engel. Assegurar-me de que está incólume.
O abade franziu o sobrolho, não de raiva, mas de desilusão.
— Sou fiel à minha palavra, professor Conklin. Se digo que ela fica em segurança, fica.
Apenas até teres o que queres, pensou Henry amargamente. Os seus olhos semicerraram-se.
— Perdoe-me se duvido da sua hospitalidade. Mas, ainda assim, gostaria de falar com ela.
O abade Ruiz suspirou e encolheu os ombros largos. Retirou os auscultadores e passou-os a Henry.
— Seja rápido. Vamos aterrar. — O abade indicou com a cabeça uma área quadrada desobstruída não muito longe das tendas dos estudantes.
O helicóptero endireitou-se, uma vez terminada a curva inclinada, e começou a avançar para o planalto de pedra. Em baixo, Henry viu homens com lanternas posicionados na periferia do local da aterragem, que orientavam o helicóptero na sua descida. Henry não deixou de reparar nos hábitos castanhos que os portadores das lanternas utilizavam. Mais monges do abade.
Henry colocou os auscultadores e posicionou o microfone.
O abade inclinou-se para a frente e falou com o piloto, ao mesmo tempo que apontava para o rádio. Ao fim de um minuto, uma voz áspera, carregada de estática, encheu-lhe os auscultadores.
— Henry?
Era Joan! Ele segurou o microfone para o manter direito.
— Sou eu, Joan. Estás bem?
Houve uma explosão de estática, depois as palavras chegaram até ele.
— ... ótima. Já chegaram ao acampamento?
— Estamos a aterrar agora mesmo. Estão a tratar-te bem?
— Até parece o Hyatt. Só que o serviço de quartos é um bocadinho lento.
Apesar das palavras ligeiras, Henry conseguia ouvir a tensão reprimida na sua voz. Imaginou aquelas rugas minúsculas que lhe marcavam os olhos em momentos de preocupação. Teve de engolir em seco para falar. Não permitiria que nada lhe acontecesse.
— O serviço de quartos está lento? Vou ver o que consigo fazer a partir daqui — disse Henry. — Veremos se consigo pôr as coisas a mexer junto da gerência do hotel.
— Já agora, Henry, lembras-te de termos partilhado uma aula de mitologia clássica quando estávamos na faculdade? Estive na biblioteca da abadia, hoje. Tem o livro do professor. Consegues acreditar? Aquele que até tem o capítulo que o ajudei a escrever sobre Prometeu.
Henry franziu o sobrolho.
— É um mundo pequeno, não é? — respondeu secamente, alinhando. Os dois nunca tinham partilhado tal cadeira na Rice University. Claramente, Joan tentava passar-lhe uma mensagem. Algo sobre o mito de Prometeu, sem dúvida em referência ao aviso gravado por frei de Almagro.
Ele ouviu a crescente tensão na voz dela.
— Lembras-te da dificuldade que sentimos em traduzir a frase Prometeu guarda em si a nossa salvação?
Henry soltou uma pequena gargalhada de falsa alegria.
— Como poderia eu esquecê-lo? — Apertou as mãos sobre o colo. O que estaria Joan a sugerir? Algo em relação ao fogo. Mas o quê? O que teria o fogo a ver com a salvação? E o tempo era escasso. O helicóptero estava prestes a aterrar.
Joan deve ter-se apercebido da sua confusão. Falou rapidamente, quase de uma forma atabalhoada.
— Bem, também reli a secção onde Prometeu mata a grande Serpente. Lembras-te disso? Aquela em que o fogo foi a solução final?
Henry ficou subitamente tenso, quando se apercebeu do que ela estava a dizer. A Grande Serpente. A Serpente do Éden. Então compreendeu. Ela oferecia-lhe uma forma de destruir el Sangre del Diablo.
— Claro. Mas pensei que esse feito tinha sido atribuído a Hércules. Tens a certeza de que a tua interpretação está exata?
— Sem dúvida. Prometeu tinha uma força espantosa. Devias ter visto a imagem no livro. Pensa em algo tipo explosivo plástico.
— Eu... eu compreendo.
Um estremecimento abanou de súbito a estrutura do helicóptero. Henry saltou no seu assento, sobressaltado. No exterior os patins de aterragem do helicóptero tocaram nas pedras de granito, pousando.
O rosto do abade surgiu à frente do de Henry, a gritar para se fazer ouvir por cima dos rotores que abrandavam.
— Já falaram tempo suficiente. Aterrámos! — Virou-se para o piloto e fez um movimento cortante em frente ao pescoço.
Henry estava prestes a ser interrompido.
— Joan!
— Sim, Henry!
Ele apertou com força o microfone, lutando contra as palavras que achou que jamais iria dizer a outra mulher.
— Eu queria dizer-te que eu... que eu... — A estática explodiu-lhe nos ouvidos, quando o contacto por rádio terminou de forma abrupta.
Estremecendo, Henry fitou o rádio. O que quisera ele dizer a Joan? Que estava a apaixonar-se por ela? Como poderia ele presumir que ela partilhava de sentimentos mais profundos do que a mera amizade?
O rádio foi-lhe arrancado dos dedos entorpecidos.
Seja como for, a oportunidade estava perdida.
Enquanto dois incas se mantinham de guarda, Sam lutava com as cordas de erva entretecida que lhe prendiam as mãos atrás das costas, mas tudo o que conseguiu foi apertá-las ainda mais.
Ao seu lado, Norman estava sentado nas pedras da praça, a tremer ligeiramente. O fotógrafo desistira há muito de se libertar, tendo-se conformado com a inevitabilidade das suas mortes.
Os céus empalideciam já a oeste, anunciando o aproximar da madrugada, mas a aldeia estava ainda pintada em tons de cinzento e preto. Quando o Sol se erguesse nos céus e as ruas fossem banhadas pela sua luz dourada, os dois seriam sacrificados ao deus Sol, Inti.
Mas, pelo menos, eram apenas eles os dois.
Maggie e Denal tinham conseguido escapar. Durante toda a noite, os homens tinham procurado na aldeia em socalcos e na selva que a envolvia, mas sem sorte. Maggie ter-se-á apercebido da confusão em redor da captura de Sam e fugido com o rapaz, desaparecendo na selva escura. Mas durante quanto tempo se conseguiriam manter escondidos depois do nascer do sol? Sam rezou para que Denal e Maggie conseguissem evitar a captura até o tio chegar com ajuda. Mas quando seria isso? Não tinha como saber. O walkie-talkie continuava dentro do colete, mas com os braços presos atrás das costas nada poderia fazer.
Puxou pelos seus grilhões. Se ao menos conseguisse libertar uma mão...
De súbito o som do disparo de uma espingarda trespassou a madrugada silenciosa. O estalo ecoou no vale, vindo claramente de leste. Maggie! Teria sido descoberta.
Os dois guardas viraram-se na direção do disparo. Falaram apressadamente, enquanto mais homens avançavam para a praça, conduzidos por Kamapak. Entre grande palavreado, o grupo de caçadores descalços partiu a correr para os limites da floresta. O xamã tatuado acenou aos dois guardas para que também eles ajudassem na busca.
De pés e mãos atados, Sam e Norman não representavam um grande perigo.
Uma vez a praça vazia, Kamapak avançou para eles. Tinha estampada no rosto uma expressão preocupada.
Sam desconfiava que o xamã temia a ira dos deuses se nem todos os forasteiros fossem mortos ao nascer do sol.
Nas mãos, Kamapak segurava tigelas de tinta. Ajoelhou-se ao lado de Norman e falou com o fotógrafo enquanto pousava as tintas, depois deslizou uma longa faca de sílex da bainha presa ao cinto.
Enquanto o homem falava, Sam fitava, ansioso, o pedaço de pedra afiada. Como ansiava por deitar a mão àquela arma.
Norman resmungou depois de o xamã ter terminado a sua explicação.
— O que foi? — perguntou Sam.
— Ao que parece, o xamã veio preparar-nos para o sacrifício — disse Norman, fitando os olhos de Sam. Apontou para as tintas com a cabeça. — Marcas de poder a serem inscritas nos nossos corpos.
O xamã mergulhou um dedo na tinta vermelha, entoando audivelmente uma oração, depois pegou no pedaço de sílex.
Os olhos de Norman seguiam a lâmina, de rosto pálido. Olhou de relance para Sam, mas manteve Kamapak debaixo de olho.
— Que mais? — perguntou Sam, pressentindo que algo ficara por dizer.
— Antes do nascer do sol, ele também planeia cortar-nos a língua... para que os nossos gritos não ofendam Inti.
— Excelente... — disse Sam amargamente.
Kamapak ergueu a faca na direção da madrugada que se aproximava. Enquanto continuava a entoar a sua oração cantada, o Sol luminoso começou a surgir sobre o rebordo ocidental do cone vulcânico. Como um olho que se abre, pensou Sam. Por um instante, compreendeu a adoração inca do Sol. Era como um deus imenso que espreitava para o seu mundo vil. Kamapak fez um corte no polegar com a faca, saudando o Sol com o seu próprio sangue.
Embora a vida de Sam estivesse ameaçada, não deixava de observar o ritual com um claro fascínio. Ali estava um genuíno ritual sacrificial inca, uma tradição desaparecida que ganhava vida. Estudou os pequenos recipientes de tintas naturais: rosa de garança, azul de índigo e roxo de moluscos esmagados.
Enquanto Kamapak continuava as suas orações, Norman ficou subitamente rígido ao lado do texano. Sam olhou de relance, afastando a atenção das tintas, para ver uma figura que emergia do esconderijo de uma porta próxima. Quase arquejou ao reconhecer a figura: Era Maggie.
Atrás de Kamapak, correu ao longo do chão empedrado, descalça como os caçadores, mas, como os guerreiros, estava armada. Na mão direita tinha um comprido bastão de madeira.
Kamapak terá pressentido o perigo. Começou a virar-se, mas Maggie já lá estava. Moveu o longo pedaço de madeira endurecida e desferiu um golpe violento contra o lado da cabeça do xamã. O golpe foi como o de uma bola atingida por um taco de basebol. Kamapak caiu para a frente sobre as mãos, depois tombou com o rosto no chão, imóvel. O sangue escorria pelo cabelo escuro do homem.
Sam fitou-o durante uns segundos, demasiado chocado para reagir. Virou-se para encarar Maggie, que parecia igualmente chocada com o que acabara de fazer. O bastão caiu-lhe das mãos, aterrando com estrépito nas pedras de granito.
— A faca — disse Sam, chamando a atenção dela para a forma flácida do xamã. Apontou com a cabeça na direção do pedaço de sílex e contorceu-se para indicar os pulsos atados.
— Tenho a minha — disse Maggie, recuperando rapidamente o seu estado de alerta. Olhou de relance para a praça e retirou um punhal de ouro do cinto. Apressou-se a cortar as cordas que prendiam os tornozelos e os punhos de Sam.
Sam ergueu-se de um salto, esfregando os pulsos e batendo com os pés para recuperar a sensibilidade. Aproximou-se para verificar o estado de Kamapak. O xamã estava deitado, imóvel, mas o seu peito subia e descia. Sam expirou de alívio. O homem estava apenas inconsciente.
Maggie passou a Sam o punhal de ouro depois de libertar Norman e a seguir ajudou a levantar o fotógrafo.
— Conseguem correr?
Norman acenou debilmente com a cabeça.
— Se tiver de o fazer...
Ouviram vozes não muito distantes. Algures uma voz feminina fez soar o alarme.
— Parece que vão ter de o fazer — disse Maggie.
Viraram-se em simultâneo, para correr, mas já era demasiado tarde.
Em redor da praça, homens e mulheres armados avançavam a partir das ruas e vielas. Sam e os outros foram conduzidos para o centro da praça e cercados.
Sam apercebeu-se de que Sam segurava o pedaço de sílex do xamã numa das mãos. O fotógrafo ergueu-o.
— Se acham que vão levar a minha língua, vão ter de lutar comigo por ela.
— Onde está o Denal? — sussurrou Sam.
— Deixei-o com a espingarda — respondeu Maggie. — Era suposto atrair os outros para longe, para que eu vos pudesse vir salvar. Deveríamos encontrar-nos na selva.
— Não creio que o plano vá funcionar — disse Norman. Apontou com a faca de sílex. — Olhem.
Do outro lado, um dos caçadores tinha na mão a Winchester de Sam. Lidava com a arma como se esta fosse uma serpente venenosa. O homem cheirou, hesitante, a ponta do cano, torcendo o nariz.
— Denal... — balbuciou Maggie.
Não havia sinal do rapaz.
Uma voz rouca fez-se ouvir atrás deles. Viraram-se.
Pachacutec avançava por entre a multidão. Envergava o traje cerimonial, da coroa emplumada à túnica elegante. Ergueu o bordão. O símbolo do sol estilizado dourado captou os primeiros raios do sol nascente e cintilou sob a sua luz forte.
O rei falou lentamente na língua inca, enquanto Norman traduzia.
— Capturámos os forasteiros entre nós. Inti ergue-se para o seu sacrifício. Reanimem Kamapak para que os deuses possam ser honrados.
Um pouco mais ao lado, um trio de mulheres ocupava-se de Kamapak. Molhavam-lhe o rosto com água fria e esfregavam-lhe os membros enquanto cantavam. Lentamente, os braços de Kamapak começaram a mover-se. Depois os seus olhos abriram-se, trémulos. Pareceu cego por um momento até a memória do ataque ter regressado. A raiva brilhou no seu olhar. Debilmente, afastando as mulheres, ergueu-se. Vacilou um pouco, mas um dos caçadores ajudou-o a recuperar o equilíbrio.
Kamapak avançou, trémulo, em direção ao seu rei.
Pachacutec voltou a falar, desta feita em inglês, chamando a atenção dos estudantes.
— É uma honra oferecer sangue a Inti. Envergonham o nosso deus com a vossa resistência.
Por aquela altura, já o Sol se erguera o suficiente para que o centro da praça estivesse banhado com a sua luz. Sam brandiu o punhal, luminoso sob a luz da manhã. Quer isso representasse ou não uma vergonha, não ia oferecer o seu sangue sem derramar o dos seus atacantes. Ergueu ainda mais a faca, desejando ter uma arma mais intimidante, algo que pudesse incutir o terror.
Com aquele pensamento, o punho do punhal tornou-se quente e a lâmina de ouro tremeluziu e contorceu-se, estendendo-se e curvando-se, até a forma de uma cobra em posição de ataque se erguer a partir do cabo. Sam estacou, temendo mover-se, sem saber ao certo o que teria acontecido.
Fitou o punhal transformado. Presas de ouro expunham-se ao sol, ameaçando a multidão ali reunida.
Pachacutec dera um passo atrás, mal a transformação se iniciara. Agora aproximava-se mais, de olhos muito abertos de espanto.
Sam não sabia como ocorrera a transformação, mas o milagre do punhal era, claramente, algo que os incas nunca tinham visto. Sam ergueu mais alto a áspide.
Pachacutec ergueu o seu bordão, imitando a pose de Sam. As suas pálpebras desceram ligeiramente como que em oração. De repente, o símbolo do sol dourado no cimo do seu bordão fluiu e transformou-se numa serpente idêntica. As duas serpentes fitaram-se.
Era agora a vez de Sam recuar. Pachacutec cruzou o seu olhar com o do texano. Sam já não via raiva nos olhos do homem, mas lágrimas.
Ao lado do rei, Kamapak caiu de joelhos, curvando a cabeça na direção de Sam. A multidão ali reunida seguiu o seu exemplo. Encostando a testa às pedras.
Pachacutec baixou o bordão. Avançou na direção deles. De braços abertos.
— Inti abençoou-te. O deus Sol dos mochicos escuta os teus sonhos. És um dos escolhidos de Inti! — O rei avançou, colocando-se à frente de Sam. Ofereceu-lhe a mão. — Ficarão em segurança na nossa casa. Todos vocês!
Sam estava demasiado confuso para reagir. Aquela súbita mudança nos incas era perturbadora. Mas não podia confiar plenamente na transformação, tal como não conseguia compreender o que teria acontecido ao punhal.
Maggie avançou para o lado de Sam.
— Então, e o Denal?
Pachacutec ouviu-a.
— O rapaz. Ainda não tem catorze anos. Demasiado jovem para huarachicoy. — Sorriu, como se isso explicasse tudo.
Sam franziu o sobrolho. Huarachicoy era o banquete cerimonial em que o rapaz era aceite como homem numa tribo, quando lhe era dado o primeiro huara, o pano de linho dos homens adultos da tribo.
— Como assim «demasiado jovem»?
Kamapak ergueu o rosto e falou. Norman traduziu.
— Ficou decidido que o rapaz, como todas as crianças da tribo, será levado ao templo. Será oferecido diretamente aos deuses.
Maggie virou-se para Sam.
— Sacrifício — disse, temerosa.
— Quando? — perguntou Sam. — Quando será isso feito?
Pachacutec olhou de relance para o Sol que se erguia. O disco luminoso era já plenamente visível sobre a beira do vulcão.
— Já estará feito. O rapaz já está com os deuses.
Sam cambaleou para trás.
— Não...
A reação do texano deixou o rei confuso. O sorriso luminoso do Sapa Inca falhou.
— Não é esse o desejo de Inti?
— Não! — disse Sam em tom mais assertivo.
Maggie agarrou no cotovelo de Sam.
— Temos de ir até ao templo, talvez ainda esteja vivo. Não temos a certeza de que esteja morto.
Sam assentiu perante as palavras dela. Havia uma hipótese. Fitou Kamapak e Pachacutec.
— Levem-nos ao templo.
O rei curvou a cabeça, sem se opor ao escolhido. Em vez disso, acenou, e o xamã levantou-se.
— Kamapak irá guiar-vos.
— Vou contigo — disse Maggie.
— Também eu — acrescentou Norman, algo vacilante. Claramente a transformação e aquela longa noite stressante tinham-no afetado.
Sam abanou a cabeça.
— Norman, tens de ficar aqui. Falas a língua local. Convence os incas a acenderem uma fogueira de sinalização no ponto mais alto, para que o helicóptero de evacuação nos consiga encontrar. — Sam levou a mão ao bolso do colete e retirou de lá o walkie-talkie. — Toma, contacta o Sykes e faz um ponto de situação. Mas, mais importante... traz o tio Hank aqui, depressa!
Norman pareceu preocupado com o fardo da sua missão, mas aceitou o rádio com um lento aceno.
— Vou fazer o possível.
Sam deu uma palmada no ombro do fotógrafo, depois ele e Maggie apressaram-se, parando apenas para recolher a espingarda Winchester de Sam.
— Tem cuidado! — disse-lhes Norman. — Há algo estranho lá em cima!
Sam não precisava que lho dissessem. Bastava-lhe olhar para a víbora dourada montada no cabo do punhal que segurava na mão.
A luz forte do Sol fez cintilar as presas afiadas.
Ele estremeceu. Velhos avisos ecoaram-lhe na cabeça: Cuidado com a Serpente do Éden.
Henry avançou em direção ao templo subterrâneo colapsado. Mesmo do local onde se encontrava, viu como a coroa do monte se abatera sobre si mesma. Lâmpadas de sódio iluminavam a escavação do lado sotavento da encosta, onde os trabalhadores ainda se esforçavam por abrir um túnel de resgate para as ruínas enterradas.
Enquanto Henry avançava, a litania de Philip dos eventos dos últimos dias prosseguia:
— ... e depois o templo começou a implodir. Não havia nada que eu pudesse fazer para o impedir... — Philip Sykes, o seu aluno de Harvard, correra para Henry mal o professor se afastara os rotores do helicóptero, com um sorriso que era uma mistura de alívio assustado e vergonha, como um cão com a cauda entre as pernas. Henry ignorou a conversa incessante do seu aluno. O tema era óbvio desde o início: A culpa não é minha!
Henry por fim tocou no ombro de Philip.
— Fez um excelente trabalho, senhor Sykes. Tendo em conta as circunstâncias e a confusão, lidou com tudo de modo admirável.
Philip anuiu com a cabeça.
— Foi, não foi? — Engoliu o elogio com grande prazer... e depois ficou misericordiosamente silencioso, satisfeito por ter sido absolvido de muita da tragédia existente. Henry, contudo, sabia que o seu aluno escondia mais do que o que revelava. Tinha ouvido os comentários depreciativos de alguns dos trabalhadores quéchuas enquanto passavam. Sabia o suficiente do dialeto índio local para perceber que os trabalhadores não gostavam de Philip. Desconfiava que, se os questionasse, era provável que se deparasse com uma imagem muito diferente dos acontecimentos dos últimos dias... e que Philip talvez não se saísse tão bem.
Mas, naquele momento, Henry tinha outras preocupações mais importantes.
Fitou os dois guardas que o flanqueavam. Já não empunhavam as armas, mas mantinham as mãos sobre os coldres das pistolas. O abade Ruiz avançava à frente deles, respirando com dificuldade pelo nariz e pela boca. A altitude e o esforço da subida através das ruínas tinham sido, claramente, exigentes para aquele homem pesado.
Quando por fim alcançaram o local onde um túnel negro se abria para o lado de um templo enterrado, um homem, com o hábito castanho de um frade, avançou na direção deles. Era de uma beleza sombria, de olhos frios que pareciam assimilar tudo num só olhar.
O abade Ruiz fitou avidamente a boca do túnel.
— Frei Otera, como correm as coisas por aqui?
O monge manteve a cabeça baixa.
— Devemos alcançar as ruínas do templo ao meio-dia, eminência.
— Bom. Muito bom. Fez um belo trabalho. — Avançou para lá do homem de cabeça curvada, sem lhe dirigir sequer um olhar de relance, ignorando-o.
Henry, contudo, captou um vislumbre da raiva que ardia nos olhos do monge enquanto endireitava a sua postura, para depois o seu rosto assumir um desinteresse passivo. Mas Henry reconheceu a sua falsidade. Algumas palavras de elogio não iriam satisfazer aquele homem como acontecera com Philip. Agora mais próximo dele, Henry apercebeu-se que, nas suas feições, a herança índia se misturava com a herança espanhola: uma compleição mais escura, um nariz ligeiramente mais largo, e olhos de um castanho tão escuro que eram quase pretos. Frei Otera era, claramente um mestizo, um mestiço, uma fusão de sangue espanhol e índio. Homens assim tinham vidas difíceis na América do Sul, o seu sangue misto era frequentemente encarado como uma marca de humilhação e ridículo.
Henry seguiu o abade, mas manteve-se concentrado nos movimentos do frade. Sabia que era melhor mantê-lo debaixo de olho. Aquele homem tinha camadas perigosas que em nada se relacionavam com os esquemas do abade. Henry apercebeu-se de como até Philip evitava a proximidade do homem, enquanto trepavam pelo solo solto em direção à abertura do túnel.
Frei Otera colocou-se atrás de Henry.
Quando chegaram ao túnel escavado, o Sol erguia-se já no céu. Os límpidos céus azuis prometiam um dia quente.
De súbito, o estalar da estática levou todos os olhares a incidir em Philip. O aluno levou a mão ao casaco e retirou do bolso um walkie-talkie.
— Deve ser o Sam — disse Philip. — Hoje é mais cedo do que o habitual.
Henry aproximou-se. O sobrinho tinha dito que contactaria a base por volta das dez horas. A chamada vinha algumas horas antes do combinado.
— Daqui fala a base — disse Philip, os lábios colados ao recetor. — Podes falar, Sam.
A estática e a interferência gemeram durante alguns segundos, depois...
— Philip? Não é o Sam. É o Norman.
Philip olhou de relance para os outros, por cima do rádio, franzindo o sobrolho. Henry compreendia o choque do aluno de Harvard. De acordo com a última mensagem de Sam, Norman corria, na noite anterior, o risco de ser sacrificado. Felizmente, ainda estava vivo!
Norman continuou, falando rapidamente.
— Quando podemos esperar os helicópteros? Precisamos deles cá em cima, já! — O pânico marcava-lhe a voz.
— Estão aqui mesmo! — gritou Philip em resposta. — De facto, o professor Conklin está aqui comigo. — Philip estendeu-lhe o walkie-talkie.
Henry pegou nele, mas não antes de se ter apercebido de que os olhos do abade Ruiz se semicerravam. Um aviso contra um qualquer deslize. Henry ergueu o rádio.
— Norman, é o Henry. O que se passa aí?
— O Denal está em perigo! O Sam e a Maggie foram salvá-lo. Mas precisamos de ajuda o mais depressa possível. Dentro de uma hora encontrarão vários sinais de fogo a arder perto da orla ocidental do cone. Devem ser visíveis por entre a neblina. Despachem-se!
Henry fitou o abade. Este acenava já a alguns dos homens para que avançassem em direção ao helicóptero. Pensavam que teriam algumas horas antes da chamada de Sam, mas claramente o abade Ruiz não tinha qualquer problema em acelerar a agenda, em especial depois das palavras seguintes de Norman.
— Há algo estranho aqui... quase milagroso, professor. Tem de ver... — A estática piorava, comia as palavras.
O abade fixou o seu olhar no de Henry, os olhos ardiam com uma esperança religiosa. Ruiz acenou a Henry para que prosseguisse com o interrogatório ao fotógrafo.
— Tem alguma coisa a ver com um estranho tipo de ouro? — perguntou Henry.
Norman parecia não ter ouvido, com a transmissão aos soluços:
— ... um templo. Não sei como... cura... mas não há crianças.
A transmissão entrecortada impedia que as frases fizessem verdadeiro sentido. Henry agarrou o walkie-talkie com firmeza e encostou-o aos lábios. Se tinha alguma esperança de avisar Sam e os outros, seria agora.
— Norman, aguenta! Vamos a caminho! Mas diz ao Sam que não faça nada de impulsivo. Ele sabe que não confio nele para agir sozinho em relação a isto.
Ao seu lado, Philip sobressaltou-se perante aquelas palavras. Henry rezou para que Norman ficasse igualmente chocado com uma tal afirmação. Toda a equipa sabia que Henry tinha o sobrinho na mais alta estima e jamais censuraria Sam ou qualquer um dos outros estudantes daquela maneira, mas o abade Ruiz não sabia. Henry voltou a carregar no botão de transmissão.
— Estou a falar a sério. Ele que não faça nada. Eu não confio no bom senso do Sam.
— Professor? — A voz de Norman revelava toda a sua confusão. A estática jorrou da unidade. Quaisquer outras palavras foram engolidas.
Henry remexeu no rádio, mas tudo o que conseguiu foi mais estática. Desligou-o.
— Deve ter ficado sem bateria — comentou Henry em tom de lamento. Rezou para que Norman tivesse compreendido o aviso velado, mas, se não tivesse, pelo menos não fora feito qualquer mal. O abade Ruiz parecia não se ter apercebido da tentativa de Henry em enviar uma mensagem secreta. Devolveu o rádio a Philip.
Philip voltou a guardar o walkie-talkie no bolso, depois abriu a boca.
— Como assim, não confia no Sam, professor. Desde quando?
Henry deu um passo em frente, tentando fazer sinal ao doutorando de Harvard de que devia calar-se.
Mas o abade Ruiz já tinha ouvido. Virou-se de novo para Henry e Philip.
— O que foi isso? — perguntou, o rosto carregado de desconfiança.
— Nada — respondeu Henry de pronto. — O senhor Sykes e o meu sobrinho têm uma rivalidade persistente. Ele sempre achou que eu favorecia Sam em relação a ele.
— Nunca pensei tal coisa, professor! — disse Philip audivelmente. — O professor confiava em todos nós!
— Ah, era? — perguntou Ruiz, aproximando-se deles. — A confiança parece ser algo que todos estamos a perder neste momento.
O abade acenou com uma mão, e frei Otera aproximou-se de Philip pelas costas com uma lâmina exposta.
— Não! — gritou Henry.
O homem magro agarrou uma mão cheia do cabelo do estudante e puxou a cabeça de Philip para trás, expondo-lhe a garganta.
Philip guinchou, mas manteve-se em silêncio quando viu a lâmina. Ficou rígido quando a faca lhe tocou na garganta.
— Será que vamos precisar de uma nova lição em breve? — perguntou o abade.
— Deixem o rapaz — implorou Henry. — Ele não sabe o que diz.
O abade posicionou-se ao lado de Philip, mas as suas palavras eram dirigidas a Henry.
— Estava a tentar transmitir um aviso? Talvez um sinal secreto?
Henry fitou Ruiz, olhos nos olhos.
— Não. O Philip não soube expressar-se.
Ruiz virou-se para o estudante aterrorizado.
— Ah, sim?
Philip limitou-se a gemer, fechando os olhos.
O abade inclinou-se para a frente e falou ao ouvido de Philip.
— Se queres viver, espero a verdade.
A voz do estudante estalou.
— Eu... eu não sei onde está a querer chegar.
— Uma pergunta simples. O professor Conklin confia no seu sobrinho?
Os olhos de Philip saltaram para Henry, depois afastaram-se.
— Eu... eu suponho que sim.
O rosto do abade ensombrou-se, claramente insatisfeito com a resposta vaga.
— Philip — entoou ameaçadoramente.
O estudante estremeceu.
— Sim! — arquejou. — O professor Conklin confia no Sam mais do que em qualquer um de nós. Sempre assim foi!
O abade acenou com a cabeça e a faca afastou-se da garganta do estudante.
— Obrigado pela sua candura. — Ruiz virou-se de novo para Henry. — Parece que é necessária uma nova lição para o convencer do valor da cooperação.
Henry sentiu que o gelo lhe invadia as veias.
— Pelo seu logro contra o caminho do Senhor, deverá ser sujeito a um pesado castigo. Mas sobre quem deverá o mesmo ser aplicado? — O abade pareceu ponderar a pergunta por um momento, depois falou. — Acho que vou deixar a decisão nas suas mãos, professor Conklin.
— Como assim?
— Pode escolher quem irá sofrer com o fardo dos seus pecados: o Philip ou a doutora Engel?
— Se quer castigar alguém — disse Henry —, então castigue-me a mim.
— Não podemos fazer isso, professor Conklin. Precisamos de si vivo. E imagino que ter de fazer esta escolha já será castigo suficiente.
Henry empalideceu, sentindo os joelhos a fraquejar.
— Não precisamos de dois reféns. Quem quer que escolha, o Philip ou a doutora Engel, será morto. A escolha é sua.
Henry sentiu os olhos de Philip sobre si, a implorar pela sua vida. O que haveria de fazer?
— Tome a sua decisão nos próximos dez segundos ou morrerão ambos.
Henry fechou os olhos. Imaginou o rosto de Joan, a rir e sorrir enquanto jantavam em Baltimore, a luz das velas a brilhar no seu rosto. Amava-a. Já não o podia negar, mas também não podia afastar a responsabilidade. Embora Philip fosse muitas vezes um idiota insensível, não deixava de ser um dos seus alunos, era responsabilidade sua. Henry mordeu os lábios, as lágrimas acumulando-se. Lembrou-se dos lábios de Joan perto da sua orelha, da respiração dela no seu pescoço, no cheiro do seu cabelo.
— Professor?
Henry abriu os olhos e fitou furiosamente o abade.
— Sacana...
— Escolha. Ou ordenarei a morte de ambos. — O abade ergueu uma mão pronto para fazer sinal ao frade. — Quem irá morrer pelos seus pecados?
Henry sentiu-se engasgar com as palavras:
— A... a doutora Engel. — O seu corpo vergou-se ao ditar a sentença de morte de Joan. Mas que outra escolha tinha? Embora muitos anos se tivessem passado desde que estiveram juntos em Rice, Joan não tinha mudado. Henry ainda conhecia o seu coração. Ela jamais perdoaria Henry se este lhe preservasse a vida às custas da de Philip. Ainda assim, a decisão trespassou-lhe o peito como um enorme punhal serrilhado. Quase não conseguia respirar.
— Assim seja — declarou calmamente o abade Ruiz, virando-lhes costas. — Vamos a isso.
Sam seguiu Kamapak enquanto o xamã trotava por entre a orla da floresta e mergulhava na luminosidade do sol da manhã. Mesmo sob a cobertura da neblina sobre as suas cabeças, o brilho do Sol era doloroso depois das sombras da floresta.
Protegendo os olhos, Sam tropeçou e parou. Maggie parou a seu lado. A ambos faltava o fôlego devido à altitude elevada. Uma dor de cabeça latejava na cabeça de Sam enquanto ele observava os terrenos para lá do limite da selva.
A algumas centenas de metro de distância erguia-se uma parede quase vertical de rocha vulcânica despida, um penhasco de pedra guarnecida com ameias, afiado como uma faca, e com o vermelho acobreado do sangue fresco. Sobre ele erguia-se o cone negro da montanha vulcânica vizinha, imponente na sua altura.
Mais à frente, um estreito trilho ziguezagueava pela montanha até à abertura de um túnel quase setenta metros acima do piso do vale. Parecia uma escalada difícil. Dois homens desciam a encosta a partir da abertura. A luz do Sol brilhava sobre as lanças que transportavam. Denal não estava com eles.
— Vamos lá! — disse Sam, apontando o punhal transformado na direção dos homens.
Maggie acenou com a cabeça, demasiado cansada para falar. Ajustando a espingarda de Sam sobre o ombro, puxou-a mais para cima e seguiu em frente.
Kamapak conduziu-os através de um pequeno campo de quinoa selvagem, um tipo de trigo das terras altas, que surgia no limite da floresta. Para lá dos campos verdes, na base do penhasco, encontrava-se um amplo manto de vegetação rasteira descuidada e rochas vulcânicas caídas. Uma mão-cheia de chaminés fumegavam não muito longe, salpicadas com as manchas amarelas do enxofre. O ar era, ali, muito mais húmido e quente, como uma sauna de cheiro desagradável.
Cruzaram-se com os dois incas no trilho que subia até ao túnel em cima. Enquanto Kamapak falava com os guardas, Sam avaliava as lanças que os dois homens brandiam. As suas lâminas eram douradas como o punhal. Mas, o que era mais importante, as armas não pareciam ter manchas de sangue. Sam tentou ouvir a conversa, mas não conseguiu compreender nada. Por fim, o xamã fez sinal aos homens para que regressassem à aldeia e iniciou a íngreme subida, conduzindo-os à entrada.
Sam deteve Kamapak com um toque no ombro.
— Denal? —perguntou.
O xamã limitou-se a abanar a cabeça, apontou para cima e continuou a andar.
— O que achas? — perguntou Maggie.
— Não sei. Mas aparentemente a resposta encontra-se lá em cima.
Maggie olhou de relance, preocupada, para a abertura mais acima.
— No templo?
Sam assentiu sombriamente com a cabeça, e os dois seguiram Kamapak ao longo de uma série de caminhos ziguezagueantes que subiam pela parede. A conversa foi interrompida pela simples necessidade de respirar. Sam começou a sentir dificuldade em agarrar a faca. Ouviu Maggie a arquejar atrás dele. Os músculos das suas pernas começaram a protestar devido ao esforço.
Apenas Kamapak parecia não ter sido afetado. Habituado à altitude e ao calor húmido, o xamã não parecia minimamente afetado pela subida. Alcançou a abertura antes deles e aí esperou. Falou quando eles se aproximaram. A única palavra que Sam reconheceu foi Inti, o deus do Sol.
Sam olhou de relance para trás de si e observou a extensão do vale. Mais abaixo, a aldeia, meio coberta pela selva, era quase indiscernível. Depois, subitamente, uma série de pequenos fogos subiam pela cordilheira rochosa à esquerda, alcançando a beira do cone vulcânico. As fogueiras de sinalização.
— Muito bem, Norman — silvou baixinho.
Maggie juntou-se-lhe.
— Esperemos que o teu tio chegue depressa — disse ela, fitando as fogueiras. Em seguida fez sinal a Sam em direção ao túnel. — Toca a andar.
Kamapak encostou um archote a uma chama e conduziu-os para o interior. O túnel era suficientemente amplo para que quatro pessoas pudessem avançar lado a lado e parecia estender-se a direito. Sem curvas ou voltas. As paredes em redor eram de suave pedra vulcânica.
— Um tubo de lava — disse Maggie, tocando na pedra.
Sam anuiu com a cabeça e apontou em frente. A escuridão do túnel começara por parecer impenetrável. Mas à medida que Sam se foi acostumando à obscuridade, apercebeu-se de uma vaga luz que provinha de uma zona mais à frente. Luz do Sol.
— O Norman tinha razão — disse. — O túnel deve estar ligado a outro vale ou a uma gruta aberta para o céu.
Antes que Maggie pudesse responder, Kamapak fê-los parar. O xamã acendeu duas tochas embutidas na parede da direita. Estas ladeavam uma pequena gruta de que nem Sam nem Maggie se tinham apercebido na escuridão. Kamapak ajoelhou-se diante da entrada.
Quando as chamas explodiram, um brilho proveniente do interior da câmara refletia a luz dos archotes para o túnel principal. Atraídos como traças, Sam e Maggie avançaram.
Sam foi o primeiro a alcançar a entrada. Tropeçou e estacou quando viu o que se encontrava no interior. Maggie chegou ao seu lado. Ficou tensa, depois agarrou o braço do texano. Os seus dedos apertaram-no com firmeza.
— O templo — sussurrou.
Na gruta vizinha encontraram uma visão que levaria muitos homens a sentirem-se humildes. O espaço tinha a dimensão de uma garagem para dois carros, mas todas as suas superfícies estavam cobertas de ouro: o chão, o teto, as paredes. Tratava-se praticamente de uma caverna dourada! E quer se tratasse de um efeito da luz ou de qualquer outra coisa, as superfícies douradas pareciam fluir, redemoinhar e rodopiar, deslizando pelas superfícies expostas sem nunca revelar a rocha vulcânica subjacente. No centro do chão da sala havia uma laje sólida de ouro, claramente um altar ou cama. A superfície superior tinha ligeiros contornos, modelada de forma a adequar-se ao corpo humano. Sobre o altar, como um candelabro dourado, via-se uma esfera elegante de ouro filigranado, tiras e filamentos entretecidos e enredados numa rede densa. Recordava a Sam as bolsas de ovos das aranhas, mais orgânico do que metálico. Mesmo ali, a ilusão do ouro a fluir persistia. A massa entrelaçada parecia girar e agitar-se lentamente sob a luz trémula dos archotes.
— Onde está o Denal? — questionou Maggie.
Sam abanou a cabeça, ainda demasiado chocado para falar. Apontou com a sua faca em forma de serpente para o altar central.
— Não há sangue.
— Graças a Deus. Vamos... — Maggie saltou um passo para trás.
Um pequeno filamento de ouro em espiral emergiu da massa sobre o altar e estendeu-se na direção de Sam.
— Não te movas — balbuciou Sam, imobilizando-se também.
O fio de ouro girava através do ar, movendo-se como um tentáculo curioso. Parecia atraído para o punhal que Sam empunhava. Por fim, estendeu-se o suficiente para alcançar a serpente de ouro, tocando-lhe numa presa. Instantaneamente, a escultura de ouro derreteu-se, as formas dissolvendo-se, as superfícies fluindo como cera quente. O cabo ficou frio nas mãos de Sam, dado que o seu calor era absorvido. Em seguida o ouro ganhou nova forma, estendendo-se e afiando-se, assumindo a forma do punhal original.
O filamento curioso retirou-se, regressando à massa principal como uma linha de pesca enrolada.
Sam segurou o punhal à frente dos olhos.
— Mas que raio é que aconteceu?
Maggie conseguiu recuperar a voz, colocando-se à sombra de Sam, mantendo os ombros amplos dele entre ela e a gruta de ouro, o templo.
— Não é ouro. Não pode ser. O que quer que componha a tua lâmina é igual ao que reveste o templo. Aquilo a que os mochicos chamaram deus Sol. Um metal recolhido dos meteoros.
— Mas quase parece vivo — disse Sam, recuando com ela.
Kamapak levantou-se, os olhos cheios de reverência por Sam. Balbuciou algo a Sam, depois inclinou a cabeça.
— Não creio que devamos mexer nisso, Sam. Vamos descobrir o que aconteceu ao Denal e deixar este local para cientistas mais experientes.
Sam assentiu com a cabeça.
— Foi isto que frei de Almagro viu. Deve ter sido isso que assustou o homem e o levou a selar esta caldeira. A Serpente do Éden.
— Isso e a cabeça decapitada de Pachacutec — balbuciou Maggie.
Sam virou-se para ela. A caminho daquele local, Maggie dissera-lhe que tinha ouvido a conversa de Norman e Sam ao lado da fogueira, conhecia a história fabricada de Inkarri.
— Não acreditas na história do rei decapitado, pois não?
Maggie baixou os olhos.
— Há algo que não te disse, Sam.
— O quê?
— Queria mais tempo para pensar sobre o que vi antes de falar. — Olhou para ele de relance. — Esgueirei-me para o pátio depois de tu e o Norman terem sido arrastados. Vi Pachacutec sem o seu manto. O seu corpo era... era errado.
— Como assim?
— Era como...
De súbito um grito ecoou ao fundo da passagem, interrompendo a conversa. Sam e Maggie estacaram.
— Denal! — arquejou Maggie enquanto o grito se desvanecia. — Ele está vivo!
Sam avançou ao longo do túnel, na direção do local onde se via o vago brilho da luz do Sol a invadir o túnel.
— Mas durante quanto tempo? Vamos.
Kamapak ergueu um braço para impedir a sua passagem. Abanou ferozmente a cabeça, balbuciando palavras claras de aviso. As únicas sílabas compreensíveis eram janan pacha. O Céu dos Incas. Sam lembrou-se de que as crianças dos aldeãos eram entregues como presentes aos deuses em janan pacha. Fora para lá que tinham levado Denal! Kamapak fitava Sam com uma expressão de desafio, impedindo-lhes a passagem.
— Que se lixe! — balbuciou Sam furioso. Brandiu o punhal à frente de Kamapak. — Nós vamos passar, pá. Por isso, ou te desvias ou eu abro caminho através de ti.
O tom da sua voz deve ter quebrado a barreira linguística. Kamapak recuou, o medo estampado nos olhos fixos no punhal. Sam não esperou que o xamã mudasse de ideias. Avançou a passos largos. Kamapak, contudo, arrastava-se atrás deles, balbuciando orações. Num sussurro.
Em breve chegaram à saída do túnel. Este abria-se para mais uma caldeira vulcânica. Mas ali a neblina era mais densa, a luz do Sol era filtrada transformando-se num brilho crepuscular. Até as cortinas de um nevoeiro pesado obscureciam a floresta mais à frente. O fedor do enxofre era suficientemente forte para fazer arder os olhos, e o calor era sufocante. Um caminho desimpedido conduzia à floresta.
— Devemos estar na caldeira vizinha — sussurrou Maggie.
Sam concordou com a cabeça e avançou para o vale. Maggie seguiu-o e, passado um momento de hesitação, o mesmo fez Kamapak. A postura do xamã era ligeiramente encurvada, os olhos fixos nos céus estranhos, como se temesse que algo estendesse os braços e o agarrasse. Claramente, o xamã nunca ali estivera. Aquilo é que era um tabu.
— Não é propriamente a minha ideia de paraíso, isso é certo — comentou Sam, enquanto avançava para a selva, limpando o suor da testa. Sob a copa das árvores, o crepúsculo deu lugar à noite.
À sua volta, a selva estava silenciosa. Não havia canto de pássaros ou restolhar de animais. Na obscuridade, Sam viu alguns macacos escondidos na copa das árvores, mas estes permaneciam imóveis, silenciosos. Apenas os seus olhos seguiam os estranhos que haviam invadido o seu espaço.
Maggie tinha já a espingarda a postos e Sam esperava que ela fosse uma atiradora tão experiente quanto alegava ser. Em especial dado que a única arma que possuíam além dessa era o punhal de Sam.
Ninguém se atreveu sequer a sussurrar enquanto avançavam pelo trilho até ao local onde a floresta se abria, mais à frente. Quando alcançaram luz mais brilhante, Sam agachou-se e ergueu uma mão para os deter. Precisavam de um plano. Olhou de relance para Maggie. Os olhos dela estavam arregalados de medo e preocupação. Kamapak agachou-se atrás dela, cauteloso.
Em seguida irrompeu um novo grito, penetrando a selva como uma seta. Provinha de um ponto mesmo à frente deles.
— Socorro! — O terror era óbvio na voz do rapaz.
— Para o diabo com a cautela — disse Sam de rompante, e levantou-se. — Vamos! — Correu ao longo do que restava do trilho, com Maggie no seu encalço.
Emergiram da cobertura da selva para os arrabaldes de uma outra aldeia inca. Também ali as casas de pedra em sulcos subiam pelas encostas suaves e ficavam meio escondidas nos limites da selva. Mas essa era a única semelhança. Ali, a selva engolira a aldeia, reclamando-a. Por todo o lado ervas e vegetação cresciam por entre as lajes de granito, emergindo como se nascessem da pedra em si. Não muito longe, uma árvore crescia de um dos telhados partidos, espalhando os seus ramos e envolvendo a casa.
Mas por maltratada que estivesse a aldeia, o cheiro era ainda pior.
As ruas estavam repletas de detritos e restos. Antigos ossos de animais jaziam espalhados como vidro partido numa viela, muitos deles com pedaços de pele ou pelo ainda agarrados. Sob os seus pés, cacos de olaria estilhaçados estalavam.
— Credo — disse Maggie, tapando a boca. — É a terceira cidade.
— O quê? — sussurrou Sam.
— Lembra-te da celebração da primeira noite. Calculaste que a necrópole tinha sido construída como uma cidade uca pacha, o mundo inferior, ao passo que a outra aldeia era cai pacha, o mundo intermédio. Bem, aqui está a terceira aldeia. Uma cidade do mundo superior, de janan pacha.
Sam olhou de relance fitando as ruas malcheirosas e em ruínas com desagrado. Aquilo não era nenhuma cidade celestial. Mas não se atreveram a parar para ponderar no mistério. Sam fez-lhes sinal para que prosseguissem, conduzindo-os ao longo da avenida.
Enquanto corriam, Kamapak fitava as ruínas da aldeia horrorizado, os olhos muito abertos de incredulidade.
Claramente, aquela também não era a sua ideia de um céu, pensou Sam.
Mais à frente era possível ouvir ruídos: gemidos e guinchos furiosos. Mas através desses sons, havia um que os atraía. Soluçar. Só podia ser Denal.
Sam abrandou no ponto em que a rua se abria para a praça principal da aldeia. Espreitou pela esquina, depois recuou.
— Raios...
— O que foi? — sussurrou Maggie. Esgueirou-se até à esquina e olhou.
Sam viu os ombros dela retesarem-se. Juntou-se a ela à esquina, obrigando-se a refrear o choque inicial. Despido como um recém-nascido, Denal erguia-se no centro da praça, atordoado e aterrorizado.
E com razões para isso.
À sua volta, a praça estava repleta de pálidas criaturas. Algumas grandes como touros, outras do tamanho de bezerros musculados. Sam reconheceu aquelas formas doentias. Eram as mesmas criaturas que assombravam a necrópole em baixo. Rodeavam o rapaz, cheirando, raspando com os seus cascos. Lutas ocasionais estalavam, gritos súbitos silvados e o arranhar de garras afiadas. Ainda não sabiam o que pensar do rapaz.
Mas uma coisa era óbvia. Tinham fome. A saliva pingava de quase todos os lábios. Pareciam quase mortas de fome. Todas elas ossos e pele.
Uma das criaturas mais próximas virou-se subitamente na direção deles. Era uma das criaturas de pernas finas. Um dos batedores da matilha. Sam e Maggie quase não tinham conseguido esconder-se antes de serem vistos.
Sam fez sinal a Maggie para que recuasse.
O xamã tatuado parecia igualmente confuso e horrorizado. Claramente, nunca desconfiara do que escondia verdadeiramente o seu janan pacha. Antes que Sam o conseguisse impedir, Kamapak dobrou a esquina, de braços erguidos. De lágrimas nos olhos, o xamã ergueu a voz numa canção, iluminada pelo fervor religioso. Kamapak avançou na direção da matilha de criaturas.
As criaturas na praça silenciaram-se.
Sam fez Maggie recuar mais. Sussurrou-lhe ao ouvido.
— Temos de contorná-los. Aproveitar a distração do xamã. Ver se conseguimos libertar Denal.
Ela acenou e os dois largaram a correr, mergulhando por uma rua lateral que avançava paralela à praça. Ouviram a cantoria de Kamapak prosseguir. Sam tentou correr tão silenciosamente quanto possível, evitando ossos e olaria.
— Por aqui! — silvou Maggie, correndo para uma viela entre duas casas.
Sam seguiu-a e, em breve, viu-se agachado diante da praça, mas desta feita Denal estava mesmo à sua frente. O rapaz não os vira; tinha caído de joelhos, os olhos fixos no local onde se encontrava o xamã.
Também as criaturas tinham sido atraídas pela canção. Uma multidão monstruosa afastara-se do rapaz aterrorizado e avançava em direção à nova bizarria. Assim se abrira um caminho.
Se pretendiam salvar Denal, era agora ou nunca.
Sam inspirou fundo e depois emergiu, mantendo-se agachado. Maggie seguiu-o, de espingarda encostada ao ombro.
Do outro lado da praça, Sam viu o xamã, agora rodeado pelas criaturas. Alguns dos membros mais mirrados da matilha, os zangões sem órgãos genitais, puxavam pela túnica de Kamapak. Outros, os caçadores mais altos e musculados, mantinham-se mais atrás, desconfiados, as cabeças inclinadas estudando o recém-chegado, escutando as suas canções. Mas durante quanto tempo a sua música manteria os monstros calmos? Sam recebeu de imediato a sua resposta. Um dos caçadores correu e atacou o xamã, lançando-o às pedras da praça. Sam deu um passo em direção a Kamapak, mas Maggie refreou-o agarrando-lhe o cotovelo.
Kamapak ergueu-se lentamente e tocou na testa ensanguentada. A matilha fitou-o enquanto o xamã erguia os dedos vermelhos. Depois, as feras sentiram o cheiro do sangue e tudo o resto foi esquecido. As formas pálidas avançaram e saltaram, correndo e rodeando o xamã. Kamapak gritou de horror e dor. Guinchos e uivos acompanharam o ataque. Mesmo de onde se encontrava, Sam conseguia ouvir os ossos a estalar e a carne a ser arrancada.
Denal desviou o olhar da visão horrenda e viu, por fim, Sam. Esforçou-se por se levantar e correr em direção ao par com as pernas trémulas. Os olhos do rapaz estavam inchados das lágrimas, o rosto pálido do terror. Abriu a boca para falar, mas Sam levou um dedo aos lábios. Denal fechou a boca, mas não conseguiu conter um pequeno gemido.
Em breve, Sam e Maggie estavam ao seu lado. Enquanto Sam puxava para si o rapaz, os rugidos e os silvos tinham começado a esmorecer do outro lado da praça. Os gritos de Kamapak já se tinham silenciado.
— Temos de sair daqui! — sussurrou Maggie.
Do outro lado da praça, mãos-cheias das criaturas tinham-se instalado nas pedras com as suas refeições. Pedaços da túnica rasgada estavam espalhados por toda a parte. O sangue era uma poça espezinhada nas pedras. Mas o próprio Kamapak tinha desaparecido, dilacerado e destruído pelas garras e os dentes das criaturas. Tudo o que restava eram pedaços ensanguentados a serem mastigados e disputados.
Mas, infelizmente, o xamã não era suficiente para todos. Diversas criaturas procuravam agora, cheirando o ar, uma outra fonte de alimento. Os olhos ferozes regressaram ao rapaz. O grupo foi detetado.
— Maldição — murmurou Sam.
Das restantes criaturas ergueram-se novos guinchos. Mesmo aqueles que já tinham comido a sua dose de carne erguiam os focinhos ensanguentados para ver o que mais poderiam reclamar.
— Denal, como é que vieste para aqui? — perguntou Sam, recuando pela praça, já não necessitando de manter o silêncio. — Há mais alguma saída?
O rapaz abanou a cabeça.
— Os guardas levar-me para o templo. Fazer-me deitar no altar. Depois eu acordar... aqui, tonto, sem roupas. — A voz de Denal estalou. — De... depois estas coisas vir!
— O que raio são elas?
Denal gaguejou.
— Os... os deuses deles.
Uma das criaturas mais próximas lançou-se na direção deles. Maggie fitou-o através da mira da espingarda e disparou. A criatura foi projetada para trás, metade do crânio desaparecido.
— Bem, estes deuses de merda sangram.
A fera morta foi atacada por alguns dos seus irmãos. Mais carne para o festim. Mas isso não abrandou os outros; a sede de sangue e a fome tinham-nos impelido para um quase frenesi.
Sam, Denal e Maggie continuaram a recuar até escutarem novos rosnidos atrás de si. Sam virou-se. Mais criaturas avançavam desajeitadamente e esgueiravam-se para a parte de trás da praça, criaturas que tinham chegado mais tarde à festa, atraídas pelo sangue fresco e pelos gritos. Nos telhados a toda a volta, outras criaturas pálidas trepavam e uivavam a sua fome.
— Acho que acabam de tocar o sino para o jantar — disse Sam friamente.
Joan trabalhava na sua cela. Passara a manhã debruçada sobre vários artigos de revistas, resumos e notas datilografadas sobre a teoria da nanotecnologia apresentada pelo jovem e diligente monge. Estava particularmente intrigada com uma tese sobre a teoria dos sistemas biométricos, a ideia de construir máquinas microscópicas imitando modelos biológicos já existentes, como a mitocôndria e os vírus. O artigo do doutor Eric Drexler propunha a utilização de proteínas e ácidos nucleicos como componentes construtores de uma micromáquina, ou nanobot. O artigo abordava a questão de como a biologia moderna podia inspirar a geração de «estruturas sintéticas, não biológicas».
Joan recostou-se, imaginando as unidades de forma octogonal, microscópicas, que compunham a Substância Z. A sua forma parecera-lhe familiar, quase uma imitação dos bacteriófagos virais. Seriam aquelas unidades exemplos de estruturas biomiméticas?
Levando a mão ao tampo da mesa, Joan percorreu os papéis até encontrar a impressão de uma análise de um scan de sonda microscópica. Este dividia as partes componentes daquela estranha unidade.
Ensaio 134B12
Análise SPM: utilizando imagiologia faseada, modulação forçada, microscopia pulsada forçada (resultados comparados com a análise de espectrógrafo de massa n.º 134B8)
Conclusões iniciais:
Arquitetura exterior: macromoléculas de Si (silício) e H (hidrogénio), especificamente cubosiloxano (H8S18O12) mais tectosilicatos.
Braços articulados: nanotubos de SI (silício) misturados com Au (ouro).
Núcleo: impossível de analisar.
Joan tocou na folha. Portanto, os braços das nanopartículas continham ouro, daí a tonalidade da Substância Z. Mas o que a intrigava era a composição da concha. Era principalmente silício. Na natureza, quase todos os blocos de construção biológicos têm por base os hidrocarbonetos: moléculas de hidrogénio, oxigénio e carbono. Mas ali estava uma construção que substituía o carbono por silício.
— Hidrossílicas — balbuciou, criando um nome para a nova classe de molécula. Embora os hidrocarbonetos compusessem a maior parte da biologia, na geologia era o silício que compunha o elemento dominante da crosta da Terra. Poderia aquela estrutura ser uma ligação entre a biologia e a geologia? Ou, como o jovem monge propusera, tratar-se-ia do primeiro nanobot inorgânico a ser descoberto.
Por fim, os seus olhos repousaram na última linha do relatório. A composição do núcleo. Impossível de analisar. Ali residia o cerne do mistério. O exterior era conhecido e quantificável, mas os funcionamentos internos permaneciam um enigma. Aquilo levou-a de volta à derradeira pergunta colocada pelo jovem monge nos seus próprios documentos pessoais: Qual o propósito desta máquina microscópica? E quem a programou?
Antes que Joan pudesse continuar a refletir naqueles mistérios com maior profundidade, ouviu um raspar de um calcanhar na pedra ao fundo do corredor. Olhou de relance para o relógio e franziu o sobrolho. Era demasiado cedo para que fosse alguém a levar-lhe o almoço. Mordeu o lábio inferior. Quem quer que se aproximasse, provavelmente nada tinha a ver com ela, mas não podia correr esse risco.
Joan arrumou apressadamente os conteúdos da sua secretária. Empilhou os documentos de forma ordenada, depois dobrou a folha de papel amarelo gasta com o código de frei de Almagro e enfiou-a no bolso. Em seguida, deslizou o único livro que lhe era permitido ter no quarto, uma bíblia, sobre o buraco irregular que abrira na secretária de carvalho, escondendo o resultado da sua experiência da noite anterior.
Por fim, retirou da secretária o cigarro que pedira a frei Carlos e guardou-o no bolso do peito. Analisou o seu trabalho, satisfeita por não ter sido descoberto qualquer registo da sua experiência secreta com a Substância Z.
E foi uma sorte. Os passos pararam mesmo em frente à sua porta. Joan ficou tensa. Uma chave foi introduzida na fechadura e girada.
Joan virou-se quando a porta se abriu. Era frei Carlos com a sua Glock de 9 milímetros. Levantou-se, erguendo as sobrancelhas numa pergunta.
— O que se passa?
— Saia — disse ele bruscamente, acenando com a pistola. — Venha comigo.
Joan hesitou; o medo perante a possibilidade de ter sido apanhada gelou-lhe o sangue.
— Já! — vociferou Carlos.
Acenando com a cabeça, Joan avançou e passou a porta. Uma mão no colarinho da blusa. Do lado de baixo do suporte de plástico que lhe mantinha direita a gola estavam as duas pérolas do tamanho de lágrimas da Substância Z. Não podia arriscar-se a deixar as amostras na cela. Podia ser feita uma rusga ao quarto, ou ela podia ser mudada para uma nova cela. Por isso, tinha descoberto uma forma de manter as gotas de ouro escondidas e em sua posse.
Carlos fez sinal com a cabeça para que avançasse. Foi seguindo as suas indicações. Estava a contar que a levasse até aos laboratórios, mas em vez disso conduziu-a a uma nova secção da abadia. Franziu o sobrolho perante os espaços estranhos.
— Onde vamos?
— Verá quando lá chegarmos.
O frade, que nunca fora um tipo caloroso, mostrava-se ainda mais sério naquele dia. A sua atitude tensa intensificava o nervosismo dela. O que se estaria a passar? Aquela ala da abadia era espartana. O chão de pedra simples era iluminado por uma fileira de lâmpadas despidas. Ali não havia pequenas portas que se abrissem para aposentos minúsculos. Joan deslizou o olhar de relance pelo corredor. Não tinham passado por um único residente da abadia desde a sua entrada naquela ala.
— Há... há algum problema? — perguntou, incapaz de impedir o estremecimento de lhe invadir a voz.
Frei Carlos não respondeu. Limitou-se a conduzi-la até uma pequena escadaria no final do corredor. Eram apenas seis degraus e conduzia a uma sólida porta de carvalho chapeada a ferro. Um pequeno crucifixo gravado em prata marcava a porta. Por cima do crucifixo havia um par de espadas cruzadas.
Joan lembrava-se de Henry ter comentado que tinham encontrado um símbolo idêntico no anel de sinete de frei de Almagro. Lembrava-se do seu significado. Era a marca da Inquisição.
O nervosismo deu lugar a um medo pegajoso enquanto Carlos a fazia recuar contra a lateral sob a ameaça da arma e batia à porta. A forma como bateu era claramente um código. Abriram um ferrolho, o raspar do ferro na madeira ruidoso no corredor vazio e despido.
Carlos recuou quando a porta foi aberta. Joan sentiu o calor da sala adjacente a fluir como a respiração de um dragão. Não lhe foi permitido recuar. A Glock de 9 milímetros estava firmemente encostada ao seu flanco. Uma figura pesada, o peito nu a cintilar de suor, erguia-se à porta. Este descera o hábito de monge abaixo dos ombros e deixara-o pendurado no cinto. Deslizou a mão pela cabeça calva, que também cintilava, e falou num espanhol rudimentar. Carlos respondeu. O monge corpulento acenou com a cabeça e fez-lhes sinal para que entrassem.
— Vá — ordenou Carlos.
Sem outra escolha, Joan seguiu-o. A sala parecia saída de um antigo filme de terror. À sua esquerda havia uma fila de celas com barras de ferro, chão de palha, sem camas. À direita uma parede da qual pendiam correntes cuidadosamente enroladas. Uma fila de chicotes de cabedal pendia de cabides. Ao centro da sala via-se um braseiro, vermelho-vivo com chamas tremeluzentes. Por entre os pedaços de carvão em brasa, espreitavam três compridas varas de ferro.
Ferretes.
Joan olhou de relance em redor da divisão. Estava numa imitação de uma masmorra medieval. Não, corrigiu-se. Podia sentir o odor familiar. Algo dos dias passados nas urgências. Sangue e medo. Aquilo não era uma imitação, não era um museu de cera. Era real.
— O que... o que faço eu aqui? — perguntou Joan em voz alta, mas no seu coração já sabia a resposta. Henry cometera um erro qualquer. Por assustadora que fosse aquela divisão, Joan sentiu uma leve preocupação por Henry. O que lhe teria acontecido? Fitou Carlos.
— Vou ser castigada?
— Não — disse o frade, as suas palavras tão descontraídas como se falasse do tempo. — Vai ser morta.
Joan sentiu que os seus joelhos enfraqueciam. O calor da divisão fê-la sentir-se subitamente indisposta. Quase não conseguia respirar.
— Eu... eu não compreendo.
— E não precisa de compreender — respondeu-lhe Carlos. Fez um sinal com a cabeça ao monge corpulento.
Utilizando um par de luvas de cabedal, o homem encorpado avaliou os ferretes. Retirou-os de entre as brasas e fitou as suas pontas brilhantes. Cerrou os lábios, satisfeito, depois falou em espanhol.
Carlos ergueu a pistola.
— Avance para a parede mais afastada.
Joan não confiava nas suas pernas. Olhou de relance em redor da divisão, depois de novo para Carlos.
— Porquê tudo isto? Porquê desta maneira? — Apontou debilmente para a arma. — Podia ter-me matado no quarto.
Os lábios de Carlos tornaram-se ainda mais sombrios. Observou com atenção os utensílios de interrogatório, as ferramentas da Inquisição, e respondeu-lhe:
— Precisamos de praticar.
Maggie olhou ao longo do cano da espingarda e apertou o gatilho. O rosto pálido voou para trás, a boca um destroço ensanguentado. Apoiando-se nos dedos do pé, Maggie virou o cano para o alvo seguinte. As explosões da Winchester já a tinham ensurdecido face aos guinchos e uivos. Agia por instinto. Disparou de novo, lançando para trás mais um dos batedores pálidos que se tinham aproximado demasiado. O seu guincho agudo ao ser apanhado pelas outras criaturas conseguiu por fim chegar aos seus ouvidos atordoados.
Baixou a espingarda, respirando por entre os dentes cerrados. As cinco criaturas que tinha matado até então mantinham, pelo menos, a multidão temporariamente ocupada.
Algo lhe tocou no ombro. Utilizou a coronha da espingarda para lhe bater.
— Uou! — gritou-lhe Sam ao ouvido. — Calma! Sou eu! — Agarrou-lhe o ombro com maior firmeza.
Maggie lambeu os lábios secos, tremendo ligeiramente.
— O que vamos fazer? — murmurou. As criaturas tinham-nos encurralado no centro da praça e não recuavam. Não tinham alcançado qualquer avanço na sua tentativa de abrir um caminho para a liberdade. Por cada criatura que abatiam, outras saltavam e corriam para preencher o vazio.
Sam soltou-a.
— Tenho estado a contar. Só nos resta uma bala.
Maggie olhou de relance para a espingarda.
— Credo! — Ergueu a arma. Era bom que o seu último tiro fosse certeiro. Forçou as mãos a não tremer.
Sam fê-la baixar a espingarda.
— Deixa-me tentar.
— Com o quê? — silvou-lhe ela.
Ele ergueu a faca de ouro.
— Lembras-te das criaturas na necrópole?
— Sam, vais ter de as deixar aproximar demasiado — argumentou ela, libertando a espingarda da mão dele.
— Talvez não. — Sam pôs-se à frente dela. Retirando o Stetson, ergueu bem alto o punhal de ouro e acenou com o chapéu com a outra mão. Gritou num puro som de desafio.
Centenas de olhos ergueram-se das suas refeições e rosnaram a Sam.
O texano voltou a pôr o chapéu, deixando apenas o punhal exposto num movimento ascendente. Os rosnados das muitas gargantas esmoreceram quando os seus olhares saltaram para a faca de ouro. Um leve gemido fez-se ouvir de um lado. Sam parecia também tê-lo ouvido. Virou-se na direção do ruído, o ponto fraco na multidão. Acenou com o punhal, com movimentos amplos, repetindo o seu grito de raiva.
Uma parede de formas pálidas começou a afastar-se dele, abrindo caminho.
— Mantenham-se atrás de mim — sussurrou Sam a Maggie e Denal.
Maggie fez sinal ao rapaz nu para que seguisse à sua frente, depois cobriu a retaguarda com a Winchester. Uma bala, recordava constantemente a si mesma.
Sam iniciou uma aproximação lenta à multidão, brandindo o punhal, dando estocadas, varrendo o ar à sua frente, rosnando.
Com choros e gemidos, várias criaturas afastaram-se rapidamente do seu caminho. O impasse foi quebrado. Cada vez mais criaturas fugiam, arrastando os pedaços ensanguentados que tinham conseguido recolher.
— Acho que está a funcionar — comentou Sam.
De súbito, algo atacou Sam. Asas vestigiais agitavam-se nas suas costas, o que o identificava como um dos caçadores. Sam recuou cambaleante, tropeçando em Denal.
Maggie afastou-se em movimentos saltitantes, mantendo o equilíbrio e movendo a espingarda. Mas também ela foi demasiado lenta.
Sam caiu em cima do rapaz quando a criatura saltou para cima deles. Denal gritou horrorizado. Sam moveu a sua única arma. O punhal. A criatura gritante empalou-se na lâmina. Parecia uma pequena lâmina quando comparada com as garras em gancho e as presas cortantes do atacante, mas o efeito estava longe de ser pequeno.
De súbito, as asas minúsculas da criatura pareceram funcionar. A criatura pareceu voar libertando-se da lâmina de Sam, guinchando um ruído que até a Maggie fez estremecer. Rebolou pelas pedras da praça e deixou-se ficar caída de barriga para cima. Pequenas chamas podiam ser vistas a dançar por entre as garras dos seus dedos que cingiam a barriga ferida.
À sua volta, a multidão pálida estacou e silenciou-se, de olhos muito abertos, sem pestanejar.
As chamas espalharam-se a partir da barriga da criatura. Como um incêndio selvagem na erva seca, o fogo grassou através da criatura. Esta arqueou-se e contorceu-se; os maxilares muito abertos num grito silencioso de agonia. As chamas ergueram-se da sua garganta, tremeluzindo como uma língua de fogo, e depois a cabeça foi consumida. O corpo da criatura tombou sobre as pedras, morto. As chamas ainda dançavam sobre a sua forma enegrecida, uma pira doentia.
Sam e Denal já estavam de pé.
— Vamos — disse Sam.
O texano voltou a ameaçar com o seu punhal, mas, desta vez, não houve qualquer desafio. As criaturas que ainda se encontravam no seu caminho afastaram-se. Reunindo-se num grupo compacto, atravessaram em direção à saída. Os três sustinham a respiração.
Maggie ainda fitava a forma fumegante do seu atacante. Combustão espontânea. Tentou juntar essa peça ao puzzle crescente. Abanou a cabeça. Agora não era a melhor altura.
Virou a sua atenção para a frente.
Sam continuava a ameaçar as poucas criaturas que ainda pairavam nos limites do seu caminho. Um monstro particularmente grande, todo ele músculos e ossos, ainda os fitava de um dos lados. Os seus olhos semicerravam-se num ódio desconfiado. De todos eles, aquele parecia o mais bem alimentado. Estava encurvado, apoiado nos nós de uma das mãos, como um gorila de costas prateadas, mas nu e pálido. Maggie reconheceu-o como um dos raros «líderes» da matilha. Apercebeu-se de que lhe faltavam quaisquer órgãos genitais, tinha apenas uma abertura excretória. Como o corpo de Pachacutec, pensou.
Um dos olhos de Maggie estremeceu quando uma horrível constatação começou a tomar forma. Estava tão chocada que não foi capaz de se aperceber do que a criatura encurvada segurava no outro punho cerrado.
— Sam!
A criatura elevou o braço e lançou um pedregulho do tamanho de uma abóbora madura na direção do texano. Sam olhou de relance, mas não conseguiu mover-se a tempo. O pedaço de granito atingiu o punho de Sam. O punhal caiu das mãos do texano e deslizou até parar no meio de um grupo daquelas criaturas.
O gigante lançador da pedra rugiu de triunfo, erguendo-se sobre as suas pernas e batendo no enorme peito com um dos punhos nodosos. O seu grito de triunfo foi imitado pelos outros por toda a praça. Sem o punhal, agora não tinham qualquer defesa.
Maggie ergueu a espingarda na direção do gorila uivante.
— Cala-te, idiota! — Puxou o gatilho e o monstro caiu para trás, sobre as pedras. As pernas estremeceram no estertor da morte por um instante, depois aquietaram-se.
Enquanto os ecos da sua espingarda esmoreciam, o silêncio regressou à praça. Ninguém se moveu. Com a morte do líder, a matilha ficou momentaneamente assustada.
Por fim, Maggie silvou.
— Sam, foi o meu último cartucho.
— Então, diria que já ficámos tempo suficiente.
Como se o tivessem ouvido, as criaturas começaram a avançar lentamente na direção deles.
O texano virou-se para Denal.
— Consegues correr depressa?
— Olha! — Denal voou pela rua vazia à sua frente.
Sam e Maggie lançaram-se atrás do rapaz, correndo juntos através da aldeia imunda.
Guinchos furiosos e uivos famintos irromperam atrás deles. A perseguição estava lançada. Com a presa em fuga, a matilha perdeu a sua desconfiança. A sede de sangue sobrepôs-se ao medo. Os batedores corriam ao longo das ruas vizinhas, borrões brancos entre as casas, no seu encalço. Atrás deles, os caçadores seguiam-nos, uivando em desafio.
Maggie esforçou-se por acompanhar Sam, debatendo-se para conseguir levar a Winchester ao ombro.
— Deixa-a — gritou-lhe Sam.
— Mas...?
Sam abrandou e arrancou-lhe a espingarda das mãos. Moveu-a por cima da cabeça e lançou-a para trás deles. A sua querida Winchester caiu ao chão e deslizou pelas pedras.
— Prefiro salvar-te do que a uma maldita espingarda enferrujada.
Sem aquele fardo e estranhamente estimulada pelas palavras de Sam, Maggie aumentou o ritmo. Correram lado a lado, na mesma passada. Em breve tinham deixado a aldeia e seguiam pelo carreiro que atravessava a selva. As árvores e os ramos chicoteavam-nos, esforçando-se por fazê-los abrandar, mas eles avançavam, arranhados e ensanguentados.
Denal seguia uns metros à frente, saltando e correndo nu por entre as árvores.
— Corre para o túnel! — gritou-lhe Sam.
— Que túnel? — respondeu Denal, quase tropeçando.
Maggie apercebeu-se de que Denal não tinha qualquer recordação de por ali ter passado. Gritou.
— Continua pelo trilho, Denal. Leva-te diretamente ao túnel!
O rapaz aumentou o ritmo. Sam e Maggie esforçaram-se por acompanhá-lo. Atrás deles, conseguiam ouvir o estalar dos ramos e os latidos dos caçadores.
Arquejando, nenhum deles tentou continuar a falar. A visão de Maggie semicerrou-se ao mínimo e, enquanto corria, sentiu espasmos e cãibras nas pernas. Começou a abrandar.
De súbito, o braço de Sam estava por baixo dos seus ombros, fazendo-a avançar.
— Não... Sam... segue. — Mas sentia-se demasiado fraca sequer para o contrariar.
— Nem penses. — Arrastou-a consigo. A perseguição parecia infindável. Maggie não se lembrava de o trilho ser assim tão longo.
Por fim, a luz do Sol regressou. A selva ficou para trás deles. À frente, o olho negro do túnel estava a um punhado de metros. Denal já lá chegara, parando junto à entrada.
Sam levou-a quase ao colo, pela curta encosta até à entrada.
— Entra! — gritou ao rapaz.
Maggie olhou de relance por cima do ombro. As formas pálidas irromperam da selva por entre a folhagem, afastando de si as vides que se lhes agarravam ao corpo. Algumas saltavam em duas patas, outras corriam sobre os quatro membros.
— Entra! Agora, Denal!
— Eu... não consigo! — choramingou o rapaz.
Maggie lançou-se a correr. Denal continuava agachado junto à entrada. Dava um passo em direção ao interior mergulhado nas sombras, depois recuava.
Sam e Maggie juntaram-se-lhe. O texano empurrou-o na direção do túnel.
— Vai!
Maggie cambaleou junto à entrada, a sua visão tão reduzida que a escuridão do túnel a deixava cega. Virou-se e viu Sam puxar Denal para os seus braços.
O rapaz guinchava como um porco na matança enquanto Sam saltava para o túnel ao lado dela. Denal contorceu-se e esperneou nos braços de Sam.
— O que se passa com ele? — perguntou Maggie, enquanto Sam mergulhava mais fundo pelo túnel.
As costas de Denal arqueavam-se numa convulsão trémula.
— Acho que está a ter um ataque — respondeu Sam, apertando com força o corpo do rapaz.
Atrás deles, os guinchos das criaturas ecoaram pela passagem. Maggie olhou de relance por cima do ombro. As criaturas empilhavam-se junto à entrada, formas contorcidas recortadas na luz do Sol. Mas nenhuma entrou. Nenhuma se atreveu a perseguir as presas que se escapavam pelo túnel.
— Eles não entram aqui — murmurou Maggie. Franziu o sobrolho enquanto se virava. Como Denal, acrescentou em silêncio.
Sam caiu por fim de joelhos, exausto, as pernas a tremer. Pousou Denal. Os olhos do rapaz estavam brancos e a espuma da saliva colava-se-lhe aos lábios. Gorgolejou e engasgou-se.
— Não compreendo o que se passa com ele — disse Sam.
Maggie olhou de relance para trás para os corpos que se contorciam junto à abertura do túnel. Abanou lentamente a cabeça.
Por fim, Denal tossiu ruidosamente. O seu corpo relaxou. Maggie levou os braços ao rapaz, pensando que este estava a morrer. Mas quando lhe tocou, os olhos de Denal voltaram à posição correta. Ele fitou-a, depois sentou-se rapidamente, como quem sai de um pesadelo.
— Que paso? — perguntou em espanhol.
— Tive de te arrastar cá para dentro — disse Sam. — O que aconteceu?
O sobrolho de Denal franziu-se, enquanto se esforçava por regressar ao inglês.
— Ele não me deixava entrar.
— Quem?
Denal levou um dedo à testa, cerrando os olhos.
— Não sei.
Maggie desconfiou da resposta.
— Foi o templo.
Sam olhou para ela por cima da cabeça do rapaz.
— O quê?
Maggie levantou-se.
— Vamos sair daqui.
Sam ajudou o rapaz a erguer-se. Seguiram-na enquanto ela avançava lentamente em direção à saída distante. À sua frente, os dois archotes que ladeavam a alcova dourada, o Templo do Sol dos incas, tremeluziam nos seus nichos na parede.
Enquanto Maggie se aproximava da gruta, foi abrandando e deteve-se, estudando o altar de ouro e a massa entrelaçada de filamentos dourados que cobria o mesmo.
Sam aproximou-se dela, mas os seus olhos ainda observavam cautelosamente o caminho que haviam percorrido, em busca de um qualquer sinal renovado de que estivessem a ser seguidos. Balbuciou enquanto se juntava a ela:
— Se aquele é o céu dos incas, odiaria ver a sua ideia de inferno.
Maggie apontou na direção do Templo de Ouro.
— Acho que é ali mesmo.
Denal recuou, mantendo-se tão longe da divisão brilhante quanto possível.
Sam pôs-se ao lado dela.
— Eu sei. É difícil acreditar que os incas deem os seus filhos a comer àqueles monstros.
— Não, Sam. Não compreendes. Aqueles monstros são os filhos. — Maggie virou-se para Sam. Ignorou a sua expressão de incredulidade. Ela precisava de expressar a sua teoria em voz alta. — O que nos disseram foi que o templo fica com os filhos, os transforma em deuses e os envia para janan pacha. — Maggie apontou na direção do local onde as últimas criaturas ainda se reuniam e gemiam junto à entrada. — Aquelas são as crianças desaparecidas.
— Como... porquê...?
Maggie tocou no ombro de Sam.
— Como te tentei dizer antes, vi Pachacutec sem as suas vestes reais. O seu corpo não tinha pelos, era pálido, sem quaisquer genitais. O seu corpo era tal e qual como uma daquelas criaturas. Como aquela maior a quem dei um tiro. Um dos líderes da matilha.
Sam franziu o sobrolho; os seus olhos brilhavam de incredulidade. Olhou de relance para o templo.
— Estás a dizer que lhe deram, de facto, um novo corpo?
— Na medida do possível. Enquanto Sapa Inca ou rei, foi-lhe dado o corpo de um líder de matilha.
— Mas isso é impossível.
Maggie franziu o sobrolho.
— Tão impossível quanto o joelho curado do Norman? — questionou ela. — Ou a sua visão restaurada? Ou a súbita capacidade para comunicar com os incas? Pensa nisso, Sam! — Ela acenou em direção do templo. — Esta coisa é uma espécie de regenerador biológico. Manteve os incas vivos durante centenas de anos... deu um novo corpo ao líder. Mas porquê? O que a levará a fazer isso?
Sam abanou a cabeça.
Maggie apontou de novo em direção à caldeira onde residiam as criaturas.
— Aquele é o preço da vida eterna. As crianças! Fica com as suas crias e... e não sei... talvez faça experiências com eles. Quem sabe? Mas qualquer que seja o objetivo, o templo utiliza os filhos dos incas como carne para canhão biológica. Os aldeãos não passam de gado numa experiência reprodutiva.
— Então, e o Denal? — perguntou Sam.
Ela olhou de relance para o rapaz. Estava inalterado... na sua maior parte. Lembrou-se da sua relutância em entrar no túnel.
— Acho que o templo necessita de material mais maleável, células genéticas mais antigas, como as dos recém-nascidos. O Denal era demasiado velho. Por isso fez com ele o que faz com todas as suas experiências. Uma vez terminado, instilou nele o imperativo mental de seguir até à próxima caldeira e implantou bloqueios fóbicos em relação ao seu regresso. Viste a incapacidade do Denal em entrar aqui, tal como as criaturas. Desconfio que as criaturas que encontrámos na necrópole há dois dias viajaram desde a caldeira através de outros túneis, talvez em busca de uma saída, e ficaram encurraladas. Acho que as criaturas estão autorizadas a irem para onde quiserem, exceto até à aldeia no vale. Isso é-lhes proibido.
— Mas porquê?
— Porque o templo está a proteger o seu investimento dos seus próprios desperdícios biológicos. Não pode arriscar que algum mal aconteça à sua fonte futura de material genético. Por isso, protege os aldeãos.
— Mas se estas criaturas são um risco, porque não destrói as experiências uma vez terminadas? Porquê deixá-las viver?
Maggie encolheu os ombros.
— Não tenho a certeza. Talvez a caldeira vizinha seja parte da experiência, um terreno de teste natural para as suas criações. Monitoriza como se adaptam e funcionam num ambiente real.
— Então, e a forma como arderam quando as apunhalei?
— Combustão espontânea. Um mecanismo de segurança. Reparaste que os guardas do Denal tinham lanças feitas do mesmo ouro? Um golpe de uma das suas armas, nem que fosse um arranhão, geraria uma cascata de energia. É apenas mais um nível de proteção para os aldeãos.
Sam fitou o templo, o horror crescendo nos seus olhos.
— Continua a parecer uma loucura. Mas tendo em conta o que aconteceu ao Norman, não posso negar que talvez tenhas razão. — Virou-se para Maggie. — Mas se assim for, o que leva o templo a fazer tudo isto? Qual é o seu objetivo? Quem o construiu?
Maggie franziu o sobrolho. Não fazia ideia. Começou a abanar a cabeça quando um novo som irrompeu pelo túnel.
... vomp, vomp, vomp...
Sam e Maggie voltaram-se para o fundo do túnel. O som provinha do vale mais além.
— Vamos — disse Sam entusiasmado. Conduziu-os em passo rápido em direção à luz brilhante do Sol.
Quando chegaram ao final, semicerrando os olhos perante o brilho do final da manhã, Sam apontou.
— Olha! É a cavalaria! — Contornando a neblina sobre as suas cabeças, pairava uma sombra escura. Quando desceu mais, o corpo verde e preto de um helicóptero de transporte militar tornou-se visível.
— O tio Hank! Graças a Deus!
Maggie também suspirou de alívio.
— Vou ficar contente por saber a opinião do professor em relação a tudo isto.
Sam envolveu-a com um braço. Ela não resistiu.
Depois mais ao fundo no vale, um novo som desafiou o ruído dos rotores. Um bater mais rápido: tambores! Aparentemente, os incas também tinham visto o estranho pássaro entrar no seu vale. O forte clangor dos gongos começou a soar através do vale, estridente e furioso.
Maggie olhou para Sam.
— Tambores de guerra.
Sam desfez o abraço; o sorriso desvaneceu-se.
— Não compreendo. O Norman devia ter avisado os incas de que não deviam temer o professor nem os outros.
— Algo deve ter corrido mal.
Sam tinha agora o sobrolho franzido.
— Tenho de chegar junto do meu tio e avisá-lo. — Começou a avançar em direção ao percurso sinuoso.
Em baixo, no vale, o helicóptero descia em direção a um campo plano de quinoa no limite da selva. Os talos das plantas estavam a ser alisados pelos rotores.
Maggie seguiu-o.
— Então, e o Norman? — gritou ela sobre o rugido do helicóptero.
Sam não respondeu, mas começou a avançar mais depressa.
Norman escondeu-se no limite da floresta, enquanto o helicóptero aterrava no prado verde mais além. Manteve-se escondido atrás das folhas de um arbusto espinhoso; minúsculas formigas verdes marchavam ao longo de uma fronde, em frente aos seus olhos, demasiado ocupadas para se importarem com o ritmo matraqueado do helicóptero, ao mesmo tempo que os patins tocavam no solo.
Norman, contudo, sentia cada vomp a matraquear no fundo do seu peito. Estremecendo, rezou para que estivesse enganado e esperou ter interpretado erradamente as palavras do professor Conklin.
— Depois de tudo o que aconteceu na última semana — balbuciou para si mesmo —, talvez esteja só a ser paranoico.
Ainda assim, Norman permaneceu escondido, enquanto a cabina dos passageiros do helicóptero se abria. Em parte, sabia que não estava errado. O professor tinha tentado avisar Norman sobre alguma coisa. Mas o quê?
A resposta depressa se tornou clara. Uma mistura de homens, uns envergando fardas e camuflados para a selva, outros envergando os hábitos castanhos dos monges, emergiu do helicóptero. Os homens moviam-se com demasiada eficácia, incluindo os monges, para serem uma simples equipa de resgate. Caixas de equipamento foram retiradas de uma escotilha e abertas. Norman viu espingardas de assalto serem passadas de mão em mão. Vários homens ajoelharam-se e prenderam lança-granadas às suas armas.
Norman agachou-se ainda mais. Oh, céus! Não fora suficientemente paranoico.
Das profundezas da selva, os tambores e os gongos que se tinham feito ouvir na aldeia inca silenciaram-se. Norman susteve a respiração. Estava feliz por ter avisado Pachacutec para preparar a aldeia. Caso não houvesse perigo, Norman acompanharia o professor até à aldeia, impedindo qualquer derramamento de sangue e fazendo as apresentações.
Norman considerou a possibilidade de regressar de imediato à aldeia. Os incas estavam preparados para hostilidades, mas não para aquilo. Devia avisá-los para que fugissem. Mas Norman sabia que Pachacutec jamais o faria. Os dois tinham partilhado uma longa caminhada naquela manhã, e tornara-se evidente que o rei inca não admitiria qualquer desafio à autonomia da tribo. Pachacutec não fugiria.
Por isso, Norman manteve-se escondido, espreitando por entre os ramos frondosos daquele posto de vigia. O líder dos homens, um tipo rotundo que envergava um fato de safari com chapéu a condizer, vociferava ordens e alinhava os homens para marcharem sobre a aldeia. Os homens foram rápidos a obedecer. Dez minutos apenas depois de os patins de aterragem terem tocado no chão, a equipa de assalto estava a caminho. Operavam com uma precisão militar.
Um par de homens assumiu a dianteira. Agachando-se, saíram a correr de debaixo das lâminas do helicóptero rumo ao trilho que conduzia à aldeia. Aquando do reconhecimento aéreo, Norman estava certo de que os trilhos serpenteantes até à aldeia tinham sido mapeados. Os outros quatro homens seguiram-no mais lentamente, com cautela, armas a postos. O líder volumoso, de rosto rubro e coberto de suor, avançou atrás deles, armado com uma pistola e flanqueado apenas por um guarda que o protegia.
Norman esperou até todo o grupo ter desaparecido na selva para, por fim, respirar. Deixou-se ficar sentado, encurvado, sem saber ao certo o que fazer. Tinha de contactar Sam. Tentar espreitar na direção da face do penhasco onde ficava o túnel para o templo não lhe permitia determinar nada em relação ao seu destino. A selva bloqueava-lhe a visão.
Talvez se conseguisse atravessar a selva...
Começara a mudar de posição quando novas vozes o fizeram parar. Estremeceu, meio agachado. Do lado oposto do helicóptero, dois outros homens desceram do interior. Norman reconheceu de imediato o professor. Tinha a barba por fazer e parecia que já usava as mesmas roupas há alguns dias, mas era impossível confundir a sua postura orgulhosa.
Henry deu um passo em frente, tropeçando, empurrado sob ameaça de arma por um homem alto, moreno, envergando o hábito de um monge. O atirador tinha cabelo escuro e um franzir de sobrolho ainda mais sombrio. Uma cruz de prata cintilava-lhe no peito.
Norman não compreendia toda aquela parafernália religiosa. Claramente, tratava-se de um ardil.
As vozes chegaram até ele enquanto a dupla se afastava mais do helicóptero.
— Vai cooperar em pleno connosco — disse o homem de ar sombrio — ou o seu aluno que ficou na escavação sofre um destino igual ao da sua amiga.
Norman viu os ombros de Henry abaterem-se ligeiramente, em sinal de derrota. Assentiu com a cabeça.
A partir do seu esconderijo, Norman cerrou os punhos em sinal de frustração. O atirador estava decerto a referir-se a Philip. O aluno de Harvard deveria estar a ser mantido como refém no acampamento.
— Os prisioneiros serão reunidos e interrogados — prosseguiu o homem. — O professor vai ajudar nos interrogatórios.
— Compreendo — ripostou Henry. — Mas se fizerem mal ao meu sobrinho ou a qualquer um dos outros, podem ir todos à merda.
O sobrolho do homem ensombrou-se ainda mais, mas limitou-se a recuar. Usou a mão livre para sacar um cigarro.
Norman mudou de posição. Deslizou para o lado, a mão tocando num pedaço de rocha vulcânica. Apertou a rocha e voltou a fitar o homem solitário que mantinha o professor cativo. Norman libertou a rocha vermelha. Se deslizasse pela orla de basalto, poderia deixar o helicóptero entre ele e o guarda. Norman já começara a mover-se, deslizando pelo limite da floresta. Sabia que até o piloto do helicóptero partira com a equipa de assalto, deixando apenas aquele guarda. Era um risco, mas que poderia salvá-los a todos. Se conseguisse libertar o professor, poderiam fugir juntos e reunir-se com o grupo de Sam.
Norman posicionou-se em frente ao rebordo dobrado de basalto vulcânico, inspirou fundo, depois escapou da cobertura da selva e correu pelo campo aberto ao longo de uns metros de modo a alcançar a cobertura da orla. Mergulhou para as sombras acolhedoras, esperando que as balas começassem a pontilhar o chão atrás de si, certo de que tinha sido visto. Nada aconteceu. Apoiou-se na rocha áspera por um instante. Ergueu o pedaço de pedra vulcânica, questionando, de súbito, a inteligência de tal ideia. Antes que o medo o imobilizasse, avançou, movendo-se como um caranguejo pelas sombras da orla de basalto.
Uma vez convencido de que avançara o suficiente, arriscou espreitar rapidamente sobre a borda. Tinha razão. O helicóptero encontrava-se entre ele e o atirador. Norman trepou pela borda tão silenciosamente quanto possível. O raspar suave da pedra soou explosivamente sonoro, mas Norman sabia que estava tudo na sua cabeça. Por outro lado, já não podia voltar atrás. Encontrava-se a céu aberto.
Correu com a pedra apertada contra o peito, o coração batendo tão alto que até os incas na aldeia o ouviriam. Mas chegou às sombras do helicóptero. Ajoelhou-se e viu os pés dos outros dois homens no lado oposto. Pareciam alheados da sua presença.
Arrastando-se por baixo do helicóptero, Norman contornou os depósitos de combustível extra. As hastes de quinoa faziam-lhe cócegas nos braços enquanto se esgueirava para o outro lado do helicóptero. À sua frente, tanto o professor como o atirador encontravam-se de costas para ele. O par fitou a selva. O guarda de hábito exalou uma longa pluma de fumo.
Sustendo a respiração e mordendo o lábio, Norman avançou em silêncio. Ou se aproximaria lentamente, assim evitando quaisquer obstáculos... ou limitar-se-ia a correr como um louco sobre a sua presa. Mas Norman não confiava que as pernas trémulas tivessem velocidade. Por isso, avançou cautelosamente, colocando um pé à frente do outro, aproximando-se do atirador.
Estava a pouca distância quando se gerou o caos.
As explosões abalaram de súbito o vale. O centro da selva foi projetado para o céu, pedaços flamejantes chovendo de novo sobre ele.
Norman arquejou perante o que via, incapaz de impedir uma reação de surpresa.
Quando o ouviu, o atirador rodou sobre um calcanhar e agachou-se.
Norman deu por si a fitar o cano de uma pistola de aspeto feroz.
— Larga-a! — ordenou o homem.
Não eram precisas palavras. A pedra na mão de Norman já lhe caía dos dedos trôpegos.
A partir da selva, os gritos e uivos ecoavam. O som dos disparos assemelhava-se ao chocalhar de uma caneca cheia de dentes.
Por cima da cabeça do homem, Norman viu Henry. Tinha estampado no rosto uma expressão de desalento e derrota.
Norman curvou-se, com igual expressão.
— Lamento, professor.
Sam cambaleou até se deter quando ouviu a primeira explosão trespassar o vale. Agachou-se ligeiramente perante a chuva de detritos flamejantes.
— Mas o que...?
Denal também se agachou.
Maggie estava junto ao ombro de Sam, de olhos muito abertos.
— Estão a atacar a aldeia!
Sam manteve-se baixo.
— O tio Hank jamais faria isso.
— E se não for o professor? — perguntou Maggie. — Talvez outra pessoa tenha visto os sinais de fogo. Ladrões. Huaqueros. Talvez até os mesmos sacanas que tentaram abrir um túnel para a nossa escavação a semana passada. Talvez tenham intercetado as nossas mensagens de rádio e chegado cá antes do tio Hank.
Sam baixou-se na encosta.
— O que vamos fazer?
O olhar de Maggie era feroz.
— Detê-los. — Apontou para o helicóptero que repousava no campo, meio obscurecido por uma península de selva. — Inutilizamos aquilo e os ladrões não terão para onde ir. Depois, contactamos o professor e avisamo-lo de que deve vir com a polícia ou o exército. — Maggie virou-se para Sam. — Não podemos deixar que matem e pilhem o que aqui encontrámos.
Sam ia acenando com a cabeça às suas palavras.
— Tens razão. Temos, no mínimo, de tentar. — Levantou-se. — Vou fazer o reconhecimento do local. Ver o que se passa.
— Não — argumentou Maggie. — Ficamos juntos.
Sam franziu o sobrolho, mas a expressão de Maggie não se alterou.
Até Denal acenou com a cabeça.
— Eu também ir. — Sam viu a forma como o rapaz olhou de relance para a entrada do túnel. Denal não estava a ser heroico; só não queria ficar sozinho... em especial nu e desarmado.
Sam ergueu-se e analisou o vale.
Os disparos das armas automáticas ecoavam a partir da selva. Outras explosões irrompiam ocasionalmente, lançando para o céu árvores e pedras. Por entre os disparos, os sussurros dos gritos de guerra incas misturavam-se com os gritos dos moribundos. O fumo erguia-se e atravessava a selva.
— Muito bem — disse Sam. — Vamos todos. Mas mantenham-se juntos e em silêncio. Vamos esgueirar-nos até ao limite da floresta e aproximar-nos do helicóptero tanto quanto possível. Descobrir se está guardado.
Maggie concordou com um aceno de cabeça e fez-lhe sinal para que avançasse.
Sam apressou-se a descer o que restava do trilho serpenteante e conduziu-os através da escarpa de pedregulhos vulcânicos e arbustos rasteiros. Em breve, as sombras da selva engoliam o trio. Sam levou um dedo aos lábios e guiou-os com gestos. No seio da floresta, os sons dos confrontos tornavam-se abafados.
Agachando-se, Sam escolheu um caminho através da folhagem. Tinham de alcançar o helicóptero antes de os ladrões conquistarem por completo a aldeia. Sam rezou para que fosse possível encontrar algumas armas no helicóptero. Se queriam controlar o vale até à chegada do tio Hank, precisavam do seu próprio poder de fogo.
A selva mergulhada nas sombras tornava-se mais luminosa um pouco à frente. Era o limite da floresta. Sam abrandou a sua aproximação. Aquele não era o momento para ser apanhado. Fez sinal aos outros para que ficassem onde estavam. Apenas Sam percorreu o resto do caminho. No preciso instante em que os seus dedos afastavam a grande folha de um feto selvagem, ouviu uma voz familiar.
— Deixe o rapaz em paz, Otera! Não há razões para o magoar.
Tio Hank!
Sam puxou a folha para trás, permitindo-lhe ver o prado à sua frente. O grande helicóptero militar estava agachado como um gafanhoto monstruoso num campo de quinoa. Contudo, um pouco mais perto uma imagem gelou o sangue de Sam. O tio erguia-se perante um homem que envergava o hábito de um monge, mas aquele homem não era discípulo de Deus. Empunhava na mão direita uma pistola de grandes dimensões. Sam, familiarizado com armas, reconheceu-a como uma Astra espanhola, com um calibre Magnum .357. Tratava-se de uma arma capaz de deter um touro em carga, e estava apontada ao peito do tio.
Por cima do ombro do tio, Sam viu um terceiro elemento do seu grupo. Era Norman! O rosto do fotógrafo estava pálido de medo.
O homem chamado Otera fitava, furioso, o tio de Sam.
— Desde quando é que dá as ordens? — De repente, desferiu um golpe com a arma e atingiu Norman no rosto. O fotógrafo caiu de joelhos, o sangue a escorrer-lhe da testa.
— Deixe-o em paz! — disso o tio Hank, contornando-o para proteger Norman.
Otera, de costas agora ligeiramente viradas para Sam, ergueu a pistola.
— Acho que já não nos é útil, velho. De acordo com as vossas mensagens, estes estudantes sabem onde está escondido o ouro. Por isso, quanto a este tipo aqui, não vejo qualquer necessidade de o manter por perto. — Sam ouviu, claramente, o som da arma a engatar.
Oh, céus! Em pânico, Sam deslizou do seu esconderijo e correu através do campo molhado.
O movimento chamou a atenção do tio. Os olhos de Henry abriram-se em sinal de surpresa. Sam viu o esforço que o tio fez para refrear qualquer outra reação, mas até aquele pequeno movimento foi detetado.
Otera virou-se precisamente quando Sam o alcançava, a arma à altura do peito deste. Sam gritou e saltou sobre ele, depois a explosão de um tiro feriu-lhe os ouvidos. Sam foi projetado para trás, para longe do captor do seu tio. Aterrou no campo de costas.
— Não! — ouviu o tio gritar.
Sam tentou erguer-se sobre os cotovelos, mas constatou que não se conseguia mover. Nem mesmo respirar. Era como se lhe tivessem posto um peso enorme em cima do peito. A dor dilacerou-o em todas as direções. Pelo canto do olho viu o tio a saltar sobre as costas do atirador de hábito, agarrando-se a ele e derrubando-o.
Sam sorriu perante a coragem do velho. Assim é que é, tio Hank.
Depois, tudo ficou às escuras.
A poucos metros de distância, Maggie viu Sam irromper de súbito do seu esconderijo para céu aberto. O que estava aquele idiota a fazer? Correu em frente, com Denal ao seu lado. Ao chegar ao local onde Sam estivera escondido, o estalar de um tiro solitário fez-se ouvir do outro lado do feto frondoso.
Em pânico, Maggie afastou as folhas. Viu Sam cair no prado, os braços a estremecer espasmodicamente. Mesmo do local onde se encontrava, podia ver o sangue que escorria da enorme ferida no peito. Cega a tudo o resto, abandonou o seu esconderijo. Não iria voltar a esconder-se numa vala enquanto um amigo morria.
— Sam!
Enquanto corria, apercebeu-se, de súbito, da luta que se desenrolava para lá do corpo do texano. Não fazia sentido. O professor estava sentado sobre as costas de um monge que se debatia. A arma, que ainda fumegava na relva húmida, estava não muito distante do alcance do homem. De súbito, como que num sonho, Norman apareceu vindo de lado nenhum. Segurava uma pedra vermelha enorme sobre a cabeça. Fê-la abater-se com um golpe ressoante sobre a cabeça do homem preso. O corpo do homem ficou flácido e o professor Conklin saiu de cima dele.
Iniciou-se então uma corrida para ver quem conseguia chegar primeiro junto de Sam.
O tio de Sam ganhou. Caiu de joelhos ao lado do sobrinho.
— Oh, não... oh, meu Deus!
Norman e Maggie alcançaram-no em simultâneo.
Deixando-se cair de joelhos, Norman estendeu a mão para lhe sentir o pulso. Maggie deixou-se cair mais devagar. Viu os olhos vidrados com que Sam fitava os céus. Percebeu que já não estava lá; os olhos estavam vazios.
Norman limitou-se a confirmá-lo.
— Está morto.
Sob a ameaça de uma arma, Joan avançou até à parede das correntes. Sabia que, se permitisse que a prendessem àquela masmorra, seria uma mulher morta; qualquer esperança de escapar desapareceria. A mente redemoinhou com vários planos e cenários. Apenas uma ideia lhe ocorreu.
Enquanto a pistola de frei Carlos a espicaçava a avançar, levou os dedos à gola. Deslizou o pedaço de plástico que suportava a gola e puxou para a palma da mão uma das suas amostras em forma de lágrima da Substância Z.
Tinha de cronometrar aquilo na perfeição. A caminho da parede, aproximou-se um pouco mais do monge entroncado que ainda atiçava o braseiro flamejante. Este debruçava-se sobre o seu trabalho, virando as brasas luminescentes com um ferrete. Joan apercebeu-se da ligeira bolha de saliva no canto dos lábios. Aquele brutamontes de membros grossos claramente ansiava por testar os seus ferros na pele dela. Ele viu-a a olhar e sorriu, numa demonstração de desejo.
De súbito, Joan não sentiu culpa alguma pelo que estava prestes a fazer.
Ao passar por ele, lançou o pedacinho de metal para o braseiro, depois virou-lhe as costas e baixou-se, e ainda bem que o fez. A explosão revelou-se mais violenta do que antecipara. Foi projetada para a frente, caindo sobre o chão de pedra, e deslizou de gatas. Sentiu um ardor nas costas. O cheiro a seda queimada agarrou-se-lhe ao nariz.
Atrás dela, o braseiro era uma ruína retorcida. Os ferros de marcar estavam espalhados; um deles até se espetara num dos pilares de madeira que sustentavam a estrutura. O eco da explosão desvaneceu-se lentamente nos seus ouvidos, o zumbido substituído por um uivo de dor. O seu olhar deslizou para o monge corpulento. Estava deitado de costas a vários metros de distância. O peito despido queimado e repleto de bolhas. Ergueu uma mão e afastou um pedaço de carvão de cima da barriga, gemendo. O homem sentou-se, um dos lados do rosto enegrecido. A princípio Joan pensou que era apenas fuligem; depois o homem gritou e a pele queimada abriu-se, crua e vermelha. O sangue escorreu-lhe pelo pescoço.
Oh, meu Deus. Ela desviou o olhar.
Carlos, que não ficara ferido, já se levantara. Avançou até um telefone na parede e vociferou em espanhol. Um pedido de ajuda. Uma vez terminado, desligou o telefone com violência e passou por cima do homem ferido. O homem agarrou-se à perna das calças de Carlos, mas o frade sacudiu a perna para se soltar, e avançou para Joan.
Apontou-lhe a arma.
— De pé.
Joan levantou-se, arquejando quando a blusa queimada se descolou das suas costas. Carlos franziu o sobrolho e obrigou Joan a virar-se para poder ver os seus ferimentos.
— Vai sobreviver — disse.
— Mas durante quanto tempo? — perguntou Joan com uma expressão amargurada. — Até à próxima vez em que decida matar-me? — Joan apontou para a divisão. — O que aconteceu?
Carlos franziu o sobrolho para o homem que gemia no chão.
— Um aprendiz. Parece que ainda tem muito a aprender.
Joan curvou a cabeça, escondendo o seu sorriso de satisfação. Carlos culpava o monge pela explosão. Ótimo. Agora, rumo ao passo seguinte do seu plano. Da gola retirou uma segunda gota de ouro com uma unha, depois levou a mão ao bolso. Com os dedos retirou do interior o cigarro que Carlos lhe dera no dia anterior. Com os dedos trémulos, levou-o aos lábios.
— Importa-se? — perguntou, erguendo o rosto.
Ele franziu o sobrolho, fitando o monge que gemia com uma expressão dura.
— Força. Teremos de esperar alguns minutos antes que venham buscá-lo. — Ele estendeu um braço e revelou a presença de um isqueiro entre os dedos.
Curvando-se, Maggie acendeu o cigarro, depois acenou o seu agradecimento. Deu uma longa passa, suspirando com apreço e ruidosamente.
— Assim está melhor — disse pesadamente, exalando na direção de Carlos.
Joan viu-o fitar a ponta ardente do cigarro. As pupilas dilatadas perante o cheiro da nicotina.
Deu uma segunda passa, depois passou-lhe o cigarro, deixando sair languidamente o fumo.
— Tome. Obrigada, mas para mim chega.
Ele aceitou a oferta com um sorriso tenso.
— Está preocupada com a sua saúde?
Ela encolheu os braços, demasiado tensa para confiar na sua voz. Vislumbrou um cintilar do ouro do lado de baixo do cigarro, a meio centímetro da ponta brilhante.
— Divirta-se — acabou por dizer.
Carlos ergueu o cigarro numa saudação de agradecimento. A seguir, sorriu e levou-o aos lábios. Joan deu um ligeiro passo atrás, virando um pouco os ombros.
Viu o frade puxar demoradamente uma passa. A ponta ficou vermelha do calor enquanto ardia em direção ao filtro. Joan saltou para longe, quando o papel branco flamejou na direção da mancha dourada.
A explosão, desta vez, não foi tão forte.
Ainda assim, fê-la cair de joelhos.
Joan virou-se, a cabeça a zumbir devido à explosão. Carlos ainda estava de pé, mas o seu rosto era uma cratera fumegante. O homem caiu para trás, aterrando em cima do monge queimado, que agora gritava de terror.
Joan rebolou para se erguer e recuperou do chão a Glock do frade. Avançou até ao monge uivante. Agachando-se, verificou fugazmente as suas queimaduras. Tinha queimaduras de terceiro grau sobre sessenta por cento do seu corpo. Ele agitou-se sob o toque dela, gritando. Ela levantou-se. O tipo era um homem morto, só não o sabia ainda. Não sobreviveria àquelas queimaduras.
— Afinal, não é assim tão divertido brincar com o fogo, pois não? — balbuciou.
Joan ergueu a pistola e apontou para o ponto entre os olhos dele. O monge fitou-a aterrorizado, depois desmaiou. Suspirando, Joan baixou a Glock. Não conseguia fazer aquilo, nem mesmo para lhe dar um fim rápido. Afastou-se.
O tempo era fundamental. Ela tinha uma arma e um último pedacinho de ouro. Nada a ia impedir de escapar. Ergueu a pistola e afastou-se dos dois corpos prostrados. Fitou por um momento o cadáver do frade.
— Tinha razão, Carlos — disse, virando-se para a porta. — Fumar mata.
Maggie tocou no ombro de Henry, que se ajoelhava sobre o corpo do sobrinho. Os seus ombros eram agitados por soluços de dor. Maggie não tinha palavras que lhe permitissem aliviar-lhe a dor. Os seus anos em Belfast tinham-lhe ensinado isso mesmo. De ambos os lados do combate, irlandeses e ingleses, católicos e protestantes, não passavam de pais e mães de luto. Era tudo tão disparatado. Tão louco.
Atrás dela, os disparos continuavam através da selva, embora por essa altura se tivessem transformado em estouros esporádicos. Os combates mais intensos já tinham terminado. Os incas não tinham a menor hipótese contra tamanho armamento.
Maggie fitou Sam, incapaz de olhar para a ferida irregular, para o sangue. Deu pelo seu olhar a repousar-lhe no rosto. O seu chapéu Stetson tinha caído juntamente com ele. Parecia quase nu sem ele. O cabelo louro despenteado estava empapado e desgrenhado, como se dormisse. Estendeu o braço e tocou numa leve madeixa, prendendo-lha atrás da orelha. As lágrimas que refreara começaram por fim a correr. A sua visão toldou-se.
Henry tomou-lhe a mão, sentindo a sua dor, necessitando também ele de apoio. Os seus dedos frios envolveram-se nos dela. Faltavam-lhe as palavras, mas o contacto humano acalmara-os. Maggie apoiou-se no professor.
— Oh, Sam... — A voz falhou-lhe.
Norman ajoelhou-se junto ao corpo de Sam. Atrás dele, Denal erguia-se quieto. O corpo nu estava agora coberto com o poncho de Norman, deixando o fotógrafo a envergar apenas um par de calções que lhe davam pelos joelhos. Norman pigarreou e falou:
— Maggie, então e o templo? — disse baixinho. — Talvez... talvez pudesse... — Encolheu os ombros.
Maggie ergueu os olhos lacrimejantes.
— O quê?
Norman apontou para o corpo de Sam.
— Lembra-te da história de Pachacutec.
O horror substituiu a tristeza. Os seus olhos abriram-se muito. Recordou o corpo pálido do Sapa Inca e lembrou-se do que estava para lá do vale. Lentamente, abanou a cabeça. O templo não era a sua salvação. Não conseguia imaginar-se a entregar o corpo de Sam a algo assim.
Henry falou, a voz rouca das lágrimas.
— Que... que templo?
Norman apontou para a parede vulcânica.
— Lá em cima! Algo que os incas encontraram. Uma estrutura que cura. — Norman ergueu-se e expôs o joelho. Falou-lhe do ferimento que sofrera.
O rosto do professor revelou incredulidade. Virou-se para Maggie em busca de confirmação.
Ela assentiu lentamente com a cabeça.
— Mas o Sam está m... morto — disse Henry.
— E o rei fora decapitado — contrapôs Norman. Olhou para Maggie em busca de apoio. — Devemos ao Sam pelo menos a tentativa.
Henry levantou-se quando outra granada explodiu e a troca de tiros voltou a intensificar-se. Os disparos estavam muito mais próximos.
— Não podemos arriscar — disse em tom firme. — Tenho de vos esconder a todos. É a nossa única hipótese de sobreviver.
Maggie tinha deixado de ouvir depois da palavra esconder. Uma parte de si queria concordar com o professor. Sim, corre, esconde-te, não deixes que te apanhem. Mas havia algo de novo no seu coração que não o permitia. Fitou o rosto imóvel de Sam. Uma lágrima solitária repousava-lhe no rosto. Estendeu um dedo e limpou-a. Patrick Dugan, Ralph, os seus pais... e agora Sam. Estava farta de se esconder da morte.
— Não — disse Maggie baixinho. Estendeu um braço e agarrou no Stetson de Sam que havia caído na relva húmida, depois virou o rosto para os outros. — Não — disse num tom mais firme. — Levamos o Sam ao templo. Não vou permitir que ganhem.
— Mas...
Maggie levantou-se.
— Não, professor, esta é a nossa escolha. Se houver sequer uma hipótese de salvarmos o Sam, temos de tentar!
Norman assentia com a cabeça.
— Vi uma maca no helicóptero quando fui buscar a corda para atar o monge.
Maggie olhou de relance para o homem que disparara sobre Sam e que permanecia inconsciente na relva. Tinha a respiração entrecortada, a sua palidez ainda mais vincada. Provavelmente, morreria devido ao golpe no crânio, mas como precaução extra tinham-lhe prendido pernas e braços. Não o amordaçaram, principalmente devido à sua dificuldade em respirar. Sentiu o peito cingir-se com a raiva só de olhar para ele. Desviou o olhar para o helicóptero.
— Vai buscar a maca!
Norman e Denal apressaram-se para a porta aberta do helicóptero.
Henry colocou-se ao lado dela.
— Maggie, o Sam está morto. Além de isto ser errado, o mais provável é que todos nós morramos.
Maggie fez frente ao professor.
— Estou farta de me esconder em valetas — disse. Lembrou-se das palavras cortantes de Sam na última noite, quando ela resistira a ir escutar o que diziam o xamã e o rei. Tentara justificar a sua relutância, mas Sam aproximara-se mais da verdade. Mesmo nessa altura, fora guiada pelo medo, mas não mais seria assim. Enfrentou Henry. — Vamos fazer isto — disse, com firmeza.
Norman e Denal chegaram com a maca do exército de cor caqui, pondo fim a qualquer discussão. Henry franziu o sobrolho mas ajudou a erguer Sam para a maca. Em breve estavam a caminho. Henry parou apenas para recolher a pistola do monge de entre as ervas e para a prender na cintura.
Entre os quatro revelou-se relativamente fácil gerir o peso de Sam. Ainda assim, a subida através do caminho serpenteante parecia interminável. O medo persistente de Maggie e a necessidade de velocidade pareciam estender interminavelmente o tempo. Uma vez alcançado o túnel, olhou para o relógio. Tinham decorrido vinte minutos. Mas até isso era demasiado. Os tiros que até então se tinham feito ouvir na selva silenciaram-se ominosamente.
— Depressa — disse Maggie. — Temos de nos esconder.
Com um esforço de braços e pernas, mergulharam na escuridão da passagem.
— Já estamos quase lá — disse, em tom de encorajamento. — Vamos.
Mais à frente, os archotes brilhavam ainda à entrada da câmara de ouro, embora agora já só crepitassem. Ao chegarem ao templo, Maggie ouviu o professor arquejar atrás dela. Virou-se, ajudando a baixar Sam.
Henry fitou boquiaberto a câmara, com uma expressão algo doentia.
— É el Sangre del Diablo — balbuciou, pousando Sam.
Maggie sabia espanhol suficiente para franzir o sobrolho perante as suas palavras.
— O sangue do Diabo?
— Foi disto que os homens do abade vieram à procura. O filão...
Norman interrompeu:
— Precisamos de meter ali o Sam. Tenho a certeza de que existe um fator temporal envolvido em toda esta questão da ressurreição.
Henry assentiu com a cabeça.
— Mas o que fazemos? Como é que fazemos com que resulte?
Todos se entreolharam. Ninguém tinha uma resposta.
O fotógrafo apontou para a câmara.
— Não tenho nenhum manual do utilizador. Mas há um altar. Eu diria que a primeira coisa a fazer é estender lá o Sam.
Henry anuiu.
— Vamos a isso.
Ergueram Sam, cada um deles segurando num membro, e baixaram-no sobre o altar de ouro. Maggie sentiu um arrepio ao entrar na câmara. Era como se mil olhos a fitassem. Os seus dedos deslizaram pela superfície do altar enquanto pousava Sam. Afastou repentinamente a mão. A superfície parecera-lhe quente, como algo vivo.
Com um estremecimento, saiu da sala, a par dos outros. Mantendo-se na passagem, ficaram todos a olhar, enfeitiçados, à espera de que algo acontecesse, que ocorresse um qualquer milagre. Nada aconteceu. O corpo de Sam ficou ali inerte, no altar. O seu sangue pingava-lhe lentamente da ferida do peito e escorria pelo lado do altar.
— Se calhar demorámos demasiado tempo — disse Maggie por fim, quebrando o encantamento.
— Não — disse Norman. — Não creio. O Kamapak levou meio dia a trazer até aqui a cabeça decapitada de Pachacutec, mas o templo, ainda assim, dotou-o de um novo corpo.
— Mais ou menos — contrapôs Maggie. Virou-se para Norman. — O que fez o Kamapak depois de ter trazido para aqui a cabeça? Havia alguma pista?
Norman respondeu num tom soturno:
— Tudo o que ele disse foi que tinha rezado a Inti, e que o deus lhe respondeu.
Maggie franziu o sobrolho.
Henry retesou-se então ao lado dela.
— Claro!
Ela virou-se para o professor.
— São as orações! Pensamento humano concentrado! — Henry fitava-os como se isso fosse resposta suficiente. — Este... este ouro, o sangue do Diabo, o que raio seja... responde ao pensamento humano. Molda-se e altera-se de acordo com a nossa vontade.
Era agora a vez de Maggie erguer as sobrancelhas em choque, mas lembrou-se da transformação do punhal de Sam. Este alterara-se à medida que as necessidades o ditavam. Lembrou-se de como se transformara nas suas próprias mãos, quando se sentiu tremendamente desesperada por uma chave que abrisse a estátua de ouro da necrópole.
— Orações?
Henry assentiu com a cabeça.
— Tudo o que temos de fazer é concentrarmo-nos. Pedir-lhe... implorar-lhe que cure o Sam!
Norman ajoelhou-se, unindo as palmas das mãos.
— Não me importo de implorar.
Henry e Maggie seguiram-lhe o exemplo. Maggie fechou os olhos, mas os seus pensamentos estavam confusos. Lembrou-se das criaturas pálidas na câmara ao lado. E se algo assim acontecesse a Sam? Cerrou os punhos. Não permitiria que isso acontecesse. Se as orações funcionavam, então permitiria que os outros pedissem cura. Ela concentrar-se-ia em impedir que o templo concretizasse quaisquer «melhoramentos» adicionais.
Com todas as suas forças, desejou que curasse os ferimentos de Sam, mas apenas os seus ferimentos. Mais nada! Ficou tensa, os nós dos dedos brancos. Mais nada, maldito! Estás a ouvir-me?
Denal arquejou de súbito atrás do ombro dela.
— Olha!
Maggie abriu os olhos.
Sam estava deitado no altar, imóvel, mas a bola de filamentos entretecidos começara a desenrolar-se, a abrir-se. Milhares de fios dourados serpenteavam e libertavam-se do ninho para se tecer e entrelaçar no ar. As pontas dividiam-se em filamentos ainda mais finos, depois estes voltavam a dividir-se. Não tardou a que os filamentos ficassem tão finos que toda a divisão parecia repleta de uma bruma dourada. Em seguida, como a chegada de um denso nevoeiro, a nuvem dourada desceu sobre o corpo de Sam. Em poucos segundos, a sua forma estava coberta da cabeça aos pés com o metal, transformando Sam numa escultura de ouro. E mesmo assim o ouro parecia fluir. Como um cordão umbilical brilhante, uma corda grossa entrelaçada ligava a estátua de ouro de Sam a um nó por cima do altar. O cordão contorcia-se e bombeava como uma escultura viva.
Maggie sentia-se ligeiramente doente perante tal visão. Levantou-se; Henry e Norman em breve a seguiram.
— O que acham disto? — perguntou Henry. — Vai funcionar?
Ninguém respondeu.
— Quanto tempo irá demorar talvez seja uma pergunta mais adequada — frisou Norman. — Não acredito que o exército lá em baixo nos vá dar o dia todo.
Henry anuiu com a cabeça.
— Precisamos de pensar numa forma de defesa. Há outra saída? — O professor olhou de relance para o túnel em direção a outra caldeira.
— Não por esse lado — disse Maggie.
Henry virou-se e esfregou os olhos cansados.
— Então, vamos precisar de armas — balbuciou. — Vi uma caixa extra de granadas no helicóptero, mas... — O professor abanou a cabeça amargamente.
Norman ergueu a voz.
— Granadas parecem-me bem, professor. De preferência muitas.
— Não — disse Henry. — É demasiado arriscado voltar lá abaixo.
— E é demasiado arriscado não voltar — argumentou Norman. — Se for rápido e cuidadoso...
Denal acrescentou:
— Eu também ir. Eu ajudar a carregar. Caixa pesada.
Norman assentiu com a cabeça.
— Juntos, vai ser canja. — Já se afastava com o rapaz.
— Tem cuidado — avisou Maggie.
— Oh, podem contar com isso! — disse Norman. — A National Geographic não oferece subsídio de combate. — A seguir, ele e o rapaz desapareceram, apressando-se pelo corredor.
Henry voltou a fitar o templo. Balbuciou:
— A estrutura deve estar a utilizar o calor geotérmico como fonte de energia. Isto é espantoso.
— Eu diria que é horrível. Compreendo o porquê de frei de Almagro lhe ter chamado a Serpente do Éden. É sedutora, mas sob o seu encanto jaz algo feio.
— A Serpente do Éden? — Henry franziu o sobrolho. — Onde encontraram essa expressão?
— É uma longa história.
O professor apontou com a cabeça para o templo.
— Temos tempo.
Maggie anuiu. Tentou resumir a viagem, mas algumas partes eram particularmente difíceis de recordar, como a morte de Ralph. O rosto de Henry ensombrou-se e ficou sério perante a narrativa. No final, Maggie falou das criaturas e dos monstros que assombravam o vale vizinho. Explicou a sua teoria, terminando com a sua derradeira avaliação.
— Não confio no templo. Perverte tanto quanto cura.
Henry fitou o longo corredor em direção à luz solar distante.
— Então o frade tinha razão. Tentou avisar-nos em relação ao que aqui se encontra. — Agora era a vez de Henry contar a sua própria história, do tempo que passara com os monges da abadia de Santo Domingo. A sua voz quebrou-se ao referir a patologista forense Joan Engel. Mais uma morte numa luta de vários séculos pela posse deste estranho ouro. Mas Maggie apercebeu-se da dor adicional por trás das palavras do professor, uma parte da história que ficara por contar. Não insistiu.
Uma vez terminado, Henry limpou o nariz e virou-se para o templo.
— E por isso os incas construíram aqui aquilo que o abade sonhou. Uma estrutura suficientemente grande para alcançar uma qualquer força do outro mundo.
— Mas será esta a moeda de Deus? — perguntou ela, acenando na direção de Sam. — Ou o sangue do diabo? — Olhou de relance para a caldeira ao lado. — Qual é o seu derradeiro objetivo? Qual o propósito daquelas criaturas?
Henry abanou a cabeça.
— Uma experiência? Talvez para nos fazer evoluir? Talvez para nos destruir? — Encolheu os ombros. — Quem sabe que inteligência guia as ações do templo. Podemos nunca vir a saber.
Vozes abafadas e o raspar do calcanhar numa rocha chamaram-lhes a atenção. Era demasiado cedo para que Norman e Denal estivessem de regresso. As lanternas cegaram-nos subitamente a partir da entrada do túnel. Foi-lhes gritada uma ordem:
— Não se mexam!
Maggie e Henry permaneceram imóveis. O que mais poderiam fazer? Não havia como escapar-lhes. Mas, na verdade, também não estavam dispostos a abandonar Sam. Esperaram pela aproximação dos seus captores.
— Obedeça-lhes — avisou Henry.
O diabo é que obedeço! Mas permaneceu em silêncio.
Um homem enorme, que pela história do professor não poderia ser senão o abade Ruiz, avançou para este. Maggie teve apenas direito a um olhar de relance.
— Professor Conklin, mostrou-se tão cheio de recursos como sempre. Chegou aqui primeiro do que nós. — Franziu o sobrolho a Maggie. — Claro que as línguas que precisou de libertar eram um pouco mais fáceis do que as nossas, imagino. Estes incas mostraram-se bastante teimosos. Ah, mas o resultado é o mesmo. Aqui estamos nós!
O abade passou para lá deles para observar a câmara. Por um instante, ficou a admirar a visão. Depois, a sua grande forma estremeceu, tremendo por todos os lados. Por fim, caiu de joelhos.
— Um milagre — exclamou em espanhol, fazendo um apressado sinal da cruz. — A escultura sobre a mesa parece-se com a de Cristo. Como a do nosso cofre na abadia. É um sinal!
Maggie e Henry olharam de relance um para o outro. Nenhum deles corrigiu o abade.
— Vejam como pinga do teto. As velhas histórias incas falam de um filão. De como fluía como água do cimo das montanhas! Aqui está!
Maggie aproximou-se mais. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o abade se aperceberia do seu erro. Não podia permitir que aqueles homens interferissem com a cura de Sam. Tossiu para aclarar a garganta.
— Esta câmara não passa de uma bugiganga — disse ela baixinho.
O abade, que ainda estava ajoelhado, virou-se para ela. Os seus olhos ainda cintilavam com o ouro.
— Como assim?
— Isto é apenas o templo, a entrada — revelou ela. — A verdadeira fonte está no vale seguinte. Os índios chamam-lhe janan pacha.
— O seu céu? — disse o abade.
Maggie anuiu com a cabeça, feliz por o homem ter algum conhecimento da cultura inca. Olhou de relance para Henry. O seu sobrolho estava profundamente franzido, claramente adivinhando o seu plano. Não aprovava, mas manteve o silêncio. Maggie focou de novo a atenção no abade.
— Este templo não passa de um totem de oração. Um portão para as verdadeiras maravilhas mais além.
O abade ergueu-se.
— Mostra-me.
Maggie recuou um passo.
— Só mediante uma garantia da nossa segurança.
O abade Ruiz olhou de relance para o corredor. Um dos seus olhos semicerrou-se desconfiado.
— O céu aguarda-vos — disse Maggie —, mas sem a minha ajuda, jamais o conseguirão encontrar.
O abade franziu o sobrolho.
— Está bem. Garanto a vossa segurança.
— Jure-o.
Franzindo o sobrolho, o abade Ruiz tocou na pequena cruz de ouro que lhe pendia do pescoço.
— Juro pelo sangue de Jesus Cristo, nosso salvador. — Baixou a mão. — Satisfeita?
Maggie hesitou, fingindo indecisão, depois assentiu com a cabeça.
— É por aqui. — Ela avançou para o corredor.
— Espera. — O abade manteve-se para trás por um momento. Fez sinal a um dos seus seis homens. — Fica aqui com o bom professor. — Avançou para Maggie. — Só para ninguém fugir ao prometido.
Maggie sentiu um aperto na barriga. Avançou ao longo da passagem, obrigando as pernas a parar de tremer. Recusava-se a ceder ao seu medo.
— P... por aqui — disse ela. — Não é muito longe.
O abade Ruiz manteve-se perto do ombro dela, praticamente respirando-lhe no pescoço. A respiração era difícil, o rosto estava vermelho como um tomate. Os seus lábios balbuciavam orações.
— É já por aqui — disse ela enquanto se aproximavam da saída do túnel.
O abade empurrou-a para o lado, avançando, determinado a ser o primeiro a passar. Mas quando alcançou a saída, hesitou. Torceu o nariz perante o fedor do enxofre.
— Não vejo nada.
Maggie juntou-se-lhe e apontou para o trilho na selva à sua frente.
— Basta seguir o caminho.
O abade olhou-a fixamente. Maggie temeu que ele recuasse. Estava certa de que ele conseguia ouvir o coração a bater-lhe na garganta. Mas manteve uma postura calma.
— Janan pacha fica no interior da floresta. A cerca de cem metros. É uma visão impossível de descrever por palavras.
— O céu... — O abade Ruiz deu um passo para a caldeira, depois outro... ainda assim permanecia cauteloso. Fez sinal aos cinco homens para avançarem primeiro. — Vão ver. Mantenham-se atentos à presença de elementos hostis.
Os seus homens, agora de espingardas ao ombro, apressaram-se. O abade seguiu-os, mantendo uma distância de segurança. Maggie viu-se obrigada a deixar o túnel para dar credibilidade ao seu estratagema. Susteve a respiração ao reentrar no ninho hediondo das criaturas. Por onde raio andariam os monstros?
Deu um terceiro passo para longe da entrada quando ouviu o raspar da rocha atrás dela. Virou-se. Empoleirado sobre a rude entrada do túnel estava uma das feras pálidas. Um dos batedores. Sustinha-se pelas garras, de cabeça para baixo. Percebeu que fora detetado. Um grito explodiu-lhe da garganta quando saltou sobre ela.
Maggie estacou. Gritos de resposta explodiram dos limites da floresta. Era uma armadilha, e ele era a sentinela. Maggie baixou-se. Mas o batedor fora demasiado rápido, como um relâmpago. A fera lançou-se sobre ela. Maggie caiu para trás e utilizou o impulso do atacante para o projetar para a pequena encosta atrás de si. Não ficou à espera para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se de um salto e mergulhou para o túnel.
Atrás dela, os tiros explodiam; gritos de terror e dor acompanhados pelos disparos das armas. Mas sobre tudo aquilo, ouvia-se o uivar e o guinchar das criaturas.
Na segurança do túnel, Maggie virou-se, fitando a abertura. Viu o abade apontar a pistola e disparar à queima-roupa na direção do crânio da criatura que a tinha atacado. Esta caiu ao chão e entrou em convulsão. O abade olhou de relance para o limite da floresta, onde os seus homens continuavam a lutar pela vida. Virou-lhes as costas e correu na direção da passagem, na direção de Maggie. Viu-a; o ódio e a raiva brilhavam-lhe nos olhos. Ninguém brincava com a Inquisição Espanhola.
Maggie recuou pelo túnel à medida que o abade chegava à entrada. Respirando pesadamente, o homem obeso lutava para respirar. Arquejou:
— Sua cabra! — Depois apontou-lhe a pistola e entrou.
Credo! Não tinha para onde fugir.
— Vais sofrer. Isso te garanto... — De súbito o abade foi puxado para trás com um guincho de surpresa. A arma disparou, o tiro perdido. A bala fez ricochete ao lado da orelha de Maggie.
Um grito de horror irrompeu do homem enquanto era arrastado para fora do túnel e virado. Um monstro pálido encurvado, um outro líder da matilha, agarrava-lhe o dispendioso casaco de safari com um punho cerrado. A outra mão apertava a garganta do abade. Depressa apareceram novas criaturas, mais punhos de garras afiadas para agarrar aquela refeição. A arma foi arrancada do seu punho. Os gritos do abade foram estrangulados à medida que era arrastado para longe da entrada do túnel. Um rosto pálido, de boca ensanguentada, surgiu junto à abertura do túnel. Silvou-lhe, depois mergulhou para o lado, juntando-se ao frenesi.
Ela virou-se e afastou-se da chacina.
Atrás dela, um guincho agudo de dor soçobrou num gargarejo molhado. Maggie apressou-se a percorrer a passagem, em direção aos archotes, para longe dos uivos.
Junto à entrada do templo, viu o guarda solitário. Ele avançou na direção dela, apontando-lhe a arma.
— Que hicistes? — vociferou em espanhol, perguntando o que ela tinha feito. Maggie viu o terror nos seus olhos.
De súbito, Henry pôs-se atrás dele e encostou o cano da pistola à nuca do guarda. Era a arma que o professor tinha tirado ao monge perto do helicóptero.
— Ela foi despejar o lixo. — Pressionou o cano com mais firmeza. — Tem algum problema com isso?
O homem largou a espingarda e caiu de joelhos.
— Não.
— Assim está melhor. — Henry pôs-se à frente do homem e deu um pontapé na espingarda em direção a Maggie. — Sabes como usar isso?
— Sou de Belfast — disse ela, agarrando a arma. Preparou-a, verificou o carregador e pô-la ao ombro.
Henry virou-se para o prisioneiro.
— E tu? Sabes pilotar o helicóptero?
O homem anuiu.
— Então, poderás viver.
De súbito, um gemido soou na sala do lado. Henry e Maggie deram meia-volta. Observaram o umbigo dourado contorcer-se e a cobertura de ouro começar a deslizar de cima do corpo de Sam. Como um grande sifão, puxou o metal da pele, depois enroscou-se sobre si mesmo, redemoinhando e subindo lentamente sobre as suas cabeças.
Um novo gemido fluiu de Sam.
O guarda fitou o templo, a boca aberta em sinal de surpresa. Fez apressadamente o sinal da cruz.
— Ele está a respirar — disse Henry. Avançou para a entrada.
Maggie agarrou-o pelo cotovelo.
— Tenha cuidado. Não sei se deveríamos interferir já. — As palavras eram tensas, falando enquanto sustinha a respiração. Atrever-se-ia a ter esperança...?
Sam ergueu-se sobre um cotovelo. Tinha o olhar desfocado. Ergueu o outro braço para limpar o rosto, como se afastasse teias de aranha. Gemeu ligeiramente, estremecendo.
Henry estendeu-lhe uma mão.
— Sam?
Este pareceu concentrar-se na voz, tossindo para limpar os pulmões.
— Ti... tio Hank? — Sam ergueu-se, respirando com alguma dificuldade. Os seus olhos pareciam, finalmente, concentrar-se. — Meu Deus... a minha cabeça.
— Mais devagar, Sam — incitou Maggie. — Tem calma.
Sam girou os pés para o chão com mais um gemido.
— Dava-me jeito um balde de aspirinas. — Pareceu, por fim, aperceber-se de onde estava. Inclinou o pescoço e fitou a bola entrelaçada de fios dourados. — O que faço aqui?
— Não te lembras? — perguntou Maggie preocupada. Ele soava lúcido, mas teria sofrido algum dano?
Sam franziu o sobrolho, fitando o peito. Os dedos da mão direita deslizaram pelo colete dilacerado pelo tiro. Passou um dedo pelo buraco, depois abriu o colete. Não tinha qualquer ferimento.
— Levei um tiro. — A sua afirmação era quase uma pergunta.
Maggie assentiu com a cabeça.
— Morreste, mas o templo trouxe-te de volta.
— Morri?
Tanto Maggie quanto Henry assentiram com a cabeça.
Sam levantou-se, cambaleou um passo, depois recuperou o equilíbrio.
— Uau. — Avançou de forma mais lenta e deliberada, concentrando-se. — Para um homem morto, suponho que não me deveria queixar de umas dores. — Avançou para eles.
Henry foi ter com Sam junto à entrada e puxou para si o sobrinho. O seu abraço foi desajeitado devido à pistola que o professor segurava na mão direita.
— Oh, meu Deus, Sam, pensei que te tinha perdido — disse ele, os olhos cheios de lágrimas.
Sam abraçou o tio com fervor, profundamente.
Maggie sorriu. Limpou o seu próprio rosto, depois ajoelhou-se junto à maca e recuperou o Stetson de Sam.
Henry afastou-se, esfregando os olhos.
— Não me imaginava a perder-te também.
— E não tem de o fazer — disse Sam, deslizando a mão pelo cabelo.
Maggie estendeu-lhe o chapéu.
— Toma. Deixaste cair uma coisa.
Sam agarrou nele com um sorriso de esguelha, desajeitado, quase embaraçado. Pô-lo na cabeça.
— Obrigado.
— Mas não morras outra vez — avisou ela, estendendo o braço e endireitando a aba.
— Vou tentar. — Inclinou-se para ela enquanto lhe ajustava o chapéu, fitando os seus olhos.
Ela não se afastou, mas também não se aproximou mais. Estava demasiado consciente da presença do professor e do peso da espingarda sobre o seu ombro esquerdo. Entreolharam-se durante demasiado tempo e o momento começou a fugir-lhe. Maggie cerrou os dentes. Para o diabo com os seus medos! Estendeu os braços... mas Sam virou-se de súbito.
Uma nova voz vociferava a partir da escuridão atrás deles:
— Larguem as armas! — Uma figura avançou até aos limites dos archotes. Segurava Denal nos braços. A boca do rapaz estava fortemente fechada, um longo punhal do exército encostado à garganta. A lâmina de aço inoxidável refletia o brilho dos archotes. Os olhos do rapaz estavam muito abertos com o terror.
— Otera! — silvou Henry.
Norman corria pela selva, tropeçando na vegetação rasteira. A sua visão estava toldada pelas lágrimas. Tentou debilmente manter a sua fuga silenciosa, mas os ramos estalavam e as folhas secas restolhavam sob os seus pés. Ainda assim, cambaleou... na verdade, já não queria saber se alguém o ouvia.
Uma vez mais imaginou o frade a levantar-se, de um salto, do prado. O sacana tinha estado a fazer-se de morto, enquanto esperava pela chegada de Norman e Denal, que avançavam em direção ao helicóptero. O frade agarrara no rapaz antes de Norman poder reagir, o brilho de lâminas gémeas retiradas das bainhas que usava escondidas nos punhos. A resposta de Norman fora puro instinto animal. Saltara para longe do atacante, mergulhara na selva e fugira para longe.
Só depois de o seu coração em pânico ter abrandado um pouco é que Norman reconheceu a cobardia do seu ato. Tinha abandonado Denal. E depois nem sequer tentara libertar o rapaz.
Logicamente, na sua mente, Norman conseguia justificar aquela ação. Não tinha armas. Qualquer tentativa de salvamento iria, sem dúvida, resultar na morte de ambos. Mas no seu coração, Norman sabia que não era assim. A fuga revelara pura cobardia. Recordou o terror nos olhos arregalados de Denal. O que fizera ele?
As lágrimas corriam, quase o cegando.
De súbito, a selva desapareceu à sua volta. As sombras da floresta deram lugar à luz. Norman parou cambaleante, esfregando os olhos. Quando a sua visão clareou, arquejou perante o horror da cena.
As granadas e os tiros tinham aberto uma pequena clareira na floresta. Por todo o lado jaziam corpos, dilacerados e destroçados. Homens e mulheres. Todos incas. O cheiro fê-lo vomitar enquanto recuava: sangue e excrementos e medo.
— Oh, meu Deus... — gemeu Norman.
As moscas cobriam já os cadáveres, zumbindo e esvoaçando por toda a clareira.
Depois, de súbito à sua esquerda, uma forma enorme ergueu-se, pairando sobre ele, eram os mortos que o vinham reclamar. Norman virou-se para encarar a nova ameaça. Já não iria fugir. Já não podia continuar a fugir. Exausto e sem esperança, caiu de joelhos.
Ergueu o rosto quando uma enorme lança foi erguida em ameaça, a sua lâmina dourada brilhando sobre a sua cabeça.
Norman não estremeceu.
Lamento, Denal.
Henry avançou para Otera, de arma em riste.
— Larga-o!
Os membros do rapaz preso tremiam enquanto a faca era pressionada com mais força contra a sua garganta macia. Um fio de sangue deslizou-lhe pelo pescoço.
— Não tente nada, professor. Recue! Ou abro este rapaz do pescoço à barriga.
Refreando uma imprecação, Henry recuou um passo.
Os olhos do frade revelavam loucura e fúria.
— Façam o que digo e todos poderão viver! Não quero saber de si e do rapaz. A única coisa que me interessa é o ouro. Eu levo-o comigo e vocês ficam todos aqui. Uma troca justa, sim?
Eles hesitaram. Henry olhou de relance para Maggie, depois para Sam.
— Talvez devêssemos fazer o que ele diz — sussurrou.
Os olhos de Maggie semicerraram-se. Deu um passo para o lado e falou com o frade num tom feroz.
— Jura! Jura sobre a tua cruz que nos deixarás ir.
Franzindo o sobrolho, Otera tocou no seu crucifixo de prata.
— Juro.
Maggie avaliou demoradamente o homem e depois, cautelosamente, pousou a arma. Henry fez o mesmo. O grupo recuou em seguida alguns passos.
Otera avançou para as armas abandonadas, depois empurrou Denal na direção deles.
O rapaz arquejou e voou para o lado de Maggie.
O frade voltou a guardar o punhal na bainha escondida no punho. Henry compreendia agora como é que aquele homem lograra escapar às suas cordas. Repreendeu-se a si própria. Nenhum deles se lembrara de revistar o homem inconsciente.
Sorrindo, Otera agachou-se e recuperou a sua pistola. Passou a espingarda para o guarda que continuava agachado de um dos lados da passagem. Mas o homem recusou-se a aceitá-la. Limitara-se a fitar o templo, atordoado, os lábios movendo-se numa oração silenciosa.
Otera ergueu-se e, por fim, virou o rosto para a divisão. Estacou, depois recuou, assoberbado. O rosto brilhava na luz dourada. Um sorriso rasgado estendia-lhe os lábios.
— Dios mio...! — Quando se virou de novo para eles, os seus olhos eram enormes.
— Impressionante, não é? — disse Sam.
O frade semicerrou os olhos contra o brilho dos archotes. Por fim, pareceu reconhecer o texano.
— Eu... eu pensei que te tinha matado — disse, de sobrolho franzido.
Sam encolheu os ombros.
— Não pegou.
Otera olhou de relance para a gruta de ouro, depois de novo para eles. Apontou-lhe a arma.
— Não sei como sobreviveste, mas desta vez vou assegurar-me de que morrem. Todos vocês!
Maggie posicionou-se entre o atirador e Sam.
— Fez um juramento! Pela cruz!
Otera moveu a mão livre e arrancou o crucifixo de prata. Lançou-o para trás de si.
— O abade era um tolo — rosnou-lhes. — Como vocês. Toda esta conversa de tocar a mente de Deus... merdas pias! Ele nunca compreendeu o verdadeiro potencial do ouro.
— Que é? — perguntou Henry, pondo-se ao lado de Maggie.
— Fazer-me rico! Durante anos, suportei os ares superiores do abade enquanto ele promovia outros de sangue espanhol mais puro, para posições acima da minha. Com este ouro, já não serei meio índio, meio espanhol. Já não terei de curvar a cabeça e desempenhar o papel de vil mestizo. Renascerei um novo homem. — Os olhos de Otera brilhavam fortemente no seu sonho.
Henry aproximou-se ainda mais.
— Em que pensa que se transformará?
Otera apontou a pistola a Henry.
— Alguém que todos respeitam... um homem rico! — Riu roucamente e puxou o gatilho.
Henry encolheu-se, arquejou e tombou para trás.
Mas o tiro perdeu-se estranhamente, atingindo o teto e fazendo cair uma cascata de centelhas azuis.
O som do tiro desapareceu, depois ouviu-se um novo ruído.
— Aac... — Otera sufocava e levou a mão ao peito. A ponta ensanguentada de uma lança emergia por entre as suas costelas. O frade foi levantado do chão. O sangue jorrava-lhe da boca enquanto gemia, abrindo e fechando a boca como um peixe a sufocar. A pistola caiu-lhe dos dedos.
Depois, também a cabeça tombou e ficou pendurada no pescoço, morta.
O corpo flácido foi lançado para o lado pelo homem que empunhava a lança.
Atrás dele, uma grande figura tornou-se visível. Envergava vestes queimadas e rasgadas.
— Pachacutec! — gritou Sam.
O homem caiu de súbito para a frente, ajoelhando-se perante o templo inca. As lágrimas marcavam-lhe o rosto manchado pela fuligem.
— O meu povo... — balbuciou em inglês. — Desapareceu.
Uma segunda figura emergiu da escuridão ao lado do homem.
— Norman! — Maggie correu para o fotógrafo. — O que aconteceu?
Norman abanou a cabeça, fitando a forma empalada do frade.
— Encontrei Pachacutec no trilho, no meio da chacina. Vinha para o templo, em busca daqueles que pretendiam violar o seu deus. Convenci-o a ajudar. — Mas não havia satisfação na voz do fotógrafo; o seu rosto estava pálido.
Os olhos de Norman saltaram para Denal. O fotógrafo ostentava uma expressão de vergonha. Mas o rapaz avançou para Norman e abraçou-o com força.
— Salvaste-nos — balbuciou contra o peito do homem alto.
Enquanto devolvia o abraço ao rapaz, as lágrimas subiram aos olhos do homem alto.
Chegado para um lado, Pachacutec gemia. Regressara à sua língua nativa, enquanto se curvava perante o templo, balançando para trás e para a frente, rezando. Era impossível consolá-lo. O sangue escorria pelas suas roupas e deslizava pela câmara de ouro. Ele próprio parecia perto da morte.
Henry avançou para mais perto do rei. Se a história de Maggie era verdadeira, à sua frente estava ajoelhado um dos fundadores do império inca. Sendo ele um arqueólogo que dedicara toda a sua vida ao estudo dos incas, Henry sentiu-se subitamente sem saber o que dizer. Virou-se para Sam, os seus olhos suplicantes diziam «Este rei não pode morrer».
Sam pareceu compreender. Ajoelhou-se ao lado de Pachacutec e tocou na túnica do rei.
— Sapa Inca — disse, curvando a cabeça. — O templo salvou a minha vida, como salvou a tua outrora. Usa-o outra vez.
Pachacutec parou de balançar, mas a cabeça continuava pendente de tristeza.
— O meu povo desapareceu. — Ergueu o rosto para Sam e os outros. — Talvez esteja certo, assim. Não pertencemos ao vosso mundo.
— Não, cura-te. Deixa-me mostrar-te o nosso mundo.
Henry avançou, pousando a mão no ombro de Sam, acrescentando o seu próprio apoio.
— Há tanto que podia partilhar, Inca Pachacutec. Tanto que nos podia ensinar.
Pachacutec ergueu-se lentamente e fitou Henry. Levou a mão ao rosto do professor e seguiu o traçado de uma ruga. Depois baixou o braço e virou-se.
— O seu rosto é velho. Mas não tão velho como o meu coração. — Fitou o templo, de rosto brilhante. — Inti conduz agora o meu povo para janan pacha. O meu desejo é acompanhá-los.
Henry fitou Sam por cima do ombro do rei. O que poderiam dizer? O homem perdera toda a sua tribo.
As lágrimas escorriam pelo rosto de Pachacutec quando este retirou um punhal de ouro do interior da túnica.
— Irei para junto do meu povo.
Henry tentou alcançar o Sapa Inca.
— Não! — Mas era demasiado tarde.
Pachacutec cravou o punhal no peito, curvando-se sobre a lâmina que o empalava como um punho cerrado. Depois relaxou; um suspiro escapou-lhe da garganta. Endireitou-se lentamente e os seus dedos abandonaram o cabo da lâmina.
Henry arquejou, cambaleando para trás, enquanto chamas jorravam do punhal que empalava o peito do rei.
— Mas que raio...?
Pachacutec cambaleou para a câmara do templo.
— Vou para Inti.
— Combustão espontânea — sussurrou Sam, chocado. — Como as criaturas da caverna.
Maggie assentiu com a cabeça.
— O corpo dele é igual ao das criaturas.
— O que está a acontecer? — perguntou Henry fitando as chamas.
Maggie explicou rapidamente:
— O ouro desencadeia uma reação em cadeia. — Apontou para Pachacutec. As chamas projetavam-se do punhal e contornavam-lhe o tronco. — Autoimolação.
Henry recordou subitamente a mensagem urgente de Joan no helicóptero. Ela tinha-o avisado de que havia uma forma de destruir a Substância Z. O presente roubado por Prometeu. O fogo!
Virando-se, Henry viu Pachacutec cair de joelhos, os braços erguidos. As chamas subiam por eles.
Oh, meu Deus!
Henry agarrou em Sam e Maggie e empurrou-os na direção da saída do túnel.
— Corram! — gritou. Deu um pontapé ao guarda ajoelhado. — Vamos!
— O quê? Porquê? — perguntou Sam.
— Não há tempo! — Henry arrebanhou-os a todos. Denal e Norman corriam à sua frente, enquanto Henry e Maggie ajudavam Sam, que avançava com pernas trémulas. Enquanto fugiam, Henry recordou-se do derradeiro aviso de Joan: Prometeu tinha uma força espantosa! Como explosivo plástico!
As suas palavras revelaram-se verdadeiras. Ao chegarem ao final do túnel, uma explosão gigantesca abalou o chão sob os seus pés. Uma explosão de ar superaquecido projetou o grupo pelo trilho, fazendo-os cair, ferindo-os. A passagem atrás deles expeliu fumo e detritos.
— De pé! — disse Henry quando parou de rebolar. — Continuem!
O grupo obedeceu com queixas resmungadas, coxeando e correndo em frente. O trilho continuava a tremer sob os seus pés.
— Não parem! — gritou Henry.
Pedregulhos tombavam das alturas vulcânicas. O chão tremia cada vez mais. Em baixo, centenas de papagaios guinchavam e voavam para longe da copa das árvores.
O que se estava a passar?
Henry, ao chegar às escarpas abaixo dos penhascos, arriscou olhar de novo de relance para cima. Uma falha monstruosa na face do penhasco abria-se do túnel diretamente para o lado do cone.
Sam apoiou-se em Maggie, enquanto ambos tentava recuperar o fôlego. Os outros não estavam muito longe. Os olhos de Sam abriram-se de súbito.
— Oh, meu Deus! — gritou. — Vejam! — Apontava para o outro lado do vale.
Henry olhou nessa direção. As chaminés originais eram agora géiseres que lançavam água escaldante. Novas rachas abriam-se por todo o vale, expelindo mais vapor e água para o céu. Uma secção do cone vulcânico desabou com um rugido estrondoso.
— Está a desmoronar-se! — compreendeu Henry.
Maggie apontou para trás deles, na direção do pico vulcânico do lado sul. Um fumo negro erguia-se em direção aos céus. O cheiro do enxofre e da pedra queimada enchia o vale.
Sam endireitou-se.
— A explosão deve ter ativado uma falha. Uma reação em cadeia. Depressa! Para o helicóptero!
Norman contribuiu com mais boas notícias.
— Temos companhia, malta! — Apontou para o túnel fumegante.
Do coração da escuridão, saltavam formas pálidas como demónios do inferno. As criaturas empilhavam-se e contorciam-se a partir da abertura, guinchando, uivando. As garras raspando a rocha.
— As explosões devem tê-los deixado em pânico — disse Maggie. — Sobrepondo-se ao medo do túnel.
Das alturas, olhos negros viraram-se na direção deles. Os uivos dilacerantes mudaram de tom.
— Fujam! — gritou Henry, aterrorizado pelo que via. — Agora!
O grupo fugiu pelo terreno irregular. Pedaços de basalto chocalhavam no chão que estremecia, parecendo dentes a bater, o que dificultava a corrida. Henry caiu, raspando as palmas das mãos na pedra irregular. Sam depressa surgiu ao seu lado, ajudando-o a levantar-se.
— Aguenta-se, tio Hank? — perguntou, ele próprio a arfar.
— Tenho de aguentar, não é? — Henry desatou de novo a correr, mas manchas negras moviam-se à frente dos seus olhos.
Sam deu-lhe um braço para que se apoiasse e Maggie apareceu de súbito do outro lado. Juntos, ajudaram Henry a atravessar o terreno irregular até ao prado plano. À sua frente, Norman já enfiava Denal e o guarda-costas do abade na barriga do helicóptero. Os olhos do fotógrafo cruzaram-se com os deles do outro lado do prado.
— Depressa! Estão a apanhar-vos!
Henry cometeu o erro de olhar para trás. As criaturas pálidas mais rápidas já os tinham flanqueado. Não muito atrás, criaturas maiores, com paus e pedras, aproximavam-se.
Henry tropeçou de súbito e quase os lançou aos três ao chão. Mas como um todo, conseguiram manter o equilíbrio e continuar a correr. Henry deu por si a desfalecer aos poucos. Daí a nada era transportado por Sam e Maggie.
— Deixem-me ficar... salvem-se.
— Sim, claro — respondeu Sam.
— Quem é que ele pensa que somos? — acrescentou Maggie com uma indiferença forçada.
Por alguns segundos tudo ficou negro. Logo a seguir, braços puxavam Henry para o helicóptero. Sentiu o vento e apercebeu-se que os rotores do helicóptero já giravam. Um estalo metálico fez-se ouvir perto da sua cabeça.
— Estão a lançar pedregulhos — gritou Norman.
— Mas não se aproximam mais — acrescentou Maggie a partir da porta. — O helicóptero assustou-os.
Um segundo embate atingiu a fuselagem do helicóptero. Todo o aparelho estremeceu.
— Bem, estão perto o suficiente! — Norman virou-se e gritou para o piloto. — Levanta este pássaro do chão!
Henry esforçava-se por se sentar quando a porta se fechou.
— Sam...?
Sentiu uma palmada no ombro, enquanto era içado para o seu lugar e preso com o cinto.
— Estou aqui. — Ele virou-se e viu Sam sorrir-lhe com Maggie ao lado.
— Graças a Deus — suspirou Henry.
— Deus? Qual deles? — perguntou Norman com um sorriso, instalando-se no seu assento.
O helicóptero estremeceu subitamente, não por ter sido atingido por novos pedregulhos, mas devido à descolagem apressada. O aparelho inclinou-se, depois ergueu-se lentamente. Um último lançamento atingiu-o por baixo e fê-lo oscilar.
— Um beijo de despedida — disse Norman, fitando pela janela a multidão que saltava e pulava lá em baixo.
O helicóptero subiu mais depressa, afastando-se do alcance das pedras.
Henry juntou-se ao fotógrafo, fitando o vale. Em baixo, a selva ardia. O fumo e o vapor obscureciam quase por completo a visão. Os fogos iluminavam as zonas de denso nevoeiro. Uma visão saída do Inferno de Dante.
Enquanto olhava, o alívio misturava-se com a tristeza no coração de Henry. Tanto se perdera.
Depois, ultrapassaram o cone e afastaram-se, descendo para longe.
Tinham conseguido!
Enquanto o helicóptero mergulhava por entre os picos vizinhos, Henry olhou para trás. De súbito um forte rugido explodiu pela cabina; o helicóptero saltou, os rotores gritaram. Henry voou para trás. Durante uns momentos angustiantes, o aparelho girou e contorceu-se loucamente.
O piloto praguejou, esforçando-se com os controlos. Os outros agarraram os cintos até ficarem com os nós dos dedos brancos.
A seguir, o aparelho endireitou-se e voou de novo em frente.
Henry endireitou-se e regressou ao seu posto de observação. Enquanto olhava, arquejou, não de susto, mas de espanto.
— Vocês têm de ver isto.
Os outros juntaram-se-lhe à janela. Sam inclinou-se, pousando a palma da mão no ombro do tio. Henry deu uma palmadinha na mão do sobrinho, apertando-lhe os dedos por um instante.
— É estranhamente belo — disse Maggie, olhando para o exterior.
Atrás do helicóptero, duas flechas gémeas de rocha derretida erguiam-se nos céus da tarde, uma de cada vulcão. Era uma visão assombrosa.
Henry recostou-se por fim no seu assento. Fechou os olhos e pensou em frei de Almagro e todos os seus avisos. O homem dera a própria vida para que o mal terminasse ali.
Henry sussurrou baixinho para os céus flamejantes:
— O teu último desejo foi atendido, meu amigo. Descansa em paz.
DIA SETE – Cusco
Cusco
Domingo, 26 de agosto, 15h45
Domingo, 26 de agosto, 15h45
Aeroporto Internacional de Cusco, Peru
O pequeno avião monomotor, um velho Piper Saratoga, mergulhou na direção da pista. A cidade de Cusco estendia-se sob as suas asas num emaranhado de ruas, uma mistura de arranha-céus cintilantes e velhas casas de adobe. Embora fosse uma imagem bem-vinda, Sam virou as costas à janela. Tinha sido um longo dia de voos e planos.
Enquanto abandonavam a caldeira vulcânica, o tio aproveitara o rádio do helicóptero para alertar as autoridades e avisar o acampamento base dos vulcões em erupção. Philip parecia em pânico no rádio. Aparentemente, os índios quéchuas estavam já a evacuar. Henry ordenara aos doutorando de Harvard que os acompanhasse; o combustível do helicóptero era demasiado escasso para poderem voltar a aterrar e levantar. Quase a chorar, Philip implorara por socorro, mas Henry fora inflexível quanto a regressar a Cusco o mais depressa possível.
O tio conseguira, depois, mudar de transporte, num pequeno aeródromo comercial perto de Machu Picchu, contratando um avião monomotor e um piloto para os levar a Cusco.
No entanto, apesar de todo aquele planeamento, o voo demorara quase um dia.
Enquanto o avião mergulhava para a sua última abordagem à pista, Sam sentou-se mais direito na cabina apertada tendo o cuidado de não incomodar Maggie, que se apoiara no seu ombro, a dormir como todos os outros a bordo. Sam invejava a sua capacidade para descansar. Para ele, dormir revelara-se impossível. A sua mente ainda se agarrava às últimas vinte e quatro horas.
Ele tinha morrido.
Era um conceito que não conseguia compreender bem. Por muito que se tivesse esforçado, não conseguia recordar nada daquela hora perdida. Não se lembrava de nenhuma luz branca ou de um qualquer coro celestial. Recordava-se apenas de perder os sentidos num campo de quinoa, com um ferimento de bala no peito, e depois acordar em cima do altar de ouro. O resto era um grande vazio.
Sam franziu o sobrolho. Não podia censurar ninguém por aquele pequeno lapso mental. Estava vivo e, além disso, tinha uma linda arqueóloga irlandesa ruiva a dormir ao seu lado. Olhou de relance para ela e afastou-lhe suavemente um caracol do rosto enquanto ela dormia. Devia acordá-la. Estavam prestes a aterrar. Mas odiava fazê-lo. Era agradável tê-la assim tão perto de si. Nem que fosse apenas como uma almofada conveniente. Deixou que os seus dedos se afastassem do cabelo dela, afastando quaisquer outros pensamentos. A partir dali, não sabiam para onde iria qualquer um deles.
O pequeno avião aterrou com um salto na pista do aeroporto.
O chocalhar e o gemido dos travões hidráulicos levou a que os passageiros da cabina despertassem sobressaltados. Rostos de olhos congestionados espreitavam pelas janelas minúsculas.
— Já chegámos? — perguntou Maggie, refreando um bocejo. — Podia jurar que acabei de adormecer.
Sam revirou os olhos. O voo tinha sido interminável.
— Sim. Bem-vinda a Cusco.
Era possível ouvir a conversa entre o piloto e a torre enquanto eram conduzidos ao pequeno terminal. O tio Henry soltou-se do assento, espreguiçou-se e avançou até à frente do avião por entre os bancos.
Mais planos e combinações, pensou Sam.
Antes, Sam perguntara ao tio qual era a urgência de ali chegar, mas fora gentilmente ignorado. Quando tentou insistir, Maggie abanou a cabeça para que parasse.
— Deixa-o.
Sam olhava agora de relance para Maggie. Esta fitava o tio dele com um olhar pesaroso. O que se passaria? O que teria ficado por dizer?
— Quem são todas aquelas pessoas? — perguntou Norman atrás dele.
Sam inclinou-se de novo para a janela. Ao lado do terminal, reunira-se uma pequena multidão. Metade utilizava os uniformes caqui da polícia local, de espingardas ao ombro. Alguns outros ombros sustentavam câmaras dos canais de notícias, os microfones a postos. Os restantes eram uma mistura de locais e homens com fatos demasiado quentes para o clima da zona. Estes últimos tinham o selo dos representantes do governo.
Aparentemente, as chamadas do tio tinham originado uma enorme atividade.
O avião parou não muito longe e o piloto ergueu-se do cockpit, depois avançou para a porta. Henry curvou a cabeça, falando com o piloto, depois o tipo mais magro abriu a porta e deu um pontapé ao trinco para soltar as escadas.
Mesmo dali, Sam conseguia ouvir os disparos dos obturadores das câmaras e o som das vozes.
O tio parou junto da abertura e virou-se de novo para eles.
— Está na hora de enfrentar a Imprensa, malta. Lembrem-se do que dissemos... sobre como responder às perguntas, para já.
— Sem comentários — respondeu Norman.
— Sin comentarios — ecoou Denal em espanhol.
— Exatamente — disse Henry. — Até conseguirmos esclarecer as coisas, falamos apenas com as autoridades.
Todos acenaram com a cabeça. Em especial Sam. Não tinha qualquer desejo de debater a sua ressurreição com a Imprensa internacional.
— Então, vamos lá. — Henry baixou a cabeça e os outros seguiram-no.
Enquanto Henry descia do avião, retraiu-se. Mesmo sob o brilho da tarde, as luzes das câmaras e dos flashes estroboscópicos quase o cegavam. Vozes chamavam-nos: em inglês, em espanhol, em português e em francês. A multidão era contida por uma fileira de polícias.
Henry avançou, os seus olhos procurando na multidão. Joan. Parte de si tinha esperado secretamente que a sua chamada em pânico para as autoridades em Cusco pudesse ter acontecido a tempo. Captara apenas pedaços dos relatórios via rádio no voo até ali, mas pouco soubera: os militares tinham atacado a abadia, ao que se seguira uma intensa troca de tiros. Muitos tinham morrido, mas os detalhes posteriores eram confusos.
Henry fechava as mãos em punhos cerrados enquanto atravessava a pista. Continuava a fitar a multidão de repórteres, representantes do governo e mirones. Nem um só rosto familiar.
Henry refreou as lágrimas. Por favor. Outra vez não. Enquanto procurava futilmente por Joan, sentiu uma dor a crescer-lhe no peito, um ardor de bílis e culpa. Era uma dor familiar. Já a sentira antes, aquando da morte de Elizabeth. Achara que se tinha reconciliado com a morte da esposa há muito, mas o seu receio por Joan despertara tudo de novo. Na verdade, nunca partira. Limitara-se a erigir à sua volta um muro, que cimentara com a necessidade de cuidar de Sam.
Então, e agora?
O seu coração era cinza e carvão.
Joan não estava ali.
Um homem com um fato cinzento conservador avançou, bloqueando-lhe a visão, estendeu-lhe a mão.
— Professor Conklin, sou Edward Gerant, oficial de protocolo da embaixada dos Estados Unidos. Temos muito a discutir.
Henry obrigou o punho a relaxar e ergueu a mão.
Depois uma voz ergueu-se do meio da multidão, cortando através do ruído de fundo:
— Henry?
Estacou.
Edward Gerant tentou agarrar a mão do professor, mas Henry afastou-se, dando um passo para o lado. Viu uma figura esguia que abria caminho através da barricada da polícia.
A voz de Henry falhou-lhe.
— Joan...?
Ela sorriu e aproximou-se, primeiro lentamente, depois, à medida que as lágrimas corriam, mais depressa. Henry acolheu-a de braços abertos. Caíram nos braços um do outro, de tudo alheados. Sem pensar que alguma vez voltaria a sentir tanta alegria, Henry murmurou:
— Oh, meu Deus, Joan... pensei que tinhas morrido. Mas rezei... esperei...
— Tio Hank? — ouviu-se uma voz atrás dele. Era Sam. O sobrinho nada sabia sobre Joan. Henry sentira-se demasiado culpado para debater em voz alta a escolha que fora obrigado a fazer. A culpa e o medo mantiveram-no em silêncio até conhecer o destino de Joan.
Enquanto Sam se aproximava, Joan e Henry afastaram-se ligeiramente, mas Henry não queria desviar os olhos dela... nunca mais. Sem se virar, apresentou o sobrinho à doutora Joan Engel. Ela sorriu calorosamente e agarrou a mão de Sam. Depois de se cumprimentarem, Henry voltou a reclamar a palma da mão dela.
— Então, e tu? — perguntou Henry. — O que aconteceu?
O sorriso de Joan desvaneceu-se um pouco.
— Escapei precisamente no momento em que a polícia investiu. E ainda bem que o fiz. Quando as autoridades entraram na abadia, os monges desencadearam um mecanismo de segurança que tinham montado no laboratório. As instalações foram completamente incineradas, incluindo o cofre de el Sangre. — Apontou na direção do horizonte distante.
Henry fitou-o, tal como Sam. Fumo tão denso como o de um vulcão ascendia aos céus.
— A explosão daí resultante destruiu toda a abadia. Ainda fumega. Tudo o que resta são as ruínas incas que havia em baixo.
— Impressionante — comentou Sam.
Henry inclinou-se para mais perto de Joan.
— Mas ainda bem que tu escapaste. Não sei se conseguiria viver com...
Joan revirou os olhos e aninhou-se nos seus braços.
— Não vou embora, Henry. Já te afastaste de mim uma vez na minha vida. Não vou permitir que aconteça outra vez.
Henry sorriu e puxou-a ainda mais para si.
— Nem eu.
Sam afastou-se, com um sorriso triste, dando-lhes privacidade. Nunca vira o tio entregar-se tão plenamente a alguém, e claramente o sentimento era mútuo. Embora estivesse feliz pelo tio, Sam sentia-se estranhamente vazio enquanto se afastava do casal.
Ali perto, Norman conversava com o representante da embaixada que ficara pendurado, relatando alguma parte da sua história. A gargalhada infantil do fotógrafo deslizava sobre a pista. Mais para o lado, Denal mantinha-se na sombra de Norman. Norman oferecera-se para patrocinar o rapaz como estagiário da National Geographic — e, com a morte da mãe, Denal nada tinha que o prendesse ali, a não ser uma vida de pobreza. Os dois já tinham feito planos para viajarem juntos para Nova Iorque.
Do outro lado da pista, as câmaras continuavam a filmar.
Sam afastou-se mais, aproximando-se da asa do avião e mantendo-se distante da multidão. Precisava de um momento para pensar. Desde a morte dos pais, ele e o tio Hank tinham sido inseparáveis. A dor forjara laços que unira os corações de ambos, não permitindo a entrada de mais ninguém. Sam olhou de relance para o tio. Até agora.
E Sam não tinha a certeza do que sentia. Muito coisa acontecera. Sentia-se solto, liberto de uma âncora que o mantivera em segurança. À deriva. Antigas memórias intrometeram-se: o guinchar dos pneus, o metal amolgado, o vidro partido, as sirenes, a mãe com um braço dependurado a ser levada dos destroços na maca de uma ambulância.
As lágrimas invadiram-lhe de súbito os olhos. Porque é que recordava tudo aquilo agora? Não conseguiu conter as lágrimas.
Então, sentiu uma presença atrás de si.
Virou-se. Maggie encontrava-se ali, fitando-o.
Esperando encontrar troça ou um qualquer tipo de censura à sua reação, tudo o que viu foi preocupação. Um dos paramédicos entregara-lhe uma manta de resgate de um amarelo berrante. Maggie estava enroscada nela, protegendo-se da fria brisa da tarde. Falou baixinho.
— É o teu tio e aquela mulher, não é? Sentes que o estás a perder.
Ele sorriu-lhe e esfregou os olhos com força.
— Sei que é parvo — disse ele, de garganta apertada. — Mas não é apenas o tio Hank. É mais do que isso. São os meus pais, é o Ralph... é tudo o que a morte rouba.
Sam lutou para transpor para palavras aquilo que sentia, fitando o céu. Precisava que alguém o ouvisse.
— Porque me foi permitido viver? — Acenou com um braço na direção dos Andes distantes. — Lá em cima... e com os meus pais, no acidente de carro...
Maggie encontrava-se agora à sua frente, os dedos dos pés quase se tocando.
— E eu numa valeta em Belfast.
Inclinou-se para ela e percebeu que Maggie compreendia a sua dor melhor do que ninguém.
— P... porquê? — perguntou baixinho, refreando um soluço. — Sabes do que estou a falar. Qual é a resposta? Eu cheguei mesmo a morrer e fui ressuscitado! E continuo sem fazer ideia!
— Há perguntas que não têm resposta. — Maggie ergueu os braços e tocou-lhe no rosto. — Mas na verdade, Sam, não escapaste à morte. Nenhum de nós o pode fazer. Ainda aí está. Nem mesmo os incas conseguiram escapar no final. — Puxou Sam para si. — Durante anos, tentei fugir dela, enquanto tu e o teu tio se ergueram contra ela costas com costas. Mas nenhuma das formas é saudável, porque a morte ganha sempre, no final. Acabamos sempre pior por tentar.
— Então, o que fazemos? — O seu olhar era de súplica.
Maggie suspirou tristemente.
— Tentamos viver as nossas vidas tão plenamente quanto possível. — Ela fitou o seu rosto. — Limitamo-nos a viver, Sam.
Ele sentiu novas lágrimas.
— Mas não compreendo. Como...?
— Sam — interrompeu Maggie, levando um dedo aos lábios dele. A manta de resgate caiu-lhe dos ombros com um suave restolhar.
— O que foi?
— Cala-te e beija-me.
Ele pestanejou perante aquelas palavras, depois deu por si a inclinar-se. Guiado pelas mãos dela, descobriu-lhe os lábios. Afundou-se na suavidade e no calor dela, e começou a compreender.
Ali estava a sua razão de viver.
Beijou-a ternamente a princípio, depois de forma mais apaixonada. O sangue reverberava-lhe nos ouvidos. Os seus braços puxaram-na para mais perto, enquanto ela deslizava as mãos para a nuca dele, mergulhando os dedos no cabelo e fazendo-lhe tombar o Stetson do topo da cabeça. Aproximaram-se ainda mais um do outro, não deixando qualquer espaço entre si.
E, nesse momento, o coração de Sam ergueu-se nos ares, pois ele compreendia.
Naquele beijo não havia dor... não havia culpa... não havia morte.
Apenas vida, e isso era suficiente para qualquer um.
Epílogo
Dois anos depois
Quinta-feira, 19 de outubro, 22h45
Instituto de Estudos Genéticos
Stanford, Califórnia
Três pisos no subsolo das principais instalações de investigação, um homem com uma longa bata de laboratório branca aproximou-se do leitor de palma da mão que dava acesso a um conjunto de laboratórios privados. Encostou a mão ao scanner azul e observou o leitor sensível à pressão brilhar por entre os dedos. A luz do painel mudou para verde. O seu nome apareceu no leitor em pequenas letras verdes: DOUTOR DALE KIRKPATRICK.
O som dos ferrolhos a abrirem anunciou a sua aceitação pela estação de monitorização computorizada. Afastou a palma da mão e moveu o puxador. O selo de vácuo estalou com um ligeiro vush de ar, como uma curta inalação. O cientista de meia-idade teve de empurrar com mais força a porta para a abrir dada a pressão ligeiramente negativa das salas vizinhas, uma salvaguarda para impedir que quaisquer contaminantes biológicos pudessem escapar do laboratório. Não tinham sido poupadas despesas naquele projeto. Um think tank do governo, apoiado pelo Pentágono, aplicara perto de mil milhões de dólares naquele projeto. Uma boa parte deles, pensou com um sorriso irónico, iam diretamente para o seu salário.
O ombro protestou com uma dor aguda quando ele conseguiu, por fim, abrir a porta. Estremecendo, entrou no laboratório e permitiu que a porta se voltasse a fechar atrás de si. Esfregou o ponto sensível junto do manguito rotador. O ferimento da bala que tinha sofrido nos corredores da Johns Hopkins exigira quatro cirurgias para ser reparado. Embora ainda sentisse dores ocasionais, não podia queixar-se — não só sobrevivera ao ataque, como conseguira escapar com uma pequena quantidade da Substância Z, as amostras de teste utilizadas no microscópio eletrónico.
Quando a notícia da sua descoberta chegou aos círculos certos, o doutor Kirkpatrick foi autorizado a desaparecer. A sua morte foi anunciada e ele foi levado para a Costa Oeste, para o Instituto de Estudos Genéticos, ali em Stanford. Foi-lhe oferecido um laboratório e uma equipa de catorze dos melhores cientistas, com autorização governamental do mais alto nível.
Dale seguiu para o seu gabinete, para lá das filas de laboratórios. Enquanto passava pelos computadores, ouviu um silvo dos quatro computadores Cray em linha que iam analisando os dados recolhidos pelo sequenciador genético. O Projeto de Genoma Humano era como um puzzle infantil quando comparado com o que aquele laboratório estava a tentar fazer. Estimava que seriam necessários mais quatro anos para conseguir compreender o código exato, mas tinha tempo. Assobiando para quebrar o silêncio do laboratório vazio, Dale usou um keycard para abrir a porta e entrar no seu gabinete pessoal.
Retirando o casaco de laboratório, pendurou-o num cabide, depois soltou a gravata e arregaçou as mangas. Avançou até à sua secretária e instalou-se na cadeira de pele com um suspiro.
Queria ditar o seu último relatório anual, para que Marcy o pudesse datilografar no dia seguinte para que ele o analisasse. Abriu uma gaveta e retirou o seu aparelho de ditado pessoal. Ligando-o, levou o microfone aos lábios.
— Relatório de Estado. Conclusões e Avaliações — catalogou, aclarando então a garganta. — A nanotecnologia tem sido uma ciência teórica, um campo de conjeturas mais do que uma ciência dura. No entanto, com a descoberta da Substância Z, estamos agora preparados para trazer a manipulação dos átomos para a esfera prática da ciência e da manufatura. Durante os últimos dois anos, estudámos os efeitos das unidades «nanobóticas» que encontramos na Substância Z em tecidos embriónicos jovens. Descobrimos que a manipulação se revelou mais eficaz no estado blástula do zigoto humano, durante o qual as células são mais indiferenciadas e maleáveis. Ao observar o funcionamento destes nanobots, e através de um processo de engenharia reversa, esperamos ser capazes de construir os primeiros protótipos num futuro recente. Por ora, realizámos uma importante descoberta, pela nossa parte. O primeiro passo para tornar a nanotecnologia uma realidade: Já conhecemos o objetivo programado dos nanobots que descobrimos na Substância Z.
Franzindo o sobrolho, Dale desligou o gravador e espreguiçou-se para aliviar um pouco a tensão do pescoço. Estava orgulhoso da sua pesquisa, mas uma dúvida irritante ainda lhe preocupava a consciência. Levando consigo o aparelho de ditado, avançou para a janela selada.
Uma vez ali chegado, carregou num botão e as venezianas abriram-se, revelando os conteúdos da câmara de incubação do laboratório anexo. Um caldo amarelado borbulhava e redemoinhava. Pequenas centelhas douradas voavam como pirilampos no meio da mistura. Flocos de colónias de nanobots. Substância Z.
Mas não fora aquele caldo de nutrientes especial a atrair Dale.
Pendurados em duas estantes estavam doze fetos humanos em desenvolvimento. Inclinou-se ligeiramente para a frente para os estudar. Os pares do segundo trimestre estavam já a desenvolver os tocos das asas. Cabeças, bulbosas e demasiado grandes para as minúsculas estruturas, pareciam virar-se na sua direção. Grandes olhos negros fitavam-no, por ora sem pálpebras. Pequenos braços, com duas articulações, moviam-se lentamente. Um dos fetos chupava o polegar minúsculo. Dale apercebeu-se do brilho dos dentes afiados.
Ergueu de novo o gravador e ligou-o.
— Acredito que os meteoros de ouro descobertos pelos incas eram, na verdade, uma espécie de esporos extraterrestres. Incapazes de se transportar fisicamente, uma civilização alienígena semeou estas sondas de nanobots pelas estrelas. Como um dente-de-leão que lança as suas sementes, as sondas espalharam-se pelo espaço, na esperança de encontrarem terreno fértil entre os inúmeros planetas. Respondendo aos padrões de vida senciente, as sondas de ouro atrairiam os curiosos com a sua natureza transmorfa e assim obteriam as suas presas. Uma vez captadas, os nanobots poderiam manipular este «material cru» ao nível molecular, acabando por consumir a biomassa senciente do planeta e reconstruir a sua própria raça alienígena, assim espalhando a sua civilização entre as estrelas.
Dale desligou o gravador.
— Mas não aqui — murmurou.
Inclinando-se para a frente, Dale estudou o maior dos fetos em desenvolvimento. Este pareceu sentir a sua atenção e tentou apanhá-lo com os pequenos punhos com garras. Suspirando, Dale repousou a testa contra o tanque de vidro. O que iremos aprender um com o outro? O que iremos descobrir? Os lábios da minúscula figura repuxaram-se num silvo silencioso, expondo uma fileira de dentes afiados. Dale ignorou a exibição infantil de agressão, satisfeito com o sucesso do seu trabalho. Assentou a palma da mão no vidro.
— Bem-vindo — sussurrou aos recém-chegados. — Bem-vindos à Terra.
James Rollins
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