Biblio VT
A mensagem de Burnett para Derek dizia quase a mesma coisa: Traga Kylie ao escritório agora! Então, Kylie e Derek correram para o escritório. Ela poderia ter corrido mais rápido se deixasse Derek para trás, mas se conteve. Que diferença fariam mais alguns segundos?
No entanto, no momento em que ela chegou na frente do escritório, seu coração estava martelando no peito. Do esforço ou de medo do que a aguardava, Kylie não sabia ao certo.
Ela ainda não tinha subido o degrau do escritório quando ouviu as vozes.
Droga!, pensou Kylie, o que será que seu padrasto estava fazendo ali?
— É meu padrasto — Kylie disse a Derek. — É melhor eu cuidar disso sozinha.
Ela correu para dentro e encontrou Burnett, Holiday, o padrasto e Jonathon na sala de Holiday. Que diabos Jonathon estaria fazendo ali? Tom Galen estava no meio da sala, de frente para a mesa de Holiday. A fae estava sentada na cadeira com um ar descontraído, como se fosse a própria personificação da calma, mas a postura do seu padrasto não expressava o mesmo estado de espírito. Os ombros dele estavam rígidos, as mãos crispadas.
E, assim como seu padrasto, Burnett parecia um pouco tenso, mas ela poderia dizer que ele estava tentando se conter. Mas Jonathon... o vampiro parecia apenas se sentir culpado. E Kylie teve um mau pressentimento.
O olhar de Holiday se desviou brevemente para Kylie, assim como o de Burnett, mas o padrasto não percebeu que ela estava lá.
— Que tipo de escola vocês têm aqui? — perguntou Tom Galen, num tom indignado.
— O mesmo tipo de escola que você vê em todo lugar — respondeu Holiday, com a voz tranquila. — Nós temos um portão de segurança por uma razão. Você passou por ele e disparou o alarme. Foi equivocadamente considerado uma ameaça.
— Eu não sou uma ameaça, droga! Eu sou o pai de uma aluna.
— Os pais não costumam tentar invadir a escola dos filhos — Burnett insistiu.
— O que aconteceu? — perguntou Kylie.
O padrasto se virou e sua tensão diminuiu pelo menos um pouco ao vê-la.
— Eu pulei o portão, em vez de apertar a campainha, e por um instante pensei que estava entrando num quartel-general. Fui interceptado por esse moleque aqui.
Holiday levantou os olhos e Kylie pôde ver por sua expressão que ela estava tentando ser simpática.
— Jonathon viu seu pai e fez um mau julgamento. Em vez de fazer perguntas, como deveria ter feito, ele o deteve...
— Deteve? Ele me derrubou no chão! — O padrasto esfregou a lateral do corpo. — E preciso dizer que, para um garoto franzino, ele é um bocado forte!
— Sentimos muito — disse Holiday. — Não sentimos, Jonathon?
— Sim, muito, senhor — concordou Jonathon.
— Pai — disse Kylie. — A namorada do Jonathon foi atacada na semana passada. Você pode entender que ele se sente um pouco superprotetor agora.
Jonathon concordou com a cabeça. Holiday olhou para Kylie, como se dissesse, boa jogada.
Burnett pareceu concordar.
O padrasto suspirou.
— Sinto muito que a sua namorada tenha sido atacada. Ela está bem? — ele perguntou a Jonathon.
— Está — disse Jonathon, e então se encolheu como se tivesse se lembrado de demonstrar boas maneiras. — Ah, quero dizer, sim, senhor, e muito obrigado.
Com a maior parte da tensão se dissipando, Kylie olhou para o padrasto.
— O que você está fazendo aqui, pai?
Ele franziu a testa.
— Vim vê-la. Eu lhe escrevi um e-mail ontem à noite e liguei esta manhã. Você saberia que eu estava chegando, se tivesse atendido à minha ligação ou lido o meu e-mail.
— Sinto muito — disse ela. — Foi uma manhã muito agitada.
— Ela estava assistindo aula — Burnett acrescentou.
O padrasto pareceu querer pedir desculpas.
— Minha empresa me enviou a Shadow Falls para uma reunião numa filial. Mas só vai começar às duas da tarde, e eu pensei que talvez pudesse te roubar um pouquinho, para que tomássemos o café da manhã juntos.
Atrás de Tom Galen, Kylie viu a carranca de Burnett. O vampiro havia deixado claro que ela não deixaria a escola sem ele até que tivessem certeza de que Mario não estava mais nas proximidades. Burnett olhou diretamente para Kylie e sacudiu a cabeça com determinação. Ele não estava simplesmente dizendo não, ele estava dizendo “Nem por cima do meu cadáver!”.
— Hã... eu já tomei café — disse Kylie.
— Bem, a gente pode simplesmente ir beber alguma coisa — disse o padrasto.
Kylie deu outra olhada rápida em Burnett. O homem ainda estava dizendo firmemente que não com a cabeça.
— Eu... tenho aula — disse Kylie.
A decepção encheu os olhos do padrasto. Ela odiava magoá-lo.
Aquela manhã ela já tinha magoado Lucas, depois Derek e agora o padrasto. Mas que dia...
— Mas, Kylie — contestou ele —, tenho certeza de que você tem uns minutinhos para conversar comigo.
Ela sentiu a tensão aumentar dentro dela e dentro da sala. O padrasto não ia desistir e, aparentemente, Burnett também não.
Aquele encontro não ia acabar bem...
Capítulo Vinte e Três
Kylie concentrou o olhar no padrasto, tentando não prestar muita atenção à cena que se desenrolava atrás dele — ou seja, a discussão não verbal entre Holiday e Burnett. Uma discussão que rivalizava com os antigos filmes mudos, incluindo alguns movimentos de mão muito irritados e algumas expressões faciais muito infelizes e efusivas.
— Hã... — disse Kylie, uma simples tática de adiamento porque, precisava admitir, não tinha a menor ideia do que dizer.
— Claro que você deve passar algum tempo com seu pai — Holiday finalmente disse.
Burnett cerrou o maxilar com tanta força que Kylie poderia apostar que os dentes do vampiro tinham se achatado alguns milímetros.
Holiday se levantou.
— No entanto, Kylie tem uma prova na próxima aula. Que tal voltar em cerca de uma hora ou uma hora e meia e vocês dois podem ir almoçar em algum lugar? Acho que Kylie estava me dizendo outro dia que há uma lanchonete no centro de Shadow Falls aonde ela queria ir. Como se chamava? Burgers R Us?
Kylie acenou com a cabeça, mesmo sem saber a que restaurante Holiday estava se referindo.
A expressão de Burnett ficou menos tensa; ou ele estava sendo mais razoável ou já estava a par do plano de Holiday. Kylie só queria estar a par desse plano também, porque ela não fazia ideia do que estava acontecendo.
O padrasto se virou para Kylie.
— Acho que eu poderia dar uma volta de carro e voltar ali pelas onze horas. Há lugares muito bonitos por aqui.
— Seria ótimo! — disse Kylie.
— Ok! — concordou o padrasto, estendendo a mão e puxando-a para um abraço apertado. O calor de seu abraço infiltrou-se no peito de Kylie e deveria ter feito desaparecer seu pânico. E ele provavelmente teria se dissipado se, sobre o ombro dele, ela não estivesse vendo uma espada a ponto de cair de algum lugar mais acima. A arma bateu com força no chão e causou um barulho metálico ao se fincar na madeira, de pé, bem no meio da mesa de Holiday.
O coração de Kylie deu um salto e ela sentiu o padrasto se encolher ao ouvir o barulho. Um pensamento surgiu em sua cabeça. Como iria explicar isso a ele?
Burnett voou para a mesa na velocidade de vampiro. Pegou a espada, derrubando a xícara de chá de Holiday, e escondeu a arma atrás das costas num movimento rápido.
Apenas uma fração de segundo depois, o pai dela se afastou e se virou para verificar a fonte do barulho.
— Que mer... porcaria é essa? — Jonathon murmurou, e então corou quando percebeu o que quase disse.
Burnett fez uma careta para Jonathon. Holiday sorriu, merecendo ganhar um Oscar pela sua atuação.
— Caramba, juro que essa é a segunda xícara de chá que eu derrubo hoje!
O padrasto apenas olhou para Kylie, que não tinha respirado desde a aparição milagrosa da espada.
— Então eu vejo você em uma hora e meia.
Ela assentiu com a cabeça e inspirou.
— Combinado? — ele perguntou.
Ela encheu os pulmões de oxigênio e, com sorte, o cérebro também.
— Você vai me acompanhar até lá fora? — ele perguntou.
Sentindo-se um pouco como um daqueles bonequinhos com a cabeça de mola, ela balançou a cabeça novamente e acrescentou um sorriso, esperando parecer mais convincente.
O padrasto deu um passo e parou, olhando para ela.
— Você está bem? Parece que viu um fantasma.
Um fantasma que poderia ter que enfrentar, ela pensou.
— Estou bem. — As palavras saíram estridentes. Infelizmente, ela simplesmente não era uma atriz digna de um Oscar como Holiday.
— Acho que dá pra ir — disse Kylie ao padrasto, erguendo os olhos do folheto sobre uma excursão com guia através do Grand Canyon — uma viagem que ele estava planejando para os dois no verão. — Parece ótimo! — Não era realmente uma mentira, mas ela apostaria que Chris, o vampiro sentado a uma mesa de distância dela e do pai, no restaurante, já devia ter ouvido seu coração falar algo diferente.
Ela sentiu Lucas, sentado em frente a Chris, olhar para ela e seu coração deu um pequeno salto. Burnett tinha escolhido duas pessoas — duas que ele achava que o padrasto dela provavelmente não iria reconhecer — para bancarem os guarda-costas disfarçados durante o almoço. Quando ele lhe dissera que colocaria duas pessoas para protegê-la no restaurante, ela não tinha considerado que ele escolheria Lucas.
Mal sabia Burnett que Kylie temia que o padrasto reconhecesse Lucas da época em que ele era apenas um garoto e morava numa casa vizinha à deles. O garoto que Kylie tinha acusado de matar seu gato.
Felizmente, o padrasto não tinha prestado muita atenção em Lucas até aquele momento. Nem notara o falcão seguindo o carro por todo o trajeto até a cidade. Ela apostava seu melhor sutiã que o falcão respondia pelo nome de Perry.
Kylie tinha tido tempo, antes do retorno do padrasto, para encontrar Miranda e certificar-se de que ela estava bem. A bruxinha ainda estava abalada. Ela havia feito as pazes com Perry, mas tinha um horário marcado com Holiday, para uma conversa séria. Sem dúvida, suas atitudes teriam algumas consequências. Embora Miranda não estivesse ansiosa para saber que consequências eram essas, ela concordava que tinha agido mal.
— Eu achei que você ia gostar — disse o padrasto, fazendo-a voltar a atenção para o presente. — É mais ou menos como o que fizemos em Taos, no Novo México. Haverá um trecho que teremos que percorrer de caiaque, mas nada muito perigoso.
Os olhos do pai se iluminaram com entusiasmo. Kylie se sentiu mal por não sentir a mesma emoção. Ela praticamente tinha passado os últimos 45 minutos ali rezando para que a espada não aparecesse e matasse algum cliente do restaurante. Mas agora, vendo os olhos do padrasto assumirem uma expressão de preocupação, ela se esforçou mais para fazer uma cara melhor.
— Lembra do filhote de cervo que vimos naquela viagem?— perguntou Kylie. — E aquele líder de acampamento que perdeu feio todos os jogos?
— Ah, sim. — O sorriso dele se alargou. — Fizemos algumas viagens muito legais.
— É mesmo! — Ela colocou a mão em cima da dele e ele virou a palma para cima e apertou a dela. Ela sentiu o amor irradiando da palma do padrasto.
— Você sabe o quanto eu sinto sua falta? Eu realmente gostaria que você pensasse em voltar a morar comigo.
Ela mordeu o lábio, lembrando de que isso era tudo o que ela queria quando ele saíra de casa. Sua vida naqueles três meses tinha mudado tanto!
Dando outro aperto na mão do padrasto, ela disse:
— Eu realmente gosto de Shadow Falls. Mas a gente vai fazer essa viagem no verão! — Deus!, ela esperava que Mario já tivesse sido pego até então, e ela não estivesse mentindo.
Ele assentiu.
— Eu entendo. Minha menininha está crescendo. — A emoção encheu os olhos dele e ele olhou em volta. O coração de Kylie quase parou com medo que ele reconhecesse Lucas.
— Você gostou do hambúrguer? — ela deixou escapar, para chamar a atenção dele para ela.
— Adorei. Você estava certa ao sugerir que viéssemos aqui. Mas você mal tocou na comida. — Ele apontou para o prato de Kylie, com o hambúrguer e as batatas fritas esfriando.
— Eu tomei um bom café da manhã — Kylie mentiu. — Mas estava bom. — Kylie olhou para o relógio. Era quase uma da tarde. Burnett tinha atrasado um pouco o padrasto para que chegassem ao restaurante depois da hora de maior movimento. Seu peito apertou um pouco quando ela percebeu que, em menos de uma hora, ela teria que enfrentar os Brightens, os pais adotivos de seu verdadeiro pai. Ah, droga, ela ainda não tinha um plano de como abordá-los.
Ela voltou a olhar para o padrasto.
— Você sabe, está ficando tarde.
— Eu sei, você vai se transformar em abóbora se eu não te levar de volta. — Ele assinou a fatura do cartão de crédito que Kylie já pedira para a garçonete trazer.
De repente, ela sentiu que as três cocas que bebera por puro nervosismo a tinham deixado com a bexiga estourando.
— Vou dar um pulinho ao toalete primeiro, antes de irmos embora.
— Vá, eu preciso fazer uma ligação para o trabalho, de qualquer maneira.
Quando ela começou a andar até o banheiro, Lucas fez uma cara de preocupação. Ah, pelo amor de Deus!, Kylie pensou, o que poderia acontecer a ela no banheiro?
Ok, muita coisa podia acontecer. Mario poderia acontecer. Mas ela tinha que fazer xixi.
Chris e Lucas sussurraram um para o outro sobre a mesa e, em seguida, Chris se levantou e disparou na frente de Kylie, em direção aos banheiros. Ela esperava que ele soubesse que ele não iria entrar no banheiro com ela. Ela nunca conseguiria fazer xixi com ele dentro do banheiro.
Kylie o encontrou esperando ao lado da porta do banheiro masculino. Como se ele planejasse apenas ficar ali de guarda e ouvir. E só de saber que provavelmente ele poderia ouvir o que ela estava fazendo dentro do banheiro, concluiu que fazer xixi seria impossível.
— Faça o que tem que fazer e saia — disse Chris, sério como um agente secreto.
— Tudo bem — Kylie empurrou a porta por dentro.
No momento em que a porta se fechou atrás dela, alguém dentro de um dos reservados pôs pra tocar uma estranha música cajun. Gosto não se discute, ela pensou, ao entrar no outro reservado.
Ela não estava lá nem há um minuto, finalmente começando a apreciar o ritmo frenético da música, quando ouviu um barulho mais acima. Ergueu os olhos e viu um par de mãos segurando a parte superior da porta. Em seguida, um pé apareceu enquanto alguém escalava a porta.
Merda.
Não poderia haver nada pior do que enfrentar um intruso enquanto se está fazendo xixi, ao mesmo tempo em que se tenta se equilibrar acima do assento sanitário.
Kylie ficou de pé, preparando-se para enfrentar quem quer que já estivesse prestes a entrar no reservado.
Por azar, ela não tinha conseguido parar o fluxo de xixi por completo.
Imediatamente percebeu que tinha errado a pontaria. Não poderia haver coisa pior. Ser pega em flagrante no banheiro, meio agachada, com xixi escorrendo pela perna, enquanto se enfrenta a cara da quase noiva do sujeito que você ainda ama.
— O que você está fazendo aqui?! — Kylie retrucou, sabendo que mostrar medo de um lobisomem podia ser perigoso.
— Não é óbvio? Eu estava curiosa?
— Para ver meus hábitos no banheiro? — Kylie perguntou, num tom irritado.
Ela sorriu.
— Para ver você.
Não achando que a garota iria pular na sua garganta — e ei, se ela fizesse isso, Kylie não queria morrer com xixi escorrendo pela perna! —, ela arrancou alguns pedaços de papel higiênico e secou o líquido escorrendo pela coxa.
Calcinha no lugar, calça jeans abotoada, ela enfrentou Monique e decidiu apenas se livrar dela.
— Você deve saber que a qualquer segundo um vampiro vai entrar correndo aqui. Se eu fosse você, sairia correndo.
Monique arqueou uma sobrancelha.
— Então Lucas não te ensinou o truque secreto para lidar com vampiros curiosos, hein? Apenas um pouco de música da Louisiana e a superaudição deles vai para o brejo.
Kylie fez uma careta. Não, ela não conhecia esse truque, e estava um pouco ofendida por Lucas não ter lhe ensinado. Mas por que ele faria isso? Guardar segredos dela era a especialidade dele.
— O que é que você quer realmente, Monique? — perguntou Kylie.
Monique deu de ombros.
— Eu já disse. Estava curiosa. Você sabe quantos pretendentes pediram a minha mão ao meu pai? E, então... o sortudo que ele finalmente escolheu para viver comigo a vida inteira nem quer mais ouvir falar de mim.
Kylie ouviu o ressentimento na voz de Monique. Mas estranhamente ele pareceu estar mais relacionado ao fato de ser forçada a aceitar um casamento arranjado do que à falta de disposição de Lucas para levar adiante o noivado. Não que Kylie não tivesse reparado na parte sobre Lucas não querer mais nem ouvir falar de Monique. Ele tinha dito isso a Kylie, Fredericka tinha dito a mesma coisa, mas ouvir isso da outra garota fez muito bem ao seu ego.
— Então, agora, você quer descarregar toda a sua raiva em cima de mim, não é?
— Não. — Ela franziu a testa e começou a verificar o padrão de Kylie.
Kylie virou a cabeça e tentou mudar seu padrão, mas obviamente não foi rápida o suficiente.
— Uau, isso é estranho! O que exatamente você é?
— Simplesmente um mistério — disse Kylie, começando a ficar desconfiada com o fato de estar num reservado com Monique — desconfiada, porque isso era o que todos os camaleões temiam: ser notados, chamar a atenção para a sua raça.
— Você se importa de se retirar? — perguntou Kylie.
Monique retrocedeu alguns passos e estendeu o braço para trás para destrancar a porta do reservado, sem tirar os olhos de Kylie.
— Tem certeza de que você não tem um tumor no cérebro?
— Provavelmente é isso. — Kylie fez sinal para ela sair do caminho.
A menina deu um passo e depois parou.
— Mas dizem que você é uma protetora também. E, na cerimônia, me disseram que tinha um padrão de lobisomem. Como você consegue...
Kylie espremeu-se contra a parede para sair do reservado e foi lavar as mãos. E por mais que não quisesse pensar nisso, na sua mente surgiu novamente a imagem do beijo que ela tinha visto Lucas dar em Monique.
— Você ainda está brava com ele? — perguntou Monique. — Aposto que está furiosa.
Kylie bombeou a saboneteira com mais força do que o necessário. Quando ela olhou o reflexo da loba no espelho, percebeu novamente o quanto Monique era bonita. Os olhos dela eram castanhos escuros, com longos cílios que combinavam com seu cabelo preto. Os lábios eram carnudos e voluptuosos como os de algumas atrizes famosas. Sim, ela tinha um rosto lindo, acompanhado por um corpo curvilíneo e perfeito.
Esfregando as mãos, Kylie disse:
— Se você não se importa, não acho que isso seja algo que eu queira discutir com você.
— Se fosse você, eu me bombardearia de perguntas. — Ela inclinou a cabeça para o lado e observou o reflexo de Kylie como se estivesse tentando entendê-la. — Já que você não é curiosa, isso significa que acredita quando ele diz que não estávamos realmente juntos. Ou pelo menos quer acreditar — completou Monique. — Você não quer me perguntar?
Uma dor profunda envolveu o coração de Kylie.
— Você já disse que ele não quer mais ver você.
— Eu quis dizer que ele não queria se casar, mas você sabe como são os homens, eles sempre querem outras coisas.
Kylie colocou as mãos embaixo da torneira e enxaguou-as. Então olhou para o reflexo de Monique novamente.
— Você estava certa da primeira vez. Eu acredito nele. — E as palavras deslizaram de sua boca e não afetaram nem um pouco o seu batimento cardíaco. Até ela ficou um pouco surpresa.
— Então por que ainda está brava com ele? Clara me disse que você mal o cumprimenta. Que ele vive andando por aí como um filhotinho abandonado.
Kylie pegou algumas toalhas de papel.
— Deixe-me repetir: eu realmente não tenho intenção de discutir isso com você.
Monique balançou a cabeça como se estivesse confusa com o comportamento de Kylie.
— É preciso coragem para fazer o que ele fez. Para romper um noivado. Para arriscar tudo. — Ela inclinou a cabeça para o lado e estudou Kylie mais uma vez. — Você sabe tudo o que ele arriscou, não sabe?
Kylie não respondeu. Fechou os olhos por um segundo e desejou que não precisasse ouvir isso.
— A própria alcateia está pensando em bani-lo — continuou Monique. — Se ele não conseguir entrar naquele Conselho, terá perdido tudo. O pai praticamente o denunciou. Eu soube que os anciãos pediram uma reunião para discutir as atitudes dele. Meu pai ainda está pensando em contratar alguém para matá-lo!
Kylie se virou e olhou para Monique.
— E você vai deixar?
— Deixar?! Eu disse a ele que estou muito feliz por ter me livrado desse compromisso, mas o que eu digo não tem nenhuma importância para o meu pai. Como acontece com Lucas, esperam que eu siga as regras. Ainda bem que o noivado foi cancelado antes de eu começar a gostar do cara. — Monique se aproximou um pouco. — Pode me chamar de romântica, mas acho que é um pouco triste que, depois de tudo o que ele fez, você não o aceite de volta. Não que você fosse ficar com ele por muito tempo. A expectativa de vida de um lobo solitário é muito curta. Ou você pertence a uma alcateia ou é visto como uma presa por qualquer um que esteja com fome durante uma caçada.
A porta do banheiro se abriu. O lobo solitário então invadiu o banheiro parecendo preparado para matar. Quando seus olhos cruzaram com os de Monique, seus instintos assassinos diminuíram, mas sua cara feia se intensificou.
— Que diabos você está fazendo aqui?!
Monique deu de ombros.
— Se uma garota quer mijar, ela tem que entrar aqui! — Monique passou por ele sem nenhuma vergonha e saiu pela porta. — Passe bem, Lucas.
Lucas nem sequer olhou-a sair. Ele fitou Kylie, seu olhar quase uma carícia.
— Sinto muito. Ela não tinha o direito de...
— Ela não fez nada. — Kylie torceu com força as toalhas de papel, rasgou-as em duas, rasgou-as mais uma vez e, em seguida, jogou-as no lixo. Depois engoliu o nó que se formava em sua garganta. — Você deveria ir com ela. Cumprir o compromisso que assumiu.
— O quê? — Ele olhou para Kylie como se ela tivesse perdido a cabeça.
— Você me ouviu — ela insistiu.
Ele balançou a cabeça.
— Você não está falando sério.
— Sim, estou! — disse ela. E estava sendo absolutamente sincera. Como poderia não fazer nada e vê-lo perder tudo? Assistir à sua própria alcateia bani-lo, sabendo que era por causa dela?
— Você só está com raiva de mim.
— É isso aí! Pode ter certeza de que ainda estou com raiva de você. — As lágrimas encheram seus olhos, quando a honestidade ecoou em sua voz. — Você me traiu. Dói pra caramba saber que você me deixou todas aquelas vezes e foi vê-la. Mas você quer saber com quem eu estou mais furiosa? Comigo mesma. Eu sabia há muito tempo como isso iria acabar. Sabia que o fato de eu não ser um lobisomem acabaria destruindo qualquer chance que tínhamos.
— Eu não me importo com o que você é! — ele rosnou.
— Você deveria se importar. Porque o preço que tem que pagar é alto demais.
Ela viu a dor cintilando nos olhos dele.
— Mesmo que você não tivesse me traído, eu não iria deixá-lo pagar esse preço. Acabou, Lucas, aceite isso e não estrague a sua vida por minha causa.
Com a cabeça erguida, ela saiu. Infelizmente, seu coração se parecia com as toalhas que ela tinha acabado de jogar na lixeira: retorcido e esfarrapado.
* * *
Kylie observava Perry — ainda na forma de um falcão — seguir o carro do padrasto enquanto eles voltavam a Shadow Falls. Ao volante, ele falava sobre a possível viagem ao Grand Canyon. Quando diminuiu a velocidade para entrar no estacionamento de Shadow Falls, Kylie notou um Cadillac prata na frente deles, com o pisca-pisca ligado, também entrando no estacionamento. As janelas escuras do carro a impediram de ver quem dirigia, mas ela não pôde deixar de se perguntar se não seriam os Brightens — os pais adotivos do seu verdadeiro pai.
O estômago de Kylie começou a se contrair. Ela ainda não sabia o que dizer e o que não dizer. Seu coração continuava ecoando a dor que sentira ao falar com Lucas, mas precisava deixar isso de lado. Infelizmente, tinha problemas demais para poder se entregar a um só.
Ela olhou para o relógio. Eram vinte para as duas. Poderiam realmente ser eles caso gostassem de chegar mais cedo aos compromissos.
Olhando para o pai, agora falando sobre o equipamento de camping de que iriam precisar, ela percebeu o quanto seria estranho se ele tivesse que encontrar os Brightens. Isso provavelmente a obrigaria a explicar um monte de coisas que ela não sabia como explicar. E, provavelmente, acabaria magoando o padrasto, algo que ela não queria fazer.
O carro prata cruzou os portões e estacionou numa vaga de visitantes. O padrasto estacionou duas vagas mais adiante. Soltando o cinto de segurança antes que o padrasto tivesse tempo para desligar o carro, ela se inclinou e lhe deu um beijo na bochecha.
— Obrigado pelo almoço. Eu preciso entrar.
— Ei, não vá embora tão rápido, eu tenho tempo para entrar com você. Preciso aproveitar cada segundo que temos juntos.
Capítulo Vinte e Quatro
— Ok — disse Kylie, um pouco em pânico. — Bem, vai ter que ser um passeio rápido, porque eu... eu tenho que fazer xixi.
— Você foi ao banheiro no restaurante — o pai disse, como se os hábitos dela no banheiro o preocupassem.
— Devo ter uma bexiga pequena. — Ela saiu do carro. Desviou os olhos brevemente para o outro carro e, pelo vão da porta do lado do passageiro, ela viu...
— Ah, merda! — Não eram os Brightens. E agora ela realmente desejava que fossem eles.
Era a mãe e... Ela observou com puro horror a cabeça de John aparecer do outro lado do carro.
— Kylie? — a mãe gritou com voz severa.
Ela se virou para o pai.
— Você tem que ir antes... antes que as coisas se compliquem...
— Tudo bem. — O pai dela parecia envergonhado. — Não é por causa do que aconteceu da última vez que não podemos ser civilizados um com o outro.
A postura e a expressão da mãe enquanto se aproximava do carro pisando duro não pareciam estar de acordo com a declaração “civilizada” de seu padrasto. Ah, pelo amor de Deus!, Kylie não estava com ânimo para lidar com o drama dos pais agora.
Mas, à medida que ela se aproximava, Kylie notou que a mãe, com o cabelo despenteado, a roupa amassada, os olhos vermelhos, não fulminava seu pai, mas Kylie!
Ok... qual era o drama agora? Era entre os pais? Ou...
— É verdade?! — vociferou a mãe.
Kylie se lembrou imediatamente de que a mãe tinha acabado de voltar da Inglaterra, o que explicava sua aparência, mas não explicava a sua fúria.
Kylie olhou para o pai para ver, pela sua expressão, se ele fazia ideia do que a mãe estava falando. Mas ele parecia igualmente surpreso.
— O que é verdade? — perguntou Kylie, notando John se aproximar até parar ao lado da mãe. Ele não parecia abatido ou sob o efeito da mudança de fuso horário. Mas só a visão do homem já lhe dava um mau pressentimento.
— Você ligou para seu pai por causa disso, mas não para mim? — a mãe perguntou. Kylie viu Holiday e Burnett saindo às pressas do escritório, pensando provavelmente que outra troca de socos em público estava prestes a acontecer.
Voltando a olhar para a mãe, Kylie rezou para que aquilo — o que quer que fosse — não se transformasse num caos.
— Eu não liguei para ele por causa de nada. Do que você está falando?
— Você usou o cartão de crédito que eu lhe dei?
Kylie concordou com a cabeça, a mente dando voltas e logo se dando conta da possível resposta para aquilo tudo. Mas Kylie realmente esperava estar errada.
— Você está grávida?! — a mãe deixou escapar.
Ok, então Kylie não estava errada. Ela abriu a boca, mas nada saiu.
— Ela está grávida?! — O pai olhou para Kylie com um olhar severo. — Nós não vamos poder fazer aquela caminhada agora!
— Não dá pra acreditar! — sibilou a mãe, fervendo de raiva. — Você ouve que a sua filha está grávida e fica preocupado com uma caminhada.
— Não, eu estava... Estou só em estado de choque.
Ele não era o único chocado.
— Parem! — gritou Kylie.
— Só me responda, mocinha! — mandou a mãe.
— Não, eu não estou... grávida. — Kylie sacudia a cabeça para os lados, imitando o movimento que Burnett fazia quando estava indignado. — Eu ainda nem... Eu sou... — Eu ainda sou virgem! As palavras estavam na ponta da língua, mas ela não podia dizê-las.
— Então por que você comprou três testes de gravidez?
— Você comprou três testes de gravidez? — o pai repetiu.
Kylie de repente percebeu outro carro estacionando ao lado do Cadillac de John. Ele não tinha vidros escuros, mas isso não importava, porque as janelas estavam abertas e o casal de idosos no banco da frente, ambos com o rosto voltado para eles, ouviam o tumulto em curso.
De repente Kylie percebeu quem eram aquelas pessoas.
Os Brightens!
Tinha que ser, não é? Com a sorte de Kylie, sim, tinha que ser os avós.
Que maravilha!
Simplesmente maravilhoso!
Os joelhos de Kylie começaram a formigar, sinalizando seu desejo de desaparecer.
Agora não! Agora não!
Respire fundo e relaxe. A voz veio com um certo calafrio familiar.
Kylie olhou em volta e não o viu, mas podia ouvi-lo. Papai?
Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
Seus pais vão pensar que eu sou uma vadia.
Não. Eles vão te adorar. Você vai ver. Vão ficar impressionados com você. E logo, logo estaremos juntos.
Kylie arquejou. Eu vou morrer?
Papai? Daniel? Ele e seu frio familiar tinham desaparecido.
Kylie sorveu uma lufada de ar. Agora, além de se preocupar com sua possível morte próxima e convencer a todos de que não estava grávida, ela tinha que se preocupar se os Brightens iriam gostar dela. Porque, se não gostassem, isso iria, sem dúvida, magoar o pai.
Ah, mas que inferno! Talvez ela devesse simplesmente desaparecer.
* * *
Daniel estava certo, pelo menos quando disse que tudo ia ficar bem. Ela ainda tinha que enfrentar os Brightens. Mas, em dois minutos, Holiday já os levava pelo braço e os escoltava até o escritório.
Para grande alívio de Kylie, seus pais não tinham a menor ideia de quem eles eram.
E, em cinco minutos, o padrasto já estava a caminho da sua reunião e a mãe tinha se acalmado. Não completamente, mas um pouco mais.
Holiday explicou toda a confusão com os testes de gravidez de um modo muito mais racional do que realmente havia acontecido. Alegou que os testes eram para ela e que ela tinha esquecido a bolsa e Kylie tinha feito a gentileza de lhe oferecer o cartão de crédito, e ela já tinha enviado um cheque para a mãe... E assim por diante. Sim, Holiday simplesmente mentiu, mas a mentira soou muito bem.
A mãe explicou que, após o voo, descobrira que a empresa do cartão de crédito tinha ligado e achado que o cartão poderia ter sido roubado, porque ele nunca tinha sido usado e a compra havia sido feita em Shadow Falls, não em Houston. A mãe queria ter certeza de que o cartão não havia sido roubado e ligou para a farmácia para verificar a compra.
Foi quando ela foi informada de que o cartão tinha sido usado para pagar três testes de gravidez e o comprador tinha sido uma tal de Kylie Galen.
Depois que a mãe tinha se acalmado, Holiday voltou para o escritório. Kylie passou cerca de cinco minutos conversando com a mãe, fingindo estar interessada em suas divagações tolas sobre a Inglaterra.
Finalmente, a mãe confessou que estava cansada demais até para pensar, quanto mais para falar.
Beijou a testa de Kylie, disse que estava orgulhosa por ela não estar grávida e pediu a John para levá-la para casa.
John tinha dito apenas duas palavras durante todo o tempo que estivera ali, mas Kylie o pegara olhando para ela de uma forma que a deixou irritada.
Porém, quando o homem colocou o braço em torno da mãe dela e gentilmente beijou sua testa, dizendo que ela poderia dormir enquanto ele dirigia, Kylie sentiu uma pontada de culpa por não gostar dele.
Talvez Kylie precisasse mudar de atitude com relação a John. Porque, se ele fazia a sua mãe feliz, Kylie ficava feliz também.
“Mentirosa”, seu coração parecia dizer ao pular duas batidas. Ela não estava nem um pouco feliz com John. Mas talvez Kylie precisasse refletir sobre isso. Tentar gostar do homem. Parecia impossível. No entanto, tanta coisa em sua vida ultimamente parecia impossível — como a possibilidade da sua morte iminente, como romper com Lucas... — que talvez ela só precisasse se esforçar um pouco mais.
Despedindo-se da mãe, Kylie voltou ao escritório para enfrentar os Brightens. E sentiu mais uma vez o estômago se contraindo. E por uma boa razão. A primeira conversa com seus avós recentemente descobertos não deveria ser sobre gravidez. Mesmo quando a conversa era sobre não estar grávida.
Parando na porta do escritório, mentalmente exausta, ela pensou sobre como seu dia tinha começado em uma espiral descendente, desde que Miranda havia transformado Nikki num canguru cheio de espinhas.
Aquele, definitivamente, ia ser lembrado como um dos dias mais bizarros da sua vida.
Endireitando os ombros, determinada a enfrentar aquele encontro com os pais adotivos de Daniel, com a esperança de que a espada não aparecesse novamente, Kylie decidiu que, após a visita, ela iria para a sua cabana chorar ou comer um quilo de chocolate.
Talvez as duas coisas.
Ela se lembrou da promessa do pai de que os Brightens a adorariam e, embora confiasse no pai com todo o seu coração, não podia deixar de se preocupar. Mas talvez eles ficassem tão felizes por ter uma neta que não se importassem com a possibilidade de ela estar dormindo com rapazes e possivelmente grávida.
Um pouco antes de estender a mão para girar a maçaneta, Kylie teve uma leve sensação de déjà-vu. Ela já tinha estado ali antes — a ponto de entrar naquele escritório, pensando que encontraria os Brightens. Claro que acabou descobrindo que eram seu verdadeiro avô e sua tia. Mas o mais importante era que ela se recordava com clareza do medo e da ansiedade que sentira na ocasião.
Um sentimento inexplicável de realização invadiu seu coração. Embora tivesse acabado de admitir que estava preocupada e só queria um quilo de chocolate ou um boa sessão de choro, o que ela sentia agora era muito mais administrável.
Não importava o que acontecesse lá dentro, Kylie seria capaz de lidar com aquilo. Ela quase podia ouvir Nana, mãe de sua mãe, sussurrando lá do céu: Minha pequena Kylie está crescendo.
De repente, sentindo-se um pouco mais confiante e decidida a pensar que talvez tudo de que ela precisasse, aquela tarde, fosse de um bom chocolate, Kylie entrou no escritório.
Holiday veio correndo até ela.
— Burnett levou os Brightens para a sala de reuniões; estão tomando chá. Ele levou a espada para a minha casa e trancou-a num armário, assim... talvez aquilo não vá acontecer novamente. Expliquei toda a situação da gravidez para os Brightens, também. — Holiday mordeu o lábio de preocupação. — Oh, Kylie, eu sinto muito. Foi tudo culpa minha. Coloquei você nessa encrenca.
— Está tudo bem — disse Kylie.
Holiday lhe deu um abraço rápido e reconfortante.
— Você está realmente bem?
Kylie suspirou.
— Um pouco nervosa, mas, sim, estou bem.
— Você quer que eu vá com você?
Kylie refletiu e em seguida, disse:
— Não, eu... eu acho que posso lidar com isso.
Holiday suspirou.
— Você está crescendo.
Kylie olhou para a fae.
— Eu poderia jurar que acabei de ouvir a minha avó dizendo isso.
— Ela disse — falou Holiday. — Ela estava aqui.
Kylie sorriu.
— Sério?
Holiday assentiu.
— Ela aparece nos momentos mais estranhos.
Kylie sentiu o amor da sua Nana se agitar dentro dela.
— Diga a ela que eu a amo — disse Kylie, e foi ao encontro das pessoas que tinham criado seu pai e provavelmente contribuíram para que ele se tornasse o grande homem, e espírito, que era.
* * *
Quando Kylie entrou, Burnett já estava de pé, pronto a pedir licença para sair.
— Vou deixar vocês três à vontade.
Enquanto passava, ele descansou a mão no ombro dela e lhe deu um aperto. Foi um toque frio, mas que expressou carinho e um incentivo, do tipo, “Você consegue, garota”. Ela se deu conta novamente da sorte que tinha por poder contar com as pessoas de Shadow Falls em sua vida.
No momento em que Burnett saiu e ela sentiu o olhar do senhor e da senhora Brighten sobre si, a contração no estômago voltou com força total.
Ela ficou um segundo apenas observando-os. O senhor Brighten era careca, tinha olhos cinzentos acastanhados e um rosto bonachão. A senhora Brighten tinha cabelos grisalhos abundantes e olhos castanhos. Ela tinha um olhar suave e amável. Seu rosto era um pouco rechonchudo e simpático. Como alguém que você escolheria numa multidão para fazer o papel de avó amorosa.
— Olá. — Kylie forçou um sorriso, mas não demais. Ela deu um passo para dentro da sala e decidiu esclarecer as coisas primeiro.
— Primeiro quero ter certeza de que vocês sabem que não estou grávida.
Capítulo Vinte e Cinco
— O diretor explicou. — A senhora Brighten continuou a olhar para ela.
— Eu também quero dizer que... que eu sei que vocês podem estar pensando que minha mãe e meu padrasto são meio malucos, depois de assistir a toda aquela cena no estacionamento, mas... — Ela se lembrou de respirar. — Mas... bem, às vezes eles são um pouco malucos mesmo, mas na maior parte do tempo, são gente boa. — A emoção provocou um nó na sua garganta e ela engoliu em seco. — Os dois me amam.
O senhor e a senhora Brighten balançaram a cabeça novamente. Um estranho tipo de constrangimento encheu a sala. Um constrangimento que Kylie esperava dispersar. Ela realmente queria que aquela visita desse certo. E não apenas pelo pai dela, percebeu, mas por si própria.
— Nos desculpe por olhá-la desse jeito — disse finalmente o senhor Brighten. — É que... você parece muito com o seu pai. É incrível.
Kylie sorriu novamente, desta vez de verdade. Ela se aproximou e se sentou em frente a eles à mesa.
— Eu sei.
— Você já viu fotos dele? — a senhora Brighten perguntou.
Sim, o verdadeiro pai dele e a tia trouxeram para mim quando estavam fingindo que eram vocês. Sim, ela tinha que mentir.
— Minha mãe tinha algumas fotos dele. — Então Kylie se lembrou de que sua mãe havia guardado o recorte do obituário com a imagem de Daniel.
Quase uma carranca apareceu na expressão da senhora Brighten.
— Eu não entendo por que ela não nos contou sobre você. Poderíamos ter... teríamos adorado acompanhar o seu crescimento. — Ela fez uma pausa. —Teria nos ajudado... a superar a perda do seu pai.
Kylie se lembrou de sua mãe dizendo que os Brightens deveriam odiá-la por isso.
— Ela sabe que foi um erro — Kylie disse, lembrando-se da mãe dizendo quase isso. — Mas ela era jovem, estava grávida e com medo. Meu padrasto, ele foi alguém que ela conheceu e que a amava. Ele concordou em se casar com ela, mas ele queria... que eu fosse registrada como filha dele. — Ela fez uma pausa. — Ele estava errado também, mas ambos estavam apenas tentando fazer o melhor que podiam.
A senhora Brighten assentiu.
— Eu imagino que deve ter sido difícil.
A preocupação de Kylie diminuiu.
— Espero que vocês possam perdoá-la. Porque... ela tem sido uma mãe incrível.
— Eu gostaria de poder conversar com ela.
Kylie ficou tensa.
— Tenho certeza de que isso é possível. Se não se importam, eu posso falar com ela... e depois dar um retorno a vocês. — Kylie fez uma oração para que a mãe fosse acessível. Mas ah, Deus, aquela ia ser uma conversa difícil.
Lágrimas encheram os olhos da senhora Brighten.
— Eu trouxe mais algumas fotos comigo, se você quiser ver.
— Eu adoraria — disse Kylie. — Obrigada.
A senhora Brighten pegou um pequeno álbum de fotos de uma grande bolsa bege. Enquanto Kylie folheava o álbum, ela reconheceu algumas das mesmas fotos que ela tinha. Seu verdadeiro avô tinha entrado escondido na casa dos Brightens e feito cópias para trazer a ela para que pudessem se passar pelos verdadeiros Brightens. Mas havia muitas que Kylie não tinha visto. E vendo as imagens do pai, ela sentiu a emoção crescer dentro dela.
— Se você quiser, pode ficar com elas — disse a senhora Brighten. — Eu fiz estas cópias para você.
Kylie sorriu.
— Muito obrigada! Eu vou guardar muito bem, eu prometo.
O senhor Brighten se sentou.
— Você até age como seu pai. Ele era tão... educado...
— É verdade — confirmou a senhora Brighten. — Ele era um menino tão bom! Sempre bondoso. Manso de espírito. Um pouco tímido, às vezes, mas...
— Acho que sou tímida também — disse Kylie. — Detesto quando sou obrigada a me levantar e falar em público ou fazer um seminário na escola. — Ou quando todo mundo está olhando para o meu padrão estranho. Ou pensam que estou grávida.
A senhora Brighten sorriu.
— Ele não gostava muito da escola. Sempre dizia que se sentia como se não se encaixasse bem em lugar nenhum.
— Ah, nossa, eu sei o que é isso! — comentou Kylie.
— Não que ele tivesse problemas. Bem, houve uma vez no último ano do ensino médio. Havia um garoto na escola, Timmy. Ele era meio lento e, um dia, quando ia a pé da escola para casa, Daniel encontrou um grupo de meninos mais velhos mexendo com ele — realmente maltratando o garoto. Havia talvez seis deles e Daniel perdeu a paciência. Ainda não sabemos como ele fez isso, mas todos saíram com narizes sangrando e olhos roxos. E não havia um arranhão no nosso menino.
Kylie ouviu a história com o coração aflito — uma filha ansiosa para saber sobre um pai que conhecia tão pouco.
— A escola suspendeu-o — a senhora Brighten continuou —, mas quando os pais de Timmy descobriram, foram até uma emissora de rádio local. Eles entrevistaram Timmy sobre o que tinha acontecido e a emissora homenageou Daniel como um herói. E os meninos ficaram em apuros. A escola foi forçada a cancelar a suspensão de Daniel. Claro, Daniel ficou constrangido com a atenção. A emissora deu a ele um troféu e, no dia seguinte, ele foi à casa de Timmy e deu o troféu a ele. Disse que Timmy era o verdadeiro herói por ter que lidar com valentões durante toda a vida.
O orgulho pelo pai inchou o peito de Kylie. Ele tinha sido um protetor assim como ela e, como ela, não queria o crédito por isso. Ela desejou mais uma vez não ter perdido o homem com quem se parecia tanto. Claro, ela ainda tinha uma parte dele, em forma de espírito, mas queria muito mais.
— Mas, sabe, depois que se formou no colegial, Daniel se encontrou. Na verdade, um dia chegou em casa de uma viagem e me disse que tinha finalmente descoberto quem era.
Kylie se lembrou do pai lhe dizendo que havia encontrado um homem mais velho que lhe contara que ele não era humano. Ela se perguntou se seria a mesma viagem.
— Eu disse a ele — continuou a senhora Brighten — que já sabia quem ele era. Que ele era uma alma gentil e bondosa. — Ela olhou para Kylie. — E eu vejo a mesma coisa em você. Como se... como se você tivesse uma magia que poucas pessoas têm. — Ela esticou o braço sobre a mesa e pousou a mão sobre a de Kylie.
A mão enrugada lembrou Kylie de como a tia-avó a tocara quando se fazia passar pela senhora Brighten. Não havia nenhum calor extra no toque da verdadeira senhora Brighten como havia no toque de sua tia-avó. No entanto, isso não fazia a verdadeira senhora Brighten parecer menos especial. E foi assim que Kylie soube o quanto seria fácil amar aquelas pessoas, e quanta sorte o seu pai tinha tido de ser criado por elas.
Eram quase cinco da tarde quando Burnett e Holiday, de mãos dadas como dois pombinhos, levaram Kylie para a cabana. Della esperava lá dentro para assumir suas funções de sombra.
— Tem certeza de que você vai ficar bem? — perguntou Holiday.
— Tenho. — E, surpreendentemente, Kylie acreditava nisso. Sim, ela ainda estava desejando um pouco de chocolate para neutralizar o dia frenético, e, sim, o seu coração ficaria partido para sempre por causa de Lucas, mas ela ia ficar bem.
Pensando em sua outra companheira de quarto, Kylie perguntou:
— Você falou com Miranda sobre o episódio da Nikki?
— Sim — Holiday disse, estreitando os olhos. — Embora eu ainda não tenha pensado em outra punição.
Kylie não poderia deixar de dar sua opinião.
— Eu não estou dizendo que Miranda não esteja errada, mas Nikki estava sendo óbvia demais em sua paixão por Perry. Eu até a avisei sobre isso. Mas ela não me deu ouvidos.
— Eu sei — disse Holiday. — Nikki estava errada, mas Miranda não pode sair por aí transformando as pessoas em cangurus.
— Sério? Você pareceu gostar quando ela fez isso comigo! — Burnett disse sarcasticamente.
Holiday soluçou.
— Aquilo foi engraçado. — Holiday lhe lançou um sorriso diabólico.
Kylie observou-os irem embora antes de entrar na cabana. Encontrou Della sentada à mesa da cozinha, bebendo um copo de sangue, com livros escolares à sua frente. A vampirinha levava a sério o seu dever de casa.
Della ergueu o olhar.
— Concordo com Holiday. Foi engraçado quando Miranda transformou Burnett em canguru.
Kylie desabou numa cadeira.
— Onde está Miranda?
Della revirou os olhos.
— Ela e Perry saíram para fazer “quase sexo” — palavras dela, não minhas. Pessoalmente, eu não precisava saber disso. Embora tenha que admitir que me pergunto o que é exatamente “quase sexo”. — Ela franziu a testa. — Provavelmente envolve Perry chupando os lóbulos das orelhas dela, e eu realmente não estou disposta a ouvir sobre isso. Mais uma vez.
Kylie riu.
— Quando a gente pensa sobre isso, todas as coisas sexuais parecem mais ou menos... Quero dizer, até o beijo francês... ter a língua de outra pessoa na sua boca. É nojento.
— A menos que seja você beijando... — As palavras de Della vieram num tom de devaneio. Kylie tinha certeza de que a amiga estava pensando em Steve. — Aí não é nojento. É quase mágico.
Kylie lembrou-se das vezes em que beijara Lucas assim e fizera até mais do que isso na noite em que estavam voltando do cemitério. Tinha sido mágico. Mas toda essa magia acabara agora. Não havia mais Lucas.
— Sim, aí não é tão nojento.
Levantando-se, ela foi dar uma olhada no que havia dentro da pequena despensa.
— Não temos nada de chocolate na cozinha? Qualquer coisa?
— Acho que tem um pouco de calda de chocolate na geladeira. Mas não temos leite. Não que eu tenha bebido. Deve ter sido a bruxa. — Della olhou para Kylie.
Kylie se aproximou da geladeira e encontrou a calda de chocolate.
Ah, droga, quem estava esmolando não poderia ser exigente. Ela apertou a bisnaga até que uma linha de chocolate caiu no seu dedo indicador; então colocou o dedo na boca.
— Então o encontro com os Brightens não foi muito bem? — perguntou Della.
— Não, foi muito bem, sim — murmurou Kylie, enquanto chupava o dedo coberto de chocolate. Quando o gosto doce desapareceu, ela virou o frasco de calda de cabeça para baixo e deu outro esguicho no dedo.
— Então por que você está chupando calda de chocolate do dedo como se fosse uísque? Espere! Eu sei por que, eu ouvi sobre o tumulto com o seu pai e a sua mãe, a coisa toda da gravidez. Hilário! — Della colocou os cotovelos na mesa e riu.
— Não foi hilário. — Kylie fez uma careta. — Como você ficou sabendo disso?
Della deu de ombros, parecendo se sentir um pouco culpada por trazer o assunto à tona.
— Alguém ouviu. Todo mundo estava falando disso. Sinto muito. — Ela fez uma cara de quem pedia desculpas.
Kylie gemeu.
— Quando será que vou deixar de ser a fonte de fofocas por aqui? — Ela colocou a cabeça para trás e esguichou o chocolate diretamente na boca.
— Agora, isso é nojento! — Della riu.
Kylie baixou o frasco e lambeu os lábios.
— Eu não encostei nos lábios. Só derramei na boca.
— E no queixo.
Fazendo uma cara feia, Kylie limpou o queixo com as costas da mão.
— Desculpe, mas estou desesperada. — Ela pegou uma tigela e uma colher e voltou para a mesa, onde esvaziou a metade do frasco de calda na tigela.
— Nossa! — disse Della. — Você está mesmo desesperada.
Kylie meteu uma colher de chocolate na boca, lambeu a colher limpa e disse:
— Monique entrou no reservado do banheiro comigo.
— Quem? Que reservado?
— Monique. A Monique do Lucas. Ela entrou comigo no reservado do banheiro do restaurante.
— Ah, merda! Vocês duas brigaram ou coisa assim?
— Não. — Kylie lambeu a colher. — Eu só fiquei toda molhada de xixi. — Ela pôs outra colherada de chocolate na boca.
Della suspirou.
— Você está bem?
— Vou estar depois que acabar com esta tigela de calda — respondeu Kylie.
Della deu um meio sorriso.
— Se eu fosse sua amiga de verdade, faria você parar de comer isso.
Kylie balançou a cabeça.
— Se você fosse minha amiga de verdade, me ajudaria a acabar com ela.
— Ah, por que não? — Ela empurrou o copo de sangue para o lado. — Me dê um pouco.
— Sério? — perguntou Kylie, arqueando uma sobrancelha.
— Sério. — Della então empurrou os livros escolares para o lado. — Que se dane a lição de casa, vamos acabar com essa calda de chocolate. Também estou precisando de um estimulante.
Kylie viu no rosto da amiga que ela também estava sofrendo. Então deu uma boa esguichada de calda no copo da vampira.
— O que realmente aconteceu enquanto você estava fora, Della?
Capítulo Vinte e Seis
A vampira fitou seu copo de sangue misturado com chocolate. Ela girou o copo e pareceu observar os dois ingredientes se misturando.
— Eu fugi de Steve na primeira noite e fui ver Lee.
Isso não surpreendeu Kylie, ela sabia que Della ainda gostava de Lee, mas não explicava como ela acabara com chupões de Steve. A menos que não fosse Steve o autor do chupão, mas Kylie não achava que ela mentiria sobre isso. E algo dizia a Kylie que Lee não era o único problema ali. O problema era um metamorfo com um traseiro bonito.
— E...? — perguntou Kylie, voltando a mergulhar a colher no próprio chocolate.
— Ele saiu para encontrar sua nova noiva. — Ela aproximou o copo dos lábios e bebeu. — Ei, essa merda é muito boa!
— É mesmo. — Kylie esperou Della continuar. Não teve que esperar muito tempo.
— Ele a levou a um restaurante chinês. Eu os segui. — Lágrimas encheram os olhos de Della.
Sentindo a dor da amiga, Kylie colocou a mão sobre a de Della. Della a puxou.
— Então eles me viram e eu percebi que estava parecendo uma idiota. Fiquei morta de vergonha. — Ela tomou outro gole de sangue com chocolate e ergueu os olhos. — Então, como um cavaleiro numa maldita armadura brilhante, Steve apareceu. Ele tinha me seguido. E me salvou de parecer uma completa idiota. Fingiu que tínhamos marcado um encontro. Ele me beijou na frente deles. Como se fôssemos uma casal apaixonado.
Kylie colocou outra colherada cheia de chocolate na boca.
— E o beijo foi muito bom, por isso vocês deram uns amassos mais tarde?
— Não. Quer dizer, sim.
Kylie apontou sua colher para Della.
— Qual é? Sim ou não?
— Sim, foi bom, mas isso só aconteceu no dia seguinte. — Della inclinou-se e fez uma careta. — A missão foi uma bosta. Eu fui esfaqueada — confessou.
Kylie olhou para a amiga, chocada.
— Mas Burnett disse...
— Eu fiz Steve prometer que não ia dizer a ele. Eu o ameacei de morte.
Kylie gemeu.
— A única coisa ruim é que Steve salvou a minha pele. Não apenas no restaurante, na frente de Lee, mas, novamente, com os bandidos e, em seguida, quando topamos com alguns lobisomens desagradáveis. Eu estava muito mal, não poderia lutar. Odiei aquilo. — Ela fez uma pausa. — Ele nos levou para um hotel e ficou cuidando de mim. Eu não sei como isso aconteceu, num minuto ele estava me medicando e no outro estávamos brincando de médico.
— Ah, meu Deus! — exclamou Kylie. — Então, vocês realmente...
— Não, não fizemos nada. Chegamos perto. Felizmente bolas azuis realmente não matam um cara.
— Bolas azuis? — perguntou Kylie.
Della revirou os olhos.
— Você não sabe o que são bolas azuis?
— Não. Devia saber?
Della sorriu.
— Pelo menos você devia saber que, se um cara um dia te disser que ele pode morrer por causa disso, vai estar mentindo. E, acredite em mim, alguns caras vão realmente dizer isso para a garota se sentir culpada e transar com eles. Eu passei por isso com um cara uma vez, antes de Lee. Eu disse que iria ao funeral dele e nunca mais nos vimos.
— Mas o que é isso, realmente? — Kylie fez uma careta. — Ou é nojento demais? Deve ser nojento, porque nunca mencionaram isso em nenhum dos panfletos que a minha mãe me deu.
Della riu novamente.
— É quando um cara fica com muito tesão e pronto para ir adiante e, então, a ação é abortada.
Kylie se inclinou para a frente.
— E as bolas ficam realmente azuis?
Della soltou uma gargalhada.
— Não sei, nunca olhei lá embaixo pra checar.
Kylie corou, mas ela não se importava de enrubescer na frente de Della, então apenas riu.
— Então você acha que Steve ficou com as bolas azuis?
Della revirou os olhos.
— Ele parecia muito desconfortável. Eu não deveria ter deixado a coisa chegar ao ponto que chegou. Eu estava... meio confusa.
— Ou talvez você realmente goste de Steve. — Kylie apontou a colher para Della. — Não estou dizendo que vocês deviam ter transado, mas o cara é louco por você e você obviamente é louca por ele, também. Então por que tratá-lo agora como se ele tivesse uma doença contagiosa?
Della tomou um grande gole do seu sangue achocolatado.
— Porque... quando eu percebi o que estava acontecendo, tudo em que consegui pensar foi que, daqui mais ou menos um ano, vou estar de pé em outro restaurante, assistindo Steve com sua noiva. Eu não posso fazer isso de novo. — Seus olhos encheram de lágrimas.
— Mas você não sabe o que vai acontecer.
— Eu não sei o que não vai acontecer, também. — Della pegou o frasco de calda e acrescentou mais um esguicho no seu copo. — Então, agora que eu abri meu coração, me diga como vão as coisas com Lucas.
Kylie mexeu a calda de chocolate em sua tigela.
— Acabou.
Os olhos de Della se arregalaram.
— Por quê? Monique disse que eles estão se vendo? Será que a gente deve falar para a Miranda provocar um caso de sarna nas bolas dele?
— Não, Monique praticamente disse que não.
Della pegou seu copo.
— Então, por que acabou?
Kylie bateu a colher contra a sua tigela. Porque se não acabar, ele vai perder tudo.
Della analisou o rosto da amiga.
— Mas ele não enganou você...
A raiva se agitou no peito de Kylie.
— Mesmo que ele não tenha feito nada, é como se tivesse. Quero dizer, ele estava assumindo um compromisso pelas minhas costas. — Ela balançou a cabeça. — Primeiro Trey. Depois meu padrasto engana a minha mãe. Então Derek e agora Lucas. Por que os homens fazem isso?
Della encolheu os ombros.
— Pelo menos Lucas não fez sexo.
Mesmo assim é uma traição. E das bem grandes.
— O que é absolutamente irritante é que eu ainda o amo. — Amava-o tanto que ela não suportaria vê-lo perder tudo por causa dela. — Mas ainda estou tão brava com ele que poderia...
— Dar-lhe um par de bolas azuis? — Della riu.
— Não, socá-lo!
— Então talvez você devesse fazer isso. — Della olhou para seu copo.
— Fazer o quê? — perguntou Kylie.
— Socá-lo. Então talvez você não ficasse tão brava e pudesse seguir em frente.
Kylie balançou a cabeça.
— Eu queria que fosse assim tão simples.
— Talvez seja. Você só saberá se tentar. É só procurá-lo como se não quisesse nada e, então, ir com tudo pra cima dele. Sério, então talvez você consiga superar isso e esquecer.
— Como você está tentando fazer com Steve? — Kylie apontou a colher para ela novamente.
— Ei, eu sou como um bom pai. Não quero que você faça o que eu faço, mas que faça o que eu digo! — Ela riu.
Kylie balançou a cabeça.
— E, além disso, agora é... — Ela fechou a boca, sem saber se queria falar sobre isso.
— É o quê? — perguntou Della.
Ela poderia muito bem colocar aquilo para fora.
— Não é apenas o que ele fez. — Se fosse, Kylie suspeitava que estaria a meio caminho de perdoá-lo. — Ele desistiu de tudo quando se recusou a assinar o papel do noivado. Ele não vai entrar para o Conselho, a própria alcateia está chateada com ele. O pai de Monique está ameaçando matá-lo. Mais cedo ou mais tarde ele vai me odiar por isso.
— Acho que você está pensando demais.
Kylie passou a colher em torno da tigela para aproveitar os últimos resquícios de chocolate.
— E eu acho que nós temos que mudar de assunto — disse ela.
Della cedeu e pegou o copo. Elas não falaram durante alguns minutos, e depois finalmente Della falou.
— Antes de eu ir para a casa de Lee aquela noite, fui dar uma espiada na minha casa.
— Como estavam as coisas? — perguntou Kylie, sentindo que não iam bem.
— Bem. Tão bem que isso me deixou muito irritada. Eles estavam jogando jogos de tabuleiro como uma família feliz. Papai contava piadas e todos estavam rindo. Acho que eles nem sentem a minha falta. — Ela olhou para a mesa por alguns minutos.
— Eles sentem, Della. Estão apenas tentando sobreviver.
Della assentiu.
— Você já pensou em contar para a sua mãe e seu padrasto? Cheguei tão perto de entrar lá em casa e despejar tudo... “Olha, pai, eu não estou sendo difícil ou preguiçosa. Eu não estou consumindo drogas. Eu sou apenas uma vampira.” — Ela balançou a cabeça.
Kylie mordeu o lábio, sem saber o que dizer, então não disse nada.
— Talvez seja medo de que eles achem a verdade pior do que a ilusão em que já acreditam.
Kylie desejou poder dizer a Della que não era bem assim, mas ela não tinha certeza.
— Pensei em contar à minha mãe, também. Só não sei se ela iria lidar bem com isso.
Della assentiu.
— Então, nós apenas nos escondemos das pessoas que amamos. Que coisa triste, não é?
— É. — Kylie passou a colher em torno da tigela. — Pelo menos você não se esconde do mundo sobrenatural.
— Você não se esconde também — disse Della.
— Tem razão, eu me escondo. Estou basicamente me escondendo da UPF. Quero dizer, todos aqui viram o meu padrão, por isso é um pouco tarde para me preocupar com isso, mas sei que a maioria das pessoas aqui acha que a qualquer momento o meu tumor cerebral vai aparecer.
Della ofereceu à amiga um olhar triste.
— Eles estão realmente apostando nisso.
— Ótimo. — Kylie fez uma pausa. — Quando Monique entrou no banheiro, tentei mudar o meu padrão. Só não fui rápida o suficiente. Ela mesma disse algo sobre eu ter um tumor no cérebro. E eu tenho certeza de que é o que parece. — Kylie deixou cair a colher na tigela e escutou o barulho que ela fez. — A maior parte do mundo sobrenatural nem sequer sabe que a minha espécie existe. — Até Hayden esconde o que ele é, pensou Kylie.
— Então, talvez seja hora de você mudar isso. — Della recostou-se na cadeira.
— Mudar o quê? — perguntou Kylie.
— Sair do armário. Você sabe, como... “Sou gay e sempre serei”. Você precisaria de um slogan diferente. Que tal: “Sou um lagarta amarela e, se você não gostar, vou comer sua moela”. — Della riu. — Tudo bem, talvez seja preciso um slogan melhor, mas você entende o que eu quero dizer.
— Estou falando sério — disse Kylie.
— Eu sei, e eu também. Apesar do slogan bobo, quero dizer. Você não pode fazer isso com os humanos, mas pode fazer com os seres sobrenaturais.
Kylie correu o dedo ao redor da borda da tigela para recolher os últimos restos de chocolate e refletiu sobre o que Della dissera.
Ela está certa, disse a voz em sua cabeça. A mesma voz de antes. A que aparecia dentro da sua cabeça nos momentos mais estranhos.
— Quem é você, afinal? — Kylie murmurou.
Della voltou a se reclinar na cadeira.
— Ok, talvez eu devesse levar mais a sério a ideia do tumor cerebral...
— Não estava falando com você.
— Ah, merda. — Os olhos de Della se arregalaram. — Temos um fantasma aqui?
— Não, não é um fantasma — Kylie murmurou. — Apenas uma voz.
Della inclinou a cabeça para o lado.
— Eu não ouvi nada.
— Aqui. — Kylie apontou para a própria cabeça.
— Você já ouviu falar em esquizofrenia? — Della perguntou em uma voz sarcástica que significava que ela estava brincando, mas Kylie não achou muito engraçado.
— Não sou louca — disse Kylie.
Della sorriu.
— Mesmo que você fosse, ainda assim eu ia gostar de você. Se por nenhuma outra razão, por me mostrar o quanto é bom tomar sangue com chocolate. — Ela esvaziou o copo.
Kylie olhou a tigela vazia, enquanto seu cérebro se esforçava para descobrir como ela poderia sair do armário. Ela tinha estabelecido como sua missão salvar outros adolescentes camaleões de viver uma vida de reclusão, mas talvez, antes que ela pudesse fazer isso, precisasse ter certeza de que era seguro para eles sair. Talvez Della e aquela voz irritante estivessem certas. Se ela pudesse forçar o mundo sobrenatural a aceitá-la pelo que ela realmente era, então os outros camaleões poderiam imitá-la e fazer o mesmo.
Mais ou menos como Rosa Parks no ônibus, nos anos cinquenta. Alguém, algum camaleão, precisava sair da toca para que eles pudessem ser considerados como parte do mundo sobrenatural. Eles deviam ter orgulho de quem eram, em vez de ter de esconder os seus verdadeiros eus.
Instantaneamente, seu peito se encheu de emoção, ao mesmo tempo aquecendo-o e incentivando-a. Essa era sua missão. Sua nova missão ou talvez apenas parte da antiga. E parecia a coisa certa a ser feita.
Sim, tudo o que ela tinha a fazer era descobrir como sair do armário.
Naquela noite, a cabeça enterrada no travesseiro, a sensação de formigamento sinalizando outra presença manteve-a acordada. Não era uma presença fria, o que significava que quem estava ali não estava morto. Abrindo os olhos, o aroma floral doce fez cócegas em seus sentidos. Ela viu a rosa vermelha em sua mesa de cabeceira.
Apenas uma pessoa deixaria rosas.
Lucas? Seu coração sussurrou seu nome e a mágoa a atingiu em cheio.
Na noite anterior, ela ficara deitada na cama e aceitara o que tinha que ser. Deixá-lo ir. Por mais que doesse, ela não podia deixá-lo destruir a própria vida por causa dela.
Ela inspirou e escutou. Será que ele ainda estava ali? Ou tinha vindo e ido embora? Ela notou a cortina branca tremulando com a brisa suave da noite que entrava pela janela. Se ele tivesse ido embora, teria fechado a janela.
Ela cerrou os olhos novamente, perguntando-se se teria que fingir não ter acordado até que ele fosse embora.
— Sei que você está acordada — uma voz profunda falou na escuridão.
— E eu sei que você não deveria estar aqui. — Ela engoliu em seco e lutou contra a onda de emoção subindo pela garganta. Ela se virou e puxou até o peito os joelhos cobertos pelo pijama. Levou mais alguns segundos para reunir coragem e olhar para ele, sabendo que vê-lo iria magoá-la.
Ela estava certa. O cabelo dele estava despenteado pelo vento como se ele tivesse saído para correr um pouco. Os olhos expressavam dor. A mesma dor que transpassava o peito dela. Ele doía de solidão.
— Eu não consegui dormir — disse ele. O silêncio encheu o quarto. Ele se aproximou um pouco mais. Seus joelhos tocaram a cama. Ele se sentou. O colchão afundou com o peso dele. O coração de Kylie disparou, lembrando-se das vezes em que ela tinha se aconchegado a ele ali naquela cama. Ela tinha até dormido ao lado dele e ele a abraçara, fazendo-a se sentir segura, protegida. Amada.
— Isso não pode terminar, Kylie. Você é a única coisa que importa para mim.
Ela balançou a cabeça.
— Não é verdade. — Assim como ela, ele tinha outras pessoas em sua vida. Ele tinha coisas que eram importantes para ele. Ele tinha missões. — A alcateia é importante. Foi o tempo todo. Sua avó. E você pode dizer que não gosta do seu pai, mas você o tolera, então ele tem que ter importância para você. E tem também a sua irmã. — E você vai perder a todos, se me escolher.
— Tudo bem, eu me preocupo com eles, com todos, menos com o meu pai. Nesse momento, eu não me importo se ele apodrecer no inferno. Estou cansado de vê-lo manipulando a minha vida. Mas os outros, sim, eu admito, eu me importo com eles. Mas eles não são você — disse ele, num rosnado.
— O pai de Monique está pensando em colocar um matador atrás de você — ela deixou escapar.
— Aquele asno rico e pomposo está sempre falando demais. Ele late, mas não morde. Sabe o que meu pai faria com ele se ele me ferisse. — Lucas parou de falar e apenas olhou para ela. — Mas isso só comprova. Você se importa comigo. Se você não se importasse, não ligaria para o fato de ele estar planejando me matar. Você ainda pode estar com raiva, e eu mereço isso, mas você me ama e é por isso que não podemos continuar assim.
Ela balançou a cabeça.
— O amor não basta! — Lágrimas nublavam a sua visão. Foi justamente aquilo que ela finalmente percebera na noite anterior. — Você não vê, Lucas? Somos Romeu e Julieta. Somos a pior história de amor que já existiu. Somos pessoas que só vão ferir a si mesmas e aos outros, se egoisticamente deixarmos nossas emoções nos guiarem em vez da lógica.
— Isso é besteira — ele rosnou e tentou alcançá-la.
— Não! — Ela fugiu para longe do toque de Lucas. — Você quer saber o que é besteira? Eu continuar vendo você beijando Monique na minha cabeça. Eu continuar ouvindo você prometer a sua alma a ela, e eu ficar tão magoada e com tanta raiva que me dá vontade de gritar. Mas, ao mesmo tempo, entendo completamente por que você fez aquilo. E se eu estivesse no seu lugar, teria feito a mesma coisa. Tenho minhas próprias missões, os fantasmas, descobrir como ajudar outros camaleões, e vou cumprir essas missões, não importa o que aconteça.
Ela engoliu em seco e ofereceu a ele o último fragmento de verdade, o último argumento que provava que eles não podiam ficar juntos.
— Eu vou fazer isso, mesmo que te machuque. É assim que eu sei, Lucas. É assim que eu sei que isso não é certo. Se fazer a coisa certa para mim pode machucar alguém que eu amo tanto, isso não pode estar certo! Nós não somos certos um para o outro. Então, por favor, não vamos nos ferir mais do que já nos ferimos. Por favor, vá embora.
Ela nunca tinha visto ninguém parecer tão ferido. Foi preciso toda a sua força de vontade para não chamá-lo de volta quando ele saiu pela janela.
Capítulo Vinte e Sete
No dia seguinte, durante a aula de ciências, Kylie ficou sentada em sua carteira mal ouvindo Hayden Yates falar sobre as leis do movimento de Newton e o E = MC2.
Não que ela não respeitasse a ciência, mas como essa ciência poderia explicar uma espada que podia se mover por conta própria? E Hayden não tinha dito que tanto Einstein quanto Newton eram seres sobrenaturais? Será que isso significava que eles não tinham espadas mágicas seguindo-os?
Não que ela estivesse completamente consumida com a preocupação sobre a espada agora. Sua manhã tinha sido uma droga. Começando com a conversa de dez minutos com a mãe, em que as duas ficaram se desculpando. A mãe pela sua reação exagerada à notícia dos testes de gravidez e por fazer uma cena, e Kylie por não avisá-la de que havia usado o cartão para comprá-los. Não tinha sido um telefonema ruim, mas não tinha sido bom, também, especialmente quando a mãe se pôs a falar sobre a grande possibilidade de John ser sua alma gêmea.
De algum modo, ela conseguiu fazer com que a mãe deixasse de lado suas preocupações. Seus problemas com Lucas não eram assim tão fáceis de se deixar de lado. Além de sofrer por causa dele, ela também tentava encontrar uma maneira de sair do armário.
Ela chegou até a faltar à Hora do Encontro e não tomou café da manhã para tentar formular um plano. E acabou... de mãos vazias.
Claro, ela não estava no seu melhor dia. Depois que Lucas saíra, o espírito, como se estivesse com ciúmes por Kylie não estar concentrando sua atenção nele, decidiu aparecer de hora em hora, na noite anterior. Ela não tinha trazido a cabeça decepada nem a espada, e Kylie ficou extremamente grata por isso. Mas em sua última visita, o espírito trouxe algo ainda mais perturbador. Seu sofrimento. Ela soluçou enquanto cobria o rosto com as mãos e murmurou algo sobre o filho ter sido morto.
Depois de perder tantas pessoas na vida, Kylie sabia a dor que o espírito estava sentindo e disse isso a ele, mas o espírito estava deprimido demais até para responder.
Kylie se perguntou se o fantasma queria dizer que seu filho fora morto no presente, ou se estava revendo algo do seu passado. Os espíritos não apenas são indiferentes ao tempo, como podem ser extremamente confusos aos olhos dos vivos que estejam tentando ajudá-los.
Pensando bem, nada parecia fazer muito sentido com esse espírito. Ele não iria responder a qualquer das perguntas diretas de Kylie. Como por exemplo, Quem exatamente você quer que eu mate? Ou, Por que eu? Por que você me escolheu para cometer esse assassinato?
Quando Holiday tinha passado na cabana na noite anterior, ela lembrou Kylie de que o espírito geralmente tem uma ligação com a pessoa que ele está visitando.
— Encontre essa ligação e você pode começar a entender o que ele realmente quer — Holiday a tinha aconselhado.
Mas era mais fácil falar do que fazer.
Até o momento, o espírito não tinha dito nada que tivesse levado Kylie a acreditar que ele a conhecia, ou que conheciam alguém em comum.
Ela tinha se deparado pela primeira vez com o espírito quando estava a caminho da cerimônia de noivado de Lucas. Kylie achou que talvez ele tivesse sido morto naqueles bosques e eles tivessem se encontrado por acaso. Ela ainda tinha esperança de que fosse esse o caso. Podiam chamá-la de puritana, mas ela não queria ter ligação com ninguém que cortava a cabeça das pessoas e que as levava consigo como troféus. E se Kylie tivesse conhecido alguém assim, essa pessoa não se destacaria na sua memória?
Claro, Kylie estava quase certa de que o fantasma havia trazido a cabeça apenas para chamar a atenção, mas algo um pouco menos dramático teria funcionado muito bem. Holiday também dissera para ela considerar como pista tudo o que o espírito fizesse ou trouxesse consigo. Como a espada que se parecia com a que tinha surgido na cachoeira.
A cabeça seria uma dica ou um sinal? Mas as pistas não deveriam ser sutis? Não havia absolutamente nada de sutil numa cabeça decepada. Esse último pensamento levou Kylie de volta à ideia de que se tratava apenas de um truque para chamar a atenção, principalmente porque o estratagema estava funcionando. Naquele instante, Kylie estava preocupada com o fantasma e não com a sua busca.
Não que ela não precisasse compreender ambos; ela precisava. Mas sua busca tinha prioridade no momento. Ou teria, se o fantasma não parasse de monopolizar seus pensamentos.
Hayden estava parado diante do quadro-negro e apontava para o dever de casa.
Ela tinha começado a anotá-lo quando algo caiu no seu colo com um baque. Um baque bem pesado.
Assustada, Kylie deu um pulo, fazendo seu traseiro descolar alguns centímetros da cadeira. Mas sua aversão a ser apontada na classe como uma aberração a fez reprimir o grito que subia pela sua garganta e a colar o traseiro de volta na cadeira.
Considerando que o tampo da carteira estava cobrindo o seu colo, não era possível que alguma coisa caísse sobre ele.
Mas, como das outras vezes, aquilo não precisava necessariamente fazer sentido, porque nada em sua maldita vida fazia!
Kylie hesitantemente esticou o braço sob a carteira para sentir o objeto de metal frio. Assim como ela suspeitava, ele era longo e terminava com uma alça.
A espada estava de volta.
Kylie ouviu alguém limpar a garganta a alguns assentos de distância. Ela olhou para Derek, que era sua sombra no momento, e ele perguntou sem emitir nenhum som: Tudo bem?
Obviamente Derek sentira seu dilema emocional, mas não tinha visto a espada, ou ele teria pelo menos olhado para a maldita coisa. Ela assentiu com a cabeça.
Depois de apenas um minuto, Hayden dispensou a classe. Kylie fingiu estar lendo suas anotações e não se mexeu. Burnett não queria que ninguém soubesse da espada, e brandir de repente uma arma no meio da classe pareceria uma cena saída de um jogo de videogame e chamaria um pouco de atenção...
— Kylie, você vem? — Derek perguntou da porta.
— Hã, não, eu preciso conversar algo com o senhor Yates. Daqui a pouco eu vou. — Ela olhou para Hayden, que a examinava com preocupação.
— Espere do lado de fora — disse Hayden, preocupado, para Derek.
Quando Kylie olhou para Derek, ela viu Lucas de pé do lado de fora da porta. Seus olhos azuis encontraram os dela, mas que droga, ela já tinha muito em sua mente, sem mencionar uma espada em seu colo, para começar a se preocupar em perdê-lo ou em quanto isso a fazia sofrer. No entanto, quando ela viu a preocupação em seus olhos, a completa afeição com que ele a olhava, seu coração pareceu cair em queda livre de qualquer maneira. Por mais que não quisesse, ela não podia negar que havia uma parte dela que queria ficar com ele, compreender o que eles sentiam. Mas isso seria uma tolice, não seria?
— Fechem a porta — Hayden disse a eles, indo até a carteira de Kylie.
Fechem a porta. As palavras de Hayden ecoaram na cabeça dela. Ela tinha que fechar a porta aos seus sentimentos por Lucas. Mas como?
— Tem alguma coisa errada? — perguntou Hayden.
Toda a minha droga de vida está errada. Kylie encontrou os olhos do professor, afastando sua dor com relação a Lucas.
— Sim, há uma espada no meu colo.
— Aquela espada? — ele perguntou.
Ela fez uma careta.
— Bem, não olhei para ela, mas estou supondo que eu só tenha uma espada que aparece num passe de mágica e quebra todas as regras e teorias que você acabou de abordar na aula.
Hayden sorriu e se abaixou, para ver a espada. Quando ele se levantou, disse:
— É, essas teorias não valem nada às vezes, quando se trata de magia.
— A mesma espada, presumo? — perguntou Kylie.
Ele anuiu.
— Ótimo. — Então ela percebeu algo que ele acabara de dizer.
— Você acha que é algum tipo de magia que está causando isso? Como magia wiccana?
— Ou outra coisa igualmente desconcertante — disse ele.
— Então você realmente não acha que sejam alguns poderes camaleônicos?
Ele torceu a boca.
— Poderes camaleônicos são, em parte, poderes wiccanos.
— Sim — disse Kylie, e sua mente voltou para a sua mais recente missão.
— O que me confunde é a razão por que é tão ruim ser um camaleão.
Ele pareceu confuso.
— Não é ruim ser um camaleão — disse ele, e então: — Deixe-me pegar meu casaco; vou embrulhar a espada e podemos levá-la para o escritório.
Ele foi até o armário atrás da mesa e tirou dali um moletom; depois voltou com ele aberto nas mãos.
— Quer levantá-la?
Não. Ela não gostava de tocar a coisa, não gostava de ficar sentada com ela no colo, mas fez isso de qualquer maneira.
Ela estendeu a mão, pegou o cabo cuidadosamente e tirou-a do colo. Antes que a levantasse por completo, a espada começou a brilhar novamente. Ela deixou a arma cair sobre o moletom, em seguida ergueu os olhos.
— Se não é ruim ser um de nós, então por que você esconde o seu padrão? Você até usa um capuz para que ninguém possa vê-lo! E por que os mais velhos acham que precisam esconder todas as crianças?
— Eu escondo o meu padrão porque as pessoas não iriam entender, porque no passado, isso nos levou a ser perseguidos, mas não porque seja ruim ser camaleão.
— Mas não seria melhor se você não tivesse que escondê-lo? Se pudéssemos ostentá-lo com orgulho, como os outros fazem?
Ele olhou para a espada como se não tivesse prestando muita atenção ao que ela dizia.
— Algum dia isso vai acontecer.
— Não, não vai — Kylie insistiu. — Não se todo mundo continuar se escondendo.
Ele olhou para ela.
— Você não entende o quanto as coisas foram ruins para os nossos pais.
— Você está certo, eu não entendo. E talvez seja por isso que eu vejo as coisas com mais clareza. As mudanças precisam acontecer. Mas alguém tem que fazê-las acontecer. Isso não vai acontecer naturalmente, ou por acidente.
— Ok, parece que você de fato andou pensando bastante a respeito. Como podemos mudar isso? — ele perguntou.
— Não sei ainda, mas vou descobrir. — Ela se levantou.
Ele suspirou como se não tivesse gostado do que ela disse.
— Quando você descobrir alguma coisa, fale comigo primeiro. Sei que você não gostaria de colocar ninguém em perigo.
— Eu só quero ajudar. E vou falar com você se eu puder. — Ela desviou o olhar para a espada.
— O que quer dizer com isso... “Se eu puder”? Por que não poderia falar comigo? — ele perguntou.
Ela o fitou.
— Estou apenas tomando cuidado para não fazer promessas que não sei se posso cumprir.
Ele franziu a testa.
— Não faça nada idiota, Kylie.
— Agora, isso eu posso prometer — disse ela. — Vou evitar fazer coisas idiotas a todo custo.
Ele não pareceu contente com a resposta dela, mas olhou novamente para a espada.
— Seu avô me ligou na hora do almoço e queria saber com certeza se a espada tinha alguma marca. — Hayden virou a arma na mão. — Eu não vejo nada nela.
— Nem eu — disse Kylie.
— Você sente algum incômodo quando a segura? — ele perguntou e a fitou.
— Incômodo? Não. Se ela me assusta? Sim. Por quê?
— Você poderia segurá-la para mim de novo? Por alguns segundos, e vamos ver se alguma coisa aparece. Sabemos que começa a brilhar. Talvez algo mais apareça nela.
Kylie franziu a testa.
— Tudo bem, mas se ela ou eu sairmos do controle e matarmos você ou coisa assim, não é culpa minha. Quero dizer, a última vez que Holiday me fez tentar algo, Burnett quase ficou estéril.
Hayden fez uma careta.
— Talvez devêssemos esperar para experimentar isso quando chegarmos ao escritório e Burnett e Holiday estiverem por perto.
— Boa ideia! — disse Kylie.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntou Kylie. — E se for como o acidente com o peso de papel? — Ela olhou de Hayden para Burnett, que tinha sido atingido com toda a força pelo peso de papel.
Não era nenhuma surpresa que o vampiro fosse o único com um ar de preocupação, mas ele também foi o único a falar.
— Você já segurou a espada antes e a única coisa que ela fez foi brilhar.
— Mas eu nunca a segurei por mais de alguns segundos.
— Se você não quer fazer isso, então não precisa fazer — disse Holiday, e Derek, de pé ao lado dela, concordou com a cabeça. Burnett, lembrando-se dos conhecimentos de informática de Derek, tinha lhe pedido para estar presente e pesquisar qualquer informação sobre a espada.
Kylie olhou para Holiday.
— Eu só não quero que ela enlouqueça e comece a matar pessoas.
— Por que você acha que ela faria isso? — perguntou Holiday.
— Eu... Eu não sei, talvez por causa da espada do fantasma — disse Kylie. — E do fato de que ela carrega por aí uma cabeça, junto com a espada.
— Você realmente acha que o fantasma e essa espada têm alguma ligação? — perguntou a fae. — Porque eu ainda não consigo entender como um fantasma poderia ter mandado uma espada para cá.
— Não sei o que pensar — disse Kylie. — Mas eu acho que as duas espadas são parecidas.
— Mas é uma espada muito comum, se levarmos em conta o que ela é — disse Burnett.
— E eu não acho que você vá fazer mal a alguém — disse Derek. — Você é uma protetora; se a espada está reagindo a você, então acho que ela está se conectando a essa parte sua. Não acho que seja algo maléfico.
— Eu concordo — disse Hayden.
— Tudo bem, é a vida de vocês que está em risco. — Kylie esticou o braço para pegar a arma.
— Mas apenas por precaução — Holiday disse, detendo Kylie. — Vamos todos ficar preparados para nos abaixar e correr se for necessário.
Kylie fez uma careta.
Holiday encolheu os ombros.
— Só por precaução.
Kylie pegou a espada. Burnett empurrou Holiday para trás e, em seguida, todo mundo deu outro passo para trás.
Capítulo Vinte e Oito
No momento em que a palma da mão de Kylie envolveu a espada, a arma começou a brilhar novamente. O calor dela se transmitiu para a mão de Kylie e começou a subir pelo braço.
— Você está bem? — Holiday perguntou, como se sentisse o desconforto de Kylie.
Kylie lutou contra a vontade de soltar a arma e deu um suspiro. Em vez disso, ela agarrou o cabo com mais força, tentando não deixar que o peso fizesse seu braço balançar. Não era tão pesada, provavelmente pesava apenas uns dois quilos, mas causava uma sensação estranha. Kylie se sentia esquisita ao segurá-la.
— Sim, eu estou bem — disse ela. — É apenas quente.
— Não deixe que ela queime você — avisou Holiday.
— Não é tão quente assim. Apenas morna — disse Kylie. A espada continuou a ficar cada vez mais brilhante, mas não a ponto de ofuscar os olhos. Era como uma luz filtrada. Ela inspirou mais uma vez desde que pegara a arma e de repente não estava mais com medo. Não era nem mesmo um pouquinho assustador. Era como... pegar algo conhecido. Um cristal ou uma foto emoldurada que ela tinha segurado e observado por um longo período. E, no entanto, até poucos dias atrás ela nunca havia tocado a espada. Como a arma podia parecer tão confortável na sua mão?
Como se o seu sentimento de calma tivesse se irradiado pelo ambiente, Burnett e Hayden deram um passo para mais perto. Derek seguiu-os e depois Holiday.
— Não vejo nenhuma marcação nova sobre ela — disse Hayden.
— Nem eu — disse Burnett.
Kylie olhou para a espada e percebeu que ela nem sequer parecia pesada. A sensação estranha tinha desaparecido. Seu controle sobre a espada era sólido, o objeto em sua mão tornou-se quase uma parte de si mesma. Ela virou o pulso e viu uma inscrição na parte superior da alça.
— Aqui. Há uma inscrição. — Kylie acenou com a cabeça, depois apontou com a mão esquerda.
Todos os quatro se aproximaram.
— É latim — disse Holiday. — Diz guerreiro santo.
— Sabe, eu posso verificar na Internet e ver o que posso encontrar, mas... — Derek olhou para ela como se estivesse pedindo desculpas, como se soubesse que o que estava prestes a dizer ia contrariá-la. — Mas existe alguém aqui que sabe muito sobre espadas.
Burnett assentiu.
— Só agora me lembrei disso. — O vampiro olhou para Kylie com o mesmo olhar de desculpas de Derek.
Ah, merda! Ela sabia quem era, sem que precisassem dizer nada.
Burnett pegou o telefone.
— Vou ligar para Lucas.
Kylie balançou a cabeça.
— Como assim? O que um lobisomem pode saber sobre espadas?
Burnett arqueou uma sobrancelha.
— A ascendência de Lucas remonta aos escandinavos.
História não era o forte de Kylie.
— E o que isso quer dizer?
— A luta com espadas é algo presente em sua família há mil anos. Ele foi treinado quando criança.
Um gemido escapou da boca de Kylie. Ela tivera a esperança de manter a maior distância possível de Lucas.
— Tudo bem, ligue para Lucas. Mostre a ele a espada. Mas posso ir agora? — Kylie começou a baixar a espada.
Burnett fez uma careta.
— Na verdade, eu gostaria que ele a visse brilhando.
— Lucas — disse Burnett no celular. — Você pode vir até o escritório? Tem algo aqui que eu quero que você veja. — Burnett olhou para Kylie. — Sim. — Pausa. — Sim. Não, ela está bem. — Pausa. — Você vai ver quando chegar aqui. — Pausa. — Ótimo.
Burnett desligou.
— Na verdade, ele está aqui no refeitório — disse Burnett.
Kylie sabia que ele provavelmente os seguira até o escritório e estava esperando para ver se havia algo errado. O fato de ele se importar com ela fez seu coração bater mais forte outra vez. Ela fechou os olhos por um segundo e se preparou para vê-lo.
O som de passos apressados na varanda do escritório encheu o silêncio. A porta do escritório se abriu. Uma batida soou na porta de Holiday.
— Entre — Burnett e Holiday disseram ao mesmo tempo.
Lucas entrou apressado, o olhar fixando-se nela. Seus olhos, cheios de preocupação, encontraram os dela com um toque de pânico. Ela sentiu que o olhar de preocupação dele mexia com seus nervos. Nervos já a flor da pele.
Uma dor física real se agitou no peito de Kylie.
— O que há de... errado? — Seu olhar desviou-se para a espada brilhante, que Kylie agora segurava ao seu lado, e ele segurou o fôlego.
— Caramba!
— Você sabe alguma coisa sobre este tipo de espada? — perguntou Burnett.
Lucas se aproximou. Estendeu a mão para o pulso dela, suavemente, mas seu toque provocou minúsculos pontinhos de dor dentro dela. Sua atenção desviou-se da espada e se dirigiu ao toque do lobisomem.
Ele levantou a mão dela e a espada. Ela o ouviu respirar rapidamente, como se estivesse emocionado. Sentiu que a mente dele não estava apenas na espada também. Ela mordeu o lábio para impedir que um suspiro deixasse seus lábios.
— E então? — perguntou Burnett.
Lucas respirou fundo.
— É do século XII. — Ele virou a mão dela um pouco para dar uma boa olhada em ambos os lados. — É mais do que provável que seja a espada de um cruzado.
— Eu sabia — exclamou Burnett. — Você saberia explicar por que ela está brilhante?
Lucas olhou para ela.
— Tem que ser por causa de Kylie.
O polegar de Lucas roçou na parte inferior do pulso dela. Seu toque era doce e amargo ao mesmo tempo. Ela queria chorar. Engoliu em seco novamente, rezando para conter as lágrimas. Mas que droga! Mesmo com raiva dele, mesmo tendo certeza de que sua relação estava condenada, ela o amava muito. O desejo de se aconchegar a ele, de pedir que ele a abraçasse, era forte, mas ela se obrigou a não ceder.
— Sim, nós sabemos disso, também — disse Burnett. — Mas por quê?
O olhar de Lucas continuou a acariciá-la.
— Isso eu não sei. Quer dizer, eu posso imaginar.
— Então, diga — disse Burnett, sem paciência.
Lucas olhou para Burnett.
— Ela é uma guerreira santa.
— Não, eu sou apenas uma protetora. — Kylie afastou os problemas com Lucas para se concentrar na questão da espada novamente. — Eu não sou uma guerreira. Nem gosto de guerra!
— Mas isso é exatamente o que a espada revela — disse Burnett. — Guerreiro santo.
Lucas olhou para ela.
— Onde? — Ele olhou para a espada novamente.
Kylie virou o pulso e mostrou a inscrição.
— Santo Deus! Você realmente é uma guerreira santa. — Ele parecia admirado. Impressionado.
Houve um tempo em que ela ficaria emocionada ao ver aquele olhar. Mas não agora. E sim, ela não estava tão impressionada assim. Ela não queria pensar em si mesma como Joana d’Arc ou algum tipo de guerreira.
— Você não pode acreditar em tudo o que lê — disse ela.
Lucas pareceu intrigado com a reação dela.
— É quase a mesma coisa que ser uma protetora, mas, para mim, é ainda mais surpreendente. Há lendas escritas sobre isso. Não me lembro de todas elas, mas a minha avó tem um livro sobre o assunto.
— Mas você realmente nunca encontrou uma guerreira santa, não é? — perguntou Kylie.
— Você — ele disse, com um sentimento de orgulho.
— Antes de mim — ela retrucou.
— Não — Lucas admitiu.
Kylie se virou para os outros na sala.
— Algum de vocês já conheceu um guerreiro santo?
Todos eles negaram com a cabeça.
— Então, essa é a prova — disse ela, inflexível. — Eles são apenas lendas. Na verdade não existem. — Era preciso admitir, ela não queria pensar em si mesma como uma guerreira. Ela ainda estava lutando com a ideia de ser uma protetora.
Holiday se aproximou e descansou a mão no braço de Kylie.
— Nós não sabíamos que camaleões existiam até algumas semanas atrás.
— Ela tem razão — Derek disse a Kylie.
Bem, diabos, isso fazia sentido, Kylie pensou, tentando não entrar em pânico.
Lucas, que ainda segurava o pulso dela, apertou sua mão de leve.
— Não é... uma coisa ruim. Ser um protetor é praticamente a mesma coisa. Você tem que lutar para proteger alguém.
Ela olhou para a espada brilhante e percebeu que o toque de Lucas era mais quente do que a espada.
— Ok, então estamos supondo que ela seja uma guerreira santa, mas o que isso de fato significa? — perguntou Burnett. — Por que a espada apareceu só agora? Seria um tipo de rito de passagem? Seria agora o momento certo? Ou... será outra coisa?
A maneira como ele disse “outra coisa” soou estranha. E Kylie podia adivinhar a que ele se referia. E não gostou.
Nem um pouco.
Lucas olhou para ela com simpatia.
— Acho que ela está sendo apresentada a uma arma com um objetivo. Sim, pode ser que ela não esteja preparada para recebê-la ainda. Mas eu acho que é mais que isso... — Um olhar protetor atravessou o rosto dele. Ela sabia que eles estavam pensando a mesma coisa.
— Mais o quê? — Burnett e Holiday perguntaram ao mesmo tempo.
— Pode ser que ela vá precisar. A espada aparece quando é hora de se preparar para a batalha.
— Isso é exatamente o que os anciãos disseram — Hayden falou. — Se ela recebeu uma espada, é porque vai precisar dela.
— Existe uma maneira de ter certeza disso? — perguntou Burnett.
Lucas balançou a cabeça.
— Eu não sei. Mas... — Ele respirou fundo e encontrou o olhar de Kylie. — Você sabe como usar uma espada dessas?
— Por que eu saberia como usar isso? Eu não sei usar nem um descascador de batatas. E é por isso que essa coisa toda não faz sentido. Eu não sou uma guerreira.
— Eu vi você lutar — disse Derek. — Você é incrível.
— Ele tem razão — disse Lucas. — Você também tem um coração de guerreiro santo. — Ele olhou para Burnett. — Mas ela precisa aprender a usar uma espada.
E, obviamente, Kylie não ia ter direito de opinar sobre o assunto. Ela franziu a testa.
— Você pode ensiná-la? — perguntou Burnett.
O olhar de Lucas encontrou o dela novamente.
Não, Kylie pensou, e ela finalmente retirou a mão da dele.
Essa não era uma boa ideia.
— Se ela permitir — disse Lucas.
— Kylie? — perguntou Burnett.
Será que ela tinha escolha? Poderia dizer não e a espada desapareceria?
Ela achava que não. Não poderia escapar dessa.
Ela sabia disso. Sabia com certeza — se não por outro motivo, pelo modo como a espada se encaixava na sua mão — que a arma lhe pertencia.
Ela assentiu, sabendo que era a coisa certa a fazer, mas detestou a ideia do mesmo jeito.
— Ótimo! — disse Burnett. — Primeiro, eu quero que você me traga aqueles livros de lendas da sua avó e, então, a sua tarefa é ensinar Kylie a usar a espada.
Lucas se virou e olhou para Kylie.
— Estou ansioso para começar.
E eu não, pensou ela, mas manteve as palavras para si mesma.
Dez minutos depois, Kylie voltava para sua cabana com Derek, sua sombra oficial até Della voltar do encontro com suas irmãs vampiras. Lucas estava providenciando o necessário e as aulas começariam no dia seguinte.
— Eu sei que você não está feliz com isso — disse Derek.
— Você é minha sombra, eu não estou chateada.
— Não me refiro a isso. Quero dizer as aulas com o Lucas.
Kylie suspirou.
— Não tive muita escolha.
— Você poderia ter insistido com Burnett para encontrar outro professor.
— Não pensei nisso. — Mas por que não pensei? Estou querendo ficar com ele?
Derek olhou para ela.
— Acho que provavelmente é melhor assim.
— Por quê? — perguntou Kylie, sentindo que havia algo que ele não estava dizendo.
Ele sorriu, mas o sorriso veio com um pequeno toque de tristeza.
— Você o ama. Senti isso com toda clareza ali. E também senti a sua raiva.
— Eu tenho o direito de estar com raiva — ela murmurou, mesmo sabendo que a raiva não era o maior problema. Embora tampouco fosse um problema insignificante.
— Sim, você tem — concordou Derek; então ele parou de andar e olhou para ela. — Mas o que você estava sentindo era maior do que isso.
Ela pensou que ele se referia ao fato de ela saber que Lucas acabaria ressentido com ela, mas então Derek continuou.
Ele fez uma cara de quem estava envergonhado.
— Eu senti. A mesma angústia que você costumava sentir quando nos conhecemos. Quando você foi magoada por aquele seu namorado. Depois, a dor que sentiu em relação ao seu padrasto, você sabe, por enganar a sua mãe. Então, veio o sentimento de que eu a traí.
Ela queria negar, mas não conseguiu.
— Então, eu acho que isso apenas significa que nenhum homem presta! — O coração dela se contraiu e ela engoliu em seco para conter as lágrimas.
Ele suspirou, estendeu a mão e tocou o ombro dela como se quisesse consolá-la.
— O que Lucas fez foi errado, Kylie. Droga, o que todos nós fizemos foi errado. E eu não estou dizendo que Lucas não mereça a sua raiva, mas ele não merece pagar pelos erros de todo mundo.
Apesar dos seus esforços, as lágrimas turvaram seus olhos. Droga! Derek estava certo! A raiva que sentia por ter sido traída pelos outros se misturava com a raiva de Lucas.
O toque quente de Derek acalmou suas emoções, mas não consertou as coisas.
Porque aquilo não era algo que se pudesse consertar.
— Mesmo que eu conseguisse superar essa raiva, o nosso relacionamento não iria funcionar.
— Por que não? — ele perguntou.
Ela balançou a cabeça.
— Eu já disse. Ele vai perder tudo. A família. A alcateia. E algo ainda mais importante, os seus sonhos. Eu me recuso a ser a razão de ele perder tudo isso. — Ela voltou a andar novamente. Rápido. Desejando que pudesse correr, fugir de tudo o que sentia. De tudo o que tinha perdido.
Ele emparelhou com ela, e ela desacelerou o passo enquanto cortavam caminho de volta para a cabana. O sol parecia vir de um ângulo diferente, em comparação há algumas semanas. Havia uma sensação de outono no ar e de que a vida estava mudando.
Mudanças eram difíceis.
Ele limpou a garganta e falou, a voz ecoando no silêncio frágil.
— Então você acabou de encontrar uma maneira de contornar isso.
Ela olhou para ele, sem saber exatamente o que ele queria dizer.
— Contornar o quê?
— Contornar a possibilidade de ele perder tudo.
— Não acho que isso seja possível — disse ela.
— Qualquer coisa é possível. Você é Kylie Galen. — Ele lhe ofereceu um sorriso sincero.
Ela balançou a cabeça.
— Você sabe, as pessoas me dão muito mais crédito do que eu mereço.
Ele sorriu.
— Você simplesmente não se vê como nós a vemos.
Ela soltou um suspiro de frustração e os fatos ocorridos mais cedo apertaram seu peito.
— Eu não sou talhada para ser uma guerreira, Derek.
— Você vai se sair muito bem — disse ele. — Além disso, lembra-se do que você me disse, quando chegamos aqui, sobre eu aceitar meus dons?
— Foi provavelmente um mau conselho — disse ela.
— Não, não foi. Você me disse que eu precisava me abrir para os meus dons. Você estava certa. Mal posso me imaginar sem eles agora. São uma parte de mim. E toda essa coisa de espada e ser uma guerreira faz parte de quem você é.
Ela negou com a cabeça.
— Já tenho tanta coisa em que pensar; não preciso de mais.
— Em que você tem que pensar? — ele perguntou.
— No meu fantasma mais recente. — Eu preciso fazer com que ele faça sua passagem antes que me deixe louca. E nas minhas missões — disse ela.
— Mas você não acha que toda essa coisa de espada faz parte das suas missões? Acho que o fato de ela brilhar quando você a toca é um sinal de que ela tem a ver com você.
— Bem, não é a parte da minha busca a que eu gostaria de me dedicar agora — ela retrucou.
Depois de um segundo, ele perguntou:
— Posso ajudá-la de alguma forma?
Ela pensou um pouco.
— Acho que não.
— Conte-me sobre o seu fantasma — incentivou ele.
Ela lhe contou sobre o espírito. Sobre a cabeça e a espada.
— Uau! Isso é bizarro! — exclamou Derek. — Elas têm que estar ligadas de alguma forma. Ela tem uma espada e uma espada vive aparecendo. — Ele fez uma pausa. — Sei que Lucas vai trazer os livros da avó, mas ainda assim vou fazer algumas pesquisas na Internet. Talvez eu encontre alguma coisa.
— Obrigada — disse ela, e, em seguida, olhou para ele. — Por tudo.
— Tudo? — ele perguntou.
— Eu não mereço a sua amizade.
— Ah, você merece, sim! — Eles andaram alguns minutos em silêncio. O som de seus passos na trilha pedregosa juntou-se à melodia da natureza. Alguns pássaros piavam, insetos zumbiam.
— Quer saber de uma coisa? — ele disse.
— O quê? — ela perguntou.
— Você fez a coisa certa... com a gente. Eu precisava que você me dissesse aquilo. Por mais louco que pareça, eu de fato me sinto melhor.
— Você está apenas tentando garantir que eu não me sinta culpada? — ela perguntou.
— Não. Estou falando sério. Foi a coisa certa.
Ela olhou para Derek e percebeu que ele estava sendo totalmente sincero.
— Nós vamos ficar bem, não é? — ela perguntou.
— Sim, eu acho que vamos. Mas eu também estou falando sério sobre ser seu amigo.
— Eu também — disse ela.
Eles caminharam um pouco em silêncio novamente.
— Quais são as suas outras missões? — ele perguntou.
Ela não quis explicar tudo sobre sair do armário para Derek, então explicou a outra metade.
— Quero ajudar os outros camaleões adolescentes. Os anciãos os mantêm isolados de tudo. Essa não é uma boa maneira de crescer.
— Como aquela menina, a Jenny? — ele perguntou. — Ela me pareceu... bem normal.
— Sim, estou falando dela e ela é normal, ela é só... muito isolada do mundo. — Kylie contou a Derek que eles não tinham telefones celulares ou amigos fora do complexo.
— Isso é triste. Jenny me pareceu... bem simpática.
— Sim, ela é — Kylie disse, e se lembrou de ter visto Jenny agarrada às costas de Derek enquanto ele corria em círculos tentando se livrar dela. Kylie quase sorriu.
— Eu sei no que você está pensando — disse ele.
— Foi engraçado — ela admitiu.
— Não foi. Eu poderia tê-la machucado.
— Você não teria feito isso — disse Kylie.
— Não de propósito, mas ela pulou em mim de repente. Eu não tinha ideia de que era uma garota bonita agarrada a mim.
— Então. — Kylie apontou o dedo para ele. — Você a achou bonita. Eu sabia. Vi a maneira como vocês dois se olharam.
Ele deu de ombros.
— Eu não olhei para ela de um jeito especial.
— Olhou, sim. Você a estava analisando. E ela estava analisando você.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Ela estava mesmo?
Kylie riu.
— Sim, ela estava.
— Então vou ter que procurá-la, porque parece que tenho uma queda por garotas camaleões.
— Vai precisar de muita sorte — disse Kylie. — Ouvi dizer que essa espécie pode ser difícil.
— Isso é verdade! — ele disse, rindo. Andaram alguns metros em silêncio.
— A vida dos camaleões adolescentes é muito ruim? — perguntou Derek.
— Eles basicamente não têm permissão para aparecer em público até que sejam capazes de alterar seus padrões. E isso só acontece no final da adolescência ou com vinte e poucos anos.
— Você consegue mudar o seu padrão.
— Sim, eu sou diferente por algum motivo. — Ela fez uma careta. — Parece que essa é a história da minha vida.
— Isso deve ser um saco para eles — comentou Derek. — Por que você não tenta trazê-los para cá? Aposto que Holiday iria deixar.
— Acredite ou não, eu pensei nisso, mas não vai ser assim tão fácil. — Primeiro Kylie tinha que descobrir como convencer os camaleões a sair do armário.
— Bem, se eu puder ajudar, você sabe que estou à disposição.
— Vou me lembrar disso.
Quando chegaram à cabana, Della já estava lá. Assim como Miranda. Estavam sentadas à mesa da cozinha, cada uma com um refrigerante na mão e expressões de preocupação no rosto.
— Que bom que você chegou! — disse Miranda, como se estivessem esperando por ela para realizar uma mesa redonda importante. Então, as duas companheiras de alojamento olharam para Derek como se aquilo fosse uma festa e ele não tivesse sido convidado.
Derek olhou para Kylie e riu.
— A última vez que eu vi esse olhar de uma garota, havia um aviso escrito à mão na casa na árvore da minha vizinha que dizia “Meninos não entram”. Vejo você depois. E se conseguir qualquer coisa nas minhas pesquisas na internet, eu aviso.
Kylie observou-o se afastar. Então virou-se para Miranda e Della e convocou sua própria mesa redonda, para discutir a questão.
— Por que o meu coração não podia ter escolhido Derek? A vida teria sido muito mais fácil.
— Porque os corações são pestinhas sorrateiras e irracionais, feitas para causar sofrimento. Eles querem o que querem, e não dão a mínima para o que tornaria a vida da gente mais fácil ou mais difícil — Della concluiu. — Mas que tormento! — ela gritou, batendo na mesa com tanta força que Kylie não ficaria surpresa se ela a tivesse rachado ao meio. — Acho que devemos começar a beber chocolate novamente. Você acha que conseguiria outro frasco de calda de chocolate com Holiday?
Kylie olhou para Miranda com uma pergunta nos olhos: O que diabos está acontecendo?
Miranda deu de ombros e, obviamente, captou a pergunta silenciosa de Kylie, porque respondeu.
— Steve está ligando para ela de meia em meia hora e ela nem sequer atende ao telefone.
Capítulo Vinte e Nove
No dia seguinte, depois da aula, Kylie ainda estava com ressaca de chocolate. Sim, isso existia. Ela era uma prova viva, pulsante e nauseada disso. Holiday, alegando que todas as três mereciam afogar suas mágoas em cacau, não só tinha arranjado calda de chocolate, como fez Burnett comprar um litro de sorvete de chocolate e um pacote de biscoitos recheados de chocolate.
Claro, mais da metade dos biscoitos já tinha desaparecido no momento em que Burnett e Holiday desceram do carro, e Holiday ainda tinha migalhas no queixo.
— Estou comendo por dois — disse ela, desculpando-se.
Della tinha se contentado apenas com seus Bloody Marys de Chocolate, mas Kylie e Miranda tinham se empanturrado de sorvete, biscoitos e calda de chocolate. Kylie não ficaria surpresa se nunca mais fosse capaz de comer aquilo novo. Ela não podia negar que o chocolate tinha conseguido aliviar temporariamente todos os seus problemas. Mas aliviar, não resolve.
Della tinha ficado reclamando por Steve não aceitar que o relacionamento entre os dois havia acabado. Miranda choramingara sobre ter que se desculpar com Nikki. Kylie quase tinha caído no choro enquanto se perguntava por que todos os homens eram tão cafajestes. Mas quando as palavras estavam prestes a deixar seus lábios, ela se lembrou do que Derek tinha dito sobre ela ter despejado toda sua raiva do passado em cima de Lucas. Ao constatar novamente toda a verdade daquela declaração, ela mudou um pouco o seu discurso e falou sobre o quanto estava chateada por ser uma guerreira santa.
Claro que, depois de levantar a questão de ser uma guerreira, ela foi obrigada a contar tudo o que tinha acontecido com a espada, fazendo as amigas jurarem que não iriam contar a ninguém. Miranda, é claro, achava toda a coisa de ser uma guerreira santa muito legal, e Della ficou com inveja. Kylie ainda estava tão chateada que deu conta de mais uma tigela de sorvete para conseguir lidar com isso. Ah, mas, antes que a noite terminasse, as três estavam rindo feito tontas de todo tipo de bobagem. Entre os temas que abordaram incluíam-se sexo, garotos e o que ficava melhor neles, sungas ou boxers.
As boxers ganharam.
— Ok, talvez chocolate e sangue não combinem tão bem assim — disse Della, parecendo muito triste naquela tarde também. Mas era Kylie quem estava no pior humor. Estava prestes a se encontrar com Lucas para ter sua primeira aula de esgrima. E, ainda por cima, a aula seria à beira do lago.
Por que ele tinha escolhido aquele local para o treino?
Ah, droga, ela sabia por quê — porque aquele era o lugar em que eles costumavam ir para uma sessão de amassos. Mas o que ela não sabia era se ele achava que havia alguma chance de aquilo acontecer nesse dia. Se ele achava, estava redondamente enganado. Ela iria lá para lutar, não para dar beijo de língua!
Ela viu Lucas esperando, apoiado casualmente contra uma árvore. Ela não o via desde o dia anterior no escritório, mas por alguma razão era como se houvesse se passado muito tempo. Ele tinha faltado à aula. Quando a senhorita Cane questionou a ausência dele, Fredericka ergueu o braço e disse que ele tinha ido pegar algo na casa da avó. Kylie sabia que eram os livros que Burnett queria.
Enquanto se aproximava, Kylie não conseguia desviar o olhar de Lucas, parado ali tão natural e vigoroso quanto a floresta atrás dele. Por alguma razão, ele parecia mais lobisomem do que humano, e ela supôs que o período da Lua cheia estava se aproximando. Cerca de duas semanas antes dessa fase da Lua, ela começava a perceber que ele parecia mais viril. Quanto mais perto ela chegava do ponto onde Lucas estava, mais ela percebia o quanto aquela aula seria difícil.
O cabelo preto dele precisava de uma tesoura e algumas mechas se encaracolavam. Esses pequenos cachos agitavam-se com a brisa e lhe davam vontade de correr os dedos através deles. Ele usava uma calça jeans apertada o suficiente para mostrar a parte inferior do corpo de um homem, não de um menino. A camiseta azul-clara estava justa nos ombros largos, definindo os peitorais sob o algodão fino. A bainha das mangas curtas delineava perfeitamente os braços, chamando a atenção para os bíceps. E a cor da camiseta só fazia seus olhos azuis parecerem mais indomáveis. Ele parecia saído de um anúncio de revista para vender algum produto supermasculino.
Lucas se afastou da árvore e começou a andar na direção de Kylie e Della, mas ela sentiu que ele se movia na direção dela, como se ela fosse o único destino dele. Não que ele se apressasse; sua marcha era lenta, mas confiante. O estômago de Kylie vibrou e ela sentiu que suas mãos começavam a suar.
Della inclinou a cabeça para baixo e sussurrou:
— Você sabe que os lobisomens podem farejar feromônios, não sabe?
Ah, que maravilha, ela pensou, mas então percebeu que, embora não conseguisse controlar o fato de se sentir atraída por ele, aquilo não queria dizer que teria que agir com base nesse sentimento.
— Se isso faz você se sentir melhor, saiba que não é a única poluindo o ar neste momento.
Kylie não tinha se vestido com a intenção de chamar a atenção dele. Ou tinha?
A camiseta rosa de decote canoa só revelava levemente a fenda entre os seios. Claro que estava um pouco justa, mas a maioria de suas roupas era assim desde que seu sutiã tinha aumentado um número no tamanho. A cor era feminina, mas o que ela podia fazer se gostava de rosa? Os shorts eram calças jeans que ela havia cortado, mas nada muito curto, e os tênis brancos eram simples e gastos sobre as meias cor-de-rosa, que combinavam com a camiseta. E a única maquiagem que ela usava era rímel e gloss.
Lucas parou à sua frente. Era incrível como ele cheirava a ar livre; um aroma fresco, de terra, com uma pitada de hortelã.
— Estou aqui. — Ela tentou parecer indiferente à presença dele.
— Que bom! — disse ele, e havia suavidade em sua voz.
Seus olhares se encontraram e se mantiveram assim por um segundo. O coração dela acelerou. Della acenou com a mão para a amiga, como se dissesse que se sentia sobrando ali.
— Você quer que eu fique?
O “sim” de Kylie e o “não” de Lucas soaram ao mesmo tempo.
— Desculpe — disse Lucas, não parecendo lamentar tanto assim ao olhar para Della. — É que eu preciso de toda a atenção de Kylie para ensiná-la, e você iria apenas distraí-la.
— Certo — Della disse, num tom de descrença total.
Lucas franziu o cenho para a vampira.
— Tudo bem — disse Della. —Eu só vou dar uma volta por aí. — Ela olhou fixamente para Kylie.— Me ligue quando quiser ir embora e eu volto quando tiverem terminado.
— Eu a levo até a cabana — disse Lucas.
— Eu te ligo quando terminar — disse Kylie.
Della foi embora, deixando os dois sozinhos. Kylie olhou para a água por um segundo e tentou encontrar forças para resistir à próxima hora.
Nenhum dos dois falou durante vários minutos. Ela continuou a olhar para a água e ela pôde senti-lo olhando para ela. As borboletas, brincando de carrinhos de bater em seu estômago, aceleraram os motores e saíram em alta velocidade. Respirando fundo, e dizendo a si mesma que estava sendo tola, ela o encarou.
— Quando é que vamos começar?
— Vou pegar as coisas.
Lucas voltou a caminhar até a árvore onde havia um saco grande de pano ao lado do tronco. Ele pegou uma toalha do saco e, em seguida, estendeu-a no chão. Pegou o saco de novo e dali tirou uma espada. Ela a reconheceu imediatamente como a espada que a perseguia. Algo como um tremor em espiral percorreu a sua espinha. Mas não era medo, era outra coisa. Era como um sentimento inexplicável de reconhecimento.
Lucas pousou a espada sobre a toalha. Só o jeito como ele carregava a arma já expressava respeito, reverência. Ela não tinha a menor ideia de que ele sabia como manejar uma espada. Talvez o assunto de lutas e espadas nunca tivesse surgido nas conversas entre eles.
Kylie se aproximou e viu quando ele tirou do saco outra espada, um pouco diferente, mas parecida com a primeira. O tamanho e a forma pareciam quase os mesmos, e ambas tinham a mesma aparência de antiguidade.
Será que a outra tinha surgido de forma mágica também?
— De onde que veio essa espada? — ela perguntou.
Ele ergueu o olhar.
— Essa é a minha. Quando fui pegar os livros para Burnett, trouxe a espada também.
— Onde você arranjou uma espada? — perguntou Kylie.
— É uma relíquia de família. Está na minha família há muito tempo. Meu avô na verdade me deu antes de morrer.
Ela percebeu mais uma vez que as duas espadas pareciam ser do mesmo tipo.
— Eles eram cruzados ou guerreiros santos?
Ele sorriu para ela, um de seus sensuais sorrisos de bad boy. E os dedos de Kylie se remexeram dentro do tênis com aquele sorriso. Ela se lembrou de sentir aquele sorriso em seus lábios. Prová-lo. Adorá-lo.
— Na verdade, eram vikings. Me contaram que eles eram uma espécie de Robin Hoods, não piratas assassinos, mas não posso jurar que isso seja verdade.
Ela passou as palmas das mãos suadas nos bolsos traseiros.
— Burnett já teve chance de olhar os livros? Será que ele descobriu alguma coisa útil?
Ele voltou a pegar o saco e tirou dali duas espadas de madeira.
— Eu o vi logo depois do almoço e ele me disse que ainda estava dando uma olhada neles.
— Você já leu esses livros? — perguntou Kylie.
— Já. Quando meu avô me dava aulas, eu os devorei. Eu costumava fazer de conta que era um guerreiro santo. — Seu sorriso se iluminou. — Salvando donzelas em perigo.
Ela podia quase vê-lo representando esse papel. Lembrou-se de quando eles eram pequenos e ele pegou a pedra que os valentões tinham atirado nela.
Aos 6 anos, ela o considerava um herói.
Aos 16 anos, ela o considerava um destruidor de corações.
— Tudo bem — disse ele. — Eis o meu plano. Primeiro vou ensiná-la a segurar a espada e, em seguida, a fazer alguns movimentos defensivos muito simples. Então vamos realmente treinar por um tempo.
Ele pegou a espada de Kylie e se moveu atrás dela. Ela imediatamente se virou.
— Fique olhando para a frente, quero te orientar sobre como segurá-la.
— Por que você não pode simplesmente me mostrar?
Ele franziu a testa.
— Foi assim que o meu avô me ensinou. Por favor, vire-se.
Ela franziu a testa para ele, mas se virou. Em seguida, ela prendeu a respiração e esperou pelo toque de Lucas. Esperou para sentir seu corpo contra o dela.
Esperou a dor que acompanharia o toque dele — a dor emocional, que era ao mesmo tempo doce e amarga.
Ela sentiu o peito de Lucas, quente e sólido, contra as omoplatas. A mão direita dele se estendeu para a frente e ele pressionou dois dedos um pouco abaixo do cotovelo de Kylie. Então ele deslizou lentamente a mão até o pulso dela. A sensação de seu toque era tanto desejada quanto indesejada. Ela engoliu em seco e o barulho que isso fez foi quase alto demais.
— Pegue a espada. — A voz profunda e rouca de Lucas sussurrou em seu ouvido.
Só então ela percebeu que tinha fechado os olhos.
Quando os abriu novamente, ela viu que ele tinha esticado o braço em torno dela e segurado a espada com a mão esquerda. Segurando a espada, ela fechou a mão em torno da arma.
— Agora, mova o pulso só um pouco para... — Ele fez uma pausa e nesse instante a espada começou a brilhar.
O jeito como ele inspirou o ar revelou que isso ainda o deixava impressionado.
Kylie ainda estava muito concentrada na sensação do corpo dele pressionado contra o seu para se preocupar com a espada.
— Assim — disse ele, girando ligeiramente o pulso dela para a direita. A cabeça de Lucas se virou também, e ela sentiu o rosto dele na parte de trás da cabeça.
Ela achava que o ouvira suspirar, mas não tinha certeza.
— Você sente como o peso da espada está nivelado na sua mão?
Ela assentiu com a cabeça, não confiando na própria voz. O aroma dele a rodeava. As ondas mais fortes de dor cessaram, mas ela ainda sentia uma dor incômoda. Ela também sentia... a maravilha que era o toque de Lucas. Sentia a pele dele onde quer que ele pressionasse o corpo contra o dela.
— Você está indo bem. É assim que precisa segurá-la.
Ficaram assim por alguns longos segundos. A forma firme do corpo dele pressionada contra ela, seu braço circundando-a, a espada na mão.
Por um segundo, ela pensou que tinha ouvido o zumbido, o som hipnotizante e poderoso feito para enfraquecer as parceiras.
— E agora? — ela conseguiu dizer, lutando contra a sensação de atração, de se sentir seduzida.
Ele respirou fundo e deu um passo para trás.
— Agora eu vou pegar a minha espada e te mostrar alguns movimentos. — A voz dele soou um pouco mais baixa.
Ele se moveu rapidamente para pegar a espada. Então voltou e ficou bem ao lado dela. Seu olhar azul-escuro desviou-se da espada e olhou para ela. Ela viu o ardor nos olhos dele, ela viu o desejo.
— Sinto muito. Eu não queria que isso acontecesse.
Ela desviou o olhar rapidamente e, embora parte dela quisesse se aproximar dele, ela simplesmente ficou ali e esperou que ele lhe mostrasse o movimento seguinte. Esperando que ele envolvesse apenas uma luta de espadas e não, sedução.
Capítulo Trinta
Ela passou os trinta minutos seguintes seguindo os movimentos de Lucas. De novo e de novo. Golpeando com a espada de uma certa forma e, depois, de outra. Ele gritava os comandos. Na verdade, não de uma maneira rude, mas como se fosse do jeito como ele tinha sido ensinado. Ela não podia deixar de imaginar Lucas, bem mais jovem, recebendo as instruções severas do avô.
— Não é assim — disse ele. — Mantenha a espada apontada para o lugar onde o adversário vai estar. E não olhe para baixo. Agora veja onde você está apoiando seu peso. Coloque o seu peso nos seus movimentos.
Kylie perdeu a conta de quantas vezes fizeram isso.
Foi realmente extenuante. O sol aquecia sua pele, o ar estava espesso. Os músculos das pernas de Kylie queimavam depois de todos os agachamentos parciais e estocadas. Ela não reclamou. Nem uma vez. Ela aguentava tudo para sentir o toque dele.
— Assim está ótimo! — exclamou ele, fazendo os mesmos movimentos ao lado dela. — Você está pegando o jeito.
— Ah, meu Deus. Você tem um talento nato!
A céu aberto, ela realmente ouviu a voz antes de sentir o frio do espírito. O espírito ficou à esquerda de Kylie, segurando sua própria espada, seguindo as orientações de Lucas com precisão.
— O que você está fazendo? — perguntou Lucas. — Desloque o peso do corpo para trás e depois para a frente.
Kylie ignorou Lucas, mas continuou a se mover — a atenção dela agora estava na arma do espírito e não em seguir as instruções de Lucas.
Comparando as espadas, ela percebeu que a espada do espírito na verdade não era como a que brilhava nas mãos dela. A lâmina do fantasma era mais fina e cônica. E o punho, como Lucas chamava o cabo, era maior.
Que tipo de espada você tem? Kylie perguntou mentalmente ao espírito, pensando que talvez ela conseguisse levá-la a se abrir, talvez dando a Kylie algo que a ajudasse a mandá-la embora.
— Uma espada bastarda. Eu a roubei de um bastardo. — Ela riu, mas não perdeu o ritmo dos movimentos. Parecia já ter prática.
Quem quer que fosse, as suas habilidades com a espada comparavam-se, se não superavam, as de Lucas.
Estou falando sério. Kylie perdeu um passo.
— Você está bem? — Lucas perguntou, e ela sentiu que ele a observava.
— Sim — Kylie respondeu, mas continuou a se concentrar no espírito. Ela precisava descobrir isso. Quanto mais cedo o fantasma desaparecesse, mais cedo ela poderia se dedicar às suas outras missões.
Quem você quer que eu mate?, perguntou Kylie mentalmente, continuando a se mover, mas obviamente não tão bem quanto antes, porque Lucas tinha parado de treinar e agora estava apenas olhando para ela.
— Você quer fazer uma pausa? — ele perguntou.
Quem é?, Kylie exigiu, e parou de se mover.
O espírito parou seus movimentos e olhou para Lucas.
— Ouça esse cara. Ele é um bom professor. Com um pouco de prática, você estará pronta. Você vai matar o meu inimigo, e então vou deixar você em paz e assumir o meu lugar no inferno.
Inferno? A respiração de Kylie parou. Ela nunca tinha lidado com um espírito que ia para o inferno. Ela só esperava que o fantasma estivesse errado. Mas sabendo o que sabia, todas as pessoas que o espírito dizia ter matado, ele poderia muito bem estar destinado a ir para o inferno.
O espírito desapareceu.
Kylie soltou um suspiro frustrado e, em seguida, limpou o suor da testa com as costas da mão esquerda. Mais uma vez ela teve a nítida sensação de que esse espírito estava de alguma forma ligado ao fato de ela receber a espada. Mas o que aquilo significava? Kylie realmente deveria obedecer às ordens do fantasma e matar alguém por ela?
A ideia de tirar a vida de uma pessoa causou um arrepio na espinha de Kylie. Mais uma razão para ela questionar sua capacidade como guerreira santa.
— Quer um pouco de água? — perguntou Lucas.
Ela olhou para ele. Sua pele bronzeada brilhava com o calor. A frente da camiseta dele agora estava agarrada ao tronco, delineando ainda mais seu peitoral. O suor sempre caía bem em Lucas.
Ela olhou para a espada.
— Existe algo como uma espada bastarda? — ela perguntou, com o foco no fantasma e sem querer pensar em como Lucas estava atraente.
— Sim, por quê? — Ele andou até o saco de pano e tirou dali duas garrafas de água. Então entregou uma a ela. A mão dele roçou na dela. Ela puxou a mão para trás, e ele deve ter notado sua rapidez, porque franziu a testa.
— Nada — disse ela, sabendo que ele não iria querer saber. Ele não gostava de fantasmas. Mas ele foi até o cemitério por mim, para me ajudar. Mesmo que na época eu fosse um vampiro.
Ela baixou a espada e a observou enquanto ela perdia o tom dourado.
— Isso é muito estranho — disse ele.
— Pode apostar. — A garrafa que ele lhe entregou gelou a palma da mão dela. Ela tirou a tampa e tomou um longo gole.
Eles beberam sem falar; a mente dela no fantasma e, um segundo depois, em quanto Lucas estava bonito.
— Está pronta para lutar? — ele perguntou.
Kylie olhou para sua espada e para a outra pousada sobre a toalha. Armas reais que poderiam matar. Uma escorregadela do pulso e alguém poderia ficar gravemente ferido.
— Eu acho que não.
— Não com estas. Você não está pronta para isso. — Ele apontou para a toalha e as espadas de madeira. — Com aquelas.
Ela queria dizer que não, mas então percebeu que, quanto mais cedo aprendesse a lutar, mais cedo deixaria de se encontrar com Lucas e de se lembrar de tudo que perdera. Recolocando a tampa no lugar, ela deixou a garrafa d’água no chão, ao lado da sua espada, e depois pegou uma das espadas de madeira.
— Vamos nessa.
Vinte minutos depois, eles tinham finalmente conseguido. Estavam lutando. Kylie por fim começou a entender como fazer aquilo. Usando os movimentos que ele tinha lhe ensinado, ela conseguiu bloquear a maioria dos ataques. A maioria, mas não todos.
Por três vezes ele conseguiu se desviar da espada dela e tocá-la no peito com a espada de madeira.
— Dois pontos para o professor — ele disse a cada uma das vezes. Então eles continuaram se movendo para os lados, atacando, recuando, avançando e às vezes se movendo em círculos. O som das lâminas de madeira se chocando ecoava em seus ouvidos. O suor recomeçou a escorrer da sua testa, mas ela o ignorou, determinada a ganhar alguns pontos na disputa.
Observando-o, analisando-o, Kylie começou a reparar nos padrões dos movimentos dele. Usando contra ele o que tinha aprendido, ela esperou por uma oportunidade e então atacou. Ela tocou no peito dele com sua própria lâmina de madeira. Ofegando pesadamente, sentiu o suor escorrendo por entre os seios.
— Dois pontos para a aluna — disse, animada com seu momento de sucesso. Por mais incrível que parecesse, ela estava gostando daquilo.
Ele parou e baixou a espada. Os olhos azuis fixos nos dela. Ele respirou fundo.
— Você não sabe o quanto eu senti falta desse sorriso.
Voltando à razão, percebendo o que ela tinha oferecido a ele, ela bateu a lâmina de madeira na de Lucas.
— Nós viemos aqui para lutar.
Ele ergueu a espada e, em seguida, voltou à disputa.
— Eu sinto sua falta — disse ele, logo depois de conter a lâmina dela.
Ela se afastou e brandiu a espada com mais força para a esquerda. A lâmina de madeira de Lucas a bloqueou. Ela se afastou e voltou a avançar.
— Você é minha alma gêmea — disse ele, bloqueando-a em cada golpe.
A emoção encheu o peito dela. Um pouco por causa da lembrança de ouvi-lo dizer aquelas mesmas palavras para Monique, mas principalmente por saber tudo o que ele tinha a perder. Ela arremeteu com mais força, e sua espada bateu na dele com um baque forte. O impacto fez a espada voar da mão dele e a dela se partir ao meio.
— Você deve fazer o que seu pai quer. Voltar para Monique, concordar em se casar com ela. Entrar para o Conselho como o planejado.
— Eu não estou concordando em me casar com Monique! — disse ele numa voz severa. — Eu nunca deveria ter concordado com isso!
— Eu acho que já acabamos — disse ela, com o coração disparado e um mundo de dor se instalando no peito.
Uma expressão de tristeza encheu os olhos dele.
— A aula de hoje, acabamos. Mas não o que existe entre nós. — Ele pegou a espada e, em seguida, começou a guardar suas coisas, enquanto ela ficou ali parada, tentando controlar a respiração. Ele encontrou a outra metade da espada de Kylie e a pegou.
Ela se perguntou se essas não seriam as mesmas espadas que ele e o avô usavam. E se fossem, provavelmente significavam algo para ele. A culpa encheu o peito dela.
— Não tive a intenção de quebrá-la.
— Eu sei. Tudo bem. Isso acontece muito. — Ele fez uma pausa e, pelo jeito como a fitou, ele estava prestes a dizer algo que ela não queria ouvir.
O telefone de Kylie tocou. Ela o puxou para fora do bolso.
Lucas fez uma careta.
— Se for Della diga que eu falei que ia acompanhá-la até a sua cabana.
— É minha mãe — disse Kylie, enquanto se afastava alguns metros de Lucas. Ela colocou o telefone na orelha, um pouco preocupada ao ver que a mãe estava ligando durante o expediente de trabalho.
— Oi, mãe — cumprimentou Kylie, ouvindo ainda o coração bater nos ouvidos por causa do esforço da luta. Ou por causa do que Lucas havia dito.
— Oi? É só isso que você vai me dizer? — perguntou a mãe, com rispidez.
— O que mais eu devo dizer a você? — perguntou Kylie.
— Como você se atreve a fazer isso comigo, Kylie Galen? — O tom da mãe a fez recordar da época em que elas não se davam bem — dos dias em que Kylie chamava a mãe de “Princesa de Gelo”.
Ela respirou fundo e disse a si mesma para não entrar em pânico, mas não era justamente com isso que ela estava preocupada? Que, agora, com John se intrometendo entre as duas, a frágil relação que tinham passasse a correr perigo?
— Mãe, o que foi que eu fiz? — Kylie se afastou mais alguns metros, sem querer que Lucas ouvisse a discussão.
— Você sabe o que você fez, não banque a inocente comigo.
— Eu não estou bancando nada — disse Kylie, ficando um pouco mais preocupada e, quando ela olhou para a frente, viu Lucas observando-a com um ar solidário.
— Você se encontrou com os Brightens, não foi? — A mãe falou tão alto que feriu seus ouvidos e ela teve certeza de que Lucas também pôde ouvir.
Kylie se afastou mais alguns metros. Ela tinha planejado contar à mãe, logo que ela tinha voltado de viagem, mas, depois do mal-entendido da gravidez, simplesmente não achou que fosse uma boa hora. E na manhã do dia anterior, com todos os pedidos de desculpas e elogios a John, ela também não achou que fosse o momento certo. Além disso, aquilo era algo que ela precisava contar pessoalmente.
— Sim, e eu ia te dizer.
— Você ia? Ia me dizer? Você não acha que era algo que você deveria me contar antes de fazer?
— Eu te disse. Quer dizer, eu disse que queria encontrá-los. Falamos sobre isso há alguns meses, lembra?
— Você deveria ter discutido isso comigo primeiro.
E você deveria ter discutido isso comigo anos atrás. Kylie encontrou algum alívio na sua própria raiva, mas sabia que não podia extravasá-la agora. A mãe nunca era razoável quando estava chateada e, naquela situação, pôr mais lenha na fogueira não seria uma atitude inteligente.
— Eles ligaram para você? Estavam aborrecidos? — Kylie tinha pensado que os Brightens haviam concordado em esperar e se encontrar com a mãe dela mais tarde. Por que tinham se precipitado e ligado para ela? Mas, mesmo contrariada com a atitude deles, ela não podia imaginar os Brightens sendo rudes com a mãe.
— Sim, eles me ligaram! E você faz ideia do quanto essa conversa foi estranha?
— Sinto muito. Mas você estava na Inglaterra — Kylie acrescentou.
— Há quanto tempo isso está agendado, mocinha?
— Eles estavam fora do país e eu nem achei que tivessem ouvido a minha mensagem. Eles ligaram e quiseram vir aqui logo que chegaram.
— Você deveria ter me contado primeiro, senhorita Galen.
Ah, que inferno, sempre que a mãe se referia a ela como senhorita Galen, Kylie sabia que lá vinha bronca. E, como tantas vezes no passado, ela não achava que a merecesse.
— Eu deveria ter tido tempo para me preparar antes de falar com eles. Em vez disso, recebo esse telefonema de repente.
— Sinto muito — disse Kylie.
— John estava comigo quando eles telefonaram. Você faz alguma ideia de como isso foi estranho?
Lágrimas encheram os olhos de Kylie e ela não conseguiu mais segurar a raiva.
— É por isso que você está chateada? Por causa de John?
— Eu não tinha dito a ele que Tom não era seu pai. Foi totalmente constrangedor.
— Você tem vergonha de mim? — perguntou Kylie, e balançou a cabeça.
— Não vire esse jogo — disse a mãe.
— Virar o jogo? — Ela balançou a cabeça. — Sinto muito, mãe, mas você está totalmente errada.
— Eu não fiquei envergonhada por causa de você. Eu fiquei... Fiquei envergonhada por ter engravidado de alguém que eu mal conhecia!
Kylie enxugou as lágrimas.
— Você disse que o amava.
A mãe suspirou.
— É claro que eu amava, mas...
— Mas o quê? — perguntou Kylie. — Mas você estava com medo de que o seu precioso John visse a sua omissão da verdade como uma mentira?
— Kylie, não seja...
— E isso não seria bom, não é? — ela continuou. — Espere, você não precisa responder a essa pergunta, porque eu posso dizer como é. Como é quando alguém que você achava que conhecia esconde algo de você, algo que poderia ser muito importante! Eu não posso acreditar que você esteja com raiva de mim por não ter contado que entrei em contato com os Brigthens quando você não me disse uma palavra sobre o meu próprio pai ou sobre os meus avós durante todos esses anos!
O jeito como a mãe engoliu o ar já revelava muita coisa.
— Eu... Eu pensei que já tinha explicado isso.
— Sim, você explicou que estava perdidamente apaixonada pelo meu pai, e agora diz que mal o conhecia.
— Eu... Eu não acho que isso seja algo que devamos discutir pelo telefone.
— Sério? Pois foi mais ou menos assim que eu me senti quanto a te contar sobre os Brightens. — Mais lágrimas escorreram pelo seu rosto.
Ela desligou tão zangada que quase quis jogar o telefone longe. Ela não fez isso, mas desligou o aparelho só para o caso de a mãe tentar ligar de volta.
— Sinto muito. — As palavras de Lucas soaram atrás dela.
Ela enxugou as lágrimas novamente e se virou. Ela não sabia que ele estava tão perto e sem querer correu direto para ele. Seu rosto pousou no peito mais que perfeito de Lucas. Seus braços quentes e suaves a envolveram e a abraçaram por dois, talvez três segundos antes de ela se afastar. Tempo suficiente para ela se lembrar de como era bom se aconchegar a ele, para recordar o quanto era bom poder contar com ele. Apenas por tempo suficiente para ela recuperar o bom senso e lembrar-se de que ela não devia se aconchegar a ele ou contar com ele novamente.
Na sexta-feira seguinte, quase meia-noite, Kylie estava deitada na cama olhando para o teto, remoendo seus problemas. Eles davam voltas e mais voltas na sua cabeça e com qual deles se preocupar mais, nem ela nem ninguém sabia.
Sua mãe, com quem Kylie estivera falando, embora a raiva ainda não tivesse passado, e sua missão aparentemente impossível de salvar os camaleões adolescentes.
Seu fantasma completamente impossível e o impossível e irritante Lucas.
E uma vontade incontrolável de falar com Daniel mais uma vez, de quem ela não tivera mais notícias desde a visita dos Brightens.
E por último, mas certamente não menos importante, um patife impossível, cuja ameaça ainda ressoava nos ouvidos de Kylie. Você vai vir até mim, Kylie Galen, vai vir até mim disposta a morrer, a sofrer em minhas mãos, para minha alegria, porque o preço será muito alto! Sua fraqueza será sua ruína.
Nesse exato momento, a fraqueza de Kylie parecia ser sua incapacidade de descobrir alguma coisa. Tudo em sua vida estava como num limbo.
A única questão que lhe parecera produtiva naquela última semana fora a sua habilidade ao usar a espada. Às vezes ela se perguntava se a sensação boa que tinha com relação a isso não era apenas por causa de Lucas. Estar com ele por uma hora ou duas por dia.
Ah, e ela não tinha sucumbido a nenhum dos seus avanços. Coisas sutis, como andar tão perto que seu ombro roçava no dela, sua tática de lhe mostrar um movimento ficando de pé atrás dela e conduzindo-a para que ficasse numa certa posição ou fizesse um movimento. E então havia os avanços não tão sutis. Enquanto brigavam com as espadas de madeira, ele às vezes vinha com um “Eu ainda te amo” ou “Você sabe que é linda?” ou “Você se lembra daquela noite em que estávamos voltando do cemitério e quase fizemos amor?”
Ela havia quebrado mais três espadas de madeira por causa daquelas coisas que ele dizia. Alguém poderia pensar que isso serviria para fazê-lo ficar de boca fechada. Mas não. Lucas tinha até rido da segunda vez em que ela fizera isso. Ele não parecia se importar que seus comentários acabassem obrigando-o a arranjar outra espada. E ela teve certeza disso quando, no dia seguinte, ele disse algo que a fez quebrar a terceira espada. Não que ela estivesse fazendo aquilo de propósito; era simplesmente difícil para ela não extravasar a emoção com seus golpes.
Naquele dia, quando eles foram embora, ela chamou o que estavam fazendo de “esgrima”, e Lucas a corrigiu. Ele disse que ela não estava aprendendo a esgrimir. Pois aquilo envolvia um conjunto completamente diferente de habilidades. Ela estava aprendendo a lutar. Ele não disse isso, mas ela leu os pensamentos dele. Ela estava treinando para matar.
Mas quem?
E como? Ah, ela sabia que aquilo iria acontecer com uma espada, só não sabia como seria capaz de matar. De realmente tirar uma vida.
Soltando um profundo suspiro, Kylie rolou na cama, deu um soco no travesseiro e lembrou-se de Collin Warren, quando ela o atirou através do cômodo. A intenção dela não tinha sido matar, mas proteger. Ela não o matara, mas poderia ter feito isso.
E talvez fosse desse jeito que a “coisa” toda ia acontecer, fosse lá o que fosse. Talvez se seu instinto de proteção estivesse ativado, ela fosse capaz de fazer isso e não pensar. Mas quando pensou a respeito depois, se perguntou se seria capaz de conviver com isso.
Talvez se fosse para salvar alguém que ela amava.
— Ou matar alguém que você detesta.
O frio tomou conta dela. Kylie se sentou e o fantasma se sentou nos pés da cama, segurando sua espada. Kylie o tinha visto todos os dias durante os treinos com Lucas. Ela aparecia e fazia os exercícios com eles, mas, não importava o quanto Kylie tivesse tentado, o fantasma não tinha falado uma única vez.
— Quem é que eu detesto tanto assim? — Kylie perguntou.
— Você sabe — disse o fantasma.
— Diga, droga! Estou cansada dos seus jogos!
Della, como se estivesse meio dormindo, invadiu o quarto de Kylie.
— Está tudo bem?
— Sim! — respondeu Kylie. — Vá embora! — Ao ver que a amiga ainda estava parada ali, Kylie completou — É um problema com um fantasma.
Della disparou para fora. Mas, quando Kylie olhou em volta, o fantasma tinha sumido.
— Quem é que eu detesto tanto assim? — ela repetiu. O fantasma não voltou, mas de repente Kylie percebeu. Percebeu com clareza.
Mario.
Ela deveria matar Mario.
No fundo, Kylie sabia que isso ia acontecer. Sabia que eles se enfrentariam novamente. O que ela não sabia era como, pelo amor de Deus, iria vencê-lo. Ele tivera anos para acumular seus poderes. Como ela poderia estar à altura dele?
Em seguida, outra pergunta lhe ocorreu. Será que isso significava que Mario era a pessoa que o fantasma queria que ela matasse? Mas qual seria a ligação entre ele e o fantasma?
Capítulo Trinta e Um
Sábado pela manhã, de pé no refeitório, Kylie esperou que sua mãe aparecesse no dia dos pais. Ela não tinha dito nada sobre a vinda de John, mas Kylie não sabia se isso significava que ele não viria, ou se ela não sentia necessidade de perguntar se Kylie concordava. Mas Kylie realmente rezava para ele não aparecer. Agora que o relacionamento com a mãe parecia entrar num terreno movediço, ela não precisava de John por perto.
Por outro lado, o padrasto de Kylie tinha deixado a cidade por causa de uma viagem de negócios e não ia aparecer, o que era bom para Kylie. Sem ele, o nível da combustão diminuiria, no mínimo, um grau. Ela não tinha deixado de amar Tom Galen, mas nesse momento o pai que Kylie ansiava por ver era seu pai verdadeiro. Desde a visita dos Brigthens, Kylie sentia saudades de passar algum tempo com Daniel. Quase todas as noites antes de dormir, ela pegava o álbum de fotos que os Brightens haviam lhe dado, e quase sempre acabava chorando. Sentindo como se a vida a tivesse enganado.
Enganado-o, também.
Kylie observou alguns pais passarem pela porta do refeitório. Os pais de Miranda entraram e a encontraram à espera deles, toda comportada, sentada a uma mesa. Ver Miranda daquele jeito era muito estranho, como usar um sapato no pé errado.
A mãe de Miranda tirava toda a confiança e personalidade da bruxa. Isso era revoltante!
A mãe de Derek caminhava com exuberância, como se estivesse ansiosa para ver o filho. Era assim que os pais deveriam ser, Kylie pensou. O olhar da mulher vasculhou o salão, obviamente à procura de Derek. Quando seu olhar encontrou o de Kylie, ela sorriu e acenou e começou a se mover em direção a ela. Felizmente, Derek a chamou do outro lado do refeitório e poupou Kylie de uma conversa estranha. O que dizer à mãe do garoto cujo coração você acabou de partir?
Os pais de Helen entraram com um olhar de preocupação no rosto, embora houvessem trazido a filha para Shadow Falls alguns dias antes.
Jonathon não parara de sorrir desde que Helen tinha voltado. Kylie se sentava com eles quase todos os dias na hora do almoço, deixando Della e Miranda com suas próprias espécies. No dia anterior, durante o almoço, Kylie tinha observado as mesas de todas as diferentes espécies e se perguntado se algum dia haveria uma mesa de camaleões em Shadow Falls.
Em seguida, os pais e a irmã de Della entraram. O pai parecia, como sempre, contrariado e aborrecido por estar ali. Ele tinha até dito à filha uma vez que só vinha porque a mãe dela fazia questão. Parte de Kylie teria gostado de bater naquele homem até colocar alguma razão na cabeça dele.
Como ele poderia ignorar o quanto aquelas palavras machucavam a filha?
Do outro lado da sala, Della franziu o cenho para sua família que cruzava a porta. O coração de Kylie doeu pela amiga. Como se fosse possível, a vida familiar de Della era ainda pior do que a de Kylie.
— Você está bem? — perguntou Holiday aproximando-se para ficar ao lado dela.
— Sim. Só queria saber por que as famílias têm que ser tão difíceis. Por que as pessoas não podem simplesmente se amar?
Holiday roçou o ombro contra o de Kylie, oferecendo um pouco de conforto.
— Elas se amam. Dramas familiares são a consequência de se ter uma família. O que você vê nesta sala agora é provavelmente a pior fase.
— O que você quer dizer? — perguntou Kylie.
— O momento mais difícil em qualquer relacionamento é a mudança. E nada traz mais mudança na dinâmica de uma família do que o momento em que um adolescente começa a se firmar como uma pessoa independente. Isso vale tanto para os seres humanos, quanto para os sobrenaturais.
Holiday devia ter visto Kylie olhar para Miranda e Della, pois disse:
— Em poucos anos, Miranda já não vai se importar se sua mãe aprova suas escolhas. E a mãe vai gradualmente aceitar que Miranda é como é. Della vai crescer e fazer grandes coisas, porque não vai aceitar menos de si mesma. Seu pai vai ter que admitir que, embora ele não entendesse as mudanças na vida da filha, ela cresceu para ser um sucesso.
— E você não acha que esses ressentimentos vão prejudicar o relacionamento?
Holiday suspirou.
— Ah, haverá cicatrizes e algumas coisas para se consertar e, sim, existem casos que não terminam bem. — Ela fez uma pausa. — Mas, para a maior parte, os problemas que você vê aqui são coisas das quais as famílias podem e provavelmente irão se recuperar.
— Isso me dá esperança — disse Kylie.
— Você retornou a ligação dos Brightens? — perguntou Holiday.
Kylie havia recebido no dia anterior a mensagem de que eles tinham ligado.
— Sim, eu falei com eles. Queriam vir no dia dos pais e conhecer a minha mãe.
Holiday ficou tensa.
— Você não me disse que eles viriam.
— Eles não vêm. Não achei que a minha mãe estivesse preparada para se encontrar com eles. Depois da discussão que teve comigo porque eu os vi, nós mal falamos sobre eles. Ela pediu desculpas, mas agora nós duas estamos fingindo que nada aconteceu. Estou com um pouco de receio de trazer o assunto à tona.
— Vai dar tudo certo. Sua mãe não parece ser do tipo irracional.
— Obviamente, você não a conhece muito bem. — Embora Kylie tivesse dito aquilo meio brincando, em parte era verdade.
Kylie olhou para Holiday e se lembrou da visita do fantasma.
— Tive um visitante na noite passada.
— E ela falou com você dessa vez? — perguntou Holiday, sabendo exatamente o que Kylie queria dizer.
— Um pouco. — Ela mordeu o lábio. — Eu acho que está tudo ligado. A espada, o fantasma e Mario.
Holiday franziu a testa.
— Por que você acha isso?
Kylie se inclinou mais para perto.
— Algo que ela disse, e... só um pressentimento.
— Senhorita Brandon? — alguém chamou do outro lado do salão.
Holiday apertou o braço de Kylie e franziu a testa.
— A gente se fala depois.
Kylie acenou com a cabeça e, quando a líder do acampamento se afastou, ela viu Lucas entrando no refeitório. Ele cruzou o salão para se sentar com um grupo de lobisomens. Um deles disse alguma coisa e, em seguida, todos eles se levantaram e deixaram Lucas sozinho na mesa.
Estava começando, ela percebeu. Eles estavam deixando Lucas de lado. A dor que ela sentiu por ele calou fundo em seu coração.
— Triste, não é? — disse uma voz atrás dela. — E a culpa é sua. — Kylie reconheceu a voz de Clara. Kylie virou-se para encarar a irmã de Lucas, mas ela já se afastara. Com a respiração presa, Kylie olhou para Lucas. Ela queria ir até ele, confortá-lo, mas isso só iria piorar a situação.
Cinco minutos depois, a avó de Lucas entrou no refeitório, caminhando de modo dolorosamente lento. Kylie olhou ao redor. Lucas ainda estava sentado sozinho numa mesa dos fundos. O olhar da anciã percorreu o ambiente e encontrou o de Kylie.
Quando ela começou a se aproximar, o coração da garota quase parou. Ah, droga! Ela não estava com vontade nenhuma de ouvir a avó de Lucas repreendê-la por arruinar os objetivos e missões do neto.
Kylie estava prestes a disparar para fora do refeitório pela porta lateral quando ouviu a voz da mãe. Ao se virar para trás, ela viu... a mãe com John a tiracolo. Ah, meu Deus, ele veio... No entanto, ela preferia enfrentar John à avó de Lucas — especialmente se a mãe não resolvesse apalpar em público o traseiro do namorado.
Kylie saiu correndo em direção aos recém-chegados com falso entusiasmo, rezando para que isso impedisse a avó de Lucas de se aproximar.
Depois de abraçar a mãe, e ignorar John, Kylie levou-os para uma mesa vazia, tão longe de Lucas quando possível. Seu coração não voltou ao ritmo normal até que ela viu a avó de Lucas se dirigir para a mesa dele.
— Graças a Deus! — ela murmurou, fazendo um sinal para que os dois se sentassem.
— Graças a Deus, por quê? — a mãe perguntou, ainda de pé.
Kylie abriu a boca, rezando para que algo inteligente lhe ocorresse, mesmo que fosse uma mentira. Ultimamente, as orações de Kylie andavam ficando sem resposta e dessa vez não foi diferente. Os lábios dela se abriram, mas nada, coisa alguma saiu. Pior ainda, seu cérebro parecia desligado.
— Graças a Deus, por quê? — a mãe perguntou de novo.
— Porque a minha dor de estômago passou. — Kylie colocou a mão na barriga.
— Você anda com dores de estômago? — perguntou a mãe com a voz alarmada.
— Não é nada.
— Você não sabe se não é nada — ela insistiu.
— Eu sei, sim. — A voz de Kylie soou estridente, denunciando seu medo de que a mãe a arrastasse dali para um pronto-socorro. Meu Deus, ela poderia acusá-la novamente de estar grávida!
— Como você sabe que não é nada? — perguntou a mãe.
— Porque são só... gases. Só estou com um pouco de gases.
A mãe, corando, olhou para John. Kylie podia sentir seu próprio rosto tão vermelho quanto uma maçã do amor. De todas as coisas que poderia ter dito, por que escolhera dizer “gases”?
A mãe se inclinou um pouco na direção dela.
— Você quer ir ao banheiro?
— Não. Já passou.
A mãe se inclinou para mais perto ainda.
— Tem certeza?
— Absoluta. — Kylie desabou numa cadeira e rezou para que um início tão desastroso não fosse uma premonição de como seria aquele encontro.
Quarenta e cinco minutos depois, Kylie, John e a mãe ainda estavam sentados à mesa, conversando. Bem, Kylie tinha contribuído muito pouco para a conversa, mas a mãe e John não pararam de falar um minuto. Eles falaram sobre o novo trabalho da mãe, que ela iniciaria em duas semanas, e contaram sobre a Inglaterra.
— Ah, eu te trouxe uma coisa! — A mãe tirou um saco de papel da bolsa. — Eu sei como você gosta de camisetas.
Kylie não pôde deixar de pensar, Minha mãe foi para a Inglaterra e tudo o que eu ganhei foi uma camiseta!, mas ela sorriu, tirou o presente da embalagem e, em seguida, riu ao ler os dizeres na frente: Minha mãe foi para a Inglaterra e tudo o que eu ganhei foi esta camiseta.
— Perfeito! — disse Kylie, satisfeita ao ver que a camiseta era rosa.
— Eu também trouxe isso. — A mãe tirou da bolsa uma caixinha branca.
Uma pulseira cheia de pingentes refletiu as luzes do refeitório e brilhou, de modo quase mágico, quando Kylie abriu a caixa. Seu coração deu um salto quando ela viu os pingentes. Uma espada muito semelhante à espada de um cruzado, uma cruz terrivelmente semelhante à que havia na espada e um emblema de Joana d’Arc.
— Comprei-a num dos castelos e eles não tinham uma coleção muito grande de pingentes, mas... por algum motivo estranho senti o impulso de escolher estes. Espero que você não os ache muito esquisitos.
Defina “algum motivo estranho”, Kylie queria perguntar, mas ficou calada.
— Não! Eu gostei deles. Obrigada. — Um frio familiar caiu sobre ela como uma chuva fina.
Daniel estaria ali? Será que seu pai levara a mãe a comprar aqueles pingentes?
Kylie olhou ao redor na esperança de vê-lo, mas seu desejo não se concretizou.
Logo, Kylie. Em breve. As palavras ecoaram em sua cabeça, o medo encheu seu coração.
Eu sinto sua falta, Kylie disse mentalmente. Não sei se estou pronta para morrer, mas sinto sua falta.
Passos ecoaram pela sala, e Kylie notou que os outros pais estavam indo embora.
A mãe dela olhou ao redor.
— Estas visitas passam tão rápido! Preciso dar uma corrida até o toalete, antes de ir embora. — A mãe se levantou e se dirigiu ao banheiro apressada.
Kylie estava prestes a se levantar também para acompanhar a mãe quando John colocou a mão sobre a dela. A sensação da palma dele provocou um arrepio na sua espinha. Não era frio nem quente. Apenas emocionalmente estranho. Ela retirou a mão.
— Eu estava esperando uma chance de falar com você — disse ele.
E eu estava esperando que você não tivesse essa chance. Ela olhou para o banheiro.
— Eu acho que vou...
— Existe uma razão para você não gostar de mim, Kylie?
Ela olhou para ele. Decisões, decisões. Ela ia ser diplomática ou sincera?
Quem disse que a honestidade era a melhor política? Ela não conseguia se lembrar, mas concluiu que deveria ser alguém brilhante!
Capítulo Trinta e Dois
— Vamos ver... — disse Kylie, sem perder tempo. — Comecemos pelo fato de você ter começado uma briga com o meu padrasto na frente de toda a minha escola.
John endireitou os ombros, quase defensivamente.
— Foi ele quem me bateu.
— Depois que você me insultou e o acusou. E você também enfiou a língua na boca da minha mãe na frente de todos os alunos e seus pais. Quer que eu continue? Acho que eu poderia me lembrar de mais alguma coisa rapidinho.
A raiva encheu os olhos do homem, mas ele pareceu estar lutando para contê-la.
— Você não consegue se conter, não é?
Ela abriu para ele seu sorriso mais falso.
— Mas eu estou me contendo!
— Não é nada fácil conversar com você — reclamou ele. — No entanto, o problema é que a sua mãe realmente gosta de mim e eu dela. E não acho que estaria falando bobagem se dissesse que seria muito melhor se pudéssemos nos dar bem.
Kylie se inclinou mais para perto.
— Eu não acho que estaria falando bobagem se dissesse que você nem conhece minha mãe direito para estar me dizendo isso.
Kylie poderia jurar que os olhos dele faiscaram. Com uma espécie de brilho não humano. Ela apertou as sobrancelhas para verificar o padrão do homem.
O que era esse homem?
Seu padrão humano aparecia claramente. Não que ele não pudesse ser um camaleão, mas...
A raiva encheu os olhos cinzentos de John.
— Isso pode acabar ferindo a sua mãe.
As palavras dele saíram tão frias, tão... ameaçadoras, que o instinto protetor de Kylie entrou imediatamente em ação.
— O que você quer dizer com isso? — Ela fechou as mãos em punhos.
Ele desviou o olhar, como se para se acalmar. Quando voltou a olhar para ela, seus olhos tinham voltado ao normal.
— Apenas que os problemas entre nós podem magoar a sua mãe.
Ela o fitou bem dentro dos olhos. E que Deus a ajudasse, porque ela sentiu que ele estava mentindo, que as palavras dele tinham de fato sido uma ameaça. Ela tentou acalmar o sangue que borbulhava em suas veias, mas não conseguiu. Sobre o ombro de John, viu a mãe saindo do banheiro.
Ela se inclinou sobre a mesa e sussurrou para John:
— Se alguém ousar encostar um dedo em minha mãe, essa pessoa vai morrer se arrependendo do que fez.
Nesse mesmo instante, Kylie se deu conta de duas coisas: ela de fato era capaz de se tornar uma guerreira santa. Porque, se John fizesse algum mal à mãe dela, ela poderia, e iria, matá-lo sem nenhum arrependimento. E, em segundo lugar, ela simplesmente não podia morrer, não naquele momento. Não se isso significasse deixar a mãe com aquele crápula.
— Está tudo bem? — A mãe se aproximou da mesa, obviamente percebendo a tensão.
Kylie esperou para ver como John ia se sair.
— Está tudo bem — disse ele. — Estávamos apenas conversando. — Ele se levantou. — Acho que está na hora de irmos embora. — Eles começaram a caminhar, mas o medo pela mãe ficava maior a cada passo. Kylie não poderia deixar que ela fosse embora com aquele homem, não sem avisá-la.
Ela pegou o braço da mãe.
— Quero que você conheça uma pessoa.
John se virou.
— Você pode nos dar um minuto? — Kylie enviou a John um olhar que o desafiava a se opor.
Ele hesitou, mas depois cedeu:
— Vou esperar no carro.
Kylie observou-o sair, desejando que ele continuasse andando, se afastando também da vida delas.
A mãe olhou ao redor.
— Quem você quer que eu conheça?
— Mãe, eu sei que você não vai gostar do que tenho a dizer, mas John me assusta. Estou preocupada com a sua segurança.
— Assusta? — perguntou a mãe. — Não estou entendendo. O que ele fez?
— Eu não confio nele. Ele me dá arrepios. E eu sou muito boa em julgar o caráter das pessoas.
O ressentimento brilhou nos olhos da mãe.
— E eu também, mocinha. Lamento que você não goste dele, mas eu gosto.
A mágoa nos olhos da mãe vibrou no peito de Kylie.
— Eu só quero que você seja cuidadosa e não deixe esse relacionamento evoluir muito rápido.
A mãe fez uma careta.
— Isso é porque você quer que eu e seu pai voltemos a ficar juntos.
— Em primeiro lugar — Kylie disse, agora se sentindo incomodada — Tom é meu padrasto. Em segundo lugar, sim, eu quero que vocês voltem a ficar juntos, mas isso não tem nada a ver com esta história.
— Tem sim, mocinha, porque John é o homem mais carinhoso que eu já conheci. — Ela se inclinou e beijou Kylie no rosto. — Agora, por favor, aceite o fato de que seu padrasto e eu não vamos voltar a ficar juntos. — Ela se virou para ir embora. Kylie ficou ali, temendo o que ela poderia dizer a John se tivesse que enfrentá-lo novamente no carro.
— Você está bem? — A voz masculina soou perto da orelha dela.
A princípio ela pensou que fosse Derek. Ele sempre sabia quando ela estava passando por algum trauma emocional. Mas ela rapidamente reconheceu a voz profunda e sexy. A voz da pessoa com quem tinha passado a última semana tentando quebrar em pedacinhos uma espada de madeira.
Ela se virou.
— Sim. — Então a raiva reprimida transbordou em seu peito e ela soube o que poderia fazer para extravasá-la.
— Que tal treinarmos um pouco?
— Agora? — perguntou Lucas.
— Preciso descarregar a raiva.
— Em mim? — Ele deu um sorriso com o canto da boca.
— Não... Quer treinar ou não? — ela retrucou, com pouca disposição para tiradas de humor. Precisava admitir, alguém tinha lhe enviado uma espada para que ela aprendesse a lutar e, se esperavam que ela lutasse, então obviamente isso significava que era para se manter viva. E ela planejava permanecer viva para proteger a mãe de aberrações como John.
Sim, manter-se viva parecia uma boa ideia.
— Claro! — Os olhos azuis de Lucas se encheram de preocupação. — Vou falar com Burnett. O olhar dele não se desviou do rosto dela. — O que aconteceu?
— Eu não quero falar — disse ela. — Quero lutar.
Trinta minutos depois, Kylie já havia quebrado uma espada sem que Lucas tivesse dito nada sobre amá-la, sobre como ela era bonita ou sobre eles se beijando na grama.
Ele insistiu para que ela fizesse alguns exercícios de alongamento, dizendo que podia ver a tensão irradiando dela. Ela não estava irradiando nada, estava fervendo por dentro. O medo pela segurança da mãe estava tirando sua sanidade mental, o medo por Lucas e pelo que aconteceria se toda a alcateia se voltasse contra ele acabava com a sua paz de espírito.
— Você ainda não quer falar? — ele perguntou, enquanto duelavam.
Sim, mas simplesmente não sei o que dizer.
— Não — ela mentiu, mudando de posição e conseguindo que sua espada passasse pela dele e, em seguida, espetasse o peito do rapaz.
— Você está ficando muito boa. — Ele olhou para a espada na altura do coração.
Kylie se afastou para deixá-lo recuperar o equilíbrio. Em poucos segundos, estavam lutando novamente, quando ela sentiu o frio se derramando sobre ela.
— Bom demais! A discípula está superando o mestre. Você precisa de um novo professor.
Kylie olhou para o fantasma parado ali com sua própria espada em punho.
Quem mais poderia me ensinar?, Kylie pensou.
— Eu, é claro! Mas nada dessa história de lutar com espadas de madeira. Você precisa aprender a lutar com uma arma de verdade.
O coração de Kylie acelerou, quando ela se lembrou do seu principal medo.
Eu vou morrer?
O fantasma soltou um suspiro.
— Isso depende de você.
Como ela podia confiar mais na palavra de um espírito assassino do que na de seu pai? Mas o fato é que ela queria viver.
— Preparada? — perguntou Lucas.
Kylie olhou para ele.
— Um segundo. — Ela olhou de volta para o espírito. Você conhece o meu pai?
Ela fez mentalmente a pergunta ao mesmo tempo em que o espírito se desvaneceu no ar.
Olhando Lucas novamente, Kylie ergueu a espada e a disputa recomeçou.
— Eu preciso dar uma lição nele? — Lucas perguntou enquanto suas espadas se enfrentavam novamente.
— Em quem? — ela perguntou.
— No namorado da sua mãe. — disse Lucas, bloqueando a espada dela.
— Não, eu preciso detê-lo — disse ela. Se ela não morresse primeiro.
Então, ela sentiu um fogo queimar em seu estômago. Ela não ia morrer. Iria lutar e vencer. E Lucas tinha que fazer o mesmo, ela percebeu.
— Você está ficando corajosa! — elogiou Lucas, mas de repente ela perdeu o foco e a espada dele contornou a dela e tocou seu ombro.
Kylie olhou para a ponta da espada.
— Esse não foi um golpe fatal. Não pode contar isso como uma vitória.
— Não, mas você estaria sangrando tanto que não iria durar muito tempo.
— Tudo bem. Conte, então. — Ela deu um passo para trás e se preparou para começar de novo.
Desta vez, ela foi mais cuidadosa, bloqueando golpe a golpe. O suor escorria da sua testa. Seus músculos doíam, seu coração também. Ela abriu a boca para falar alguma coisa sobre os novos movimentos dele, mas acabou dizendo algo totalmente diferente.
— Você devia ter me contado sobre Monique — ela disse, sem saber com que intenção. O barulho de madeira batendo contra madeira enchia o ar com estrondo. — Se eu soubesse... — O que ela teria feito? Haveria alguma chance de ela ter dito que não se importava? Provavelmente não, mas talvez não estivesse agora se sentindo tão traída. Talvez ela não tivesse vinculado esse fato a todas as outras traições que sofrera no passado.
— ...você não teria aceitado — ele terminou por ela. Era verdade. Ele começou os movimentos complicados dos pés ao redor dela novamente. — E você teria todo o direito de não aceitar. Foi um mau julgamento da minha parte.
— Mau para nós, é verdade. Mas talvez fosse a escolha certa para você — disse ela. — Você tem muito a perder, Lucas.
— Eu tenho você a perder! — As espadas batiam forte uma na outra, o ruído alto estalando no ar.
Eles se afastaram um do outro.
— Eu já disse que nós dois terminamos. Fale com Monique, diga que vai se casar com ela.
— Eu não vou me casar com ela! Nunca planejei isso.
— Então volte para o seu plano original, diga que vai se casar, entre para o Conselho e depois volte atrás.
— Não. Foi um plano ruim na época e seria um plano ruim agora.
Kylie respirou, enchendo os pulmões.
— Todo mundo me culpa por arruinar seus sonhos — disse ela. E um dia você vai me culpar também, se eu viver. E aquilo era o que mais doía agora. Não, morrer. Mas o fato de que perdoá-lo parecia fácil em comparação a aceitar que ele um dia ficaria ressentido com ela. Ressentido com a escolha que fizera.
Ele levantou a espada para começar a lutar novamente. Ela continuou porque só de olhar para ele já sentia seu peito apertar.
Lucas começou a falar enquanto se movia.
— Qualquer um que culpar você é um idiota. Fui eu que optei por não levar adiante o noivado. Não você. — As espadas se entrechocaram novamente.
— Sua irmã acredita que fui eu. Até a sua avó acredita. Vi nos olhos dela hoje, quando ela pensou em vir falar comigo.
— Minha irmã é uma sonsa. Eu amo minha avó — disse ele, e o som da espada dele cortando o ar provocou um calafrio nas costas de Kylie. — Mas isso não quer dizer que ela esteja certa. Ela segue muitas crenças dos mais velhos.
— A alcateia está se afastando de você. Eu vi isso. — Ela sentiu um nó na garganta novamente. — Você não pode perdê-los, Lucas. Você me disse mil vezes como eles são importantes pra você.
— Mas você é mais importante pra mim. Eu não posso te perder.
— Você já me perdeu! — ela sibilou, bloqueando a espada dele novamente. Ela não podia deixá-lo fazer aquilo. Não podia deixá-lo sacrificar tudo o que queria. Ela não suportaria vê-lo começar a odiá-la algum dia.
Lucas se afastou. Ela esperava que viesse pela esquerda, mas ele veio pela direita, e ela não conseguiu bloqueá-lo. Ele apontou a espada diretamente para o coração dela.
Esse era um golpe fatal.
— Não. — Ele deliberadamente encostou a espada no peito dela. — Seu coração pertence a mim. Nunca se esqueça disso.
Ela cambaleou para trás, a raiva vibrando através dela. Raiva, não tanto dele, mas por saber o quanto ele poderia perder. Ela baixou a espada, se virou e olhou para o lago, a garganta apertada, a visão se toldando com as lágrimas.
Ele veio por trás, sem tocá-la, como se soubesse que ela não permitiria.
Em vez disso, chegou tão perto que suas palavras roçaram no rosto dela, provocando arrepios de remorsos em sua espinha.
— Fiquei cego com o que achei que precisasse fazer. Eu estava errado. Fui burro! Mas nem por um minuto deixei de te amar. E é por isso que mereço seu perdão.
De repente, ela sentiu o aperto que sentia no peito diminuir. Ele estava perdoado. Mas, como ela sabia há algum tempo, perdoá-lo não era o maior problema. Uma lágrima caiu dos seus olhos. Ela se afastou alguns metros dele.
— Já chega pra mim — ela disse. — Quero voltar para a cabana.
— Ok — ele concordou, mas parecia se sentir rejeitado e ela sentia a mesma emoção ecoando dentro dela.
Quando ele foi recolher as espadas, ela se virou para vê-lo.
Ele ergueu os olhos. E ela viu tantos sentimentos nos olhos dele... — mágoa, arrependimento, a expectativa de que ela dissesse que o perdoava.
Mas, se ela desse o que Lucas queria, ele só iria insistir mais para que ela voltasse para ele. E como ela poderia fazer isso, se sabia que um dia ele iria ficar ressentido com ela?
Depois de alguns segundos, ele disse:
— Acho que você está pronta para começar a treinar com espadas de verdade.
Ela pensou em quantas vezes sua espada havia tocado o corpo dele acidentalmente, mas depois se lembrou do que o fantasma dissera. Morrer era escolha dela. E ela escolhia viver. Ela precisava estar pronta — pronta para lutar pela vida.
— Tudo bem — ela disse, e tentou não deixar o medo transparecer em sua voz.
— Está pronta?
Kylie tinha acabado de pegar no sono aquela noite, depois de se preocupar por algumas boas horas, quando a voz e o frio a despertaram.
— Pronta pra quê? — perguntou, sem abrir os olhos.
— Para o treino. Eu te disse. Você precisa de um professor melhor.
— Ele é um ótimo professor! — disse ela, defendendo Lucas antes mesmo de se dar conta disso.
— Ele é um ótimo colírio para os olhos. E eu admito que tem algumas habilidades, mas você precisa de mais. Então saia desta cama.
Kylie abriu um olho e viu o espírito, com o rosto a centímetros de distância.
— Você sabia que os vivos precisam de oito horas de sono?
— Essa regra só vale para seres humanos. Sobrenaturais podem sobreviver com muito menos. Agora se levante e vamos começar.
— Não estou com a minha espada aqui.
— Ah, mas, se você se levantasse, veria que ela já está aqui!
Kylie se lembrou de Holiday dizendo que aquilo não era possível.
— Fantasmas não podem mover objetos.
— Eu não disse que eu a trouxe. Eu disse que ela estava aqui.
— Então quem a trouxe? — perguntou Kylie.
— Não finja que não sabe. Os mesmos que entregaram a espada a você. Os anjos da morte.
Kylie prendeu a respiração.
— Então eles querem que eu mate Mario?
— Bem, eu não falei diretamente com eles. — Ela se inclinou para mais perto. — Para ser sincera, eles me deixam meio nervosa, mas, quando se trata de matar Mario, parece que estão dando uma mãozinha agora, não parece?
— E você? — perguntou Kylie. — O que você quer? A mesma coisa?
— Sabe, eu tentei descobrir isso por mim mesma. Mas toda vez que chego perto da resposta, é como se ela se afastasse mais um pouco. Por que será? — Ela parecia realmente perplexa e vulnerável.
Kylie se lembrou dela de luto pelo filho. Talvez não fosse de todo ruim. Sentou-se e consultou o relógio.
— São duas da manhã. Você realmente quer que eu me levante?
— Não acho que você vá conseguir lutar deitada na cama. Eu mataria você antes mesmo que levantasse a espada.
Ok, o espírito era de fato cruel, no final das contas. No entanto, suas palavras fizeram Kylie rastejar para fora das cobertas. Ela viu a espada aos pés da cama. E também viu Socks, sua carinha de gato mal aparecendo por baixo da colcha.
— Ok... por onde começamos? — Kylie pegou sua espada.
— Coloque um vestido branco. Ou algo branco — disse o espírito.
Kylie olhou para a camisola preta que vestia.
— Por quê?
— Você não prefere morrer de branco?
O coração de Kylie quase parou.
O espírito riu.
— É tão fácil te enganar! Coloque branco porque do contrário como vai saber que foi cortada e está sangrando?
Kylie voltou a baixar a espada.
— Eu não tenho certeza se quero treinar.
O espírito riu novamente.
— Não se preocupe. Eu só vou marcar seu vestido. Não posso cortá-la de verdade. Embora a segunda opção seja um instrumento de ensino muito melhor.
Kylie cedeu e pegou uma camiseta branca e um short. Elas foram para a sala de estar. A espada de Kylie emitia um brilho amarelado e vivo.
Elas mal tinham começado a treinar quando Della saiu do quarto às pressas, olhos brilhando, e viu Kylie empunhando a espada.
— Só vou treinar um pouco — explicou Kylie.
— Mas no meio da noite?! Com uma droga de espada brilhante?
Kylie assentiu.
— Você bebe sangue, eu treino com espadas brilhantes.
Della colocou os braços em volta de si, como se estivesse com frio.
— Você tem companhia, não tem?
Sem poder mentir, Kylie assentiu.
— Ah, mas que inferno! — A vampira voltou para o quarto, batendo a porta atrás dela.
— Essa garota não regula bem!
Kylie fez uma careta.
— Não tanto quanto outras pessoas que eu conheço — disse Kylie para si mesma. — Agora vamos começar e acabar logo com isso.
Os quinze minutos seguintes foram os mais difíceis para Kylie. Ela usou todas as técnicas que tinha aprendido com Lucas, mas aquela mulher não seguia as técnicas comuns. Ela não seguia nenhuma regra ao lutar. E se orgulhava disso.
Toda vez que a espada do espírito entrava em contato com o corpo de Kylie, uma marca vermelha aparecia em sua camisa branca ou no short. Cada vez que a espada de Kylie entrava em contato com o corpo da mulher, ela exibia uma ferida aberta e sangrenta. Claro que o fantasma só tinha um arranhão no braço esquerdo. Não era muito, considerando que as roupas de Kylie estavam cobertas de marcas vermelhas.
Isso só fazia Kylie se sentir mais vulnerável e menos capaz de enfrentar uma batalha real. A batalha para a qual Kylie parecia predestinada. A batalha contra Mario. A batalha que ela podia muito bem perder.
Depois de alguns minutos, o espírito começou a despejar ordens, como Lucas fazia. Mova-se desta forma! Mantenha a espada em riste! Avance mais rápido! Nunca perca de vista sua espada!
Kylie finalmente pegou o jeito e por fim bloqueou algumas investidas do espírito. Mas o treino foi interrompido quando a porta da frente da cabana se escancarou de repente e foi arrancada das dobradiças.
O painel de madeira caiu com um grande baque no chão.
Antes que Kylie conseguisse dar uma boa olhada no intruso, a porta de Della bateu no chão com o mesmo estrondo.
A vampira correu para fora do quarto, com os olhos faiscando num tom verde brilhante e as presas totalmente à mostra.
Capítulo Trinta e Três
O frio intenso se dissipou junto com o espírito. Kylie ficou ali de pé, com as pernas afastadas, o corpo tenso, a espada preparada para lutar. Ela olhou de relance para Della com presas à mostra e a fúria estampada no rosto, e voltou-se novamente para a entrada da frente.
A perplexidade fez Kylie se manter na mesma posição. Burnett estava em pé sobre a porta caída, com os olhos mais brilhantes do que os de Della. Atrás dele, um exército de campistas: Lucas, Derek, Chris e Jonathon. Todos eles hipnotizados pela arma brilhante.
— Caramba! — A exclamação partiu de Chris e Jonathon. Embora Jonathon já tivesse visto a espada, ele não a vira brilhando.
— Você não vai abrir a boca pra contar nada do que viu aqui! — exigiu Burnett, autoritário.
Kylie baixou a espada e respirou, esperando que o oxigênio diminuísse o fluxo de adrenalina.
Que diabos estava acontecendo agora?
Ela encontrou o olhar de Burnett.
— O que há de errado?
Ele olhou em volta.
— Quem está aqui?
— Só o espírito — disse ela.
Chris e Jonathon recuaram.
Derek, acostumado com a história do fantasma, não se moveu. Lucas tampouco. Ela notou os olhos alaranjados do lobisomem, como se ele estivesse preparado para lutar. Seu olhar estava fixo nela.
A postura de Burnett perdeu um pouco da sua ferocidade. Mas não o suficiente para deixar Kylie à vontade.
Outros passos soaram no alpendre. Hayden entrou, dando uma olhada rápida na porta caída no chão.
— O que está acontecendo? — perguntou Kylie.
— Eu também quero saber — disse Della com hostilidade, afastando a cortina de cabelos pretos e lisos do rosto. Seus olhos já não brilhavam, mas a tonalidade verde permanecia, ainda mais perceptível em contraste com a camisola preta um pouco acima dos joelhos.
— Alguém pulou a cerca. Invadiram o acampamento. — Burnett deu mais um passo para dentro.
— Quem? — Miranda saiu do quarto bocejando, vestida com seu pijama dos Smurfs e segurando seu urso de pelúcia.
A mão de Kylie apertou um pouco mais o punho da espada quando uma única pessoa lhe ocorreu. Ela estaria pronta para enfrentar Mario?
Provavelmente não, era a resposta. Mas nada iria impedi-la de tentar. Não quando tantas pessoas que ela amava estavam ali em volta à mercê do malfeitor.
— Eu ouvi o alarme. — disse Burnett. — Então ouvi você lutar e achei que estava sendo atacada.
— Eu disse que treinar no meio da noite não era uma boa ideia... — Della murmurou.
— Cadê o Perry? — Miranda perguntou, como se suspeitasse de que ele estava envolvido na busca.
— Percorrendo a propriedade para ver se vê alguém. — Burnett virou-se para Hayden e balançou a cabeça como se estivesse lhe dando uma ordem em silêncio. O camaleão se virou e saiu para a varanda. A princípio Kylie ficou confusa, então entendeu. Burnett havia instruído Hayden para ficar invisível e ver se ouvia outros camaleões. Ela pensou em verificar isso ela mesma, mas com os olhos de todos sobre ela, com certeza iria assustar todo mundo se ficasse invisível.
Em poucos minutos, Hayden reapareceu atrás dos outros.
— Tudo limpo.
Mas Kylie sabia que, se um intruso invisível ficasse em completo silêncio, não poderia ser detectado.
Burnett desviou o olhar para Della.
— Fique e proteja Kylie. Vamos dar uma olhada por aí.
— Se não se importa, eu gostaria de ficar aqui também — pediu Lucas.
As palavras dele causaram um aperto no estômago de Kylie. Esquecer tudo seria difícil. Esquecer tudo, com ele sempre por perto, parecia impossível.
Burnett assentiu. Em seguida, ela ouviu passos descendo os degraus da varanda enquanto todos se afastavam.
Kylie olhou para Lucas, Della e Miranda.
A bruxa ainda estava agarrada ao ursinho de pelúcia.
— Quem eles acham que está no acampamento? — perguntou Miranda.
Ninguém respondeu. O olhar de Miranda disparou para Kylie.
— Ah, ele.
Della suspirou.
— Parece que vai ser uma noite longa e insana...
Lucas sentou-se numa cadeira da sala de estar. Kylie, tentando ignorá-lo, colocou a espada em cima da mesa de centro. Observou a arma perder o brilho e, em seguida, olhou para Miranda.
— Está sentindo alguma coisa?
A bruxa fechou os olhos. Depois de longos instantes, abriu os olhos e olhou para Kylie.
— Sim.
O coração de Kylie apertou. Ah, droga. Mario estaria ali? Ela quase pegou a espada outra vez.
— Mas não é ruim desta vez. — Miranda olhou para a arma em cima da mesa de centro. — Talvez seja isso que estou sentindo.
— Você não a sentiu aquela outra noite, não é?
— Não. Mas essa espada tem uma aura, por isso eu posso senti-la.
Kylie soltou um suspiro profundo. Ela esperava que Miranda estivesse certa, que quem estivesse ali não fosse ruim.
O som repentino de passos na varanda deixou todos em alerta novamente. Lucas pulou da cadeira. Della atravessou a sala.
Kylie, porém, foi mais rápida e se aproximou da porta. Se fosse Mario, nem por cima do seu cadáver ele iria machucá-los.
Steve entrou. Seu olhar disparou de Kylie para Della.
Della franziu a testa.
— O que você está fazendo aqui?
— Só vim saber se você está bem.
Della olhou para ele carrancuda.
— Eu não preciso de você para me proteger.
Ele saiu ao mesmo tempo em que Kylie ouviu um rugido. Não um rugido humano. Ela apostaria qualquer coisa que o metamorfo tinha acabado de se transformar num enorme felino furioso. Kylie pensou em ir atrás dele para ajudar a acalmar o seu ego, mas, como quase se tornara o jantar de um leão irritado ao chegar a Shadow Falls, decidiu deixar Steve lidar com o seu próprio ego.
Miranda fez um gesto de desaprovação.
— Isso não é maneira de tratar o cara que te deu um chupão.
Della rosnou.
— Por que não? Viu como ele foi embora rápido? Se estivesse realmente preocupado, teria ficado.
Kylie revirou os olhos para a lógica de Della.
Lucas ergueu as sobrancelhas — provavelmente ao comentário do chupão. Em seguida seus olhos se desviaram para Kylie com um olhar de proteção. Mas, em menos de um segundo, algo mais suave brilhou em seus olhos, algo mais terno. Amo você, aqueles olhos azuis pareciam dizer.
O leão rugiu novamente em algum lugar na frente da cabana, e, então, um enorme pássaro pré-histórico aterrissou com um baque na soleira da porta aberta.
Miranda soltou um gritinho, deixou cair o urso de pelúcia e foi abraçar o pássaro.
Kylie se sentou no braço do sofá. A vampira tinha acertado em cheio quando disse que seria uma noite muito longa e insana.
— Para que a fita adesiva? — Kylie perguntou a Lucas, no dia seguinte, quando ele esvaziou o saco novamente e preparou-se para o treino. Kylie havia dormido demais e perdido as aulas da manhã, e Lucas tinha ligado um pouco depois das onze, perguntando se ela queria cancelar o treino, visto que tinham ficado acordados a maior parte da noite.
Ela queria dizer que sim, queria muito ficar dormindo, mas atendendo ao seu coração, bem como ao aviso do fantasma de que precisava aprender a lutar, ela concordou em treinar.
— Para proteger. Vamos enrolar na ponta da lâmina. — Ele olhou para as árvores, como se tivesse ouvido alguma coisa. Ou alguém.
O pensamento de Kylie saltou da luta com espadas de verdade para a vigilância cautelosa de Lucas.
— Quem está aí?
— Chris e Will — ele respondeu.
Como o invasor não tinha sido encontrado na noite passada e eles não tinham ouvido outro alarme de segurança avisando que alguém tinha saído, todo o acampamento estava em alerta vermelho. No momento ela não tinha só uma sombra, mas três.
Que adorável!
Simplesmente adorável!
Enquanto ela observava Lucas pegar as espadas, uma lufada de ar frio arrepiou os pelos da sua nuca. O que fazia o número de sombras subir para quatro.
— Isso é coisa de maricas! Diga a ele para não enrolar a fita nas lâminas. Você precisa aprender a lutar de verdade! O tempo está se esgotando.
Olhando por cima do ombro, Kylie viu o espírito usando o vestido sujo de sangue novamente.
O que aconteceu com você? Quem a matou?, perguntou Kylie.
O espírito olhou para o vestido e franziu a testa.
— Eu não sou importante. Você é.
De repente desesperada para obter respostas, Kylie continuou:
Como você me conhece? Qual a ligação entre nós? Eu preciso de respostas.
— Você precisa aprender a lutar. Ou logo vai estar tão morta quanto eu.
O aviso cravou um punhal de pavor no coração de Kylie. Ela observou Lucas ficar de cócoras e começar a enrolar a ponta das lâminas.
— Será que a fita é realmente necessária?
Ele olhou para ela com surpresa nos olhos.
— Está falando sério?
Ela assentiu com a cabeça.
— Você precisa me ensinar a lutar de verdade.
Ele se levantou, a preocupação estampada no rosto.
— Por quê? O que você sabe que eu não sei?
— É apenas um pressentimento — ela mentiu.
— Eu não gosto dessa sensação — disse ele.
— Você não é o único. — Ela piscou. — Só me ensine a lutar, Lucas.
Com ar resignado, ele pegou as duas espadas. A arma de Kylie começou a brilhar no instante em que ela a segurou. Talvez fosse sua imaginação, mas a arma parecia estar ainda mais brilhante. O que isso significava? Será que a espada, como o fantasma, sabia que a hora da batalha se aproximava?
Lucas, ao lado dela, começou a fazer as posições de aquecimento. Ela imediatamente o imitou.
O telefone de Kylie, no bolso, tocou avisando da chegada de uma mensagem. Ela esperou até a pausa seguinte para tirá-lo dali. Era Derek.
Ligue para mim!
Será que ele ia tentar convencê-la a reatar o namoro? Lembrou-se de vê-lo contrariado na noite anterior, quando Lucas insistiu em ficar na cabana para protegê-la.
— Quem é? — perguntou Lucas.
Ela hesitou, depois não fez mais segredo.
— Derek.
Lucas fechou a cara, mas permaneceu em silêncio. Eles voltaram para os exercícios básicos.
— Quando vamos começar a lutar? — ela perguntou enquanto imitava os movimentos dele.
— Quando é que você vai dizer para aquela “fada” que está tudo acabado entre vocês dois?
— Eu já fiz isso — respondeu ela, antes de perceber seu deslize.
Lucas parou. Sua espada, apontando para cima, desceu com um assobio. Ele olhou para ela.
— Você já fez isso?
Era tarde demais para voltar atrás.
— Sim.
Ele sorriu.
— Obrigado.
Ela franziu a testa.
— Eu não fiz isso por você. Fiz isso por ele.
Ainda sorrindo, ele arqueou uma sobrancelha.
— Mas eu sou o motivo que a levou a fazer isso.
Não era uma pergunta, mas ela poderia negar. No entanto, hesitou demais. Ia parecer uma mentira. Teria sido uma mentira.
Um sorriso ainda maior apareceu nos olhos dele. Um sorriso de confiança. De esperança.
— Eu te amo — ele disse, a voz quase musical com a felicidade.
Ela lhe lançou um olhar de desaprovação.
— Dizer isso não é um pouco perigoso, considerando que estas espadas não são de madeira e nem sequer estão protegidas com fita?
Ele riu. Uma risada de verdade, e o som caiu sobre ela como uma suave chuva de verão num dia sufocante de calor. Então ela se lembrou do olhar no rosto dele quando os lobisomens o haviam deixado sozinho no dia dos pais. Então ela se lembrou também que Will e Chris estavam ali, provavelmente ouvindo cada palavra que diziam. Will supostamente era amigo de Lucas, mas será que ele também tinha virado as costas para ele?
Ela desviou os olhos para a floresta e cochichou:
— Nós não estamos sozinhos, lembra-se?
— Eu não me importo com quem possa ouvir. Eu te amo! — Sua voz se elevou mais alto dessa vez.
Ela franziu a testa.
— Nada mudou.
— Tudo mudou! — exclamou ele.
Não, não tinha mudado. Ele poderia pensar que abriria mão de tudo que mais importava para ele, mas ela não estava disposta a deixá-lo fazer isso. Ela o amava demais.
— Vamos começar o treino? Se não, eu vou embora.
— Então vamos ao treino — disse ele.
Eles continuaram com os exercícios por mais dez minutos. Por fim, ele ficou de frente para ela.
— Vamos começar, mas lembre-se de que esta espada não é de madeira. Vamos começar devagar.
Ele não estava brincando sobre ir devagar. Começaram a se mover no ritmo de uma tartaruga e continuaram assim durante os quinze minutos seguintes.
— Com quem você estava lutando ontem à noite? — A pergunta dele quebrou o silêncio tenso que pairava no ar desde que, finalmente, tinham começado a acelerar um pouco mais.
— Com o fantasma da mulher.
— Ela luta bem? — ele perguntou.
O fato de ele perguntar sobre um fantasma a surpreendeu.
— Ela diz que é melhor do que você.
— Eu sabia que não gostava dela — disse ele, com um meio sorriso. Depois de uma pausa, ele perguntou: — Quem é esse fantasma? — O olhar dele não se desviava das espadas.
— Eu não sei — respondeu ela com sinceridade. E de repente Kylie sentiu que precisava descobrir isso o quanto antes.
Kylie não se lembrou de ligar para Derek. Ela e Lucas tiveram um bom treino. Eles não se soltaram de fato nem lutaram como faziam com as espadas de madeira, mas quase chegaram a isso.
Quando ela checou o telefone, encontrou outra mensagem de Derek — Me ligue agora! — e viu que era quase meia-noite, ela se sentiu culpada.
Ela o vira no jantar — e isso tinha sido depois da mensagem — e ele não tinha dito nada. Não tinha sequer se sentado com ela; só pegou o jantar e saiu.
Ainda um pouco preocupada, mas sem saber se ele ainda estaria acordado, ela mandou uma mensagem de volta. O que foi?
Ela esperou por uns bons 45 minutos para ver se ele respondia. Nada.
Frustrada, deixou-se cair sobre o travesseiro. O frio fantasmagórico envolveu o quarto pela terceira vez desde que ela fora para a cama, mas o espírito não apareceu.
A conversa de Kylie com Holiday aquela tarde tinha reforçado seus sentimentos. Se ela conseguisse descobrir a identidade do espírito, isso podia ajudar a responder um monte de perguntas.
Embora o espírito não tivesse confirmado, Kylie estava quase certa de que ele tinha alguma ligação com Mario.
— Quem é você? — Kylie perguntou para o vento frio que se movia como uma sombra fugidia pelo quarto. — Me diga. Ou pelo menos me mostre alguma coisa.
Nenhuma resposta. Aceitando que nenhum espírito falava antes que estivesse pronto para isso, Kylie se virou na cama e tentou dormir. Tentou pensar em outra coisa que não fosse o espírito.
Outra coisa que não fosse matar alguém.
Outra coisa que não fosse morrer.
Qualquer coisa diferente de Lucas e da esperança que ela tinha visto nos olhos dele.
Kylie tinha acabado de cair no sono quando ouviu um leve ruído.
Passos no piso de madeira. Ela abriu os olhos e estendeu o braço debaixo do travesseiro para pegar a espada.
Debaixo do travesseiro? Ela não dormia com a espada!
Instintivamente, ela sabia que tinham vindo atrás dela.
Quem tinha vindo atrás ela?
Algo não estava certo. No entanto, Kylie puxou a arma e pulou para fora da cama. Seus pés pousaram no tapete. Ela olhou para o tapete oriental. De lã. Caro.
Onde ela estava?
Ou seria melhor perguntar: Quem ela era?
Com o coração batendo ao som dos passos que se aproximavam, ela olhou ao redor da sala. Um quarto. Não o quarto de Kylie.
Móveis de madeira pesados e de aparência cara brilhavam à fraca luz do luar que entrava através de uma grande janela, de onde se viam palmeiras.
O gosto de medo e fúria permanecia em sua língua. Ela levantou a espada. Só para descobrir que não era a espada que tinha sido entregue a ela, mas a espada do...
Tudo fazia sentido agora. Ela era o espírito e estava em meio a uma visão. Avistou um pesado espelho emoldurado sobre uma cômoda. Por um segundo, ela olhou para a imagem. Seu cabelo escuro estava solto, despenteado.
Mas o que causou o primeiro arrepio de pânico em Kylie foi o vestido. O mesmo que o espírito, obviamente, estava usando quando fora assassinado.
E Kylie iria reviver a cena. Seu primeiro impulso foi gritar “Pelo amor de Deus, não!” O segundo foi ficar alerta, para encontrar as respostas de que precisava.
O barulho de passos se aproximou, batendo forte no chão, como se subissem antigos degraus de madeira. Instintivamente, Kylie sabia que o espírito aguardava seus agressores. Ela sabia que a noite traria a morte. Ela tinha escolhido usar branco, mas indagado se o sinal de pureza adiantaria alguma coisa.
Agora, enquanto esperava o fim se aproximar, uma onda de arrependimento, de remorso pela vida que vivera, cruzou sua mente. Mas, no fundo, ela aceitou que era tarde demais. Tarde demais para mudar o modo como tinha vivido. Mas ela podia e iria mudar a forma como iria morrer.
Quem é você? A pergunta sussurrou na mente de Kylie. Ela rezou para que a resposta viesse logo para que ela pudesse deixar a visão antes que tivesse de reviver a morte daquela mulher.
O espírito olhou para a janela como se considerasse a possibilidade de fugir.
Saia daí, Kylie disse a ela. Você não tem que morrer.
Mesmo antes de o pensamento se completar, Kylie sabia que as ações do espírito nesta véspera de sua morte já faziam parte do seu destino. Kylie não tinha sido levada ao interior de seu corpo, ou de sua memória, para mudar o que já tinha acontecido. Ela tinha sido levada até ali para viver isso.
Para saber a verdade.
Que verdade? Por que o espírito não tinha ido embora? Kylie sentiu que ir embora tinha sido uma opção. O espírito tinha escolhido morrer. Por que motivo?
— Mamãe. — O menininho correu para a porta. — Ele achou a gente! — Em seus olhos arregalados, medo e lágrimas. — Ele achou a gente! Agora o que vamos fazer?
Ela segurou o menino pelos ombros. A mãe queria abraçá-lo, enterrar o rosto em seu cabelo para poder morrer com o cheiro de seu único filho ainda preenchendo os seus sentidos. Mas o tempo tinha acabado. Ela o empurrou para dentro do armário.
— Use o alçapão, como eu mostrei. Corra e não olhe para trás. — Ela fechou a porta do armário ao mesmo tempo em que a porta do quarto se abria com um estrondo.
Capítulo Trinta e Quatro
A mulher, com Kylie vendo a cena através dos olhos dela, virou-se para lutar. Não porque pensava que poderia ganhar, mas pelo pouco tempo que o filho precisava para escapar. Ela sabia que morreria, mas lutava pelo seu filho.
Eles entraram. Havia três deles. Usavam preto, sem máscaras, e ela os reconheceu.
Conhecia-os bem.
Ela tinha comido em suas mesas.
Rido de suas piadas.
Ela também reconheceu o olhar nos olhos deles, o ímpeto para cumprir sua tarefa. Matá-la era a incumbência que eles tinham.
Ela levantou a espada e lutou. Lutou pelo filho dela. Por alguns segundos, ela realmente superou-os, bloqueou as tentativas de derramar seu sangue. Ninguém poderia dizer que ela tinha se entregado facilmente.
A primeira dor penetrante atravessou suas costelas. Kylie gritou para que ela parasse. Tentou dizer a si mesma que não era real, que não era ela quem sofria os golpes, mas parecia real. Ela sentiu a dor que o espírito sentira naqueles últimos momentos terríveis da sua vida.
Sentiu as lâminas perfurando sua pele, atingindo os ossos.
Seu corpo ficou flácido, a dor era excruciante. Ela caiu de joelhos e depois para a frente, tombando no chão. Seu sangue escorria. O fluxo espesso do líquido aqueceu o frio repentino. Ela não o conteve. Queria que o sangue fluísse mais rápido. Quanto mais rápido fluísse, menos ela sofreria.
O cheiro acobreado do sangue encheu seus sentidos. A viscosidade dele escoou sob sua bochecha pressionada no chão frio. A última coisa que ela viu foi a porta do armário aberta e seu filho assistindo com horror enquanto ela dava seu último suspiro.
Ele não tinha fugido. A fúria encheu sua alma.
Será que ele sabia? Será que ele sabia que a morte dela era para mantê-lo seguro e protegê-lo do tipo de vida que ela e o pai dele tinham vivido?
Um segundo antes de a morte levá-la, ela jurou vingança. Não vingança sobre aqueles que a mataram, eles nada mais eram do que peões a serviço de um demônio. Ela sabia disso, porque tinha sido um deles.
A vingança que ela buscava era para quem os enviara, o próprio demônio. Bem como para aquele que tinha permitido, o filho do demônio.
— Não fique muito perto. Ela pode te degolar com essa coisa.
A voz estridente de Miranda ficou registrada na mente de Kylie, mas soava a certa distância.
— Ela não vai me matar — Della respondeu.
— Eu não estou dizendo que ela queira. — A voz de Miranda voltou. — Mas, que droga, você viu como ela estava manejando essa espada.
Sua consciência lutou contra o vazio da escuridão. Ela queria mergulhar no vazio. Ele não guardava nenhuma lembrança. Oferecia uma fuga do que ela tinha acabado de viver. A maldita voz, a que ela não conseguia de fato identificar falou novamente.
— Você precisa se lembrar.
Tomando fôlego, ela abriu os olhos.
Os olhos pretos e ligeiramente amendoados de Della entraram em foco.
— Ela voltou! — disse numa voz alarmada, como saída de um filme de horror.
Kylie tentou se erguer, mas se sentia muito fraca.
Della ajudou-a a se sentar. Kylie olhou em volta. Estava na cozinha da cabana. Ainda segurava a espada na mão. A visão devia tê-la feito buscar a arma. Lembrando-se de partes da visão, largou a espada e passou a mão sobre a barriga para verificar se havia algum corte.
Nenhum. Apenas a lembrança da dor permanecia. Tinha acabado. Tudo, menos o choro. Lágrimas brotaram nos olhos dela. Como a vida podia ser tão brutal? Tão cruel?
— Você não vai nos matar, não é? — perguntou Miranda. Kylie balançou a cabeça. Por mais doloroso que fosse se lembrar dos detalhes, ela precisava se lembrar; precisava de respostas.
A imagem do menino no armário encheu sua mente, algo conhecido despontou na sua memória. Sim, ele era conhecido. Mais do que isso: fragmentos da história voltaram num déjà vu à sua mente. Alguém tinha lhe contado essa história. Mas quem? De repente, ela se lembrou.
Kylie se levantou, mas seus joelhos se dobraram. Della a segurou.
— Temos que ir — disse Kylie.
— Vai ser meio difícil se você não consegue nem se levantar — provocou Della.
— Eu consigo. — Kylie se forçou a ficar de pé sozinha e empurrou a mão de Della.
— Ok, você está de pé — disse Della. — O segundo passo é conseguir andar.
Kylie deu alguns passos e olhou para a vampira novamente.
— O terceiro passo é fazer sentido. E não faz sentido para mim sair desta cabana antes de eu saber para onde estamos indo.
Kylie inspirou.
— Ver Derek. Eu preciso de Derek.
— Derek? — perguntou Miranda. — E eu que pensei que ela tinha desistido dele e estava quase voltando com Lucas.
Kylie lançou para a bruxinha um olhar suplicante, pedindo que ela lhe desse um tempo.
— Estou falando sério.
— Posso pôr meu sutiã primeiro? — pediu Della.
— Você não precisa dele... — Miranda riu.
Della fez uma cara feia.
— Você é a bruxa mais babaca que eu conheço.
Kylie, perturbada demais para enfrentar uma discussão, foi para a porta. Ela tinha que saber. Della deve ter decidido que Miranda estava certa sobre não precisar do sutiã, porque seguiu Kylie até a porta. De pijama e tudo.
— Você sabe que Burnett vai me esganar se eu deixá-la fazer isso sem ligar para ele.
Kylie começou a correr, sua necessidade de respostas impulsionando-a. Ela sentiu o vento no cabelo e as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Em menos de dois minutos, Kylie parou ao lado da cabana de Derek.
— Ok, sabichona, não vai bater na porta? — Della olhou para ela, a expressão sarcástica substituída pela de preocupação ao ver as lágrimas de Kylie. — Sinto muito — disse ela. — Deve ter sido bem ruim.
Kylie assentiu.
— Vou tentar a janela. — Ela correu para o lado da cabana. As janelas eram muito mais altas do que ela. Dando um salto, ela agarrou com os dedos a parte superior do parapeito e suspendeu o corpo para olhar lá dentro.
E o que ela viu deixou-a... deixou-a... confusa.
Perplexa.
Chocada.
Ela piscou, como se isso pudesse mudar o que estava vendo.
Mas depois de piscar uma, duas, três vezes, ela ainda podia ver não uma, mas duas pessoas na cama de Derek. Uma delas era Derek. Ela podia ver claramente sua forma masculina. Mas a outra era... Kylie não podia ver o rosto.
Mas era definitivamente um corpo feminino. Tinha longos cabelos negros e um bumbum muito feminino e saliente, coberto com um pijama e projetado para fora da manta. E Kylie conseguiu reconhecer aquelas calças de pijama como sendo de Derek.
A garota se mexeu. Kylie prendeu a respiração, esperando que ela se virasse para que pudesse ver quem estava aquecendo a cama de Derek.
Kylie levou um segundo para se perguntar se estava com ciúme. Em algum lugar lá no fundo, dentro do seu peito, ela sentiu uma pontada de ciúme. Mas com ele veio o sentimento de que estava tudo certo. Derek precisava seguir em frente.
Mas ele tinha que seguir em frente tão rápido assim?!
A menina se virou.
Kylie viu seu rosto e...
— Merda! — Seus dedos acidentalmente escorregaram da janela e ela caiu, se esborrachando com tudo no chão.
Como? Como era possível?!
Capítulo Trinta e Cinco
— O que foi? — perguntou Della, aparecendo atrás dela.
— Nada — Kylie mentiu, ainda no chão, onde tinha caído.
— Tente outra vez — disse Della, obviamente ouvindo a mentira no coração da amiga.
— Deixa pra lá. E, por favor... me dê um pouco de privacidade para conversar com... ele.
— Eu sou a sua sombra — disse, observando Kylie se levantar.
— Eu sei. Mas estou te implorando. Por favor. Preciso de um pouco de privacidade.
— Para fazer o quê? Está a fim de uma sessão de amassos com Derek?
Kylie nem se deu ao trabalho de responder.
Della virou-se e saiu pisando duro.
Kylie içou-se ao parapeito da janela, pendurou-se ali com uma mão e bateu na vidraça com a outra. As duas pessoas na cama pularam de susto.
O olhar sonolento de Derek voou em direção à janela. Kylie não sabia ao certo como Jenny — pois era de fato a irmã de Hayden, Jenny — tinha reagido ao susto. Ela havia desaparecido!
Passando a mão no rosto, Derek foi até a janela. Kylie saltou para o chão quando ele levantou a vidraça. Ele a olhou com um olhar de interrogação enquanto oferecia a mão para alçá-la para cima.
— Mas que hora para aparecer! — ele murmurou enquanto a puxava. — Por que, afinal, demorou tanto?
Com os pés no chão do quarto, Kylie fez uma careta.
— Você me viu no jantar e não disse nada.
— O que eu podia dizer num lugar cheio de vampiros?
Droga, ele estava certo.
— O que está acontecendo? — Ela olhou ao redor. — E, Jenny, você pode ficar visível. Eu já te vi.
Jenny apareceu e seu rosto enrubesceu.
— Não é o que você está pensando. Nós não... — Ela apontou para o chão, onde um cobertor e um travesseiro estavam jogados.
— Você devia estar dormindo no chão! — disse Jenny, olhando para Derek.
— Eu não consegui dormir, então eu só... — Ele olhou para Jenny. — Eu nem encostei em você.
Kylie balançou a cabeça.
— Eu não me importo com isso.
— Eu me importo! — disse Jenny, olhando para Derek.
— Eu nem toquei em você! — repetiu ele.
Kylie gemeu.
— Jenny? O que você está fazendo aqui? — Nesse momento Kylie lembrou-se do alarme. — Foi você quem pulou a cerca!
Jenny fez uma careta.
— Eu não sabia que o lugar tinha um alarme. Nem o complexo tem um.
Mas os camaleões não estavam à espera que um psicopata delinquente os atacasse!
Kylie balançou a cabeça, lembrando-se de se concentrar num assunto por vez. E esse era um grande problema, também.
— Mas que droga... — ela murmurou. — Hayden sabe que você está aqui?
Derek e Jenny negaram com a cabeça.
Kylie olhou para Jenny.
— Você fugiu, não é?
Jenny assentiu e apertou as mãos.
— Por favor, não... não fique brava.
Derek olhou para Jenny com pena e, em seguida, fitou Kylie como se estivesse frustrado.
— Por que está tão contrariada? Você não disse que queria ajudá-la?
Kylie olhou para ele, séria.
— Eu quero, mas... fugir não resolve o problema.
— Ah, qual é, Kylie? — Derek contestou. — Para alguém que fugiu algumas semanas atrás, não acho que você esteja em condições de julgar.
— Eu não fugi! Eu disse a todos que estava indo embora. E não estou julgando ninguém. — Frustrada e um pouco surpresa ao ver Derek defendendo Jenny, Kylie suspirou e olhou de Jenny para Derek.
— Se um camaleão foge antes de estar maduro é expulso da família.
Derek desviou os olhos para Jenny, e examinou-a de cima a baixo.
— Ela parece bem madura pra mim.
Kylie revirou os olhos.
— Eu não estou falando do corpo dela. Estou falando da capacidade de mudar de padrão. — Desviando o olhar para Jenny, Kylie percebeu uma coisa. — Você é capaz de ficar invisível. Isso não acontece só mais tarde?
— Normalmente, sim. Treinei muito por conta própria nos últimos anos para conseguir ir embora mais cedo. Mas ainda não consigo controlar meu padrão. — A tristeza era visível nos olhos da garota.
— Você está mesmo preparada para deixar sua família?
Jenny se sentou na cama e alisou o pijama folgado de Derek com as mãos.
— É muito difícil pra mim, mas aquela família está tentando me forçar a casar com alguém que eu não amo. E o cara não me ama, também. Eu não quero viver assim.
A mente de Kylie disparou. Ela havia dito a Holiday: o que os camaleões anciãos faziam era quase tão ruim quanto o que faziam os lobisomens. Agora ela percebia que estava certa. Os mais velhos estavam fazendo a Jenny o mesmo que o pai de Lucas fazia ao filho.
Isso significava que Lucas estava certo ao enfrentar a alcateia e o pai? Tudo parecia tão confuso! Percebendo Derek e Jenny olhando para ela, ela concluiu que aquele não era o momento de pensar em Lucas. Um problema de cada vez.
Problema no 1 : o avô e toda a comunidade de camaleões iriam culpar Kylie, porque ela era a razão de Hayden estar ali. Como, pelo amor de Deus, ela ia consertar aquilo? Ela olhou para Jenny novamente.
— Ok, então agora me explique por que você não procurou Hayden.
— Porque toda vez que eu falava com ele sobre ir embora, ele me dizia que era errado. Que eu devia ficar lá até amadurecer. Mas todo mundo sabia que no dia em que eu amadurecesse, cairia fora de lá, então os anciãos estavam tentando encontrar outra maneira de me deter. Eles iam me obrigar a casar com Brandon na semana que vem. — A expressão da garota ficou mais solene. — Além disso, eu não vim aqui por causa de Hayden. Eu vim aqui por sua causa. Achei que você ia entender. Mas acho que eu estava errada.
A culpa encheu o peito de Kylie.
— Você não está errada, eu só... Eu não sei bem o que fazer... — Kylie olhou em volta. — Como você acabou aqui com Derek?
— Você estava sempre rodeada de pessoas. Eu vi Derek e achei que, se você confiava nele, então eu poderia confiar também.
Kylie suspirou.
— Você está realmente preparada para perder o direito de ver a sua família?
Lucas estaria?
Lágrimas encheram os olhos da garota e Kylie sentiu a mesma emoção se agitar dentro dela.
— Não — respondeu Jenny. — Mas eu não estava pronta para me casar com Brandon, também.
— Eu sei — disse Kylie. — Nós só temos que descobrir um modo de resolver isso. — O mesmo valia para Lucas. Mas que Deus a ajudasse, porque ela não fazia ideia de como fazer essas duas coisas.
Ela olhou para Derek e se lembrou do motivo que a levara até ali.
— Nós temos um bocado de coisas para conversar — ela murmurou.
— Que coisas? — perguntou Derek.
Kylie não tinha percebido que falara em voz alta. Em seguida, partes da visão surgiram na cabeça dela como um filme de horror.
— Você se lembra de quando me contou sobre Roberto, o neto de Mario? Você não disse que ele testemunhou o assassinato da mãe?
— Disse.
— Você se lembra de como ela foi assassinada?
Ele passou a mão pelo cabelo castanho.
— Acho que um artigo dizia que ela foi esfaqueada.
Kylie franziu a testa.
— Eu temia isso.
— Por quê?
— Ela é o meu fantasma.
Derek pareceu preocupado.
— A mãe de Roberto é o seu fantasma?
— Por favor, não me diga que ela está aqui agora. — Jenny puxou os joelhos até o peito e os abraçou.
— Está tudo bem. — Derek se aproximou da garota. Ele descansou a mão no ombro da garota para aliviar o medo dela.
— Tire a mão daí! — Jenny deu um tapa na mão dele. — Eu não gosto que você me toque. Você... me faz sentir coisas que... eu não sinto.
Derek franziu a testa.
— Eu estava tentando fazer você se sentir melhor.
— Talvez eu não queira me sentir melhor — ela retrucou, e eles se entreolharam.
Por alguma razão, as brigas dos dois faziam Kylie se lembrar de Burnett e Holiday, ou mesmo de Kylie e Derek no começo, e ela sabia por quê. A tensão sexual. Se Kylie fosse um vampiro, ela apostava que conseguiria sentir o cheiro dos feromônios.
Derek olhou para Kylie.
— Está vendo o que eu tive que aguentar nas últimas 24 horas?
A única coisa que impedia Kylie de sorrir eram os fragmentos da visão e a constatação de que ela não tinha a menor ideia do que fazer com Jenny. Se fosse procurar Holiday, ela não tinha certeza se a líder do acampamento permitiria ou até mesmo poderia permitir que a menina ficasse. Mas por quanto tempo eles poderiam escondê-la?
De repente, a vidraça de Derek se abriu e Della pulou para dentro.
— Ok, vejam só! Acabei de receber um telefonema de Burnett. Ele estava fazendo uma ronda pelas cabanas e percebeu que não estávamos. Está a caminho daqui. Você tem um segundo para esconder a Mulher-Maravilha aí, ou ele vai saber que ela está aqui.
Jenny desapareceu. Della, vendo pela primeira vez alguém desaparecer daquele jeito, ficou atordoada. Burnett entrou com tudo pela janela aberta.
— Que diabos está acontecendo agora?
— Eu tive uma visão. — Kylie contou uma parte da verdade. — Eu quis perguntar a Derek sobre isso.
— E você não poderia ter me ligado primeiro?
— Você sabe como eu fico depois de uma visão... Eu estava fora de mim; tudo em que eu consegui pensar foi em descobrir a verdade.
— Que verdade?
— Eu sei quem é o fantasma da mulher agora. Ela tem... uma ligação com Mario. Ela era nora dele, mãe de Roberto. Mario mandou matá-la. — O coração de Kylie se contraiu quando ela se lembrou dos últimos minutos da vida da mulher. Quando se lembrou de como Roberto tinha testemunhado a morte horrível da mãe.
Burnett suspirou.
— E a espada? É dela, também?
— Não, ela diz que é dos... anjos da morte.
Uma longa pausa encheu o quarto, como se todos precisassem de alguns segundos para acreditar.
— Você sabe por que eles a enviaram? — Burnett finalmente perguntou.
Kylie franziu a testa. Ela suspeitava que era porque ela teria de enfrentar Mario. E, no fundo, sabia que Burnett suspeitava disso também. Mas ninguém queria dizer.
— Não, na verdade, não. — Não chegava a ser uma mentira. Havia uma diferença entre saber de algo e suspeitar disso.
— Vamos lá, vamos falar com Holiday sobre essa visão — disse Burnett.
Kylie deixou a cabana de Derek para enfrentar um problema, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, teria que lidar com o outro que estava deixando ali. Jenny.
Por quanto tempo eles conseguiriam esconder um camaleão em fuga? Ela esperava que por tempo suficiente para Kylie conseguir pensar num plano.
Burnett e Holiday levaram Kylie de volta para a cabana depois da conversa. Ela conseguiu enfrentar a conversa sem mentir não deixando que o tema se desviasse da visão. Kylie não lhes disse nada sobre Jenny ou sobre o pai ter tornado a dizer que eles estariam juntos em breve. Para ser franca, ela estava tentando não pensar na mensagem do pai. Holiday não tinha falado que uma pessoa que começa a se preparar para a morte engana a si mesma convencendo-se de que sua vida não vai durar muito? E... em algum lugar no fundo do seu coração, ela se agarrava ao fato de que o pai poderia estar confuso. Que sua definição de “logo” poderia significar algo em torno de 80 ou 90 anos.
A primeira coisa que Kylie fez depois que Burnett e Holiday foram embora foi pegar o telefone.
Derek atendeu no primeiro toque.
— Sobreviveu?
— Mais ou menos — disse Kylie.
— Como é que você mentiu para Burnett?
— Evitando falar a verdade.
Ele suspirou.
— Falando em verdade, reli os artigos sobre a mãe de Roberto. As causas da morte foram vários ferimentos provocados por um objeto perfurante. Ah, e o nome dela era Lucinda Esparza.
— Obrigada. — Kylie repetiu o nome da mulher mentalmente.
— Então, qual é o plano com relação ao meu problema? — ele perguntou.
Então ele considerava Jenny problema dele, hein?
— Eu não sei, mas você se importaria em continuar a escondê-la até que eu pense num plano? Já que você não tem um vampiro dividindo o quarto com você nem Burnett vigiando a sua cabana. Ela tem menos chance de ser encontrada se ficar aí.
— Meu plano era que ela ficasse aqui — Derek disse, soando quase insistente.
Foi então que Kylie soube com certeza. Sua antiga paixão tinha conseguido esquecê-la e estava a caminho de se apaixonar por outra... Kylie sentira a ligação entre eles, assim como captara a que havia entre Burnett e Holiday, Perry e Miranda, e Jonathon e Helen.
Ela quase podia ouvir Derek e Jenny contando aos filhos como eles se conheceram.
“A mãe de vocês simplesmente pulou nas minhas costas de repente, esperando que eu lhe desse uma carona de cavalinho!”
Jenny tinha sorte. E Derek merecia ser feliz.
E eu também! E a felicidade dela dependia de Lucas. Era como se algo tivesse mudado dentro da sua cabeça e ela tivesse percebido o quanto estava equivocada. Ela não deveria ter tentado afastá-lo. Deveria ter insistido para que ele encontrasse uma maneira de fazer a coisa da maneira certa.
— Ei..., hã, eu acabei de perceber que preciso fazer uma coisa. Podemos conversar amanhã?
— Fazer o quê? — perguntou Derek, obviamente captando os sentimentos dela.
Convencer alguém de que vale a pena lutar por mim.
— Tchau. — Ela desligou, e depois discou o número de Lucas. Um instante antes de digitar o último número, ela mudou de ideia. Havia outro jeito. Um jeito melhor.
* * *
Levou dez minutos para ela cair no sono, e mais alguns para adquirir controle e ter um sonho lúcido que a levasse até a cabana de Lucas e ao quarto dele. Ele parecia adorável dormindo em sua cama. O lençol estava abaixo da linha da cintura e ela não pôde deixar de se perguntar se ele estava usando alguma coisa por baixo. Ela achava que não.
Mentalmente, ela o vestiu com uma bermuda e entrou na mente e depois nos sonhos dele.
— Lucas — ela sussurrou o nome dele. Embora ela pudesse levá-lo para qualquer lugar, não fez isso. Eles permaneceram no quarto dele. Ela olhou para o peito nu do lobisomem novamente e se perguntou por que não tinha sonhado com ele vestindo uma camisa. Provavelmente porque gostava de ver seu peito nu.
Então Kylie olhou para a cama e a mente dela foi se juntar a ele ali. Foi quando ela decidiu que eles precisavam sair do quarto.
Lucas sentou-se.
— Oi! — Sua voz estava grave e sonolenta.
— Vem, vamos sair daqui — disse ela.
— Sair para onde? — ele perguntou.
— Para um lugar onde a gente possa conversar — ela respondeu.
Ele deu um tapinha na cama e olhou para ela com um sorriso sexy. Será que ele tinha lido os pensamentos dela?, ela se perguntou.
— Poderíamos conversar aqui — ele disse com voz rouca.
Ela revirou os olhos.
— Boa tentativa.
Ele riu. Então puxou o lençol e olhou para baixo.
— Pelo menos a bermuda não tem carinhas sorridentes — disse ele, referindo-se ao dia em que ela o vestira em outro sonho lúcido.
Ela se concentrou e transferiu o sonho para a clareira atrás do escritório, onde muitas vezes eles tinham ido conversar.
Ele olhou em volta e depois voltou a olhar para ela. A noite estava escura, apenas algumas estrelas brilhavam no céu.
— Eu acho que gostei mais do sonho no lago — ele disse, referindo-se ao sonho lúcido em que eles tinham nadado nus.
Estendendo as mãos, ele a segurou pelos ombros e a puxou de encontro a ele.
O peito dele estava tão quente... Tão convidativo... Ela teria gostado de ficar ali. Para explorar todas as coisas que queria explorar entre eles. Mas ainda não.
— Comporte-se! — disse ela, e se soltou.
O sorriso dele desapareceu.
— Tem alguma coisa errada?
— Não. Bem, sim, tem algo errado. Tudo está errado. — Ela suspirou. — Você tem que entrar para aquele Conselho, Lucas.
— Eu não vou me casar com Monique — ele disse com rispidez.
— Não se casando com Monique. Você tem que encontrar outra maneira.
— Eu preciso do meu pai para interceder por mim, Kylie. Ele não vai fazer isso agora.
Ela rangeu os dentes.
— Fale com ele. Você disse que ele é protetor com você. Ele obviamente se importa. Talvez se você...
— Você não conhece meu pai — disse ele.
A fúria inflou o peito de Kylie.
— Então encontre outra maneira! Encontre alguém para interceder por você. Ou fale você mesmo com o Conselho. Você me contou sobre tudo o que os jovens querem mudar. Faça os anciãos verem isso. Eles foram jovens um dia. Você não pode fazê-los se lembrar de como era? Quer dizer... quem foi que disse que, se a porta está trancada, encontre uma janela? Se a janela está fechada, também... quebre-a. Se ela não quebrar, então ache uma marreta e faça uma nova.
Ele balançou a cabeça.
— Você não sabe como eles são.
— Sim, eu sei! Os anciãos dos camaleões são como os seus anciãos. Eles querem arranjar casamentos e dizer a todos os jovens camaleões o que fazer. Não sei como vou mudar as coisas, mas pode apostar que não vou deixar de tentar.
— Não é a mesma coisa! — disse ele, como se estivesse ofendido com a acusação.
— Talvez não seja exatamente a mesma coisa. Mas você está desistindo.
— Eu não vou desistir de nós — insistiu ele. — Isso é o que importa.
Ela balançou a cabeça.
— Mas você está desistindo de nós. Se não conseguir entrar no Conselho, Lucas, não existirá nenhum “nós”.
— Você não está falando sério! — disse ele, a raiva engrossando sua voz.
— Não pense que eu quero — disse ela. — Mas eu sei que, se você abrir mão de quem você é e de tudo o que sempre quis, você vai me culpar por isso. Talvez não agora, mas um dia vai. E eu não posso entrar nessa sabendo que você vai me odiar um dia. Eu não posso.
Num piscar de olhos, Kylie pôs um ponto final no sonho lúcido e atirou-se na cama. Então dormiu chorando. Mas um pouco antes disso, ela ouviu o pai mais uma vez.
— Em breve. Em breve estaremos juntos.
Ela não pôde deixar de se perguntar se, quando estivesse morta, ela ainda ia sofrer por Lucas.
Na manhã seguinte, depois de apenas uma hora de sono, Kylie estava em meio aos outros campistas, à espera de Chris fazer seu showzinho no início da Hora do Encontro. Perry, sua sombra oficial naquela manhã, estava ao lado dela, com Miranda apoiada nele. Della estava numa reunião de vampiros e não ia participar do Encontro.
Lucas não estava ali. Mas ele tinha enviado uma mensagem para ela do celular que dizia: Acho que encontrei uma janela. A esperança lhe deu energia. Energia para relembrar o quanto tinha sido bom observar Lucas na cama na noite anterior e como ela tinha ficado tentada a se enroscar nele e deixar que as coisas simplesmente acontecessem. Afastando o lobisomem sexy da sua mente, ela procurou outra coisa em que pensar — como descobrir como proceder com Lucinda, que estava de pé no meio da multidão, como se pertencesse a Shadow Falls, mas não estava falando com Kylie. Será que de fato tudo de que o espírito precisava para seguir em frente era que Kylie lutasse contra Mario? Para que ele pudesse seguir para o inferno?
Uma coisa era encorajar as almas destinadas a cruzar os portões do céu a deixar a sua existência solitária na terra e seguir em frente. Mas como ela poderia encorajar alguém a ir para o inferno?!
Kylie estremeceu com o pensamento.
— Você está quieta — comentou Miranda. — Está tudo bem?
Kylie acenou com a cabeça e localizou Derek andando no meio da multidão. Os pensamentos dela saltaram para Jenny e como iria resolver aquilo. Sua intuição lhe dizia que a coisa certa a fazer era confrontar Hayden.
Ela sabia que Jenny estava com medo que ele insistisse para ela voltar para casa, mas Kylie não tinha tanta certeza se Hayden faria isso.
A conversa no grupo de estudantes se acalmou. Kylie olhou para a frente.
Chris tinha se posicionado na frente da multidão, desviando a atenção de Kylie de suas próprias desgraças.
— Hoje nós temos... — Ele olhou para baixo, na direção do chapéu e, em seguida, para cima. Diretamente para Kylie.
Ah, mas que inferno, pensou Kylie, quem seria dessa vez?
— Kylie Galen. — Chris sorriu. — A garota que rendeu mais sangue do que qualquer outra campista em Shadow Falls!
Ele hesitou.
— Você, minha cara, vai ter o prazer... — ele fez uma pausa para causar um efeito dramático — de passar uma hora na companhia de Steve!
Kylie viu Steve, o metamorfo de traseiro bonito, o mesmo que tinha dado um chupão em Della, começar a andar na direção dela. Nem por um minuto Kylie pensou na hipótese de que Steve tivesse algum interesse nela. Ela sabia que ele só queria alguns conselhos no campo do amor.
Conselhos que Kylie não tinha. Que diabos ela poderia dizer a ele? A resposta normal que ela daria a alguém que está tentando chamar a atenção de outra pessoa era “tenha paciência”. Mas Della era a pessoa mais inflexível e teimosa que Kylie conhecia e seria preciso a paciência de um santo para dobrar a vampira.
— Ter paciência? Isso é tudo que você tem pra me dizer? — reclamou Steve dez minutos mais tarde.
Kylie olhou para Perry, voando em círculos enquanto eles conversavam sentados na clareira atrás do escritório, e então franziu o cenho para Steve.
— Não sei por que todo mundo pensa que sou o guru do amor.
— Vamos lá, me dê algo que possa me ajudar. Você conhece Della melhor do que ninguém.
Kylie sentou-se ao lado da árvore.
— O que eu posso dizer? Della é uma figurinha difícil. — Tão difícil que, se descobrisse que Kylie tinha oferecido conselhos a Steve, a vampira abriria mão do título de uma das melhores amigas de Kylie.
— Você acha que eu não sei disso?
Kylie fitou os olhos desesperados do metamorfo.
— Ela ficou muito machucada por causa de alguém.
— Eu sei disso, também. — Ele cruzou os braços sobre o peito largo. — Ela merece muito mais do que aquele sujeito.
— Ah, que se dane! — exclamou Kylie, e decidiu jogar a precaução no lixo. — Ok, isso é tudo o que eu posso te dizer. Della adora uma boa briga.
— Eu não quero lutar — disse Steve. — O que eu quero é... — Ele corou como se estivesse pensando sobre o que realmente queria.
Mas, caramba!, Kylie gostava de Steve.
— Olha, eu não estou dizendo para você brigar com Della. Lute por ela. Quando ela disser que você não pode se sentar com ela na hora do almoço, sente-se de qualquer maneira. Quando ela disser para ir embora, não vá. Ela vai ficar irritada. Della é assim, mas eu acho que dessa maneira você vai conquistar alguns pontinhos com ela.
O metamorfo fez uma pausa, como se estivesse pensando.
— Quer saber? Você está certa. Quando estávamos na missão, ela tentou me afastar, mas eu não deixei. Eu não podia fazer isso porque Burnett me avisou que, se alguma coisa acontecesse com ela, ele arrancaria a minha cabeça. E foi aí que nós... Ei! Já sei o que tenho que fazer!
— O quê? — perguntou Kylie, com medo do que tinha desencadeado.
— Espere só pra ver. — Um sorriso se espalhou pelos lábios dele. Fagulhas começaram a surgir em torno do metamorfo. Ele se transformou num pássaro, não tão grande ou magnífico quanto aquele que circulava mais acima, mas ainda assim impressionante.
Batendo as asas duas vezes, ele voou para longe, gritando para Perry ao fazer isso.
Perry se preparou para uma aterragem rápida.
— Você é boa nisso! — disse ele, ainda em forma de pássaro. — Ela vai comer na mão dele agora. Claro que antes ela já terá rasgado o seu coração por traí-la.
— Não fale comigo enquanto não estiver na forma humana! — Ela deixou cair a cabeça sobre os joelhos.
Merda! Perry estava certo. Della ia matá-la. Mas, como o destino já podia tê-la marcado para morrer, ela não tinha certeza se isso realmente importava.
Capítulo Trinta e Seis
— Está aguardando uma ligação? — Kylie perguntou a Hayden Yates quando entrou em sua sala de aula, dez minutos depois, e viu que ele estava segurando o celular.
— Só estou na esperança de receber uma. — Ele franziu a testa e olhou em volta, como se para ter certeza de que estavam sozinhos. — É Jenny. Ela saiu de casa. Só Deus sabe onde está.
Kylie mordeu o lábio.
— Se você a encontrasse, o que faria?
— O que você quer dizer com isso? — A suspeita o fez estreitar os olhos.
— Você a levaria de volta para seus pais? Se ela fugiu, provavelmente é porque ela é como você quando jovem e não consegue mais suportar esse jeito de viver.
O ar de suspeita desapareceu da expressão dele.
— Ela não sabe o quanto é difícil viver completamente sozinho.
— Ela não estaria sozinha — disse Kylie. — Ela teria você.
Ele franziu a testa.
— Não sei lidar com uma adolescente.
Kylie revirou os olhos.
— Você é professor. Lida com adolescentes todos os dias.
— Eu ensino adolescentes, não sou pai deles. Há uma diferença. Mas discutir isso é bobagem. — Ele correu os dedos pelos cabelos. — Ela é jovem, ingênua.
— Ela não é tão ingênua. — Kylie se lembrou de Jenny enfrentando Derek e de quando ela os ajudou a fugir.
— E se eu soubesse onde ela está?
Hayden olhou para Kylie.
— Meu Deus! O alarme?
Kylie assentiu. Hayden fez uma careta.
— Burnett e Holiday sabem?
— Ainda não.
Ele soltou o ar por entre os dentes.
— Se os anciãos descobrirem que ela está aqui, vão esperar que Burnett e Holiday a levem de volta.
— Eu sei — disse Kylie. — Esse é o problema.
Hayden entrelaçou as mãos atrás da cabeça.
— E Holiday e Burnett terão que levá-la. Legalmente, eles não podem mantê-la aqui sem arcar com sérias consequências.
Kylie suspirou.
— Essa é a outra parte do problema.
Ele apertou a mão sobre a mesa.
— É uma encrenca e tanto.
A mente de Kylie disparou.
— Eu quero contar isso a Holiday e Burnett, mas se essa coisa toda de Mario se acalmasse, acho que teria uma chance melhor de convencê-los.
— Onde ela está agora? — ele perguntou, de repente.
— Ela está na cabana de Derek.
Ele pareceu não entender.
— De Derek? — A expressão de Hayden passou de professor para o de irmão mais velho e Kylie teve a sensação de que Derek poderia estar encrencado.
— É melhor do que na minha cabana, porque Burnett está me observando como um falcão. Quando Jenny pulou o portão, ela não conseguiu chegar perto de mim, porque eu tenho sombras. Jenny e Derek se conheceram na noite em que fugi e ela achou que podia confiar nele. E ela está certa. Derek é o melhor cara que eu conheço. Ele nunca faria nada... você sabe.
— É melhor que ele não se atreva... você sabe! — disse Hayden com rispidez.
— Eu acho que seria mais seguro transferi-la para a sua cabana. Não por causa de Derek. Mas...
Ele suspirou.
— Seria mais seguro se ela voltasse e...
— Não! — exclamou Kylie. — Apenas me dê um tempo. Acho que posso resolver isso.
— Como? Ela ainda não está madura.
Kylie apontou para seu próprio padrão.
— Eu não estou completamente madura e estou me saindo muito bem.
— Você pode realmente dizer isso com tanta certeza? — ele perguntou. — Você tem um assassino atrás de você. A UPF está fazendo tudo o que pode para pôr as mãos em você e testá-la. A meu ver, isso não significa que está se saindo muito bem.
— Apenas me dê alguns dias. Por favor.
— Você não pode dar um jeito nisso, Kylie — insistiu Hayden.
As palavras de Hayden ecoaram na cabeça dela. A UPF está fazendo tudo o que pode para pôr as mãos em você e testá-la.
Pela primeira vez, Kylie encarou isso. Uma janela!
— Posso tentar dar um jeito — disse Kylie. Talvez morresse tentando, Kylie pensou, mas talvez não. Além disso, talvez seu destino não fosse continuar viva mesmo.
Ela se levantou depressa, se afastando da mesa de Hayden e começou a andar para trás, em direção à porta.
— Tenho que ir. Depois das aulas de hoje vou dizer a Derek para trazer Jenny à sua cabana.
Durante o almoço, Kylie esperou para ver se Lucas aparecia. Ela se sentou ao lado de Della, que parecia estar com raiva e implicara com ela o tempo todo, porque tinha ouvido falar que Kylie passara a Hora do Encontro com Steve. Em frente a ela estava Miranda, olhando para ela com um ar de suspeita, pois seu metamorfo e sombra de Kylie a avisara de que ela estava agindo de forma estranha.
Perry estava errado. Ela não estava agindo de forma estranha, ela estava com medo.
No entanto, mesmo com medo, sabia que era a coisa certa a fazer. Seu instinto lhe dizia isso.
A mente de Kylie deixou instantaneamente seus medos de lado quando Lucas entrou no refeitório. Ele usava uma camiseta azul-marinho e seus jeans mais velhos, desbotados em todos os lugares em que o tecido delineava seu corpo. Seu cabelo parecia despenteado pelo vento, como se ele tivesse acabado de chegar de uma corrida. Em menos de uma semana, seria Lua cheia. Sem dúvida, ele tinha corrido para diminuir um pouco a ansiedade.
Ele olhou ao redor do salão.
Kylie encontrou seu olhar azul-escuro de cabeça erguida.
Ele começou a andar na direção dela, sem nem mesmo pegar uma bandeja de comida. Quando se sentou, o ombro dele roçou no dela. Ela pousou o garfo e olhou para ele.
— Você toparia matar aula para treinar?
As sobrancelhas dele se uniram.
— O que está acontecendo?
Ela era assim tão transparente?
— Eu já consegui a autorização de Holiday. — E a líder do acampamento tinha feito a mesma pergunta. O que aconteceu, Kylie?
Ela deu a Lucas a mesma resposta que tinha dado a Holiday.
— Estou a fim de treinar. — Ela precisava admitir, não podia dizer a verdade. Não ali. Mas estava planejando dizer quando eles estivessem sozinhos.
— Como está a sua janela? — ela perguntou.
— Ainda emperrada. Mas estou trabalhando nisso.
O otimismo na voz dele a fez sorrir. Ele pegou o pãozinho do prato dela.
Quando ela olhou para ele com um olhar confuso, ele disse:
— Vou precisar estar bem nutrido para levar isso adiante. Você parece mais mal-humorada hoje.
— Você está certo. É melhor comer o resto da minha salada também — ela brincou.
Ele inclinou a cabeça para baixo e sussurrou:
— Eu te amo.
Eu também te amo, Kylie pensou, mas não teve coragem de dizer ainda. Ela queria esperar até que todas as janelas deles estivessem abertas e a vida lhes desse uma esperança. E mais do que tudo, ela queria essa esperança.
Enquanto caminhavam até a cabana de Lucas para pegar as espadas, Kylie tentou descobrir como dizer a ele o que ela estava fazendo. Instintivamente, sabia que ele iria tentar fazê-la desistir. E neste dia, mais do que em qualquer outro, ela não queria brigar.
— Então, esta janela que você mencionou, você tem um plano para abri-la? — perguntou ela.
Ele confirmou com a cabeça.
— Foi o que você disse sobre os anciãos terem sido jovens um dia. Lembrei-me de que, não muito tempo atrás, minha avó perguntou sobre um dos anciãos do Conselho. Ela disse que ele e a irmã gêmea dela tinham uma queda um pelo outro quando jovens, mas que a irmã já tinha sido prometida para outra pessoa. Eu nem sabia que a minha avó tinha uma irmã gêmea. Quando perguntei sobre essa irmã, ela disse que tinha morrido. Mas eu tive a sensação de que a história não acabava aí. Então fui vê-la esta manhã.
— E...? — perguntou Kylie.
— Ela confessou que a irmã gêmea se matou um dia antes de se casar com o outro cara.
— Então você vai falar com esse ancião?
— Não é assim tão fácil. Ele não concordaria em me ver. Mas pode concordar em ver minha avó, e talvez ela possa convencê-lo a me receber.
— Será que a sua avó concordaria em fazer isso? — perguntou Kylie.
— Não — ele disse, a frustração evidente em sua voz. — Ela é teimosa. Eu tenho que encontrá-la para o chá daqui a algumas horas. — Ele suspirou. — O chá sempre a deixa mais bem-humorada. Acho que vou conseguir convencê-la.
— Eu também acho.
Eles chegaram à beira do lago, e Kylie ainda não tinha encontrado uma maneira de contar a Lucas sobre seus planos. Então, por ora ela deixou tudo como estava. Eles se aqueceram por uns vinte minutos, praticando os mesmos movimentos que ele lhe ensinara. Kylie não precisava observá-lo para fazer os exercícios. Mas ela observou-o assim mesmo. Ela adorava ver como o corpo dele se movia, com força, controle; a maneira como seus músculos delineavam-se sob o jeans, e a camiseta nunca parecera tão atraente.
Ele interrompeu os exercícios de aquecimento e a encarou.
— Está pronta?
Ela assentiu com a cabeça. Eles ergueram as espadas e encostaram uma na outra. Ele puxou a dele para trás e investiu, a lâmina cortando o ar a uns bons quinze centímetros dela. Ela seguiu o comando dele e, depois de cinco minutos, sentiu como se estivessem realmente lutando pela primeira vez.
A sensação de perigo não a deteve; na verdade a deixava mais fascinada. Quem adivinharia que ela no fundo adorava uma emoção?
Ela sentiu o suor se espalhar pela testa. Com olhares rápidos ela o observava, via o brilho na pele dele e a camisa úmida colada ao peito. O algodão molhado parecia ainda melhor do que quando seco.
— Você é incrível quando luta! — disse ele, parecendo sem fôlego.
Ela olhou para ele e perdeu o foco, só percebendo o quanto aquele errinho bobo poderia ser fatal quando sentiu a lâmina fazendo contato com a pele dele.
Capítulo Trinta e Sete
A respiração de Kylie ficou presa nos pulmões. Ela deixou cair a espada. A espada de Lucas escorregou da mão dele e caiu ao lado dela. Ele deu um passo para trás. A camiseta dele estava aberta, rasgada pela lâmina dela.
— Ah, meu Deus! Você...
— Está tudo bem. Foi só um arranhão. — Ele pressionou a palma da mão sobre o estômago.
— Quero ver. — Ela deu um passo na direção dele.
— Estou bem. — Ele deu outro passo para trás. — A culpa é minha. Eu te fiz perder a concentração.
— Quero ver! — ela insistiu.
— É só um arranhão — ele repetiu.
Ela deu os últimos passos que os separam e estendeu o braço para a camiseta dele. Seu coração se contraiu, com medo do que veria. Lágrimas encheram os olhos dela e o ar escapou de seus pulmões quando viu a marca vermelha sobre o umbigo de Lucas.
— Um arranhão, viu? — A voz dele saiu profunda.
Ele estava certo. Não era muito mais do que um arranhão, mas ainda assim parecia dolorido. Ela apertou dois dedos sobre a pele nua do estômago. Inspirando, concentrou-se na cura. As mãos dela ficaram quentes e, lentamente, ela moveu a mão em torno da ferida.
Kylie o ouvira gemer ou tinha sido um grunhido? Ela encontrou os olhos dele.
— Estou te machucando? — Então ela reconheceu o ardor nos olhos dele.
— Não — disse ele, o zumbido hipnótico vibrando, sinalizando que seu corpo procurava uma parceira em potencial.
Com audácia, ela passou a mão para cima e para baixo sobre o abdome dele.
As ondulações suaves e quentes do músculo e da pele provocavam uma sensação maravilhosa contra a palma da mão dela. Ela queria mais. Mais dele. Mais do seu toque. Ela queria ser tocada.
Como se lesse a mente dela, as mãos dele rodearam sua cintura, puxando-a contra si. Seus lábios encontraram os dela e o beijo foi ardente. Profundo e exigente desde o momento em que os seus lábios se encontraram. Ela não soube muito bem como acabaram no chão, mas de repente estavam ali.
A grama macia fazia cócegas no seu pescoço, mas ela sentia Lucas mais do que qualquer outra coisa. Sentiu a mão dele sob sua camiseta. Seu toque suave e carinhoso em seus seios. Sentiu parte do corpo dele pesando sobre ela, a perna dobrada entre as dela.
Em todos os lugares uma parte dele a tocava; o corpo dela ardia e ansiava por mais. O zumbido de Lucas enchia os seus ouvidos como música e ela se entregou. Entregou-se ao momento, aos instintos. Entregou-se com um desejo ardente.
Kylie não tinha medo. Ela queria isso, queria Lucas. Ela deslizou a mão sob a parte de trás da camiseta dele.
Então o ouviu emitir um murmúrio, uma mistura de dor e prazer. Mas num instante o peso do corpo dele e todo o prazer se foram. Ao abrir os olhos, ela viu Lucas parado aos pés dela, com os olhos em chamas e olhando para ela com uma expressão quase selvagem. Suas mãos estavam cruzadas atrás do pescoço e ele respirava com dificuldade, como se precisasse de mais oxigênio.
— Nós não podemos... Não vim preparado... Não tenho...
Tão ofegante quanto ele, ela levou um segundo para entender o que ele estava tentando dizer. Ele não tinha uma camisinha.
Mesmo se tivesse, não deveria acontecer daquele jeito, por acidente.
— Nós precisamos... Não é assim que... — disse ele.
— Eu sei. — Ela se sentou e um sentimento incômodo tomou seu peito; ela sentiu o rosto arder.
Levantando-se, sentiu o nó na garganta.
— Desculpe, eu não deveria ter... — Ela desviou o olhar, sem saber como dizer. Ele diminuiu a distância entre eles e gentilmente virou o rosto dela para ele.
— Você não fez nada errado. Nós não fizemos nada errado. Só precisamos planejar...
Ela assentiu com a cabeça. Seu celular tocou. Ela ainda não tinha estendido a mão para pegá-lo quando o de Lucas também começou a tocar.
Ela suspirou, sabendo muito bem o que aquilo significava. A UPF estava ali. Antes da hora marcada. Ela tirou o telefone do bolso e viu que a ligação era de Burnett; ela estava certa.
— É Burnett — disse ela. — Tenho certeza de que Holiday está ligando pra você, também. Ela pegou as espadas. — Não atenda. Só precisamos ir para o escritório.
Ele olhou para ela atentamente. E ela sentiu um redemoinho de culpa no peito. Ela deveria ter contado. Agora era como se tivesse mentido para ele.
— Por que não devo atender? — Ele abriu o saco e tirou dali os panos para embrulhar as espadas.
— Eu ia te contar, mas... — Eu sabia que você ia brigar comigo.
— O que está acontecendo, Kylie? — ele perguntou enquanto guardava as espadas no saco e o colocava no ombro.
— É a minha janela — explicou ela.
— Qual é a sua janela?
— O motivo por que Burnett e Holiday estão ligando. É a UPF, eles estão aqui por minha causa.
— Por que diabos eles estariam aqui por sua causa?
Ela engoliu em seco e começou a andar. Ele a agarrou pelo cotovelo, com uma interrogação nos olhos.
— Concordei em fazer os testes.
Ele balançou a cabeça, os olhos passaram de azul para um abrasador tom de laranja em questão de segundos.
— Não!
— Eu tenho que fazer isso, Lucas! É a minha missão. Assim como a sua é mudar as coisas da sua espécie. Eu tenho que fazer isso.
— Não, você não tem! — Ele se colocou na frente dela e impediu-a de dar mais um passo. — Esqueceu que eu vi uma parte da visão do que fizeram com a sua avó?
— Isso foi há mais de quarenta anos. As coisas são diferentes. — Era o que Kylie estava dizendo a si mesma, no que ela tinha que acreditar. Ela contornou Lucas e continuou seguindo em frente.
— Não! — Ele agarrou o braço dela.
Ela olhou para ele, pedindo compreensão.
— Eu tenho que fazer isso, Lucas. E você tem que me deixar.
— Burnett e Holiday não vão permitir — ele respondeu entredentes.
— Burnett não acredita que eles iriam me machucar — insistiu ela, sentindo uma brisa fresca roçar na pele. Ela sabia que não estava sozinha.
O pai dela estava ali. Ela rezou para que ele aprovasse o que ela estava fazendo.
— Ele acha que poderia haver riscos, ele mesmo me disse isso. Me disse que escondeu o corpo da sua avó por causa disso.
— Em tudo há um risco, Lucas. — Ela tocou o estômago dele. — Em aprender a lutar. Em não aprender a lutar. Eu estou fazendo a coisa certa. Eu sei.
— Nós não telefonamos para ela. — A voz masculina vinha do escritório de Holiday. — Ela entrou em contato conosco.
Kylie e Lucas entraram no escritório. Lucas continuava furioso. Ela podia dizer pela postura dele, o seu silêncio, mas ele não tentou detê-la. Ela sabia que ele tinha percebido o quanto ela levava aquilo a sério.
— Kylie não teria feito isso. Ela nem sequer sabe como entrar em contato com vocês — contestou Holiday.
Kylie parou na porta de Holiday.
— Eu liguei para minha mãe e ela tinha o número. Eu disse que precisava falar com eles sobre um trabalho que estava fazendo pra você, Holiday. — Kylie fitou o olhar preocupado da líder do acampamento. Burnett estava ao lado dela, os olhos mostrando sinais de raiva. Ela só esperava que toda aquela raiva não fosse direcionada a ela.
Holiday balançou a cabeça.
— Eu me recuso a deixar isso acontecer!
Kylie atravessou a sala, com Lucas atrás dela. Ela olhou para Burnett, esperando encontrar nele um aliado.
— Desde o começo, Burnett disse que eles não iriam me prejudicar intencionalmente.
Holiday se levantou.
— Ele também admitiu que poderia haver riscos, que foi por isso que ele... concordou que você não precisa fazer os testes.
— Ela está certa — disse Burnett. — Eu não quero arriscar...
— Os riscos são praticamente inexistentes — disse o agente grisalho da UPF. — É o que queríamos dizer desde o início. Mas você se recusou a ouvir.
Kylie ignorou o agente e falou para Holiday.
— É a minha missão. Você mesmo disse que era uma busca que valia a pena.
— Mas não significa que você deva colocar sua vida em perigo.
— Ela não está em perigo — disse o agente da UPF novamente.
— Então por que um médico comum não pode realizar os testes? — Holiday perguntou, o tom de voz parecendo o de um pai zangado. Sem dúvida, ela seria uma ótima mãe.
— Eu já disse isso a você quando nos falamos alguns meses atrás. Não é nada mais do que uma tomografia do cérebro e alguns exames de sangue. E esses testes só não podem ser feitos num hospital qualquer porque não foram projetados para seres humanos.
— Mas ela poderia fazer uma tomografia e exames de sangue num hospital qualquer — Holiday retrucou.
— É diferente — respondeu o homem. — A digitalização é definida para procurar coisas que uma tomografia comum não procuraria. O mesmo vale para o exame de sangue. Um laboratório comum não poderia fazê-los.
— E quantos desses testes já foram feitos? — perguntou Holiday.
— Milhares — respondeu ele. — Há vários anos a UPF os tem feito.
— Para quê?
Ele franziu a testa.
— Pesquisas.
— Em quem? Que tipo de pesquisas?
— Principalmente para estudar casos criminais. Mas...
— Vocês fazem esses testes em criminosos e acha que podem usá-los numa adolescente? — ela perguntou, com ar acusatório.
— São seguros.
— Vai me dizer que não houve nenhum efeito negativo?
— Não que saibamos.
— Então deve haver alguns que vocês não saibam! — Holiday disse com rispidez.
— Eu tenho que fazê-los, Holiday. É a coisa certa. Eu sei disso. Por favor, não tente me deter, porque eu não vou deixar.
Kylie viu lágrimas aparecem nos olhos de Holiday e ficou arrasada ao ver que estava fazendo a amiga sofrer, mas tudo dentro dela dizia que era a coisa certa a fazer.
Ela olhou para o agente.
— Você trouxe os papéis que eu pedi?
— Que papéis? — perguntou Burnett.
— Um documento da UPF com a promessa de que, se provarem que eu pertenço a uma raça especial, vocês vão fazer com que nossa espécie seja reconhecida pelo mundo sobrenatural.
— Mas e depois? — Hayden apareceu de repente, parando de pé num canto. — Vocês vão insistir para que todos se apresentem como voluntários para fazer esses testes?
O agente da UPF pareceu perplexo com a aparição de Hayden, mas não se deixou abalar.
— Vamos precisar confirmá-los com pelo menos outro membro da mesma espécie. Mas depois que tivermos Kylie e essa outra pessoa em nossos registros, tudo o que exigiremos será um exame de sangue para que a pessoa seja registrada.
Hayden olhou para Kylie e ela sabia no que ele estava pensando.
— Você não tem que fazer isso — disse ela. Colocar a sua própria vida em risco era uma coisa, pedir que alguém fizesse isso era outra.
— Sim, eu tenho. Você estava certa. É hora de mudar as coisas. — O olhar de Hayden se voltou para o agente. — Você já tem mais uma pessoa.
O agente apertou as sobrancelhas ao mesmo tempo em que Lucas olhou com admiração para o padrão de Hayden.
— Eu ainda não gosto disso. E se eles não mantiverem a palavra? — Lucas perguntou.
Kylie olhou para Lucas, depois para Burnett e implorou com o olhar para que ele falasse alguma coisa. Ele nunca tinha deixado de ser leal à UPF e ela confiava mais na opinião dele do que ele imaginava.
— Eles não fariam isso — disse Burnett.
* * *
O quarto estava frio e lembrava muito a visão que Kylie tivera com a avó. Mas ela procurou se apegar à certeza de que Lucas, Burnett e Holiday esperavam do lado de fora. Primeiro, ela teve que vestir uma camisola de hospital. Horrorosa.
A enfermeira se aproximou.
— Vou ter que aplicar algumas injeções para entorpecer você. É mais ou menos como a anestesia que você tomaria para tratar um dente. Precisamos tirar sangue de sua artéria radial para fazer esse teste, por isso é um pouco mais desconfortável do que um exame de sangue comum. Mas essas injeções devem ajudar.
A enfermeira estava certa, era mais desconfortável. Kylie não sabia se as injeções tinham ajudado, mas assim mesmo doeu muito. Ela fechou os olhos com força, esperando que o exame acabasse.
Em poucos minutos, tudo terminou. Antes de Kylie ser levada para outra sala, onde fariam a tomografia do cérebro, deixaram Lucas, Holiday e Burnett entrarem. Ela sabia que tinham feito o exame no cérebro de Hayden primeiro.
— Hayden está bem? — Foi a primeira coisa que ela quis saber quando eles entraram.
— Acabei de vê-lo — disse Burnett. — Está bem, disse que foi moleza.
Kylie assentiu. Holiday ainda não parecia feliz.
— Você ainda pode desistir.
— Holiday, eu vou fazer.
A fae suspirou como se estivesse exasperada e colocou a mão sobre a barriga.
— Espero que este bebê não seja tão teimoso quanto você.
Kylie olhou para Burnett e sorriu.
— Com o pai sendo quem é, eu diria que você não tem a menor chance de que ele não seja teimoso.
— Ei, eu não sou tão ruim assim! — Burnett sorriu, mas ela tinha certeza de que o sorriso era forçado. Ele estava tentando aliviar o clima, mas a preocupação brilhava em seus olhos também.
Em poucos segundos, Burnett e Holiday saíram da sala. Lucas ficou para trás e aproximou-se da cama. Ele pegou a mão dela em que havia um pequeno esparadrapo e roçou o polegar sobre o curativo. Ela podia apostar que ele estava pensando na cura que ela ministrara nele.
— Quando tudo isso acabar, precisamos conversar. Não me agrada que você não tenha me contado o que planejava fazer, ou que o outro professor fosse um camaleão. E, eu sei, eu não merecia que você me dissesse nada na época. Mas você estava certa quando você me disse naquele dia que não precisávamos ter segredos um com o outro. Eu não quero que mais nada se interponha entre nós.
Ela engoliu em seco.
— Eu também não.
De repente, Kylie se lembrou de algo.
— Você ia se encontrar com a sua avó para o chá!
Ele balançou a cabeça.
— Isso é mais importante.
— Não, não é, Lucas. Você tem que entrar para aquele Conselho.
Ele franziu a testa.
— Eu não desisti. Só adiei o momento de falar com ela. — Ele suspirou. — Mas não me importo com isso. Sobre entrar para o Conselho ou não. Eu não vou te perder.
— Tudo bem.
Uma enfermeira entrou
— Nós vamos levá-la agora.
Lucas fez uma expressão preocupada, mas soltou a mão dela.
Kylie se recusou a ser levada numa cadeira de rodas para o laboratório onde o exame seria feito. Ela não estava doente. Mas se certificou de que a camisola estava amarrada para não dar a chance de que todos vissem a sua calcinha cor-de-rosa.
Holiday apertou a mão dela antes que entrasse no laboratório. Burnett lhe apertou o ombro. Lucas, parecendo em parte contrariado, em parte muito preocupado, ficou para trás. A enfermeira entrou na frente dela numa sala, Kylie virou-se para segui-la e foi puxada de volta.
Sentiu a boca de Lucas pressionada contra a dela por um instante. As palavras “eu te amo” estavam na ponta da língua, mas ela não as disse. Não queria que ele pensasse que o medo do que estava para acontecer fosse a única razão para que ela as dissesse. E depois havia aquela pequena dúvida de que, se ele soubesse disso agora, talvez não se esforçasse tanto para entrar no Conselho.
A porta se fechou atrás dela. Um arrepio percorreu sua espinha, mas não por causa da presença de um espírito; a sala estava simplesmente gelada. Kylie olhou ao redor, notando as paredes descoradas da sala. Não havia nem um pingo de cor ali. Tudo era branco ou cinza esbranquiçado.
— Me diga — disse a enfermeira —, alguma vez você já fez uma ressonância magnética?
Kylie assentiu.
— Quando tinha pesadelos.
— Bem, essa é muito parecida. A máquina faz um barulho um pouco alto e você pode sentir um certo desconforto, mas vai precisar permanecer completamente imóvel. Vai demorar cerca de dez minutos para acabar o teste. Você não tem claustrofobia, tem?
— Na verdade, não — disse Kylie, mas depois se lembrou de quando esteve no pequeno túmulo com as três garotas mortas. Mas, na realidade, tinham sido mais as garotas mortas do que o pequeno espaço que a assustara.
— Ótimo! — disse a enfermeira. — Aqui estão os tampões de ouvido. Agora suba aqui e vamos acabar logo com isso.
Kylie colocou os tampões de ouvido e engoliu uma súbita sensação de ansiedade.
Nos recônditos da sua mente, ela ouviu as palavras do pai. Mas logo. Logo vamos descobrir isso juntos.
O coração de Kylie disparou, batendo no compasso do medo, mas ela subiu na maca e se deitou, tentando lutar contra o frio, e mesmo assim desejando poder sentir um outro tipo de frio. O de seu pai. Ouvir uma palavrinha dele dizendo que ela não estava prestes a morrer seria muito bom.
Ela foi levada para dentro da máquina. Seu nariz estava a poucos centímetros do teto e seus braços tocavam as laterais. Era uma máquina, não um caixão, ela disse a si mesma. Mas foi para lá que a mente dela a levou: para um caixão fechado.
O barulho começou. Mesmo com fones de ouvido, o som ficou tão alto que ela mal conseguia ouvir os próprios pensamentos. Ela fechou os olhos. Tentou não ouvir.
Tentou não pensar. Ela não tinha certeza de quanto tempo estava lá quando sentiu uma leve cócega na cabeça. As cócegas aumentaram até que se tornaram uma dor. Uma dor aguda.
Ela abriu a boca para gritar, tentou se mexer, mas não conseguiu.
De repente, sentiu como se uma luz explodisse em sua cabeça e tudo o que pôde ver foi escuridão.
Logo, querida, logo vamos estar juntos.
Capítulo Trinta e Oito
Alguém estava segurando a mão dela. À distância, vozes raivosas se sobrepunham. Uma ela reconheceu. A de Burnett. Kylie abriu os olhos, sem saber onde estava. No momento em que viu o teto branco, lembrou-se da sala sem cor. A grande máquina branca.
A dor.
Não a sentia mais.
— Graças a Deus! — Kylie virou-se para o lado de onde vinha a voz de Holiday. Ah. Era Holiday quem segurava a mão dela. Com um ar de preocupação no rosto, a amiga apertou o botão de um controle remoto e chamou a enfermeira.
— Ela está acordada.
— O que aconteceu? — perguntou Kylie.
— Você desmaiou. — Holiday tinha lágrimas nos olhos. — Assustou todo mundo! Você está bem?
— Consigo sentir os dedos das mãos e dos pés — disse Kylie.
A porta se abriu e Burnett, com uma expressão de grande irritação, irrompeu no quarto. Logo atrás dele estava um homem vestindo um jaleco branco. E atrás do médico estava o agente grisalho. Depois dele estava Lucas — parecendo muito preocupado. E por último, Hayden Yates, com uma aparência igualmente preocupada.
— Eu disse que ia ficar tudo bem. — O médico olhou para Kylie e depois para Holiday. — Ela está falando?
— Sim — disse Holiday.
— Está se mexendo? — ele perguntou a Holiday.
— Sim, e eu posso ouvi-lo também — adiantou-se Kylie.
Ele franziu o cenho para Kylie.
— Claro que pode.
— Espere aí — disse Kylie. — O teste já acabou?
O médico balançou a cabeça.
— Ele estava acabando quando você começou a sentir dor.
— Não sabemos nada ainda? — ela perguntou ao outro agente.
— Precisamos de outros especialistas para interpretá-lo — disse ele. — Mas parece que você tem as marcas de todos os seres sobrenaturais, assim como o senhor Yates.
Kylie sentou-se um pouco.
— Isso nos qualifica como uma nova espécie?
— Tenho a impressão de que sim, mas, como eu disse, o exame tem que ser analisado por especialistas.
Kylie mordeu o lábio.
— Quanto dessas marcas vocês já conheciam graças aos testes no passado?
A sala ficou em silêncio. Kylie viu os ombros de Burnett ficarem tensos.
O agente fez uma pausa.
— Os resultados que tínhamos apontavam para a mesma coisa, mas noventa por cento das evidências foram destruídas pelos médicos e administradores responsáveis pelo estudo, para esconder os erros cometidos. Quanto às evidências que tínhamos, não sabemos se eram válidas.
— Se vocês suspeitavam do que foi feito, por que não tentaram fazer da forma certa até agora? — perguntou Hayden.
— Nós tentamos — explicou o agente. — Talvez não com empenho suficiente, mas em nossa defesa posso dizer que, se tem uma coisa em que a espécie de vocês é imbatível é em se esconder! Procuramos pelos familiares dos poucos que ainda tínhamos em nossos arquivos. Eles e as famílias haviam desaparecido. A certa altura, pensamos em colocar avisos pedindo às pessoas que entrassem em contato, mas, por mais que pensássemos, iria sempre parecer mais uma caça às bruxas. E considerando o que já tinha acontecido, simplesmente não parecia a coisa certa a fazer.
— E quanto tempo vai ser preciso para que essa informação seja divulgada no mundo sobrenatural? — perguntou Kylie.
— Provavelmente algumas semanas, no máximo. Também vamos anunciar a investigação interna sobre a UPF e nossos erros do passado. Qualquer pessoa afetada pelos estudos ou seus familiares vão receber uma indenização se eles se apresentarem.
Kylie pensou na avó.
— O dinheiro não vai trazer de volta a vida dessas pessoas.
— Não — concordou o agente. — Mas é a maneira humana de reconhecer as irregularidades da organização. E como vivemos num mundo humano, é o que de melhor podemos fazer.
— Por quê? — perguntou Kylie.
— Por que o quê? — O agente pareceu não entender.
— Vocês não iriam admitir suas irregularidades e oferecer indenizações se não houvesse uma boa razão. Alguém está ameaçando expor vocês. Quem é?
A reação do agente foi fria.
— O importante é que isso está sendo feito.
Kylie teve a sensação de que eles não conheciam a pessoa que os pressionava. Mas ela tinha a sensação de que conhecia. Poucos minutos depois, o médico e o agente saíram.
Kylie olhou para Burnett.
— Você não sabia nada sobre isso, não é?
Ele balançou a cabeça.
— Nadinha. — Era mentira, ela podia ver. Ele estava tentando fazer a UPF agir direito com ela o tempo todo. Ela sabia que amava aquele homem.
Kylie olhou para Hayden e sorriu. Hayden retribuiu o sorriso. Eles tinham conseguido. Bem, com a ajuda de Burnett. Ela sabia que não tinham terminado completamente ainda; ainda tinham que convencer os anciãos a confiar que as coisas seriam diferentes, e ainda teriam que contar sobre Jenny, mas pelo menos agora os camaleões não teriam que se esconder.
Na manhã seguinte, Lucas apareceu às cinco horas da manhã. Kylie ainda estava dormindo quando ele pulou pela janela. Ele tinha remarcado a reunião com a avó para aquela manhã e só queria ver como Kylie estava antes de sair. Quando ele começou a se afastar, ela o puxou de volta para um beijo.
Quando o beijo terminou, ele estava emitindo o zumbido familiar.
— Você está tentando me convencer a ficar? — ele perguntou, com os olhos brilhantes de desejo e paixão.
— Não — ela disse, e riu. — Vá. Podemos fazer isso mais tarde.
— Promete? — ele perguntou.
— Prometo — disse ela, com sinceridade. Ela não disse a ele que a situação agora era outra, que ela tinha resolvido aceitá-lo de qualquer maneira. No Conselho ou fora dele. Se ele não entrasse e ficasse ressentido com ela mais tarde, ela teria que enfrentar o ressentimento dele. Mas ela o amava demais para afastá-lo.
Quando Kylie escolhia as roupas no armário, Della entrou no quarto de Kylie.
— Essa foi rápida! — disse Della, referindo-se à breve visita de Lucas.
— Ele só veio para me dizer que está indo se encontrar com a avó.
— Eu sei, eu ouvi — ela respondeu com um ar petulante.
Kylie fez uma careta.
— Você sempre pode cobrir os ouvidos e não ouvir, você sabe.
— E você poderia parar de bancar a amiga de Steve — ela sibilou.
Kylie apenas balançou a cabeça.
— Olha, eu preciso me vestir. Vou com Hayden contar a Burnett e Holiday sobre Jenny.
— Burnett vai ficar possesso!
— Eu sei. Mas normalmente, quando não está mais possesso, ele até que é razoável.
— Verdade — concordou Della. — Mas é quando está possesso que ele me assusta.
Kylie riu. Della olhou para ela.
— Por que você conversou com Steve pelas minhas costas?
De cara feia, Kylie perguntou:
— O que eu deveria fazer? Ele pagou aquela hora com sangue.
— Dizer pra ele que não ia. Acredite ou não, isso é geralmente suficiente para fazê-lo desistir.
Talvez isso tenha mudado, Kylie pensou.
— O que ele queria, afinal? — Della se jogou na cama de solteiro de Kylie.
Kylie revirou os olhos.
— Você sabe o que ele queria. Conselhos sobre como tratar você.
— E o que você disse a ele? E lembre-se que eu vou saber se você mentir.
Kylie pegou a escova e começou a pentear o cabelo.
— Eu disse para ele ter paciência. Para lutar por você, porque você vale a pena.
— Conselho idiota.
Kylie baixou a escova.
— Não é idiota. É verdade. Você vale a pena.
Aproximando-se da cama, ela abraçou a vampira.
— Por que tantos abraços ultimamente? — reclamou Della.
— Eu te amo — disse Kylie, e sorriu.
— Você já me disse. Não. Sério. O que aconteceu?
Ela não podia mentir para Della, então amenizou a verdade.
— Você diz às pessoas que as ama porque, se alguma coisa acontecer, elas vão saber o que você sentia. — Se ela ao menos conseguisse encontrar coragem para dizer isso a Lucas...
Della fez uma cara de suspeita.
— O que você acha que vai acontecer?
— Espero que nada — disse Kylie, pensando que tinha sobrevivido aos testes da UPF, que não tinham sido tão assustadores quanto ela imaginara, mas ainda tinha que enfrentar Mario, e isso podia não ser tão fácil assim.
— O que você quer dizer? — perguntou Della.
Uma leve batida soou na porta da cabana e salvou Kylie de dar qualquer explicação.
— Hayden chegou. Tenho que ir.
Quando Kylie saía, ouviu o comentário de Della.
— Perry está certo. Você tem segredos. Mas não pode escondê-los de nós!
Sim, ela poderia, pensou Kylie.
Em breve vamos estar juntos. As palavras do pai sussurraram na sua cabeça. Ela mordeu o lábio.
Se você não se importa, papai, eu gostaria de ficar por aqui por uns cem anos antes disso...
Hayden e Kylie entraram no escritório. Burnett os recebeu na porta. Holiday estava de pé atrás de sua mesa, parecendo preocupada.
— O que foi? — eles perguntaram ao mesmo tempo.
— Nada, na verdade — disse Kylie.
— Precisamos conversar — disse Hayden.
Com um olhar preocupado, Burnett fez sinal para que eles se sentassem. Tão logo Kylie e Hayden se sentaram, Burnett falou.
— Por acaso os anciãos não gostaram de saber que vocês dois foram testados?
— Não é isso — disse Hayden. — Supostamente eles entraram em contato com todos os anciãos dos outros complexos e o consenso é que isso foi bom. É claro que eles ainda desconfiam muito da UPF. Isso não é algo que mude da noite para o dia. Existem muitas brechas ainda. Confiança a ser conquistada. — Ele olhou para Kylie. — Eu, pessoalmente, acho que alguns anciãos têm apenas vergonha de ter sido preciso uma jovem de 16 anos para nos forçar a enfrentar nossos medos.
—Eu não fiz isso sozinha — Kylie disse, dando a Hayden seu crédito.
— Não, mas eu não teria ido se você não tivesse me acompanhado. — Hayden olhou para Burnett e Holiday. — Mas não é por isso que estamos aqui.
— Por que eu acho que não vou gostar do que vou ouvir? — Burnett se sentou na borda da mesa de Holiday.
— Não comece a fazer conjecturas. — Holiday tocou a perna dele.
— Primeiro, quero dizer que assumo total responsabilidade por isto — disse Hayden.
— Não — contestou Kylie. — Se alguém é culpado aqui, sou eu.
— Ainda não estou gostando — Burnett disse com rispidez. — Mas gostaria de saber do que é que eu não estou gostando, então eu poderia fazer o que Holiday disse e parar de fazer conjecturas!
— Lembra quando eu disse que um dos camaleões ajudou Derek e eu a fugir?
— Sim — disse Burnett, e Holiday assentiu.
— Essa garota era a irmã de Hayden.
— E...? — disse Burnett.
— Ela fugiu.
— E...? — Burnett retrucou, acenando para Kylie acelerar.
— Ela correu para cá — disse Kylie.
— Para cá? — perguntou Burnett. — Ela está aqui agora?
Kylie e Hayden assentiram.
— Como ela poderia ter... — Ele fez uma careta. — A noite em que o alarme disparou?
Ambos assentiram mais uma vez.
Kylie viu um dos cristais da sala cintilar. Por alguma razão inexplicável, sentiu que Jenny tinha passado.
Kylie encontrou os olhos de Burnett.
— Por favor, não fique muito bravo nem comece a gritar. Não por minha causa ou de Hayden, mas por Jenny. Você vai deixá-la nervosa.
— Ela estava aqui este tempo todo e só agora é que vocês decidiram me contar? Vocês me deixaram vasculhar todo este maldito acampamento por quase 24 horas sabendo o tempo todo que era ela? — Ele se levantou da mesa e começou a andar para um lado e para o outro.
Holiday se levantou e, quando ele passou por ela, ela colocou uma mão apaziguadora no braço do vampiro, fazendo-o parar.
— Nós não soubemos imediatamente. Ela estava escondida, ela... — Kylie não via nenhuma razão para envolver Derek. — Eu só soube que ela estava aqui no dia seguinte, e Hayden não sabia até eu contar pra ele.
— Ela ainda está aqui? — perguntou Burnett num rosnado.
— Sim — disse Kylie. — E ela gostaria de ficar. Para terminar a escola.
— Será que os pais a matriculariam? — ele perguntou.
Hayden cerrou os dentes.
— Eu não sei como eles vão se sentir quando descobrirem que ela está aqui. Com a notícia da UPF, talvez permitam. Se não permitirem, vou tomar medidas legais para conseguir a custódia dela.
— Ela está aqui agora? Nesta sala? — perguntou Holiday.
Kylie assentiu.
— Jenny.
Jenny apareceu, de pé contra a parede mais distante de Burnett. Kylie não sabia se era apenas a expressão acalorada e indecifrável de Burnett, ou se era porque Jenny sabia que ele fazia parte da UPF, mas ela viu o mais puro pânico no olhar da garota.
Burnett deve ter reconhecido o olhar, porque imediatamente a sua postura se suavizou. Ele a cumprimentou com um aceno de cabeça.
— Olá, Jenny. Bem-vinda a Shadow Falls.
Kylie viu Holiday sorrir com orgulho da transformação do seu futuro marido. Sem dúvida ela o estava ensinando a moderar sua abordagem. E estava funcionando.
Kylie só esperava que isso significasse que as chances de Jenny ficar em Shadow Falls eram boas.
Holiday e Hayden teriam uma videoconferência com o avô de Kylie para falar sobre a possibilidade de Jenny permanecer no local. Por ora, ela iria ficar com Holiday, que pretendia apresentar Jenny a todos na hora do almoço.
Kylie sugeriu que ela apresentasse Jenny aos seus próprios amigos primeiro. Talvez assim a garota não achasse que todos em Shadow Falls eram pessoa rudes que não paravam de encará-la.
Kylie fez alguns telefonemas e pediu a todos que a encontrassem no escritório às 10h45. Ela não contou a ninguém o que era, mas tinha fé de que todos iriam ao encontro.
Quando Kylie deixou o escritório, Della a encontrou lá fora e elas foram esperar pela Hora do Encontro. Miranda chegou correndo com Perry.
— Então, para que é essa reunião?
— Logo vão saber — Kylie disse, não querendo explicar com tantos ouvidos ao redor. Como Della já sabia sobre Jenny, ou sobre a Mulher-Maravilha como Della apelidara a moça, ela lhe disse a verdade.
— Eu sei! — disse Della, provocando Miranda.
Kylie franziu o cenho para Della.
— Por que você contou a ela e não a mim? — perguntou Miranda.
— Eu prometo que você vai entender mais tarde.
Miranda fechou a cara.
— Você não vai embora de novo, não é? Porque você me prometeu que não faria isso. — Lágrimas apareceram nos olhos da bruxa.
— Eu não vou embora — Kylie assegurou. Não por vontade própria, Kylie pensou, e então pensou novamente na espada e no que aquilo significava.
— Você vai abrir o jogo e contar que você e Hayden são amantes — disse Perry.
Kylie fez uma careta para ele.
— Ei, estou apenas supondo. Sei que há algo acontecendo entre vocês dois.
Lucas apareceu logo em seguida e rosnou para o metamorfo pelo comentário. Em seguida, Lucas se inclinou e a beijou.
— Como foi na casa da sua avó? — ela perguntou baixinho.
— A janela está aberta! — Ele a beijou novamente. — Ela vai falar com ele para convencê-lo a me receber. Ele pode dizer não, mas já é um começo.
— É um grande começo! — Kylie soltou um gritinho de felicidade e, por apenas alguns minutos, teve certeza de que tudo em sua louca vida ia dar certo.
Então Chris, apresentador do grande evento, tirou a cartola de trás das costas e seu olhar começou a varrer a multidão, parando em Kylie. Ela queria gritar, Já chega! Mas então o olhar dele se desviou um pouco mais para a direita.
Ele estava olhando para ela? Ou ele estava olhando...
— Ok — disse Chris. — Um dos nossos próprios vampiros contribuiu com um pouco de sangue. Já não era sem tempo.
Ah, inferno, Kylie pensou, e ela teve a sensação de que sabia quem tinha pago com sangue pela hora com Della. E ela não tinha certeza se isso era uma coisa boa.
— Della, minha cara, você vai ter a satisfação de passar uma hora com Steve, o incrível metamorfo!
O queixo da vampira caiu. Ela olhou ao redor, com os olhos brilhantes de fúria, em busca do culpado.
Steve atravessou a multidão e caminhou até a vampira contrariada com um andar confiante.
Kylie sabia que tinha dito a ele para lutar por Della, mas não esperava que ele fizesse isso na frente de todo mundo. Della, que estava detestando a exposição, provavelmente revidaria a afronta.
— Está pronta? — perguntou Steve.
Della fez uma careta.
— Não vou passar uma hora com você!
Steve nem se mexeu.
— Eu doei sangue bom para ficar com você.
— Então você o desperdiçou!
— Não. — Steve olhou para Chris e depois para os quarenta e tantos estudantes que apreciavam o espetáculo.
— Quais são as regras, Chris? Se não me engano todos concordaram em honrar o pagamento com sangue, não é verdade?
Chris parecia chocado ao ver que Steve se atrevia a discutir com Della. Mas ele balançou a cabeça.
— Sim, todos concordaram.
Steve virou-se para Della.
— Está pronta?
Della ergueu o queixo e seus olhos desferiram dois punhais na direção do rapaz.
Perry se inclinou e cochichou para Kylie:
— Se ela matá-lo, a culpa é sua.
Capítulo Trinta e Nove
Que inferno!, pensou Kylie, preparando-se para intervir.
— Eu não vou! — vociferou Della, colocando as mãos nos quadris.
— Vamos ver se não vai. — Steve deu de ombros e fez que ia embora, mas então ele se virou, pegou Della pelas pernas e jogou-a sobre o ombro, começando a andar.
Todo mundo começou a rir e a gritar.
Kylie não riu. Ela via uma vampira furiosa escorando as mãos no traseiro de Steve e olhando para cima. Seus olhos estavam verdes de fúria, mas havia algo mais, também. Algo que dizia a Kylie que o traseiro de Steve não estava prestes a ser mastigado.
A cada fração de segundo que passava, Kylie se sentia mais confiante de que Della não iria matar Steve; ela estava, na verdade, entrando na dele.
Caramba!, Kylie pensou. Talvez ela realmente fosse boa naquele negócio de dar conselhos para casais.
— Posso ficar invisível? — Jenny perguntou a Kylie enquanto estavam na porta do refeitório com Holiday.
— Eu não recomendo — disse Kylie. — Apenas sorria. Acredite ou não, você vai se acostumar com isso.
O encontro com Jenny e os amigos de Kylie tinha transcorrido sem problemas. Todo mundo realmente pareceu gostar dela. Derek, naturalmente, mostrou mais interesse.
Lucas chegou por trás dela e disse:
— Outro segredo.
Kylie ofereceu um rápido “desculpe” e nada mais. Tinha a sensação de que mantê-lo longe até que ele se reunisse com o Conselho ia ser difícil. Para ambos. Mas ela estava determinada.
— Eles não sabem que é falta de educação ficar encarando? — perguntou Jenny.
— Sim, mas simplesmente não conseguem se conter — respondeu Kylie.
Hayden se levantou da sua mesa e veio ao encontro de Jenny.
Ele não estava sorrindo e ela viu a atitude de irmão mais velho protetor na maneira como ele olhou para todos os alunos.
— Comam e parem de olhar para ela com essas caras de idiotas! — ele ordenou.
Holiday falou em seguida.
— O senhor Yates está certo. Isso não é maneira de acolher uma nova aluna.
Kylie e Jenny olharam para Holiday com um ar de interrogação e ela sorriu e acenou com a cabeça. Então ela se virou para a multidão de campistas.
— Pessoal, gostaria que vocês conhecessem Jenny Yates. Ela é a irmã caçula de Hayden. Então, tratem-na mal e vão se arriscar a ter lição de casa extra.
— Ela é da mesma espécie que Kylie? — alguém perguntou.
Hayden deu um passo adiante.
— E da mesma espécie que eu.
Todos os olhos se estreitaram e suspiros de surpresa encheram a sala de jantar. Kylie foi se sentar com Hayden e Jenny, no que ela percebeu ser a mesa dos camaleões. Um sentimento de missão cumprida encheu seu peito. Essa era a parte da sua missão que ela tinha realizado.
Claro, todos os amigos de Kylie se juntaram a eles rapidamente. Lucas inclusive.
E isso foi excelente, porque, embora fosse bom ter alguém como ela por perto, o padrão de uma pessoa não devia ditar quem era bem-vindo em sua vida ou em sua mesa no almoço.
* * *
Depois, naquela tarde, eles foram até o lago para nadar porque, com a chegada do outono, a água logo estaria fria demais. Kylie quase recusou o convite, mas, quando viu que Della queria ir, mudou de ideia. Pôs seu biquíni e um vestidinho preto por cima. Enquanto todo mundo nadava, Kylie sentou-se na ponte de madeira e ligou para a mãe.
Ela não tinha conseguido se livrar da sensação de que John não era flor que se cheire. A conversa foi curta. A mãe e John estavam jantando fora num dos mais agradáveis restaurantes de Houston.
Ao desligar, Kylie ficou ali, contemplando o pôr do sol.
Só quando o sol sumiu, a noite veio e transformou o céu numa variedade de cores. Os pássaros voavam de uma árvore para outra, deleitando-se com os insetos. Kylie estava prestes a se juntar aos outros à beira da água quando o frio do espírito a envolveu. Kylie olhou ao redor e o espírito se sentou na beira da ponte, como se estivesse num estado de estupor, parecendo perdido, parecendo muito triste.
— Eu sei quem você é, Lucinda — disse Kylie. — Você era a nora de Mario.
— Eu sei. Já descobri essa parte da história. As peças vieram uma de cada vez, como num quebra-cabeças. Eu quase podia ver como foi toda a minha vida, mas, quando essas últimas peças se encaixaram, vi a imagem toda. — Sua voz soava tensa, como se ela estivesse a ponto de romper em lágrimas. — Eu não gostei dela.
Após uma longa pausa, ela olhou para Kylie.
— Eu vivi uma vida terrível. Fiz coisas terríveis. Machuquei tantas pessoas! E o meu próprio filho pagou o preço. Eu deveria ter vivido para ser um bom exemplo para ele.
Kylie olhou para o céu iluminado. Os tons de ouro e laranja haviam desaparecido e o céu estava colorido com dez diferentes tons de rosa. Ela observou os pássaros reunidos em torno da ponte. Será que eles podiam enxergar os mortos, como ela?
Vendo a tristeza nos olhos do espírito, Kylie disse:
— Ele está no céu.
O espírito sacudiu a cabeça.
— Acho que não. Tenho certeza de que o avô ensinou a ele todas as suas maldades. Ele era tão jovem e impressionável! Depois o próprio avô o matou.
O clima em torno do espírito — devastação, destruição — fez o coração de Kylie se contrair.
— Você foi um exemplo para ele. Ele morreu salvando outra pessoa, assim como você fez para salvá-lo. Você ensinou isso ao seu filho. E foi o que salvou a alma dele.
Os olhos do fantasma ficaram molhados de emoção.
— Você tem certeza? Como sabe disso?
Kylie hesitou, preocupada com a possibilidade de o espírito culpá-la.
— Ele morreu para me salvar.
O espírito ficou ali, como se perdido em pensamentos por um segundo.
— Então é por isso que eles me enviaram para cá?
— Quem te enviou para cá? — perguntou Kylie, quase certa de que já sabia, mas querendo ouvir assim mesmo.
— Os anjos da morte.
— É a voz deles que eu ouço de vez em quando?
— Só pode ser.
— Mas por que eu os ouço mais do que... Holiday e outras pessoas que veem ou falam com fantasmas?
— Eles vigiam os protetores mais de perto. Têm que fazer isso porque só vocês podem lutar para proteger os outros.
— Eles querem que eu mate Mario ou é só você quem quer isso? — Kylie esperava que ela estivesse errada em suas suposições.
— No começo eu pensei que fosse só eu, mas depois percebi que era o plano deles, também.
O coração de Kylie gelou.
— Ele tem de ser detido. Você é a escolhida. Ninguém mais foi capaz de detê-lo.
— Mas, se eu não posso me proteger, então... quem estarei protegendo quando lutar com ele?
— Eu não posso ver esse futuro.
— Mas e se eu não conseguir fazer isso? Não sou tão boa assim com a espada.
— Então você vai morrer tentando. Às vezes isso é tudo o que podemos fazer.
Kylie sabia que o espírito se referia a si mesma, também. Ela tinha morrido tentando salvar o filho. No entanto, por mais que Kylie lamentasse por ela, o medo a dominou.
— Não estou pronta para morrer.
— Então você tem que praticar. Essa é outra razão da minha presença aqui. Para ajudar você a lutar, porque, se você falhar, coisas ruins vão acontecer para muitas pessoas. Pessoas de quem você gosta. Pessoas que confiam em você para protegê-las.
Ela sentiu seu sangue de protetora correr mais rápido.
— Então eu vou ter que vencer — disse Kylie. Porque, de jeito nenhum, ela deixaria Mario ferir ninguém que ela amava.
— O quê?
Kylie olhou por cima do ombro ao ouvir a voz de Lucas. Ela não pôde deixar de reparar que ele estava sem camisa. O cabelo ainda molhado. Algumas gotas de água espalhadas pelo peito. Ele estivera nadando, pouco antes. Devia ter vestido a calça jeans sobre a sunga. Ela podia ver a borda da sunga acima da cintura do jeans.
O olhar de Kylie ultrapassou esse ponto, na altura do umbigo, onde ela passara as mãos para curá-lo, e depois só para tocá-lo.
— Você está bem? — ele perguntou.
Ela assentiu com a cabeça, mas era mentira. Seu coração estava pesado diante da possibilidade de morrer, de outros sofrerem por ela não conseguir enfrentar o desafio. E foi então que, ao vê-lo, ela percebeu o quanto queria viver.
Ela olhou para a água e ouviu os passos quase silenciosos na ponte, enquanto Lucas se aproximava.
— Tem companhia? — ele perguntou, agora de pé ao lado dela.
Ela olhou ao redor.
— Não, ela já se foi.
O telefone dele tocou e ele tirou o aparelho do bolso, como se estivesse à espera de uma chamada. Ele franziu o cenho para a pequena tela e depois desligou.
— Alguma coisa errada? — perguntou Kylie.
— Não, é só Will.
— Ele ainda liga pra você?
Lucas assentiu.
— Ele não segue as regras antigas.
— É um bom amigo — disse ela.
— É. — Lucas colocou o celular no bolso. — Eu estava esperando que fosse a minha avó.
Ela viu a preocupação nos olhos dele.
— Para falar do encontro com o ancião?
— Isso e também porque ela me disse que não estava se sentindo bem esta manhã. Liguei agora há pouco e ela não atendeu. Provavelmente saiu para jogar bingo. Ela é fanática por bingo. Bingo e jardinagem, sua maior paixão.
— Você realmente a ama, não é? — perguntou Kylie, ouvindo a devoção na voz dele quando falava sobre a avó.
Ele suspirou do jeito que uma pessoa suspira quando está preocupada que o que está prestes a dizer vai fazê-la parecer fraca.
— Ela ficou ao meu lado quando os meus pais decidiram que eu era um problema. Ela foi a melhor coisa que já me aconteceu, mas não percebi isso na época. Eu me sentia abandonado por eles. Fiz da vida dela um inferno por um tempo. Então, quando meus pais se separaram e meu pai veio me buscar, minha avó fez de tudo para me manter com ela. Eu não seria quem sou hoje se ela não tivesse feito o que fez.
— Você tem sorte de tê-la. — Kylie se sentiu um pouco culpada por não gostar da avó dele e por tê-la evitado no domingo dos pais.
— É. Tenho sim — disse ele. Eles ficaram em silêncio. — Estou ensaiando o que vou dizer.
Ela olhou para ele.
— Dizer a quem?
— Ao ancião que espero conseguir encontrar.
Ela sorriu.
— Isso é bom.
— Eu vou ser aceito. Porque, se isso é o que preciso para ter você de volta, então é o que eu vou fazer.
Ela engoliu em seco.
— Não, você precisa fazer isso porque essa é a sua missão.
— Isso também — disse ele. Ele estendeu a mão e afastou uma mecha de cabelo do rosto dela. — Mas ultimamente, ando achando que você é a minha missão.
Ele se moveu e colocou as mãos em volta da cintura dela.
Ela colocou a mão no peito de Lucas, sentiu seu calor de lobo, as batidas do coração dele.
Ele se inclinou e beijou-a. Ela sabia que não deveria deixar que isso acontecesse, mas ela queria, precisava dele. O gosto dos lábios dele e o toque molhado da sua língua a fizeram se sentir no céu, mas o tipo de céu que se encontra em vida, não na morte.
E ela queria escolher a vida. Esperava que pudesse.
Ela ouviu o zumbido vindo dele instantaneamente, e seria tão fácil se deixar atrair por ele...
Ele terminou o beijo, sorriu para ela e suspirou.
— É melhor eu ir antes que seja tarde demais.
Ela o observou se afastar e depois olhou para o céu cor-de-rosa escuro, ansiando com todo o seu ser para que não fosse levada deste mundo antes de ter conhecido a vida. E ela realmente esperava que Lucas fosse parte dessa vida.
Naquela noite, depois de ouvir Della e Miranda brigando nas últimas duas horas, Kylie saiu do banheiro enrolada numa toalha, e foi para o quarto. Mal tinha dado dois passos quando Della parou na frente dela, impedindo-a de passar.
— Não. Resolvam isso sozinhas! — disse Kylie, certa do que Della queria. — Estou cansada de ser o juiz de vocês!
Della fez uma pausa, sorriu com malícia, e então disse:
— Tudo bem.
Contornando Della, Kylie fechou a porta do quarto com um pouco mais de força do que o normal. Jogou a toalha sobre a cômoda e se virou para a cama onde tinha deixado o pijama. Só que não era apenas o pijama que estava sobre a cama.
Lucas, com os olhos arregalados, estava sentado aos pés da cama, a cerca de quatro metros de onde ela estava, completamente nua.
Ela gritou.
Ele riu.
Ela correu para a toalha.
Quando já estava enrolada nela, Kylie olhou para Lucas, ainda sorrindo, e dele para a porta.
— Eu vou matar Della!
Ele riu de novo.
— Acho que eu vou ter que protegê-la do seu ataque.
— Eu tentei te contar! — Della gritou, rindo, e Miranda riu com ela.
A fúria de Kylie desapareceu e se transformou em vergonha, quando ela viu o jeito sensual como Lucas olhava para ela, suas emoções se transformando em outra coisa.
Ele se levantou e começou a andar na direção dela.
— Você é linda demais!
Ela segurou com firmeza a toalha.
Ele parou na frente dela.
— Eu só vim aqui para dizer que recebi um telefonema da minha avó. O ancião concordou em me receber.
Kylie sorriu.
— Mas que ótimo!
O olhar mediu o corpo dela, enrolado na toalha.
— Você não vai me deixar dar outra olhada no que há por baixo desse pedaço de algodão, vai?
Ela desviou os olhos dele.
— Não quero ser muito presunçoso, mas você sabe que, mais cedo ou mais tarde, eu provavelmente vou conseguir ver tudo isso de qualquer maneira.
— Eu sei — disse ela, e estava realmente ansiosa por isso. — Só que não com as minhas duas companheiras de quarto escutando do lado de fora.
O sorriso dele se alargou.
— Ok, então me dê apenas um beijo de despedida.
Ela assentiu com a cabeça. Ele se aproximou e em menos de dois minutos já havia partido. O beijo foi quente, molhado e delicioso. Ele tinha passado a mão por dentro da toalha e tocado as costas nuas de Kylie.
Quinze minutos depois, ela ainda estava enrolada na toalha, olhando para o teto em meio a uma aura feliz, quando o telefone tocou.
Ela o pegou, pensando que fosse Lucas.
— Não sei por que você saiu com tanta pressa! — ela brincou. Mas ela sabia, ele a queria.
— Hã, eu não saí. É Sara quem está falando.
— Ah, eu pensei que você fosse...
— Você pensou que eu fosse quem? Ou devo dizer “qual dos dois”?
Kylie corou e decidiu ser franca.
— Eu pensei que você fosse Lucas.
A linha ficou muda por um segundo e, em seguida, Sara perguntou:
— Posso perguntar uma coisa?
Será que Sara ia querer saber se ela já tinha perdido a virgindade?
— Claro, pergunte. — Pelo menos desta vez, Kylie poderia dizer que isso provavelmente iria acontecer em breve.
— Você acha que você e Trey acabaram para sempre? Tipo... no ano passado? Ou será que existe uma chance de vocês dois voltarem?
— Acabou mesmo. — Kylie agarrou o telefone com mais força. — Olha, se ele está tentando falar comigo, não vai funcionar.
— Não. Não é... isso... É que... O que você pensa a respeito de amigas que namoram um antigo namorado de outra amiga?
Kylie olhou para o teto e tentou pensar no que dizer.
— Uau! Bem, eu diria a essa amiga para ter cuidado, porque Trey tem lá seus defeitos.
Sara suspirou.
— Eu sei, mas... Ele ficou do meu lado durante toda aquela história do câncer, e você sabe... algumas pessoas merecem uma segunda chance. Eu tive. Talvez Trey mereça ter também.
Kylie ouviu algo na voz de Sara de que ela gostou. Ela ouviu a velha Sara. Kylie sorriu.
— Tem razão. Todo mundo merece uma segunda chance. E quando eu penso nisso, lembro que, antes de ele começar a surtar por causa de sexo, era um cara legal.
— Então você realmente não se oporia? — perguntou Sara, parecendo insegura.
— Não, você tem a minha bênção. Posso até cantar no casamento de vocês.
— Pelo amor de Deus! — Sara riu. — Provavelmente sou uma das poucas pessoas que sabe que você não canta nada. Lembra na sexta série, quando nossas mães nos fizeram participar dos testes para aquela peça de teatro? E você tinha que cantar. Falou duas palavras e, em seguida, vomitou no palco.
As duas riram. E Kylie percebeu que, embora ela e Sara provavelmente nunca mais fossem tão próximas quanto tinham sido um dia, Sara era uma parte da sua vida que Kylie para sempre prezaria.
Quando o riso parou, Sara limpou a garganta.
— Então, quando você vai confessar que me curou?
Kylie tentou pensar em como diria aquilo.
— Sabe de uma coisa, Sara? Se você quer acreditar que eu te curei, então pode acreditar. Mas eu não diria isso para muitas pessoas. Elas achariam que você é louca.
Na quinta-feira, Kylie treinou com Lucinda. Os três dias anteriores tinham transcorrido sem nenhum grande caos. Steve e Della estavam até se falando! Kylie não poria sua mão no fogo, mas ela apostava que a vampira e Steve estavam se encontrando às escondidas.
Jenny estava se adaptando, embora ainda se sentisse incomodada ao ver que todos a encaravam. Embora Hayden não gostasse, ela e Derek estavam andando muito juntos. Derek tinha até procurado Kylie e, basicamente, confessado que sentia alguma coisa pela garota camaleão.
A princípio, Kylie pensou que ele estava ali para ter certeza de que Kylie não queria uma segunda chance antes que ele começasse a se interessar por outra garota, mas depois ela percebeu por que ele viera procurá-la. Ele queria um conselho sobre Jenny. Ela não negou.
— Basta ser você mesmo, Derek. Você é incrível e ela só pode te adorar.
Holiday tinha ido ao médico e descoberto que a gravidez estava mais adiantada do que ela pensava. Por esse motivo, decidiram antecipar o casamento, que seria no fim de semana seguinte. Não ia ser um grande evento. Apenas a família de Holiday, os alunos e alguns colegas de trabalho de Burnett, da UPF.
Della, Kylie e Miranda ajudaram Holiday a escolher seu vestido de casamento pela Internet. Elas riram, ficaram acordadas até tarde conversando, comendo besteiras e tentando dar nomes para o bebê de Holiday. Ela realmente não queria que ele se chamasse Burnett Bankhead James Jr., e ninguém poderia culpá-la.
Kylie e Lucas se encontraram todas as manhãs, antes da data do encontro com o ancião. O homem não só tinha ouvido o que Lucas tinha a dizer, mas concordado em ajudá-lo a aperfeiçoar o discurso que faria para o Conselho, algo que ele deveria fazer na semana seguinte. Até o momento, o ancião mantinha Lucas ocupado todos os dias, debatendo e ouvindo todos os argumentos do garoto e ajudando-o com os seus conselhos sobre o que ele devia enfatizar. O que era ótimo, mas, com exceção dos breves períodos de treino, ela não tinha visto Lucas e sentia muita falta dele.
O que deixava tudo pior era que ele não a tinha tocado ou beijado desde a noite em que a vira nua. Ela sabia por quê. Quanto mais se aproximava a Lua cheia, menos força de vontade ele tinha. Ela notou a mudança nele, também, física e mentalmente. O corpo dele estava mais definido, os músculos dos braços mais pronunciados. Ela sentia a impaciência do namorado. Não que ele fosse rude com ela; ela só sentia isso, no modo como ele tinha que se conter, ao andar ou falar.
Os duelos entre os dois tinham ficado mais intensos. Não que isso a assustasse. Seus treinos noturnos com o espírito a deixaram preparada. As marcas vermelhas onde a espada do espírito tocava seu vestido tinham diminuído muitíssimo. As feridas abertas que a espada de Kylie deixava no espírito, por outro lado, tinham aumentado bastante.
— Eu acho que é só por hoje — disse Kylie, desviando o olhar do corte que acabara de abrir em Lucinda.
— Você está melhorando!
— Eu treinaria mais, se não tivesse que vê-la sangrando.
— A coisa toda precisa parecer de verdade — explicou Lucinda.
— Mas é — Kylie respondeu. Ela observou Lucinda examinar os ferimentos. — Você acha que eu estou pronta para lutar contra Mario? Para ganhar?
— Com a ajuda dos anjos da morte, talvez. Sem eles, você não tem chance.
— Puxa, você sabe como aumentar a confiança de alguém! — comentou Kylie.
— Eu só vi uma pessoa capaz de vencê-lo. O próprio filho.
Kylie se lembrou da história que Derek tinha contado sobre o filho de Mario ter desaparecido.
— O que aconteceu com ele?
— Não sei. Espero que esteja apodrecendo no inferno. Mas é mais provável que ainda esteja vivo. — O olhar dela encontrou o de Kylie. — São sempre os bons que morrem jovens.
— Então talvez eu devesse sair por aí e fazer alguma coisa ruim — Kylie disse, meio de brincadeira.
— Você não pode fazer isso. O bem já está enraizado em você. Assim como a maldade do meu marido estava enraizada dentro dele. Só por causa de você meu filho foi salvo.
— Não, foi por causa dele que eu fui salva.
— Veja só, isso é parte da sua bondade. Você nem faz questão de levar o crédito.
Kylie afastou o pensamento.
— Ele estava por trás do seu assassinato? O seu marido?
— Não, mas ele o permitiu. E permitiu que o pai tomasse o nosso filho. Que ele o criasse para ser do mal. Que coisa mais louca! Meu marido odiava o pai, mas invejava tudo o que ele tinha. — Ela olhou por cima do ombro como se tivesse ouvido algo ou alguém. Então desapareceu.
Kylie foi para seu quarto, pegou a camisola e seguiu para o chuveiro. O suor escorria pela parte de trás do pescoço e pelas costas.
Mesmo com o frio do espírito, ela sempre suava.
Quando a água ficou morna, ela deixou as roupas no chão e entrou no chuveiro. Fechando os olhos, o jato morno de água atingiu sua pele e ela esperou que ele aliviasse a tensão dos músculos que ela tinha sobrecarregado durante o treino.
A mudança brusca de temperatura fez com que ela abrisse os olhos. E perdesse o fôlego.
Ela olhou fixamente para a parede do chuveiro. O frio provocou calafrios no seu corpo nu. Um vapor espesso subia ao seu redor.
Ela não estava sozinha. Alguém estava no chuveiro com ela. E o frio era diferente. Um frio que ela nunca havia sentido antes.
— Não pode me evitar desta vez, não é? — A voz, uma voz que ela não reconheceu, veio de trás dela.
Capítulo Quarenta
Kylie virou-se, escondendo o que podia das suas partes mais íntimas com as mãos. O vapor era tão denso que ela mal conseguia distinguir a silhueta. Mas um vago esboço de um corpo era visível por trás da cortina de vapor.
Todas as músicas assustadoras de filmes de terror com cenas de chuveiro fatais surgiram na cabeça de Kylie, mas, mais do que apavorada, ela estava furiosa. Será que fantasmas não sabiam o que era privacidade?
— Eu estou no chuveiro! — Kylie retrucou, autoritária. — Isso não pode esperar?
— Não, não pode — disse a voz. — Ele está prestes a me encontrar e isso vai magoá-lo muito. Ele não pode ficar sozinho.
O tom característico da voz fez vir à tona uma lembrança. Kylie conhecia aquela pessoa, mas de onde?
Sem se preocupar mais com sua nudez, Kylie abanou a mão para dissipar o vapor que impedia a visão como a condensação num espelho. Quando ela viu quem estava no chuveiro com ela, seu coração se apertou. Não de medo, mas de tristeza. E não era pela mulher que estava à sua frente, mas pelo seu neto, Lucas.
— Ele está a caminho da minha casa agora. Apresse-se. Ele não pode ficar sozinho.
Kylie saltou para fora do chuveiro e correu para se vestir. Enquanto lutava para colocar a roupa no corpo molhado, seu coração doía por Lucas, ao pensar em como ele se sentiria ao encontrar o corpo da avó.
— Onde a senhora mora? Espere! Burnett sabe?
— O vampiro? É a essa pessoa que você se refere?
— Sim — confirmou Kylie, desejando que não demorasse muito para ela falar num tom adequado.
Ela assentiu com a cabeça.
— Sim, ele já esteve lá.
— Della! — Kylie chamou.
— Há uma carta na gaveta da minha escrivaninha que ele precisa ler. Não deixe que ele saia de lá sem lê-la.
Della veio correndo para a sala num flash.
— O que foi?
— Ele estava certo, sabe?
— Quem estava certo? — Kylie perguntou ao espírito, ignorando a vampirinha em pânico ainda usando seu pijama de Mickey Mouse.
— Você é parte da missão dele, e ele parte da sua. Eu vejo as coisas com mais clareza daqui. Veja, vocês têm sido parte das missões um do outro desde que se conheceram, todos esses anos atrás. Você é a razão pela qual ele irá concluir a missão da vida dele e ele vai estar ao seu lado para salvá-la quando você precisar de ajuda para concluir a sua. Mas vá agora. Vá ajudá-lo.
— É uma visão? — perguntou Della, olhando para Kylie com incerteza.
— Vamos embora! — Kylie disparou para fora da cabana. Ela estava quase na cabana de Holiday quando percebeu que estava voando e devia ter se transformado num vampiro.
— Espero que a gente esteja indo a alguma festa do pijama — disse Della com sua voz atrevida.
— Tenho que falar com Burnett — Kylie respondeu, enquanto lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto.
Elas aterrissaram com estrondo na varanda de Holiday e não tinham dado nem um passo quando Burnett abriu a porta, ainda fechando a calça jeans.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Você sabe onde mora a avó de Lucas?
Ele parecia confuso, os olhos ainda atordoados de sono.
— Sim, Lucas me ligou há uns dez minutos, ele estava indo para lá, ver como ela está.
— Precisamos ir para lá.
— Por quê? — perguntou Burnett.
— Ela morreu — Kylie explicou, deixando mais lágrimas escaparem dos olhos. — Ele não precisa ser o primeiro a encontrá-la.
— Ah, mas que droga! — Burnett correu de volta para o quarto já com o telefone na orelha. Ele olhou para Kylie. — Ele não está atendendo.
— Você fica aqui — disse Burnett para Della, e então ele e Kylie partiram. Os pés dela só bateram no chão três vezes antes de alçar voo ao lado de Burnett.
Em menos de dez minutos, Burnett começou a sua descida. Eles pararam em frente a uma grande casa térrea de tijolos brancos, que dava uma impressão de riqueza e paixão pela jardinagem. O quintal parecia saído de uma revista.
Não que Kylie tenha passado muito tempo apreciando a paisagem. Seus pés mal haviam tocado o gramado bem cuidado quando ela ouviu um barulho dentro da casa.
Ela ouviu alguém ofegando de dor e tristeza.
— Ele já está aqui — disse ela a Burnett. — Eu vou entrar.
Burnett entrou na frente dela.
— Não. Eu vou entrar.
— Não! — Kylie exigiu, e começou a avançar, com o coração doendo por Lucas.
— Kylie — Burnett pegou o braço dela. — Quando um lobisomem está fora de si, especialmente tão perto da Lua cheia, ele às vezes ataca com raiva. Ele não pode controlar isso. Especialmente com um vampiro.
Ela secou as lágrimas dos olhos.
— Você não entende. Ele me ama. Não vai me machucar. Nunca faria isso.
Burnett hesitou.
— É exatamente como entre você e Holiday — disse Kylie.
Ele suspirou e se afastou da porta. Ela entrou na casa. O aroma de limão era o mesmo que Nana costumava usar. Tudo na casa, desde as antiguidades até as pinturas a óleo, demonstrava riqueza.
— Lucas! — ela chamou.
Ele não respondeu. Ela andou pelo corredor onde ouviu alguém soluçando de tristeza.
Lucas estava sentado na beirada da cama. O corpo sem vida da avó estava no meio da cama.
— Lucas — disse ela novamente, entrando no quarto.
Ele se virou. Seus olhos estavam do tom mais profundo e escuro de laranja que ela já vira.
— Vá embora! — ele rosnou.
— Não. Você precisa de mim agora. Sua avó me disse.
Ele atravessou o quarto e a prensou contra a parede. Não havia nada além de uma dor selvagem nos olhos dele. Ele rosnou, e pela primeira vez ela viu os dentes caninos dele projetados.
— Sou eu, Lucas — disse ela, sentindo os dedos dele enterrados nos seus braços.
Ela sentiu o instante em que ele caiu em si. Ele deixou cair as mãos, afastou-se dela e pressionou a cabeça contra a parede.
Ela foi até ele, colocou os braços ao redor da cintura dele, apertou o rosto entre as omoplatas de Lucas e abraçou-o.
— Ela se foi — disse ele, com a voz rouca de dor.
— Eu sei. — Ela o abraçou mais apertado.
Lucas se virou e puxou-a contra si. Eles ficaram lá por muito tempo, apenas abraçando um ao outro.
— Eu sinto tanto! — Kylie sussurrou, sentindo a dor do namorado e se lembrando com clareza de como ela se sentira quando soube que Nana tinha morrido.
Ele a soltou, e então encontrou os olhos dela. Seu olhar ainda estava brilhante, mas a selvageria tinha se dissipado. As lágrimas no rosto dele não eram um sinal de fraqueza, mas um sinal de devoção, do amor que sentia pela única mãe de verdade que ele tinha conhecido e depois perdido.
— Eu sabia que ela não tinha muito tempo, mas eu ainda não estava pronto. Pensei que tivesse mais um ano, talvez dois.
Kylie pegou a mão dele.
— Eu sinto muito. Sei como é isso.
Ele suspirou e olhou para a cama e para o corpo da avó. Ouvindo a respiração de Lucas mais curta, ela o puxou para fora do quarto.
Quando ela parou, ele encontrou o olhar de Kylie.
— Como você... como você soube?
— Ela veio me ver. Disse que você poderia precisar de mim.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Mesmo na morte, ela estava cuidando de mim.
Ele encostou as costas contra a parede e soltou outro rosnado baixo.
— Eu vou sentir tanta falta dela... Ela era minha avó e minha mãe ao mesmo tempo. Era a única pessoa que se importava comigo quando eu era criança.
Kylie se aproximou. Ele cruzou os braços atrás das costas dela e a abraçou. Ela finalmente se afastou e olhou para ele.
— Ela disse que havia uma carta para você na gaveta da escrivaninha.
— Vou olhar. — Ele passou a mão na bochecha dela. — Deixei uma mensagem no telefone do meu tio. Ele e os outros membros da família podem estar aqui a qualquer momento. É preciso que você vá.
— Quero ficar aqui. Quero ficar aqui ao seu lado, Lucas.
— Eu sei e, se fosse por mim, você poderia ficar. Mas o costume dos lobisomens de preparar os membros da alcateia para a morte é apenas para parentes consanguíneos. Ele se abaixou e a beijou. — E mesmo se não fosse o costume, você é uma vampira nesse momento. Não posso correr o risco de que você se machuque. Por favor, entenda — disse ele. — Porque, se alguém tocar um dedo em você, eu vou matá-lo.
Ela assentiu com a cabeça. Não gostou de ter que ir, mas entendeu.
— Você vai ficar bem?
— Graças a você — disse ele.
— Eu não fiz nada. — Ela pousou a mão sobre o peito de Lucas, sabendo que o coração dele estava partido.
— Você veio. — Ele parou como se estivesse se lembrando de algo. — Deus, eu lamento! Eu te machuquei quando você entrou no quarto?
— Não — ela assegurou.
Ele levantou as mangas da camiseta dela e viu os hematomas em seus braços.
— Droga! Eu machuquei. — Ele fechou os olhos, mais angustiado ainda.
— Isso não é nada. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou-o suavemente, na esperança de aliviar sua dor. — Eu estou bem, Lucas. Olhe pra mim.
Ele abriu os olhos. Ela sorriu.
— Eu estou bem.
Ele soltou um suspiro trêmulo, então inclinou a cabeça para cima e cheirou o ar.
— É Burnett lá fora?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele franziu a testa.
— Ele não deveria ter deixado você entrar. Sabe que é perigoso.
— Ele tentou me deter. Eu insisti. Sabia que você não iria me machucar.
— Mas eu machuquei — ele disse com irritação, e olhou para os braços dela.
— Isso não é nada. Amanhã não terá mais nada.
Ele olhou no fundo dos olhos dela.
— Eu te amo, Kylie Galen. Ferir você é a última coisa que eu quero fazer.
Ela sorriu.
— Eu também te amo.
A sombra de dor nos olhos dele mudou por um segundo. Ele se inclinou e pressionou a testa na dela.
— Eu ouvi direito?
Ela olhou para ele.
— Sim, você ouviu. E você também precisa saber que, embora eu queira muito que você entre naquele Conselho, isso não vai mudar nada entre nós.
— Eu não ia deixar que mudasse. — Ele a beijou novamente e, em seguida, a fez recuar. — Gostaria de não ter que te mandar embora.
— Eu sei — disse ela.
Ele a acompanhou até a porta, a mão segurando a dela, e ela sentiu que Lucas realmente não queria deixá-la ir.
Tão logo abriram a porta, Burnett foi ao encontro deles.
— Sinto muito pela sua avó — disse Burnett.
— Obrigado. — A forma como Lucas falou, a maneira como ele se conteve na frente de Burnett, mostrava que ele estava escondendo sua dor. E ainda assim ele deixara que ela a visse. Ele não a tinha escondido dela. Ele confiava nela a esse ponto. Por alguma razão maluca, isso, mais do que qualquer outra coisa, fez com que ela o amasse mais ainda. As lágrimas causaram um nó na garganta de Kylie novamente. Ele precisava dela como ela precisava dele. O que significava que ela não poderia morrer.
Lucas olhou para Kylie.
— Amanhã é Lua cheia, então vai haver cerimônias. Provavelmente não vou vê-la por vários dias.
Ela aquiesceu, ainda sem gostar do que ouvia. Ela queria estar com ele em seu momento de dor. Mas aceitou que isso era algo que não podia mudar.
Burnett olhou por cima do ombro e, em seguida, de volta para Lucas.
— Alguém está vindo.
— É melhor vocês irem — disse Lucas.
— É só Lucas, ou algo mais? — Holiday perguntou na manhã seguinte.
Kylie olhou para a cachoeira. Ela tinha ido ao escritório de Holiday logo ao amanhecer e perguntado se elas poderiam visitar o lugar. Burnett, como de costume, esperou do lado de fora.
— Eu só precisava disso — disse Kylie. Ela tinha acordado pela manhã preocupada com Lucas e preocupada... com o que o fantasma tinha dito. Que se ela lutasse e perdesse, as pessoas que amava iriam sofrer.
Ela precisava sentir a energia quente da cachoeira dizendo a ela que ia ficar tudo bem. Ela não queria morrer, queria estar ao lado de Lucas ao longo de todos os altos e baixos da vida. Mas principalmente ela não queria morrer sabendo que iria deixar as pessoas que amava infelizes.
Holiday olhou para ela.
— Qual o problema, Kylie?
Kylie forçou um sorriso e lutou contra as lágrimas que subiam pela garganta. Ela sentia tudo aquilo ali. A paz, a aceitação de que tudo ficaria bem. Ela só não sabia se estaria viva para ver isso por si mesma.
— Você nunca sentiu que só precisava vir até aqui?
— Normalmente, quando isso acontece, alguma coisa está tirando a minha sanidade. Então, o que está te incomodando?
— Tudo! — respondeu Kylie. — Estou preocupada com Lucas. Ele está tão chateado, Holiday! Ele chorou. E eu não acho que ele possa fazer isso na frente do pai ou da família dele. Ele precisa de mim, mas eu não posso ficar ao lado dele por causa de uma regra idiota! E estou preocupada com a minha mãe, porque ainda não confio em John.
Estou preocupada em deixar todo mundo que eu amo, sem saber se eles ficarão bem sem mim.
O ambiente da cachoeira pareceu entrar em seu peito e acalmá-la. Juntamente com o toque de Holiday em seu braço.
— Vai ficar tudo bem. — disso Holiday, ainda com soluço. — E se você quiser, eu peço a Burnett para investigar John novamente.
Kylie suspirou.
— Não. Você está certa. Vai ficar tudo bem. — Ela tinha que acreditar. Ela precisava.
— Você já contou à sua mãe o que sente por ele? — Holiday perguntou.
— Contei, e ela acha que só estou chateada porque ela não vai voltar com o meu padrasto. — Kylie mergulhou os pés na água fria. — Eu até liguei para ela antes de procurar você. Tirei-a da cama e tudo mais. Ela está na casa de praia dele, aproveitando suas férias antes de pedir demissão para ir trabalhar pra ele. É como se ele estivesse monopolizando cada vez mais a minha mãe. Ela está praticamente morando com ele, e agora vai trabalhar pra ele.
Holiday apertou mais uma vez o braço de Kylie.
— Por mais que a gente queira fazer os nossos pais se comportarem, eles agem tão mal quanto nós em nossas crises de relacionamento. Minha mãe chegou até a sair com um stripper depois do divórcio.
Kylie olhou para Holiday e riu.
— Ok... Chega de coisas ruins. O que você quer que eu vista no seu casamento?
Holiday revirou os olhos com um ar afetado. Era o que acontecia cada vez que alguém mencionava o casamento.
— Por mim pode ir até de short. Você é a minha dama de honra. Pode usar o que quiser.
— Eu tenho um vestido estampado em tons pastel que eu acho que serviria.
— Parece perfeito! — disse Holiday. — Ah, eu contei que convidei Blake para o casamento?
— Você quer dizer, Blake, o seu ex-noivo?
— Ele mesmo — confirmou Holiday.
Kylie fez uma careta.
— E Burnett sabe? — Ela imaginou Burnett arrancando alguns membros de Blake por aparecer na cerimônia.
Ela sorriu.
— Foi ideia dele. Ele disse que queria que o homem viesse para saber que eu não sou mais solteira.
Kylie sorriu.
— É bem o estilo de Burnett.
— Claro que Blake recusou o convite. Acho que Burnett o assusta um pouco.
— O que prova que você só se apaixona por homens inteligentes — brincou Kylie com uma risadinha.
Elas se deitaram sobre as pedras e olharam para o teto da caverna.
— Eu sei que você é jovem, mas Burnett e eu estávamos pensando se você gostaria de ser madrinha do bebê. Afinal, é por sua causa que estamos juntos.
Kylie sorriu.
— Eu ficaria honrada.
Depois de alguns minutos de silêncio, Holiday falou novamente.
— Consegui os formulários das faculdades que você pediu. Burnett ou eu podemos ajudá-la a preenchê-los quando quiser.
Após um momento de silêncio pacífico, Holiday suspirou.
— Você consegue ver?
— Ver o quê? — perguntou Kylie.
— Acabei de ter um vislumbre do futuro. Você terminando a faculdade em cerca de cinco anos e voltando a Shadow Falls para trabalhar aqui.
— Você me contrataria? — perguntou Kylie.
— Num piscar de olhos — assegurou Holiday.
Kylie sorriu.
— Já que você tem tudo planejado, o que eu vou estudar na faculdade? Que tipo de trabalho vou fazer aqui?
— Psicologia, é claro. Você vai ser uma grande conselheira.
Kylie sorriu.
— Sabe, isso é exatamente o que eu estava pensando em fazer. — Kylie fez uma pausa. — Quando você olha o futuro, consegue ver se Miranda, Della e eu vamos entrar na mesma faculdade?
— Se vocês quiserem, vão, sim. Puxa, talvez a gente possa contratar vocês três. Miranda seria uma excelente professora. Com suas próprias deficiências, ela vai saber como trabalhar com outros alunos com mais dificuldades. E Della, com certeza, vai trabalhar com Burnett na segurança.
— Gosto da sua ideia do futuro. — Kylie fez uma pausa, então, perguntou: — Será que Lucas estaria aqui?
— Pode apostar que sim. — Ela suspirou. — Ele estaria trabalhando com Burnett na UPF e aqui durante meio período.
— Eu o amo — disse Kylie.
— Eu sei.
— Uau! Não vai me dizer que eu sou muito jovem para me apaixonar?
Holiday suspirou.
— Você é jovem, mas fazer o quê? Você é uma alma antiga, e às vezes isso faz com que tenha mais sabedoria do que outras pessoas da sua idade.
Holiday estendeu a mão e acariciou a de Kylie.
— Com certeza vai ficar tudo bem.
Sim, Kylie pensou. Ela realmente gostava da visão de futuro de Holiday. Tudo o que tinha a fazer era continuar viva.
Capítulo Quarenta e Um
Naquela noite, Kylie estava sentada na cama olhando para o relógio e rolando no pulso a pulseira que sua mãe lhe dera. Era quase meia-noite. Lucas estaria se transformando em breve. Ela tinha falado com ele naquele dia duas vezes. Ele ligou da última vez apenas para ouvi-la dizer de novo. Ela sabia do que ele estava falando, então ela satisfez o desejo dele.
Eu te amo.
Ele não disse que viria esta noite, mas ela ainda assim o esperava.
O olhar de Kylie se desviou para a luz brilhante do outro lado do quarto. A espada não tinha parado de brilhar durante todo o dia e ela ainda nem a tocara. Era como se a arma estivesse tentando lhe dizer alguma coisa. Obviamente, Kylie não sabia interpretar a linguagem das espadas.
Não que ela não tivesse tentado. Depois do jantar, Kylie de fato se sentou e teve uma conversa com a arma. Perguntou se havia algo que ela precisasse saber. Contou a ela suas preocupações sobre continuar viva.
A espada não respondeu coisa alguma. Não que Kylie esperasse, mas, sério, ela não teria ficado muito chocada se ela tivesse falado. Era preciso admitir, coisas estranhas aconteciam em Shadow Falls.
Ao ver que era quase meia-noite, Kylie se levantou. Della saiu do quarto dela no momento em que Kylie saiu do seu.
— Aonde você está indo? — perguntou Della.
— Só quero me sentar na varanda. Sozinha.
— Você está esperando que ele venha, não é?
Kylie assentiu.
— Tudo bem — disse Della. — Mas, se amanhã você acordar toda feliz, eu vou saber...
Kylie deu uma risadinha e saiu. Ela olhou para a Lua e se perguntou se a mudança ajudaria Lucas a lidar com a dor de perder a avó. Ela esperava que sim.
A lembrança dele como lobo quando ele tinha impedido Fredericka de atacá-la ainda estava fresca em sua memória, e ela ansiava por vê-lo naquela forma novamente. Havia tantas coisas que ela queria saber sobre ele... Que aparência ele tinha quando acordava de manhã? Em que lado da cama normalmente dormia? Será que roncava?
Pegando o celular, ela checou seus e-mails para ver se ele tinha enviado algum. Havia apenas um, de Derek. Ele tinha encaminhado todos os links que encontrara, relacionados com Lucinda Esparza.
Como o espírito de Lucinda não tinha feito sua transição ainda, Kylie suspeitava que ela não faria isso antes do confronto com Mario. Ou talvez ela simplesmente não estivesse ansiosa para ir para o inferno.
O pensamento causou um arrepio na espinha de Kylie. Ia desligar o telefone, mas abriu acidentalmente um dos links. Ela o leu, embora na verdade não tivesse nada de novo. Então viu o último link da lista, um velho recorte de jornal anunciando o casamento de John Anthony Esparza e Lucinda Edwards.
Kylie abriu o link. Viu uma imagem de Lucinda em seu vestido de noiva. Ela era bonita, jovem e inocente, toda vestida de branco.
A foto ao lado era do casal cortando o bolo.
Kylie olhou para a foto. E seu coração parou. Completamente. Ela piscou, rezando para que seus olhos estivessem lhe pregando uma peça, mas não: era ele.
Não era à toa que ela não gostava dele. John, o John de sua mãe, era John Anthony, o filho de Mario.
Entrando imediatamente em modo de proteção, seu sangue começou a borbulhar, conforme a adrenalina se espalhava pelo seu corpo. A espada apareceu ao lado de Kylie — brilhando, chamando-a para a ação. Com clareza, Kylie se lembrou da ameaça de Mario. Você vai vir até mim, Kylie Galen, vai vir até mim disposta a morrer, a sofrer em minhas mãos, para minha alegria, porque o preço será muito alto! Sua fraqueza será sua ruína.
Ele tinha esse plano o tempo todo.
Kylie pensou em chamar Della, ou ir atrás de Burnett, mas algo dentro dela sabia que essa luta era sua.
Para que saísse vitoriosa.
Ou derrotada.
Ela não tinha o endereço exato da casa de praia de John, mas a mãe dela tinha dito que ficava na mesma rua de uma das antigas casas de fazenda que tinham visitado um tempo atrás. A espada brilhou e Kylie sentiu que ela poderia saber exatamente aonde estavam indo.
Pegando a arma, Kylie pôde jurar que ouvira algo se mexer na floresta. Ela olhou para trás, não viu nada, então quis ficar invisível e decolou.
Ela voou por cima do portão sabendo que o alarme iria tocar, mas nem olhou para trás. Burnett ficaria furioso. No entanto, sua intuição lhe dizia que ela estava certa. Viver ou morrer não era importante. Salvar sua mãe, sim.
Nesse momento, ela soube exatamente o que Mario queria dizer quando se referiu à sua fraqueza. O amor.
Fraqueza ou não, era a única coisa pela qual valia a pena morrer.
Kylie seguiu pela costa, passou pela ilha de Galveston, e continuou até a próxima ilhota. A Lua pairava no céu escuro, redonda e brilhante. O som do mar mudou com o vento e levou Kylie mais para perto. Ela encontrou a rua onde devia ficar a casa de praia de John e, enquanto avançava o mais próximo possível do chão, a espada ficou mais brilhante. Quando se aproximou de uma grande casa amarela sobre palafitas, com um muro de quase três metros de altura ao redor da propriedade, instintivamente soube que a tinha encontrado. Ela observou que a casa ficava de frente para a praia, mas só tinha um portãozinho que se abria para a areia e o mar. Quem compraria uma casa na praia para fechá-la daquele jeito? Só alguém com medo de intrusos.
A espada parecia puxá-la para mais perto da propriedade. Nossa! Talvez ela e a espada falassem a mesma língua, afinal!
Kylie pensou em aterrissar do lado de dentro do muro, mas percebeu que John poderia ter um sistema de alarme igual ao de Shadow Falls.
Com o coração acelerado e o sangue borbulhando nas veias, ela disse a si mesma para ir mais devagar e pensar antes de fazer alguma coisa que pudesse arriscar a sua vida ou a da mãe.
Sem sair do lugar, deu uma olhada nos arredores. A vegetação era escassa em comparação com Houston e a área rural montanhosa. Palmeiras e alguns grandes oleandros com flores cor de salmão forravam o muro. Ela ouviu vozes ao longe. Correu até a sombra negra do muro, longe do brilho da Lua, e seguiu o muro alto ao redor da propriedade, até chegar mais perto das vozes. No mesmo instante, a luz da espada desapareceu como se para evitar que ela fosse vista. Mas a mão que segurava a espada ainda sentia o poder da arma, sua energia.
Depois de fazer uma ligeira curva, ela avistou uma garagem lateral e um portão de ferro. Avançou em silêncio até que se aproximou de outro grande arbusto. Espiando através de galhos e folhas, viu dois homens conversando atrás do portão. Guardas.
De que tipo?
Ela precisava saber com quem estava lidando. Apertando os olhos, ela se concentrou na testa dos homens — camaleões. Mas os padrões eram sombrios, quase negros.
Gente ruim.
Ela prendeu a respiração por um segundo, consciente do que ia enfrentar e conformada com isso.
O zumbido de um motor chamou sua atenção. O motor do Cadillac prata que estava ao lado dos homens tinha sido ligado. Outro som de motor encheu a noite enluarada. O portão rangeu e começou a se abrir. Ela observou das sombras um dos guardas entrar num carro branco.
Era sua chance. Talvez sua única chance. Ela tinha que entrar por aquele portão. Tinha que salvar sua mãe.
Então lhe ocorreu que podia ser tarde demais. Afastou o pensamento para longe, incapaz de aceitá-lo.
Desejando ficar invisível, consciente de que havia ali outros camaleões, ela apurou os ouvidos para saber se havia mais alguém no reino invisível. Os ruídos produzidos por outros camaleões invisíveis sempre pareciam mais próximos do que os outros.
Mais altos.
Só o silêncio ecoava nesse mundo extraordinário, mas, como ela, eles podiam estar ali em silêncio.
Escutando.
Ciente de que seus passos poderiam ser ouvidos, Kylie esperou até que o barulho do portão se abrindo ficasse um pouco mais alto, oferecendo a ela um pouco mais de vantagem. Quando o portão se abrisse alguns centímetros a mais, ela poderia deslizar para dentro.
Com a respiração presa, tentando pisar o mais leve possível, ela se esgueirou para dentro. Logo depois de atravessar o portão, ouviu outro barulho — um passo. Ela não era a única pessoa invisível.
Outro guarda apareceu a poucos metros. Ele olhou ao redor.
— Temos companhia? — perguntou o primeiro guarda de pé junto à porta.
— Será? Desligue o maldito portão para que eu possa ter certeza.
Sabendo que essa era a sua única chance, antes que ele desaparecesse de novo, Kylie disparou numa corrida mortal. Agachada atrás de um arbusto espinhento, percebendo que a chance de ser vista no reino visível podia ser menor do que a de ser ouvida na esfera do invisível, ela desejou aparecer.
O seu modo de proteção ainda estava superativo e ela percebeu que precisava de mais oxigênio. Ainda segurando a espada, fechou os olhos por um segundo e foi então que ouviu: um grunhido nervoso e profundo.
Merda. Eles tinham cães de guarda.
Abrindo os olhos, ela olhou para um focinho com dentes arreganhados e olhos amarelos brilhantes. A coleira preta com cavilhas revelou que ela estava certa, era um cão de guarda, mas o brilho selvagem em seus olhos lhe dizia que o animal era, pelo menos em parte, um lobo.
Kylie engoliu seu medo e farejou a respiração do animal. Ele levantou o focinho, mostrando mais os dentes. Seu rosnado se tornou mais baixo, mais intenso. As plaquinhas penduradas em sua coleira tilintaram e o barulho pareceu muito alto.
Olhando o animal direto nos olhos, ela apertou o cabo da espada. Não me faça matar você. Minha luta não é com você. Eu tenho até uma certa devoção pelos lobos.
Instantaneamente o animal recuou. Seus olhos amarelos nem pestanejaram. Ele se sentou, desviando o olhar dela. Kylie se lembrou do lobo com que ela se deparara em Shadow Falls e como ele tinha lhe mostrado submissão.
Kylie não entendia, mas usaria qualquer vantagem que tivesse agora. Porque precisava admitir, ela tinha a sensação de que precisaria disso.
Ela olhou para trás, onde os homens estavam no portão. Apenas um permanecia ali.
O outro tinha ido dar uma volta pelo reino do invisível. Ele poderia estar em qualquer lugar.
Desejando ficar invisível novamente, ela apurou os ouvidos. Ouviu passos na frente do arbusto. Eles ficaram mais lentos. Seu coração batia tão alto que ela tinha certeza de que ele poderia ouvi-la.
O cão-lobo se virou e saiu correndo do arbusto.
— Ah, é você seu vira-lata! — a voz do guarda ecoou do vazio. — Pensei que fosse alguma coisa.
Através das folhas, Kylie viu o homem aparecer. Ele avançou sobre o animal e chutou a perna traseira do cão. Com força. O cão ganiu e o sangue de Kylie ferveu pelo animal indefeso. Quando o homem ensaiou outro chute, Kylie se abaixou, pegou uma pedra e a jogou nos arbustos à sua direita.
O homem se virou de repente e foi vasculhar os arbustos ao lado dela. Quanto mais perto ele chegava, mais difícil era respirar.
— Achou alguma coisa? — O homem da porta gritou.
— Acho que não — ele murmurou, e encaminhou-se para o portão. — Só aquele cachorro feio como o diabo.
Aquele cachorro feio como o diabo acabou de salvar a minha vida, Kylie pensou, o coração ainda acelerado com o impulso de proteção.
Quando o homem permaneceu visível e começou a conversar com o outro guarda, ela soube que era a sua oportunidade de se afastar, talvez encontrar um lugar para entrar na casa.
Tornando-se invisível novamente, ela avançou silenciosamente ao redor da casa, procurando uma entrada. O cão-lobo veio mancando na direção dela, confirmando sua suspeita de que ele podia vê-la.
Desejando ficar visível, ela estendeu a mão e tocou a perna traseira do cão. Ela sentiu a mão ficar quente. Me leve para dentro da casa, amiguinho, disse para o animal mentalmente, sem saber se ia funcionar, ou se ela estava simplesmente sendo otimista. Derek podia se comunicar com os animais. Talvez ela tivesse se transformado em fae.
O cão se virou e começou a andar sob os pilares que sustentavam a casa de praia. Ela começou a seguir em frente, mas o cão parou e olhou para ela quase como se dissesse, Por aqui.
Arriscando, ela seguiu o cão. Depois de contornar várias vigas, ela questionou sua decisão, mas então o cão parou no que parecia ser uma rampa que levava a uma portinhola para entrada de animais pequenos. Ainda invisível, ela tentou andar no ritmo do seu amigo canino. Não era nada fácil, carregando uma espada.
Ela acidentalmente bateu a espada na beirada da porta. Se alguém estivesse espreitando de dentro dessa dimensão invisível, teria ouvido o barulho.
Dentro da casa, ela parou e escutou. Nenhum som ecoou na escuridão. Ela viu alguns sacos de dormir e tigelas vazias de cachorro. Aposto que eles não te dão comida direito, hein, rapaz? Mas se os animais eram alimentados ali, isso significava que deveria haver uma porta para a casa. Se estava trancada era outra questão.
Observando o cômodo escuro, ela viu a porta. Acariciou o animal novamente. Obrigada. Levantou-se e estendeu a mão para a maçaneta. Ela girou na sua mão. Uma virada quase silenciosa do pulso. Ela inspirou, sentindo-se bem-sucedida até agora. Mas não ia enganar a si mesma, pois a parte mais difícil seria encontrar a mãe e fazê-la sair dali.
Tirá-la dali e também sair com vida.
A espada parecia vibrar em sua mão, como se a lembrasse de que escapar dali aquela noite não seria tão simples assim. Essa noite ela iria usar a arma, só que desta vez não seria um treino. Seria pra valer.
A princípio, Kylie pensou que todos na casa estivessem dormindo. Ela andou até uma grande cozinha, em seguida entrou numa ampla sala de estar com uma enorme lareira de pedra. Esse cômodo parecia ser o centro da residência. Havia uma porta para ambos os lados da casa. Ela viu uma luz no final de um corredor. Ouviu vozes. Atravessando o corredor na ponta dos pés, ela apurou os ouvidos para ver se conseguia ouvir a mãe.
Uma voz era clara: a de John. Uma segunda voz provocou calafrios na sua espinha. Ela sentiu o gosto de medo na garganta: Mario.
Não havia vozes femininas na conversa. Debatendo sobre o que fazer, decidiu procurar a mãe. Naquela hora da noite, ela deveria estar dormindo. Kylie se virou para o outro corredor, onde parecia haver quartos.
O primeiro cômodo parecia um quarto de hóspedes. Esperando que a mãe estivesse dormindo ali, ela abriu a porta. O quarto estava vazio e sinistramente silencioso.
Ela viu outro quarto no final do corredor e percebeu que era a suíte principal. Nesse momento, de algum modo ela soube que era onde a mãe dormia.
Onde dormia com John.
Dormia com o inimigo.
Mas Kylie estava ali para corrigir isso. Ela segurou firme a espada enquanto girava silenciosamente a maçaneta.
No leito havia uma forma familiar. A luz noturna lançava um brilho sobre a mãe. Kylie se lembrou de todas as noites, quando criança, em que ela entrava no quarto dos pais depois de ter pesadelos ou por causa de um nariz entupido. A mãe nunca ficava brava. Ela podia não ser um exemplo de carinho, mas estava sempre disposta a recebê-la. A raiva que Kylie sentiu por causa de toda a situação dos Brightens de repente pareceu insignificante.
Aproximando-se, ela ficou ao lado da cama.
— Mãe? — sussurrou.
A mãe não se mexeu, e por um segundo Kylie entrou em pânico, mas em seguida ela se virou na cama e respirou.
Olhando para a cômoda, Kylie viu uma taça de vinho. A luz noturna brilhou no cristal e revelou pequenas manchas de alguma substância no fundo da taça.
Kylie pegou a taça e a segurou contra a luz. Então teve certeza de que havia algo diferente no vinho que a mãe bebera — algo como comprimidos esmagados. John teria drogado a mãe dela?
Voltando a colocar a taça sobre a cômoda e sentindo outra onda do seu instinto de proteção circulando nas veias, ela apertou o punho da espada e se inclinou.
— Mãe!
A mãe se mexeu um pouco, mas não acordou.
Tocando o ombro dela, Kylie sacudiu-a levemente.
— Mãe, eu preciso que você acorde!
Os olhos da mãe se abriram.
— Kylie? O que você está... — Ela olhou em volta, como se não conseguisse se concentrar. Seria porque ainda estava sonolenta ou porque estava drogada? — Onde está...
— ...John? — Kylie concluiu para a mãe.
Respirando fundo, Kylie percebeu que ela não tinha tido tempo para descobrir exatamente o que dizer à mãe. Sem tempo para inventar algo inteligente, percebeu que teria que dizer a verdade.
Mas seria hora de despejar tudo? Será que a mãe conseguiria aceitar a verdade? Ou pelo menos parte dela?
— John? — a mãe chamou.
Kylie colocou dois dedos sobre os lábios dela, rezando para que não tivesse chamado alto o suficiente para ele ouvir.
— Não, você não pode...
— Meu Deus, o que é isso? — A mãe deu uma guinada para trás, com os olhos fixos na espada, que agora brilhava intensamente. Então fez uma cara estranha. — Isso é um sonho, não é?
— Mãe — Kylie tentou falar com calma. — John não é o que você pensa. Ele não é um cara legal e nós precisamos ir embora daqui.
A mãe desviou os olhos da espada e voltou a encarar Kylie.
— Você precisa parar de pensar nisso. Eu sei que dói, que seu pai e eu...
— Mãe, eu realmente preciso que você fique quieta e apenas ouça o que eu digo, ok?
A mãe franziu a testa e Kylie teve certeza de que ela estava parcialmente drogada.
— Como você chegou aqui? — Ela sacudiu um pouco a cabeça, como se estivesse tentando acordar. Então, olhou para a espada novamente. — Tem que ser um sonho.
— Vamos! — Kylie puxou a mãe da cama.
A mãe levantou-se, mas depois caiu de volta na cama. Kylie puxou-a novamente e desta vez notou que ela usava uma camisola sexy. Mas não tinha tempo para se preocupar com isso. Tinha que tirá-la dali.
Kylie pegou a mão dela e começou a caminhar até a porta. Mas um segundo antes de chegar lá, a porta se escancarou.
John estava ali parado, olhando para Kylie. Então, como se saído de um pesadelo, Mario apareceu ao lado dele.
Kylie empurrou a mãe para que ficasse atrás dela e estendeu a espada.
— Fique fora do nosso caminho.
A resposta de Mario foi um sorriso diabólico, cheio de maldade.
— Eu disse que você viria até mim.
— Quem é você? — a mãe perguntou, tentando passar na frente de Kylie.
Kylie puxou a mãe pelo braço e segurou-a de volta.
— E olha o que você trouxe! — Mario apontou para a espada. — Um brinquedinho para a gente brincar.
Capítulo Quarenta e Dois
Kylie não sabia o que fazer. Então fez a primeira coisa que lhe ocorreu. Apertando um pouco mais o braço da mãe, ela desejou que ela e a mãe ficassem invisíveis. A mãe gritou, obviamente, quando não foi capaz de ver a si mesma ou Kylie.
Sem poder se entregar ao pânico como a mãe, Kylie não hesitou e correu para a porta, esquivando-se dos dois homens. Infelizmente, a mãe foi arrancada das mãos de Kylie. Fazendo meia-volta, Kylie não conseguiu ver onde ela estava, mas ouviu-a ofegando, e percebeu que Mario tinha ficado invisível e agora estava com ela.
— Solte-a! — ela sibilou, desejando ficar visível.
Mario apareceu segundos depois com a mãe. A mão dele agarrou a garganta dela com tanta força que o rosto dela adquiriu um tom azulado.
Kylie levantou a espada.
— Chame-o de covarde! — A voz do espírito ecoou nos ouvidos de Kylie no mesmo instante em que o frio lhe causou um calafrio na espinha.
— Insista para que ele lute com você como um homem.
— Seu covarde! Largue a minha mãe e lute comigo como um homem! — gritou Kylie, rezando para que aquilo funcionasse.
Mario, com a mão ainda em torno do pescoço da mãe de Kylie, olhou para a garota, estreitando os olhos.
— Tudo bem. — Ele jogou a mãe para John.
Ela caiu aos pés do homem, com falta de ar. Ele a levantou, sem muita gentileza. Tudo o que Kylie queria era atacar. Esquecer a espada e usar as próprias mãos para partir os dois homens ao meio. A única coisa que a detinha era o espírito, repetindo as mesmas palavras várias vezes.
— O poder que você tem está na espada. O poder está na espada.
No momento em que a mãe conseguiu encher os pulmões de ar, ela se desvencilhou de John e investiu contra Mario. A mãe podia não ser sobrenatural, mas o amor materno também era algo muito poderoso.
Só não tão poderoso quanto a magia daqueles dois homens. John agarrou-a pelo cabelo.
— Pare de lutar, sua idiota!
Os olhos da mãe se arregalaram e ela os desviou em direção a John. Pela expressão dela, Kylie deduziu que, pela primeira vez, a mãe tinha visto John como ele realmente era: uma pessoa cruel, que o tempo todo a usara.
O coração de Kylie sofria pela mãe e ela rezava para que esses não fossem os últimos momentos da vida dela. Porque ninguém deveria morrer pensando apenas nos próprios erros. Consumida pelo arrependimento.
Mario fez um gesto com a mão e uma espada apareceu.
— Eu vou te matar lentamente, e sua mãe vai poder assistir. Não vai ser divertido?
— Não! — a mãe de Kylie gritou.
John prendeu os braços da mãe atrás das costas e segurou-os ali, tornando sua luta inútil.
— Não aqui! — exclamou John. — Eu paguei mais de cinquenta mil por este tapete.
A mãe gritou novamente e John puxou-a contra ele.
— Cale a boca ou ela vai morrer mais cedo.
Mario olhou para o filho.
— O sangue só aumentaria o valor do tapete!
A mãe olhou para Kylie com lágrimas nos olhos. O espírito olhou para John.
— Você vai apodrecer no inferno por tudo o que fez.
Kylie só podia rezar para que o espírito estivesse certo e sua viagem para o inferno acontecesse em breve.
— Mas um pouco mais de espaço para brincar seria bom.
Mario moveu-se para ficar na frente de John e colocou a ponta da espada no peito da mãe de Kylie, olhando para a garota.
— Vamos sair daqui. Se você preferir não me seguir ou tentar fazer qualquer coisa idiota, eu vou matá-la. E com prazer.
A mãe de Kylie soltou um som horrível, um grito de terror puro. Quando ela olhou para a frente, Kylie viu o pedido de perdão nos olhos da mãe. Ela achava que ambas estavam condenadas a morrer ali, e Kylie não tinha tanta certeza de que ela estivesse errada.
— Eu vou seguir você — assegurou ela.
E ela fez isso. Ela o seguiu pelo corredor e pela sala de estar.
Mario acenou com a mão e os móveis recuaram, dando-lhes o cômodo inteiro para lutar. Kylie não tinha ideia de onde Mario havia conseguido seus poderes, mas ela podia ver que eles eram malignos.
— Me dê um segundo, quero assistir ao espetáculo. — John, arrastando a mãe de Kylie consigo, abriu uma gaveta, tirou dali um rolo largo de fita adesiva e envolveu os pulsos dela. Então fez o mesmo com os tornozelos. Com brutalidade, ele a empurrou contra a parede enquanto ela lutava com ele e implorava para que ele parasse. A risada do homem ecoou cruelmente. Ele rasgou outro pedaço de fita e tampou-lhe a boca.
Kylie assistia com horror e fúria, mal conseguindo refrear o impulso de avançar sobre aquele arremedo de homem e arrancar seu coração negro.
— Agora não. Ainda não. Paciência, paciência! — o espírito sussurrou na orelha de Kylie. — Há um plano e você deve segui-lo se quiser enganar a morte.
Kylie não entendia o que o espírito queria dizer, mas não tinha tempo para refletir. O grito do espírito avisou-a bem a tempo de se defender do ataque de Mario. Ela baixou a espada para conter a dele. O barulho soou em seus ouvidos, mas ela quase não ouvia mais por causa do sangue que zumbia através do seu corpo.
Ele veio para cima dela de novo e Kylie bloqueou golpe por golpe. Suas espadas retiniam, entrechocavam-se. Lucas teria ficado orgulhoso. Mas, por melhor que ela fosse em bloquear os golpes dele, ela nunca tinha a chance de partir para a ofensiva, pois estava ocupada demais se defendendo.
Embora não tivesse tempo de olhar, ela podia imaginar a mãe assistindo a tudo com horror. E por mais que tentasse não ouvir, os gritos desesperados dela chegavam aos seus ouvidos abafados pela fita.
— Nos ajude! — Kylie gritou as palavras em seu coração, clamando pelos anjos da morte, por Deus, por quem pudesse ouvir. À distância, o uivo do cão-lobo rompeu o ar, como se ele orasse por ela também.
— Não perca de vista a espada. Atenção! Ele vai avançar por baixo desta vez.
As ordens do espírito vinham rápidas. Kylie tentava ouvir e se esquecer de que essa era uma luta de vida ou morte. Ela recebia ordens e ouvia o barulho de metal contra metal.
Por um breve segundo, Kylie viu de relance o rosto de Mario. Ele sorria, como se estivesse simplesmente brincando com ela. Por quanto tempo ela conseguiria lutar assim? Como ela poderia ganhar?
— Não pare de acreditar nos seus dons! — o espírito gritou.
Então Kylie viu John aparecer atrás do pai com sua própria espada.
Dois contra um? As lembranças da visão de Lucinda encheram a cabeça de Kylie. No entanto, apenas um fragmento de medo entrou no seu coração. Não havia tempo para ter medo.
Como Lucinda na noite em que perdeu a vida, Kylie não pensava na morte, simplesmente lutava. Lutava com todas as suas forças e uma oração nos lábios.
Ela observou com repulsa quando John levantou o braço para trás e cravou a espada nas costas do pai. A lâmina mergulhou no peito do homem até o cabo. A frente da camisa ficou escurecida de sangue. Os olhos de Mario ficaram verdes brilhantes, pouco antes de a vida se esvair deles. Um punhado de vapor negro subiu como um nevoeiro da boca do homem.
Kylie sabia que era a alma imunda de Mario e do mal de todos os seus pecados. Então o som mais hediondo que Kylie já ouvira rasgou o ar como ratos guinchando e baratas se alimentando. Vários seres sombrios, sequazes do inferno, varreram a sala e levaram a alma negra de Mario com eles.
John puxou a espada, o sangue esguichando do buraco no peito de Mario. Com a espada não mais segurando o corpo, ele se desintegrou no assoalho.
A morte não era bonita.
* * *
Kylie olhou para o corpo, sua própria espada imóvel diante dela. Por que John tinha feito aquilo? Será que ela tinha se enganado sobre ele?
Quando olhou para o rosto do homem, o sorriso frio que ostentava revelou que ela não estava errada.
— Isso veio bem a calhar! — exclamou o espírito. — Você matou o homem que matou o seu filho. — Ela aproximou-se dele, olhando-o nos olhos. Então seu olhar se deslocou para Kylie. — Não confie nele.
— Por que você fez isso? — ela perguntou a John, mantendo a espada em riste.
— Eu só estava esperando ele morrer para tomar o lugar dele. Essa foi apenas a oportunidade que eu procurava.
Kylie sentiu a vilania em seus olhos cinzentos.
— E agora? — ela perguntou.
— É óbvio, não é? — Ele sorriu. — Você tem escolha. Aceitar que você e sua mãe me pertencem. Você faz o que eu digo, e a sua mãe vive. Se não fizer, ela morre. — Ele lançou um olhar para a mãe dela, que o fitou com ódio.
— Acho que nós duas preferíamos morrer — Kylie disse. — Mas não planejo morrer agora.
— Acha que pode me vencer? Você não passa de uma criança com poderes que não consegue nem controlar.
Ele avançou com uma rapidez feroz. A espada num movimento febril. Ela mal conseguiu contê-lo.
— Vá para a esquerda. Agora! — O espírito gritava instruções.
Kylie lutava para se defender. Sua espada desceu, mas a dele veio mais rápido. Ela sentiu a ponta afiada da lâmina em seu braço esquerdo.
A picada e o sangue vieram em seguida.
Ela não diminuiu o ritmo. Não podia. Se desacelerasse, se tirasse os olhos da espada dele por um segundo, isso significaria a morte.
Para ela.
Para a mãe.
Então, ela sentiu o frio, o frio familiar do seu pai. Ele estava ali.
Mas era para ajudá-la ou levá-la com ele?
Um estrondo soou em algum lugar nas proximidades. Ela se forçou a não pensar nem se concentrar em outra coisa que não fosse a luta.
Então, um rosnado baixo vibrou na sala. Ela viu um lobo saltar desde o outro lado da sala. A boca escancarada, os dentes expostos, como se estivesse pronto para rasgar a carne. Seu amigo tinha vindo lutar com ela.
O reconhecimento veio num flash.
Não era o meio-lobo lá fora.
O lobo voando no ar em direção a John era Lucas!
John apontou a espada na direção da nova ameaça, pronto para perfurar Lucas no peito.
Usando toda a força que tinha, sentindo o sangue quente com a necessidade de proteger, Kylie baixou a espada, interceptando a dele e derruban- do-as das mãos do homem. John gritou com fúria, se esquivou de Lucas e estendeu a mão para pegar novamente a espada.
Antes que ele a alcançasse, Kylie o atingiu. Enterrou a espada na lateral do seu corpo. Então puxou a arma e começou a avançar contra ele novamente.
John caiu.
Seu corpo tremia.
Ele ofegava, sem ar.
O sangue gotejava da ponta da espada de Kylie.
Kylie olhou para Lucas, com os olhos em chamas, os dentes ainda arreganhados. Então, assim como antes, sons horríveis encheram a sala quando o demônio enviou sua horda para recolher a alma imunda que escoava da boca de John.
Soltando a espada, Kylie sentiu-se suja também por tirar uma vida. Em seguida, virou-se para a mãe, que ainda assistia à cena. A constatação veio rapidamente. Ela não tinha tirado uma vida, tinha salvado uma.
Caindo de joelhos, ela se esforçou para tirar a fita adesiva da boca da mãe.
Lucas, em toda a sua beleza lupina, aproximou-se dela. A mãe se encolheu como se estivesse com medo do lobo. Lucas roçou no braço de Kylie, encontrou seu olhar brevemente, então se virou e saiu. Kylie lembrou-se novamente do que a avó de Lucas tinha dito. Você faz parte da missão dele, e ele da sua.
— Mãe — disse Kylie. — Vai ficar tudo bem. — Ela terminou de puxar a fita da boca da mãe.
O grito dela ricocheteou nas paredes.
— Está tudo bem — disse Kylie novamente. — Está tudo bem. Agora fique quieta, para que eu possa tirar o resto da fita que está prendendo você.
Assim que Kylie tirou a fita dos pulsos da mãe, ela agarrou a filha e a abraçou. Abraçou-a forte e por muito tempo.
— Este é o pior sonho que eu já tive.
Kylie recuou e ficou indecisa sobre o que dizer, mas, em seguida, só balançou a cabeça e arrancou a fita do tornozelo da mãe. A mãe enrodilhou-se como uma bola, balançando para a frente e para trás, como se estivesse apenas esperando para acordar.
Kylie olhou para os dois corpos. Ela precisava chamar a polícia, não é? Olhou para a mãe e se perguntou como faria aquilo com ela balbuciando coisas sobre sonhos e lobos.
Em seguida, se lembrou de que, embora tivesse vindo sozinha, ela tinha amigos. Pegou o celular e começou a digitar o número de Burnett. Antes que seu dedo apertasse o botão de chamada, outro ruído encheu a sala. Um som suave e reconfortante. O som de água gotejando. O som da cachoeira. Uma sensação de calor e um sentimento de retidão e justiça invadiram o peito de Kylie.
O momento de tranquilidade foi abalado quando a mãe gritou de novo, com os olhos focados em algo atrás de Kylie.
— Ele... O quê? Como? — A mãe começou a recuar.
Kylie se virou, agarrando a espada, e rezando para que fosse apenas o pânico da mãe.
Ela estava errada.
Capítulo Quarenta e Três
De pé diante de Kylie, totalmente materializado, estava seu pai. Não apenas totalmente materializado, mas mais brilhante do que nunca. O barulho da cachoeira ficou mais alto. Um murmúrio pacífico de água.
— Pai? — ela sussurrou.
— Oi, filhota.
— Oi.
Ele olhou por cima do ombro dela e franziu a testa.
— Sua mãe desmaiou.
Kylie olhou para trás.
— Ela teve uma noite difícil.
— Você também. — Ele apontou para o sangue na camiseta dela.
— É só um machucado superficial — disse ela, ou seria mais do que isso? Ela olhou para baixo perguntando se só estaria imaginando que o ferimento era pequeno e se seu pai estava ali para levá-la com ele.
O sangue tinha encharcado sua camiseta; não chegava a ser uma hemorragia, mas era o suficiente para que a sensação de paz diminuísse e fosse substituída pelo medo. Estranhamente, ela não temia por si mesma, mas que a sua morte entristecesse outras pessoas. Ou será que sua vitória sobre John e Mario resolveria isso? Seria simplesmente a sua hora de ir?
Olhando para cima, ela contemplou o pai, a visão um pouco turva com as lágrimas.
— Eu vou morrer? Os outros vão sofrer porque...
— Não, Kylie. — Ele foi até ela. As mãos segurando seus ombros, o frio que o acompanhava proporcionando um conforto ao qual ela dava as boas-vindas. — Você tem muito ainda que viver, filha. Não estou aqui para levá-la. Estou aqui para ajudá-la a explicar isso à sua mãe.
Ela piscou.
— Os anjos da morte lhe deram um pouco mais de tempo na terra?
— Só um pouco mais, mas o que eles me ofereceram foi melhor. Eu tenho um lugar ao lado deles agora.
Levou um segundo para Kylie compreender.
— Você vai ser um anjo da morte?
— Vou, assim que ajudar você agora, pela última vez. Mas o melhor é que, de agora em diante, vou estar sempre cuidando de você. A sabedoria que você ouve em seu coração vai vir de mim, filha.
Lágrimas encheram os olhos dela novamente. Ela percebeu então que ele tinha dito algo sobre ajudá-la a explicar aquilo à mãe. Kylie estivera tão empenhada em salvá-la, que ainda não tinha pensado em como ia explicar o que acontecera.
— Como é que eu vou conseguir fazer com que ela aceite isso?
— É por isso que estou aqui. Vamos fazer isso juntos.
Então Kylie se lembrou.
— Ela viu você... antes de desmaiar.
— Sim. Ela sempre sentiu a minha presença, mas agora me concederam energia suficiente para que ela pudesse me ver. — Ele olhou em volta, franzindo a testa para os corpos sem vida. — Mas, por enquanto, ligue para Burnett.
Kylie pegou o telefone e discou novamente o número do vampiro.
— Ela está quase acordando. — Daniel apareceu. Kylie, sentada numa cadeira ao lado da cama, no quarto extra da casa de John, olhou para o pai.
A mãe estava desacordada fazia quase quatro horas agora.
Burnett e Holiday tinham aparecido minutos depois que ela ligara. E ele imediatamente chamou uma equipe para dar um jeito naquela bagunça. A UPF ia fazer com que parecesse um código vermelho, um acidente de carro.
Como eles fariam para que os ferimentos com espadas parecessem um acidente de carro, ela não sabia.
Nem queria saber.
Depois de chorar um bom tempo no ombro de Holiday, Kylie explicou o que tinha acontecido. Ela também contou sobre Daniel. Holiday ficou impressionada ao saber que Kylie teria uma conexão pessoal com um anjo da morte. Kylie quase lhe disse que ela teria preferido que o pai estivesse vivo ao lado dela, mas aquilo não dependia da vontade dela e ela se lembrou de que tinha muito que agradecer.
Quando explicou que Daniel estava ali para ajudá-la a explicar algumas coisas para a mãe, Burnett expressou a preocupação de que a mãe de Kylie não conseguisse aceitar a verdade. Kylie estava preocupada com a mesma coisa.
No entanto, quando ele sugeriu que trouxessem Derek para apagar a memória da mãe, Daniel apareceu e discordou.
— Ela precisa saber a verdade — Daniel insistira. Ele não deu nenhuma explicação, nem precisava. Kylie tinha que confiar em seu pai, mesmo quando seu coração temia a reação da mãe à notícia.
Foi Holiday quem ressaltou que a mãe de Kylie não era um ser humano normal. Sendo descendente de uma tribo indígena americana, ela tinha uma certa intuição no que dizia respeito a poderes sobrenaturais.
Assim, com a ajuda de Daniel, um futuro anjo da morte, Kylie se preparou para contar tudo à mãe. Mas ela não estava ansiosa por isso.
A mãe abriu os olhos. Concentrou-se em Kylie e então as palavras jorraram dos lábios dela.
— Eu tive o pior sonho da minha vida! — Ela se sentou e olhou em volta.
Kylie olhou ao redor também, sem saber se Daniel ainda estava visível. Ele não estava. Ela supôs que ele iria aparecer quando ela precisasse dele. Mas se sentia muito carente no momento. Olhando novamente para a mãe, Kylie soube no mesmo instante que ela tinha percebido que estavam na casa de John. Ela prendeu o fôlego.
— O que você está fazendo aqui?
Kylie pegou a mão da mãe.
— Você estava em apuros.
A mãe piscou, balançou a cabeça e caiu para trás, contra os travesseiros.
— Eu ainda estou sonhando.
— Não, mãe. Não foi um sonho.
— Foi, sim! Foi horrível, Kylie! Pelo menos partes dele foram. Você estava lutando e...
— Foi horrível. Mas não foi um sonho. — Kylie sabia apenas uma maneira de provar isso. Ela puxou a gola da camiseta para baixo e mostrou à mãe o corte. Provavelmente teria que levar alguns pontos, mas estava muito ocupada para se preocupar com isso. Claro, Holiday tinha visto o sangue na camiseta de Kylie e não sossegou enquanto não procurou algo na casa para limpar a ferida.
Os olhos da mãe se arregalaram.
— Você está... bem?
“Bem” era um termo muito vago, Kylie pensou. Não chegava nem perto de expressar o que Kylie sentia. Mas, ao mesmo tempo, as palavras lhe faltavam.
Ela tinha visto a mãe quase morrer estrangulada. Tinha sido forçada a lutar pela sua vida com uma espada reluzente. Tinha visto seu sequestrador matar o próprio pai. Tinha sido ferida por uma espada. Então fora obrigada a matar um homem.
— Sim — Kylie assentiu. — Eu estou bem. — Ela respirou e tentou se lembrar de como planejara contar a verdade à mãe.
— É claro que está tudo bem — a mãe deixou escapar. — É apenas um sonho.
Kylie apertou novamente a mão da mãe. Daniel havia dito que ia tentar entrar nos sonhos da mãe e ajudar a tornar tudo mais fácil. Será que ele tinha conseguido?
— Mãe, você se lembra de me dizer que pensou que havia algo meio mágico em Daniel?
A mãe concordou.
— Sim, mas...
— Bem, você estava certa. Ele tinha poderes mágicos. E isso fez com que eu também tenha.
A mãe agarrou os lençóis quando algo lhe ocorreu.
— Eu sonhei com ele, também! Ah, meu Deus! Isso não está fazendo sentido... — Ela se reclinou na cama e cobriu os olhos com as mãos.
— Vai fazer, mas você vai ter que me ouvir, mãe. — Ou talvez não fosse fazer sentido. Kylie não tinha levado semanas para aceitar tudo isso?
Ela fez uma pausa. A expressão “fazer sentido” era outro termo vago.
— Se lembra do perseguidor que eu pensei que tinha? Sabe, quando você me levou naquela terapeuta?
A mãe concordou, mas fracamente, quase como se estivesse prestes a desmaiar de novo. Então Kylie percebeu por que ela poderia de fato desmaiar.
— Respire, mãe.
A mãe encheu os pulmões de ar e Kylie continuou.
— Lembra que eu disse que ele vestia roupas do exército?
A mãe balançou a cabeça novamente.
— Eu sei agora que isso provavelmente assustou você porque.... Bem, meu pai não morreu no exército? Não foi essa parte que assustou você?
— Ele disse que você ia me contar tudo isso. O que está acontecendo, Kylie?
— Só o que papai lhe falou — Kylie disse calmamente. — Eu sei que isso parece loucura e sei que o que você... o que nós passamos aqui foi difícil, mas você tem que tentar acreditar.
Os olhos da mãe, fixados no ombro de Kylie, de repente se arregalaram. O frio surgiu no exato momento em que a mãe ofegou e Kylie soube que Daniel tinha aparecido. E se a expressão dela fosse uma indicação, Kylie tinha certeza de que a mãe podia vê-lo, também.
— Respire, mãe. — Kylie sentiu lágrimas nos olhos ao ver o olhar de perda que passou pelo rosto da mãe quando ela olhou para o homem que amara tanto tempo antes.
— O sonho que eu tive... você... — A voz da mãe vacilou.
— Eu disse que você iria me ver. — Daniel aproximou-se da beirada da cama. — Agora, eu quero que você ouça a nossa filha. Ela vai explicar tudo a você melhor do que eu. Eu tenho que ir agora, mas lembre-se do que eu disse. Você vai encontrar o amor novamente. Não lute contra isso.
Daniel se inclinou e beijou a mãe suavemente nos lábios.
— Vocês foram os amores da minha vida — disse ele.
Lágrimas toldaram os olhos da mãe novamente, quando Daniel se afastou. Ele olhou para Kylie e, em seguida, deu um beijo suave na bochecha dela.
Daniel olhou para a mãe e apontou para Kylie.
— Temos uma bela filha, não acha?
A mãe dela concordou.
Daniel olhou para Kylie.
— Eu sempre vou estar por perto quando vocês precisarem. — Ele desapareceu e Kylie enxugou as próprias lágrimas.
A mãe olhou para Kylie.
— Eu tive um sonho, ele me disse que tem cuidado de nós duas o tempo todo.
Kylie assentiu.
— Ele tem feito isso, mãe. Eu só comecei a vê-lo recentemente, mas ele sabia de muitas coisas da minha vida.
Kylie deslizou pela cama e abraçou a mãe, enquanto ambas choravam. Choravam por alguém que havia morrido anos atrás, mas de quem sempre sentiriam falta. Depois de vários minutos de lágrimas, Kylie contou para a mãe que Shadow Falls era um lugar para adolescentes com poderes mágicos, e falou sobre Mario e Roberto, e que John era na verdade o filho de Mario. Num tom suave, ela contou que eles tinham poderes mágicos, mas Mario e John eram na verdade adeptos de um tipo maligno de magia.
A mãe suspirou.
— Acabei de me lembrar. John não matou uma pessoa? Um homem? Onde está a polícia?
— Foi Mario. E, bem, Burnett cuidou disso.
A mãe pegou a mão de Kylie.
— Burnett de... da sua escola?
Kylie confirmou com a cabeça e percebeu que a mãe tinha parado de respirar novamente.
— Respire, mãe.
Ela suspirou e, em seguida, perguntou:
— Ele, este Burnett, é mágico também?
— Sim. — Kylie decidiu esperar um pouco antes de explicar sobre todas as espécies diferentes para a mãe. Vampiros, lobisomens e coisas assim poderiam assustá-la. E certamente também assustaram Kylie, pelo menos até que ela se tornou amiga de um e se apaixonou por outro.
A mãe fechou os olhos como se estivesse tentando se esquecer de algo, ou talvez tentando se lembrar.
— Havia um lobo e depois você matou... John. Oh, Deus, querida, você teve que matá-lo. O que a polícia vai dizer? — Ela se sentou na cama. — Vamos dizer que fui eu que o matei. Você me ouviu? Eu o matei, não você.
O coração de Kylie se encolheu diante da disposição da mãe de confessar o assassinato por ela. Como, Kylie se perguntou, um dia ela podia ter duvidado de que a mãe a amava?
— A polícia não vai aparecer. Burnett trabalha para uma organização como o FBI. Ele está cuidando disso para nós. Isso significa que você não pode nunca falar sobre isso a ninguém.
A mãe assentiu e, em seguida, se inclinou mais para perto.
— Mas, Kylie, como Burnett vai explicar os corpos? As pessoas vão saber que eu estava namorando John.
— Burnett está cuidando disso também.
Ela afundou de volta nos travesseiros.
— Vai levar um longo tempo para eu acreditar nisso.
— Eu sei — disse Kylie. — Eu levei, também.
Na manhã seguinte, segunda-feira, era Dia do Trabalho. Kylie desceu cedo e começou a preparar o café da manhã para ela e a mãe. Kylie tinha ficado com ela, e teve que lembrá-la muitas vezes de respirar. Elas dormiram na mesma cama durante toda a noite. Conversaram até de madrugada.
A mãe fez um monte de perguntas. Algumas respostas difíceis foram necessárias.
Sim, Kylie entrou na questão das espécies. Vampiros e lobisomens foram os mais difíceis de explicar, por causa do medo instintivo que as pessoas têm devido a todo o folclore em torno deles. Kylie contou para a mãe que ela era um camaleão, e decidiu esperar até mais tarde para explicar que isso significava que ela na verdade tinha um pouco de todas as espécies.
No fim de semana, Kylie também tinha falado com Della e Miranda.
Della ficou furiosa por Kylie ter desaparecido durante o plantão dela novamente.
— Está começando a pegar muito mal para mim! — disse Della.
Kylie prometeu falar com Burnett e assumir toda a culpa.
Miranda lembrou Kylie da promessa dela de nunca ir embora de Shadow Falls, e Kylie assegurou-lhe de que ela já estava voltando. E aquele dia era o grande dia: o casamento de Burnett e Holiday.
Ela e a mãe iriam mais cedo para ajudar nos preparativos.
Lucas tinha ligado para Kylie três vezes. Ele estivera hospedado na casa do tio desde a Lua cheia. Pelo visto, um funeral era uma cerimônia de vários dias para os lobisomens. E hoje, antes do casamento, Lucas tinha seu encontro com o Conselho, como estava previsto. Ela tinha se oferecido para ir junto, mas ele disse que precisava fazer aquilo sozinho. Ela pediu a Deus que ele fosse aceito.
Não que isso fosse mudar alguma coisa entre eles. Como a avó dele dissera, eles faziam parte das missões um do outro — missões que estavam em curso desde que tinham se conhecido anos atrás. Algumas coisas simplesmente faziam parte do destino.
Kylie esperava que fosse verdade o que Daniel havia dito sobre a mãe encontrar um novo amor. Infelizmente, Kylie tinha a sensação de que não seria seu padrasto. Ela tinha na verdade falado com Tom Galen aquela manhã. Haviam passado uns vinte minutos fazendo planos para a viagem de verão. Antes de desligar, ela lhe disse que o amava, e estava falando sério. Mesmo sabendo que ela teria Daniel como anjo da guarda, seu padrasto tinha um lugar cativo no seu coração e sempre teria. Ela sabia que Daniel não ia querer que fosse de outra maneira.
Kylie foi até a geladeira para pegar os ovos. O vapor subiu da embalagem de uma forma estranha.
— Adivinhe o que aconteceu!
Kylie reconheceu a voz do espírito.
— O quê?
— Eles não vão me mandar para o inferno!
Kylie olhou para o espírito sentado na bancada de sua mãe e sorriu. Ela usava um belo vestido, sem cortes e sem sangue, e tinha deixado a espada para trás, também.
— Você vai para o céu?
— Não, bem, ainda não. Eles estão me dando uma segunda chance. Você sabe, vou ter que fazer um trabalho para eles para compensar todas as minhas transgressões. Então, se eu ganhar o direito, vou para lá. Eu vou ficar com o meu menino. — Ela sorriu, radiante.
Kylie sorriu para ela.
— Eu gosto de segundas chances. — Ela fez uma pausa.
— Você sabe por que eles estão me dando essa segunda chance?
— Por quê? — perguntou Kylie.
— Porque eu amava o meu filho.
Kylie sorriu e se lembrou de que Mario tinha chamado aquilo de fraqueza, e, no entanto, fora exatamente isso que o levara à derrocada.
— É um sentimento poderoso — disse Kylie. E ela pensou em todos os amores que ela tinha em sua vida. Sua família. Seus amigos. Lucas.
— Eu tenho que ir agora — o espírito disse, sua imagem já desaparecendo.
— Foi bom te conhecer — disse Kylie.
— Você também. — A voz desvaneceu-se com o último resquício de frio. Kylie concentrava-se novamente no café da manhã, quando a mãe entrou na cozinha.
— Com quem você estava falando agora há pouco?
Kylie refletiu um instante se deveria falar a verdade e resolveu adiar.
— O telefone tocou a manhã toda.
— Quem ligou? — a mãe perguntou enquanto pegava uma xícara de café.
— Papai, Lucas e Sara — disse Kylie.
Os olhos da mãe se arregalaram.
— Seu pai?
— Tom — Kylie esclareceu.
A mãe assentiu.
— Eu acho... que seu pai não iria usar um telefone para falar com você.
Kylie sorriu.
— Acho que não.
A mãe se serviu de café e acrescentou uma colher de creme à sua xícara.
— Esse rapaz, Lucas... ele é... importante pra você?
Kylie assentiu.
— Sim, muito. Eu o amo.
Os olhos da mãe se arregalaram.
— Você dois já... você sabe...
A mãe ainda não conseguia dizer a palavra “sexo”.
— Ainda não — disse Kylie. — Mas vai acontecer em breve.
A mãe concordou com a cabeça.
— Você provavelmente vai consultar um ginecologista antes, para se informar sobre...
— ...métodos anticoncepcionais — Kylie terminou por ela.
A mãe assentiu.
— Vou — tranquilizou-a Kylie.
A mãe respirou fundo como se a conversa tivesse sido penosa, então perguntou:
— Sara vai vir te ver antes de você voltar?
— Não, ela está em Nova Orleans numa reunião de família. Foi para me dizer isso que ligou. Para me dizer isso e que as tias estavam quase sufocando-a ao abraçá-la com seus peitos enormes.
A mãe riu e, em seguida, sua expressão ficou aérea. Ela só ficou ali, olhando para seu café, mexendo-o sem parar. O barulho da colher contra a lateral da xícara parecia o único ruído no cômodo. Ela finalmente olhou para Kylie, a preocupação estampada no rosto.
— Quando eu levei Sara para visitá-la em Shadow Falls, ela me disse que você a curou. Você não a curou de fato... curou?
Ok, Kylie não poderia esconder tudo da mãe.
— Sim.
Kylie continuou ocupada com a rabanada, fingindo que aquilo não era grande coisa.
— Existe alguma outra coisa que você pode fazer? — a mãe perguntou, com respiração presa, na expectativa.
— Não é melhor eu contar um pouquinho por vez? — disse Kylie.
A mãe soltou um suspiro profundo que pareceu de alívio.
— Boa ideia!
Capítulo Quarenta e Quatro
A caminho de Shadow Falls, Kylie levou na mão o celular, à espera de uma mensagem ou ligação de Lucas. Será que ele tinha convencido o Conselho? Será que não? Se não tinha, será que ele já ia começar a guardar rancor dela? Ah, ela sabia que ele tinha dito que isso não iria acontecer, mas ela também sabia como isso era importante para ele.
Era por volta das três da tarde quando elas estacionaram em frente à placa “Colégio Shadow Falls”. Holiday e Burnett receberam Kylie e a mãe no portão. Trocaram abraços, e a mãe dela até pareceu receptiva a eles. No entanto, quando ela começou a atravessar o portão, começou a andar mais devagar.
— Algo errado? — perguntou Burnett.
— Só estou um pouco nervosa — a mãe respondeu. — Quero dizer, não sei se estou pronta para encontrar vampiros ou lobisomens.
Burnett olhou para Kylie, que encolheu os ombros como que dizendo que ela não tinha contado à mãe quem era o quê. Ele olhou para a mãe dela e sorriu.
— Não se preocupe, eles não são tão intimidantes quanto imagina.
— Havia algum nas reuniões dos pais? — ela perguntou, parecendo hesitante.
— Alguns — disse Burnett.
Kylie revirou os olhos, sabendo que a mãe surtaria quando soubesse que Burnett era um vampiro.
— Então o que devemos começar a fazer? — a mãe perguntou, olhando para Holiday como se quisesse esquecer toda a questão sobrenatural. — Quero dizer, viemos mais cedo para ajudar nos preparativos.
Holiday levou-as até o lugar onde seria a cerimônia. Vários alunos já estavam ajudando a arrumar as cadeiras.
Na primeira oportunidade que teve para sair de perto da mãe, ela perguntou a Holiday:
— Você já teve notícias de Lucas?
— Não, ele ligou mais cedo e disse que a reunião com o Conselho ia atrasar um pouco. Ele estará aqui em cerca de uma hora. Mas não pode se atrasar — disse ela. — Ele é um dos padrinhos de Burnett. — Pela primeira vez, os olhos de Holiday se estreitaram de preocupação. Ela estendeu a mão por cima do ombro e torceu o cabelo. Em seguida, deu um soluço.
Holiday olhou para a mãe de Kylie.
— Como é que ela está se saindo?
Kylie viu a mãe conversando com Chris, sem noção de que estava conversando com outro vampiro.
— Melhor do que eu pensava. Naturalmente, quando descobrir que já conversou com dois vampiros, vai ter um ataque.
Holiday sorriu e depois ficou séria.
— Como você está se saindo?
— Melhor do que eu pensava, também. — Kylie sorriu. — Mas vou ficar melhor quando Lucas chegar.
— Vou me sentir melhor, também — disse Holiday.
— Onde estão Della e Miranda? — perguntou Kylie, esperando vê-las por ali.
— Elas foram de carro até a cidade para pegar o bolo e as flores para a recepção. Se começarem uma discussão e derrubarem o bolo ou coisa assim, eu vou fazer uma cena. Juro, nunca vi duas meninas gostarem tanto de uma briga quanto elas.
Kylie sorriu.
— É, mas elas se adoram. Mas chega de falar dos outros. Você não deveria estar imersa numa banheira, relaxando para o grande momento?
Holiday sorriu.
— Acredite ou não, essa coisa toda com a sua mãe tem sido uma bênção. Fiquei mais preocupada com vocês duas do que com o casamento.
A próxima hora passou voando enquanto Kylie e a mãe acabavam de ajudar a colocar as cadeiras no lugar e a decorar o refeitório para a recepção.
Kylie tinha feito uma pausa e enviado uma mensagem a Lucas, mas ele não tinha respondido. Ela também não tinha visto Della e Miranda, e estava preocupada.
De repente ouviu gritos. Os gritinhos muito familiares de Della e Miranda. Kylie colocou os braços ao redor das suas duas melhores amigas e isso se transformou num abraço coletivo.
— Eu já disse o quanto amo vocês? — ela perguntou.
— Sim — disse Della. — E só vou deixar você ficar toda sentimental agora porque ouvi dizer que você arrasou ontem à noite.
Kylie deu um passo para trás e sorriu.
— Eu arrasei mesmo!
Kylie, Della, Miranda e a mãe tinha ido à cabana para se arrumarem para a cerimônia. Kylie estava animada por poder compartilhar a companhia de Della e Miranda com a mãe. Ou teria ficado se ainda não estivesse preocupada com Lucas. Onde ele estaria? O medo de que ele não tivesse conseguido e não quisesse enfrentá-la oprimiu seu coração. Kylie deixou o banheiro, onde todas estavam se maquiando, para verificar se havia alguma chamada perdida no celular.
— Você sabe que o telefone nunca toca quando a gente está olhando pra ele — Della comentou, enquanto seguia Kylie.
Kylie ergueu o olhar.
— Eu só estou...
— ...preocupada. Eu sei. Mas minha intuição diz que ele está bem.
Kylie olhou para a amiga vampira.
— Desde quando você é tão positiva?
— Desde que fui obrigada a dividir minha cabana com uma garota pra lá de otimista. — Ela sorriu.
Kylie riu e a abraçou. Poucos minutos depois, ela, a mãe e suas duas melhores amigas foram para o local da cerimônia. Elas tinham dito a Holiday que chegariam trinta minutos antes para ajudar a receber os convidados.
Kylie quase mandou uma mensagem para Holiday para perguntar se ela tinha recebido notícias de Lucas, mas decidiu não preocupar mais a noiva no dia do casamento.
As quatro tinham acabado de fazer a última curva quando Kylie o viu.
Ele caminhava lentamente em direção a elas. Seus olhos azuis, escuros e ardentes, estavam fixos nela. Obviamente vestido para o casamento, ele usava um paletó azul-marinho, calça da mesma cor e uma camisa branca. Não havia nada nele que não estivesse perfeito.
Kylie não tinha percebido que parara de andar até a mãe se inclinar e sussurrar:
— Respire, Kylie. — Havia um tom de provocação na voz dela. — Esse é o seu Lucas, não é? — ela perguntou.
Eu com certeza espero que ele seja meu! Lucas parou em frente a ela.
— Mãe, você se lembra de Lucas, não é? — perguntou Kylie, sem conseguir tirar os olhos dele.
— Por que não damos a estes dois um minutinho? — sugeriu Miranda.
A mãe de Kylie parecia nervosa.
— Claro, contanto que... não haja vampiros ou lobisomens por perto.
Della tossiu para encobrir a risada.
— Não se preocupe — Lucas disse. — Eu vou protegê-la.
E ele protegeria mesmo, Kylie pensou. Ele a tinha protegido. Salvara a vida dela.
— Ah, mas eu só estava preocupada comigo — a mãe esclareceu. — Kylie é amiga deles. E tenho certeza de que vou acabar me acostumando com eles também, mas o pensamento ainda me assusta.
— Eu entendo — disse Lucas, desviando os olhos para Kylie.
Quando sua mãe, Della e Miranda se afastaram, Kylie ouviu a mãe dizer:
— Será que eles só saem à noite?
Kylie revirou os olhos para Lucas e se aproximou dele:
— Eu não sei como ela acha que eles são.
— Não se preocupe — disse ele. — Ela vai se acostumar com a gente. A filha se acostumou.
Kylie sorriu.
— Por que você não respondeu a nenhuma das minhas mensagens? Eu estava morta de preocupação.
— Tive que desligar o celular e, quando saí de lá, já era tarde e... eu queria contar pessoalmente.
— Você entrou para o Conselho?
Os olhos azuis dele brilharam com um sorriso.
— Sim. — Ele olhou por cima do ombro, como se estivesse se certificando de que a mãe dela não estava olhando. Então a puxou contra si e a beijou. Um beijo suave.
— Eu tenho uma coisa pra você — ele sussurrou, seus lábios respirando as palavras contra os dela.
Ele enfiou a mão no bolso do casaco e tirou dali um anel. Um anel de ouro com um grande diamante. Um belo diamante em forma de lágrima, que mais parecia um anel de noivado. Kylie perdeu o fôlego.
— Este anel era da minha avó. Na carta, ela escreveu que você devia ficar com ele. E antes de você começar a entrar em pânico, deixe-me dizer que eu sei que talvez sejamos jovens demais para assumir um compromisso. É por isso que eu trouxe isso também. — Ele tirou do bolso uma corrente de ouro. — Eu quero que você o use nessa corrente. Vamos chamar isso de promessa, uma promessa de que, quando você colocar um anel nesse dedo... — ele passou a mão pela mão esquerda dela — esse anel vai ser o meu.
A emoção provocou um nó na garganta de Kylie.
— Você não tem que me dar nada para que eu faça essa promessa.
— Talvez — ele disse enquanto colocava o anel na corrente e se aproximava dela para colocá-la em volta do seu pescoço.
— Mas esse é apenas um pequeno lembrete para todos os Dereks do mundo de que você está comprometida.
Ela se ergueu na ponta dos pés e o beijou novamente. Desta vez, ele a puxou para a orla das árvores e aprofundou o beijo. Um beijo cheio de promessas. Promessas de mais beijos... e de um pouco mais. Ela deslizou a mão por dentro do paletó e envolveu a cintura quente do namorado. O zumbido vibrava através do corpo dele e ela ansiava por se entregar à tentação que esse som representava. Ela chegou perto de puxar a bainha da camisa de Lucas para fora e tocar suas costas nuas.
Ele se afastou, um pouco sem fôlego.
— É melhor eu levá-la agora para o casamento. Ou nós não vamos mais.
— Se eu não fosse a dama de honra, eu apoiaria essa ideia. — Ela arqueou uma sobrancelha em provocação.
Ele sorriu.
— Na próxima semana, vou fazer uma viagem a Dallas para começar a pôr em ordem os papéis da herança da minha avó. Você acha... Talvez você pudesse vir comigo... Podíamos ficar num belo hotel.
O coração de Kylie acelerou, sabendo o que ele estava pedindo, mas ela não hesitou.
— Parece perfeito.
Enquanto iam para a cerimônia, Burnett veio ao encontro deles. Ele parecia preocupado.
— Os Brightens estão aqui — disse ele.
— Para o casamento? — perguntou Kylie.
— Não, eles não sabiam do casamento; só vieram na esperança de vê-la. — Ele franziu a testa. — E só para tornar as coisas mais difíceis, seu avô e sua tia também estão aqui. Eu posso simplesmente mandar todos embora ou convidá-los para o casamento. A decisão é sua.
Kylie olhou para a mãe conversando com os outros convidados, enquanto se acomodavam.
— Não, eu acho que já é hora.
Trinta minutos depois, Kylie estava em pé na frente de todos, à espera que Holiday caminhasse até o altar. Lucas estava do outro lado da fila, observando-a, acariciando-a com o olhar. Ela sabia que ele estava pensando na semana seguinte. Que Deus a ajudasse, mas ia ser difícil pensar em outra coisa.
Ao lado de Lucas, Burnett demonstrava agitação. Ela nunca tinha visto o vampiro daquele jeito. Ele parecia mais um garoto que precisava ir ao banheiro.
Quando Kylie lhe havia dito, um pouco antes, que ele parecia nervoso, ele respondeu:
— Claro! Estou morrendo de medo que ela perceba que pode se sair muito melhor do que eu.
A música teve início. Kylie olhou para a multidão. A mãe estava sentada ao lado dos Brightens. Ela tinha ficado nervosa diante da ideia de conhecê-los, mas Kylie assegurou-lhe de que eles iam gostar dela. Do lado oposto, estavam sentados o avô de Kylie e sua tia-avó, Francyne. Kylie tinha apresentado a mãe a eles, também. E poucos minutos depois, apresentou os Brightens a Malcolm Summers e à tia-avó.
Como ela não poderia dizer a eles que aqueles eram o verdadeiro pai de Daniel e sua tia, ela disse que eram amigos da família. O clima ficou estranho por apenas um segundo, mas então o avô apertou a mão do senhor Brighten e depois abraçou a senhora Brighten e lhes disse com sinceridade que era um prazer conhecê-los. Kylie tinha certeza de que seu avô verdadeiro era grato aos Brightens pelo amor que tinham dedicado ao filho.
Todos, naquela fileira, olhavam para Kylie e sorriam. Por mais estranho que fosse, eles pareciam uma grande família feliz. E eles eram a sua família. Kylie nunca tinha se sentido tão orgulhosa! E lá no fundo ela ouviu a voz do pai dizer, Perfeito!
Na fila atrás deles, Kylie viu Perry sentado ao lado de Miranda.
Kylie apostaria seu melhor sutiã que os dois já estavam planejando o seu próprio casamento. E ao lado de Miranda estava Della, que olhava para a fileira de cadeiras à esquerda. Olhava para Steve. Será que Della nunca iria aceitá-lo? Sim, por alguns dias, Della tinha cedido um pouco, mas depois tinha voltado a rejeitar Steve novamente.
Hayden, sentado ao lado de Jenny, sorriu para Kylie. À direita de Jenny estava Derek. Kylie não deixou de reparar no ombro dele pressionado contra o dela.
Aqueles dois tinham algo especial e mereciam isso.
O olhar de Kylie deslocou-se para a fileira dos fundos, onde estavam Fredericka e o novo professor. Kylie não tinha ouvido Holiday falar nada sobre a loba ter pedido para namorá-lo. Mas Kylie tinha a sensação de que algo de bom tinha acontecido a Fredericka.
Respirando fundo, Kylie sentiu o amor no ar. De repente, Holiday chegou e começou a percorrer o caminho entre as cadeiras. A “Marcha Nupcial” começara a tocar. Burnett olhou para ela, hipnotizado. Kylie não o culpava. Holiday, em toda sua glória fae, estava linda! Seus olhos verdes cintilavam. Sua pele praticamente brilhava.
Por alguma razão, Kylie se lembrou do dia em que seu padrasto saiu de casa, quando ela achou que aquele era o pior dia de sua vida e que tudo em seu mundo estava mudando, e nada mais seria igual.
Em parte ela tinha razão. Tudo havia mudado.
Tudo.
Algumas coisas tinham sido mais difíceis, mas a maior parte delas... Uau! Ela estendeu a mão e tocou o anel pendurado no pescoço e olhou para Lucas, que sorriu para ela. Depois articulou as palavras: “Eu te amo”.
Kylie sussurrou as mesmas palavras para ele e não conseguiu deixar de pensar que aquele podia ser simplesmente o melhor dia de sua vida.
C. C. Hunter
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