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Meu pai me explicou pela primeira vez quando eu tinha sete anos de idade: o mundo é um sistema. A escola é um sistema. Bairros são um sistema. Cidades, governos, qualquer grande grupo de pessoas. Aliás, o corpo humano é um sistema, viabilizado por subsistemas biológicos menores.
A justiça criminal é definitivamente um sistema. A Igreja Católica — não o deixe começar. Há então os esportes organizados, as Nações Unidas e, é claro, o Concurso de Miss América.
— Você não precisa gostar do sistema — ele me explicou. — Não precisa acreditar nele nem concordar com ele. Mas precisa compreendê-lo. Se conseguir compreender o sistema, vai sobreviver.
Uma família é um sistema.
Quando voltei da escola naquela tarde, encontrei meu pai e minha mãe na sala da frente. Meu pai, professor de matemática do MIT, raramente chegava em casa antes das sete. Naquela ocasião, no entanto, ele estava ao lado do estimado sofá floral da minha mãe com cinco malas impecavelmente empilhadas a seus pés. Minha mãe estava chorando. Quando abri a porta da frente, ela se virou, como que para esconder o rosto, mas eu ainda pude ver seus ombros a sacudir.
Tanto meu pai quanto minha mãe estavam usando pesados casacos de lã, o que me pareceu estranho, considerando a tarde relativamente quente de outubro.
Meu pai falou primeiro:
— Você precisa ir até seu quarto. Pegue duas coisas. Quaisquer duas coisas que queira. Mas, rápido, Annabelle. Não temos muito tempo.
Minha mãe sacudia os ombros com mais intensidade. Larguei minha mochila. Fui até meu quarto, onde fiquei olhando para meu pequeno espaço pintado de verde e rosa.
De todos os momentos de meu passado, este é o que eu mais gostaria de ter de volta. Três minutos no quarto de minha adolescência. Passando os dedos pela minha mesa coberta de adesivos, pelos porta-retratos com fotos dos meus avós, excluindo a escova de cabelos e o espelho de mão folheados de prata. Passei reto pelos livros. Nem pensei na coleção de bolinhas de gude ou na pilha de trabalhos de arte do jardim de infância. Eu me lembro de ter feito uma escolha absolutamente angustiante entre meu cachorro de pelúcia preferido e meu mais novo tesouro, uma Barbie vestida de noiva. Escolhi o cachorro, Boomer, e agarrei meu adorado cobertor de bebê de flanela cor-de-rosa escura com barra de cetim cor-de-rosa claro.
Não escolhi meu diário. Nem a minha pilha de bilhetes bobos e cobertos de desenhos de minha melhor amiga, Dori Petracelli. Nem mesmo meu álbum de bebê, que teria ao menos preservado fotos da minha mãe para todos os anos que viriam. Eu era uma criança pequena e assustada, e me comportei com infantilidade.
Acho que meu pai sabia o que eu iria escolher. Acho que ele sabia o que estava por vir, mesmo naquela época.
Voltei para a sala. Meu pai estava do lado de fora, carregando o carro. Minha mãe estava com as mãos entrelaçadas no pilar que dividia a cozinha da copa. Por um instante, achei que ela não fosse soltar o pilar. Que ela iria marcar posição e exigir que meu pai parasse com aquela bobagem.
Em vez disso, ela acariciou meus longos cabelos escuros.
— Eu te amo muito.
Ela me deu um abraço muito forte, pressionando as bochechas úmidas de lágrimas em minha cabeça. No instante seguinte, ela me afastou, e secou o rosto rapidamente.
— Vamos sair, querida. Seu pai tem razão, precisamos nos apressar.
Segui minha mãe até o carro, levando Boomer embaixo do braço e com o cobertorzinho agarrado às mãos. Sentamos nos lugares de sempre — meu pai na direção, minha mãe ao lado dele e eu atrás.
Meu pai tirou nosso pequeno Honda da garagem. Folhas amarelas e alaranjadas caíram da faia, a balançar através da janela do carro. Estendi a mão no vidro, como se pudesse tocá-las.
— Acenem para os vizinhos — meu pai instruiu. — Finjam que está tudo normal.
Foi a última vez que vimos nosso pequeno beco sem saída cheio de carvalhos.
Uma família é um sistema.
Viajamos de carro até Tampa. Meu pai mencionou que a minha mãe sempre quisera conhecer a Flórida. Não seria bom viver em meio a palmeiras e praias de areias brancas depois de tantos invernos na Nova Inglaterra?
Como minha mãe havia escolhido o lugar, meu pai escolheu nossos nomes. Eu agora me chamaria Sally. Meu pai, Anthony, e minha mãe, Claire. Não é divertido? Uma nova cidade e um novo nome. Que aventura incrível.
No começo, tive pesadelos. Sonhos terríveis que me levavam a acordar gritando:
— Eu vi uma coisa, eu vi uma coisa!
— Foi só um sonho — meu pai tentava me acalmar, acariciando minhas costas.
— Mas eu estou com medo!
— Quietinha. Você é novinha demais para saber o que é medo. É para isso que servem os papais.
Nós não vivíamos em meio a palmeiras e praias de areias brancas. Meus pais nunca falaram nisso, mas, adulta, olhando em retrospectiva, agora me dou conta de que um doutor em matemática não poderia retomar a vida de onde havia parado, principalmente com uma nova identidade. Em vez disso, meu pai conseguiu emprego como taxista. Eu adorava o novo trabalho dele. Fazia com que ele ficasse em casa a maior parte do dia e parecia glamouroso ser apanhada na escola pelo meu táxi particular.
A nova escola era maior do que a anterior. Mais difícil. Acho que fiz amigos, embora não me lembre de muitas coisas peculiares de nossos dias na Flórida. Tenho mais uma noção geral de um período e um local surreais, onde minhas tardes eram passadas em treinamentos de defesa pessoal para crianças e até mesmo meus pais me pareciam estranhos.
Meu pai estava sempre de um lado para o outro em nosso apartamento de um quarto.
— O que me diz, Sally? Vamos decorar uma palmeira para o Natal! Sim, senhor, vamos nos divertir!
Minha mãe cantarolava distraidamente enquanto pintava a sala com um tom claro de coral, achava graça de ter comprado um maiô em novembro e parecia genuinamente intrigada ao aprender a cozinhar diferentes tipos de peixes brancos com escamas.
Acho que meus pais foram felizes na Flórida. Ou pelo menos determinados. Minha mãe decorou nosso apartamento. Meu pai retomou o hobby de desenhar. Nas noites em que ele não trabalhava, minha mãe posava para ele ao lado da janela, e eu ficava deitada no sofá, observando os traços hábeis de meu pai retratando o sorriso provocativo da minha mãe em um pequeno croqui de carvão.
Até o dia em que voltei da escola e encontrei malas prontas e rostos tristes. Não precisei perguntar nada dessa vez. Fui sozinha para o meu quarto. Peguei Boomer. Encontrei o cobertor. Então fui para o carro e me sentei no banco de trás.
Levou muito tempo para alguém dizer alguma coisa.
Uma família é um sistema.
Até hoje, não sei em quantas cidades moramos. Ou quantos nomes eu tive. Minha infância se tornou um borrão de novos rostos, novas cidades e as mesmas malas de sempre. Nós chegávamos e encontrávamos o apartamento de um quarto mais barato que houvesse. Meu pai saía no dia seguinte e sempre voltava com algum novo tipo de trabalho — revelador de fotos, gerente do McDonald’s, vendedor. Minha mãe arrumava nossos parcos pertences. Eu era enviada para a escola.
Sei que passei a falar menos. Sei que minha mãe fez o mesmo.
Apenas meu pai continuava incansavelmente alegre.
— Phoenix! Eu sempre quis viver no deserto. Cincinatti! Eis o meu tipo de cidade. St. Louis! Vai ser o lugar perfeito para nós.
Eu não me lembro de ter tido mais pesadelos. Eles simplesmente pararam ou foram substituídos por preocupações maiores. As tardes em que eu voltava para casa e encontrava minha mãe desmaiada no sofá. Os cursos-relâmpago de culinária porque ela não conseguia mais ficar de pé. Passar café e forçá-la a tomar. Procurar por dinheiro na bolsa dela para comprar comida antes de meu pai voltar do trabalho.
Quero acreditar que ele soubesse, mas até hoje, não tenho certeza. Parecia que, ao menos para minha mãe e eu, quanto mais nomes assumíssemos, mais abríamos mão de nós mesmas. Até que nos tornamos sombras silenciosas e etéreas seguindo no rastro tempestuoso do meu pai.
Ela aguentou até meus 14 anos. Kansas City. Permanecemos durante nove meses. Meu pai havia chegado a gerente do departamento automotivo da Sears. Eu estava pensando em ir a meu primeiro baile.
Cheguei em casa. Minha mãe — Stella, o nome dela na ocasião — estava de bruços no sofá. Desta vez, não houve chacoalhões suficientes que a acordassem. Tenho uma vaga lembrança de atravessar o corredor. De bater à porta do vizinho.
— Minha mãe, minha mãe, minha mãe! — eu gritava. E a pobre sra. Torres, que nunca havia ganhado um sorriso ou sequer um aceno da gente, abriu a porta do apartamento, atravessou em disparada o corredor e ao levar as mãos aos olhos marejados, declarou que minha mãe estava morta.
A polícia veio. Paramédicos. Eu os vi removerem o corpo dela. Vi o potinho de remédios cor de laranja cair do bolso dela. Um dos policiais o apanhou. Ele me olhou com pesar.
— Há alguém para quem devamos telefonar?
— Meu pai vai chegar logo.
Ele me deixou com a sra. Torres. Ficamos sentadas no apartamento dela, que cheirava a pimentas jalapeño e tamales. Admirei as cortinas listradas coloridas que havia nas janelas e as almofadas floridas que cobriam seu velho sofá marrom. Imaginei como seria ter uma casa de verdade novamente.
Meu pai chegou. Agradeceu profusamente à sra. Torres. Me levou embora.
— Entende que não podemos dizer nada a eles? — ele ficou repetindo sem parar, depois que estávamos novamente seguros em nosso apartamento. — Entende que precisamos tomar muito cuidado? Não quero que diga nada, Cindy. Nem uma palavra. É tudo muito, muito complicado.
Quando os policiais voltaram, ele falou. Eu aqueci a sopa de frango na cozinha minúscula. Não estava com fome. Só queria que nosso apartamento tivesse um cheiro parecido com o da sra. Torres. Queria minha mãe de volta em casa.
Encontrei meu pai chorando mais tarde. Preso ao sofá, segurando o robe cor-de-rosa surrado de minha mãe. Ele não conseguia parar. Soluçava, soluçava, soluçava.
Foi a primeira noite que meu pai dormiu na minha cama. Sei no que você está pensando, mas não foi nada disso.
Uma família é um sistema.
Esperamos por três meses pelo corpo da minha mãe. O Estado quis uma autópsia. Eu nunca entendi aquilo tudo. Mas, um dia, recebemos minha mãe de volta. Nós a acompanhamos do legista até a funerária. Ela foi colocada em um caixão com o nome de outra pessoa e, então, cremada.
Meu pai comprou dois pequenos frascos de vidro pendurados a correntes. Um para ele. Um para mim.
— Assim — ele disse —, ela estará sempre perto do nosso coração.
Leslie Ann Granger. Esse era o verdadeiro nome da minha mãe. Leslie Ann Granger. Meu pai encheu os frascos com cinzas, e os penduramos no pescoço. O resto de suas cinzas, soltamos ao vento.
Por que comprar uma lápide que apenas iria cimentar uma mentira?
Voltamos ao apartamento, e desta vez meu pai não teve de pedir. Eu havia feito nossas malas três meses antes. Sem Boomer e cobertor desta vez. Eu os tinha colocado no caixão da minha mãe e os cremado com ela.
Depois que nossa mãe morre, precisamos parar com coisas infantis.
Escolhi o nome Sienna. Meu pai seria Billy Bob, mas eu o deixaria usar B.B. Ele revirou os olhos, mas concordou. Como eu havia escolhido os nomes, ele escolheu a cidade. Fomos para Seattle. Meu pai sempre quis conhecer a Costa Oeste.
Nos saímos melhor em Seattle, cada um a seu jeito. Meu pai voltou para a Sears e, sem nunca revelar que já havia trabalhado em uma loja antes, foi considerado um talento absolutamente natural que alçou voo a cargos gerenciais. Eu me matriculei em mais uma escola pública lotada e carente de recursos onde desapareci em meio às massas sem nome e sem rosto que tiravam B.
Também cometi meu primeiro ato de rebeldia: entrei para uma igreja.
A pequena Igreja Congregacional ficava a uma quadra da nossa casa. Eu passava por ela todos os dias na ida e na volta da escola. Um dia, enfiei a cabeça para espiar. No segundo dia, eu me sentei. No terceiro dia, me vi conversando com o reverendo.
Queria saber se Deus nos deixa entrar no céu caso sejamos enterrados com o nome errado.
Conversei por um longo tempo com o reverendo naquela tarde. Ele usava um par de óculos fundo de garrafa. Tinha ralos cabelos brancos. Um sorriso bom. Quando cheguei em casa, passava das seis horas, meu pai estava esperando e a comida não estava posta na mesa.
— Onde você estava? — ele perguntou.
— Eu me atrasei...
— Sabe como fiquei preocupado?
— Eu perdi o ônibus. Estava falando com um professor sobre um dever de casa. Eu... precisei vir caminhando para casa. Não quis incomodar você no trabalho. — Eu estava falando sem parar, com o rosto vermelho, não parecendo nem um pouco comigo mesma.
Meu pai ficou me olhando com a testa franzida por um bom tempo.
— Você sempre pode ligar para mim — ele disse abruptamente. — Estamos nessa juntos, filha.
Ele remexeu meu cabelo.
Eu sentia saudade da minha mãe.
Então fui para a cozinha e comecei a preparar o atum refogado.
Descobri que mentir vicia tanto quanto qualquer droga. Quando vi, havia dito a meu pai que tinha entrado para a equipe de estudos. Isso, é claro, me garantiu todas as tardes que eu quisesse para ficar na igreja, ouvindo os ensaios do coral, conversando com o reverendo, simplesmente sentindo o ambiente.
Eu sempre tive longos cabelos escuros. Minha mãe costumava prendê-los em uma trança quando eu era menina. Na adolescência, no entanto, eu os havia deixado como uma cortina impenetrável que cobria o rosto. Um dia, decidi que meus cabelos estavam tapando a verdadeira beleza dos vitrais, fui ao salão de cabeleireiro da esquina e os cortei.
Meu pai ficou uma semana sem falar comigo.
E descobri, sentada na minha igreja, vendo meus vizinhos irem e virem, que meus moletons enormes eram desajeitados demais e meus jeans baggy não caíam bem em mim. Gostava de pessoas que usavam cores vivas. Gostava da forma como as cores chamavam a atenção de seus rostos e destacavam seus sorrisos. Aquelas pessoas pareciam felizes. Normais. Carinhosas. Aposto que não faziam uma pausa de três segundos sempre que alguém perguntava seus nomes.
Então comprei roupas novas. Para a equipe de estudos. E comecei a passar todas as noites de segunda-feira na cozinha preparando o sopão — exigência da escola, disse a meu pai. Todos precisavam preencher determinado número de horas de serviço voluntário. Havia um rapaz muito legal que também era voluntário lá. Cabelos castanhos. Olhos castanhos. Matt Fisher.
Matt me levou ao cinema. Eu não me lembro do que estava passando. Tinha noção do braço dele em meu ombro, do suor em minhas mãos, da minha respiração ofegante. Depois do cinema, fomos tomar sorvete. Estava chovendo. E ele pôs o casaco sobre a minha cabeça.
E então, embaixo do casaco perfumado dele, ele me deu meu primeiro beijo.
Voltei flutuando para casa. Com os braços na cintura e um sorriso sonhador no rosto.
Meu pai me recebeu na porta da frente. Com cinco malas atrás dele.
— Eu sei o que você anda fazendo! — ele declarou.
— Shhhh — eu fiz, pondo um dedo nos lábios dele. — Shhhh.
Passei dançando pelo meu pai perplexo. Fui até meu minúsculo quarto sem janela. E por oito horas fiquei deitada na cama, me permitindo ser feliz.
Ainda penso em Matt Fisher às vezes. Ele está casado? Tem dois filhos? Será que fala sobre a menina mais maluca que conheceu? Ele a beijou em uma noite. Nunca mais a viu.
Meu pai havia saído quando acordei de manhã. Voltou perto do meio-dia e colocou a identidade falsa em minha mão.
— E não quero ouvir nada sobre os nomes — ele disse quando levantei a sobrancelha diante da minha nova identidade como Tanya Nelson, filha de Michael. — Conseguir documentos de uma hora para outra já me custou dois mil dólares.
— Mas você escolheu os nomes.
— Foi tudo o que o cara conseguiu.
— Mas você trouxe os nomes para casa — insisti.
— Está bem, está bem, que seja.
Ele já estava com uma mala em cada uma das mãos. Fiquei parada com os braços cruzados e o rosto implacável.
— Você escolheu os nomes, eu escolho as cidades.
— Quando estivermos no carro.
— Boston — eu disse.
Ele arregalou os olhos. Percebi que ele queria discutir. Mas regras eram regras.
Uma família é um sistema.
Quando precisamos passar a vida fugindo da Coisa Ruim, precisamos imaginar como será se um dia, finalmente, nos apanharem. Acho que meu pai nunca precisou saber.
Os policiais dizem que ele desceu da calçada e que o táxi em alta velocidade o matou instantaneamente. Lançou seu corpo a seis metros de distância. Ele bateu com a testa em um poste de ferro, que afundou seu rosto.
Eu tinha 22 anos de idade. Finalmente havia acabado de passar por uma interminável sucessão de escolas. Trabalhava no Starbucks. Caminhava muito. Guardei dinheiro para comprar uma máquina de costura. Comecei meu próprio negócio fazendo cortinas exclusivas com almofadas que combinavam.
Eu gostava de Boston. Voltar para a cidade da minha infância não me deixou paralisada de medo. Pelo contrário, na realidade. Eu me sentia segura em meio às massas em constante movimento. Gostava de passear pelo Jardim Público e olhar vitrines na Newbury Street. Gostava até mesmo da volta do outono, em que os dias ficavam com cheiro de carvalho e as noites, frias. Encontrei um apartamento absurdamente pequeno no extremo norte da cidade, onde podia ir caminhando até o Mike’s para comer cannolis frescos sempre que quisesse. Peguei um cachorro. Aprendi inclusive a preparar tamales. À noite, ficava em minha janela gradeada no quinto andar segurando as cinzas da minha mãe na palma da mão e vendo os estranhos anônimos que passavam lá embaixo.
Dizia a mim mesma que era adulta agora. Dizia a mim mesma que não tinha mais nada a temer. Meu pai havia dirigido meu passado. Mas eu era dona do meu futuro e não o passaria fugindo. Havia escolhido Boston por um motivo e estava lá para ficar.
Então, um dia, tudo fez sentido. Peguei o Boston Herald e li na primeira página: 25 anos depois, eu finalmente havia sido morta.
capítulo 2
O telefone toca.
Ele se vira. Pega um travesseiro. Enfia na cabeça.
O telefone toca.
Ele tira o travesseiro da cabeça e se tapa com as cobertas.
O telefone toca.
Gemido. Ele abre um olho de má vontade. Duas e meia da manhã.
— Droga, droga, droga...
Ele estende a mão, remexe no aparelho e leva o fone ao ouvido.
— Que foi?
— Vejo que está alegre como sempre.
Bobby Dodge, o mais novo detetive policial do estado de Massachusetts, resmungou mais alto.
— É o meu segundo dia. Você não pode me dizer que estou sendo chamado no meu segundo dia. Ei. — Seus neurônios, finalmente, acordaram. — Espere um pouc...
— Sabe o antigo hospital psiquiátrico de Mattapan? — a detetive de Boston D.D. Warren perguntou do outro lado da linha.
— Por quê?
— Tem uma cena de crime.
— Está querendo dizer que o Departamento de Polícia de Boston tem uma cena de crime. Bom para você. Vou voltar a dormir.
— Esteja aqui em trinta minutos.
— D.D. ... — Bobby se sentou com muito esforço, acordado sem querer e nem um pouco feliz. Ele e D.D. eram parceiros de longa data, mas duas e meia da manhã eram duas e meia da manhã. — Se você e seus amigos querem perturbar um novato, escolham um do departamento de vocês. Estou velho demais para essa merda.
— Você precisa ver isto — ela disse apenas.
— Ver o quê?
— Trinta minutos, Bobby. Não ligue o rádio. Não ouça o rádio da polícia. Preciso que veja tudo sem interferências. — Houve uma pausa. Falando mais baixo, ela acrescentou: — Bobby, se prepare. Este caso vai ser feio. — E, então, desligou.
Ser acordado no meio da noite não era novidade para Bobby Dodge. Ele servira quase oito anos como atirador de elite da Equipe Especial de Operações Táticas da Polícia Estadual de Massachusetts, permanecendo de sobreaviso vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana e era, inevitavelmente, acionado na maioria dos fins de semana e feriados. Isso não o incomodava na época. Gostava do desafio e se orgulhava de pertencer a um time de elite.
Dois anos atrás, no entanto, sua carreira saíra dos trilhos. Bobby não tinha sido apenas chamado para uma cena de crime. Ele havia matado um homem. O departamento acabou declarando uso justificável de força letal, mas nada mais foi como antes. Seis meses antes, quando apresentara seu pedido de desligamento da equipe especial, ninguém questionou a decisão. E, mais recentemente, quando passara na prova para detetive, todos concordaram: a carreira de Bobby podia se beneficiar de um novo começo.
Então, ali estava ele, detetive de homicídios com dois dias de serviço, já encarregado de meia dúzia de casos ativos, mas não urgentes, o suficiente para se manter ocupado. Assim que provasse que não era um imbecil completo, talvez o deixassem até mesmo liderar uma investigação. Ou, então, ele sempre podia ter a esperança de pegar um caso do começo, ser o plantonista de sorte tirado da cama para um incidente importante. Detetives costumavam brincar que homicídios aconteciam apenas às 3h05 ou às 16h50, exatamente a tempo do turno começar mais cedo e durar a noite toda.
Telefonemas no meio da noite definitivamente faziam parte do trabalho. Só que telefonemas deveriam ser feitos de outro policial do estado, não de um detetive de Boston.
Bobby franziu a testa de novo, tentando entender a situação. Como regra geral, detetives de Boston detestavam convidar colegas estaduais para suas festinhas. Além disso, se uma detetive do Departamento de Polícia de Boston sinceramente acreditava que podia precisar de um especialista do estado, o comandante dela entraria em contato com o comandante de Bobby, e todos operariam com toda a abertura e confiança que seria de se esperar de um casamento arranjado como aquele.
Mas D.D. havia ligado diretamente para ele. O que levou Bobby a teorizar, enquanto vestia as calças, brigava com uma camisa de manga comprida e jogava água no rosto, que D.D. não queria ajuda do estado. Ela queria ajuda dele.
E isso deixou Bobby desconfiado.
Fez uma última parada na frente da cômoda, movimentando-se à luz fraca da lâmpada noturna. Pegou o distintivo de detetive, o pager, a Glock .40 e — a arma mais valorizada pelos detetives em ação — o minigravador Sony. Bobby olhou para o relógio.
D.D. queria que ele estivesse lá em trinta minutos. Ele chegaria dentro de vinte e cinco. O que dava a ele cinco minutos extras para descobrir que diabo estava acontecendo.
Mattapan ficava em uma linha reta pela rodovia I-93 desde o prédio de três andares de Bobby no sul de Boston. Como das três às cinco da manhã era provavelmente o único momento do dia em que a 93 não estava congestionada, Bobby percorreu o trajeto rapidamente.
Pegou a saída pela Avenida Granite e seguiu à esquerda pela Gallivan Boulevard, entrando na Morton Street. Parou ao lado de um velho Chevy em um semáforo. Os ocupantes, dois rapazes negros, olharam deliberadamente para seu Crown Vic. Eles o encararam com o melhor olhar de mau que tinham. Bobby respondeu com um aceno alegre. No instante em que o farol abriu, os garotos viraram à direita e saíram em alta velocidade, indignados.
Só mais um momento glorioso no policiamento da comunidade.
Lojas de rua deram lugar a residências. Bobby passou por ruas laterais repletas de fileiras de prédios de três andares, cada edifício parecendo mais velho e dilapidado que o anterior. Imensas áreas de Boston haviam sido revitalizadas nos últimos anos, com projetos habitacionais dando lugar a luxuosos condomínios na beira da água. Cais abandonados se tornaram centros de convenção. A cidade toda estava sendo estratégica e cosmeticamente reorganizada para atender às excentricidades do projeto do grande túnel, conhecido com Big Dig.
Alguns bairros haviam vencido. Mattapan claramente não havia.
Mais um farol. Bobby diminuiu a velocidade e olhou para o relógio. Oito minutos para o horário estimado de chegada. Virou o carro à esquerda, dando a volta no Cemitério Mt. Hope. Daquele ângulo, pôde ver surgir pela janela lateral a enorme terra de ninguém que era o Hospital Psiquiátrico de Boston.
Com cerca de setenta hectares de espaço verde lindamente arborizado, o Hospital Psiquiátrico de Boston era naquele momento a área de desenvolvimento imobiliário mais disputada do estado. Era também o antigo lar de um hospício de cem anos de loucos, um dos lugares mais assustadores da região.
Dois prédios decadentes de tijolos à vista no topo do morro olhavam para a população da cidade com janelas de vidros quebrados. Imensos carvalhos e faias se abriam para o céu noturno, com os galhos nus formando silhuetas de mãos retorcidas.
Diziam que o hospital havia sido construído em meio a terrenos arborizados para oferecer um ambiente “sereno” aos pacientes. Várias décadas de prédios superlotados, estranhos gritos noturnos e dois assassinatos violentos depois, os moradores da região ainda falavam de luzes que apareciam aleatoriamente no meio das ruínas, de gemidos assustadores sussurrados de debaixo das pilhas de tijolos se despedaçando, de silhuetas vistas entre as árvores.
Até então, nenhuma das histórias havia afastado os empreiteiros. A Sociedade Audubon havia garantido uma parte da propriedade, transformando-o em uma popular reserva natural. Uma grande construção estava sendo realizada em um laboratório novo em folha para a UMass, enquanto Mattapan fervia com boatos de habitações populares ou, talvez, uma nova escola.
O progresso acontecia. Mesmo em instituições psiquiátricas assombradas.
Bobby virou na esquina final do cemitério e, finalmente, viu o grupo reunido. Lá, no lado esquerdo do terreno: gigantescos canhões de luz em meio às esqueléticas faias, iluminando a noite escura, sem lua. Mais luzes, minúsculos pisca-piscas vermelhos e azuis, ziguezagueando no meio das árvores enquanto carros extras de polícia passavam correndo pela estrada sinuosa que levava até uma das extremidades da propriedade. Esperava que o contorno do antigo hospital, uma ruína relativamente pequena de três andares, pudesse ser visto, mas as viaturas policiais mudavam de direção, embrenhando-se no meio das árvores.
D.D. não estava mentindo. O Departamento de Polícia de Boston tinha uma cena de crime e, a julgar pelo movimento, era das grandes.
Bobby terminou de contornar o cemitério. Faltando um minuto para a hora estimada de chegada, ele passou pelo portão preto escancarado e seguiu na direção das ruínas no alto do morro.
Viu o primeiro patrulheiro quase que imediatamente. O policial estava parado no meio da rua, com um colete de segurança cor de laranja e armado com uma lanterna de luz alta. O garoto mal parecia ter barba. No entanto, fez uma cara bem feia ao examinar o distintivo de Bobby e resmungou com desconfiança quando viu que Bobby era da polícia estadual.
— Tem certeza de que está no lugar certo? — o garoto perguntou.
— Não sei. Digitei “cena de crime” no GPS e foi aonde ele me trouxe.
O garoto olhou para ele inexpressivamente. Bobby suspirou.
— Recebi um convite pessoal da detetive Warren. Se tiver algum problema com isso, fale com ela.
— Quer dizer sargento Warren?
— Sargento? Ora, ora, ora.
O garoto devolveu a credencial a Bobby, que seguiu morro acima.
O primeiro edifício abandonado apareceu à esquerda, as janelas envidraçadas refletindo imagens duplicadas de seus faróis. A estrutura de tijolos estava cedendo na fundação, com as portas da frente fechadas a cadeado e o telhado em ruínas, do interior para o exterior.
Bobby virou à direita, passando por uma segunda edificação, que era menor e em estado de conservação ainda pior. A essa altura, havia carros se empilhando na lateral da rua, estacionados colados uns aos outros enquanto os veículos de detetives, a van do legista e os técnicos de cenas de crime disputavam espaço.
No entanto, os holofotes estavam ainda mais além. Eram um brilho distante sob as copas das árvores. Bobby podia ouvir o zumbido do gerador, levado até a van da cena do crime para iluminar o local. Aparentemente, teria uma caminhada pela frente.
Estacionou no meio de um mato ao lado de três carros-patrulha. Pegou uma lanterna, papel e caneta. Então, pensando melhor, pegou um casaco mais quente.
A noite de novembro estava fria, com menos de 5 graus centígrados, coberta de geada e com uma leve névoa. Não havia ninguém por perto, mas o raio da lanterna iluminou o caminho percorrido pelos investigadores que tinham chegado antes dele. Suas botas faziam um barulho forte conforme ele andava.
Ainda podia escutar o gerador, mas nada de vozes até então. Abaixou-se para passar por baixo de alguns arbustos mais altos e sentia a terra ficar pantanosa sob seus pés antes de se firmar novamente. Passou por uma pequena clareira, notando uma pilha de refugo — madeira apodrecida, tijolos, alguns baldes de plástico. Depósito ilegal de lixo havia sido um problema no terreno durante anos, mas a maior parte ocorria perto da cerca. Aquilo estava muito no centro. Provavelmente, eram restos do próprio hospício, ou talvez de um dos recentes projetos de construção. Velho, novo, não dava para saber com aquela luz.
O ruído ficou mais forte, o zumbido do gerador tornou-se um rugido grave. Reclinou-se no colarinho do casaco, cobrindo as orelhas. Veterano com dez anos como patrulheiro, Bobby havia vivenciado muitas cenas de crime. Conhecia o barulho. Conhecia o cheiro.
Mas aquela era sua primeira cena de crime como detetive de verdade. Pensou que era por isso que parecia tão diferente. Então, passou por mais uma fileira de árvores e parou de repente.
Homens. Por toda parte. A maioria usando terno, provavelmente 15, 18 detetives e, facilmente, uma dúzia de uniformizados. Havia também os homens grisalhos usando os pesados sobretudos de lã. Oficiais mais velhos, a maioria dos quais Bobby reconheceu de várias festas de aposentadoria de outros pistolões. Avistou um fotógrafo e quatro técnicos de cenas de crime. Finalmente, uma única mulher — se a memória não falhava, era uma assistente do procurador de Justiça.
Muita gente, especialmente considerando a consagrada política de Boston de exigir um relatório por escrito de qualquer um que tivesse estado em uma cena de crime. Isso tendia a manter patrulheiros curiosos de fora e, o mais importante, a chefia longe.
Mas todo mundo estava ali naquela noite, andando em pequenos círculos sob a luz dos holofotes brilhando, batendo os pés no chão para se aquecer. O centro de tudo parecia ser o toldo azul erguido mais para o fundo da clareira. Mas, daquele ângulo, Bobby ainda não conseguia ver qualquer sinal de corpo ou de provas de algum crime, nem mesmo cobertos por uma lona.
Ele avistava um campo, uma barraca e uma porção de investigadores de homicídio em silêncio.
O que levou seus pelos da nuca a se arrepiar.
Bobby ouviu um barulho de movimentação à esquerda. Ele se virou e viu duas pessoas chegando à clareira por um segundo caminho. Na frente estava uma mulher de meia-idade vestindo capas de plástico, seguida por um homem mais jovem, seu assistente. Bobby reconheceu a mulher imediatamente. Era Christie Callahan, do escritório do Instituto Médico-Legal. Callahan era a antropóloga forense encarregada do caso.
— Ah, merda.
Mais movimentação. D.D. apareceu magicamente de debaixo do toldo azul. O olhar de Bobby passou de seus traços pálidos e cuidadosamente contidos às roupas cobertas por capas plásticas e à escuridão absoluta atrás dela.
— Ah, merda — ele resmungou de novo, mas era tarde demais.
D.D. vinha diretamente a ele.
— Obrigada por ter vindo — ela disse. Tiveram um momento de constrangimento, ambos tentando decidir se deviam apertar as mãos, se beijar no rosto, alguma coisa. D.D. finalmente pôs as mãos para trás e isso resolveu a questão. Os dois agiriam como profissionais conhecidos.
— Não gostaria de decepcionar uma sargento — Bobby disse.
D.D. deu um pequeno sorriso diante do reconhecimento do novo posto, mas não fez nenhum comentário. Não era a hora ou o lugar para isso.
— O fotógrafo já fez a primeira rodada de imagens — ela disse rapidamente. — Estamos esperando que o cinegrafista termine o trabalho dele, e, então, você poderá descer.
— Descer?
— A cena do crime é subterrânea. A entrada é abaixo do toldo. Não se preocupe, temos uma escada, então não é difícil de acessar.
Bobby deu um tempo para processar a informação.
— Qual é o tamanho?
— A câmara tem aproximadamente um metro e oitenta por três. Determinamos um máximo de três pessoas por vez, se não, não dá para se mexer.
— Quem encontrou?
— Uns meninos. Descobriram ontem à noite, acho, enquanto bebiam e/ou faziam outras coisas para se divertir. Acharam que era bacana o bastante para voltarem esta noite com uma lanterna. Não vão fazer isso de novo.
— Ainda estão por aqui?
— Não. Os paramédicos deram sedativos a eles e os levaram embora. É melhor assim. Eram inúteis para nós.
— Monte de gente de terno — Bobby comentou, olhando a área ao redor deles.
— É.
— Detetive chefe?
Ela levantou o rosto:
— Sou a sorteada.
— Sinto muito, D.D.
Ela fez uma careta, com a expressão mais triste, agora que estavam só os dois.
— É, nem brinque.
Ouviram o som de alguém limpando a garganta atrás deles.
— Sargento?
O cinegrafista havia saído de debaixo da lona e estava esperando pelo reconhecimento de D.D.
— Voltaremos a gravar em intervalos — D.D. disse ao cinegrafista, se virando novamente na direção das pessoas reunidas. — Cerca de uma vez por hora para manter as coisas atualizadas. Pode pegar um café, se quiser. Tem uma térmica na van. Mas fique por perto, Gino. Só por garantia.
O policial assentiu com a cabeça e seguiu para a van, onde o gerador rugia.
— Muito bem, Bobby. É a nossa vez.
Ela começou a caminhar sem esperar para ver se ele a seguiria.
Embaixo do toldo azul, Bobby encontrou uma pilha de capas de plástico para as roupas e os sapatos, e toucas de cabelo. Vestiu o material de papel por cima das roupas, enquanto D.D. trocava as capas dos sapatos sujas por um novo par. Havia duas máscaras ao lado das capas. Como D.D. não apanhou uma delas, ele também não pegou.
— Eu vou na frente — D.D. disse. — Vou gritar “Pronto” quando chegar ao fundo, daí é a sua vez.
Ela fez um gesto para trás, e Bobby viu uma fraca luminosidade saindo de uma abertura de mais ou menos sessenta centímetros por sessenta no chão. A parte superior de uma escada de metal se projetava acima da abertura na terra. Ele teve uma estranha sensação de dèjá vu, como se devesse saber exatamente o que estava vendo.
E então, no instante seguinte, ele entendeu. Bobby soube por que D.D. o havia chamado. E soube o que veria quando descesse no poço.
D.D. passou os dedos no ombro dele. O toque o chocou. Ele se encolheu, e ela recuou imediatamente. Os olhos azuis dela estavam sombrios, grandes demais em seu rosto pálido.
— Te vejo em seguida, Bobby — ela disse em um tom de voz baixo.
D.D. desapareceu pela escada.
Dois segundos depois, ele ouviu sua voz novamente:
— Tudo pronto.
Bobby desceu para o abismo.
capítulo 3
Não estava escuro. Holofotes haviam sido instalados no canto e fios de luminárias móveis estavam pendurados no teto. Os técnicos de cenas de crime precisavam de luz forte para realizar seu trabalho.
Bobby manteve o olhar focado à frente, respirando superficialmente pela boca e processando a cena em pequenos flashes.
A câmara era profunda, com pelo menos um metro e oitenta de altura. A cabeça dele não chegava a tocar no teto. Larga o bastante para três pessoas ficarem paradas lado a lado, a câmara seguia à frente pelo comprimento de quase dois corpos. Não era um sumidouro aleatório, ele pensou imediatamente, mas algo construído de propósito e meticulosamente.
A temperatura mantinha-se baixa, mas não estava frio. Isso o lembrou das cavernas que visitara uma vez na Virgínia, com o ar constantemente a 13 graus centígrados, como um grande refrigerador.
O cheiro não era tão ruim quanto temia. Era terroso, permeado por um fraco odor de decomposição. O que quer que houvesse acontecido ali, já estava quase acabado, o que explicava a presença da antropóloga forense.
Ele tocou em uma parede de terra com a mão enluvada. A sensação era de algo compacto, ligeiramente rígido. Não era irregular, como seria se tivesse sido escavado com uma pá. O espaço era, provavelmente, grande demais para esse tipo de trabalho, de qualquer maneira. Ele seria capaz de apostar que a caverna havia sido cavada originalmente com uma retroescavadeira. Talvez uma galeria de escoamento que tivesse sido engenhosamente reformulada com outro propósito.
Avançou pouco mais de meio metro e chegou à primeira viga de apoio, um velho pedaço de madeira gasto, de sessenta centímetros por um metro e vinte. Ela integrava uma estrutura de sustentação rudimentar, que formava um arco por cima do ambiente. Havia um segundo arco um metro depois do primeiro.
Ele explorou o teto, tateando-o. Não era de terra, mas de compensado.
D.D. viu o gesto dele.
— Todo o teto é de madeira — ela disse. — Todo coberto de madeira e entulho, com exceção da abertura, onde ele deixou um painel de madeira exposto pelo qual podia entrar e sair. Quando chegamos aqui, parecia entulho de construção largado aleatoriamente no meio do mato. Ninguém poderia imaginar... Ninguém poderia saber... — Ela suspirou, olhou para baixo e, então, pareceu tentar afastar tudo com um chacoalhão no corpo.
Bobby acenou rapidamente com a cabeça. O espaço era relativamente limpo e espartanamente mobiliado: um velho balde de dezoito litros ao lado da escada, letras desbotadas pelo tempo, apenas com sombras muito claras. Uma cadeira dobrável de metal com os cantos enferrujados encostada na parede da esquerda. Uma estante de metal, atravessando o comprimento da parede oposta coberta com persianas de bambu prestes a se desintegrar.
— A escada original? — ele perguntou.
— De corrente de metal — D.D. respondeu. — Já a pegamos como prova.
— Você falou em cobertura de compensado escondendo a abertura? Encontraram algum bom pedaço de madeira por perto?
— Um de aproximadamente um metro de comprimento e cinco centímetros de espessura. Casca de árvore gasta. Apoiado na cobertura de compensado, como seria de se esperar.
— E a estante? — Ele deu um passo na direção dela.
— Ainda não — D.D. falou com firmeza.
Ele disfarçou a surpresa, encolhendo os ombros e, então, se virou para ela. A cena era dela, afinal.
— Não estou vendo muitas indicações de provas — ele disse, afinal.
— É que está limpo. É como se o sujeito o tivesse fechado. Ele o usou. Por um tempo, posso apostar, e então um dia simplesmente partiu para outra.
Bobby ficou olhando para ela atentamente, porém D.D. não prosseguiu.
— Parece velho — ele comentou.
— Está abandonado — D.D. especificou.
— Tem alguma data?
— Nada científico. Teremos de esperar pelo relatório da Christie.
Ele ficou aguardando novamente, porém mais uma vez ela se recusou a dar informações adicionais.
— É, está bem — ele disse depois de um instante. — Parece trabalho dele. Mas nós dois só temos detalhes de segunda mão. Você entrou em contato com os detetives que trabalharam na cena original?
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu estou aqui desde a meia-noite. Ainda não tive chance de olhar os arquivos antigos. Mas faz muitos anos. Quaisquer que tenham sido os policiais que cuidaram do caso, já devem estar aposentados.
— Dezoito de novembro de 1980 — Bobby disse em voz baixa.
D.D. apertou os lábios.
— Eu sabia que você iria se lembrar — ela murmurou com ar mal-humorado. Endireitou os ombros. — O que mais?
— Aquele poço era menor, tinha um metro e vinte por um e oitenta. Não lembro de qualquer menção a vigas de apoio no relatório policial. Acho que dá para dizer que era menos sofisticado do que este. Meu Deus. Ler a respeito ainda não é o mesmo que ver a coisa de verdade. Meu Deus.
Ele tocou na parede de novo, sentindo a terra compacta. A menina de doze anos, Catherine Gagnon, havia passado quase um mês naquela primeira prisão subterrânea, vivendo em um vácuo escuro sem tempo, interrompida apenas por visitas de seu sequestrador, Richard Umbrio, que a mantivera como escrava sexual. Caçadores a encontraram acidentalmente pouco antes do Dia de Ação de Graças, quando bateram sobre a cobertura de compensado e se surpreenderam ao ouvir gritos abafados abaixo dos pés. Catherine foi salva. Umbrio, mandado para a prisão.
A história deveria ter terminado aí. Mas não terminou.
— Eu não me lembro de qualquer menção a outras vítimas no julgamento de Umbrio — D.D. disse.
— Não.
— Mas não quer dizer que ele não tenha feito antes.
— Não.
— Ela poderia ter sido sua sétima vítima, oitava, nona, décima. Ele não era do tipo que falava, então, qualquer coisa é possível.
— Claro, qualquer coisa é possível. — Ele compreendeu o que D.D. deixou por dizer. E eles não poderiam perguntar. Umbrio havia morrido dois anos antes, atingido por um tiro disparado por Catherine Gagnon, em circunstâncias que havia sido a verdadeira pá de cal na carreira de Bobby nas Forças Especiais. Era curioso como alguns crimes simplesmente continuavam e continuavam, mesmo décadas depois.
Bobby voltou o olhar para as prateleiras cobertas da estante, que percebeu que D.D. ainda estava evitando. D.D. não o havia chamado às duas da manhã para olhar para uma câmara subterrânea. O Departamento de Polícia de Boston não havia solicitado uma mobilização urgente por um poço quase vazio.
— D.D.? — ele perguntou em voz baixa.
Ela, finalmente, assentiu.
— É melhor ver por si mesmo. Essas são as que não foram salvas, Bobby. São as que permaneceram no escuro.
Bobby manuseou as persianas com cuidado. As cordas pareciam velhas, apodrecidas em suas mãos. Algumas das minúsculas peças entrelaçadas de bambu estavam rachadas e se prendiam nas cordas, o que dificultava a tarefa de enrolá-la. Ali, ele sentiu o cheiro mais forte. Doce, quase avinagrado. Sentiu as mãos tremerem, e precisou se esforçar para manter o ritmo cardíaco.
Esteja no momento, mas fora do momento. Alheio. Composto. Focado.
A primeira persiana se abriu. E a segunda.
O que mais o ajudou, no fim, foi a absoluta incompreensão.
Sacos. Sacos de lixo de plástico claro. Seis deles. Três na prateleira de cima, três na de baixo, posicionados lado a lado, cuidadosamente amarrados em cima.
Sacos. Seis sacos. Plástico claro.
Ele recuou.
Nada foi dito. Sentiu a boca se abrindo, mas nada estava acontecendo, não saiu nada. Ele apenas ficou olhando. E olhando e olhando, porque uma coisa daquelas não podia existir, uma coisa daquelas não podia ser. Sua mente viu aquilo, rejeitou e então viu a imagem e lutou contra ela mais uma vez. Ele não podia... isso não podia...
Bateu com as costas na escada. Estendeu um braço para trás, agarrando os degraus de metal frio com tanta força que sentiu as bordas ferindo a pele das mãos. Concentrou-se naquela sensação, na dor pungente. Isso o deixou com os pés no chão. Evitou que tivesse de gritar.
D.D. apontou para o teto, onde uma das luminárias havia sido pendurada.
— Nós não pusemos aqueles dois ganchos — D.D. disse em voz baixa. — Eles já estavam ali. Não encontramos nenhuma lanterna, mas eu deduziria...
— É — Bobby disse apenas, ainda respirando pela boca. — É.
— E a cadeira, é claro.
— É, é. E a porra da cadeira.
— É, ahn, é mumificação molhada — D.D. disse, com a voz saindo trêmula, esforçadamente controlada. — Foi como a Christie chamou. Ele amarrou os corpos, colocou cada um em um saco de lixo e então amarrou em cima. Quando a decomposição começava... bem, não havia para onde os fluidos irem. Basicamente, os corpos se conservaram nos próprios fluidos.
— Filho da puta.
— Eu odeio meu trabalho, Bobby — D.D. sussurrou de repente, de maneira incisiva. — Ah, Deus, eu nunca queria ter que ver nada desse tipo. — Ela cobriu a boca com a mão. Por um instante, ele pensou que ela poderia desmoronar, mas ela se controlou e seguiu em frente. Mas se virou de costas para as prateleiras de metal. Até para um policial veterano, algumas coisas eram fortes demais.
Bobby teve de fazer um esforço para soltar os degraus da escada de metal.
— É melhor subirmos — D.D. disse de repente. — A Christie provavelmente está esperando. Ela só precisava pegar os sacos de lona.
— Está bem. — Mas ele não se virou para a escada. Em vez disso, voltou até as prateleiras de metal expostas para uma visão que sua mente não conseguia aceitar, mas que já seria incapaz de esquecer algum dia.
Os corpos haviam ficado cor de mogno com o tempo. Não eram os cascos secos e vazios que ele vira em mostras de múmias egípcias. Eram robustos, com aparência quase de couro, com as feições ainda definidas. Ele conseguia seguir as linhas de braços incrivelmente magros enroscados em pernas levemente arredondadas, dobradas nos joelhos. Conseguia contar dez dedos agarrados aos tornozelos. Podia distinguir cada um dos rostos, com as partes côncavas das bochechas e as pontas dos queixos repousando sobre os joelhos. Estavam com os olhos fechados. As bocas com os lábios apertados. Os cabelos colados no crânio, longas mechas lisas cobrindo os ombros.
Os corpos eram pequenos. Estavam nus. Eram femininos. Crianças, simples crianças, encolhidas dentro de sacos de lixo claros dos quais jamais escapariam.
Compreendia agora por que os detetives lá em cima não estavam dizendo nada.
Estendeu a mão enluvada e tocou levemente no primeiro saco. Não sabia por quê. Não havia o que pudesse dizer, o que pudesse fazer.
Os dedos tocaram uma corrente fina de metal. Ele a puxou das pregas na parte de cima do saco e descobriu um pequeno medalhão prateado. Continha apenas um nome: Annabelle M. Granger.
— Ele as etiquetava? — Bobby xingou com fúria.
— São como troféus. — D.D. estava parada atrás dele. De trás de um segundo saco, puxou cuidadosamente com as mãos enluvadas um ursinho surrado pendurado em uma corda. — Eu acho... Inferno, eu não sei, mas cada saco tem um objeto. Alguma coisa que tinha algum significado para ele. Ou alguma coisa que tinha algum significado para ela.
— Meu Deus.
D.D. tocava o ombro dele agora. Bobby não havia se dado conta do quanto estava com o maxilar travado até que ela o tocou.
— Precisamos subir, Bobby.
— É.
— A Christie precisa trabalhar.
— É.
— Bobby...
Ele afastou a mão. Olhou para elas uma última vez, sentindo a pressão, a necessidade de gravar cada imagem na mente. Como se fosse confortá-lo saber que não seriam esquecidas. Como se importasse a elas saber que não estavam mais sozinhas no escuro.
Ele voltou até a escada. Sentia a garganta queimando. Não conseguia falar.
Inspirou profundamente por três vezes, saiu pela abertura, sob a lona azul-clara.
De volta à noite fria e enevoada. De volta à luz dos holofotes. De volta ao barulho dos helicópteros da imprensa que, finalmente, havia farejado a história e agora estavam dando voltas acima do local.
Bobby não foi para casa. Poderia ter ido. Havia ido fazer um favor a D.D. Havia confirmado a suspeita dela. Ninguém teria questionado sua partida.
Pegou um café na van da cena do crime. Ficou encostado na lateral do veículo por um instante, protegido pelo rugido do gerador. Não chegou a tomar o café. Apenas ficou girando o copo sem parar com os dedos trêmulos.
Às 6 horas da manhã, o sol começou a aparecer no horizonte. Christie e seu assistente trouxeram os corpos para cima, agora dentro de sacos pretos. O material podia ser transportado de três em três na maca, totalizando duas viagens até a van do IML. A primeira parada seria no laboratório do Departamento de Polícia de Boston para que os sacos plásticos de lixo que continham os corpos fossem fumigados em busca de impressões digitais. Depois, os restos iriam até o laboratório do IML, onde as autópsias finalmente começariam a ser feitas.
Depois que Christie foi embora, também a maioria dos detetives se retirou. Esse tipo de cena era comandado pela antropóloga forense. Assim, depois de Callahan sair, não havia muito que fazer.
Bobby virou o café frio e jogou o copo no lixo.
Estava esperando no assento do carona do carro de D.D. quando ela, finalmente, saiu do meio das árvores. E então, como os dois haviam se amado uma vez e até mesmo continuado amigos depois disso, ele aninhou a cabeça dela no ombro e a abraçou enquanto ela chorava.
capítulo 4
Meu pai adorava velhos ditados. Entre seus preferidos estava “o acaso favorece a mente preparada”. A preparação, aos olhos do meu pai, era tudo. E ele começou a me preparar no instante em que deixamos Massachusetts.
Começamos com Segurança Básica para uma criança de sete anos. Nunca aceitar doces de estranhos. Nunca sair da escola com ninguém, nem mesmo alguém que eu conhecesse, a menos que a pessoa dissesse a senha correta. Nunca me aproximar de um carro que me abordasse. Se o motorista pedisse informações, mandá-lo procurar um adulto. Está procurando por um bichinho perdido? Mandá-lo procurar a polícia.
Se um estranho aparecesse no meu quarto no meio da noite? Eu devia gritar, berrar, bater nas paredes. Às vezes, meu pai explicou, quando uma criança fica muito apavorada, é impossível fazer as cordas vocais funcionarem. Assim, era preciso chutar os móveis, quebrar um abajur e pequenos objetos, soprar o apito vermelho de emergência, fazer qualquer coisa para produzir barulho. Meu pai dizia que eu poderia destruir a casa toda e, nesse caso, ele e a minha mãe não ficariam bravos.
Lute, meu pai dizia. Chute os joelhos, ataque os olhos, morda a garganta. Lute, lute, lute.
Conforme eu crescia, minhas aulas foram evoluindo. Caratê para adquirir habilidade. Equipe de corrida para ganhar velocidade. Dicas avançadas de segurança. Aprendi a sempre trancar a porta da frente, mesmo quando estava em casa em plena luz do dia. Aprendi a nunca atender a porta sem antes espiar pelo olho mágico e nunca receber alguém que não conhecesse.
Caminhe com a cabeça para cima, dando passos rápidos. Faça contato com os olhos, mas não o mantenha. O suficiente para o outro saber que você está atenta ao que a cerca, mas sem chamar a atenção indevida para si. Se algum dia me sentisse desconfortável, eu deveria me aproximar do grupo mais próximo de pessoas à minha frente e seguir com ele.
Se algum dia eu fosse ameaçada em um banheiro público, devia gritar “Fogo”. As pessoas reagem a uma ameaça de incêndio antes de reagirem a gritos de estupro. Se eu algum dia me sentisse desconfortável em um shopping center, devia correr até a mulher mais próxima. Mulheres têm mais chance de agirem do que homens, que, normalmente, não gostam de se envolver. Se eu algum dia fosse confrontada por alguém armado, devia sair correndo. Mesmo o atirador mais habilidoso tem dificuldade de acertar um alvo em movimento.
Nunca saia da área de segurança da casa ou do trabalho sem estar com a chave do carro nas mãos. Caminhe até o veículo com a chave entre os dedos. Não destrave a porta se houver algum estranho atrás de você. Não entre no carro sem antes checar o banco traseiro. No carro, mantenha as portas trancadas o tempo todo. Se precisar de ar, abra dois centímetros do vidro.
Meu pai não acreditava em armas. Ele havia lido que as mulheres tinham mais probabilidade de perderem a posse de suas armas de fogo, que acabariam sendo usadas contra elas. Foi por isso que até os 14 anos eu carregava um apito pendurado no pescoço para usar em caso de emergência e sempre tinha um spray de pimenta comigo.
Naquele ano, no entanto, eu derrubei meu primeiro oponente em um concurso júnior de luta no ginásio local. Eu havia desistido do caratê em favor do kickbox, e acabei me mostrando muito boa nisso. A plateia ficou horrorizada. A mãe do menino que eu derrubei me chamou de monstro.
Meu pai me levou para tomar sorvete e me disse que eu tinha me saído bem.
— Não que eu apoie a violência, veja bem. Mas se algum dia você for ameaçada, Cindy, não se contenha. Você é forte, é rápida e tem instinto de lutadora. Bata primeiro, pergunte depois. Você nunca estará preparada demais.
Meu pai me inscreveu em mais torneios, nos quais eu aperfeiçoei a técnica e aprendi a focar a raiva. Eu sou rápida. Sou forte. Tenho instinto de lutadora. Tudo ia bem, até que comecei a vencer demais, o que, evidentemente, atraiu uma atenção indesejada.
Nada mais de torneios. Nada mais de vida.
No fim, eu acabava devolvendo as palavras para meu pai:
— Preparada? Qual é a utilidade de estar tão preparada se tudo o que fazemos é fugir?
— Sim, querida — meu pai explicava incansavelmente. — Mas nós podemos fugir justamente porque somos tão preparados.
Segui para o Departamento de Polícia de Boston direto do turno da manhã no Starbucks. Saindo de Faneuil Hall, caminhava apenas uma quadra até o T, onde podia pegar a linha Laranja até a Ruggles Street. Eu havia feito o dever de casa na noite anterior e estava vestida de acordo: jeans de cintura baixa e desbotado, com as barras desfiadas arrastando no chão. Uma regata fina cor de chocolate em cima de uma preta e uma blusa de algodão justa de manga comprida. Lenço multicolorido com tons de chocolate, preto, branco, cor-de-rosa e azul amarrado na cintura. Uma bolsa azul April Cornell floreada e imensa, atirada no ombro.
Deixei os cabelos soltos, com mechas escuras caindo até quase a cintura, com enormes argolas prateadas penduradas nas orelhas. Eu poderia ser tomada, e às vezes era, por hispânica. Achei que esse visual poderia ser mais seguro para onde eu iria passar a tarde.
A State Street estava lotada como sempre. Enfiei a ficha na fenda e desci a escada até o maravilhoso e profundo cheiro de urina que acompanhava qualquer estação de metrô. A multidão era típica de Boston — negros, asiáticos, hispânicos, brancos, ricos, velhos, pobres, profissionais, operários, membros de gangues, todos formando um colorido painel urbano. Os liberais adoravam aquela porcaria. A maioria de nós simplesmente desejava ganhar na loteria e comprar um carro.
Identifiquei uma senhora mais velha movimentando-se lentamente com uma neta adolescente a tiracolo. Fiquei parada ao lado delas, distante o suficiente para não atrapalhar, mas perto o bastante para parecer parte do grupo. Todos olhávamos atentamente para a parede do outro lado, tomando cuidado para evitar os olhares uns dos outros.
Quando o trem do metrô finalmente chegou, seguimos em frente como uma massa coesa, nos espremendo para dentro do tubo de metal. Então as portas se fecharam com um assobio, e o vagão entrou no túnel.
Nessa parte do trajeto, não havia assentos disponíveis. Fiquei de pé, me segurando em uma barra. Um garoto negro usando uma tiara vermelha, moletom largo e jeans baggy cedeu o lugar à senhora mais velha. Ela agradeceu. Ele não disse nada.
Eu trocava de lado, de olho no mapa de trânsito colorido acima da porta, enquanto fazia o melhor para avaliar sutilmente o entorno.
Homem asiático mais velho, operário, à direita. Sentado, cabeça baixa, ombros caídos. Alguém simplesmente tentando chegar ao fim do dia. A mulher mais velha havia se sentado ao lado dele, com a neta lhe dando proteção. Então vinham quatro adolescentes negros usando o uniforme oficial dos membros de gangue. Agitavam os ombros no ritmo do vagão, enquanto se sentavam, olhando para o chão e sem dizer coisa alguma.
Atrás de mim, uma mulher com duas crianças pequenas. A mulher parecia ser hispânica, e as crianças de seis e oito anos, brancas. Era, provavelmente, uma babá levando seus jovens fardos ao parque.
Duas meninas adolescentes ao lado dela, ambas montadas em estilo urbano chique, com tranças nos cabelos e brincos de diamantes enormes reluzindo nas orelhas. Não me virei, mas as identifiquei como valendo a pena de manter no radar. Meninas são mais imprevisíveis do que meninos, logo, mais perigosas. Homens fazem pose. Mulheres têm a tendência de partir para cima e, quando não recuamos, começam a dar golpes e usam facas escondidas.
Mas eu não me preocupei muito com as meninas. Elas eram as desconhecidas conhecidas. São os desconhecidos que podem acabar conosco.
Chegamos à estação da Ruggles Street sem incidentes. As portas se abriram, e eu saí. Ninguém prestou atenção em mim.
Arrumei a bolsa no ombro e segui na direção da escada.
Eu nunca havia estado na nova central de polícia de Roxbury. Apenas havia ouvido falar dos tiroteios à meia-noite no estacionamento, de pessoas sendo roubadas na frente da porta da entrada. Aparentemente, a nova localização havia sido algum lance político para revitalizar Roxbury, ou para pelo menos tornar a região mais segura à noite. Pelo que eu tinha lido na internet, não parecia estar funcionando.
Mantive a bolsa presa ao corpo e caminhei nas pontas dos pés, preparada para qualquer movimento brusco. A estação da Ruggles Street era grande, lotada e úmida. Atravessei com agilidade a massa humana. Aparentar ter um objetivo e estar concentrada. Não é porque está perdida que precisa parecer perdida.
Do lado de fora da estação, descendo um lance íngreme de escada, vi as altas antenas de rádio à direita e as segui. Enquanto ia para a calçada, no entanto, uma voz irônica gritou atrás de mim.
— Que beleza de Taco! Que tal um burrito com carne de verdade?
Me virei e vi um trio de meninos afro-americanos e mostrei o dedo para eles. Os três só deram risada. O líder, que parecia ter 13 anos de idade, agarrou a púbis. Foi a minha vez de dar risada.
Isso aliviou um pouco o clima pesado. Me virei e continuei e segui pela rua, caminhando calmamente. Cerrei os punhos para que minhas mãos não tremessem.
Era difícil não encontrar a central do Departamento de Polícia de Boston. Primeiro porque era um edifício enorme de vidro e metal em meio a conjuntos habitacionais populares de tijolos marrons caindo aos pedaços. Segundo porque havia barricadas de concreto posicionadas ao redor de toda a entrada da frente, como se o edifício estivesse, na realidade, localizado no centro de Bagdá. A Segurança Nacional em cada edifício do governo perto de você.
Vacilei em meus passos pela primeira vez. Desde que eu tinha decidido o que ia fazer na noite anterior, não havia me permitido pensar a respeito. Eu havia planejado. Eu tinha agido. Agora estava ali.
Larguei a bolsa. Tirei um blazer de veludo cor de chocolate e o vesti. Foi o melhor que pude fazer para ficar arrumada. Não que tivesse importância. Eu não tinha provas. Os detetives iriam simplesmente acreditar em mim ou não.
No lado de dentro, havia uma fila em frente ao detector de metais. O policial encarregado pediu para ver minha carteira de motorista. Ele examinou minha bolsa enorme. Então me olhou de cima a baixo de uma maneira que deveria me inspirar a dizer sim, eu estou contrabandeando armas/bombas/drogas para a central de polícia. Como eu não tinha nada a dizer, ele me deixou passar.
Na recepção, peguei a matéria de jornal, conferindo mais uma vez o nome da detetive, embora, honestamente, eu soubesse de cor.
— Ela está esperando por você? — o policial uniformizado me perguntou franzindo o cenho. Era um sujeito grandalhão com um bigode grosso. Imediatamente, pensei em Dennis Franz.
— Não.
Mais um olhar de cima a baixo.
— Sabe, ela anda ocupada por esses dias.
— Apenas diga que Annabelle Granger está aqui. Ela vai querer saber disso.
O policial não devia acompanhar muito o noticiário. Ele deu de ombros, pegou o telefone e deu meu recado a alguém. Alguns segundos se passaram. A expressão do policial não mudou por um instante. Ele apenas deu de ombros novamente, desligou o telefone e me disse para esperar.
Como havia outras pessoas na fila, peguei a bolsa e fui para o meio do saguão longo e abobadado. Haviam montado ali uma exposição especial documentando a história do Departamento de Polícia. Examinei todas as fotos, li as legendas e fui de um lado a outro da mostra.
Um minuto virou vários minutos. Minhas mãos ficaram mais trêmulas. Pensei que devia fugir enquanto ainda tinha chance. Então pensei que talvez fosse me sentir melhor se pudesse pelo menos vomitar.
Finalmente comecei a ouvir passos.
Apareceu uma mulher. Ela vinha diretamente na minha direção. Vestia jeans justos, botas de cano alto com salto agulha, camisa branca ajustada e uma arma presa à cintura. Tinha o rosto emoldurado por selvagens cachos loiros. Ela parecia de capa de revista. Até vermos seus olhos. Frios, diretos, sérios.
Aquele olhar azul mirou-me e, por um instante, algo transformou-se em sua expressão. Ela parecia ter visto um fantasma. Então, se aproximou.
Respirei fundo.
Meu pai estava errado. Há algumas coisas na vida para as quais não conseguimos nos preparar. Como a perda da mãe quando ainda somos crianças. Ou a morte do pai antes de se ter a chance de parar de odiá-lo.
— Que diabos? — a sargento detetive D.D. Warren quis saber.
— Meu nome é Annabelle Mary Granger — eu disse. — Acho que você está procurando por mim.
capítulo 5
Os escritórios da Divisão de Homicídios de Boston pareciam pertencer a uma empresa de seguros. Claros, com janelas amplas, pé direito de três metros e meio de altura e um bonito carpete azul-acinzentado. Os cubículos beges eram modernos e elegantes, compartimentando o espaço iluminado pelo sol em áreas menores, com arquivos pretos e cestos cinzentos decorados com plantas, fotos de família e desenhos de crianças.
Achei o ambiente decepcionante. Principalmente depois de todos os anos que eu havia dedicado ao seriado NYPD Blue.
A recepcionista sorriu amigavelmente para a sargento Warren quando entramos. Ela olhou para mim de forma aberta e despretensiosa. Desviei o olhar, remexendo na bolsa. Eu parecia uma criminosa? Uma informante? Ou familiar de uma vítima? Tentei me enxergar pelos olhos da recepcionista, mas não consegui pensar em nada.
A sargento Warren me levou para uma sala pequena sem janela. Uma mesa retangular preenchia quase toda a área minúscula, mal deixando espaço para cadeiras. Olhei para as paredes em busca de um espelho dupla face, qualquer coisa que estivesse de acordo com as expectativas preparadas pela tevê. Não havia nada nas paredes pintadas de branco. Ainda não tinha conseguido relaxar.
— Café? — ela perguntou rapidamente.
— Não, obrigada.
— Água, refrigerante, chá?
— Não, obrigada.
— Fique à vontade. Eu já volto.
Ela me deixou na sala. Concluí que isso devia querer dizer que eu não parecia muito culpada. Larguei minha bolsa e examinei o local. Mas não havia nada para olhar. Nada para fazer.
A sala era pequena demais, e os móveis, grandes demais. De imediato, detestei aquele ambiente.
A porta se abriu novamente. Warren estava de volta, desta vez com um gravador. Imediatamente, sacudi a cabeça.
— Não.
Ela me examinou friamente.
— Pensei que estivesse aqui para dar um depoimento.
— Sem gravação.
— Por quê?
— Porque você acabou de me declarar morta, e eu pretendo continuar assim.
Ela soltou o gravador, mas não o ligou. Durante um longo tempo, ficou me encarando. Durante um longo tempo, eu a encarei de volta.
Tínhamos a mesma altura, um metro e sessenta e cinco. Mais ou menos o mesmo peso. Dava para ver pela largura dos ombros dela e a leve saliência de seus braços cruzados que ela também fazia musculação. Mantinha a arma na cintura. Mas armas precisavam ser sacadas, miradas, disparadas. Eu não tinha nenhuma dessas coações.
Esse pensamento me deu a primeira sensação de conforto. Descruzei os braços. Sentei. Depois de um instante, ela fez o mesmo.
A porta se abriu de novo. Um homem entrou, vestindo calças bege e uma camisa social azul-escura de mangas compridas, com o distintivo preso à cintura. Deduzi que era um colega detetive de homicídios. Não era muito grande, com pouco menos de um metro e oitenta, mas tinha um corpo magro e forte combinando com um rosto magro e anguloso. No momento em que me viu, também pareceu um pouco impressionado, e, então, rapidamente se controlou e ficou inexpressivo.
Estendeu a mão:
— Detetive Robert Dodge, polícia estadual de Massachusetts.
Apertei a mão dele sem muita firmeza. Ele tinha os dedos cheios de calos e a mão firme. Manteve o cumprimento por mais tempo do que necessário, e eu soube que ele estava me avaliando, tentando entender. Seus olhos eram cinzentos, frios, do tipo acostumado ao jogo da avaliação.
— Quer um pouco de água? Algo para beber?
— Ela já fez as honras da casa. — Fiz um sinal com a cabeça para a sargento Warren. — Com todo o respeito, eu só gostaria de acabar com tudo isso.
Os dois detetives se entreolharam. Dodge sentou na cadeira mais próxima da porta. O ambiente parecia superlotado, fechando a meu redor. Pus as mãos no colo, tentando ficar parada.
— Meu nome é Annabelle Mary Granger — comecei. Dodge estendeu a mão para o gravador. Warren o interrompeu com um único toque.
— Estamos falando em off — ela disse. — Pelo menos por enquanto.
Dodge assentiu, e eu respirei fundo novamente, tentando organizar meus pensamentos. Havia passado as últimas 48 horas ensaiando a história mentalmente. Li obsessivamente todas as matérias de capa sobre o “túmulo” encontrado em Mattapan e os seis restos mortais achados no local. Não havia muitos detalhes — a antropóloga forense apenas confirmava que os restos mortais eram femininos, e a porta-voz da polícia havia acrescentado que o túmulo, provavelmente, tinha décadas. Apenas um nome havia sido liberado, o meu. As outras identidades continuavam sendo um mistério.
Na ausência de informações reais e precisando preencher a cobertura jornalística 24 horas, as personalidades da tevê começaram a especular loucamente. O local seria um velho lugar de desova da máfia, possivelmente um legado de Whitey Bulger, o mafioso cujo trabalho assassino ainda estava sendo desenterrado por todo o estado. Ou talvez fosse um antigo cemitério do hospital psiquiátrico. Ou quem sabe o terrível hobby de um de seus pacientes homicidas. Haveria um culto satânico operando em Mattapan. Os ossos seriam, na realidade, de vítimas do Tribunal de Bruxas de Salem.
Todo mundo tinha uma teoria. Exceto por mim, acho. Eu sinceramente não sabia o que havia acontecido em Mattapan. E estava ali naquele momento não pela ajuda que poderia dar à polícia, mas pela ajuda que estava esperando que eles pudessem me dar.
— Minha família fugiu pela primeira vez quando eu tinha sete anos de idade — contei aos dois detetives e, mais rapidamente, repassei toda a minha história. A sucessão de mudanças, a procissão sem fim de identidades falsas. A morte da minha mãe. Depois a do meu pai. Mantive os detalhes superficiais.
O detetive Dodge fez algumas anotações. D.D. Warren ficou basicamente me observando.
Acabei a história mais rapidamente do que imaginava. Sem grand finale. Apenas com um fim. Estava com a garganta seca. Desejei ter aceitado aquele copo de água, afinal. Fiquei em um silêncio constrangedor com os dois detetives ainda me examinando.
— Em que ano vocês foram embora? — perguntou o detetive Dodge depois de largar o lápis.
— Em outubro de 1982.
— E por quanto tempo ficaram na Flórida?
Fiz o possível para repassar a lista mais uma vez. Cidades, datas, codinomes. O tempo havia apagado mais as especificidades do que eu imaginava. Em que mês nos mudamos para St. Louis? Eu tinha dez ou 11 anos quando chegamos a Phoenix? E os nomes... Em Kansas City, nós havíamos sido Jones, Jenkins ou Johnson? Alguma coisa parecida.
Comecei a ficar cada vez menos segura e cada vez mais na defensiva, e eles nem sequer haviam chegado às perguntas difíceis ainda.
— Por quê? — a detetive Warren perguntou de repente quando eu acabei a aula de geografia. Abriu as mãos em cima da mesa. — É uma história interessante, só que você não disse por que a sua família estava fugindo.
— Eu não sei.
— Você não sabe?
— Meu pai nunca me contou os detalhes. Ele considerava que era trabalho dele se preocupar e meu trabalho apenas ser criança.
Ela arqueou a sobrancelha. Não pude culpá-la. Aos 16 anos, nem eu mesma acreditava mais nesse chavão.
— Certidão de nascimento? — ela perguntou com firmeza.
— Do meu nome verdadeiro? Não tenho.
— Carteira de motorista, cartão da previdência social? A certidão de casamento dos seus pais? Uma foto de família? Você deve ter alguma coisa.
— Não.
— Não?
— Documentos originais podem ser encontrados e usados contra você — falei como um papagaio. Imagino que tenha sido um papagaio durante a maior parte da minha vida.
A sargento Warren se inclinou para a frente. Tão de perto, pude ver as sombras sob seus olhos, as linhas de expressão e a pele pálida de alguém que andava operando com pouco sono e ainda menos paciência.
— Por que diabos você veio até aqui, Annabelle? Você não nos contou nada, não nos deu nada. Está querendo aparecer nos jornais? É disso que se trata? Você vai assumir a identidade de uma pobre menina morta para conseguir os seus quinze minutos de fama?
— Não é nada disso...
— Conversa!
— Eu já disse, eu tive poucos minutos para fazer as malas e não pensei em pegar meu álbum de recortes.
— Que conveniente.
— Ei! — Eu também estava começando a ficar irritada. — Vocês querem provas? Vão atrás delas. Vocês são a maldita polícia, afinal. Meu pai trabalhava no MIT. Russell Walt Granger. Procurem, eles devem ter um registro. Minha família morava no número 282 da Oak Street, em Arlington. Procurem, deve haver um registro. Aliás, procurem nos próprios arquivos da polícia. Toda a minha família desapareceu no meio da noite. Tenho certeza de que vocês têm registros disso.
— Se sabe tanto assim — ela respondeu sem alterar o tom de voz —, por que não foi atrás das informações?
— Porque eu não posso fazer perguntas — explodi. — Não sei de quem eu devo ter medo!
Me afastei abruptamente da mesa, incomodada com minha própria explosão. A sargento Warren se endireitou mais lentamente. Ela e o outro detetive se entreolharam novamente, provavelmente só para me incomodar.
Warren se levantou. Saiu da sala. Fiquei olhando resolutamente para a parede em frente, sem querer dar ao detetive Dodge a satisfação de ser a primeira a quebrar o silêncio.
— Água? — ele perguntou.
Sacudi a cabeça.
— Deve ter sido difícil perder a mãe e o pai assim — ele murmurou.
— Ah, cale a boca. Policial bom, policial má. Acham que eu não vi os filmes?
Ficamos sentados em silêncio até a porta se abrir novamente. Warren retornou segurando um grande saco de papel.
Estava usando luvas de látex. Largou o saco em cima da mesa, abriu e tirou um objeto de seu interior. Não era grande. Era uma delicada corrente prateada com um pequeno pingente oval. Tamanho infantil.
Ela o estendeu para mim sobre a mão enluvada. Mostrou a parte da frente, gravada com uma filigrana de curvas. Então abriu o pingente, revelando dois espaços ovais. Finalmente, ela o virou. Havia um único nome gravado atrás: Annabelle M. Granger.
— O que pode me dizer sobre este pingente?
Fiquei olhando fixamente para o pingente por um longo tempo. Senti como se estivesse atravessando uma forte neblina, examinando cuidadosamente a névoa da minha mente.
— Foi um presente — murmurei, afinal. Levei a mão ao pescoço inconscientemente, como se ainda sentisse o pingente ali, a peça oval de prata gelada na minha pele. — Ele me disse que eu não poderia aceitar.
— Quem disse?
— Meu pai. Ele ficou furioso. — Pisquei algumas vezes, tentando me lembrar de mais coisas. — Eu não... não sei por que ele ficou tão furioso. Não sei ao certo se soube. Eu gostei do pingente. Lembro de ter achado muito bonito. Mas, quando meu pai o viu, fez com que eu o tirasse. Disse que eu precisava jogar fora.
— E você jogou?
Sacudi a cabeça lentamente. Olhei para os dois e, de repente, senti medo.
— Fui até a lata de lixo no quintal da casa — sussurrei. — Mas não consegui jogar fora. Era tão bonito... Pensei que, se esperasse um tempo, ele superaria a raiva e me deixaria usá-lo novamente. Minha melhor amiga veio ver o que eu estava fazendo.
Os dois detetives se inclinaram para a frente. Pude sentir a tensão repentina. E soube que agora estavam compreendendo aonde aquilo conduziria.
— Dori Petracelli. Entreguei o pingente a Dori. Disse que ela podia pegá-lo emprestado. Pensei que poderia reavê-lo depois, talvez quando meu pai não estivesse por perto. Só que não houve um depois. Em questão de semanas, fizemos as malas. Eu nunca mais vi Dori.
— Annabelle — o detetive Dodge perguntou em voz baixa —, quem deu o pingente a você?
— Eu não sei. — Comecei a esfregar a testa com os dedos. — Foi um presente. Deixado na varanda da frente da casa. Embrulhado em tirinhas do Snoopy. Para mim. Mas sem etiqueta. Eu gostei. Mas meu pai... ele ficou bravo. Eu não sei... eu não me lembro. Tinha havido outras coisas, pequenas, inconsequentes. Mas nada deixou meu pai tão furioso como o pingente.
Mais uma pausa, e então o detetive Dodge perguntou:
— O nome Richard Umbrio diz alguma coisa a você?
— Não.
— E senhor Bosu?
— Não.
— Catherine Gagnon?
Warren lançou um repentino olhar hostil a ela. Mas eu não entendi o significado daquilo. Não conhecia aquele nome também.
— Vocês... vocês encontraram este pingente em um corpo? Foi por isso que pensaram que era eu?
— Não podemos comentar uma investigação em andamento — a sargento Warren disse com firmeza.
Eu a ignorei e olhei para o detetive Dodge.
— Foi a Dori? Foi ela quem vocês encontraram? Alguma coisa aconteceu com ela? Por favor...
— Nós não sabemos — ele disse gentilmente. Warren franziu a testa de novo, mas, então, encolheu os ombros.
— Vamos levar semanas para identificar os corpos — ela disse abruptamente. — Não sabemos muita coisa a essa altura.
— Então é possível.
— É possível.
Tentei absorver a informação. Fiquei trêmula e com frio. Fechei o punho esquerdo e apertei o estômago.
— Vocês podem procurar por ela? — perguntei. — Pesquisar pelo nome dela. Ver se ela tem endereço, carteira de motorista. Os corpos são de crianças, é o que dizem as notícias. Então, se ela tiver carteira de motorista...
— Pode ter certeza de que vamos atrás disso — disse a sargento Warren.
Não gostei daquela resposta. Meu olhar se voltou para o detetive Dodge mais uma vez. Eu sabia que estava implorando, mas não consegui evitar.
— Por que não nos deixa seu telefone? — ele disse. — Entraremos em contato.
— Não me liguem. Eu ligarei para vocês — murmurei.
— Está bem. Pode nos procurar a qualquer momento.
— E caso se lembre de mais alguma coisa sobre o pingente... — disse a sargento Warren.
— Venderei a minha história para um canal de tevê a cabo.
Ela me olhou, mas eu descartei a ideia com um aceno de mão.
— Eles acreditariam menos em mim do que vocês, e eu não posso voltar do mundo dos mortos.
Eu me levantei, peguei minha bolsa e deixei meu telefone de casa quando ficou claro que algum tipo de informação para contato era obrigatório.
No último minuto, parada ao lado da porta, hesitei:
— Vocês podem me contar o que aconteceu com elas? Com as meninas?
— Ainda estamos esperando pelo relatório — disse a sargento Warren, no tom oficial de sempre.
— Mas foram assassinatos, não? Seis corpos, todos no mesmo túmulo...
— Você algum dia esteve no Hospital Psiquiátrico de Boston? — o detetive Dodge perguntou com tranquilidade. — Ou o seu pai?
Sacudi a cabeça. Tudo o que sabia sobre o local eram as disputas de desenvolvimento urbano que ouvi no noticiário. Se cheguei a conhecer o hospício de loucos quando criança, isso não tinha nenhum significado para mim naquele momento.
A sargento Warren desceu comigo. Andamos juntas em silêncio, com os saltos das botas batendo em staccato nos degraus da escada.
No final, ela abriu a pesada porta de metal que dava para o saguão com uma das mãos e me entregou um cartão com a outra.
— Entraremos em contato.
— Claro — eu disse, sem um mínimo de convicção.
Ela olhou para mim com ar severo.
— E Annabelle...
Sacudi a cabeça imediatamente.
— Tanya. Eu atendo por Tanya Nelson. É mais seguro.
Mais um levantar de sobrancelha.
— E Tanya, se você se lembrar de mais qualquer coisa sobre o pingente ou sobre os dias antes de vocês deixarem a cidade...
Tive de sorrir novamente.
— Não se preocupe — eu disse a ela. — Aprendi a fugir com o melhor de todos.
Saí pela porta de vidro para o ar frio de outono e comecei a percorrer o trajeto de volta para casa.
capítulo 6
Bobby gostaria de acreditar que havia sido convidado a ajudar na investigação do Hospital Psiquiátrico de Boston por seu brilho natural e sua sólida ética de trabalho. Aceitaria até mesmo ser recebido a bordo das investigações por sua aparência e seu sorriso encantador. Mas ele sabia qual era a verdade: D.D. precisava dele. Ele era o trunfo que ela havia escondido na manga. D.D. sempre fora boa em antever as jogadas.
Não que ele estivesse reclamando. Ser o único detetive do estado em uma equipe da cidade era, na melhor das hipóteses, constrangedor, e cheio de doses diárias de ressentimento, na pior delas. Mas acordos semelhantes tinham um precedente. D.D. o declarara como fonte de “conhecimento local” e, voilà, o sequestrara para seus objetivos. O fato de que ele era novo e não estava embrenhado em nenhuma investigação estadual importante tornou a transição rápida e relativamente indolor. Um dia ele estava se reportando aos escritórios do estado, no outro, estava trabalhando em uma sala de interrogatórios minúscula em Roxbury, Massachusetts. Assim era a vida glamourosa de um detetive.
Do ponto de vista dele, era uma moleza: servir em uma força-tarefa importante acrescentaria peso a seu currículo. E depois de ter entrado naquela câmara subterrânea e visto aquelas seis meninas... não era o tipo de coisa para a qual um policial costumasse dar as costas. Era melhor trabalhar com aquilo do que simplesmente sonhar a respeito noite após noite.
A maioria dos outros detetives parecia sentir a mesma coisa. O caso abundava horas extras. Bobby estava na central do Departamento de Polícia de Boston havia quase dois dias. Se alguém desaparecia, era apenas para ir tomar banho e fazer a barba. A comida consistia em pizza ou comida chinesa de tele-entrega consumida normalmente na mesa de trabalho ou em uma reunião da equipe.
Não que a vida real tivesse magicamente desaparecido. Detetives ainda precisavam comparecer a audiências pré-agendadas no tribunal e tratar de questões de outros casos em andamento. Da chegada de um informante. Do assassinato de uma testemunha-chave. Os outros casos não paravam só porque um assassinato novo e mais chocante havia surgido.
E havia ainda a vida em família. Ligações de última hora para se desculpar por ter perdido o jogo de futebol do filho. Rapazes desaparecendo nas salas de interrogatório às oito da noite, tentando conseguir um pouco de privacidade para o telefonema de boa-noite que teria de servir como substituto de um beijo. O detetive Roger Sinkus tinha um bebê de duas semanas. A mãe do detetive Tony Rock estava na unidade de terapia intensiva morrendo de falência cardíaca.
Investigações importantes de homicídios eram como uma dança, um complexo fluxo de trabalho de policiais entrando e saindo de cena, de cumprimento de tarefas críticas, de abandono de quaisquer outras atividades. De caras solteiros como Bobby ficarem até as três da manhã para que um pai recente como Roger pudesse ir para casa à uma. De todo mundo tentar passar um caso adiante. De ninguém conseguir o que estava precisando.
E no topo de tudo isso achava-se D.D. Warren. Era o primeiro caso grande da sargento recém-promovida. Bobby tinha a tendência de ser cínico sobre esse tipo de coisa, mas até mesmo ele estava impressionado.
Em primeiro lugar, ela havia conseguido manter uma das mais sensacionais cenas de crime da história de Boston em segredo por quase 48 horas. Nenhum vazamento do Departamento de Polícia de Boston. Nenhum vazamento do IML. Nenhum vazamento da procuradoria. Era um milagre.
Em segundo lugar, embora estivesse trabalhando sob o ataque intenso de uma dezena de personalidades importantes da tevê bradando por mais informações, reclamando o direito do público de saber o que estava acontecendo e alternadamente acusando a polícia de Boston de encobrir uma grande ameaça à segurança pública, ela ainda conseguiu organizar e lançar uma investigação bem decente.
Primeiro passo em uma investigação de homicídio: estabelecer uma linha do tempo. Infelizmente para a força-tarefa, uma linha do tempo normalmente era gerada pelo relatório da vitimologia, que incluía o horário estimado da morte. No entanto, a antropologia forense não era exatamente uma análise que podia ser feita da noite para o dia. Além disso, em Boston, o cargo de antropólogo forense não era de tempo integral, o que significava que uma única especialista que trabalhava meio período, Christie Callahan, estava agora tentando manejar seis restos mortais. Havia, ainda, o estado de mumificação desses restos mortais, o que, sem dúvida, exigia toda uma quantidade de exames assustadoramente caros, detalhados e metódicos. Resumindo, eles, provavelmente, teriam o relatório de vitimologia mais ou menos quando o bebê do detetive Sinkus entrasse na faculdade.
D.D. havia convocado um botânico da Sociedade Audubon para ajudá-los. Ele estudou o matagal, o gramado e os brotos da mata que havia fincado raízes acima da câmara subterrânea. Seu melhor palpite era de que havia o equivalente a trinta anos de mato no local, com uma década a mais ou a menos.
Não era a linha do tempo mais precisa do mundo, mas serviu para que o trabalho pudesse começar.
Um trio de detetives estava criando uma lista de meninas desaparecidas em Massachusetts a partir de 1965. Como os registros só eram digitalizados de 1997 em diante, o trabalho incluía olhar manualmente um sem-número de papéis relativos a cada pessoa desaparecida entre 1965 e 1997, identificar quais casos ainda não estavam resolvidos e envolviam uma menina menor de idade e, então, registrar os números dos arquivos para que eles fossem analisados separadamente em microfilmes. Até então, o grupo havia repassado seis anos de desaparecidos a cada 24 horas. Também estava consumindo aproximadamente quatro litros de café a cada hora e meia.
É claro que o disque-denúncia também estava maluco. O público sabia apenas que os restos de seis vítimas femininas haviam sido encontrados no terreno do antigo Hospital Psiquiátrico de Boston e que a cena parecia ser datada. Só isso já foi suficiente para deixar os malucos em polvorosa. Relatos de luzes noturnas estranhas que eram vistas na propriedade. Boatos de um culto satânico em Mattapan. Duas pessoas alegaram ter sido abduzidas por óvnis e visto as seis meninas a bordo da nave. (É mesmo, e como elas eram? O que estavam vestindo? Elas disseram como se chamavam?) Esse tipo de gente tinha a tendência de desligar o telefone rapidamente.
Outros telefonemas eram mais intrigantes: namoradas denunciando ex-namorados que teriam se vangloriado de fazer “uma coisa horrível” no terreno do antigo hospital. Outros ainda eram simplesmente comoventes: pais de todo o país ligando para perguntar se os restos poderiam ser de suas filhas desaparecidas.
Cada ligação gerava um relatório, cada relatório precisava ser acompanhado por um detetive, incluindo a chamada mensal de uma mulher da Califórnia que insistia que seu ex-marido era o verdadeiro Estrangulador de Boston, basicamente porque ela nunca havia gostado dele. Cinco detetives tinham sido destacados para tratar disso tudo.
O que deixava o esquadrão de D.D., mais Bobby, com as tarefas gerais de gerenciamento. Era preciso determinar uma lista de “temas de entrevistas” baseada nas várias construtoras e nos projetos comunitários que atuavam no local. Tentar conseguir uma lista de pacientes e administradores de um hospital psiquiátrico que havia fechado trinta anos antes. Incluir os elementos da cena do crime no programa de apreensão de criminosos violentos do FBI, considerando a singularidade do poço subterrâneo.
Acompanhar o resultado — Richard Umbrio — se tornou o projeto de Bobby. Ele havia puxado o microfilme dos arquivos do caso original, incluindo uma boa coleção de fotografias. Também fez um telefonema para o detetive chefe, Franklin Miers, que havia se aposentado e se mudado para Fort Lauderdale oito anos antes.
Agora, Bobby estava sentado na minúscula sala de interrogatório que funcionava como seu escritório temporário, estudando um diagrama feito a mão do poço em que havia sido mantida a menina Catherine Gagnon aos 12 anos de idade.
De acordo com as anotações de Miers, Catherine havia sido sequestrada quando voltava da escola. Umbrio havia se aproximado dela enquanto passeava pela vizinhança e perguntado se ela podia ajudá-lo a procurar por um cachorro perdido. Ela mordeu a isca, e pronto.
Homenzarrão mesmo aos 19 anos, Umbrio não teve problemas para dominar a delicada aluna do sexto ano. Ele a levou para uma câmara subterrânea que havia preparado no meio das árvores e foi, então, que começou o verdadeiro martírio de Catherine. Quase trinta dias em um poço embaixo da terra, onde seu único visitante era um estuprador com uma queda por wonder bread[1].
Se os caçadores não tivessem topado com o poço, provavelmente Umbrio a teria matado. Em vez disso, Catherine sobreviveu, identificou o agressor e testemunhou contra ele. Umbrio foi levado para a prisão. Catherine ficou para reconstruir a vida, o chamado Milagre de Ação de Graças cuja vida adulta não foi tão milagrosa, afinal. Ter sido mantida por um monstro definitivamente deixou suas marcas.
As anotações de Miers descreviam um caso chocante, porém de rotina. Catherine foi uma testemunha com credibilidade, e as provas encontradas no poço — uma escada de corrente de metal, um balde de plástico e a cobertura de compensado — atestavam sua história.
Umbrio cometeu o crime. Umbrio foi para a prisão. E dois anos atrás, quando saiu em liberdade condicional por engano, Umbrio voltou a perseguir Catherine com o mesmo zelo homicida que demonstrara antes da prisão.
Resumindo, Umbrio era um aborto da natureza, assassino e monstruoso, absolutamente capaz de ter matado seis meninas e enterrado seus corpos no terreno de uma instituição psiquiátrica.
Só que Umbrio estava atrás das grades no fim de 1980. E, de acordo com Annabelle Granger, ela só havia ganho o pingente encontrado nos Restos Mumificados Não Identificados #1 em 1982. O que queria dizer...?
Quarenta e oito horas passadas de uma investigação crítica, e Bobby não tinha nenhuma resposta, mas estava desenvolvendo uma lista fascinante de perguntas.
D.D. finalmente voltou, depois de levar Annabelle para fora do prédio. Puxou uma cadeira e se atirou nela como uma marionete que tivesse tido as cordas cortadas.
— Puta que pariu — ela disse.
— Engraçado, eu estava pensando exatamente a mesma coisa.
Ela passou a mão nos cabelos emaranhados.
— Preciso tomar um café. Não, espere, se eu tomar mais um café, vou começar a mijar sem parar. Preciso comer alguma coisa. Um sanduíche. Rosbife malpassado com pão de centeio. Com queijo suíço e um pedaço daqueles pepinos enormes. E um saco de batatas chips.
— Você realmente andou pensando no que comer. — Bobby largou o diagrama. D.D. podia parecer uma supermodelo, mas comia como um caminhoneiro. Quando ela e Bobby namoravam, nos tempos em que ambos eram novatos, dez anos e sabe Deus quantas mudanças de carreira atrás, Bobby aprendera rapidamente que a ideia de preliminares de D.D. normalmente incluía um bufê livre.
Ele sentiu aquela pontadinha de novo, uma saudade dos velhos tempos, que só haviam se tornado bons por causa das lembranças distantes e da solidão que o invadiam.
— O almoço é a única coisa que eu tenho para desejar hoje — D.D. disse.
— Que pena. A chance de você conseguir um sanduíche de rosbife decente aqui é de mais ou menos uma em dez.
— Eu sei. Até almoçar parece um sonho impossível.
Ela soltou os ombros. Bobby deu um tempo a ela. A verdade era que ele mesmo estava vacilando um pouco. Desde aquela manhã, havia conseguido convencer a si mesmo que qualquer semelhança entre a cena do terreno do hospital e o trabalho de Richard Umbrio era mera coincidência. Então Annabelle Granger tinha aparecido. Como disse D.D.: puta que pariu.
— Você vai me fazer dizer? — ela perguntou afinal.
— Sim.
— Não faz nenhum sentido.
— Sim.
— Quero dizer, tudo bem, tem uma semelhança. Muita gente se parece. Não dizem que todo mundo tem um gêmeo desconhecido?
Bobby apenas a encarou.
Ela suspirou fundo e se endireitou na cadeira, apoiando-se sobre a mesa, fazendo sua pose preferida para pensar:
— Vamos retomar do começo.
— Vamos nessa.
— Richard Umbrio usou um poço subterrâneo. Nosso caso também tem um poço subterrâneo — D.D. começou.
— O poço de Umbrio media um metro e vinte por um e oitenta e tinha todo o jeito de ser um sumidouro aberto a mão — Bobby colaborou, apontando para o diagrama sobre a mesa. — Nosso criminoso usou uma câmara de um metro e oitenta por três, com reforços de madeira.
— Então, iguais, mas diferentes.
— Iguais, mas diferentes — Bobby concordou.
— Exceto pelos “equipamentos”: a escada, a cobertura de compensado e o balde de plástico de dezoito litros.
— Exatamente iguais — Bobby concordou.
D.D. bufou, soprando a franja.
— Quem sabe sejam os suprimentos lógicos para uma câmara subterrânea?
— É possível.
— Agora, a cadeira dobrável e as prateleiras...
— Diferentes.
— Mais sofisticadas — D.D. acrescentou em voz alta. — Câmara maior, mais mobília.
— O que nos leva à próxima diferença-chave...
— Richard Umbrio sequestrou uma vítima conhecida, a menina de doze anos Catherine Gagnon. Nosso criminoso sequestrou seis vítimas, todas meninas novas.
— Precisamos de mais informações para fazer uma análise adequada — Bobby disse imediatamente. — Um, não sabemos se as seis vítimas foram abduzidas de uma só vez, o que é de se duvidar, ou individualmente ao longo de um período de tempo. Existe alguma relação entre as meninas? Parentes, religiões, pais que trabalhavam para a máfia? Elas chegaram a ficar ao mesmo tempo na câmara? Ou nem chegaram sequer a ser mantidas vivas lá embaixo? Essa foi uma dedução que fizemos com base no caso de Catherine Gagnon. Mas talvez o espaço servisse apenas como túmulo. Um local aonde ele pudesse ir... para ficar com elas. Uma galeria de exposição. Ainda não sabemos o que mexia com esse sujeito. Podemos imaginar, mas não sabemos.
D.D. assentiu lentamente com a cabeça.
— Só que temos Annabelle Granger.
— É, bem, temos.
— Meu Deus, elas são exatamente iguais. Eu não estou louco, estou? Annabelle poderia ser irmã gêmea de Catherine Gagnon.
— Ela poderia ser gêmea de Catherine.
— E quais são as chances disso? Duas mulheres tão parecidas crescendo na mesma cidade, ambas se tornando alvos de loucos que gostam de raptar meninas e enfiá-las em poços subterrâneos.
— É aí que entramos na zona Além da Imaginação — Bobby concordou.
D.D. se recostou. Seu estômago roncou, e ela o massageou distraidamente.
— O que acha da história dela?
Bobby suspirou e se recostou também, juntando as mãos atrás da cabeça. Sua pose preferida para pensar.
— Não sei ainda.
— Parece muito forçada.
— Mas bastante detalhada.
D.D. bufou.
— Ela errou metade dos detalhes.
— O que torna a história ainda mais realista — Bobby contrapôs. — Não se poderia esperar uma lista perfeita de datas e nomes de alguém que era apenas uma criança na época.
— Acha que o pai dela sabia de alguma coisa?
— Quer dizer, se pressentiu que a filha estava sendo alvo de alguma perseguição e foi por isso que a família fugiu? — Bobby encolheu os ombros. — Não sei, mas é aí que a vida complica. Se alguma coisa estava acontecendo em Arlington no outono de 1982, definitivamente não foi Richard Umbrio. Ele foi preso sem direito a fiança no final de 1980 e julgado em 1981. Isso quer dizer que a ameaça teria de vir de outro lugar.
— Perturbador. Alguma chance de Catherine estar errada a respeito de Umbrio? Teria sido outra pessoa que a sequestrou? Quero dizer, sim, ela o identificou, mas ela era apenas uma menina de 12 anos de idade.
— Os eventos subsequentes teriam descartado isso, ainda mais com as várias provas correspondentes.
— Droga.
Bobby sacudiu a cabeça, igualmente frustrado.
— É difícil não ter o pai para entrevistar — ele disse abruptamente. — Annabelle simplesmente não pode, ou não quer, nos contar o suficiente.
— Bastante conveniente o fato de o pai e a mãe estarem mortos — D.D. resmungou sombriamente. Olhou para ele de soslaio. — Claro que poderíamos perguntar a Umbrio, mas, convenientemente, ele também está morto.
Bobby não ia se prestar a morder a isca.
— Tenho certeza de que Annabelle Granger não acha tão conveniente que o pai e a mãe estejam mortos. A mim me pareceu que ela não se importaria de questionar o pai ela mesma.
— Você está com a lista de cidades e codinomes? — D.D. perguntou abruptamente. — Faça uma busca. Veja o que consegue descobrir. É um bom exercício de investigação.
— Nossa, obrigado, profe.
D.D. se levantou da cadeira. A reuniãozinha dos dois parecia ter acabado. Na porta, porém, ela fez uma pausa.
— Já recebeu alguma notícia dela?
Não precisava dizer quem.
— Não.
— Acha que ela vai ligar?
— Enquanto continuarmos chamando a cena de túmulo, provavelmente não. Mas no instante em que a mídia descobrir que se tratava de uma câmara subterrânea...
D.D. assentiu.
— Me mantenha informada.
— Talvez sim, talvez não.
— Robert Dodge...
— Se quiser um telefonema oficial com Catherine Gagnon, pegue o telefone. Não sou seu lacaio.
Ele falou com o tom de voz firme e o olhar duro. D.D. acatou a repreensão elegantemente, como ele esperava. Ela parou na porta, com uma expressão de frieza.
— Nunca tive problemas em relação ao tiroteio, Bobby — ela disse diretamente. — Eu e muitos policiais que estavam lá respeitamos o fato de que você fez o seu trabalho e compreendemos que, às vezes, esse trabalho é uma droga. O problema não foram os tiros, Bobby. Foi a sua atitude a partir dali.
Ela bateu com os nós dos dedos na soleira da porta.
— O trabalho policial envolve confiança. Ou você está dentro ou não está. Pense nisso, Bobby.
D.D. lançou um último olhar enfático e saiu.
capítulo 7
Eu me apaixonei por uma caneca quando tinha 9 anos de idade. Ela estava à venda na lojinha de conveniência ao lado da minha escola, onde eu às vezes usava o dinheiro do lanche para comprar balas depois da aula. A caneca era cor-de-rosa com flores, borboletas e um gatinho listrado, cor de laranja, pintados a mão. Ela vinha com vários nomes escritos. Eu queria a que dizia Annabelle.
A caneca custava 3,99 dólares, o equivalente a quase duas semanas de dinheiro do lanche. Nunca questionei o sacrifício.
Tive de esperar por mais uma semana sofrida, até uma quinta-feira em que a minha mãe anunciou que precisava fazer algumas coisas e talvez se atrasasse para me buscar. Passei o dia todo agitada, mal conseguindo me concentrar, como uma guerreira prestes a começar sua primeira missão.
Às duas e trinta e cinco, o sinal da escola tocou. As crianças que não iam de ônibus ficavam reunidas na frente do edifício, feito buquês de flores. Eu estava naquela escola fazia seis meses. Como não pertencia a nenhum grupo, ninguém se importou quando me afastei. Era um tempo em que não era preciso registrar a entrada e a saída das crianças. Antes de pais voluntários ficarem de guarda depois da aula. Antes dos alertas amarelos. Naquele tempo, apenas meu pai parecia obcecado com todas as coisas que podiam acontecer com uma menina pequena.
Na loja, peguei a caneca com cuidado. Levei até o caixa segurando com as duas mãos. Contei 3,99 dólares em moedas de 25 centavos, remexendo as moedas com ansiedade.
A atendente, uma mulher mais velha, me perguntou se eu me chamava Annabelle.
Por um instante, não consegui falar, quase saí correndo da loja. Eu não podia ser Annabelle. Era muito importante que eu não fosse Annabelle. Meu pai havia me dito isso muitas e muitas vezes.
— É para uma amiga — eu, finalmente, consegui sussurrar.
A mulher sorriu gentilmente e enrolou meu brinde em várias camadas de papel de seda.
Fora da loja, enfiei a caneca na mochila, com os livros de aula, e voltei para a frente da escola. Um minuto depois, minha mãe chegou em nossa nova perua usada, carregada de compras, batucando distraidamente na direção.
Senti uma onda terrível de culpa. Tinha certeza de que ela podia enxergar através do vinil azul da mochila. Ela estava olhando fixamente para a caneca. Ela sabia exatamente o que eu tinha feito.
Mas ela apenas me perguntou como havia sido meu dia. Eu disse “Tudo bem” e me sentei ao lado dela, na frente do carro. Ela não olhou a minha mochila. Não me fez nenhuma pergunta sobre a caneca. Simplesmente dirigiu até nossa casa.
Guardei a caneca cor-de-rosa atrás de uma pilha de roupas que não me serviam mais na prateleira mais alta do meu armário. Eu a pegava à noite, quando meus pais achavam que eu estava dormindo. Eu a levava para a cama, me escondia embaixo das cobertas e ficava admirando o reflexo cor-de-rosa perolado com a luz de uma lanterna. Passava os dedos pelas pinceladas que formavam as flores, as borboletas e o gatinho. Mas, principalmente, passava os dedos pelo nome, sem parar.
Annabelle. Meu nome é Annabelle.
Umas seis semanas mais tarde, minha mãe encontrou a caneca. Era um sábado, e meu pai estava trabalhando. Acho que eu estava vendo desenho animado na sala. Minha mãe resolveu organizar um pouco as coisas, tirando a pilha de roupas pequenas para trocar no brechó em que comprávamos a maior parte das nossas coisas.
Ela não gritou. Não berrou. Na verdade, acho que o que acabou chamando a minha atenção foi o silêncio. O silêncio total e absoluto em comparação ao barulho neutro que minha mãe costumava fazer trabalhando no apartamento minúsculo, dobrando as roupas limpas, batendo panelas, abrindo e fechando as portas dos armários.
Eu tinha acabado de me levantar do tapete quando ela apareceu na porta com o meu tesouro na mão. Ela parecia perplexa, mas centrada.
— Alguém deu isto para você? — ela me perguntou em voz baixa.
Sem dizer nada, com o coração batendo forte no peito, sacudi a cabeça.
— Então como você conseguiu isto?
Não consegui olhar nos olhos dela e contar a minha história. Em vez disso, agarrei o tapete com os dedos dos pés.
— Eu vi essa caneca. Eu... eu achei bonita.
— Você roubou esta caneca?
Sacudi a cabeça de novo rapidamente.
— Eu economizei o dinheiro do lanche.
— Ah, Annabelle... — Ela levou a mão até a boca. Para me mostrar que havia ficado consternada, horrorizada até? Ou para encobrir o imperdoável pecado de ter dito meu nome?
Eu não soube ao certo. Mas, então, ela estendeu os braços, e eu corri até ela e a abracei forte pela cintura e comecei a chorar porque foi muito bom ouvir minha mãe dizendo meu nome verdadeiro. Sentia muita falta de ouvi-lo sair de sua boca.
Meu pai chegou em casa. Nos pegou abraçadas feito duas conspiradoras na sala, com a caneca ainda na mão da minha mãe. A reação dele foi imediata e tonitruante.
Ele arrancou a caneca cor-de-rosa da minha mãe e a brandiu no ar.
— Que diabo é isto aqui? — rugiu.
— Eu não quis...
— Algum estranho deu isto a você?
— N-n-não...
— Foi ela quem deu isto a você? — ele perguntou apontando para a minha mãe, como se de alguma forma ela fosse pior do que um estranho.
— Não...
— Que diabos você está fazendo? Você acha que isso é uma brincadeira? Acha que eu abri mão do meu emprego no MIT e que estamos vivendo neste buraco de merda de brincadeira? O que você está pensando?
Eu não conseguia mais falar. Apenas fiquei olhando fixamente para ele com o rosto em chamas e os olhos assustados, sabendo que estava encurralada, desejando desesperadamente uma forma de fugir.
Ele se virou para a minha mãe.
— Você sabia disso?
— Acabei de descobrir — ela disse calmamente. Pôs a mão no braço dele, como que para tranquilizá-lo. — Russ...
— Hal, o nome é Hal ! — Ele afastou a mão dela com um safanão. — Meu Deus, você é quase tão ruim quanto ela. Bem, eu sei como pôr um ponto final nisso.
Ele foi até a cozinha, abriu a gaveta que ficava embaixo do telefone e tirou um martelo de dentro.
— Sophia — ele disse enfaticamente, olhando para mim. — Venha aqui.
Ele me sentou à mesa da cozinha e colocou a caneca na minha frente. E estendeu o martelo para mim.
— Vamos lá.
Sacudi a cabeça.
— Vamos lá!
Sacudi a cabeça de novo.
— Russ... — disse minha mãe, em tom de lamúria.
— Que maldição, Sophia, ou você quebra esta caneca ou não vai sair da mesa. Não me importo que demore a noite toda. Você vai pegar este martelo!
Eu não peguei o martelo a noite toda. Até as três da manhã. Quando finalmente fiz o que ele estava mandando, não chorei. Segurei o martelo com as duas mãos. Examinei o alvo. Então dei o golpe assassino com tanta força que quebrei um pedaço da mesa.
O meu problema com meu pai nunca foi o fato de sermos diferentes, mas, mesmo naquela época, o fato de sermos tão parecidos.
Quando somos crianças, precisamos que nossos pais sejam onipotentes, um poderoso símbolo de autoridade que sempre vai garantir nossa segurança. Então, quando somos adolescentes, precisamos que nossos pais tenham defeitos, porque essa parece a única maneira de construirmos a nós mesmos, de nos libertarmos. Estou com 32 anos hoje. E, na maior parte do tempo, preciso pensar que meu pai era louco.
Essa ideia começou com a morte prematura dele. Depois de sua constante vigilância contra possíveis pedófilos, estupradores e assassinos em série, parecia incrível que nenhum monstro o tenha pegado no final. Em vez disso, ele foi vítima de um taxista exausto que mal falava inglês e que não chegou a ser julgado depois de ameaçar processar a prefeitura por sinalizar de maneira inadequada o desvio de obras do Big Dig, dessa forma criando o cenário para o chocante acidente e, é claro, provocando no motorista dores de coluna que o incapacitaram de algum dia voltar a trabalhar.
Comecei a me perguntar se, em toda a sua vida, meu pai não havia temido as coisas erradas. E não demorou muito para que eu passasse a questionar se ele havia realmente tido algo a temer.
E se nunca houve um monstro escondido no armário? Nenhum pervertido sexual homicida esperando para arrancar a pequena Annabelle Granger das ruas?
Acadêmicos são famosos por suas mentes brilhantes e frágeis. Os matemáticos em especial. E se tudo estivesse apenas na cabeça do meu pai?
A verdade é que, olhando em retrospectiva para nossos dias na estrada, eu nunca percebi nada de extraordinário. Nunca senti olhos desconhecidos me observando. Nunca vi um carro diminuindo a velocidade para que o motorista pudesse ver melhor. Nunca, jamais me senti ameaçada, e eu pensava nisso, pode acreditar, eu pensava nisso toda vez que chegava em casa e encontrava nossas cinco malas prontas e empilhadas ao lado da porta. O que havia dado errado dessa vez? Que pecado eu havia cometido? Nunca recebi uma resposta.
Meu pai lutou uma guerra. Dedicada, maníaca e obsessivamente.
Minha mãe e eu simplesmente seguimos junto.
Penso nisso de novo enquanto passo por mais um trem de metrô apinhado, cheio de perigos em potencial, mas acabo chegando em segurança a meu destino. Enquanto subo as escadas que dão na noite que escurece rapidamente. Enquanto viro à esquerda e sigo mais uma vez para meu minúsculo apartamento no extremo norte da cidade.
Meus passos são rápidos e seguros, caminho de queixo erguido e com os ombros eretos. Mas não estou simplesmente telegrafando minhas habilidades a ladrões potenciais. Estou sinceramente feliz de estar indo para casa. Estou ansiosa para ver minha cachorra, Bella, e sei que, depois de ter passado todo o dia confinada sozinha, ela está ansiosa por me ver.
Provavelmente, vamos sair para dar uma corrida na orla, embora já esteja escuro em uma cidade repleta de crimes. Vamos correr muito rápido. Eu levarei meu Taser. Mas vamos sair, porque Bella e eu precisamos correr, e o que mais se pode fazer?
Eu estou viva. E sou jovem e não tenho como não olhar para a frente. Quero expandir meus negócios um dia, talvez contratar dois ou três assistentes e alugar uma sala comercial de verdade. Mais do que costurar, eu gosto muito de cor e espaço. Tenho pensado em fazer aulas de design de interiores, de construir meu próprio pequeno império Martha Stewart.
Às vezes, penso em conhecer alguém especial. Frequento a pequena igreja comunitária que fica perto, virando a esquina. Tenho alguns conhecidos. De vez em quando, tento sair em um encontro com alguém. Talvez eu me apaixone e me case. Talvez, algum dia, eu tenha um bebê. Nós nos mudaremos para o subúrbio. Eu plantarei dúzias de rosas e pintarei murais em todos os ambientes. Nunca permitirei que meu marido compre malas. Ele vai achar que é uma excentricidade encantadora.
Eu terei uma filha. Nos meus sonhos, é sempre uma filha, nunca um menino. Eu vou chamá-la de Leslie Ann e vou comprar dúzias de canecas de cerâmica personalizadas.
Penso nessas coisas enquanto chego a meu prédio, enquanto olho para a esquerda e depois para a direita, procuro por estranhos espreitando nas sombras e, então, seguro a chave da porta da rua entre os dedos fechados e abro a velha porta de madeira maciça. Luzes brilhantes se acendem no pequeno hall, cujo lado esquerdo está coberto por uma fileira de caixas de correio de metal frágil. Fecho a porta da rua, garantido que esteja trancada.
Pego minha correspondência: algumas contas, alguns folhetos de divulgação — boa notícia, o cheque de um cliente. Então espio pela janela de vidro da porta interna para garantir que o saguão está vazio. Não tem ninguém por perto.
Entro no saguão e começo a subir cinco lances de degraus estreitos que rangem. Já consigo ouvir Bella lá em cima, tendo farejado minha chegada, ganindo excitada diante da porta.
Penso agora que minhas fantasias têm apenas um problema. Nos meus sonhos, ninguém nunca me chama de Tanya. Nos meus sonhos, o homem que eu amo me chama de Annabelle.
capítulo 8
O que ia acontecer era o seguinte: a polícia não iria me ajudar. Paranoico ou não, meu pai tinha razão: o cumprimento da lei é um sistema. Existe para ajudar as vítimas, para prender criminosos e para promover a carreira de oficiais importantes. As testemunhas, as fontes, nós todos éramos invisíveis no caminho, como objetos dispensáveis, inevitavelmente destruídos pela imensa máquina burocrática. Eu poderia ficar sentada ao lado do telefone o dia todo, esperando por uma ligação que jamais seria feita. Ou eu poderia procurar por Dori Petracelli eu mesma.
Minha mesa de trabalho estava coberta por uma pilha desordenada de retalhos de tecido, esboços de decoração de janelas e propostas de clientes, o estado natural de um apartamento que tinha mais atmosfera do que metragem. Juntei toda a bagunça e a passei para a pilha assustadoramente grande sobre a mesa de centro. Agora eu podia ver meu alvo: meu laptop. Liguei o computador e comecei a trabalhar.
Primeira parada: o site do Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas. Fui recebida com fotos de três crianças pequenas que haviam sido declaradas desaparecidas na última semana. Um menino e duas meninas. Um era de Seattle, outra de Chicago e a terceira de St. Louis. Todas cidades em que cheguei a morar.
Às vezes, me pergunto se foi isso que pegou a minha mãe no final. O fato de que não importava o quanto fugíssemos, sempre acabávamos fugindo de novo. Se quisermos ser específicos sobre a questão, não há lugar seguro para se criar um filho. O crime é universal. Criminosos sexuais registrados vivem em todos os lugares. Eu sei. Eu conferi os bancos de dados.
O Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas tem sua própria ferramenta de busca. Digitei feminino, Massachusetts e desaparecida há 25 anos. Cliquei para disparar a busca e, então, me recostei e comecei a roer a unha do polegar.
Bella saiu da minúscula cozinha, depois de acabar de deglutir o jantar. Agora estava olhando para mim com ar de reprovação. Corra, dizia com o olhar. Para fora. Pegue a coleira. Diversão.
Bella era uma pastora australiana pura de 7 anos de idade com pernas compridas e corpo atlético cobertos por um pelo sarapintado, misturado de manchas brancas e faixas marrons e azuladas. Como muitos pastores australianos, tinha um olho azul e outro castanho. Isso dava a ela um ar eternamente manhoso que ela gostava de usar a seu favor.
— Só um instante — eu disse.
Ela ganiu para mim e, como nem isso funcionou, ela se atirou no chão com absoluta fúria canina. Eu havia recebido Bella como pagamento de um cliente, quatro anos antes. Bella havia destruído o par de sapatos Jimmy Choo preferido da mulher, e ela não aguentava mais o comportamento agitado da cachorra. Na verdade, pastores australianos não são bons cachorros de apartamento. Se não os mantemos ocupados, eles realmente criam problemas.
Mas Bella e eu nos dávamos bem. Principalmente porque eu gostava de correr e, mesmo entrando na meia-idade da vida canina, Bella não se incomodava nem um pouco em correr oito quilômetros.
Eu teria de sair com ela logo ou me arriscava a perder uma das minhas almofadas preferidas ou, talvez, uma adorada peça de tecido. Bella sempre sabia como se fazer entender.
A busca havia terminado. A tela do meu computador mostrava uma coluna de rostos alegres. Retratos de escola, closes tirados de álbuns de família. Fotos de crianças desaparecidas sempre as mostram felizes. A ideia é fazer com que soframos mais.
Resultados da busca: quinze.
Peguei o mouse e desci lentamente a coluna: Anna, Gisela, Jennifer, Janeeka, Sandy, Katherine, Katie...
Era difícil olhar para as fotos. Mesmo com as dúvidas que tinha em relação a meu pai, eu sempre me perguntava se poderia ter me tornado uma delas. Se não tivéssemos nos mudado, se ele não tivesse sido tão obsessivo.
Pensei mais uma vez no pingente. De onde ele tinha vindo? E por quê, ah, por que eu o havia dado a Dori?
O nome dela não aparecia na lista. Finalmente, soltei a respiração. Bella se endireitou, sentindo a liberação de tensão, a possibilidade de começar nossa rotina noturna normal.
Mas, então, notei as datas. Nenhum daqueles casos era anterior a 1997. Apesar dos parâmetros de busca por tempo, o banco de dados não devia voltar tantos anos. Voltei a roer a unha do polegar, pensando nas opções.
Eu poderia ligar para o disque-denúncia, mas isso acabaria levantando muitas questões. Eu preferia o anonimato das buscas na internet. Bem, pelo menos a aparência de anonimato, já que só Deus sabe que, com a proliferação de spyware, era bem provável que o Grande Irmão, ou pelo menos uma megamáquina de marketing, estivesse acompanhando cada movimento meu.
Eu sabia de outro site em que podia procurar. Eu não entrava muito nele, porque ficava triste.
Digitei na minha ferramenta de busca na internet: www.doenetwork.org. Em dois segundos, estava lá.
A Doe Network trata basicamente de velhos casos de pessoas desaparecidas, tentando casar restos esqueléticos encontrados em um local com boletins de pessoas desaparecidas que pudessem ter sido registrados em outras jurisdições. O lema do site: “Não há limite de tempo para resolver um mistério”.
Arrepiei-me com a ideia ao sentar, com uma das mãos agora agarrada ao frasco das cinzas da minha mãe e a outra digitando o parâmetro de busca: Massachusetts.
O primeiro resultado me deixou hesitante. Três fotos do mesmo garoto, começando quando ele tinha dez anos, depois progredindo até ele ter 20 e depois 35. Ele havia desaparecido em 1965 e era dado como morto. Em um instante, ele estava brincando no quintal. No instante seguinte, havia desaparecido. Um pedófilo preso em Connecticut alegava que havia estuprado e matado o menino, mas que não conseguia lembrar onde tinha enterrado o corpo. Assim, o caso continuava em aberto, e os pais trabalhavam hoje para encontrar os restos mortais do menino com o mesmo afinco que devem ter dedicado, quarenta anos atrás, para encontrar o filho.
Imaginei como devia ser para os pais olharem aquelas fotos que simulavam a passagem do tempo. Ter aquela demonstração de como o filho poderia ter sido se a mãe não tivesse entrado em casa para atender o telefone ou o pai não tivesse ido para baixo do carro trocar o óleo...
Lute, meu pai sempre me dizia. Setenta e quatro por cento das crianças sequestradas que são assassinadas são mortas nas primeiras três horas. Sobreviva a essas três horas. Não dê chance ao canalha.
Eu não sabia por quê, mas estava chorando. Não conheci aquele menininho. Ele, provavelmente, havia morrido mais de quarenta anos atrás. Mas eu podia compreender o terror dele. Eu sentia esse terror toda vez que meu pai começava uma de suas palestras ou um de seus exercícios de treinamento. Lutar? Quando se é uma criança de 23 quilos contra um homem de 90 quilos, o que no mundo se poderá fazer que, sinceramente, signifique alguma diferença? Meu pai podia ter suas ilusões, mas eu sempre fui realista.
Quando somos crianças e alguém quer nos machucar, são grandes as chances de que acabaremos mortos.
Passei para o caso seguinte: 1967. Passei a olhar apenas para as datas. Não queria ver as fotos. Foram necessários mais cinco cliques. Então, cheguei a 12 de novembro de 1982.
Eu estava olhando para Dori Petracelli. Eu estava olhando para a foto dela com progressão de idade feita para 30 anos. Eu estava lendo o estudo de caso do que havia acontecido com a minha melhor amiga.
Então, fui ao banheiro e vomitei até não sair mais nada.
Mais tarde, vinte, quarenta, cinquenta minutos depois, eu não sabia mais, estava com a guia em uma das mãos e o Taser na outra. Bella dançava ao redor dos meus pés, praticamente quase me derrubando com sua ansiedade para chegar lá embaixo.
Prendi a guia à coleira dela. E, então, corremos. Corremos e corremos e corremos.
Quando voltamos para casa, uma boa hora e meia depois, achei que havia me recomposto. Estava me sentindo fria, profissional, até. Ainda tinha as malas da minha família. Começaria a arrumá-las imediatamente.
Mas, então, liguei o noticiário.
Bobby chegou em casa logo depois das nove horas da noite. Era um homem com uma missão: tinha aproximadamente quarenta minutos para tomar banho, comer, engolir uma Coca-Cola e voltar a Roxbury. Infelizmente, as vagas de estacionamento do sul de Boston não pareciam dispostas a colaborar com seus planos. Ele havia percorrido um raio de oito quadras ao redor de seu prédio de três andares antes de se irritar e estacionar sobre a calçada. Um policial de Boston teria grande prazer em multar um policial do estado, então agora ele estava vivendo perigosamente.
Uma surpresa agradável: uma de suas vizinhas, a sra. Higgins, havia deixado um prato de biscoitos para ele. “Vi o noticiário. Se cuide”, dizia o bilhete dela.
Como não poderia contrariar aquilo, Bobby começou o jantar comendo um biscoito de limão. Então, comeu mais três enquanto repassava a pilha de correspondências espalhadas pelo chão, pegando apenas os envelopes mais importantes, de contas a pagar e cheques de aluguel, e deixando o resto.
Mais um biscoito de limão para comer no caminho, que mastigou sem sequer sentir o sabor, e ele seguiu pelo comprido corredor estreito que levava ao quarto no fundo do apartamento. Desabotoou a camisa com uma das mãos e esvaziou os bolsos das calças com a outra. Então tirou a camisa, chutou as calças para longe e entrou no minúsculo banheiro de azulejos azuis usando meias beges e cueca justa branca. Ligou o chuveiro no máximo. Uma das melhores coisas de que ainda se lembrava dos tempos de grupo tático: voltar para casa para tomar uma ducha longa e quente.
Ficou parado embaixo da água escaldante por vários minutos. Inalou o vapor, deixando-o penetrar nos poros e desejando, como sempre fazia, que todo o horror fosse lavado por ele.
Seu cérebro era um redemoinho hiperativo de imagens. Aquelas seis menininhas, rostos pressionados contra os sacos de lixo transparentes. Velhas fotos de Catherine aos 12 anos de idade, com o rosto pálido afundado pela fome e os olhos com pupilas gigantescas depois de ter passado um mês sozinha no escuro.
E, é claro, a outra imagem que ele era forçado a ver, e que provavelmente veria pelo resto da vida: o olhar no rosto do marido de Catherine, o rosto de Jimmy Gagnon, pouco antes da bala do rifle de Bobby estraçalhar seu crânio.
Dois anos depois, Bobby ainda sonhava com o tiroteio quatro ou cinco noites por semana. Ele imaginava que algum dia passaria a ser três vezes por semana. Depois duas vezes. Então, talvez, se tivesse sorte, o sonho passaria a acontecer apenas três ou quatro vezes por mês.
Ele havia feito terapia, é claro. Ainda se reunia com seu velho tenente, que atuava como seu mentor. Chegara até a participar de um ou dois encontros de outros policiais que haviam se envolvido em incidentes críticos. Mas, pelo que podia sentir, nada daquilo tinha feito muita diferença. Tirar a vida de um homem simplesmente modificava a pessoa.
Ainda era preciso acordar todas as manhãs e vestir as calças uma perna de cada vez, como todo mundo.
E alguns dias eram bons e outros, ruins. E, então, havia um monte de outros dias entre esses que, na realidade, não eram absolutamente nada. Apenas existência. Apenas fazer o trabalho necessário. Talvez D.D. tivesse razão. Talvez houvesse dois Bobby Dodges: o de antes do tiroteio e o de depois do tiroteio. Talvez, inevitavelmente, fosse assim que as coisas funcionassem.
Bobby ficou no banho até a água esfriar. Enquanto se secava, olhou para o relógio. Tinha um minuto inteiro para jantar. Seria frango de micro-ondas.
Enfiou dois peitos de frango no micro-ondas, voltou para o banheiro cheio de vapor e atacou o rosto com uma lâmina de barbear.
Oficialmente cinco minutos atrasado, vestiu roupas limpas, abriu uma Coca-Cola, atirou dois peitos de frango quentes em um prato de papelão e cometeu o primeiro erro crítico: sentou-se.
Três minutos depois, estava dormindo no sofá, com o frango caído no chão e o prato de papelão amassado no colo. Quatro horas de sono nas últimas cinquenta e seis fazem isso com um homem.
Ele acordou em um pulo, confuso e desorientado, algum tempo depois. As mãos agitadas. Estava procurando por seu rifle. Por Deus, precisava do rifle! Jimmy Gagnon estava se aproximando, estendendo as mãos esqueléticas para ele.
Bobby saltou do sofá antes que a última imagem fosse varrida de sua mente. Ele se viu parado, em pé no meio de seu apartamento, apontando um prato engordurado de papelão para a tevê, como se estivesse atirando. Estava com o coração batendo forte.
Sonho de ansiedade.
Contou até dez e depois fez a contagem regressiva até um. Repetiu o ritual três vezes até o pulso voltar ao normal.
Largou o prato amassado. Juntou os dois peitos de frango do chão. Sentiu o estômago roncar. Pensou na regra dos 30 segundos e comeu o frango com as mãos.
A primeira vez que Bobby viu Catherine Gagnon foi como atirador de elite chamado para a cena de uma trincheira doméstica — denúncia de marido armado mantendo a esposa e o filho sob sua mira. Bobby havia se posicionado do outro lado da casa dos Gagnon e estava observando a situação através da mira do rifle quando viu Jimmy parado ao pé da cama, agitando uma pistola e gritando tão forte que Bobby podia enxergar os músculos se esticando no pescoço do sujeito. Então, Catherine apareceu, agarrando o filho de 4 anos contra o peito. Estava com as mãos nos ouvidos de Nathan, com o rosto do menino virado para seu corpo, como se estivesse tentando protegê-lo do pior.
A situação piorou ainda mais. Jimmy havia arrancado o filho dos braços de Catherine. Havia empurrado o menino para o outro lado do quarto, para longe do que iria acontecer a seguir. Então ele apontou a arma para a cabeça da mulher.
Bobby leu os lábios de Catherine no mundo ampliado de sua mira Leupold.
— E agora, Jimmy? O que nos resta?
Jimmy sorriu de repente. E, com aquele sorriso, Bobby sabia exatamente o que aconteceria a seguir.
O dedo de Jimmy Gagnon pressionou levemente o gatilho. A 50 metros de distância, no quarto escuro de um sobrado vizinho, Bobby Dodge atirara contra ele.
Na sequência do tiroteio, não restavam dúvidas de que Bobby cometera alguns erros. Para início de conversa, ele começara a beber. Então, conhecera Catherine pessoalmente, em um museu local. Essa foi provavelmente sua atitude mais autodestrutiva. Catherine Gagnon era bonita, era sexy e era a viúva grata do marido violento que Bobby havia acabado de mandar para baixo da terra prematuramente.
Ele se envolveu com ela. Não fisicamente, como D.D. e a maior parte das pessoas imaginava. Mas emocionalmente, o que possivelmente foi ainda pior, e o motivo pelo qual Bobby jamais se deu ao trabalho de corrigir as deduções dos outros. Ele havia ultrapassado o limite. Ele se importava com Cat, e, como as pessoas ao redor dela começaram a morrer de modo terrível, ele passou a temer pela vida dela.
O temor acabou se comprovando legítimo.
Até hoje, D.D. sustentava que Catherine Gagnon tinha sido uma das mulheres mais perigosas a viver em Boston, uma mulher que muito provavelmente (embora faltassem provas consistentes) havia armado para que o próprio marido fosse morto. E até hoje, sempre que Bobby pensava nela, o que via era basicamente uma mãe desesperada tentando proteger o filho pequeno.
Uma pessoa podia ao mesmo tempo ser nobre e insensível. Abnegada e autocentrada. Genuinamente carinhosa. E uma assassina fria e calculista.
D.D. tinha o luxo de odiar Catherine. Bobby a compreendia bem demais.
Então Bobby jogou fora o prato de papelão, amassou a lata de Coca-Cola e a atirou na lata de lixo. Estava pegando a chave do carro, preparando-se mentalmente para o que, provavelmente, seria uma multa de estacionamento em local proibido muito cara, quando o telefone tocou.
Olhou para a identificação da chamada e, então, para o relógio: 11h15 da noite. Compreendeu o que havia acontecido antes mesmo de atender o telefone.
— Catherine — ele disse calmamente.
— Por que diabos você não me contou? — ela explodiu histericamente.
E foi assim que Bobby descobriu que a mídia, finalmente, havia descoberto a verdade.
capítulo 9
— Muito bem, pessoal — D.D. Warren disse com firmeza, passando adiante os últimos relatórios. — Temos aproximadamente — ela olhou para o relógio de pulso — sete horas e vinte e sete minutos para controle de danos. Os chefões lá em cima concordam que às oito horas da manhã daremos nossa primeira entrevista coletiva. Então, pelo amor de Deus, consigam algum progresso nas investigações, ou então vamos ficar parecendo um bando de bundões.
Bobby, que estava tentando entrar na sala de reuniões discretamente, pegou o final da declaração dela, exatamente quando D.D. ergueu o olhar e reparou na sua chegada tardia. Ela lançou um olhar irritado a ele, parecendo ainda mais exausta e esfarrapada do que a última vez que ele a havia visto. Se ele tinha dormido seis horas nos últimos dois dias e meio, D.D. havia dormido mais ou menos três. Ela também parecia estar nervosa. Ele olhou ao redor da sala e viu o superintendente-adjunto, o mandachuva da Divisão de Homicídios, sentado em um canto. Era o que bastava.
— Gentil da sua parte se unir a nós, detetive Dodge — D.D. disse para que toda a sala escutasse. — Achei que tivesse ido jantar, não ido passar seis horas em um spa.
Ele deu a melhor desculpa que um policial poderia dar:
— Trouxe biscoitos de limão.
Ele colocou os últimos tesouros feitos em casa da sra. Higgins no meio da mesa. Os outros detetives atacaram. Comer bolos e biscoitos era melhor do que alfinetar o cara da polícia estadual em qualquer dia da semana.
— Então, como eu estava dizendo — D.D. continuou, afastando as mãos até conseguir pegar um biscoito —, precisamos de novidades. Jerry?
O sargento McGahagin, líder do trio encarregado de reunir a lista de meninas desaparecidas, levantou o olhar. Apressadamente, limpou o açúcar que havia caído em cima do relatório. Com os dedos tremendo muito pelo consumo excessivo de cafeína durante dois dias, não conseguiu segurar a única folha de papel direito por três vezes seguidas. McGahagin decidiu, então, ler o sumário executivo direto da mesa.
— Temos doze nomes de garotas desaparecidas com menos de 18 anos de casos não resolvidos de 1965 a 1983, seis nomes de 1997 a 2005 e, é claro, 14 anos no meio — ele disparou em uma única frase, piscando furiosamente. — Eu poderia usar mais duas pessoas para ajudar a repassar as listas, se alguém tiver tempo livre. Claro que também precisamos do relatório da antropologia forense para fazermos a comparação. E também precisamos pensar se os corpos são todos de Massachusetts ou se precisamos ampliar a pesquisa para a região da Nova Inglaterra, incluindo Rhode Island, Connecticut, New Hampshire, Vermont e Maine. É um trabalho muito difícil de ser feito sem termos um perfil das vítimas. Não sei nem se estamos latindo para a árvore certa. É tudo o que temos.
D.D. o encarou por um instante.
— Pelo amor de Deus, Jerry. Pare com o café por uma hora, por favor. Vai acabar precisando de uma transfusão de sangue, desse jeito.
— Não posso — ele disse, se remexendo na cadeira. — Vou ficar com dor de cabeça.
— Você ao menos está conseguindo escutar com todo esse zumbido nos ouvidos?
— Ahn?
— Ah, minha nossa — D.D. suspirou e olhou para o restante da mesa. — Bem, o Jerry tem razão. É difícil saber se nossa pesquisa está indo bem sem o relatório de vitimologia. Eu conversei com a Christie Callahan há duas horas. A má notícia é que, provavelmente, teremos de esperar pelo menos duas semanas.
Os detetives gemeram. D.D. levantou a mão.
— Eu sei, eu sei. Vocês acham que estão sobrecarregados? Ela está ainda mais ferrada do que nós. Ela tem seis restos mortais mumificados que precisam ser processados adequadamente e não tem sequer uma força-tarefa brilhante, e posso acrescentar, encantadora, para ajudá-la. É claro que ela também está fazendo tudo como manda o figurino. O que quer dizer que os restos mortais primeiro tiveram de ser fumigados em busca de impressões digitais. Depois, tiveram de ser enviados para o hospital para fazer radiografias e só agora estão voltando para o laboratório dela. Aparentemente, a mumificação molhada é singularmente peculiar. Ela ocorre naturalmente nos pântanos da Europa, e houve alguns casos na Flórida. Mas é a primeira vez que acontece na Nova Inglaterra, o que quer dizer que Christie está fazendo e aprendendo. Ela imagina que vá levar de três a quatro dias para processar cada múmia. Como são seis múmias, basta fazer as contas.
— Ela pode nos passar um resultado de cada vez, conforme vai processando cada corpo? — perguntou o detetive Sinkus. Ele era o que tinha o bebê pequeno, o que, provavelmente, explicava o estado das suas roupas.
— Ela está pensando nisso. Existe um protocolo arqueológico, ou alguma merda dessas, que defende que os restos sejam tratados como um grupo. Individualmente, talvez não possamos ver o que seja sugerido pelo grupo como um todo.
— O quê? — o detetive Sinkus perguntou.
— Vou falar com ela — D.D. disse. Ela se virou para o detetive Rock, que estava trabalhando no relatório dos Combatentes do Crime. — Fale a verdade: alguém já confessou?
— Só uns quarenta. Má notícia: a maioria deles acabou de interromper os medicamentos. — Rock pegou uma impressionante pilha de papel e começou a passá-los adiante. Rock estava no Departamento de Polícia de Boston mais ou menos desde sempre. Até mesmo Bobby conhecia histórias sobre as habilidades do detetive veterano de ir direto do terrível crime A para um detalhe aleatório da prova B ao violento criminoso C. Naquela noite, no entanto, o rugido vigoroso do detetive trazia uma tensão oculta, forçada. Parecia estar com os cabelos pretos à escovinha mais grisalhos e tinha imensas olheiras embaixo dos olhos. Considerando-se o péssimo estado de saúde da mãe dele, trabalhar em uma investigação tão intensa devia ser difícil. Ainda assim, ele estava fazendo sua parte.
— Só é preciso prestar atenção à primeira folha — Rock explicou. — Os registros detalhados são apenas para quem tem tempo sobrando.
A observação arrancou algumas risadas cansadas.
— Então, estamos com uma média de uma ligação a cada poucos minutos. E isso é de antes da mídia enlouquecer esta noite. Uma pena ter havido o vazamento. — Ele olhou para D.D. como se ela pudesse comentar a questão.
Ela apenas sacudiu a cabeça.
— Não sei como aconteceu, Tony. Não tenho nem tempo nem energia para me preocupar com isso. Sinceramente, estou impressionada que tenhamos chegado tão longe.
Rock encolheu os ombros filosoficamente. Ficar 56 horas fora dos radares havia sido um pequeno milagre.
— Bem, antes do vazamento, estava muito fácil eliminar os malucos. Bastava perguntar se eles haviam enterrado os corpos juntos ou separadamente. Quando eles começavam a descrever detalhadamente o túmulo, podíamos simplesmente riscá-los da lista. Então, sim, recebemos muitas ligações, mas foi um processo muito tranquilo. Não sei se vou dizer a mesma coisa amanhã.
— Alguma boa pista? — D.D. pressionou.
— Algumas. Recebi uma ligação de um homem que dizia ser auxiliar de enfermagem do Hospital Psiquiátrico de Boston em meados dos anos 1970. Ele disse que um dos pacientes da época era filho de uma família muito rica de Boston. Eles não queriam que ninguém soubesse que o garoto estava lá e nunca o visitavam. Havia boatos de que o filho havia feito algo “inadequado” com a irmãzinha. Foi a forma que a família encontrou de lidar com a situação. O nome do paciente era Christopher Eola. Estamos em busca de informações, mas não conseguimos encontrar endereço atual ou carteira de motorista no nome dele. Estamos tentando encontrar a família.
D.D. arqueou a sobrancelha.
— Melhor do que eu esperava — ela disse. — Isso nos dá pelo menos uma pessoa para dar à imprensa.
— Considerando o local da cena — Rock disse friamente —, eu imaginava que teríamos uma lista maior de malucos para procurar. Mas, de novo, a noite é uma criança.
Ele respirou fundo e passou as mãos no rosto com a barba grisalha por fazer.
— E, como seria de se esperar com esse tipo de caso, recebemos algumas ligações de famílias com filhas desaparecidas. Tenho uma lista. — Ele passou a lista ao sargento McGahagin. — Algumas dessas pessoas são de fora do estado, então, acho que estamos começando a fazer aquela pesquisa mais ampla de que você falou. E — ele passou os olhos pelos nomes que McGahagin havia mencionado — já estou vendo três coincidências: Atkins, Gomez, Petracelli.
A expressão de D.D. não se alterou. Bobby achou interessante o fato de ela não oferecer quaisquer detalhes sobre sua conversa com Annabelle Granger ainda, incluindo a menção de Dori Petracelli. Mas, pensando bem, D.D. sempre gostara de esconder o jogo.
Ele havia feito uma pesquisa sobre Dori Petracelli, de modo que a inclusão do nome dela na lista de meninas desaparecidas não o surpreendeu. Era a data — 12 de novembro de 1982 — que continuava a incomodá-lo.
O detetive Rock se sentou. O detetive Sinkus assumiu a palavra.
— Então, ahn, eu pensei que deveria entregar alguma coisa. Mas quando vi tudo que tinha para compartilhar, cinquenta páginas de nomes, pensei que ninguém aqui teria tempo de ler, então, não fiz cópias.
— Graças a Deus — alguém disse.
— Obrigado — comentou outro detetive.
O superintendente-adjunto limpou a garganta. Todos se calaram imediatamente.
Sinkus encolheu os ombros.
— Olhem, meu trabalho é reunir uma lista preliminar de possíveis entrevistados. Estamos falando de empreiteiros, vizinhos, ex-funcionários do hospício e criminosos conhecidos da região até trinta anos atrás. A lista? É uma maldita lista telefônica. Não estou dizendo que não dá para fazer — ele olhou rapidamente para o superintendente-adjunto —, só estou dizendo que teríamos de quadruplicar a força policial de Boston para começar a trabalhar nisso tudo. Basicamente, sem mais informações para reduzir o número de suspeitos, como, digamos, uma linha do tempo definitiva, não acho que a tarefa atual seja executável. Juro por Deus, esta é uma área em que realmente precisamos do relatório de vitimologia.
— Bem, nós ainda não o temos — D.D. disse simplesmente. — Então, tentem novamente.
— Sabia que você diria isso — Sinkus murmurou, dando um suspiro. Enfiou as mãos nos bolsos. — Então, eu tenho uma ideia.
— Desembuche.
— Tenho um horário marcado amanhã para falar com George Robbards, ex-atendente na delegacia de Mattapan. Ele processou todos os relatórios de incidentes de 1972 a 1998. Pensei que se há alguém que possa ter conhecimento da região, e provavelmente uma boa lembrança sobre quais atividades ou pessoas os policiais estavam falando na época, mesmo que não tivessem informações suficientes para arquivar, esse alguém é ele.
D.D. ficou visivelmente impressionada.
— Nossa, caramba, Roger, que ideia brilhante.
Ele sorriu timidamente, ainda com as mãos nos bolsos.
— Sinceramente, a ideia foi da minha mulher. O bom de ter um recém-nascido em casa é que ela está sempre acordada quando chego, e nós conversamos. Ela se lembrou de uma vez eu ter dito que os atendentes são as verdadeiras cabeças de qualquer delegacia. Todos entramos e saímos. Os atendentes estão sempre lá.
Isso era verdade. Um policial passava em torno de três ou quatro anos em uma única delegacia. Os atendentes, por outro lado, podiam ficar no mesmo posto por décadas.
— Muito bem — D.D. disse rapidamente. — Gostei da ideia. É o tipo de ideia de que precisamos. Na realidade, vou até perdoá-lo pela falta de relatório agora, desde que me entregue a transcrição da entrevista de amanhã no instante em que estiver pronta. Ouvi coisas boas a respeito de Robbards. E, considerando que seis corpos em um local implica alguém que trabalhou na área por anos, sim, eu gostaria de saber o que Robbards pensa a respeito. Interessante.
D.D. pegou suas cópias dos relatórios e as arrumou em uma pilha organizada.
— Muito bem, pessoal. Eis como estamos: realizando uma investigação metralhadora, atirando para todos os lados e esperando acertar alguma coisa. Sei que é cansativo, bagunçado e doloroso, mas é por isso que ganhamos tão bem. Agora, temos — ela olhou para o relógio de pulso novamente — sete horas, e contando. Então, vão em frente e descubram algo incrível e comuniquem até as sete horas da manhã. O primeiro que me disser algo que podemos usar na coletiva de imprensa pode ir para casa dormir.
Ela começou a se afastar da mesa, já meio em pé. Mas, então, no último instante, fez uma pausa e olhou para eles com mais seriedade.
— Todos vimos aquelas meninas — disse rispidamente. — Vimos o que aconteceu com elas... — D.D. sacudiu a cabeça, sem conseguir continuar. Ao redor da mesa, todos desviaram os olhares desconfortavelmente. Detetives de homicídio viam muita coisa, mas os casos que envolviam crianças sempre incomodavam mais.
D.D. limpou a garganta.
— Quero mandá-las para casa. Faz trinta anos. É muito tempo. É... muito triste para todos nós. Então, vamos fazer isso, está bem? Sei que todo mundo está cansado e estressado. Mas precisamos fazer um esforço extra. Vamos fazer isso acontecer. Vamos mandar essas meninas para casa, para as famílias delas. E, então, vamos atrás do filho da puta que fez isso até o fim do mundo e vamos prendê-lo. Parece um bom plano? Eu acho que sim.
D.D. se afastou da mesa e caminhou em direção à porta.
Houve um minuto inteiro de silêncio. Então, um a um, os detetives voltaram ao trabalho.
capítulo 10
Bobby pegou D.D. em sua sala. Ela estava debruçada sobre a tela do computador, repassando uma lista de nomes, apertando um lápis no punho cerrado. Estava percorrendo a lista tão rapidamente, que Bobby não sabia se ela podia estar realmente lendo alguma coisa. Talvez ela só quisesse parecer ocupada para o caso de alguém, como ele, aparecer.
— O que foi? — ela perguntou imediatamente.
— Recebi uma ligação.
Ela parou de ler, se endireitou e olhou para ele.
— Achei que você não fosse meu lacaio.
— Pensei que você fosse minha amiga.
— Ah, Bobby. Você é um idiota.
O insulto o fez sorrir.
— Até agora não tinha me dado conta do quanto senti a sua falta. Já posso entrar ou devia ter trazido rosas?
— Que se fodam as rosas — ela disse. — Eu ainda quero um sanduíche de rosbife decente. — Mas sua voz tinha perdido a força. Ela apontou para a cadeira vazia na frente dela. Ele interpretou o gesto como um convite e se atirou na cadeira executiva de espaldar alto. D.D. se afastou do computador. Ela estava realmente um caco, com olheiras escuras e unhas roídas até a carne. No instante em que visse a própria imagem na tevê, ficaria furiosa.
— Catherine mandou lembranças? — D.D. perguntou friamente.
— Não com essas palavras, mas tenho certeza de que ela estava pensando no quanto ama a polícia de Boston durante toda a nossa conversa.
— E, então, o que ela disse?
— Num instante.
Uma sobrancelha arqueada.
— Num instante?
— Tenho outras informações, primeiro. Vamos lá, D.D., dê uma folga. Trabalhando tanto, eu posso me dar o direito a algumas preliminares.
D.D. rompeu em um sorriso inesperado. Por um instante, Bobby se viu pensando nos bons e velhos tempos novamente — em especial o período em que eles se acertaram... Então se recompôs, endireitando o corpo rapidamente, e folheou o bloquinho de espiral.
— Eu, hum... fui atrás de Russell Granger. Comecei a conferir a história de Annabelle.
O sorriso de D.D. se desfez. Ela suspirou e se inclinou para a frente para apoiar os cotovelos nos joelhos. Estavam retomando o trabalho.
— Eu vou gostar do que você vai me dizer? Mais importante: posso usar na coletiva à imprensa?
— Possivelmente. Então: Russell Granger preencheu um boletim de ocorrência em agosto de 1982, um dos três que ele preencheria até outubro. O primeiro boletim foi de invasão. Granger ouviu alguém no jardim no meio da noite. Saiu sozinho de casa e jurou que ouviu alguém fugindo. Quando foi conferir pela manhã, encontrou pegadas enlameadas por todo o perímetro. Dois policiais uniformizados foram até lá, anotaram a história dele, mas não tinham muito a fazer: não havia crime nem descrição do suspeito. O boletim foi arquivado. “Ligue se tiver algum problema, senhor Granger”, blá-blá-blá. — Bobby fez uma pausa, então prosseguiu. — O segundo boletim foi sobre um voyeur, preenchido em 8 de setembro. A chamada também foi feita pelo senhor Granger, mas em nome de sua vizinha idosa, Geraldine Watts, que jurava ter visto um jovem “espreitando” ao redor da casa dos Granger e espiando por uma das janelas. Dois policiais uniformizados foram novamente enviados ao local, Stan Jezukawicz e Dan Davis, conhecidos carinhosamente como Stan-e-Dan. Os dois ouviram a senhora Watts, que descreveu um homem branco, com altura entre um metro e oitenta e um metro e oitenta e nove, cabelos escuros e aparência desgrenhada, usando camiseta cinza e jeans. Ela não chegou a ver o rosto dele. Quando estava pegando o telefone para ligar para o senhor Granger, o suspeitou saiu correndo pela rua.
— Onde a senhora Watts morava?
— Do outro lado da rua dos Granger. A questão é que a janela em que o suspeito não identificado estava “espreitando” era a de Annabelle, a filha de sete anos da família. A essa altura, segundo Stan-e-Dan, o senhor Granger começou a ficar bastante agitado. Acontece que, nos últimos meses, “presentinhos” estavam sendo deixados na varanda da frente da casa. Em um dia foi um cavalinho de plástico, em outro, uma superbola amarela, em outro, uma bolinha de gude azul. Coisas de criança. O senhor Granger e a mulher deduziram que algum dos meninos da vizinhança estava apaixonado por Annabelle e era um admirador secreto.
— Ah, merda — D.D. disse. — O pingente. Enrolado em uma tirinha do Snoopy, não foi o que Annabelle disse?
— Sim. Stan-e-Dan pegam a pista e, junto com Granger, começam a conversar com todos os vizinhos. Muitas crianças, nenhuma delas faz ideia do que o senhor Granger está falando. O senhor Granger fica perturbado. Convence-se de que o voyeur é o admirador secreto, o que significa que há um adulto perseguindo sua filha. Ele exige proteção policial imediata, todo tipo de coisa. Stan-e-Dan o convencem do contrário. Mais uma vez, nenhum crime foi cometido, sabe? E talvez o admirador secreto seja realmente um colega de escola de Annabelle. Eles prometem ir atrás. Stan-e-Dan vão embora e escrevem o relatório, que é enviado para um detetive. Mas, novamente, onde está o crime? Justiça seja feita, Stan-e-Dan são escrupulosos. Eles vão até a escola e fazem o diretor conversar com os colegas de Annabelle. Essas “entrevistas” não trazem nenhum resultado, infelizmente. Se o admirador secreto era algum dos colegas de Annabelle, o garoto ficou intimidado demais para confessar.
Bobby continuou olhando para suas anotações.
— A informação é arquivada. E o caso morre. O que pode ser feito? Há registro de mais algumas ligações do senhor Granger exigindo respostas, mas não há muito que possa ser dito a ele. Fique de olho, ligue novamente se houver problemas, blá-blá-blá. Dezenove de outubro, onze e cinco da noite, o senhor Granger liga para a polícia solicitando auxílio imediato. Há um invasor na sua casa. Quatro carros são enviados até a vizinhança. Stan-e-Dan ouvem a informação pelo rádio e também se deslocam até lá, preocupados com a família. Imagino que já havia uma multidão quando eles chegaram lá. Granger estava na varanda da frente da casa, de pijamas, empunhando um taco de beisebol. O sujeito quase levou um tiro dos primeiros policiais a chegarem antes de Stan-e-Dan esclarecerem a situação. Dan observa no relatório dele que Granger não parecia muito bem ultimamente. Estava sempre amarrotado e com ar cansado. Parece que Granger não vinha dormindo. Desde o último incidente, ele vinha passando a maior parte das noites “de vigia”. Acontece também que o senhor Granger contou uma mentirinha. Depois de ser pressionado, admitiu que ninguém havia invadido sua casa. Na realidade, mais uma vez ele tinha ouvido sons do lado de fora. Mas Granger não achou que a polícia levaria a denúncia devidamente a sério, então, “aumentou” sua história. A maior parte dos policiais não leva a mentira numa boa, mas, novamente, Stan-e-Dan se sentem em dívida com ele. Percorrem o entorno da casa à procura de sinais de problemas. Percebem algumas alterações no jardim: o senhor Granger havia arrancado os arbustos próximos de sua casa e derrubado duas árvores. O jardim estava bastante aberto agora, sem muitos lugares onde se esconder. Ambos acham que é um pouco paranoico da parte dele, até chegarem à janela de Annabelle: há marcas profundas na madeira abaixo da janela. Marcas recentes de pés de cabra. Alguém estava tentando invadir a casa.
— Mas Annabelle estava bem? — D.D. perguntou, franzindo a testa.
— Sim. Ela não estava mais dormindo no quarto dela. Depois do episódio do voyeur, o senhor Granger e a esposa já haviam decidido passar a filha para o quarto deles. Nos três incidentes, a menina não ouviu coisa alguma. Quanto à mulher, não sei dizer. Os policiais uniformizados nunca falaram com ela. Parece que apenas o senhor Granger falava. A senhora Granger estava sempre dentro de casa com Annabelle.
D.D. revirou os olhos. Bobby sabia o que ela estava pensando: trabalho policial relapso. Os dois cônjuges deveriam ter sido ouvidos, separadamente, bem como a menina de 7 anos. Mas, 25 anos depois, o que se poderia fazer?
— Levando em consideração as marcas na janela — Bobby continuou —, Stan-e-Dan realizam uma investigação da vizinhança de porta em porta. Quando chegam à casa da senhora Watts, a mulher que havia denunciado a princípio o voyeur, ela parece bastante agitada. Acontece que ela não vinha dormindo bem. Os camundongos do sótão estavam fazendo muito barulho.
— Os camundongos?
— Foi o que Stan-e-Dan pensaram também. Subiram correndo até o sótão. Lá, descobriram um “ninho”: um saco de dormir usado, lanterna, abridor de lata, garrafas d’água e, olhe isso, um balde de plástico de 18 litros vazio que vinha evidentemente servindo como latrina.
— Por favor, me diga que temos o balde plástico como prova.
— Nós jamais teríamos tanta sorte. Mas eles tentaram tirar impressões digitais, de modo que teríamos uma cópia das impressões no arquivo, só que não havia impressões.
— Meu Deus. Alguma coisa deu certo nessa investigação?
— Não. A coisa seguiu mal até o fim. Agora, é claro, a senhora Watts está histérica... parece que alguém estava morando no sótão dela. Mas isso não é nada comparado a Russell Granger, que está simplesmente exigindo que a Guarda Nacional fique de prontidão apenas para proteger a ele e à sua família. Tudo piora ainda mais quando os detetives começam a examinar o “ninho” e encontram uma pilha de polaroides: de Annabelle indo para a escola, de Annabelle no recreio, de Annabelle brincando de amarelinha com a melhor amiga dela, Dori Petracelli...
D.D. fechou os olhos.
— Está bem. Vá ao que interessa.
Bobby encolheu os ombros.
— Não havia nada que a polícia pudesse fazer. Não havia nenhuma descrição do sujeito, e no que dizia respeito a Annabelle, não havia um crime. Estamos falando de 1982, antes das leis antiassédio. Os policiais voltaram à escola de Annabelle, interrogaram motoristas de ônibus, zeladores, professores, qualquer um que tivesse contato com Annabelle e pudesse ter feito alguma “ligação” com ela. Fazem uma investigação da cena na casa da senhora Watts. Os exames iniciais das provas não resultam em impressões digitais. Não resultam em muita coisa, na verdade. Os detetives trabalharam procurando por um vadio/pedófilo que gostasse de perseguir menininhas e viver em sótãos de velhas senhoras. Visitaram instituições de saúde mental, cozinhas comunitárias, os locais habituais dos pervertidos. Naquele tempo, todo mundo sabia disso, e agora não é mais assim.
Ele deu um suspiro, continuando.
— Enquanto isso, o senhor Granger enlouquece. Acusa os policiais de não se importarem. Acusa os vizinhos de sabidamente abrigar pervertidos. Acusa o promotor de Justiça de ser pessoalmente responsável pelo futuro assassinato da filha de sete anos dele. Então, um dia os policiais voltam à casa dos Granger para mais uma entrevista e não há ninguém. Uma semana mais tarde, o promotor de Justiça recebe uma ligação do senhor Granger anunciando que, como a Comunidade de Massachusetts se recusou a proteger sua filha, ele se mudou. Granger desliga antes que alguém consiga perguntar qualquer coisa, e é isso. O departamento intensifica patrulhas da vizinhança por uma ou duas semanas, mas nada mais é relatado ou visto novamente. E o caso morre naturalmente, como costuma acontecer com esse tipo de coisa.
— Só um minuto. Onde está aquela maldita lista? Muito bem, segundo o que descobrimos hoje, Dori Petracelli desapareceu em 12 de novembro, poucas semanas depois disso tudo acontecer. Isso não deveria ter levantado alguma suspeita?
— Dori não desapareceu da casa dela. Ela sumiu quando estava visitando os avós em Lawrence. Jurisdição e circunstâncias diferentes. Parece que a polícia de Lawrence pediu uma cópia do relatório do suspeito desconhecido na casa de Geraldine Watts, mas não aconteceu nada depois disso. Lembre-se de que no arquivo não havia impressões digitais nem descrição física detalhada. Acho que o pessoal de Lawrence olhou superficialmente para os incidentes envolvendo Granger e, depois, ao perceber que não havia nada de concreto ali, voltou as atenções para o próprio caso.
D.D. se recostou na cadeira.
— Merda. Você está pensando que Annabelle era o verdadeiro alvo, e Dori foi o prêmio de consolação.
— Algo do tipo.
— O que isso faz de nós?
— Vinte e cinco anos mais espertos. Olhe só. — Bobby reclinou a cadeira e pôs as mãos atrás da cabeça. — Eu não quero criticar Stan-e-Dan. Repassei os relatórios dos dois, eles dedicaram ao senhor Granger mais tempo do que muitos policiais dedicariam. Acho que o que os prejudicou, porém, foi o fato de que não eram caçadores. Eles subiram no sótão e viram um ninho. Depois que o local ganhou esse apelido, todos passaram a vê-lo como um ninho também, e isso, com a descrição do sujeito como “desgrenhado”, levou todos os investigadores por determinado caminho. É um dos motivos pelos quais esse caso não parecia estar fortemente ligado a Dori Petracelli. De acordo com os relatórios, o raptor de Dori estava dirigindo uma van branca. Mas ninguém pensou que o voyeur da rua de Annabelle pudesse possuir um carro, pudesse ter esse tipo de recurso.
— Eles estavam atrás de um sem-teto, de algum doente mental.
— Exatamente. Mas, quando eu olho para a cena do sótão, não vejo um vadio em busca de abrigo. Do ponto de vista de um atirador, aquele lugar era um esconderijo. Pense no posto privilegiado... três andares acima e exatamente do outro lado da rua do alvo. O sujeito tinha um teto sobre a cabeça, um saco de dormir para mantê-lo confortável, lanches para o caso de sentir fome e um balde para as necessidades fisiológicas. Era perfeito. Caçar se resume a esperar. Esse cara tinha conseguido o cenário perfeito para esperar por muito tempo.
— Premeditado — D.D. disse baixinho.
— Calculado — Bobby esclareceu. — Muito esperto. Esse cara, o voyeur, já tinha feito isso antes.
— Talvez outras cinco vezes?
— É. — Bobby assentiu. — Talvez. Minha aposta é que Annabelle Granger era alvo de um sofisticado pedófilo que, provavelmente, já havia sequestrado pelo menos uma outra menina, a essa altura. E, se o pai de Annabelle não tivesse se mostrado um merdinha tão paranoico, seria o corpo dela que estaria naquele poço, não o de Dori Petracelli. Annabelle Granger escapou. Dori não teve tanta sorte.
D.D. esfregou o rosto.
— Temos certeza de que estamos falando de 1982? Não existe absolutamente nenhuma chance de que todos os investigadores envolvidos tenham anotado a data errada?
— Foi em 1982.
— E você tem certeza, completa e absoluta certeza, de que Richard Umbrio já estava na cadeia em Walpole nessa época?
— Sim. Conferi essa data em vários relatórios também. O voyeur não era Umbrio, D.D. Não é nem uma questão de comparação de datas. Olhe o modus operandi. Umbrio era um predador oportunista. Ei, menininha, você viu meu cachorro perdido? Isso aqui é muito mais elaborado, quase ritualizado. Estamos falando de um tipo completamente diferente de maluco.
— Mas e o uso de um poço subterrâneo! — D.D. explodiu. — A semelhança física de Annabelle Granger e Catherine Gagnon. Você não pode me dizer que não passa de coincidência.
— Existem alternativas. Imitadores, para começar. Em agosto de 1982, com o julgamento de Umbrio encerrado havia tempos, os detalhes do sequestro haviam se tornado públicos. Talvez alguém o tenha achado “inspirador”.
— Mas fotos das vítimas, especialmente crianças, não são tornadas públicas — D.D. contrapôs. — Então, de novo, como explicar a semelhança física entre Annabelle e Catherine?
— As fotos não são divulgadas durante a fase do julgamento, mas a descrição de Catherine deve ter sido noticiada quando ela foi declarada desaparecida. E a busca prosseguiu durante quatro semanas.
— Huh. — D.D. mordeu o lábio inferior enquanto pensava naquela informação.
Bobby soltou as mãos.
— Umbrio não falava. Ele nunca informou à polícia o que fez, nem mesmo depois de ter sido encontrado. Então precisamos levar em consideração que talvez ele tenha tido outras vítimas. Ou, talvez, tenha tido ajuda.
— Um cúmplice não identificado?
— Sim. Umbrio mal tinha vinte anos de idade quando foi condenado. Ele mesmo era praticamente uma criança. Às vezes, duas mentes juvenis com raiva...
— Klebold e Harris.
— Acontece. Por fim, estou pensando em colegas de cela ou correspondentes. Pedófilos parecem ter gosto por fazer networking. Basta pensar em todos os “grupos de internet” e círculos de “escravos sexuais infantis” que foram descobertos nos últimos anos. Mais até do que outros maníacos assassinos que existem por aí, os pedófilos gostam de conversar. Agora, Umbrio foi para a cadeia com uma reputação de criminoso relativamente brilhante, se não criativo. Talvez alguém tenha ido atrás dele lá.
— Bem, isso só melhora a cada instante. — D.D. fez uma cara feia para ele. — Achei que você tinha alguma coisa para a minha entrevista com a imprensa. Que diabos disso tudo eu posso passar aos jornalistas?
Bobby levantou uma mão espalmada.
— Uma última coisa para levar em consideração. Não é científico, mas não podemos dispensar: instinto policial. Você sentiu no instante em que entrou na câmara. Eu também. O caso de Catherine Gagnon está de alguma forma ligado ao que aconteceu em Mattapan. Não consigo sentir isso concretamente, não consigo tocar nem provar, mas sei que é verdade, assim como você. E é por isso que o telefonema de Catherine é tão importante.
D.D. de repente se endireitou. Pareceu quase doida de esperança.
— Catherine está voltando para Massachusetts? Ela vai falar conosco? Ela vai, finalmente, nos deixar prendê-la por armar o assassinato do marido!
— Hum, não exatamente. A resposta dela para voltar a Massachusetts, como diz o ditado, não é anatomicamente possível. Nós vamos até ela.
— Ah, sim, dois detetives voando para o Arizona. A chefia vai adorar isso.
— Ah — Bobby disse levantando as sobrancelhas —, mas eles vão, sim. Assim que você explicar à imprensa que já fez uma grande descoberta no caso e logo estará falando não apenas com uma, mas com duas testemunhas em potencial. — Bobby se levantou da cadeira e foi até a porta. Aquele era o momento para sair sem ser interrompido. Infelizmente, não foi rápido o suficiente.
— O que quer dizer com duas testemunhas? — D.D. gritou para ele. — Catherine Gagnon é apenas uma.
— Ah, eu não falei? Eu estava me referindo a Granger. Em troca pela cooperação, Catherine está exigindo conhecer Annabelle.
capítulo 11
Bobby deu sorte no complexo de apartamentos do extremo norte da cidade. Um dos moradores estava saindo quando ele chegou. O homem de trinta e poucos anos observou a calça cáqui, a camisa de colarinho e a jaqueta de tweed azul de Bobby e segurou a porta educadamente. Bobby subiu a escada da entrada correndo, segurou a pesada porta externa e acenou em agradecimento. É preciso amar os profissionais urbanos: eles automaticamente confiam em qualquer um que se vista como eles.
Bobby percorreu as caixas de correio até encontrar o nome que procurava. Último andar de um edifício sem elevador. Era de adivinhar. Pensando bem, subir a escada estreita era provavelmente o mais perto de um exercício que iria fazer. Ele chegou aos degraus pensando nos velhos tempos em que integrava uma unidade tática de elite que sabia como fazer uma aparição. Eles sabiam rastejar pela fumaça, saltar de helicópteros e atravessar pântanos, agachados. A única coisa que viam era o alvo diante deles. A única coisa que ouviam eram os gemidos do colega de equipe ao lado.
Quando atingiu o terceiro andar, a falta de sono tomou conta dele. Diminuiu a velocidade. Começou a arfar. No quarto andar, teve de secar o suor da testa. Definitivamente, estava na hora de ir para uma academia.
No quinto andar, ele viu a porta do apartamento, o que o livrou da humilhação de desfalecer. Fez uma pausa no último degrau para recuperar o fôlego. Quando finalmente estava no corredor, ouviu um cachorro ganir de excitação do outro lado da porta antes mesmo de bater. Deu uma batidinha de leve. O cachorro imediatamente se atirou contra a porta, rosnando e arranhando furiosamente.
Uma voz de mulher disse:
— Bella, sente! Bella, pare com isso! Ah, pelo amor de Deus!
A porta não se abriu magicamente. Ele não achou que fosse se abrir. Em vez disso, Bobby ouviu a tampa de metal de um velho olho mágico sendo aberta. A saudação da mulher foi quase tão calorosa e amigável quanto a do cachorro.
— Ah, merda! — disse Annabelle Granger.
— É o detetive Bobby Dodge — ele respondeu educadamente. — Tenho algumas novas perguntas...
— Que diabos você está fazendo aqui? Eu não dei meu endereço a você!
— Bem, eu sou um detetive!
A resposta recebeu apenas o silêncio. Ele, finalmente, mostrou o número de telefone dela.
— Lista telefônica reversa. Eu informo o número e, voilà, consigo um nome e um endereço. A tecnologia é algo maravilhoso, não?
— Eu não acredito que vocês não me falaram sobre o poço — ela gritou do outro lado da porta. — Como puderam ficar sentados na minha frente, tirando informações de mim incessantemente, e ainda assim ocultar esse tipo de detalhe? Principalmente depois de se darem conta de que uma daquelas meninas podia ser minha melhor amiga.
— Estou vendo que você andou assistindo ao noticiário.
— Eu e toda a Boston. Imbecil.
Bobby abriu as mãos. Achava difícil negociar com uma porta de madeira maciça, mas fez o possível.
— Olhe, estamos todos juntos. Queremos saber o que aconteceu com sua amiga e encontrar o maldito filho da puta que cometeu o crime. Levando isso em consideração, acha que eu posso entrar?
— Não.
— Você que sabe. — Ele enfiou a mão no bolso da jaqueta, retirou o minigravador, um bloquinho de anotações e a caneta. — Então...
— O que você pensa que está fazendo?
— Fazendo as minhas perguntas.
— Em uma escadaria aberta? O que aconteceu com a privacidade?
— O que aconteceu com a hospitalidade? — Ele encolheu os ombros. — Você estabeleceu as regras. Eu só estou jogando de acordo com elas.
— Ah, pelo amor de Deus. — Duas travas de metal foram abertas. Em seguida, ouviu-se o barulho de uma corrente sendo solta temperamentalmente. Um terceiro barulho mais ressoante veio quase do chão. Annabelle Granger levava a sério a segurança de sua casa. Bobby estava curioso para ver como uma designer profissional de cortinas havia conseguido harmonizar a decoração com as barras de ferro que, certamente, protegiam suas janelas.
Ela abriu a porta de repente. Bobby viu um clarão e, então, um cachorro de patas compridas se atirou nos joelhos dele, latindo estridentemente. Annabelle não fez menção de controlar o animal. Apenas ficou olhando para ele com os olhos semicerrados, como se aquele fosse o teste derradeiro.
Bobby estendeu a mão. O cachorro não a mordeu. Em vez disso, ficou dando voltas ao redor das pernas dele sem parar. Ele tentou acompanhá-lo, mas ficou tonto imediatamente.
— É um cão de pastoreio?
— É.
— Border collie?
— Eles são pretos e brancos.
— Pastor australiano.
Ela assentiu.
— Tem nome?
— Bella.
— Ela vai parar de latir em algum momento?
Um único encolher de ombros:
— Você já está surdo?
— Quase.
— Então, logo.
Ele entrou cautelosamente no apartamento. Bella se jogou contra as pernas dele por trás, empurrando-o entusiasmadamente. Quando ele acabou de entrar, Annabelle fechou a porta. Voltou para trancar a trava dupla, a corrente e a trava do piso. Bella, finalmente, parou de girar, preferindo parar na frente dele, sempre latindo. Bobby concluiu que era uma cachorra bonita. Com dentes longos e afiados.
Fechada a última trava, e como se um interruptor tivesse sido acionado, Bella se calou. Ela deu uma bufada final e se retirou, andando em ziguezague em meio a montes de tecido antes de se atirar em uma cama de cachorro. No último instante, olhou de lado para ele, como que para dizer que ainda estava prestando atenção, então suspirou, pôs a cabeça entre as patas e fez menção de dormir.
— Boa cachorra — Bobby murmurou, impressionado.
— Na realidade, não — Annabelle disse —, mas combinamos uma com a outra. Nenhuma de nós gosta de visitas inesperadas.
— Eu também sou um pouco solitário. — Bobby entrou mais no apartamento, fazendo o melhor para sondar o ambiente enquanto conseguia. Primeiras impressões: pequeno, uma sala principal espremida que levava a um quarto pequeno e espremido. A cozinha tinha mais ou menos o tamanho do closet do quarto dele, estritamente utilitária, com armários brancos simples e balcões baratos de fórmica. A sala era ligeiramente maior, com um sofá forrado de plush verde, uma enorme poltrona de leitura e uma mesinha de madeira que também funcionava como área de trabalho. As paredes eram pintadas de amarelo forte. Duas imensas janelas de dois metros e cinquenta de altura eram cobertas por cortinas feitas de tecido estampado com girassóis.
Como tudo mais que havia na sala, as cortinas eram obscurecidas por montes de tecido. Vermelhos, verdes, azuis, dourados, florais, listrados, xadrez, pastel. Seda, algodão, linho, chenile. Bobby não sabia muito sobre essas coisas, mas imaginava que ali havia quase qualquer tipo de tecido existente no mundo.
E cordões e peças de acabamento também, ele percebeu ao passar pelo balcão da cozinha e descobrir o outro lado repleto de cordas de franjas.
— Acolhedor — ele comentou, apontando para as janelas. — Boa iluminação também. Deve ser bom para seu tipo de trabalho.
— O que você quer?
— Agora que você falou, um copo de água será ótimo.
Annabelle estreitou os lábios, mas foi até a pia e bateu na torneira.
Ela estava vestida casualmente naquela manhã. Calças de ginástica de cintura baixa e uma blusa cinza de mangas compridas que subira até logo acima da cintura. Mantinha os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo despojado e estava sem maquiagem. Mais uma vez, ele ficou impressionado com a semelhança dela com Catherine. Ainda assim, não conseguia pensar em duas mulheres mais diferentes uma da outra.
Catherine era um pacote cuidadosamente embalado, uma mulher que aperfeiçoava conscientemente sua sensualidade e a manejava como a uma arma. Annabelle, por outro lado, era um anúncio de urban chic. Quando ela praticamente atirou o copo com água pela metade na mão de Bobby, ele pensou tanto em sexo quanto em como ela poderia tentar dar uma surra nele. Ela cruzou os braços, e ele, finalmente, entendeu.
— Boxe — comentou.
— O que é que tem?
— Você luta boxe. — Ele entortou a cabeça. — Na academia do Tony?
Ela riu.
— Como se eu fosse querer treinar com um bando de musculosos cheios de testosterona. Na academia do Lee. Ele é especializado em kickbox.
— É boa?
Ela olhou para o relógio.
— Vamos fazer o seguinte. Se não fizer as perguntas nos próximos quinze minutos, você pode descobrir.
— Você é impaciente com qualquer policial ou eu sou especial?
Ela olhou para ele de modo endurecido como pedra. Ele suspirou e decidiu seguir adiante. O profundo amor de Russell Granger pelas forças policiais aparentemente havia sido transmitido para a filha. Bobby largou o copo de água e abriu o bloco de anotações.
— Então, eu descobri algumas coisas que aconteceram no outono de 1982. — Ele olhou para ela com expectativa, pensando que iria encontrar algum vislumbre de interesse nos olhos dela, algum amolecimento da sua postura. Nada. — Acontece que um sujeito, um criminoso desconhecido, se interessou por você. Ele começou a deixar presentinhos na sua casa. Foi visto invadindo a propriedade de noite. Chegou até a tentar invadir o seu quarto. A polícia foi chamada pelo seu pai várias vezes. Na terceira vez, os policiais descobriram que o suspeito estava se escondendo no sótão da vizinha da frente, de onde aparentemente vinha observando você. Foram encontradas pilhas de polaroides, anotações sobre sua movimentação diária, esse tipo de coisa. Alguma dessas coisas soa familiar a você?
— Não. — O tom dela ainda estava beligerante, mas ela havia abaixado os braços e ficado com a expressão menos segura. — O que a polícia fez?
— Nada. Em 1982, perseguir uma menina de sete anos de idade não era crime. Assustador, sim. Crime, não.
— Isso é ridículo!
— Aparentemente, seu pai pensava o mesmo, porque poucas semanas depois do último episódio, a sua família desapareceu. E algumas semanas depois disso — a voz dele ficou mais baixa —, Dori Petracelli foi sequestrada do jardim dos avós dela em Lawrence e nunca mais foi vista novamente. Tem certeza de que você não sabia disso?
— Eu procurei na internet — ela respondeu resumidamente. — Ontem à noite. Achei que vocês não iriam me ajudar. Detetives respondem às próprias perguntas, não às de outras pessoas. Então, eu mesma fui atrás.
Ele esperou. Não demorou muito.
— Você viu a foto dela de desaparecida? O retrato dela que espalharam pela cidade?
Ele sacudiu a cabeça.
— Venha aqui. — Ela atravessou a sala abruptamente, passando por ele. Ele viu um pequeno notebook enterrado embaixo de uma pilha de papéis. Ela jogou os papéis no chão, abriu o computador, e a tela se acendeu. Bastaram alguns cliques no mouse para a foto de desaparecida de Dori Petracelli preencher a tela. Ele ainda não estava entendendo. Annabelle precisou apontar para ele.
— Olhe ao redor do pescoço dela. É o pingente. Ela está usando o meu colar.
Bobby apertou os olhos e se aproximou da tela. A foto era em preto e branco e não estava nítida, mas examinando bem... Ele suspirou. Se tinha qualquer dúvida antes, aquilo resolvia tudo.
— Segundo a chamada no site — Annabelle falou em voz baixa —, essa foto foi tirada uma semana antes de Dori desaparecer. Era a foto mais recente. — A voz dela mudou, ficou mais incisiva. — Aposto que ele gostava disso. Aposto como o deixava excitado. Assistir a todas as matérias na tevê mostrando a foto dela, mostrando aquele pingente, implorando pela volta dela. Criminosos desconhecidos gostam de acompanhar os próprios casos, certo? Gostam de saber como foram espertos. Filho da puta.
Ela virou de costas para Bobby, dando vários passos vacilantes para o outro lado da sala.
Bobby se endireitou mais lentamente, mantendo o olhar no rosto dela.
— Do que você se lembra, Annabelle...?
— Não me chame assim! Você não pode usar nomes reais. Meu nome é Tanya. Me chame de Tanya.
— Por quê? Faz vinte e cinco anos. O que você tem a temer?
— Como é que eu vou saber? Eu havia ficado confortável com a ideia de que meu pai estava dançando o ritmo de um baterista paranoico. É você que está dizendo agora que os medos dele eram genuínos. O que eu devo fazer com essa informação? Um cara me perseguia, e eu nunca nem sequer soube disso. Então eu fui embora e ele... ele pegou a minha melhor amiga e ele...
Ela desabou, sem conseguir continuar. Apertou a mão com força na boca, passando o outro braço pela cintura. Da cama, Bella olhou para ela, abanou o rabo e ganiu.
— Desculpe, garota — Annabelle sussurrou. — Desculpe.
Bobby deu um instante. Ela se recompôs. Ergueu o queixo e endireitou os ombros. Ele não compreendia o pai, ainda. Tinha muitas perguntas sobre o pai, na realidade. Mas, pela aparência no geral, Russell Granger havia criado a filha bem. Vinte e cinco anos depois, aquela menina era durona.
Então tocou o interfone, e ela deu um salto.
— Que... — ela começou a dizer com nervosismo na voz. — Eu não costumo receber... — Ela correu até as janelas que davam para a rua para ver quem estava tocando. Bobby já estava com a mão dentro da jaqueta, com os dedos na coronha da arma, influenciado pelo nervosismo dela. Então, com a mesma rapidez com que o episódio começou, ele terminou. Annabelle olhou para fora, viu o caminhão da UPS e sorriu envergonhada enquanto soltava os ombros, aliviada.
— Bella — ela chamou —, é seu namorado.
Annabelle começou a abrir as travas da porta enquanto Bella se atirava freneticamente contra a madeira.
— Namorado? — Bobby perguntou.
— Ben, o motorista da UPS. Ele e Bella têm um caso. Eu encomendo, ele entrega, ela ganha biscoitos. Sei que cachorros são daltônicos, mas se Bella pudesse enxergar um arco-íris, a cor preferida dela ainda seria marrom.
Annabelle, finalmente, havia aberto todas as fechaduras. Ela abriu a porta e quase foi derrubada pela cachorra.
— Eu já volto — Annabelle gritou por cima do ombro para Bobby, então desapareceu escada abaixo na cola de Bella.
A interrupção deu a Bobby um instante para organizar os pensamentos. E para acrescentar coisas a suas anotações mentais. Ele estava tendo uma ótima ideia da vida que Annabelle vinha levando. Isolada. Preocupada com a segurança. INSULAR. Fazia compras por catálogo ou pela internet. A melhor amiga era a cachorra. A coisa mais parecida com um relacionamento humano era receber a entrega diária do entregador da UPS.
Talvez o pai dela tivesse feito o trabalho um pouco bem demais.
Bella voltou arfando muito e parecendo satisfeita. Annabelle foi um pouco mais lenta na subida das escadas. Passou pela porta com uma caixa mais ou menos do tamanho da mesa dela. Bobby tentou ajudar, mas ela o dispensou, largando a caixa no chão da cozinha.
— Tecido — ela disse, chutando a caixa enorme com tristeza. — Ossos do ofício, infelizmente.
— Para um cliente ou “porque sim”?
— As duas coisas — ela admitiu. — Sempre começa como um pedido para um cliente, mas, quando me dou conta, acrescentei duas seleções de “porque sim”. Sinceramente, é bom que eu não more em um apartamento maior, ou só Deus sabe.
Ele assentiu, observando enquanto ela ia até a pia e se servia de um copo de água. Ela parecia ter se recomposto novamente. Ter ido buscar a entrega havia dado a ela uma oportunidade de reorganizar suas defesas. Bobby decidiu que era agora ou nunca.
— Verão de 1982 — ele declarou. — Você tem 7 anos de idade, a sua melhor amiga é Dori Petracelli e você está morando com sua mãe e o seu pai em Arlington. O que vem à sua mente?
Ela encolheu os ombros.
— Nada. Tudo. Eu era uma criança. Eu me lembro de coisas de criança. De ir nadar na ACM. De brincar de amarelinha na entrada da garagem. Não sei. Era verão. Eu basicamente me lembro de me divertir.
— Os presentes?
— Superbola. Eu encontrei na varanda da frente, em uma caixinha enrolada nos quadrinhos do jornal de domingo. A bola era amarela e pulava muito alto. Eu a adorei.
— O seu pai disse alguma coisa? Ele a tirou de você?
— Não. Eu a perdi embaixo da varanda.
— Outros presentes?
— Uma bolinha de gude. Azul. Encontrei de um jeito parecido. Teve fim parecido.
— Mas o pingente...
— O pingente deixou meu pai furioso — ela admitiu. — Eu me lembro disso. Mas, na minha cabeça, eu nunca soube por quê. Eu achei que meu pai estava sendo chato, não protetor.
— De acordo com os relatórios policiais, depois do segundo incidente, seus pais passaram você para o quarto deles para dormir à noite. Você se lembra disso?
Ela franziu o cenho, parecendo genuinamente perplexa.
— Tinha alguma coisa errada com o meu quarto — ela disse rapidamente, esfregando a testa. — A gente precisava pintá-lo? Meu pai ia arrumar... alguma coisa? Eu realmente não me lembro agora. Só sei que alguma coisa estava errada, precisava ser feita. Então eu dormi no chão do quarto deles por um tempo. Era um acampamento em família, meu pai dizia. Ele até pintou estrelas no teto. Eu achei tudo muito bacana.
— Você algum dia se sentiu ameaçada, Annabelle? Como se alguém a estivesse vigiando? Ou algum estranho se aproximou de você? Ofereceu bala ou chiclete? Convidou você para dar uma volta de carro? Ou, talvez, o pai de um dos seus colegas da escola a deixou desconfortável? Um professor que ficasse perto demais...
— Não — ela disse imediatamente, com segurança na voz. — E acho que me lembraria disso. Claro que isso foi antes da versão de campo de treinamento de segurança do meu pai, então, se alguém tivesse me abordado... eu não sei. Talvez eu tivesse aceitado o doce. Talvez eu tivesse entrado no carro. Oitenta e dois foi o bom ano, sabe. — Ela esfregou rapidamente os antebraços e, então, acrescentou com mais indiferença: — Os dias antes de tudo ir para o inferno.
Bobby ficou olhando para ela por um tempo, esperando para ver se ela ia dizer mais alguma coisa. Mas ela parecia ter acabado, ficado sem lembranças. Ele não sabia se acreditava nela ou não. Crianças eram surpreendentemente observadoras. E, no entanto, ela vivera no meio de um grande drama na vizinhança, com policiais uniformizados aparecendo na sua casa três vezes em dois meses e nunca suspeitara de nada? Mais uma vez, elogios ao pai dela, que fizera de tudo para proteger a filhinha? Ou indicação de algo pior?
Ele esperou até que ela, finalmente, ergueu o olhar. A pergunta seguinte era a mais importante. Ele queria a atenção total dela.
— Annabelle — ele perguntou em seguida. — Por que vocês saíram da Flórida?
— Eu não sei.
— E de St. Louis, Nashville e Kansas City?
— Eu não sei, eu não sei, eu não sei. — Ela atirou as mãos para o alto, novamente frustrada. — Você acha que nunca me fiz essas perguntas? Acha que nunca me perguntei? Toda vez que nos mudávamos, eu passava noites tentando entender o que eu tinha feito de errado. O que eu tinha feito de tão ruim. Ou qual ameaça eu não havia percebido. Eu nunca entendi. Nunca entendi. Quando estava com 16 anos, a minha conclusão era de que meu pai simplesmente era paranoico. Alguns pais assistem a muito futebol. Meu pai tinha uma queda por pagar tudo em dinheiro e usar identidades falsas.
— Você acha que o seu pai era louco?
— Você acha que pessoas sãs arrancam as raízes das famílias a cada ano e dão a elas novas identidades?
Ele entendeu o que ela estava querendo dizer. Só não sabia ao certo onde isso os deixava.
— Tem certeza de que não há nenhuma foto da sua infância em algum lugar? Algum álbum de fotos, fotos da sua velha casa, dos vizinhos, dos colegas de escola? Isso ajudaria.
— Nós deixamos tudo na casa. Não sei o que aconteceu com tudo depois disso.
Bobby franziu a testa, pensou por um instante e fez uma anotação.
— E parentes? Avós, tios e tias? Alguém que pudesse ter cópias das suas fotos de família, que ficaria feliz de saber que você está de volta.
Ela sacudiu a cabeça, ainda sem olhar em seus olhos.
— Nenhum parente. Esse era um dos motivos pelos quais era tão fácil nos mudarmos. Meu pai era órfão, produto da Escola Milton Hershey, na Pensilvânia. Na realidade, ele creditava ao programa deles o início de sua carreira acadêmica. E, quanto aos pais da minha mãe, morreram logo depois que eu nasci. Acidente de carro ou coisa parecida. Minha mãe não falava muito neles. Acho que ainda sentia falta deles. — Ela se levantou abruptamente. — Sabe — disse —, existe sim alguém que pode ter fotos. A senhora Petracelli. Dori e eu morávamos na mesma quadra, frequentávamos a mesma escola, íamos aos mesmos churrascos da vizinhança. Ela pode até ter fotos da minha família. Eu nunca pensei nisso. Ela pode ter uma foto da minha mãe.
— Boa ideia. Boa ideia.
A voz dela ficou hesitante.
— Vocês... vocês já contaram a eles?
— A quem?
— Aos Petracelli. Vocês já disseram a eles que encontraram Dori? É uma notícia terrível, mas da forma perversa que essas coisas funcionam, imagino que eles fossem ficar gratos.
— É — ele murmurou. — Da forma perversa como essas coisas funcionam... Mas, não, nós ainda não contamos a eles. Vamos esperar até termos evidências para comprovar a identificação. Ou, mais provavelmente, vamos pedir amostras de DNA para fazermos a comparação. — Ele olhou para ela por um instante, então fez uma rápida avaliação, pela qual D.D. certamente o condenaria depois. — Quer saber as informações internas? Os restos estão mumificados. É algo que os jornalistas ainda não descobriram. Levando isso em consideração, vai levar algum tempo antes de termos mais informações sobre qualquer um dos corpos.
— Eu quero ver.
— O quê?
— A cova. O lugar onde vocês encontraram Dori. Quero ir até lá.
— Ah, não — ele disse imediatamente. — Cenas de crime são locais apenas para profissionais. Não fazemos visitações públicas. Os advogados, os juízes e a D.D. não gostam desse tipo de coisa.
Ela empinou o queixo novamente.
— Eu não sou simplesmente um membro do público. Eu sou uma testemunha em potencial.
— Que, segundo ela própria, nunca testemunhou nada.
— Talvez eu não me lembre. Ir ao local pode detonar alguma coisa.
— Annabelle, você não quer visitar uma cena de crime. Faça um favor à sua amiga: lembre-se dela como sua amiguinha feliz de sete anos de idade. É o melhor que pode fazer. — Bobby fechou o bloco de anotações, o guardou no bolso interno da jaqueta e terminou de beber a água antes de pôr o copo de volta na pia.
— Tem uma coisa — ele disse de repente, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer.
— O quê?
— Bem, eu não sei na verdade. Quer dizer, Dori Petracelli desapareceu em 1982. Todo mundo tem certeza sobre a data. O intrigante, porém, é que o sequestro dela é semelhante ao de outro caso de 1980. Um homem chamado Richard Umbrio raptou uma menina de 12 anos e, olhe isso, a manteve em um poço. Ele, provavelmente, a teria matado também, só que caçadores encontraram a abertura do poço e a libertaram.
— Ela sobreviveu? Ela ainda está viva? — a voz de Annabelle demonstrou interesse.
Ele assentiu, enfiando as mãos nos bolsos da calça.
— Catherine testemunhou contra Umbrio e o mandou para a cadeia. Isso é o que é tão estranho, sabe... Umbrio estava preso desde janeiro de 1982, e ainda assim...
— Os casos parecem estar relacionados — ela completou para ele.
— Exatamente. — Ele olhou para ela de cima a baixo. — Você tem certeza de que não conheceu Catherine?
— Acho que não.
— Para registro, ela não acha que tenha conhecido você também. E, no entanto...
— Como ela é?
— Ah, ela tem mais ou menos a sua altura. Tem os cabelos e os olhos escuros. Na verdade, não é muito diferente de você, pensando bem.
Ela piscou desconfortavelmente com essa informação. Ele decidiu que era agora ou nunca.
— Olhe só, o que você acha de encontrá-la pessoalmente? Frente a frente. Talvez, se pusermos vocês duas na mesma sala... não sei, alguma coisa pode surgir.
Ele soube exatamente o instante em que ela se deu conta de que ele a estava manipulando, porque o corpo dela se tornou absolutamente imóvel. Ela ficou com a expressão fechada e os olhos começaram a ficar velados. Ele esperou por uma explosão, mais xingamentos, talvez até violência física. Em vez disso, ela permaneceu ali parada, intocável em seu silêncio.
— Você não precisa gostar de um sistema — ela murmurou. — Você só precisa compreendê-lo. Então, sempre poderá sobreviver. — Os olhos escuros dela se fixaram nos dele. — Onde Catherine mora?
— No Arizona.
— Nós vamos para lá ou ela vem para cá?
— Por diversos motivos, seria melhor que nós fôssemos para lá.
— Quando?
— Que tal amanhã?
— Ótimo. Isso vai nos dar tempo suficiente.
— Para?
— Para você me levar até a cena do crime. Uma mão lava a outra. Não é o que diz o ditado, detetive?
Ela o ganhara, honestamente. Ele assentiu uma vez, admitindo a derrota. O gesto ainda não suavizou a dureza dos ombros dela, o teimoso queixo erguido. Ele se deu conta, tardiamente, de que o truque dele a havia magoado. Que, por um instante, os dois tinham conversado quase como pessoas reais, e ela possivelmente chegara a gostar dele.
Ele pensou que devia dizer alguma coisa, mas não conseguiu pensar no quê. O trabalho policial costumava envolver mentir, e não fazia sentido pedir desculpas por algo que faria novamente, se fosse preciso.
Ele seguiu para a porta. Bella havia saído da cama. Ela lambeu a mão dele enquanto Annabelle destrancava a fortaleza. A porta se abriu. Annabelle olhou para ele com expectativa.
— Você tem medo? — ele perguntou abruptamente, fazendo um gesto para as travas da porta.
— O acaso favorece as mentes preparadas — ela murmurou.
— Isso não responde à minha pergunta.
Ela ficou em silêncio por um instante.
— Às vezes.
— Você mora em uma cidade grande. É bom ter travas na porta.
Ela o observou por mais um momento.
— Por que você fica perguntando o motivo pelo qual a minha família fugiu tantas vezes?
— Acho que você sabe.
— Porque criminosos assim não param magicamente. Um criminoso desconhecido não passa anos perseguindo e capturando seis meninas e de repente um dia decide arrumar um novo hobby. Você acha que meu pai sabia de alguma coisa. Você acha que ele tinha um motivo para nos manter fugindo.
— É bom ter travas na porta — ele disse novamente.
Ela simplesmente sorriu, dessa vez impassível, e, por algum motivo, isso o entristeceu.
— A que horas? — ela perguntou.
Ele olhou para o relógio, pensou na ligação que teria de fazer para D.D. e o chilique que teria de aguentar.
— Pego você às duas.
Ela assentiu.
Ele saiu, descendo as escadas enquanto as travas eram novamente fechadas.
capítulo 12
Eu nunca havia andado em um carro de polícia antes. Não sabia exatamente o que esperar. Assentos duros de plástico? Fedor de vômito e urina? Assim como a minha experiência com a central de polícia de Boston, a realidade foi uma decepção. O Crown Vic azul-escuro era igual a qualquer outro sedã de quatro portas. O interior dele era tão prosaico como o de qualquer um. Estofamento simples de tecido azul. Carpete azul-marinho. O painel tinha um rádio de comunicação e alguns interruptores extras, mas era só isso.
O carro parecia ter sido limpo recentemente — o chão aspirado e o ar perfumado com aromatizador de ambiente. Uma pequena consideração por mim? Eu não sabia se deveria agradecer ou não.
Pus o cinto do banco do carona. Eu estava nervosa, com as mãos tremendo. Só consegui fechar a fivela de metal na terceira vez. O detetive Dodge não tentou me ajudar nem fez qualquer comentário. Fiquei mais grata por isso do que pela higiene recente do carro.
Eu havia passado todo o tempo desde que o detetive saíra do meu apartamento tentando finalizar um elaborado cortinado para um cliente em Back Bay. A maior parte do tempo, no entanto, fiquei com o tecido de seda embaixo da agulha da minha máquina de costura, o pé fora do pedal e os olhos grudados na tevê. Era fácil encontrar algo sobre o caso de Mattapan, já que todos os principais canais de notícias estavam dando informações o tempo todo. Poucos, infelizmente, tinham algo novo a dizer.
Eles tinham a confirmação de que seis restos mortais haviam sido encontrados em uma câmara subterrânea localizada no terreno do antigo hospício. Acreditava-se que os restos pertenciam a meninas pequenas e, possivelmente, estavam na câmara fazia algum tempo. A polícia vinha seguindo várias linhas de investigação no momento. (Era isso que eu era? Uma linha de investigação?) A partir daí, as matérias passavam rapidamente a mera especulação. Nenhuma menção ao pingente. Nenhuma menção a Dori. Nenhuma menção a Richard Umbrio.
Abandonei minha costura e procurei por Umbrio na internet. Eu havia encontrado a história com o título “Tiroteio fatal em Back Bay”, um relato de como a sobrevivente de um tiroteio policial no meio da noite, Catherine Gagnon, havia enfrentado a tragédia outra vez antes: quando criança, ela havia sido mantida refém pelo pedófilo condenado Richard Umbrio até ser resgatada por caçadores pouco antes do Dia de Ação de Graças.
Umbrio, no entanto, era apenas um extra da matéria. A história principal — como Jimmy Gagnon, marido de Catherine e filho único de um poderoso juiz de Boston, havia sido atingido por um tiro fatal disparado por um atirador de elite da polícia durante uma tensa situação com reféns. O nome do policial que o matara: Robert G. Dodge.
Foram realizadas acusações criminais contra o policial Bobby Dodge pelo pai da vítima, o juiz Gagnon, que alegou que o policial Dodge havia conspirado com Catherine Gagnon para assassinar o marido.
Ora, então havia um detalhe que nem o detetive Dodge nem a sargento Warren haviam se dado o trabalho de mencionar.
Caso isso não fosse suficientemente chocante, encontrei outra matéria, de poucos dias mais tarde: Banho de sangue na cobertura... Três pessoas foram declaradas mortas e uma ficou gravemente ferida depois que um presidiário recentemente colocado em liberdade condicional, Richard Umbrio, invadiu um hotel de luxo no centro de Boston. Umbrio assassinou duas pessoas, uma com as próprias mãos, antes de ser morto com um tiro disparado por Catherine Gagnon e um policial auxiliar do estado de Massachusetts, Robert G. Dodge.
Interessante, muito interessante.
Eu não disse nada ao me sentar ao lado do detetive Dodge. Preferi acumular minhas pequenas doses de verdade. Bobby vinha explorando os detalhes do meu passado. Agora eu sabia algumas coisas a respeito dele.
Dei uma olhada para ele, sentado a meu lado. Dirigia com a mão direita pousada casualmente na direção e o cotovelo esquerdo apoiado na porta. A vida de policial obviamente o havia tornado imune ao trânsito de Boston. Ele ziguezagueava por estreitas ruas secundárias e carros estacionados em fila tripla como um piloto da Nascar fazendo uma volta de aquecimento. Daquele jeito, faria com que chegássemos em Mattapan em menos de quinze minutos.
Eu não sabia se estaria pronta em menos de quinze minutos.
Virei o rosto e fiquei olhando pela janela. Se ele conseguia sentir-se confortável em silêncio, eu também conseguiria.
Eu não sabia por que queria tanto ir à cena do crime. Simplesmente queria. Havia lido a história dos últimos dias de Dori e fiquei olhando fixamente para meu pingente, usado por ela com tanto orgulho ao redor do pescoço. E, então, meu cérebro ficou cheio de muitas perguntas, do tipo de pergunta que os pais dela, provavelmente, vinham fazendo todas as noites dos últimos 25 anos.
Ela havia gritado por ajuda ao ser raptada do jardim da frente da casa dos avós e enfiada em uma van sem identificação? Havia lutado com o sequestrador? Havia tentado abrir as portas e descoberto o verdadeiro malefício das travas para crianças?
O homem falou com ela? Perguntou sobre o pingente? Ele a acusou de tê-lo roubado da amiga? Ela havia implorado para tirá-lo? Depois que ele começou, ela pediu que ele, por favor, parasse e sequestrasse Annabelle em vez dela?
Eu honestamente não havia pensado em Dori Petracelli em 25 anos. Era humilhante, terrível, pensar agora que ela havia morrido em meu lugar.
O carro diminuiu a velocidade. Eu pisquei rapidamente, com vergonha de perceber que estava com os olhos cheios de lágrimas. O mais rapidamente que consegui, sequei o rosto com as costas da mão.
O detetive Dodge parou o carro. Não reconheci onde estávamos. Vi uma quadra de velhos prédios de três andares, a maioria deles precisando de uma nova pintura e talvez um pouco de grama de verdade nos jardins da frente. A vizinhança parecia decadente, pobre. Eu não compreendi.
— O negócio é o seguinte — Dodge disse de trás da direção, virando-se para mim. — Há apenas duas entradas para o local. Nós, da polícia, cuidamos de cercá-los para preservar a cena do crime. Infelizmente, a mídia está acampada do lado de fora das duas entradas, desesperada por qualquer comentário ou imagem eles que possam usar no noticiário. Eu imagino que você não queira ter o rosto estampado nos jornais ou exibido nas tevês.
A ideia me deixou tão apavorada, que não consegui nem falar.
— É, tudo bem, foi o que eu pensei. Então, o que vamos fazer não é exatamente glamouroso, mas vai funcionar. — Ele fez um gesto para o banco de trás do carro, onde vi um cobertor dobrado mais ou menos do mesmo tom da forração dos assentos. — Você se deita, e eu cubro você. Com sorte, vamos passar pelas hordas maldosas tão rapidamente que ninguém verá nada. Depois que estivermos realmente no local, você poderá se levantar. Como a Agência Federal de Aviação concordou em restringir o tráfego aéreo, ninguém mais consegue passar por cima da área com helicópteros.
Ele abriu a porta e saiu. Como que no piloto automático, passei para o banco traseiro e me deitei com os joelhos dobrados e os braços cruzados na frente do peito. Com um gesto rápido, ele abriu o cobertor e o estendeu sobre mim. Deu alguns puxões para cobrir meus pés e o topo da minha cabeça.
— Tudo certo? — perguntou o detetive Dodge.
Assenti. A porta de trás foi fechada. Eu o escutei dando a volta no carro e se sentando novamente no banco do motorista e dando a partida.
Não pude ver mais nada. Apenas ouvia o som do asfalto retumbando embaixo dos pneus e sentia a mistura enjoativa de fumaça de escapamento e purificador de ar.
Fechei os olhos bem apertados e, naquele momento, entendi. Soube exatamente como Dori havia se sentido, atirada na parte de trás de um veículo, escondida do resto do mundo. Compreendi como ela devia ter se enroscado cada vez mais, fechando os olhos e desejando que o próprio corpo desaparecesse. Tive certeza de que ela sussurrou um pai-nosso, porque era o que rezávamos juntas quando eu dormia na casa dela. E soube que ela havia chorado pedindo pela mãe, que estava sempre cheirando a lavanda quando nos dava beijos de boa-noite.
Embaixo do cobertor, cobri o rosto com as mãos. E chorei sem fazer um som sequer, porque é como aprendemos a chorar quando passamos a vida fugindo.
O carro diminuiu a velocidade novamente. A janela se abriu, ouvi o detetive Dodge dizer seu nome e mostrar o distintivo. Então o barulho maior ao fundo de vozes clamando por reconhecimento, fazendo uma pergunta, pedindo um comentário.
O vidro se fechou. O carro começou a andar de novo, com o motor diminuindo a marcha como ocorre quando se sobe uma ladeira.
— Esteja pronta ou não... — disse o detetive Dodge.
Embaixo do cobertor, sequei o rosto mais uma vez.
Pela Dori, disse a mim mesma, pela Dori.
Mas, basicamente, eu estava pensando no meu pai e no quanto o odiava.
Dodge teve de me libertar do banco de trás. Acontece que portas traseiras de sedãs da polícia têm algumas diferenças dos carros normais — elas só abrem por fora. A expressão do rosto dele era impossível de interpretar enquanto ele me ajudava, com os olhos cinzentos velados fixando um ponto logo atrás do meu ombro direito. Acompanhei o olhar dele até um segundo carro, já estacionado sob o guarda-sol armado embaixo de um imenso carvalho. A sargento Warren estava parada ao lado do carro, com os ombros encurvados na jaqueta de couro cor de caramelo e a mesma expressão irritada de que me lembrava.
— Ela é a chefe das investigações — o detetive Dodge murmurou baixinho, apenas para eu ouvir. — Não posso visitar a cena do crime sem a permissão dela. Não se preocupe, ela só está furiosa comigo. Você é apenas um alvo fácil.
Ser classificada como alvo me ofendeu. Eu me endireitei, alinhando os ombros e trocando a perna de apoio. Dodge assentiu com ar de aprovação, e imediatamente me perguntei se essa não havia sido a intenção dele. A ideia me deixou mais desequilibrada do que o olhar eternamente azedo da sargento Warren.
Dodge foi até a sargento. Segui atrás dele, abraçando o próprio corpo, tentando me aquecer. A tarde estava cinzenta e fria. O auge da estação de queda de folhas, facilmente a época mais bonita para estar na Nova Inglaterra, havia sido duas semanas antes. Agora os brilhantes vermelhos, os laranjas-claros e os alegres amarelos haviam sucumbido a marrons-escuros e cinzas sombrios. O ar tinha um cheiro úmido de mofo. Inspirei novamente e senti um leve odor de decomposição.
Eu havia lido sobre o terreno do Hospital Psiquiátrico de Boston na internet. Eu sabia que a instituição havia surgido como o Hospital de Loucos de Boston em 1839, antes de se tornar o Hospital Estadual de Boston em 1908. Originalmente, o complexo abrigava algumas centenas de pacientes e operava mais como uma fazenda autossustentável do que como inspiração para Um estranho no ninho.
Em 1950, no entanto, a população de pacientes havia aumentado para mais de 3 mil pessoas, com o complexo tendo ganhado dois edifícios de segurança máxima e uma imensa cerca de segurança de ferro forjado. Não era mais um lugar tão tranquilo. Quando a desinstitucionalização, finalmente, fechou o hospital em 1980, a comunidade agradeceu.
Eu esperava sentir um arrepio lúgubre quando chegasse ao lugar, talvez formando bolinhas no meu braço enquanto sentia a presença do mal pairando por lá. Eu olharia para alguma estrutura assustadoramente gótica, como o hospital psiquiátrico abandonado de Danvers, que ainda se ergue sobre a I-95, vendo — apenas por um instante — um rosto pálido e assombrado espiando detrás de uma janela estilhaçada.
Na realidade, daquela perspectiva privilegiada, eu não via os dois prédios restantes de forma alguma. Em vez disso, percebi um emaranhado de arbustos entrelaçados, coroado por um imenso carvalho de 100 anos de idade. Quando a sargento Warren seguiu por uma trilha estreita através dos arbustos, nós entramos em uma extensão aberta de brejo seco, que cintilava em dourado e prateado, ondulando ao vento. A vista era muito bonita, mais parecendo a de uma área de preservação do que a de uma cena de crime iminente.
O terreno firmou. Uma clareira surgiu à nossa direita. Eu vi o que parecia ser algum tipo de refugo. Warren parou de repente e fez um gesto na direção do monte de entulho coberto de folhagem.
— O botânico começou a vasculhar aquilo lá — ela comentou com Dodge. — Encontrou restos de uma estante de metal parecida com a que vimos no interior da câmara. Parece que o hospital tinha muitas dessas prateleiras. Tenho um policial passando um pente fino nos arquivos de fotografia agora.
— Você acha que os equipamentos vieram do próprio hospital? — Dodge perguntou de repente.
— Não sei, mas os sacos plásticos claros... dizem que eles eram comumente usados em instituições do governo nos anos 1970.
A sargento Warren começou a caminhar novamente, com o detetive Dodge seguindo logo atrás. Eu fiquei atrás, confusa com a troca dos dois.
De repente, passamos por mais um bosque de árvores que cessava em uma clareira, e um toldo azul vivo se ergueu diante de mim.
Pela primeira vez, fiz uma pausa. Era impressão minha, ou ali parecia ser mais silencioso? Não havia pássaros cantando, folhas farfalhando ou esquilos chiando. Eu não sentia mais o vento suave. Tudo parecia congelado, à espera.
A sargento Warren seguiu em frente, com os movimentos determinados. Me dei conta de que ela não queria estar ali. E isso começou a me dar nos nervos. Que tipo de cena de crime assusta até mesmo policiais?
Embaixo do toldo azul havia dois grandes cestos plásticos. Warren retirou as tampas cinzentas, revelando capas brancas feitas de um tecido fino e parecido com papel. Reconheci as capas protetoras de plástico de todos os programas de crimes reais da TV Justiça.
— Embora tecnicamente os cientistas já tenham processado a cena, queremos mantê-la o mais limpa possível — ela disse em tom de explicação ao me entregar uma capa e, em seguida, outra para o detetive Dodge. — Como nesse tipo de situação nunca sabemos se outros especialistas podem aparecer com algo novo para oferecer, queremos estar preparados.
Ela vestiu a própria capa rapidamente. Eu não conseguia entender onde eram os braços e onde eram as pernas. O detetive Dodge precisou me ajudar. Então, eles passaram para a proteção dos sapatos e, em seguida, para as toucas dos cabelos. Quando, finalmente, consegui vestir tudo, os dois estavam me esperando pelo que pareciam horas, e meu rosto queimava de vergonha.
Warren guiou o caminho até a parte de trás do toldo. Ela parou à beira de um buraco no chão. Eu não conseguia ver nada, lá embaixo era um breu.
Ela se virou para mim com uma expressão avaliadora nos olhos azuis.
— Você compreende que não pode comentar com ninguém o que vir aí embaixo? — ela disse enfaticamente. — Não pode falar a respeito com seu vizinho, seus colegas de trabalho, seu cabeleireiro. Isso é estritamente secreto.
— Sim.
— Você não pode tirar nenhuma foto ou fazer qualquer desenho ou diagrama.
— Eu sei.
— Também, em virtude de ter visitado esta cena, você poderá ser chamada a testemunhar no tribunal. Seu nome agora aparece no diário da cena do crime, o que torna você passível de ser questionada tanto pela acusação quanto pela defesa.
— Está bem — eu disse, embora não tivesse exatamente pensado nisso. Julgamento? Questionamento? Resolvi me preocupar com o assunto mais tarde.
— E, em compensação por esta visita guiada, você concorda em nos acompanhar ao Arizona amanhã de manhã. Você vai conhecer Catherine Gagnon. E vai responder às nossas perguntas da melhor maneira possível.
— Sim, eu concordo — afirmei, agora decidida. Estava ficando mais impaciente, e mais nervosa, quanto mais ficávamos parados ali.
A sargento Warren pegou uma lanterna.
— Eu desço primeiro — ela disse. — Vou acender as luzes. Quando as virem, saberão que está na hora de descerem.
Ela me deu um último olhar de avaliação, que correspondi, embora soubesse que meu olhar não era tão resoluto como o dela. Eu estava errada a respeito da sargento Warren. Se tivéssemos nos conhecido em um ringue de luta, eu jamais conseguiria derrubá-la. Eu posso ser mais jovem, mais rápida e fisicamente mais forte. Mas ela era durona. Durona, do tipo que desce em um túmulo escuro como breu até a medula.
Meu pai a teria adorado.
O topo da cabeça de Warren desapareceu embaixo da terra. Um segundo depois, a abertura ganhou uma iluminação fraca.
— Última chance — o detetive Dodge murmurou no meu ouvido.
Segurei no topo da escada. Então simplesmente não me permiti mais pensar.
capítulo 13
A primeira coisa que me chamou a atenção foi a temperatura. Estava mais quente embaixo da terra do que em cima. As paredes de terra ofereciam proteção contra o vento e isolamento contra o frio de fim de outono.
A segunda coisa que pensei: eu conseguia ficar de pé. Na verdade, eu podia mexer os braços, caminhar para a frente, para os lados, para trás. Tinha imaginado que ficaria encurvada, claustrofóbica. Mas, ao contrário, a câmara era definitivamente espaçosa, mesmo depois que o detetive Dodge se juntou a nós.
Meus olhos se ajustaram, identificando a colcha de retalhos de sombras permeadas por pontos de luz. Fui até uma parede, toquei a lateral ligeiramente sulcada e senti a terra compacta.
— Não entendo — eu disse, afinal. — Não há como um único homem ter conseguido cavar um espaço tão grande assim. Estamos falando de escavadeiras, maquinaria pesada. Como isso poderia estar acontecendo e ninguém perceber?
A sargento Warren me surpreendeu ao fazer as honras.
— Nós achamos que começou como parte de mais um projeto de construção. Talvez um canal para drenagem, ou apenas um poço de onde tenham tirado terra para aterrar outra área. No final dos anos 1940, começo dos anos 1950, a instituição estava correndo para erguer edifícios suficientes para acompanhar o ritmo do aumento da população de pacientes. É possível encontrar fundações pela metade, depósitos de materiais, todo tipo de coisa por toda a propriedade.
— Então este poço um dia foi parte de algo oficial?
— Talvez. — Ela encolheu os ombros. — Não há mais muita gente daquele tempo para responder a isso. Estamos falando de cinquenta anos atrás.
Pus a mão e senti o teto de madeira. Dei um passo adiante e toquei nas vigas de apoio.
— Mas foi ele quem fez tudo isso? Quem o reformou, por assim dizer.
— É o que achamos.
— Deve ter demorado.
Ninguém contestou.
— Ele investiu — continuei, pensando em voz alta. — Madeira, pregos, martelo. Esforço. Algum dos pacientes mentais poderia realmente ser tão organizado, ter a possibilidade de sair e voltar do local assim?
D.D. encolheu os ombros de novo.
— Tudo aqui poderia ter sido retirado dos entulhos de construção no terreno. Até agora, já vi de tudo. De caliça a azulejos, passando por esquadrias.
Fiz uma careta.
— Nenhuma janela aqui embaixo.
— Não. Não para o que ele tinha em mente.
Reprimi um calafrio e fui até a parede oposta.
— Quando acham que ele começou?
— Não sabemos. Havia cerca de trinta anos de mato crescido sobre o compensado, o que nos leva até os anos 1970. O hospital estava morrendo nessa época, e a propriedade estava mais abandonada do que sendo usada. Isso faz algum sentido.
— E por quanto tempo ele agiu?
— Não sabemos.
— Mas ele devia conhecer esta região — insisti. — Devia ter sido paciente do hospital ou, até mesmo, alguém que trabalhava aqui. Quero dizer, para ter encontrado este espaço, para saber de onde tirar seus materiais. Para se sentir à vontade de voltar e continuar voltando.
— A essa altura do jogo, tudo é possível. — A voz de D.D., no entanto, me revelou que ela estava cética. Tive a sensação de que ela estava pensando que o terreno havia sido abandonado, o que significava que qualquer um poderia ter acesso livre à área de setenta hectares.
A ideia me desanimou um pouco. Levantei o queixo, insistindo incansavelmente no meu papel de investigadora amadora.
— Você disse que havia equipamentos? — perguntei.
— Estantes de metal, cadeira de metal, balde de plástico.
— Nenhuma cama?
— Não que tenhamos encontrado.
— Lanternas, fogão?
— Não, mas dois ganchos no teto, que podem ter sido usados para pendurar luzes.
— Por que diz isso?
— Porque ele posicionou os ganchos na frente das prateleiras em que armazenava os corpos.
Fiquei zonza e estendi o braço para me segurar na parede de terra fria, e então tirei a mão rapidamente.
— Perdão?
A expressão de D.D. havia endurecido, com o olhar curioso.
— Me diga você. É você que está fingindo ser a testemunha. O que você vê aqui embaixo?
— Nada.
— A propriedade, o terreno... alguma coisa parece familiar?
— Não. — Minha voz estava fraca. — Eu nunca estive aqui antes. Eu imagino — minha mão voltou para a parede, que toquei com hesitação —, eu imagino que seja algo que alguém não consegue esquecer.
— É — ela concordou asperamente —, não acho que seja algo que dê para esquecer.
D.D. se aproximou e ficou parada a meu lado. Ela pôs a mão ao lado da minha, com os dedos abertos e a palma colada na terra fria, como que para me provar que conseguia lidar com aquele lugar melhor do que eu.
— Exatamente aqui onde estamos paradas costumavam ficar duas prateleiras compridas de metal. Ele as usava como depósito. Foi onde guardou os corpos. Um por saco de lixo, três por prateleira. Duas fileiras perfeitas.
Meus dedos ficaram agitados, e eu enfiei as unhas na terra nua, sentindo o solo duro e compacto nas pontas dos dedos. E, naquele momento, juro que pude sentir. O mal profundamente entranhado, um arrepio poderoso e penetrante. Eu me afastei apressadamente, movimentando os pés em círculos pequenos, enquanto meu olhar percorria o chão, em busca de sinais de... o quê? Luta? Sangue? O ponto exato em que um monstro havia estuprado minha melhor amiga? Ou arrancado suas unhas? Ou apertado os mamilos dela com alicate antes de cortar sua garganta?
Eu havia lido muitas matérias e passado muito tempo sendo preparada pelo meu pai. Para que ler Boa noite, lua para a sua filha quando se pode ler Monstros do século 21?
Eu ia vomitar, mas não podia. Estava pensando muito e pensando rápido demais. Estava me lembrando da minha amiga de infância de 7 anos de idade. Estava visualizando todas as fotos de cena de crime que meu pai havia me mostrado.
— O que ele fez? — eu me vi perguntando. — Por quanto tempo elas foram mantidas vivas? Como ele as matou? Elas sabiam umas das outras? Elas ficaram aqui embaixo cercadas por cadáveres, no escuro? Desliguem a luz! — Minha voz começou a ficar nervosa, incoerente. — Diabos, desliguem essas luzes! Eu quero saber o que ele fez com elas! Quero saber qual foi a sensação!
O detetive Dodge segurou as minhas mãos. Ele as apertou com as palmas espalmadas uma contra a outra, parando meus movimentos espasmódicos e levando minhas mãos ao peito. Não disse nada, apenas ficou ali parado, olhando para mim com seus tranquilos olhos cinzentos até que, com um estalo súbito, senti alguma coisa se quebrando dentro de mim. Meus ombros se curvaram e meus braços caíram ao longo do corpo. Sem histeria, fiquei sem energia, esgotada, pensando em Dori mais uma vez e no último verão em que nenhuma de nós sabia o quanto era feliz.
O sabor de picolé preferido de Dori era uva. O meu era malte. Nós separávamos esses sabores dos pacotes sortidos que nossas mães compravam e trocávamos uma com a outra todos os sábados.
Costumávamos correr pela rua para ver qual de nós duas era mais rápida. Uma vez, eu caí e machuquei o queixo. Dori veio ver se eu estava bem e, quando ela começou a se abaixar, eu me levantei em um salto e disparei até a linha de chegada só para poder dizer que havia vencido. Ela não falou comigo durante um dia inteiro, mas, mesmo assim, eu não pedi desculpas, porque mesmo naquela época vencer era mais importante para mim do que a expressão magoada no rosto dela.
Todos os domingos, a família dela ia à igreja. Eu queria ir à igreja com eles porque Dori sempre ficava muito bonita com seu vestido de ir à igreja, branco com detalhes em azul-claro, mas meu pai me dizia que a igreja era para os ignorantes. Então, eu visitava a casa de Dori nos domingos à tarde, e ela me contava as histórias que havia ouvido naquela manhã, como a do bebê Moisés, ou de Noé e sua arca, ou do nascimento milagroso de Jesus em uma manjedoura. E eu fazia uma pequena oração com ela, embora isso me deixasse com um sentimento de culpa. Eu gostava de como o rosto dela ficava quando ela rezava, do sorriso sereno que tomava conta de seus lábios.
Imaginei se ela havia rezado ali embaixo. Imaginei se ela havia rezado para viver ou se havia rezado pela misericórdia de Deus para que a levasse embora. Eu queria rezar. Queria cair de joelhos e implorar a Deus que tirasse um pouco daquela imensa pressão que estava sentindo no peito, porque eu estava com a sensação de que um punho havia entrado em mim e estava espremendo o meu coração, e eu não sabia como alguém poderia viver com tamanha dor, o que simplesmente me fez pensar como os pais dela haviam conseguido atravessar todos aqueles anos.
É a isso que a vida se resume, no final? Meninas pequenas forçadas a escolher entre uma vida passada fugindo das sombras ou uma morte prematura sozinha no escuro? Que tipo de monstro fazia esse tipo de coisa? Por que Dori não pôde escapar?
Eu fiquei feliz naquele instante que meus pais estivessem mortos. Que eles não precisassem saber o que havia acontecido com Dori ou o que a decisão do meu pai havia significado para a melhor amiga da filha dele.
Mas, então, no momento seguinte, me senti desconfortável. Mais uma sombra ondulando nos recônditos da minha mente...
Ele sabia. Não sei como soube disso, mas eu soube. Meu pai sabia o que havia acontecido com Dori, e isso me provocou ainda mais desconforto do que aquelas quatro paredes sufocantes.
Eu não estava mais suportando. Levantei as mãos, tocando a testa.
— Nós vamos ter de esperar pelos relatórios da antropóloga forense para saber mais sobre as vítimas — a sargento Warren estava dizendo.
Eu apenas assenti com a cabeça.
— Podemos dizer que estamos procurando por alguém muito metódico, extremamente inteligente e depravado.
Mais um breve aceno com a cabeça.
— Naturalmente, qualquer coisa de que você se lembre daquela época e, especialmente, do criminoso desconhecido vigiando sua casa, será muito útil.
— Eu gostaria de subir agora — eu disse.
Não houve discussão. O detetive Dodge guiou o caminho. Lá em cima, ele me ofereceu a mão. Eu recusei, subindo sozinha. O vento estava mais forte e balançava as folhas mortas das árvores. Virei o rosto em direção à brisa gelada. Então, cerrei os punhos, sentindo embaixo das unhas os restos macabros do túmulo da minha melhor amiga.
capítulo 14
Quando voltamos aos veículos, havia um patrulheiro nos esperando. Ele chamou a sargento Warren e falou em voz baixa.
— Quantas vezes você o viu? — ela perguntou enfaticamente.
— Três ou quatro.
— Quem ele diz que é?
— Ele diz que costumava trabalhar aqui. Que sabe de alguma coisa. Mas diz que só vai falar com o chefe da investigação.
Warren olhou por cima da cabeça do policial, para onde estávamos o detetive Dodge e eu.
— Tem um minuto? — ela perguntou, claramente se referindo a Bobby, não a mim.
Ele olhou para mim. Encolhi os ombros:
— Posso esperar no carro.
Essa pareceu ser a resposta certa. Warren se voltou para o patrulheiro novamente.
— Traga-o até aqui. Se quer tanto falar, vamos ouvir o que ele tem a dizer.
Voltei para o Crown Vic. Não me importei. Queria sair do vento, sair do alcance das imagens e dos cheiros. Não estava mais pensando em trilhas de caminhada. Deviam levar tratores e botar aquilo tudo abaixo.
Eu me atirei no banco do carona, obedientemente saindo de vista. No instante em que o detetive Dodge foi para perto da sargento Warren, no entanto, abri uma fresta da janela.
O patrulheiro voltou em questão de minutos. Trazia com ele um senhor mais velho com uma espessa cabeleira de cabelos brancos e passos surpreendentemente ágeis.
— Meu nome é Charles — ele disse com a voz potente, apertando a mão de Warren e depois a mão de Dodge. — Charlie Marvin. Trabalhei no hospital nos meus tempos de faculdade. Obrigado por me receber. O senhor é o chefe da investigação? — Ele se virou com expectativa para Dodge, que fez um rápido sinal para o lado com a cabeça. Charlie acompanhou o movimento na direção da sargento Warren. — Ooops — fez o homem, dando um sorriso tão largo que era difícil não gostar dele. — Não se importe comigo — ele disse a Warren. — Eu não sou sexista, sou só velho.
Ela riu. Eu nunca tinha ouvido a sargento Warren rir antes. Ela quase pareceu humana.
— Prazer em conhecê-lo, senhor Marvin.
— Charlie, Charlie. “Senhor Marvin” me faz pensar no meu pai, que Deus o tenha.
— O que podemos fazer por você, Charlie?
— Fiquei sabendo da cova, das seis meninas encontradas aqui. Preciso dizer que fiquei abalado. Passei quase uma década aqui, primeiro trabalhando como auxiliar de enfermagem e depois oferecendo meus serviços de pastor nas noites e nos finais de semana. Quase fui morto uma meia dúzia de vezes. Mas ainda penso naqueles dias como os bons e velhos tempos. Me incomoda pensar que podia haver meninas morrendo no tempo em que eu estava aqui. Me incomoda muito.
Charlie ficou encarando Warren e Dodge com expectativa, mas nenhum deles disse nada. A essa altura, eu já reconhecia a estratégia dos dois. Eles gostavam de usar a abordagem silenciosa comigo também.
— Então — Charlie disse rapidamente —, eu posso ser um velho que não se lembra do que comeu no café da manhã na maior parte do tempo, mas as minhas lembranças de antigamente são perfeitamente claras. Tomei a liberdade de fazer algumas anotações. Sobre alguns pacientes, e, bem — ele limpou a garganta, começando a parecer nervoso por um instante —, sobre certo membro da equipe. Não sei se isso vai ajudá-los ou não, mas queria que fizessem alguma coisa.
Dodge enfiou a mão no bolso interno do casaco e abriu um bloco de anotações. Charlie interpretou o gesto como um sinal de encorajamento e logo desdobrou um pedaço de folha de caderno que estava segurando na mão. Seus dedos tremiam um pouco, mas sua voz se manteve forte.
— Sabem como era o funcionamento do hospital? — ele perguntou aos dois detetives.
— Não, senhor — o detetive Dodge falou. — Pelo menos não tanto quanto gostaríamos.
— Nós tínhamos mil e oitocentos pacientes quando comecei a trabalhar — Charlie disse. — Atendíamos pacientes de 16 anos em diante sem diferenciação de raça, sexo ou classe social. Alguns eram internados pelas famílias, muitos, trazidos pela polícia. A ala leste do complexo era para cuidados crônicos. A ala oeste, onde estamos agora, para casos agudos. Eu comecei a trabalhar na internação. Um ano depois, fui promovido a encarregado e transferido para o Prédio I, para trabalhar na unidade I-4, que era a área de segurança máxima para homens.
— Éramos uma boa instituição. Tínhamos pouco pessoal, muitas noites era apenas eu para quarenta pacientes, mas conseguíamos fazer o trabalho. Nunca usávamos camisas de força, nunca amarrávamos pacientes nem cometíamos abusos físicos. Quem enfrentava problemas tinha permissão de usar uma chave de braço ou um golpe de luta livre para dominar o paciente até a chegada de reforços, quando algum auxiliar de enfermagem, provavelmente, administraria um sedativo.
— Na maior parte do tempo, os auxiliares de enfermagem eram encarregados de cuidar dos pacientes, mantendo-os calmos, limpos e saudáveis. Administrávamos as medicações prescritas pelos médicos. Recebi treinamento em injeções intramusculares. Sabe, de como enfiar uma agulha carregada de amobarbital na coxa de um sujeito. Definitivamente, às vezes a coisa complicava. Eu levantava muito peso só para sobreviver. Mas a maioria dos homens, até mesmo na segurança máxima, só precisava ser tratada como seres humanos. Nós conversávamos com eles. Nós mantínhamos a voz calma e razoável. Agíamos como se esperássemos que eles fossem calmos e razoáveis. É espantoso como isso frequentemente funcionava.
— Mas nem sempre — provocou a sargento Warren.
Charlie sacudiu a cabeça.
— Não, nem sempre. — Ele levantou um dedo. — A primeira vez em que quase perdi a vida: Paul Nicholas. Mais de cem quilos de esquizofrenia paranoide. Na maior parte do tempo, ele era mantido em reclusão, quartos especiais que tinham apenas uma janela gradeada e um colchonete pesado de couro para dormir. Naquele tempo, chamávamos de quartos de borracha. Uma noite, quando cheguei para trabalhar, porém, ele havia sido solto. Meu supervisor, Alan Woodward, jurava que Paulie estava bem.
— Nas primeiras horas, não ouvi nada. Quando chegou a meia-noite, me recolhi ao escritório do primeiro andar para estudar um pouco, quando de repente ouvi batidas no andar de cima, como se houvesse um trem de carga passando pelo corredor. Arranquei o telefone do gancho, sinalizando o pedido de ajuda, e subi correndo.
— Lá estava Paulie, parado no meio da Sala de Convivência, esperando por mim. No instante em que me vê, ele dá uma voadora. Desvio para o lado, e Paulie cai em cima do sofá, desmontando completamente o coitado. Em seguida, Paulie está atirando cadeiras na minha cabeça. Corro para trás de uma mesa de pingue-pongue. Ele começa a correr atrás de mim e ficamos dando voltas ao redor da mesa como em um desenho de Tom & Jerry. Só que Paulie se cansa da brincadeira e começa a destruir a mesa de pingue-pongue. Com as próprias mãos.
— Podem achar que eu estou exagerando, mas não estou. O cara estava excitado de raiva e testosterona. Começou atacando o acabamento de metal da mesa, arrancando-o antes de começar a partir a madeira em pedaços. A essa altura, me dou conta de que estou praticamente morto. A mesa de pingue-pingue ia acabar, e Paulie estava progredindo rapidamente. Então, eu olho e vejo dois colegas auxiliares de enfermagem, finalmente, chegando à porta.
— Segurem ele! — gritei. — Precisamos de amobarbital!
— Só que eles se apavoraram. Ficaram parados na porta com os olhos arregalados, assistindo a Paulie destruindo tudo e, com o perdão da expressão, senhora, eles estavam se cagando de medo.
— Ei! — gritei de novo. — Pelo amor de Deus, cara!
Um deles arfa. É o que basta para Paulie se virar. No instante em que se vira, eu pulo por cima da mesa, me jogo nas costas dele e o prendo com uma chave de braço. Paul começa a rugir, tentando me atirar para longe. Meus colegas, finalmente, acordam e me ajudam a agarrá-lo. Ainda foram necessários quatorze grãos de amobarbital e duas horas para acalmar Paulie. Desnecessário dizer que ele ficou um bom tempo sem deixar a reclusão depois disso. Então, tem um nome para vocês: Paulie Nicholas!
Charlie olhou para os dois investigadores cheio de expectativa. O detetive Dodge anotou obedientemente o nome, mas a sargento Warren estava com a testa franzida.
— Você disse que esse paciente, Paul “Paulie” Nicholas, ficava em reclusão?
— Sim, senhora.
— E, quando não estava em reclusão, imagino que ficava fortemente medicado.
— Ah, sim, senhora. Com um cara como ele, não haveria outra forma.
— Bem, eu entendo, Charlie, que Nicholas fosse uma ameaça a você e aos demais funcionários. Mas, considerando a forma como ele era controlado, imagino que seja improvável que ele algum dia fosse liberado para passear pelo complexo.
— Ah, não. Paulie era segurança máxima. Isso significava completamente trancado, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Esses pacientes não “passeavam” sozinhos.
A sargento Warren assentiu.
— A pessoa por quem estamos procurando, Charlie, teria que ter acesso ao complexo. Muito acesso ao complexo. Algum paciente tinha permissão para sair ou, por definição, isso significa que devamos nos concentrar nos funcionários?
Charlie fez uma pausa, franziu o cenho e revisou a lista.
— Bem, eu não queria começar com isso, mas houve um incidente...
— Sim? — Warren o estimulou a prosseguir.
— Foi em 1970 — Charlie disse. — Sabe, havia um motivo pelo qual a enfermeira-chefe, Jill Cochran, gostava de nós, universitários. Nós éramos fortes e é claro que isso ajudava. Mas também... nós éramos jovens, otimistas. Nós não apenas cuidávamos dos pacientes, nós genuinamente nos preocupávamos com eles. Eu mesmo já sabia na época que queria ser pastor. Um hospital psiquiátrico é um bom lugar para começar quando se quer atingir almas perturbadas. Aprendi em primeira mão que diferença a palavra certa pode fazer para uma pessoa. Mas devo dizer que é um lugar onde ninguém deveria permanecer por muito tempo, nem mesmo os funcionários.
— Os mais velhos, os auxiliares de enfermagem “experientes” que estavam por aqui havia décadas... que diabo, alguns deles ficavam mais malucos do que os pacientes. Eles próprios acabavam institucionalizados, se esqueceram de como era a vida do outro lado dos muros do hospital. Quando comecei a trabalhar na recepção, havia um paciente com uma faixa horrorosa na perna. Na primeira noite, perguntei ao atendente encarregado qual era a história daquela faixa. Ele não fazia ideia. Não havia sequer notado que o paciente tinha uma faixa na perna. Então, fui ao quarto do paciente e perguntei se podia examinar a perna dele. No instante em que tirei a faixa, um jato de pus jorrou pelo quarto. E então, bem diante dos meus olhos, larvas começaram a sair de dentro da ferida.
— O que aconteceu foi que o pobre sujeito tinha tido uma ulceração na perna dois meses antes. O médico o enfaixou. Ninguém nunca mais o examinou. Nem um auxiliar de enfermagem sequer. Eles estavam olhando para o paciente fazia meses sem nunca enxergá-lo.
— Bem, isso era ruim. Negligente. Mas às vezes as coisas ficavam um pouco pior.
Charlie interrompeu o relato, parecendo desconfortável novamente. Agora, tanto Warren quanto Dodge estavam escutando atentamente. De onde eu estava, praticamente deitada no carro de Dodge, pude perceber que os dois investigadores estavam prestando atenção a cada palavra de Charlie. Sei que eu estava.
O pastor aposentado respirou fundo.
— Então, em uma noite eu recebi uma ligação da residência de pacientes femininas. Keri Stracke. Ela me perguntou se um fulano estava trabalhando. Respondi que sim. Keri me perguntou onde ele estava. Eu dou uma volta pelo Prédio I, mas não o vejo. Digo a ela que ele saiu, que talvez tenha ido jantar. Há uma longa pausa, e Keri me diz, com uma voz muito estranha, que eu preciso ir até lá imediatamente.
— Só que eu era o único lá. Não podia simplesmente deixar o Prédio I. Tento explicar isso, mas ela me diz de novo, com aquela vozinha esquisita, que eu não tenho escolha. Ela queria dizer imediatamente! O que eu podia fazer? Fiquei realmente preocupado e fui até lá. Keri me encontra na frente do outro prédio e, sem dizer nada, me leva até o andar de cima. Ela para diante da porta fechada do quarto de uma paciente. Eu olho pela janela da porta, e lá está meu colega auxiliar de enfermagem na cama com uma paciente. É uma menina de 17 anos, muito bonita, e catatônica. Eu nunca quis tanto machucar outro ser humano na vida.
— O que você fez? — o detetive Dodge perguntou em voz baixa.
— Eu abri a porta. No instante em que ouviu o barulho, Adam olhou para cima. Dava para ver no rosto dele que ele soube que estava tudo acabado. Ele saiu de cima dela, fechou o zíper das calças e saiu do quarto. Eu o levei de volta até o Prédio I, até o escritório, onde liguei para o nosso supervisor. Adam foi demitido na hora, é claro. Não sei que histórias vocês podem ter ouvido sobre abuso de pacientes, mas esse tipo de comportamento nunca foi aceito aqui. Adam estava acabado. Ele sabia disso também.
— Qual o sobrenome de Adam? — Dodge perguntou.
— Schmidt — Charlie suspirou.
— Foi feito um boletim policial? — a sargento Warren perguntou com mais veemência.
Charlie sacudiu a cabeça.
— Não. A gerência quis manter discrição.
Warren levantou uma sobrancelha diante disso.
— Você sabe o que aconteceu com Adam?
— Na verdade, não. Mas... — Aquela hesitação novamente. — Eu o vi muito mais vezes. Aqui no complexo. Duas vezes a distância, mas tenho certeza de que era ele. Na terceira vez, me aproximei e perguntei que diabos ele estava fazendo. Ele disse que precisava tratar de questões burocráticas. Considerando que eram quase dez da noite, isso não fez muito sentido para mim. No dia seguinte, eu falei com Jill Cochran. Ela não sabia de nada. Ficamos de olho nas pacientes femininas por um tempo. Ninguém falava nada, mas nós estávamos montando guarda. Eu não vi mais o Adam, mas esta propriedade é muito grande.
Dodge franziu o cenho.
— Vocês faziam patrulha do terreno? Alguma tentativa de melhorar a segurança da propriedade?
— Nós trancávamos os portões à noite e tínhamos funcionários presentes vinte e quatro por sete. Mas... nas primeiras horas da madrugada, auxiliares de enfermagem como eu dificilmente estavam percorrendo a área. Tínhamos pacientes a atender e ficávamos nas nossas salas. — Charlie encolheu os ombros. — É possível que alguém estivesse indo e vindo sem que víssemos qualquer coisa. Isso aconteceu antes, sabem?
— Antes?
— Tivemos um assassinato aqui, de uma enfermeira, em meados dos anos 1970. Pelo que sei, um dos auxiliares de enfermagem olhou por uma das janelas do prédio de internação e viu o corpo no começo da manhã. Ingrid, Inga... Inge. Inge Lovell, acho que era o nome dela. Ela foi estuprada e morreu de tanto apanhar. Uma tragédia muito, muito horrível. A polícia foi chamada, mas não havia testemunhas... nenhum dos atendentes viu nada.
Warren estava assentindo com a cabeça. Aparentemente, a história de Charlie despertou sua lembrança do incidente.
— Ninguém nunca foi preso — ela disse.
— Os boatos que corriam eram de que o crime havia sido cometido por um paciente — Charlie disse. — Na verdade, muita gente acreditava que havia sido Christopher Eola. O que não me surpreenderia. Eola foi internado depois dos meus tempos de auxiliar de enfermagem. Mas eu cruzei com ele uma ou duas vezes ao vir aos domingos. Era um paciente assustador, o senhor Eola. O lado frio da loucura.
Dodge estava folheando o bloquinho de notas.
— Eola, Eola, Eola.
— O disque-denúncia — Warren murmurou.
Os dois ficaram alertas.
— O que pode nos dizer sobre Eola? — Warren perguntou a Charlie.
Charlie girou a cabeça.
— Quer a história oficial ou a versão com fofocas no meio?
— Queremos ouvir tudo — Warren respondeu.
— Eola chegou a nós ainda jovem. Foi internado pelos pais, pelo que me disseram. Eles o largaram aqui e voltaram correndo para a mansão, sem nunca mais aparecer. Diziam que Eola havia tido um relacionamento inadequado com a irmã mais nova. Os pais flagraram os dois juntos, e foi isso. Tchauzinho, Christopher.
— Eola era um garoto bonito. De cabelos castanhos-claros e olhos azuis-claros. Não era grande. Tinha mais ou menos um metro e oitenta, mas era magro, sofisticado. Talvez fosse até mesmo um pouco efeminado, o que explica por que a maioria dos auxiliares de enfermagem não o considerou uma ameaça imediata.
— Ele era também muito inteligente. Muito sociável. Seria de imaginar que alguém com a criação privilegiada dele fosse se manter isolado. Em vez disso, ele gostava de frequentar a Sala de Convivência, tocando música para os colegas e promovendo uma hora de leitura. Mais importante ainda, ele enrolava cigarros. Sei que isso é considerado péssimo hoje, mas, naquele tempo, todo mundo fumava: médicos, enfermeiros, pacientes. Na verdade, uma das melhores maneiras de garantir a cooperação de um paciente era lhe dar um cigarro. Simplesmente era como as coisas funcionavam.
— Bem, a maior parte dos cigarros precisava ser enrolada, e alguns dos pacientes cujas capacidades motoras eram prejudicadas pelos vários medicamentos que tomavam tinham muita dificuldade para fazer isso. Então, Christopher os ajudava. Era o que ele estava fazendo na primeira vez em que o vi. Estava sentado no solário enrolando cigarros alegremente para uma fila de pacientes. É engraçado, mas a primeira vez que ele ergueu o olhar e me viu, eu soube que não gostava dele. Eu soube que ele era um problema. Eram os olhos dele. Ele tinha olhos de tubarão.
— O que Eola fez? — Dodge interrompeu. — Por que ele era considerado tamanha ameaça?
— Ele aprendeu o sistema.
Eu me endireitei. Não consegui evitar. Sentada no carro com a orelha grudada na abertura do vidro, tive uma sensação de déjà vu, do meu pai falando, de um homem sombrio chamado Christopher Eola fazendo as mesmas anotações que eu um dia fiz. Senti um arrepio.
— O sistema? — Dodge perguntou.
— Os horários, as trocas de turno, os intervalos de jantar. E, o mais importante, as medicações. Ninguém pensou nisso até depois do assassinato de Inge. Mas conforme a administração começou a fazer mais perguntas, tomou-se conhecimento de que alguns auxiliares de enfermagem estavam caindo no sono durante seus turnos. Só que não era apenas um enfermeiro de vez em quando. Era todo mundo o tempo todo. Bem, isso enfureceu a enfermeira-chefe. Então, uma noite Jill fez uma inspeção surpresa na internação. Ela encontrou Eola no escritório, misturando alguma coisa no saco de papel do jantar do auxiliar de enfermagem. Ele levantou os olhos, a viu e, de repente, sorriu.
— No instante em que viu aquele olhar, Jill deve ter sentido que estaria morta. Empurrou a porta com força e trancou Eola na sala. Ele tentou argumentar com ela. Disse que ela estava tendo uma reação exagerada e jurou que poderia explicar tudo. Jill saiu correndo. No instante seguinte, Eola estava se atirando contra a porta, rosnando feito um animal. Um homem grande provavelmente teria forçado a saída, mas, como eu disse, Eola era basicamente cérebro, não músculos. Jill manteve Eola preso por quinze minutos até que outro atendente chegou e os dois aplicaram amobarbital.
— Mais tarde, descobriram que Eola vinha roubando cápsulas de torazina de outros pacientes e misturando o pó na comida dos auxiliares de enfermagem. Além disso, ele provocava vários conflitos entre os pacientes, criando problemas no andar de cima. Quando o auxiliar de enfermagem subia para tratar da questão, ele descia até o escritório e fazia o trabalho. É claro que ele nunca admitiu nada. Sempre que se perguntava alguma coisa a ele, apenas sorria.
Warren e Dodge estavam se entreolhando novamente.
— Parece que Eola tinha muitas oportunidades de passear pelo complexo.
— Acho que sim.
— Em que ano foi isso?
— Eola foi internado em 1974.
— Com quantos anos?
— Acho que ele tinha vinte anos na época.
— E o que aconteceu com ele?
— Finalmente foi apanhado.
— Fazendo o quê?
— Organizando uma rebelião dos pacientes. A certa altura, ele havia pegado um dos colchonetes de couro de uma sala de isolamento. Então, recrutou os pacientes mais “centrados” para criarem uma perturbação. Quando o auxiliar de enfermagem apareceu lá em cima, os pacientes o atacaram com o colchonete e o derrubaram. Mas Eola tinha cometido um pequeno erro de cálculo. Nós tínhamos outro paciente aqui na época, o Rob George. Ex-campeão de pesos pesados. Ele passou os dois primeiros anos no hospital catatônico. Mas, apenas três dias antes, ele havia conseguido ir sozinho até a Sala de Convivência. O auxiliar de enfermagem de plantão o levou de volta para a cama sem incidentes, mas o encontrou sentado uma hora mais tarde. Ele claramente estava voltando a si.
— Bem, na noite da rebelião de Eola, toda a unidade ficou em polvorosa. E, aparentemente, isso tirou nosso campeão de boxe da cama. Rob apareceu no meio da Sala de Convivência. Ele olhou para o auxiliar inconsciente no chão. Então encarou Christopher, que estava sorrindo para ele.
— Boa notícia, cara... — Eola começou a dizer.
— E então o senhor George estirou o punho e nocauteou Christopher. Um belo e sólido gancho de esquerda. E em seguida ele voltou para a cama. Aí, outro paciente desceu até o escritório e tirou o telefone do gancho. Sem Eola, ninguém sabia o que fazer.
— Os auxiliares de enfermagem chegaram e restabeleceram a ordem. Na manhã seguinte, Rob acordou e perguntou pela mãe. Seis semanas depois, recebeu alta. Ele dizia que não se lembrava do que havia acontecido naquela noite. Fiquei sabendo por médicos, no entanto, que, ao sair de um estado catatônico, a maior parte dos primeiros movimentos de um paciente é reflexiva, uma questão de memória muscular. Como se sentar. Ou caminhar. Ou, imagino, no caso de o paciente ser um ex-campeão de boxe, um sólido gancho de direita.
— Então o que aconteceu com Christopher?
— Os outros pacientes o deduraram e, considerando o histórico dele, a administração decidiu transferi-lo para Bridgewater, que trata dos loucos criminosos. Nunca mais ouvi falar nele. Mas Bridgewater é assim. Isto aqui — Charlie apontou para o terreno abaixo dele — era uma instituição de tratamento. Bridgewater... depois que alguém entra lá, não se espera que volte a ser visto.
A sargento Warren levantou uma sobrancelha.
— Que ótimo.
Charlie encolheu os ombros.
— As coisas eram assim.
— Mas ele poderia ter sido liberado — Dodge disse. — No final dos anos 1970, as populações de pacientes psiquiátricos não estavam diminuindo em todos os lugares? A desinstitucionalização não fechou apenas o Hospital Psiquiátrico de Boston, mas afetou a todos.
Charlie estava assentindo com a cabeça.
— É verdade, é verdade. Uma pena, se querem saber minha opinião. — Ele girou a cabeça. — Sabe o que me manteve aqui? Trabalhando durante quatro anos e fazendo trabalho voluntário por seis anos depois? Eu contei a vocês as coisas assustadoras, as histórias que as pessoas querem ouvir sobre uma instituição psiquiátrica. Mas a verdade é que este era um bom hospital. Tínhamos pacientes como Rob George, que, com o tratamento adequado, saíam de um estado catatônico e voltava a viver perto das pessoas que amavam. O segundo cara que quase me matou era um menino de rua chamado Benji. Era um garoto bonito, belo exemplar italiano, mas extremamente selvagem. Foi trazido pela polícia. Na primeira semana, Benji ficou num quarto de reclusão, completamente nu. Pintou a parede e o corpo com as próprias fezes. Tudo o que dava para ver era o branco dos olhos dele cintilando no escuro.
— Um dia, quando eu estava cuidando dele, ele saltou nas minhas costas e quase me estrangulou antes que outro auxiliar o tirasse de cima de mim. Mas sabem de uma coisa? Ele acabou se mostrando um bom garoto. Os médicos chamaram o caso dele de regressão. Algum tipo de trauma o havia deixado com a maturidade mental de uma criança de dois anos. Ele não falava, não comia, não ia ao banheiro nem se vestia sozinho. Mas depois que começamos a tratá-lo como a uma criança de dois anos de idade, passamos a nos dar muito bem. Eu vinha aos domingos e lia para ele livros infantis e tocava músicas bobas. Com o passar do tempo, o tratamento e a bondade humana, Benji cresceu novamente, bem diante dos nossos olhos. Ele começou a usar roupas, a ir ao banheiro, a comer com talheres e a dizer por favor e obrigado. Dois anos depois ele estava se saindo tão bem que um membro do conselho do hospital o inscreveu na escola Boston Latin. Ele ia para a escola durante o dia e dormia no quarto dele aqui à noite. Nós o encontrávamos estudando no meio de todo o caos da Sala de Convivência. Acabou se formando, conseguiu um emprego e foi morar sozinho. Nada disso teria acontecido sem este hospital.
Charlie sacudiu a cabeça com tristeza.
— As pessoas acreditam que seja bom uma instituição psiquiátrica fechar as portas. Três mil pessoas recebiam tratamento aqui. Vocês realmente acreditam que não existe mais nada? As doenças mentais apenas foram transferidas para o submundo, para os abrigos de sem-teto e os parques da cidade. Para longe da vista e das mentes dos pagadores de impostos. É uma pena muito grande.
Charlie suspirou e sacudiu a cabeça novamente. Mais um instante se passou. Ele endireitou os ombros e mostrou o papel que tinha na mão.
— Fiz um mapa do velho complexo — ele disse à sargento Warren. — Mostrando como ele era antes que começassem a derrubar os prédios. Não sei se isso ajuda a investigação ou não, mas me pareceu que a cova é velha. Sendo assim, achei que talvez fossem querer contextualizar a cena do crime.
Warren pegou o papel e olhou para o que havia nele.
— Isto é perfeito, Charlie, será muito útil. E agradeço ter dedicado seu tempo a falar conosco. Você é um verdadeiro cavalheiro.
Dodge anotou os contatos dele. A conversa parecia estar terminando.
No último minuto, enquanto o policial estava acompanhando Charlie de volta à viatura, ele por acaso olhou na minha direção. Quando estava prestando atenção à conversa, eu havia me levantado e ficado com o rosto na altura da janela do carro, com a orelha virada para a fresta aberta.
No instante em que me viu, ele pareceu impressionado.
— Com licença, moça — ele chamou. — Eu não a conheço?
Imediatamente, o detetive Dodge se colocou entre nós dois.
— Ela é apenas outra pessoa que está nos ajudando na investigação — ele murmurou, acompanhando o pastor aposentado de volta à viatura policial. Charlie se virou de costas. Eu me abaixei, fechando rapidamente a fresta da janela. Não reconheci Charlie Marvin. Então por que ele acharia que me conhecia?
A viatura policial foi embora.
Mas meu coração continuava batendo com muita força no meu peito.
capítulo 15
Os dois ficaram em silêncio no caminho para o extremo norte da cidade: Annabelle olhando pela janela lateral, deslizando o pingente de vidro de um lado para o outro na corrente que tinha no pescoço e Bobby olhando fixamente para a frente e batucando com os dedos na direção.
Bobby pensou que devia dizer alguma coisa. Ensaiou várias frases mentalmente: Não se preocupe. As coisas vão parecer melhor de manhã. A vida continua.
Tudo parecia a mesma bobagem que todos haviam dito para ele depois do tiroteio, então preferiu ficar calado. A verdade era que a vida de Annabelle realmente era uma porcaria, e ele tinha a sensação de que as coisas só iriam piorar. Especialmente depois que ela ficasse frente a frente com Catherine Gagnon.
Inicialmente, ele mencionara o nome de Annabelle a Catherine por pura curiosidade. Annabelle dizia não conhecer Catherine, qual era a impressão de Catherine? Acontece que Catherine desconhecia a existência de Annabelle tanto quanto Annabelle desconhecia a existência de Catherine.
Sim, as duas mulheres haviam sido alvo de predadores com predileção por câmaras subterrâneas. As duas mulheres tinham muitas semelhanças físicas. E ambas moraram em Boston no começo dos anos 1980.
Bobby continuava acreditando, precisava acreditar, que havia uma ligação.
Aparentemente, as chefias tinham concordado, porque eles haviam aceitado a expedição ao Arizona. A teoria era que, se conseguissem ficar com Catherine e Annabelle juntas numa sala, alguma coisa iria aparecer. O fator de ligação. O denominador comum. A revelação impressionante que resolveria o caso, fazendo com que os integrantes do Departamento de Polícia de Boston ganhassem a fama de heróis e todo mundo voltasse a dormir à noite.
Mais cedo, a ideia lhe parecera absolutamente certa. Agora Bobby não tinha tanta certeza. Havia muitas perguntas passando em sua mente. Por que a família de Annabelle continuara fugindo mesmo depois de sair de Massachusetts? Como Annabelle havia se tornado um alvo em Arlington, se a operação do criminoso ficava no Hospital Psiquiátrico de Boston em Mattapan? E por que um ex-voluntário do hospício, Charlie Marvin, também parecia reconhecer Annabelle, quando ela havia dito que nunca pusera os pés no complexo do Hospital Psiquiátrico de Boston?
Bobby bufou e esfregou a nuca. Imaginou quando ia começar a produzir respostas em vez de uma lista ainda maior de perguntas. Imaginou como iria espremer aproximadamente 12 horas de telefonemas nas cerca de duas horas que tinha antes da próxima reunião da força-tarefa.
Ele se perguntou, mais uma vez, se devia dizer alguma coisa reconfortante à mulher arrasada sentada ao lado dele.
Ainda sem respostas, Bobby continuou dirigindo, com as duas mãos no volante.
A noite havia caído, com o fim do dia fazendo a cidade ganhar vida. A Rota 93 estava cheia de carros diante deles, uma longa faixa de luzes traseiras vermelhas que levava até uma ilha de arranha-céus cintilantes. As pessoas comentavam que o visual de Boston era especialmente bonito à noite. Bobby passara toda a vida morando na cidade e toda a carreira andando por ela. Sinceramente, ele não entendia. Prédios altos eram prédios altos. Na maior parte das vezes, a essa hora, ele queria estar em casa.
— Você já perdeu alguém próximo? — Annabelle perguntou abruptamente. — Um parente, um amigo?
Depois do longo silêncio, a pergunta dela o levou com espanto para uma resposta sincera:
— Minha mãe e meu irmão. Há muito tempo.
— Ah, eu sinto muito... eu não queria... que triste.
— Não, não, não, eles ainda estão vivos. Não é o que você está pensando. Minha mãe foi embora quando eu tinha seis ou sete anos. Meu irmão conseguiu ficar mais ou menos uns oito anos, e então foi embora também.
— Eles simplesmente foram embora?
— Meu pai tinha problema com bebida.
— Ah.
Bobby encolheu os ombros, filosoficamente:
— Naquele tempo, as alternativas eram basicamente ir embora ou cavar a própria cova. Em favor da minha mãe e do meu irmão, posso dizer que eles não tinham vontade de morrer.
— Mas você ficou.
— Eu era novo demais — ele disse simplesmente. — Ainda não tinha pernas para correr.
Ela piscou os olhos, parecendo incomodada.
— E o seu pai, onde está?
— Ele está sóbrio há quase dez anos. Tem sido difícil, mas ele está segurando a onda.
— Que ótimo.
— Eu tenho orgulho dele. — Bobby olhou para ela pela primeira vez, fitando-a nos olhos pelo instante prudente para alguém que estava dirigindo. Ele não sabia ao certo por que havia dito aquilo, mas pareceu importante acrescentar. — Eu também não sou muito bom com bebida. Eu entendo como é difícil a luta do meu pai.
— Ah — ela disse novamente.
Ele assentiu. Ah resumia muito bem a vida dele ultimamente. Havia matado um homem, se envolvido com a viúva da vítima, percebido que era alcoólatra, confrontado um assassino em série e feito uma mudança radical em sua carreira policial, tudo no curso de dois anos. Ah era basicamente o único resumo que restava a ele.
— Você ainda sente falta da sua família? — Annabelle estava perguntando agora. — Você pensa neles o tempo todo? Eu sinceramente não pensava em Dori fazia vinte e cinco anos. Agora estou me perguntando se algum dia conseguirei tirá-la da minha cabeça.
— Não penso neles como costumava pensar. Posso passar semanas, até um mês ou dois, sem pensar neles nenhuma vez. Mas, então, acontece alguma coisa, sabe, como o Red Sox ganhar o campeonato, e eu me pego imaginando o que George está fazendo. Será que está torcendo em algum bar na Flórida, enlouquecido pelo time da cidade dele? Ou será que quando foi embora ele também deixou o Red Sox? Talvez ele torça para o Marlins hoje em dia. Eu não sei. E, então, eu piro por alguns dias. Eu me pego encarando a mim mesmo no espelho, imaginando se George tem as mesmas rugas ao redor dos olhos que eu. Ou será que ele é um vendedor de seguros gordo com barriga de cerveja e queixo duplo? Eu não o vejo desde que ele tinha 18 anos. Não consigo nem imaginá-lo como homem. Isso me incomoda às vezes. Me dá a sensação de que ele está morto.
— Você liga para ele?
— Deixei recados.
— Ele não retorna as suas ligações? — Ela pareceu não acreditar.
— Até agora não retornou.
— E a sua mãe?
— A mesma coisa.
— Por quê? Isso não faz sentido algum. Não é sua culpa que seu pai era um bêbado. Eles culpam você?
Ele precisou sorrir:
— Você é uma boa pessoa.
Ela fez uma careta em resposta:
— Não sou, não.
Isso só fez com que o sorriso dele aumentasse. Mas, então, ele suspirou. Era estranho, mas não ruim, estar falando sobre sua família. Vinha pensando cada vez mais neles depois do tiroteio. E vinha deixando mais mensagens.
— Então, eu fui a um terapeuta há uns dois anos — ele disse. — Por ordem do departamento. Eu me envolvi em um incidente sério...
— Você matou Jimmy Gagnon — Annabelle disse sem rodeios.
— Vejo que andou se ocupando na internet.
— Você teve um caso com Catherine Gagnon?
— Vejo que andou conversando com a D.D.
— Então você teve um caso com ela? — Annabelle parecia genuinamente surpresa. Pelo jeito, ela estava apenas jogando uma isca, que ele havia mordido feito um idiota.
— Eu nunca nem sequer beijei Catherine Gagnon — ele disse com firmeza.
— Mas o processo...
— Acabou sendo arquivado.
— Só depois do tiroteio no hotel...
— Retirado é retirado.
— A sargento Warren obviamente a odeia — Annabelle disse.
— A D.D. sempre vai odiá-la.
— Você tem um caso com a D.D.
— Então — ele disse aumentando o tom da voz —, eu fiz meu trabalho e matei um homem armado que estava mantendo a esposa e o filho sob a mira de um revólver. E o departamento me mandou para um terapeuta. E sabe aquele clichê de que terapeutas só querem falar sobre a nossa mãe? É verdade. Tudo o que a mulher fez foi me fazer perguntas sobre a minha mãe.
— Muito bem — Annabelle disse —, vamos falar sobre a sua mãe.
— Exatamente, apenas um momento de abrir o coração por vez aqui. Foi interessante. Quanto mais tempo minha mãe e meu irmão ficavam longe, mais e mais, em algum nível, eu internalizava tudo como sendo minha culpa. Mas a terapeuta levantou alguns pontos curiosos. Minha mãe, meu irmão e eu dividimos um período bastante traumático das nossas vidas. Eu me sentia culpado pelo fato de que eles precisaram fugir. Talvez eles se sentissem culpados por terem me deixado para trás.
Annabelle assentiu, mexendo novamente no colar.
— Faz sentido. Então o que é que você deve fazer?
— Deus me dê forças para mudar o que posso mudar, a coragem para aceitar o que não pode ser mudado e a sabedoria para reconhecer a diferença. Minha mãe e meu irmão são duas daquelas coisas que eu não posso mudar, então, preciso deixar isso para trás. — A saída deles estava se aproximando. Ele ligou o pisca-pisca e começou a trocar de pista.
Ela franziu o cenho para ele:
— E o tiroteio? Como você deve lidar com isso?
— Dormindo oito horas por dia, me alimentando bem, bebendo muita água e fazendo exercício moderadamente.
— E funciona?
— Não sei. Na primeira noite entrei em um bar e bebi quase até desmaiar. Digamos que eu ainda sou um trabalho em andamento.
Ela, finalmente, sorriu.
— Eu também — ela disse baixinho. — Eu também.
Ela não voltou a falar até ele parar o carro na frente do prédio. Quando falou, sua voz estava enfraquecida. Ela simplesmente parecia cansada. Pôs a mão na maçaneta.
— A que horas sairemos de manhã? — perguntou.
— Eu venho apanhar você às dez.
— Está bem.
— Leve coisas para passar uma noite. Nós acertaremos todo o resto. Ah, e Annabelle... para embarcar no avião, você vai precisar de uma identidade válida com foto.
— Sem problemas.
Ele arqueou uma sobrancelha, mas não insistiu.
— Não vai ser tão ruim — ele se viu dizendo. — Não deixe as matérias enganarem você. Catherine é uma mulher como qualquer outra. E nós vamos apenas conversar.
— É, acho que sim. — Annabelle abriu a porta e desceu na calçada. No último instante, porém, ela se virou novamente para ele.
— No começo — ela disse baixinho —, quando vi a mim mesma declarada morta no jornal, fiquei aliviada. Estar morta significava que eu podia relaxar. Estar morta significava que eu não precisava mais me preocupar com algum misterioso bicho-papão me perseguindo. Estar morta fez com que eu me sentisse um pouco eufórica.
Ela fez uma pausa, respirou fundo e o olhou nos olhos.
— Mas não é assim, é? Você, a sargento Warren e eu não somos as únicas pessoas que sabemos que não era o meu corpo naquela cova. O assassino de Dori também sabe que sequestrou a minha melhor amiga no meu lugar. Ele sabe que eu ainda estou viva.
— Annabelle, faz vinte e cinco anos...
— Eu não sou mais uma menininha indefesa — ela completou.
— Não, não é. Além disso, nós não sabemos se o criminoso ainda está na ativa. A câmara estava abandonada. Isso quer dizer que ele pode ter sido preso por outro crime, ou, eis uma ideia, talvez ele tenha feito um favor ao mundo e morrido. Nós ainda não sabemos. Não sabemos.
— Talvez ele não tenha parado. Talvez ele tenha se mudado. A minha família estava sempre fugindo. Talvez fosse porque alguém estava sempre nos perseguindo.
Bobby não tinha uma resposta para essa observação. A essa altura, qualquer coisa era possível.
Annabelle fechou a porta. Ele baixou o vidro para monitorar a situação enquanto ela abria a porta do prédio. Talvez ele também estivesse ficando um pouco paranoico, porque ficou olhando para cima e para baixo na rua, conferindo cada sombra, se certificando de que não havia qualquer movimento.
A porta externa se abriu. Annabelle se virou, acenou e entrou no corredor iluminado. Ele ficou olhando enquanto ela fechava bem a porta atrás de si e começava a abrir a porta interna. Então, essa porta também se abriu e se fechou, e ele a viu de costas pela última vez antes de ela começar a subir as escadas.
capítulo 16
Bobby chegou novamente atrasado à reunião da força-tarefa. Não tinha biscoitos desta vez, mas os outros policiais estavam ocupados demais prestando atenção ao detetive Sinkus para se importar com ele. Como prometido, Sinkus havia se reunido com George Robbards, o atendente do 3º Distrito que havia servido em Mattapan de 1972 a 1998. Aparentemente, Robbards tinha muito a dizer sobre o suspect du jour preferido deles, Christopher Eola.
— O corpo da enfermeira foi encontrado amordaçado com uma fronha que saiu do almoxarifado do hospital. O relatório do legista apontou que ela foi torturada antes da morte, que foi por asfixia manual. Originalmente, a investigação se concentrou em um antigo namorado de Lovell, com quem ela havia rompido recentemente, e dois funcionários do hospital. A teoria era de que nenhum paciente poderia ficar tanto tempo desaparecido sem que alguém notasse. Além disso, o grupo mais lógico de suspeitos entre os pacientes seria o da ala de segurança máxima, e, segundo o administrador chefe, a maioria deles estava sempre drogada demais para realizar algo tão sofisticado.
— O namorado foi descartado logo, pois tinha um álibi para o horário em questão. Três funcionários foram ouvidos, mas a única coisa que apresentaram foi o nome de Christopher Eola. Parece que toda vez que um funcionário era questionado sobre os pacientes, ele acabava dizendo: “Ah, nenhum dos nossos pacientes poderia ter feito alguma coisa dessas, bem... a não ser o Eola”.
— O detetive encarregado da investigação foi Moss Williams, que falou quatro vezes pessoalmente com o senhor Eola. Mais tarde, Williams disse a Robbards que, depois de cinco minutos falando com Eola, soube que havia sido ele. Não sabia como, não sabia se conseguiriam provar, mas disse que não tinha dúvidas de que Eola havia matado Inge Lovell. William disse que apostaria o distintivo nisso.
— Infelizmente, isso e nada eram a mesma coisa. Eles nunca conseguiram montar um caso. Ninguém viu coisa alguma, Eola nada admitia e não havia provas físicas. O máximo que Williams podia fazer era aconselhar os funcionários a manterem Eola sob controle mais rígido.
— Logo depois, Eola liderou uma espécie de rebelião de pacientes no Prédio I e finalmente conseguiu ser transferido para Bridgewater. Williams só soube disso quase um ano depois, e ficou furioso. De acordo com Robbards, Williams acreditava que eles poderiam ter usado a transferência para Bridgewater como barganha. Talvez tivessem feito algum tipo de acordo com Eola para que pelo menos o sofrimento da família Lovell pudesse ter sua conclusão. Mas não houve jogo. Aparentemente, o Hospital Psiquiátrico de Boston preferia lidar com seus problemas sozinho e sem o conhecimento do público.
Sinkus limpou a garganta, largando o relatório, com uma expressão de expectativa. A maioria dos colegas detetives estava olhando para ele com ar intrigado.
— Não estou entendendo — McGahagin disse. Ele parecia ter diminuído o café; a voz perdeu o tom que denotava excesso de cafeína, embora ainda tivesse no rosto a palidez de alguém que andava passando muito tempo embaixo de lâmpadas fluorescentes. — Nós estamos realmente pensando que um dos pacientes do hospital fez isso? Admito que examinar os malucos locais faz sentido. Mas, como você disse, os pacientes com histórico de violência estavam supostamente presos. E, mesmo que um deles tivesse saído, como sairia do complexo para raptar não uma, mas seis garotas? E, então, teria de voltar para o complexo. E preparar uma câmara e passar algum tempo lá embaixo. E ninguém veria?
— Talvez ele não fosse mais um paciente — Sinkus disse. — Robbards tinha mais uma coisa interessante para contar. No começo dos anos 1980, ele começou a notar uma tendência perturbadora: animais de estimação desaparecidos. Montes e montes de animais de estimação desaparecidos. Agora, quando o Fofinho e o Fido desaparecem no subúrbio, as pessoas pensam nos coiotes. Mas ninguém acredita que haja predadores de quatro patas agindo no meio das ruas asfaltadas de Mattapan. Nem mesmo em um terreno de quarenta hectares.
— No que você está pensando? — D.D. pressionou.
Sinkus encolheu os ombros.
— Todos sabemos que alguns assassinos começam atacando animais. E sempre intrigou Robbards que, no mesmo ano em que o hospital fechou as portas para sempre, os animais locais de repente pareceram se tornar vítimas. Meio que faz pensar. Para onde foram todos aqueles pacientes que recebiam tratamento no Hospital Psiquiátrico de Boston quando ele fechou? Todos ficaram magicamente sãos? Mais ainda, estou achando que estamos atrás de um antigo paciente do Hospital Psiquiátrico de Boston. E, se vamos olhar para ex-pacientes, Christopher Eola precisa estar no topo da lista. Conforme todos os relatos, ele é perspicaz, engenhoso e já havia se safado do assassinato de Inge Lovell.
— Muito bem — disse D.D., espalmando as mãos. — Você me convenceu. Então por onde anda o senhor Eola ultimamente?
— Não sei. Deixei um recado com a superintendente do hospital de Bridgewater há uma hora. Estou esperando o retorno.
D.D. pensou na questão.
— Faça uma visita pessoal. Não é a primeira vez que ouço o nome de Eola hoje.
D.D. começou um breve resumo da conversa que ela e Bobby tiveram com Charlie Marvin. Ela dividiu as preocupações do pastor sobre Eola, bem como sobre o ex-funcionário Adam Schmidt. Então, respirando muito fundo, D.D. mencionou o aparecimento de Annabelle Granger.
A força-tarefa passou do silêncio embasbacado ao alvoroço completo em menos de dez segundos.
— Opa! Opa, opa, opa! — a voz áspera de McGahagin finalmente interrompeu o falatório. — Você está nos dizendo que temos uma testemunha?
— Humm, palavra muito forte. Bobby? — D.D. se virou para ele tranquilamente, com o olhar perfeitamente firme, como se não estivesse atirando um monte de merda no colo dele. Ele deu um meio sorriso irritado para ela e começou a resumir três dias de atividades secretas em três pontos importantes para consideração da força-tarefa.
Um, Annabelle Granger ainda estava viva e os restos encontrados com seu pingente gravado provavelmente pertenciam à sua amiga de infância Dori Petracelli.
Dois, isso limitava a linha do tempo ao outono de 1982, quando havia provas de um suspeito branco estar perseguindo a pequena Annabelle, de 7 anos de idade e, depois, provavelmente ter sequestrado Dori como substituta, após a família Granger ter fugido para a Flórida.
Três, havia o detalhe altamente complicado, perturbador e irritante de que Annabelle Granger era a cópia perfeita de outra jovem, Catherine Gagnon, que foi sequestrada e mantida em um poço subterrâneo em 1980, dois anos antes de Dori Petracelli desaparecer. No entanto, o raptor de Catherine, Richard Umbrio, havia sido preso no começo de 1982, o que significava que ele não podia estar envolvido no caso de Annabelle.
Bobby parou de falar. Os colegas policiais ficaram olhando fixamente para ele.
— Enfim — ele disse de repente. — Isso é mais ou menos o que eu penso.
O detetive Rony Rock falou primeiro.
— Puta merda! — ele exclamou. Parecia pior do que na noite anterior. Seriam as horas excessivas de trabalho ou a situação da mãe dele?
— Mais uma observação inteligente.
McGahagin se virou para D.D.:
— Você ia nos falar sobre isso?
Ponto para McGahagin.
— Eu achei que era importante checar a história de Annabelle primeiro — D.D. respondeu com firmeza —, levando em consideração seu impacto desconcertante sobre a nossa investigação. Ela mesma não tinha como apresentar qualquer documento. Por isso, o detetive Dodge passou as últimas vinte e quatro horas confirmando os detalhes. Agora estou disposta a acreditar nela. Infelizmente, ainda não sei o que nada disso significa.
— Podemos acrescentar a informação ao perfil do nosso suspeito — Sinkus falou. — Estamos definitivamente procurando por um predador metódico com abordagem ritualizada. Ele não rapta simplesmente suas vítimas... ele as persegue primeiro.
— E que pode estar de alguma forma ligado a Richard Umbrio — outro detetive pensou em voz alta. — Podemos falar com Umbrio?
— Está morto — disse Bobby, sem dar detalhes.
— Mas você disse que ele estava na cadeia.
— Em Walpole.
— Então talvez eles ainda tenham seus objetos pessoais. Incluindo a correspondência?
— Vale uma tentativa.
— E quanto a Catherine Gagnon? Alguma ligação entre ela e Annabelle Granger?
— Não que tenhamos conseguido determinar — Bobby disse. — Mas marcamos um encontro entre as duas para amanhã à tarde. Talvez depois que as duas se vejam pessoalmente... — Ele encolheu os ombros.
Dois membros da força-tarefa o estavam observando agora. Detetives tinham uma memória incansável para detalhes, como o de que dois anos antes o policial Dodge estivera envolvido em um tiroteio fatal cuja a vítima era um homem chamado Jimmy Gagnon. Certamente que o sobrenome não era apenas uma coincidência.
Mas eles não perguntaram, e ele não disse nada.
— Charlie Marvin viu Annabelle no terreno do Hospital Psiquiátrico de Boston — D.D. estava dizendo. — Disse que a achou familiar. Eu falei com ele novamente depois de Annabelle ir embora e tentei conseguir mais detalhes. Talvez tivesse visto ela ou alguém que se parecesse com ela em Mattapan. Mas ele foi vago. Disse apenas ter achado por um instante que a reconhecia de algum lugar, uma daquelas impressões passageiras. Não sei se há algo mais significativo aí ou não. Annabelle era apenas uma criança quando o hospital psiquiátrico fechou, de modo que uma ligação real entre ela o local...
— Não é provável — Sinkus completou para ela.
— Não, eu acho que não.
A sala da força-tarefa ficou em silêncio.
— Então, em que ponto estamos? — McGahagin perguntou, tentando concluir a reunião.
— Indo atrás de Christopher Eola — propôs o detetive Sinkus.
— Finalizando nosso relatório sobre meninas desaparecidas — D.D. acrescentou, olhando enfaticamente para McGahagin. — E — sua voz ficou conciliatória, mais pensativa — concentrando a linha do tempo de 1980 a 1982. Sabemos que o hospital psiquiátrico fechou em 1980. Sabemos, graças ao detetive Sinkus, que animais começaram a desaparecer em Mattapan, o que é uma interessante questãozinha paralela. Também sabemos que ao menos um criminoso, Richard Umbrio, teve a ideia de aprisionar uma menina em um poço subterrâneo. E sabemos que, no outono de 1982, um homem estava perseguindo uma menina em Arlington e que a melhor amiga dela desapareceu pouco depois, a quarenta quilômetros de distância, em Lawrence. Temos motivos para crer que esses acontecimentos estão relacionados, ainda que pela proximidade de tempo, então vamos fechar essa história. Sinkus, você fica com Christopher Eola, desde o instante em que ele deixou o Hospital Psiquiátrico de Boston. Para onde ele foi, o que ele fez? Onde ele está agora? McGahagin, a sua equipe pode finalizar a lista mais ampla das meninas desaparecidas. Quero que se concentrem em todos os nomes do começo dos anos 1980, resumam os detalhes de cada caso e comecem a procurar por quaisquer ligações, e eu quero dizer quaisquer ligações, entre as meninas desaparecidas. Quantos nomes vocês têm?
— Treze.
— Muito bem, comecem a procurar. Vejam se conseguem relacionar qualquer uma das meninas desaparecidas a Mattapan, Christopher Eola, Richard Umbrio ou Annabelle Granger. Eu quero saber se alguma das famílias se lembra das filhas recebendo presentes anônimos antes de desaparecerem, de algum incidente de voyeurs na vizinhança, esse tipo de coisa. Vamos partir do princípio de que o caso de Annabelle nos dê um modus operandi e ver se algum dos outros se encaixa no padrão. Quanto à ligação com Catherine Gagnon... Bobby e eu vamos voar para o Arizona amanhã para nos encontrarmos pessoalmente com ela. O que dá a Bobby exatamente — D.D. olhou para o relógio — mais doze horas para descobrir quaisquer ligações entre Richard, Catherine e Annabelle. Muito bem, pessoal, era isso.
D.D. empurrou a cadeira para longe da mesa. Pouco depois, os demais fizeram o mesmo.
Bobby acompanhou D.D. para fora da sala. Ele não falou até os dois estarem na relativa privacidade da sala dela.
— Bela emboscada — ele comentou.
— Você se saiu bem. — D.D. nunca fora de se desculpar. Mesmo ali, parecia mais impaciente do que qualquer coisa. — O que foi?
— Comecei a pensar em uma coisa esta noite.
— Que bom para você, Bobby. Eu estou cansada, com fome e seria capaz de vender a minha alma por uma ducha. Só que faltam cinco minutos para a reunião com o superintendente-adjunto, em que preciso convencê-lo de que fizemos progressos importantes em uma investigação sobre a qual eu sinceramente acho que sabemos menos hoje do que sabíamos ontem. Não fale assim comigo. Estou cansada pra caralho.
Ele fez um gesto com os dedos — o menor toque de violino do mundo em solidariedade.
Ela se sentou pesadamente e fez uma careta para ele.
— O que foi?
— De acordo com Annabelle Granger, toda a família fugiu no meio da tarde, levando apenas cinco malas. O que aconteceu com a casa?
D.D. piscou para ele.
— Não sei. O que aconteceu com a casa?
— Justamente. Passei duas horas lendo jornais do final de 1982 até 1983. Pense no seguinte: uma casa inteira, completamente mobiliada, subitamente abandonada no meio da vizinhança. Seria de imaginar que alguém perceberia. Mas não consegui encontrar nenhum relato no noticiário ou nos arquivos da polícia.
— No que você está pensando?
— Eu estou pensando que a casa não foi abandonada. Estou pensando que alguém, talvez Russell Granger, tenha voltado para amarrar as pontas soltas.
D.D. se endireitou.
— Para ninguém perceber, ele teria de ter feito isso muito rapidamente — ela refletiu.
— É, estou imaginando que dentro de poucas semanas.
— Mais ou menos quando Dori Petracelli desapareceu.
— Mais ou menos isso.
— Você conferiu em depósitos ou nos registros de imóveis?
— Até agora, nenhum depósito ou negociações de imóveis no nome de Russell Granger.
— Então de quem era a casa de Annabelle em Arlington?
— De acordo com os registros de propriedade, Gregory Badington.
— Quem é Gregory Badington?
Bobby encolheu os ombros.
— Não sei. O nome dele aparece listado como morto. Estou tentando identificar o parente mais próximo.
D.D. fez uma careta.
— Então Russell não era dono da casa. Talvez a alugasse. Ainda assim, você tem razão. Mobília, roupas, objetos. Alguém deve ter dado um jeito em tudo isso. — D.D. pegou um lápis e ficou batendo com a borracha no tampo da mesa. — Tem o número da inscrição da previdência social do senhor Granger? A carteira de motorista?
— Estou fazendo uma busca no Departamento de Trânsito. Vou fazer uma visita ao antigo trabalho dele, o MIT.
— Me mantenha informada.
— Só mais uma coisa. Teríamos de trabalhar com sua colaboração...
— Que seria?
— Seria ótimo sabermos a ordem das vítimas. Como você disse, nós parecemos estar reduzindo a linha do tempo. Acho que precisamos situar cada uma das seis meninas nessa linha do tempo. Acho que faz uma grande diferença saber se Dori Petracelli foi o começo... ou o fim.
D.D. assentiu pensativamente.
— Vou ligar para Christie. Mas não posso garantir nada. Ela tem as limitações dela, e a informação que você quer exige, por definição, que ela tenha analisado todos os seis restos mortais.
— É, eu sei.
— Você vai continuar insistindo no ângulo do Russell Granger?
— Vou.
— Precisamos de mais alguma coisa para amanhã?
— Eu disse a Annabelle que a pegaria às dez.
— Ah, um dia com Catherine Gagnon — D.D. murmurou. — Deus me dê forças.
— Você vai deixar o soco inglês em casa? — ele perguntou friamente.
Ela mal lhe deu um sorriso apertado.
— Agora, Bobby, uma garota precisa de um pouco de diversão.
capítulo 17
Bella e eu corremos. Descemos a Hanover, saímos à direita e percorremos uma miríade de ruas secundárias até chegar à movimentada Avenida Atlantic. Ganhamos velocidade e entramos no Christopher Columbus Park, subindo rapidamente o pequeno lance de escada, voando embaixo da cerca comprida antes de chegarmos ao outro lado, atravessando a rua e entrando no Faneuil Hall. Minha respiração ficou arfante, e Bella estava de língua de fora.
Mas, mesmo assim, corremos. Como se eu pudesse ser rápida o bastante para fugir do passado. Como se eu pudesse ser forte o bastante para encarar meus medos. Como se apenas com força de vontade eu fosse deixar a cova de Dori fora de minha mente.
Chegamos ao Centro do Governo e, então, voltamos para a zona norte, desviando de táxis descuidados, passando pelos ajuntamentos dos sem-teto instalados para a noite, então finalmente voltamos para a Rua Hanover. Então, finalmente diminuímos o passo, arfando, e voltamos mancando para o apartamento. Chegando lá dentro, Bella bebeu uma tigela cheia de água, se jogou na cama dela e fechou os olhos, dando um suspiro satisfeito.
Eu tomei um banho de meia hora, vesti meu pijama e me deitei na cama com os olhos bem abertos. Seria uma longa noite.
Sonhei com meu pai pela primeira vez em anos. Não foi um sonho de ansiedade. Não foi nem mesmo um sonho de raiva, em que ele aparecesse como um gigante onipotente e eu uma pessoa muito pequena, gritando para que ele me deixasse em paz.
Em vez disso, o sonho foi uma cena do meu aniversário de 21 anos. Meu pai havia me convidado para jantar no Giacomo’s. Chegamos pontualmente às 5 horas, porque o restaurante de sucesso tinha poucos lugares e não aceitava reservas. Nas sextas e nos sábados, a fila para uma mesa dava a volta na quadra.
Mas era uma terça-feira tranquila. Meu pai, se sentindo efusivo, pediu uma taça de Chianti para cada um. Como nenhum de nós bebia muito, ambos tomamos nossos vinhos lentamente enquanto mergulhávamos fatias grossas de pão caseiro no azeite de oliva apimentado.
Então, do nada, meu pai disse:
— Sabe, isso faz tudo valer a pena. Vê-la tão bonita, crescida. É tudo o que um pai deseja para a filha, querida. Criá-la, mantê-la segura e ver a adulta que ele sempre soube que ela iria se tornar. Sua mãe ficaria orgulhosa.
Eu não disse nada. Senti um aperto muito forte na garganta. Então bebi mais vinho e comi mais pão. Ficamos sentados em silêncio, e isso bastou.
Dezoito meses mais tarde, meu pai desceria da calçada para o caminho de um táxi que andava em ziguezague. Ele ficou com o rosto tão destruído pelo impacto, que identifiquei seu corpo com base no frasco de cinzas que ainda usava ao redor do pescoço.
Honrei seus desejos cremando seu corpo e misturando suas cinzas com as da minha mãe no meu pingente. Então levei a urna até a beira da água tarde de uma noite sem lua e soltei o restante de suas cinzas ao vento.
Depois de todos aqueles anos, todos os bens que meu pai possuía no mundo ainda cabiam em cinco malas. Seu único item pessoal: uma caixinha contendo 14 esboços de carvão da minha mãe.
Arrumei o apartamento do meu pai em uma tarde. Cancelei os serviços, paguei as últimas contas. Quando fechei a porta do apartamento atrás de mim pela última vez, finalmente compreendi. Eu tinha a minha liberdade. E o preço era ficar sempre sozinha.
Bella subiu na minha cama perto das três. Acho que eu estava chorando. Ela lambeu meu rosto e, então, deu três voltas ao redor de si mesma antes de se enrolar a meu lado. Eu me enrosquei nela e dormi o resto da noite com a bochecha encostada na cabeça dela e os dedos em seus pelos.
Às seis da manhã, Bella quis comer, e eu precisava fazer xixi. Meus pensamentos ainda estavam confusos, e eu tinha olheiras profundas. Devia terminar o projeto em que estava trabalhando, mandar a fatura e arrumar a mala para viajar ao Arizona.
Em vez disso, pensei no dia que tinha pela frente. No encontro com Catherine Gagnon, que todos concordavam que eu não conhecia. No entanto, os policiais estavam dispostos a ir até Phoenix para vê-la comigo.
Os desconhecidos desconhecidos. Minha vida parecia repleta deles.
E então, enquanto escovava os dentes, as engrenagens da minha cabeça finalmente entraram em funcionamento.
Faltando quatro horas para a viagem ao Arizona, eu soube o que precisava fazer a seguir.
A sra. Petracelli abriu a porta e pareceu sair diretamente da minha memória. Vinte e cinco anos depois, continuava em forma, com os cabelos escuros presos em um coque conservador na altura da nuca. Estava usando calças de lã escuras e um suéter de cashmere de cor creme. Com o rosto cuidadosamente maquiado e unhas pintadas com esmalte vermelho, ela era tudo o que eu me lembrava: a esposa italiana bem-arrumada que tinha um orgulho impecável da casa, da família e da própria aparência.
No entanto, enquanto eu estava parada do lado de fora da porta de tela, ela arrancou um fio solto da bainha do suéter, e pude ver que suas mãos estavam tremendo.
— Entre, entre — ela disse alegremente. — Ah, minha nossa, Annabelle, eu não pude acreditar quando você me ligou. É tão bom vê-la novamente. Que linda mulher você se tornou. Nossa, você está igualzinha à sua mãe!
Ela sinalizou para que eu entrasse, mexendo as mãos e a cabeça enquanto me conduzia até uma cozinha cor de manteiga, onde uma mesa redonda esperava com canecas de café quente e um pãozinho doce fatiado. Porém pude sentir a falsa alegria por trás de suas palavras, a fragilidade do seu sorriso. Me perguntei se ela conseguia olhar para qualquer amiga de infância de Dori sem ver o que havia perdido.
Eu havia procurado por Walter e Lana Petracelli naquela manhã, usando a lista telefônica na internet. Eles haviam se mudado da vizinhança de Arlington para Waltham. Gastei uma pequena fortuna de táxi indo até lá, mas pensei que valeria a pena.
— Obrigada por concordar em me ver tão em cima da hora — eu disse.
— Bobagem, bobagem. Sempre temos tempo para velhos amigos. Creme? Açúcar? Gostaria de uma fatia de pão de banana? Fiz ontem à noite.
Aceitei creme, açúcar e uma fatia de pão de banana. Gostei do fato de que os Petracelli haviam se mudado. O simples fato de ficar perto da sra. Petracelli estava provocando um terrível caso de déjà vu. Se eu estivesse fazendo uma visita à antiga cozinha da velha casa, não conseguiria suportar.
— E os seus pais? — a sra. Petracelli perguntou de repente, sentando-se na minha frente e pegando o próprio café, que tomava puro.
— Eles morreram — eu disse baixinho. — Há muitos anos — acrescentei apressadamente, como se isso fizesse diferença.
— Sinto muito por isso, Annabelle — disse a sra. Petracelli, e eu acreditei nela.
— E o senhor Petracelli?
— Ainda está na cama, na realidade. Ah, o preço de envelhecer. Mas ainda fazemos muitas coisas. Na verdade, eu tenho uma reunião às nove na Fundação, de modo que infelizmente não posso conversar por muito tempo.
— A Fundação?
— A Fundação Dori Petracelli. Nós financiamos exames de DNA para casos de pessoas desaparecidas, principalmente casos muito antigos nos quais os departamentos de polícia possam não ter os recursos ou a vontade política para pagar por todos os exames disponíveis atualmente. Você ficaria espantada com quantos esqueletos humanos são simplesmente enfiados em necrotérios ou coisas parecidas, tendo sido arquivados antes do surgimento dos exames de DNA. Há casos em que a nova tecnologia pode ter um grande impacto, porém, são justamente essas vítimas que continuam sendo ignoradas. É uma solução meio sem saída: as vítimas normalmente precisam de um defensor para pressionar uma investigação, mas sem uma identificação, não há uma família para ser a defensora da vítima. A Fundação está trabalhando para mudar isso.
— Que maravilha.
— Eu chorei durante dois anos depois que Dori desapareceu — a sra. Petracelli disse simplesmente. — Depois disso, fiquei com muita, muita raiva. No fim, achei a raiva mais útil.
Ela levantou a caneca e tomou um gole de café. Depois de um instante, fiz o mesmo.
— Eu soube apenas recentemente o que aconteceu com Dori — falei baixinho. — Que ela havia sido sequestrada, desaparecido. Eu sinceramente... não fazia ideia.
— É claro que não. Você era apenas uma criança quando isso aconteceu, e não tenho dúvidas de que tinha suas próprias preocupações para se ajustar à nova vida.
— A senhora sabia sobre nossa mudança?
— Bem, querida, quando os caminhões de mudança vieram e tiraram tudo de dentro da casa, isso ficou bem claro. Dori ficou arrasada. Para ser sincera... ficamos muito surpresos. Certamente que como... bons amigos da família, pensamos que seríamos avisados com antecedência. Mas aquele foi um período muito louco para seus pais. Agora, mais do que nunca, entendo o desejo deles de mantê-la a salvo.
— O que eles disseram?
A sra. Petracelli entortou a cabeça, aparentemente desencavando lembranças dos velhos tempos.
— O seu pai foi até a nossa casa em uma tarde. Ele nos disse que, à luz do que estava acontecendo, ele havia decidido viajar com a família por uns dias. Eu compreendi, é claro, e fiquei preocupada com você. Ele disse que você estava bem, mas que talvez fosse melhor tirarem umas férias para todos se distraírem um pouco.
— Não pensei muito no assunto na primeira semana. Estava ocupada demais mantendo Dori entretida, já que sua ausência a havia deixado um pouco chateada. Então, o telefone tocou uma noite e era seu pai novamente dizendo que não iríamos acreditar, mas ele tinha recebido uma ótima oferta de emprego e decidira aceitá-la. Então, vocês realmente não voltariam, afinal. Na verdade, ele contou que estava acertando para que uma empresa de mudanças simplesmente empacotasse tudo e enviasse para o novo endereço. Ele achava que seria melhor assim.
— Ficamos arrasados. Walter e eu gostávamos muito de sair com seus pais e, é claro, você e Dori eram muito amigas. Confesso que meu primeiro pensamento foi sobre como faríamos para dar a notícia a Dori. Depois, fiquei com um pouco de raiva. Eu achava... eu desejava que seus pais tivessem voltado uma última vez para que vocês duas pudessem ao menos se despedir adequadamente. E eu não era idiota... o seu pai foi muito vago ao telefone, nós nem sequer sabíamos para que cidade vocês haviam se mudado. Embora eu respeitasse que a privacidade fosse um direito dele, me senti ofendida. Nós éramos amigos, afinal. Eu achava que fôssemos bons amigos. Não sei... foi um outono muito, muito estranho.
Ela olhou para mim com a cabeça para o lado, e a pergunta seguinte foi surpreendentemente delicada.
— Annabelle, você se lembra do que estava acontecendo antes da sua família se mudar? Você se lembra da polícia indo à sua casa?
— Algumas coisas. Eu me lembro de encontrar presentinhos na varanda. Lembro que eles deixavam meu pai furioso.
A sra. Petracelli assentiu.
— Eu não sabia o que pensar na época. Nem sei ao certo se acreditava completamente nos relatos iniciais de um voyeur. Por que um adulto iria querer espiar o quarto de uma menininha? Éramos todos muito inocentes naquela época. Apenas seu pai parecia compreender o perigo. É claro que depois que soubemos que um estranho vinha se escondendo no sótão da senhora Watts, ficamos horrorizados. Esse tipo de coisa não deveria acontecer na nossa vizinhança.
— O senhor Petracelli e eu começamos a falar em nos mudar, principalmente depois que sua família foi embora. Era o que estávamos fazendo naquela semana. Havíamos mandado Dori para a casa dos meus pais no fim de semana para que pudéssemos procurar uma casa nova. Havíamos acabado de voltar de uma conversa com um corretor de imóveis quando o telefone tocou. Era a minha mãe querendo saber se conhecíamos o paradeiro de Dori.
— O que você quer dizer? — perguntei. — A Dori está com você. Então houve um silêncio muito, muito longo. E, então, ouvi a minha mãe começar a chorar.
A sra. Petracelli largou a caneca de café. Ela me deu um sorriso suave e tímido e limpou constrangida os cantos dos olhos.
— Nunca fica mais fácil. Dizemos a nós mesmos que vai ficar, mas não fica. Há dois momentos da minha vida que estarão sempre comigo até o dia em que eu morrer: o momento em que a minha filha nasceu, e o momento em que recebi um telefonema dizendo que ela havia desaparecido. Às vezes, eu negocio com Deus. Eu lhe dou todas as lembranças de alegria se ele simplesmente levar embora as lembranças cheias de dor. É claro que não funciona assim. Eu preciso viver com tudo, quer queira, quer não. Aqui — sua voz ficou firme novamente —, pegue mais um pedaço de pão de banana.
Aceitei mais um pedaço. Nós duas agimos no modo automático, usando os rituais da sociedade educada para manter o horror da nossa conversa à margem.
— Houve alguma pista? — perguntei. — Sobre Dori? — Tirei uma noz do pão e a coloquei ao lado da minha xícara sobre a mesa.
— Um dos vizinhos disse ter visto uma van branca na região. O máximo que ele conseguiu lembrar foi que havia um jovem de cabelos escuros curtos e camiseta branca na direção. O vizinho achou que pudesse ser algum empreiteiro que estava trabalhando por ali. Mas ninguém jamais se apresentou. E, em todos esses anos, nenhuma das pistas levou a nada.
Eu me obriguei a encará-lo.
— Senhora Petracelli, meu pai sabia que Dori havia desaparecido?
— Eu... Bem, eu não sei. Eu certamente não contei a ele. Eu nunca mais falei com seu pai depois daquele último telefonema. O que, pensando bem, parece estranho. Mas, com tudo o que aconteceu naquele mês de novembro, nós não estávamos realmente mais pensando em você ou na sua família. Estávamos muito ocupados tentando salvar nossa família. Mas o desaparecimento de Dori estava no noticiário. Principalmente nos primeiros dias, em que vários voluntários estavam se apresentando e a polícia realizava buscas vinte e quatro horas. Não sei se seus pais viram a notícia ou não. Por que pergunta?
— Não sei.
— Annabelle?
Não conseguia mais olhar para ela. Eu não tinha ido até lá para dizer isso. Eu não queria dizer isso. Eu deveria estar fazendo reconhecimento, tentando obter com a sra. Petracelli informações sobre o desaparecimento de Dori e me preparar para a batalha que tinha à frente. Mas, sentada naquela alegre cozinha amarela, não consegui mais. Eu sabia que, quando olhou para mim, ela viu a própria filha, a menininha que nunca chegou a crescer. E sabia que, quando olhei para ela, eu vi a minha mãe, a mulher que nunca chegou a envelhecer. Ambas havíamos perdido muita coisa.
— Eu dei o pingente a Dori — disparei. — Foi um dos presentes. Uma das coisas que ele deixou para mim. Meu pai mandou que eu jogasse fora, mas eu não consegui. Então, eu dei o pingente para Dori.
A senhora Petracelli não disse nada imediatamente. Ela empurrou a cadeira, se levantou e começou a tirar os pratos da mesa.
— Annabelle, você acha que a minha filha foi morta por causa de um pingente bobo?
— Talvez.
Ela pegou minha xícara de café, e em seguida, a dela. Ela as colocou dentro da pia com muito cuidado, como se fossem muito frágeis. Quando voltou, ela se abaixou, pôs a mão no meu ombro e me cercou com seu perfume suave de lavanda.
— Você não matou minha filha, Annabelle. Você era a melhor amiga dela. Você dava a ela uma alegria imensurável. A verdade é que nenhum de nós controla quanto tempo teremos na Terra. Podemos apenas controlar a vida que temos enquanto a temos. Dori teve uma existência amorosa, graciosa e alegre. Eu penso nisso todas as manhãs quando acordo e penso nisso todas as noites antes de dormir. Minha filha teve sete anos de amor. É mais do que algumas pessoas têm a vida toda. E você foi parte disso, Annabelle. Eu agradeço a você por isso.
— Eu sinto muito — eu disse.
— Shhhhh...
— A senhora é tão corajosa...
— Eu estou jogando com as cartas que recebi — disse a sra. Petracelli. — Coragem não tem nada a ver com isso. Annabelle, estou gostando de conversar com você. Não é sempre que consigo falar com alguém que tenha conhecido Dori. Ela desapareceu tão jovem, e há tanto tempo... Mas está na hora, querida. Eu tenho a minha reunião.
— É claro, é claro. — Finalmente eu me levantei da cadeira e me deixei levar pela sra. Petracelli até a porta. No meio do caminho, na sala, olhei para cima e vi o sr. Petracelli descendo a escada, usando calças de tecido escuras, camisa social xadrez azul e colete azul-escuro. Ele olhou para mim, deu uma meia-volta abrupta e voltou escada acima, com uma xícara de café vazia pendurada nos dedos.
Olhei para a sra. Petracelli e vi o rastro da mentira sobre o marido estampado no rosto dela. Eu não disse nada, apenas apertei sua mão.
Na porta, no entanto, uma última coisa me ocorreu.
— Senhora Petracelli — perguntei —, acha que pode me dar uma foto?
capítulo 18
O Aeroporto Internacional de Phoenix era um mar de seres humanos vestindo bermudas brancas, grandes chapéus de palha e chinelos de dedo vermelhos. Passamos por famílias, pessoas viajando a trabalho e grupos de jovens, levando nossas bagagens de mão por um terminal infinitamente longo. A lembrança que eu tinha do Arizona era de fortes cores do sudoeste, bonecas dançantes verdes e potes de terracota vermelha.
Aparentemente, ninguém havia falado de cores a quem projetou o aeroporto. Aquele terminal, pelo menos, era decorado em tons melancólicos de cinza. Pegar a escada rolante para descer foi ainda mais deprimente. Paredes de concreto escuro davam a sensação de se estar em uma masmorra.
Nada disso melhorou meu estado de espírito. Corra, eu ficava pensando. Corra enquanto ainda pode.
Mal havia chegado a meu apartamento depois da visita aos Petracelli quando o detetive Dodge apareceu. Eu o deixei esperando lá embaixo enquanto atirava freneticamente objetos na minha mala de uma noite. Então dei a notícia de que teríamos de deixar Bella no veterinário a caminho do aeroporto. Ele não pareceu se importar, pegou minha mala e abriu a porta de trás do carro para minha cachorra entusiasmada.
— Por que não me chama de Bobby? — ele perguntou no caminho para o veterinário. Deixamos Bella, que me deu um último olhar arrasado antes da assistente do veterinário levá-la embora, e então continuamos o nosso trajeto.
No aeroporto, D.D. estava esperando no terminal com sua expressão carrancuda de sempre.
— Annabelle — ela disse brevemente.
— D.D. — respondi. Ela não piscou diante da familiaridade.
Aparentemente, éramos uma grande família feliz. Até embarcarmos no avião, D.D. abriu sua maleta, de onde tirou diversas pastas, e ficou trabalhando. Bobby não foi muito melhor. Ficou com suas próprias pastas, uma caneta e, ainda, uma tendência a resmungar.
Eu li a revista People de cabo a rabo, então fiquei analisando as opções de produtos pet do Sky Mall. Quem sabe se eu comprasse para Bella seu próprio bebedouro, ela me perdoasse por deixá-la no hotel.
Basicamente, eu tentei me manter ocupada.
Eu nunca havia andado de avião antes. Meu pai não acreditava em viagens de avião. “É muito caro”, dizia. O que queria dizer realmente era muito perigoso. Voar envolvia comprar passagens, e passagens podiam ser rastreadas. Em vez disso, ele confiava em velhos automóveis caindo aos pedaços comprados com dinheiro vivo. Sempre que saíamos de uma cidade, parávamos em algum ferro-velho no caminho. Adeus, carro da família. Olá, nova lata velha.
Desnecessário dizer que alguns desses carros se mostraram mais confiáveis do que outros. Meu pai se tornou um especialista no conserto de freios, na substituição de radiadores e em colar janelas, portas e para-choques com fita adesiva. Agora me espantava que eu nunca houvesse me perguntado antes como um matemático supereducado havia se tornado tão hábil com as mãos. A necessidade é a mãe da invenção? Ou talvez eu simplesmente não quisesse saber todas as coisas que eu não queria saber.
Por exemplo, se um caminhão de mudanças esvaziou nossa antiga casa, por que eu nunca mais vi nenhuma peça da mobília da minha infância?
Finalmente, chegamos à saída do aeroporto. Portas grossas de vidro fumê se abriram. Saímos para o calor envolvente. Imediatamente, um homem vestindo uniforme de motorista veio em nossa direção, trazendo uma placa branca com o nome de Bobby.
— O que é isso? — D.D. quis saber, bloqueando o caminho do motorista.
O homem parou.
— Detetive Dodge? Sargento Warren? Por favor, me acompanhem. — Ele apontou para trás, onde uma limusine preta impecável estava estacionada na pista do meio.
— Quem acertou isto? — D.D. perguntou no mesmo tom tenso na voz.
— A senhora Catherine Gagnon, é claro. Posso ajudá-los com a bagagem?
— Não. Absolutamente não. Não é possível. — D.D. se virou para Bobby, dizendo em uma veemente voz baixa: — O regulamento do departamento é bastante claro ao afirmar que policiais não podem aceitar bens ou serviços de graça. Isto é claramente um serviço.
— Eu não sou policial — eu disse.
— Você — ela disse simplesmente — está conosco.
D.D. voltou a caminhar. Bobby seguiu atrás dela. Sem saber o que fazer, encolhi os ombros timidamente para o motorista perplexo e segui atrás dos dois.
Tivemos de esperar vinte minutos por um táxi. Tempo suficiente para eu ficar com marcas de suor embaixo dos braços e transpirando nas costas. Tempo suficiente para eu me lembrar de que minha família da Nova Inglaterra havia conseguido ficar apenas nove meses em Phoenix antes de fugir para um clima mais fresco.
Dentro do táxi, D.D. deu um endereço em Scottsdale. Comecei a ligar os pontos. Ex-moradora de Back Bay, agora morando em Scottsdale, com uma queda por mandar limusines. Catherine Gagnon era rica.
Imaginei se ela não precisava de cortinas para a casa dela, então tive de tapar a boca para não dar uma risada histérica. Eu não estava mais me sentindo muito bem. Dava para culpar o calor, as companhias, a sobrecarga sensorial da minha primeira viagem de avião. Podia sentir a tensão formando um nó na minha barriga. Os tremores crescentes nas mãos.
Todo mundo queria que eu conhecesse aquela mulher, mas ninguém estava realmente me dizendo por quê. Eu já havia dito que nunca tinha ouvido falar em Catherine Gagnon. No entanto, ainda assim a cidade de Boston estava disposta a pagar para que dois detetives e uma civil voassem 8 mil quilômetros de ida e volta e passassem uma noite em Phoenix. O que Bobby e D.D. sabiam que eu não sabia? E, se eu era tão inteligente, por que já estava me sentindo como um peão do Departamento de Polícia de Boston?
Pressionei a testa contra o vidro quente da janela do táxi. Desejava desesperadamente um copo de água. Quando voltei a olhar para cima, Bobby estava me observando com uma expressão impenetrável. Desviei o olhar.
O táxi virou à esquerda. Subiu e desceu várias colinas empoeiradas e matizadas de vermelho. Passamos por cactos altos, cactos baixos e arbustos. Minha mãe e eu havíamos ficado muito intrigadas quando nos mudamos para cá. Mas nunca nos adaptamos. A paisagem parecia sempre ser a casa de outra pessoa. Estávamos muito acostumadas com montanhas com neve no alto, bosques verdes muito densos e rochas de granito cinza. Nunca soubemos muito bem o que pensar daquela terrível e estranha beleza.
— Diga que a sargento D.D. Warren está aqui — D.D. instruiu.
O taxista obedeceu. Os portões em elaborado estilo rococó se abriram, e nós entramos em uma terra da fantasia repleta de verde. Vi dois metros quadrados de gramado perfeitamente cortado cercado de árvores de folhas largas. Seguimos o caminho sinuoso que levava até uma entrada de carros circular, onde uma fonte azulejada borbulhava em meio a um tapete de flores. O visual formava o cenário perfeito para a imensa casa em estilo de missão espanhola que surgiu diante de nós.
À esquerda: janelas muito altas emolduradas por vigas de mogno escuro instaladas em grossas paredes de adobe. À direita: a mesma coisa, só que este lado incluía também um átrio de vidro e o que eu imaginei se tratar de uma piscina interna.
— Minha Nossa Senhora — murmurei e, vergonha suprema, fiquei realmente curiosa se a misteriosa sra. Gagnon podia precisar de cortinas para as janelas. O tamanho e o escopo das janelas. O desafio. O dinheiro...
— Dólares de Back Bay valem muito no Arizona — Bobby disse levemente.
D.D. apenas olhou para tudo com uma expressão tensa no rosto.
Ela pagou o motorista e pediu um recibo. Subimos o longo e sinuoso caminho que dava em uma das portas duplas maciças de imbuia escura. Bobby fez as honras e bateu. D.D. e eu ficamos paradas lado a lado atrás dele, agarradas às nossas bagagens como convidadas constrangidas.
— Quanto vocês acham que custa regar este gramado? — comecei a tagarelar. — Aposto que ela gasta mais com a equipe de jardinagem todos os meses do que eu gasto com aluguel. Ela se casou de novo?
A porta da direita se abriu. Fomos recebidos por uma mulher hispânica com jeito de matrona e cabelos grisalhos, uma figura baixa e gorducha com péssimo gosto para casacos largos.
— Sargento Warren, detetive Dodge, señorita Nelson? Por favor, entrem. A señora Gagnon vai receber vocês na biblioteca.
Ela pegou nossa bagagem e perguntou se queríamos beber algo depois da nossa longa viagem. Todos entramos no piloto automático, entregando nossos pertences, garantindo a ela que estávamos bem e a seguindo do saguão abobadado para o interior da mansão.
Percorremos um amplo e claro corredor branco cremoso com paredes periodicamente incrustadas com quartetos de azulejos mexicanos. Vigas expostas escuras apoiavam um teto de três metros e cinquenta de altura. Mais tábuas grossas formavam o piso sob nossos pés.
Passamos por um átrio, uma piscina interna, uma bela coleção de antiguidades. Se o lado de fora da casa passava o recado, o interior acrescentava o ponto de exclamação: para Catherine Gagnon, dinheiro não era problema.
Justamente quando comecei a me perguntar que tamanho podia ter um corredor, a governanta virou à esquerda e parou diante de duas portas pesadas de imbuia. A biblioteca, deduzi.
A governanta bateu.
— Podem entrar — respondeu uma voz abafada.
As portas se abriram, e eu vi a famosa Catherine Gagnon pela primeira vez.
capítulo 19
Catherine estava parada diante de uma sequência de janelas banhadas de sol. A brilhante luz de fundo obscureceu seus traços, revelando apenas uma silhueta magra com longos cabelos escuros. Percebi os braços finos cruzados. Os ossos dos quadris magros se projetando sob o cós de uma saia comprida de camponesa. Os ombros arredondados haviam sido deixados à mostra por uma camisa transpassada marrom-chocolate, amarrada na cintura.
Olhei para Bobby. Ele parecia estar olhando para todos os lugares que não para Catherine. Em contraste, ela não conseguia tirar os olhos dele, acariciando o próprio antebraço como se já pudesse sentir os dedos no peito dele. A tensão no interior da sala era palpável, e ninguém disse nada.
— Catherine — Bobby finalmente falou, parando bem distante dela. — Obrigado por nos receber.
— Uma promessa é uma promessa. — Ela olhou brevemente para mim, mas logo desviou o olhar. — Espero que tenham feito uma boa viagem.
— Não temos do que reclamar. Como está o Nathan?
— Muito bem, obrigada. Estudando em uma ótima escola particular. Tenho muita esperança nele. — Ela estava sorrindo, com uma expressão sagaz no rosto enquanto Bobby se mantinha a distância e ela continuava a acariciar o próprio braço. Finalmente, ela se voltou para D.D.
— Sargento Warren — a voz dela ficou gelada.
— Quanto tempo — D.D. comentou.
— E, ainda assim, não foi tempo suficiente.
Ela voltou a olhar para mim, e pode ter sido apenas para marcar a posição de estar ignorando D.D. Mas, desta vez, ela me observou atentamente, olhando do topo da minha cabeça até meus pés e fazendo o caminho de volta. Eu me mantive firme diante do escrutínio, mas estava absolutamente consciente da minha blusa barata de algodão, dos jeans esfiapados e da bolsa amarfanhada. Eu tinha dois empregos só para pagar o aluguel. Cortes de cabelo, manicures e roupas sofisticadas eram luxos adequados a uma dondoca como ela, não para uma raladora como eu.
Ainda não conseguia interpretar a expressão do seu rosto, mas percebi um leve tremor na espinha. Subitamente me dei conta de que aquele encontro estava custando tanto para ela quanto para mim.
Ela se virou rapidamente para a mesa de madeira escura que predominava na sala.
— Vamos nos sentar? — Fez um gesto para as cadeiras de couro e, então, para um senhor mais velho e grisalho que só agora eu percebera que se encontrava na sala. — Detetive Dodge, sargento Warren, conheçam meu advogado, Andrew Carson, que pedi para se juntar a nós.
— Está se sentindo culpada? — D.D. perguntou superficialmente.
Catherine sorriu.
— Apenas católica.
Ela se sentou. Escolhi a cadeira na frente dela. Alguma coisa no jeito como ela jogou os cabelos para trás, de modo ligeiramente desafiador, pouco antes de se sentar, me deu uma sensação de déjà vu. E então, naquele instante, eu entendi. Ela realmente se parecia comigo.
Bobby pegou um gravador e o colocou no meio da mesa. Catherine olhou para o advogado, mas, como ele não protestou, ela também não. D.D. também estava se organizando, arrumando pilhas de papel a seu redor, como uma pequena trincheira. As únicas pessoas que não fizeram nada foram Catherine e eu. Nós simplesmente ficamos sentadas, convidadas de honra daquela festinha estranha.
Bobby ligou o gravador. Disse a data, o local e os nomes dos presentes. Fez uma pausa no meu nome. Começou a dizer “Annabelle”, então se conteve a tempo de trocar para “Tanya Nelson”. Gostei dessa discrição.
Começaram as preliminares. Catherine Gagnon confirmou que havia morado em Boston em tal endereço. Em 1980, ela estava voltando a pé da escola. Um veículo parou ao lado dela, e um homem a chamou pela janela: “Ei, querida. Pode me ajudar? Estou procurando por um cachorro perdido”.
Ela descreveu a subsequente abdução, o resgate e, finalmente, o julgamento de seu sequestrador, Richard Umbrio, em maio de 1981. Falou tudo com a voz sem tom, quase entediada, enquanto repassava rapidamente a sequência de eventos. Uma mulher que havia contado a própria história muitas vezes.
— E depois da conclusão do julgamento, em 1981, a senhora teve a oportunidade de ver o senhor Umbrio novamente? — D.D. perguntou.
O advogado, Carson, imediatamente levantou a mão.
— Não responda.
— Senhor Carson...
— A senhora Gagnon concordou gentilmente em responder a perguntas relacionadas com seu sequestro de outubro a novembro de 1980 — o advogado esclareceu. — Se ela viu o senhor Umbrio depois de 1980, portanto, não está no escopo da entrevista.
D.D pareceu ficar extremamente irritada. Catherine apenas sorriu.
— Quando a senhora esteve com o senhor Umbrio, em outubro e novembro de 1980 — D.D. acrescentou para enfatizar o período —, ele algum dia falou a respeito de outros crimes, abduções ou ataques a outras vítimas?
Catherine sacudiu a cabeça, e acrescentou depois, para registrar na gravação:
— Não.
— A senhora algum dia visitou o Hospital Psiquiátrico de Boston?
Carson levantou a mão novamente.
— Senhora Gagnon, a senhora algum dia visitou o Hospital Psiquiátrico de Boston no outono de 1980?
— Eu nunca sequer ouvi falar no Hospital Psiquiátrico de Boston antes ou depois de 1980 — Catherine respondeu gentilmente.
— E o senhor Umbrio? — D.D. insistiu.
— Se visitou, ele obviamente não mencionou o fato a mim, ou eu teria ouvido falar sobre o hospital, não é?
— E quanto a amigos, confidentes? Umbrio algum dia mencionou alguém que fosse próximo a ele ou talvez tenha levado algum “convidado” ao poço?
— Por favor, Richard Umbrio era uma versão adolescente de abandono. Ele era grande demais, frio demais e simplesmente esquisito demais mesmo aos 19 anos. Amigos? Ele não tinha amigos. Por que acha que ele me manteve viva por tanto tempo?
A afirmação provocou expressões ligeiramente chocadas. Catherine simplesmente abriu as mãos, olhando para nós como se fôssemos idiotas.
— O que foi? Vocês acham que eu nunca me dei conta de que ele ia me matar? Posso dizer com certeza que ele tentava me matar de vez em quando. Ele apertava meu pescoço com os dedos suados, como se estivesse matando uma galinha. Também gostava de me olhar bem nos olhos enquanto agia assim. Mas, então, no último instante, ele me soltava. Bondade? Compaixão? Acho que não. Não de Richard. Ele só não estava preparado para eu morrer ainda. Eu era a companheira de diversão perfeita. Eu nunca reclamava, sempre fazia o que ele mandava. Como se ele fosse conseguir alguma coisa na vida real.
Ela deu de ombros, com a indiferença da voz tornando suas palavras ainda mais penetrantes.
— Ele estrangulava você? — D.D. pressionou. — Com as próprias mãos? Tem certeza disso?
— Absoluta.
— Nunca levou uma faca, usou uma ligadura ou brincou com um garrote?
— Não.
— Você disse que ele a amarrava. Com corda, algemas, outra coisa?
— Corda?
— Um tipo de corda, diferentes tipos de cordas? Nós de preferência?
— Eu não sei. Corda. Ele tinha um rolo inteiro de corda. Era grossa, talvez com um centímetro de espessura. Branca. Suja. Forte. Ele prendia estacas no piso de madeira e amarrava meus membros às estacas. Confesso que na época não reparei nos nós. — Sua voz continuava distante.
— Ele algum dia levou sacos de lixo para o local?
— Sacos de lixo? Como assim? Tipo um saco extraforte?
— Tipo qualquer tipo de saco de lixo.
Catherine sacudiu a cabeça.
— Richard preferia sacolas plásticas de supermercado. Ele levava provisões e/ou comida nelas. Era um campista muito consciente. O que trazia, levava embora. Um verdadeiro escoteiro.
— Senhora Gagnon, a senhora sabe por que o senhor Umbrio a sequestrou?
— Sim.
D.D. vacilou momentaneamente, como se não estivesse esperando aquela resposta, embora tenha sido ela a fazer a pergunta.
— Sabe?
— Sim. Eu estava usando uma saia de veludo com meias na altura dos joelhos. Acontece que Richard tinha fetiche por meninas de escolas católicas. Deu uma olhada e decidiu que seria eu. Não havia ninguém por perto, que sorte a minha.
D.D. e Bobby se entreolharam. Bobby fazia anotações furiosamente enquanto D.D. fazia as perguntas. Imaginei que estivesse catalogando os detalhes do ataque de Catherine para comparar com as vítimas encontradas no Hospital Psiquiátrico de Boston. Mas aquilo os incomodou. Agora os dois estavam encarando Catherine.
— Catherine — D.D. perguntou em voz baixa. — Você havia conhecido Richard antes daquela tarde?
— Não.
— Ele havia por acaso notado você? Ele mencionou se a havia seguido no caminho de volta da escola antes ou ficado observando você no pátio da escola, esse tipo de coisa?
— Não.
— Então, naquela tarde, quando o carro dele virou na rua, foi a primeira vez que você viu Richard?
— Como eu disse, que sorte a minha.
D.D. franziu mais ainda a testa.
— Depois que você entrou no carro dele, o que aconteceu?
— A porta estava emperrada, trancada, não sei. Eu não conseguia abrir.
— Você gritou? Você lutou?
— Eu não me lembro.
— Você não se lembra?
— Não. Eu me lembro de entrar no carro dele. Eu me lembro de ficar... confusa, desconfortável. Acho que tentei abrir a porta e então... eu não me lembro. Policiais e terapeutas me perguntam isso há anos. Eu ainda não me lembro. Imagino que eu deva ter gritado. Imagino que tenha lutado. Mas talvez eu não tenha feito nada. Talvez minha falta de memória seja minha forma de encarar a vergonha. — Seus lábios se curvaram ligeiramente, mas o sorriso constrangido não chegou a seus olhos.
— Do que você se lembra? — a voz de D.D. estava mais suave agora.
— De acordar no escuro.
— Ele estava lá?
— Pronto para a festa.
— No poço?
— É.
— Então ele já havia preparado o poço antes de ver você e decidir atacar?
Bobby e D.D. se entreolharam de novo.
Desta vez, foi Bobby quem falou.
— De acordo com o que você disse mais cedo, Umbrio a pegou por impulso, inspirado pela sua roupa. Então, como ele poderia estar tão preparado?
Catherine olhou para ele.
— O poço não era novo. Ele o havia encontrado um dia caminhando no meio das árvores. Transformou o lugar em uma espécie de esconderijo, onde podia guardar suas revistas pornográficas e ficar longe dos pais. E, é claro, manter sua própria escrava sexual particular. — Ela encolheu os ombros novamente. — Mas eu acho que ele me pegou por impulso? Não. Ele disse isso, mas eu nunca acreditei nele. Ele tinha corda e material para me amordaçar e vendar. Que pessoal normal costuma ter esse tipo de coisa no carro? Richard era um tarado por servidão. Todas as porras das revistas pornográficas que ele tinha eram algo como Piranha vendada ou Bata na bunda dela. Vocês são os especialistas, vocês me digam, mas eu diria que a ideia de ter sua própria gatinha para estuprar vinha crescendo na mente dele fazia algum tempo. Ele tinha a estrutura física para fazer como quisesse. E tinha a localização perfeita. Tudo o que faltava a ela era o personagem relutante. Então, em uma tarde de outubro, ele foi às compras.
— Compras... a palavra é sua ou dele? — D.D. perguntou incisivamente.
— Tem importância?
— Tem.
Catherine arqueou uma das sobrancelhas.
— Eu não me lembro.
— Catherine — Bobby falou, recebendo uma careta de incômodo de D.D., que claramente havia planejado dominar o espetáculo —, quanta experiência você acha que Umbrio tinha quando a abduziu? Você foi a número um, a número três, a número doze?
— Isso é especulação — Carson interferiu.
— Sei disso.
Bobby continuou encarando Catherine. Ela havia posto as mãos em cima da mesa. Estava dobrando e esticando os dedos enquanto pensava no que ele havia perguntado.
— Quer dizer sexualmente? Se ele era virgem?
— Sim.
Por um instante, ela não respondeu.
— Eu tinha doze anos — ela disse afinal. — Não tinha experiência suficiente para julgar esse tipo de coisa. No entanto...
— No entanto — Bobby repetiu quando ela não continuou.
— Como mulher, olhando em retrospecto? Ele estava superansioso no começo. Gozava antes de chegar a penetrar e, então, ficava perturbado e me batia muito para disfarçar o próprio constrangimento. Isso aconteceu com bastante frequência nos primeiros dias. Ele chegava com planos detalhados do que queria fazer, mas ficava tão excitado que ejaculava antes mesmo de começarmos. Com o tempo, no entanto, ele se acalmou. Ficou menos ansioso, porém mais imaginativo. — Ela contorceu os lábios. — Ele aprendeu a ser cruel. Então, se me perguntarem, como mulher olhando em retrospecto, eu diria que ele era inexperiente no começo. Certamente, suas fantasias ficaram mais complexas e exigentes com o tempo, se isso é indicação de alguma coisa.
Ela de repente olhou para mim.
— Você o conheceu?
— Quem? — perguntei, ligeiramente espantada por ter todos os olhos sobre mim.
— Richard. O que você achou dele?
— Eu não... eu nunca... eu não o conheço.
Ela franziu a testa, virando-se novamente para Bobby.
— Pensei que você tivesse dito que ela era uma sobrevivente.
— Ela é. Ela sobreviveu à perseguição de um suspeito desconhecido no começo dos anos 1980. Quem era esse suspeito, se era Umbrio, por exemplo, é o que estamos tentando determinar.
Ela franziu a testa para mim novamente, claramente cética.
— E vocês estão baseando isso no quê? No fato de que acreditam que ela se parece comigo? Sinceramente, não acho que sejamos tão parecidas. — Ela jogou para trás a juba escura sedosa, dando um jeito de empinar os seios no mesmo movimento. Achei que o gesto deixou claro exatamente quais ela considerava serem nossas principais diferenças.
— Você já a havia visto antes? — D.D. questionou Catherine, tentando nos pôr de volta aos trilhos. — A Tanya lhe parece familiar?
— Claro que não.
D.D. me encarou.
— Eu não a vi antes também — confirmei. — Mas façam as contas. No outono de 1980, eu tinha cinco anos de idade. Quais são as chances de eu me lembrar de uma menina de doze?
Me voltei para Catherine:
— Você morava em Arlington?
— Waltham.
— Frequentava a igreja?
— Muito pouco — ela disse.
— Visitava amigos ou parentes em Arlington?
— Não que me chame a atenção.
— E os seus pais? O que eles faziam?
— Minha mãe era dona de casa. Meu pai trabalhava como técnico de manutenção para a empresa de eletrodomésticos Maytag — ela respondeu.
— Então ele viajava.
— Não para a cidade. Seu território de atuação eram os subúrbios. E os seus?
— Meu pai era matemático do MIT — eu disse.
— Que diferente. — Catherine franziu a testa, agora com ar mais especulativo. — Basta para dizer que em 1980 eu duvido que nossos caminhos tenham se cruzado, pelo menos não de qualquer maneira memorável.
— E outros parentes? — Bobby falou. — Levando-se em consideração a, ahn, semelhança familiar.
Catherine apenas encolheu os ombros.
— Você e D.D. estão vendo muita coisa nisso. Nós duas simplesmente parecemos italianas. Deve haver centenas de outras mulheres em Boston que poderiam dizer o mesmo.
Todos olharam para mim. Eu não tinha nada a acrescentar. Sinceramente, eu concordava com Catherine. Não achava que fôssemos tão parecidas assim. Ela era magra demais para começar. E as minhas pernas eram mais bonitas.
A entrevista estava acabando. D.D. fez uma careta perplexa. Bobby estava olhando fixamente para o gravador. O que quer que estivessem procurando, não estavam conseguindo. Imaginei que devesse ser o modus operandi. Estavam tentando comparar Richard Umbrio com meu perseguidor. Só que, de acordo com Catherine, Umbrio a havia raptado como crime oportuno, enquanto a pessoa que havia deixado presentinhos para mim...
As vítimas podiam ser parecidas. Mas os crimes em si eram diferentes.
Como nenhuma nova pergunta foi feita, Catherine espalmou as mãos sobre a mesa como se fosse se levantar.
— Um instante — Bobby disse enfaticamente.
— O quê?
— Pense bem. Catherine, o quanto você tem certeza de que o homem que a abduziu foi Richard Umbrio?
— Como?
— Você era jovem, foi emboscada, ficou traumatizada e, na maior parte do tempo em que esteve com ele, esteve presa no escuro...
— Senhora Gagnon — o advogado começou a dizer com nervosismo, mas Catherine não precisou da ajuda dele.
— Vinte e oito dias, Bobby. Por vinte e oito dias Richard foi a única pessoa que ocupou meu mundo. Se eu comia, era porque ele me levava comida. Se eu bebia, era porque ele se dignava a me levar água. Ele se sentava a meu lado, ele se deitava sobre mim. Ele me fodia segurando minha cabeça entre suas mãos enormes e gritando para eu não virar o rosto.
— Até hoje, eu consigo ver o rosto dele quando ele olhou pela janela do carro. Posso vê-lo envolto pela luz toda vez que ele aparecia na abertura da minha prisão e eu sabia que, finalmente, seria alimentada. Eu me lembro de como ele era sob a luz da lanterna, dormindo feito um bebê, com meu pulso amarrado ao dele para eu não conseguir escapar.
— Não há dúvida na minha mente de que Richard Umbrio me sequestrou vinte e sete anos atrás. E não há dúvida na minha mente de que todos os dias eu sou grata por ter enfiado o cano da arma na boca dele e estourado seus miolos.
Carson, o advogado, arregalou os olhos diante do final da declaração da sua cliente. Bobby, no entanto, apenas assentiu. Estendeu o braço e desligou o gravador.
— Muito bem, Cat — ele disse em voz baixa. — Então nos diga: se Richard Umbrio foi para a cadeia em 1981, quem ficou para construir um poço subterrâneo ainda maior no terreno de um velho hospício? Quem sequestrou mais seis meninas e as enfiou embaixo da terra?
— Eu não sei. E, sinceramente, me sinto um pouco ofendida que você pense que eu sei.
— Nós precisamos perguntar, Cat. Você é o mais perto de Umbrio que conseguimos chegar.
Isso claramente a enfureceu. Desta vez, ela realmente se afastou da mesa, ficando de pé.
— Acredito que isso é tudo.
— Você ficou sozinha com ele no corredor — Bobby continuou incansavelmente. — Ele conversou com você na suíte do hotel. Ele falou de algum amigo? De algum correspondente? Alguém que ele tenha conhecido quando estava na prisão?
— Ele falou exatamente como ia me matar!
— E quanto a Nathan? Richard o sequestrou primeiro. Quem sabe enquanto eles estavam a sós...
— Deixe meu filho fora disso!
— Seis meninas mortas, Catherine. Seis meninas que não saíram do escuro.
— Vá se catar!
— Nós precisamos saber. Você precisa nos dizer. Se Richard tinha um amigo, um cúmplice, um mentor, nós precisamos saber.
Agora, Catherine estava respirando pesado, com os olhos fixos nos de Bobby. Por um instante, eu não soube ao certo o que ela ia fazer. Gritar? Dar um tapa no rosto dele?
Ela pôs as mãos na borda da mesa. E se inclinou para a frente até ficar com o nariz quase colado ao dele.
— Richard Umbrio não teve nada a ver com sua cena de crime. Ele estava na prisão. E, embora ele fosse um filho da puta assassino, ele também era, felizmente para seus propósitos, um solitário. Ele não tinha amigos. Nenhum cúmplice. De uma vez por todas, o assunto aqui está encerrado. Quaisquer outras perguntas que tenham podem ser feitas a meu advogado. Carson.
Obedientemente, Carson distribuiu cartões de visita.
Catherine se endireitou.
— Agora, se nos derem licença, Annabelle... ou Tanya, qualquer que seja o nome dela... e eu temos um compromisso.
— Temos? — eu perguntei com ar de idiota.
— Espere um instante... — Bobby começou.
— Absolutamente não — D.D. disse, se levantando da mesa.
Foi exatamente a veemência da reação dos dois e a possessividade implícita que fizeram com que eu seguisse Catherine.
— Não se preocupem, queridos — nossa anfitriã se virou por cima do ombro para Bobby e D.D. — Eu a trarei de volta antes da meia-noite. — Ela fechou as portas da biblioteca atrás de nós e seguiu pelo corredor.
— Onde estamos indo? — perguntei, precisando apertar o passo.
— Ah, querida... é claro que estou levando você às compras.
capítulo 20
O local escolhido por Catherine para fazer a terapia de compras foi a Nordstrom. O motorista de sua limusine nos deixou na frente da loja. Catherine informou alegremente que ligaria quando precisasse dele, e ele partiu para fazer o que quer que seja que motoristas de limusine fazem entre uma chamada e outra das patroas. Segui Catherine para dentro da loja.
Ela começou sugerindo que comêssemos alguma coisa. Como meu estômago estava roncando alto, não protestei.
Passava das seis, e o café da Nordstrom estava ficando lotado. Fiquei esperando na fila para pegar sanduíche de focaccia com peito de frango grelhado e pesto. Catherine pediu uma xícara de chá.
Ela olhou para meu imenso sanduíche e o acompanhamento de chips de batata doce. Ela arqueou a sobrancelha e, então, voltou a tomar o chá verde. Comi o sanduíche inteiro, o saco de batatas e voltei ao bufê para pegar um pedaço de bolo de cenoura, só por desaforo.
— O que você acha do detetive Dodge? — ela perguntou quando eu estava na metade do pedaço de bolo e, provavelmente, tão adoçada que não perceberia a pontada de desejo que invadira sua voz.
Encolhi os ombros.
— Como policial ou o quê?
Ela sorriu.
— Como o quê.
— Se eu o encontrasse nu na minha cama, não o expulsaria.
— Você o encontrou nu na sua cama?
— Não é exatamente essa a natureza do nosso relacionamento. — Embora a imagem de Bobby nu estivesse durando mais tempo do que eu poderia imaginar para sair da minha cabeça. — Agora, ele e D.D., por outro lado...
— Nunca aconteceu — Catherine disse imediatamente. — Sexo, talvez, mas um relacionamento? Ela é ambiciosa demais para ele. Duvido que vá se conformar com qualquer coisa menos do que um promotor de Justiça interessado em política ou um chefão do crime. Agora, isso seria interessante.
— Vocês duas não gostam muito uma da outra.
Foi a vez dela de encolher os ombros.
— Eu provoco esse efeito nas mulheres. Talvez seja porque durmo com os maridos delas. Mas, também, se os maridos delas não estivessem dormindo comigo, eles estariam simplesmente fodendo com as secretárias. Se você recebesse um fora, não preferiria que fosse com alguém que se parece comigo do que com alguma loira oxigenada com péssimo gosto para sapatos?
— Eu nunca pensei nisso dessa forma antes.
— Poucas pessoas pensam. — Catherine largou o chá. Traçou um desenho aleatório no jogo americano com a unha vermelha do indicador. Quando voltou a falar, estava com a voz baixa, novamente permeada por certa vulnerabilidade.
— Uma vez — ela disse baixinho —, eu convidei o Bobby a se mudar para o Arizona comigo. Eu ofereci tudo a ele: meu corpo, minha casa, uma vida glamourosa de prazer. Ele me rejeitou. Sabia disso?
— Isso foi antes ou depois de ele matar seu marido? — perguntei.
Ela sorriu, parecendo surpresa que eu soubesse desse detalhe.
— Depois. Você andou falando com D.D., não foi? Ela tem obsessão com a ideia de que eu armei para Bobby matar meu marido. Acho que ela leu romances de suspense demais. Já ouviu falar da Navalha de Occam... a explicação mais simples é a melhor?
Sacudi a cabeça.
— Bem, falando simplesmente, Jimmy me batia horrores, Bobby tomou a decisão certa naquela noite, e agora eu estou vivendo feliz para sempre, não dá para perceber?
A voz dela ficou mais dura na última palavra. Ela pareceu perceber isso, pegou a xícara de chá e tomou mais um gole. Fiquei em silêncio por um tempo, apenas absorvendo aquela mulher diante de mim, que se empacotava como um anúncio ambulante de sexo, enquanto eu agora tivesse certeza de que ela não sentia nada havia quase vinte e sete anos.
Foi esse o destino que eu evitei por pouco quando meu pai decidiu fugir? Se foi, por que eu não me sentia mais aliviada? Porque na maior parte do tempo eu me sentia triste. Um sentimento de tristeza profunda e dolorosa. O mundo era cruel. Homens adultos sequestravam menininhas. Pessoas traíam a quem amavam. O que havia sido feito jamais poderia ser desfeito. Era simplesmente como as coisas funcionavam.
Como se estivesse lendo a minha mente, Catherine levantou a cabeça. Ela me olhou nos olhos:
— Por que você está aqui, Annabelle?
— Eu não sei.
— Richard não era o seu perseguidor. Quando você tinha sete anos, ele já estava cumprindo pena de prisão perpétua. Além disso, as fantasias de Richard envolviam intimidação e dominação física. Ele não era sutil o bastante para perseguir.
— Você tinha apenas 12 anos de idade. Não foi culpa sua.
Ela sorriu para mim de verdade.
— Você acha que eu não sei disso?
— E você sobreviveu.
Desta vez, ela deu risada. Um som rouco que fez com que vários clientes do café olhassem em nossa direção.
— Você acha que eu sobrevivi? Ah, Annabelle, você é simplesmente uma graça. Vamos lá, como um alvo de sete anos de idade, certamente que aprendeu alguma coisa.
— Eu sou especialista em kickbox — me ouvi dizendo com firmeza. — Meu pai levava a minha segurança muito a sério... me ensinou autodefesa, princípios de criminologia, quando correr, quando lutar e como saber a diferença. Cresci respondendo a uma dúzia de codinomes diferentes, vivendo em uma dúzia de cidades diferentes. Acredite em mim, eu sei como isso é sério.
— O seu pai ensinou você? — Mais uma sobrancelha arqueada.
— Sim.
— O acadêmico do MIT?
— Exatamente.
— E como seu pai sabia tanto sobre criminologia ou autodefesa?
Encolhi os ombros.
— A necessidade é a mãe da invenção. Não é o que dizem?
Catherine olhou para mim espantada.
— Espere um pouco, espere um pouco — ela disse, quando percebeu que eu estava ficando irritada de novo —, eu não estou tentando tirar sarro de você. Eu quero compreender. Quando tudo isso aconteceu, seu pai...
— Ele levou a minha família para longe. Nós fizemos as malas no meio da tarde, carregamos o carro e desaparecemos.
— Não!
— Sim.
— Com nomes falsos e tudo?
— Exatamente. Não há outra forma de ficar em segurança. O que me faz lembrar que você deveria estar me chamando de Tanya.
Ela acenou com a mão para dispensar meu codinome, claramente despreocupada.
— E seu pai conseguiu outro emprego em uma universidade da Flórida?
— Ele não pôde. Não sem um currículo, e carteiras de motorista falsas raramente vêm com esse tipo de anexo. Ele virou taxista.
— É mesmo? E sua mãe?
Encolhi os ombros.
— Uma vez dona de casa, sempre dona de casa, acho eu.
— Mas ela não protestou? Ela não tentou impedi-lo? Seu pai e sua mãe fizeram isso por você?
Agora eu estava ficando intrigada.
— Bem, é claro. O que mais havia a ser feito?
Catherine se recostou. Pegou o chá. Sua mão começou a tremer, derramando o líquido. Devolveu a xícara de porcelana ao pires.
— Meus pais nunca falaram sobre o que aconteceu — ela disse abruptamente. — Um dia, desapareci. Noutro dia, eu voltei para casa. Nunca falamos sobre o período intermediário. Foi como se aqueles vinte e oito dias tivessem sido uma pequena fração no contínuo espaço-tempo, melhor manter no esquecimento. Ficamos na mesma casa. Eu voltei para a mesma escola. E meus pais retomaram a mesma vida de sempre.
— Eu nunca os perdoei por isso. Eu nunca os perdoei por conseguirem continuar vivendo, trabalhando, respirando, quando tudo me doía tanto que eu tinha vontade de pôr a casa abaixo, tábua por tábua. Eu queria engolir meus próprios olhos. Eu queria berrar e gritar tanto que não conseguia fazer um único som.
— Eu odiava aquela casa, Annabelle. Eu odiava meus pais por não terem me salvado. Eu odiava o quarteirão em que morava. E odiava cada criança da minha escola que havia voltado para casa em segurança no dia 22 de outubro sem tentar ajudar um estranho a encontrar um cachorro perdido.
— E as pessoas falavam pelos cantos, sabe? Contavam histórias a meu respeito no pátio da escola, trocando piscadelas e cutucões no vestiário. E eu nunca disse nada, porque tudo o que eles cochichavam era verdade. Ser uma vítima é uma passagem só de ida, Annabelle. Isso é o que você é agora, e ninguém nunca mais vai deixá-la voltar.
— Isso não é verdade — protestei. — Olhe para você... você não é fraca ou indefesa. Quando Umbrio saiu da cadeia, você não se contentou em se encolher. Você o matou, pelo amor de Deus, e conseguiu mais poder ainda. Você enfrentou o desafio. Você venceu, Catherine. Diferente de mim. Eu sou apenas treinamento sem qualquer experiência. Eu passei toda a minha vida fugindo e nem sequer sei quem é que devo temer.
— Não podemos confiar em ninguém — era o lema preferido do meu pai. Só porque somos paranoicos, não significa que eles não podem nos pegar. Não sei. Talvez meu pai tivesse alguma razão. Parece que é sempre o marido bonitão e charmoso que assassina brutalmente a mulher, o escoteiro tranquilo que é secretamente um assassino em série, o colega de trabalho tímido que um dia abre fogo com uma AK-47. Caramba, eu desconfio do carteiro.
— Ah, eu também — Catherine disse imediatamente. — E prestadores de serviços, funcionários de assistências técnicas e representantes de serviços de atendimento aos clientes. A quantidade de informações que eles têm nas pontas dos dedos é positivamente assustadora.
— Exatamente!
— Eu montei uma empresa laranja — ela disse simplesmente. — Pus tudo no nome da empresa e, pá-pum, deixei de existir no papel. É a única forma de ficar segura. Posso pedir que Carson faça o mesmo por você.
— Obrigada, mas eu não tenho esse tipo de bens...
— Bobagem, é uma questão de segurança, não de dinheiro. Confie em mim nesse aspecto. Vou pedir para Carson acertar as coisas para você. Você precisa pensar no futuro, Annabelle. O verdadeiro truque para garantir a segurança é se manter um passo à frente.
Assenti, mas as palavras dela me deixaram sem rumo rapidamente. Um passo à frente? Do quê? O que o futuro realmente reservava para alguém como eu? Eu havia sido treinada por vinte e cinco anos a viver carregando malas. A mentir. A desconfiar. A não me comprometer com ninguém. Mesmo em Boston, eu tinha apenas um conhecimento passageiro dos meus colegas de trabalho do Starbucks e mal me situava um passo acima de uma faxineira com a maioria dos meus clientes com dinheiro. Eu ia à igreja, mas sempre me sentava no fundo. Nunca queria que me fizessem muitas perguntas. Eu não queria mentir para um homem de Deus.
E, quanto a meu negócio, o que aconteceria se ele realmente deslanchasse, se eu tentasse contratar funcionários? Será que minha identidade falsa aguentaria o intenso escrutínio dos conselhos de concessão de licença e os serviços de referência? Seguia dizendo a mim mesma que eu era otimista. Seguia dizendo a mim mesma que eu estava no controle, que tinha um sonho. Eu não seria peão do meu pai! Mas a verdade era, semana após semana, que eu me esfalfava na mesma rotina com total liberdade de ação. Meu negócio não crescia. Eu não fazia amigos ou namorava sério com ninguém.
Eu nunca iria me apaixonar. Eu nunca teria uma família. Vinte e cinco anos depois de começar a fugir, meus pais estavam mortos, eu estava sozinha e, ainda, estava apavorada.
E, então, compreendi Catherine Gagnon. Ela tinha razão. Ela nunca havia escapado daquele poço cavado na terra. Assim como eu nunca parei de viver como um alvo.
— Preciso ir ao banheiro — murmurei.
— Eu também vou.
— Por favor, só preciso de um minuto.
Ela encolheu os ombros.
— Vou retocar a maquiagem.
Ela me seguiu até o toalete feminino, posicionando-se diante de um espelho com moldura dourada. Entrei em uma das cabines, onde encostei a testa na porta fria de metal e me esforcei para me recompor e reencontrar o foco.
O que era que meu pai sempre dizia? Eu era forte, eu era rápida e tinha um instinto lutador.
O que meu pai sabia? Com todo o seu planejamento, não havia conseguido escapar de um táxi desgovernado.
Apertei os olhos bem fechados e pensei na minha mãe. Na forma como ela acariciava meus cabelos. Na expressão no rosto dela naquela tarde em Arlington em que ela disse que me amava, que sempre iria me amar.
Do bolso, tirei a foto que a sra. Petracelli havia me dado. Tirada em um churrasco realizado no quintal dos Petracelli. Eu estava sentada à mesa de piquenique ao lado de Dori. Nós estávamos sorrindo para a câmera, cada uma segurando um picolé. Minha mãe estava ao lado, fazendo um brinde à câmera com uma marguerita e sorrindo satisfeita para nós. Meu pai estava mais ao fundo, na churrasqueira. Ele também havia notado a câmera, talvez tivesse ouvido o sr. Petracelli dizer “Xis”, e se virara com um enorme e reluzente sorriso nos lábios.
O cheiro de hambúrgueres assando, de grama recém-cortada e de espigas de milho assando. O barulho dos irrigadores dos vizinhos e de outras crianças brincando na casa ao lado.
Pude sentir a nostalgia apertando na garganta e as lágrimas queimando nos olhos. E compreendi por que nunca segui em frente. Porque na maior parte do tempo eu queria voltar. Aos últimos dias de verão. Àquelas últimas semanas em que o mundo ainda parecia seguro.
Sequei os olhos. Apertei a descarga. E me recompus. Por que o que mais se há de fazer?
Fui até a pia, pondo a fotografia cuidadosamente ao lado para que não molhasse enquanto eu lavava as mãos. Catherine se aproximou e olhou para meu reflexo no espelho. Ela retocou o batom e escovou seus longos cabelos escuros.
Lado a lado, nós realmente parecíamos irmãs. Só que ela era a glamourosa, destinada a levar uma vida em meio às estrelas, enquanto eu claramente estava destinada a me tornar a velha louca dos gatos que morava sozinha no final da rua.
Ela baixou o olhar e viu a foto.
— É a sua família?
Eu assenti. E então a senti, mais do que vi, ficar tensa.
— Achei que você tinha dito que seu pai era matemático — ela disse enfaticamente.
— Ele era.
— Não minta para mim, Annabelle. Eu o conheci. Estive com ele duas vezes, na verdade. Sinceramente, você poderia simplesmente ter me dito que ele era do FBI.
capítulo 21
Nós desobedecemos ao toque de recolher. Catherine só me levou ao hotel que Bobby e D.D. haviam reservado à 0h23. Saí cambaleando da limusine, me despedi com um aceno da minha mais nova melhor amiga e caminhei resolutamente até o saguão. Imaginei que Bobby ou D.D. estariam à minha espera. Era Bobby.
Ele deu uma olhada para a minha aparência desgrenhada e constatou o óbvio:
— Você está bêbada.
— Foi só uma taça de champanhe — protestei. — Nós estávamos brindando.
— A quê?
— Ah, você precisava estar lá. — Nós tínhamos ficado brindando a mentiras e aos homens que as contavam, e não fizemos isso com uma taça de champanhe, mas três. Eu estava completamente bebum, bêbada a ponto de me odiar na manhã seguinte. Catherine havia simplesmente suavizado o bastante para me mostrar fotos do filho e sorrir alegremente. Ela tinha um filho lindo. Eu queria ter um filho algum dia. E uma filha, uma menininha encantadora que eu manteria muito, muito segura.
E eu queria sexo. Aparentemente, champanhe me deixava com tesão.
— Você gosta de churrasco? — perguntei a Bobby. Então me peguei cantarolando: — If you like piña coladas, or getting caught in the rain...
Bobby arregalou os olhos.
— Nós nunca deveríamos tê-la deixado sozinha com ela!
Dancei um pouco pelo saguão. Foi complicado coordenar os movimentos de meus pés em conjunto com meu cérebro. Mas achei que me saí bem direitinho. No ringue, sempre fui admirada pela minha agilidade com os pés. Talvez eu começasse a fazer aulas de danças de salão. Era a última moda. Talvez fosse me fazer bem. Praticar algo bonito, livre e atraente. Sabe, em vez de ficar frequentando academias onde homens suados se espancavam até a morte.
É, de manhã, eu viraria uma nova página. Eu iria reclamar meu nome. Annabelle Granger apertaria a mão do primeiro estranho que encontrasse. Caramba, eu postaria meu número da previdência social na internet e incluiria todas as minhas informações bancárias pessoais. Qual era a pior coisa que poderia acontecer?
Bobby tinha belos ombros. Não eram musculosos demais. Nunca gostei disso em um cara. Os ombros de Bobby eram compactos e bem definidos. Ele estava usando uma camisa polo solta e era divertido ver como seus peitorais ondulavam abaixo do tecido de algodão. Eu gostava da forma como ele se movia. Contido, ágil. Como uma pantera.
— Você — ele disse — precisa de água e aspirina.
— Vai cuidar de mim, detetive? — Eu me aproximei. Ele se afastou.
— Ah, meu Deus do céu — ele resmungou.
Sorri para ele:
— O hotel tem piscina? Vamos nadar pelados!
Tive a impressão de que ele efetivamente guinchou.
— Vou ligar para a D.D. — ele declarou, disparando em linha reta na direção do telefone do saguão.
— Ah, não vá estragar a minha diversão agora — saí dizendo atrás dele. — Além disso, você vai querer saber a minha novidade.
Isso o fez parar.
— Que novidade?
— Segredos — sussurrei. — Sombrios segredos profundos de família.
Mas eu não tive chance de contá-los a ele. Naquele exato momento, todas aquelas milhares de minúsculas bolhinhas de champanhe, finalmente, penetraram no meu cérebro, e eu desmaiei.
D.D. não tinha senso de humor. Eu havia suspeitado disso antes. Agora sabia com certeza. Bobby meio que me carregou meio que me arrastou até o quarto de D.D. Nada de deitar romanticamente a pequena preciosa Annabelle. O detetive Dodge me atirou no sofá de D.D. A sargento atirou um copo de água gelada no meu rosto.
Eu me sentei em um salto, esbravejando enlouquecidamente, e saí correndo para vomitar no banheiro.
Quando voltei, ainda cambaleando, D.D. me recebeu com um punhado de aspirinas e uma lata de suco de tomate apimentado.
— Não vomite isto — ela me alertou. — É do minibar e está custando uma fortuna ao Departamento de Polícia.
O suco de tomate caríssimo não era nem um pouco melhor do que o suco de tomate normal. Tentei não ficar enjoada.
— Sente. Fale. — D.D. ainda estava parecendo furiosa.
A essa altura consegui registrar que ela ainda estava completamente vestida, embora passasse da 1 da manhã. Ela estava com o laptop ligado na tomada sobre a mesa, e o celular piscava loucamente, informando ter novas mensagens.
Aparentemente, D.D. não vinha fazendo seu sono de beleza ultimamente, e isso a estava transformando em uma vaca mal-humorada.
Tentei me sentar, o que piorou a náusea. Preferi ir devagar.
Depois, pensando no que aconteceu, me arrependi muito de ter tomado o champanhe. Não por ter passado mal, mas porque baixou minha guarda e me fez falar coisas que uma Annabelle sóbria não falaria.
— Meu pai era um agente infiltrado do FBI — eu disse de repente.
D.D. franziu a testa, piscou e franziu a testa de novo.
— Que diabos você está falando?
— Meu pai. Ele era do FBI. A Catherine o conheceu. Ei, parem de fazer isso!
— Parar de fazer o quê? — Bobby perguntou.
— Parem de se entreolhar. É muito irritante. Não é nem um pouco bacana como vocês parecem achar.
Isso me garantiu um par de sobrancelhas arqueadas.
— Catherine conheceu seu pai? — Bobby perguntou ceticamente.
— Ele foi ao quarto do hospital em que ela ficou internada depois de ser resgatada. — Meu peito praticamente inchou de orgulho. Ou gases. — Ele a visitou duas vezes!
— O seu pai questionou Catherine?
— Sim. Eu estou lhe dizendo, ele era agente do FBI. E é isso que agentes do FBI fazem, eles questionam vítimas de crimes.
D.D. suspirou, esfregou a cabeça e suspirou de novo.
— Vou passar um café — ela disse abruptamente. — Annabelle, você precisa muito ficar sóbria.
— Eu não estou mentindo! Perguntem a Catherine! Ela vai contar a vocês. Ele foi duas vezes ao quarto dela.
— No hospital — Bobby disse.
Assenti com a cabeça. Um movimento mal pensado que quase me fez vomitar de novo.
— Ele disse que era agente especial do FBI e fez todo tipo de perguntas a ela sobre o ataque.
No meio do quarto, D.D. parou, pensou um pouco e começou a andar de novo.
— Todo tipo de pergunta? — ela disse. — Que tipo de pergunta?
— Bem, vocês sabem, perguntas do FBI. Quem a pegou, como ele era, que tipo de carro ele dirigia. Aonde o meliante a levou.
— O meliante?
— Ah, sim, o meliante. Mais as outras coisas que vocês perguntaram. Onde, que tipos de material, quanto tempo ela ficou lá embaixo. O que Umbrio disse, se havia outras vítimas, como ela havia escapado, blá-blá-blá.
O café começou a passar, com o forte aroma repleto de cafeína permeando o ar.
— Ele visitou Catherine duas vezes? — Bobby perguntou.
— Foi o que ela disse.
— Ele mostrou alguma identificação?
— Não sei.
— Havia mais alguém com ele? Mais algum membro das forças policiais? Um parceiro?
— Ela não falou nada sobre haver alguém com ele. — Pus uma das mãos no braço musculoso dele. — Mas acho que parceiros são apenas um mito da TV — eu disse gentilmente. — O FBI de verdade não faz esse tipo de coisa.
— Mas eles têm agentes infiltrados — ele disse com a voz arrastada.
— Ah, sim.
— Que ainda moram em casa com suas famílias?
Do outro lado do quarto, D.D. estava fazendo frenéticos movimentos com a mão para que ele parasse. Isso, mais do que qualquer outra coisa, chamou a minha atenção. Imediatamente, percebi como o que eu estava dizendo parecia ridículo. Imediatamente, me dei conta da verdadeira implicação do que Catherine contara e senti meu estômago pesando e o chão desapareceu abaixo de mim. Só que eu não podia mais passar mal. Eu não podia simplesmente desmaiar. Eu já havia usado minhas melhores jogadas de negação sob a influência do álcool. Não me restavam mais truques.
— Eles têm agentes infiltrados, não têm? — eu me ouvi perguntando. — Quero dizer, eles poderiam...
Minha mão ainda estava no braço de Bobby. Ele, então, a segurou e me levou de volta para o sofá. Sentei pesadamente. Não me mexi.
Ele se sentou na minha frente, na beirada da cama. D.D. me trouxe uma caneca de café.
— O seu pai algum dia disse a você que era agente do FBI? — Bobby perguntou em voz baixa.
Tomei um gole escaldante de café preto e sacudi a cabeça.
— Você algum dia o ouviu dizer a alguém que ele era agente do FBI?
Mais uma negativa, mais um gole amargo.
— Claro que vamos ligar para o escritório local e perguntar — Bobby disse gentilmente.
— Mas...
— É o FBI, Annabelle, não a CIA. Além disso, nenhum agente do FBI que se prezasse chamaria a polícia por algo tão idiota como um voyeur. Primeiro, ele próprio trataria do problema. Segundo, se ele realmente sentisse que havia uma ameaça a ele próprio ou à sua família, ele ligaria para seus companheiros cuidarem dele. O seu pai foi ouvido três vezes por policiais locais e, em nenhuma oportunidade, disse ser um agente. É uma peça importante demais do quebra-cabeça para ele não mencioná-la. Isso... isso não faz nenhum sentido.
— Mas por que ele diria a Catherine que era do FBI? — Eu parei de falar. Finalmente vi a resposta lógica que eles haviam deduzido desde o começo. Porque meu pai queria informações sobre a abdução de Catherine. Informações pessoais de primeira mão, importantes o bastante para ele bancar o agente federal não apenas uma, mas duas vezes.
Em novembro de 1980, meu pai já estava obcecado com violência contra meninas pequenas. Só que, ao menos teoricamente, ninguém havia começado a me perseguir ainda.
Derramei café da caneca e queimei a mão. Usei o fato como desculpa para ir mais uma vez ao banheiro, onde liguei a torneira e fiquei olhando para meu reflexo no espelho. Meu rosto estava cinzento. A testa estava coberta de suor.
Queria vomitar de novo. Mas não teria tanta sorte.
Lavei o rosto com água fria. E de novo. E de novo.
Quando voltei para o quarto, havia transformado meu rosto em uma fachada em que nenhum de nós era burro o suficiente para acreditar.
— Vou para o meu quarto agora — eu disse baixinho.
— Eu a acompanho — Bobby disse.
— Eu gostaria de ficar sozinha.
Bobby e D.D. trocaram olhares desconfortáveis. Eles achavam que eu ia fugir? E, então, me ocorreu: é claro que achavam. Era meu modus operandi, não era? A mulher de múltiplas identidades, a menina que nasceu para fugir.
Só que aquela sinceramente não era eu. Havia sido meu pai.
Liar, liar, pants on fire.[2]
Toda vez que nos mudávamos, minha mãe e eu cometíamos muitos erros. Usávamos os nomes errados, falávamos nas cidades erradas, nos esquecíamos de detalhes-chave. Mas meu pai nunca fazia isso. Ele era sempre tranquilo, fluido e controlado. Como eu pude nunca ter me perguntado como ele havia aprendido a mentir tão bem? Como ele havia aprendido a viver fugindo? Como ele havia aprendido a se adaptar e se reconfigurar com tanta facilidade?
Meu pai sempre tinha dito para não confiar em ninguém. Talvez isso também se aplicasse a ele.
Bobby e D.D. ainda não haviam dito nada. Eu não podia mais esperar. Dei meia-volta e segui em direção à porta.
Eles não me contiveram, nem mesmo quando a porta se fechou atrás de mim e me vi sozinha no corredor.
Por um único instante, pensei a respeito.
Corra. Não é tão difícil. Basta botar um pé na frente do outro.
Mas não corri. Eu caminhei. Lentamente, com muito cuidado, um passo depois do outro, para o quarto que havia sido designado para mim.
Então me deitei completamente vestida na cama do hotel barato. Fiquei olhando fixamente para o teto caiado de branco. E contei as horas que faltavam para o amanhecer, segurando o frasco das cinzas dos meus pais e rezando desesperadamente para encontrar forças para os dias que se seguiriam.
capítulo 22
O despertador de Bobby tocou às 5 horas da manhã. Ele achou muito ruim, e acionou a Soneca. O que deu a ele mais dois minutos, então o telefone tocou. D.D., é claro.
— Você pelo menos dormiu um pouco? — ele perguntou.
— O que é, você é a porra da minha mãe?
— Ora, olhe só, é por isso que você precisa descansar.
— Bobby, nós temos três horas antes de sairmos para o aeroporto. Levante essa bunda e venha até aqui.
Em termos de palavras, ele não achou aquelas muito inspiradoras. Então tomou banho, fez a barba, arrumou a mala e serviu uma caneca de café preto fervendo. Quando chegou ao quarto de D.D., ela parecia estar a 30 segundos de explodir.
Ele achou que ela iria começar mais um sermão. No último instante, porém, ela pareceu se dar conta de como estava errada e preferiu segurar a porta aberta.
O quarto dela parecia ter sido atingido por um furacão. Papéis atirados, café derramado, restos de comida em uma bandeja do serviço de quarto. O que quer que ela estivera fazendo desde a última vez em que Bobby a vira, não havia envolvido nenhum descanso.
— Eu já falei com o gerente do hotel — ela começou a falar rapidamente. — Ele prometeu nos avisar imediatamente caso Annabelle tente fazer o check-out.
Bobby olhou para ela.
— Porque, se Annabelle decidir fugir, naturalmente terá a consideração de antes fazer o check-out formal do quarto...
— Ah, meu Deus...
— D.D., sente-se. Respire. Pelo amor de Deus, você está a um passo de pirar completamente. — Ele sacudiu a cabeça, exasperado. Ela só fez uma careta.
D.D. estava usando as mesmas roupas da noite anterior, agora inteiramente amassadas e cheirando a suor de um dia. Estava com a pele amarelada, os cabelos loiros frisados e os olhos azuis injetados.
— D.D. — ele tentou novamente —, você não pode continuar assim. Bastará olhar para você para o superintendente-adjunto tirá-la do comando e mandá-la para casa. Não basta administrar o esgotamento da equipe. Você precisa administrar o seu.
— Não use esse tom comigo...
— Se olhe no espelho, D.D.
— Eu não vou ser tratada com condescendência por fazer meu trabalho...
— Se olhe no espelho, D.D.
— Quero que saiba que sou daquelas pessoas que não precisam de muito sono.
Ele agarrou os ombros dela e a virou com firmeza para o espelho na parede.
— Puta merda! — ela disse.
— Exatamente.
Ela passou as mãos na juba selvagem de cabelos.
— É a umidade.
— Nós estamos no Arizona.
— Novo creme de cabelo?
— D.D., você precisa dormir. Sem falar em um banho e duas semanas de férias no Taiti. Por ora, porém, tente um banho.
Ela franziu o nariz. Finalmente suspirou, deixando os ombros caírem.
— É que este quebra-cabeças tem tantas peças — ela disse, cansada. — E nenhum deles se encaixa.
— Eu sei.
— Christopher Eola, Richard Umbrio, o pai de Annabelle. Minha cabeça está girando.
Bobby pegou a cadeira da mesa de trabalho e se sentou, cruzando as mãos atrás da cabeça.
— Está bem, então vamos repassar tudo. Novembro de 1980...
— Umbrio rapta uma menina e a enfia em uma câmara subterrânea que encontrou convenientemente no meio do bosque. — D.D. caiu sentada na beirada da cama, inclinando-se para a frente e apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Acreditamos que este seja seu primeiro ato realizado independentemente — disse Bobby.
— Ele combina um perfil solitário com algumas habilidades sociais fora do padrão.
— A vítima dele é escolhida aleatoriamente, um crime de oportunidade.
— Porque ela se veste do jeito certo — D.D. acrescentou.
— Mas também porque está sozinha e cai na conversa dele. A questão é que não há premeditação. Uma diferença-chave entre Umbrio e o criminoso desconhecido que perseguiu Annabelle Granger.
— Catherine foi inflexível quanto a Umbrio preferir as próprias mãos. — D.D. hesitou. — Não posso ter certeza, mas a mim me pareceu que havia alguma coisa ao redor do pescoço das vítimas nos sacos plásticos. Alguma forma de ligadura.
— Ele as amarrou de um jeito extremamente sofisticado — Bobby concordou.
— Mais uma diferença.
— É o que achamos.
— Umbrio só raptou uma vítima — D.D. afirmou.
— O suspeito do Hospital Psiquiátrico de Boston raptou seis. Mas talvez tenha sido uma por vez, então ainda não sabemos isso ao certo.
— É. — D.D. estava assentindo lentamente. Ela parecia ter se recuperado do nervosismo anterior e estar se recompondo. — Então, é claro, temos a pérola a respeito do pai de Annabelle.
— Ah, sim. Também tem isso.
— O pai de Annabelle nos traz de volta à nossa primeira teoria: que alguém se inspirou no crime de Umbrio e pensou em replicá-lo no Hospital Psiquiátrico de Boston. Nós imaginamos que esse “aprendiz” teria chegado a Umbrio na prisão, pessoalmente ou por correspondência. Mas se disfarçar de agente do FBI e interrogar Catherine no hospital funciona da mesma maneira.
— É, funciona — Bobby concordou, fechando a cara.
— Como está a pesquisa sobre Russell Granger?
Bobby fez uma careta.
— Ainda não consegui encontrar uma carteira de motorista ou um número da previdência social. Tentei em vários bancos de dados, com várias grafias. Procurei por Leslie Ann Granger, a mãe de Annabelle. Não consegui nada, nadica de nada.
— Em outras palavras, Russell Granger é um codinome.
— A sua aposta é a mesma minha. Eu consegui falar com uma diretora de pessoal do MIT pouco antes de deixarmos a cidade. Segundo ela, não há qualquer registro de um Russell Granger nos arquivos dos Recursos Humanos. Ela está atrás do antigo chefe do departamento de matemática dos anos 1980 para conferir. Com sorte, poderei falar com ele assim que voltarmos a Boston.
— E a vida na estrada? — D.D. perguntou. — Toda vez que Annabelle e a família davam no pé, devia haver um motivo. Você já rastreou as cidades e conferiu com os departamentos de polícia locais?
Bobby olhou para ela:
— Claro, chefe, é exatamente esse tipo de ligação que eu posso fazer no tempo livre. Entre as 2 e as 4 da manhã.
— Ei, se o trabalho está duro demais para você...
— Ah, cale a boca, D.D.
Ela sorriu para ele. Não havia muita gente que se achasse no direito de mandar D.D. calar a boca ultimamente. Bobby deduziu que fazia parte do seu charme.
Em seguida, porém, ela voltou a ficar séria.
— Bobby, qual era o codinome que o pai de Annabelle havia voltado a usar em Boston?
Ele olhou para ela espantado.
— Russell Granger. Achei que era justamente sobre isso que estávamos falando.
— Não em 1982, Bobby. Depois, quando ele e Annabelle voltaram à cidade. Se ela se tornou Tanya Nelson, então ele se tornou...
— Senhor Nelson? — Bobby ironizou. Folheou o bloco de anotações. Da primeira vez em que ouviram Annabelle na sede do Departamento de Polícia de Boston, ela dera uma visão geral de cidades, codinomes e datas. Ele encontrou essa página de anotações e as leu. Repetiu o processo mais duas vezes. — Eu não... eu não tenho Boston na lista. Annabelle não falou sobre a volta deles.
D.D. levantou uma sobrancelha.
— Omissão interessante, não acha?
— Tem várias cidades e codinomes — ele contrapôs, mostrando a página de anotações para ela. — Qual é, acabamos de nos dar conta de que nós mesmos desconsideramos essa informação.
D.D. continuou parecendo cética.
— Consiga o codinome de Boston, detetive. Pesquise. Talvez Russell Granger tenha ficado fora do radar no começo dos anos 1980, mas quando voltou para uma segunda rodada...
— Tá, certo. Em algum momento, em algum lugar, alguém conheceu esse sujeito.
— Exatamente. Uma última coisa... não diga a Annabelle.
— Eu não disse.
— Não quero abrir todo o jogo. Se Russell Granger é a chave de tudo isso, nossa única ligação com ele é Annabelle. O que quer dizer que vamos precisar da colaboração dela se queremos chegar a algum lugar. — D.D. fez uma pausa. — E precisamos falar com Catherine de novo.
— Você quer dizer eu preciso falar com Catherine de novo — ele corrigiu. — Nada pessoal, mas, como você mesma mencionou, o tempo está passando aqui, e vocês duas levariam metade de um dia só para resolver as agressões. Nós temos — ele olhou para o relógio — mais ou menos duas horas, o que significa que eu vou atrás de Catherine enquanto você fica pajeando Annabelle. — Ele olhou ao redor no quarto. — Talvez você possa colocá-la para fazer faxina.
— Muito engraçado.
— Prometa que vai tomar banho.
— Mais engraçado ainda.
— Vestir roupas limpas?
Bobby estava se levantando da cadeira. Ela deu um soco no braço dele. Como doeu horrores, ele soube que ela estava se sentindo melhor.
— Nos encontramos no aeroporto — ele falou por cima do ombro.
— Mal posso esperar.
Bobby levou dez minutos para pegar a mala, desocupar o quarto e chamar um táxi. O sol estava nascendo, tingindo o céu de um tom atípico de rosa, matizado de vermelho esfumaçado. O trânsito dificilmente seria um problema.
Duvidava que Catherine fosse estar acordada naquele horário. O que poderia funcionar a seu favor, ou não. Ele se perguntou se ela ainda tinha pesadelos e, se os tinha, se seus sonhos eram assombrados por Richard Umbrio. Ou pelo marido morto.
Precisou de duas tentativas para que uma voz atendesse o interfone localizado do lado de fora dos pesados portões da entrada. O taxista arregalou os olhos ao entrar na propriedade, mas não disse nada.
— Pode ficar me esperando? — Bobby perguntou ao motorista, mostrando o distintivo policial.
No mínimo, ele deixou o motorista hispânico corcunda mais nervoso.
— Está tudo certo, você pode deixar o taxímetro rodando — Bobby garantiu. — Assim que minha reunião se encerrar, preciso ir correndo para o aeroporto. Seria bom ter um táxi já me esperando.
O motorista concordou com relutância, e Bobby assentiu com satisfação. Queria que o táxi ficasse visível do interior da casa. Uma sutil lembrança de que Bobby estava apenas de passagem.
A governanta abriu a porta. Ela não demonstrou surpresa com a aparição dele. Apenas disse que a señora estaria com ele em instantes. E perguntou se gostaria de beber alguma coisa.
Bobby rejeitou a oferta e a seguiu até o átrio, de onde ela o levou até uma pequena mesa externa com um tampo de mosaico exibindo um bonito pavão e um jogo de café de prata.
Ele se sentou, serviu uma xícara de café e tentou não olhar para o relógio. Perguntou-se quanto tempo Catherine o faria esperar. Expectativa ou punição? Com ela, era sempre difícil de saber.
A resposta foi 15 minutos.
Quando finalmente apareceu, ela estava usando um robe de cetim azul, amarrado na cintura. O tecido sinuoso se movimentava conforme ela caminhava na direção dele, com a cor profunda destacando os sedosos cabelos pretos. Um sorriso brincou com os cantos da sua boca. Ele reconheceu o visual instantaneamente.
A primeira vez que Bobby vira Catherine depois do tiroteio tinha sido no Museu Isabella Stewart Gardner. Ela estava parada na frente de um quadro de Whistler, Lapis Lazuli, que retratava uma mulher nua deitada sobre um mar de tecido oriental azul. Catherine fizera observações sobre as linhas sensuais do quadro e a natureza erótica da pose.
Ela havia escolhido aquele quadro para perturbá-lo na ocasião, exatamente como havia escolhido aquele robe para perturbá-lo naquele momento.
E, mesmo sabendo disso, Bobby sentiu o estômago apertar em resposta à provocação.
Ela se aproximou dele, fazendo uma pausa diante da mesa. Não se sentou.
— Sentiu minha falta, detetive?
— Ouvi dizer que o café era bom.
Ela abriu o sorriso.
— Ainda bancando o difícil.
— E ainda esperta como sempre — ele reconheceu. — Como está Nathan nesta manhã?
O olhar dela tornou-se sombrio.
— Foi uma noite difícil. Acho que ele não vai para a escola hoje.
— Pesadelos?
— Acontece. Ele está indo a um bom terapeuta agora. Além disso, ele tem um cachorro. Quem diria que o filhote do próprio Richard poderia fazer tanta diferença? Mas o cachorro o acalma, normalmente mais do que eu. Acho que ele está progredindo.
— E você?
Ela olhou para ele com ar divertido.
— Estou velha demais para dizer a um completo estranho como realmente me sinto. — Ela finalmente pegou uma cadeira e se sentou graciosamente. Ele serviu café a ela em uma xícara de porcelana finíssima. Ela aceitou sem dizer nada.
Durante alguns minutos, os dois ficaram tomando café e deixando que o silêncio bastasse.
— Você está aqui por causa de Annabelle — Catherine disse afinal. — Porque eu reconheci o pai dela.
— Foi meio que um choque — ele reconheceu. — O que pode me dizer a respeito?
— O que há para dizer? Eu estava no hospital. Ele entrou no meu quarto. Fez algumas perguntas.
— Ele lhe disse algum nome?
— Não, só que era agente especial do FBI.
Bobby arqueou uma sobrancelha, mas ela largou a xícara de café e olhou muito séria para ele.
— Eu só me lembro dele porque ele não parava de discutir comigo. Eu estava no hospital, feliz por, finalmente, estar sem ninguém por perto, sem me fazer todos os tipos de perguntas ridículas. Como você está se sentindo, Catherine? Do que você precisa? Podemos trazer alguma coisa a você? Sinceramente, eu estava faminta, desidratada e estuprada até a alma. Eu precisava era que todo mundo me deixasse em paz. Então, aquele homem entrou no quarto, vestindo terno escuro e gravata. Não era um homem grande, mas era muito bonito. Ele mostrou o distintivo e anunciou, “agente especial, FBI”. Simplesmente isso. Com autoridade. Eu me lembro de ter ficado impressionada. Ele falou em um tom de voz firme, rígido. O tom de voz que se espera de um agente do FBI.
— O que ele fez, Catherine?
Ela encolheu os ombros.
— Ele fez perguntas. Perguntas de polícia. Do que eu me lembrava do veículo: cor, marca, modelo, placas, interior? Por favor, descreva o homem que estava na direção. Altura, peso, cor, idade, etnia. O que ele disse, o que ele fez? Aonde ele me levou, como chegamos lá, e assim por diante. Então ele me mostrou um desenho.
— Um desenho?
— Sim, um desenho a lápis. Em preto e branco. Bem detalhado, como eu imaginaria que um artista da polícia fosse fazer. Fiquei esperançosa, porque ninguém havia feito qualquer tentativa de identificar meu agressor ainda. Mas o desenho não era de Richard.
Bobby piscou algumas vezes.
— O desenho não era de Richard Umbrio?
— Não, o homem no retrato era menor, com a linha do maxilar mais suave. Quando disse isso ao agente especial, ele não aceitou muito bem.
— Como assim?
— Ele começou a discutir comigo. Talvez eu não me lembrasse direito, estava escuro, eu estava embaixo da terra. Sinceramente, o agente começou a me deixar furiosa. Mas, então, a porta se abriu, uma enfermeira apareceu, e ele foi embora.
— O Senhor Agente Especial simplesmente foi embora?
— Sim. Fechou o caderno e desapareceu.
— A enfermeira disse alguma coisa?
— Não que eu me lembre.
Bobby franziu a testa, tentando juntar essas peças.
— O Senhor Agente Especial deu um nome, informações de contato, um cartão de visitas?
— Não.
— Você mencionou a visita dele a mais alguém? À polícia, seus pais?
Catherine sacudiu a cabeça.
— Todo mundo estava me fazendo perguntas. O que era mais um homem de terno no quarto?
— Mas ele voltou uma segunda vez?
— No dia em que eu ia receber alta. Uma enfermeira estava no quarto medindo a minha pressão. A porta se abriu, ele apareceu. Estava vestido igual à outra vez. Terno escuro, camisa branca, gravata escura. Talvez fosse o mesmo terno, pensando melhor agora. Desta vez, ele mostrou o distintivo para a enfermeira e disse que precisávamos de um minuto a sós. Ela saiu. Ele se aproximou da cama e pegou o caderno dele. Fez todas as perguntas de novo. Seu tom de voz estava mais gentil dessa vez, mas eu gostei menos dele. Todo mundo ficava me perguntando tudo e não me dizia nada. Então, é claro, ele mostrou o desenho de novo.
— O mesmo desenho?
— Exatamente o mesmo desenho. Só que, desta vez, enquanto eu olhava, ele ia mexendo no desenho. Deixou os cabelos mais espessos, acrescentou sombras às bochechas. “E agora?”, ele perguntava. Eu sacudia a cabeça, e ele mexia em mais alguma coisa.
— Espere um minuto — Bobby interrompeu. — Você está me dizendo que o desenho original era algo que ele mesmo havia feito? Não era um desenho oficial da polícia?
— Eu inicialmente deduzi que fosse o desenho de um artista da polícia, mas, ao ver o Senhor Agente Especial em ação, acho que não. As correções dele se fundiam perfeitamente ao primeiro retrato. Quem poderia saber que agentes do FBI tinham esse tipo de talento? — Catherine encolheu os ombros.
— Então, enquanto você observava, ele ia alterando o desenho.
— Sim, mas isso não mudou nada. O homem no desenho não era Richard, e não haveria alterações no penteado que fossem mudar isso. Foi o que eu disse ao Senhor Agente Especial. Ele não aceitou muito bem. Insistiu que eu estava errada. Talvez a pessoa no desenho tivesse engordado, estivesse usando uma peruca.
Catherine entortou um canto da boca com desdém.
— Sinceramente, eu tinha 12 anos de idade. O que eu sabia sobre disfarces? O Senhor Agente Especial me fez uma pergunta, eu dei a minha resposta. No instante em que ele começou a discutir comigo, fiquei furiosa.
— E então o que aconteceu? — Bobby perguntou.
— Eu disse para ele ir embora.
— E ele foi?
Catherine hesitou, pegou a xícara de café e a segurou diante dos lábios.
— Por um instante... por um instante, não tive certeza de que ele iria embora. E me lembro de que, apenas por um instante, comecei a me sentir desconfortável. Mas, então, o servente apareceu e o Senhor Agente Especial desapareceu do quarto. Como dizem, adeus e boa viagem. — Catherine soprou a fumaça do café e, finalmente, tomou um gole.
— Você o viu novamente?
— Não.
— Algum dia mencionou as visitas dele a alguém?
— Algumas semanas mais tarde, quando a polícia finalmente me mostrou uma porção de fotos. Eu identifiquei a foto de Richard imediatamente, bati em cima dela e disse: “Pelo menos vocês estão me escutando”. A polícia não pareceu saber do que eu estava falando. Mas isso não me surpreendeu. Mesmo uma menina de 12 anos percebe que os diferentes tipos de policiais não se dão uns com os outros.
Bobby resmungou diante da afirmativa.
— E quanto a qualquer outra pessoa do FBI? Você chegou a ser entrevistada por algum outro agente do FBI?
— Não.
— E você não achou isso estranho?
Ela encolheu os ombros novamente.
— Por quê? Eu não estava sentindo falta de policiais interessados no meu caso. Todo maldito homem uniformizado queria ouvir todos os detalhes sórdidos. Isso é interessante para vocês? Vocês sentem uma emoção secreta? Ficam sozinhos no escritório batendo punheta enquanto leem as anotações das entrevistas sobre estupros?
Bobby não respondeu. Catherine tinha um motivo para sentir raiva. Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito tantos anos depois. Não havia muito que ela pudesse fazer também.
Depois de um instante, o olhar de Catherine suavizou. Ela voltou a tomar o café.
— Ele era um impostor? — ela perguntou abruptamente.
— O pai de Annabelle?
— É por isso que você está aqui agora? Porque ele mentiu?
— É o que eu gostaria de descobrir.
— Ele a levou embora. Isso deveria significar alguma coisa. Quando a filha dele foi ameaçada, ele a manteve a salvo. A mim, ele me parece mais do que um matemático.
— Pode ser.
Bobby não fez pouco caso do que ela disse por um instante sequer.
— Se ele não era realmente do FBI, por que ir a meu quarto do hospital, por que me fazer tantas perguntas? — ela explodiu. — Por que ficar me mostrando o desenho?
— Não sei.
— Não sabe ou não quer me dizer? — ela soou amarga, então suspirou e pareceu simplesmente deprimida.
— A sua casa é linda — ele disse, afinal. — O Arizona parece combinar com você.
— Ah, dinheiro.
— Fico feliz de saber que as coisas com Nathan estão bem.
— Ele é o amor da minha vida — ela disse com intensidade, e Bobby acreditou nela. Ele sabia melhor do que ninguém até onde ela se dispusera a ir para proteger o filho. Era o motivo pelo qual o relacionamento dos dois seria sempre profissional.
— Obrigado pelo café — ele disse.
— Já está indo embora? — Ela deu um sorriso melancólico, mas Bobby percebeu que não estava surpresa.
— Tem um táxi esperando.
Ele achou que ela iria brigar um pouco com ele, ao menos protestar. Em vez disso, ela se levantou da mesa sem dizer nada e o acompanhou até a porta da frente. Ele ficou tentado a se sentir insultado, mas isso não seria justo com nenhum dos dois.
No último minuto, no saguão, com as imensas portas de imbuia se aproximando, ela tocou no braço dele, chocando-o com a sensação dos dedos dela arranhando sua pele.
— Você vai ajudá-la?
— Annabelle? — ele perguntou, confuso. — É meu trabalho.
— Ela é linda — Catherine sussurrou.
Ele não disse nada.
— Estou falando sério, Bobby, ela é realmente linda. Quando sorri, sorri com os olhos. Quando fala sobre tecidos, de todas as coisas, ela fica eufórica. Eu fico me perguntando...
Catherine parou de falar. Os dois sabiam o que ela queria dizer. Ela se perguntava como teria sido sua vida se um Chevy azul não tivesse virado a esquina, se um rapaz não tivesse pedido que ela o ajudasse a encontrar um cachorro perdido, se uma menina de 12 anos de idade não tivesse se perdido em um poço escuro para sempre.
Bobby segurou sua mão e apertou os dedos dela.
— Para mim, você é linda — ele disse baixinho.
Deu-lhe um beijo no rosto. E foi embora.
capítulo 23
Annabelle estava no aeroporto. Sentava-se a quatro cadeiras de distância de D.D., olhando fixamente pela janela para a atividade na pista, com os braços ao redor dos joelhos. Ela olhou para cima brevemente quando Bobby apareceu e, então, retornou a seu estudo atento de qualquer pessoa que não fosse um detetive investigando seu caso. Ele tomou isso como um sinal e a deixou em paz.
D.D. reconheceu a chegada dele com um aceno de mão. Seus cachos loiros estavam molhados, e as roupas, limpas. Ele interpretou isso como um bom sinal enquanto ela conversava animadamente ao celular, pronunciando uma quantidade tão grande de palavrões que uma mãe que estava viajando com uma criança pequena se levantou e se afastou deliberadamente.
Bobby foi ao Starbucks. Seu estômago não aguentaria nem a ideia de mais café. Comprou três garrafas de água e iogurtes e voltou ao lugar onde elas estavam. Ainda ao telefone, D.D. franziu o nariz para o iogurte — provavelmente estava esperando por uma guloseima qualquer —, mas fez um gesto para que ele deixasse o lanche a seu lado. Ele, então, foi até Annabelle, que, na verdade, se enroscou ainda mais na cadeira.
Ele estendeu o lanche para ela, que o aceitou com relutância. Então, ele se sentou ao lado dela e tirou duas colheres brancas de plástico da sacola.
— Como você está se sentindo?
Ela fez uma careta.
— Precisa de mais aspirina?
— Preciso de uma cabeça nova.
— É, sei bem como é.
— Ah, cale a boca — ela disse, mas se inclinou mais para perto dele para abrir a tampa do iogurte. A corrente que ela sempre usava no pescoço ficou pendurada. Ele ficou olhando para o frasco até que ela, finalmente, ergueu os olhos e corou ao perceber para onde ele estava olhando. Enroscou os dedos ao redor do vidro timidamente, enfiando-o novamente para dentro da camisa.
— De quem é? — ele perguntou baixinho, tendo, finalmente, se dado conta de que o conteúdo se parecia com cinzas.
— Da minha mãe e do meu pai — ela murmurou, claramente não querendo falar a respeito.
Então, é claro que ele seguiu no assunto.
— O que você fez com o resto das cinzas?
— Espalhei. Não fazia sentido enterrá-los com nomes falsos. Parece desrespeitoso demais com os outros mortos.
— Qual era o nome da sua mãe quando ela morreu, Annabelle?
Ela olhou para ele com desconfiança.
— Por quê?
— Porque aposto que de todos os nomes que ela teve ao longo dos anos, há dois de que você se lembra. O de Arlington, e o do dia em que ela morreu.
Lentamente, Annabelle assentiu.
— Minha mãe nasceu como Leslie Ann Granger, mas morreu Stella L. Carter. Eu me lembro desses nomes. Sempre.
— E o seu pai?
— Nasceu como Russell Walt Granger. Morreu Michael W. Nelson.
— Gostei do pingente — ele disse baixinho.
— É mórbido.
— É sentimental.
Ela suspirou.
— Policial bonzinho hoje, detetive? Isso deve querer dizer que D.D. realmente vai me torturar no voo.
Ele sorriu.
— Você sabe que estamos todos no mesmo time aqui, Annabelle. Estamos todos apenas tentando descobrir a verdade. Achei que você seria a pessoa mais interessada em conhecer a verdade.
— Não seja condescendente comigo, Bobby. Para você, é um exercício analítico. Para mim, é a minha vida.
— Do que você tem tanto medo, Annabelle?
— De tudo — ela respondeu simplesmente. Ela tomou o iogurte, se virou e voltou a olhar para os aviões.
— O último codinome conhecido do pai foi Michael W. Nelson — Bobby informou três minutos depois, ao voltar para o lado de D.D.
D.D. olhou ao redor dele para Annabelle, que estava olhando para o lado oposto a eles, indiferente à conversa.
— Excelente trabalho, detetive.
— Ganhei um presente — Bobby disse e fingiu não se sentir um idiota completo.
O voo deles atingiu altitude de cruzeiro. Do outro lado do corredor, Annabelle deitou a poltrona e caiu no sono. Sentada ao lado de Bobby, D.D. se virou para ele com os olhos alegres.
— Encontramos Christopher Eola — ela disse com empolgação. — Ou melhor, confirmamos que ele está desaparecido. Olhe só, Bridgewater o libertou em 1978.
— Ahn?
— É, algum Einstein nunca chegou a prestar queixa contra Eola por liderar uma rebelião de pacientes no Hospital Psiquiátrico de Boston. Assim, embora seus registros médicos contivessem anotações sobre os supostos “incidentes” e a polícia local o tenha listado como “pessoa de interesse” no assassinato de uma jovem, tecnicamente ele não tinha ficha criminal. Bridgewater ficou superlotado, e adivinha a quem eles mostraram a porta?
— Ah, meu Deus.
— Segundo a ficha médica, como ele foi um verdadeiro coroinha em Bridgewater, eles nunca pensaram em consultar a instituição anterior. Na verdade, Bridgewater tem muito orgulho de Eola. Ele é considerado uma verdadeira história de sucesso.
Bobby riu, apenas porque era isso ou bater em alguma coisa. Papelada mal arquivada, burocracias incompetentes. A opinião pública considerava a polícia responsável pelo aumento dos índices criminais. Mas ela mal sabia que deveria era ir atrás dos burocratas do mundo.
— Muito bem — ele disse, se recompondo. — Então, em 1978, Eola voltou ao mundo dos vivos. E daí?
— Ele desaparece.
— Sério?
— Nunca se apresenta à casa de passagem, nunca vai atrás dos benefícios a que tem direito, nunca vai a qualquer encontro de acompanhamento. Em um dia ele existe, no outro, desapareceu.
— Caiu fora ou desapareceu no buraco negro dos abrigos de sem-teto?
— Você está pensando o mesmo que eu. Estou pensando que, considerando seu nível de inteligência, ele se reintegrou à sociedade usando uma identidade falsa. Pense nisso... ele vinha de uma vida privilegiada. Que garoto rico vai se contentar em perambular pelas ruas? Além disso, mesmo no circuito dos sem-teto, as pessoas acabam se tornando conhecidas. Elas vão aos mesmos sopões, dormem nos mesmos abrigos, frequentam a mesma esquina dia após dia. Mais cedo ou mais tarde, alguém como Charlie Marvin, alguém que trabalha ao mesmo tempo com os doentes mentais e os sem-teto, acabaria por reconhecê-lo. Ninguém mais realmente desaparece, nem mesmo nas cruéis ruas de Boston.
— Sim e não. Da última vez que ouvi falar, as autoridades contabilizavam seis mil sem-teto na cidade. Considerando que até mesmo um abrigo grande como o Pine Street Inn atende a apenas cerca de setecentas pessoas, há muita gente cujo rosto não está sendo visto.
— É, mas estamos falando de alguém que conseguiu voar fora do alcance dos radares por quase trinta anos. É muito tempo para se manter invisível. O que também suscita a possibilidade de Eola estar simplesmente morto. — D.D. apertou os lábios e pensou no assunto. — Nós não teríamos tanta sorte. Os verdadeiros malucos sempre vivem para sempre. Você já notou isso ou sou só eu?
— Já notei isso também. — Bobby franziu a testa. — Sinkus conseguiu localizar a família de Eola?
— Fez uma visita a eles ontem à tarde. Na residência deles em Back Bay — ela acrescentou significativamente. — Nem sequer o deixaram entrar. Eis o quanto ficaram contentes de ouvir falar sobre o desaparecido Christopher deles.
— Você já notou que as famílias mais ricas são sempre as mais ferradas, ou sou só eu?
— Já notei isso também. Sabe, existem algumas vantagens nos nossos salários miseráveis. Nós nunca seremos ricos o bastante para nossas famílias serem tão ferradas.
— Exatamente.
— Maravilha das maravilhas, os Eola já solicitaram advogado. Eles não vão responder a perguntas sobre o filho sem um mandado nas mãos e o advogado na sala. Então, Sinkus está trabalhando na papelada. Aposto um dólar que ele terá os sofisticados pais, e seu advogado caríssimo, nas nossas salas esta tarde. Dois copos de café fervendo depois e eles estarão falando, nem que seja para preservar as papilas gustativas.
Ela fez uma pausa.
— Estou imaginando que eles não sabem onde Eola está. Sinkus disse que ficou claro que eles não sentem nada além de desgosto pelo filho. Mas eu gostaria de saber muito mais sobre o incidente que fez com que ele fosse mandado para o Hospital Psiquiátrico de Boston. Seria bom desenvolver um perfil mais robusto a respeito do senhor Eola, ver como o modus operandi da sua juventude é em comparação com as outras coisas que sabemos.
D.D. assentiu para si mesma, já folheando sua pilha de arquivos, com o rosto vermelho, estalando de energia. Nada como dois suspeitos viáveis para deixar a sargento eufórica como uma adolescente.
— Então — ela perguntou rapidamente —, como foi com Catherine?
Bobby recapitulou os pontos mais importantes:
— Catherine diz que falou com Russell Granger duas vezes. Ele se apresentou como Agente Especial do FBI, sem dizer o nome, e suas perguntas eram consistentes com as que os outros policiais estavam fazendo. O detalhe mais interessante: ele levou um desenho feito a lápis do suposto raptor dela.
— É mesmo? — D.D. arregalou os olhos.
— Segundo Christie, o desenho não parecia com Richard Umbrio. O esboço mostrava um gêmeo muito menor. Quando tentou dizer isso a Granger, ele discutiu com ela. Talvez ela não tivesse olhado direito para o sequestrador dela. Ou, talvez, se o homem no desenho estivesse disfarçado, tivesse engordado, talvez ele fosse ficar de acordo com a descrição dela. Esse tipo de coisa.
D.D. continuou de olhos arregalados:
— Ahn?
Bobby suspirou, tentou dobrar os braços atrás da cabeça, mas imediatamente bateu com o cotovelo na janela. Lembrou de por que detestava os minúsculos espaços das poltronas de avião, e ele nem era um homem muito grande.
— Catherine deu a entender que o principal foco de Granger foi em quem a atacou — Bobby pensou em voz alta. — Ele queria uma descrição física, entonações de voz, quaisquer marcas características. Então, mostrou o desenho a ela. Agora, isso poderia ser uma cobertura. Diminuir as defesas dela ao fingir ter um suspeito, quando, na verdade, estava apenas em busca de todos os detalhes relevantes de como ela havia sido abduzida e o que Umbrio havia feito. Se essa era a estratégia dele, funcionou, porque ela nunca percebeu nada.
— Ele faz com que ela fique focada em um aspecto da entrevista — D.D. colaborou —, o desenho, quando, na verdade, noventa por cento das perguntas dele foram sobre o ataque. A versão que usa a entrevista como um truque de mágico.
Bobby sorriu.
— Precisamos dar um crédito a ele. A estratégia se parece com algo que nós faríamos.
— Ótimo, justamente do que precisávamos, um filho da puta psicopata. — D.D. esfregou as têmporas. Suspirou. Esfregou as têmporas de novo. — Alguma chance de Catherine estar inventando tudo isso? Quero dizer, ela está dando muitos detalhes sobre um agente do FBI aleatório que ela só viu duas vezes vinte e sete anos atrás.
— É verdade — Bobby reconheceu. — Acho que o Senhor Agente Especial causou uma forte impressão nela, porém. Por ter levado o desenho de um suspeito e depois ter se tornado tão inflexível que o sujeito no desenho tinha de ser a pessoa que a havia abduzido, mesmo depois de ela ter dito que não era. A reação dele foi inesperada, logo, memorável. Além disso, por que ela iria nos enganar?
— Fez você voltar à casa dela, não fez? Além disso, dá a ela uma participação em uma investigação em andamento. Ela tem um motivo para ligar para você e uma desculpa para me atormentar. Parece bem o estilo dela.
Bobby encolheu os ombros. Todas boas possibilidades, só que...
— Eu acho que ela sinceramente gosta de Annabelle.
— Ah, por favor. Catherine não tem amigos. Amantes, talvez, mas não amigos.
— Eu sou amigo dela — ele contestou.
A sobrancelha arqueada de D.D. fez com que ele soubesse o que ela pensava daquilo. O desentendimento era antigo e intratável. Ele voltou ao assunto em questão.
— Eu acho que ela estava dizendo a verdade. A percepção de que o homem de quem ela lembrava como sendo um agente do FBI insistente era, na realidade, o pai de Annabelle pareceu deixá-la chocada e confusa. Ontem à tarde, ela estava convencida de que não havia qualquer ligação entre o caso dela e o de Annabelle. Esta manhã, por outro lado...
Os dois ficaram em silêncio, pensando e reconsiderando a questão.
Bobby falou, afinal.
— Temos duas possibilidades. Uma, a de que Granger estava enganando Catherine. Ele a enganou apenas para saber detalhes sobre seu rapto sem que ninguém percebesse. Ou, dois, Granger sinceramente tinha um suspeito em mente. E fez um desenho do homem que tinha motivos para acreditar que era o estuprador dela.
D.D. o acompanhou:
— Digamos que ele tivesse um suspeito em mente... por que não informar a polícia a respeito?
— Não sei.
— Além disso, estamos falando de 1980, certo? Dois anos antes da filha de Granger supostamente começar a receber presentes. Então, por que Granger estava tão obcecado com atividades criminosas?
— Um cidadão preocupado?
— Que achou que a melhor maneira de servir à Justiça era se disfarçando de agente do FBI? Pessoas honestas não se disfarçam de policiais.
— Pessoas honestas normalmente estão registradas no Departamento de Trânsito e no sistema de Previdência Social — Bobby observou.
— O que quer dizer...
— Que Russell Granger não é muito honesto.
— E podia muito bem estar pesquisando atividades criminosas para inspirar seus próprios crimes. Sinkus está atrás de Eola — D.D. declarou enfaticamente. — Quero você responsável por Granger. Vá atrás dos vizinhos, encontre esse ex-chefe do departamento de matemática do MIT. Vamos ver que tipo de vida o pai de Annabelle levava em Arlington. Então, se enfronhe na vida deles na estrada. Você tem as cidades e tem as datas. Eu quero saber se a família de Annabelle fugia por causa de algo que Russell Granger temia ou por causa de algo que Russell Granger fazia. Está me entendendo?
Bobby assentiu.
— Devemos seguir com Walpole — ele disse. — Apesar das convicções de Catherine, precisamos conferir a ficha de Umbrio como prisioneiro atrás de informações sobre correspondências prévias, o registro de visitantes, esse tipo de coisa. Precisamos garantir que ele continuou sendo o sujeito ferrado e antissocial que ela conheceu tão bem.
— Concordo.
— Eu... ahn, eu estou bem ocupado envolvido com a história de Granger.
— Tá, tá, tá, vou designar outra pessoa para isso.
— Beleza — disse Bobby.
— Beleza — concordou D.D.
Satisfeita, ela guardou suas pastas e se aninhou na poltrona.
— Boa noite, Bobby — ela murmurou. Trinta segundos depois, estava capotada.
Bobby olhou para o outro lado do corredor, onde Annabelle ainda dormia com a poltrona reclinada e os longos cabelos escuros cobrindo-lhe o rosto. Então, olhou de volta para D.D., que já estava com a cabeça apoiada em seu ombro.
Caso complicado, ele pensou. E tentou descansar um pouco.
capítulo 24
Encontramos o bilhete embaixo do limpador de para-brisa do carro de D.D. no terceiro andar do estacionamento do Aeroporto Logan.
Nenhum de nós havia dito nada desde que desembarcamos, atravessando o terminal, pela entediante passarela, o labirinto de estruturas e calçadas muradas que levavam ao estacionamento central. Do lado de fora estava frio e chovendo. O clima combinava com nosso humor. Eu estava preocupada pensando no meu pai, cheia de perguntas sobre o meu passado, e — ah, sim — a necessidade de buscar Bella no veterinário, que sempre era complicado usando transporte público. Sem dúvida que D.D. e Bobby estavam tendo pensamentos policiais de alto nível, tipo quem havia sequestrado e assassinado seis meninas, se ele havia feito aquilo antes e — ah, sim — como eles poderiam culpar meu pai morto por toda essa bagunça?
Então vimos o bilhete. Papel branco simples. Escrita grossa em tinta preta. Rabiscos feitos a mão.
D.D. imediatamente se posicionou para bloquear a minha visão. As duas primeiras linhas, no entanto, já estavam gravadas na minha mente.
Devolvam o pingente ou
Outra menina irá morrer.
Havia mais texto. Letras menores, montes de palavras seguindo a ameaça inicial. Mas eu não consegui ler. Imaginei que fossem detalhes. Como, exatamente, a polícia deveria devolver o pingente. Ou como, exatamente, outra menina iria morrer. Talvez as duas coisas.
— Merda — D.D. disse. — Meu carro. Como ele sabia...?
Ela fez uma rápida avaliação do espaço asfaltado. À procura do mensageiro? Vi seu olhar se direcionando para os cantos e me dei conta de que ela estava em busca de câmeras de segurança, tentando imaginar quanta sorte poderiam ter. Então, eu mesma olhei ao redor em busca de câmeras de segurança. Eles não tiveram tanta sorte.
Bobby já estava inclinado sobre o capô do carro, examinando a folga de papel, cuidando para não tocar em nada.
— Precisamos tratar o carro como cena de crime — ele disse com a voz tensa.
— Pode ter certeza.
— Nós ficamos fora por quanto tempo? Trinta, trinta e uma horas? Uma janela bem grande para a entrega.
— Eu sei — D.D. entoou, falando com a voz tão tensa quanto a de Bobby.
Ele olhou para mim, por cima do ombro, com a expressão totalmente irritada de novo.
— Ei, vocês não podem culpar meu pai por isso — eu disse.
Ela me olhou com raiva.
— Annabelle, agora seria um bom momento para pegar um táxi.
— Perfeito. Quantos repórteres será que eu consigo encontrar no caminho? Tenho certeza de que eles adorariam ficar sabendo disso.
— Você não ousaria...
— Vão devolver o pingente?
— Um, isto é assunto da polícia. Dois, isso é assunto da polícia...
— Quem escreveu o bilhete? Ele assinou algum nome? Falou em mim? Eu quero ler o bilhete.
— Annabelle, pegue um táxi!
— Não posso!
— Por que não?
— Porque é a minha vida!
D.D. apertou os lábios. Voltou novamente a atenção para o bilhete, ainda intocado no para-brisa do carro dela. Ela não iria me deixar vê-lo. Não iria compartilhar. A força policial era um sistema. Um sistema que não se importava com uma pessoa como eu.
Os minutos foram passando. D.D. leu. Bobby analisou o rosto dela com o olhar impenetrável. Os dois estavam na zona. Eu estava do lado de fora, espiando.
Até eu tenho limites. Desisti e me virei.
— Espere! — D.D. olhou para Bobby. — Vá com ela.
— Ei, eu não preciso de babá.
D.D. me ignorou, ainda falando com Bobby.
— Estou com isso sob controle. Fique com ela.
— Nós precisamos conversar sobre isso... — ele disse calmamente.
— Nós vamos conversar.
— Não quero que faça nada precipitado.
— Bobby...
— Estou falando sério, D.D. Você pode ser a sargento, mas eu fui do time de ações táticas. — Ele enfiou o dedo no bilhete. — Eu sei sobre essas coisas. Isso é balela. Você não vai fazer o que diz aqui.
D.D. fez um sinal com a cabeça para mim.
— Depois — ela murmurou. — Leve-a para casa. Vou reunir a força-tarefa. Depois falamos.
Ele fez uma careta, parecendo claramente cético.
— Depois — ele concordou resmungando, se afastando do Crown Vic não identificado dela, na minha direção. Aproveitei a oportunidade para tentar ver o resto do bilhete. Vi apenas as mesmas duas linhas: Devolvam o pingente ou... Outra menina irá morrer.
Bobby pôs a mão no meu braço, me puxando para longe. Não contestei, mas apenas até estarmos onde D.D. não podia mais nos escutar.
— O que diz o bilhete? — perguntei.
— Nada. Provavelmente é só uma ação de propaganda.
— O público geral não sabe sobre o pingente. A informação nunca foi noticiada.
Aparentemente, nem mesmo o ótimo detetive havia ligado esses pontos ainda. Ele tropeçou, mas se recompôs logo. Seguiu marchando em frente. Havíamos chegado ao elevador. Ele apertou o botão com mais força do que seria necessário.
— Bobby...
— Entre no elevador, Annabelle.
— Eu mereço saber. Isso me envolve.
— Não, Annabelle, não envolve.
— Balela...
— Annabelle. — As portas do elevador estavam fechando atrás de nós. — O bilhete nem sequer fala em você. O autor quer D.D.
Ele me levou em silêncio até o veterinário. Lá, Bella me recebeu freneticamente. Ela rodopiou, pulou, encheu meu rosto de beijos. Eu fiquei abraçada a ela por mais tempo do que pretendia, afundando o rosto na juba do seu pescoço, agradecida pelo seu calor, por seu corpo se contorcendo e sua alegria maluca.
Então, a traidora se virou e saltou em Bobby com igual entusiasmo. Não há lealdade no mundo.
Bella sossegou assim que a botei no carro de Bobby. Ela gostava de andar de carro como qualquer cachorro, correndo para perto da porta do passageiro para que pudesse decorar o vidro com marcas de focinho. Ela já havia deixado um rastro de pelos brancos por todo o assento recém-limpo. Isso fez com que eu me sentisse melhor.
Chegando a meu edifício, Bobby estacionou em local proibido e foi até o lado do carona. Abri a porta sozinha, fazendo uma declaração bastante enfática. Ele simplesmente desviou a atenção para Bella, que é claro saiu pulando do carro e se enroscou nas pernas dele, ignorando a chuva.
— É sempre um prazer ajudar a uma dama — ele disse, dando tapinhas na cabeça dela.
Tive vontade de bater nele. Esmurrá-lo. Chutar e gritar como se tudo fosse culpa dele. A violência dos meus próprios pensamentos me assustou. Caminhei com passos vacilantes até o prédio, mexendo nas chaves com dedos trêmulos.
Bella subiu correndo as escadas que levavam ao apartamento. Eu a segui em um ritmo mais lento, tentando me recompor enquanto abria as portas, conferia a caixa de correio e fechava tudo atrás de mim. Estava com uma sensação de aperto no estômago. Uma necessidade infantil de parar e chorar. Ou, melhor ainda, de arrumar cinco malas.
Meu pai havia se disfarçado de agente do FBI e entrevistara uma jovem vítima de sequestro dois anos antes de eu ser perseguida. Minha melhor amiga havia sido morta em meu lugar. Alguém, vinte e cinco anos depois, estava agora exigindo a devolução do meu pingente.
Minha cabeça estava doente. Ou, talvez, fosse meu coração.
Já no meu apartamento, Bobby fez a ronda. Seus movimentos fluidos deveriam ter feito com que eu me sentisse melhor. No entanto, a necessidade dele de garantir a segurança do meu apartamento apenas aumentou a minha ansiedade quando me dei conta de que, antigamente, seria exatamente isso que meu pai teria feito.
Quando Bobby terminou, acenou rapidamente com a cabeça, me dando permissão para entrar na minha própria casa, e se posicionou apoiado no balcão da cozinha. Ele observou enquanto eu realizava minha rotina de volta para casa, guardando a correspondência, deixando a mala no quarto, enchendo uma tigela de água para Bella. O mostrador digital da secretária eletrônica indicava seis mensagens recebidas, um volume pouco usual para meu mundinho tranquilo. Instintivamente, eu me afastei. Escutaria as mensagens mais tarde, quando Bobby não estivesse mais por perto.
— Então — ele disse.
— Então — respondi.
— Planos para esta noite?
— Trabalhar.
— Costurando?
— No Starbucks.
Ele franziu a testa.
— Esta noite?
— As pessoas gostam de tomar café vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Por quê? Estou em prisão domiciliar?
— Considerando os acontecimentos recentes, um nível razoável de cautela não é má ideia — ele respondeu calmamente.
Eu não aguentei. Empinei o queixo e fui direto ao ponto.
— Não foi meu pai. O que quer que estejam pensando, meu pai não era assim. E o bilhete prova isso. Mortos não são conhecidos por suas correspondências pessoais.
— O bilhete não é preocupação sua, Annabelle. O bilhete é negócio oficial da polícia, e pode ou não ter alguma coisa a ver com este caso.
— Então, meu pai fingiu ser agente do FBI e visitou Catherine depois do ataque que ela sofreu. Talvez como pai ele quisesse compreender em primeira mão que tipo de monstro sequestrava menininhas. Talvez, como acadêmico, ele tenha sentido que era a melhor maneira de fazer a pesquisa. Eu sei que há uma explicação! — As palavras pareceram na defensiva, e as teorias, absurdas, no instante em que as pronunciei. Mas não consegui evitar. Depois de uma vida inteira em guerra com meu pai, acusando-o de ser controlador e manipulador, de repente eu era sua maior defensora. Uma coisa era eu desconfiar do meu pai. Mas eu iria para o inferno antes de deixar qualquer outra pessoa destruí-lo.
Bobby pareceu estar genuinamente pensando no que eu dissera.
— Está bem, Annabelle. Me dê um motivo. Experimente alguma coisa. Estou disposto a manter a mente aberta. Os forcados e as tochas podem esperar.
— Ele não estava nem por perto quando Dori desapareceu — eu disse com firmeza. — Nós já estávamos na Flórida.
— É o que você acredita — ele disse.
— É o que eu sei! Meu pai nunca saiu de perto de nós depois que nos estabelecemos na Flórida! — Contei a mentira sem fazer esforço. Pensei, com amargura, que meu pai ficaria orgulhoso.
Duas semanas depois de chegarmos à Flórida, eu acordei no meio da noite. Acordei gritando. Queria meu pai, implorava por ele. Minha mãe veio para o meu lado. “Shhh, querida. Shhhh. O seu pai volta logo. Ele só precisou ir amarrar algumas pontas soltas. Shhh, querida, está tudo bem.”
Mentiroso, mentiroso, calças no fogo.
A voz impassível de Bobby me trouxe de volta direto para o presente.
— Annabelle, onde está a mobília da sua família? Toda a sua família desapareceu no meio da tarde. O que aconteceu com as suas coisas?
— Um caminhão de mudança veio pegar tudo.
— Como?
— Eu falei com a senhora Petracelli...
— Você o quê?
— Eu me escondi em um canto e fechei os olhos — eu disse enfaticamente, com a raiva voltando a todo o vapor. — O que vocês acharam que eu ia fazer? Esperar por você e D.D. servirem minha vida em uma bandeja de prata? Por favor. Vocês são policiais. Não se importam comigo.
Ele deu um passo para a frente. A expressão no rosto dele não era mais impassível. Seus olhos ficaram cinzentos como uma tempestade. Imaginei que eu devesse estar com medo. Ao contrário, fiquei excitada. Queria brigar, guerrear, lutar. Queria fazer qualquer outra coisa que não me sentir indefesa.
— O que você disse à senhora Petracelli? — ele perguntou.
— Ora, Bobby — debochei, falando em falsete —, você não confia em mim? Não estamos todos no mesmo time?
— Que diabos você disse à senhora Petracelli?!
— Eu não disse nada a ela, seu cretino. O que você achou que eu iria fazer? Entrar na casa de uma mulher que eu não via fazia vinte e cinco anos e anunciar que a polícia havia encontrado o corpo de sua filha há muito desaparecida? Por favor, eu não sou tão cruel assim. — Eu mesma dei um passo para a frente e cutuquei o peito dele com o indicador. Isso fez com que me sentisse durona, mesmo com os olhos dele ficando sombrios como granito.
— Ela me contou que a equipe de mudança levou todas as nossas coisas embora. Não há dúvidas de que meu pai acertou tudo por telefone e pôs tudo em um depósito. Talvez ele tenha imaginado que a polícia descobriria tudo um dia. Então, poderíamos voltar para casa, recomeçar de onde havíamos parado. Meu pai acreditava muito em planejamento adiantado.
— Annabelle, não há nenhuma negociação imobiliária, nenhum depósito, nenhum registro de um homem chamado Russell Granger.
Foi a minha vez de ser apanhada de surpresa.
— Mas... mas...
— Mas o quê, Annabelle? Me conte o que estava acontecendo no outono de 1982. Me dê alguma coisa em que acreditar.
Eu não podia fazer isso. Eu não sabia... eu não entendia...
Como podia não haver registros de Russell Granger? Arlington era para ser minha vida real. Em Arlington, em 1982, pelo menos, eu havia vivido.
Bobby segurou minhas mãos. Foi como me dei conta de que eu havia começado a tremer, a perder o equilíbrio. De sua cama, Bella soltou um ganido nervoso. Não consegui me dirigir a ela, não consegui falar. Eu estava pensando novamente no meu pai, em sussurros no meio da noite. Em coisas que eu não queria saber. Em verdades que seriam demais para suportar.
Ah, Deus, o que havia acontecido no outono de 1982? Ah, Dori, o que foi que nós fizemos?
— Annabelle — Bobby disse gentilmente. — Ponha a cabeça entre os joelhos. Respire fundo. Você está hiperventilando.
Fiz o que ele me disse, dobrando o corpo para a frente. Fiquei olhando fixamente para meu piso de madeira manchada enquanto tentava respirar. Quando me levantei, Bobby passou os braços a meu redor e eu me deixei envolver pelo abraço dele com bastante naturalidade. Senti o cheiro da loção pós-barba, verbena e especiarias fazendo cócegas em meu nariz. Senti os braços dele, quentes e firmes ao redor dos meus ombros. Ouvi seu coração batendo, firme e ritmadamente. E me agarrei a ele feito uma criança, envergonhada e devastada, sabendo que precisava me recompor, mas desesperada pelo santuário dos braços dele.
Se Russell Granger nunca existiu, o que dizer de Annabelle? E por que, ah, por que eu acreditei que a mudança para a Flórida foi a primeira vez que meu pai mentiu?
— Shhhh — Bobby estava sussurrando no meu ouvido. — Shh... — os lábios dele tocaram a parte de cima dos meus cabelos, em um beijo breve e involuntário. Não era o suficiente para mim. Levantei a cabeça e o encontrei.
O primeiro contato foi elétrico. Lábios macios, bigodes ásperos. O cheiro de um gêmeo, a sensação dos lábios dele contra os meus. Sensações que eu raramente me permitia sentir. Necessidades que eu raramente me permitia ter. Então, abri minha boca, sugando sua língua, querendo senti-lo, tocá-lo, saboreá-lo. Eu precisava daquilo. Eu queria acreditar naquilo. Eu queria sentir qualquer coisa que não fosse o medo que se agigantava no fundo da minha mente.
Se ele pudesse apenas me abraçar, então talvez aquele momento durasse e o resto do mundo desaparecesse e eu não precisaria sentir medo e não precisaria me sentir sozinha e não precisaria ouvir as vozes que, agora, cresciam no fundo da minha mente...
“Roger, por favor, não vá. Roger, eu estou implorando, por favor, não faça isso...”
No instante seguinte, Bobby estava se afastando e eu, cambaleando. Nos retiramos para cantos opostos da minúscula quitinete, os dois arfando com força e nos recusando a olhar um para o outro. Bella se levantou de sua cama e veio para cima de mim ansiosamente. Me abaixei e me concentrei em acariciar os pelos ao redor do focinho dela.
Os minutos foram passando. Usei o tempo para controlar meus gestos, para encontrar minha compostura. Se Bobby tivesse dado um passo adiante sequer, eu teria ido até ele. No entanto, no instante em que tivéssemos terminado, eu teria me afastado. Escondida atrás da suave compostura que eu havia aperfeiçoado com o passar dos anos.
E me dei conta novamente de que a minha mãe não havia sido a única vítima da guerra do meu pai. Ele havia tirado alguma coisa de mim também, que eu não sabia como recuperar.
— E a minha mãe? — perguntei abruptamente. — Leslie Ann Granger. Talvez, por algum motivo, meus pais tivessem tudo no nome dela.
— Annabelle, eu procurei pelos nomes dos dois. Nada.
— Nós existíamos — eu insisti fracamente, acariciando os pelos de Bella, sentindo o peso tranquilizador da cabeça dela nas mãos. — Nós convivíamos com os vizinhos, tínhamos uma vida social, um papel na comunidade. Eu ia para a escola, meu pai tinha um emprego, minha mãe participava da Associação de Pais e Mestres. Isso tudo é real. Eu me lembro disso. Arlington não foi um produto da minha imaginação.
— E antes de Arlington?
— Eu... eu não sei. Eu não me lembro de antes.
— É algo para perguntar aos vizinhos — ele disse.
— Eu acho que sim.
Ele havia se endireitado novamente, parecia estar se recompondo.
— Não posso garantir aonde isso vá parar — ele disse abruptamente. — Seis corpos são seis corpos. Nós temos a obrigação de fazer todas as perguntas, de irmos atrás de qualquer pista. Este caso já tem vida própria.
— Eu sei.
— Talvez, no curto prazo, seja melhor você manter a discrição.
Tive de sorrir, mas o sorriso saiu torto.
— Bobby, eu vivo sob um nome falso. Eu não tenho amigos, nunca falo com meus vizinhos e não pertenço a nenhuma organização social. A coisa mais próxima que eu tenho de um relacionamento longo é com o entregador da UPS. Francamente, se eu cair ainda mais na escala social, serei uma ameba.
— Não gosto de você trabalhando à noite — Bobby continuou, como se eu não tivesse falado. Os olhos dele estreitaram, e ele olhou de mim para Bella e de novo para mim. — Nem correndo depois de escurecer.
Sacudi a cabeça. O pior do choque estava diminuindo, e minhas defesas estavam se recompondo.
— Eu sou uma mulher adulta, Bobby. Não estou mais me escondendo.
— Annabelle...
— Entendo que você precise fazer o seu trabalho, Bobby. E pode muito bem compreender que eu vá fazer o meu.
Ele claramente não ficou feliz. Mas, justiça seja feita, parou de discutir. Bella pareceu sentir a diminuição na tensão. Foi até Bobby e desavergonhadamente enfiou o focinho na palma da mão dele.
— Preciso ir — Bobby disse, ainda sem se mover.
— Reunião da força-tarefa sobre o bilhete.
Como ele se recusou a morder a isca, eu, finalmente, aproveitei a deixa e larguei de mão.
— Eu também preciso me arrumar para trabalhar — falei, esperando que minha voz não soasse tão cansada como eu estava me sentindo.
— Annabelle...
— Bobby.
— Eu não posso. Você e eu. Há questões éticas envolvidas. Eu não posso.
— Eu não estou pedindo nada.
De repente, ele fez uma careta.
— Eu sei, e isso está me deixado puto.
Eu sorri, e desta vez foi mais suave e honesto, um verdadeiro passo à frente para mim. Fui até ele. Pus a mão no rosto dele. Senti a aspereza da barba feita às 5 da manhã, a linha marcante do maxilar. Ficamos a poucos centímetros um do outro, de modo que eu podia sentir o calor do corpo dele, mas nada mais.
Ele pareceu uma promessa e, por um instante, eu me permiti acreditar que esse tipo de coisa era possível. Que eu tinha um futuro. Que a mulher em que Annabelle Granger se tornara tinha uma chance de felicidade na vida.
— Você gosta de churrasco? — sussurrei.
Senti os lábios dele se curvando para a palma da minha mão.
— Tenho fama de fazer ótimos hambúrgueres.
— Já sonhou com uma casa com cerquinha branca, dois filhos, talvez um cachorro branco incrivelmente hiperativo?
— Meus sonhos, geralmente, incluem um porão reformado, com mesa de sinuca e tevê de plasma.
— É justo. — Afastei minha mão, suspirando com a perda de contato, a fria realidade que se estabeleceu entre nós. — Nunca se sabe — eu disse com leveza.
— Nunca se sabe — ele reconheceu.
Ele saiu descendo as escadas. Bella foi quem mais sofreu, ganindo pateticamente enquanto eu trancava a porta atrás dele.
Meu telefone tocou. Atendi.
E uma voz masculina sussurrou:
— Annabelle.
capítulo 25
Bobby saiu costurando pelo trânsito de Boston, com a luz piscando enquanto seguia para o sul, para Roxbury. Ele havia passado mais tempo do que pretendia no apartamento de Annabelle. Feito mais do que pretendia no apartamento de Annabelle. Diabos, ele chegara perto demais de se comportar feito um idiota completo no apartamento de Annabelle.
Mas estava de volta ao carro, no controle, e retomando contato com a dura e fria realidade. Ele era um detetive. Estava trabalhando em um caso importante. E as coisas estavam indo de mal a pior.
Alguém sabia sobre o pingente. De acordo com o bilhete, a pessoa se encontraria apenas com a sargento D.D. Warren, que devia levar o colar às desertas instalações do Hospital Psiquiátrico de Boston às 3h33m daquela madrugada.
O descumprimento do combinado resultaria em repercussões imediatas. Outra menina iria morrer.
A reação de Bobby ao bilhete foi instintiva e informada por quase uma década de treinamento de time tático: caos total.
Alguém estava brincando com eles. Mas isso não significava que as consequências da desobediência não fossem ser reais.
Chegou à Ruggles Street dirigindo com uma das mãos na direção e a outra mexendo no celular. Havia recebido uma ligação de retorno do MIT com as informações de contato de certo Paul Schuepp, ex-chefe do departamento de matemática. Outra ligação de uma agência de aluguéis que havia tratado da antiga casa de Annabelle na Oak Street. Mais pessoas para quem ligar aqui, mais pistas a perseguir ali. Ele fez o máximo que pôde nos dez minutos que tinha até chegar à central de polícia.
O céu havia escurecido, e as nuvens cinzentas faziam parecer mais tarde do que realmente era. Pessoas voltando do trabalho caminhavam pelos dois lados da rua, escondidas embaixo de guarda-chuvas ou encolhidas em capas escuras. Morar tão perto da central de polícia as havia tornado indiferentes a sirenes, e nenhuma delas se deu ao trabalho de olhar quando ele passou.
Finalmente, à frente, luzes flamejantes. A monstruosidade de vidro e aço da central de polícia ganhava vida para mais uma longa noite. Bobby apertou o botão de desligar do celular e se preparou para trabalhar. Estacionar em Roxbury não era nada divertido. Na primeira passada, as vagas de rua estavam todas ocupadas. Bobby ainda não virou para o Estacionamento Central — e não apenas porque o estacionamento da polícia fosse um lugar conhecido por roubos. Como a maioria dos detetives, ele queria estar bem posicionado para sair rapidamente, caso algo inesperado acontecesse. Isso significava estacionar o mais perto do prédio que pudesse.
Na terceira vez, conseguiu. Um colega policial saiu de uma vaga, e Bobby assumiu o lugar deixado por ele.
Ele já estava com o distintivo na mão enquanto caminhava na direção do prédio. Eram 6h07m da noite. D.D., provavelmente, já estava com o resto do time posicionado a essa altura, discutindo a estratégia para o encontro das 3h33 da manhã. Deveriam levar o pingente original? Correr o risco de sofrer represálias entregando um similar?
Eles tentariam fazer a entrega. Bobby não tinha dúvida quanto a isso. Era uma oportunidade boa demais para expor o suspeito. Além disso, D.D. não tinha noção suficiente para sentir medo.
Bobby passou pelo guarda, posicionou o cartão magnético no leitor e foi até a escada, subindo dois degraus por vez. Precisava do exercício. Permitia que ele gastasse o pior da adrenalina e da tontura que ainda estava sentindo por ter beijado uma mulher que jamais deveria ter beijado.
Não faça isso. Tenha uma missão. Fique na tarefa.
Ele havia acabado de passar pela porta da escada e estava pensando em sair em louca disparada pelo longo corredor que levava até a unidade de Homicídios, quando a porta diretamente diante dele se abriu e D.D. enfiou a cabeça para fora.
Ele deu um pulo embaraçado.
— A reunião da força-tarefa é aqui? — perguntou, confuso, tentando compreender por que haviam mudado de lugar.
D.D., porém, estava sacudindo a cabeça.
— A reunião da equipe será dentro de trinta minutos. Os pais de Eola acabaram de chegar. Junte-se a nós. Não diga nada.
Bobby levantou as sobrancelhas. Ele se juntou a eles. E não disse nada.
Bobby nunca havia estado naquela sala central de reuniões antes. Acomodações muito melhores do que os armários bonitos que o Departamento de Homicídios tinha a oferecer. Depois de uma olhada, Bobby compreendeu a escolha mais sofisticada da sala. Os Eola não haviam ido sozinhos, mas com sua equipe, e as equipes de sua equipe, a julgar pela multidão.
Ele levou cinco minutos para entender. À frente dele, à esquerda, estava sentado um senhor, com idade entre 80 e 100 anos, vestindo terno cinza-escuro e de cabelos escassos, pele fina como papel e um aristocrático nariz adunco — o pai de Christopher Eola, Christopher Senior. À sua direita sentava-se uma mulher frágil, de pele manchada, vestindo Chanel azul-marinho e pérolas do tamanho de bolas de golfe. A mãe de Christopher Eola, Pauline.
Ao lado dela, mais um senhor mais velho usando um caro terno transpassado, desta vez com cabelos mais fartos e barriga maior, o conhecido ricaço, também conhecido como advogado dos Eola, John J. Barron. À esquerda dele, um imitador mais jovem e mais magro, o sócio em ascensão, Robert Anderson. Então, a advogada pro forma, com seu prático terno Brooks Brothers, cabelos puxados para trás e óculos de aros de metal angulosos, atendendo pelo nome de Helene Niaru. Ela estava sentada ao lado da última mulher da fileira, uma jovem estonteantemente bonita que fazia muitas anotações e não foi chamada pelo nome por ninguém, a secretária.
Muitas horas a cobrar, Bobby pensou, para um filho sobre o qual os Eola supostamente não ouviam falar havia décadas.
— Quero que se registre nos autos o quanto estou indignado com essa reunião — Eola Sr. estava falando agora, com a voz trêmula pela idade, mas ainda contendo a nota intransigente de alguém acostumado a ter suas ordens obedecidas imediatamente. — Considero prematuro, sem falar altamente irresponsável, estar apontando o dedo para meu filho.
— Ninguém está apontando nada a ninguém — o detetive Sinkus suavizou. Como os Eola haviam sido tarefa dele, era quem estava no comando. — Garanto ao senhor que se trata de um depoimento de rotina. Devido à descoberta feita em Mattapan, naturalmente que estamos tentando descobrir o máximo possível sobre todos os pacientes que residiram no Hospital Psiquiátrico de Boston, inclusive, mas não apenas — ele acrescentou friamente — seu filho.
Eola Sr. arqueou uma sobrancelha grisalha, ainda desconfiado. A esposa de ombros encurvados fungou e secou os olhos. Aparentemente, apenas pensar no filho a fazia chorar.
Bobby se perguntou onde estava a filha deles, aquela com quem Christopher supostamente havia tido um relacionamento “inadequado”. Trinta anos mais tarde, era uma adulta de meia-idade. Ela não tinha uma opinião sobre aquilo tudo?
O advogado limpou a garganta.
— Naturalmente que meus clientes pretendem cooperar. Estamos aqui, afinal. É claro que os acontecimentos de trinta anos atrás continuam sendo extremamente delicados para todos os envolvidos. Confio que isso será levado em consideração.
— Eu serei sempre cuidadoso — Sinkus garantiu. — Podemos?
Seguiram-se acenos de cabeça contrariados das pessoas reunidas. Sinkus ligou o gravador. Começaram o trabalho.
— Para registro, senhor, pode, por favor, confirmar que Christopher Walker Eola é seu filho, nascido em 16 de abril de 1954, com o seguinte número da previdência social... — Sinkus citou o número de memória. Eola Sr. resmungou seu consentimento contrariado.
— E Christopher Eola residia com o senhor e sua esposa em sua residência na Tremont Street, em abril de 1974?
Mais um sim resmungado.
— Também na sua residência morava sua filha, Natalie Jane Eola?
À menção da filha, os ânimos se alteraram e olhares nervosos foram trocados.
— Sim — Eola Sr. disse afinal, cuspindo a palavra.
Sinkus fez uma anotação.
— Havia outras pessoas na casa? Parentes, empregados domésticos, hóspedes?
Eola Sr. se virou para a esposa, que aparentemente era encarregada da equipe. Pauline parou de secar os olhos pelo tempo suficiente para desencavar quatro nomes — a cozinheira, a arrumadeira, a secretária pessoal de Pauline e um motorista em tempo integral. Suas palavras saíram sussurradas e difíceis de ouvir. Ela mantinha o queixo próximo do peito, como se seu corpo estivesse desmoronando em si mesmo. Osteoporose avançada. Nem mesmo muito dinheiro era capaz de evitar a velhice.
Sinkus aproximou o gravador da sra. Eola. Estabelecidas as preliminares, ele começou os trabalhos.
— Temos a informação de que, em 1974, o senhor, senhor Christopher Eola, e a sua esposa, senhora Pauline Eola, internaram seu filho, Christopher Junior, no Hospital Psiquiátrico de Boston.
— Correto — Eola Sr. admitiu.
— A data exata, por favor?
— 19 de abril de 1974.
Sinkus ergueu o olhar.
— Três dias depois do aniversário de vinte anos de Christopher?
— Tivemos uma pequena festa — a sra. Eola falou de repente. — Nada demais. Alguns poucos amigos. A cozinheira fez pato à l’orange, o prato preferido de Christopher. Depois, comemos torta. Christopher adorava torta. — A voz dela pareceu melancólica, e Bobby a marcou como o elo mais fraco. O sr. Eola se ressentia — da polícia, da entrevista, da lembrança indesejada do filho. Mas a sra. Eola estava pesarosa. Se as histórias eram verdadeiras, ela havia sido forçada a encarcerar um filho para proteger outra? E, mesmo pensando que o próprio filho é um monstro, a pessoa ainda sente saudade dele, ou pelo menos da ideia de quem ele poderia ter sido?
Sinkus se virou ligeiramente na direção da sra. Eola, deixando-a mais de frente para seu corpo e o contato encorajador de seu olhar.
— Parece ter sido uma ótima festa, senhora Eola.
— Ah, sim. Fazia poucos meses que Christopher havia voltado para casa de suas viagens. Queríamos fazer algo especial, tanto para marcar seu aniversário quanto para dar-lhe as boas-vindas. Convidei os amigos dele da escola e muitos dos nossos conhecidos. Foi uma noite encantadora.
— As viagens dele, senhora Eola?
— Ah, sim, ele havia viajado para o exterior, é claro. Tinha tirado um tempo depois da escola para conhecer o mundo, fazer algumas extravagâncias. Meninos. Não se pode esperar que eles sosseguem muito rápido. Eles precisam viver algumas coisas primeiro. — Ela deu um sorriso fraco, como se percebesse o quanto aquilo parecia fútil naquele momento. Voltou a falar com mais firmeza na voz. — Mas ele havia voltado perto do Natal para começar a tratar de seu ingresso à universidade. Christopher se interessava por teatro. Mas não acreditava ter muito talento. Pensou, então, que talvez pudesse se formar em psicologia.
— Depois de ter passado mais de um ano na estrada? A senhora pode ser mais precisa, senhora Eola? Que países ele visitou, por quanto tempo?
A sra. Eola acenou a mão em um gesto agitado.
— Ah, a Europa. Os lugares de sempre. França, Londres, Viena, Itália. Ele se interessava pela Ásia, mas não achávamos que fosse seguro naquela época. Vocês sabem — ela se inclinou como se fosse fazer uma confidência —, com a guerra e tudo mais.
Ah, sim, o conflito do Vietnã, de que Christopher havia conseguido convenientemente escapar. Objeção de consciência, o dinheiro do papai, suas aspirações universitárias? As possibilidades eram infinitas.
— Ele viajou sozinho? Ou com amigos? — Sinkus perguntou então.
— Ah, um pouco dos dois. — Mais um aceno vago da mão.
Sinkus mudou de estratégia.
— Vocês têm registros daquele tempo? Quem sabe postais que Christopher tenha enviado, mesmo uma linha ou duas que tenham entrado no seu diário...
— Protesto... — Barron começou a dizer.
— Não estou pedindo o diário — Sinkus esclareceu apressadamente. — Apenas queria fazer um retrato mais detalhado das aventuras globais de Christopher. Datas, locais, pessoas. Quando houver a oportunidade.
Significando que poderia oferecer uma lista de lugares para onde Christopher poderia ter ido depois de deixar Bridgewater em 1978. Por que se esconder em um hotel decadente nos Estados Unidos quando se podia fugir para Paris em vez disso?
O sr. Eola resmungou seu consentimento. Sinkus prosseguiu.
— Então, Christopher terminou a escola, viajou um pouco e voltou para casa para se inscrever nas universidades...
— Quais eram as universidades pretendidas? — Bobby falou. Recebeu um olhar de advertência de Sinkus, mas o ignorou. Tinha seus motivos.
— Ah, as de sempre. — Mais uma vez, a sra. Eola foi vaga. — Harvard, Yale, Princeton. Ele queria continuar na Costa Leste, não queria ir para muito longe de casa. Embora, pensando bem, ele também se candidatou ao MIT. Escolha curiosa, essa. MIT para artes? Bem, com Christopher, nunca dava para saber.
Sinkus retomou as rédeas da entrevista:
— Foi bom tê-lo de volta?
— Ah, sim — a sra. Eola disparou. Eola Sr. olhou para ela, que se calou.
— Olhe só — Eola Sr. disse com impaciência. — Eu sei o que você está tentando perguntar. Por que não vamos direto ao ponto? Nós internamos nosso filho. Nós levamos pessoalmente nosso menino para um hospital psiquiátrico. Que tipo de pais faz uma coisa dessas?
— Muito bem, senhor Eola. Que tipo de pais faz uma coisa dessas?
Eola Sr. ergueu o queixo, com a pele parecendo ter se esticado demais sobre seu rosto esquelético.
— Este relato não pode sair desta sala.
Pela primeira vez, Sinkus hesitou.
— Agora, senhor Eola...
— Estou falando sério. Desligue o gravador imediatamente, meu jovem, ou não direi mais nada.
Sinkus lançou um olhar para D.D. Lentamente, ela assentiu.
— Desligue. Vamos ouvir o que o senhor Eola tem a dizer.
Sinkus estendeu a mão e desligou o gravador. Com a deixa, a secretária largou a caneta e cruzou as mãos no colo.
— Vocês precisam entender — o sr. Eola começou — que não foi totalmente culpa dele. Aquela moça, a belga. Ela o arruinou. Se tivéssemos compreendido a situação antes, se tivéssemos agido mais rapidamente...
— Que situação, senhor? Como vocês deixaram de agir? — Sinkus manteve a voz paciente, respeitosa. Eola ia lhes dar o que queriam. Tudo no seu devido tempo.
— Uma au pair. Nós a contratamos quando Christopher tinha 9 anos e Natalie, 3. Tínhamos uma excelente babá até então, mas ela teve de ir embora para começar sua própria família. Voltamos à mesma agência, que nos recomendou Gabrielle. Dada nossa experiência prévia, não pensamos duas vezes. Certamente que uma au pair bem treinada era tão boa como qualquer outra. Gabrielle era mais jovem do que imaginávamos. Tinha 21 anos de idade, havia acabado de sair da escola. Tinha uma personalidade diferente, mas festiva, mais... risonha. — Ele fez uma careta. Claramente, risonha não era um elogio. — Às vezes, eu achava que ela era informal demais com as crianças. Mas era cheia de energia. Tinha um espírito de aventura de que as crianças pareciam gostar. Christopher, em especial, ficou impressionado com ela. Quando Christopher fez 12 anos, houve um incidente na escola. Ele era pequeno para a idade, com aparência mais sensível. Alguns meninos começaram a... se ressentir disso. Eles isolaram Christopher. Começaram a pegar no pé dele. Um dia, as coisas foram um pouco longe demais. Houve troca de socos. Christopher não acabou do lado vitorioso.
Os lábios de Eola se contorceram de desgosto. Bobby não soube dizer se o homem estava consternado com a ideia de violência ou com o fato de o filho ter sido incapaz de lidar com ela.
A sra. Eola voltou a secar os olhos.
— Naturalmente — Eola Sr. retomou rapidamente — que as atitudes adequadas foram tomadas, e as partes ofensivas, punidas. Mas Christopher... ele se tornou esquivo. Tinha problemas para dormir. Se tornou... cheio de segredos. Mais ou menos por essa época, peguei Gabrielle saindo do quarto de Christopher nas primeiras horas da manhã. Quando perguntei, ela disse que o havia ouvido chorar e tinha ido conferir como ele estava. Confesso que não me ocupei mais do assunto. Foi a arrumadeira que, finalmente, falou com minha esposa. De acordo com ela, a roupa de cama do quarto de Gabrielle ficava intocada por longos períodos. Enquanto que os lençóis do quarto de Christopher precisavam ser trocados com frequência, por estarem muitas vezes manchados. Agora vocês podem deduzir o resto.
Sinkus havia arregalado um pouco os olhos, mas se conteve.
— Na verdade, senhor, vou precisar que o senhor fale o resto.
Eola Sr. suspirou pesadamente.
— Está bem. Nossa au pair estava tendo relações sexuais com nosso filho de 12 anos de idade. Estão felizes? Está claro o bastante agora?
Sinkus deixou a observação por isso mesmo.
— Depois que descobriu o que estava acontecendo, senhor Eola...
— Ah, nós a demitimos. Então, pedimos uma liminar contra ela e fizemos com que fosse deportada. Tudo sob aconselhamento jurídico, é claro.
— E Christopher?
— Ele era um menino — Eola Sr. disse impacientemente. — Ele havia sido seduzido e usado por uma belga qualquer. Naturalmente que ficou arrasado. Ele gritou comigo, brigou com a mãe e ficou trancado no quarto por dias a fio. Ele achava que era Romeu e que nós havíamos banido sua Julieta. Ele tinha 12 anos de idade, pelo amor de Deus. O que ele sabia?
— Eu chamei um médico — disse a sra. Eola com sua voz sussurrante. — Nosso pediatra. Ele me fez levar Christopher para ser examinado. Mas não havia nada errado fisicamente com ele. Gabrielle não o havia machucado, ela só havia... — a sra. Eola apenas encolheu os ombros. — Nosso médico disse que o tempo era a melhor cura. Então, levamos Christopher para casa e esperamos.
— E o que Christopher fez?
— Ele ficou aborrecido — Eola Sr. disse desinteressadamente. — Ele se isolou no próprio quarto, recusando-se a falar conosco, a jantar conosco. Isso durou semanas. Mas, então, ele pareceu superar a história.
— Ele voltou a ir à escola — disse a sra. Eola. — Ele comia à mesa conosco, fazia os deveres de casa. Na realidade, parecia ter amadurecido com a experiência. Começou a usar ternos e se comportava de maneira absolutamente educada. Nossos amigos diziam que ele parecia ter se tornado um homenzinho da noite para o dia. Ele era realmente encantador. Me levava flores e passava muito tempo com a irmãzinha. Natalie o idolatrava, sabe. Quando ele se fechou no quarto, acho que ela foi quem mais ficou magoada. Por um tempo, nossa casa pareceu muito... tranquila.
— Por um tempo — Sinkus repetiu.
A sra. Eola suspirou e ficou em silêncio novamente, com a expressão lamuriosa de volta ao rosto. Eola Sr. retomou a narrativa, mantendo a voz firme e sem emoção.
— Nossa arrumadeira começou a reclamar do estado do quarto de Christopher. Não importava o que ela fizesse, a cama dele parecia feder. Havia alguma coisa errada lá, ela disse. Havia alguma coisa errada com ele. Ela queria permissão para não limpar mais o quarto dele. Naturalmente, neguei o pedido dela. Disse que ela estava sendo tola. Três dias mais tarde, calhou de eu estar em casa quando a ouvi gritar. Corri até o quarto de Christopher e a encontrei ao lado do colchão virado. Ela finalmente havia identificado a fonte do cheiro — lá, entre o boxe e o colchão, havia meia dúzia de esquilos mortos. Christopher havia... tirado o couro deles. Ele os havia estripado. E cortado suas cabeças.
— Eu o confrontei no instante em que chegou da escola. Ele se desculpou imediatamente. Me disse que estava apenas “praticando”. Sua turma de ciências iria dissecar um sapo no fim do semestre. Ele estava preocupado em ser melindroso demais, talvez até desmaiar ao ver sangue. E estava preocupado com o fato de que, se demonstrasse fraqueza diante dos colegas de aula, poderia novamente se tornar vítima de bullying.
Eola Sr. encolheu os ombros.
— Eu acreditei nele. A lógica e os medos dele faziam sentido. Meu filho sabia ser bastante convincente. Sozinho, ele tirou as carcaças do quarto e as enterrou no jardim. Eu considerei o assunto encerrado. Só que...
— Só que...?
— Só que a casa nunca mais voltou ao normal. Maria, nossa arrumadeira, começou a sofrer pequenos acidentes. Ela se virava e, de repente, havia uma vassoura em seu caminho, fazendo-a tropeçar. Uma vez, depois que acabou uma garrafa de água sanitária, ela abriu outra, virou o conteúdo e imediatamente foi subjugada pelos vapores. Conseguiu sair de perto bem a tempo. Acontece que alguém havia trocado a água sanitária da garrafa nova por amônia. Maria pediu demissão em seguida. Ela insistia que nossa casa era mal-assombrada. Mas eu a escutei resmungar baixinho que o nome do fantasma era Christopher.
— Ela achava que ele estava tentando feri-la?
— Ela acreditava que ele estava tentando matá-la — Eola Sr. corrigiu abruptamente. — Talvez ele tenha descoberto que havia sido ela quem entregara seu relacionamento com Gabrielle. Talvez ele quisesse vingança. Na verdade, não sei. Christopher era educado. Christopher era cooperativo. Ele ia à escola. Tirava boas notas. Ele fazia tudo o que pedíamos a ele. Mas nem... — Eola Sr. respirou fundo. — Nem mesmo eu gostava mais de ficar perto do meu filho.
— O que aconteceu em abril de 1974? — Sinkus perguntou gentilmente.
— Christopher foi embora — Eola Sr. respondeu baixinho. — E por quase dois anos foi como se uma nuvem negra tivesse saído de cima da nossa casa. Nossa filha parecia menos ansiosa. A cozinheira assoviava na cozinha. Todos ficamos mais leves. E ninguém dizia nada, por que o que se poderia dizer? Nós nunca vimos Christopher fazendo nada errado. Depois do incidente com os esquilos e a partida de Maria, não houve mais acidentes ou cheiros estranhos ou qualquer outra coisa minimamente suspeita. Mas a casa estava melhor sem Christopher por perto. Mais feliz.
— Então ele voltou.
Eola Sr. fez uma pausa, e sua voz começou a falhar. Havia perdido o tom prático e sem emoção. Seu rosto havia sido tomado por uma expressão sombria, irritada, triste. Bobby se inclinou para a frente. Pôde sentir o estômago se contraindo, preparando-o para o que estava por vir.
— Natalie mudou primeiro — disse Eola Sr., com a voz distante. — Ela se tornou mal-humorada, esquiva. Ficava sentada em silêncio durante longos períodos, e então, de repente, se irritava por qualquer coisinha. Pensamos que fossem problemas de adaptação. Ela estava com 14 anos, uma idade difícil. Além disso, por mais de um ano ela havia tido a casa apenas para ela, como se fosse filha única. Talvez se ressentisse da volta de Christopher.
— Ele, na realidade, parecia favorecer os ataques dela. Trazia flores, seus doces preferidos. Ele a chamava por apelidos bobos e inventava canções absurdas. Quanto mais ela o afastava, mais ele dava atenção a ela, levando-a ao cinema, exibindo-a aos amigos, se oferecendo para acompanhá-la até a escola. Christopher havia se tornado um ótimo rapaz no tempo em que esteve fora. Ele havia se centrado, sossegado. Acho que mais de uma amiga de Natalie tinha uma queda por ele, o que, é claro, ele usava a seu favor. Pauline e eu pensávamos que talvez as viagens tivessem feito bem a ele. Estava, finalmente, dando a volta por cima.
— No dia depois do jantar de aniversário de Christopher, recebi uma ligação de um cliente de Nova York. Havia surgido um problema, e eu precisava ir encontrá-lo. Pauline decidiu ir junto para talvez assistirmos a algum espetáculo. Não queríamos que Natalie faltasse à escola, mas isso não seria problema, já que Christopher estava em casa. Nós o deixamos como responsável e viajamos.
Aquela pausa novamente. Uma hesitação momentânea enquanto o sr. Eola lutava contra suas lembranças, esforçando-se por encontrar as palavras. Quando voltou a falar, estava com a voz rouca e baixa, difícil de escutar.
— Minha reunião de emergência acabou não sendo tão emergencial assim. E Pauline não conseguiu comprar ingressos para o espetáculo que ela queria ver. Então, voltamos para casa. Um dia antes. Não pensamos em ligar.
— Passava das 8 da noite. Nossa casa estava escura. Os empregados já haviam ido embora. Nós os encontramos na sala de estar. Christopher estava sentado na minha poltrona de couro preferida. Ele estava completamente nu. Minha filha... Natalie... ele a estava obrigando a fazer... um ato sexual. Ela estava aos prantos. E eu ouvi meu filho dizer, em um tom que eu nunca havia ouvido antes: “Sua cadela de merda, é melhor você engolir, ou da próxima vez eu enfio no seu rabo”.
Então ele levantou o olhar. E nos viu ali parados. E ele apenas sorriu. Um sorriso muito, muito frio. “Ei, papai”, ele disse. “Preciso agradecer a vocês. Ela é muito melhor do que Gabrielle.”
Eola Sr. parou novamente. Seus olhos encontraram um ponto na mesa de madeira polida e ficaram fixos ali. A seu lado, sua mulher havia desabado, com os ombros sacudindo espasmodicamente enquanto ela balançava para a frente e para trás.
D.D. se mexeu primeiro. Pegou uma caixa de lenços de papel e entregou silenciosamente para a sra. Eola. Ela pegou o lenço, segurou nas mãos e voltou a se balançar.
— Obrigada por conversarem conosco — D.D. disse baixinho. — Sei que isso é terrível para sua família. Apenas mais algumas perguntas, então acho que podemos encerrar por hoje.
— O que é? — Eola Sr. perguntou com a voz cansada.
— O senhor pode nos descrever Gabrielle?
O que quer que ele estivesse esperando, não era por isso. Eola Sr. piscou.
— Eu não... eu não havia realmente pensado nela... o que vocês querem?
— O básico está bom. Altura, peso, cor dos olhos. Sua aparência por alto.
— Bem... ela media mais ou menos um metro e setenta de altura. Tinha cabelos escuros. Olhos escuros. Era magra, mas não daquele jeito esquelético que vemos tanto hoje em dia. Ela era... robusta, vivaz. Tipo uma Catherine Zeta-Jones.
D.D. assentiu, enquanto Bobby fazia a mesma ligação mental que ela, provavelmente, havia feito. Em outras palavras, a descrição geral de Gabrielle também poderia ser aplicada a Annabelle.
Sinkus limpou a garganta, atraindo a atenção de todos de volta para ele. Estava na hora de encerrar a reunião, mas o detetive parecia incomodado.
— Senhor Eola, sra. Eola, se não se importam... depois que vocês flagraram Christopher, ele foi voluntariamente com vocês para o Hospital Psiquiátrico de Boston?
— Ele não teve escolha.
— Como assim?
— Meu dinheiro é meu dinheiro, detetive Sinkus. E pode ter certeza de que depois daquele... incidente, eu não daria um único centavo a Christopher. Christopher, no entanto, tinha seus próprios recursos. Um fundo deixado para ele pelos avós. Pelos termos daquele fundo, ele só poderia recebê-lo aos vinte e oito anos de idade. E, mesmo então, ele precisaria da cooperação do depositário. Que seria eu.
Bobby entendeu no mesmo instante que D.D.
— O senhor ameaçou cortá-lo. Deixá-lo de fora da herança.
— Pode estar certo disso — Eola Sr. disparou. — Eu o deixei vivo naquela noite. Foi generosidade suficiente.
— Você bateu nele — a sra. Eola sussurrou. — Você correu para cima dele. Você saltou em cima dele. E ficou batendo nele sem parar. E Natalie estava gritando, você estava gritando, e isso durou muito tempo. Christopher simplesmente ficou lá sentado. Com aquele terrível sorriso, a boca cheia de sangue.
Eola Sr. não se preocupou em se desculpar.
— Eu corri atrás daquele traseiro esquelético até o quarto dele, onde ele se trancou. E eu... eu tentei pensar no que fazer a seguir. Sinceramente não conseguiria matar meu único filho. Mas, ao mesmo tempo, não poderia sujeitar minha filha à exposição à polícia. Então consultei meu advogado — ele olhou para Barron —, que sugeriu uma terceira alternativa. Ele me alertou, no entanto, que devido à idade de Christopher, interná-lo em uma instituição mental seria difícil. Eu precisaria que ele ficasse no local voluntariamente, ou teria de conseguir uma ordem judicial, o que significaria procurarmos a polícia.
— Meu filho é inteligente. Isso eu reconheço. E, como eu disse, ele aprecia as coisas boas da vida. Não consigo imaginá-lo vivendo nas ruas tanto quanto ele. Assim, de manhã, nós fizemos um acordo. Ele ficaria no Hospital Psiquiátrico de Boston até o aniversário de vinte e oito anos. A essa altura, supondo que ele tivesse cumprido os termos do nosso acordo, eu liberaria sua herança. Três milhões de dólares não é algo desprezível, e Christopher sabia disso. Ele foi para o hospital, e nós nunca mais o vimos.
— Vocês nunca o visitaram? — Sinkus esclareceu.
— Meu filho está morto para nós.
— Nunca conferiram o progresso dele? Nem mesmo por telefone?
— Meu filho está morto para nós, detetive.
— Então, não ficaram sabendo que seu filho se envolveu em uma confusão no Hospital Psiquiátrico de Boston. E acabou indo para Bridgewater.
— Quando o hospital estadual anunciou que iria fechar, liguei para lá. O médico me informou que Christopher já havia sido mandado para Bridgewater. Achei conveniente.
Sinkus franziu a testa.
— E no aniversário de 28 anos de Christopher?
— Chegou um bilhete ao escritório do meu advogado. “Trato é trato”, dizia. Assinei a liberação dos fundos.
— Espere um instante — D.D. falou de repente. — Christopher fez 28 anos em abril de 1982. O senhor está me dizendo que ele recebeu três milhões de dólares naquele dia?
— Na realidade, ele herdou três milhões e meio. Os fundos foram bem administrados.
— E ele teve acesso a esses fundos?
— Ele tem feito retiradas periódicas ao longo dos anos.
— O quê?
Eola Sr. se virou para o advogado.
— John, por favor.
Barron pegou uma pasta executiva de couro e a abriu com gestos rápidos.
— Estas são informações confidenciais, detetives. Confiamos que tratarão delas adequadamente.
Ele repassou cópias de um maço de papéis grampeados. Bobby percebeu que se tratava de registros financeiros, espiando as folhas de papel rapidamente. Registros financeiros detalhados do fundo fiduciário de Christopher e a data de cada retirada.
Bobby olhou diretamente para Barron.
— Como ele fazia o contato? Quando queria dinheiro, o que Christopher fazia? Telefonava?
— Ridículo — Barron disparou. — É um fundo fiduciário, não um caixa automático. Nós solicitávamos um pedido por escrito, assinado e certificado, que mantínhamos como parte dos registros oficiais. Continuem folheando, que encontrarão uma cópia de cada pedido. Verão que Christopher tendia a pedir incrementos de cem mil, mais ou menos, duas ou três vezes por ano.
— Ele escrevia e vocês faziam um cheque? — Bobby ainda estava examinando, folheando os papéis rapidamente.
— Ele escrevia, nós liquidávamos fundos, reequilibrávamos o portfólio e então fazíamos um cheque, sim.
— Então esses cheques nunca foram recebidos pessoalmente? Vocês têm um endereço de correspondência? — Aquilo era bom demais para ser verdade. O que Bobby concluiu que era mesmo, ao ver a última página. — Só um instante, vocês mandavam os cheques para um banco na Suíça?
Barron encolheu um ombro.
— Como a senhora Eola disse, Christopher passou algum tempo na Europa. Ele obviamente abriu uma conta bancária enquanto estava lá.
Bobby arqueou uma sobrancelha. Jovens normais de 19 anos não abrem contas bancárias na Suíça. Nem mesmo os filhos mimados da classe alta de Boston. Isso pareceu a ele uma ação preventiva. A atitude de um homem que já estava pensando que poderia precisar esconder bens em pouco tempo, talvez para passar uma vida em fuga. Aquilo fez Bobby se perguntar o que Christopher andara fazendo durante sua “grande turnê” pela Europa.
A reunião estava se encerrando. Eola Sr. havia abraçado a esposa, que tentava limpar a maquiagem borrada. Ele sussurrou alguma coisa em seu ouvido, e ela deu um sorriso trêmulo.
— Como está sua filha, senhora Eola? — Bobby perguntou suavemente.
A mulher o surpreendeu com sua resposta pétrea:
— Ela é lésbica, detetive. O que mais se poderia esperar?
A sra. Eola se levantou. A raiva a havia revigorado. Eola Sr. aproveitou o momento e a levou rapidamente para fora da sala. Os advogados e a secretária seguiram atrás dele, uma brigada extremamente cara, rumo aos elevadores.
No silêncio que se seguiu, Sinkus foi o primeiro a falar.
— Então — ele perguntou a D.D. —, isso quer dizer que eu posso ir para a Suíça?
capítulo 26
A reunião emergencial da força-tarefa começou atrasada, por causa da reunião com os Eola, que passou do horário. A maioria dos detetives, porém, havia chegado na hora, o que significou que, quando Bobby, D.D. e Sinkus apareceram, as caixas de pizza estavam vazias e não havia mais refrigerante ou um único grissino.
Bobby olhou para o único sobrevivente: um copo plástico de flocos de pimenta vermelha. Pensou duas vezes.
— Muito bem, muito bem — D.D. estava dizendo com firmeza. — Todo mundo aqui, ouça. Para variar, temos novidades para discutir, então vamos começar.
O detetive Rock bocejou e tentou cobrir o movimento abanando seus papéis.
— Fiquei sabendo que recebemos um bilhete — ele disse. — É de verdade ou de um aspirante a maluco?
— Não sabemos. Nós anunciamos o nome de Annabelle Granger no começo, mas nunca liberamos detalhes sobre o pingente ou os demais itens pessoais. Então, ou nosso autor anônimo tem informações privilegiadas, ou é de verdade.
Isso deixou todos em alerta. A comunicação seguinte de D.D., no entanto, provocou gemidos coletivos.
— Tenho cópias do bilhete para distribuir. Mas não ainda. As primeiras coisas primeiro: nossa reunião de consolidação noturna. Vamos descobrir o que sabemos agora, então vamos pensar em como esse pequeno trabalho comunitário — D.D. agitou o maço de fotocópias — se encaixa no quebra-cabeça. Sinkus, você começa.
Sinkus não se importou. Como o encarregado por Christopher Eola, estava superempolgado. Ele recapitulou a entrevista com os pais de Eola e o que eles sabiam agora das atividades sexuais de Eola e como sua antiga babá combinava com uma descrição geral de Annabelle Granger, uma das vítimas-alvo conhecidas. Ainda mais interessante, Eola tinha acesso a vastos recursos financeiros. Entre sua conta bancária na Suíça e o fundo fiduciário multimilionário, era altamente provável que ele fosse capaz de se manter em fuga, fora do radar etc. etc. Na realidade, praticamente qualquer coisa era possível, então eles precisavam colocar a cabeça para funcionar.
Próximos passos: fazer um telefonema para o Departamento de Estado para rastrear o passaporte de Eola. Entrar em contato com a Interpol para o caso de eles terem Eola à vista ou algum caso com modus operandi parecido. E, finalmente, encaminhar o processo legal para rastrear fundos transferidos de uma conta bancária na Suíça ou, melhor ainda, congelar os bens completamente.
— Declare Eola como terrorista — disse McGahagin.
Alguns riram com o comentário dele.
— Eu não estou brincando — o sargento insistiu. — Homicídio não diz nada ao governo suíço, ou a qualquer pessoa, diga-se. Por outro lado, faça um relatório dizendo que há motivos para crer que Eola enterrou material radioativo no meio de uma grande área metropolitana, e os bens dele serão congelados rapidamente. Corpos não são radioativos? Quem aqui se lembra das aulas de ciências?
Todos se entreolharam inexpressivamente. Aparentemente, nenhum deles assistia ao Discovery Channel.
— Bem — McGahagin disse teimosamente —, eu acho que é verdade. E, estou dizendo, vai funcionar.
Sinkus encolheu os ombros e fez uma anotação. Não seria a primeira vez que eles enfiariam uma peça quadrada em um buraco redondo. Era para isso que as leis eram feitas, para que detetives de homicídio arrojados pudessem pensar em uma forma de burlá-las.
Sinkus também estava encarregado de encontrar Adam Schmidt, o auxiliar de enfermagem do Hospital Psiquiátrico de Boston que fora demitido por dormir com uma paciente. Foi sobre o que falou a seguir.
— Finalmente localizei Jill Cochran, a antiga enfermeira-chefe do hospital — Sinkus informou. — Ela me disse que ainda tem a maioria dos registros etc. do instituto fechado. Ela os está catalogando ou arquivando, não sei bem. Está fazendo o que quer que se faça com a papelada de um hospício. Vou me reunir com ela amanhã de manhã para tentar encontrar o senhor Schmidt.
— A busca básica pelos antecedentes de Schmidt? — D.D. perguntou.
— Não apareceu nada. Então ou Adam tem sido um ótimo menino desde seus dias no Hospital Psiquiátrico de Boston, ou ele ficou muito mais esperto para não ser apanhado. Mas meu superpoder não está me dizendo nada. Minha aposta em Eola é maior.
D.D. apenas olhou para ele.
Sinkus levantou as mãos em autodefesa.
— Eu sei, eu sei, um bom investigador não deixa pedra sobre perda. Estou levantando pedras, estou levantando.
Sinkus parecia estar um pouco zonzo com a falta de sono. Ele se sentou. O detetive Rock começou a falar, relatando as últimas atividades do disque-denúncia.
— O que eu posso dizer? — rugiu o detetive de voz grave, parecendo exausto, soando exausto e sem dúvida se sentindo exatamente como parecia. — Estamos com uma média de trinta e cinco ligações por minuto, a maioria das quais se encaixa em três categorias básicas: um pouco maluca, muito maluca e tristes demais. As categorias pouco e muito malucas são o que seria de esperar: o crime foi cometido por alienígenas, homens de ternos brancos, para estar seguro neste mundo é preciso usar papel laminado na cabeça. As tristes demais, bem, elas são tristes demais. Pais. Avós. Irmãos. Todos com parentes desaparecidos. Falamos ontem com uma mulher de 75 anos. A irmã mais nova dela está desaparecida desde 1942. Quando ela ouviu que os restos mortais eram esqueletos, pensou que poderia ter sorte. Quando eu disse a ela que não acreditávamos que os esqueletos fossem tão velhos, ela começou a chorar. Ela passou 65 anos esperando que a irmã mais nova voltasse para casa. Me disse que não pode parar agora, que fez uma promessa aos pais. A vida é simplesmente uma merda, às vezes.
Rock apertou a ponta do nariz, piscou e seguiu em frente.
— Então, eu fiz uma lista de dezessete garotas desaparecidas, as quais sumiram entre 1970 e 1990. Algumas dessas meninas são daqui. Uma é da Califórnia. Obtive essas informações das famílias para fins de identificação, incluindo joias, roupas, trabalhos dentários, fraturas ósseas, e/ou brinquedos favoritos, caso consigamos comparar alguma coisa com os “sinais pessoais” deixados com os restos mortais. Estou passando a informação para Christie Callahan. Tirando isso, o resto é comigo.
Ele voltou para seu lugar, ficando praticamente sem ar até cair, mais do que se sentar, na cadeira dobrável de metal. O homem não parecia nada bem, e todos ficaram por um instante olhando para ele e se perguntando quem seria o primeiro a dizer alguma coisa.
— O que foi? — ele disparou.
— Você tem certeza... — D.D. começou.
— Não dá para curar a minha mãe. Melhor, então, ajudar a encontrar o filho da puta que matou seis meninas.
Como não havia muito mais o que acrescentar a isso, eles prosseguiram.
— Muito bem — D.D. declarou com seriedade —, temos um suspeito importante, de inteligência acima da média e recursos financeiros, um suspeito que ainda vale a pena conferir que trabalhou no hospital e uma lista de dezessete garotas desaparecidas do disque-denúncia. Além disso, pode haver uma ligação com um rapto ocorrido dois anos antes de qualquer uma dessas seis meninas desaparecer. Quem mais gostaria de falar? Jerry?
O sargento McGahagin estava encarregado de selecionar casos de pessoas desaparecidas não resolvidos e que envolvessem meninas menores de idade nos últimos trinta anos. Seu time havia listado vinte e seis casos de Massachusetts. Eles haviam agora ampliado o trabalho para toda a região da Nova Inglaterra.
Ele estava lendo rapidamente a cópia do relatório do disque-denúncia de Tony Rock, identificando os nomes em comum nas duas listas.
— O que eu preciso agora — McGahagin declarou pesadamente — é do relatório de vitimologia. Se Callahan puder me dar uma descrição física dos restos morais, há a chance de eu conseguir casá-la com um caso não resolvido. Então, poderíamos confirmar a identificação, o que, em retorno, nos daria uma linha de tempo para a cova coletiva. Pá-pum.
McGahagin olhou para D.D. com expectativa.
Ela olhou para ele calmamente.
— Que diabos você quer que eu faça, Jerry? Arranque seis relatórios de vitimologia do rabo?
— Qual é, já faz quatro dias, D.D. Como podemos não saber nada ainda sobre os seis restos mortais?
— O negócio se chama mumificação molhada — D.D. respondeu irritada. — E ninguém nunca havia lidado com isso na Nova Inglaterra antes.
— Então, com o devido respeito a Christie, chamem alguém que tenha.
— Ela chamou.
— O quê? — McGahagin pareceu espantado. Investigadores pediam recursos, especialistas e exames forenses o tempo todo. Isso não queria dizer que os detentores do poder os atendessem. — Christie vai ganhar reforços?
— Disseram que amanhã. Algum figurão da Irlanda que é especializado nessa merda e está curioso para ver um exemplo “moderno”. O procurador de Justiça foi atrás da grana. Aparentemente, o disque-denúncia não é a única área que está ficando louca. A cidade toda está enchendo a sala do governador com reclamações histéricas de que há um assassino em série à solta e que suas filhas serão as próximas vítimas. O que me lembra que o governador gostaria que nós resolvêssemos este caso, humm, cinco minutos atrás.
D.D. revirou os olhos. O resto dos detetives deu algumas risadas.
— Sério, pessoal — D.D. voltou a falar. — Christie está se esforçando. Todos estamos nos esforçando. Ela acha que precisa de mais uma semana. Então, nós podemos ficar sentados reclamando ou, eis uma ideia, podemos fazer um bom e velho trabalho de investigação policial.
Ela voltou a atenção novamente para McGahagin.
— Você disse que tinha uma lista de vinte e seis meninas desaparecidas de Massachusetts? Vinte e seis me parece muita coisa.
— Como o Tony disse, é um mundo de merda.
— Você fez algum gráfico? Temos, digamos, algum período de atividade mais intensa?
— O período de 1979 a 1982 não foi muito bom para ser uma jovem menina em Boston.
— Ruim quanto?
— Nove casos em quatro anos, todos sem solução.
— Faixa etária?
— De zero a dezoito anos.
D.D. pensou no que ele estava falando.
— E se limitarmos a idade a, digamos, entre cinco e quinze?
— O número cai para sete.
— Nomes?
Ele leu a lista, que incluía o nome de Dori Petracelli.
— Localidades?
— Por toda a parte. O sul de Boston, Lawrence, Salem, Waltham, Woburn, Marlborough, Peabody. Se partirmos do pressuposto de que a mesma pessoa foi responsável por seis dos sete casos...
— Por favor, partamos do pressuposto.
— Estamos falando de alguém com um veículo, para começar — McGahagin considerou. — Alguém que conhece o estado, se sente confortável de se misturar em muitos lugares diferentes. Talvez um prestador de serviços, alguém que trabalhe com manutenção. Alguém inteligente. Organizado. Com abordagem ritualizada.
— A linha do tempo confere com Eola — Sinkus comentou. — Libertado em 1978, sem nada melhor para fazer...
— Exceto — D.D murmurou — que os incidentes pararam em 1982. Eola não teria qualquer motivo para parar. Teoricamente, ele poderia continuar com isso para sempre. O que, francamente, aconteceria com qualquer criminoso. Predadores não acordam magicamente um dia e se arrependem. Alguma coisa aconteceu. Outros acontecimentos, outras influências devem ter intercedido. O que nos leva a — ela mudou o olhar de direção e encontrou Bobby — Russell Granger.
Bobby suspirou, recostado em sua cadeira. Havia estado tão ocupado desde que voltara à central que não tivera tempo nem de mijar, quanto menos preparar suas anotações. Agora, todos os olhares pairavam sobre ele, os caras da cidade avaliando o do estado. Ele fez o melhor que pôde de cabeça.
— Conforme relatórios policiais, Russell Granger fez a primeira denúncia de um voyeur em sua casa de Arlington em agosto de 1982. Isso desencadeou uma sucessão de eventos que culminou com Russell fazendo as malas e desaparecendo com a família dois meses depois, ostensivamente para proteger sua filha de sete anos de idade, Annabelle. Então, à primeira vista, nós temos uma vítima potencial, Annabelle Granger, e seu pobre e sitiado pai. Só que...
— Só que — D.D. concordou.
Bobby levantou um dedo.
— Um — ele disse com firmeza —, Catherine Gagnon, que foi raptada em 1980, reconheceu uma foto de Russel Granger. Só que Gagnon o conhecia como um agente do FBI que a entrevistou duas vezes no hospital depois do resgate. Isso teria ocorrido em novembro de 1980, quase dois anos antes da denúncia do voyeur que Russell Granger teria visto em Arlington.
Rock parecia ter caído no sono na mesa. Essa informação, porém, fez com que ele levantasse a cabeça de repente.
— Ahn?
— Exatamente o que pensamos. Dois, durante suas visitas a Catherine, Granger apresentou o desenho de um retrato falado para ela analisar. Catherine disse que o desenho em branco e preto não era do seu agressor. Granger tentou insistir que era e se irritou quando ela se manteve firme e disse que não era. Então, seria o desenho uma tentativa da parte de Granger de distrair Catherine ou ele honestamente tinha em mente um suspeito em relação ao estuprador dela? Eu tenho a minha opinião. — Ele fez um sinal com a cabeça na direção de D.D. — A sargento tem a dela.
— O que nos leva ao número três: não há registro de Russell Granger. Não há carteira de motorista, nem número da previdência social. Nem para ele, nem para a mãe de Annabelle, Leslie Ann Granger. De acordo com os registros de imóveis, a casa dos Granger na Oak Street pertenceu a Gregory Badington, da Filadélfia, de 1975 a 1986. Imagino que os Granger tenham alugado a propriedade, só que Gregory faleceu três anos atrás, e a esposa dele, que, ao telefone, parecia ter 150 anos, não fazia ideia do que eu estava falando. Então, temos aí um beco sem saída.
— Ontem, comecei a fazer uma análise de rotina nos registros financeiros e não cheguei a lugar algum. Comecei a fazer uma busca pela mobília da família, que havia sido ostensivamente levada a um depósito. Nada. É como se a família em si nunca tivesse existido. Exceto, é claro, pelas ocorrências policiais que Granger registrou.
— Você acha que Russell Granger fez a própria filha de alvo? — Rock perguntou, confuso. — Que ele inventou tudo?
Bobby encolheu os ombros.
— Eu não. A sargento Warren, porém...
— Seria o disfarce perfeito — D.D. disse simplesmente. — Talvez em 1982 Russell tenha achado que a polícia iria começar a perceber o repentino aumento de meninas desaparecidas. Ao se posicionar como vítima, ele imaginou que poderia evitar ser visto como suspeito. Além disso, estabelece o disfarce perfeito para sua partida em outubro. Pensem nisso. Sete meninas desaparecidas entre 1979 e 1982, uma delas conhecida de Russell Granger, a melhor amiga da filha dele, mas nenhum detetive vai atrás dele para ouvi-lo. Por quê? Porque ele já havia se estabelecido como pai protetor. É perfeito.
Sinkus pareceu desapontado. Estava claro que ele apostava no suspeito dele, Eola, como criminoso. A repentina ascensão de Russell Granger como alternativa viável era uma decepção.
— Um detalhe — Bobby observou. — Russell Granger está morto. O que quer dizer que, independentemente do que ele estava fazendo no começo dos anos 1980, não foi ele que deixou um bilhete no para-brisa de D.D.
— Tem certeza disso?
— Você não está realmente sugerindo...
— Atente para os fatos, detetive — D.D. disse. — Até agora, você não pode provar que Russell Granger realmente existiu. Portanto, como pode ter tanta certeza de que ele está morto?
— Ah, pelo amor de Deus...
— Estou falando sério. Você tem um atestado de óbito? Corroboração? Não, você tem apenas o testemunho da filha de Russell Granger, que alega que o pai foi morto atropelado por um táxi. Não tem nenhum documento ou detalhes. Muito conveniente, se quiser saber.
— Então Russell Granger não é apenas um assassino em série, como a filha o está acobertando? Agora quem foi que passou dos fatos para a ficção?
— Só estou dizendo que ainda não podemos tirar conclusões. Tem duas coisas que eu quero saber — D.D. olhou para ele com frieza. — Um, quando Russell Granger chegou ao estado pela primeira vez? Dois, por que ele continuou fugindo depois que saiu de Arlington? Consiga essas duas respostas, e então vamos conversar.
— Um — Bobby disse com firmeza —, acabei de receber retorno do MIT sobre o nome do antigo chefe de Russell. Espero me reunir com o doutor Schuepp na primeira hora da manhã, o que deverá me ajudar a completar as informações de antecedentes de Russell Granger, inclusive sua linha do tempo em Massachusetts. Dois, estou tentando pesquisar as datas e as cidades depois que a família saiu de Arlington, mas ando ocupado demais correndo atrás de você para conseguir fazer qualquer outra coisa.
D.D. sorriu sombriamente.
— Diante disso — ela levantou o maço de fotocópias —, vamos discutir o principal acontecimento da noite.
capítulo 27
O telefonema misterioso era do sr. Petracelli. Ele não foi mais gentil ao telefone do que havia sido pessoalmente. Ele não queria que a sra. Petracelli soubesse de nada. Antes cedo do que tarde.
O som do meu próprio nome do outro lado da linha me deixou perturbada. Eu não o queria no meu apartamento. O fato de que ele estava usando o número de telefone que eu havia dado para a sra. Petracelli me parecia suficientemente invasivo.
Finalmente, concordamos em nos encontrar no Faneuil Hall, na ponta leste do Mercado Quincy, às 8 horas da noite. O sr. Petracelli reclamou sobre precisar dirigir até a cidade e encontrar onde estacionar, mas acabou aceitando de má vontade. Eu tinha meus próprios problemas — como planejar estrategicamente meu intervalo de trabalho para coincidir com o horário combinado —, mas achei que daria certo.
O sr. Petracelli desligou, e eu fiquei parada sozinha no meu apartamento, agarrada ao telefone próximo ao peito e tentando encontrar o foco. Eu devia estar no trabalho em 17 minutos. Não havia dado comida para Bella, trocado de roupa nem desfeito a mala.
Quando, finalmente, me mexi, foi para largar o telefone e ouvir as mensagens da secretária eletrônica. A primeira mensagem era alguém desligando. A segunda, a mesma coisa. A terceira mensagem era da minha cliente atual, que, pensando bem, não gostava das franjas, afinal. Ela havia acabado de ver uma linda cortina na casa da amiga dela, a Tiffany, e pensou que talvez pudéssemos recomeçar do zero ou, se fosse um problema muito grande para mim, ela podia simplesmente ligar para a decoradora da Tiffany. Ciao, ciao!
Rabisquei um bilhete. E, então, ouvi mais três pessoas desligando.
Seria o sr. Petracelli relutando em deixar um recado? Ou alguma outra pessoa, tentando desesperadamente falar comigo? De repente, depois de anos de isolamento, eu era uma garota popular. Isso era uma boa ou uma má notícia? De qualquer maneira, me deixou nervosa.
Fiquei roendo a unha do polegar e olhando para fora, para a penumbra escura e chuvosa. Alguém queria o pingente de volta. Alguém havia encontrado o carro da sargento Warren. Seria apenas uma questão de tempo, então, para que esse mesmo alguém me encontrasse?
— Bella — eu disse de repente —, que tal ir para o trabalho comigo?
Bella gostou muito da ideia. Deu uma dúzia de voltas em torno de si mesma, correu até a porta e ficou me olhando ansiosamente. A informação de que eu precisava me trocar não foi bem recebida, mas deu a ela a chance de jantar. Enquanto ela comia a ração, vesti um jeans velho, uma camisa branca básica e tamancos Dansko pretos, perfeitos para passar a noite de pé. E, é claro, peguei meu sempre útil Taser, o melhor amigo de uma garota, e o enfiei na bolsa imensa.
Bella e eu saímos pela porta, parando apenas para eu trancar todas as fechaduras. Quando chegamos à rua, hesitei novamente, olhando para a esquerda e para a direita. Nesse horário, havia bastante movimento, com as pessoas voltando para casa do trabalho. Na Avenida Atlantic, o trânsito provavelmente estava parado, principalmente por causa da chuva.
No entanto, minha ruazinha lateral estava tranquila, apenas com o brilho das luzes dos postes refletindo no asfalto liso e escuro.
Segurei a guia de Bella na mão e seguimos para a penumbra.
Trabalhar em um café era uma droga. Eu passava a maior parte do meu turno de oito horas tentando não dar uma bronca nos clientes com excesso de cafeína ou meu chefe sem cafeína. Aquela noite não foi uma exceção.
Às 8 horas ainda havia cinco pessoas em uma fila desordenada, querendo uma coisa desnatada, mocha com leite de soja. Eu tirava doses de espresso e me preocupava com Bella, amarrada embaixo da marquise do outro lado das portas de vidro, e com o sr. Petracelli, esperando na outra ponta da extensão abarrotada de barraquinhas de comida do Mercado Quincy.
— Preciso fazer um intervalo — lembrei meu gerente.
— Tem clientes — ele cantarolou.
Oito e quinze.
— Preciso fazer xixi.
— Aprenda a segurar.
Oito e vinte, uma família de viciados em cafeína entrou, e meu gerente não deu sinais de ceder. Eu não aguentava mais. Arranquei o avental e o atirei em cima do balcão.
— Vou ao banheiro — eu disse. — Se não gosta disso, me compre outra bexiga.
Saí em disparada, deixando Carl com quatro clientes de olhos arregalados, incluindo uma menininha que perguntou em voz alta: “Ela vai sofrer um acidente?”
Limpei rapidamente o pó de café que tinha na camisa, forcei o caminho até as portas de vidro e tracei uma linha reta até Bella. Ela se levantou, com a língua de fora, pronta para partir.
Ela ficou um pouco chocada quando, em vez de sairmos para correr, eu simplesmente fui caminhando até o outro lado do Mercado Quincy, onde esperava que o sr. Petracelli ainda estivesse me aguardando.
Não o vi de cara, tentando identificar a pequena multidão reunida do lado de fora do Ned Devine’s. A chuva havia parado, o que significava que os beberrões haviam voltado. Tinha começado a entrar em pânico quando alguém me deu um tapinha no ombro. Eu me virei. Bella começou a latir loucamente.
O sr. Petracelli recuou.
— Opa, opa, opa — ele disse, levantando as mãos e olhando com nervosismo para a minha cachorra.
Obriguei-me a respirar fundo, a acalmar Bella agora que havia tanta gente olhando em nossa direção.
— Sinto muito — murmurei. — Bella não gosta de estranhos.
O sr. Petracelli assentiu ceticamente, sem desviar os olhos de Bella depois que ela, finalmente, sossegou, encostada na minha perna.
O sr. Petracelli estava vestido de acordo com o clima. Usava trenchcoat comprido marrom, um chapéu de feltro marrom na cabeça e um guarda-chuva preto ao lado. Ele me lembrou um personagem de filme de espionagem, e me perguntei se era assim que ele via nosso encontro, como algum tipo de operação clandestina, realizada entre dois profissionais.
Eu não estava me sentindo muito profissional naquele momento. Principalmente, me sentia grata pela presença da minha cachorra.
Como o encontro havia sido marcado pelo sr. Petracelli, esperei que ele falasse primeiro.
Ele limpou a garganta. Uma, duas, três vezes.
— Sinto muito por, ahn, ontem — ele disse. — Eu só... quando a Lana disse que você estava indo lá em casa... eu ainda não estava pronto. — Então, ele fez uma pausa e, como eu permaneci em silêncio, acrescentou rapidamente: — Lana tem a Fundação, a causa dela. Para mim, é diferente. Eu não gosto muito de pensar naqueles dias. É fácil fingir que nunca moramos na Oak Street. Arlington, Dori, nossos vizinhos... é quase como se tivesse sido um sonho. Alguma coisa muito distante. Talvez, se eu tiver sorte, tudo aconteceu apenas na minha mente.
— Eu sinto muito — falei sem graça, principalmente porque não sabia o que mais dizer. Nós havíamos ido para o outro lado, para longe dos clientes do bar, para o outro lado do imenso prédio com colunas de granito. O sr. Petracelli ainda estava receoso, olhando desconfiado para Bella. Pensei que era melhor assim.
— A Lana me disse que foi você quem deu o pingente a Dori — ele declarou subitamente. — É verdade? Você deu a ela um dos seus... presentes? Aquele pervertido que os deixava para você matou minha filha? — Ele havia aumentado o tom da voz. Então, vi alguma coisa tomando conta de seu olhar sombrio. Uma luz que não era muito sã.
— Senhor Petracelli...
— Eu disse aos detetives de Lawrence que devia haver alguma ligação. Quero dizer, primeiro algum voyeur está olhando pela janela do nosso vizinho, depois, nossa filha de sete anos desaparece. Eram duas cidades diferentes, eles disseram. Dois modus operandi diferentes. Cuide da sua vida, foi o que eles quiseram dizer. Deixe que nós fazemos nosso trabalho, seu maluco.
Ele estava se deixando ficar mais e mais tenso.
— Eu tentei ligar para seu pai. Pensei que se ele ao menos pudesse falar com a polícia, poderia convencê-los. Mas eu não tinha o telefone. Que tal isso? Uma amizade de cinco anos. Piqueniques, festas de ano-novo, vendo nossas filhas crescerem lado a lado, e uma dia sua família vai embora sem sequer se despedir. Eu odiei seu pai por ter ido embora. Mas, talvez, fosse simplesmente inveja. Porque ele foi embora e salvou sua menininha. Enquanto eu não fiz nada e perdi a minha.
Sua voz estridente falhou, sem disfarçar a amargura. Eu ainda não sabia o que dizer.
— Eu sinto falta de Dori — finalmente arrisquei.
— Sente falta? — ele repetiu, e aquela coisa feia cintilou nos olhos dele novamente. — Eu não ouvia falar da sua família fazia vinte e cinco anos. Jeito bem estranho de sentir falta de alguém, se quer saber.
Mais silêncio. Troque de posição. Sentia que ele tinha alguma coisa importante a dizer, o verdadeiro motivo pelo qual tinha saído de casa em uma noite tão escura e chuvosa, mas ele ainda não sabia como expor em palavras.
— Eu quero que você vá até a polícia — ele disse, afinal, olhando de debaixo da aba do chapéu. — Se você contar a eles sua história, principalmente sobre o pingente, eles vão se interessar novamente pelo caso. Homicídios não prescrevem, sabia? E se eles encontrarem novas pistas... — A voz dele vacilou. Ele ficou tenso e seguiu em frente. — Eu tenho um problema cardíaco, Annabelle. Quatro safenas. Tenho mais peças plásticas do que carne e osso ultimamente. É o que vai me matar. Meu pai não viveu muito além dos 55 anos. Meu irmão também não. Eu não me importo de morrer. Alguns dias, francamente, morrer parece um alívio. Mas, quando eu morrer... eu quero ser enterrado ao lado da minha filha. Quero saber que ela está do meu lado. Quero saber que ela, finalmente, voltou para casa. Ela só tinha sete anos. Minha menininha. Meu Deus, eu sinto tanta saudade dela.
E, então, ele começou a chorar, dando soluços gigantescos que fizeram estranhos pararem espantados. Passei os braços ao redor dos ombros dele, que me segurou com tanto força que quase me derrubou. Mas eu me firmei contra o peso dele, sentindo as ondas duras e violentas de seu sofrimento.
Bella ganiu, empinando nervosamente e tocando minha perna com a pata. Tudo o que eu podia fazer era esperar.
No fim, ele acabou se recompondo, secando o rosto, apertando o cinto do casaco, arrumando a aba do chapéu. Ele não iria mais olhar para mim. Eu não esperava que ele olhasse.
— Eu irei à polícia — prometi a ele, uma promessa fácil, uma vez que eu já havia feito isso. — Nunca se sabe. A ciência forense está cada dia melhor. Talvez eles até já tenham feito alguma descoberta importante.
— Bem, apareceu aquela cova em Mattapan — ele murmurou. — Seis corpos. Quem sabe, talvez tenhamos sorte. — Ele fez uma careta. — Sorte! Você me ouviu? Meu Deus, isso não é jeito de viver.
Não fiz nenhum comentário. Olhei rapidamente para meu relógio. Estava fora fazia vinte minutos. Eu, provavelmente, já estava demitida, de qualquer maneira. O que seriam mais alguns minutos?
— Senhor Petracelli, o senhor algum dia viu o voyeur?
Ele sacudiu a cabeça.
— Mas o senhor acreditava que esse homem existia, certo? Que havia alguém morando no sótão da senhora Watts, me vigiando?
Ele olhou para mim de um jeito estranho.
— Bem, eu não acho que a senhora Watts e seu pai inventariam uma coisa dessas. Além disso, a polícia encontrou os equipamentos de camping do sujeito na casa da senhora Watts. Isso me parece suficientemente real.
— Então o senhor nunca viu o sujeito? Viu com seus próprios olhos?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, mas dois dias depois da descoberta das coisas no sótão da sra. Watts, tivemos uma reunião da vizinhança. O seu pai fez circular uma descrição do voyeur com uma lista de “presentes” que você havia ganhado e as datas em que eles tinham chegado. Ele nos disse que não havia muito que a polícia pudesse fazer. Até que algum crime realmente acontecesse, eles estavam de mãos amarradas. Claro que todos ficamos enfurecidos, principalmente os que tínhamos filhos. Votamos para criar um programa de vigilância do bairro. Havíamos acabado de realizar nossa primeira reunião, na verdade, quando seu pai anunciou que vocês iriam tirar umas pequenas férias. Nenhum de nós imaginou que jamais os veria novamente.
— O senhor por acaso tem esse material? A descrição do voyeur que meu pai distribuiu? Quero dizer, sei que faz muito tempo, mas...
O senhor Petracelli deu um sorriso suave.
— Annabelle, querida, eu tenho uma pasta enorme de papel pardo contendo cada parte de documento. Eu a levei a todas as reuniões que tivemos com a polícia desde que minha menininha desapareceu e, em todas as reuniões, eles a deixavam educadamente de lado. Mas eu guardei tudo. No fundo, no fundo, eu sempre soube que havia uma ligação entre o desaparecimento de Dori e o seu. Eu só nunca consegui fazer com que alguém mais acreditasse nisso.
— O senhor pode me dar uma cópia? — eu já estava remexendo na bolsa atrás de um dos meus cartões de visita.
— Farei o possível.
— Senhor Petracelli, o senhor disse que conhecia meu pai fazia cinco anos. Foi o senhor que chegou depois à vizinhança ou fomos nós?
— A sua família chegou em 1977. Lana e eu estávamos lá desde que ela estava grávida de Dori. Ouvimos boatos de que uma família estava se mudando para lá com uma menina da idade de Dori. Lana tinha acabado de tirar biscoitos do forno quando o caminhão de mudança apareceu. Ela foi direto até lá com biscoitos na mão e Dori a tiracolo. Vocês duas se tornaram inseparáveis naquela mesma tarde. Recebemos seus pais para jantar na segunda noite, e isso acertou tudo.
Sorri para encorajar mais lembranças da parte dele.
— É mesmo? Eu sinceramente não me lembro. Acho que era pequena demais.
— Você tinha, o quê, um ano e meio, dois anos de idade? Ainda andava como um bisão. Você e Dori costumavam correr atrás uma da outra ao redor da nossa casa, gritando com toda a força. Lana sacudia a cabeça, dizendo que era um milagre vocês não tropeçarem nos próprios pés. — O sr. Petracelli estava sorrindo. Não era de admirar que ele fosse tão atormentado. Apesar de sua afirmação anterior, ele se lembrava do passado vividamente, como se fosse uma velha fotografia que ele sempre via.
— De onde veio minha família, o senhor sabe?
— Da Filadélfia. Seu pai era da Universidade da Pensilvânia, ou coisa parecida. Eu nunca entendi direito o trabalho de Russell. Ainda que, para um professor, preciso admitir que ele tinha um ótimo gosto para cervejas. Além disso, ele gostava dos Celtics, o que me bastava.
— Eu nunca entendi muito bem o trabalho do meu pai também — murmurei. — Ensinar matemática sempre me pareceu tão chato. Eu me lembro que costumava fingir que ele era agente do FBI.
O sr. Petracelli riu.
— Russell? Dificilmente. Nunca conheci alguém tão sensível em relação a armas de fogo. Naquela reunião da vigilância do bairro, alguns de nós falaram em comprar armas para autodefesa. Seu pai nem quis saber disso. “Já é ruim o bastante que um sujeito tenha trazido o medo para a minha casa”, ele insistiu. “Deus me livre de permitir que ele traga a violência também.” Não, seu pai era um liberal acadêmico absoluto. Vamos resolver com uma conversa, dar uma chance à paz e toda aquela coisa.
— O senhor comprou uma arma?
— Comprei. Mal sabia que eu deveria tê-la mandado com Dori para Lawrence. — O rosto do sr. Petracelli se contorceu novamente, com a amargura tirando o melhor dele. Sua respiração havia ficado mais superficial, tensa. Fiquei preocupada com o coração dele.
— A Lana me disse que seus pais morreram — ele disse abruptamente.
— Sim, senhor.
— Quando?
Pensei na pergunta dele, em onde ele estava querendo chegar com aquilo.
— Isso tem importância?
— Talvez.
— Por quê?
Ele apertou os lábios.
— Para onde vocês foram, Annabelle? — ele disse bruscamente, ignorando minha pergunta. — Para onde sua família viajou de férias, a que distância vocês foram?
— Nós fomos até a Flórida.
— E seu pai realmente conseguiu um emprego lá? Foi por isso que ficaram?
— Ele dirigia um táxi. Não era o mesmo que ser professor, mas imagino que ele tenha achado que a troca valia a pena.
A notícia pareceu surpreender o sr. Petracelli. Seria o fato de meu pai ter se disposto a desistir da carreira acadêmica ou o de que ele não havia mentido sobre ter conseguido um emprego? Não soube ao certo. Ele piscou.
— Me desculpe — ele disse depois de um instante —, acho que só estou ficando paranoico com a idade. Não é algo difícil, considerando que eu acordo gritando quase todas as noites.
A chuva havia começado a cair novamente. O sr. Petracelli já estava se virando para ir embora. Eu o detive, segurando-o pelo braço.
— Por que me perguntou sobre meu pai, sr. Petracelli? O que o senhor precisa saber?
— É só que... depois que Dori desapareceu, um vizinho contou ter visto um homem dirigindo uma van branca sem pintura na área, fazendo até uma descrição do sujeito para a polícia. A Lana nunca concordou comigo, é claro, mas sabe qual foi a primeira coisa em que pensei?
— O quê?
— Cabelos curtos escuros, rosto bronzeado, muito bonito. Vamos lá, Annabelle. — De repente, o rosto do sr. Petracelli mudou novamente, com aquele vislumbre ardiloso voltando a seu olhar. — Me diga quem é.
Por um instante, eu não entendi. Depois, ao assimilar a insinuação dele, tentei soltar minha mão. Ele agarrou meus dedos e os segurou firmemente.
— Não seja absurdo! — eu disse com energia.
— É, Annabelle, o homem que levou minha Dori parece exatamente com seu querido e velho pai.
Ele empurrou meu braço em minha direção. Eu caí na calçada molhada, machucando os dedos para proteger o peito enquanto Bella desandou a latir loucamente. Eu a segurei, tentando contê-la, tentando me firmar.
Quando olhei para o alto novamente, o sr. Petracelli não estava mais lá; apenas pairava no ar úmido e sombrio a gravidade da acusação dele.
capítulo 28
Carl me demitiu. Eu aceitei bem a notícia, considerando que precisava do emprego para pagar certos luxos como o aluguel. Mais do que tudo, estava aliviada por deixar o ambiente barulhento e caótico do Mercado Quincy, onde as palavras horríveis do sr. Petracelli ainda manchavam a noite. Até mesmo Bella ficou arrasada, caminhando obedientemente a meu lado quando saímos de Faneuil Hall e entramos no território familiar do Columbus Park.
O parque ao lado do porto era pequeno, se comparado a outros espaços verdes de Boston. Mas oferecia uma fonte de água que mantinha as crianças sorridentes e molhadas durante o verão, enquanto os adultos relaxavam na grama ou embaixo da sombra da comprida cerca de madeira. Tinha um parquinho, um roseiral e uma pequena fonte, onde os sem-teto passavam as noites.
Às vezes, antes do meu turno no Starbucks, eu levava Bella até lá para correr com seus vizinhos da zona norte, um pequeno playground de filhotes. Eu ficava ao lado dos humanos que se reuniam enquanto os cães brincavam.
Estava frio e úmido demais para crianças agora. Tarde demais para encontros de cachorros ou comunitários. Os sem-teto dormiam nos bancos. Os beberrões passavam apressadamente, atentos ao clima, ao trocarem os estabelecimentos de Faneuil Hall por restaurantes no norte da cidade. Além disso, o parque estava em silêncio.
Me peguei pensando no bilhete novamente. Devolvam o pingente, ou outra menina irá morrer.
Havia uma menininha na cama agora, talvez aninhada com seu cachorrinho de pelúcia preferido e seu cobertor cor-de-rosa de flanela? Ela confiava que os pais a manteriam em segurança? Acreditava que nada poderia acontecer em sua casa?
Ele atravessaria o gramado, com um pesado pé de cabra batendo na coxa. Ele se posicionaria onde não pudesse ser visto, talvez atrás de uma árvore ou um arbusto. Então, ele se aproximaria da casa até chegar ao lado da janela dela.
Ele levantaria o pé de cabra e forçaria a vidraça da janela...
Apertei as palmas das mãos contra os olhos, como se isso dissipasse as imagens. Eu me senti mergulhada na feiura, sufocada pela violência. Vinte e cinco anos depois, eu ainda não conseguia escapar.
Eu não queria pensar nas palavras do sr. Petracelli. Não queria pensar na ameaça deixada no para-brisa do carro de D.D. O passado era o passado. Eu era uma adulta agora. Já morava na cidade fazia mais de dez anos. Por que o bicho-papão voltaria agora, exigindo meu velho pingente, ameaçando fazer novas vítimas? Não fazia nenhum sentido. O sr. Petracelli estava maluco. Um homem amargo e louco que nunca havia superado a terrível perda da filha. É claro que ele culpava meu pai. Isso o liberava de todas as formas de culpa paterna.
Quanto às alegações de Bobby e D.D....
Eles não haviam conhecido meu pai. Eles não o conheciam como eu o conheci. Como ele era capaz de afundar os dentes em um problema feito um pitbull, se recusando a soltá-lo. É claro que Catherine tinha informações que ele queria. Naquele caso, teria feito sentido meu pai se fazer passar por agente do FBI. Pais normais, provavelmente, não faziam esse tipo de coisa, mas eles, provavelmente, não se mudavam com suas famílias para a Flórida apenas porque a polícia não chamava a Guarda Nacional para procurar por um voyeur.
E quanto ao breve desaparecimento do meu pai depois que nos mudamos para a Flórida... não restam dúvidas de que havia pontas soltas a serem resolvidas. Era preciso fechar contas bancárias, guardar as coisas em um depósito. Exceto que, é claro, ele poderia ter fechado a conta bancária antes de partirmos. E, aparentemente, ele havia contratado a empresa de mudança por telefone...
Eu não queria pensar nisso. Meu pai era obsessivo, paranoico e sistemático.
Mas isso ainda não queria dizer que ele era um assassino.
Exceto talvez que ele não fosse sequer Russell Granger?
Minhas têmporas começaram a latejar novamente. O começo de uma dor de cabeça de primeira classe que havia começado 25 anos atrás e agora ameaçava continuar indeterminadamente. Eu não sabia o que fazer. Eu só queria... eu só gostaria...
— Olá.
A voz me assustou tanto que dei um grito, girei e quase caí. Uma mão forte segurou meu braço e me manteve de pé.
Bella latiu muito quando eu me virei e vi o velho do Hospital Psiquiátrico de Boston parado a meu lado. Charlie Marvin. Bella latiu mais alto. Nem um pouco preocupado, Charlie simplesmente se abaixou e estendeu a mão.
— Que linda cachorra — ele murmurou, esperando até que Bella tivesse parado de latir por tempo suficiente para cheirar a mão dele. Mais uma fungada hesitante, e ela foi na direção dele, abanando o rabo.
Aparentemente, Charlie era cachorreiro.
— Ah, que boa garota. Você é muito linda! Olhe para essas marcas. Você deve ser uma pastora australiana. Infelizmente não há muitas ovelhas para você pastorear por aqui. Você se contentaria com táxis? O que me diz? Você parece ser uma garota muito ágil. Aposto que consegue pegar muitos táxis.
Bella pareceu achar aquela uma ótima ideia. Se encostou em Charlie, olhando para mim em busca de aprovação. O homem havia conquistado completa e absolutamente a minha cachorra.
Ele, finalmente, se levantou, sorrindo melancolicamente enquanto os joelhos estalavam e precisando segurar meu braço para se apoiar.
— Me desculpe — ele disse alegremente. — Uma coisa é se abaixar. Outra completamente diferente é se levantar.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, falando com a voz firme, sem me desculpar.
Ele apertou os olhos azuis. Pareceu achar minha preocupação divertida. Levantou as duas mãos em um gesto de mea culpa.
— Lembra quando eu disse que você me parecia familiar?
Assenti de má vontade.
— Fiquei pensando nisso e me lembrei de onde. Deste parque. Você corre aqui com sua cachorra. Normalmente um pouco mais cedo do que isso, mas eu já vi você algumas vezes. Eu nunca me esqueço de um rosto, especialmente de um rosto bonito. — Ele olhou para baixo e acariciou Bella no pescoço. — É claro que estou falando sobre você, querida — ele sussurrou.
Não consegui evitar e, finalmente, sorri. Então rapidamente me recompus.
— E por que está no parque com tanta frequência?
Ele fez um sinal com a cabeça na direção da esquina da Avenida Atlantic.
— Trabalhando com os sem-teto. Não é apenas por não ter um teto sobre a cabeça que a pessoa não pode receber a palavra de Deus.
Não consegui pensar em um argumento para contrapor àquilo.
— De qualquer maneira — ele disse, balançando nos calcanhares e enfiando as mãos nos bolsos —, vou confessar, eu estive procurando por você.
Eu não disse nada, mas senti minha pulsação acelerar ao ficar em estado de alerta.
— Você não é da polícia — ele disse.
Não respondi.
— Mas eles a levaram até a cena do crime. — Ele entortou a cabeça, olhando firmemente para mim. — Então imaginei que talvez você seja algum outro tipo de especialista. Uma botânica, especialista em ossos. Eu não sei de nada, na verdade, só assisto à TV Justiça. Mas sou bom em avaliar pessoas e acho que você é tão cientista como é policial. O que quer dizer... estou pensando que seja parente. De uma daquelas pobres meninas. Mas você é jovem demais para ser mãe de uma delas. Então quem sabe irmã? É a minha teoria, pelo menos. Você conhecia uma das meninas cujo corpo foi encontrado, e eu fico muito triste com isso.
Muito lentamente, assenti com a cabeça. Irmã. Era praticamente isso.
Charlie sorriu.
— Ufa! — Ele fez um gesto exagerado, como se estivesse secando a testa. — Eu ando realmente queimando neurônios, sabe. Mas muitas vezes estou com a razão. O Senhor me deu um talento. Por ora, eu o estou usando para o trabalho Dele. Assim que terminar o serviço, porém, acabou. Vou para as mesas de pôquer. Quando ficar velho, vou comprar um Cadillac!
O sorriso dele era contagiante demais. Me peguei sorrindo de volta, com Bella saltitando a nosso redor, claramente apaixonada pelo novo amigo.
— Tudo bem — eu disse. — Eu sou parente. Qual é seu interesse?
Charlie ficou sério imediatamente, sacudindo a cabeça pesarosamente.
— Eu não consigo dormir. Sei que pode parecer maluco. Eu sou pastor. Se eu não souber sobre o verdadeiro mal de que o homem é capaz, quem saberá? Mas sou um idealista. Das vezes em que estive perto do verdadeiro mal, eu o reconheci. Eu pude senti-lo, tocá-lo, cheirá-lo. Christopher Eola cheirava a maldade.
— Mas, durante todos os meus anos no Hospital Psiquiátrico de Boston, eu jamais suspeitei de algo tão terrível como uma cova coletiva. Jamais caminhei pelas ruas de Mattapan e imaginei que menininhas estavam sendo tiradas de suas casas. Nunca caminhei em meio às árvores da propriedade e pensei por um instante que havia escutado uma menina gritar. E eu costumava andar em meio àquelas árvores com bastante frequência. Muitos de nós fazíamos isso. É um dos melhores santuários do estado. Seríamos tolos de não aproveitar a dádiva de Deus. E era isso o que eu sentia quando percorria aqueles campos, contornando os brejos, me retirando para o meio da floresta... eu me sentia sincera e genuinamente mais perto de Deus.
A voz dele ficou engasgada. Ele levantou o olhar, me encarando com sombrios olhos azuis.
— Isso mexeu com a minha alma, minha jovem. Se eu não fui capaz de sentir o mal naquele terreno, que tipo de pastor sou eu? Como posso ser mensageiro de Deus quando fui tão cego?
Eu não sabia o que dizer. Nunca um pastor havia vindo até mim com uma questão de fé. No instante seguinte, no entanto, ficou claro que Charlie Marvin não estava atrás da minha opinião. Ele já havia formado a opinião dele.
— Isso se tornou a minha obsessão — ele afirmou. — Aquela cova no Hospital Psiquiátrico de Boston, as almas daquelas pobres meninas. Onde eu falhei uma vez, não posso falhar novamente. Gostaria de encontrar as famílias, mas as meninas ainda não foram identificadas. Exceto por você. Então aqui estou.
Franzi a testa, ainda sem saber o que pensar.
— Não estou entendendo. O que o senhor quer?
— Eu não estou aqui para pedir nada, querida criança. Estou aqui para você falar. Sobre tudo e qualquer coisa que queira. Venha, sente-se aqui. Está frio, é tarde, você veio para o parque em vez de ficar na sua cama quentinha e confortável. Claramente está com alguma coisa na cabeça.
Charlie fez um gesto na direção de um banco e seguiu para lá. Eu o segui com relutância, sem querer conversar, mas, estranhamente, detestando a ideia daquele encontro terminar. Bella estava feliz. E eu senti alguma coisa se abrir dentro de mim diante de um homem tão carinhoso e tranquilo. Charlie Marvin conhecia o pior da humanidade. Se ainda conseguia encontrar motivos para sorrir, talvez eu também conseguisse.
— Muito bem — ele disse enfaticamente quando chegou ao banco e descobriu que eu ainda não havia ido embora. — Vamos começar pelo básico. — Ele estendeu a mão. — Boa noite, meu nome é Charlie Marvin. Sou pastor, e é um prazer conhecê-la.
Eu o acompanhei.
— Boa noite. Meu nome é Annabelle, eu faço cortinas por encomenda e é um prazer conhecê-lo também.
Trocamos um aperto de mão. Percebi que Charlie não esboçou qualquer reação a meu nome, e por que deveria? Mas eu me senti exultante por ter dito meu nome verdadeiro em público depois de 25 anos.
Charlie se sentou. Eu o acompanhei. Como era tarde e o parque estava molhado e deserto, soltei Bella da guia. Ela pulou, dando lambidas agradecidas, e saiu correndo ao longo da cerca.
— Então, se não se importa que eu diga — Charlie comentou —, você não parece ser de Boston.
— Minha família se mudou muito quando eu era pequena. Mas considero Boston a minha casa. E você?
— Cresci em Worcester. Ainda não consigo dizer os Rs.
Isso me fez dar risada.
— Então é um nativo. Esposa, filhos, cachorros?
— Tive uma esposa. Tentamos ter filhos. Não estava nos planos de Deus. Então minha mulher teve câncer de ovário. Ela faleceu... ah, já faz uns bons doze anos agora. Nós tínhamos uma casinha em Rockport. Eu a vendi e voltei para a cidade. Me economiza a viagem. Eu possivelmente não sou mais o melhor dos motoristas atrás de um volante. Meu cérebro está ótimo. As minhas mãos, no entanto, demoram um pouco para obedecer aos comandos.
— E você trabalha com os sem-teto?
— Sim, senhora. Eu faço trabalho voluntário na Pine Street. Ajudo no abrigo e na cozinha do sopão. Além disso, acredito fortemente em trabalho de campo. Os sem-teto nem sempre conseguem nos procurar, nós precisamos ir até eles.
Eu fiquei sinceramente curiosa.
— Então, você vem até lugares como este e faz o quê? Prega? Distribui sopa? Entrega panfletos?
— Basicamente, eu escuto.
— É mesmo?
— É mesmo. — Ele assentiu vigorosamente. — Pensa que os sem-teto não se sentem solitários? Claro que sim. Mesmo os mentalmente destituídos, os economicamente desamparados, têm a necessidade básica de contato humano. Então, eu me sento com eles. Deixo que me falem sobre suas vidas. Ou, às vezes, simplesmente não dizemos nada. E isso pode ser igualmente bom.
— Isso funciona? Você já “salvou” alguém?
— Eu salvei a mim mesmo, Annabelle. Não basta?
— Sinto muito, eu quis dizer...
Ele acenou com a mão como que dispensando meu constrangimento.
— Eu sei o que você quis dizer, querida. Só estou brincando com você.
Corei. O que pareceu diverti-lo ainda mais. Mas, então, ele se inclinou para a frente, falando sério.
— Não, eu não posso dizer que tenha transformado magicamente a vida de alguém. O que é uma pena, considerando que a média de idade de um morador de rua é 24 anos. — Ele viu meu olhar surpreso e assentiu. — É, faz a gente pensar, não? E quase metade dos sem-teto tem problemas mentais. Para ser sincero, esse pessoal não é do tipo que vai dar a volta por cima depois de ganhar um banho grátis e uma tigela de sopa. Eles precisam de ajuda, precisam de orientação, e, principalmente, na minha humilde opinião, eles se beneficiariam de pelo menos uma breve passagem por um ambiente terapêutico. Nada disso vai acontecer com eles.
— Você é um bom homem, Charlie Marvin.
Ele segurou o peito alegremente.
— Ah, acalme-se, meu coração. Estou velho demais para estar recebendo tamanho elogio de um rosto bonito. Tome cuidado, ou o espírito da minha esposa vai voltar para punir a nós dois. Ela sempre foi muito ciumenta.
Isso me fez rir, o que pareceu deixá-lo feliz. Bella voltou para ver como estávamos indo. Ao ver que não havíamos feito nada, ela se atirou aos meus pés, deu um forte suspiro e abaixou a cabeça. Por um tempo, nós três ficamos ali sentados, olhando para a lua, escutando a água, sentindo a paz do silêncio.
Claro que fui a primeira a romper o silêncio.
— Você sabe quem foi? — perguntei, não vendo motivos de esclarecer o quê.
Charlie pensou na resposta.
— Infelizmente acho que conheço quem fez essa coisa terrível — ele disse afinal. — Quero dizer, quando a polícia descobrir tudo, o nome será de alguém que eu conhecia do hospital.
— Você mencionou dois possíveis suspeitos. Esse Adam Schmidt. E Christopher Eola.
— Então, você estava ouvindo.
— Eu tenho interesse no assunto — respondi calmamente.
Ele piscou para mim.
— Não estou criticando, menina. No seu lugar, eu teria escutado também.
— Dos dois, quem você acha que é mais suspeito?
— Sem saber quaisquer detalhes do crime?
— Nenhum de nós sabe muitos detalhes do crime — eu disse, em resposta à pergunta dissimulada dele.
— Christopher Eola — ele disse imediatamente. — É preciso ser depravado, mas calculista, para sequestrar e assassinar seis meninas. Adam era um relaxado, não me entenda mal. Mas ele era preguiçoso demais para esse tipo de crime. Christopher, por outro lado... ele adoraria o desafio.
— Você sabe onde ele está agora?
— Bem... — Charlie começou, e então parou.
— Bem? — eu o estimulei a continuar.
— Fiquei pensando mais no caso depois de conversar com o detetive Dodge e a sargento Warren...
— Sim?
— Bem, quanto mais eu pensava em Christopher, mais eu achava que devia ter sido ele. Então liguei para um amigo meu de Bridgewater. Ele nunca havia ouvido falar de Eola... o que já é um mau sinal, se entende o que eu quero dizer. Mas ele fez uma pesquisa, e descobriu que Eola foi liberado em 1978. O que quer dizer que Christopher teve todo o tempo do mundo nas mãos, mas nenhum de nós jamais ouviu falar nele. Isso me deixou nervoso.
— Você não acha que ele magicamente conseguiu um emprego, se incorporou à sociedade e se tornou um cidadão modelo?
Charlie pensou na minha pergunta.
— Você acha que Ted Bundy era um cidadão modelo? Porque se considera, então talvez Christopher tenha uma chance.
— Tão ruim assim?
— O sujeito não tinha moral. Nenhuma empatia com os outros seres humanos. Para um cara assim, o mundo todo é um sistema para ser manipulado. E o que Christopher Eola mais gostava de fazer era se mostrar mais inteligente do que os outros para realizar suas próprias fantasias particulares e muito violentas.
Pensei nas palavras de Charlie.
— Se for mesmo o caso, como acha que ele conseguiu passar quase trinta anos sem chamar a atenção da polícia?
— Eu não sei.
— Mas deve ter algumas ideias.
Charlie acariciou a cabeça de Bella enquanto pensava.
— Eola era de família com dinheiro, então talvez ele tenha ficado com parte desses recursos. Um pouco de dinheiro pode cobrir muitos buracos.
— É verdade.
— E ele é inteligente, o que ajuda. Mas, principalmente, acho que ele usa sua aparência.
— Você o descreveu aos detetives como efeminado.
— Sim, senhora. Mas ele é forte. Todo feito de músculos e força. Mas ele parece, ou ao menos parecia, quando o conheci, bastante aristocrático. Por algum motivo, ninguém jamais suspeita do acadêmico culto.
— Acadêmico? — eu me ouvi perguntando.
— Não era como se ele realmente tivesse um título ou coisa parecida. Mas era uma imagem que ele cultivava. Várias das nossas enfermeiras chegavam a acreditar que ele era Ph.D., até que nós dissemos que ele nem sequer havia ido à faculdade.
— Que tipo de título ele fingia ter?
Charlie apertou os lábios.
— Aaaah, isso faz muito tempo. Diploma em história? Mestrado em artes? Talvez fosse literatura. Não me lembro agora. Mas sei que ele levou algumas pessoas a acreditarem que ele dava aulas no MIT. Não sei por quê. Eu teria imaginado que ele era de Harvard.
Charlie deu seu sorriso amigável, mas eu não estava mais sorrindo. Alguma coisa me incomodava. Coincidências demais.
— Você tem uma foto de Christopher? — perguntei.
— Não, senhora.
— Mas deve haver alguma nos arquivos. Um livro do ano? Uma foto de documento? Alguma coisa.
— Não sei ao certo, para dizer a verdade. Talvez Bridgewater tenha feito uma foto.
Assenti lentamente. Comecei a bater o pé, agitada. Se Eola foi solto em 1978... Ainda exilado da família, sem ter aonde ir...
Alguém assim poderia ir para Arlington? Talvez se estabelecer no sótão de uma velha senhora? E considerando que ele tinha dinheiro, se o alvo que o interessava desaparecesse, ele também se interessaria em segui-lo? Talvez a polícia de Boston nunca tenha ouvido falar de Christopher Eola pelo mesmo motivo que nunca ouviu falar de mim. Porque ambos desaparecemos e passamos os 25 anos seguintes na estrada.
Estava ficando tarde. Perdida nos meus próprios pensamentos, não havia me dado conta de que Charlie já estava de pé, pronto para ir embora. Em seguida, eu me levantei e procurei por um cartão de visita na bolsa.
— Se pensar em mais alguma coisa — eu disse a ele —, eu agradeceria qualquer ajuda que pudesse me dar.
— Ah, sem problema. O prazer é todo meu. — Ele olhou para meu cartão, franziu o cenho e perguntou: — Tanya?
— Meu nome do meio. Eu uso profissionalmente. Você sabe, cuidado nunca é demais.
Apertamos as mãos uma última vez. Charlie seguiu rumo a Faneuil Hall. Bella e eu rumamos para o extremo norte.
Bem no final do parque, enquanto eu estava a caminho da Avenida Atlantic, alguma coisa fez com que eu me virasse. Vi Charlie, agora atrás da cerca, olhando atentamente para Bella e para mim. Um cavalheiro idoso cuidando para que eu chegasse em casa bem. Ou alguma outra coisa?
Ele me viu olhando, levantou a mão, sorriu levemente e se virou.
Então comecei a correr com Bella, sob as luzes dos postes, nas ruas principais, com o Taser na mão e os demônios me perseguindo novamente.
capítulo 29
Bobby se sentou a 9 metros do chão, equilibrado nos galhos nus de um imenso carvalho. Estava usando uniforme preto com armadura macia. Tinha um par de óculos de visão noturna apoiado na testa. Nos braços, um rifle Sig Sauer 3000 equipado com uma mira variável Leupold 3-9X 50 mm e carregada com projéteis .308 Remington 168.
Ele deveria estar pensando nos velhos tempos. Quando podia correr mais rápido do que uma bala e pular entre edifícios num único salto. Quando era o melhor dos melhores, o mais malvado dos malvados. Quando tinha uma missão, uma equipe, e um senso de propósito.
Mais do que tudo, ele queria salvar o pescoço de D.D.
O bilhete no carro de D.D. continha instruções claras. Às 3h33m da madrugada, o pingente deveria ser devolvido no antigo terreno do Hospital Psiquiátrico de Boston, do lado de fora das ruínas do prédio administrativo. D.D. deveria levar o pingente ela mesma. Deveria usá-lo ao redor do pescoço. Deveria ir sozinha.
Bobby podia ser um detetive novato, mas servira na unidade de operações táticas por sete anos. Entendia de estratégia e se sentia confortável em operações especiais.
D.D. leu o bilhete e viu uma oportunidade. Ele leu o bilhete e viu isca.
Por que D.D.? Por que sozinha? Por que, se a ideia toda era devolver o colar, ela deveria estar usando-o no pescoço?
Então, havia o local em si: setenta hectares de mata. Duas ruínas, um local de construção e uma cena de crime subterrânea. Não havia equipes da SWAT suficientes na Nova Inglaterra para garantir uma área tão grande, especialmente durante a noite.
D.D. argumentara que havia apenas duas vias de acesso à propriedade, o que não era difícil de monitorar. Bobby havia observado que, embora houvesse apenas duas entradas/saídas legais no local, as pessoas vinham cavando embaixo das cercas, abrindo buracos e correndo livres pelo terreno fazia décadas. O local era um queijo suíço, com limites indefinidos e cercas inúteis.
Eles precisavam de unidades táticas. Sua antiga equipe, para começar, que levaria 32 homens para a festa. Ele havia até mesmo considerado trabalhar com a equipe da SWAT da cidade, desde que eles se comprometessem a não tocar em sua arma. Corpos eram corpos, treinamento era treinamento e, realmente, o pessoal de Boston era muito bom, mesmo que o pessoal do estado não gostasse de dizer esse tipo de coisa em voz alta.
Ele também queria helicópteros, cães e câmeras de visão noturna dispostos em intervalos estratégicos.
D.D., é claro, havia decidido dispor um homem no local: ele. Os demais formariam um perímetro discreto, prontos para se aproximar do sujeito no instante em que ele aparecesse. Muita gente poderia espantá-lo. O mesmo em relação ao reforço aéreo. Câmeras de segurança não eram má ideia, mas eles não tinham tempo de instalar algo tão sofisticado.
Em vez disso, ela havia optado pelo básico: cães farejadores de bombas haviam feito rondas três horas antes, enquanto duas dúzias de policiais percorreram a mata imediatamente ao redor do local. Então o apoio tecnológico havia instalado apressadamente sensores que lançavam raios de luz infravermelhos de um ponto a outro, formando um perímetro ao redor da área definida para o encontro. No instante em que um dos raios fosse acionado, o sinal seria enviado ao comando central, alertando Bobby e D.D. antecipadamente sobre a aproximação do sujeito.
D.D. estava com microfone instalado sob seu colete Kevlar de boro. Tinha também um fone no ouvido com o transmissor no colete. Isso permitiria que se comunicasse com ele e com o Comando Central, instalado em uma van do outro lado da rua, no cemitério.
D.D. era uma tola. Uma sargento teimosa, cabeçuda e bitolada que sinceramente acreditava que poderia salvar o mundo em uma única noite.
Bobby não achava que fosse uma questão de ambição. Ele achava, mais assustadoramente, que D.D. estava curiosa.
Ela acreditava que o sujeito iria aparecer. E, quando ele aparecesse, ela esperava determinar se o homem era Christopher Eola ou o desaparecido pai de Annabelle. Então iria manter o assassino de crianças tão ocupado com sua beleza estonteante e sua réplica inteligente, que ele não pensaria em abduzir outra menininha. Na verdade, ele diria a D.D. tudo o que ela precisava saber, pouco antes de a força-tarefa aparecer e levá-lo embora algemado.
D.D. era uma tola. Uma sargento teimosa, cabeçuda e bitolada...
Bobby se abaixou. Arrumou sua mira Leupold. Fez o possível para bloquear o som do vento que passava por entre os galhos nus.
Suas mãos não tremeram. Ele estava grato por isso.
Depois do tiroteio, naquele momento em que ainda estava vendo a cabeça de Jimmy Gagnon ser jogada para trás, sangue e miolos explodindo do crânio, Bobby já não sabia se iria se sentir confortável com armas novamente. Não sabia ao certo sequer se iria querer se sentir confortável com armas novamente.
Ele nunca havia tido gosto por armas. Só foi disparar um rifle depois de frequentar a Academia de Polícia. Lá, ele descobriu que era muito bom. Com um pouco de treinamento, tornou-se especialista. Com alguns empurrõezinhos, tornou-se atirador de elite. Mas nunca foi um caso de amor verdadeiro. O rifle não era uma extensão do seu braço, um chamado da alma. Era uma ferramenta em cujo uso ele calhava de ser extremamente competente.
Três dias depois do tiroteio com Jimmy Gagnon, ele foi até um estande de tiro fechado e pegou uma pistola. A primeira rodada foi terrível. A segunda não foi tão má. Ele disse a si mesmo que era como um encanador se reciclando em seu ofício. Desde que mantivesse essa perspectiva, poderia seguir em frente.
O vento soprou novamente, levando uma lufada de garoa molhada. Os galhos da árvore balançaram a seu redor. Ele pensou ter escutado outro gemido grave. Lembrou a si mesmo mais uma vez que não acreditava em fantasmas, nem mesmo no terreno de um antigo hospital psiquiátrico.
Caramba, D.D.
O relógio dele indicava 3h21m. Doze minutos e contando. Ele baixou os óculos de visão noturna e localizou a amiga teimosa.
D.D. andava de um lado para o outro na frente das ruínas de tijolos do velho edifício. Sua silhueta normalmente magra parecia volumosa e sem forma — efeitos do colete Kevlar. Por causa do clima, ela estava usando um casaco amarelo forte por cima da impecável camisa branca de sempre. Sem chapéu, sem nada que limitasse a visibilidade. Sem guarda-chuva, que mantivesse suas mãos presas.
Então, ela se virou, caminhando na direção dele, e Bobby viu o velho pingente de prata cintilando na garganta dela. E apenas por aquele instante, ele viu a foto em preto e branco de criança desaparecida de Dori Petracelli com o mesmo pingente ao redor do pescoço.
O sujeito estava brincando com eles. Ele não se importava com o pingente. E, se quisesse raptar outra menina, iria raptar outra menina. Era o que esses pervertidos faziam.
Mas talvez D.D. também tivesse razão. Com suas ações irrefletidas, ela estava garantindo a eles mais uma noite. As instruções do sujeito haviam sido claras e pessoais. Evidentemente que ele havia formado alguma espécie de ligação com D.D. O suficiente para querer ver um antigo troféu de uma de suas vítimas sendo levado no pescoço da sargento responsável pelas investigações.
Talvez ele já estivesse ali, encarapitado em outra velha árvore, ou mesmo enfiado no prédio de tijolos caindo aos pedaços. Talvez estivesse olhando para baixo, olhando para fora, vendo D.D. andar para lá e para cá, admirando suas pernas longas e fortes, sua graça atlética natural.
Ela chegou à entrada caindo aos pedaços do prédio, deu meia-volta nos calcanhares e começou a caminhar para o lado oposto. 3h31.
Por que 3h33, de qualquer maneira? Por que tão preciso? O sujeito gostava da simetria do 333? Ou era mais uma forma de provocá-los?
O tenente Trenton, do Comando Central, de repente, falou ao ouvido de Bobby.
— Temos atividade. Perímetro violado a oeste.
D.D. continuou caminhando regularmente, embora deva ter ouvido a informação.
Bobby examinou a cena à esquerda. Procurou por sinais de vida.
Uma silhueta escura explodiu de repente de sob o matagal...
No mesmo instante, o tenente Trenton voltou a falar em seu ouvido:
— Mais movimentação. Norte. Atividade. Leste. Não, sul. Não, espere. Meu Deus. Todos os quatro lados foram violados. Todo o perímetro foi violado. Bobby, você está ouvindo?
Bobby ouviu. Bobby viu. Bobby se mexeu.
Apontando o rifle ao redor. Olhando, mirando, apertando o gatilho. Um gemido abortado e, então, uma forma escura caindo. Enquanto mais três formas furiosas saíram do meio das árvores.
D.D. pôs-se a gritar, e tudo começou a acontecer de uma só vez.
Bobby se virou, tentou olhar, viu que os cães de ataque estavam se movimentando tão rapidamente que se achavam perto demais para o alcance da mira. Disse um palavrão, levantou a cabeça e fez as coisas à moda antiga. Apertou rapidamente o gatilho. Um grito assustador e estrondoso, e o segundo cachorro caiu.
Bobby ouviu tiros vindo debaixo. Então viu D.D. a 60 metros de distância. Ela corria na direção da árvore dele atirando loucamente por cima do ombro. Estava avançando em boa velocidade.
Mas ela não ia conseguir.
Ele estava respirando muito forte e muito rápido. Estava se concentrando. Estava dentro do momento, mas fora do momento. Encontrar o alvo. Focar no alvo. Cachorro preto grande com marcas castanhas convergindo com outro cachorro preto de 50 quilos, unindo as forças para caçar a presa.
Galho de árvore bloqueando. E mais outro. Agora, quando os dois passaram por uma área estreita entre os galhos, Bobby apertou o gatilho. O terceiro cachorro caiu. No instante em que o quarto saltou no ar e caiu sobre as costas de D.D.
Ela caiu com o cachorro fechando a imensa mandíbula em seu ombro, destruindo o casaco amarelo de vinil.
— Policial caída, policial caída! — Bobby gritou. — Precisamos de assistência, agora, agora, agora.
Então, ele passou a lutar com os galhos de árvores, tentando cair os 9 metros que o separavam do chão, com o rifle batendo nele enquanto o cachorro atacava a nuca de D.D., fazendo um terrível barulho de rosnado molhado.
Bobby se livrou dos galhos e saltou os 4 metros restantes, rolando com a dor que sentiu nos tornozelos. O rifle era inútil, a força da bala atravessaria o cachorro e atingiria D.D. Ele, então, preferiu pegar a Glock que trazia nas costas enquanto vencia o espaço que o separava dela.
D.D. ainda estava se mexendo. Bobby pôde ver seus braços e pernas se agitando enquanto ela lutava para se livrar do peso enorme em cima dela, dando socos inúteis na cabeça do cachorro.
O animal estava lutando com o colete Kevlar de D.D. Tentava mastigá-lo e arrancá-lo com as patas. Tentava enfiar os dentes na pele macia e branca.
Bobby correu. O rottweiller não chegou a olhar para cima. Bobby pôs o cano da arma no ouvido do animal. Apertou o gatilho. O imenso cachorro caiu, e, finalmente, as árvores ficaram em silêncio.
Foram necessários dez minutos para tirar a mandíbula do animal do ombro esquerdo de D.D. Eles a viraram de lado para trabalhar, enquanto Bobby conversava com ela o tempo todo. Ela estava agarrada com força à mão dele, sem soltar, o que não era um problema, porque ele não deixaria que ela o soltasse.
Sangue. Um pouco no rosto dela, no pescoço. Não estava tão feio quanto temiam. O colete a havia protegido das garras do animal em suas costas. Quando ela saltara para a frente, o Kevlar havia subido, protegendo seu pescoço contra os caninos dele. Ela perdeu um pedaço de pele da mandíbula e uns chumaços de cabelos da parte de trás da cabeça. Considerando as possibilidades, ela não estava reclamando.
Os policiais, finalmente, conseguiram tirar o corpo do cachorro, que caiu pesadamente no chão ao lado de D.D.
Ela se apoiou em Bobby enquanto ele a levantava.
— De onde vieram os cachorros? — ela queria saber. Um paramédico havia chegado ao local e estava tentando medir sua pressão. A capa de chuva era grossa demais. Ela a tirou, encolhendo-se com o movimento.
— Do meio das árvores — Sinkus informou com falta de ar, tendo acabado de chegar ao lado deles. — Nenhum sinal de um intruso humano ainda, mas encontramos quatro gaiolas a cerca de 200 metros daqui. Estavam cobertas de folhas e equipadas com timers. Quando deu 3h33, a corrente eletrônica foi suspensa, e as portas das gaiolas se abriram, libertando os cães.
Bobby olhou para ele.
— E todos os quatro cães correram para exatamente o mesmo alvo?
— Cada gaiola continha, hum, roupas de baixo — Sinkus disse.
— Roupas de baixo? — D.D. perguntou. Ela tocou cuidadosamente na mandíbula, sentindo a ferida ensanguentada.
— É. Calcinhas. Uma em cada gaiola. Estou me arriscando aqui, mas posso apostar que são suas.
— O quê? — D.D. se virou de repente. O paramédico a mandou ficar parada. Ela o encarou com tamanha fúria, que ele recuou.
Era bom saber que D.D. estava se sentindo melhor, mesmo que isso significasse que seus dedos agora estivessem esmagando a mão de Bobby.
— Você andou notando alguma coisa diferente na sua casa? — Sinkus perguntou. — Como alguém tendo revirado as suas gavetas ou, mais provavelmente, a sua roupa suja? O sistema funciona melhor se tiver seu cheiro.
— Eu não estive em casa o suficiente nos últimos quatro dias para conferir as minhas gavetas! Ou — ela resmungou, e bufou — lavar roupa suja.
Pronto, aí estava. O cara se serviu de alguns marcadores de cheiro. Qualquer cão de ataque bem treinado saberia o que fazer a partir daí.
D.D. definitivamente não gostou da ideia. Ela se virou e olhou para o corpo do cachorro no chão. Grande, preto, musculoso. Ela tocou no torso do animal. A expressão de seu rosto era mais de arrependimento do que de raiva.
— Meu tio tinha uma rottweiller. O nome dela era Meadow. O maior e mais doce cachorro que se pode imaginar. Eu costumava passear montada nas costas dela. — D.D. mexeu a mão e encontrou o arame retorcido ao redor do pescoço do cachorro, o tipo de coleira preferida dos traficantes de drogas e treinadores de cães de rinha. — Cretino — ela resmungou de repente. — O cachorro, provavelmente, foi treinado desde que nasceu. Nunca teve uma chance.
Bobby não conseguiu mais olhar para ela. Afinal, tinha sido ele quem tinha matado os quatro cães que a haviam atacado. E embora ele não conseguisse se sentir mal a respeito, dadas as circunstâncias, também não conseguia se sentir bem.
— Não estou entendendo — D.D. murmurou. — Fazer com que eu usasse o pingente meio que fazia sentido de um jeito maluco. Dava ao sujeito uma emoção barata. Mas por que passar por tudo isso para esse tipo de armação? É como atacar por controle remoto. Só que eu não acho que o nosso cara seja do tipo remoto. Acho que ele é do tipo próximo e pessoal.
— É sofisticado — Sinkus comentou. — Permite que ele exiba sua inteligência. É algo que Eola faria.
D.D. não fez nenhum comentário. Nem Bobby. Ele estava pensando no que ela havia dito. O bilhete havia sido pessoal, deixado no para-brisa do carro de D.D. A escolha por troféus para cada corpo encontrado por eles também havia sido pessoal, assim como o modus operandi de perseguir Annabelle deixando presentes. A armadilha ali havia envolvido roubar roupas íntimas de D.D. — sem dúvida que o sujeito havia gostado disso —, então por que não ficar por perto para o espetáculo? D.D. tinha razão. O sujeito havia investido muito em preliminares e depois negado a si mesmo o evento principal.
Isso não parecia certo. Não era a forma como aquele doente trabalhava.
— Continuem fazendo buscas no terreno — D.D. estava dizendo agora. — Além de procurarem por um invasor, é preciso ir atrás de equipamentos de vídeo e escuta. Talvez o sujeito tenha decidido armar o espetáculo, fazer alguma coisa que ele pudesse gravar e assistir da segurança da própria casa. Queria um pouco de ação ou um clipe que pudesse compartilhar na internet.
— Vamos continuar procurando — Sinkus garantiu a ela.
— Precisamos de helicópteros — D.D. continuou falando com irritação, acenando impacientemente para o paramédico que pairava ao redor. — E de cachorros. Diabos, vamos chamar a Guarda Nacional. São quase oitenta hectares, caralho. Hospício de merda. Ele poderia se esconder durante dias sem que víssemos nada.
Sinkus estava assentindo, fazendo anotações e se preparando para estourar o orçamento anual do departamento para uma busca de uma noite.
Bobby, ainda, não estava gostando daquilo.
Por que tão complexo? Eles estavam procurando por um pedófilo, um homem acostumado a caçar crianças pequenas. Agora, de repente, ele estava focando em uma mulher adulta? Uma sargento da polícia que, certamente, seria inteligente, armada e preparada?
Pedófilos mudavam suas preferências com tanta facilidade? Transitavam de crianças pequenas para figuras de autoridade?
A menos que...
Tudo ocorreu a Bobby de uma vez só. A menos que o homem nunca tenha mudado de foco. A menos que o homem ainda tivesse os olhos no mesmo alvo. Um alvo que desde que tinha ressurgido recentemente havia passado os dois últimos dias cercado pela proteção da polícia. Até esta noite, quando, por causa dessa operação...
Bobby se virou para os colegas detetives:
— Annabelle!
capítulo 30
Acordei mal, agarrada aos lençóis, com os punhos cerrados e os músculos tensos. Por um instante, me senti assustada. Correr, lutar, gritar. Mas meus pensamentos estavam lerdos, ainda repletos de sonhos. Eu não conseguia preencher as lacunas.
Me obriguei a sentar, respirando com dificuldade. O relógio da mesa de cabeceira marcava 2h32. Sonho ruim, pensei. Noite difícil.
Saí da cama usando shorts samba-canção masculinos e uma camiseta regata preta desbotada. Bella levantou a cabeça, avaliando a situação. A essa altura, já estava acostumada com meu jeito intranquilo. Deitou a cabeça novamente, uma de nós pelo menos precisava dormir. Fui sozinha até a cozinha, onde abri a torneira e me servi de um copo de água. Se isso não me despertasse, nada mais me despertaria.
Eu estava ali parada, olhando fixamente para a fraca faixa de luz do corredor que brilhava sob minha porta cheia de travas quando o interfone tocou. Dei um salto, derramando água na camiseta, e Bella veio correndo do quarto e ficou saltando na cozinha e latindo ensandecidamente para a porta.
Eu não pensei mais, eu me mexi. Atirei o copo de plástico na pia. Corri até o quarto. Virei o travesseiro e peguei o Taser que mantinha embaixo dele. Vá, vá, vá.
Voltei à cozinha. Bella estava latindo. Minha cabeça latejava. Eu ouvi o barulho da porta lá debaixo se abrindo? Ouvi passos nas escadas?
Finalmente agarrei a coleira de Bella e a fiz se deitar no chão.
— Shhh, shhh, shhh — murmurei, mas meu próprio estado de tensão a mantinha agitada. Ela rosnou baixinho enquanto eu olhava fixamente para a luz prateada que invadia meu apartamento por baixo da porta, esperando que as sombras escuras de passos aparecessem, que o inimigo surgisse.
E...
Nada.
Minutos se passaram. Minha respiração ficou mais lenta. Minha postura passou de alerta máximo para simplesmente desnorteada. A seguir, pensei em ir até as janelas e espiar a rua. Não havia nenhum carro estranho estacionado lá embaixo. Não havia ninguém escondido nas sombras.
Desabei no assento da frente da janela, ainda com o Taser preso junto ao peito. Eu estava tendo uma reação exagerada, mas não podia abrir mão da minha vigília. Bella foi mais prática. Dando uma bufada, ela trocou o lugar onde estava por sua cama da sala. Em questão de segundos, estava enroscada e dormindo de novo, com o focinho enfiado no meio das patas. Eu continuei em sentinela, superatenta, tentando me acalmar.
Interfones tocam no meio da noite, tentei lembrar a mim mesma disso. Já havia acontecido antes. Aconteceria novamente. Bêbados passando ou até mesmo convidados de outro morador que tenham se confundido de apartamento. Meus vizinhos eram cuidadosos. Nenhum de nós abria as portas para desconhecidos que tocassem o interfone. O que, provavelmente, apenas aumentava as chances de a pessoa que estava do lado de fora continuar apertando diferentes botões até conseguir algum resultado.
Em outras palavras, havia um milhão e meio de explicações lógicas para uma campainha tocar no meio da noite. E nenhuma delas estava funcionando para mim.
Saí do assento da janela. Voltei para a porta da frente. Encostei a orelha na superfície pintada e fiquei escutando os sons vindos da escada.
O problema é que não há trilha sonora para a vida real. Nos filmes, sabemos quando alguma coisa ruim vai acontecer porque é o que nos diz o próprio som. Não há uma pessoa cujo coração não dispare ao ouvir a música-tema de Tubarão e, francamente, isso é algo reconfortante. Todos gostamos dos nossos sinais. Eles dão ao mundo uma sensação de ordem. Coisas ruins podem acontecer, mas apenas depois de o som de fundo tocar tãn-dãn, tãn-dãn, tãn-dãn-dãn-dãn-dãn-dãn...
O mundo real não é assim. Uma menininha volta para casa em uma tarde ensolarada, sobe as mesmas escadas de sempre e ouve os mesmos gemidos dos ares-condicionados antigos, entra no apartamento e encontra a mãe morta no sofá.
Um homem sai para dar uma caminhada na cidade. Ele ouve o movimento dos carros, o barulho das buzinas e a agitação dos outros pedestres conversando nos celulares. Ele desce da calçada um instante antes da hora e, quando vemos, seu rosto virou uma massa amorfa, desfigurada contra um poste de luz.
Uma menininha sai para brincar no pátio da casa dos avós. Há passarinhos cantando. Folhas secas de outono estalando. Uma brisa soprando. E termina gritando na traseira de uma van sem sinalização.
A vida muda em um instante, sem trilha sonora para nos guiar.
O que deixa alguém, como eu, dando saltos a cada barulho que ouço, porque não consigo saber a diferença.
Eu queria ser igual ao resto dos meus vizinhos urbanos, que, quando são acordados no meio da noite pelo interfone, podem simplesmente dizer “Vá à merda!”, antes de virar para o outro lado e voltar a dormir. Isso que era viver.
Voltei para meu quarto, iluminado por três lâmpadas noturnas separadas. Me estiquei na minha cama de solteiro, passando os dedos pela largura estreita.
E me deixei imaginar, por um instante, como poderia ser se Bobby Dodge não fosse um detetive e eu não fosse uma vítima? Suspeita? Testemunha? Talvez fôssemos duas pessoas comuns nos conhecendo em um encontro da igreja. Eu teria levado uma salada com três tipos de feijão. Ele levaria o preferido eterno dos solteiros — um saco de tortilhas. Poderíamos conversar sobre kickbox, cachorros, cerquinhas brancas de madeira. Depois, eu deixaria que ele me levasse para casa. Ele passaria o braço pela minha cintura. E, em vez de ficar tensa de desconfiança, eu me deixaria afundar em seus braços. A sensação do corpo firme de um homem, o peito dele apertando meus seios. A aspereza do bigode dele fazendo cócegas no meu rosto antes de ele me beijar.
Nós poderíamos jantar, ir ao cinema, passar finais de semana inteiros fazendo sexo. No sofá, no quarto, em cima do balcão da cozinha. Ele estava em forma, era atlético. Aposto que era muito bom no sexo.
Poderíamos até mesmo virar namorados, como outras pessoas fazem. E eu seria normal e não procuraria pelo nome dele ou por nomes parecidos no banco de dados dos criminosos sexuais.
Só que eu não era normal. Eu vivia com muitos anos de medo gravados na minha psique. E ele vivia com o peso da morte de um homem pendurado em seu pescoço. O trabalho dele já o fizera mentir para mim e me manipular. Meu passado já me fizera mentir para ele e o manipular. Nós dois acreditávamos estar com a razão.
Pela primeira vez, me perguntei se Bobby dormia bem à noite. E, se algum dia ficássemos juntos, pensei qual de nós seria o primeiro a acordar gritando. Essa ideia deveria ter me feito cair na real. Em vez disso, me fez sorrir. Nós dois éramos malucos, ele e eu. Talvez, se déssemos um tempo, poderíamos descobrir se nossas maluquices nos faziam combinar um com o outro.
Suspirei. Virei de lado. Ouvi o barulho das patas de Bella voltando ao quarto e se posicionando ao lado da minha cama. Acariciei as orelhas dela e disse que a amava. Isso fez com que nós duas nos sentíssemos melhor.
Para minha surpresa, relaxei. Meus olhos fecharam. Eu devo ter começado a sonhar.
Então, o interfone tocou de novo. Alto, agudo, chocante. E de novo, e de novo, e de novo. Um ataque violento de som, ricocheteando pelo meu minúsculo apartamento.
Saltei da cama, corri até a janela. As luzes dos postes bombardeavam o espaço escuro da calçada, mas não revelaram nada. Então, corri para a cozinha, apoiada nas pontas dos pés, com os músculos retesados, o Taser preparado e os olhos grudados na faixa de luz embaixo da porta.
Vi uma sombra reveladora.
Congelei. Prendi a respiração. Fiquei olhando fixamente.
Lentamente, fiquei de quatro. Espiei por baixo da porta, procurando desesperadamente pela visão emoldurada de uma pequena fatia do corredor. Não eram pés. Não era um homem.
Era outra coisa. Uma coisa pequena, retangular e perfeitamente embalada em um papel colorido, as tirinhas do jornal de domingo...
Voltei para trás. Então, me atraquei na porta, abrindo freneticamente a meia dúzia de travas com o coração batendo forte de medo e as mãos tremendo de raiva. Bella estava latindo quando a corrente caiu. Juntas, invadimos o topo da escada do quinto andar, onde fiquei parada, seminua, agitando meu Taser e berrando com toda a força:
— Onde você está, filho da puta? Apareça e lute como um homem. Quer um pedaço de mim?
Saltei por cima do pacote embrulhado. Bella desceu correndo as escadas. Nós adernamos no saguão do térreo, movidas por muita adrenalina e prontas para vencer um exército inteiro.
Mas o prédio estava vazio, as escadas, desertas, e o lobby, sem ninguém a vista. Segui um barulho de batidas até o saguão da frente, onde encontrei a porta externa do prédio aberta e batendo com o vento.
Escancarei a porta. Senti a chuva gelada no meu rosto. Era uma noite de tempestade. Não era nada comparado a como eu me sentia por dentro.
Não havia sinal de vida na rua. Fechei a porta externa e chamei Bella para subir comigo.
Do lado de fora do meu apartamento, ela ainda estava esperando por mim. Uma caixa baixa e retangular. Encarapitado no telhado de sua casinha vermelha, Snoopy sorria na parte de cima.
E, de repente, eu não aguentei mais. Vinte e cinco anos não haviam sido suficientes. O treinamento do meu pai não havia sido suficiente. A ameaça estava de volta, mas eu ainda não sabia contra quem lutar, como atacar, para onde direcionar a minha raiva.
O que me deixou apenas com o medo. De cada sombra no meu apartamento escuro. De cada som naquele velho prédio decrépito. De cada pessoa que pudesse passar aleatoriamente pela rua.
Deixei o pacote no topo da escada. Agarrei Bella pela coleira e a arrastei para dentro do banheiro, onde tranquei a porta, entrei na banheira e rezei para que a noite acabasse.
— Tem certeza de que não viu nada? — Bobby estava perguntando. — Um carro, uma pessoa, as costas de um casaco desaparecendo rua abaixo?
Não respondi. Apenas fiquei olhando para ele andando de um lado para o outro no metro de comprimento da minha cozinha.
— E uma voz? Ele falou? Fez algum tipo de som subindo e descendo as escadas?
Ainda não disse nada. Bobby estava fazendo as mesmas perguntas havia horas. O pouco que eu tinha a oferecer já estava registrado. Agora cabia a ele quebrar a cabeça e tentar aceitar fatos que eu, ainda, me recusava a aceitar.
Por exemplo, vinte e cinco anos depois, o sujeito não identificado havia me encontrado novamente.
Meu telefone havia tocado pouco depois das quatro da manhã, mais um barulho intenso e agudo que fez meu sangue congelar. Mas a voz que soou na minha secretária eletrônica não foi a de um maluco passando trote. Era apenas Bobby, pedindo que eu atendesse.
A voz dele me trouxe de volta à realidade, recuperou minha objetividade. Por ele, precisei sair da banheira, abrir a porta do banheiro e enfrentar meu apartamento escuro. Por ele, eu pude levantar o fone e apoiá-lo com o ombro na orelha enquanto saí acendendo as luzes e relatando os acontecimentos da noite.
Bobby não precisou que eu dissesse muita coisa. Dois minutos depois ele havia desligado e estava a caminho do meu apartamento.
Ele chegou com um bando de homens vestindo ternos amassados. Três detetives — Sinkus, McGahagin e Rock. No rastro deles, uma tropa de policiais uniformizados que rapidamente começaram a trabalhar, vasculhando meu prédio. Os técnicos de cena de crime chegaram em seguida e examinaram as portas da frente, o saguão e a escadaria.
Meus vizinhos não gostaram nada de serem acordados antes do amanhecer, mas ficaram intrigados o suficiente para agora estarem assistindo ao espetáculo de graça.
Bella havia ficado doida ao ver tantos estranhos na casa dela. Finalmente, eu a tranquei no carro de Bobby. Foi a única maneira de os técnicos de cena de crime conseguirem realizar o trabalho deles. Ninguém estava muito otimista. As chuvas da noite passada haviam se tornado uma manhã cinzenta e úmida. A chuva havia lavado todas as possíveis provas. Até eu sabia disso.
Os técnicos de cena de crime haviam começado pelo saguão e agora estavam subindo a escadaria, com pó preto de identificação de impressões digitais voando por todo lado. Eles estavam se aproximando do ground zero: uma caixa retangular pequena, de dez por quinze centímetros, cuidadosamente embalada em tirinhas de jornal, que esperava do lado de fora da minha porta.
Nenhum bilhete. Nenhum laço. O pacote dispensava apresentações. Eu já sabia quem o havia enviado.
A porta do meu apartamento abriu novamente. Desta vez, D.D. entrou. Imediatamente, as atividades cessaram, todos olhando para a sargento. D.D. parecia pálida, mas se movimentava com sua eficiência carrancuda de sempre. Nada mal para uma mulher que ostentava um grosso curativo de gaze na parte inferior do rosto.
— Você não devia... — Bobby começou.
— Ah, por favor! — D.D. revirou os olhos. — Que porra você vai fazer? Vai me algemar à cama do hospital?
De acordo com Bobby, D.D. havia quase sido morta por um cão de ataque poucas horas antes. Ela que decidisse não deixar uma coisinha simples como quase ser morta diminuir seu ritmo de trabalho.
— Quando chegou o pacote? — ela perguntou com firmeza na voz, claramente tendo deixado o banco e voltado a campo.
— Mais ou menos às três e vinte da manhã — Bobby disse.
Ela olhou para mim.
— É como você lembra?
— Sim — eu disse em voz baixa. — Pelo menos por fora a caixa me lembra dos presentes que eu recebi quando menina. Ele sempre as embalava em tirinhas de jornal.
— O que você viu?
— Nada. Procurei pelo prédio, na rua. Quando abri a minha porta, ele havia ido embora.
D.D. suspirou.
— Menos mal, já tivemos muito prejuízo por uma noite.
O detetive Sinkus se aproximou.
— Estamos prontos — ele anunciou. Tinha uma mancha no ombro esquerdo. Parecia cuspe.
Bobby hesitou, olhando para mim.
— Você pode sair — ele ofereceu. — Espere lá embaixo enquanto abrimos o pacote.
Dei a ele um olhar que disse o suficiente. Ele encolheu os ombros, de modo que a minha reação obviamente já era esperada.
Bobby fez o técnico se aproximar. O homem levou a caixa até a cozinha e a pôs em cima do balcão. Nós quatro nos reunimos ao redor, cotovelo com cotovelo, e observamos o cientista trabalhando. Ele usou o que pareceu um bisturi, soltando cuidadosamente a fita de cada dobra e, então, desembrulhando o papel da caixa com a precisão desapaixonada de um artista.
Foram necessários quatro minutos para as tirinhas de domingo serem removidas e, desdobradas, revelarem a historinha completa de Snoopy — quem não adora Snoopy e Charlie Brown? —, mais os restos de algumas outras tirinhas da primeira página. Dentro do embrulho havia uma caixa de presente branca simples. A tampa não estava presa com fita adesiva. O técnico a abriu.
Papel de seda branco. O técnico desdobrou o lado direito. E depois o esquerdo, revelando o tesouro.
Primeiro, vi cores. Listras cor-de-rosa, escuras e claras. Então, o técnico levantou o tecido da caixa, deixando-o se abrir como uma chuva cor-de-rosa, e eu fiquei com a respiração presa na garganta.
Um cobertor. Um cobertor de flanela cor-de-rosa escura com uma barra de cetim cor-de-rosa clara. Dei alguns passos para trás.
Bobby viu a minha expressão e me segurou pelo braço.
— O que foi?
Tentei abrir a boca. Tentei falar. Mas o choque era grande demais. Não era meu — não podia ser —, mas parecia com o meu. E eu fiquei horrorizada e fiquei apavorada, mas também quis muito estender a mão e tocar o cobertor de bebê, ver se seria como eu me lembrava que costumava ser, a flanela macia e o cetim frio deslizando por entre meus dedos, acariciando meu rosto.
— É um cobertor — D.D. anunciou. — Um cobertor de bebê. Tem etiqueta, nota de compra? Alguma marca na caixa?
Ela estava conversando com o cientista. Ele havia acabado de estender o cobertor, e o virava e revirava com os dedos enluvados. Então, voltou para a caixa, retirou o papel de seda e a examinou por dentro e por fora. Levantou e sacudiu a cabeça.
Finalmente, encontrei a minha voz.
— Ele sabe.
— Sabe? — Bobby pressionou.
— O cobertor. Quando morava em Arlington, eu tinha um cobertor. De flanela cor-de-rosa escura com uma barra de cetim cor-de-rosa clara. Exatamente como esse.
— Este é o seu cobertor de bebê? — D.D. perguntou chocada.
— Não, não é meu cobertor de verdade. O meu era um pouco maior, muito mais gasto nas beiradas. Mas é parecido, provavelmente o mais parecido que ele conseguiu encontrar para replicar o cobertor original.
Eu ainda queria tocar nele. De alguma forma, isso parecia um sacrilégio, como aceitar um presente do diabo. Cerrei os punhos ao lado do corpo, enfiando as unhas nas palmas das mãos. Ao mesmo tempo, me senti nauseada e tonta.
Como essa pessoa podia me conhecer tão bem quando eu ainda não sabia absolutamente nada sobre ela? Ah, Deus, como lutar contra um mal que parecia tão incrivelmente onipotente?
— No boletim policial original — Bobby estava dizendo agora —, dizia que foi encontrada uma caixa de polaroides no sótão da casa da vizinha. Quanto querem apostar que algumas dessas fotos são de Annabelle carregando seu cobertorzinho preferido?
— Filho da puta — sussurrei.
— Com uma memória muito boa — D.D. acrescentou sombriamente.
O cientista havia aberto uma sacola de papel. Em cima, com um marcador preto, escreveu um número e uma breve descrição. No instante seguinte, o cobertor impostor se tornou uma prova. Em seguida, foi a vez da caixa e do papel de seda. E depois, das tirinhas de domingo.
O balcão da minha cozinha voltou a ficar vazio. O técnico de cena de crime saiu com seus mais recentes tesouros. Quase dava para fingir que nada havia acontecido. Quase.
Fui até a sala. Olhei pela janela, por onde pude contar uma dúzia de sedãs, viaturas de polícia, veículos de detetive etc., todos estacionados na frente do prédio. Vi o teto do Crown Vic de Bobby. As janelas de trás estavam com uma fresta aberta. Consegui identificar a ponta preta molhada do focinho de Bella saindo por ela.
— E você jura que não viu ninguém do lado de fora do prédio? — D.D. veio até mim. — Talvez mais cedo da noite?
Sacudi a cabeça.
— E no trabalho? Alguém parado na fila do Starbucks ou que tenha aparecido mais tarde, quando você saiu de Faneuil Hall?
— Eu sou cuidadosa — eu disse. — Embora eu tivesse dado cartões de visita ao sr. Petracelli e a Charlie Marvin, eles tinham apenas uma caixa postal, não meu endereço de casa. Os cartões também tinham apenas meu telefone profissional, que uma busca reversa levaria apenas à caixa postal. Algo que eu deveria ter considerado dias atrás, quando dei meu telefone de casa para Bobby, dessa forma tendo convidado aparentemente mais da metade do Departamento de Polícia de Boston.
— Quantas pessoas conhecem você como Annabelle? — Bobby se posicionou ao lado de D.D.
Pergunta lógica. Eu ainda estava azeda.
— Você, a sargento Warren, a unidade de detetives...
— Engraçadinha.
— O sr. e a sra. Petracelli. Catherine Gagnon. Ah, e Charlie Marvin.
— O quê?
D.D. não pareceu feliz. Pensando bem, ela nunca parecia feliz.
Contei minha conversa da noite anterior com Charlie Marvin. A versão resumida. No fim do meu relato, Bobby suspirou.
— Por que diabos você disse a Charlie seu nome verdadeiro?
— Faz vinte e cinco anos — ironizei. — O que eu tenho a temer?
— Você sabe mais sobre autodefesa do que qualquer um nesta sala, Annabelle. Qual foi o sentido de receber educação, se você vai simplesmente bancar a tonta?
Isso me enfureceu.
— Ei, você não tem um assassino de crianças para prender?
— Ei, que diabos você pensa que estamos fazendo aqui? Annabelle, há uma semana você começou a usar seu nome real pela primeira vez em vinte e cinco anos. Agora você recebeu um presente na porta de casa. Eu realmente preciso ligar os pontos para você?
— Não, não precisa, seu grande imbecil. Fui eu que me escondi em uma banheira. Eu sei o quanto estou assustada.
Bati nele. Não com força. Nem mesmo de modo pessoal. Mas porque estava cansada, assustada e frustrada e não tinha um alvo real em quem bater. Ele aceitou a pancada sem protestar. Apenas ficou me encarando com seus firmes olhos cinzentos.
Depois de um tempo, eu me dei conta de que os policiais estavam nos observando. E o olhar de D.D. estava indo e vindo entre Bobby e eu, ligando alguns pontos ela mesma. Eu me afastei, precisando desesperadamente de espaço.
Estava arrependida de ter recebido Bobby. Queria os policiais fora da minha casa. Queria que os técnicos fossem embora. Queria ficar sozinha para pegar cinco malas e começar a arrumar minhas coisas.
O interfone tocou. Dei um salto e mordi a língua. D.D. e Bobby já estavam descendo as escadas em disparada. No último minuto, meu medo me envergonhou. Eu não ia viver assim!
Segui até a porta. Um dos detetives — Sinkus, eu acho — tentou agarrar meu braço. Eu me desvencilhei dele. Ele era mais mole e mais lento do que Bobby. Não teve nenhuma chance. Atingi o topo da escada e desci os degraus correndo loucamente. Meus vizinhos já estavam voltando para a relativa segurança de seus apartamentos, batendo as portas e chaveando as fechaduras.
No último lance de escada, agarrei o corrimão de madeira e dei um salto pela lateral. Saltei no chão com força e saí correndo pela porta, parando de repente.
Lá estava Ben, meu velho entregador da UPS, parado, completamente tenso, com os olhos quase saltando do rosto. Bobby e D.D. já estavam em cima dele.
— Tanya? — Ben guinchou.
Imediatamente, comecei a rir. Foi a risada semi-histérica de uma mulher que havia sido reduzida a apavorar o entregador por levar a ela sua última encomenda de tecido.
— Está tudo bem — eu disse, tentando parecer calma, mas ouvindo a agitação na minha voz.
— Se o senhor puder, por favor, me passar essa caixa — Bobby disse.
Ben entregou a caixa.
— Ela precisa assinar o recebimento. Eu posso... eu deveria... ah, meu Deus.
Ben se calou. Mais um minuto do olhar furioso de Bobby, e o pobre homem ia fazer xixi nas calças.
— Smith and Noble — Bobby conferiu rapidamente, lendo o endereço do remetente.
— São cortinas — eu disse. — Persianas de tecido feitas sob medida, para ser exata. Está tudo bem, sinceramente. Eu recebo um pacote por dia, certo, Ben?
Desta vez, dei um passo para a frente, me posicionando entre Bobby e o entregador.
— Está tudo bem — eu repeti. — Houve um incidente. No prédio. A polícia está conferindo tudo.
— E a Bella? — Ben perguntou. Nos quatro anos que eu o conhecia, sempre achei que Ben não gosta de gente. Ele é uma espécie de antientregador, gostando mais dos cachorros clientes que dos próprios clientes.
— Ela está bem.
Como se ouvindo a deixa, Bella, finalmente, escutou a minha voz e começou a latir na traseira do carro de Bobby. Longe de tranquilizar Ben, que seguiu o barulho até um carro sem distintivos da polícia e voltou a ficar com os olhos arregalados.
— Mas ela é uma boa cachorra! — ele explodiu.
E, então, eu quase ri de verdade, só que, de novo, não iria ser um som muito feliz.
— Nós precisávamos tirá-la do apartamento — tentei explicar. — A Bella está bem. Você pode ir até ela. Ela vai adorar ver você.
Ben parecia não saber o que fazer. Bobby ainda estava segurando a caixa de tecido e fazendo cara feia, e D.D. parecia simplesmente estar insatisfeita com a vida.
Hora de tomar uma decisão. Agarrei o pulso de Ben pelo punho do uniforme marrom e o levei até o carro de Bobby. Bella tinha enfiado metade da cabeça pela fresta aberta da janela e estava latindo alegremente. Isso pareceu funcionar.
Ben enfiou as mãos nos bolsos atrás de biscoitos e todos voltamos à vida de sempre.
Bella conseguiu arrancar quatro ossinhos dele. Quando voltamos para a frente do prédio, não havia mais aquela intensidade à Miami Vice no ar, e pudemos recomeçar.
Bobby tinha algumas perguntas para Ben. Qual era a rota dele? Com que frequência ele passava pela vizinhança? Em quais horários? Já havia notado alguém espreitando ao redor do prédio?
Ben se revelou um veterano com vinte anos de UPS. Ele conhecia as ruas de Boston como a palma da mão. Em especial, gostava de percorrer a minha rua meia dúzia de vezes por dia para evitar o congestionamento na Atlantic. Não havia notado ninguém, mas também não havia reparado. Por que teria reparado?
Descobri que a vida de um entregador da UPS não era fácil. Muitas caixas, complexas agendas de entregas, rotas intrincadas, mapeadas para obter o máximo de eficiência, que eram destruídas por chegadas de última hora de pacotes de mais prioridade. Estresse, estresse, estresse, e ainda havia o Natal. Mas, aparentemente, o trabalho tinha um ótimo plano de aposentadoria.
A ideia de alguém espreitando do lado de fora do meu edifício, talvez perseguindo Bella e eu, perturbou Ben. Ele ficaria de olho, prometeu a Bobby. Podia inclusive pensar em uma forma de passar mais algumas vezes por dia pela minha rua. É, ele poderia fazer isso.
Ben não era nenhum jovenzinho. Calculei sua idade em torno dos 50 anos, e ele ainda usava óculos fundo de garrafa e um bigode grisalho para acompanhar. Mas seu trabalho o mantinha ativo. Ele tinha um corpo magro e esguio, apenas começando a ficar com um pouco de barriga. Bobby daqui a vinte anos. Sob a aba de seu boné marrom da UPS havia o rosto de um antigo boxeador — o nariz torto que havia levado socos demais e uma cicatriz acompanhando a raiz dos cabelos à esquerda do queixo por causa de uma cirurgia de mandíbula que havia entortado seu rosto um pouco para a esquerda.
Então, Ben endireitou os ombros e estufou o peito. Solenemente, apertou a mão de Bobby.
Assim, eu tinha todo o Departamento de Polícia de Boston mais um entregador da UPS de guarda. Deveria dormir como uma criança naquela noite.
Ben foi embora. Bobby levou minha caixa para o interior do prédio. Segui atrás dele e decidi que estava simplesmente deprimida.
capítulo 31
Peguei D.D. e Bobby discutindo quinze minutos depois. Eu deveria estar sentada no meu sofá, comportada como uma boa menina. Mas estava ligada demais para ficar sentada e, ainda, não havia conseguido me acostumar com tantos corpos enchendo meu pequeno espaço. Como ninguém parecia se importar com o que eu estava fazendo, decidi descer para ver como estava Bella.
Bobby e D.D. estavam do lado de fora, na calçada. Não havia nenhum outro detetive por perto. Ouvi a voz de D.D. primeiro, e a raiva no tom dela me chamou a atenção.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — D.D. disparou.
— Não sei do que você está falando — disse Bobby, fingindo estar blasé, mas já na defensiva, de modo que aparentemente sabia exatamente do que D.D. estava falando.
Voltei para o saguão, com o ouvido ligado do lado de fora.
— Você está envolvido com ela — D.D. acusou.
— Com quem?
D.D. bateu no braço dele. Ouvi o barulho.
— Ai! O que é isso? É o dia nacional de bater no Bobby?
— Não banque o espertinho. Nós nos conhecemos há tempo demais.
Pausa. Então, como Bobby continuou sem dizer nada:
— Meu Deus, Bobby, qual é o seu problema? Primeiro, Catherine, agora, Annabelle. O que você tem? Complexo de Messias? Só consegue se apaixonar pela donzela em apuros? Você é um detetive. Deveria saber que não dá.
— Eu não fiz nada de errado — disse Bobby, mais firme desta vez.
— Eu vi o jeito como você olhou para ela.
— Ah, pelo amor de Deus...
— Então é verdade, não é? Qual é, se não é, diga olhando nos meus olhos.
O silêncio se estendeu novamente. Dava para dizer que Bobby não estava olhando nos olhos de D.D.
— Que merda! — D.D. disse.
— Eu não fiz nada de errado — ele repetiu.
— E isso é uma nobreza sua? Bobby... sabe, eu estava fazendo o máximo para ignorar a história da Catherine. Então, você se envolveu com ela. Então, você perdeu todo o bom senso. Deus sabe que ela tem esse efeito sobre os homens. Mas daí você precisa dar meia-volta e fazer de novo... Foi por isso que nós terminamos, Bobby? Por que para você se apaixonar a mulher precisa ser algum tipo de vítima?
Aaaah, isso me deixou muito furiosa. E pareceu enfurecer Bobby também.
— Você quer saber, ei, eu gosto de um desafio como qualquer outra pessoa, D.D. Só que nós nunca desafiamos um ao outro, você e eu. Nós somos duplicatas, D.D. Nós vivemos nosso trabalho, comemos nosso trabalho, respiramos nosso trabalho. E, quando saíamos juntos, levávamos nossos trabalhos para passear. Que diabo, nós nos conhecemos há dez anos e eu só descobri há seis horas que você tem um tio. E que gosta de rottweillers. Isso nunca surgiu, porque nós nunca paramos de falar de trabalho. Mesmo quando estávamos na cama, nós éramos policiais.
— Ei, eu sou mais do que este trabalho! — D.D. respondeu, e por um instante terrível, eu achei que ela ia chorar.
— Ah, meu Deus — Bobby disse com a voz cansada.
— Pare com isso. — Mais um tapa. Imaginei que ele tivesse tentando tocar nela. — Não ouse ficar com pena de mim.
— Olhe aqui, D.D., você quer ir para o lado pessoal? Então vamos ser sinceros. Você nunca esteve comigo a sério. Eu fui uma curiosidade, um atirador de elite que parecia muito bacana quando falava sobre a arma dele. Nós dois sabemos que você quer muito mais do que isso.
— Isso é golpe baixo.
— Bem, nós não estamos exatamente trocando elogios aqui.
Uma pausa longa e dura.
— Ela é encrenca, Bobby.
— Eu sou bem crescidinho.
— Você nunca trabalhou nesse tipo de caso importante. Você não pode se envolver pessoalmente.
— Obrigado pelo voto de confiança. Agora, tem alguma coisa específica que você precisa me dizer, de sargento para detetive? Porque, se não, eu vou voltar lá para dentro.
Ouvi barulho de alguém se movendo, e de repente parou. Acho que D.D. segurou o braço dele.
— Eu fui até a minha casa, Bobby. Não consegui encontrar sinal de nenhum intruso. Minhas portas estavam trancadas, as janelas, intactas. Mas Sinkus tinha razão: as calcinhas são minhas. Alguém invadiu, roubou as calcinhas do cesto de roupa suja e fez isso muito, muito bem.
— Os técnicos...
— Não vai haver prova alguma, Bobby. Exatamente como não havia nada aqui. Acho que isso nos dá uma ideia muito clara do que está acontecendo.
— Ah, caramba. Assim que acabarmos aqui, vou até lá com você, dar uma olhada.
Ela não deve ter parecido muito confiante, porque em seguida ele declarou meio exasperado:
— Ex-membro de equipe tática, D.D. Eu sei alguma coisa sobre invasões.
— Ah, por favor, vocês derrubam a porta com uma imensa “chave” de metal. O estilo de vocês e o estilo do nosso criminoso... são muito diferentes.
— Tá, tá, tá — Bobby resmungou, mas pareceu inconformado. — Isso é o que está me incomodando... o modus operandi da perseguição combina, mas... vinte e cinco anos atrás, quando o sujeito agiu pela primeira vez, o alvo dele era meninas pequenas. Annabelle Granger, de sete anos, a melhor amiga dela, Dori Petracelli. Agora, de repente, ele está interessado em mulheres adultas? Você, Annabelle... eu não sou especialista em traçar perfis, mas não acho que esse tipo de coisa já tenha acontecido.
— Talvez nossas idades não sejam relevantes para ele. Annabelle foi a que escapou. Ao encontrá-la novamente, ele está decidido que ela não escape. E quanto a mim... eu sou a chefe da investigação. Ele quer me provocar. Mas eu também não sou tão pessoal para ele, e por isso ele não se importou de mandar os cachorros em vez de fazer o trabalho ele mesmo. Ela é o trabalho da vida dele. Eu sou um hobby.
— Que ideia estimulante.
— Principalmente para mim. Quem quer ser morto como segunda opção? Além disso, Bobby, pense em Eola. A maioria das pessoas acredita que ele matou uma enfermeira no Hospital Psiquiátrico de Boston. Então, se Eola é o nosso cara, estamos falando de alguém com histórico de atacar mulheres independentemente da idade delas. Bundy não era assim? Pensamos nele como alguém que atacou alunas da faculdade, mas algumas das vítimas dele eram muito jovens. Esses caras... vá saber o que realmente os faz agir?
Bobby não disse nada imediatamente. Então, ele perguntou:
— Você ainda considera Russell Granger um suspeito.
— Vou considerar até que você prove o contrário.
— Voltando dos mortos? — Bobby murmurou friamente.
D.D. surpreendeu a nós dois.
— Falei com o IML ontem à noite, Bobby. Considerando suas demandas atuais, pensei em fazer um favor a você e conferir as circunstâncias em torno da morte do pai de Annabelle. De acordo com os registros, a polícia contatou Annabelle, ou Tanya, que fez a identificação e isso bastou para o legista. Pense comigo, Bobby. O rosto estava um horror. O IML nunca tirou digitais ou documentou quaisquer marcas identificadoras... foi apenas um atropelamento, e a filha do cara identificou o corpo. O que quer dizer que o cadáver poderia ser de qualquer um com a carteira de motorista de Michael W. Nelson. Um estranho, um vadio. Algum pobre coitado que ele empurrou para o meio da rua...
As palavras de D.D. pareceram ter emudecido Bobby. O que foi bom, porque achei que não conseguiria escutar acima do fluxo de sangue nos meus ouvidos. D.D. achava que meu pai ainda estava vivo? Tinha uma teoria de que ele poderia ter matado outra pessoa para fingir a própria morte? Sinceramente acreditava que ele era a mente do mal por trás daquela sucessão de homicídios?
Mas isso era um absurdo. Meu pai não era um assassino! Não das menininhas, não de Dori Petracelli, não de homens adultos. Ele nunca faria uma coisa dessas.
Ele não teria me deixado.
Minhas pernas bambearam. Meu ombro bateu na porta da frente e a abriu. D.D. e Bobby não repararam. Estavam ocupados demais analisando o caso deles, destruindo meu pai, transformando uma das poucas coisas em que eu confiava em uma mentira gigantesca.
Nós não havíamos deixado Arlington porque meu pai precisava tapar seus buracos. Nós havíamos nos mudado para me proteger. Nós havíamos nos mudado porque...
“Roger, por favor, não vá. Roger, eu estou implorando, por favor não faça isso...”
— Quem quer que seja — Bobby estava dizendo agora, parecendo claramente cético —, o criminoso desconhecido quer atenção. E, com toda a sua “inteligência”, não está se esforçando para ser sutil. Ele deixou um bilhete no seu carro e um presente na porta da casa de Annabelle. Por quê? Se ele é tão inteligente, por que simplesmente não matar as duas e acabar com tudo? Ele quer a caçada. Ele quer a oportunidade de se exibir. E é exatamente como iremos pegá-lo. Ele vai se exibir de novo e, quando fizer isso, nós o apanharemos.
— Espero que tenha razão — D.D. murmurou. — Porque tenho certeza de que um cara desses tem alguma coisa assustadora planejada para fazer a seguir.
Os dois viraram e seguiram na direção dos degraus da entrada. Em seguida, eu me levantei e subi correndo a escada. Os detetives Sinkus e McGahagin olharam para mim com curiosidade quando eu entrei no apartamento. Corri direto para o quarto e fechei a porta.
Segundos se passaram. No fim, escutei alguém batendo fraquinho na porta.
Eu não disse nada. Quem quer que tenha batido, foi embora.
Fiquei sentada na minha cama estreita, segurando o frasco de cinzas ao redor do pescoço e me perguntando se ele continha uma mentira.
No fim, foi culpa minha. Meu telefone começou a tocar. Como não quis sair do quarto para atender, naturalmente, a secretária telefônica atendeu. E, naturalmente, o sr. Petracelli deixou seu recado com metade do Departamento de Polícia de Boston escutando.
— Annabelle, encontrei o desenho da reunião da vigilância do bairro que você me pediu. É claro que prefiro não enviar esse material pelo correio. Suponho que eu possa voltar para a cidade, se você realmente quiser. Mesmo horário, mesmo local? Me dê um toque. — Ele disse um número. Eu me sentei na cama e suspirei.
A batida que deram na porta do meu quarto desta vez não era um pedido.
Abri a porta e encontrei Bobby parado com um olhar muito sombrio no rosto:
— Desenho? Mesmo horário? Mesmo local?
— Ei — eu disse alegremente —, quer dar uma volta?
O sr. Petracelli ficou aliviado de saber que não precisaria fazer o temido trajeto até a cidade. Bella também achou que sair foi uma ótima ideia. O que deixava apenas Bobby e eu, sentados na frente, cuidando para não nos encararmos.
O trânsito estava tranquilo. Bobby ligou para o despacho, pedindo que conferissem os antecedentes dos meus antigos vizinhos. Fiquei intrigada, por não ser a única paranoica, para variar. Normalmente, eu jogava o nome de todo mundo que conhecia no Google.
— Onde está a D.D.? — perguntei afinal.
— Teve de cuidar de outras questões.
— Eola? — chutei.
Ele me lançou um olhar de lado.
— E como você saberia esse nome, Annabelle?
Tentei aplicar uma mentira deslavada.
— Pela internet.
Ele arqueou uma sobrancelha, claramente sem acreditar, mas não ignorou minha pergunta.
— A D.D. está examinando uma cena de crime na casa dela. Nosso sujeito pode ter deixado um presente na porta da sua casa, mas ele invadiu a casa de D.D. e roubou calcinhas dela.
— É porque ela é loira — eu disse, o que apenas fez com que eu ganhasse outro olhar brincalhão.
Paramos na entrada de carros da casa dos Petracelli.
A casa minúscula cinza parecia se fundir ao céu escuro. Persianas brancas. Um pequeno jardim. A casa certa para um casal de idade que nunca teve netos.
— O sr. Petracelli nunca pensou que a polícia de Lawrence levou o caso da filha dele suficientemente a sério — eu disse quando saímos do carro. Bella ganiu. Eu disse para ela ficar. — Se você mencionar que está avaliando uma ligação entre o desaparecimento de Dori e o homem que me perseguia, acho que o sr. Petracelli vai se abrir.
— Eu falo, você escuta — Bobby me informou friamente.
Malvadão, eu movimentei os lábios atrás dele, mas não disse uma palavra enquanto percorríamos o calçamento de ladrilho.
Bobby tocou a campainha. A sra. Petracelli abriu a porta. Ela suspirou quando nos viu. Me deu um olhar que eu só posso descrever como profundamente apologético.
— Walter — ela disse calmamente —, seus convidados chegaram.
O sr. Petracelli desceu correndo a escada, com muito mais energia do que eu me lembrava da minha última visita. Estava com uma pasta sanfona embaixo do braço e tinha um brilho quase surreal nos olhos.
— Entrem, entrem — ele disse alegremente. Apertou a mão de Bobby, e a minha também, então olhou ao redor, como se estivesse atrás do meu cão de ataque. — Fiquei empolgado ao saber que você estava vindo, detetive. E tão rápido! Eu tenho as informações, absolutamente, está tudo aqui. Ah, mas espere um pouco, olhe para nós, aqui parados na entrada. Que grosseiro da minha parte. Vamos nos acomodar no escritório. Lana, querida... um café?
Lana suspirou novamente e seguiu para a cozinha. Bobby e eu seguimos o sr. Petracelli enquanto ele saltitava até o estúdio. Chegando lá, ele se atirou na beirada de uma poltrona de couro, abrindo ansiosamente sua pasta e espalhando folhas de papel. Em comparação com sua abordagem sinistra e ressentida da noite anterior, ele estava praticamente assoviando enquanto tirava uma página depois da outra com os detalhes sinistros da abdução da filha.
— Então você é do Departamento de Polícia de Boston? — ele perguntou a Bobby.
— Detetive Robert Dodge, senhor, Polícia Estadual de Massachusetts.
— Excelente! Eu sempre disse que o estado deveria se envolver. Os policiais locais simplesmente não têm recursos suficientes. Cidades pequenas têm policiais pequenos com mentes pequenas. — O sr. Petracelli pareceu finalmente estar com toda a papelada arrumada como queria. Ele olhou para cima e se deu conta de que Bobby e eu ainda estávamos parados na porta do escritório.
— Sentem-se, sentem-se, por favor, sintam-se em casa. Eu tenho mantido anotações detalhadas há anos. Temos muito que examinar.
Sentei na beirada de um sofazinho xadrez verde, e Bobby se sentou a meu lado. A sra. Petracelli apareceu com xícaras de café, creme e açúcar. Saiu o mais rápido que pôde. Eu não a culpei.
— Agora, sobre o dia 12 de novembro de 1982...
O sr. Petracelli realmente havia mantido anotações detalhadas. Com o passar dos anos, ele desenvolveu uma elaborada linha do tempo dos últimos dias da vida de Dori. Ele sabia quando ela se levantou. O que ela comeu no café da manhã. Que roupas ela escolheu, que brinquedos estavam no pátio. Mais ou menos ao meio-dia, a avó dela disse que estava na hora do almoço. Dori havia pedido para fazer um chá com sua coleção de bichos de pelúcia na mesa de piquenique. Sem ver problema no pedido, a avó de Dori havia servido uma bandeja de sanduíches de manteiga de amendoim com geleia em pães sem casca, mais uma maçã fatiada. Na última vez em que a avó a viu, Dori estava servindo os convidados de pano. Ela, então, entrou para arrumar a cozinha e ficou conversando com uma vizinha ao telefone. Quando voltou para a frente da casa vinte minutos depois, os ursos de pelúcia ainda estavam sentados, cada um com um pedaço de sanduíche e de maçã na frente dos focinhos. Dori não estava em lugar algum.
O sr. Petracelli sabia quando foi feita a primeira ligação para a polícia. Ele sabia o nome do policial que havia atendido à ligação, quais perguntas foram feitas e como elas foram respondidas. Ele tinha anotações a respeito dos grupos de busca montados, das listas de voluntários que se apresentaram — alguns dos quais ele marcou com asteriscos por nunca terem dado um álibi satisfatório quanto ao que estavam fazendo entre 12h15 e 12h35 daquela tarde. Ele conhecia os treinadores de cães que ofereceram seus serviços. Os mergulhadores que acabaram realizando buscas nos lagos próximos. Ele tinha sete dias de atividades policiais e locais condensados em gráficos cronológicos detalhados e amplas listas de nomes.
Então, ele tinha as informações a respeito do meu pai.
Eu não sabia dizer pelo rosto de Bobby o que ele estava achando da apresentação do sr. Petracelli. A voz do sr. Petracelli ficava mais alta e mais baixa em vários graus de intensidade, às vezes até mesmo cuspindo palavras enquanto denunciava erros evidentes no que parecia ser uma busca cuidadosa por uma menina desaparecida. A expressão de Bobby se manteve impassível. O sr. Petracelli falava. De vez em quando, Bobby fazia uma anotação. Mas na maior parte do tempo, Bobby ouvia, e seu rosto não deixava transparecer nada.
Pessoalmente, eu queria ver o desenho. Queria olhar para o rosto do homem que eu acreditava que me perseguia e havia sentenciado minha família a uma vida em fuga e, então, havia matado minha melhor amiga.
A realidade foi decepcionante.
Eu esperava um homem de aparência mais raivosa. Um desenho em preto e branco com olhos sombrios e ardilosos, com a tatuagem de uma lágrima na face direita. Em vez disso, o desenho feito habilmente, muito certamente trabalho do meu pai, parecia quase pedante. O sujeito era jovem — vinte e poucos anos, eu diria. Tinha os cabelos escuros curtos. Olhos escuros. A linha do maxilar era suave, quase refinada. Não era um brutamontes, de forma alguma. Na realidade, o retrato me lembrou do garoto que trabalhava na pizzaria da vizinhança.
Analisei o desenho por um longo tempo, esperando que ele falasse comigo, me contasse todos os seus segredos. Continuou sendo um desenho bruto de um jovem que, francamente, poderia ser qualquer um de dezenas de milhares de homens de vinte e poucos anos de cabelos escuros que haviam passado por Boston.
Eu não entendia. Meu pai havia fugido disso?
Bobby perguntou ao sr. Petracelli se ele tinha um fax. Na verdade, nós dois podíamos ver um parado sobre a mesa atrás do sr. Petracelli. Bobby explicou que poderia ser mais rápido se ele mandasse as notas e todo o resto por fax para o escritório imediatamente para que os outros detetives começassem a trabalhar. O sr. Petracelli ficou encantado por alguém finalmente estar levando seu arquivo a sério.
Vi Bobby digitar o número do fax. Ele incluiu um código de área, o que não teria sido necessário para um envio para Boston. E o único pedaço de papel que ele pôs na máquina foi o desenho.
Bobby mandou o restante dos papéis na função cópia do fax, ficando com as duplicatas. O sr. Petracelli estava se balançando para a frente e para trás na sua cadeira, com o rosto estranhamente vermelho e um sorriso cintilante. A excitação do momento havia claramente elevado sua pressão arterial. Fiquei imaginando quanto tempo levaria para ele ter o próximo ataque cardíaco. Me perguntei se ele conseguiria atingir o objetivo de viver por tempo suficiente para ver o corpo da filha recuperado.
Tomamos nossos cafés, apenas por educação. O sr. Petracelli parecia relutante em nos deixar partir, apertando nossas mãos sem parar.
Quando finalmente chegamos ao carro, o sr. Petracelli ficou parado na varanda da frente, acenando e acenando.
A última vez que olhei para ele foi quando começamos a percorrer a rua. Ele se tornou um velho pequeno de ombros caídos, com o rosto vermelho demais, o sorriso alegre demais, ainda acenando determinadamente para o detetive de polícia que ele acreditava piamente que iria afinal levar sua filha para casa.
— Você mandou o desenho para Catherine Gagnon — eu disse no instante em que chegamos à autoestrada. — Por quê?
— O seu pai mostrou um desenho a Catherine quando ela estava no hospital — ele disse abruptamente.
— É mesmo?
— Eu quero saber se é o mesmo desenho.
— Mas isso não é possível! Catherine estava no hospital em 1980, e aquele desenho só foi feito dois anos mais tarde.
— Como você sabe?
— Porque o cara que me perseguia só começou a me deixar presentes em agosto de 1982. E não dá para ter um desenho de cara desses sem ter um cara desses.
— Só tem um problema com isso.
— É?
— Conforme os relatórios da polícia, ninguém nunca viu o rosto “desse cara”. Nem seu pai, nem sua mãe, nem a sra. Watts, nem qualquer um dos seus vizinhos. Teoricamente, portanto, o cara que a estava perseguindo não poderia ter servido de base para esse desenho.
Aí estava uma questão difícil de resolver. Eu pensei a respeito, dizendo a mim mesma que havia uma explicação lógica, me dando conta de que vinha usando muito essa explicação ultimamente. Decidi que meu pai sabia de alguma coisa em 1980. Alguma coisa suficientemente séria para que se disfarçasse de agente do FBI e fosse visitar Catherine com um desenho na mão. Mas o quê?
Tentei buscar nos bancos da minha memória. Eu tinha apenas cinco anos em 1980. Morava em Arlington e...
Não consegui me lembrar de nada. Nem mesmo a lembrança de um presente embalado em quadrinhos de jornal. Eu tinha certeza de que eles haviam começado a chegar dois anos depois, quando eu tinha sete anos.
O silêncio, finalmente, foi quebrado pelo toque do telefone celular preso à cintura de Bobby. Ele o atendeu, trocou algumas palavras sucintas e me olhou de lado. Fechou o telefone, pareceu prestes a falar alguma coisa, e então o telefone tocou novamente.
Desta vez, a voz dele soou diferente. Educada, profissional. A voz de um detetive falando com um estranho. Ele parecia estar tentando marcar um encontro e não estar conseguindo.
— Quando o senhor viaja para a conferência? Vou ser sincero. Eu preciso falar com o senhor o quanto antes. A conversa envolve um de seus antigos professores, Russell Granger...
Até eu pude ouvir o guincho repentino do outro lado da linha. E então, rapidamente, Bobby começou a assentir com a cabeça.
— Onde o senhor mora mesmo? Na Lexington. Na realidade, eu estou na esquina.
Ele olhou para mim. Respondi encolhendo os ombros, grata por não precisar elaborar. Obviamente, Bobby estava tentando marcar uma entrevista com o antigo chefe do meu pai e, com certeza, ela teria de acontecer.
Eu não me importei. Mas, é claro, de jeito nenhum eu iria ficar esperando no carro.
capítulo 32
— Está na hora de levar Bella para um passeio — Bobby anunciou enquanto dirigia por uma rua lateral sinuosa ao norte da Estátua Minuteman, no Lexington Center. Paul Schuepp havia dito que sua casa era número 58. Bobby viu o 26, depois o 32, então estava indo na direção certa. — Parece uma boa região para esticar as pernas.
Annabelle reagiu exatamente como ele havia imaginado.
— Ha, ha, ha. Muito engraçado.
— Estou falando sério. Esta é uma investigação policial oficial.
— Então é melhor você começar a me nomear, porque eu vou entrar junto.
Casa número 48... Lá estava a casa branca em estilo colonial com fachada de tijolos vermelhos.
— Sabe, não é mais como no Velho Oeste.
— Você não leu sobre os últimos tiroteios na cidade? Cheguei a pensar diferente.
Bobby parou na entrada para carros. Ele tinha uma decisão a tomar. Gastar dez minutos dos trinta que Schuepp havia concordado em lhe dar discutindo com Annabelle ou deixá-la ir junto e ouvir mais um sermão sobre técnicas policiais adequadas de D.D. Ele ainda estava irritado por causa da última conversa que havia tido com a sargento, o que, francamente, não funcionou a favor de D.D.
— O detetive Sinkus foi atrás de Charlie Marvin — ele informou a ela a caminho da porta. — Marvin passou a noite no Pine Street Inn, da meia-noite às oito da manhã. Nove sem-teto e três funcionários do local confirmaram o álibi dele. Então quem quer que tenha ido até o seu prédio com aquele presente, não foi ele.
Annabelle apenas grunhiu. Sem dúvida, Charlie Marvin era um bom suspeito na cabeça dela. Por um lado, ele era um mix urbano entre padre e Papai Noel. Por outro lado, ele não era seu pai.
Bobby queria dizer que também não acreditava que o pai de Annabelle havia voltado do mundo dos mortos. Só que estava ficando cada vez mais intrigado. O sr. Petracelli havia sido uma lição pungente sobre o poder da obsessão. Bobby mandaria um policial conferir onde estava o sr. Petracelli na madrugada anterior, embora, sinceramente, entregar presentes embrulhados em quadrinhos era provavelmente sutil demais para alguém obviamente louco varrido.
Bobby decidiu que o desenho era a chave. Quem Russell Granger havia conhecido e por que ele se sentira ameaçado quase dois anos antes de registrar aquele primeiro boletim de ocorrência?
Ficou claro para Bobby nos primeiros cinco minutos com Walter Petracelli que o antigo vizinho de Annabelle não tinha a chave para essas respostas. Talvez Bobby desse mais sorte com o antigo chefe de Russell, a quem Bobby havia ligado pela primeira vez às sete horas da manhã do lado de fora do apartamento de Annabelle. Ultimamente, parecia que tudo o que ele fazia era trabalhar pelo celular. Ainda assim, as demandas dele haviam feito D.D. operar pelas suas costas. Indo até o legista em uma mal disfarçada tentativa de sustentar sua própria teoria a respeito do caso... só de pensar nisso, ele ficou furioso de novo.
Bobby encontrou a aldrava de metal, estrategicamente posicionada no meio de uma gigantesca coroa de grãos vermelhos. Três batidas e meia dúzia de grãos caídos depois, a porta se abriu.
A primeira impressão de Bobby a respeito de Paul Schuepp: mais ou menos cinco centímetros mais alto do que Yoda e dois anos mais jovem do que a idade da Terra. O pequeno e encarquilhado ex-chefe do departamento de matemática do MIT tinha escassos cabelos grisalhos, couro cabeludo com marcas da idade e olhos azuis opacos embaixo de fartas sobrancelhas brancas. O rosto de Schuepp estava afundando com os anos, revelando pálpebras avermelhadas, bochechas trêmulas e papadas extras no pescoço.
Schuepp estendeu a mão nodosa, segurando o braço de Bobby com um aperto inesperadamente firme.
— Entrem, entrem. É um prazer, detetive. E esta é...?
Schuepp de repente parou, arregalando os olhos caídos.
— Meu Deus. Se você não é a cópia perfeita da sua mãe! Annabelle, não é? Uma mulher. Meu Deus. Por favor, por favor, entrem. Nossa, é uma honra. Vou pegar um café para nós. Ah, diabos, deve ser meio-dia em algum lugar. Vou pegar um scotch para nós!
Schuepp saiu a passos rápidos, atravessando o saguão abobadado até a sala de estar formal. Lá, uma passagem arqueada levava para a sala de jantar, de onde, virando à direita, se chegava à cozinha.
Bobby e Annabelle seguiram o homem através da casa. Bobby observava a pesada mobília floral, os delicados guardanapos de crochê e os festões de eucalipto enfeitando a parte superior das cortinas cor de malva que iam até o chão. Estava esperando que houvesse uma sra. Schuepp em algum lugar, porque a vida seria assustadora demais se o sr. Schuepp tivesse feito a decoração.
A cozinha era em estilo country, com armários de carvalho e uma imensa mesa oval de imbuia. Uma bandeja giratória no meio da mesa ostentava açúcar, sal e uma pequena farmacinha. Schuepp mexeu na cafeteira e, então, passou para a despensa, de onde, depois de muitos tilintares, ele tirou uma garrafa de Chivas Regal.
— O café provavelmente vai estar uma porcaria — ele anunciou. — A patroa faleceu no ano passado. Agora, ela sabia passar um bom café. Pessoalmente — ele acrescentou, pondo o Chivas no meio da mesa —, eu recomendo o scotch.
Annabelle estava olhando para o homem com os olhos arregalados. Ele pôs três copos sobre a mesa. Quando Annabelle e Bobby rejeitaram a bebida, ele encolheu os ombros, serviu dois dedos para si e virou tudo de uma vez. Por um instante, a careca de Schuepp ficou muito vermelha. Ele chiou e começou a tossir, e Bobby imaginou o personagem de sua entrevista caindo morto de repente. Mas, então, o ex-professor se recuperou, batendo no próprio peito.
— Não costumo beber muito — Schuepp disse a eles. — Considerando a ocasião, porém, achei que precisava de um gole.
— O senhor sabe por que estamos aqui? — Annabelle perguntou em voz baixa.
— Deixe-me fazer a seguinte pergunta, minha jovem: quando seu pai morreu?
— Há quase dez anos.
— Ele durou tanto tempo? Que bom para ele. Onde?
— Na realidade, nós havíamos voltado para Boston.
— É mesmo? Humm, que interessante. E, se não se importa com a minha pergunta, como ele morreu?
— Foi atropelado por um táxi quando estava atravessando a rua.
Schuepp levantou uma sobrancelha branca, assentindo para si mesmo.
— E a sua mãe?
Annabelle hesitou.
— Há dezoito anos. Em Kansas City.
— Como?
— Overdose. Misturou bebida com analgésicos. Ela, ahn, desenvolveu um problema com a bebida com o passar do tempo. Eu a encontrei morta quando voltei da escola.
Bobby olhou para ela. Annabelle já havia dado mais detalhes a Schuepp do que ele havia dado a ela.
— Efeito colateral — Schuepp observou simplesmente. — Faz sentido. Vamos? — Ele fez um gesto na direção da mesa. — O café está pronto, embora eu insista que vocês experimentem o scotch.
Ele voltou até a cozinha e colocou o bule de café, as xícaras e o creme em uma bandeja. Bobby a pegou das mãos dele sem perguntar, principalmente porque não conseguia imaginar um homem de cinquenta quilos carregando uma bandeja de cinco quilos. Schuepp agradeceu com um sorriso.
Todos se sentaram à mesa. Bobby estava com a mente em turbilhão e Annabelle parecia mais pálida a cada instante.
— O senhor conheceu meu pai — ela disse.
— Eu tive a honra de ser chefe do departamento de matemática por quase vinte anos. Seu pai esteve lá durante cinco desses anos. Longe de ser suficiente, mas ele deixou sua marca. Ele trabalhava com matemática aplicada, sabe, não matemática pura. Tinha um excelente relacionamento com os alunos e uma mente brilhante para estratégia. Eu costumava dizer que ele deveria desistir de dar aulas e trabalhar para o Departamento de Defesa.
— O senhor era o chefe dele? — Bobby esclareceu para registro.
— Eu o contratei, baseado na intensa recomendação do meu bom amigo doutor Gregory Badington, da Universidade da Pensilvânia. Era a única forma que isso poderia ser feito, dadas as circunstâncias.
— Espere um instante. — Bobby conhecia aquele nome. — Gregory Badington, da Filadélfia?
— Sim, senhor. Greg foi o chefe do programa de matemática da Penn de 1972 a 1989, acredito. Faleceu há alguns anos. Aneurisma. Rezo para ter tanta sorte. — Schuepp assentiu vigorosamente, sem um traço de sarcasmo.
— Então Gregory Badington era chefe de Russell Granger — Bobby disse lentamente. — Ele recomendou Russell para seu programa e ao mesmo tempo permitiu que Russell se mudasse com a família para sua casa em Arlington. Agora, por que o senhor Badington faria isso?
— Greg fez a graduação em Harvard — Schuepp informou. — Nunca deixou de amar Boston. Quando ficou claro que a família de Russell precisava deixar a Filadélfia, Gregory ficou feliz em poder ajudar. — O velho professor se virou para Annabelle. Apertou a mão dela entre os dedos marcados pela velhice. — O quanto seu pai contou a você, querida?
— Nada. Ele nunca quis me preocupar. Daí ficou tarde demais.
— Até descobrirem a cova em Mattapan — Schuepp terminou para ela. — Eu vi no noticiário. Cheguei a cogitar de ligar eu mesmo para a polícia depois que li seu nome. Tinha quase certeza de que não podia ser seu corpo que eles haviam recuperado. Imaginei que se tratasse daquela outra menina, aquela da sua rua.
— Dori Petracelli.
— É, isso mesmo. Ela desapareceu algumas semanas depois que vocês foram embora. Isso quase matou seu pai. Apesar de todos os seus planos, Russell nunca previu aquilo. Que peso terrível para carregar. Depois daquilo, posso imaginar por que ele nunca contou nada a você. Que tipo de pai quer que a filha descubra que ele salvou a vida dela sacrificando a da sua melhor amiga? Escolhas muito, muito terríveis para dias muito, muito terríveis.
— Senhor Schuepp... — Annabelle começou.
— Senhor Schuepp — Bobby interrompeu, mexendo com a caneta, tentando freneticamente anotar tudo.
O velho encarquilhado sorriu.
— Acho que não vou conseguir ir para a minha conferência — ele disse. Pegou o scotch, serviu mais um pouco e bebeu.
E começou sua história do começo.
— Seu pai, Roger Grayson, como era conhecido na época, perdeu os pais quando tinha 12 anos. Não era algo de que ele gostasse de falar. Nunca soube dos detalhes por ele, apenas por Greg, que ouviu a história pelas fofocas no departamento. Infelizmente, parece que foi um caso de violência doméstica. Russell, bem, Roger, eu acho...
— Russell, pode chamá-lo de Russell — Annabelle disse. — É como eu penso nele. — Ela torceu os lábios, parecia estar experimentando as palavras. — Roger Grayson. Roger, por favor, não vá... — Ela franziu a testa, fez uma careta, e afirmou mais enfaticamente: — Russell.
— Então que seja Russell. Então a mãe de Russell tentou deixar o pai de Russell. O pai não recebeu a notícia muito bem e voltou uma noite para casa com uma arma. Ele a matou e se matou em seguida. Russell estava na casa naquela noite. O irmão mais novo dele também.
— Irmão? — Annabelle exclamou, espantada.
A caneta de Bobby parou sobre o papel.
— Dois Grayson homens? — Ele pensou no desenho novamente, a semelhança com a descrição que eles tinham do pai de Annabelle e, de repente, tudo começou a fazer sentido.
Schuepp assentiu.
— Irmão. Você tem um tio, minha querida. Embora eu tenha certeza de que nunca deve ter ouvido falar nele.
— Não, nunca ouvi falar.
— Era o que seu pai queria. Por um bom motivo. Depois do crime, Russell e o irmão dele, Tommy, tiveram a sorte de serem aceitos na Escola Milton Hershey para crianças carentes. Mesmo naquela época, os dois meninos se mostraram grandes promessas acadêmicas, e o programa do colégio interno Hershey foi uma escolha excelente. Rigor acadêmico em um encantador ambiente pastoral. Seu pai se saiu excepcionalmente bem. Tommy, sete anos mais novo do que ele, não. Desde o começo, havia sinais de problemas mentais. Problemas de controle da raiva. TDAH. Transtorno de Apego Reativo. Eu tenho interesse na área. Tenho trabalhado para desenvolver um modelo estatístico para auxiliar avaliadores que examinam crianças pequenas. Mas não é disso que estamos falando.
Schuepp descartou com um aceno de mão o próprio desvio na conversa e continuou com mais firmeza.
— Seu pai se formou antes e foi aceito pela Penn. Era um aluno incrivelmente talentoso, e Gregory o adotou. Orientado por ele, Russell se matriculou no programa de mestrado e começou a pensar seriamente em fazer seu Ph.D. em matemática. No meio do caminho, ele se apaixonou por uma linda estudante de enfermagem e, na metade do programa de doutorado, Russell se casou com sua mãe.
— Foi mais ou menos nessa altura que Tommy deixou a escola Hershey. Sem outros familiares, Tommy foi atrás do seu pai. E, sem saber o que mais fazer, seu pai o acolheu. Não era uma situação ideal para um homem recém-casado, que lidava com uma jovem esposa e estudos exigentes, mas é isso que as famílias fazem.
— Tommy conseguiu um emprego lavando louça em um restaurante local. Ele trabalhava como leão de chácara à noite e se metia em diversas encrencas durante o dia. Russell o tirou da cadeia três vezes por pequenas infrações envolvendo brigas, drogas e álcool. Era sempre culpa do outro cara, conforme Tommy. O outro cara havia começado.
— Finalmente, a sua mãe se sentou com Russell uma noite e disse a ele que estava com medo. Por duas vezes ela havia flagrado Tommy espiando o interior do quarto quando ela estava se trocando. E uma vez, quando ela estava no banho, tinha quase certeza de que ele havia entrado no banheiro. Ao chamá-lo pelo nome, ele entrou em pânico e saiu correndo.
— Foi o que bastou para seu pai. Ele havia se virado sozinho, Tommy poderia fazer o mesmo. Então, Russell expulsou o irmão mais novo de casa. Bem a tempo, aparentemente, porque algumas semanas depois, sua mãe descobriu que estava grávida.
— Tommy, infelizmente, nunca foi embora de verdade. Ele chegava sem avisar em horas absurdas. Às vezes, Russell estava em casa. Frequentemente, não estava. Sua mãe, Leslie, ou Lucy, como era conhecida na época...
Bobby anotou o nome rapidamente, enquanto via os lábios de Annabelle formarem a palavra. Lucy. Lucy Grayson. Ele imaginou como devia ser para ela escutar o nome verdadeiro da mãe pela primeira vez, depois de todos aqueles anos. Mas Schuepp ainda estava falando, deixando pouco tempo para especulação.
— ...se tornou tão preocupada que mantinha todas as luzes desligadas e o volume da tevê bem baixinho para parecer que não havia ninguém em casa — Schuepp estava dizendo. — Só que Tommy insistia em aparecer, normalmente dez minutos depois de ela voltar para casa, do trabalho no hospital. Leslie, a sua mãe, se convenceu de que ele a estava seguindo.
— Russell confrontou o irmão, disse a ele que aquela tolice precisava acabar. Tommy não era mais convidado a fazer parte da vida deles. Se voltasse a aparecer, Russell chamaria a polícia.
— Pouco depois, animais mortos e mutilados começaram a aparecer do lado de fora do edifício deles. Gatos sem o couro. Esquilos decapitados. Russell estava convencido de que era Tommy. Ele consultou a polícia. Não havia muito mais que pudesse ser feito sem provas. Russell instalou um sistema de segurança em casa, acrescentou correntes às portas, chegou até a instalar um sensor do lado externo da porta da frente. Leslie concordou em não voltar mais sozinha do trabalho para casa. Russell passou a acompanhá-la na ida e na volta.
— Gregory se lembrava de uma noite ter encontrado Russell sentado em sua sala olhando fixamente para o nada. Quando Gregory bateu educadamente na porta, Russell disse a ele: “Ele vai matá-la. Meu pai assassinou a minha mãe. Tommy vai destruir a minha mulher”.
— Gregory não soube o que dizer. A vida continuou, e alguns meses depois, Leslie deu à luz. Tommy havia desaparecido. Russell não sabia para onde ele tinha ido e não queria saber. Ele adorou ser pai. Cada detalhe o encantava. Ele e sua mãe sossegaram e tiveram a lua de mel que não haviam tido antes. Até que...
— Tommy voltou — Annabelle completou baixinho.
— Você tinha dezoito meses — Schuepp informou. — Depois, Russell descobriu que o único motivo pelo qual Tommy havia desaparecido foi porque cumpriu pena por assalto. Minutos depois de ser libertado, retomou tudo de onde havia parado. Só que ele não se importava mais com Leslie. Ele queria você.
— Da primeira vez, ele confrontou Russell e Leslie na rua. Eles estavam voltando para casa do parque. Você estava no carrinho. Era plena luz do dia. No instante em que viu Russell e Leslie, Tommy atravessou a rua e bloqueou o caminho deles. “Como vocês estão, que bom vê-los, esta é a minha nova sobrinha? Nossa, ela é maravilhosa.” Ele a pegou no colo antes que Russell pudesse se mexer e ficou brincando com você. Russell tentou pegá-la de volta. Tommy não deixou. Russell dizia que ele tinha um brilho estranho no olhar. Ele ficou apavorado. Não sabia se Tommy ia beijar você ou atirá-la na frente dos carros.
— Naturalmente, Russell foi gentil. Leslie também. Finalmente, conseguiram pegá-la de volta, puseram você no carrinho e voltaram a caminhar. Mas os dois ficaram terrivelmente abalados.
— No dia seguinte, Russell mudou as fechaduras e pagou pessoalmente por um novo sistema de segurança para todo o edifício. Voltou à polícia, onde verificaram os antecedentes dele e ficaram sabendo de seu histórico criminal. Mas, ainda, não havia nada que pudessem fazer. Afinal, não é um crime visitar a própria sobrinha. Eles perceberam a preocupação de Russell e fizeram um registro.
— Russell saiu da delegacia de polícia mais assustado do que quando chegou. Acabou conversando com Greg sobre tirar uma licença. Ele não queria deixar Leslie sozinha com o bebê, nem mesmo por uma hora. Greg o convenceu do contrário. Russell havia acabado de terminar seu doutorado. Tirar uma licença naquele momento seria desastroso para sua carreira. Além disso, sua mãe não estava mais trabalhando, alguém precisava sustentar a casa.
— Então Russell concordou em continuar trabalhando, enquanto Leslie acertava para que os pais dela fossem visitá-los. Certamente seria mais seguro com mais gente.
— Ah, não — Annabelle sussurrou. Ela levantou a mão, cobrindo a boca. Bobby acompanhou sua linha de pensamento. Os avós que haviam contado a ela que tinham morrido em um acidente de carro. De alguma forma, ele tinha a sensação de que a verdade seria mais devastadora do que uma trágica colisão.
Schuepp assentiu com tristeza.
— Ah, sim. Os pais da sua mãe vieram. Levaram você para dar um passeio. Nunca voltaram para casa. Um policial os encontrou sentados em um banco de parque lado a lado. Os dois haviam levado tiros no coração com uma pistola de pequeno calibre. Você estava andando em volta sozinha, agarrada a um ursinho novinho. Preso ao pescoço do ursinho havia uma etiqueta de presente dizendo “Com amor, do Tio Tommy”.
— A polícia prendeu Tommy imediatamente e o interrogou sobre os assassinatos, mas ele negou qualquer envolvimento. De acordo com ele, havia parado no parque, dado o ursinho para você e conversado brevemente com seus avós. Todo mundo estava bem quando ele foi embora. A polícia fez uma busca no apartamento dele, mas não encontrou nada. Sem a pistola, sem qualquer testemunha e sem outras provas, não havia mais nada que a polícia pudesse fazer. Sugeriram que seu pai pedisse uma medida liminar contra ele. Ele disse que a mãe dele havia tentado isso.
— Naquela tarde, seu pai foi à sala de Greg e anunciou que tinha tomado uma decisão. Ele e a família iriam desaparecer. Era a única maneira, ele disse, de ficarem seguros.
— Mais uma vez, Greg tentou ser a voz da razão. O que Russell e Leslie sabiam sobre a vida em fuga? Como eles conseguiriam identidades falsas, novas carteiras de motorista, empregos? Não era tão fácil como nos filmes.
— Mas Russell estava decidido. Quando olhava para o irmão, ele via o pai. Ele já havia perdido demais para a raiva obsessiva de um homem. Ele não iria perder mais nada. E, quanto mais ele falava, mais convencia Gregory. Foi ideia de Gregory que Russell e Leslie se mudassem para a casa dele em Arlington. A propriedade estava no nome de Greg, bem como tudo o que havia na casa. Certamente seria difícil para Tommy chegar a Russell e Leslie na nova casa deles em Massachusetts.
— Gregory também ligou para mim, explicando a situação. Coincidiu de termos uma vaga no departamento, então demos um jeito nos detalhes. Russell e sua mãe iriam se mudar para Arlington, e eu ofereceria um emprego a seu pai no MIT. Naturalmente, eu teria de incluir seu pai no departamento de pessoal com o nome verdadeiro dele, Roger Grayson. Mas tratei as coisas com as pessoas certas e, para todos os efeitos, seu pai se tornou Russell Granger, casado com Leslie Ann Granger, pai de uma filhinha adorável, Annabelle Granger. Apenas os holerites e outros registros financeiros diziam o contrário.
— Nós achávamos que tínhamos sido muito espertos, mas não havíamos sido espertos o bastante.
— Tommy os encontrou — Bobby disse simplesmente. Annabelle não estava mais falando. Estava sentada em choque, pasma demais para dizer qualquer coisa.
— Foi o que Russell imaginou. Houve um caso no noticiário logo que eles se mudaram para Arlington, o sequestro de uma menina que poderia ser sua irmã mais velha, Annabelle. Imediatamente, Russell ficou nervoso. Ele imaginou que Tommy estava por perto, procurando por Annabelle.
— O caso de Catherine — Bobby informou. — Foi outro cara que cometeu esse crime, Richard Umbrio. Mas a grande semelhança física entre Catherine e Annabelle deve ter assustado Russell, feito com que ele pensasse no pior. — Ele olhou para Annabelle. — Chegou a levar seu pai a se passar por agente do FBI para conseguir se aproximar de Catherine no hospital e questioná-la.
— É de Tommy o retrato no desenho — Annabelle murmurou. — Meu pai desenhou um retrato de Tommy para ver como Catherine reagiria.
— Provavelmente.
Ela conseguiu dar um sorriso torto.
— Eu disse que havia uma explicação lógica.
Mas seu rosto continuou pálido e tenso.
— Umbrio, Umbrio — Schuepp estava murmurando. — Isso mesmo. A polícia finalmente prendeu aquele homem imenso e o acusou do crime. Eu me lembro disso agora. Ainda assim, Russell se recusou a baixar a guarda. Começou a aprender caratê, passou a ler obsessivamente sobre perseguidores. Não imagino como deve ter sido, primeiro perder os pais tão jovem, depois, sentir que toda aquela situação trágica estava acontecendo novamente.
— Eu sei que ele se sentia muito culpado pelo que sua mãe estava passando. Sei que as poucas vezes que os vi juntos em eventos sociais, seu pai era hiperatencioso, incansavelmente alegre. Se ele pudesse sorrir o bastante e falar alto o bastante, tudo estaria bem.
— A sua mãe amava você, Annabelle — Schuepp disse baixinho. — Quando chegava a hora, ela nunca hesitava por um instante.
— Russell foi até a minha sala no fim de outubro. Tommy estava de volta, deixando presentes para Annabelle na sua casa, ele a estava perseguindo. Era tudo culpa dele, Russell insistia. Ele não havia sido cuidadoso o bastante. Contas bancárias e registros do imposto de renda podiam ser rastreados. Havia sido apenas uma questão de tempo.
— Desta vez, Russell havia comprado novas identidades para a família, trocado o carro velho por um novo. Tudo o mais seria deixado para trás. Rápido e leve, ele me disse. Essa era a chave. Ele não quis dizer nem para mim aonde vocês três estavam indo.
— Quando ele foi embora, lembro de me perguntar se vocês conseguiriam. Ou se eu simplesmente veria o final dessa história no noticiário da noite. Por duas semanas, tudo parecia estar bem. E então, aquela menininha, sua amiga, desapareceu. No instante em que fiquei sabendo qual era a rua em que ela morava, soube quem a havia raptado. De acordo com seu pai, Tommy nunca aceitou decepções muito bem.
— Meu pai sabia? Sobre Dori? — Annabelle perguntou com urgência. — Ele falou com você?
— Ele me ligou três dias depois — Schuepp informou. — Disse que tinha visto no noticiário nacional. Ele não sabia o que fazer. Por um lado, ele tinha certeza de que havia sido Tommy. Por outro, se ele voltasse para falar com a polícia...
— Tommy conseguiria encontrá-lo novamente — Bobby completou. — E o senhor? O senhor contatou a polícia?
— Fiz uma ligação anônima para o disque-denúncia. Foi o suficiente para minha consciência sentir que eu havia feito alguma coisa, no entanto...
— Nem de perto suficiente para ajudar Dori Petracelli. — Bobby olhou para o homem. — O senhor tinha uma informação vital. Se tivesse se apresentado...
— A polícia teria ido atrás de Russell e Leslie — Schuepp afirmou simplesmente. — Eles o teriam arrastado de volta para Massachusetts e os exposto a Tommy. A menina Petracelli, provavelmente, já estava morta. Eu me concentrei na vida que poderia ser salva: a sua, Annabelle.
Bobby abriu a boca. Antes que pudesse argumentar, no entanto, Annabelle falou:
— Explique isso ao sr. e à sra. Petracelli. Eles eram pais também. Eles mereciam mais do que ter a filha deles morta, apenas para que os vizinhos deles pudessem seguir com as próprias vidas. — Ela se virou com amargura.
Schuepp serviu mais uma dose de scotch e passou para ela.
Mas ela não aceitou. Em vez disse, ela se recompôs, devolvendo ao rosto aquela expressão decidida que Bobby conhecia tão bem.
— Uma última pergunta, senhor Schuepp. O senhor pode me dizer meu nome verdadeiro?
capítulo 33
Meu nome é Amy Marie Grayson. Amy Marie Grayson.
Sentei no banco do passageiro do Crown Vic de Bobby agarrada às cinzas dos meus pais enquanto dizia meu nome verdadeiro sem parar, esperando pelo momento em que ele fosse sair naturalmente de minha boca. Nós já estávamos de volta à Rota 2. Indo para algum lugar. Para mim não tinha nenhuma importância.
Amy. Marie. Grayson. Ainda não era natural, saía artificial dos meus lábios.
Durante toda a minha vida, eu me considerei duas pessoas: Annabelle Granger e Codinome Atual — qualquer que fosse o nome que eu estivesse usando na época. Agora, de acordo com o sr. Schuepp, eu era na realidade três pessoas: Amy Grayson, Annabelle Granger e... bem, et al.
A ideia me deixou confusa. Apoiei a cabeça no vidro frio da minha janela e por um instante vi meu pai novamente, sentado na minha frente no Giacomo’s enquanto comemorávamos meu aniversário de vinte e um anos, parecendo contente.
Meu pai havia vencido. Eu nunca compreendi, porque ele nunca permitiu que eu fosse parte da guerra contra a qual ele lutava. Mas aquela noite, meu aniversário, deve ter sido como uma vitória para ele. Ele havia perdido a mãe. Ele havia perdido a mulher. Mas a filha... Eu, pelo menos, ele havia mantido a salvo, embora tivesse custado a ele tanto pelo caminho.
E agora eu estava impressionada, me sentindo humilde de uma forma que me fez ficar com os olhos cheios de lágrimas, que ele visse minha vida como uma vitória. Ele havia desistido de sua carreira por mim. Ele havia desistido de seus vizinhos, da sua casa, da sua própria noção de indivíduo. Por fim, ele havia desistido da própria mulher.
Consigo pensar no meu pai distante. Consigo pensar nele incansável, duro, agressivo. Mas não consigo pensar nele algum dia amargo ou de mal com a vida. Ele sempre teve sua causa, seu motivo, mesmo que sua paranoia me levasse à loucura.
E, ao saber de toda a história agora, tudo o que eu queria fazer era voltar no tempo para dizer a ele que sentia muito, para dar um abraço nele agradecido, para dizer que eu finalmente o compreendia. Mas, pensando bem, gentileza nunca foi algo que meu pai quisesse para mim. Nós brigávamos, constante e incessantemente, em parte porque meu pai sempre gostou de uma boa briga. Ele havia criado uma lutadora. E gostava de testar minhas habilidades.
Amy Marie Grayson. Amy Marie.
E, apenas por um instante, eu quase pude ouvir. A voz da minha mãe, dizendo baixinho: “Aí está o meu anjinho... Bom dia, Amy, bobamey, mamey”.
Eu estava chorando. Não queria chorar. Mas a enormidade de tudo me atingiu toda de uma só vez. O sacrifício da minha mãe. A perda do meu pai. E então comecei a soluçar com força, apenas vagamente ciente da mão de Bobby em meu ombro. Então, o carro diminuiu a velocidade e parou. Meu cinto de segurança se abriu. Ele me puxou para o colo dele, o que foi estranho, considerando a intromissão da direção. Mas eu não me importei. Enterrei o rosto no ombro dele. Me agarrei a ele como uma criança pequena. E chorei porque meus pais haviam dado tudo para salvar a minha vida e eu tinha raiva deles por terem feito isso.
— Shhhh — ele falava sem parar.
— A Dori morreu por minha causa.
— Shhhhhhhhh.
— E minha mãe e meu pai. E outras cinco meninas. E para quê? O que eu tenho de tão especial? Eu não consigo nem manter um emprego e minha única amiga é uma cachorra.
Com a deixa, Bella ganiu ansiosamente do banco traseiro. Eu havia me esquecido dela. Agora ela estava pulando para tentar chegar aos bancos da frente. Pude senti-la batendo com a pata na minha perna. Bobby não a empurrou. Apenas murmurou mais palavras de conforto. Pude sentir a força dos braços dele a meu redor. A força de seus músculos em mim.
Achei um pouco maluco. Que ele pudesse ser tão real, tão forte, quando eu tinha a sensação de que tudo na minha vida estava se desintegrando, despedaçando e se espalhando ao vento como confete. E fiquei agradecida naquele momento por estarmos em um carro, parados no acostamento de uma estrada movimentada, porque, se estivéssemos no meu apartamento, eu o teria deixado nu. Eu teria tirado todas as roupas dele, uma a uma, apenas para poder tocar na pele dele, passar a língua pelos sulcos da barriga, provar o sal das minhas próprias lágrimas no peito dele, porque eu precisava tanto deixar para trás meus próprios pensamentos, sentir apenas a intensidade de um momento frenético, me sentir viva.
Amy Marie Grayson. Amy. Marie. Grayson.
Ah, Dori, eu sinto muito. Ah, Dori.
Bobby me beijou. Levantou meu queixo e cobriu meus lábios com os dele. E foi um beijo tão suave, tão generoso, que comecei a chorar tudo de novo, até que peguei a mão dele e a apertei no meu seio, com força, porque eu não queria me sentir como cristal e não queria que ele me visse como alguém que pudesse quebrar.
Amy Marie Grayson. Cujo tio havia destruído toda a sua família.
E a havia encontrado novamente ontem à noite.
Eu me afastei, batendo o cotovelo na direção. Bella ganiu de novo. Saí do colo de Bobby, voltei para o banco do passageiro e puxei Bella para perto de mim.
Bobby não tentou me impedir. Não disse nada. Eu podia ouvir sua respiração pesada.
Esfreguei as mãos nas bochechas. Bella me ajudou com algumas lambidas entusiasmadas.
— Eu preciso voltar ao trabalho — falei bruscamente.
Bobby olhou para mim com ar estranho:
— Fazendo o quê?
— Eu tenho um projeto para entregar. Em Back Bay. Minha cliente não vai entender.
Bobby me encarou.
— Annabelle... Amy? Annabelle.
— Annabelle. Eu só... estou acostumada... Annabelle.
— Annabelle, você precisa procurar um novo apartamento.
— Por quê?
Sobrancelha arqueada.
— Bem, para começar, um louco sabe que você mora lá.
— O louco não é exatamente um garoto. E eu não sou moleza.
— Você não está pensando direito...
— Você não é meu pai!
— Opa, calma. Apesar do meu, ahn, óbvio interesse pessoal — ele puxou as calças, que estavam bem armadas —, ainda sou um detetive do estado. Nós somos treinados para esse tipo de coisa. Por exemplo, quando um perseguidor obsessivo se aproxima de um alvo, coisas ruins podem acontecer. Esse Tommy, ou qualquer que seja o nome que ele esteja usando ultimamente, obviamente descobriu que você está viva e bem no extremo norte da cidade. Ele passou as últimas vinte e quatro horas invadindo a casa de uma policial, montando uma emboscada com quatro cães de ataque e entregando um sinal de seu carinho na porta da sua casa. Em outras palavras, não é alguém com quem você queira brincar. Nos dê um ou dois dias. Fique em um hotel, mantenha-se discreta. Há uma diferença entre tomar cuidado e fugir assustada.
— Um hotel não vai aceitar que eu fique com Bella — eu disse, teimosamente, e apertei os braços ao redor da cachorra.
— Ah, pelo amor de Deus... existem estabelecimentos que aceitam cães. Deixe-me fazer algumas ligações.
— Eu preciso trabalhar, sabia? Não consigo pagar as contas apenas com meu charme.
— Então leve a máquina de costura.
— Eu também vou precisar de tecido, do meu computador, de peças de acabamento, dos designs...
— Eu ajudo você a levar tudo.
Fiz uma careta para ele sem motivo, então encostei a cabeça no pelo de Bella.
— Eu quero que isso tudo termine — confessei.
Ele, finalmente, suavizou o olhar.
— Eu sei.
— Eu não quero ser Amy — murmurei. — Ser Annabelle já é duro o bastante.
Bobby me levou a meu apartamento. Saí do carro, apenas a tempo de ouvir uma buzinada. Quando me virei, Bella estava latindo furiosamente.
Mais para cima na rua estava parado um enorme caminhão da UPS. Era Ben, meu cavaleiro de meia-idade, a bordo de seu leal corcel marrom. Ele diminuiu a velocidade, olhando ansiosamente para mim e para Bella. Eu fiz sinal de positivo para ele e, com um solene aceno de cabeça, ele seguiu em frente.
— Está vendo — eu disse a Bobby. — Eu também poderia ficar no meu apartamento. Com um serviço de entrega dia e noite do meu lado, quem precisa da polícia do estado?
Bobby não pareceu achar divertido.
Ele levou Bella e me conduziu até o apartamento. Alguém, os técnicos, um detetive, não sei, havia feito alguma tentativa de devolver as coisas ao devido lugar. Meu apartamento parecia desarrumado, mas estava bem.
— Me dê uma hora — Bobby disse. — Duas, no máximo. Preciso confirmar algumas questões, acertar algumas coisas...
— Você precisa encontrar Tommy — eu disse. — E dizer a D.D. para parar de suspeitar do meu pobre pai morto.
Bobby estreitou os olhos para mim, mas não disse nada.
— Eu ligo quando estiver a caminho.
— Sim, capitão.
— Arrume coisas para passar uma semana fora, para garantir. Eu sempre posso voltar para pegar algo que você tenha deixado para trás.
— É mesmo? Como o meu sutiã preto de renda preferido? Uma calcinha cor-de-rosa sensual altamente necessária?
Os olhos dele ficaram perigosamente quentes.
— Querida, eu adoraria vasculhar sua gaveta de lingerie. Mas tenha em mente que pode vir a ser um policial uniformizado que acabe atendendo ao chamado.
— Ah — eu encolhi os ombros. — Acho que eu mesma posso pegar minhas calcinhas.
— Leve tudo o que precisar, Annabelle. Podemos encher todo o carro, se quiser.
— Não vai ser necessário. Eu sou especialista em viajar com poucas coisas.
Minha tentativa de bravata não o enganou nem por um instante. Ele se aproximou e me agarrou antes que eu pudesse protestar e me deu um beijo apertado.
— Duas horas — ele repetiu. — No máximo.
Então, saiu.
Bella ficou chorando como um bebê na porta. Eu simplesmente fiquei me perguntando como uma mulher adulta podia se sentir tão vulnerável na própria casa.
Bobby começou a trabalhar pelo celular no instante em que entrou no carro. Tinha nomes, agora queria informações. Começou com D.D., mas caiu na caixa postal. O mesmo com Sinkus.
Depois de um breve conflito interno, Bobby tomou uma decisão. O Departamento de Polícia de Boston estava atolado, e ele precisava de informações rapidamente. Bem, que diabos, ele trabalhava para o estado, não? Cobrou um favor de um dos velhos colegas e fez a máquina andar.
Ele precisava saber todo o possível a respeito de A, Tommy Grayson; B, Roger Grayson; C, Lucille Grayson; e D, E e F, pensando melhor, de Gregory Badington, Paul Schuepp e Walter Petracelli. Isso manteria a máquina funcionando por um tempo.
Se a história de Schuepp estivesse correta, a pessoa que estava perseguindo Annabelle era, muito provavelmente, seu tio, Tommy Grayson. E quase fazia sentido que a pessoa que estava perseguindo Annabelle fosse a mesma pessoa que havia assassinado Dori Petracelli e a tivesse enterrado em Mattapan.
O que significava que Tommy Grayson havia vindo da Pensilvânia para Massachusetts.
E depois?
Tommy ficou sabendo que a família de Annabelle foi embora. Se ele os havia seguido da Filadélfia até Arlington, fazia sentido que fosse atrás deles de novo. Ao contrário de Christopher Eola, Tommy não era independentemente rico. O que significava que, se ele havia continuado a perseguir a família de Annabelle, havia enfrentado problemas logísticos básicos. Como ter dinheiro para aluguel e transporte. Como conseguir um novo emprego em uma nova cidade de tempo em tempo. Isso provavelmente significava fazer algum tipo de trabalho subalterno. Schuepp havia mencionado o fato de Tommy trabalhar como leão de chácara na Filadélfia. Era o tipo de trabalho fácil de conseguir rapidamente. Eles precisavam passar a foto de Tommy para forças policiais de todas as cidades, com a recomendação de distribuí-la aos bares locais. Talvez isso pudesse indicar os movimentos de Tommy, estabelecendo uma linha de tempo para suas viagens.
Restava saber como Tommy havia encontrado a família de Annabelle das outras vezes. Segundo Schuepp, o pai de Annabelle era inteligente: ele aprendia rápido com os próprios erros. Porém, como regra geral, a família se mudava a cada dezoito meses ou dois anos.
Medidas proativas por parte do pai de Annabelle? No instante em que a informação sobre uma criança desaparecida virava notícia ele se assustava e levava a família toda para a estrada. Ou Tommy era tão brilhante assim?
Bobby queria saber mais sobre Tommy. E sobre o pai de Annabelle.
Naturalmente, as boas vagas de estacionamento do Departamento de Polícia de Boston estavam ocupadas. Bobby deu quatro voltas e, finalmente, conseguiu estacionar quando alguém saiu. Ele parou e ainda estava profundamente concentrado nos próprios pensamentos enquanto trancava o Crown Vic e seguia para o interior do prédio.
A primeira coisa que notou quando atravessou as portas de vidro do Departamento de Homicídios foi o silêncio. A recepcionista, Gretchen, estava olhando fixamente para a tela do computador. Dois outros caras estavam sentados nos seus lugares, mexendo em papéis, parecendo vencidos.
Ele bateu no balcão na frente de Gretchen. Ela, finalmente, ergueu o olhar.
— O que foi? — ele perguntou em voz baixa.
— A mãe do Tony Rock — a recepcionista sussurrou em resposta.
— Ah, puxa.
— Ele ligou há mais ou menos trinta minutos. Não parecia nada bem. A sargento Warren está tentando falar com ele desde então, mas ele não está atendendo o telefone.
— Ah, não.
— Provavelmente só está precisando de algum tempo.
— Claro. Que droga. Quando você souber sobre o velório...
— Avisarei todo mundo — Gretchen prometeu.
Bobby acenou em agradecimento e seguiu direto para a sala de D.D. Ela estava ao telefone, mas levantou um dedo quando o viu. Ele se apoiou no marco da porta e ficou escutando um lado de uma conversa que consistia principalmente de “Sim, humm, certo”. Devia estar falando com a chefia.
Bobby apoiou o ombro no batente de madeira. De repente, se sentiu exausto. A vigilância no meio das árvores. D.D. no chão, sendo atacada por um rottweiler gigante. Saber que ela estava bem e ligar para Annabelle e ouvir sua voz assustada ao telefone. Mais uma corrida louca através da cidade, imaginando o que iria encontrar, preocupado que fosse tarde demais.
Havia sido isso que o pai de Annabelle sentira? Como se a vida estivesse saindo do seu controle? Como se pudesse ver o trem vindo, mas não conseguisse sair de cima dos trilhos?
Por Deus, ele precisava de uma boa noite de sono.
D.D., finalmente, desligou o telefone.
— Desculpe por isso — ela disse apenas. — A mãe do...
— Já fiquei sabendo.
— Naturalmente, ele ficará fora alguns dias.
— É claro.
— O que quer dizer...
— Ei, trabalho duro é bom para nós. Fortalece o caráter.
— Então — ela disse.
— Então, o nome verdadeiro de Russell Granger é Roger Grayson. Ele, a mulher, Lucille Grayson, e a filha recém-nascida, Amy Grayson, foram perseguidos pelo irmão maluco de Roger, Tommy Grayson, quando a família morava na Filadélfia. Roger acreditava que Tommy havia chegado ao ponto de assassinar os pais de Lucy em uma tarde em que o casal levou Amy ao parque. Logo depois, Roger acertou a mudança de toda a família para Arlington para viverem sob o nome falso de Granger. Infelizmente, ele não sabia como conseguir identidades falsas. Assim, todos os seus registros financeiros continuaram com suas identidades originais. De acordo com Paul Schuepp, antigo chefe do departamento de matemática do MIT, Roger se convenceu em 1982 de que Tommy os havia encontrado. Foi quando ele acertou para que a família fugisse uma segunda vez, dessa vez fazendo o serviço do jeito certo.
— Puta merda — D.D. disse.
— Tenho um amigo que está conferindo os nomes de Roger, Lucille, Tommy e alguns outros. Como Tommy tem antecedentes criminais, deve estar no sistema. A pergunta de um milhão de dólares é: depois que Tommy se deu conta de que a família de Annabelle havia escapado dele, ele continuou em Massachusetts ou caiu na estrada? Ah, e onde ele está agora?
D.D. esfregou as têmporas.
— Nosso principal suspeito é Tommy Grayson?
— É. Sinto decepcioná-la, mas acho que o pai de Annabelle está morto.
— Mas e toda aquela história de bancar o agente do FBI...
— Russell fez a mesma ligação que nós fizemos... que Catherine se parecia incrivelmente com Annabelle. Ele se preocupou que o ataque a Catherine fosse trabalho de Tommy. Considerando seu desejo de se manter fora do alcance do radar, ele não podia ir à polícia, então, tratou da questão ele mesmo.
— Mas Tommy não era o agressor de Catherine.
— Não, a semelhança de Catherine com Annabelle é pura coincidência. A metodologia de Umbrio, porém, provavelmente inspirou Tommy a usar uma câmara subterrânea dois anos depois. Então, os casos estão relacionados, mas de maneira distante.
— E Christopher Eola?
— Muito provavelmente um assassino, só que não nosso assassino.
— Charlie Marvin?
— Um pastor aposentado de fato que trabalha no Pine Street Inn. De acordo com testemunhas, ele estava lá na noite passada.
— Adam Schmidt?
— Não faço a menor ideia. Você precisa perguntar ao Sinkus.
— Ele está atrás de você — D.D. informou. — Ele passou a tarde com Jill Cochran do Hospital Psiquiátrico de Boston. Vocês dois precisam conversar.
Bobby a encarou.
— Só isso? Eu descubro a verdadeira identidade do pai de Annabelle, escancaro todo o caso e você pega no meu pé porque não conversei magicamente com meus companheiros detetives ainda?
— Eu não estou pegando no seu pé — ela respondeu de mau humor. — Mas estou pensando que todo o seu brilho ainda nos deixou com um buraco evidente.
— Que é?
— Onde diabos está Tommy Grayson neste exato momento, que não espreitando o apartamento de Annabelle e deixando cães de ataque treinados no meio do mato?
— Bom, da próxima vez eu entregarei o suspeito em uma bandeja de prata.
— Estou pensando — D.D. continuou, como se não o tivesse escutado — que se o resto da família Grayson adotou novas identidades, por que não Tommy? E nossa melhor chance de penetrar nesta identidade e encontrar o FDP antes que seja tarde é investigar a outra peça do quebra-cabeça que conhecemos.
— Outra peça do quebra-cabeça?
— O Hospital Psiquiátrico de Boston.
— Ah — Bobby disse com uma certa estupidez. Então, no instante seguinte, quando a ficha caiu: — Está certo. É. Muito bem. Estamos de volta à nossa teoria original... o assassino deve ter tido algum tipo de associação com o Hospital Psiquiátrico de Boston para se sentir confortável em enterrar seis corpos no complexo. O que quer dizer, se nosso assassino é Tommy Grayson...
— Que de acordo com você tem um passado problemático...
— Ele é um maluco de carteirinha.
— Então Tommy Grayson, provavelmente, tem um histórico no Hospital Psiquiátrico de Boston.
— E — Bobby conseguiu preencher as lacunas sozinho — Sinkus tem essa informação.
— Você vai acabar se dando bem como detetive — D.D. disse friamente. — Mais alguma coisa que eu precise saber?
— Estou trabalhando para encontrar um hotel para Annabelle.
D.D. arqueou uma sobrancelha.
— E estou pensando, embora talvez eu não tenha dito isso a ela, que enquanto ela estiver nesse hotel, nós podemos equipar o apartamento dela com uma armadilha.
D.D. apertou os lábios.
— Isso é caro.
Bobby encolheu os ombros.
— Isso é problema seu, não meu. Mas não acho que a situação vá se arrastar por muito tempo. Considerando o nível de atividade apenas das últimas vinte e quatro horas, me parece que a paciência de Tommy acabou.
— Vou passar por cima do adjunto — disse D.D.
— Certinho.
Bobby se virou para ir embora. D.D. o parou uma última vez.
— Bobby — ela disse baixinho. — Nada mal.
capítulo 34
Quando eu estava 12 anos de idade, tive uma agressiva infecção viral. Eu me lembro de reclamar de me sentir quente e com náusea. Quando vi, havia acordado no hospital. Seis dias haviam se passado. Pelo jeito das coisas, minha mãe não havia dormido em nenhum deles.
Eu estava fraca e grogue, exausta demais até para levantar a mão, confusa demais para compreender o emaranhado de linhas e fios preso a meu corpo. Minha mãe estava sentada em uma poltrona ao lado do meu leito de hospital. Quando meus olhos se abriram, porém, ela se levantou voando.
— Ah, graças a Deus!
— Mamãe? — eu não a chamava de mamãe fazia anos.
— Estou aqui, meu amor. Está tudo bem. Eu estou com você.
Lembro de fechar meus olhos novamente. A sensação fresca dos dedos dela afastando meus cabelos do meu rosto suado. Dormi agarrada à outra mão dela. E, naquele instante, eu me senti segura e protegida, porque a minha mãe estava ao meu lado, e quando temos 12 anos de idade, acreditamos que nossos pais são capazes de nos salvar de qualquer coisa.
Duas semanas mais tarde, meu pai anunciou que estávamos indo embora. Até eu vi que aquilo ia acontecer. Eu havia passado uma semana inteira no hospital, sendo examinada por especialistas médicos de primeira. Pessoas anônimas não podiam se dar ao luxo de ter esse tipo de atenção.
Arrumei minha única mala sozinha. Não foi difícil. Algumas calças jeans, blusas, meias, calcinhas, meu único vestido bonito. O cobertorzinho, o Boomer. O resto eu já sabia como deixar para trás.
Meu pai havia saído para tratar de várias tarefas — acertar as contas com o senhorio, abastecer o carro, pedir demissão de mais um emprego. Ele sempre deixava a minha mãe para arrumar as coisas. Aparentemente, condensar toda a vida adulta em quatro malas era trabalho de mulher.
Eu havia assistido à minha mãe fazer isso inúmeras vezes. Normalmente, ela murmurava uma canção qualquer, fazendo tudo no piloto automático. Abrir gaveta, dobrar, guardar. Abrir outra gaveta, dobrar, guardar. Abrir armário, dobrar, guardar. Pronto.
Naquele dia, eu a encontrei sentada à beira da cama de casal do quarto apertado olhando fixamente para as próprias mãos. Subi na cama para o lado dela. Me apoiei nela, ombro no ombro.
Minha mãe havia gostado de Cleveland. As duas mulheres mais velhas no final do corredor a haviam adotado. Elas a chamavam nas noites de sexta-feira para jogar cartas e beber Crown Royal. Nosso apartamento era minúsculo, mas melhor do que o de St. Louis. Não tinha baratas. Não tinha o barulho agudo do trem local parando na estação a uma quadra de distância.
Minha mãe havia conseguido um emprego de meio período como caixa no mercado local. Ela ia caminhando para o trabalho de manhã depois de me deixar no ônibus para a escola. À tarde, nós dávamos longas caminhadas pelas ruas tranquilas e arborizadas, parando no lago próximo para alimentar os patos.
Havíamos ficado lá dezoito meses completos, sobrevivendo até o inverno extremamente frio. Minha mãe dizia que a neve cinzenta e lamacenta não a incomodava nem um pouco, simplesmente a lembrava da vida na Nova Inglaterra.
Acho que a minha mãe poderia ter sobrevivido em Cleveland.
— Sinto muito — sussurrei para ela enquanto estávamos sentadas lado a lado em cima da cama.
— Shhhhh.
— Talvez, se nós duas dissermos não...
— Shhhhh.
— Mãe...
— Sabe o que eu faço em dias como este? — minha mãe me perguntou.
Sacudi a cabeça.
— Eu penso no futuro.
— Chicago? — perguntei, confusa, porque era para onde meu pai disse que estávamos indo a seguir.
— Não, boba. No futuro daqui a dez anos. Daqui a quinze, vinte, quarenta anos. Eu imagino a sua formatura. Imagino seu casamento. Eu sonho em segurar meus netos.
Fiz uma careta.
— Argh. Nunca vai acontecer — eu disse a ela.
— Claro que vai.
— Não, nunca. Eu não vou me casar.
Foi a vez dela de sorrir, desarrumar meus cabelos e tentar fingir que nenhuma de nós reparara nos seus dedos trêmulos.
— É o que toda menina de 12 anos diz.
— Não, eu estou falando sério. Sem marido, sem filhos. Ter filhos significa precisar se mudar muito.
— Ah, querida — ela disse com tristeza, me dando um abraço forte, apertado.
Penso na minha mãe ao deixar meu apartamento agora, com Bella na guia. Estou com meu Taser na mão. Parece melodramático, descer sorrateiramente as escadas do meu próprio prédio em plena luz do dia. Bobby tinha razão: meu apartamento não era mais seguro. Como se diz no mundo dos agentes secretos e das vidas duplas, meu disfarce havia sido descoberto. Então, era melhor eu aceitar o conselho de Bobby e ir para um hotel por um tempo.
É o que meu pai teria feito.
Mas sair significava arrumar as coisas. Arrumar as coisas significava fazer malas. As minhas malas estavam guardadas no meu armário depósito. Cada morador tinha um, no porão abaixo do prédio.
Eu havia pegado objetos do meu depósito inúmeras vezes antes. Disse a mim mesma que hoje não seria diferente.
A escada estalou embaixo do meu pé. Instantaneamente, congelei. Eu estava no terceiro andar, exatamente na frente da porta do apartamento 3C. Fiquei olhando para a porta fixamente, com o coração disparado, esperando para ver o que aconteceria a seguir. Então, no minuto seguinte, eu me recompus, fazendo uma autocrítica.
Eu conhecia os moradores do 3C. Um jovem casal de profissionais liberais. Tinham um gato malhado cinza chamado Ashton que adorava sibilar para Bella por baixo da porta. Apesar da atitude de Ashton, nós havíamos todos conseguido coexistir pelos últimos três anos. Não havia qualquer motivo lógico para eu de repente ter medo deles agora.
A situação era mais do tipo por que não ter medo do apartamento 3C? Sem um foco tangível para minha ansiedade, era fácil olhar para qualquer sombra escura e ver a possível silhueta do malvado Tio Tommy.
Desci até o segundo andar, e então até o primeiro. No saguão, chegou a parte difícil. Minhas mãos estavam tremendo. Eu precisei me esforçar para manter o foco.
Remexi nas chaves, finalmente encontrando a certa e a enfiando na fechadura. A porta lateral, velha e pesada, gemeu e revelou um mergulho escuro para as entranhas do prédio antiquíssimo. Mexi a mão acima da cabeça até encontrar a corrente que acendia a lâmpada nua que iluminava a escada que levava até o porão.
O cheiro era diferente ali. Frio e mofado, como pedras com limo e terra molhada. Como o cheiro da cova de Dori.
Bella desceu correndo a escada de madeira estreita sem pensar duas vezes. Pelo menos uma de nós era corajosa.
Lá embaixo, as estruturas dos armários de compensado sem acabamento estavam fixadas na parede oposta. Como moradora do quinto andar, meu armário ficava no final, trancado com meu próprio cadeado. Consegui abri-lo apenas na segunda tentativa. No meio-tempo, Bella percorreu o perímetro do porão, dando os latidos felizes típicos de um cão que está descobrindo tesouros escondidos.
Peguei as malas dos meus pais. Cinco peças verde-ervilha, feitas de algum tipo de tecido sintético que havia sido muito remendado com fita adesiva ao longo dos anos. A peça maior guinchou assustadoramente quando eu a arrastei pelas rodinhas no chão.
Naquele instante, vi muitos flashes do tempo. Meu pai, naquela última tarde em Arlington. Minha mãe, desfazendo as malas alegremente no nosso primeiro apartamento, eufórica com o sol brilhante da Flórida. Arrumando tudo de novo em Tampa. Chegando a Baton Rouge. A breve passagem por New Orleans.
Nós havíamos conseguido. Brigando, construindo, corrigindo, lutando, sofrendo. Perdendo, odiando, vencendo, chorando. Havíamos sido caóticos e tumultuados e amargos e determinados. Mas havíamos conseguido. E nunca, até aquele momento, senti tanta falta dos meus pais. Até meus dedos fecharem ao redor do meu colar e eu jurar que podia senti-los parados do meu lado naquele lugar frio e úmido.
E eu me dei conta, naquele instante, de que teria feito a mesma coisa se fosse eles. Eu teria movido terra e céus para salvar meu filho. Teria desistido do meu emprego, da minha identidade, da minha comunidade, até mesmo da minha vida. Teria valido a pena para mim também. É disso que se trata ser pai.
Eu amo vocês, eu amo vocês, eu amo vocês, tentei dizer a eles. Eu precisava acreditar que eles podiam me escutar. Nem que fosse porque sem aquele tanto de fé eu não seria melhor do que o sr. Petracelli, afogado em um mar de amargura e arrependimento.
Para o alto e avante, meu pai sempre dizia. Este vai ser o melhor lugar de todos!
— Para o alto e avante — sussurrei. — Está certo, papai, vamos fazer isso.
Organizei a bagagem, tranquei meu armário e assoviei por Bella. Considerando a carga, eu precisaria fazer duas viagens. Comecei com a peça maior, amarrando outra em cima dela, e prendi uma das malas menores no ombro.
Atravessei com dificuldade o estreito corredor entre os armários. Olhei para cima.
E vi a silhueta de Charlie Marvin no topo da escada, olhando para baixo e me encontrando na escuridão.
Bobby estava a caminho da mesa de Sinkus quando o telefone dele tocou. Ele conferiu o identificador de chamadas e atendeu.
— Recebeu o fax?
— Olá para você também — disse Catherine.
— Desculpe. Muita coisa acontecendo.
— Deu para ver pelo fax. Bem, então, a resposta à sua pergunta é que o desenho poderia ser do mesmo homem.
— Poderia ser?
— Bobby, faz vinte e sete anos.
— Você reconheceu a foto do pai de Annabelle com facilidade — ele argumentou.
— O pai de Annabelle interagiu comigo — Catherine pareceu incomodada. — Ele discutiu e me forçou até eu ficar irritada com ele. Isso deixou uma impressão e tanto. O desenho, por outro lado... O que eu me lembro mais é do meu primeiro pensamento, o de que o homem no desenho não era o homem que me atacou.
Bobby suspirou. Ele precisava de algo mais definitivo.
— Mas é possível que esse desenho seja o mesmo que foi mostrado para você no hospital?
— É possível — ela concordou. Um momento de pausa. — Quem é?
— O tio de Annabelle, Tommy Grayson. Acontece que ele começou a perseguir Annabelle quando a menina tinha cerca de 18 semanas de idade. A família dela fugiu da Filadélfia para Arlington em uma tentativa de se afastar dele. Ele os encontrou.
— Tommy conhecia Richard?
— Não que a gente saiba. Mas Tommy provavelmente tirou a ideia de usar uma câmara subterrânea ao saber sobre seu caso no noticiário.
— Que bom que pude ajudar — Catherine murmurou secamente.
Como a conhecia melhor do que a maioria das pessoas, Bobby parou de caminhar.
— Não é culpa sua.
Ela não disse nada.
— E, de qualquer maneira — ele continuou com firmeza na voz —, agora que sabemos o nome de Tommy, o caso está praticamente resolvido. Vamos pegá-lo, prendê-lo, e pronto.
— Você virá ao Arizona para comemorar?
— Catherine...
— Eu sei, Bobby. Você vai jantar com Annabelle para comemorar.
Foi a vez dele ficar em silêncio.
— Eu gosto dela, Bobby. Sinceramente. Me sinto bem de saber que ela vai ser feliz.
— Algum dia, você também será feliz.
— Não, Bobby, eu não. Mas talvez eu vá sentir menos raiva. Boa sorte com o seu caso, Bobby.
— Obrigado.
— E, quando tudo estiver terminado, sinta-se à vontade para você e Annabelle virem me visitar.
Bobby sabia que nunca aceitaria aquela oferta de Catherine, mas agradeceu antes de encerrar o telefonema.
Um detalhe resolvido, faltavam apenas mais uma dúzia, mais ou menos. Ele seguiu para o cubículo de Sinkus.
Sinkus estava zangado. Como o menino que foi ao estádio, mas olhou para o lado no último minuto e perdeu a jogada decisiva. Também estava cheirando a leite azedo.
— Quer dizer que esse professor sabia da história toda desde o começo?
— Acho que sim.
— Ah, cara. Passei três horas com Jill Cochran. E tudo o que descobri é que ex-administradoras de hospitais psiquiátricos são mais duras do que freiras católicas.
Bobby franziu o cenho.
— Que foi, ela bateu na sua mão com uma régua?
— Não, ela deu um sermão veemente sobre como é injusto sempre imaginar o pior dos doentes mentais. Que os malucos são pessoas, têm direitos. A maioria deles é inofensiva, apenas incompreendida. “Escreva o que eu estou dizendo”, ela me disse, “você vai encontrar quem fez isso e posso garantir que não será um dos nossos pacientes. Não, será algum destacado membro da comunidade. Alguém que vai à igreja, mima os próprios filhos e trabalha em horário comercial. São sempre os normais que cometem os verdadeiros atos vis contra Deus.” A mulher tinha muitas opiniões sobre o assunto.
— Então, onde estão os registros? — Bobby perguntou, tentando não parecer impaciente.
— Você está olhando para eles. — Sinkus apontou para quatro caixas de papelão empilhadas ao lado da parede. — Nada tão terrível quanto eu imaginava. Lembre-se de que o lugar fechou antes da informatização. Eu achei que estaríamos trabalhando com centenas de caixas. Mas, quando as instalações fecharam, a sra. Cochran sabia que eles não poderiam guardar pilhas e pilhas de históricos de pacientes. Então, ela condensou os arquivos a um tamanho aceitável. Assim, quando alguém precisa de informações sobre um antigo paciente, ela sabe por onde começar. Além disso, eu fiquei com a impressão de que ela estava pensando em usar seus anos naquele lugar para escrever um livro. Algo do tipo coração aberto com sentimento.
Bobby deu de ombros. Por que não?
Abriu a primeira caixa. Jill Cochran era uma moça organizada. Ela havia dividido as informações por décadas e depois por prédios, cada década contendo arquivos de vários prédios. Bobby tentou se lembrar do que Charlie Marvin havia dito a eles sobre a organização do hospital. A segurança máxima ficava no Prédio I, ou coisa parecida.
Ele foi até os anos 1970 e pegou o arquivo do Prédio I. Cada paciente havia sido reduzido a uma única página. O que ainda dava um peso impressionante.
Ele chegou ao nome de Christopher Eola primeiro e deu uma olhada nas anotações de Cochran. Data de internação, breve histórico familiar, um punhado de termos clínicos que não significavam nada para Bobby, então aparentemente a impressão da própria enfermeira-chefe: “Extremamente perigoso, extremamente dissimulado, mais forte do que parece”.
Bobby colou um post-it amarelo na página para referência futura. Estava confiante de que a cena de crime em Mattapan era trabalho do tio de Annabelle. Tendo decidido isso, ele estava igualmente confiante de que em algum momento Christopher Eola havia realizado seu próprio “ato vil contra Deus”. Apesar da solução do crime de Mattapan, tinha a sensação de que a força-tarefa concordaria em continuar rastreado o sr. Eola.
Olhou rapidamente os arquivos dos outros pacientes, esperando que algo saltasse aos olhos. Um post-it colorido gritando Eu sou o maluco. A anotação de um médico dizendo: Este paciente provavelmente sequestrou e torturou seis meninas.
Muitos dos pacientes tinham anotações que documentavam uma história de violência, bem como uma extensa atividade criminal. Pelo menos metade, no entanto, não tinha qualquer antecedente. “Internado pela polícia” e “Encontrado vadiando” eram frases bastante comuns. Mesmo antes da crise dos sem-teto ganhar as manchetes nos anos 1980, estava claro que tais desvalidos já estavam em crise em Boston.
Bobby repassou toda a pilha e se deu conta de que tudo se tornou um enorme e deprimente borrão. Ele parou, voltou e tentou novamente.
— Pelo que você está procurando? — Sinkus perguntou.
— Não sei.
— Assim fica difícil.
— O que você está fazendo?
Sinkus levantou o próprio arquivo lotado:
— Funcionários.
— Ah. Algum deles parece bom?
— Apenas Adam Schmidt, o auxiliar de enfermagem tarado.
— Que droga. Já conferiu os antecedentes dele?
— Estou trabalhando nisso. Que tal idade?
— O quê?
— Idade. Você está procurando um paciente que pudesse ser Tommy Grayson, não? Você disse que ele era sete anos mais jovem do que Russell Granger. Entrando e saindo da prisão e/ou de hospitais desde os, o quê, 16 anos?
— Que Russell soubesse.
— Então, se ele foi internado no Hospital Psiquiátrico de Boston, estamos falando de um jovem. Do final da adolescência aos vinte e poucos anos.
Bobby levou a lógica em consideração.
— É, bom palpite.
Ele começou a repassar as folhas dos pacientes novamente, reduzindo o arquivo todo a catorze homens, incluindo Eola e outro caso sobre o qual Charlie Marvin havia lhe falado, o menino de rua chamado Benji que frequentara a Boston Latin enquanto morava no moribundo instituto mental.
E agora?
Bobby olhou para o relógio e se encolheu. Já havia queimado uma hora e meia. Estava na hora de encontrar um hotel que aceitasse cachorros e voltar para Annabelle.
Pegou as catorze folhas:
— Se importa se eu fizer cópias desses aqui?
— Fique à vontade. Ei, você não disse que Charlie Marvin trabalhava no Hospital Psiquiátrico de Boston?
— Ele foi auxiliar de enfermagem — Bobby informou. — Nos tempos de faculdade. Depois, ele trabalhou como pastor voluntário até o hospital fechar.
— Tem certeza disso?
— Foi o que ele disse. Por quê?
Sinkus, finalmente, ergueu o olhar.
— Bobby, eu tenho décadas de livros de folha de pagamento na minha frente. Dos anos 1950 até o fechamento. Estou dizendo a você, nenhum Charlie Marvin nunca recebeu um centavo.
capítulo 35
— Você quer alguma ajuda? — Charlie me perguntou.
— Ah, humm, está tudo bem. Estou subindo. — Bella já estava subindo a escada aos pulos. Embora eu achasse o aparecimento repentino de Charlie inquietante, ela ficou felicíssima ao ver seu mais novo melhor amigo.
Ela saltou, pulou e lambeu. Eu subi com as três malas escada acima, pensando rápido. Que eu soubesse, Charlie não tinha meu endereço. Onde em nome de Deus eu havia botado meu Taser?
Então me lembrei. Eu o havia largado. Na prateleira. No meu armário, enquanto tirava as malas. Meu armário trancado. Eu quase me virei e voltei para baixo. Quase.
— Você parece ter tido uma manhã e tanto — Charlie comentou alegremente quando Bella e eu saímos para a iluminação cinzenta do saguão do edifício. Vi agora que algum dos meus vizinhos havia deixado abertas as duas portas da frente. Estava descarregando compras do mercado, provavelmente. Daria uma excelente manchete do Boston Herald: “Jovem é morta esfaqueada brutalmente enquanto vizinho estocava a geladeira”.
Eu precisava me acalmar. Estava tendo sobressaltos com sombras novamente. De acordo com Bobby, Charlie havia passado a noite anterior no Pine Street Inn. O que quer dizer que ele não poderia ter entregado meu último presente. Estando Charlie agora no mesmo nível que eu, me dei conta de que ele não era exatamente tão alto, nem tão grande e nem, na idade avançada, ameaçador. Na verdade, enquanto eu largava as malas cuidadosamente para ficar liberada para tomar medidas defensivas, Charlie estava ajoelhado coçando o pescoço da minha cachorra.
— Um policial ligou para o abrigo, perguntando por mim — ele disse simplesmente.
— É mesmo? Sinto muito por isso.
— Achei engraçado — Charlie disse. — Me tornar uma “pessoa de interesse” na minha idade. De qualquer maneira, um dos administradores do abrigo tem um rádio da polícia. Naturalmente, nós o sintonizamos depois da ligação. O despacho mencionou este endereço, e sendo um bisbilhoteiro e tudo o mais, pensei em parar para conferir como você estava. Não consigo parar de pensar que parte disso é culpa minha.
— Culpa sua?
— Eu estou sendo seguido — Charlie disse diretamente. — Pelo menos, tenho quase certeza disso. Começou no dia em que me encontrei com a sargento Warren e o detetive Dodge em Mattapan. Não tinha certeza no começo. Só ficava tendo um tipo de sensação estranha entre as omoplatas. Acho que talvez eu estivesse sendo seguido novamente na noite em que cruzei com você. E acho que a mesma pessoa que está me seguindo sabe alguma coisa sobre a cova coletiva. E, talvez, alguma coisa sobre você.
— Por que alguma coisa sobre mim?
— Porque você é a chave para aquela cova, não é, Annabelle? Não sei como, não sei por quê, mas tudo o que está acontecendo tem a ver com você.
Meu vizinho escolheu justamente esse momento para subir a escada com quatro sacolas plásticas de compras nas mãos. Ele nos deu um breve aceno de cabeça — o que havia de diferente em uma jovem, um velho e uma cachorra faceira? — e subiu direto.
Os olhos de Charlie acompanharam os movimentos do homem, embora seus dedos não tenham parado de acariciar as orelhas de Bella.
— Você sabe alguma coisa a respeito de Mattapan — eu disse a Charlie, agora uma afirmação, não uma pergunta.
Ele assentiu lentamente.
— Alguma coisa que você não contou à polícia.
Mais um aceno lento e pensativo com a cabeça.
— Por que está aqui, senhor Marvin? Por que está me seguindo?
— Eu quero saber — ele disse em voz baixa. — Eu quero saber tudo. Não apenas sobre ele, mas sobre você, Annabelle.
— Me diga — eu perguntei de repente, um erro tolo.
Charlie Marvin sorriu.
— Tudo bem. Mas considerando que agora somos amigos, você precisa me convidar para ir a seu apartamento.
— E se eu disser não?
— Você vai dizer sim, Annabelle. Você precisa dizer sim, se quiser saber a verdade.
Ele me tinha nas mãos e nós dois sabíamos disso. A curiosidade matou o gato, lembrei a mim mesma. Mas a verdade era um chamariz poderoso demais. Lentamente, mas com segurança, assenti com a cabeça.
Fiz que ele subisse primeiro. Pareceu ligeiramente menos burro desse jeito. Assim eu o mantinha no meu campo de visão. Disse a ele que precisava levar as malas. Se ele me seguisse, eu provavelmente acabaria batendo com uma delas nele acidentalmente. Ele não fazia ideia de como eu era desajeitada, falei.
Charlie aceitou minha explicação com seu sorriso alegre. Compreendeu completamente. Nem um pouco desafiador.
A longa subida de cinco lances de escadas — carregando malas, ainda por cima — me deu tempo suficiente para me maldizer. Por que eu havia esquecido o Taser? E como no mundo eu me tornei dona de uma cachorra que era uma avaliadora de caráter tão ruim?
Porque eu tinha certeza de que Charlie Marvin era uma ameaça. Eu só não sabia ao certo como.
No departamento de boas notícias, eu tinha a boa forma e a juventude do meu lado. Quando chegamos ao topo da escada no quinto andar, o sr. Marvin estava respirando pesadamente e segurando o lado da barriga.
Ele deu um passo para trás. Abri a primeira fechadura da minha porta. A segunda. A terceira.
— Garota cautelosa — ele comentou.
— Nunca se sabe.
Minha porta se abriu. Mais uma vez, deixei que entrasse primeiro. Então, mantive a porta aberta com a mala gigantesca.
— Em um prédio com essa estrutura — ele comentou —, parece que todas as novas palavras podem ecoar escada abaixo.
— Ah, mas elas vão ecoar mesmo — garanti. — Gritos também. E nós sabemos que pelo menos um dos meus vizinhos está em casa.
Ele sorriu mais melancolicamente desta vez.
— Eu assustei você tanto assim?
— Por que não me diz o que quer dizer, senhor Marvin?
— Eu não sou a verdadeira ameaça — ele disse em voz baixa. Achei que ele pareceu um pouco chateado, triste até.
— Senhor Marvin...
— Ele é — Charlie disse, apontando para trás de mim.
Bobby estava caminhando. Muito rápido. D.D. estava falando. Muito irritada.
— Vocês não conferiram os antecedentes de Charlie Marvin?
— Nós conferimos. Sinkus conferiu esta manhã. Ele faz trabalho voluntário no Pine Street Inn. Ele tinha um álibi para ontem à noite.
— Ah, é, e como você sabe que o Charlie Marvin que faz trabalho voluntário no Pine Street Inn é o mesmo Charlie Marvin que conhecemos?
— O quê?
— Você precisa ir pessoalmente. Precisa mostrar uma foto. De todos os erros idiotas de novatos!
— Não fui eu quem fiz a ligação — Bobby protestou novamente, então desistiu da questão. D.D. estava irritada demais para escutar. Ela precisava de alguém para torturar, e ele era o sortudo que estava mais perto. Isso lhe ensinaria uma lição.
Eles lançaram um chamado por um homem com a descrição de Charlie Marvin. Como precisavam começar com o que sabiam, os policiais estavam indo para o Pine Street Inn, bem como para o Columbus Park, Faneuil Hall e o antigo terreno do Hospital Psiquiátrico de Boston, todos destinos conhecidos de Charlie Marvin. Com alguma sorte, pegariam Marvin dentro de uma hora. Antes que ele suspeitasse de qualquer coisa.
— Ainda não faz sentido — Bobby resmungou enquanto eles passavam apressadamente pelo saguão. — Marvin não pode ser o Tio Tommy. Ele é velho demais.
— Meu carro — D.D. disse, empurrando as pesadas portas de vidro.
— Onde ele está estacionado?
Ela disse, e ele sacudiu a cabeça.
— O meu está mais perto. Além disse, você dirige como mulher.
— Danica Patrick[3] para você — D.D. resmungou, mas o seguiu apressadamente na direção do Crown Vic. Então, quando os dois estavam entrando no carro: — Charlie Marvin mentiu. Isso me basta.
— Ele não encaixa — Bobby insistiu, dando a partida no motor. — O Tio Tommy teria em torno de cinquenta anos. Charlie Marvin parece ter passando por isso há pelo menos uma década.
— Talvez ele só pareça velho. É o que uma vida de crime faz com a pessoa.
Bobby não respondeu. Apenas pôs o carro em movimento, ligou as luzes e seguiu em disparada para o Pine Street Inn.
Girei na direção da porta aberta. Não vi nada. Girei de volta com as mãos para a frente e as pernas abertas para ter equilíbrio, esperando pelo contra-ataque.
Charlie Marvin ainda estava parado ali, com aquela expressão beatífica no rosto. Pensei que estivesse começando a entender tudo. O sr. Marvin ouvia vozes quando não havia ninguém em casa. Para dar o devido crédito, Bella também parece ter entendido tudo. Agora estava sentada entre nós dois na minúscula cozinha, ganindo nervosamente.
— Antes tarde do que nunca — eu disse a ela. Cachorros não entendem nada de sarcasmo.
— Você é muito bonita — Charlie disse.
— Ah, assim eu encabulo.
— Muito velha para o meu gosto, porém.
— E, rápido assim, o momento se foi.
— Mas você é a chave. É você quem ele realmente quer.
Parei de respirar novamente, sentindo a boca ficar completamente seca. Eu precisava fazer alguma coisa. Pegar o telefone. Gritar por ajuda. Descer correndo as escadas. Mas não me mexi. Eu não queria me mexer. Eu sinceramente, Deus me perdoe, queria ouvir o que Charlie Marvin tinha a dizer.
— Você sabia — sussurrei.
— Eu descobri. Em uma noite, alguns anos atrás. Quando anunciaram que iam derrubar os prédios, eu voltei para fazer um tour de despedida. Um último adiós a um lugar aonde eu havia jurado que jamais voltaria. Mas então ouvi um barulho no meio das árvores. Fiquei curioso. Podia jurar por Deus que havia alguém lá, então puf, ele simplesmente desapareceu. Foi quase o suficiente para fazer alguém acreditar em fantasmas. É claro que eu não sou tão supersticioso.
— Passei mais quatro noites procurando até encontrar o brilho no chão. Fiquei esperando embaixo das árvores. Até que vi o homem sair do subterrâneo, desligar a luz e desaparecer no meio do mato. Levei uma lanterna depois disso. Voltei pouco antes do amanhecer. Encontrei a abertura e desci até a câmara. Jamais teria imaginado. Fiquei sem fôlego. O trabalho de um mestre habilidoso. Eu sempre soube que não poderia durar.
— Quem foi, Charlie? Quem saiu de dentro do chão? Quem matou aquelas meninas?
Ele sacudiu a cabeça.
— Seis meninas. Sempre seis meninas. Nem mais, nem menos. Eu continuava conferindo, esperando que algo mudasse. Mas ano após ano. Duas fileiras. Com três corpos cada. A plateia perfeita. E nunca mais cruzei com ele, embora Deus saiba que tentei. Eu tinha tantas perguntas para ele.
— Você as matou? O trabalho que você descobriu lá foi feito por você?
Ele continuou como se eu não tivesse dito nada:
— Então, é claro, eu vi a matéria sobre a descoberta da cova. Mais uma vítima do crescimento urbano. Mas foi quando me dei conta. Isso o forçaria a aparecer, faria com que quisesse conferir seu trabalho uma última vez. Então voltei a ficar por perto, esperando vê-lo. Mas tudo o que eu vi foi você. E você é uma mentirosa.
Pela primeira vez, o tom de voz dele ficou mais grave, mais ameaçador. Dei um passo instintivo para trás.
— Quem é você? — perguntei. — Porque certamente não é nenhum pastor.
— Sou ex-paciente, fanático por covas coletivas. Quem é você?
— Eu estou morta — eu disse simplesmente. — Sou o fantasma que assombra o terreno. Estou esperando aquele monstro voltar para poder matá-lo.
Os olhos azuis de Charlie se estreitaram.
— Annabelle. Annabelle Granger. Seu nome saiu no jornal. Da cova. Você realmente está morta.
E então, um instante depois, seu rosto se abriu em um sorriso.
— Sabe, eu estava decidido pela sua amiga, a sargento loira — ele disse maliciosamente. Vi o brilho da lâmina na mão dele. — Mas, pensando bem, Annabelle querida, você vai servir perfeitamente.
Bobby descreveu apressadamente Charlie Marvin para o jovem latino que os recebeu no Pine Street Inn. Juan Lopez concordou que o Charlie Marvin do Departamento de Polícia de Boston era de fato o Charlie Marvin do abrigo. Trabalhava ali como voluntário ao longo dos últimos dez anos, na verdade. Ponto para os mocinhos.
Só que o sr. Marvin não estava no local naquele momento. Havia saído uma hora antes. Não, Lopez não sabia para onde. O sr. Marvin era um voluntário, afinal. Eles não controlavam o homem. No entanto, o sr. Marvin era conhecido por trabalhar nas ruas, visitando os sem-teto. A polícia talvez pudesse tentar alguns dos parques.
Bobby garantiu que já havia policiais a caminho. Marvin era procurado para depoimento imediato.
Lopez pareceu desconfiado.
— O nosso Charlie Marvin? Cabelos brancos fartos, olhos azuis-claros, sempre com um sorriso no rosto? Esse Charlie Marvin? O que ele fez, cara? Roubou dos ricos para dar aos pobres?
— É uma investigação oficial da polícia. Relacionada com assassinatos.
— Não!
— Sim.
— Bem, ponto para a associação dos aposentados.
— Apenas nos ligue se o vir, senhor Lopez.
— Está certo. Mas agora que você me fez pensar, eu iria para Mattapan. Deem uma olhada no terreno daquele velho instituto psiquiátrico. Sabe aquele em que andam escavando? Charlie tem passado dia e noite lá desde... Ei, vocês não acham realmente que...
— Obrigado, senhor Lopez. Entraremos em contato.
Bobby e D.D. seguiram para Mattapan, enquanto Bobby discava para Annabelle do celular.
Consegui antecipar o primeiro golpe afobado de Charlie, desviando para o lado no piloto automático, enquanto meu cérebro tentava compreender muitas coisas ao mesmo tempo. Charlie Marvin era um antigo paciente do Hospital Psiquiátrico de Boston. Charlie Marvin havia descoberto a cova. Longe de ficar horrorizado, Charlie Marvin ficara impressionado.
Parecia que o sr. Marvin tinha um pouco de violência no passado. Certamente sabia como usar um canivete.
Depois do primeiro golpe fracassado, trocamos de lugar na minha minúscula quitinete. Antes que eu começasse a me autoparabenizar, me dei conta de que o movimento de Charlie havia funcionado perfeitamente. Ele agora estava posicionado entre mim e a minha porta aberta.
Ele viu meu olhar passar por cima do ombro dele, para a minha melhor esperança de fuga, e deu um largo sorriso.
— Nada mau para um velhote — falou. — Confesso que faz anos, mas acho que ainda tenho um pouco de mágica sobrando.
Bella recuou até as minhas pernas. Estava enfurecida, olhando para Charlie e rosnando baixo.
Lata, eu queria gritar para a minha cachorra hiperativa. Este seria um bom momento para fazer barulho! Ela, é claro, continuou a rosnar baixinho, pelo que eu sinceramente não podia culpá-la, porque três minutos depois do meu primeiro confronto com o mal, eu ainda não havia conseguido dar um grito.
O medo às vezes paralisa as cordas vocais, meu pai havia me dito. Ele realmente havia feito o dever de casa.
Charlie deu um passo para a frente, eu dei um passo para trás e bati no balcão da cozinha. A quitinete oferecia muitíssimo pouco espaço de manobra, mas eu já havia me dado conta de que não podia deixar Charlie me levar mais para dentro do apartamento. A porta aberta e o corredor exposto eram a minha melhor esperança de fuga.
Consegui encontrar meu equilíbrio e me preparei para agir. Ele era velho, e um canivete não era tão ameaçador como uma arma. Eu tinha uma chance decente.
Charlie se abaixou para a direita.
Preparei para girar dando um chute alto.
Bella saltou no último minuto.
E eu ouvi a minha tola e heroica cachorra uivar quando a lâmina de Charlie penetrou em seu peito.
Telefone tocando.
Telefone tocando.
Telefone tocando.
A secretária eletrônica atendeu. Bobby ouviu a voz alegre de Annabelle anunciar “Não estamos em casa no momento. Deixe seu nome e telefone depois do bipe”.
— Annabelle — ele disse com urgência. — Annabelle, atenda. Precisamos conversar. Conseguimos mais informações sobre Charlie Marvin. Estou atrasado, pelo menos atenda o telefone.
Nada ainda. Será que ela havia se cansado de esperar por ele e fugido por conta própria? Qualquer coisa era possível com aquela mulher. Talvez fosse por isso que ele estivesse tão assustado.
Foda-se. Ele pisou no freio.
— Que diabos... — D.D. exclamou.
— Ele a seguiu.
— Quem?
— Marvin. Ele a encontrou no parque ontem à noite. Aposto que Charlie Marvin sabe onde Annabelle mora.
capítulo 36
Bella caiu, o telefone tocou, e ouvi minha própria voz sair rasgando a garganta.
— Seu filho da puta!
Eu me atirei em cima de Charlie, juntando os dedos e mirando para o ponto macio na base da garganta. Ele rolou e agarrou meu antebraço, me cortando com o canivete. Eu o derrubei, e nós nos perdemos num emaranhado de pernas e braços. Na parte desconectada do meu cérebro que preferia assistir a agir, pensei que aquele não era o tipo de luta para o qual eu vinha me preparando. Não havia trabalho elaborado dos pés, nenhum desvio suave de golpes bem pensados. Em vez disso, nós grunhíamos e arfávamos, socando um ao outro freneticamente enquanto rolávamos pelo chão.
Eu podia sentir o suor salgado escorrendo pelo meu rosto e os cortes ardendo nas mãos e nos braços. Charlie continuava a cortar ensandecidamente. Eu continuava batendo no rosto dele, usando a mão direita para acertar os olhos dele e me defendendo com a esquerda.
Eu era mais rápida. Ele estava mais bem armado. Eu estava sangrando. Ele estava sem fôlego. Ele cortou para a esquerda, abrindo um corte no meu rosto. Acertei a palma da minha mão no esterno dele, ele caiu para trás tossindo, sem ar.
Apoiei as mãos no chão e me levantei com dificuldade. Saí correndo na direção da porta.
Eu não podia fazer aquilo. Não podia deixar Bella. Ele certamente a mataria.
Charlie já estava de pé, vindo para a frente. Recuei na direção dos armários da cozinha. Ele continuou vindo em minha direção. Estendi o braço para trás, sentindo a borda de madeira do armário com os dedos.
Ele ficou ao meu alcance. Chutei-o no queixo. Ele se abaixou, e eu finalmente demonstrei um pouco de habilidade, revertendo meu movimento, segurando o topo da cabeça dele e a jogando na direção de seus joelhos. O golpe não saiu com tanta força como eu queria, mas foi o bastante para o que eu precisava.
Abri o armário e comecei a revirar as pilhas bagunçadas de panelas.
Charlie estava se endireitando.
Vamos lá, vamos lá.
E então encontrei o que estava procurando. A borda da minha frigideira de ferro fundido. A arma perfeita.
Charlie começou a avançar novamente, e eu me preparei para fazer algo que nunca imaginei que faria: matar outro ser humano.
De repente, à distância, o som mais doce que já ouvi na vida. Passos subindo as escadas. Charlie congelou. Eu fiquei imóvel.
Bobby, pensei. Era Bobby vindo me salvar.
Um uniforme marrom da UPS entrou pela porta do meu apartamento.
— Ben! — arfei.
No mesmo momento, Charlie disse:
— Benji?
E Ben respondeu chocado:
— Christopher?
Bobby ficou preso no trânsito. É claro que ele ficou preso no trânsito. Porque ele estava em Boston, onde dirigir era um esporte sangrento, e só porque o outro veículo tinha uma sirene e você não, não era motivo para não ser um cretino.
Ele ligou para o número de Annabelle novamente. Atendeu a secretária eletrônica, e ele desligou. Deu um soco na direção.
— Calma, calma — D.D. falou tranquilamente.
— Tem alguma coisa errada.
— Por que a namoradinha não está esperando ansiosamente ao lado do telefone?
Ele olhou para ela com irritação.
— É sério. Ela sabia que eu ia voltar para levá-la para um hotel. Ela não iria simplesmente sair.
D.D. deu de ombros.
— Ela tem uma cachorra. Talvez tenha precisado levá-la para correr.
— Ou talvez — Bobby disse simplesmente — Charlie Marvin tenha chegado antes de nós.
O telefone tocou. Ele o abriu sem se preocupar em ver quem era. Não era Annabelle, mas seu colega, o detetive Jason Murphy, da Polícia Estadual de Massachusetts.
— Pesquisei Roger Grayson, como você pediu — Jason disse rapidamente. — Encontrei registro de um depósito num local perto da Rota 2, ao norte de Arlington. Grayson vinha pagando antecipadamente as taxas por períodos de cinco anos. Como o último pagamento venceu há alguns anos, o proprietário registrou um direito de retenção. Na verdade, se quisermos ir até lá e pegar todas as coisas, o proprietário não se importará. Ele quer ter o espaço de volta para alugar.
— Excelente.
— O histórico criminal era desprezível. Nada além de uma multa de trânsito, e isso há vinte e cinco anos. Grayson deve ser um verdadeiro coroinha.
— Multa de trânsito?
— Excesso de velocidade. 15 de novembro de 1982. Ele foi pego andando a 120 quilômetros por hora numa área de velocidade máxima de cem quilômetros por hora.
Quinze de novembro de 1982. Três dias depois de Dori Petracelli ser vista pela última vez.
— O que mais? — Bobby perguntou ao detetive estadual.
— O que mais? Eu comecei há apenas uma hora, Bobby...
— E quanto a Walter Petracelli?
— Nada ainda.
— Você me avisa?
— Eu vivo para servir. Não é por nada, Bobby, mas não deixe o fato de estar trabalhando para a cidade subir à cabeça.
Jason desligou. Bobby devolveu o telefone ao bolso do casaco. Tocou as sirenes de novo. Nada aconteceu. O trânsito estava apertado demais para qualquer carro abrir caminho.
Ele olhou para o relógio. Eles estavam na Atlantic. A dois, no máximo três quilômetros do apartamento de Annabelle.
— Vou parar — ele disse.
— O quê?
— Esqueça o carro, D.D. Nós somos fortes, somos rápidos. Vamos correr.
— Ben, Ben, graças a Deus você está aqui. Ele esfaqueou Bella. Ele é louco. Você precisa nos ajudar. Bella, pobrezinha, eu estou aqui, garota, está tudo bem, vai ficar tudo bem.
Abandonei a frigideira de ferro para cuidar da minha cachorra, botando-a no meu colo. Pude sentir o calor de seu sangue se esvaindo por seu pelo branco. Ela chorava. Tentava lamber minhas mãos, cuidar do corte.
— Ben! — gritei novamente.
Mas Ben não estava se mexendo. Ele estava parado na minha porta, encarando Charlie Marvin.
— Foi você? Ah, meu Deus, águas paradas são perigosas! — Charlie disse.
— Ela é minha — Ben disse simplesmente. — Você não pode tê-la. Ela é minha.
— Chame a polícia — eu estava soluçando. — Ligue para a emergência, peça pelo detetive Bobby Dodge, peça paramédicos. Não sei quem eles mandam para cães, mas uma ambulância deve servir. Ben? Você está me escutando? Ben?
Ben finalmente olhou para mim. Quando entrou no meu apartamento. Quando fechou a porta e começou a trancar as fechaduras, uma a uma, atrás dele.
— Está tudo bem agora — ele me disse solenemente. — O Tio Tommy está aqui agora, Amy, e eu vou cuidar de tudo.
Charlie começou a rir. O som rapidamente se transformou num ruído sibilante. O golpe no esterno deve ter soltado alguma coisa. Agora que o zumbido nos meus ouvidos estava diminuindo, comecei a sentir minhas próprias dores. Minhas costelas feridas, meus tornozelos cortados, o talho no meu rosto.
Pelo menos, eu reagi à altura. O olho de Charlie estava fechado. Ao sair apressadamente se arrastando pelo chão, para longe de Ben, ele deu preferência para o lado esquerdo, arfando como se estivesse com dor.
Meu cérebro não estava mais funcionando. Eu não me importava com Charlie. Eu não estava entendendo Ben. Só queria tirar a Bella dali. Queria minha cachorra a salvo.
Que era a melhor coisa em que me concentrar, porque a conversa que estava acontecendo ao meu redor era terrível demais para acreditar.
— Como você as matou? — Charlie queria saber. — Uma por vez? Aos pares? Como você as atraiu? Eu sempre me contentei com prostitutas. Ninguém nunca sente a falta delas.
— Você a machucou? — Ben ainda estava encarando Charlie.
— Eu estive à sua procura, Benji. Desde que descobri a câmara. Eu achava que eu era esperto. Trabalhando com os sem-teto para que ninguém questionasse por que eu estava nessa ou naquela esquina, nessa ou naquela noite. Por que eu conhecia tantas putas que haviam desaparecido. Mas então... não pude acreditar na engenhosidade daquela câmara, o escopo do que você conseguiu fazer. Se pelo menos eu tivesse pensado naquilo antes. Ah, as coisas que eu poderia ter feito.
— Ela está sangrando.
— Por quanto tempo você as mantinha vivas? Dias, semanas, meses? Mais uma vez, as possibilidades. Meu disfarce me dava a oportunidade perfeita de aproveitar a caçada. Mas depois disso... Foi a falta de tempo, a necessidade de correr, correr, correr que sempre me incomodou. Eu gastava um monte de energia as atraindo, as prendendo, então, quando estava começando a aproveitar, precisava ser prático. Alguém poderia ouvir algum barulho, alguém poderia ficar curioso. É preciso terminar o romance e fazer o serviço. Não faz nenhum bem chamar a atenção para si, nem mesmo pelas especiais. Me diga a verdade — Charlie quis saber. — Você não ficou nem um pouco inspirado pelo meu trabalho? A enfermeira em 1975. Um trabalho feito completamente no impulso. Eu estava passeando pelo local. Ela estava passeando pelo local. Uma coisa levou à outra. Foi a maior coisa que aconteceu no Hospital Psiquiátrico de Boston. Bem, pelo menos até a sua câmara ser descoberta. Benji? Benji, você está me escutando?
Ben se inclinou para Charlie. A expressão no rosto dele me fez sentir um arrepio na nuca. Afundei os dedos nos pelos de Bella. Rezei para que ela não fizesse som algum.
Pus uma das mãos no chão e comecei a ir silenciosamente com Bella em direção à porta.
— Você machucou a Amy — Ben disse. — Agora eu preciso machucar você.
No último instante, Charlie pareceu se dar conta de que não tinha um aliado. No último instante, ele levantou o canivete, percebendo o perigo em que se encontrava.
Ben segurou o pulso de Charlie com apenas uma das mãos musculosas. Ouvi o barulho de ossos quebrando.
Cheguei à porta e comecei a mexer freneticamente nas fechaduras. Por quê, ah, por que eu tinha tantas fechaduras?
Eu não podia olhar, mas também não podia fazer nada para bloquear o barulho.
Enquanto meu tio arrancava o canivete da mão esmagada de Charlie Marvin. Depois, com muito cuidado, enfiava a lâmina inteira no olho de Charlie Marvin. Um grito. Um estalo molhado. Um longo e sibilante gemido baixo, como o barulho de ar saindo de pneus.
Então o silêncio.
— Ah, Amy — Ben disse.
Não consegui evitar. Abraçada em Bella, encostada na porta trancada, comecei a chorar.
capítulo 37
— Você é tudo que eu sempre quis, Amy — Ben estava dizendo. — As outras meninas... elas não significaram nada para mim. Equívocos. Eu vi os erros do que eu tinha feito anos atrás. E fiquei esperando por você. Até que um dia a minha paciência foi recompensada. — Ele estendeu a mão ensanguentada e acariciou meu rosto. Tentei me encolher, mas não havia para onde ir.
— Por favor, abra a porta, Ben. — Eu queria falar com firmeza, mas minha voz saiu trêmula. — A Bella está ferida. Ela precisa de cuidado médico imediato. Por favor, Ben.
Ele olhou para mim e suspirou pesadamente.
— Você sabe que eu não posso fazer isso, Amy.
— Eu não vou contar a ninguém a seu respeito. Vou dizer que Charlie me atacou. Ele estava louco, eu mesmo o esfaqueei. Olhe para os cortes em todo o meu corpo. Eles vão acreditar em mim.
— Não é mais a mesma coisa. No começo, quando reencontrei você, estava tudo bem. Eu me dei conta imediatamente de que ninguém mais sabia quem você era. Você era especial, intocada. Você pertencia a mim.
— Eu não vou me mudar. Vou ficar bem aqui. Tudo pode continuar exatamente como era antes. Eu encomendo tecido e você pode entregar todos os dias.
— Mas não é mais a mesma coisa. Você sabe agora. A polícia sabe. Não é mais a mesma coisa.
Fechei os olhos, lutando para manter o controle. Bella chorou de novo. O som me deu força.
— Eu entendo. Você conseguiu passar vinte e cinco anos sem mim. Você pegou aquelas outras meninas. Obviamente que eu não significo nada para você.
— Ah, não — ele disse imediatamente, com sinceridade. — Eu não parei porque quis. Não foi o que aconteceu de jeito nenhum. — Ben tirou o boné marrom. E pela primeira vez eu vi o sulco que percorria o topo da cabeça dele, uma cicatriz tortuosa sem cabelos. — Foi isso que me parou. Se não tivesse sido por isso, eu a teria perseguido para sempre. Há vinte e cinco anos, Amy, você teria sido minha.
— Ah, meu Deus — eu gemi, porque naquele momento eu finalmente escutei. Ben podia não se parecer com o meu pai, mas, se eu escutasse a voz dele, a voz intensa e sincera com que falava ao tentar dizer aquela coisa tão importante... ele soava exatamente como meu pai. O mesmo tom, o mesmo ritmo, a mesma voz.
Será que eu havia me dado conta disso antes, feito a ligação em algum nível subconsciente? Então eu o deixei entrar, fiz dele minha única ligação com o mundo externo porque o sangue falava mais alto e parte de mim havia gostado de encontrar a família novamente?
— Tudo o que eu sempre quis foi alguém que não me abandonasse — ele estava dizendo, com a voz sincera do meu pai continuando a sair de um crânio extremamente marcado. — Alguém que precisasse ficar. Pensei que seria a sua mãe, mas ela não entendeu. Então fui preso. — Ele diminuiu o tom da voz, mas logo retomou. — Mas, quando saí, eu vi você e compreendi. A forma como você sorriu para mim, Amy. A forma como você agarrou o meu dedo com seu punho gorducho. Você era a minha família. Você era a pessoa que iria sempre me amar, que nunca iria embora. E eu fiquei tão feliz. Até o dia em que apareci e você tinha ido embora. Toda a sua família. Desaparecido.
— A Bella está ferida — implorei. — Por favor.
— Foi um período terrível. Eu sabia, é claro, que você jamais teria me deixado por escolha própria. Obviamente que seu pai a havia obrigado a ir embora. — Ben segurou minha mão e acariciou meu pulso com seus dedos manchados de sangue. — Então comecei a fazer perguntas. Uma família inteira não pode desaparecer. Todo mundo deixa algum tipo de rastro. Mas ninguém sabia me dizer nada. Então, me ocorreu. Meu irmão precisaria de um emprego para sustentar a família. Quem poderia ajudá-lo a conseguir um emprego? Seu antigo empregador, é claro. Então eu invadi a casa do doutor Badington. E encontrei a esposa dele.
— O quê?
— Eu fui à tarde. Naturalmente que a senhora Badington se negou a falar inicialmente, mas depois do que fiz com o gato dela, ela me contou muita coisa. Sobre o novo cargo do seu pai no MIT. Sobre uma casa em Arlington. Melhor ainda, ela nunca contou sobre minha visita a ninguém. O que eu fiz a ela, afinal, não é o tipo de coisa que se menciona na sociedade bem-educada. Além disso, eu prometi que, se ela algum dia contasse alguma coisa, eu voltaria e faria exatamente as mesmas coisas ao marido dela.
— Ah, meu Deus...
— Parti para Massachusetts. Eu ia ver você naquela noite mesmo. Mas cheguei atrasado. Eu me perdi, e a coisa mais louca aconteceu. Sofri um sequestro-relâmpago. Estava no lugar errado, na hora errada, com quatro irmãos enormes que me encheram de porrada. Então eles tiraram a minha roupa e... E, então, tudo ficou escuro. Por muito tempo.
— Pouco a pouco, fui me recuperando. Reaprendi a comer, a me vestir, a escovar meus dentes. Falei com médicos muito gentis que me disseram que a minha vida havia começado mal, mas que aquela era a minha segunda chance. Eles disseram que eu poderia ser quem eu quisesse. Eu poderia me reinventar.
— E, por um tempo, eu tentei. Parecia uma boa ideia. Eu podia ser Benji, cujo pai era um agente da CIA, e não apenas um cretino bêbado que um dia assassinou a esposa antes de estourar os próprios miolos. Eu gostava de ser Benji. De verdade.
— Mas eu me sentia muito solitário, Amy. Você deve entender como é. Não ter uma família. Ninguém nunca chamar você pelo seu nome verdadeiro. Não ter ninguém que o conheça inteiro, quem você realmente é e não apenas a fachada que todos precisamos exibir em público. Isso não é jeito de viver.
— Pare com isso — sussurrei, puxando minha mão. — Pare com isso, pare com isso. — Mas ele não calava a boca. Ele não parava de falar, com a voz do meu pai, os meus próprios pensamentos, serpenteando na minha cabeça.
— Eu encontrei a galeria um dia quando estava caminhando pelo terreno do hospital. Fiquei intrigado o bastante para transformá-la na minha casinha longe de casa. Eu estava me saindo bem, ainda morando no instituto, mas matriculado em uma escola próxima. A galeria se tornou uma câmara, a câmara, minha sala de estudos, e então, um dia...
— Eu a vi. Voltando da escola a pé. Eu a vi e pude ver pela expressão no rosto dela que ela também me viu. Ela gostava de mim, queria ficar comigo. Ela seria a que nunca iria embora.
— Shhhhh — tentei novamente. — Shh, shh, shh. Você é louco. Eu odeio você. Meus pais odiavam você. Queria que você tivesse morrido.
— No último minuto, ela mudou de ideia. Ela lutou comigo. Ela gritou. Então eu tive que... tudo acabou muito rápido, e depois eu fiquei triste. Não era como eu queria que as coisas acontecessem. Você precisa acreditar em mim, Amy. Mas então me ocorreu. Eu poderia ficar com ela. Eu sabia exatamente onde. E então ela nunca iria me deixar.
— Você é doente! — puxei minha mão com força uma última vez, finalmente a tirando da dele. Ele não pareceu se preocupar.
— Eu tentei de novo — ele disse simplesmente. — E de novo e de novo e de novo. Todas às vezes, o relacionamento começava com uma grande promessa, então logo azedava. Até que um dia eu compreendi. Eu não queria nenhuma daquelas meninas idiotas e inúteis. Eu queria você. E, então, me lembrei do que a senhora Badington havia dito. E encontrei você de novo. Minha Amy, minha preciosa, preciosa Amy. Chegamos tão perto daquela vez. Eu fiz as coisas mais lentamente, começando com presentinhos para conquistar a sua confiança. O sorriso no seu rosto quando você abria cada caixa, descobria cada tesouro. Era exatamente como eu imaginava que seria. Você seria minha.
Ele parou, suspirou, fez uma pausa. Eu quase chorei de alívio.
Mas ele ainda não havia terminado. Como poderia ter terminado, quando nós dois sabíamos que o pior ainda estava por vir?
— Roger me viu. Eu achei que estava sendo esperto, mas, ah, os irmãos mais velhos. Eles têm um jeito de saber o que os irmãos mais novos estão aprontando. Ele sabia. É claro que sabia. Eu me dei conta de que precisaria agir rapidamente. Só que, quando percebi, a polícia havia encontrado meu esconderijo no sótão. E em vez de ter levado você, eu estava fugindo da lei. Quando consegui me reorganizar, estava tudo acabado. A casa estava lá, mas não havia mais ninguém nela. O Roger — ele disse simplesmente — sempre foi um filho da puta inteligente. Naturalmente, eu o fiz pagar.
Ben havia levantado a mão. Estava esfregando a cicatriz quase inconscientemente. Um gesto nervoso que tinha a função de acalmar? Ou a recordação de uma lembrança que ainda doía?
— Você sequestrou a Dori — murmurei.
— Eu precisei fazer isso — ele disse, dando de ombros. — Precisava de alguém. Não queria ficar sozinho. E ela havia roubado o seu pingente. Não podia deixar que fizesse isso.
— Ela não pegou o pingente, seu filho da mãe. Eu o dei para ela. Ela era minha amiga, e eu o dei para ela porque é o que amigas fazem. Você é terrível, você é horrível, e eu nunca vou ficar com você. Seu toque me dá nojo!
— Ah, Amy. — Ele suspirou novamente. — Você não precisa ficar com ciúme. Dori não era quem eu realmente queria. Ela era simplesmente um meio para o fim. Eu a peguei, e o Roger voltou para mim.
Pisquei várias vezes, chocada.
— Você viu meu pai de novo? Em Arlington?
— Roger veio para casa. Exatamente como eu sabia que ele faria. Antigamente, há muito tempo, o Roger me amava. Ele me escondia dentro do armário e ficava segurando a minha mão enquanto nossos pais berravam. “Está tudo bem”, ele me dizia. “Eu não vou deixar nada acontecer com você. Eu vou manter você seguro.” Então, uma noite, meu pai entrou na cozinha, encontrou nossa mãe parada lá e deu três tiros no peito dela. Bum, bum, bum. Ele se virou e me viu em seguida. Ele levantou a arma. Eu sabia que ele ia atirar. Só que Roger o impediu. Roger o mandou largar a arma. Roger disse que se ele realmente queria matar alguém, o mínimo que poderia fazer era matar a si mesmo.
— E foi exatamente o que nosso pai fez. O filho da puta imbecil apertou o cano da arma na cabeça e puxou o gatilho. Tchauzinho, papai. Olá, colégio interno.
— Só que, no colégio interno, o Roger desapareceu. Ele tinha as aulas dele, os amigos dele, a vida dele. Ele me deixou. Simplesmente me deixou.
— Então eu fiquei esperando na casa em Arlington. Porque eu sabia o que sempre soube. Que o Roger iria voltar. Que seríamos apenas ele e eu novamente. Com uma arma.
— Você tentou matar o meu pai!
Ben olhou para mim. Sacudiu a cabeça com tristeza e tocou na cicatriz.
— Ah, não, Amy. O seu pai, meu querido irmão, tentou me matar.
Reta final. Bobby e D.D. vinham correndo pela Hanover, desviando de pedestres, ignorando táxis buzinando. Estava escurecendo e a rua ia ficando mais movimentada com os restaurantes abrindo as portas para a noite. Bobby e D.D. costuraram por entre adolescentes jogando conversa fora no celular, mães empurrando carrinhos e moradores passeando com cachorros.
D.D. estava mantendo o ritmo com facilidade. Bobby começava a cansar. Não havia dúvidas: assim que esse caso tivesse terminado, ele ia voltar para a academia.
Ainda nada de Annabelle.
Ele usou seu pânico crescente para aumentar o passo.
E correu.
Eu não acreditei nele. Meu pai com uma arma? Até mesmo o sr. Petracelli havia dito que o meu pai não suportava armas de fogo. Ao ficar sabendo sobre a noite com os pais dele, eu certamente compreendia por quê.
Mas, aparentemente, até mesmo para o meu pai liberal, o rapto de Dori havia sido a gota d’água. De alguma forma, ele havia conseguido uma arma. E então ele voltara para Boston para ir atrás do próprio irmão.
“Roger, por favor, não vá. Roger, estou implorando, por favor, não faça isso...”
Segundo Tommy/Ben, os dois irmãos havia se posicionado nas sombras escurecidas da minha antiga casa. Tommy com o pé de cabra que havia usado para invadir. Meu pai com uma pequena pistola.
— Eu não o levei a sério — Ben estava dizendo agora. — O Roger não conseguiria me machucar. Ele havia me salvado. Ele me amava. Ele havia me dito que sempre cuidaria de mim. Mas então...
— Ele parecia tão cansado parado na minha frente. Me perguntou se eu havia raptado aquela menina. Me perguntou se eu havia raptado alguma das outras. O que eu poderia fazer? Eu contei a verdade a ele. Que eu havia sequestrado seis meninas. Que eu as havia embrulhado em plástico e as mantido como minha pequena família. E que isso ainda não era o suficiente. Eu queria você, Amy. Eu precisava de você. Eu jamais descansaria até você ser minha.
— Eu costumava acreditar — Roger disse baixinho — que a natureza não importava. Que o cuidado sempre era mais forte, fossem os pais cuidando de uma criança ou mesmo de uma pessoa como eu aprendendo a cuidar de mim mesmo. Com tempo, atenção e atitude suficientes, todos poderíamos ser quem quiséssemos ser. Eu estava errado. O DNA tem importância. A genética sobrevive. Nosso pai ainda vive dentro de você.
— Eu disse ao meu irmão que aquilo era fascinante, considerando que era ele quem estava segurando a arma. Ele aceitou o argumento. Inclusive assentiu com a cabeça, como se fizesse sentido para ele.
— É verdade — ele disse. — Porque, sozinho, eu nunca pensei que fosse capaz de fazer uma coisa dessas.
— Então ele atirou em mim. Simplesmente atirou. Levantou a arma. Enfiou uma bala na minha cabeça.
Ben estava passando os dedos pela cicatriz.
— O choque é uma coisa engraçada. Eu ouvi o barulho. Senti algo queimando na testa. Mas continuei de pé por um longo tempo. Pelo menos, foi o que achei. Fiquei parado e olhei para o meu irmão.
— Eu te amo — eu disse. Então caí.
— Ele veio até mim.
— Prometa que nunca vai embora — eu disse.
— E Roger saiu pela porta.
— Não sei por quanto tempo fiquei lá. Eu apaguei, fiquei inconsciente ou coisa parecida. Mas quando voltei a mim, descobri que conseguia me mexer. Então saí. Continuei caminhando até um cara me parar e dizer: “Sabe, amigo, acho que talvez você precise de um médico”.
— Ele chamou uma ambulância. Seis horas depois, cirurgiões removeram uma bala calibre vinte e dois que havia ricocheteado na parte da frente do meu cérebro. Isso foi há quase vinte e cinco anos, e eu não senti muita coisa desde aí. Nem felicidade. Nem tristeza. Nem desespero, nem raiva. Nem mesmo solidão.
— Isso não é, querida Amy, jeito de viver.
A história de Tommy parecia estar terminando. Eu ainda estava paralisada de choque. Que meu pai tivesse atirado no próprio irmão. Que Tommy tivesse conseguido sobreviver. Que as vidas dos dois irmãos pudessem estar presas em tamanho ciclo de violência.
— Você não sente nada? — perguntei, hesitante. — Nada mesmo?
Tommy sacudiu a cabeça.
— Você nunca mais perseguiu nenhuma menina?
— Eu não consigo me apaixonar.
— Então você não precisa de mim.
— Mas é claro que preciso. Você é minha família. A gente sempre precisa da família.
— Ben...
— Tommy. Eu quero ouvir você dizer. Faz tantos anos. Por favor, Amy. Pelo seu tio. Deixe-me ouvir dos seus lábios.
Talvez eu devesse tê-lo atendido. Mas no instante em que ele me pediu para dizer o nome dele, eu não consegui. Eu estava presa no meu próprio apartamento, sangrando, exausta, agarrada à minha cachorra que morria. Negar ao meu tio o nome dele era o único poder que me restava.
Sacudi a cabeça. E meu querido Tio Tommy sem emoções se abaixou e me deu um tapa no rosto, que cortou meus lábios. Senti gosto de sangue, que cuspi nele.
— Eu odeio você, odeio você, odeio você! — gritei.
Ele primeiro bateu na minha cabeça, e meu crânio ressoou com um estalo na porta.
— Diga! — ele rugiu.
— Vai se foder!
Ele puxou o braço para trás, mas desta vez eu estava esperando por ele.
— Ei, Ben — berrei. — Pegue!
E eu atirei Bella contra ele, rezando como nunca havia rezado antes que até mesmo um maníaco homicida tivesse o instinto de segurar.
Bobby ouviu o grito primeiro. Ele estava a meia quadra do apartamento de Bella, vinte metros à frente de D.D. Ainda estava tentando dizer a si mesmo que havia uma explicação lógica para Annabelle não atender o telefone, que era claro que ela estava bem.
Então ele ouviu o berro. E aumentou a velocidade ao máximo.
A porta da frente do prédio dela se escancarou. Um jovem saiu correndo para a rua.
— Polícia, polícia, alguém chame a polícia. Acho que o entregador da UPS está tentando matá-la!
Bobby começou a subir as escadas enquanto D.D. pegava o telefone e pedia reforço.
Ben recuou desequilibradamente com o peso de Bella e, quando ele fez isso, eu finalmente consegui gritar, um som agudo de pura frustração. Eu me odiava por sacrificar minha melhor amiga. Eu odiava Ben por me obrigar a fazer isso.
Eu me atirei na porta, mexendo freneticamente nas fechaduras. Abri as duas primeiras, e então Ben largou Bella e agarrou a parte de trás da minha blusa. Eu girei e dei uma cotovelada na lateral da cabeça dele, arrancando seus óculos do rosto.
Ele caiu para trás, e eu peguei a trava de corrente.
— Vamos, vamos, vamos...
Meus dedos estavam tremendo muito, não queriam colaborar. Eu estava soluçando histericamente, perdendo o controle.
Então escutei. Passos subindo as escadas. Uma voz familiar bem-vinda:
— Annabelle!
— Bobby! — consegui gritar, então Ben me pegou por trás.
Caí com força, batendo o nariz na porta. Meus olhos se encheram de lágrimas e outro grito furioso saiu da minha garganta. A porta sacudiu, era Bobby se atirando contra ela. Mas ela aguentou, claro que aguentou. Porque eu havia escolhido aquela porta pela força, e ainda a complementei com meia dúzia de fechaduras. Eu havia montado uma fortaleza para me manter segura, e agora ela iria me matar.
— Annabelle, Annabelle, Annabelle! — Bobby rugia de frustração do outro lado.
Então ouvi a voz áspera de Tommy, quente no meu ouvido.
— É culpa sua, Amy, você me obrigou a fazer isso. Você não me deixou outra escolha.
De longe, ouvi meu pai. Seus sermões intermináveis, constantemente pregando:
“Às vezes, quando estamos assustados, é difícil produzir algum som. Então quebre coisas. Bata com o punho na parede, atire objetos. Fala barulho, querida, lute. Lute sempre.”
Tommy, agarrando meus ombros. Tommy, me virando. Tommy, segurando o maldito canivete de Charlie em seu punho triunfante.
— Você nunca vai embora.
— Eu vou atirar — Bobby berrou. — Saia de trás da porta. Um, dois...
Colada ao chão, arranquei o colar do meu pescoço. Tommy ergueu a lâmina. Abri a tampinha de metal do meu pingente de cristal.
E atirei as cinzas dos meus pais no rosto de Tommy.
Tommy se levantou, esfregando os olhos freneticamente.
Justamente quando Bobby abriu fogo.
Vi o corpo de Tommy sacudir uma, duas, três, quatro vezes. Então Bobby abriu minha porta despedaçada aos chutes.
Em vez de cair, Tommy virou na direção do barulho, avançando como uma fera ferida.
Fiquei de pé num salto. Bobby desviou para a esquerda. Tommy atravessou a porta despedaçada e bateu no corrimão do topo da escada no quinto andar e agitou os braços, tentando se reequilibrar.
Pensei que ele poderia conseguir.
Então bati nele com força por trás.
Então, filha do meu pai, assisti ao meu tio cair para a morte lá embaixo.
capítulo 38
A verdade o libertará. Outro velho ditado. Não um que eu tenha algum dia ouvido do meu pai. Considerando o que agora sabia sobre o passado dele, acho que posso compreender.
Seis meses se passaram desde aquela última noite maldita no meu apartamento. Seis meses de depoimentos à polícia, recuperação dos objetos do depósito, de resultados de DNA e, sim, até mesmo uma entrevista coletiva para a imprensa. Eu tenho minha própria agente. Ela acredita que pode me conseguir milhões de dólares de um grande estúdio de Hollywood. E, é claro, o contrato de um livro.
Não consigo me imaginar conversando com Larry King. Ou lucrando com a tragédia da minha família. Por outro lado, uma garota precisa comer e, ultimamente, não há muitos clientes batendo na minha porta atrás de cortinas por encomenda. Ainda não me decidi.
No momento, estou no banho, depilando as pernas. Estou nervosa. Um pouco excitada. Acho que agora, mais do que nunca, tenho muito que aprender sobre mim mesma.
Eis as verdades, como eu as vejo, até agora:
Um, minha cachorra está ótima. Bella não morreu no chão da minha cozinha. Não, minha companheira canina incrivelmente corajosa aguentou melhor do que eu quando Bobby nos enfiou na traseira de uma viatura de polícia e nos levou correndo para um pronto-socorro veterinário. Charlie havia cortado o ombro de Bella até o osso. Rompeu alguns tendões. Ela perdeu uma boa quantidade de sangue. Mas 2 mil dólares do melhor cuidado médico depois, Bella voltou para casa. Ela deu para dormir na minha cama agora. Eu dei para lhe dar abraços gigantes. Ainda não voltamos a correr. Mas estamos nos fortalecendo com caminhadas bem aceleradas.
Dois, feridas curam. Passei 24 horas no hospital, principalmente porque não queria sair do lado de Bella até o veterinário me obrigar a ir embora. A essa altura, eu também havia perdido muito sangue. Precisei levar 20 pontos no rosto. Nas pernas, mais 20. No braço direito, 31. Acho que meus dias de garota da capa terminaram. Mas eu gosto das minhas cicatrizes. Às vezes, no meio da noite, traço as linhas finas e enrugadas com as pontas dos dedos. Ferimentos de guerra. Meu pai ficaria orgulhoso.
Três, algumas perguntas jamais serão respondidas. No depósito do meu pai, encontrei o adorado sofá da minha mãe, meu álbum de bebê, com minha certidão de nascimento original, diversas lembranças de família e, finalmente, um bilhete do meu pai. Estava com data de uma semana depois que voltamos a Boston, quando imagino que sua ansiedade estivesse nas alturas. O bilhete não dava qualquer explicação. Em vez disso, em 18 de junho de 1993, meu pai escreveu: O que quer que aconteça, saiba que sempre amei você e fiz o melhor que pude.
Será que ele imaginou que ia morrer em Boston? Será que acreditava que voltar à cena de tanta tragédia selara seu destino? Não faço ideia. Suspeito que ele soubesse que o irmão ainda estava vivo. Não tenho dúvidas de que meu pai havia conferido os jornais em busca de notícias sobre um corpo desconhecido encontrado numa casa abandonada de Arlington e, como não viu nada parecido, se deu conta de que seus esforços não haviam sido tão definitivos quanto desejava. Mas, então, por que não voltar e tentar novamente? Por que voltar para a minha mãe e para mim na Flórida?
Eu não sei. Nunca vou saber. Talvez matar não seja tão fácil como pareça. Meu pai tentou uma vez e foi o suficiente para ele. Então, depois disso, nós fugimos. Toda vez que uma criança desaparecia, toda vez que um alerta amarelo aparecia nos jornais locais, minha mãe fazia nossas malas e a minha família caía na estrada.
Ironicamente, a polícia acredita que Tio Tommy nunca nos seguiu. A bala pode não tê-lo matado, mas os danos cerebrais causados pareceram ter acabado com a maior parte de seus impulsos psicóticos. Ele conseguiu um emprego na UPS. Ele se tornou um cidadão modelo, ainda que meio antissocial. Ele tocou sua vida.
Apenas a minha família continuou presa ao passado, sempre correndo, sempre procurando por uma sensação de segurança que meu pai não sabia como encontrar.
Quatro, algumas verdades não são feitas para ser ditas. Por exemplo, depois de muita investigação, a polícia finalmente deu a morte de Ben/Tommy como acidental. Num confronto armado com forças da lei, o suspeito foi atingido por quatro tiros através de uma porta trancada por um policial identificado. O policial conseguiu então arrombar a porta. Nesse momento, o suspeito ferido saiu correndo do apartamento numa tentativa desesperada de escapar. Com a dor e a confusão, ele acidentalmente caiu por cima do corrimão do quinto andar e morreu com a queda.
Desnecessário dizer que Bobby e eu não falamos sobre o incidente. Nem D.D., que estava no saguão do térreo e, assim, de acordo com o relatório policial, não estava em posição de ver o que havia acontecido antes de o gigante ter caído.
Porém, algumas semanas atrás, ela me deu uma camiseta que diz: Acidentes Acontecem.
Cinco, até mesmo psicopatas têm espírito comunitário. Charlie Marvin acabou se revelando o antigo paciente do Hospital Estadual de Boston Christopher Eola. O Departamento de Polícia de Boston acreditava agora que ele havia assassinado pelo menos uma dúzia de prostitutas bancando o generoso defensor dos sem-teto. Seguindo um capítulo do manual de Ted Bundy — que era voluntário numa linha de apoio a suicidas —, Charlie havia espertamente usado sua posição para se insinuar com vítimas potenciais ao mesmo tempo que desviava a atenção da polícia.
Ele havia se tornado mais ousado recentemente, porém, tendo como último alvo a investigadora-chefe D.D. Warren. Um grafólogo confirmou que o bilhete deixado no carro de D.D. havia provavelmente sido escrito por Charlie. Todos os quatro cachorros mortos na noite do encontro no Hospital Psiquiátrico de Boston tinham chips de identificação que os ligaram a dois diferentes traficantes de drogas/treinadores de cães que confirmaram um gentil senhor mais velho como a pessoa que comprara seus premiados “bichinhos de estimação”.
O melhor palpite era o de que Charlie havia se insinuado na investigação numa tentativa de identificar e contatar o realizador original da cova coletiva. No caminho, no entanto, ele se apaixonou por D.D. e começou a fazer alguns jogos próprios. A polícia encontrou material para fabricação de bombas no apartamento de Charlie em Boston. Aparentemente, ele estava planejando futuros crimes quando Tommy o matou esfaqueado na minha cozinha.
Os pais de Eola se recusaram a reclamar o corpo dele. A última coisa que eu soube foi que seu corpo foi enterrado numa cova anônima.
Seis, o encerramento de um processo de sofrimento é mais difícil de acontecer do que as pessoas imaginam. Nós enterramos Dori esta manhã. Por nós, quero dizer os pais dela, eu e duzentos outros simpatizantes, a maioria dos quais não conheceu Dori quando ela estava viva, mas se emocionou com as circunstâncias da morte dela. Vi policiais aposentados de Lawrence chorando, vizinhos que há vinte e cinco anos buscaram em vão por ela no meio do mato. A força-tarefa do Departamento de Polícia de Boston compareceu à cerimônia, ficando ao fundo. Depois, o sr. e a sra. Petracelli apertaram as mãos de todos os policiais. Quando chegou a D.D., a sra. Petracelli agarrou a sargento num enorme abraço, e então as duas mulheres caíram no choro.
A sra. Petracelli me pediu para dizer algumas palavras. Não para fazer o discurso fúnebre, que o padre deles fez, e acho que fez bem. Ela esperava que eu falasse às pessoas sobre a Dori que eu conheci, porque nenhuma daquelas pessoas havia conhecido aquela menina. Pareceu uma boa ideia. Eu achei que iria falar. Mas, quando chegou a hora, não consegui. As emoções daquele momento eram fortes demais para compartilhar.
Na maior parte do tempo, eu achava que devia aceitar a proposta do filme. Porque eu gostaria de doar o dinheiro à fundação da sra. Petracelli. Gostaria que mais Doris pudessem voltar para seus pais. Gostaria que mais amigos de infância tivessem a oportunidade de dizer “Eu te amo, eu sinto muito, adeus”.
A verdade o libertará.
Não, a verdade apenas lhe diz o que aconteceu. Explica os pesadelos que eu tenho três ou quatro vezes por semana. Explica a pilha de contas do veterinário e contas médicas que ainda estou enfrentando. Me diz por que um entregador da UPS que eu achava que conhecia apenas de passagem havia listado certa Amy Grayson como sua única beneficiária. Explica por que aquele mesmo entregador da UPS passou os primeiros quinze anos de trabalho mudando constantemente de rotas, aparentemente procurando por todo o estado de Massachusetts por uma família que ele estava convencido de que não havia se mudado para tão longe. Até que um dia, por acidente, toda a sua busca foi recompensada, e ele me encontrou.
A verdade me diz que meus pais realmente me amavam e me lembra que o amor, sozinho, não basta.
Realmente, uma moça precisa é de um senso de identidade.
Eu estou o mais limpa que jamais conseguirei ficar. Pernas e axilas raspadas. Pulsos untados com óleo perfumado de canela. Eu devia usar um vestido, mas simplesmente não combina comigo. No fim, acabo escolhendo calças pretas de cintura baixa e uma bata dourada muito bacana que comprei por quase nada na Filene’s Basement.
Saltos, certamente.
Bella começa a ganir. Ela reconhece os sinais da minha saída iminente. Bella não gosta mais de ficar sozinha no apartamento. Aliás, nem eu. Ainda posso ver o corpo sem vida de Charlie Marvin estendido na minha cozinha. Tenho certeza de que Bella ainda consegue sentir o cheiro do sangue que penetrou no piso.
Semana que vem, decido. Vou começar a procurar um apartamento novo. Trinta e dois anos depois, está na hora do passado ser passado.
A campainha toca.
Merda. Estou com as palmas das mãos suando. Estou um horror.
Vou rapidamente até a minha porta nova, cuidando para não tropeçar nos saltos. Começo a abrir as fechaduras — três, uma ligeira melhora em relação às cinco anteriores — rezando para não estar com batom nos dentes.
Abro a porta e não me decepciono. Ele está usando calça cáqui com uma camisa azul-clara que combina com seus olhos acinzentados e jaqueta esportiva azul-marinho. Está com os cabelos úmidos do banho, e sinto o perfume da loção pós-barba.
Ontem, às 2 horas da tarde, com o último corpo identificado e mais ninguém vivo para ser processado, a polícia de Boston oficialmente encerrou a investigação sobre a cena de crime de Mattapan e dissolveu a força-tarefa.
Ontem, às 2h01 da tarde, cumprimos nosso trato.
Agora ele está diante de mim com um buquê de flores e, é claro, uma guloseima canina. Não precisa dizer que Bella não será deixada para trás.
— Olá — ele diz, com um sorriso se insinuando nos cantos dos olhos. — Bobby Dodge, muito prazer. Eu já lhe disse que tenho uma queda por churrascos, cerquinhas brancas e cachorros brancos latindo?
Aceito as flores e dou o ossinho a Bella. Seguindo o roteiro, estendo a mão.
Ele, é claro, beija meus dedos e me faz sentir um arrepio na espinha.
— Prazer em conhecê-lo, Bobby Dodge — respiro fundo. — Meu nome é Annabelle.
[1] Wonder bread: tipo de pão vendido nos Estados Unidos. Foi lançado em maio de 1921. (N. E.)
[2] Trata-se de uma rima usada em brincadeiras nas quadras de escolas americanas. Liar, liar, pants on fire. Hanging by a telephone wire. (Mentiroso, mentiroso, calças no fogo, penduradas por um fio de telefone). A rima, aqui, acaba se perdendo. (N. E.)
[3] Danica Sue Patrick é uma piloto de automobilismo norte-americana que compete na Indy Car Series. (N. E.)
Lisa Gardner
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