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ESCRAVA DO AMOR / Violet Winspear
ESCRAVA DO AMOR / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ESCRAVA DO AMOR

 

A moça tinha um ar pensativo no terraço do hotel, ao admirar distraidamente as estrelas que cintilavam entre as altas palmeiras. Embora estivesse com um vestido longo de crepe, parecia indiferente à música animada que vinha do salão de baile.

Respirou fundo o ar da noite, impregnado com o perfume de jasmim e com o aroma forte que a brisa noturna trazia do deserto.

Aquele era o Oriente misterioso que seu pai conhecera e comentara tantas vezes! Aterra que planejaram visitar juntos! Além dos muros do hotel, ficavam as areias douradas de seus sonhos...

No dia seguinte de manhã, iria sozinha a cavalo até o oásis de Fadna, onde o pai havia morado e pintado às paisagens que o tornaram conhecido como artista. Eram pinturas tão vibrantes e cheias de vida que despertaram na aluna do internato de freiras o desejo ardente de conhecer a realidade.

"Um dia iremos até lá", prometera o pai. "Logo que eu estiver em condições de viajar, iremos morar nos limites do deserto."

O pai apanhara uma doença na última viagem que fizera ao Oriente, e Lorna cuidara dele, dedicadamente, durante o ano que passaram em Paris. Lentamente, porém, Peter Morel sucumbiu à febre maligna e deixou a filha sozinha no mundo. Era verdade que não ficara sem dinheiro, as obras de arte do pai garantiam a ele uma boa renda, mas nada compensava a perda de um homem tão querido e excêntrico!

Mesmo naquele momento, podia vê-lo, sorrindo, enquanto trabalhava numa tela, ou esboçava um rosto original, com alguns traços rápidos de carvão.

Estremeceu instintivamente quando ouviu o ruído de passos na outra extremidade do terraço e pensou em afastar-se rapidamente dali e refugiar-se no jardim. Ao sair da sombra, contudo, um rapaz a abordou.

— Ah, você está aí! — exclamou, com uma risada irritante. — Prometeu-me uma dança, Lorna.

A música invadiu o terraço, saindo pela porta aberta do salão de baile. O calor, a fumaça dos cigarros, as conversas desinteressantes, tudo contribuíra para expulsá-la dali. Agora Rodney Grant saía a sua procura, quando havia tantas outras moças no salão que disputavam sua companhia.

— Estou cansada de dançar, Rodney — explicou, com o rosto impassível. — Prefiro respirar o ar puro da noite e olhar para as estrelas lá no alto, que parecem estar ao alcance de minha mão.

— Mas elas não estão, Lorna — disse o rapaz, com uma entonação prosaica, que tinha o dom de irritá-la. — Por que não se conforma com as coisas possíveis?

— Como o casamento e as obrigações banais da vida?

— Com você, a vida nunca seria banal — replicou o rapaz, corando ligeiramente.

Lorna não entendia por que os rapazes daquela idade ficavam sem jeito e gaguejavam diante de uma jovem bonita.

Ela tinha cabelos cor de ouro, olhos azul-escuros e o rosto oval. Como aprendera no internato das freiras que os atributos físicos não tinham valor na vida, ouvia com indiferença os elogios que os rapazes Lhe faziam. Preferia saber que possuía uma saúde de ferro e que podia andar a cavalo e partir a galope sem correr o risco de ser derrubada no chão.

Subitamente, o som langoroso de uma flauta de bambu veio do jardim, obsessivo e dolente, contrastando com a música frenética que cessara naquele momento.

— Quem está tocando flauta? — perguntou Lorna, aproximando-se com curiosidade do parapeito e prestando atenção na melodia, com os olhos brilhantes. — Ouço essa música todas as noites desde que cheguei a Ras Jusuf.

— Deve ser um dos jardineiros — respondeu Rodney, aproximando-se dela.

Ao sentir o contato do braço dele em seu corpo, Lorna afastou-se e desceu rapidamente os degraus da escada.

— Vou descobrir o flautista que está tocando entre as árvores!

— Você tem cada idéia! — exclamou Rodney, seguindo-a em direção às palmeiras e aos pés de jacarandá, que estavam com os ramos cobertos de flores.

— Ah, que perfume maravilhoso! — disse Lorna, abaixando um galho e levando-o ao nariz. — Não tem vontade de cometer uma loucura ao respirar esse ar da noite?

— O que entende por loucura? — indagou Rodney, com um risinho malicioso. — Sinto-me bem só de estar com você...

— Não é disso que estou falando! — Lorna respondeu, com impaciência. — A vida deve ter um certo encanto, uma certa magia, além dos beijos e das promessas vazias.

— Já se apaixonou por alguém, Lorna? É muito bom namorar, e eu daria tudo para ser seu namorado.

— Pois eu não — disse ela, com voz fria. — Ouça, Rodney, ao contrário das outras moças que estão hospedadas no hotel, não vim aqui para arrumar um marido.

— Não me diga que veio conhecer o deserto!

— Por que não? O deserto é um lugar muito misterioso... Afastou-se dele e prestou atenção na música da flauta, que

absorvia, no momento, todo seu interesse. A presença de Rodney era algo desagradável naquela circunstância, mas não queria ser indelicada e pedir ao rapaz para deixá-la sozinha.

— O baile vai terminar, e você perderá sua última dança — lembrou-o, na esperança de que o rapaz compreendesse a indireta.

— Eu não vou deixá-la aqui sozinha... com esse árabe tocando flauta no meio das árvores.

— Não há perigo — disse Lorna, com um sorriso. — Amanhã, vou passear a cavalo sozinha no deserto...

— Está falando sério? — questionou Rodney, pegando em sua mão.

Ela se soltou com um gesto brusco e afastou-se alguns passos, como se não pudesse tolerar o contato físico de um homem. O único homem com quem tivera intimidade fora o pai e, mesmo assim, somente no último ano de vida, porque antes ele estava sempre viajando, à procura de paisagens originais para seus quadros.

Sua mãe morrera havia tantos anos que mal se lembrava dela, e Lorna passara a maior parte da infância e da adolescência trancada no internato das freiras.

"Quando você crescer, vamos viajar pelo mundo inteiro", dissera o pai.

Era o sonho que ela cultivara durante todos os anos de solidão, mas que, infelizmente, não estava destinado a se concretizar. Agora, aos vinte anos, viajara sozinha para o Oriente, a fim de conhecer o oásis de Fadna, numa espécie de romaria ao local que o pai amara em vida e onde residira durante muitos anos.

— Já arrumei um bom cavalo e pretendo conhecer o deserto de que falam tanto — explicou para Rodney.

— Vou com você — disse o rapaz, com firmeza. — Uma moça de sua idade não pode andar sozinha por aí. Há regiões que são inteiramente isoladas, e me contaram que algumas moças foram seqüestradas e nunca mais ninguém ouviu falar delas!

Lorna deu uma risada que ecoou pelo jardim silencioso.

— Não sou Dolly Featherton! — exclamou, com voz desdenhosa. — Você não me assusta com histórias de árabes mal-encarados que seqüestram moças desacompanhadas, a fim de levá-las para seus haréns! Meu pai morou muitos anos no deserto, e ele conhecia bem os beduínos. Eles preferem as mulheres árabes e acham as européias muito magras e sem graça...

— Não seja teimosa! Pode ser pega apenas para que paguem um resgate... Não estou brincando! Os beduínos pensam que todos os turistas são milionários.

— Nesse caso, ficarão decepcionados se me seqüestrarem. Vivo com a renda que meu pai me deixou, e não sou nenhuma milionária...

Lorna voltou-se em direção às árvores ao ouvir o som da flauta se aproximando de onde estavam. Prestou atenção durante um momento e correu para trás de um tronco. Avistou dali o brilho do lago, onde os nenúfares flutuavam, e, junto à margem, o vulto de um árabe.

O capuz do albornoz branco estava caído sobre os olhos, mas podia avistar a flauta que estava presa em seus lábios. O homem estava voltado em sua direção, e a aparência dele era sinistra, com o capuz de monge.

Lorna apertou com força a bolsinha que segurava na mão. O flautista, naturalmente, pediria a gorjeta de praxe. Em vez disso, porém, ele guardou a flauta no bolso do manto e lhe dirigiu ,um cumprimento cerimonioso.

— A lella está querendo saber a sorte? — perguntou em francês, com os olhos brilhantes por baixo do capuz. — Vi a lella no bazar esta manhã e, mais tarde, passeando no jardim. A moça está procurando alguma coisa na terra do véu?

Lorna parecia fascinada, enquanto fitava o árabe. Rodney murmurou:

— Ler a sorte... Isso é bobagem! Não gaste seu dinheiro com esse sujeito.

— O roumi tem medo de ser excluído de sua vida — prosseguiu o árabe, pelo visto compreendendo o comentário de Rodney.

Com o rosto impassível, o homem tirou um saquinho do bolso do albornoz, soltou o nó que o amarrava e despejou o conteúdo na frente dela. Em seguida, espalhou a areia fina com a palma da mão e traçou alguns desenhos na superfície lisa, com a ponta do dedo.

— Sopre a areia levemente — disse por fim.

Lorna ia ajoelhar-se no chão, diante do adivinho, quando este, com a cortesia tradicional dos árabes, retirou o lenço de seda do pescoço e estendeu-o em sua frente.

— Muito obrigada — ela agradeceu, soprando de leve os desenhos traçados na areia. Depois, com a respiração presa, aguardou com ansiedade que o árabe examinasse os traços formados na areia.

— Mektub — murmurou o homem. — Estou vendo uma casa construída num local isolado. A areia do deserto avançou sobre os muros e os canteiros de flores. A lella não deve ir a este lugar, mas está escrito que irá, mesmo assim.

— Por que não devo ir lá? — indagou Lorna, olhando com certa desconfiança para o árabe.

Naquela manhã, ao alugar um cavalo para o passeio que pretendia dar, informara-se também sobre a casa construída pelo pai no oásis de Fadna. Algumas pessoas no hotel estavam perfeitamente a par de seu plano. Era possível que o árabe tivesse ouvido alguma coisa a esse respeito e se aproveitasse da informação.

— Sei apenas que a moça irá até lá e que será perseguida por um homem de cabelos negros.

Lorna deu uma risada nervosa e olhou para os cabelos loiros de Rodney.

— Bem, nesse caso você está excluído!

— O que ele disse? — perguntou Rodney, sério.

— Não entende francês?

— Não, não entendo nada dessa língua.

— Ele falou que vou ser perseguida por um homem de cabelos negros — explicou Lorna, com animação.

— Quanta besteira! — exclamou Rodney, olhando com desprezo para o árabe. Sob a sombra do capuz, os olhos escuros brilharam. — Dê-lhe uma gorjeta, e vamos embora.

— Antes, quero fazer mais uma pergunta... Pode ser bobagem, mas é tremendamente divertido!

Ao avistar o rosto dela em sua direção, o adivinho tornou a inclinar a cabeça sobre os desenhos traçados na areia.

— Quem é esse homem moreno? Eu o conheço, ou é um estranho?

— Há pessoas que a gente encontra nos sonhos, lella. Pessoas que são estranhas sem serem desconhecidas.

— Não sonhei ultimamente com nenhum homem de cabelos negros e perigoso — disse Lorna, com um sorriso irônico. — Não pode me dizer algo mais interessante?

— Há alguma coisa mais interessante que os segredos do coração, lella?

Havia uma entonação maliciosa na voz rouca do homem que a desagradou. Com um movimento brusco, ela se inclinou para frente e soprou com força os desenhos formados na areia.

— Pronto! Agora afastei esse homem moreno de meu caminho!

— Não, lella, não afastou. — O árabe apontou para a bainha do vestido azul, onde havia alguns grãos de areia fina. — Se a moça quer fugir dele, deve afastar-se do deserto... Se permanecer aqui, será perseguida, e as mãos dele vão cair sobre a lella, como esses grãos de areia.

Lorna levantou-se bruscamente e tirou a areia do vestido. Era bobagem levar aquilo a sério, mas, mesmo assim, sentiu-se subitamente angustiada e atrapalhou-se toda quando apanhou uma moeda na bolsa. O árabe aceitou a gorjeta e guardou-a no bolso do albornoz. Inclinou a cabeça cerimoniosamente e murmurou uma palavra de agradecimento.

Ela se voltou com nervosismo e sugeriu a Rodney que se dirigissem rapidamente ao salão, antes da última dança. O lamento da flauta de bambu acompanhou-os durante alguns momentos, e Lorna pensou que era uma tola por se perturbar com as palavras do adivinho. Felizmente, ninguém podia prever o futuro!

Meia hora antes, ela fugira do barulho e das conversas enjoadas do salão. Agora, porém, ouviu com agrado a música frenética que encobria o lamento insistente da flauta no jardim.

— Você dança divinamente — Rodney falou, estreitando-a nos braços. — Por que não queria dançar?

— Prefiro andar a cavalo... Não há nada como galopar em disparada! E por isso que estou sempre na frente dos outros.

— Ah, entendi! Não gosta de ser passada para trás. Sobretudo pelos homens...

— Exatamente.

Ela se soltou dos braços dele quando a música terminou e as luzes do salão aumentaram de intensidade. Perto dali, um rapaz beijava uma moça no pescoço, e Lorna dirigiu um olhar frio ao casal, como se não pudesse entender o motivo daquele gesto.

— Boa noite, Rodney. Pretendo me levantar de madrugada e vou dormir mais cedo hoje.

— Está realmente decidida a passear pelo deserto? — ele perguntou, caminhando a seu lado em direção à escada.

— Mais do que nunca! Por que haveria de modificar meus planos?

— A resposta é evidente — Rodney respondeu, com impaciência. — E muito jovem e bonita para andar sozinha por aí, quanto mais no deserto! Vou com você!

— Muito obrigada, mas prefiro ir sozinha.

Ela parou ao pé da escada e encarou-o. Rodney corou e segurou com força o corrimão.

— Quer dizer que não gosta de minha companhia?

— Eu não disse isso. Desculpe-me, Rodney, mas o preveni de que não vim aqui para encontrar um marido, nem mesmo um namorado. Vim para fazer o que me agrada. Além disso, sei tomar conta de mim mesma. Agradeço sua boa vontade, mas não sou tola como Dolly...

Ele a olhou atentamente. Não se cansava de admirar os cabelos dourados, os olhos grandes e azuis, o corpo esguio no vestido longo de crepe...

— Ouça bem o que lhe digo, Lorna. Se não tomar cuidado, alguém vai ferir seu orgulho. Mesmo que seja fria, o deserto acabará por derretê-la.

Ela deu uma risada e, ao se voltar, avistou a família Fea-therton, que se aproximava do saguão. Dolly, uma garota de sua idade, tinha cabelos crespos e lábios finos. A mãe andava com o nariz empinado. O marido, que ia um pouco atrás, lançou um olhar cheio de desejo para Lorna, que a esposa felizmente não percebeu, porque ele era um desses homens que tinha o costume de fazer as coisas às escondidas.

Como não simpatizava nem um pouco com a família Feat-herton, Lorna despediu-se rapidamente de Rodney e subiu a escada depressa.

Rodney provavelmente tinha razão. Ela era orgulhosa e não gostava de andar na companhia de outros, embora fosse a primeira a ajudar alguém num momento de dificuldade, especialmente crianças ou algum animal indefeso.

Lorna acendeu a luz do quarto e aproximou-se do espelho. Mirou-se detidamente e sorriu para si mesma. Rodney a acusara de ser fria e indiferente. O que ele queria dizer com isso? Que não apreciava os beijos e as carícias gratuitas? Uma coisa era verdade: ela não desejava namorar com ele, muito menos com qualquer homem que encontrasse. Não sentia o menor interesse pelos rapazes que conhecera até então. Todos pareciam muito banais, sem imaginação, sem vitalidade ou gosto pela aventura.

Rodney oferecera-se para acompanhá-la no passeio ao deserto, mas ela sabia perfeitamente que ele preferia passar a manhã toda bebericando na piscina do hotel. Da mesma forma que os outros rapazes de sua idade, Rodney não ouvia o apelo do deserto e só se sentia seguro nas imediações de Ras Jusuf.

Ela se deitou na cama, embaixo do cortinado, e pensou no passeio que daria na manhã seguinte. Desejava intensamente conhecer os locais onde seu pai estivera, o vasto oceano dourado e cintilante do deserto, com suas dunas e colinas que se estendiam a perder de vista.

"O deserto pode ser cruel, tórrido e inclemente, mas há uma grande beleza nele para os que sabem enxergá-la...", dissera o pai.

Então, lembrou-se das palavras do adivinho... O árabe revelara que seria perseguida por um homem de cabelos negros...

Com certeza, era tudo bobagem, mas, mesmo assim, ela não conseguiu evitar o arrepio que lhe percorreu o corpo. Como se voltasse a ser criança, puxou o lençol sobre a cabeça, com medo do escuro a sua volta.

 

De calça caqui, camisa de mangas compridas e chapéu de explorador na cabeça, Lorna atravessou rapidamente o saguão do hotel. Levava uma garrafa térmica e um pacote de biscoitos na bolsa, e estava tão contente quanto os passarinhos que cantavam no jardim.

O sol nascia no horizonte, quando caminhou até as cocheiras, onde Ahmet segurava as rédeas do cavalo arisco e resistente que alugara no dia anterior.

Ela cumprimentou o menino com o rosto sorridente e examinou mais uma vez o belo cavalo alazão que estava com as orelhas em pé. Arrumou os biscoitos e a garrafa térmica com café no alforje passado por cima do arreio e montou no cavalo, com um movimento ágil. Ahmet lembrou-a da recomendação que ouvira no dia anterior:

— O patrão disse para a lella não ir além do oásis.

— Eu sei, Ahmet — Lorna falou, com um sorriso. — Se eu me perder, seu patrão não será responsável por mim. Mas prometo que não farei nenhuma loucura. Darei uma volta pelo oásis e estarei de volta para o almoço. Até logo, Ahmet.

— Bom passeio, lella.

Lorna moveu os calcanhares, e o alazão partiu no trote em direção à estradinha de terra, cercada de palmeiras, que atravessava o povoado. Num dos lados do caminho, estendiam-se os muros do hotel, cobertos de heras floridas. No outro, um pequeno riacho serpenteava até se perder de vista nas ondulações do terreno.

Ela guiou o cavalo para fora do povoado, e, quase imediatamente, o ar quente e penetrante do deserto a envolveu. Sozinha, sem ninguém à vista, trotou algum tempo sobre a areia macia, com uma sensação de euforia maior do que tudo que já experimentara na vida. Nem mesmo os bazares do Oriente a excitaram tanto. Barulhentos e cheios de animação, atraíam a atenção dos turistas com as alcovas sombrias, onde os cortes de seda brilhavam em cima dos balcões, os objetos de prata eram trabalhados sob a vista dos compradores e os perfumes misturados ao gosto de cada um. Pungentes e pitorescos, tinham seu ar de mistério... Lorna havia adorado as escadas em caracol, os perfumes, as lembranças que comprara nas lojas minúsculas e escuras... mas ali, no deserto, estava ainda mais perto do mistério eterno que emanava do Oriente.

Interrompeu a marcha do cavalo e contemplou a vastidão plana e interminável, repleta de ondulações e de colinas que se estendiam até o horizonte.

— O deserto pode ser cruel, tórrido, inclemente... — repetiu, em voz baixa, as palavras de seu pai.

Agora o sol resplandecia através da névoa amarelada, e cristais brilhavam no areal, como pedras preciosas. O vento que soprava nos espaços abertos polira as rochas desnudas, tingindo-as de uma tonalidade avermelhada, enquanto o céu, em qualquer direção que se olhasse, estava incrivelmente azul, como um torrão de anil.

Esse era o jardim dourado de Alá, onde os viajantes procuravam a paz, a aventura... ou o destino.

Lorna não sabia exatamente o que procurava. Desde que perdera o pai, sentia-se inquieta e solitária. Esperava que essa estada no deserto lhe desse um sentido novo de direção... Talvez, se vivesse concretamente seu sonho, conseguisse tomar uma decisão mais acertada para o futuro.

Ela soltou a rédea e deixou o alazão ir a galope, sentindo o vento bater-lhe no rosto enquanto se aproximava de uma colina. O cavalo saltou com agilidade por cima das pedras roladas até que as areias amareladas ficaram lá embaixo, ofuscantes, sob a luz intensa da manhã. O sol começava a castigar o local desabrigado. Lorna parou um segundo para beber um pouco de água do cantil que levava na bolsa. Em seguida, cobriu os olhos com o chapéu e sentou-se ereta na sela, enquanto o cavalo árabe, habituado ao terreno pedregoso, descia aos solavancos o outro lado da colina, em direção às áreas verdes que marcavam os limites do oásis de Fadna.

Lorna saltou do animal à sombra das palmeiras e tirou o chapéu. O suor espalhara-se por seus cabelos e peia testa.

Ah, que delícia sair daquele sol inclemente! Ouviu um bando de pombas-rolas arrulharem perto dali e aproximou-se, com emoção, da casa onde os passarinhos faziam seus ninhos.

Não havia outro ruído a não ser o canto das aves. Era como se o oásis tivesse prendido a respiração, como se guardasse o grito abafado que ela deu quando avistou as ruínas da casa onde seu pai morara por muitos anos.

A pequena casa, caiada de branco, estava caindo aos pedaços, invadida pela vegetação, que avançava por entre os muros e as paredes rachadas.

Lorna apoiou-se numa palmeira e olhou, decepcionada, para o que sobrara de seu sonho. Naquele momento, as palavras do adivinho soaram terrivelmente reais. A areia avançava, de fato, sobre a casa e cobrira os canteiros de flores. Como seu sonho de um dia morar ali continuava muito vivo. ficou duplamente desiludida com a cena que presenciava.

Se fosse de chorar facilmente, teria despencado em lágrimas, de pura frustração. Podia, decerto, construir outra casa naquele local, mas nunca seria a mesma. O ar e a atmosfera não seriam os mesmos que o pai amara e conhecerá.

Foi com o coração apertado que se afastou dali, após colher uma flor branca que se agarrara obstinadamente à vida, mas não olhou para trás nenhuma vez ao se dirigir, por entre as árvores, ao local onde deixara o cavalo. O oásis agora lhe parecia muito triste e desolado, apesar das palmeiras e da vegetação. Desejava cavalgar para longe dali e deixar que as areias afastassem temporariamente a lembrança de seu querido pai. Somente uma flor branca, agarrada ao muro em ruínas, restara de sua presença, e Lorna a guardou no bolso da camisa, com um suspiro.

Voltou para a entrada do oásis e procurou seu cavalo. Os rastros do animal ainda estavam fundos na areia, mas não havia sinal dele em parte alguma!

Lorna assobiou, gritou, chamou-o pelo nome, mas nada aconteceu. Tomada de pânico, correu por entre as palmeiras à procura do cavalo alazão. Estava tão ansiosa para descer do cavalo e ver a casa que se esquecera completamente de amarrá-lo numa árvore pelo cabresto. O alazão árabe não era manso como seu cavalo na França, que a seguia por toda parte, como um cachorrinho. Era um animal arisco, fogoso. Ao ver-se livre, galopara para longe e a deixara ali, sozinha. Agora, teria de voltar a pé para o hotel, afundar as botas na areia quente e enfrentar o morro de pedras soltas.

A perspectiva era desanimadora, e Lorna teve vontade de chorar de desânimo e frustração. A garrafa de café, o pacote de biscoitos, o cantil de água... ficara tudo na sacola que levava presa no arreio. Seu único consolo era o riacho que corria por entre as árvores. Pelo menos não passaria sede enquanto esperasse ali o sol descer no horizonte. Seria loucura atravessar o deserto debaixo daquele calor abrasador. Somente ao entardecer, poderia voltar com segurança para Ras Jusuf.

— Sua estúpida! — exclamou, sentando-se, desanimada, à sombra de uma palmeira.

As pombas-rolas continuavam arrulhando perto dali, e não havia a menor brisa soprando no ar. Era meio-dia, o sol brilharia com intensidade brutal durante várias horas. Ao entardecer, a brisa fresca do deserto sopraria, e, se a lua estivesse visível, não teria dificuldade em encontrar o caminho de volta.

Então, preparou-se para a longa espera, ainda irritada com seu descuido. O cavalo voltaria sozinho para a cocheira, e os conhecidos de Lorna, no hotel, teriam a satisfação de comentar que uma moça imprudente como ela não podia andar sozinha no deserto.

Franziu o cenho ao pensar no que Dolly diria e balançou os ombros ao se lembrar da advertência de Rodney. "Algumas moças foram seqüestradas e nunca mais ninguém ouviu falar delas."

Deixou a areia escorrer por entre os dedos das mãos e pensou que nenhum beduíno se daria ao trabalho de raptar uma mulher magra e de pele clara. Os árabes gostavam de mulheres opulentas e submissas, bem femininas e que sabiam satisfazer seus menores caprichos. Riu ao imaginar que nunca na vida obedeceria às ordens de um homem. Preferia morrer. Não entendia como as moças de sua idade, em geral, não pensavam em outra coisa senão no dia do casamento. Ela, no fundo, só gostava realmente de uma coisa: de sua própria Uberdade. De andar por aí e fazer o que lhe desse vontade no momento...

Ah, seria tão bom fumar um cigarro! Na pressa de sair do hotel, de manhã cedo, deixara o maço de cigarros e o isqueiro sobre a penteadeira do quarto.

Apoiou a cabeça no tronco da palmeira e descansou um momento, de olhos fechados, até que o desejo de tomar uma xícara de café tornou-se tão intenso que se levantou depressa e dirigiu-se ao riacho.

Ajoelhou-se, umedeceu os lábios e molhou o rosto. Gotas de água rolaram por seu pescoço e molharam a camisa de cambraia, que colou em sua pele. Olhou para as palmeiras em volta e desejou que fossem tamareiras, carregadas de frutos.

Então, subitamente, endireitou-se, com a sensação estranha de que estava sendo observada. Alarmada, permaneceu imóvel durante alguns segundos, até que se ergueu e olhou em volta.

Lorna não se enganara. Havia de fato um vulto embuçado entre as árvores, olhando fixamente para ela. Era um homem moreno, mal-encarado e de barba crescida. No momento em que ela o fitou, aterrada de medo, o homem retirou o pano que trazia no pescoço e aproximou-se lentamente, pé ante pé, como um felino.

— O que deseja? — ela gritou, em pânico.

Dois olhos penetrantes a analisavam em silêncio, e, no mesmo instante, ela compreendeu o que o homem queria. Voltou-se para fugir e berrou de dor quando o braço comprido enlaçou-a com violência e os dedos morenos a agarraram pelos cabelos. O pano sujo foi passado rapidamente sobre a boca de Lorna, abafando o grito histérico que brotava de sua garganta. Com uma impressão de pesadelo, assustada, sentiu suas mãos serem amarradas nas costas com as pontas do pano.

Deu pontapés, debateu-se, tentou correr, mas foi agarrada com força e atirada violentamente ao chão. De novo, os olhos maldosos e frios a observaram atentamente. Em seguida, o árabe levantou-a com um safanão e obrigou-a a caminhar em direção ao outro lado do oásis, onde um belo cavalo preto espantava as moscas com o rabo.

O animal estava amarrado a uma árvore e, quando eles se aproximaram, espinoteou de nervosismo, e Lorna enxergou marcas visíveis de esporas em seus pêlos suados. No momento seguinte, foi jogada de lado sobre a larga sela.

O cavalo corcoveou, empinou e deu um relincho no instante em que o árabe se sentou na sela e puxou com brutalidade as rédeas, voltando o animal na direção do deserto.

Lorna foi tomada de pânico quando o árabe a cobriu com o albornoz e a segurou com força nos braços, enquanto o cavalo galopava na areia. Era um abraço doloroso, e as dobras do manto cobriam seu rosto, afogando-a e cegando-a. Sua cabeça estava girando confusamente, mal podia entender o que estava acontecendo...

Provavelmente, o homem a seguira até o oásis e era terrivelmente verdade o que Rodney dissera a respeito de moças seqüestradas. Ela devia ter ouvido o conselho dele, em vez de zombar de sua advertência. A culpa era dela, por ser teimosa e imprudente, mas jamais poderia imaginar que aquilo pudesse acontecer com alguém!

Para onde estavam indo?

O cavalo continuava galopando sobre o areal e só fizera uma pequena pausa quando o árabe parou para beber água. Ela aproveitou a oportunidade para pôr a cabeça para fora do albornoz muito sujo e cheirando a suor.

O deserto estendia-se a sua frente a perder de vista, um oceano silencioso e abrasador. Sentiu um nó na garganta ao pensar no único amigo que tinha em Ras Jusuf... o rapaz que se oferecera para acompanhá-la ao oásis e cuja companhia ela recusara com palavras rudes. Agora sentia saudade dele, rezava para que surgisse de repente e terminasse com aquele pesadelo!

O cavalo voltou a galopar, e ela tornou a ser apertada contra a roupa suja e grosseira do árabe. Vez por outra, ele resmungava em voz baixa, como se estivesse impaciente e irritado sob o sol inclemente. Esporeava com fúria o cavalo suado, que estremecia e sacudia a cabeça como se não estivesse habituado com aquele tratamento.

Era incompreensível que um árabe tão mal-encarado possuísse um cavalo como àquele. Provavelmente, não era dele, pensou Lorna, admirando os pêlos sedosos do animal, a crina comprida e bem-tratada. Roubara-o, decerto, como fazia agora com ela.

Lorna estava com muito calor sob o albornoz, vendo tudo confuso a sua frente quando, de repente, avistou um bando de cavaleiros no alto de uma duna, como figuras de um sonho. As silhuetas galopavam sobre o fundo claro do horizonte, com as túnicas esvoaçantes chicoteando as ancas dos cavalos.

Quando desceram a galope do morro, o árabe parou o cavalo com um puxão brusco e resmungou algo em voz baixa. Em seguida, virou o animal no sentido contrário ao do bando de cavaleiros e, sem perder um segundo, partiu a toda velocidade, obrigando Lorna a segurar-se com força em seu manto para não ser atirada ao chão. Diante da reação súbita do árabe, imaginou que os cavaleiros fossem certamente uma patrulha do deserto que corria a seu encalço para salvá-la das mãos de seu seqüestrador.

Animada com essa esperança, Lorna esticou o pescoço para fora do albornoz e viu que um dos cavaleiros se aproximava, correndo na frente dos outros. O cavalo preto era tão veloz quanto o do árabe, mas galopava com mais desenvoltura porque levava apenas uma pessoa em cima. Daquela distância, enxergava apenas um vulto coberto com uma capa preta, agachado na sela, segurando alguma coisa na mão direta.

Ela pensou que fosse uma espingarda, mas, quando a distância diminuiu entre os dois, viu o homem arremessar alguma coisa no ar com toda a força. Ouviu um zumbido, e, no instante seguinte, algo escuro e brilhante se enroscou em volta do árabe que a apertava nos braços. Ele deu um berro de dor, soltou as rédeas e rolou pesadamente no chão. Imediatamente, o cavaleiro de capa preta emparelhou os dois cavalos na disparada, e ela foi enlaçada pelos braços dele antes de ser atirada ao solo. Tudo levou apenas alguns segundos.

Tonta e muito assustada, ouviu um brado alto de comando que fez o cavalo parar alguns metros adiante, ofegante e com o corpo coberto de suor.

Os outros cavaleiros aproximavam-se a galope. Lorna, ainda zonza, foi passada sem cerimônia para um deles, como se fosse uma boneca de pano. O chefe do bando desmontou com um movimento amplo da capa e examinou com atenção o cavalo que fora tão judiado pelo árabe. Acariciou o pescoço do animal, passou a mão embaixo do focinho e murmurou-lhe algo, com voz carinhosa. Ao ver as feridas das esporas e o sangue fresco que escorria dos flancos do cavalo, ele voltou o rosto irado na direção do árabe. Nunca na vida Lorna vira uma fisionomia tão surpreendente, tão altiva, tão autoritária! Com os lábios cerrados, a cabeça erguida, o cavaleiro aproximou-se do árabe caído no chão e açoitou-o impiedosamente. Lorna soltou uma exclamação abafada e levou a mão à boca quando viu o homem contorcer-se sob os golpes do chicote.

Feito isso, o cavaleiro de capa preta recuou um passo e voltou-se para ela, que sentiu um arrepio de medo ao encontrar os brilhantes olhos castanhos fixos nos seus.

O homem observou-a de alto a baixo em silêncio. Em seguida, deu um passo à frente e soltou o pano que tapava sua boca e prendia seus braços. Ela respirou aliviada, com o rosto molhado de suor. Não conseguiu, porém, dizer nada durante alguns segundos, porque estava ainda confusa com a rapidez dos acontecimentos.

— Muito obrigada — sussurrou por fim, em francês, com a voz trêmula. Apontou para o árabe que estava caído no chão, como se fosse uma trouxa de roupa. — Esse homem me seqüestrou... para receber dinheiro, imagino.

— Ah, é?

Os olhos castanhos observaram com atenção os cabelos revoltos que cintilavam ao sol. Uma brisa leve soprou os cachos que caíam sobre o rosto suado, revelando os olhos grandes e azuis.

— Além de roubar o cavalo, esse vagabundo seqüestrou também uma moça! O bandido não perdeu tempo!

O homem de capa preta, com botas de cano alto e turbante, falava um francês impecável.

— Esse cavalo é meu — ele prosseguiu, apontando para o animal exausto. — Pensei que nunca mais fosse encontrá-lo! Muito menos com um prêmio extra em cima!

Deu um sorriso, e os dentes brancos brilharam no rosto bronzeado pelo sol. Apesar do sorriso, contudo, as linhas da face continuaram severas e autoritárias como antes. Parecia terrivelmente seguro de si e não dava a impressão de ser alguém que aceitasse um pagamento em dinheiro. O coração de Lorna começou a bater de maneira alarmante.

— Meu nome é Kasim ben Hussayn — ele se apresentou, com uma pequena inclinação de cabeça. — E você, como se chama?

— Lorna Morel — murmurou. — Ficaria muito agradecida se um de seus homens me acompanhasse até o hotel de Ras Jusuf, em Yraa, onde estou hospedada. Pagarei generosamente por esse incômodo.

— Ah, sim? — Kasim indagou, com um brilho malicioso nos olhos. — Quanto está disposta a pagar por eu tê-la salvado das mãos desse bandido? Alguns milhares de francos?

Ela observou em silêncio os olhos castanhos que refletiam a cor do deserto. Embora se sentisse agredida pela entonação irônica da pergunta, foi forçada a reconhecer que estava diante de um homem educado, que falava francês perfeitamente. Seu pai tivera muitos amigos durante o ano em que moraram em Paris, e alguns deles, inclusive, tentaram conquistá-la com o charme tradicional dos franceses. Ela se divertira muito na companhia deles, mas não passara disso.

— Estou com muita sede e não tenho ânimo no momento para pensar nesse assunto. — Afastou os cabelos da testa. — Só desejo um guia que me acompanhe até o hotel. Prometo pagar bem.

— Não vai me agradecer por tê-la ajudado?

— Já agradeci antes... De qualquer maneira, muito obrigada mais uma vez. Você foi muito gentil em me socorrer.

— Pensou que eu fosse um oficial francês encarregado de patrulhar o deserto? — Jogou a capa em cima do ombro, com um gesto arrogante. — Pareço-me com um francês, por acaso?

— Não sei. Eu queria muito beber um pouco de água — disse Lorna, em voz baixa, desviando o olhar do homem alto e moreno.

Sem atender seu pedido, Kasim deu uma ordem em árabe a um de seus homens, que saltou ao chão imediatamente e aproximou-se do cavalo ferido. Segurou as rédeas com firmeza, pôs o pé esquerdo no estribo e sentou-se na sela vermelha.

Lorna, que presenciava a cena em silêncio, recuou instintivamente quando Kasim deu um passo em sua direção. Com um movimento brusco, levantou-a nos braços e a colocou na sela do cavalo alazão, antes ocupada pelo cavaleiro que agora guiaria o cavalo ferido.

— Pode beber — ele falou, apontando para o cantil que estava pendurado no arreio. — Temos uma longa caminhada pela frente.

Ela bebeu sofregamente, tampou o cantil e tornou a guardá-lo. — Não preciso de uma escolta — disse por fim, com um sorriso nervoso. — Basta um homem... apenas para me indicar o caminho de volta.

— Que caminho? — questionou Kasim, arqueando as sobrancelhas. — Não vamos em direção a Yraa... estamos voltando para meu acampamento.

Lorna arregalou os olhos, aturdida e perplexa. Observou-o montar em seu cavalo preto em silêncio, com a capa passada em volta do corpo, como uma asa enorme. Subitamente, entendeu o significado verdadeiro de suas palavras... Ele não a levaria para o hotel, como era seu desejo, mas para um acampamento no deserto! Seria seqüestrada novamente, só que dessa vez não parecia ser por dinheiro! Os trajes dele, a comitiva e suas maneiras denunciavam ser um homem importante... Bastava um único olhar para perceber que era o chefe do bando e que todos lhe obedeciam cegamente. Estavam acostumados a satisfazer seus menores caprichos, mas ela não!

Movendo os calcanhares nos flancos do cavalo, Kasim partiu em disparada entre os outros cavaleiros. Lorna não se submeteria a nenhum homem, muito menos a esse demônio alto e zombador, de olhos castanhos, como a areia do deserto.

 

Lorna galopou na frente de Kasim por mais de um quilômetro. Então, com uma facilidade estupenda, ele se aproximou, enlaçou-a pela cintura e depositou-a na frente de sua sela.

Ao ouvir a gargalhada de Kasim, Lorna começou a lutar com um desespero quase primitivo, dando socos em seus ombros. Os dentes dele, muito brancos, destacavam-se na pele bronzeada, e, somente com as pernas, ele dominava e guiava o cavalo adestrado, enquanto a envolvia com a capa ampla. Ela estava ofegante, zonza e irritada diante de sua fraqueza.

— Seu bruto! — exclamou Lorna, com fúria. — O que está fazendo?                                                                          

— Adivinhe — ele murmurou, estalando a língua para sossegar o cavalo, que estava inquieto com a luta que se travara em seu lombo. — Sossegue, Califa... estamos levando uma gata selvagem para casa... Pois é, menina, teria arrancado meus olhos se pudesse...

Tornou a dar uma sonora gargalhada e dominou-a com tanta facilidade como se ela fosse uma criança indefesa.

— Sua bobinha, está se cansando à toa... ou acha que Kasim ben Hussayn pode ser vencido por uma pirralha como você?

Tirou-lhe uma mecha de cabelos loiros de cima dos olhos e fitou-a de modo tão intenso que ela ficou repentinamente pálida e imóvel.

— Seus cabelos são realmente desta cor? — ele perguntou, com um olhar que não era apenas de admiração, como Lorna estava habituada a receber, mas de um homem que apanha o que deseja sem pedir licença. — Seda selvagem — murmurou, fascinado pelos fios cor de ouro, enrolados entre os dedos compridos. — Seda natural. Dourada como o deserto.

Lorna procurava evitar ao máximo o contato com o peito másculo.

— Você... açoitou aquele homem por ter roubado um cavalo! Os olhos azuis refletiam um terror que nunca experimentara

antes. Kasim a assustava ainda mais que o árabe mal-encarado que a sequestrara no oásis. Não fazia diferença que a capa dele fosse limpa como o ar do deserto e que tivesse um leve aroma de tabaco turco, cheiro que ela reconheceu no primeiro instante, porque seu pai fumava cigarros turcos. Não fazia diferença que as mãos compridas que a cingiam fossem limpas como suas roupas. A própria beleza dele gelava seu coração.

— Meus cavalos são de estimação e não admito que sejam maltratados! — Fitou-a nos olhos, e ela se lembrou de um leopardo, arrogante e seguro do temor que inspira aos outros. — Não me canso nunca de meus cavalos. São belos, submissos e leais. Não posso dizer o mesmo de muitas mulheres...

Enquanto o cavalo dele galopava sob a luz ofuscante que dominava o deserto, os outros cavaleiros seguiam em fileiras atrás.

Lorna fechou os olhos para não ver o rosto de Kasim, depois tornou a abri-los e procurou na fisionomia severa algum sinal de compaixão... mas não havia nenhum.

Aquilo era real, e não um pesadelo. Estava presa pela capa e pelo braço forte daquele homem, duplamente imobilizada. Sentia os movimentos do cavalo, mas, exausta e sem força, tinha apenas uma leve consciência da situação quando o sol desapareceu, e a noite rapidamente se apossou das primeiras estrelas que brilhavam no céu da Arábia.

O tilintar do freio e das argolas de prata que enfeitavam o arreio do cavalo acabou por adormecê-la. Algum tempo depois, no entanto, o ritmo dos passos do animal se alterou, e Lorna acordou do estranho sono que tivera.

Era noite avançada.

Estava embrulhada confortavelmente na grande capa de montaria quando os cavaleiros chegaram a um acampamento de tendas pretas, iluminadas pelo luar. Ela viu as formas ajoelhadas dos camelos e a chama da lenha que ardia nas fogueiras. Ouviu vozes e ordens ditas em árabe, enquanto era levantada da sela e colocada no chão. Estava com os braços e as pernas dormentes e tinha apenas uma vaga consciência da beleza exótica do ambiente e da agitação de homens e mulheres em sua volta.

Estremeceu, mas não de frio. A lua, bem no alto, era uma foice prateada, e o perfil do chefe dos cavaleiros estava delineado no céu enquanto dava ordens a seus homens.

Em seguida, voltou-se bruscamente para Lorna. Ela percebeu o sorriso arrogante nos lábios finos. Dividida entre a fúria e o medo, acordou de sua sonolência, ergueu a mão e lhe deu um tapa no rosto. Uma vez... duas vezes... como se necessitasse extravasar o terror que sentia por ele.

Kasim deu uma gargalhada e levantou-a nos braços. Os outros observaram a cena em silêncio, os rostos semelhantes a máscaras douradas à luz da fogueira. Viram o chefe carregá-la no colo para a grande tenda dupla que estava armada num ponto isolado do acampamento, além do círculo das fogueiras. Com um movimento do ombro, Kasim levantou o pano caído na porta da tenda e entrou, carregando-a nos braços, O ruído das botas foi silenciado pelos tapetes espessos que cobriam o chão.

— Selvagem! — exclamou Lorna, com raiva, encarando o olhar arrogante do árabe, embora se sentisse mole e assustada. — Se pensa que pode me manter prisioneira aqui, está muito enganado. Sou uma cidadã inglesa!

— Sei disso — respondeu Kasim, com indiferença. — Estou em meu território e não sou sujeito a nenhuma autoridade. O que acha que vou fazer com você?

O olhar dele era de uma ironia cruel, e ela notou cada detalhe do rosto moreno à luz das lâmpadas de cobre, que exalavam um cheiro forte de sândalo. O desenho das sobrancelhas e do nariz era reto, impecável. As narinas eram finas e estreitas, e a linha do queixo tinha uma curva dura e acentuada. Olhou para a boca... que esboçava imperiosamente um sorriso que não levava em consideração os sentimentos de Lorna.

— Tenho dinheiro — ela sussurrou. — Prometo pagar bem se me libertar.

— Não preciso de seu dinheiro — Kasim falou, com uma risada desdenhosa, e colocou-a no chão. — Não é com seu dinheiro que vai comprar sua liberdade. Só há uma maneira de obter isso... e você sabe qual é.

— Não sei qual é — disse Lorna, com os olhos vermelhos e inchados.

— Jura? — perguntou Kasim, observando-a de alto a baixo.

— O que um homem pode querer quando leva uma bela mulher como você para sua tenda? Tenho certeza de que sabe! Não se faça de ingênua...

Quando o sentido das palavras penetrou em sua cabeça, ela recuou instintivamente alguns passos e esbarrou no sofá. Apertou a capa ampla contra o corpo e olhou em volta, assustada, à procura de algum meio de escapar de seu seqüestrador. Avistou a cortina de contas que levava a outra parte da tenda dupla, mas, no momento em que examinou com atenção aquele aposento, percebeu, alarmada, que era ali o harém do sheik.

Voltou bruscamente a cabeça e encontrou os olhos dele fixos nos seus.

— Não sou uma mulher da vida! — exclamou, furiosa. — Vim passar as férias aqui, e meus conhecidos vão me procurar... Será punido se me acontecer alguma coisa!

— Não diga!

Kasim deu um passo à frente e arrancou a capa que a cobria, deixando-a apenas com a camisa leve de verão e a calça comprida justa no corpo. Nunca ninguém a olhara com tanta avidez. Nunca se sentira tão consciente de ser uma mulher desejável.

— Uma moça como você não deveria circular sozinha por ai, como uma cigana... É uma loucura ser jovem, não? Seguir os impulsos do momento, em vez de ouvir os conselhos dos mais experientes. Tenho certeza de que foi advertida sobre os perigos do deserto. Mas não ouviu os avisos... Foi muito imprudente, mocinha!

Um tremor percorreu o corpo indefeso. Cada palavra dele era uma chicotada em seu coração.. Recuou no momento em que Kasim pôs a mão em sua nuca e forçou-a.a encará-lo.

— Você é bela como uma rosa selvagem... e tem espinhos que ferem as mãos — ele acrescentou, agora acariciando, a linha sinuosa do pescoço de Lorna. — Não gosta de ser tocada por um homem... Onde adquiriu esse comportamento frio e distante... num convento?                            

— E você, onde adquiriu sua crueldade? — ela replicou, com voz fria. — É um monstro!

— Sou apenas um homem. — Havia um sorriso perigoso em seus lábios. — Acredito que tudo depende do destino, e foi ele que nos aproximou... comprenez-vous?        

— O destino não justifica os crimes — Lorna respondeu, com o coração batendo aceleradamente no peito, enquanto encarava o rosto belo. — Há o respeito pelos outros...

— Sua súplica não me comove, minha cara. — A mão desceu pelo ombro, e ela sentiu o contato por cima do tecido leve da camisa. — O que o respeito tem a ver com o sentimento de um homem por uma mulher? — Deu uma risada, inclinou a cabeça e beijou-a na curva do pescoço. — Como sua pulsação está rápida! Tem medo de mim?

— Você é odioso!

O beijo fora bem leve, mas, mesmo assim, ardia como fogo.

— Pois eu a acho terrivelmente excitante. —Enlaçou-a como se fosse uma planta inclinada para trás sob um golpe de vento. — Seus cabelos são dourados como o sol do deserto, seus olhos são da cor de jasmim-azul e sua pele é clara como a madrugada. Eu a desejo e prefiro possuir as coisas à força a recebê-las espontaneamente.

— Não pode fazer isso.

As palavras morreram nos lábios de Lorna e deixaram apenas a súplica muda dos olhos.

— Você sabe que sim. As mulheres são instintivas por natureza... Seu instinto não lhe disse ainda por que a trouxe a minha tenda?

Kasim tocou os cabelos compridos, passou os dedos sobre o pescoço delicado, que se perdia na gola aberta da camisa, e, quando ela tentou defender-se, quando lutou desesperadamente contra seus braços fortes, agarrou-a com brutalidade e apertou-a contra si com uma violência que podia tê-la sufocado,

— Bela e rebelde! Um filhote de pantera que não foi domesticado pelo homem. Muito bem, vamos brigar primeiro... e depois fazer as pazes!

Ao dizer essas palavras, soltou-a e saiu rapidamente da tenda. Quando o pano da entrada voltou a seu lugar, Lorna caiu, exausta, no sofá e pôs a cabeça entre as mãos. Estava trêmula e sem ar, mas o alívio das lágrimas lhe foi negado. Aliás, de que adiantava chorar? Não poderia esquecer que estava nas mãos de um homem brutal, impiedoso e cruel, como nunca imaginara encontrar no Oriente.

Os árabes que avistara na cidade eram homens pacatos e obesos, Kasim, no entanto, tinha a aparência de um príncipe... que saíra diretamente de algum conto árabe da época do califa Harun al-Rachid.

Lorna arrependeu-se amargamente de não ter ouvido os conselhos de Rodney para não passear sozinha no deserto. Rodney a avisara... O adivinho vira seu destino traçado na areia... Caprichosa, teimosa e imprudente, ela não ouvira os conselhos de ninguém e deixara-se seduzir pelo encanto do deserto.

Estremeceu ao sentir a presença de alguém na tenda. Levantou a cabeça, assustada, com o rosto muito pálido, e avistou um criado. Ele tocou na testa, nos olhos e nos lábios, com a ponta dos dedos, para indicar que todos os três estavam a seu serviço.

— Trouxe água para a lella tomar banho — o criado disse, em francês. — Trouxe roupas também para a lella vestir. Meu senhor vai jantar com sua convidada.

Lorna corou repentinamente com a inflexão do homem. Ficou de pé e exclamou, com desespero na voz:

— Preciso sair daqui! Se me arrumar um cavalo, eu lhe pagarei generosamente!

— O dinheiro não tem valor para mim, lella. Eu seria punido com a morte se fizesse o que pede.

Retirou-se da tenda com uma inclinação de cabeça, e Lorna compreendeu amargamente que não teria nenhum aliado no acampamento, pois ninguém correria o risco de desobedecer as ordens do sheik.

Levou a mão ao pescoço, tocando o ponto onde fora beijada por Kasim. A lembrança do beijo, tão recente e ardente, fez com que saísse correndo em direção à outra parte da tenda dupla... o harém.

Olhou em volta e reconheceu que o local era mobiliado com incrível bom gosto. Havia um sofá coberto por uma colcha bordada com fios de ouro. Os motivos eram ramagens e flores de jasmim-azul. Ao lado do sofá, havia uma mesinha com uma lâmpada de cobre e uma caixinha de madeira entalhada contendo cigarros e alguns fósforos. Lorna passou a língua sobre os lábios secos. Os nervos suplicavam o gosto de fumo na boca e, esquecendo-se momentaneamente de que eram de Kasim, ajoelhou-se no sofá e apanhou sofregamente um cigarro.

Os cigarros eram turcos e tinham gosto forte e áspero. A primeira tragada causou-lhe uma tosse instantânea, mas em seguida a sensação de ardor passou. Lorna acomodou-se no sofá, cansada e ao mesmo tempo tensa, prestando atenção nos ruídos que vinham de fora.

Uma pele de leopardo estava estendida em cima do tapete.

As lâmpadas de cobre exalavam um perfume delicado, e havia uma mesinha esmaltada com espelho e objetos de uso pessoal.

O aposento, como seu dono, era imaculadamente limpo e arrumado. As tapeçarias bordadas à mão e as almofadas enormes não apresentavam uma mancha sequer. Num banquinho, ao pé do sofá, ela avistou um roupão de seda e um pijama.

A intimidade do aposento era envolvente. Era ali que Kasim dormia. Era ali que descansava no fim do dia e lia os livros com títulos em francês que estavam enfileirados numa estante no alto da cama.

Lorna apagou o cigarro no cinzeiro de cobre, e todos os nervos do corpo se contraíram quando a cortina de contas se abriu para deixar passar uma jovem com um véu no rosto.

— Sou Zahra — a moça se apresentou, olhando curiosamente para Lorna, examinando os cabelos compridos, a roupa justa e as botas de cano alto.

Zahra retirou o véu do rosto e desapareceu atrás da cortina. Voltou no instante seguinte, com duas chaleiras de água quente nas mãos. Colocou as vasilhas de cobre em cima da mesinha e, após afastar uma cortina de brocado, apontou para um quartinho minúsculo onde havia uma bacia enorme, bastante grande para uma pessoa acomodar-se em seu interior.

— A lella quer tomar banho? — a moça perguntou, em francês. Lorna meneou a cabeça afirmativamente. Um banho quente era a coisa que mais desejava no momento. Zahra encheu a bacia de cobre com a água das duas chaleiras, apanhou em seguida uma toalha e despejou um óleo aromático na água fumegante. O vapor tinha um cheiro forte e cativante, e Lorna respirou, aliviada, quando a jovem saiu pela cortina de contas, dizendo que ia buscar alguma coisa lá fora.

Despiu as roupas cobertas de poeira e entrou na bacia, que era suficientemente grande para ajoelhar-se lá dentro. Lavou-se com os sais de banho e embrulhou-se na toalha enorme que lhe batia nos pés. Estava se enxugando quando Zahra voltou trazendo algumas roupas nos braços. Mostrou cada uma delas para Lorna.

0 robe era bem fino, quase transparente, as calças turcas de seda tinham bordados na cintura, a túnica era de veludo e os chinelos, muito macios e forrados de penas, tinham as pontas levantadas.

Lorna olhou, assombrada, para a coleção. Eram trajes típicos de harém!

—Não, isso não! — exclamou, balançando a cabeça com firmeza. Zahra observou-a, espantada e sem jeito.

— Não vou usar isso! — repetiu Lorna, apanhando suas roupas caídas no chão.

Com os dedos trêmulos, Lorna tornou a vestir a camisa e a calça sujas, que pareciam tão pouco femininas ao lado das roupagens orientais, leves e esvoaçantes.

Ela não era mulher de harém! Por mais apavorada que estivesse, não se submeteria ao tal sheik sem primeiro lutar para defender sua liberdade.

Levantou o queixo e encontrou os olhos grandes e escuros de Zahra.

— Sinto muito, Zahra, mas não posso usar as roupas que me trouxe...

— O príncipe Kasim vai ficar zangado — disse a moça, assustada.

— Diga que fui eu que não quis — Lorna falou, decidida. — Não me importo nem um pouco com a raiva desse príncipe.

Mirou-se no espelho em cima da mesinha e notou que os cabelos estavam emaranhados e revoltos. Apanhou com relutância o pente de tartaruga que encontrou na penteadeira e desembaraçou os cabelos compridos.

Ela levava sempre consigo um estojinho com batom no bolso da calça e, ao passá-lo nos lábios, sorriu para si mesma- O batom era a arma predileta das mulheres nos momentos de crise.

Ao virar-se, percebeu que Zahra havia saído do aposento. As roupas de seda e de veludo estavam arrumadas em cima de uma arca, juntamente com os chinelos vermelhos.

— Prefiro morrer a usar essas roupas de odalisca — murmurou, com desdém.

Tomou coragem, passou pela cortina de contas e voltou para a parte principal da tenda. A mesinha baixa estava servida para dois, diante do sofá coberto de almofadas. Havia talheres com cabos incrustados de pérolas e copos com frisos de prata.

O homem que morava naquele lugar era um demônio impiedoso e belo, que vivia como um príncipe. Mordeu os lábios com despeito. Aliás, era exatamente isso, segundo Zahra. Um príncipe arrogante... que logo entraria na tenda, com seu andar imponente de felino.

 

Lorna parou no meio da tenda e respirou o cheiro forte, proveniente dos objetos de couro, dos móveis de sândalo e do tabaco turco. O interior do local era repleto de tapeçarias, e as lâmpadas de cobre forneciam uma luz difusa e dourada ao ambiente. Os tapetes eram persas, e, sobre uma mesa de ébano, havia uma bela caixa de madeira, toda trabalhada. Lorna abriu a caixa e soltou uma exclamação de surpresa ao avistar o belíssimo jogo de xadrez de marfim. As peças eram tão bem esculpidas que pareciam transparentes. Estava admirando o cavalo, que tinha na mão, quando ouviu um leve movimento as suas costas.

Ela. se voltou rapidamente, com um aperto no coração. Kasim entrara silenciosamente na tenda e estava parado junto à porta. Trocara a roupa de montaria.e vestia uma túnica branca, aberta no peito, presa com um cinto largo de tachas. Os cabelos pretos estavam descobertos, e havia uma insolência visível no homem que olhava fixamente para ela, ao perceber que estava de calça comprida e botas de cano alto.

Os olhos dele se estreitaram, e Lorna preparou-se para o ataque.

— Você joga xadrez? — Kasim indagou.

A pergunta foi tão inesperada que ela sentiu um tremor na mão quando colocou a peça de volta no interior da caixa. Ao fechar a tampa, respondeu, com frieza:

— Um pouco.

— Esses jogos de estratégia foram inventados pela mente sutil dos orientais — ele disse, avançando um passo em sua direção. — Está nervosa como um pássaro no deserto... — acrescentou em seguida, inclinando-se para apanhar uma amêndoa num pratinho de louça.

A túnica alva acentuava a pele morena do rosto, do pescoço descoberto e dos braços dele. No dedo indicador da mão direita, tinha um anel pesado, gravado com letras douradas. Sem dúvida, Kasim era um homem terrivelmente belo.

— Você olha para mim como se eu fosse devorá-la... — falou, com um sorriso, após um instante. — Por que não vestiu a roupa que lhe dei? Iria se sentir mais à vontade se tirasse essa calça e essas botas grosseiras dos pés!

— Prefiro usar minhas roupas — murmurou Lorna, enfiando as mãos nos bolsos da calça, com um ar aparente de segurança.

— Não sou mulher de harém, príncipe Kasim!

— Quando estou acompanhado, prefiro usar o título de sheik.

— informou, com ironia.

— Quantos títulos você tem, afinal? — ela perguntou, com insolência. — Para mim, é pior do que aquele ladrão de cavalos. Ele, pelo menos, era pobre e só queria dinheiro...

— Como sabe? — Kasim questionou, comendo outra amêndoa.

— Sou muito branca e muito magra para agradar a um beduíno — respondeu Lorna, com sarcasmo. — Não tenho as curvas que os árabes admiram nem os olhos de gazela...

Ele deu um sorriso abafado.

— Quanta modéstia! Preferiria, naturalmente, que eu a julgasse branca e magra. — Os olhos castanhos a percorreram de alto a baixo, insolentes. — É uma pena você ter vestido essas roupas de homem. Os trajes orientais combinam muito melhor com seu corpo esguio...

Ao ouvir o comentário, dito em voz baixa, Lorna teve a impressão de estar completamente nua diante dele. Respirou, aliviada, quando o criado entrou na tenda, com uma bandeja na mão, contendo diversas travessas cobertas.

O criado arrumou os pratos sobre a mesa e serviu uma bebida esverdeada em dois copos compridos, com frisos de prata. Não olhou nenhuma vez para Lorna. Os olhos dele estavam discretamente abaixados no momento em que inclinou a cabeça e saiu da tenda, deixando-a sozinha na companhia de Kasim.

— Sente-se, por favor — disse ele, apontando para o sofá.

— Não estou com fome.

— Não é possível. Você tem de estar, mon enfant! — Levantou-a no colo como uma criança e sentou-a entre as almofadas do sofá. Ajeitou-se a seu lado e estendeu-lhe um dos copos compridos. — Isto é limoon, uma bebida feita com limão, hortelã e uma gota de mel. Prove, vai gostar!

— Não conhece meus gostos, príncipe Kasim. Para você,

sou apenas um objeto...

— Muito decorativo, por sinal. — Levou o copo aos lábios dela, e sua voz se tornou mais carinhosa. — Você é rebelde e voluntariosa, como um potro que vê seu reflexo na água e foge de sua própria imagem. Não tem pena de sua beleza?

Lorna fitou-o. Os olhos, muito grandes, estavam cor de violeta naquele momento.

— Beba — insistiu ele.

— Você só sabe mandar! — Lorna exclamou, com raiva. — Seus criados morrem de medo de você!

— Por que diz isso? Zahra e Hassan não quiseram ajudá-la a fugir? — Deu uma risada, encostando o copo nos lábios dela, Lorna segurou-o nas mãos e bebeu um gole, com relutância, enquanto Kasim despedaçava com a mão uma perna da codorna assada, que vinha acompanhada de arroz e de legumes.

— Se não está acostumada a comer com as mãos, há talheres aí — ele disse, apontando para o garfo e a faca com cabos incrustados de pérolas. — Passou o dia inteiro no deserto e deve estar faminta. Hassan é um excelente cozinheiro e vai ficar triste se você não provar as iguarias que preparou para nosso jantar. Nosso jantar! Lorna ferveu de raiva ao ouvir o comentário, mas, sob o olhar insistente de Kasim, serviu-se de um pedaço de cuscuz e forçou-se a comer.

— Prove também uma perninha de codorna — ele falou, pondo uma coxinha assada em seu prato.

— É sua comida favorita? — perguntou Lorna, sabendo que as codornas eram criadas no deserto devido a sua carne tenra

e saborosa.

— Exatamente! Não há carne mais saborosa, digna de um rei.

— De um príncipe — ela o corrigiu, observando a maneira como Kasim enrolava o cuscuz nos dedos e levava uma pequena bola à boca.

Lorna tinha a impressão de que ele comia com as mãos unicamente para mostrar que era um verdadeiro beduíno do deserto, porque suas maneiras eram absolutamente educadas e finas.

Hassan voltou pouco depois com o café, que serviu em duas delicadas xícaras de porcelana. A bebida fora preparada à francesa, e Lorna a teria apreciado devidamente se não estivesse tensa e apreensiva. Kasim disse alguma coisa ao criado antes de ele sair, e ela compreendeu com ansiedade que, a partir daquele instante, estariam sozinhos e não seriam perturbados por ninguém.

Ficou surpresa, portanto, quando o pano da tenda se abriu mais uma vez, e um cachorro grande, de pêlos castanhos, entrou correndo e colocou as patas nos ombros de seu dono.

Kasim alisou a cabeça do animal e olhou de relance para Lorna.

— Gosta de cachorros? Os ingleses, pelo que sei, adoram animais...

— Sim, gosto muito. — ela respondeu, embora observasse o cão com a mesma desconfiança que nutria pelo dono.

O cachorro examinou-a com atenção e aproximou-se dela, abanando o rabo.

— Ele é manso — Kasim informou, reclinando-se nas almofadas do sofá. — E é muito carinhoso, sendo um verdadeiro filho do deserto.

Lorna não entendeu o significado daquelas palavras. Em sua opinião, Kasim simbolizava o deserto melhor do que ninguém, no que tinha de rude e perigoso.

Tomando coragem, ela estendeu a mão e alisou o focinho macio do animal. O cachorro cheirou os dedos e apoiou a cabeça nos joelhos dela, com os olhos muito meigos voltados em sua direção.

— Você é novidade na casa — Kasim falou, inclinando-se para apanhar um cigarro na mesinha. — Quer fumar, Lorna?

Ela ficou furiosa ao ouvir seu nome ser pronunciado com tanta intimidade.

— Não, muito obrigada! Não estou acostumada com esses cigarros turcos!

— Com o tempo a gente se habitua a tudo — ele disse, observando-a fixamente, enquanto acendia o fósforo e aproximava a chama do cigarro.

Ele deu uma tragada e contemplou-a com indolência. Lorna continuava tensa como antes. O fascínio daquele homem estranho, sentado nas almofadas do sofá, estava mais presente do que nunca.

— No que está pensando? — Kasim indagou.

— Num amigo que deixei em Yraa — respondeu, com a voz trêmula, e os cílios compridos projetando sombras sobre a palidez do rosto. — Ele deve estar preocupado com meu paradeiro...

— Um rapaz?

— Sim. — Levantou a cabeça e encontrou os olhos castanhos fixos nos seus. — Provavelmente, ele organizará uma expedição para me procurar... Sabia que eu ia ao oásis de Fadna e certamente vai contratar alguns árabes para me localizar.

— Precisam ter olhos de lince para encontrá-la aqui — disse Kasim, com um bocejo. — Todas as manhãs, depois que o vento sopra, as areias do deserto são lisas como a pele de um bebê!

— Pois tenho certeza de que Rodney vai me encontrar!

— Ele gosta de você? — A fumaça do cigarro formava rolos azulados em volta dos olhos castanhos, indolentes como os de um leopardo.

— Sim... ele gosta muito de mim. Você não tem o direito de tirar a mulher que pertence a outro homem.

— Um homem que a deixou sair sozinha no deserto? — Kasim fitou longamente os cabelos compridos e o rosto claro, ligeiramente pálido. — O deserto é um lugar fascinante, e, pelo visto, você não queria dividir seu encanto com esse homem...

— Tivemos uma pequena discussão, e eu saí sem falar nada a ele...

— E ele não correu a seu encalço?

Ele não é como você! Não sai galopando atrás das mulheres e não as arrasta à força para seu quarto!

— Que homem frouxo deve ser esse seu amigo! É por isso que não o ama...

— Não? Pois eu daria tudo para estar com ele agora!

— Por que ele é pacato? Mas eu também tenho sangue civilizado nas veias... Minha mãe nasceu em Cadiz, na Espanha. Ela tinha a pele branca e os olhos negros.

Lorna respirou, aliviada, ao saber que a mãe dele era espanhola, como se esse traço no sangue abrandasse a ferocidade do temperamento árabe.

— Ela também foi seqüestrada e levada para um harém?

— Não, minha querida. Ela era enfermeira num hospital do Marrocos. O homem que tenho a honra de chamar de pai a conheceu ali e pediu-a em casamento.

— Casou-se com ela? — Lorna perguntou, surpresa.

— Ele gostava muito dela. — Uma pequena chama ardeu nos olhos castanhos. — O amor do deserto surpreende uma jovem criada na Inglaterra?

— Morei um ano em Paris.

— Ah, sim? O que achou daquela cidade? Fascinante, não?

— Já esteve lá?

— Fui criado em Paris.

Os olhos dela se arregalaram de curiosidade.

— Ah, então é por isso que fala francês perfeitamente! — Você também fala muito bem, ma petite blonde. Lorna encostou-se nas almofadas, numa atitude de defesa, ao ouvir a inflexão possessiva desse homem chamado príncipe Kasim, belo, que vivia no deserto e que se apoderava das coisas de que gostava.

O teto parecia rodar lentamente sobre a cabeça de Lorna quando o cachorro pulou do sofá e correu para fora da tenda. O acampamento recolhera-se para a noite, e os únicos ruídos que escutava, de tempos em tempos, eram os gritos dos camelos, o tilintar dos sinos pendurados no pescoço dos animais ou o latido distante de um cachorro. Ela sentiu um arrepio de frio quando um golpe de vento balançou o pano da entrada e fez tremer as chamas das lâmpadas. Sombras movimentavam-se atrás das tapeçarias, e a cortina de contas se movia, como se fosse tocada por dedos invisíveis.

Lorna olhou fixamente para a cortina e, com uma exclamação repentina de susto, levantou-se e correu para fora da tenda, no meio da noite.

Mãos impiedosas a seguraram com força. Foi erguida pelos braços de Kasim e levada para o aposento separado pela cortina de contas. Ali, à luz tênue da lâmpada de óleo, avistou os olhos castanhos que a observavam com intensidade.

— Está se cansando à toa, sua bobinha — ele disse, apertando-a nos braços. Os lábios quentes enxugaram as lágrimas que rolavam pela face dela, — Para que resistir? Sabe que não pode fugir de mim.

— Eu te odeio! — ela exclamou, com raiva. — Eu te desprezo!

— Pois eu gosto de seu temperamento. — A voz era baixa, quase um sussurro, como se zombasse dela. — Você é rebelde, excitante... Você me mataria se pudesse, não é verdade?

No momento em que foi deitada na cama e coberta com uma colcha de seda, Lorna queria se esquecer de tudo, morrer... Kasim ajoelhou-se para tirar as botas de seus pés, e ela ficou paralisada de medo. Os braços e as pernas pareciam entorpecidos. Ele tirou primeiro um pé, depois o outro, e atirou as duas botas para o lado.

— Não precisa de um criado para despir-se. Vou apagar a lâmpada.

Ela continuou imóvel, mordendo os dedos, como se quisesse abafar o grito que lhe subia na garganta, e viu Kasim atravessar a cortina de contas, que balançou e tilintou levemente durante alguns segundos. Então, Lorna avistou a faca que estava ao lado da fruteira, sobre a mesinha-de-cabeceira. Um punhal ricamente trabalhado, com uma lâmina curva.

Ela o segurou pelo cabo, sem hesitação. No momento em que Kasim voltou, Lorna saltou sobre ele, rápida como um felino, tentando atingi-lo no coração, mas rasgou apenas a túnica fina de linho, antes de ser dominada. Ele quase quebrou seus dedos, quando a forçou a soltar o punhal. A faca caiu em cima do tapete, e ela deu um grito quando ele a inclinou para trás sobre seu braço. Fitou-a, com os olhos ardendo de ódio, enquanto o sangue do pequeno corte manchava a túnica branca.

— Agora você me deixou com raiva — Kasim murmurou, com os dentes cerrados.

— Por favor, não...  

As lágrimas rolavam dos olhos que pareciam flores regadas pela chuva.

— Não vou bater em você — zombou, afundando os lábios na cavidade do pescoço dela.

Lorna debateu-se para se soltar dos braços dele e, de repente, caiu do bolso da camisa a flor branca que colhera naquela manhã no oásis de Fadna, na parede da casa em ruína onde seu pai morara. Sem soltá-la, Kasim agachou-se para apanhar a flor caída no chão. As pétalas estavam amassadas, mas ainda exalavam o perfume forte de flor silvestre.

— Por que estava com esta flor no peito?

— É minha! — exclamou, tentando tirá-la dele.

— Quem lhe deu esta flor? — perguntou Kasim, estreitando os olhos. — Aquele mesmo idiota que a deixou andar sozinha pelo deserto?

— Sim, ganhei esta flor do homem que amo — respondeu, com firmeza. — Você não pode me obrigar a dizer o nome dele.

— Pensei que ele se chamasse Rodney.

— Ah, é?

Ela tirou a flor da mão de Kasim, com um gesto brusco.

— Seus segredos não me interessam. — Soltou-a e levou a mão ao peito, como se o corte o incomodasse. Apontou para a cama. — Você precisa dormir bem, depois de um dia passado no deserto. Boa noite, minha bela prisioneira.

Ele parou junto à cortina e afastou com a mão as fileiras de contas que desciam até o chão.

— Vou dormir na sala. Lembre-se de que estou sempre de prontidão, mesmo dormindo.

Lorna deu um suspiro quando ele saiu finalmente do quarto. Em algum lugar do deserto, um chacal uivou. Vencida pelo cansaço e pelas emoções do dia, ela se deitou na cama e afundou o rosto no travesseiro. A flor branca estava apertada contra seu rosto, e uma lágrima escorria lentamente sobre ela no momento em que Lorna mergulhou no sono profundo, momentaneamente esquecida de suas preocupações.

 

O dia amanheceu, e, no acampamento, havia uma grande atividade em torno das fogueiras onde as mulheres preparavam a refeição da manhã. O som dos sininhos dos camelos misturava-se aos berros aflitos dos meninos ao serem acordados. Vultos embuçados selavam os cavalos, e dois potros brigavam no cercado, até serem separados pelo encarregado das cocheiras.

A algazarra da manhã penetrava na grande tenda dupla, mas Lorna continuou dormindo. Moveu-se na cama, porém não acordou. Sua fisionomia estava serena como a de uma criança. Os guizos dos camelos entraram em seu sonho e se transformaram nos sinos que tocavam no convento onde estudara, chamando as alunas para as aulas.

Quando ela finalmente acordou do sono profundo em que mergulhara na noite anterior, a atividade matutina do acampamento havia cessado, e o sol clareava o interior da tenda. Abriu os olhos e viu o cortinado que alguém colocara sobre a cama para protegê-la das moscas, que apareciam quando o sol esquentava.

Sentou-se na cama e afastou o cortinado. Olhou em volta, com as pálpebras pesadas de sono. O ambiente era, ao mesmo tempo, terrivelmente estranho e assustadoramente familiar.

A caixa de cigarros estava aberta sobre a mesinha-de-cabeceira, como se alguém houvesse apanhado um cigarro de manhã e esquecido de fechá-la. A túnica branca estava jogada em cima do banquinho, e Lorna estremeceu instintivamente ao compreender que Kasim entrara no quarto enquanto estava dormindo. Ele puxara a colcha de seda sobre o corpo dela e pusera o cortinado em cima da cama. Ele a vira enquanto estava dormindo, inconsciente do olhar de Kasim.

Sentiu um arrepio. Os acontecimentos da véspera eram tão reais quanto o sol que brilhava lá fora, com os gritos que vinham do terreiro.

Ela estava no deserto, presa na tenda do príncipe Kasim ben Hussayn, um homem misterioso, que era ao mesmo tempo educado e impiedoso. A personalidade dele era tão forte que Lorna podia recordar todas as palavras trocadas durante o jantar, as menores inflexões de voz. Ao lembrar-se do pavor que sentira na noite anterior, tinha vontade de esconder-se embaixo das cobertas, como uma criança, e não pensar no que a esperava naquele dia.

A cortina de contas moveu-se quando Zahra entrou no quarto. Ela levantou o véu do rosto e sorriu para Lorna, isso indicava que Kasim não estava na tenda. Zahra aproximou-se da cama e perguntou se ela dormira bem à noite.

— Dormi como uma pedra — Lorna respondeu, com um bocejo. Um raio de sol incidiu sobre seus cabelos revoltos, e Zahra

pareceu fascinada com o brilho, como se nunca houvesse visto cabelos daquela cor. Os olhos desceram para o lençol que Lorna apertava contra o corpo, e, com agilidade, Zahra correu para a arca de cedro e apanhou um robe. Lorna vestiu-o sem protestar. Estava levemente perfumado e era macio como seda.

— De quem é? — perguntou, apalpando a fazenda. — De alguma mulher?

Zahra parecia surpresa com a pergunta.

— Não, lella. Uma caravana passou há uma semana, e meu amo comprou roupas e perfumes para dar de presente a Turqeya.

— Turqeya?

O nome exótico evocava em sua imaginação uma jovem muito bela, de cabelos negros, e o robe pareceu, repentinamente, queimar sua pele.

— Meu amo disse para vestir-se com essa roupa — Zahra informou, apontando para a arca. — Elas não lhe agradam? São tão lindas...

— Ouça, Zahra, no momento, prefiro tomar um copo de suco e depois um banho quente.

— Um banho quente? — Zahra indagou, confusa. — A lella tomou banho quente ontem à noite!

— Pois eu gostaria de tomar outro agora de manhã!

Lorna lembrou-se de que não estava no hotel. Talvez a água não fosse abundante ali.

— Vocês economizam água?

— Não. Estamos acampados perto de um poço. Temos água de sobra. Vou apanhar o suco e depois esquento a água.

— Muito obrigada — Lorna agradeceu, com um sorriso. Zahra era muito gentil.

Ao lembrar-se de Kasim, no entanto, Lorna sentiu-se angustiada novamente, sobretudo ao saber que ele comprara o robe de seda para dar de presente a uma mulher. Estava tão aflita com a idéia de que estivera indefesa nos braços dele na noite anterior que se assustou quando ouviu alguém entrar na tenda.

— O que foi? — perguntou Zahra, passando pela cortina de contas, com uma bandeja na mão. — Você se assustou?

— Não, não foi nada.

Zahra ajeitou a bandeja no colo de Lorna, que estava com muita sede, mas não tinha apetite para comer os bolinhos que

Zahra trouxera,

— Não estou com fome, Zahra. Tenho apenas sede. Acho

que é o ar do deserto que me deixa assim.

— A lella não está acostumada com o sol? — perguntou Zahra, apanhando a túnica jogada em cima do banquinho, o que fez Lorna corar de vergonha.

A jovem, com toda a certeza, pensaria que Kasim dormira

no mesmo quarto que ela.

— Venho de um país onde o sol não é tão forte quanto o daqui, e onde somente no litoral existe areia.

Lorna lembrou-se, emocionada, da Inglaterra, do internato das freiras, do ano que passara em Paris com seu pai. Como poderia imaginar que sua viagem ao Oriente terminaria daquele jeito? Ela, que desprezava os homens que tomavam liberdades excessivas, estava agora privada de sua liberdade por um que não se importava nem um pouco com seus sentimentos!

— Você precisa comer, senão meu amo vai ficar zangado comigo — disse Zahra, levantando a tampa do prato. — Não gosta desta comida?

O aroma apimentado dos bolinhos de carne despertou seu apetite, e Lorna sentiu-se tentada a provar, mesmo contra a vontade.

— Pelo visto, todos aqui têm medo do sheik — Lorna falou, experimentando uma almôndega.

Zahra fitou-a em silêncio, sem saber o que dizer, como se nunca houvesse ouvido alguém falar mal do sheik.

— Zahra, você precisa me ajudar a sair daqui — Lorna implorou de repente, com o coração batendo, acelerado.

A moça afastou-se da cama, com a fisionomia alarmada, da mesma maneira que o criado no dia anterior. E a doçura habitual transformara-se subitamente em hostilidade.

— Vou apanhar a água quente para o banho — disse, retirando-se.

Lorna observou-a partir em silêncio e despediu-se tristemente de sua esperança de fuga.

Todos tinham medo de Kasim! Seu poder era tão grande que ninguém estranhava a presença de uma moça inglesa em sua tenda. Talvez imaginassem que ela se sentia honrada com isso!

Tirou a bandeja do colo e desceu da cama. Nervosa, andou de um lado para o outro do quarto, com os pés descalços afundados na pele de leopardo que cobria o tapete. Estava presa ali como um animal... ferida e traída pelo deserto que desejava tanto conhecer!

Sentou-se, desanimada, sobre a pele de leopardo e apoiou a cabeça numa almofada. Seus cabelos cobriam-lhe o rosto.

Foi assim que Zahra a encontrou quando voltou com as panelas de água quente.

— Está chorando? — a moça perguntou, tocando de leve sua cabeça.

Lorna voltou-se e encarou-a, com os olhos azuis encobertos pela tristeza.

— Acha que eu deveria estar contente?

— Meu amo é um homem muito bom.

Zahra, aparentemente, fora criada com a idéia de que os homens eram criaturas superiores. Não podia compreender a revolta de alguém que fora seqüestrada e submetida à vontade de um estranho, sem poder protestar.

— Pois, para mim, ele é o homem mais cruel que já conheci. Desejo que ele sofra muito na vida, e digo isso de todo meu coração.

Zahra a observava com uma expressão de horror.

— Meu amo não é cruel com sua gente...

— Mas eu o vi açoitar um homem — disse Lorna, trêmula. — O homem deve ter merecido esse castigo. As leis do deserto são diferentes das leis da cidade, Lella.

— Sei disso. Os homens do deserto são cruéis.

Zahra meneou a cabeça, como se a idéia de crueldade de Lorna fosse diferente da sua. Encheu a bacia com água quente e derramou o óleo perfumado, que fazia espuma como sabão. Em seguida, apanhou uma esponja em cima da mesinha e olhou em silêncio para Lorna,

— Pode deixar, Zahra. Tomarei banho sozinha.

— Vou ensaboá-la e fazer sua pele ficar brilhante e sedosa, como fazem no hamman. É bom... relaxa o corpo...

— Muito obrigada, mas não é necessário — Lorna recusou-se, ligeiramente chocada com a sugestão. — Prefiro me ensaboar sozinha.

— A lella não precisa ter vergonha — insistiu Zahra, como se falasse com uma criança. — A gente não deve ter vergonha quando tem o corpo limpo...

Lorna corou, sem saber o que responder. Despiu o robe e entrou na água perfumada.

Zahra ensaboou seu corpo dos pés à cabeça. A esponja era áspera, mas dava uma sensação agradável de limpeza. Zahra abaixou a vista quando a esponja tocou num ponto dolorido do braço de Lorna, que recuou instintivamente. Era uma mancha azulada sobre a pele clara, a marca da raiva do sheik no momento em que ela o ferira com o punhal. Lorna tocou na mancha com a ponta do dedo e sorriu ao se lembrar que ela também deixara uma marca no peito dele. A cicatriz não iria desaparecer tão cedo!

Depois de tomar banho e de se enxugar, Lorna hesitou um instante, pensando se vestiria ou não suas próprias roupas novamente. A calça poderia ser escovada, as botas engraxadas, mas a camisa estava imunda e precisava ser lavada.

Ajoelhou-se diante da arca de cedro e examinou seu conteúdo. Entre as vestes de seda e de veludo, havia uma túnica de brocado azul, que poderia servir de blusa, se a colocasse para dentro da calça comprida. Era melhor do que vestir a calça turca que combinava com a túnica.

Zahra tentou em vão convencê-la a usar a roupa completa.

— Não sou odalisca! Não vou vestir essas roupas transparentes, e ninguém irá me obrigar!

— Meu amo vai ficar zangado — Zahra falou, abaixando os olhos. — Os homens não gostam de ser contrariados!

— Claro! Eles gostam que as mulheres lhes façam todas as vontades!

Após se vestir, Lorna calçou as botas. O tecido da túnica era muito leve e bonito, com suas diversas tonalidades de azul.

— Zahra, você ainda é muito jovem para conhecer os homens...

— Sou casada — a moça respondeu, com timidez. — Meu marido é o encarregado das cocheiras. É uma posição muito importante, porque meu amo tem muito ciúme dos cavalos que possui.

Lorna olhou, surpresa, para ela. Zahra tinha apenas dezessete anos e já estava sujeita à vontade do marido.

— Ah, agora entendo por que estava de véu ontem à noite. Os homens não gostam que as mulheres descubram o rosto na frente de estranhos, e você é muito bonita, Zahra.

A moça corou, sem jeito, e o rosado da pele morena acentuava seu encanto.

— Yusuf é muito bom para mim.

— Só podia ser! Ele tem sorte de tê-la como mulher.

Ao virar-se para escovar os cabelos diante do espelho, Lorna surpreendeu-se com sua própria imagem. A túnica sem mangas acentuava a pele clara dos braços e, com os cabelos molhados, parecia um pajem de uma corte bárbara. No momento em que colocou a escova em cima da mesinha, notou o anel que Kasim deixara ali. Recuou, assustada, como se houvesse visto uma cobra. Esquecera-se completamente dele durante algum tempo, mas agora tinha de sair do quarto e, mais cedo ou mais tarde, acabaria encontrando-o.

Ao passar pela cortina de contas, voltou-se para Zahra.

— Essa bacia é muito pesada para carregá-la sozinha. Vou pedir a Hassan para ajudá-la.

— Ah, seria bom — Zahra disse, com um sorriso. — A lella é muito gentil.

— A lella é uma tola, Zahra! Eu devia ter ouvido os conselhos de um amigo, que me avisou para não andar sozinha no deserto.

Soltou a cortina de contas que segurava e entrou na outra parte da tenda. O pano da entrada estava levantado de um lado, e o sol realçara as cores delicadas dos tapetes persas espalhados pelo chão. Hassan surgiu logo depois e cumprimentou-a com uma leve inclinação de cabeça.

Lorna olhou detidamente para a abertura da tenda. Poderia fugir por ali e ir para bem longe de Kasim ben Hussayn.

Em vez disso, pediu a Hassan que ajudasse Zahra a carregar a bacia do banho e saiu da barraca. Perto dali, um homem estava sentado ao lado de uma pilha de arreios. Tinha o rosto magro e anguloso e, quando Lorna se afastou da tenda, em direção ao centro do acampamento, o homem a seguiu a distância. Instantes depois, ela parou perto de uma fogueira, onde havia vários bules de café, encardidos pelo uso.

— Por que está me seguindo? — perguntou para o árabe em francês, quando ele se aproximou.

O homem abaixou a cabeça em silêncio. O albornoz estava imaculadamente limpo, e ela notou que os traços da fisionomia dele eram nitidamente árabes.

— Não quero ser seguida como se fosse uma prisioneira! — exclamou, irritada.

— Recebi ordens, lella.

— Estou vendo. O sheik adora dar ordens!

— A moça pode passear pelo acampamento, se quiser.

— Posso andar a cavalo?

— Isso não.

Lorna mordeu o lábio de despeito. O ódio que sentia por Kasim aumentava cada vez mais. Continuou andando lentamente, com a cabeça erguida, consciente dos olhares que lhe dirigiam. As crianças pequenas se agarravam às saias das mães quando a avistavam, e ela notou que as tendas pretas estavam todas voltadas para o oriente. As partes da frente eram removidas durante o dia, como se fossem barracas de caça.

Avistou alguns cães deitados à sombra das tendas e o cercado onde os cavalos eram guardados. Eram animais ariscos, de pêlos brilhantes, extremamente velozes, e Lorna desejou poder apoderar-se de um deles. Ah, se tivesse essa oportunidade, fugiria em disparada do homem que a mantinha cativa naquele acampamento!

Como se lesse seus pensamentos, o árabe se dirigiu para a sombra das palmeiras que nasciam em volta do poço. As tamareiras estavam carregadas de frutos. Lorna caminhou embaixo das folhas sussurrantes e lembrou-se de que, no dia anterior, àquela hora, estava livre como um passarinho. Jamais imaginara que o oásis de Fadna seria um lugar maldito para ela.

Fadna... Deveria ter pensado antes no perigo, mas não acatara os conselhos que ouvira, fascinada pelo encanto que seu pai encontrara ali.

— Vamos voltar — disse para o árabe. Havia uma ansiedade na voz dela que o árabe interpretou como o desejo de estar de novo na tenda do sheik. Sorriu com malícia, como se quisesse dizer que os desejos dela eram ordens. Ao entrar na fenda dupla, Lorna sentou-se no sofá e examinou detidamente cada objeto que havia ali, cada peça do mobiliário. As tapeçarias, os tapetes persas, as almofadas, os móveis e os objetos de cobre e de bronze eram verdadeiras peças de colecionador, sem falar no pequeno armário com livros e na escrivaninha que estava num canto afastado da tenda. Era incrustada de pérolas, com um desenho muito elegante e cheia de gavetas pequenas, que chamaram imediatamente sua atenção.

Lorna levantou-se do sofá e foi até o canto da tenda, para examinar de perto a escrivaninha. Acompanhou com a ponta do dedo as letras douradas gravadas em relevo num livro grande, encadernado com couro. Em seguida, tentou abrir as diversas gavetas, mas notou que estavam fechadas à chave... exceto uma. Abriu-a e abaixou-se para examinar o que havia em seu interior. Avistou diversos objetos brilhantes, entre os quais um medalhão preso numa correntinha de ouro e um crucifixo de marfim na ponta de um rosário de contas minúsculas. Lorna abriu o medalhão e viu a miniatura de uma mulher jovem, com um penteado antigo e olhos maravilhosos.

Lembrou-se de que a mãe de Kasim era espanhola. A mãe dele, essa criatura adorável, com uma boca bem-feita e bondosa... A mulher que aceitara espontaneamente a vida enclausurada do harém. A mãe que adorava o filho pequeno, mas que não vivera o suficiente para vê-lo crescer e se transformar num homem belo e impiedoso.

Lorna fechou o medalhão e tornou a guardá-lo na gaveta, juntamente com o crucifixo. Permaneceu um instante ali, pensativa. O fato de Kasim ser um homem educado e de boa família não justificava sua conduta condenável. Pelo contrário, tornava ainda mais odiosa sua atitude tirânica e desumana. Ela voltou a cabeça tristemente para a entrada da tenda, que estava iluminada pela luz do dia. Lá fora estava a liberdade, mas ninguém do acampamento a ajudaria a fugir.

A qualquer momento, Kasim entraria na tenda com seus passos rápidos, e Lorna podia visualizar em detalhes os traços altivos do rosto, o corpo ágil e elegante, a voz autoritária. Estremeceu ao pensar que iria encontrar de novo os olhos castanhos que a fitavam com insolência, como se ela fosse um objeto desejável. As forças a abandonaram. Deixou-se cair sem ânimo no sofá e afundou a cabeça numa almofada.

— Gostaria que ele caísse do cavalo e quebrasse o pescoço — murmurou para si mesma, como se fosse uma prece.

 

Os sininhos dos camelos despertaram o acampamento da letargia produzida pelo calor da tarde.

Lorna adormecera entre as almofadas do sofá. Acordou com o ruído e passou as mãos sobre os olhos sonolentos. A tenda estava escura, e ela notou que o dia quase terminara. Levantou-se do sofá e foi até a entrada contemplar o pôr-do-sol.

Mulheres em trajes longos estavam ocupadas em acender as fogueiras do acampamento. Homens passavam a cavalo, a galope, acrescentando uma repentina vivacidade à cena. Um menino pequeno correu em direção ao pai, que desmontou e o segurou no colo, e o murmúrio das vozes confundia-se com o tilintar dos arreios, enquanto o sol avermelhado banhava o acampamento com sua luz dourada.

Lorna observou a cena, fascinada. A fumaça subia dos galhos secos e misturava-se ao cheiro do café e das comidas apimentadas que cozinhavam sobre as chamas. Alguém dedilhou um instrumento de cordas, e a música espalhou-se pelo local, com uma toada estranha e triste.

Numa outra circunstância, Lorna ficaria encantada de estar hospedada num acampamento, em pleno deserto. O cair da tarde, no entanto, causou-lhe uma súbita depressão... Kasim surgiria a qualquer momento. Procurou não pensar nisso, prestando atenção na conversa das mulheres que carregavam moringas de água na cabeça. Andavam graciosamente em direção às tendas, requebrando os quadris, com seus passos leves.

Os últimos raios de sol brilharam no poente, com uma explosão torturante de cores vivas... simbolizando a paixão, a beleza, a tristeza...

A noite caiu quase repentinamente, e uma estrela isolada cintilou no firmamento.

Então, Lorna avistou três cavaleiros que se aproximavam, vindos do deserto, envoltos nas capas compridas. Os cavalos eram altos e de crinas longas e tinham freios de prata que brilhavam a luz das fogueiras.

Ela sentiu um aperto no coração. Durante segundos intermináveis, permaneceu ali, imóvel, na entrada da tenda, com o olhar fixo no cavaleiro que vinha na frente e que desmontou do cavalo com um movimento amplo. Era uma figura autoritária, mais alta que os outros dois, que estendeu a mão para acariciar o pescoço do animal suado que o transportara lealmente sob o sol abrasador. O cavalo deu um relincho e empurrou o ombro do homem com o focinho, num gesto de amizade. Onde Kasim fora? O que fizera durante as horas em que se ausentara do acampamento? Cuidava das povoações vizinhas e ditava suas leis às comunidades que dependiam de sua autoridade? Leis que ninguém discutia, decerto!

Lorna retirou-se para o interior da tenda, e, no momento seguinte, Hassan apareceu para acender as lâmpadas de óleo. Quando projetaram sua luz amarelada, a palidez do rosto dela se tornou mais visível. Os olhos azuis estavam apreensivos, e o coração batia mais depressa. Foi o orgulho que a impediu de fugir para a outra parte da tenda. Não queria fugir diante dele. Não queria lhe dar a satisfação de descobrir que ela se sentia aterrorizada com sua presença.

— Vou trazer uma limonada — disse Hassan, em voz baixa.

— Meu patrão gosta muito.

Lorna voltou-se em silêncio para o criado e teve vontade de dizer que os gostos do sheik tinham tão pouca importância para ela quanto as mariposas que voavam em torno das lâmpadas.

— Ele deve estar com sede — ela falou por fim, com voz fria. Hassan inclinou a cabeça e se afastou, deixando-a sozinha na tenda. Ela pôs as mãos nos bolsos da calça e aguardou com ansiedade a chegada de Kasim. Mal respirava, imóvel no meio da barraca como uma figura pálida e sem vida. Ouviu o tilintar das esporas, e um calafrio lhe percorreu a espinha no momento em que ele apareceu. Estava com a capa comprida jogada para trás, o forro vermelho-sangue contrastando com a brancura do manto. As botas de cano alto eram da mesma cor do forro. Parecia um rei bárbaro quando parou na entrada da barraca e lançou um olhar em sua direção.

— Demorei muito? — perguntou, com uma inflexão que fez os nervos dela vibrarem. — Sentiu minha falta?

Lorna observou-o em silêncio, com um olhar insolente.

— Gostaria que tivesse caído do cavalo e quebrado o pescoço!

— Ah, uma mulher irritada! Sinal de que se sente sozinha

— disse Kasim, em tom de zombaria.

— Queria que eu estivesse em prantos?

Ele sorriu maldosamente e atirou para longe o chicote comprido, a arma que sabia usar com tanta habilidade.

— E muito orgulhosa para chorar.

— Que pena, não?

Kasim tirou a capa e jogou-a em cima do sofá.

— Pelo contrário, isso me leva a pensar que, esta noite ou amanhã cedo, irá tentar me apunhalar de novo.

— A faca não o perfurou — disse, com desdém. — Tem o coração de pedra.

— Meu coração de pedra se compadece de você, querida, — Examinou os cabelos soltos que emolduravam o rosto pálido.

— Tive dúvidas, durante o dia, se eu não havia sonhado com esses cabelos cor de sol, com esses olhos azul-escuros, com essa boca suplicante...

Nesse instante, Hassan entrou na tenda com um jarro de limonada e dois copos grandes. O criado colocou a bandeja em cima da mesinha e perguntou ao sheik a que horas gostaria de jantar.

— Daqui a uma hora, Hassan. Prepare carneiro assado e panquecas de carne.

— O carneiro já está na brasa, sidi, e a água está esquentando para o banho a vapor.

Lorna arregalou os olhos ao ouvir as palavras do criado. Kasim vivia como um príncipe no acampamento, em pleno deserto. Até mesmo um banho a vapor era preparado para seu prazer... o prazer que sentia em manter-se perfeitamente limpo e bem vestido.

— Por favor, sirva a limonada.

— Seu criado já saiu — respondeu Lorna, ainda com as mãos nos bolsos da calça.

— Vamos, não seja desobediente, querida — falou, em tom suave, mas perigoso.

Contrariada, Lorna dirigiu-se à mesinha e serviu um copo de limonada, que vinha acompanhada de uma folhinha de hortelã.

— Agora, traga-o para mim.

— Pois não, meu senhor. — Deu a volta na mesa, caminhou na direção dele e, sem pestanejar, atirou o conteúdo do copo no rosto arrogante.

Em seguida, ficou parada, com os braços caídos ao longo do corpo, observando as gotas que escorriam pelo rosto de Kasim. Um brilho surgiu nos olhos castanhos.

— Está se sentindo melhor agora? — ele perguntou, impassível. — Muito melhor, obrigada. Mas preferia que fosse ácido...

para marcar seu rosto cruel para sempre!

— Logo você falando de crueldade?

Ele apanhou um lenço no bolso da calça e enxugou o rosto lentamente. Em seguida, antes que ela pudesse esquivar-se, deu um passo rápido em sua direção, segurou-a pelo pulso e estreitou-a nos braços. Todas as curvas do corpo de Lorna estavam coladas contra o corpo forte e musculoso.

— Por que me odeia tanto? — Kasim indagou, em voz baixa, com os lábios roçando nos dela, os olhos brilhando perigosamente, — Primeiro tentou me esfaquear, agora desperta minha fúria na esperança de que eu reaja. Seu pescoço é muito delicado para eu torcer, querida. Prefiro beijá-lo...

Assim que aqueles lábios se apoderaram de seu pescoço, ela fechou os olhos e afastou o rosto, mas não podia deixar de sentir a pressão da boca quente sobre sua nuca, seus olhos, sua testa. Lorna tremeu dos pés à cabeça quando os lábios de Kasim tocaram os seus, forçando-a a inclinar a cabeça para trás até ser consumida pelos beijos dele.

— Solte-me, solte-me! — implorou, quando conseguiu finalmente falar.

— Pronto! — ele exclamou, com um sorriso de zombaria.

— Está livre.

— Você é um monstro! — gritou, com os olhos azuis por entre os fios soltos dos cabelos loiros. — Por que não me deixa voltar para Yraa? Não direi a ninguém que estive aqui!

— Muito obrigado por sua gentileza — disse Kasim, com voz divertida, servindo-se de um copo de limonada e bebendo-o de uma vez. — Mas, na verdade, acho que tem vergonha de confessar que encontrou um homem do deserto. Quantos rapazinhos já assustou com sua frieza?

— Antipático! — exclamou Lorna, com o rosto em brasa. — Aquele ladrão de cavalos era menos insultante que você, com seus banhos a vapor, seus livros franceses, sua mãe espanhola!

— Vamos deixar minha mãe em paz — Kasim falou, com frieza. — Ela, pelo menos, tinha um coração de ouro.

— Se sou tão fria assim, por que me prende aqui? Por que não seqüestra uma mulher mais ardente?

— Uma mulher mais livre, você quer dizer? Como sabe, querida, crio cavalos e tenho uma grande paixão por essa atividade. De vez em quando, nasce um potro mais selvagem que os outros, e sinto um prazer todo especial em amansá-lo.

— Você gosta de judiar deles, isso sim!

— Somente um de meus cavalos foi maltratado por alguém, e açoitei o responsável!

— E seqüestrar moças no deserto não é um crime? Sei que, em sua opinião, um cavalo vale muito mais que uma mulher, mas não sou uma moça árabe e não suporto ser mantida presa aqui. Tenho direitos e não posso admitir isso. Não sou um objeto.

— Ainda bem que nenhuma árabe é tão lúcida quanto você, querida. Infelizmente, não penso dessa forma.

— Quer dizer que não tem intenção de me soltar? — Lorna questionou, com voz aflita, prestes a chorar. — Vai me manter presa aqui pelo resto da vida?

— Por enquanto, sim — Kasim respondeu, com indiferença. — Todo homem aprecia certas distrações no final do dia, e não sou exceção. Você é muito divertida, ma chèrie. Tem um temperamento violento que me agrada sobremaneira. Sinto apenas que seja um pouco fria para meu gosto, mas até isso, no fundo, é um desafio para mim.                                            

— Você é um homem sem coração!

— E você é uma mulher que desconhece as exigências do corpo!

— Você é um demônio! — exclamou Lorna, com os nervos à flor da pele.

— E você, o que é, com esses olhos azuis tentadores, esses lábios macios e esse corpo cheio de curvas? E uma tentação ambulante, minha cara. Ele puxou o pano da entrada e permaneceu um instante ali, voltado para ela, com o olhar insolente, arrogante.

— Onde estão as roupas que mandei você vestir?

— Para que escrava comprou aquelas roupas?

— Turqeya é minha irmã, e não uma escrava.

Ele se afastou da tenda com uma inclinação de cabeça. Lorna ouviu-o conversar com alguém do lado de fora e levou a mão ao pescoço, como se quisesse acalmar a pulsação acelerada. Kasim provavelmente recomendara ao guarda que ficava na entrada da tenda que não a deixasse fugir...

Até o momento em que se cansasse dela! Até esse dia, seria vestida e enfeitada com roupas de seda, vigiada a cada instante do dia ou da noite e teria de suportar as carícias do sheik...

Ela se refugiou no harém, e foi ali que Zahra a encontrou quando entrou, alguns minutos depois. Lorna estava tranqüila e submissa. Não protestou quando a moça lhe vestiu a túnica de veludo, com botões de pérolas que iam do pescoço ao umbigo, nem a calça turca de seda, presa por um cinto do mesmo tecido. Colocou os chinelos que tinham as pontas viradas para cima e deixou que Zahra lhe escovasse os cabelos, até ficarem brilhantes e sedosos, como o tecido do vestido.

Então Turqeya era a irmã de Kasim... Ele comprava presentes para ela, sinal de que gostava muito da irmã. Como era possível, no entanto, um homem cruel gostar de alguém? Amor, afeição, ternura indicavam a presença de um bom coração, e, na opinião de Lorna, Kasim era desprovido de qualquer sentimento humano.

— Zahra.

— Sim, lella.

— A irmã do sheik é bonita?

— A princesa Turqeya é uma boneca de ouro. Tem cílios compridos, e os cabelos negros batem na cintura. Muitos homens ricos a pediram em casamento, mas o príncipe recusou todos os pretendentes.

— O pai não se pronuncia sobre isso?

— O emir é um homem muito ocupado e não se ocupa com a filha. O príncipe Kasim é o grande orgulho do emir. Ele lhe dá inteira Uberdade de fazer o que bem entende.

— Faço idéia! — Lorna exclamou, mordendo o lábio de despeito. Mesmo diante de Zahra tinha vergonha de revelar a angústia e o medo que sentia na companhia de Kasim. Irritada com sua própria imagem, afastou-se do espelho, com um gesto de impaciência.

— A lella não está satisfeita com sua aparência? — perguntou Zahra, ansiosa. — Gostaria de ter colares no pescoço, braceletes no pulso, argolas nas orelhas?

— Não, de jeito algum — Lorna respondeu, com uma gargalhada. — Já me sinto uma odalisca sem esses enfeites. Parece até que estou fantasiada para o carnaval!

— O que é carnaval? — Zahra indagou, espantada com a moça loira que ocupava a tenda proibida do príncipe poderoso e que nunca estava contente com nada.

— O carnaval é uma festa popular, em que as pessoas vestem máscaras e fantasias. É muito semelhante à vida. Todas riem para esquecer as mágoas. Dão gargalhadas para não chorar.

— A vida é assim — disse Zahra, séria. — Não se pode modificar o destino. Está escrito!

— Essa idéia não me consola muito — falou, despedindo-se da moça.

Lorna atravessou a cortina de contas em direção à outra parte da tenda, onde Hassan servia a mesa do jantar. Kasim ainda não voltara, e o criado a seguiu com os olhos quando Lorna foi respirar o ar puro da noite e admirar as estrelas. Um vulto embuçado moveu-se entre as sombras, e ela sabia que era o guarda que a observava em silêncio, ao luar, enquanto ela aspirava os cheiros fortes que vinham do acampamento e o aroma pungente do deserto distante.

Tinha muita vontade de poder contemplar sossegadamente aquela bela paisagem, mas voltou para a tenda com um suspiro. Zahra e Hassan tinham partido. Na mesa baixa, defronte do sofá, havia uma travessa redonda, com uma tampa. Uma garrafa de vinho francês fora aberta para acompanhar a refeição, e Lorna surpreendeu-se, mais uma vez, com o gosto requintado de Kasim.

Sentiu uma contração no estômago quando ele entrou na tenda. Parecia mais animado depois do banho a vapor. Vestia uma túnica de linho aberta no peito. A presença dele era tão marcante que ocupava todos os pensamentos de Lorna. Parecia um animal perigoso e fascinante, que criava um ambiente tenso a sua volta.

Caminhando sobre o tapete, ele se aproximou dela e segurou-a pelas mãos. Sob seu olhar avaliativo, Lorna sentiu-se ainda mais assustada.

— O destino quis que fosse bela — disse, beijando-a na ponta dos dedos, à maneira francesa. — Sorria para mim.

Ela estava imóvel, inanimada, como uma estátua, fria e sem vida, mas o coração batia rapidamente no peito.

— Não sabe sorrir?

— Só as pessoas felizes sorriem.

— E você não se sente feliz, quando alguém elogia sua beleza, minha Dinarzade? — O sorriso irônico traçou uma linha funda no rosto bronzeado. — Dinarzade era a jovem que não sabia nada a respeito do amor. Era muito inocente, a pobrezinha.

Você naturalmente preferiria que eu fosse Scherazade! Ou já se enjoou de todas as que conheceu? Kasim limitou-se a rir. — Vamos jantar. É minha convidada de honra. Andei o dia inteiro e estou com muita fome.

Dirigiram-se ao sofá, onde Kasim reclinou-se com a graça de um leopardo e descobriu a travessa de carneiro assado, que tinha um cheiro apetitoso de ervas aromáticas. Os talheres estavam postos diante de Lorna. Como no jantar da noite anterior, ele a observou com atenção, como se achasse graça em sua maneira de comer com garfo e faca.

— Vivi mais tempo no deserto que na cidade e conservo os hábitos dos beduínos, embora beba vinho.

— Eu me admiro que não se lambuze todo quando come — disse Lorna, tomando um pouco de vinho francês.

—E muito bom comer com as mãos... Por que não experimenta?

— Não, muito obrigada. — Meneou a cabeça com vivacidade e evitou seu olhar.

Ela estava muito consciente da masculinidade dele. A pele tinha cor de bronze, à luz da lâmpada. Seus olhos a contemplavam com indolência, entre os cílios espessos.

— Em que está pensando, querida? — perguntou, ao mergulhar os dedos na salva de prata para lavá-los.

— Nem pensar eu posso?

— Claro que sim. Se bem que leio facilmente seus pensamentos. — Fitou-a com um sorriso irônico no canto dos lábios e, depois, dobrou uma panqueca e deu uma mordida. — Prove esta panqueca. Está divina.

— Já comi bastante — Lorna falou, mergulhando os dedos na lavanda. — Não andei a cavalo hoje de manhã e não estou com muito apetite. Por falar nisso, quando saí um pouquinho da tenda, um de seus guardas me seguiu, como uma sombra.

— Que horror! Vou chamar a atenção dele. — Voltou-se para ela. — Gostaria de dar um passeio a cavalo?

— Por que pergunta? Vai permitir?

Havia uma nota de ansiedade nas palavras dela que o fez sorrir.

— Se vou permitir? — ele repetiu, mirando-a com atenção. Os olhos azuis estavam cor de violeta à luz da lâmpada de óleo. — Posso deixá-la fazer muitas coisas, querida, mas não vou permitir que fuja de mim.

— Ah, eu gostaria tanto de dar um passeio a cavalo! — Lorna exclamou, com olhos suplicantes.

— Você vai dar — Kasim afirmou, com um sorriso, ao vê-la ajeitar-se nas almofadas do sofá.

 

— Há uma selvageria em minhas terras que você precisa conhecer — prosseguiu Kasim. — Vamos sair juntos amanhã, e, nos outros dias, quando eu não estiver no acampamento, poderá passear com um de meus homens. Agora você sabe que é perigoso andar sozinha no deserto e não preciso mais lembrar...

— Você sabe que eu fugiria de novo! Se tiver oportunidade, vou fugir daqui, ainda que morra no meio do deserto!

— Que ameaça dramática! — Kasim exclamou, acariciando a pele macia do rosto dela. — Prefere sofrer os tormentos do calor e da sede a me fazer companhia? Lembre-se de que estamos a muitos quilômetros de Yraa.

— Você não se preocupa com minha família? Gostaria de ver sua irmã numa situação semelhante?

— Turqeya não anda sozinha no deserto. Ela não é louca a esse ponto. Ela tem a sabedoria do Oriente nas veias.

— Talvez Turqeya seja bem-comportada porque julga todos os homens por você. E fui imprudente porque julguei todos os homens por meu pai. Ele era muito bondoso e delicado comigo.

— Era? Seu pai não vive mais?

Lorna apertou a almofada com nervosismo... Deixara transparecer sem querer que o pai morrera e que não podia preocupar-se com ela.

— Não se importa em ser odiado por mim?

— Eu me importaria se você se mostrasse indiferente. — Ele segurou a mão de Lorna que apertava com força a almofada. — O ódio é uma emoção curiosa. Prefiro isso ao amor fingido e interesseiro. Há mulheres que pensam somente em si mesmas...

— Você, pelo jeito, é um especialista no assunto! — exclamou Lorna, furiosa, tentando soltar-se.

— Eu não diria isso. — Havia um sorriso em seus lábios quando Kasim balançou uma sineta de bronze que estava em cima da mesa. No instante seguinte, Hassan apareceu com a bandeja do café.

— A lella vai servir o café — disse Kasim para o criado. Hassan inclinou a cabeça e retirou-se em silêncio, Lorna lançou um olhar cheio de ressentimento para o homem a seu lado. Com um suspiro de resignação, segurou o bule de café. Kasim reclinou-se sobre as almofadas, os olhos fixos no rosto dela, desafiando-a em silêncio a repetir com a xícara de café o que fizera com a limonada.

Lorna abaixou a cabeça e serviu o café nas duas xícaras de porcelana.

— Gosta de nossa cozinha? — ele perguntou, recebendo a xícara da mão dela.

— Foi uma surpresa para mim.

Tomar o café, escuro e aromático, reclinada ao lado de Kasim, no sofá, era uma intimidade inquietante. A noite havia descido como um manto sobre o acampamento, abafando o burburinho que vinha de fora. As mariposas voavam em torno das lâmpadas, até encontrar um fim repentino.

Ela bebeu o café rapidamente e levantou-se, nervosa, do sofá. Andou de um lado para o outro da sala, tocando nos objetos, apalpando as tapeçarias, procurando deliberadamente evitar os olhos castanhos que a seguiam. Seus nervos se contraíram quando ele perguntou, com voz insinuante:

— Por que não fuma um cigarro? Ajuda a passar o nervosismo.

— Meus nervos estão bem. Foi até a porta da tenda e abriu o pano, desejando poder escapar da atmosfera íntima durante alguns minutos.

Estremeceu quando Kasim aproximou-se e parou atrás dela.

— Você está inquieta. Gostaria de dar um passeio lá fora, até a beira do oásis?

— Ah, gostaria muito! — exclamou, dando um passo à frente.

— Espere. A noite está fria. É melhor pôr um agasalho. Ele apanhou a capa comprida, forrada de vermelho, e passou-a em volta do corpo de Lorna.

— Pronto, agora está vestida de novo como um rapazinho encantador — acrescentou, ajudando-a a prender a capa na frente do peito.

No meio do acampamento, havia homens sentados em volta das fogueiras, ouvindo a música de um instrumento de cordas, o lamento obsessivo e gutural que se fundia com as formas pretas das barracas e dos camelos deitados, com os pescoços esticados sobre a areia.

Os homens inclinaram a cabeça quando os dois passaram diante das fogueiras, mas não olharam fixamente para o vulto envolto na capa, em sinal de respeito pela convidada do sheik.

A música triste ficou para trás. As palmeiras balançavam lentamente as folhas compridas, e, quando chegaram às areias finas, Lorna tinha a impressão de caminhar num leito de algodão. Sombras violeta se formavam nas ondulações das dunas, e as estrelas pareciam faíscas prateadas no céu. O ar estava frio e puro. Sombra e mistério, uma imensidão que tranqüilizou os nervos tensos de Lorna, grata por estar apreciando a magia do deserto ao luar.

— O deserto é como uma mulher — murmurou Kasim. — Sedutor e desafiante, repleto de profundidades nas quais os homens podem se perder para sempre. Eu o conheço em todos os seus momentos, mas cada dia sua imensidão me oferece alguma novidade. Um desafio, com um certo tormento da alma. Depois vem a carícia da noite ou da lua crescente... a garra da amante.

O vento soprava entre os espaços ilimitados. Lorna olhou de relance para o homem a seu lado e viu o perfil aquilino traçado ao luar. Ele era parte de tudo aquilo, como os falcões e os gatos selvagens que se escondiam entre as rochas.

— Está ouvindo o chamado do deserto?

— Estou fascinada com tudo isso. Se bem que essa vastidão me assusta às vezes... Tenho a impressão de contemplar a eternidade...

— Ah, estou vendo que já foi contagiada pelo deserto. Vamos dar um passeio amanhã cedo. Quando conhecer o deserto de madrugada, ficará fascinada.

— Já estou encantada sem isso — Lorna sussurrou, apertando a capa em volta do corpo quando a brisa da noite soprou seus cabelos soltos.

Ele a observou com atenção, os cabelos dourados, os olhos violeta da cor do jasmim, o rosto muito branco ao luar. Enlaçou-a com delicadeza, e os dedos dela tocaram seu peito descoberto.

— O deserto do amor — Kasim disse, com um sorriso irônico, enquanto ela tentava se libertar de seus braços. — Vamos, não seja rebelde. Não pode resistir a mim.

— Quando me deixará partir?

— Tão cedo? Faz apenas uma noite que você está aqui — ele falou, beijando-a nos lábios. Era cruel e carinhoso ao mesmo tempo. — Você é fria como a neve — murmurou, junto a seu ouvido. — Um dia o deserto vai derreter esse gelo...

— Antes o deserto que você! — exclamou Lorna, procurando afastar-se, mas ele a segurou pelo queixo e a obrigou a submeter-se a seus olhos intensos.

— Você olha para mim como se eu fosse devorá-la... Kasim inclinou a cabeça para a frente e fechou os olhos dela com beijos. Depois, ergueu-a nos braços e carregou-a de volta para a tenda, passando entre as palmeiras graciosas, as barracas escuras e as fogueiras acesas.

O tempo possuía uma qualidade diferente no deserto. Fluía sem o movimento dos relógios e sem os sinais de agitação característicos da cidade. Os beduínos sabiam as horas pela posição do sol e levavam uma vida tranqüila.

No início, Lorna contou os dias de seu cativeiro, mas logo perdeu a conta. Durante esse período, ela descobriu que o domínio de Kasim sobre as tribos vizinhas era absoluto. Uma liderança que se baseava na firmeza da vontade, na personalidade magnética e no interesse constante pela vida de todos. Às vezes, surgiam brigas de família, e Kasim intervinha antes que a situação se agravasse. Numa ocasião, um homem foi procurá-lo para queixar-se da filha, que era desobediente e rebelde. Kasim conversou a sós com a moça e arrumou um marido para ela entre seus homens.

Lorna ficou perplexa quando soube do ocorrido.

— Os dois mal se conheciam...

— Ela precisava de um marido — disse Kasim calmamente. — Logo vai se curar de sua rebeldia e tornar-se uma esposa exemplar.

— Você é um tirano insuportável! — Lorna exclamou, batendo com o leque numa vespa. — Trata as mulheres como criaturas sem vontade própria.

— A mulher tem de ser domada, como um potro selvagem. Deve sentir a tensão das rédeas, para não perder a cabeça. — Ele se reclinou no sofá e estendeu as pernas. A fumaça do cigarro formava nuvens no ar parado da tenda.

— Depois vem o chicote...

— Não aprendeu nada nessas semanas que passou aqui? A mulher verdadeira gosta de sentir que é dominada. Ela aprecia o temor que o homem lhe inspira. As mulheres são criaturas misteriosas, minha querida, embora haja homens que morrem de medo do sexo frágil. Você, por sinal, conheceu um desses homens e foi por isso que se tornou tão arrogante...

— Eu, arrogante? — Lorna indagou, boquiaberta. — Como se você tivesse motivo para dizer isso. Domina a vida de centenas de pessoas, governa suas famílias, casa as moças com homens que mal conhecem e depois vem me acusar de arrogância?

— Você seria menos excitante se não fosse rebelde e orgulhosa... Mas tem de admitir que nunca lhe judiei, nem ofendi seu orgulho.

Lorna foi até a entrada da tenda e contemplou, por um instante, a atividade do acampamento, sempre mais visível quando o sheik estava presente. Como Kasim tinha a coragem de acusá-la de arrogante? Ela nunca conhecera ninguém mais antipático e convencido do que ele!

Apertou as mãos com raiva, ao pensar nas coisas que soubera dele durante as semanas passadas no acampamento. Os homens morriam de medo de Kasim, embora fosse extremamente carinhoso com as crianças e com os animais. Essa atitude ambígua deixava-a inteiramente confusa. Não sabia o que pensar. Às vezes, Lorna o admirava. Em outras, morria de ódio.

Absorta nesses pensamentos, não o ouviu se aproximar. De repente, sentiu um braço em volta de sua cintura.

— Ainda me odeia muito? — Kasim sussurrou no ouvido dela.

— O que acha?

Quando ele a segurava, não havia maneira de soltar-se, mas podia peio menos enfrentá-lo com as palavras. Ela demonstrava a cada instante que suas carícias lhe eram odiosas.

— O que me aconselha fazer? — indagou, com um sorriso, beijando-a na nuca. — Pôr todos os meus crimes nas costas de um bode e enxotá-lo para o deserto, a fim de expiar minhas culpas?

— Um bode só não bastaria...

Kasim riu e virou-a de frente para ele. Seus olhos castanhos fitaram com admiração os cabelos cor de sol, a curva delicada da boca e a pele macia.

— As palavras não ferem. Posso silenciá-las com um beijo. Segurou-a pela cintura e beijou-a na boca. O beijo tinha gosto de tabaco turco, e a proximidade dele ardia no corpo de Lorna como uma chama.

— Vou visitar o acampamento de um amigo meu amanhã cedo. Você pode me acompanhar por uma parte do caminho... Prometeu comportar-se bem enquanto eu estivesse fora, está lembrada?

— Seu guarda é muito esperto e não se deixa enganar. Ele tem muito medo de você.

— Meus homens sabem que eu não gostaria de perdê-la. Kasim soltou-a e caminhou até a escrivaninha no canto da tenda. Sentou-se no banquinho e começou a escrever num livro grande, encadernado com couro. Lorna observou-o em silêncio, vendo a pena traçar as letras árabes que faziam de cada página uma obra de arte. Ele também era um desenhista talentoso e fazia muitos esboços com carvão de seus cavalos prediletos. O que seu pai acharia dos trabalhos dele?, Lorna indagou-se em pensamento. Ela não falava nunca do pai com Kasim. Recusava-se a confiar a um estranho às lembranças que lhe eram tão preciosas. Quando Kasim desviou a atenção do papel e fitou-a, Lorna afastou os olhos e foi apanhar um livro na estante, um exemplar de A Taça de Prata, a história de Cadiz, a cidade espanhola onde a mãe dele nascera e passara sua infância. A assinatura dela estava no livro. Seu nome era Elena.

Lorna sentou-se no tapete e procurou distrair-se com a leitura do livro, mas a presença de Kasim impedia sua concentração. De soslaio, ela observava o contorno do corpo musculoso por baixo da túnica branca de linho. Quando ele a deixaria partir?

Tinha receio de perguntar... Tinha medo de ouvir a resposta. Loma percebera que Kasim, como muitos príncipes árabes, levava uma vida solitária. Não podia perder sua autoridade misturando-se com os homens do acampamento. Descansava, na intimidade da tenda, das preocupações e dos trabalhos do dia, e sentia prazer na companhia dela. Como se adivinhasse seus pensamentos, Kasim falou, colocando a pena no tinteiro de estanho:

— Você deve se dar por feliz de não estar no harém de um sheik tradicional... com quatro esposas e uma dúzia de amantes.

— Ah, é?

— Sou um homem moderno, minha querida. Só tenho você em meu harém, o que surpreende muito meus homens.

— E as mulheres que guarda no palácio?

— Infelizmente, o palácio está vazio.

— Você se enjoou de suas mulheres?

— Se está querendo saber se vou me enjoar de você, a resposta é não — respondeu, com um sorriso. — Já imaginou dividir minha companhia com outras mulheres?

— Seria um sossego — Lorna murmurou, com os olhos afastados dos ombros largos, do perfil aquilino, dos cabelos negros que ficavam azulados à luz da lâmpada de óleo. — Por que não arruma outras mulheres para distraí-lo?

— Mal tenho tempo para me ocupar de uma!

— Como se elas fossem sentir sua falta!

— Claro que sim. A mulher sente saudade quando o homem que ela gosta se ausenta, ainda que seja por algumas horas.

— Pois eu daria graças a Deus!

— Você é ingrata — Kasim falou, voltando a escrever no livro grande.

Pouco depois, enquanto Lorna meditava sobre a personalidade complexa do sheik, ouviu gritos e vozes que vinham do lado de fora da tenda.

— Veja o que está acontecendo — Kasim ordenou, sem levantar a cabeça do papel.

Ela abriu o pano da entrada e avistou Ahmed, o homem que a acompanhava pelo acampamento. Ao ver o chefe ocupado na escrivaninha, Ahmed iniciou um falatório animado, incompreensível para Lorna. Kasim, porém, levantou-se imediatamente, com um brilho de alegria nos olhos.

— Venha comigo — pediu, segurando-a pela mão. — O amigo que vou visitar amanhã mandou-me um presente. Vamos ver o que é.

Os homens do acampamento já estavam habituados com a presença de Lorna e a cumprimentaram com sorrisos e exclamações de alegria, enquanto as crianças corriam a seu encontro para ganhar as balas que ela levava no bolso.

O grupo abriu passagem para o sheik, que se aproximou do meio do acampamento, onde dois homens seguravam pelo cabresto o potro mais bonito que Lorna já vira na vida. Tinha o pêlo avermelhado e a crina muito comprida, que faiscava a luz do sol. Era muito fogoso e irrequieto, e não parava de dar coices nos homens que o seguravam.

— Que animal lindo! — exclamou Kasim, encantado coro a beleza do potro castanho.

Ele caminhou a passos largos em direção ao animal, e todas as pessoas que estavam em volta, presenciando a cena, emudeceram repentinamente. Lorna estava com as duas mãos na cintura, em parte por excitação diante do espetáculo, em parte também por apreensão. Sabia que Kasim iria montar no potro, que ainda não fora domado.

Ele segurou o cabresto, e os dois árabes recuaram alguns passos, deixando-o sozinho no meio do acampamento. Kasim falou em voz baixa com o animal, procurando ganhar sua confiança e obrigou-o a virar a cabeça em direção ao sol, para que não se assustasse com nenhuma sombra no chão. O potro empinou, relinchou, saltou para o lado, mas foi dominado por um forte puxão do cabresto. No instante seguinte, Kasim saltou no lombo do animal, que tornou a saltar, corcovear, empinar, movimentando as patas no ar e relinchando tão alto que assustou os cavalos no cercado.

Lorna acompanhou a cena com ansiedade, vendo Kasim demonstrar sua perícia contra a violência do animal selvagem. Ele mantinha o potro constantemente com a cabeça voltada para o sol e apertava os calcanhares em sua barriga, enquanto o animal saltava de um lado para o outro, tentando derrubá-lo no chão. Era um combate de duas forças em jogo, e os dentes brancos do cavaleiro brilhavam no rosto moreno toda vez que o animal tentava derrubá-lo com um corcovo repentino. A partida, porém, estava ganha, e o potro tinha de reconhecer a força superior do cavaleiro, mesmo que a luta continuasse durante toda a noite! Tanto o cavalo quanto o cavaleiro estavam cobertos de suor quando, inesperadamente, o potro resfolegou alto, sacudiu o pescoço e parou, exausto, no meio da nuvem de poeira que se levantara do solo. Com uma risada, Kasim pulou no chão e fez uma das coisas mais emocionantes que Lorna já presenciara... Segurou a cabeça do animal entre as mãos e olhou fixamente para os olhos saltados. O potro poderia tê-lo mordido, desfigurando seu rosto... Mas, em vez disso, abanou as orelhas, balançou a crina e, com um movimento do focinho, quase deslocou o ombro de seu dono.

Um grito de aclamação elevou-se do grupo que assistia ao espetáculo. Os rostos morenos se iluminaram num sorriso de alegria. O chefe havia feito amizade com o potro alazão!

Depois que o animal foi levado para o cercado, enquanto os homens discutiam em voz alta os lances do rodeio, Lorna caminhou, sem ser vista, em direção ao oásis, onde se apoiou numa palmeira para acalmar sua respiração ofegante.

Kasim não fizera aquilo para exibir-se. Nem fora por arrogância que aproximara o rosto da cabeça do animal. Ele simplesmente dominara o potro com sua força, e o animal selvagem compreendera isso... submetera-se à magia estranha que emanava daquele homem dominador.

Lorna permaneceu alguns minutos sob a palmeira, banhada pela luz avermelhada do sol poente. Subitamente, um tremor a sacudiu da cabeça aos pés. Não se sentia tão ansiosa assim desde a primeira noite, quando fora arrastada à força para o acampamento! Kasim tinha força, energia, beleza física que levavam as pessoas a adorarem-no... Mas ela só sentia ódio por ele!

 

Na grande tenda, depois do jantar, Lorna parecia fascinada pela bela figura do sheik. O prazer de ter sido presenteado com o potro alazão brilhava nos olhos castanhos, e havia um sorriso de indulgência em sua fisionomia quando ele se dirigiu a ela.

— Eu também tenho um presente para você — disse Kasim, aproximando-se.

Lorna desviou os olhos da revista francesa que estava lendo e viu na mão dele um colar comprido de pérolas.

— Venha cá. Deixe a revista de lado e ponha este colar. Aquela era a primeira vez que Kasim a presenteava com uma jóia, embora houvesse ocasiões em que ele acariciava o lóbulo de suas orelhas e o pescoço delicado como se desejasse vê-los cobertos de pedras preciosas.

— Não uso colares — Lorna falou, com nervosismo. — Sinto-me esquisita com jóias no pescoço.

Os olhos dele a examinavam. A túnica de veludo e a calça de seda tornavam-na ainda mais atraente. Como não se acostumara a andar com chinelos de bico levantado, os pés estavam descalços sobre o tapete macio, onde ela estava reclinada lendo a revista.

— Quero vê-la com este colar! — repetiu Kasim, em voz alta, e o cachorro que estava deitado a seus pés levantou a cabeça, assustado.

— E o que pretende fazer? Vai passar uma corda em volta de meu pescoço para me puxar como se eu fosse um cavalo? — Lorna indagou.

— Uma corda de pérolas, querida. Você prefere que Fedjr vá apanhá-la? Ele pode confundi-la com uma gazela...

— Antipático! — exclamou Lorna, jogando a revista no chão e caminhando na direção de Kasim.

Ela parou como uma estátua diante do sofá, mas foi puxada para baixo e forçada a suportar o contato das mãos dele, enquanto Kasim colocava o colar de pérolas em seu pescoço. As pérolas tinham o lustro de cetim.

— Pedras cultivadas? — murmurou Lorna, com insolência.

— Um dia irá se arrepender de seu pouco caso, minha cara. Cada uma destas pérolas daria para alimentar uma família árabe durante meses.

— Então por que não dá o colar para essas famílias pobres? — replicou Lorna, fazendo menção de retirar o colar as mãos dele, porém, seguraram imediatamente seu braço no ar. O olhar divertido desapareceu dos olhos castanhos, que brilhavam com a ferocidade de um leopardo.

— Se você tirar o colar, vai se arrepender — sussurrou entre os dentes. — É um presente meu para você, e irá me insultar recusando-se a usá-lo.

Ela também estava tensa de raiva, enquanto os dedos dele apertavam cruelmente seu braço.

— Você é realmente insuportável! Todos têm de fazer sua vontade!

— Exatamente. Acha que daria a minha escrava um colar de contas?

— Não me chame assim! — Lorna gritou, fora de si, como se estivesse sufocada pelo colar em seu pescoço.

— Por que não? Você não é minha escrava?

— Você me fez ser, e eu o odeio por isso!

— O mel atrai a abelha. A chama, a mariposa. A mulher bela, a cobiça do homem. Conheço muitas mulheres que ficariam encantadas em ser amarradas com colares de pérolas.

— Não sou como as outras mulheres!

Os lábios dela tremeram quando olhou para as pérolas e perguntou a si mesma de que pescoço aquele colar fora arrancado. O desenho era muito antigo. Era tão comprido que poderia passá-lo em volta dos cabelos, do pescoço, inclusive da cintura.

— Não, realmente você não é como as outras mulheres. Muitas exibem seus encantos à primeira vista. Mas estou descobrindo-a lentamente, arrancando uma a uma as pérolas de seu coração secreto. — Tocou no peito dela e correu os dedos vibrantes pelo pescoço.

Lorna levantou o braço para defender-se de seu contato, e então Kasim enxergou a mancha azulada na pele clara.

— Fui eu que fiz isso?

— Quem mais poderia ser?

— Você se fere facilmente, como uma flor. — Ele deu um beijo na mancha azulada. — Vou apagá-la com uma pulseira.

Kasim levantou-se e apanhou uma caixinha de madeira, onde estava um bracelete largo de ouro, incrustado de pedras azuis.

— São lápis-lazúlis — ele murmurou, colocando o bracelete no braço de Lorna.

Examinou-a com atenção, vestida de seda e com as jóias das mulheres orientais.

— Há um ditado que diz que a rosa se recorda da terra onde nasceu — murmurou Kasim no ouvido dela. — Nós todos somos primitivos por natureza, inclusive você, com essa pele clara e esses olhos azuis...

Ela sentiu o contato leve da mão dele sobre a seda que a cobria. Os olhos castanhos estavam mergulhados nos seus, ardentes como o fogo do deserto que sua frieza não podia apagar.

— E uma pena que seja uma mulher tão fria, posso avivar sua chama, amiga?

Era a primeira vez que Kasim empregava essa palavra carinhosa, dita em espanhol. Com o rosto próximo ao dela, fitou-a com desejo, enquanto um sorriso brincava na boca, ao mesmo tempo, apaixonada e cruel. Lorna nunca tocara nele espontaneamente e foi assaltada pela vontade repentina de tocar no rosto moreno que parecia uma escultura de bronze. Fechou os olhos para não enxergar a cabeça altiva que estava debruçada sobre ela, sentindo-se traída pelo desejo que a dominava também. No instante seguinte, os lábios dele pousaram sobre seus olhos. Ela o ouviu murmurar palavras de ternura em francês e estremeceu sob o abraço apertado.

— Vou verificar se guardaram meu potro para a noite — disse Kasim bruscamente, levantando-se do sofá. — Gostou do presente que ganhei? Poderá andar nele quando estiver mais manso. Vocês. dois combinam muito bem... ambos são rebeldes e odeiam obedecer — acrescentou com um sorriso, afastando-se da tenda.

Algumas estrelas ainda brilhavam no céu quando Kasim e sua comitiva se prepararam para partir em viagem, na manhã seguinte. As palmeiras do oásis estavam escuras e imóveis sob o céu da madrugada.

Lorna estava agasalhada com uma capa comprida de montaria e caminhava ao lado de Kasim, alguns passos na frente dos outros cavaleiros. Ao cavalgar pelo deserto sombrio, ela estremeceu com um arrepio de frio. Não era a primeira vez que passeava a cavalo de madrugada com Kasim, mas nesse dia daria adeus a ele... talvez para sempre.

Kasim estava muito absorto na contemplação do deserto que se estendia a sua frente para notar que, naquele momento, os olhos dela estavam cor de violeta por baixo do capuz. Ahmed cavalgava entre os cavaleiros embuçados que iam atrás. Ele fora encarregado de acompanhar Lorna de volta ao acampamento, e era de sua vigilância que ela pretendia fugir. Tinha um plano que poria em execução no momento oportuno. No dia seguinte, diria que estava com febre e que não tinha disposição para levantar-se da cama. À tarde, no momento em que todos se recolhiam para a sesta, abriria a parte detrás de sua tenda com a tesoura que guardara consigo e fugiria no primeiro cavalo que encontrasse livre. Agora, estava acostumada aos cavalos árabes, ariscos e velozes como o vento, e tinha a esperança de fugir para sempre do homem que a mantinha presa... que a tratava como uma escrava.

— Você está muito calada — Kasim disse, em dado momento. — O que está planejando?

O coração dela disparou dentro do peito. Ele tinha o dom de ler seu pensamento, de invadir a intimidade que ela tanto preservava.

— O nascer do dia no deserto sempre me deixa pensativa. É tão misterioso... Talvez tenha sido assim que Adão e Eva viram o mundo pela primeira vez.

— O deserto é eternamente o mesmo, mas nunca enjoa. Nisso ele se parece com algumas mulheres... Vai sentir falta de mim?

— Deseja ouvir uma resposta sincera?

— Não — respondeu, com um risinho. — Sei que não sofre por mim... E você, não tem curiosidade de saber se vou sentir sua falta?

— Seu amigo Kaid lhe oferecerá distrações que são muito mais de seu agrado. Você não é um homem de emoções, é um homem de ação. Para você, sou uma criatura que deve ser domesticada. Depois de conseguir abaixar minha cabeça...

— Sabe muito bem por que a guardo comigo — Kasim interrompeu-a. — Com esse manto branco, você se parece com o nascer do dia... Veja como ele surge lentamente, banhando a areia de um tom avermelhado...

A visão era realmente sublime. O sol nascente parecia uma bola de fogo no horizonte, lançando um clarão avermelhado que acentuava as ondulações do terreno e projetava sombras violáceas sobre as partes mais escuras. As estrelas haviam desaparecido do céu, com exceção de uma.

Os olhos de Lorna brilharam. Lembrou-se de que seu pai costumava pintar aquela mesma paisagem durante os anos em que morara no deserto. A lembrança foi tão viva que ela deu, sem querer, um suspiro profundo.

— O que foi? — perguntou Kasim, voltando-se na sela.

— Estava pensando como seria bom tomar café em minha casa!

— Você é uma graça! — disse ele, com uma risada alta. Kasim levantou a mão, e todos os cavaleiros pararam. O sheik informou que iriam descansar durante uma hora e apontou para algumas rochas próximas dali, esculpidas pelo vento em formas curiosas.

— A lella deseja tomar café no deserto — ele explicou a sua comitiva.

Os outros olharam, surpresos, para o chefe. Normalmente, não costumavam descansar antes do meio-dia, e Lorna notou que estavam contentes e agradecidos com a sugestão dela. Mais de uma vez, ela ouvira o comentário dos homens de que o sheik estava "enfeitiçado" pela moça de cabelos cor de ouro.

Ela acompanhou Kasim com o olhar enquanto galopavam em direção às rochas e lembrou-se confusamente de alguns episódios ocorridos durante sua permanência no deserto. Kasim, às vezes, era um homem encantador, gostava de conversar, de jogar xadrez e de brincar com os cachorros na tenda, sem falar que adorava as crianças e que aparecia muitas vezes com um garotinho sentado sobre seus ombros...

— Também estou com fome — disse ele de repente, interrompendo os pensamentos de Lorna. — É o ar do deserto...

Quando chegaram ao morro de pedras, todos desmontaram e juntaram galhos secos de tamarindo para fazer uma fogueira. Um dos homens retirou uma frigideira das bagagens e assou costeletas de cabrito na fogueira. Um outro, enquanto isso, esquentava água para fazer café.

Kasim reclinou-se numa pedra a uma pequena distância do acampamento improvisado. Com a túnica branca, o turbante e a capa comprida jogada para trás, sobre os ombros, representava uma figura típica do deserto.

Lorna sentiu o cheiro apetitoso da carne assada e o aroma penetrante que vinha do areal. As dunas que se estendiam a perder de vista, o ilimitado céu azul e o homem alto apoiado contra a pedra fundiam-se na paisagem e criavam um quadro colorido, que ela lembraria sempre.

Atirou o chicote no chão e olhou atentamente para a forma escura e contorcida que saía lentamente de um buraco, na pedra onde Kasim estava reclinado, fumando distraidamente um cigarro. Ele não vira o animal que se arrastava a seu lado e que Lorna identificou corretamente como sendo um escorpião, cuja mordida poderia ser mortal.

O veneno do animal poderia libertá-la para sempre, pensou no primeiro instante. Toda a energia e a vitalidade seriam drenadas daquele corpo esplêndido pela picada do animal.

— Kasim! — gritou, chamando-o pela primeira vez, desde que estava no acampamento, pelo nome. — Um escorpião está se arrastando a seu lado!

Ele viu o animal no mesmo instante e atirou o cigarro aceso em cima do escorpião. O bicho escuro caiu no chão e foi pisado pelo sheik até ficar completamente esmigalhado. Mesmo em sua agonia mortal, a picada de escorpião poderia causar uma dor lancinante.

Kasim ergueu a cabeça lentamente e encarou-a por um momento, em silêncio.

— Por que me avisou? — perguntou por fim. — Esse bicho poderia me matar mais rapidamente que o punhal que você levantou contra mim.

— Não desejo essa morte a meu maior inimigo.

— Seu maior inimigo agradece, comovido. — Aproximou-se dela com dois passos largos e segurou-a pelos braços.

O incidente do escorpião não fora notado pelos homens, que estavam entretidos em volta da fogueira, mas muitos pares de olhos se voltaram para Kasim e Lorna, surpresos, quando ouviram o grito dela.

— Solte-me!

O bule de café caiu das mãos do árabe que o segurava em cima do fogo. Ninguém desobedecia a um desejo do príncipe, muito menos uma simples mulher! Naquele momento, porém, o sheik aceitou a rejeição e deu um sorriso irônico de resignação.

Depois de tomarem café e comerem as costeletas de cabrito, Kasim anunciou que iria continuar com sua comitiva. Ahmed levaria Lorna de volta para o acampamento.

— Você me prometeu que não tentará fugir — o príncipe lembrou-a, antes da despedida. — Não sabe andar sozinha nesses lugares perigosos, e tudo pode acontecer.

— Pois não, meu senhor — murmurou Lorna, com o rosto impassível.

— Não seja tola! — ele a repreendeu, com impaciência. — Se você não reiterar sua promessa, vou ser obrigado a levá-la comigo, e não gostará de ser trancada com outras mulheres, enquanto eu estiver caçando com meu amigo. Vamos, escolha!

— Está bem. Prometo que vou me comportar.

— Tenho minhas dúvidas — disse Kasim, erguendo o queixo dela e fitando-a demoradamente nos olhos. — Você é muito impulsiva...

— Aprendi que sua vontade é lei. Ou quer exibir sua escrava na casa de seu amigo?

— Não me faça perder a paciência! — exclamou, agora apertando com força o pulso de Lorna. — Há um momento, você salvou minha vida, e eu lhe sou grato por isso. Volte com Ahmed. Passeie com ele por onde desejar. O resto é com o destino.

Ele se afastou alguns passos e ajeitou as dobras da capa. Sua fisionomia estava tranqüila, como se a raiva momentânea houvesse cedido lugar à resignação. Os homens do deserto acreditavam piamente no destino, e Kasim não era exceção.

Deu o sinal de partida para os membros da comitiva e montou em seu cavalo. Percorreu com o olhar a vastidão de areia, um oceano ondulante que se estendia a perder de vista.

— O deserto não é sempre calmo assim — ele falou para Lorna. — Muitas vezes este sossego é sinal de tempestade.

— Será? Ele me parece maravilhoso no momento...

— As coisas boas sempre têm um elemento de perigo. — Os olhos castanhos a fitaram. — Adeus, não faça nenhuma loucura!

Cavalgou para longe, sem olhar para trás, deixando-a aos cuidados de Ahmed. As capas compridas esvoaçavam sobre o lombo dos animais, e uma nuvem amarelada acompanhou a

partida dos cavaleiros.

— Vamos! — disse Lorna para Ahmed, que a observava com o rosto sombrio, como se não estivesse satisfeito com a incumbência de acompanhá-la de volta ao acampamento.

 

Ao leve toque dos calcanhares, o cavalo de Lorna partiu a galope, mas o tordilho de Ahmed não ficou para trás, e os dois mantinham uma pequena distância quando entraram no acampamento e estancaram os animais diante da grande tenda do sheik.

Lorna desmontou primeiro e retirou o capuz da cabeça. Os cabelos soltos brilharam ao sol quente do meio-dia.

— Por favor, Ahmed, leve meu cavalo para o cercado. Estou um pouco cansada.

Quando Hassan surgiu na entrada da tenda, ela exclamou:

— Como está quente, meu Deus! — Levou a mão ã testa. — Espero que eu não esteja com febre...

Entrou na tenda com a cabeça baixa, e Hassan a seguiu com a fisionomia preocupada.

— A lella deseja tomar alguma coisa?

— Não, muito obrigada, Hassan. — Deixou-se cair no sofá e reclinou a cabeça na almofada. — Logo vou estar melhor. Acho que tomei sol demais.

— Um médico chegou de Sidi Kebir esta manhã. Ele não sabia que o príncipe havia viajado. A moça deseja consultá-lo?

— Um médico? — repetiu Lorna, espantada. — Um médico francês?

— Não, um médico árabe. Ele mora em Sidi Kebir, onde o pai do príncipe é o emir. Ele vem aqui de tempos em tempos para tratar dos doentes.

Lorna olhou para a ponta da bota afundada no tapete espesso. Inventara que estava com febre e ficou momentaneamente embaraçada com a sugestão de consultar o médico. Talvez ele não soubesse que uma moça inglesa estava hospedada ali e achou preferível não o ver. Além disso, não estava preparada para encontrar alguém que morava na mesma cidade que o pai de Kasim.

— Não preciso de médico — disse por fim. — Vou me deitar um pouco e não gostaria de ser incomodada por ninguém.

Hassan inclinou a cabeça e saiu da tenda em silêncio. Lorna deu um suspiro profundo, apanhou um cigarro em cima da mesinha e acendeu-o distraidamente. Ao sentir o gosto forte de tabaco, lembrou-se imediatamente de Kasim. Por que o avisara da presença do escorpião? A picada do animal significaria sua liberdade. No entanto, ela hesitara, apavorada com a idéia de que o escorpião pudesse matar o homem arrogante que a mantinha cativa no deserto. Deu uma tragada e pensou que era sensível como todas as mulheres, que não suportavam fazer mal aos outros, embora agüentassem em silêncio, resignada-mente, os maus-tratos dos homens.

Cansou-se de ficar sozinha a tarde inteira na tenda. Depois do jantar, embrulhou-se na capa comprida de lã e deu um passeio até o oásis. Sabia que estava sendo seguida por um homem magro e procurou controlar o desespero que a assaltava. Por que Kasim não a deixava partir? Era apenas uma boneca de luxo que ele enfeitava com roupas de seda e sua coleção de jóias. Uma simples diversão no fim do dia. Logo seria esquecida, como as outras mulheres que tivera...

Lorna aproximou-se de sua palmeira favorita e apoiou-se no tronco liso. A noite estava escura, sem a luz da lua, e tudo parecia silencioso, com exceção do farfalhar das folhas balançadas pelo vento. Eram muito compridas e tinham a forma de mãos.

Quando sentiu o aroma de cigarro e viu o brilho do albornoz branco a seu lado, imaginou que fosse Ahmed, o homem que a guardava no acampamento. Por isso, surpreendeu-se quando o homem lhe dirigiu a palavra em francês, com a pronúncia tão impecável quanto à de Kasim:

— Boa noite. Queria visitá-la antes, na tenda, mas Hassan me disse que não queria ser incomodada. Sou médico e me chamo Omair ben Zaide. Só fiquei sabendo hoje que estava hospedada no acampamento de meu amigo Kasim.

Não havia ironia em suas palavras, mas Lorna corou violentamente. No primeiro instante, pensou em afastar-se dali, mas controlou seu embaraço e respondeu, com voz animada:

— Imagino que deva ter sido uma surpresa! Não é todo dia que uma moça inglesa é encontrada no acampamento de um sheik árabe. Da última vez que esteve aqui, provavelmente havia uma moça árabe na tenda do príncipe...

O médico não comentou nada no primeiro instante, e Lorna notou que os traços do rosto dele eram bem-feitos e regulares. Omair ben Zaide tinha as feições mais características da raça do que Kasim, se bem que parecia menos autoritário e arrogante que seu amigo.

— Na última vez que estive aqui, não encontrei nenhuma moça na tenda de Kasim. Um de meus pacientes me contou que seus cabelos são dourados como a areia do deserto. Os árabes raramente vêem mulheres que sejam realmente belas. Por isso foi uma surpresa encontrá-la...

— E lhe contaram também que estou aqui contra minha vontade? Ou acha que estou adorando morar nessa barraca?

— Bem, ouvi dizer que Kasim gosta muito de sua companhia, que vocês andam juntos a cavalo e jogam xadrez. Isso é sinal de que ele a trata com muito respeito.

Lorna deu uma risada.

— Imagino como ele deve tratar as outras mulheres!

— Que outras mulheres?

— Ah, não me diga que ele não tem outras mulheres?!

— Kasim tem um gosto muito difícil...

— Faço idéia! Mas esse homem de gosto requintado não hesitou em me atirar em cima de uma sela e me trazer para cá, como se eu fosse uma escrava...

— Às vezes os homens se deixam cegar pela beleza... Kasim é o filho único do poderoso emir de Sidi Kebir. Ele está acostumado a ser obedecido em tudo.

— Como se isso fosse desculpa!

— Eu também, se não fosse médico, roubaria a mulher que amo! — Omair jogou o cigarro no chão, onde brilhou um instante, antes de se apagar completamente. — Para as pessoas que vivem no deserto, que são governadas pelo destino e pelo fatalismo, não há amanhã. Há somente o dia de hoje, o momento presente, que deve ser colhido como se fosse um fruto. Os homens do deserto são chamados os filhos das estrelas... e eles ardem com a mesma luz incandescente.

— Mas isso não é razão para maltratar os outros. Kasim açoitou um homem que roubou um cavalo em minha frente, mas a mesma lei se aplica ao homem que seqüestra uma mulher...

— Não, não se aplica — Omair falou, com um sorriso irônico. — Kasim não deve obediência. Ele governa muitas tribos selvagens e julga natural dominar uma mulher jovem e bonita como você. Ele foi cruel?

— Bem, ele não me açoitou, felizmente, mas há outras maneiras de ser cruel... Estou aqui, neste acampamento, contra minha vontade!

— Eu entendo — concordou Omair, com uma entonação bondosa. — Para os homens de todos os países, as mulheres têm uma função decorativa, além de ser a alegria dos olhos, o consolo das aflições habituais. As preocupações de Kasim são grandes. Seu pai é um homem de idade, e Kasim será obrigado, mais dia menos dia, a abandonar a vida do deserto. Deverá ocupar o lugar do pai e talvez tenha procurado sua companhia para se esquecer dessas tristezas...

— E sou obrigada a pagar por isso... a levar uma vida que me é inteiramente estranha?

Lorna lembrou-se das estrelas que vira entre as palmeiras no jardim de Ras Jusuf... Parecia que isso fora muito tempo antes, porém acontecera havia somente algumas semanas. Das tendas do acampamento vinha uma música árabe, repetida monotonamente, que a fez lembrar a flauta no jardim, entre as árvores. As palavras do adivinho voltaram a sua memória... — O deserto torna as pessoas primitivas — falou Omair, com um movimento expressivo das mãos. — Já observou o deserto ao entardecer, o brilho das estrelas e o acender das fogueiras? O deserto nos revela toda a beleza que se esconde no coração dos povos primitivos...

Os olhos redondos do médico a fitavam com curiosidade. O albornoz caía em dobras sobre o corpo magro, e o turbante branco acentuava a cor morena da pele. Omair era um perfeito árabe, ao contrário de Kasim, que tinha a pele clara, com exceção dos braços, do rosto e do pescoço, bronzeados pelo sol. Kasim apreciava o prazer de beijar as mulheres nos lábios, e Lorna sabia que esse gesto de ternura era desconhecido dos árabes autênticos. Sentiu um calafrio ao se lembrar dos lábios quentes e possessivos do sheik.

— Concordo com tudo que acabou de dizer, mas não posso aceitar que ele faça de mim uma escrava!

— Uma escrava? — repetiu Omair, com uma expressão de incredulidade. — Você não é uma escrava. Diz tudo o que pensa, anda livremente pelo acampamento e conversa com todos. Por sinal, os árabes gostam muito de você. Eles disseram que é graciosa como a lua. É muito natural que Kasim também aprecie sua companhia.

— Ah, você não entende! Ele me mantém aqui à força, contra minha vontade, como se eu fosse um filhote de tigre que deseja domesticar!

Omair respirou fundo, como se lhe ocorresse finalmente que Lorna era uma moça inglesa, que não estava habituada com os costumes do Oriente.

— Serviria de consolo eu dizer que todos nós somos presos de certa forma e que somos governados pelo destino? Ninguém faz o que quer. O tempo passa, e percebemos, finalmente, que uma mão invisível nos conduz pelos caminhos da existência. — Omair fez uma pausa e examinou-a em silêncio com seus olhos negros. — Você foi atraída pelo deserto. Deixou-se seduzir, e o destino conspirou para prendê-la aqui. Pense nisso. Aqueles que ouvem o chamado do deserto correm sempre esse perigo.

Era verdade. Ela seguira o apelo estranho e cativamente que a levara para longe de Ras Jusuf... mas nunca imaginara que esse chamado iria conduzi-la à companhia de um homem que a privaria de sua liberdade. Que exigia uma obediência cega. Que a encantava com suas narrativas do deserto e que se mostrava inflexível, em outras horas, como se ela não tivesse vontade própria. Ah, nunca iria perdoá-lo por sua ignorância e crueldade!

— Está ficando tarde — Lorna disse, com voz cansada.

— Vou acompanhá-la até a tenda.

Caminharam em silêncio pelo acampamento e pararam diante da grande tenda dupla. Ela convidou o médico para entrar um pouquinho e tomar um café, mas Omair recusou o convite, com um sorriso sem graça.

— Muito obrigado, mas não posso aceitar. Kasim não gostaria que eu tomasse café sozinho em sua companhia, especialmente à noite. Não é comum entre nós...

— Mas ele pode fazer tudo que tem vontade! E se eu ficar doente, você não pode me atender?

— Nesse caso, sim. No mais, sou um árabe perfeito.

— Quer dizer que você acredita no véu e no harém?

— Acredito no respeito que devo à casa de meu amigo. — Inclinou a cabeça, com cerimônia. — Foi um prazer conhecê-la, Lorna. Espero que sejamos sempre bons amigos.

— Eu também gostei de sua companhia, Omair. Boa noite.

— Emshi besselema.

Omair afastou-se em silêncio, envolto pelo manto branco que brilhava entre as tendas pretas, e desapareceu de vista. Fora um encontro estranho. Os dois haviam conversado com intimidade, porque a noite dava maior liberdade à expressão dos sentimentos profundos. Seria por isso que as mulheres árabes se cobriam com véu?

Lorna demorou-se um instante na entrada da tenda, sem nenhuma vontade de voltar para sua prisão solitária. Por fim, com um suspiro de resignação, dirigiu-se para seu aposento, que exalava, como sempre, o perfume de sândalo e de tabaco turco.

Hassan deixara o bule de café em cima do pequeno fogareiro, e, na bandeja, havia doces e bolinhos de amêndoas com mel. Ela mordeu distraidamente um doce enquanto folheava a revista francesa que apanhou em cima da cama. As páginas de culinária tinham algumas fotografias dos lugares que visitara com seu pai, no último ano que passara em Paris. Uma noite, os dois foram jantar no restaurante La Tour d Argent, e foi ali que ela tomou uma taça de champanhe pela primeira vez na vida. "Que cada bolhinha seja um dia de felicidade!", exclamara o pai, levantando o copo num brinde.

Lorna deu um suspiro e levantou-se da cama. Andou algum tempo pelo interior da tenda, que lhe parecia repentinamente vazia sem a presença de Kasim. Ele era tão vital que, mesmo ausente, atraía todos os pensamentos dela para sua pessoa. Podia vê-lo reclinado no sofá, movendo as peças no tabuleiro de xadrez, acariciando os cabelos compridos dela, com o ar indolente.

Apagou as lâmpadas uma a uma e, ao passar pela cortina de contas, ouviu o leve tilintar no silêncio da noite. O quarto estava frio, e ela colocou uma pele de leopardo em cima da cama. Um camelo gritou lá fora, um graveto seco estalou na fogueira, que ficava acesa a noite inteira, depois o acampamento voltou ao silêncio.

Lorna continuou acordada por algum tempo, encolhida sob a pele do leopardo, procurando apagar o rosto belo e moreno de sua lembrança, tentando esquecer a voz melodiosa que cantarolava uma canção francesa e que se despedia dela todas as noites, com uma palavra carinhosa. Outras vezes, ele se debruçava sobre o rosto dela para ver se estava dormindo, tocava com a ponta do dedo uma lágrima que rolava da face de Lorna, secava-a com os lábios e deixava uma impressão de calor na pele dela.

Deu um suspiro e afundou a cabeça no travesseiro. Tinha de fugir dali! Aproveitaria a oportunidade na manhã seguinte... Sairia de madrugada, antes que Ahmed acordasse. Seu coração bateu mais depressa, excitado com a idéia. Fugiria ao nascer do dia, quando ninguém estivesse acordado para impedi-la.

Abriu os olhos e avistou a escuridão em volta. Respirou fundo o perfume de sândalo das madeiras. No dia seguinte, a essa hora, estaria novamente em Yraa, a muitos e muitos quilômetros do acampamento no deserto.

Estava impaciente para a noite passar... para a madrugada entrar furtivamente na tenda e balançar de leve a cortina de contas.

 

Lorna corria a todo galope para longe! Fora fácil sair furtivamente da tenda, como uma sombra, e apanhar um cavalo, qualquer um, porque todos os cavalos do acampamento eram resistentes e velozes. O animal, uma égua marrom de patas brancas, mostrara-se assustado em princípio, mas depois de alguns minutos cavalgava num ritmo perfeito, num galope longo e compassado.

O ar da madrugada inebriava como o vinho, misturava-se com a sensação de liberdade e fazia sua cabeça girar. Atravessou a galope as pequenas colinas de areia, procurando afastar-se o mais rápido possível do acampamento, na esperança de que o vento da manhã apagasse os rastros que o animal deixava.

A brisa fria batia contra seu rosto e fazia seus olhos arderem, pois já estavam irritados por causa da noite mal dormida.

Sorriu de alegria. Estava livre e não esquecera nada essencial. Tinha água no cantil, mantimentos na bolsa, uma capa de lã para abrigar-se do frio que fazia ao anoitecer e um lenço comprido de musselina passado em volta da cabeça, para se proteger dos inclementes raios do sol.

Sabia que estava indo na direção certa, rumo às montanhas de Yraa, que avistava como pontinhos brilhantes na distância. Não estava assustada. Galopava rapidamente para longe do homem que a aterrorizava, com sua fisionomia severa, mais do que toda a vastidão de areia e de rochas que sumiam no horizonte. A luz que banhava o areal tinha uma tonalidade esverdeada, e Lorna acelerou o galope da égua. Sua fuga logo seria descoberta. Zahra levaria o café no quarto e não a encontraria na cama. Daria o alarme, e Ahmed partiria a sua procura. Motivado pelo medo que tinha de Kasim, revistaria todas as pedras do caminho, seguiria todas as pegadas e examinaria cada moita com seus olhos de lince. Mataria o cavalo de tanto correr na determinação de encontrá-la.

O vento açoitava a capa comprida e atirava areia sobre os rastros que o animal deixava atrás de si. O vento era amigo. Estava cobrindo sua partida, e, na alegria do momento, ela não percebeu que ele soprava com mais força naquela manhã, e o sol tinha um tom estranho e ameaçador.

A medida que as horas passavam, a vastidão do deserto exercia um efeito hipnótico sobre seus nervos. No momento em que fez uma breve parada, para beber um pouco de água e descansar o animal resfolegante, estava sentindo-se muito calma e descontraída. Fumou um cigarro e não largou um só instante as rédeas... Dessa vez, o animal não fugiria, e ela não correria o risco de ser deixada sozinha no deserto!

Olhou em volta de si e percebeu que as dunas estavam escurecendo em certos lugares. Voltou a cabeça para o céu encoberto e notou que tudo estava muito calmo e parado, embora o assobio do vento sobre a areia tivesse se tornado mais alto nos últimos minutos.

"Uma mulher é como o deserto", dissera Kasim, num dos passeios que deram juntos. "Muitos segredos moram no coração dos dois. Ambos dão paz, mas a agitação nunca está muito distante..." Um lugar secreto, sem dúvida alguma. Uma pessoa poderia morar a vida inteira no deserto e não encontrar jamais seu coração. Segurando com firmeza as rédeas da égua, Lorna olhou para a cordilheira que pretendia transpor antes do anoitecer. Estava azulada pela atmosfera do deserto, tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante! Subiu na sela, e a égua levantou as patas da frente, empinando como um animal de circo. Lorna puxou a rédea levemente e murmurou algumas palavras que Kasim costumava usar para tranqüilizar os animais fogosos. Após um resfolegar alto, a égua colocou as patas no chão e partiu a galope. Meia hora depois, as primeiras gotas de chuva caíram sobre seu rosto. Alguns minutos mais tarde, estava chovendo torrencialmente, e, vez por outra, a trovoada murmurava ao longe, além das colinas de Yraa.

Uma tempestade no deserto seria terrível, mas preferia enfrentar qualquer coisa a ser apanhada e levada de volta para o acampamento. Tudo, menos enfrentar a fúria de Kasim! Ele não gostava dela... Lorna era simplesmente um brinquedo de luxo para ele... Quando a novidade passasse ou quando os deveres o chamassem de volta para Sidi Kebir, Kasim se descartaria dela sem o menor escrúpulo.

Ao fugir dessa forma, ela mantinha pelo menos o orgulho intacto. Ele não a humilhara moralmente, e ela poderia recomeçar uma vida nova em algum lugar bem distante da beleza traiçoeira do deserto.

O temporal cessou repentinamente, mas o céu continuou encoberto e a atmosfera estava muito pesada e opressiva. A areia começou a girar em volta dela em pequenos redemoinhos, e, na distância, uma névoa seca encobria as colinas de Yraa. Lorna sentiu uma contração nervosa no estômago. Se uma tempestade de areia se iniciasse, tudo ficaria confuso em sua frente durante horas, talvez a noite inteira.

Não podia perder nem mais um minuto. Deitou a cabeça sobre o pescoço do animal e deixou que galopasse a toda velocidade.

A atmosfera tornou-se mais sufocante com o passar dos minutos, e Lorna sentia a cabeça pesada. Ouviu o ruído estranho da ventania que fustigava a vastidão do deserto... um uivo assustador que gelou seu coração.

Seus instintos a advertiram de que o vendaval se iniciaria de um instante para o outro, e ela procurou com nervosismo um lugar para se abrigar do furacão impiedoso, que arrastaria tudo em sua passagem.

Pouco adiante, avistou um morro de pedras e rumou naquela direção. Lorna estava agradecendo sua sorte por ter encontrado um abrigo, quando um raio iluminou violentamente a paisagem, assustando terrivelmente a égua e a amazona.

O animal, alarmado com o estrondo do trovão que se seguiu, encolheu o corpo e empinou repentinamente as patas da frente. Lorna, apanhada de surpresa, foi jogada para longe, antes que pudesse se agarrar nas crinas da égua. Tonta, ofegante e com a cabeça latejando, ela viu o animal afastar-se a galope, em direção às nuvens de poeira que se levantaram no deserto.

Ergueu-se, cambaleante, e levou a mão ao ombro dolorido. Gritou para a égua, mas seus gritos se perderam no vento, e, logo depois, perdeu o animal de vista, que arrastava as rédeas   no chão e levava consigo a sacola preciosa onde estavam a água e os alimentos.

Refeita do susto, Lorna percebeu que deveria se abrigar rapidamente entre as pedras. Ali, pelo menos, estaria protegida da força impiedosa do vento, que começava a levantar nuvens de poeira que faziam seus olhos arderem.

Com o rosto contraído pela dor que lhe causava o ombro deslocado, sob o clarão intenso de um novo relâmpago que cortou o céu, ela se dirigiu com dificuldade para o abrigo no meio das rochas. Estava muito trêmula e muito abalada para chorar. De súbito, a advertência de Kasim surgiu em sua mente. "Você não sabe se defender sozinha num lugar vasto e perigoso como o deserto."

As palavras sinistras misturavam-se aos sons aterrorizantes das trovoadas e do vento que soprava. A luz intensa dos relâmpagos no céu escuro, Lorna teve a impressão de avistar de novo o brilho dos olhos castanhos, e, no momento em que entrou no abrigo, no rochedo, tudo começou a girar a sua volta, ela se sentia subitamente fraca e indefesa. Mergulhada na escuridão total do abrigo, a última coisa que sentiu foi a areia aproximar-se de repente de seu rosto.

 

No primeiro instante, após abrir novamente os olhos, o ar pareceu-lhe coberto de uma poeira sufocante, e Lorna sentiu um gosto de cinza na boca. Um gosto horrível de coisa seca e queimada.

Lembrou-se vagamente de que caíra quase sem sentidos na areia. Agora, porém, estava apoiada contra uma pedra, e alguém estava ajoelhado a seu lado... O rosto do homem estava coberto por um lenço de linho branco, e seus olhos tinham um brilho intenso.

Estava morta de sede, e o ombro machucado latejava terrivelmente. Parecia um pesadelo, mas o gargalo do cantil era bastante real. Bebeu sofregamente alguns goles de água e, quando voltou completamente a si, percebeu que o braço do homem estava passado em volta de seu corpo. Afastou-se dele instintivamente, assustada.

— Que loucura! — murmurou o homem, retirando o lenço do rosto. Ela reconheceu, assombrada, as feições familiares.

— Você enfrentou a tempestade para fugir de mim! Quando Ahmed me disse que você apanhara um cavalo e partira a galope, saí a sua procura do acampamento de meu amigo. Eu sabia que rumaria diretamente para as colinas de Yraa, pois estava hospedada em Ras Jusuf. E, na correria, eu teria passado direto daqui, se não visse seu véu enroscado na moita de espinhos, do lado de fora do rochedo.

Ele a observou em silêncio durante um longo momento. Os olhos dela estavam inchados e vermelhos.

— Sua maluquinha, pensou que eu iria deixá-la fugir? Que não partiria a seu encalço?

— E impossível fugir de você — Lorna respondeu, com uma careta de dor. — Meu ombro está doendo terrivelmente. Um relâmpago assustou a égua, e fui jogada ao chão...

Kasim segurou-a pelo braço e apalpou atentamente o ombro machucado.

— O osso saiu do lugar — disse por fim, — Posso recolocá-lo, mas vai doer um pouco.

— Não faz mal — Lorna falou, como se nada mais tivesse importância. — Você já me machucou antes de saber...

Kasim tirou um cigarro do bolso e colocou-o entre os lábios dela. Ele estava com o rosto impassível, como uma máscara de bronze. Riscou o fósforo e acendeu-o.

— Fume o cigarro para se distrair... Está pronta?

Ela deu uma tragada e meneou a cabeça afirmativamente. O gemido de dor perdeu-se em meio aos uivos do vento no instante em que Kasim colocou o osso no lugar, com um movimento hábil das mãos. Lorna estremeceu com a dor, e um suor frio escorreu por sua testa. Sentiu dormência no braço depois que a dor passou, mas Kasim explicou que era devido à pressão sobre o nervo distendido. Depois, ele massageou o ombro até a circulação voltar ao normal.

— Procure flexionar o braço — ele disse.

— Ainda está doendo um pouco, mas sinto que voltou para o lugar.

— Você foi corajosa — Kasim falou, limpando a areia grudada no rosto dela. — Logo a ventania vai transformar-se num furacão, e podemos ser soterrados na areia. Você não tem medo de morrer aqui? Não teme que estas rochas sejam nossa sepultura no deserto?

Lorna balançou a cabeça afirmativamente e terminou de fumar o cigarro. O cavalo preto de Kasim estava preso e abrigado ali perto e abaixava a cabeça para evitar a ventania forte que soprava. Kasim ajoelhou-se ao lado dela e amarrou o lenço comprido em volta de seu rosto.

— Foi uma loucura você ter fugido hoje, logo hoje, correndo o risco de ser apanhada por uma tempestade de areia.

— Loucura maior foi achar que poderia escapar de você. — Ela levantou a cabeça e ouviu o barulho do vento lá fora. — O deserto protege seus filhos, e você é tão implacável quanto essa ventania que está soprando.

— Você feriu meu coração — disse Kasim, com um sorriso triste. — Eu a encontrei como um pedaço de gelo no meio do inferno, e você não tem uma palavra de ternura para mim.

— E desde quando aprecia uma palavra de ternura? Desde quando está disposto a ceder em alguma coisa?

Kasim franziu a testa e desviou o olhar, seu perfil estava contornado sobre uma paisagem nevoenta.

— Não há ternura numa tempestade no deserto... Tudo é perigoso, e estamos indefesos no meio dela.

— Quanto tempo vai durar? — Lorna indagou.

— Quem pode saber? Somente o destino.

— E depois que terminar? — Ela apagou o cigarro na areia. — Um dia, terá de me libertar... Pretende me humilhar completamente antes disso?

Ela não ouviu a resposta, pois foi encoberta por um terrível rugido. No momento em que a areia rodopiou em volta deles, soprada furiosamente pelo vento, Kasim protegeu Lorna com sua capa.

Ela dominou o temor que sentia por ele e afundou o rosto no ombro largo, abraçada a ele sob a sufocante nuvem de areia.

A ventania parecia um furacão, e Lorna ouviu uivos furiosos que ensurdeciam e que lhe davam vontade de explodir no choro.

— Coragem! — Kasim falou, procurando confortá-la.

Ele mudava de posição constantemente, porque a areia se acumulava depressa em volta deles. Uma única vez Lorna deu uma exclamação de angústia, e Kasim estreitou-a nos braços e beijou-a na testa como se ela fosse uma criança alarmada.

Os lábios dele estavam quentes e ásperos por causa da areia, e, quando ela fechou os olhos, sentiu uma fraqueza que não tinha nada a ver com a tempestade. Deixou-se estar nos braços dele, abandonada, enlaçada, sufocada, com o coração explodindo de alegria. A areia podia enterrar os dois juntos. Podiam permanecer abraçados para sempre... como os amantes da lenda.

— Lorna? — murmurou Kasim, em seu ouvido. — Está respirando... está bem?

— Ah, tive uma sensação tão estranha... Parecia um sonho!

— Você não pode dormir agora! — Sacudiu-a pelos braços, e a areia escorreu sobre os dois.

Lufadas furiosas de vento sopravam, quentes e sufocantes como uma fornalha.

Lorna forçou-se a abrir os olhos e encontrou o rosto dele colado ao seu.

— Você não pode dormir agora — ele repetiu.

— Kasim... quanto tempo isso vai durar?

— Vai passar logo. Seja corajosa.

Ela estava abraçada contra seu peito e podia ouvir o coração dele batendo.

— Estou tentando.

— Sei disso. Tem o costume de levantar a cabeça e encarar os homens nos olhos. Ah, meu Deus, que ventania! Que tempestade maldita!

— Coitado de seu cavalo!

— Espero que ele não enlouqueça com a tempestade e arrebente o cabresto.

— Ficaríamos perdidos aqui.

— Para sempre. — Ela sentiu um arrepio quando as mãos dele apalparam seu corpo por baixo da capa. — Não sou um monstro egoísta, como deve estar pensando. Estou apenas soltando os botões de sua blusa para você respirar mais à vontade...

Ela não podia falar. Estava dominada pelas sensações confusas que a assaltavam. Entendeu, naquele momento, que respondia a seu contato porque pertencia a ele. 0 coração, a alma, o corpo, tudo pertencia a esse homem do deserto, e não era dele que fugira, mas do amor que sentia por ele.

Acabara apaixonando-se por Kasim! Ele invadira seu coração e a cativara com a perícia de um domador.

Amava-o... odiava-o por fazer dela o que queria, como um domador brincava com o filhote de tigre. Em vão, lutou com a fascinação que a dominava.

No momento seguinte, sentiu o aperto de seus braços e percebeu confusamente que ele a estava protegendo de uma grande lufada de areia que avançava sobre ambos, cegando-os completamente. Estavam mudos e surdos pela violência da tempestade. Durante segundos... minutos... horas... continuaram mergulhados no furacão de areia. Depois, lentamente, ouviram o silêncio pesado em volta, uma tranqüilidade ameaçadora, mais terrível que o rugido do vento, e Lorna sentiu o pânico dominá-la com a repentina Falta de ar.

Kasim conseguiu levantar-se com um esforço sobre-humano e remover a areia que os cobria. Gotas de suor brotavam na testa dele e rolavam por seu rosto. Ela procurou ajudá-lo, com a respiração ofegante, até que conseguiram romper a barreira de areia que se formara em volta deles e respiraram de novo o ar puro. Kasim abriu mais espaço com o braço, e saíram finalmente.

Permaneceram um instante parados, respirando com dificuldade, com areia nos olhos, na boca, no nariz, descendo pela garganta. Ao redor, reinava uma tranqüilidade estranha... um silêncio assustador depois da fúria da tempestade. Lorna sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo, e, em seguida, lágrimas rolaram livremente por seu rosto, formando pequenos sulcos na areia grudada em sua pele.

Kasim caminhou em direção ao cavalo. Falou em voz baixa com o animal assustado e escovou a areia que estava grudada no focinho.

— Graças a Deus, ainda temos o cavalo. Já imaginou ficarmos perdidos no deserto, com um cantil de água para nós dois?

— ele perguntou.

Lorna enxugou as lágrimas sem prestar atenção no significado de suas palavras. Pela vastidão do deserto, soprava o vento frio da noite. O céu continuava escuro como antes, e, do alto de uma duna, veio o uivo prolongado de um chacal.

Kasim inclinou-se sobre ela com o cantil na mão. A água lavou a areia dos dentes e aliviou o ardor que Lorna sentia na garganta. Em seguida, ele também tomou um pouco de água enquanto a observava de soslaio.

— Acho melhor passarmos a noite aqui e partirmos amanhã cedo para o acampamento.

— Para o acampamento? — ela indagou.

— Exatamente. Vou levá-la de volta para lá. Ela retirou o pano do rosto, e a brisa noturna agitou os cabelos soltos e refrescou seu rosto e os olhos vermelhos.

— Por que me levará de volta? Só dei trabalho... Estraguei sua caçada na casa de Kaid... Sou apenas uma mulher, facilmente substituível.

— Sim, você é apenas uma mulher, mas não estou preparado para deixá-la partir... nem um pouco, meu pedacinho de neve. Ainda não tive o prazer de derreter seu gelo. Até lá, vamos ficar juntos... com a graça de Deus.

— Deus não tem nada a ver com isso! Você só faz o que tem vontade...

— Fala como se fosse minha escrava. Por que não me chama pelo nome, como antes?

— Porque a tempestade passou. Se eu disse seu nome, foi por medo.

— Diga-o de novo... agora que a brisa esta soprando e que não corremos mais o risco de sermos enterrados na areia.

— Kasim...

— Ele soa estranho com sua pronúncia inglesa.

Sorriu e passou os braços em volta da cintura de Lorna. Ela estava tensa, procurando controlar o prazer que sentia. Homem impiedoso! Não fazia sentido o coração dela disparar ao menor toque de seus dedos.

— Vamos descansar algumas horas — Kasim informou. — Não precisa tirar a capa. Nosso clima no deserto é muito estranho... Um calor insuportável num minuto e um frio medonho no instante seguinte... exatamente como uma mulher. O hálito quente soprou no rosto de Lorna.

— Não... por favor — ela pediu, com receio da reação que poderia ter com o beijo.

— Um dia, minha querida, vou ouvir um pedido diferente de você. As mulheres têm o coração mole... acabam gostando de seus inimigos.

— Amando inimigos? Como ousa mencionar um sentimento que não tem nenhum significado para você?

— Se eu a amasse, meu anjo, você morreria de medo. Não faz idéia do que é o amor violento entre o homem e a mulher...

— Como pode saber? Nunca amou ninguém!

— Só o deserto, não é mesmo?

Soltou-a com uma risada e foi recolher alguns galhos que foram partidos pela tempestade. Instantes depois, chamas crepitavam alegremente. Feito isso, tirou o arreio do cavalo e lhe deu a metade da água que levava no cantil. Em seguida, voltou para junto da fogueira e sentou-se. Lorna virou a cabeça, nervosa, quando ouviu novamente o uivo do chacal, mais próximo dessa vez.

— Não tenha medo. Os chacais não se aproximam do fogo.

— Eles devem estar famintos — disse Lorna, apertando a capa de lã contra o corpo. — O deserto é tão escuro à noite...

— As nuvens de pó encobriram as estrelas. Deite junto de mim e procure dormir um pouco. Vamos levantar cedo amanhã.

Ela estava muito cansada, com as pálpebras pesadas e os olhos ardendo. Seria bom dormir algumas horas junto da fogueira. Após uma rápida hesitação, encostou a cabeça nos joelhos dele e deitou-se. Estava com sono e, ao mesmo tempo, consciente da solidão total que os cercava. As folhas de tamarindo, sendo queimadas, exalavam um cheiro forte... O calor do corpo de Kasim começou a aquecer o dela lentamente.

Em dado momento, ele abaixou a cabeça e surpreendeu seus olhos sonolentos.

— Não parece estranho? Poderíamos ser as únicas pessoas vivas no mundo hoje. Como Adão e Eva no paraíso. O deserto foi chamado o Jardim de Alá... e há algo de Eva na maior parte das mulheres.

— A tentação... — Lorna acrescentou.

— Hummm... Se você não dormir logo, vou achar que está me provocando... que está querendo meus beijos.

Ela prendeu a respiração e afastou rapidamente a cabeça, como se quisesse evitar o contato de seus lábios. Ele deu uma risada.

Kasim estava com as costas apoiadas numa pedra, e sua capa cobria Lorna. Sonolenta, ela avistou os galhos secos que crepitavam no fogo e, logo depois, adormeceu ao lado do homem de quem fugira... para encontrar-se novamente em seus braços.

 

A violenta tempestade de areia modificara os contornos da paisagem. Parecia que um gigante havia removido as dunas para outras partes.

Kasim percorreu com os olhos aquela vastidão desolada, a fim de localizar a direção que deviam tomar em relação ao sol nascente, Para o norte estavam as colinas de Yraa e o hotel onde Lorna pretendia chegar no dia anterior. Ela inclinou a cabeça, e o sol iluminou os cabelos dourados.

— Nossa direção é para o sul — disse Kasim finalmente, com voz firme.

Qual seria a reação dele se Loma dissesse que desejava ir para o sul e nunca mais voltar para o norte? Mas ela não podia lhe revelar esse segredo.

— Tem certeza? Não há perigo de nos perdermos no deserto?

— Não me importo de me perder com você — respondeu, com um sorriso. — Seus cabelos estão roubando a luz do sol... e você está com uma aparência fantástica depois da tempestade de ontem.

Ela olhou para o rosto moreno, com a barba crescida, e deu um sorriso de superioridade.

— Não se aproveite disso! — exclamou Kasim. Deu um passo à frente, mas ela recuou instintivamente, fazendo Kasim chocar-se contra o cavalo, que sacudiu o corpo e fez tilintar as argolas de prata. Lorna sorriu, com a cabeça inclinada para trás, quando Kasim apertou-a nos braços.

— Eu poderia quebrá-la e jogar os pedaços na areia — ele murmurou junto a seu ouvido. — Ou poderia amansá-la, como um potro selvagem.

— Só porque não tomei café e estou me sentindo fraca.

Ele sorriu e beijou-a nos olhos, que pareciam duas flores azuis abertas ao sol. A vida agitada que levava no acampamento tinha alguns momentos de descanso na companhia dela e podia fugir das barreiras sociais que sua posição lhe impunha. Não desejava uma escrava submissa. Ele a queria com seus cabelos cor de sol, a pele clara e luminosa que contrastava visivelmente com a dele. Kasim a desejava, e Lorna era dele, com ou sem o amor que podia receber de um homem mais civilizado.

Enquanto os lábios dele cobriam seu rosto de beijos, Lorna morria de amor, de saudade do passado, de medo do futuro. Ficou arrepiada com os pêlos crescidos da barba que espetavam sua pele.

— Vamos — ele falou por fim. — Não podemos nos demorar mais.

Soltou-a e examinou o cavalo preto para ver se estava tudo em ordem. A metade da água do cantil fora dada ao valente animal que deveria transportá-los durante muitas horas pelo deserto, sob os raios escaldantes do sol. O cavalo abanou a cabeça ao contato da mão de seu dono e empurrou o ombro dele com o focinho, num gesto de amizade.

Lorna observou os dois enquanto passava o lenço no rosto e lembrou-se do que Kasim dissera antes, que dava mais atenção aos cavalos do que às mulheres que cruzavam seu caminho. Quantas mulheres haviam sido? Ele era tão forte e bonito que Lorna nem podia calcular o número de moças árabes que deviam ter atravessado seu caminho. Afinal, ele era o filho do poderoso emir de Sidi Kebir. Um príncipe de nascença.

Com um salto ágil, Kasim montou no cavalo e estendeu-lhe a mão.

— Ponha o pé no estribo.

Ela obedeceu e foi erguida pelo braço forte que a colocou a sua frente, junto ao santantônio.

— Coitado do Califa... vai carregar nós dois debaixo deste sol.

— Você não pesa mais que uma folha de palmeira. E esta não é a primeira vez que ele nos leva juntos... lembra-se?

— Como eu poderia me esquecer?

Dessa vez, porém, Lorna não estava assustada, como da primeira vez, e pôde apreciar devidamente a beleza da paisagem. O céu estava amarelado, e, visto de longe, o deserto tinha uma aparência lisa e aveludada. A brisa que soprava era fresca e reconfortante. Ela nunca sentira antes, com tanta intensidade, a beleza impiedosa e desolada do deserto. As colinas de Yraa ficaram para trás, em forma de pontinhos brilhantes no horizonte azulado, mas Lorna não voltou à cabeça naquela direção.

Por volta do meio-dia, Kasim e Lorna encontraram um bando de beduínos que estavam acampados no deserto, a sua maneira rústica e improvisada. Depois de matarem fartamente a sede, os dois foram convidados para entrar um pouco nas tendas abertas, a fim de poderem descansar um pouco, abrigados do sol inclemente daquele horário.

Lorna estava faminta e comeu como um beduíno do deserto, segurando a carne assada com um pedaço de pão.

Normalmente, ela deveria ter ido para a tenda das mulheres. Kasim, porém, explicou aos beduínos que seu companheiro de viagem era um rapaz árabe que se perdera na tempestade da noite anterior.

— Ele está faminto e assustado com tudo o que aconteceu. Os árabes balançaram a cabeça e aceitaram a explicação em silêncio. Quando o chá foi servido no fim da refeição, Kasim murmurou no ouvido de Lorna para não retirar o pano que lhe cobria o rosto.

— Os árabes não têm cabelos dessa cor — ele acrescentou. O chá fora preparado com hortelã, e Lorna, que estava com muita sede, bebeu dois copos cheios. Satisfeita com tudo o que comera e bebera na tenda dos beduínos, reclinou-se por fim numa almofada. Ouviu, sonolenta, a conversa dos homens, que falavam em voz baixa e gutural. Eram criaturas rudes, de gestos e maneiras grosseiras, mas extremamente bondosas. Quando Kasim se despediu deles, os nômades lhe deram um cantil de água e alguns pães, com fatias de queijo fresco.

O sol se punha no horizonte, como um borrão vermelho, quando os dois se puseram novamente a caminho, deixando para trás as tendas pretas e baixas onde foram recebidos com muita hospitalidade.

Lorna seguia com a cabeça apoiada no ombro de Kasim. O perfil moreno estava contornado pela luz crepuscular da tarde, e ele lhe parecia mais belo e irresistível do que nunca. Entretanto, jamais confessaria o que sentia por esse homem, para quem o amor de uma mulher era inferior ao amor que ele sentia pelo deserto, pelos cavalos, pelas tribos que governava, pelo pai idoso que um dia o chamaria de volta a Sidi Kebir.

Anoiteceu, e a temperatura caiu rapidamente. Havia um esplendor mágico na tranqüilidade da paisagem noturna, no céu coberto de estrelas. Algumas riscavam o espaço negro, como minúsculos cometas prateados.

Kasim parecia absorto em seus pensamentos, e Loma o contemplou em silêncio. Em dado momento, ele se voltou e perguntou se ela estava muito cansada.

— Um pouco — ela respondeu. — Estamos perto do acampamento?

— Em menos de uma hora, estaremos lá. — Voltou a cabeça para o alto. — As estrelas estão brilhando como pedras preciosas. Gostaria de estender a mão e apanhar um punhado.

— Eu me contentaria com uma.

— Sei disso. Você desprezou o colar de pérolas que lhe dei. Preferia ser um rapaz, como eu disse aos beduínos?

— Ah, se eu fosse um rapaz...

— Não teria me atraído — Kasim falou, com uma risada. — Nem mesmo com seus cabelos cor de ouro...

— Depois da tempestade de ontem, eles estão precisando de um bom xampu...

— Você parece um gato... Está sempre se limpando!

Ao entrarem no acampamento, meia hora depois, os homens e as mulheres correram ao encontro deles num tumulto de exclamações e gritos de alegria. Lorna desceu do cavalo e dirigiu-se para a tenda dupla, onde agora se sentia mais em casa do que em qualquer outro lugar. Retirou rapidamente as botas, passou os dedos pelos cabelos grudentos de areia e bebeu sofregamente a limonada fresca que Zahra lhe ofereceu.

— Que susto nos deu, lella! — Zahra exclamou, segurando a mão de Lorna. — Por que fugiu?

— Porque sou uma louca, Zahra — Lorna respondeu, tirando a areia da roupa. — Preciso urgentemente tomar um banho.

— Já pus água no fogo. Enquanto meu amo estava ausente, chegou uma mensagem de Sidi Kebir... O emir está doente e mandou chamar o filho.

Lorna voltou-se, boquiaberta, para a moça árabe, com o rosto repentinamente pálido.

— O emir está doente?

— Foi o que ouvi dizer. Meu amo pretende viajar para lá. A lella também vai ao palácio do emir?

— Não, Zahra, penso que não. Vou ficar aqui no acampamento... ou voltar para Yraa. Vou decidir ainda. O emir está muito mal?

— Creio que sim. Ele é muito velho, embora o filho seja moço ainda. Os homens do Oriente se casam com mulheres bem jovens, e a mãe do príncipe era muitos anos mais moça que o emir. Morreu quando o filho tinha treze anos, idade em que os meninos se tornam homens.

— Aos treze anos os meninos se tornam adultos? — repetiu Lorna, espantada. — Em meu país, ele seria um menino de colégio, só preocupado em jogar futebol! Por favor, Zahra, traga a água quente. Preciso tirar essa areia do corpo... Fomos surpreendidos por uma tempestade ontem à noite e tive muita sorte de ser encontrada pelo sheik.

— A lella ficou contente?

— Fiquei com muito medo — respondeu Lorna, em voz baixa. No momento em que Zahra saiu da tenda, Lorna caiu no

sofá e afundou a cabeça na almofada. Estava perplexa com a notícia, e seu coração doía terrivelmente. O emir mandara chamar o filho, e Kasim partiria o mais rapidamente possível para Sidi Kebir. Ela não seria convidada para ir ao palácio.

Era o destino... Logo agora que desejava tanto sua companhia, Kasim fora chamado para longe!

Depois do banho, Lorna sentou-se na beira da cama, com a toalha envolta no corpo. Estava escovando os cabelos quando Kasim entrou na tenda. Ele também tomara banho e estava vestido com uma túnica branca aberta no peito. Os cabelos escuros estavam brilhantes, mas os olhos castanhos estavam sombrios quando a encarou.

— Hassan está trazendo nosso jantar. Está se sentindo melhor depois do banho?

O quarto ainda estava perfumado com os óleos aromáticos que Zahra despejara na água quente, e Lorna apertou, sem jeito, a toalha no corpo, ao perceber o olhar intenso de Kasim,

— Preciso me vestir...

— Ainda temos tempo. — Sentou-se ao lado dela, apanhou a escova de suas mãos e começou a escovar os cabelos loiros, muito compridos, macios e leves como os de uma criança.

— Se nos despedirmos hoje à noite, vou me lembrar para sempre de seus cabelos cor de ouro...

— Você vai viajar?

Ele soltou a escova e segurou-a pelos ombros.

— Meu pai está muito doente, e vou partir amanhã cedo para Sidi Kebir.

— Amanhã?

— Ele sofreu um ataque do coração.

— Ah, que horror!

— Precisamos resolver essa situação hoje à noite.

— Claro.

Ela evitou encontrar seu olhar para não revelar o desejo que sentia de permanecer para sempre ali, em sua companhia. O orgulho era um sentimento que pertencia ao passado, submerso pelo amor que surgira em seu coração. Não queria separar-se de Kasim. Do sentimento terrível do medo nascera o sentimento terno do amor.

O rosto dele estava sério, pensativo, quando se levantou com um suspiro e ficou junto à cama.

— Vamos discutir esse assunto mais tarde. Vou esperar você se vestir. Não demore muito. Hassan vai trazer o jantar dentro de alguns minutos.

Ela concordou com um movimento de cabeça e começou a vestir os trajes orientais que não lhe pareciam mais estranhos e esquisitos como antes. Era a última vez que se vestia assim para agradar ao sheik.

Parou um instante diante da cortina de contas, antes de passar por ela e, por um momento, Lorna pôde admirar à vontade os ombros largos, a cabeça altiva, a graça elegante do corpo.

Quando surgiu na sala, ela parecia fria e controlada. No íntimo, porém, sentia o medo terrível da separação iminente. A liberdade não contava mais. Queria ser sua escrava para sempre.

— O jantar está servido. Deve estar com muita fome, depois desse dia no deserto...

- O cheiro da comida está delicioso — falou, sentando-se entre as almofadas do sofá. Kasim serviu-lhe uma coxa de frango, temperado com ervas aromáticas e acompanhado de legumes cozidos na manteiga. — Hassan é um excelente cozinheiro e poderia trabalhar nos melhores hotéis da cidade... Você nunca pensou nisso?

— O homem que vive no deserto não se habitua com a vida na cidade.

— E você, gostaria de voltar para lá?

No canto da sala, o braseiro ardia, aquecendo e perfumando sutilmente o ar. A entrada da tenda estava fechada. Os dois estavam sozinhos, a intimidade era completa e, ao mesmo tempo, ameaçadora.

— Se meu pai morrer, terei de morar na cidade. Não poderei mais levar a vida dos beduínos. No deserto, o homem é apenas homem. Está próximo da natureza, às vezes do perigo, mas nunca está sujeito às convenções impostas pela sociedade. Eu daria tudo... Kasim interrompeu o que ia dizer, com um gesto fatalista de resignação. Lorna completou a frase mentalmente. Ele daria tudo para ser um homem livre como Ahmed ou como os nômades que encontraram no deserto.

Terminaram o jantar e continuaram a conversar depois que Hassan serviu o café. Naquela noite, beberam café preparado à maneira árabe, aromatizado com essências da terra. Lorna apreciou o gosto forte, marcante, como a personalidade do homem que andava pela tenda, com passos macios como os de um leopardo. Havia um brilho diferente nos olhos de Kasim. O corpo alto projetava uma sombra comprida no chão, enquanto acendia um cigarro atrás do outro, consecutivamente.

Lorna não associou o nervosismo dele à iminência da partida. Kasim não se prenderia a nada que fosse contra seus deveres. Ele se despediria dela sem a menor hesitação. No fundo, ela não passava de uma distração... uma mulher bonita reclinada nas almofadas do sofá, vestida de seda, coberta com as jóias que ele lhe dera.

Kasim voltou-se bruscamente, com um gesto de impaciência. Observou-a atentamente, com os olhos estreitados. Lorna estava sentada no sofá, o colo destacado pela túnica de seda, os pés pequenos nos chinelos turcos.

— Em que está pensando? — ele perguntou, com voz cortante. — Parece tão tranqüila! Está contente com minha partida? Está impaciente para se ver livre de mim?

Lorna não soube o que responder. Estava muito emocionada, muito abatida pela dor, prestes a explodir no choro. Kasim, porém, não devia suspeitar de seus sentimentos, da tristeza que ela iria sentir quando ele partisse, com a capa esvoaçante sobre a garupa do cavalo, uma figura contornada vivamente no céu pálido da madrugada.

— Olhe para mim! — Kasim ordenou.

Lorna não ousou levantar os olhos e recuou instintivamente no momento em que ele a segurou pelo queixo, a fim de fitá-la nos olhos. As mãos de Kasim estavam quentes e tinham um cheiro penetrante de tabaco turco.

— Amanhã você estará livre! — exclamou, segurando as pérolas do colar como se fosse arrancá-lo do pescoço dela.

O olhar, o gesto, a inflexão de voz, tudo conspirava para fazê-la sofrer.

— Pensei que fosse me vender para algum árabe rico — Lorna murmurou.

Os olhos castanhos brilharam intensamente. No instante seguinte, ele estava ao lado dela no sofá. Agarrou-a nos braços, apertou-a, beijou-a com tanta violência que ela ficou assustada e extasiada.

— Vou levá-la comigo! Seus olhos azuis são como os jasmins que crescem no jardim do palácio, e irá ver essas flores embaixo das janelas de meu quarto.

Lorna encarou-o fixamente e viu o nervo que tremia no canto da boca de Kasim. Ela não podia acreditar nas palavras que ouvira. Estava muda de espanto.

— Ouviu o que eu disse? Vou levá-la comigo para o palácio e vou apresentá-la a meu pai!

— Para o palácio?

— Meu pai ouviu falar de você. Ele quer conhecer a "bela inglesa" que hospedo em minha tenda...

— Não vai me mandar de volta para Yraa?

— Sinto muito, querida, mas não posso contrariar a vontade de meu pai. Sobretudo agora, quando está à beira da morte. Você irá comigo amanhã cedo.

— E depois? Como será depois?

— Como posso saber? — Kasim levantou-se do sofá com um movimento brusco e foi até a escrivaninha, no canto da tenda. Abriu uma gaveta e retirou um objeto de dentro. Voltou para o sofá, ergueu a mão dela e experimentou vários anéis em seu dedo, até encontrar um que cabia perfeitamente. Lorna fitou-o, boquiaberta, sem prestar atenção ao anel de safira.

— A estrela solitária que você queria.

— Está me cobrindo de jóias ultimamente... É para me mostrar a seu pai?

Kasim sorriu, e a tensão que vibrava no ambiente cessou finalmente naquela noite. Ele a abraçou e a beijou no colo descoberto.

— Gostou do anel, meu amor?

— É lindo...

— Mas não se compara com você — ele murmurou em seu ouvido. — Posso fazê-la arder com meu desejo?

— Para se enjoar de mira?

Ele sorriu com indolência e acariciou a nuca de Lorna, fazendo-a arrepiar-se toda.

— Há quanto tempo estamos juntos? As vezes, tenho a impressão de que se passaram apenas alguns dias...

Ela fechou os olhos quando ele a beijou nos lábios. Em seguida, Lorna respondera-lhe quantos dias havia que estavam juntos, sorvendo o que para ele deveria ser apenas mais um prazer do momento.

— O ar do deserto fez bem a você. Não me lembro de tê-la visto doente nenhum dia.

— Preocupou-se com isso por acaso?

— Claro que sim. Você é muito jovem ainda, amor. Houve momentos em que fiquei seriamente preocupado com sua saúde.

— Mas esses momentos foram poucos, não é verdade?

— Gosto de vê-la bem-disposta, sadia, contente... Uma mulher doente só dá trabalho!

— Que egoísta você é! Um sedutor cruel de moças inocentes.

— Somente de uma, querida.

— Com as outras você não usou de força?

— Tampouco com você! Está deitada espontaneamente em

meus braços.

— E só saio machucada quando me defendo de você... Ele acariciou o braço onde brilhava o bracelete que lhe dera.

— Sua pele é tão fina que um sopro a machuca. Uma pele quente num coração gelado.

— Preferia que eu fosse uma mulher ardente? — perguntou, encarando-o com o coração desfalecendo de amor.

Kasim deu uma gargalhada. Levantou-a nos braços e carregou-a em direção à cama.

— Precisa dormir bem esta noite, meu amor. Vamos partir amanhã bem cedo para Sidi Kebir.

Ela estava feliz de partir com ele, mas, ao mesmo tempo, estava ligeiramente apreensiva com a perspectiva de conhecer sua família. O que o pai e a irmã pensariam da moça inglesa que estava hospedada na mesma tenda do filho?

Kasim afastou os fios de cabelos loiros que caíam sobre os olhos de Lorna.

— Responda sinceramente, Lorna. Quer ir comigo?

— Tenho outra escolha?

Ela sentiu a carícia em sua mão e desejou ardentemente que Kasim respondesse que não, que ela não tinha outra escolha senão acompanhá-lo, que ela era sua e que iria levá-la consigo, por bem ou por mal.

— Se eu disser que sim, vai pedir para ser levada a Yraa. Mas você não entende, meu bem, que sua volta repentina vai despertar curiosidade? Que desculpa daria por ter ficado desaparecida durante semanas no deserto? Dirá que eu a mantive à força em minha tenda?

— Não me importo com o comentário das pessoas — Lorna respondeu, com coragem, mas a perspectiva de separar-se dele, de voltar sozinha para o hotel, era insuportável.

— Se me acompanhar ao palácio de meu pai, ninguém comentará nada quando voltar para Yraa. Como convidada do emir, você está acima de qualquer suspeita.

— Mas não como sua convidada?

— Claro. Sou jovem ainda, e as pessoas dirão que foi minha amante.

— Mas nós dois sabemos a verdade. E você não precisa se preocupar com sua reputação. Não vou acusá-lo de sedução de moças indefesas...

— Porém, antes você disse que eu era odioso, lembra-se?

— Isso ficou para trás. Não posso esquecer que você salvou minha vida ontem. Seria uma ingrata se agisse de outra forma.

— Quer dizer que você vai salvar minha reputação indo comigo a Sidi Kebir?

— Para falar a verdade, eu não gostaria de ouvir os comentários das pessoas no hotel — disse Lorna, com os olhos baixos, para não revelar sua alegria.

— Seu orgulho não suportaria isso, não é mesmo? — Kasim inclinou a cabeça e beijou-a na testa. — Vamos partir de madrugada. Descanse bem esta noite e não tenha medo de conhecer meu pai. Ele não é nenhum bicho-papão e aprecia as mulheres bonitas... como todo árabe.

Kasim levantou-se, com um suspiro.

— Boa noite, querida. Durma bem.

— Você também, príncipe Kasim.

A cortina de contas tilintou um instante, depois silenciou. O quarto estava vazio, a cama muito grande para uma pessoa só, mas o coração dela exultava de alegria. As lágrimas umedeciam os olhos azuis que olhavam para o teto da tenda. Kasim era um sheik muito mais carinhoso do que as pessoas suspeitavam.

 

A residência branca e quadrada, construída no alto de Sidi Kebir, não demonstrava por fora sua suntuosidade interior. Após atravessarem o portão duplo, em forma de arco, os viajantes penetraram num grande pátio cercado de palmeiras, de onde se podiam avistar as duas alas do palácio.

Desmontaram dos cavalos suados diante da ala esquerda e dirigiram-se para uma grande porta de madeira trabalhada, no alto de uma escadaria. Os homens da comitiva de Kasim tomaram outra direção, uma vez que aquela parte da casa era reservada apenas ao filho do emir.

Ao entrarem no saguão, Kasim e Lorna foram recebidos com manifestações de alegria pelos criados, que lhes ofereceram refrescos de frutas. Kasim dirigiu-se a eles em árabe, e os criados saíram às pressas para executar suas ordens. Em seguida, após acender um cigarro, ele voltou sua atenção para Lorna, que estava sentada num sofá, visivelmente assombrada com o que via a sua volta.

O luxo do ambiente era deslumbrante. Havia galerias com arcos e uma espécie de claustro, no meio do qual estava um chafariz revestido de azulejos azuis, sem falar nos biombos de cedro entalhados com motivos de ramagens e de flores, nas lâmpadas de ferro trabalhadas à mão, nos mosaicos de cores vivas e nas paredes cobertas de tapeçarias. Em toda parte, reinava o perfume de sândalo e o silêncio acolhedor de um convento.

— Parece um conto de As Mil e Uma Noites — murmurou Lorna, lembrando-se de que aquele palacete era a residência do emir, pai de Kasim, e que a presença dela ali era uma grande honra que lhe fora prestada.

— Está estranhando o ambiente? — perguntou Kasim, notando a expressão de espanto no rosto dela. — Também me sinto assim toda vez que volto para casa. Tenho saudade do céu azul sobre a vastidão do deserto.

Lorna não sabia o que dizer. Era uma perfeita estranha ali e não se sentia segura nem mesmo na companhia do filho do emir. Kasim parecia distante, alheio, preocupado, enquanto andava de um lado para o outro do saguão.

— Vou fazer uma visita a meu pai. Kasha vai cuidar de você. Ela foi a camareira pessoal de minha mãe.

Lorna sentiu-se mais aliviada ao ouvir essa informação. Conseguiu inclusive dar um sorriso e levantar-se do sofá.

— Espero que seu pai tenha melhorado. Quando acha que poderei fazer-lhe uma visita?

— Não posso adiantar nada. — Segurou-a pela mão e franziu a testa ao perceber seu nervosismo. — Não precisa ter medo. Meu pai não é nenhuma fera. Como a maior parte dos árabes, ele se interessa pelas amizades do filho e está curioso para conhecer a pérola que encontrei no deserto...

— Não diga isso! — exclamou Lorna, soltando bruscamente a mão no momento em que uma mulher apareceu na sala.

Era uma senhora baixa e tinha um pano enrolado na cabeça que lhe cobria metade do rosto. Cumprimentou Kasim com alegria e voltou-se para Lorna com os olhos fundos, muito escuros, como se guardassem segredos de outros tempos.

— Kasha vai acompanhá-la a seu quarto e providenciar tudo que for necessário — disse Kasim, apagando o cigarro no cinzeiro em cima da mesa. — Como está meu pai, Kasha?

A mulher abriu os braços, num gesto expressivo.

— Os médicos disseram que ele se recuperou da crise. O resto é com Alá.

— Ele está conversando normalmente? Não ficou muito abatido com a doença?

— Ele está conversando bem. — Um sorriso surgiu no rosto da empregada ao admirar o homem alto e imponente que ela carregara no colo, — Ele está com muita saudade do filho, que fez do deserto sua residência há muitos meses.

— Eu pretendia vir antes — Kasim falou, olhando de relance para Lorna. — Contudo, o deserto tem um encanto que não consigo esquecer. A gente nunca sabe o que encontrar lá.

Com um sorriso no canto dos lábios, Kasim deu meia-volta e atravessou o saguão, saindo pela porta dupla que levava ao interior do palácio. Lorna encontrou os olhos da velha criada que conhecera a mãe de Kasim e procurou conquistar sua simpatia.

— Espero que sejamos amigas, Kasha — disse, com um sorriso. Os olhos negros percorreram-na de alto a baixo em silêncio,

observando a calça de montaria e depois o lenço que lhe cobria os cabelos. Havia curiosidade e simpatia no olhar que dirigiu a Lorna.

— Venha comigo, lella. Vou levá-la a seu quarto, onde poderá tomar um banho e repousar da viagem.

Subiram um lance de escada e atravessaram o corredor que levava ao terraço, onde ouviram o lamento alto de um muezzin, chamando os fiéis para a oração. Era a primeira vez que Lorna presenciava esse costume antigo entre os muçulmanos e sentiu uma sensação estranha que nunca lhe ocorrera no deserto.

Afastou-se com relutância do terraço e foi conduzida por Kasha a seu aposento, que estava profusamente decorado com flores e ramagens. Havia uma inscrição em árabe gravada em dourado no alto da porta, e Lorna parou um instante para examiná-la.

— O que significam essas palavras, Kasha?

— Está escrito aí que o amor é a porta do jardim das romãs — respondeu Kasha, virando-se de frente para ela. — Quem colhe uma romã conhece a doçura.

Lorna corou e voltou o rosto, ao perceber que Kasha aplicava a ela o significado das palavras.

— A lella quer visitar o haremlik?

— Ah, sim. Gostaria muito.

Eram três aposentos, cada um deles separado por um biombo de cedro, entalhado e rendilhado. No aposento principal, havia sofás em cima de estrados e lâmpadas de prata penduradas em correntes presas nas vigas do teto. Os tapetes eram coloridos e extremamente macios, e as janelas estreitas estavam protegidas com grades de ferro trabalhadas.

Os móveis do quarto eram incrustados com madrepérola. Cortinas de renda, muito fina, estavam penduradas em volta da cama e, na penteadeira, havia uma coleção prodigiosa de potes e frascos de perfume.

O banheiro era simplesmente deslumbrante! No meio, tinha uma pequena piscina de ladrilhos verdes, cercada em toda a volta por arcos, embaixo dos quais floriam pés de acácia, dentro de grandes vasos de cobre. Os armários eram decorados com desenhos coloridos, e, dentro de um deles, Lorna encontrou uma grande variedade de essências e óleos aromáticos.

Ela ficou boquiaberta com o luxo dos aposentos. Aquele era o haremlik de Sidi Kasim ben Hussayn. Era natural que possuísse uma coleção tão variada de perfumes e cosméticos, de roupas de seda e chinelos bordados.

Kasha abriu a torneira de água quente e espalhou essência de rosa em toda a volta da piscina. Lorna despiu a roupa de montaria e sorriu de alegria ao entrar na água morna, enquanto Kasha apanhava toalhas no armário, roupas íntimas e uma túnica deslumbrante de seda azul, com as mangas amplas bordadas de fios de prata.

Lorna adorou o vestido no momento em que o pôs. Com os cabelos dourados e os olhos azuis, estava tão linda quanto uma moça medieval. A seda era muito macia, e ela não cessava de apalpá-la.

— O café está sendo servido no quarto ao lado — Kasha avisou-a, observando-a com uma certa compaixão no olhar.

Foi esse olhar que levou Lorna a fazer uma pergunta. Uma pergunta que a preocupava desde o momento em que entrara no palácio.

— Kasim me contou que você foi a camareira da mãe dele. Como ela era, Kasha? Eu gostaria muito de saber.

— Ah, minha ama era muito bela.

— Sei disse. Vi um retrato — disse Lorna, sentando-se diante da mesinha e servindo-se de café. — Mas era feliz aqui?

Um olhar reservado cobriu a fisionomia aberta de Kasha.

— Ela era a esposa favorita do emir, lella.

— Ele tinha mais de uma esposa? — perguntou, levando a xícara aos lábios,

— Naturalmente, filha — Kasha respondeu, abrindo os braços, como se a resposta fosse evidente. — A lella não sabia que meu amo tinha duas esposas? A irmã de Sidi Kasim não é filha da primeira esposa. Depois do nascimento do menino, minha ama não podia mais ter filhos, por isso o emir casou-se de novo. É o costume entre nós. Isso não significa que o marido se esqueça da primeira esposa.

Lorna ouviu com atenção a explicação da criada e compreendeu que estava entre estranhos, num país distante, cujos costumes eram exóticos e diferentes dos seus. Ali os homens podiam ter mais de uma mulher e não dedicavam todo seu amor a uma só! Um arrepio repentino percorreu seu corpo. Bebeu o café, comeu um bolinho de amêndoa e procurou pensar em outra coisa depois que Kasha saiu do quarto.

Alguns instantes depois, no entanto, uma moça surgiu silenciosamente à porta. Parou junto à coluna e observou Lorna com atenção. Tinha olhos castanhos, da cor de amêndoas, e seu rosto era delicado e moreno. Ao dar um sorriso, Lorna avistou os dentes perfeitos. Ela tinha uma pinta preta na face e usava uma mantilha de seda em volta dos ombros, que caía maravilhosamente sobre o corpo esguio.

— Ah, já sei! Você é o pequeno falcão que meu irmão trouxe no pulso! Ele disse que seus cabelos são da cor do mel selvagem.

— E você é Turqeya! — exclamou Lorna, fascinada com a moça exótica, cujas sobrancelhas estavam unidas no alto do pequeno nariz, e cujas unhas estavam tingidas de henna.

Era uma criatura encantadora, como uma miniatura a óleo!

— Sente-se aqui — Lorna pediu, com animação, apontando para um lugar a seu lado no sofá. — O café ainda está quente, e os bolinhos de amêndoas estão deliciosos.

Turqeya aceitou o convite com um sorriso e sentou-se no sofá entre as almofadas.

— Que bom você ter vindo! Estava curiosa para conhecê-la e tinha certeza de que ia gostar muito de você...

Lorna estava visivelmente fascinada com a maneira ingênua e espontânea da moça. Estendeu-lhe uma xícara de café e apontou para os bolinhos que estavam em um pratinho.

— Também estou muito contente em conhecê-la, Turqeya.

— E verdade que viajou a cavalo pelo deserto? O deserto é tão grande... Não teve medo?

— Um pouquinho, mas adorei o deserto. Alguns dias atrás, fomos surpreendidos por uma tempestade de areia e quase morremos soterrados... Mas depois que o perigo passou, foi muito divertido. Seu irmão salvou minha vida.

— Ah, é verdade? Ele não costuma andar no deserto na companhia de mulheres... Imagino que você seja um caso especial. Ele sempre teve predileção pela cor do jasmim, e seus olhos são exatamente dessa cor... azul-escuros, com um tom de violeta.

— Ele nunca me contou isso — disse Lorna, procurando ocultar seus sentimentos verdadeiros.

— Mas Kasim deve gostar muito de você!

— Bem, quando ele está de bom humor, trata-me muito bem — Lorna falou, abaixando os olhos. — Como este palácio é enorme, Turqeya! Estou ansiosa para conhecê-lo, especialmente o jardim, que deve ter muitas flores exóticas e cisternas antigas.

— Está um pouco escuro lá fora para poder ver os jasmins, mas você pode sentir o perfume. Venha comigo! — Turqeya levantou-se com agilidade e estendeu a mão para Lorna.

Levou-a em direção à porta de vidro que dava para o balcão, protegido por uma grade dourada.

Lorna debruçou-se no parapeito e aspirou o perfume forte que subia pelas paredes. Uma ave cantou no meio das roseiras. Ao longe, estavam as cúpulas e os minaretes de Sidi Kebir... uma cidade prateada, enfeitada pelo luar.

Subitamente, a beleza da paisagem lhe causou uma certa apreensão. Estava feliz em saber que seus olhos eram da cor do jasmim, a flor preferida de Kasim. Ao mesmo tempo, contudo, como as flores do jardim, ela não podia permanecer para sempre ali.

— E seu pai, como está?

— Ah, ele não está nada bem — Turqeya respondeu, com um suspiro. — Estou com pena de Kasim. Ele sempre foi um homem do deserto e agora vai perder a liberdade. Se meu pai não se recuperar completamente, o que é pouco provável, Kasim deve assumir sua posição e vestir o manto vermelho do poder.

— O manto vermelho?

— É o símbolo do poder entre as tribos árabes — explicou Turqeya. — O povo adora Kasim porque ele é bonito, corajoso e viril. Os árabes respeitam apenas o emir e, mesmo assim, não temem expressar seus sentimentos profundos às vezes.

— Seu pai é muito severo? — perguntou Lorna, sem poder ocultar sua ansiedade.

— Antes, sim. Quando eu era menina, ele me assustava muito toda vez que ia visitar minha mãe. Eu corria e me escondia dentro da arca. Às vezes, quando ele estava de bom humor, procurava-me pela casa toda e me dava balas. Ele gostava de mim porque eu era muito meiga, mas ele sempre quis ter um outro filho. Se Kasim tivesse um irmão, agora estaria livre para levar a vida que lhe agradasse. Mas como não tem...

Turqeya voltou para o quarto, e Lorna seguiu-a com um arrepio de frio.

— Está com frio? — perguntou Turqeya, percebendo o tremor do corpo de Lorna.

— Um pouquinho — disse, indo aquecer as mãos no braseiro que estava aceso no canto do aposento.

— Gostou de seu quarto?

Turqeya voltou a se sentar entre as almofadas bordadas do sofá e comeu um bolinho de amêndoas com mel. Ela parecia uma gata de estimação, e Lorna não se cansava de admirá-la. Era a irmã encantadora do sheik energético e autoritário, e combinava perfeitamente com o ambiente de luxo e requinte a sua volta.

— Nunca vi um quarto mais lindo em minha vida — falou Lorna por fim, sentando-se a seu lado. — A mãe de Kasim morava aqui?

Ela não sabia por que, mas o ambiente lhe parecia um pouco triste, a despeito do esplendor dos objetos. Ocorreu-lhe novamente que Elena, a mãe de Kasim, não fora completamente feliz naquele palácio. Como mulher européia, nascida na Espanha, não podia habituar-se com a vida enclausurada de uma esposa árabe. O emir, por sua vez, segundo a descrição de Turqeya, devia ter sido um homem terrivelmente severo quando moço.

— Sim, ela morava neste palácio — respondeu Turqeya, limpando o mel dos lábios no guardanapo. — Minha mãe, no entanto, era turca. Ao que parece, os homens de nossa família gostam das mulheres de fora...

Lorna percebeu o olhar malicioso da moça e tentou corrigir a impressão que sua presença causava no palácio.

— Não se esqueça de que sou apenas a convidada de seu irmão. Turqeya olhou-a, com perplexidade.

— Como? Então são apenas amigos? Pensei que fossem namorados!

— O deserto é o único amor de seu irmão.

— Mas você gosta dele, não é?

— Bem, confesso que o charme dele me encantou — Lorna falou, meio sem jeito. — Em princípio, ele me pareceu um tirano, mas, com o passar do tempo, notei que podia ser também extremamente carinhoso. Há uns dias, tentei fugir dele...

— A mulher foge do homem que ama — Turqeya disse, abaixando os cílios compridos. — Outras vezes, é o homem quem se afasta do que não pode ter.

Enquanto Lorna meditava sobre essas palavras, Turqeya escondeu o rosto pequeno atrás do véu, como se tivesse um segredo que não podia revelar. Lorna lembrou-se, então, do que Zahra dissera a respeito de Kasim: que estava decidido a escolher um marido para a irmã entre os pretendentes que se apresentavam ao palácio do emir.

De repente, com um movimento gracioso, Turqeya levantou-se do sofá e foi abraçar o irmão, que entrara no aposento.

Kasim beijou sua irmã no rosto, com uma alegria visível.

— Está cada dia mais bonita, minha irmã!

— E você está cada dia mais bronzeado e forte... tão forte que tenho medo de seu abraço!

— Parece que foi ontem que você brincava de se esconder atrás das palmeiras — disse Kasim, balançando a cabeça. — Agora está com sombra nos olhos, as unhas tingidas de henna. Com uma pele tão linda como a sua, é uma judiação passar esses produtos de beleza...

— Na cidade a gente precisa se maquilar, para ser chique!

— O quê? Você não precisa cobrir-se de pinturas para ser atraente — Kasim falou, molhando a ponta do dedo e apagando a pinta preta que Turqeya desenhara na face.

— Seu antipático! — exclamou a irmã, dando um tapinha na mão dele. — Se eu fosse Lorna, fugiria de você!

— Ela já fugiu uma vez! — disse Kasim, olhando de relance para Lorna.

Ao avistar o vestido azul que estava usando, ele sorriu de satisfação. O tecido fino combinava com a cor dos olhos e acentuava a pele, que agora estava mais morena.

— Como está seu pai? — perguntou Lorna.

— Está se recuperando lentamente... Conversamos algum tempo sobre assuntos que o preocupavam.

— Ah, ele queria muito que voltasse, irmão! — exclamou Turqeya, pousando a mão de leve sobre o ombro largo de Kasim.

— Você prometeu a ele que não vai mais embora?

Kasim encarou a irmã, com uma expressão sombria. A saudade que sentia do deserto era mais forte que tudo, pensou Lorna, surpreendendo seu olhar. O deserto era a paixão de sua vida... ela era apenas um interlúdio.

Turqeya conversou com os dois mais algum tempo e depois retirou-se para seu quarto. Eles jantaram sozinhos no aposento de Lorna, e, como era costume no deserto, Hassan serviu a mesa, O criado fazia parte da comitiva que acompanhara o príncipe a Sidi Kebir.

— Gostou do palácio?

— É maravilhoso como um conto árabe! Eu conservaria com muito carinho todas essas coisas antigas se o palácio fosse minha casa.

Kasim ouviu o comentário em silêncio, e Lorna respirou, aliviada, quando a refeição terminou. A presença de Kasim aumentava sua ansiedade, corno se tivesse medo de perdê-lo de um instante para o outro.

— Vamos ao terraço ver a cidade — Kasim disse, depois que tomaram café. Segurou-a um momento nos braços e mergulhou os olhos nos dela, como se quisesse ler seus pensamentos. — Vou apanhar um agasalho para você. A noite está fria, e pode pegar um resfriado.

Lorna aguardou sua volta, com certa apreensão. No deserto, ela conhecera o céu e o inferno na companhia dele, mas nada se comparava à tortura de estar com Kasim na casa onde ele nascera e fora criado. Olhou em volta de si, como se a presença da mãe dele pairasse sobre o ambiente e quisesse adverti-la do perigo que corria...

Kasim voltou logo depois com uma capa de lã, forrada de seda, que passou em volta dos ombros dela.

Saíram do aposento por uma porta alta de madeira rendilhada e seguiram o corredor em direção à escada estreita que levava ao terraço, de onde se tinha uma vista suntuosa da cidade.

A luz prateada da lua cheia parecia intensificar a tranqüilidade da noite. Ao longe, havia casas com jardins cercados de muros, ruas estreitas e sinuosas que iam terminar no centro da cidade. Podiam sentir a vibração das vozes, os perfumes penetrantes que subiam pelo ar, ouvir os lamentos insistentes da música árabe, que acrescentavam um encanto exótico à paisagem.

— Lembra uma tapeçaria preta e prateada — murmurou Lorna. Os odores da noite, o sussurro da música e o ar de mistério

criavam uma atmosfera fascinante. Mais do que nunca, ela sentiu o encanto irresistível do homem a seu lado, muito alto e cheio de vitalidade no cafetã branco, vestido por cima da calça de linho. O coração dela bateu mais depressa. O contato de suas mãos a deixava arrepiada e lânguida.

— O luar está preso em seus cabelos — sussurrou Kasim. — Você faz parte da tapeçaria prateada.

Quando seu hálito soprou-lhe os cabelos, ela desejou correr para longe dali, no pânico do amor. Ao mesmo tempo, daria tudo para deitar a cabeça em seu ombro e pedir-lhe amor de volta.

Se gostasse dela, como a noite seria maravilhosa, como o futuro seria excitante!

— Amanhã, vou apresentá-la a meu pai. Ele expressou o desejo de conhecê-la.

Ela sentiu uma contração no estômago. O que aconteceria se o emir fizesse objeção a sua presença no palácio? Se dissesse ao filho para mandá-la embora? Kasim dera a entender que o pai desfrutava de uma autoridade absoluta, e Turqeya falou dele mais com admiração do que com afeição de filha.

Lorna contemplou a cidade banhada pelo luar e lembrou-se de seu pai. Ah, ele teria adorado pintar uma paisagem como aquela! As cúpulas e os minaretes agradariam certamente a sua sensibilidade artística. Sidi Kebir era a cidade com que ele sonhara! Quando se voltou, notou que o rosto de Kasim estava sombrio ao luar. Era evidente que estava preocupado e que também não desejava revelar o motivo.

— Talvez fosse melhor se eu tivesse ido para Yraa. Não quero complicar sua vida, Kasim. Especialmente com seu pai doente.

— Não, não seria melhor — Kasim respondeu, passando o braço em volta de sua cintura e estreitando-a contra a amurada do terraço. — Eu não poderia deixá-la, sem primeiro fazer a devida reparação pública.

— Reparação pública? — repetiu Lorna, espantada, sem saber se era o coração dele que batia com tanta força no peito.

Nem mesmo o luar podia passar pelo meio dos dois quando Kasim estreitou-a nos braços e o vento da noite soprou os cabelos loiros, como uma névoa transparente.

— Amanhã, você saberá — disse Kasim, fitando-a nos olhos.

 

Lorna desceu em silêncio as escadas que levavam ao jardim do palácio. Era cedo ainda, e tinha necessidade de ficar sozinha durante alguns minutos, antes dos compromissos inquietantes do dia.

Atravessou a porta em forma de arco e saiu para o corredor que dava para o pátio, onde as roseiras estavam cobertas de orvalho. Respirou fundo o ar fresco e perfumado da manhã e caminhou por entre as árvores cobertas de flores vermelhas.

Passou por baixo de túneis de jasmins-azuis e por um bosque de palmeiras. Avistou um beija-flor, cujas penas eram uma mistura surpreendente de azul e de verde. Quando chegou ao pátio cercado por um muro baixo, parou alguns momentos para admirar a fonte antiga onde a água caía de um plano para outro, criando um efeito de cascata. Sentou-se no banco de azulejos e estava tão imóvel, tão absorta em seus pensamentos, que os passarinhos se aproximavam para beber água e tomar seu banho matinal.

Sentia-se tranqüila, embora suspirasse com apreensão toda vez que pensava no dia que tinha pela frente e no encontro que Kasim marcara com o temível emir.

Seu olhar voltou-se para as moitas de espirradeira, cujas folhas brilhantes guardavam uma substância venenosa. O sol e as sombras traçavam arabescos no chão... Mesmo ali, o amargo misturava-se com o doce perfume das pétalas.

Deu um suspiro profundo. Ah, se pudesse bater asas e voar para longe, como um passarinho, sem deixar nenhum vestígio, unicamente a lembrança evanescente de sua passagem! Ela não fazia idéia do que Kasim quisera dizer na noite anterior, quando mencionara fazer uma reparação pública. Depois que saíram do terraço, ele fora despedir-se do pai e não voltara mais ao aposento dela.

Uma borboleta amarela voou sobre as pétalas de uma flor perto dali. A cor de suas asas lembrava o brilho amarelado que surgia às vezes nos olhos castanhos de Kasim. Seu coração estremeceu, como as asas da borboleta. Não podia entender como era possível amar um homem que a tratava com tanta indiferença.

Ela nunca confessaria a ele seus sentimentos verdadeiros. Se estivesse próximo o momento da despedida... Apertou distraidamente uma rosa que havia colhido e sentiu uma dor real quando o espinho penetrou em seu dedo. Ah, se ao menos a despedida fosse uma dor tão breve quanto essa!

Momentos depois, Lorna levantou-se do banco e voltou pelas ramadas de jasmins, muito azuis à luz da manhã, e avistou alguns vultos abaixados, trabalhando entre as árvores do bosque. O clima estava agradável, e as rosas começavam a abrir as pétalas ao sol. Algumas calam silenciosamente ao chão... Uma rosa morria como uma lembrança, em silêncio, sem uma dor visível. O coração guardava sua dor, como a moita de espinhos conservava sua última rosa.

Ao atravessar o corredor que levava ao interior do palácio, um gato persa surgiu de uma sombra e aproximou-se lentamente de Lorna, até levantar o rabo e roçar-se indolentemente contra suas pernas. Ela se ajoelhou no piso de ladrilhos para brincar com o gatinho, encantada com os olhos verdes e com a maneira carinhosa do animal. Sorriu de alegria quando o gatinho rolou no chão e encostou o focinho úmido em seus dedos.

Estava distraída, brincando com o gatinho, quando ouviu passos firmes no piso de ladrilhos. Levantou a cabeça e avistou Kasim, parado a distância, observando-a em silêncio. Estava com um albornoz bordado de fios de ouro e botas de couro de cano alto. Os olhos, sombrios, tinham uma expressão que ela desconhecia... uma expressão de dor.

— O que aconteceu? — perguntou, aflita, levantando-se do chão. — Seu pai não passou bem à noite?

— Passou... Ele melhorou um pouco. — Kasim deu dois passos à frente e segurou-lhe as mãos. — Você parece uma criança, brincando com esse gato...

Ela não se sentia, porém, uma criança... Nenhuma mulher ficaria à vontade diante de Kasim. Ele era muito viril, muito alto e imponente. Um autêntico homem do deserto. Ela o amava agora pelos mesmos motivos que a atemorizavam no início.

— Vamos fazer uma visita a meu pai dentro de uma hora. — Apertou as mãos dela para lhe dar coragem. — Diga a Kasha para escolher um vestido bem bonito para você.

— Estou tão nervosa com esse encontro! O que seu pai vai pensar?

— Não se esqueça de que os árabes apreciam a beleza — disse Kasim, com um sorriso carinhoso. — Ele vai achá-la muito bonita, só isso. — Beijou-a de leve na ponta dos dedos, à maneira francesa. — Vá se vestir sem susto, querida.

Lorna acompanhou-o com os olhos e viu Kasim se afastar para outra parte do palácio. As dobras do albornoz pareciam esculpidas em torno do corpo alto. Havia um ar de gravidade na postura dele que a deixou perplexa... O encontro com o pai era certamente o prelúdio da separação.

Ao entrar em seu quarto, ela encontrou Kasha, esperando para vesti-la. Mas resolveu tomar um banho de imersão antes. Queria estar mais animada para o encontro com o emir.

Instantes depois, Kasha escovou seus cabelos demoradamente e escolheu no guarda-roupa um vestido comprido de seda e uma túnica transparente com as mangas bordadas na altura do cotovelo. Em seguida, colocou uma touca enfeitada com jóias em sua cabeça e prendeu o véu, com um alfinete dourado, no ombro do vestido. Por fim, Lorna calçou os sapatinhos forrados de veludo e, quando se mirou no espelho, deu uma exclamação de surpresa.

— Agora a lella é a pérola de Sidi Kasim — Kasha falou, ajeitando o véu no rosto. — Ele herdou o amor pela beleza da mãe e o gosto da autoridade do pai. Era natural que escolhesse uma moça bonita... e desembaraçada como a lella.

— Vou ser apresentada ao pai dele, Kasha. E estou muito nervosa por causa desse encontro.

A velha criada fitou os olhos de Lorna refletidos no espelho e, com um sorriso, tocou um fio de cabelo loiro.

— O emir não é mais o homem temível de antes. Não precisa ter medo, filha.

Lorna, mesmo assim, continuava ansiosa. Tinha certeza de que o emir não aprovaria sua permanência no palácio.

Kasim foi encontrá-la no quarto poucos minutos depois. Lorna vestiu a mesma capa comprida que usara na noite anterior para sair no terraço. Os dois atravessaram os corredores em forma de arco e chegaram finalmente a uma porta pegada, sobre a qual estava esculpida uma lua crescente.

Entraram numa ante-sala espaçosa, onde os sultões de antigamente costumavam reclinar-se no sofá para tomar sherbet e ouvir música na companhia de sua esposa favorita.

Lorna voltou-se para Kasim com a fisionomia apreensiva. Ele estava muito imponente com o albornoz preto e dourado, o turbante preso por uma cordinha dourada que era o símbolo de sua posição. Os trajes combinavam bem com a postura solene e o perfil autoritário, e Lorna sentiu-se, pela primeira vez, uma estranha a seu lado.

— Diga a verdade! — exclamou, sem poder se conter por mais tempo. — Sei que vou ser convidada a sair do palácio!

Os olhos castanhos observaram-na em silêncio, e as narinas finas se estreitaram momentaneamente, como se ele se revoltasse contra a idéia de perdê-la, como se sua companhia lhe fosse tão indispensável ali quanto fora no deserto. Ele abriu os lábios para responder, mas, nesse momento, um criado apareceu na porta e convidou os dois para o acompanharem ao aposento do emir.

No instante seguinte, estavam na presença do emir Hussayn ben Mansour beni Saadi, chefe supremo da grande tribo árabe, cujas origens remontavam aos tempos das cruzadas.

O emir tinha olhos grandes e brilhantes, bem como os traços enérgicos de um governante. Parecia um paxá, velho e orgulhoso, com a cabeça reclinada na cabeceira da imensa cama de dossel, cujas colunas chegavam até o teto.

Examinou demoradamente a moça loira, que parecia assustada e muito linda nas roupagens orientais. Observou detidamente o véu que ela segurava com a ponta dos dedos. Voltou-se, em seguida, para o filho, que se mantinha em silêncio, com a cabeça erguida, ao pé da grande cama. Havia outras pessoas no quarto, oficiais e parentes, em mantos compridos de linho, que guardavam uma atitude respeitosa.

— Então, meu filho, essa é a bela moça que você deseja tomar por esposa... — disse o emir pausadamente, e todas as pessoas no quarto respiraram aliviadas.

Lorna teve a impressão de ouvir uma trovoada, depois um silêncio mortal. Voltou-se, alarmada, para Kasim. Não podia ser verdade! Ela devia estar delirando! Aquilo era um sonho fantástico e impossível!

Então, avistou o sorriso irônico na curva de seus lábios quando Kasim surpreendeu seu ar de espanto.

— Meu pai deseja que eu me case, e escolhi você para ser minha esposa.

Lorna estava muda, consciente de que todas as pessoas presentes olhavam fixamente para ela, aguardando sua resposta. Kasim falara na noite anterior em fazer uma reparação pública e era isso! Uma reparação digna de um príncipe!

O ventilador no teto girava hipnoticamente, e, somente então, ela entendeu por que estava vestida de seda com um véu sobre o rosto... O casamento seria celebrado ali, os votos de fidelidade seriam pronunciados diante da cama imperial do emir!

Ela queria protestar, gritar não, não dessa forma, sem amor, sem ternura ou esperança de felicidade duradoura! Não podia haver alegria nem felicidade sem amor. Era o coração dele que ela desejava, não uma retratação!

Entretanto, enquanto os gritos de protesto morriam na garganta, ela se lembrou dos momentos inesquecíveis que vivera com ele, dos passeios no deserto de madrugada... dos perigos que enfrentaram juntos sob a tempestade de areia... do dia em que ela passou por um rapazinho na tenda dos nômades...

O poder e o mistério de sua personalidade seduziam-na mais do que nunca. Se era isso que ele desejava, não poderia furtar-se a sua vontade.

Abaixou a cabeça para anunciar publicamente que o aceitava como esposo. Ouviu confusamente, como num sonho, as palavras ditas em voz alta pelo oficial do palácio e, em seguida, tocou com a palma da mão as escrituras do Alcorão. Seus olhos ficaram deslumbrados com a cimitarra incrustada de jóias que estava pousada sobre sua cabeça, símbolo da autoridade do marido árabe sobre a esposa.

Após a breve cerimônia, o emir fez sinal com a cabeça para ela se aproximar do leito. A cama de dossel estava colocada em cima de um estrado, e os dois estavam praticamente no mesmo nível quando o emir estendeu o braço e colocou no alto da cabeça dela um laço brilhante de fita.

— Você pertence agora ao beni Saadi, minha filha. É uma decisão séria — acrescentou o emir, com um sorriso, embora o rosto parecesse uma máscara de bronze marcada pelos anos. Pegou suas mãos, e Lorna percebeu toda a fragilidade do velho governante. Fora por respeito ao pai que Kasim casara-se com ela! — Este casamento tem minha bênção — concluiu o emir, com voz cansada. — E faço votos que seja muitas vezes abençoado para o beni Saadi.

Lorna inclinou a cabeça, em sinal de aquiescência, e foi conduzida até a sala ao lado, onde a vestiram com uma capa suntuosa. Em seguida, foi conduzida numa liteira aberta até os aposentos do príncipe.

A notícia do casamento foi anunciada em toda a cidade do alto dos minaretes. Lorna, deixada sozinha no quarto, ouviu as exclamações de Allah Akbar e, logo depois, as explosões dos fogos e o regozijo do povo que se reunia nas ruas vizinhas para celebrar o casamento.

Ainda estava vivendo um sonho e só despertou completa-mente quando Turqeya apareceu no quarto e disse que um grupo de mulheres viera desejar felicidades à noiva. Lorna ouviu as vozes e as gargalhadas que vinham da sala pegada, mas não tinha coragem de aparecer no meio das convidadas com o rosto sorridente da noiva feliz.

— O que foi, minha irmã? — perguntou Turqeya, espantada, ao notar o olhar de desespero no rosto de Loma. — Pensei que amasse meu irmão! Não era esse seu grande desejo, casar-se com ele?

— Seria, se ele gostasse de mim! Você é mulher, Turqeya, e deve saber como me sinto...

— Sim, eu sei — Turqeya respondeu, olhando para as safiras que brilhavam no colo de Lorna. — Também tenho medo de ser obrigada a me casar contra a vontade. Como posso desposar alguém que não gosto, sobretudo quando amo desde menina um outro homem? Ele não é príncipe, não é rico nem possui uma posição invejável, mas eu o amo de todo coração!

Turqeya sentou-se ao lado de Lorna e segurou as mãos dela.

— Ah, Lorna, eu gostaria muito que você intercedesse por mim! Que dissesse a Kasim que amo Omair e que não quero me casar com nenhum outro homem...

— Omair ben Zaide? — indagou Lorna, compadecida, vendo as lágrimas que rolavam dos olhos meigos de Turqeya.

— Você conversou com ele? Gostou dele?

— Gostei muito — disse Lorna, enxugando uma lágrima da face da moça árabe. — Ele é um homem muito simpático, Turqeya. Por que Kasim não concorda com o casamento?

— Kasim não disse nada, mas Omair tem receio de pedir minha mão, porque ele ganha apenas o ordenado de médico e sou a filha única do emir de Sidi Kebir.

— Mas Kasim casou-se comigo, e ele é o filho único do emir!

— Ah, isso é diferente — murmurou Turqeya, com os olhos baixos. — Os filhos do casamento serão de Kasim, e ele é o príncipe de beni Saadi. Mas se eu me casar com Omair, nossos filhos não terão títulos nem privilégios reais.

— Mas terão amor — Lorna falou, com vivacidade. — Turqeya, acho que vocês dois fazem mau juízo de Kasim. Tenho certeza de que ele vai aceitar o casamento. Ele não vai obrigá-la a casar-se contra sua vontade.

— Mas ele não fez o mesmo com você? Não acabou de dizer que não possui o coração dele?

— Sim, é verdade, mas o mesmo não vai acontecer com você. Vou falar com Kasim e prometo que tudo será resolvido a seu gosto.

Turqeya não conteve sua alegria e passou os braços em volta do pescoço de sua nova amiga.

— Eu sabia que você tinha um coração generoso! Eu sabia que poderia contar com você!

Lorna beijou o rosto macio, impregnado com o perfume forte de almíscar, e lembrou-se de que se casara com um príncipe árabe e de que deveria seguir os costumes do país dele.

— Bem, vamos receber as convidadas — disse por fim, com um sorriso sem graça.

As mulheres ficaram encantadas com a noiva. Alisaram os cabelos cor de ouro, fizeram-lhe carinhos no rosto e disseram que ela se parecia com uma flor.

Enquanto os músicos tocavam tambores e cítaras, as convidadas conversavam animadamente, bebendo café e comendo os salgadinhos que acompanhavam os casamentos, no Oriente. As mulheres estavam vestidas com mantos bordados e tinham os braços cobertos de jóias. As unhas das mãos e dos pés estavam negras, tingidas de henna, e todas usavam perfumes fortes.

Lorna sentou-se no meio delas e foi alvo de todas as conversas, embora não pudesse acompanhar perfeitamente o que as mulheres diziam. Mais tarde, o copeiro serviu uma grande travessa de cuscuz, carne de carneiro, frango e frutas secas. Na condição de noiva, Lorna não podia servir-se a si mesma, para não se fatigar no dia do casamento, e as mulheres lhe deram de comer na boca como se fosse um filhote de passarinho. Em outras circunstâncias, ela teria achado a festa divertida, mas seus pensamentos estavam voltados constantemente para Kasim, que conversava com os homens numa outra sala do palácio.

Ao meio-dia, Lorna foi levada para um quarto em meio a uma procissão. As mulheres seguravam velas acesas nas mãos e entoavam cânticos festivos. Encantos e feitiços eram lançados pela oficiante para afugentar mau-olhado, enquanto vasilhas com tâmaras e leite foram colocadas ao lado do leito nupcial. Kasha ajudou Lorna a se despir, porque a noiva não devia ter nenhuma roupa no corpo para receber o noivo.

— A lella está nervosa? — perguntou Kasha, dobrando o vestido. — O dia do casamento é muito cansativo para a noiva e me lembro de que minha ama Elena chorou de nervosismo quando a despi no quarto.

Lorna estremeceu ao ouvir isso. Voltou a cabeça e avistou o robe de rendas que estava em cima da cama.

— Ela não foi feliz no casamento?

Kasha levou algum tempo para responder, como se refletisse sobre o assunto.

— Ela se adaptou à vida aqui... e havia certas compensações.

— Você se refere ao nascimento do filho?

— Pois é, o nascimento de Sidi Kasim.

— Ele deve ter sido um menino muito bonito — disse Lorna, segurando o robe transparente. — Ele foi muito mimado pela mãe?

— Ela adorava o filho, naturalmente, e o pai tinha muito orgulho do menino.

— Kasim foi o único filho do casal?

— Sim, lella, o filho único do emir.

Depois que a criada saiu do quarto, Lorna começou a andar nervosamente de um lado para o outro, aguardando o momento em que os convidados se despedissem.

Envolta no robe transparente, recostou-se na cabeceira da cama que ficava na outra extremidade do quarto, longe da porta. Sentia-se tão cativa ali como na primeira noite em que dormira na tenda, no deserto. Se ao menos Kasim se aproximasse dela com amor no coração!

Alguns minutos depois, ouviu passos no corredor e avistou o vulto alto que se aproximava. Kasim usava um manto de seda, cujas mangas eram bordadas com fios de ouro. Os pés estavam protegidos com chinelos amarelos, com os bicos levantados, e parecia tão esplêndido naqueles trajes quanto um príncipe árabe de As Mil e Uma Noites.

Lorna observou-o em silêncio, com os olhos entreabertos sob os cílios compridos. O amor e o medo ardiam em seu peito, como uma chama. Kasim era agora seu marido e exercia um poder absoluto sobre ela.

Os olhos castanhos a fitaram longamente, e foi então que os acontecimentos enervantes do dia precipitaram a crise de nervos. Ela estava no limite de sua resistência. Teria desmaiado e rolado no chão se Kasim não desse um passo rápido e a segurasse nos braços. Levantou-a com cuidado e deitou-a na cama. Debruçou-se sobre ela e acariciou o rosto pálido.

— Pobrezinha... o dia foi muito exaustivo para você... Ela estava deitada sob os ombros largos, vencida pelo amor, cativa pelo casamento que fora realizado para tranqüilizar um homem moribundo.

— Era essa então a reparação... Um casamento sem amor, para satisfazer seu pai?

— Em parte, sim — confessou Kasim, em voz baixa. — Se tivéssemos discutido o assunto ontem à noite, você provavelmente não teria concordado com minhas sugestões. Além disso, eu devia a você uma reparação pública. Agora, pelo menos, é a esposa respeitada do filho do emir.

Ela o fitou em silêncio, observando todos os detalhes do rosto moreno sob a luz amarela da lâmpada. Um rosto amado, a intimidade dos corpos na distância do coração, que somente o amor mútuo poderia transpor.

— Ouvi dizer que os árabes podem repudiar a mulher apenas com uma palavra...

— Quer que eu diga essa palavra? Deseja voltar para seu mundo?

— Meu mundo? — repetiu Lorna, com um sorriso triste. — Você me deu o deserto e me mostrou o caminho das estrelas. Você me deu a madrugada e agora me manda de volta para a noite?

— Gostou tanto assim do deserto? — perguntou Kasim, abraçando-a com ternura. — Que fim levou a moça rebelde que conheci? Há alguns dias, você fugiu de mim... das madrugadas e das estrelas cadentes. Se não fosse aquela tempestade, teria voltado para Yraa. Agora me diz que deseja ficar comigo... É realmente isso o que quer?

Lorna abaixou os olhos, com o rosto triste.

— Você me surpreendeu num momento de fraqueza.

— Por que não pergunta se eu desejo conservar o casamento?

— Eu gostaria que quisesse isso espontaneamente — respondeu, com coragem, esquecendo-se dos últimos vestígios de orgulho, que não significavam mais nada para ela. — Sou sua, para ser guardada ou para ser mandada embora.

— Minha? — indagou, apertando-a nos braços. — Meu amor adorado. Meu anjo! Tão meigo, tão delicado, tão cheio de bondade que tenho vergonha de mim mesmo. Meu amor, meus olhos, minha vida. Eu sabia desde o início que não poderia perdê-la. Deveria levá-la para conhecer o deserto e seduzi-la com os passeios de madrugada, com os poentes deslumbrantes e a luz prateada do luar. Você fazia parte de tudo isso... Eu queria que me amasse e perdoasse minha arrogância. Gosta de mim? Você me perdoa por tê-la levado à força para o deserto? Você era o sonho que eu não queria perder... Entende agora?

— Ah, Kasim! — exclamou, passando os braços em volta do pescoço moreno. Nunca antes ele abaixara a cabeça diante de ninguém, mas agora inclinava-a para ela. — Eu compreendi que o amava durante a tempestade no deserto. Você disse que podíamos morrer juntos, sepultados para sempre sob a areia. E eu queria morrer ali, se não pudesse viver com você...

Kasim beijou-a na boca e interrompeu as palavras de ternura que ela dizia, com um beijo tão doce que ela se sentiu desfalecer.

— Nosso casamento será verdadeiro, Lorna. Sincero e honesto, sem segredos mútuos.

— Você tem algum segredo? — perguntou, com um risinho, porque lhe parecia que, na doçura do momento, nada mais importava, a não ser amá-lo. Sentia-se frágil nos braços dele e não mais como a moça fria e distante que zombara do amor no jardim de Ras Jusuf. Um autêntico homem do deserto derretera sua frieza...

— Sim, tenho um segredo para revelar.

Que segredo poderia ser? pensou Lorna, com o coração apreensivo, enquanto Kasim apanhava um cigarro na caixa de madeira entalhada que havia ao lado da cama. Será que amara alguém anteriormente, antes que o destino os aproximasse um do outro? Desejava ser compreensiva, tolerante, mas preferia ardentemente que ele nunca tivesse amado outra mulher na vida.

Kasim fumou em silêncio durante alguns segundos, como se quisesse pôr em ordem seus pensamentos. Em cima de uma mesinha, havia um vaso de estanho com um buquê de jasmins-azuis. O perfume das flores misturava-se com o cheiro do cigarro turco, e, sem querer, no momento em que voltou a cabeça para o lado, Lorna avistou o retrato de um menino que estava sobre a penteadeira, numa moldura de prata. Os cabelos eram pretos, e os olhos pareciam cheios de animação. Alguma coisa no retrato lembrava os garotos que vira brincando nas ruas de Paris.

Kasim percebeu seu olhar interrogativo e deu um sorriso.

— Eu tinha dez anos quando minha mãe tirou essa fotografia.

— Gostaria de tê-lo conhecido quando menino.

— Foi melhor você me conhecer depois de grande, querida.

— O sorriso tinha algo da ironia dos dias passados no deserto.

— O que maman diria se soubesse que me casei com uma mulher adorável e rebelde?

— Sempre chamou sua mãe de maman, em francês?

— Foi assim que ela me ensinou a chamá-la desde pequeno.

— Por que será? — perguntou Lorna, com o rosto surpreso.

— Ela nunca explicou a razão?

Os olhos castanhos a observaram com atenção por entre a fumaça do cigarro. Lorna continuava deitada no grande leito árabe, os lábios entreabertos, os olhos azuis escondidos por baixo dos cílios compridos.

Kasim segurou sua mão e levou-a aos lábios, beijando longamente cada um dos dedos.

— Quando mamãe morreu, encontrei o diário que ela escreveu em espanhol, língua que mais ninguém na família entendia. Depois de ler o diário do começo ao fim, arranquei e destruí algumas páginas onde ela contava um segredo que só eu podia saber. Agora vou lhe contar este segredo, Lorna, porque você gosta de mim, porque disse que deseja ficar comigo para sempre.

Lorna deu um suspiro de alívio.

— Pensei que fosse contar que gostara de outra mulher antes de mim...

— Gostei de algumas garotas que conheci em Paris quando era estudante. Mas nunca senti realmente amor por nenhuma delas. Eu amava o deserto desde pequeno... O deserto era minha paixão... até que você surgiu em minha vida, com seus olhos azuis, os cabelos cor de sol, o temperamento rebelde...

— Nunca se apaixonou por uma moça árabe? Elas são tão lindas...

— Sim, algumas são realmente belas, como Turqeya, mas minhas preferências nesse ponto recaem sobre as francesas.

— Francesas?

— Exatamente. Não sou filho do emir, como todos imaginam. Mas de um francês que morou em Sidi Kebir um ano depois do casamento de minha mãe.

No silêncio que se seguiu à confissão inesperada, Lorna podia contar as batidas de seu coração. Os olhos azuis, muito grandes e luminosos, estavam fixos em Kasim. Uma cotovia cantava no jardim do palácio e era como se o coração dela entoasse a canção triste e melodiosa.

— Por favor, conte-me tudo — ela sussurrou.

Kasim inclinou a cabeça e tomou coragem para revelar o segredo que a mãe lhe confiara no diário escrito em espanhol.

— O tal francês que veio de Paris chamava-se Justin. Mamãe não estava feliz com a vida isolada que levava no palácio do emir, e o francês foi uma distração para sua tristeza. Era jovem, culto, interessante, e veio aqui estudar alguns manuscritos que haviam sido encontrados no porão desta casa. Era um homem falante, muito divertido e pertencia ao mesmo mundo que minha mãe freqüentara antes de se casar com o emir. Pouco tempo depois de conhecer Justin, mamãe confessou no diário que se sentia estranhamente culpada na companhia dele, embora não houvesse nada entre os dois até então.

Kasim levantou a cabeça e encarou os olhos azuis que o fitavam com interesse.

— O emir andava sempre muito ocupado e, nos raros momentos em que passava na companhia de mamãe, tratava-a como se ela fosse uma criada com quem não podia falar sobre assuntos sérios. Mamãe nunca foi uma verdadeira amiga ou companheira, com quem ele tivesse intimidade. O francês era o contrário. Discutia o trabalho com ela, conversava sobre os países que conhecia, sobre os lugares onde estivera. Era inevitável que ,a amizade se transformasse muito em breve num amor proibido.

Kasim deu um suspiro e afagou a mão dela, onde estava o anel de safira.

— Mamãe brincou com fogo. Ela ousou receber esse homem em seu aposento. Vivia sozinha, e Justin era uma criatura fascinante, mas as horas de amor dos dois estavam contadas. Pouco depois, o trabalho dele estava terminado, e Justin foi obrigado a partir. Mamãe procurou esquecê-lo até o dia em que percebeu que estava grávida e que o filho era de Justin, e não do emir. Naturalmente, ela morreu de medo nos primeiros tempos, mas o emir desejava ardentemente ter um filho homem e, por felicidade, nunca suspeitou que sua mulher lhe fosse infiel. Kasha me contou que eu era um bebê muito grande, chorão e de cabelos pretos, e que o emir me levou nos braços até a varanda do palácio, onde me apresentou orgulhosamente ao povo, como herdeiro da família. Felizmente, os árabes sempre gostaram de mim, e eu tinha muita afinidade com eles. Eu amava o sol, a vida ao ar livre, as cavalgadas no deserto. Sei que minha mãe pretendia me confessar a verdade um dia, mas ela morreu subitamente quando eu tinha treze anos. O emir está muito doente, talvez esteja à beira da morte, e agora é tarde para contar a ele a verdade. Vou continuar lhe devotando toda minha lealdade e afeição. Ele necessita de mim, deseja que eu continue sua obra, e o vínculo que existe entre nós dois não pode ser rompido por um segredo desse tipo. Acho que Kasha sempre suspeitou, mas ela gostava muito de minha mãe para traí-la...

Lorna inclinou-se para frente e beijou-o nos lábios, como se quisesse selar o segredo.

— Também gosto de você, Kasim. Tanto faz voltar para o deserto ou morar aqui. Para mim, isso não importa.

Os braços dele a cingiram estreitamente contra seu coração. Fitou-a com atenção, e uma chama brilhou nos olhos castanhos.

— Meus amigos disseram que você se parece com uma pérola. E é exatamente isso, querida. A pérola que encontrei no deserto. Eu tinha o pressentimento de que isso iria acontecer um dia. Você não ouviu meu chamado?

— Meu coração ouviu, Kasim. — Ela se aninhou contra seu peito e aspirou o cheiro forte de tabaco turco que sempre associava a seu pai. — Lembra-se da flor branca que eu levava no bolso de minha camisa? Você ficou com raiva porque eu disse que ganhara do homem que amava. Esse homem era meu pai. Ele morreu há alguns anos no oásis de Fadna, e, depois que morreu, fui até lá para conhecer a casa. Encontrei apenas ruínas, e tudo que restava da construção original eram os muros rachados e algumas flores brancas que nasciam entre as fendas. Colhi uma delas, Kasim. Era a única lembrança que tinha de meu pai na primeira noite que passei no deserto. Eu tinha tanto medo de você...

— Meu anjo... Agora não precisa ter mais medo de mim...

— Não sei... Acho que sempre terei medo de você — disse Lorna, com um risinho.

— Às vezes, parece-me tão assustador...

— Pode ser que briguemos algumas vezes — murmurou Kasim, em seu ouvido. — Mas depois haverá sempre os beijos.

Lorna sorriu e puxou a cabeça morena para si. A cotovia cantava no jardim, onde os jasmins-azuis subiam pelos muros, e Lorna não fugiu mais dos braços de seu amante do deserto. Nenhum dos dois se sentiria sozinho de novo. Eles haviam procurado e encontrado o jardim paradisíaco... o jardim do amor.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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