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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESOPAIDA OU VIDA DE ESOPO / Antônio José da Silva
ESOPAIDA OU VIDA DE ESOPO / Antônio José da Silva

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Antônio José da Silva

 

 

 

 

Ópera que se apresentou no Teatro do bairro Alto de Lisboa, no mês de abril de 1734.
ARGUMENTO Esopo, filósofo, sendo cativo de Zeno, foi vendido a Xanto, filósofo ateniense, o qual estimou muito a Esopo, por ser gracioso e sábio. Este, servindo a seu senhor Xanto em a cidade de Atenas, venho sobre a mesma cidade el-rei Cresso de Lídia com um grande exército. Foi insinuado pelo oráculo de Júpiter que Esopo, como sábio, fosse o Diretor da defesa dos Atenienses, e com seus ardis os livrou, dando o povo a Esopo a liberdade em benefício da pátria. Casa Periandro com Filena, filha de Xanto. El-rei Cresso premia os grandes merecimentos de Esopo, fazendo-o governador da cidade, e levanta o cerco. O mais se verá em o contexto da história.
INTERLOCUTORES: CRESSO (rei da Lídia) ZENO (filósofo, senhor de Esopo) PERIANDRO (discípulo de Xanto, amante de Filena) ÊNIO (discípulo de Xanto) TEMÍSTOCLES (senador) FILENA (filha de Xanto) EURÍPEDES (mulher de Xanto) GERINGONÇA (criada de Eurípedes) ESOPO (filósofo) Soldados e Coro.


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ATO I
 
 CENA I  Depois de cantar o coro, descobre-se a praça com fonte, e haverá como uma freira, com grande concurso de homens e mulheres, e irão saindo Zeno com os dois escravos, e Esopo mais atrás.
 
ZENO Notável dia de feira, para um homem ganhar com estes três escravos sequer duzentos por cento, que não é usura! Oh, queria Júpiter que não chova! Não me dirás, Esopo, já que és tão prezado de respondão, por que quase sempre em todas a feiras chove?
 
ESOPO Isso tem pouco que saber: porque, como quase sempre as freiras se fazem nos Rocios, por força se hão de molhar, ou rociar as feiras.
 
ZENO Que depositasse a Providência em vaso tão tosco uma alma tão perfeita, como a deste Esopo!
 
PRIMEIRO ESCRAVO Para que nos trará nosso patrão hoje à feira? Isso é novidade.
 
SEGUNDO ESCRAVO E o que mais me faz desconfiar é o vestir-nos com roupas novas e trazer-nos mui franças. Que dizes, Esopo? Que será isto?
 
ESOPO De sorte, meus amigos, que segundo a perspectiva em que estamos, cheira-me isto a que nosso patrão nos traz aqui para que alguém se namore de nós para casar; porque ele é muito amigo de fazer geração na bolsa.
 
PRIMEIRO ESCRAVO Não; isto à mais alguma coisa.
 
SEGUNDO ESCRAVO Isso é o que quer que é.
 
ESOPO Seja o que for: nunca cuidei no que está para vir. Não há coisa como um criado ser bem procedido de unhas em fora, que logo não tem que temer, nem que cuidar; e para que vejais o quão pouco se me dá isso, vamos vendo esta feira.
 
ZENO Donde, Esopo, vás? Tu não ouves? Com que falo eu?
 
ESOPO É comigo?
 
ZENO Sim.
 
ESOPO Eu não me chamo Esopo Vaz; sou Esopo só, nu e espúrio, como minha mãe me pariu.
 
ZENO Aonde ias, entremetido?
 
ESOPO Se eu fora entremetido, perguntara a vossa mercê para que nos traz hoje a esta grande feira.
 
ZENO Para vender-nos a todos três; pois todos três sois intoleráveis pelas vossas manhas; porque tu és um bêbado, e tu um ladrão.
 
ESOPO Visto isso, quem comprar este, sendo ladrão, compra-o com sisa e tudo. E eu, senhor, quais são as minhas habilidades, ou virtudes?
 
ZENO São boas! Primeiramente mexeriqueiro e bacharel.
 
ESOPO Se eu fora bacharel, soubera Direito; se eu soubera Direito, eu me endireitaria, e não fora corcovado; não é por aí que vai o gato às filhoses. Tem mais de que se acuse?
 
ZENO Mais tenho! O ser alcoviteiro não presta?
 
ESOPO Eu digo que não presta; mas olhe, o que lhe digo é que, se vossa mercê me vende por isso, que não faltará quem por isso me compre. Ora o certo é que estamos em um tempo que se não sabem estimar os homens de prendas ou as prendas dos homens! Se vossa mercê bem soubera o que eu sou, talvez que me não vendera. Porém, falando com a mais cativa reverência, não é o mel para a boca do sino.
 
ZENO Qual é o mel, e qual é o asno?
 
ESOPO O asno, falando por entre os dentes, é vossa mercê, e o mel é o que sai e o que levo do tinteiro.
 
ZENO Acaba por isso, que, se começas com arengas, nunca acabarás. Mas enquanto vem chegando os feirantes, vamos passeando por esta praça. Que te parece? Não é boa?
 
ESOPO De boa tem pouco.
 
ZENO
 
Pois acha que esta praça não é boa? Que acha que lhes pões?
 
ESOPO Senhor, não pode deixar de ser achacada uma praça com fontes; e ao meu ver tem dor de pedra, porque urina devagar.
 
HOMEM Ah, sô amigo, que procura? Se quer uma boa espada, aqui tem.
 
ESOPO Sou tentado com espadas; este homem é bruxo; adivinhou-me o gênio. Vejamos lá que tal é.
 
HOMEM É uma folha velha.
 
ESOPO Folhinha velha, isso é do ano passado; não me serve para este; quero uma folhinha para este ano que vem, com um eclipse de estocadas.   HOMEM Não me entende? Digo que tem aqui uma espada velha.
 
ESOPO Pior! Eu não quero senão uma espada nova; e vem cá o senhor à feira com uma espada velha!
 
HOMEM Vá-se daí, que não entende de espadas; aí tem rocas; vá comprá-las.
 
ESOPO O homem não tem isso. (À parte) Pois fia você de mim, que não entendo de espadas? Pois saiba que meu pai foi um ferro-velho; e, quando me gerou na bainha de minha mãe, nasci eu tão espadaúdo, que cuidou a comadre que era eu um peixe-espada; e por final, que com poucos dias de nascido me punham à cabeceira uma espada nua, por amor das bruxas.
 
HOMEM Passa fora, corcunda; onde levas a merenda às costas?
 
ESOPO A das costas é minha, e a que estás mais abaixo é para você.
 
OUTRO Fora, poeta.
 
ESOPO Olha tu, não te faça uma sinalefa na cara, e um poema de pés quebrados.
 
ZENO Valha-te o Diabo, maldito! Não te calarás, que és aqui a fábula de Esopo.
 
MULHER Aqui tem boas couves, menino; merque comigo.
 
ESOPO Deveras, que a menina das couves não é mau repolho para a panela do amor.
 
MULHER Olhai quem fala m amor! Tira-te lá, espantalho; não me enguices a venda.
 
ESOPO Eu nunca vi Vênus com venda. Veem vocês? Esta coveira me há de enterrar no cemitério dos seus olhos, que são dois valentes carneiros. 
 
ESOPO
 
Chitom, que aí vem nosso patrão direito como um fuso; esperem, esperem, que ele lá vai para a feira das bestas. Ah, senhor, aonde vai? Também a vossa mercê se quer vender?
 
ZENO Que dizes? Arre para cá, não se troque vossa mercê; ao depois não o poderemos conhecer; e, quando não, ponha um sinal na orelha e váse.
 
ZENO Como te tenho por bobo, tens licença para tudo.
 
(Saem Xanto, Periandro e Ênio com vestidos talares)
 
XANTO Nesta mesma variedade confusa se alimenta a potência visiva.   PERIANDRO Senhor mestre Xanto, sobre isso da potência visiva tinha eu um argumento, e muito forte.
 
XANTO Periandro, fique-vos de advertência que nem todo o lugar é para todas as coisas; nas praças vende-se, e nas aulas argumenta-se.
 
ÊNIO Diz bem o nosso mestre; vós, Periandro, sois terrível.
 
PERIANDRO Vós, Ênio, também me quereis repreender? É. O que me falta!
 
ZENO Senhor filósofo, vossa mercê porventura quererá comprar algum destes escravos?
 
XANTO Eu só venho comprar um jumento para a nora da minha quinta.
 
ESOPO (à parte) Eu nunca vi filósofo com quinta. 
 
XANTO Porém, se contudo mo acomodar no preço, não se me dá de comprar um escravo. Nada tu cá. Que sabes fazer?
 
PRIMEIRO ESCRAVO Tudo.
 
XANTO E tu?
 
SEGUNDO ESCRAVO Eu tudo sei fazer.
 
PERIANDRO Quem tudo sabe, nada sabe.
 
XANTO E tu mostro, que sabes fazer?
 
ESOPO Nada, graças a Deus.
 
XANTO Homem (se é que o és), é possível que não saibas fazer coisa alguma?
 
ESOPO Senhor, não se admire vossa mercê, que, como estes maus companheiros tomaram por sua conta o fazer tudo, não ficou para mim nada.
 
PERIANDRO Quer dizer nossa mercê da reposta, senhor Xanto?
 
XANTO Está com subtileza. Ora dize-me: como te chamam?
 
ESOPO A mim chamam-me como me querem chamar; não há meia hora, que uns me chamaram poeta e outros corcunda.
 
XANTO Pergunto o teu nome.
 
ESOPO Eu, senhor, com perdão de vossa mercê, chamo-me Esopo.
 
XANTO Donde nasceste?
 
ESOPO Do ventre de minha mãe.
 
XANTO Não me entendes? Em que lugar nasceste?
 
ESOPO Também não me disse minha mãe se me pariu em lugar alto ou baixo; mas cuido que foi aí a algures, ao pé de alguma coisa.
 
PERIANDRO Ênio, o escravo tem atacado ao filósofo, nosso Mestre.
 
XANTO Ou és mui simples, ou mui velhaco. Pergunto-te de donde és natural.
 
ESOPO À que del-Rei, senhor, eu sou legítimo; não sou natural.  
 
XANTO Valha-te Deus; aonde é a tua pátria?
 
ESOPO Isso é outra coisa; sou de donde me vai bem, que aí é a minha terra. 
 
XANTO Na verdade, que me tem admirado as respostas deste escravo! Hei de comprá-lo por todo o dinheiro, ainda que minha mulher se enfade. Quanto quer por Esopo?
 
ZENO Pois não quer estes dois, que são perfeitos, e só lhe agradou este bruto? Mas, como vossa mercê vinha comprar um jumento, levando a Esopo tudo vem a ser o mesmo.
 
XANTO Eu, senhor, não compro as perfeições do corpo, mas sim as da alma.
 
ZENO Uma vez que vossa mercê assim o quer, todas as vezes que me der dez moedas, leve-o.
 
XANTO Aqui as tem.
 
ESOPO (à parte) Que diabo estarão falando uns com os outros, apontando para mim? Eu estou vendido aqui!
 
XANTO Esopo, vai com o senhor Xanto, que a ele te vendi.
 
ESOPO Não disse eu que estava vendido? Vamos, senhor Xanto filósofo; mais saiba que ambos vamos vendidos.
 
XANTO De que sorte?
 
ESOPO Eu, porque vossa mercê me comprou; e vossa mercê, porque não sabe o que leva em mim.
 
XANTO O que eu levo em ti bem o sei.
 
ÊNIO Vamos, vamos para casa, que é tarde.
 
ESOPO Adeus, adeus, meus amados companheiros; despeçamo-nos depressa, antes que as lágrimas tenham notícia depressa, antes que as lágrimas tenham notícia da nossa despedida, que, se elas o sabem, logo virão aos cardumes. Adeus: olhai, se vocês fugirem, não seja para a Braga, que é má terra para cativos.
 
Ambos os escravos. Adeus, amigo.
 
ZENO Esopo, não te despedes de mim?
 
ESOPO Como vossa mercê me despediu de si para sempre, não queira outra vez despedir-se. Vamos, senhores.  
 
CENA II Mutação de câmera. Saem Filena e Geringonça.
 
FILENA Falaste a Periandro?
 
GERINGONÇA
 
Por mais que andei daqui para ali, não o pude ver.
 
FILENA Valha-te o demo, maldita, que não tens préstimo para nada! Como hei de passar daqui até à noite, sem saber de ti, meu Periandro? Tu, morfina, tens a culpa de minhas ânsias.
 
GERINGONÇA Se são da madre, case-se, e deixe-me já com tais amores; porque vossa mercê me tem aqui para terceira da sua correspondência.
 
FILENA Perdoa-me, Geringonça, que o amor me tem quase louca. Oh, quem me dera saber escrever, para todos os dias ter novas tuas, meu querido Periandro!
 
(Sai Eurípedes)
 
EURÍPEDES Como é isso de meu querido Periandro?
 
GERINGONÇA Temos o caldo entornado!
 
FILENA Morfina de mim, que minha mãe me ouviu!
 
EURÍPEDES Com que você já tem queridos! Está muito bem; teu pai saberá, desavergonhada!
 
FILENA Eu não sei o que vossa mercê diz. Sei o que tu fazes; por isso, vós, minha filha, andais sempre contando os buracos às rótulas, porque todo o fogo tendes no peito. Ah, velhaca, sonsa, solapada! Com que o senhor Periandro é o vosso amante! Por isso ele tomou por mestre a teu pai, pata ter pé de vir aqui todos os dias!
 
FILENA Olhe, minha mãe... porque eu... quando... sim...
 
EURÍPEDES Que diabo dizes? Que falas, que nem atas nem desatas? Resta-me gora que te queiras desculpar.
 
FILENA Pois eu que fiz? Olhe que está boa!
 
GERINGONÇA Eu vou-me surrando, que esta trovoada há de parar em água. (Vaise)
 
EURÍPEDES Isto me faz desesperar! Tu podes negar o que eu vejo e o que agora te ouvi? 
 
(Canta Eurípedes e Filena a seguinte: ária a duo)
 
EURÍPEDES Ingrata filha!
 
FILENA Brava mãezinha!
 
EURÍPEDES Sempre doidinha  te hei de encontrar?
 
FILENA Sempre doidinha  me há de chamar?
 
EURÍPEDES Tu com amores!
 
FILENA Eu? Não há tal.
 
EURÍPEDES Ai, guarda lá.
 
FILENA Eu? Não há tal.
 
EURÍPEDES Eu bem ouvia que lhe dizias que lhe querias e que lhe morrias; tudo sei já.
 
FILENA Basta mãezinha, De consumir-me.  Ai, ouça cá.
 
EURÍPEDES Para que negas?
 
AMBOS Não quer ouvir-me?
 
FILENA Ai, ouça cá.
 
EURÍPEDES Ai, guarda lá.
 
(Saem Xanto, Periandro e Esopo, que ficará como escondido)
 
XANTO
 
Esopo, espera aqui detrás desta cortina.
 
ESOPO É mui boa sala vaga!
 
XANTO Amada Eurípedes, tardei muito?
 
EURÍPEDES Isso é costume antigo. Donde vem a estas horas, tamanhão?
 
ESOPO (à parte) Ela é desta casta? Boas novas para o pai da criança. 
 
XANTO Ora não te agastes; que, se tardei, arrecadei.
 
EURÍPEDES Que arrecadei? Que é o que me trazes da feira?
 
FILENA É para mim, paizinho?
 
EURÍPEDES Sim, tudo há de ser para ela? Não há de ser senão para mim.
 
XANTO Pois saibamos para quem há de ser.
 
AMBAS Para mim.
 
XANTO Pois lá se avenham com ele; aí o tem.
 
(Sai Esopo)
 
EURÍPEDES Que horrível fantasma!
 
FILENA Que enorme espetáculo! Fujamos, minha mãe?
 
EURÍPEDES Ai, senhores, que estou para me desmaiar! Ai, que ele se vem chegando! À que del-Rei!
 
ESOPO Ora eu não cuidava quer a tão feio, que metia medo!
 
(Sai Geringonça)
 
GERINGONÇA Que gritos são estes, senhora? Mas ai, coitada de mim, que demônio tão feio!
 
PERIANDRO Boa a veio vossa mercê fazer; ela lhe dará o recado.
 
EURÍPEDES Deite-me esse monturo pela porta fora; não o quero em casa nem um instante.
 
XANTO Maldito de todos os diabos, agora estás mudo? Dize-lhe alguma coisa, com que se desenfade e se alegre.
 
ESOPO Suponha vossa mercê que se me secou a prosa e que estou na hora do burro.
 
XANTO Dize-lhe alguma coisa sequer.
 
ESOPO Já que me puxa pela língua, deixe-a agora comigo. Parece muito mal, senhora Eurípedes, que vossa mercê se agaste com o senhor, seu marido, por lhe comprar ume escravo feio. Pois que queria? Queria um servo gentil-homem para ficar cativa dele? Queria um rapagão, roliço, alvo e loiro, olhos azuis, com o corpo à inglesa e pernas à francesa, para que logo meu senhor com tal servo ficasse veado? Ora cuide em si e saiba estimar-me, que eu lho saberei merecer.
 
EURÍPEDES Ai, só isso me fizera agora rir: és engraçado; já te vou perdendo o medo.
 
XANTO Tu não sabes as prendas de Esopo; eu te prometo que gostes dele.
 
EURÍPEDES Vem cá, Esopo; chega-te para mim.
 
ESOPO Agora também não quero, que tenho medo de vossa mercê. À que del-Rei, que tarasca! Quem me acode, que me desmaio?
 
EURÍPEDES Ora anda cá; façamos as pazes; olha bem para mim: és mui feio!
 
ESOPO Isso é mercê que vossa mercê me faz.
 
FILENA A cara parece um mono.
 
ESOPO Ora não me lisonjeie.
 
GERINGONÇA
 
Ai, senhora, cá lhe vi uma corcova atrás.
 
ESOPO Valha-te o demo a língua, que me descobriste uma falta que ninguém a havia de ver, se tu o não disseras!
 
EURÍPEDES Ainda mais essa temos; é corcovado!
 
ESOPO Bem podem montar em mim, que, ainda que sou corcovado, não faço corcovas.
 
XANTO Deixem ao pobre Esopo, que, assim como é, tem muito préstimo.
 
EURÍPEDES Que habilidades tens, Esopo? Sabes cantar?
 
ESOPO Qual é o cativo que não sabe cantar al son del remo, y de la cadena?
 
EURÍPEDES Sabes tanger?
 
ESOPO Sei tangei bois muito bem.
 
EURÍPEDES Sabes ler?
 
ESOPO Não, senhora; escrever sim.
 
FILENA Meu pai, eu quero que Esopo seja meu mestre e que me ensine a ler e a escrever.
 
  XANTO Sim, Esopo, tu hás de ensinar a esta rapariga a ler e a escrever; aí ta entrego.
 
ESOPO Testemunhas me sejam todos que o senhor Xanto me entrega a sua filha; ao depois não se queixe. 
 
ESOPO (à parte) E ela não tem maus bigodes! 
 
PERIANDRO Ora, Esopo, conta-nos alguma coisa da tua vida, que há de ser célebre.
 
ESOPO Senhor, a minha vida é mais larga que comprida.
 
EURÍPEDES Dize, Esopo; dize alguma coisa.
 
ESOPO Ora vá de história. Gerou-me meu pai, e foi coisa para ver que, tanto que meu pai me gerou, logo minha mãe se sentiu prenhe e ficou tão soberba, que tudo enjoava; engordou tanto, que em nove meses se fez como uma bola; enfim, se não pare, arrebenta; deram-lhe as dores, e ao primeiro puxo saiu este criado de vossa mercê, e logo fui tão cortês, que caí prostrado aos pés de minha mãe; pois só a esta devia pagar as páreas; porque não falta quem diga que minha mãe me pariu de um só parto, podendo-me parir de dois, que eu tinha corpo para tudo; e é de advertir que naquele tempo as mulheres eram as que pariam, e não como agora, que pare quem quer. Notouse no meu nascimento que eu nascera Benfeitor nu e em pele; e, como nascia para ser escravo, logo se me viu o ferrado. Tanto que eu nasci, como minha mãe era muito amante dos filhos, logo me mandou enjeitar. Enfim, fui crescendo aos palmos e, apenas tinha sete anos, logo comecei falar tão perfeitamente, que não se me entendia palavra. Toda a minha vida foi sempre prodigiosa; de sorte que já anda em livros por todo o Mundo; e agora me dizem que se está representando no Bairro Alto.
 
PERIANDRO Notável é a tua vida!
 
XANTO Esopo, aqui te entrego esta casa e te faço meu mordomo.
 
EURÍPEDES Vamos, Filena.
 
FILENA Periandro, logo falaremos; não te ausentes. (Vai-se)
 
PERIANDRO Aqui ficarei esperando por esse Sol que me anima. Ai, amor, quando hás de favorecer a um amante das tuas aras, que, nos suspiros que exala, acende as chamas nos sacrifícios que vota?
 
(Sai Filena)
 
FILENA Periandro, seguramente podemos falar, pois todos lá ficam dentro rindo-se com Esopo, que sem dúvida amor o trouxe aqui, para que seja o terceiro de nossos amores.
 
PERIANDRO Essa fortuna devo estimar para o melhor acerto da nossa correspondência; e, porque agora falamos de amor, escuta, Filena, a frase das melhores expressões.
 
SONETO
 
Minha amada, Filena, doce emprego,  de amorosos enleios labirinto, São tais a ânsias que amoroso sinto, Que sem morrer mil vezes não sossego.
 
Em mar de pranto, mísero navego. Quando amante, naufrago; porém minto, Porque eu mesmo o martírio já consinto, Pois busco as pernas morto, as luzes cego.
 
Oh, morra já minha alma enternecida! Oh, viva alegre nessa luz serena! Contente aspiro tão ditosa lida;
 
Pois consegue esta dor, que me condena, Um triunfo a teus olhos cada vida, Cada morte uma glória à minha pena.
 
FILENA Periandro, as tuas finezas, por encarecidas, me parecem mais lisonjas que realidades; e assim, apelo para o tempo, que só este será o fiador da tua constância; porque, sendo tu firme, eu não deixarei de ser leal.
 
PERIANDRO Formosa Filena, ainda duvidas da minha lealdade? Não tens lido nos caracteres de meus suspiros as firmezas do meu amor? Não vês no espelho das minhas lágrimas a imagem dos meus extremos? Pois seguro-te, meu bem, que, apesar de tudo, hei de ser sempre firme, constante e leal.
 
(Canta Periandro a seguinte ária)
 
Primeiro verás, Filena, Enregelar-se o fogo, Mover-se o duro monte, Cair esse horizonte Que em meu amante rogo
 
Se encontre o variar.
 
Se, pois, amor ordena Que adore essa beleza, Será minha firmeza Eterna em te adorar. 
 
(Vai-se)
 
FILENA Escuta, Periandro; meu bem, aonde vás?
 
(Sai Esopo)
 
ESOPO Que hei de escutar? Que é o que diz?
 
FILENA Ai! És tu, Esopo? A bom tempo vieste.
 
ESOPO Sim; vim a bom tempo; mas eu lhe empatei o cozimento.
 
FILENA Meu Esopo, tenho um favor que e pedir; se o fazes, terás de mim quanto quiseres.
 
ESOPO (à parte) Diga, diga; não gaste tempo, que pode vir seu pai. Eu assim tolamente lhe vou querendo bem. 
 
FILENA Bem sabes, Esopo, que não há peito tão isento, que não sinta a violências do amor.   ESOPO Que mais?
 
FILENA Isto suposto, saberás que quero bem... não sei como te diga.
 
ESOPO (à parte) Eu estou vendo que ela se namorou de mim e tem pejo de mo dizer.
 
FILENA Porque bem sabes, Esopo, que o amor é cego e em nada repara.
 
ESOPO Que mais claro mo há de dizer? Pobrezinha não sabe como se explique; ora eu a ajudarei a dizer: Senhora, bem sei que o amor é cego e é monstro e que para cativar as almas, como cego, não repara em qualidades, e como monstro, não se lha dá de perfeições. Quer vossa mercê dizer que, apenas me viu, logo se rendeu, e que estala de amor por mim. Se é isso, esteja descansada, que lhe quero também muito, muito.
 
FILENA Sempre estás com gracinhas; pois logo em ti havia empregar o meu amor?
 
ESOPO Olhe vossa mercê, pois achava eu que não era nenhum despropósito; porque me tinha logo aqui à mão dentro de casa, sem o ir buscar à rua.
 
FILENA Eu quero bem a Periandro; e, como lhe não posso falar as vezes que quero, tu hás de ser o medianeiro da nossa correspondência.
 
ESOPO Isso, por outra frase, vem a ser alcoviteiro. Não é nada!
 
FILENA Pois que dizes?
 
ESOPO Senhora, em mim está mal o ofício de camaleão; isso não se acha em mim.
 
FILENA Meu Esopo, olha que to hei de agradecer, e Periandro também.
 
ESOPO Senhora, tudo se pode fazer, sem que perigue o meu crédito e o seu amor, e poderemos ambos ficar bem.
 
FILENA De que sorte?
 
ESOPO Desta sorte: eu o que poderei fazer é levar-lhe algum recado ao senhor Periandro, ou escrever-lhe alguma carta em seu nome, e fazer tudo o que vossa mercê me mandar; mas ser alcoviteiro, isso por nenhum modo.
 
FILENA Aceito o favor que me fazes.
 
ESOPO Ah, tirana! Não basta comer-me o amor, mas ainda me esfregas com zelos? Pois por vida de Esopo, que...
 
FILENA Quero, pois, Esopo, que digas a Periandro que ao pôr do sol...
 
(Sai Xanto)
 
XANTO Que fazes aí, Esopo?
 
ESOPO Estava para dar lição à menina, e ela não queria.
 
FILENA (à parte) Bem remediou. 
 
XANTO Isso tem tempo. Filena, vai para dentro.
 
FILENA (à parte) Que não pudesse dizer a Esopo o recado para Periandro! Ao depois lho direi. (Vai-se)
 
XANTO Esopo, és capaz de guardar um segredo?
 
ESOPO Conforme a parte aonde eu o puser.
 
XANTO Bem sabes que sou teu senhor e que, se me fores leal, terás a liberdade; e assim saberás que eu sou frágil.   ESOPO Isso sei eu; diga o mais.
 
XANTO E quem em matérias de amor todos são loucos; porque amor tem duas vendas: uma nos olhos, outra no entendimento.
 
ESOPO Rico amor será esse com duas vendas.
 
XANTO Com que, não sei que diabo de feitiços me fez esta criada, para eu lhe querer bem.
 
ESOPO Ora tenha vergonha: um filósofo namorado de uma trapalhona e mondongueira! Em que consiste a sua filosofia? Visto isso, todos somos uns?
 
XANTO Olha tu; também o amor é filosofia das almas, aonde com argumentos de finezas se prova o sistema da constância.
 
ESOPO Visto isso, eu também sou filósofo; pois, quando quero bem, logo é a concluir.
 
XANTO Quem duvida que, e tens amor, que também és filósofo?
 
ESOPO Ora acabe com isso, que eu de mim para mim me tinha por filósofo; mas não o queria dizer com vergonha.
 
XANTO Com que, Esopo, eu morro por Geringonça.
 
ESOPO Quem é Geringonça?
 
XANTO É esta criada de casa.
 
ESOPO Olhe vossa mercê; agora sei que tem bom gosto; pois só o nome de Geringonça lhe basta para se querer; o certo é que todo o amor é geringonça.
 
XANTO Dizes bem; porém, como minha mulher Eurípedes tem horrível condição e não sei se já presume alguma coisa, é-me preciso tratar isto com mais cautela; e assim tu hás de ser o meu remédio.
 
ESOPO Purgativo, ou vomitório?
 
XANTO Purgativo não, há de ser vomitório; que lhe hás de dizer que à noite me fale no jardim, e entanto tu ficarás divertindo a tua senhora.
 
ESOPO Senhor, isto ninguém tal faz, sevandijar vossa mercê um jardim com uma criada; e então aonde havia vossa mercê falar a uma senhora?
 
XANTO Não vês tu que a necessidade não tem lei, por amor dessa necessidade fale-se à criada em uma secreta, que é parte privada.
 
XANTO Ora deixa disparates; isto te encomendo lhe digas. Olha não o saiba viva alma.
 
ESOPO Eu lhe prometo que ninguém o saiba.
 
XANTO Mas ela aí vem; eu me retiro, por me não achar aqui minha mulher, e dize-lhe tu o que te disse. Esopo, segredo, que importa. (Retira-se)
 
(Sai Geringonça)
 
GERINGONÇA É possível, Esopo, que ainda não tiveste uma hora para me falares?
 
ESOPO É possível, Geringonça, que ainda não tiveste uma hora para me falares?  
GERINGONÇA Esopo, ouve-nos alguém, que te quero comunicar um segredo?
 
ESOPO (à parte) Ui, senhores! Eu cuido que estou preso nesta casa; pois sempre estou em segredo. 
 
GERINGONÇA Dize: posso falar?
 
ESOPO Se não tens estupor na língua, bem podes falar.
 
GERINGONÇA Pois sabe que, apenas te vi, quando logo me furtaste o coração, me roubaste as potências e me ganhaste a liberdade.
 
ESOPO Daqui a pôr-me na forca não vai anda. Mulher, eu furte-te alguma coisa?
 
GERINGONÇA Ah, ladrão de almas!
 
ESOPO Ladrão de almas?! Eu nunca andei com a bacia. 
 
XANTO (à parte) Não é nada; a moça namorou-se de Esopo! 
 
GERINGONÇA Esopo, eu perdida por ti de amor! Como há de ser isto?
 
ESOPO Se estás perdida de amor, perde também as esperanças. Mas dizeme, mulher do diabo: que achaste em mim para me quereres bem? Namorou-te este feitio?
 
GERINGONÇA O meu amor tem mais de peso, que de feitio.
 
ESOPO Namorou-te esta calva?
 
GERINGONÇA Não vês que a ocasião é calva, e tu foste a ocasião do meu amor?
 
ESOPO E estas pernas zambras são também ocasião de tu me quereres bem?
 
GERINGONÇA Foram os arcos por onde o amor despediu as setas.
 
ESOPO Tudo está muito bem; mas parece-te bem esta corcova?
 
GERINGONÇA Essa corcova foi o monte de Vênus aonde achei a minha buena dicha. Mas para que te cansas, se para o meu gosto és um Adônis e com este Narciso!
 
GERINGONÇA Ora, Esopo, para que te cansas? Quem o feio ama, formoso lhe parece. (Conta Geringonça a seguinte ária)
 
Tens tal dengue, tens tal graça, Que assim mesmo corcovado, Escalvado, Arrenegando, Me namora esse rigor.
 
Ai, amor, que linda traça Para me render, achaste, Nargudo, Barrigudo,
 
Tenho posto o meu amor.
 
ESOPO Mulher, requeiro-te, da parte de Deus, que, em me quereres bem, não sabes o que fazes. Vai-te daí, que quem se namora de mim é capaz de se namorar de um burro.
 
GERINGONÇA Tu me desprezas? Olhem a que chegaram os meus pecados! Vejam quem! Um calvo!
 
ESOPO Qual calvo! Não vês que esta calva foi a ocasião do teu amor?
 
GERINGONÇA Tu me desdenhas, zambro?
 
ESOPO Agora zambro! São os arcos, por onde amor despediu as setas...
 
GERINGONÇA Tu mo pagarás, corcovado.
 
ESOPO Isto não é corcova, é o monte de Vênus.
 
GERINGONÇA Vai-te daí, cão com trambolho. (Vai-se)
 
ESOPO Vai-te, cadela com almorreimas.
 
Sai Xanto
 
XANTO Escravo desaventurado, por que não disseste o que mandei dizer a Geringonça?
 
ESOPO Como o havia de dizer, se vossa mercê me disse o que não soubesse alma viva?
 
XANTO Isso não se entendia com Geringonça.
 
ESOPO Tenha mão: agora o colho. Vossa mercê me disse que o não soubesse alma viva; átqui, que Geringonça é alma viva; ergo, Geringonça por ser viva alma o não havia saber.
 
XANTO Não te quisera tão filósofo agora.
 
ESOPO Como vossa mercê me disse que amor era filosofia, quis tomar bem lição.
 
XANTO Tal estou de raiva, que te mataria agora. Não te aconteça outra; quando te mandar fazer alguma coisa, faze-a como te mando.
 
ESOPO Eu o farei.
 
XANTO Andar; não tem remédio. Ouves tu? Amanhã tenho de dar um banquete aos meus discípulos, e te encomendo me ponhas na mesa a melhor coisa do mundo.
 
ESOPO Encomende-me coisas de comer, que disso eu melhor conta. (Vai-se)  
 
CENA III
 
Mutação de sala, e sairão Periandro e Ênio.
 
PERIANDRO Ênio, vós também sois convidado para o banquete de Xanto, nosso Mestre?
 
ÊNIO Os favores particulares, Periandro, serão só para vocês; porém os públicos serão para todos.
 
PERIANDRO Eu não vos entendo.
 
ÊNIO Homem, vós quereis tapar o céu com uma joeira? Pois bem público é que vós andais namorado de Dilena; e, sendo eu vosso amigo e condiscípulo, recatais de mim coisa que é tanto do vosso gosto?
 
PERIANDRO Não me crimineis de não vos ter revelado este negócio, pois bem sabeis que o segredo é alma do amor; e tanto o desejo recatar, que tomara de mim mesmo encobri-lo. É verdade que eu amo a Filena, porque a sua formosura pode cativar o mais livre alvedrio; mas com amor tão lícito, que não passa os limites da modéstia.
 
ÊNIO Como lhe podeis falar, tendo uma mãe de tão terrível condição?
 
PERIANDRO Quis a formatura trazer para isso a Esopo, que é ao mais fino alcoviteiro do mundo.
 
ÊNIO Ui! Tem mais essa habilidade?
 
PERIANDRO É juiz do ofício e padre-mestre na matéria.
 
Sai Esopo.
 
ESOPO Vossas mercês vieram a conversar, ou a comer? Ora vamos, que a sopa está esperando.
 
ÊNIO Vamos ver os teus cozinhados. (Vai-se)
 
PERIANDRO Esopo, que novas me dás de meu bem?
 
ESOPO A boas horas me pergunta pelo meu bem, ao mesmo tempo que me está a boca doe estômago gritando que quer comer.
 
PERIANDRO Pois fala-me ao depois. (Vai-se)
 
Descobre-se uma mesa e se irão assentando a ela Xanto, Ênio e Periandro e os mais que puderem
 
XANTO Vamo-nos assentando sem cerimônia, que nos banquetes não. Há meses, nem discípulos. Mandei a Esopo que me pudesse nesta mesa a melhor coisa do mundo; veremos com que ele se desempenha.
 
PERIANDRO Com alguma parvoíce. Se vossa mercê se fiou da sua eleição, ficaremos em jejum.
 
ÊNIO Vamos nós comendo o que está na mesa, pelo sim, pelo não, que ele já tarda.
 
(Sai Esopo com um prato)
 
ESOPO Eis aqui a melhor coisa do mundo.
 
XANTO Descobre, e veremos.
 
ESOPO É um prato de línguas.
 
XANTO Um prato de línguas? Como? Pois isso é a melhor coisa do mundo?
 
ESOPO Qual é a dúvida que a melhor coisa do mundo é a língua? Que coisa mais necessária no homem que a língua? Sem língua, ninguém pode falar; sem falar, ninguém se entende. A língua é alma dos conceitos, é o corretor dos comércios, é a taramela das portas da boca, é prancha dos comeres, é o esgaravatador das gengivas, é a zagaratoa dos beiços, o planeta do céu da boca, e o badalo da campainha. Com a língua se lambe um prato; com a língua faz o arrieiro a célebre cantiga, etc. Enfim, a língua do cão é o melhor remédio das chagas, e o linguado o melhor peixe dos mares. Não sei que mais queria dizer, que o tinha debaixo da língua.
 
XANTO Nada nos dizes de novo, que bem sabemos que a língua é o oráculo do homem; porém, havemos só comer línguas?
 
ESOPO Senhor, muitos comem do que falam.
 
PERIANDRO Esopo fez o que lhe mandaram, como bom servo.
 
XANTO Uma vez que a melhor coisa do mundo são as línguas, traze-me agora aqui a pior coisa do mundo.
 
ESOPO Com muito gosto; e venho já. (Vai-se)
 
PERIANDRO É lástima que seja cativo quem tem tão livre o juízo para discorrer.
 
ÊNIO Não é essa a primeira sem-razão da natureza.
 
XANTO Que diabo fazes, Esopo?
 
ESOPO Eis aqui a pior coisa do Mundo. (Sai)
 
XANTO Que é isso que trazes?
 
ESOPO Outro prato de línguas.
 
XANTO Mais como?! Se a melhor coisa do mundo são as línguas, como agora as línguas são as piores coisas do mundo?   ESOPO É filósofo, e não sabe que, sendo uma língua boa a melhor coisa do mundo, a pior é uma língua má? Uma língua má e estrago da honra; ela é a mãe dos mexericos, o pai dos enredos, a irmã das discórdias, a perturbadora da paz, o clarim da guerra, a sarna do sossego, a carepa das consciências, o despertador das vinganças e o instrumento da alcovitice. Não é assim, senhor Xanto?
 
XANTO Dize bem; eu te perdoo a peça; e, pois há outro remédio, vamos comendo essas línguas e bebendo duas pingas. Ora lá vai à saúde de vossas mercês! (Bebe)
 
ESOPO Isso me parece bem; acendam-se no templo da barriga as lâmpadas de Baco.
 
PERIANDRO Lá vai à saúde da senhora Eurípedes. (Bebe)
 
ESOPO Tem razão; vá a virar.
 
ÊNIO Periandro, lá vai; já me entendeis. (Bebe)
 
PERIANDRO Vá, eu correspondo. (Bebe)
 
ESOPO Eu com esta garrafa irei fazendo as razões. Lá vai, ou cá vem à saúde dos meus achaques. (Bebe)
 
XANTO Que achaques tem?
 
ESOPO Agora tenho gota.
 
PERIANDRO ÊNIO Ênio, nosso Mestre não está todo trigo.
 
XANTO Mui valente foi Hércules Tebano! Esopo, vamos queimar estes cães.
 
ESOPO Ai, ai, que está puxando!
 
PERIANDRO Apostemos nós que vossa mercê não há de beber um tonel de vinho?
 
XANTO Sou capaz de beber o mar; tenho dito.
 
ESOPO Não zombem com ele, que não só beberá o mar, mas tudo quanto se lança na praia.
 
PERIANDRO Ora quanto aposta vossa mercê, que não bebe o mar?
 
XANTO Aposto tudo quanto possuo.
 
PERIANDRO Está apostado; venha sinal.
 
XANTO Este anel.
 
PERIANDRO Está feito; quando há de ser isso?
 
XANTO Quanto quiseres.
 
ESOPO Vão falando, que eu vou bebendo.
 
XANTO Esopo, leva essa língua a Geringonça, que com ela lhe explico o meu amor.
 
ESOPO Assim o farei. Esopo, hoje podes beber francamente.
 
XANTO Viva Baco, e morra o mundo! 
 
(Levantam-se)
 
ESOPO Morra o mundo, e abra-se Troia.
 
PERIANDRO Ambos estão mui bêbados.
 
ÊNIO Estou envergonhado de ver esta lástima! Nisto param os banquetes!
 
ESOPO Estou tão alegre, que o corpo me pede folia.
 
XANTO E a mim cóleras e iras, e parece-me que ouço instrumentos bélicos.
 
ESOPO Eu cuido que são bandurras; elas são, não são? Sim, são; escute, escute; são, são, elas são; pois cantemos. (Canta Esopo o seguinte)
 
(Recitado)
 
Lá vai à saúde dos senhores, E em suaves licores Matarei a cruel melancolia, Em doce hidropisia. Apesar do pesar e do cuidado,
 
Vestir quero a minha alma de encarnado.
 
(Ária)
 
Nas guerras de Baco, Sem o chuço ou baioneta, Com esta trombeta Toco a degolar, tan, taran, tan, tan, Tudo terá fim, tirim, torom, tom, tom, Tudo terá fim, tirim, tim, tim, Prostrando as cavernas De tantas tavernas, Por que delas possa Banco triunfar.  
 
CENA IV Mutação de Câmera. Saem Eurípedes e Geringonça.
 
EURÍPEDES Geringonça, que fizeste até agora?
 
GERINGONÇA Estive na cozinha dando ordem ao banquete; e o negro Esopo me deu tanta pressa, que andei atarantada.
 
ESOPO O Diabo levara os banquetes! Que há de ser, se o tanto de meu marido deu-lhe hoje na birra fazer bródios nisso tem consumido o dote que me deu meu pai?
 
GERINGONÇA Ai, senhora, também vossa mercê agora não tem razão. Ele que gasta, nem que bródios faz? Eu, há um ano que aqui estou, não vejo entrar nessa casa mais que chicharros e nabos.
 
ESOPO Ó desavergonhada, esta é a fama que deitas da minha casa?! Viste casa mais farta? Ainda a semana passada comprei dez réis de pepinos e já não há nenhum.
 
GERINGONÇA A minha barriga o sente.
 
EURÍPEDES Bem sei que o teu mal não é outro, velhaca.
 
ESOPO Aqui tens, Geringonça, este prato e línguas, que te manda meu senhor, e mais que não pode comer sem ti.
 
ESOPO Que dizes? A Geringonça, ou a mim? Estás bêbado?
 
ESOPO Como lhe hei de dizer? Soletrando? A Geringonça em Geringonça.
 
GERINGONÇA Senhora, ele cheira muito a vinho; não sabe o que diz.
 
EURÍPEDES Assim o creio; mostra, que é para mim.
 
ESOPO é uma bala; é para Geringonça que meu senhor lhe manda mesmo a ela; e por sinal me disse lhe dissesse, que com esta língua explicava o seu amor.
 
GERINGONÇA Não te calarás, infame?
 
ESOPO Tira-me tu a língua, que eu me calarei.
 
ESOPO Pois que tem teu senhor com Geringonça, para lhe mandar presentinhos?
 
ESOPO Eu, senhora, não sei; mas o que sei é que dizem as más línguas que meu senhor é barregão ou barregana, não sendo senão camelão.
 
EURÍPEDES Não te entendo.
 
ESOPO Senhora, mais claro: meu senhor quer-se fazer moço com a moça.   EURÍPEDES Já te entendo.
 
ESOPO Ora graças a Deus, que já me entendeu!
 
ESOPO Eu estou tonta!
 
EURÍPEDES É bem feito isto, atrevida? Tu desinquietando-me o meu homem! Há maior desaforo!
 
GERINGONÇA Eu, senhora?! Não há tal. Esopo mente.
 
ESOPO Lá se avenham, que eu me vou escafedendo. (Vai-se)
 
EURÍPEDES Ó perra, tu me dás zelos? Anda cá, que te hei de moer. (Dá-lhe)
 
GERINGONÇA À que del-Rei, que me mordeu no nariz!
 
EURÍPEDES Aqui te hei de fazer em picado com os dentes.
 
GERINGONÇA Ai, que me matam!
 
(Há uma bulha, e sai Xanto)
 
XANTO Valha-te Deus, mulher! Sempre hás de guerrear com esta coitadinha?
 
EURÍPEDES Ainda acode por ela, magano, atrevido, sem honra, nem vergonha? Você namorando-me a moça?! Você mandando-lhe pratinhos da mesa?!
 
XANTO Quem tal disse, mulher:
 
EURÍPEDES Quem o disse? Ainda há de negar que o mandou por Esopo? Ora chame-o e verá. 
 
XANTO Ó Esopo? Esopo?
 
Dentro de ESOPO Estou na tinta; assim sou eu asno, que apareça agora!
 
XANTO Não me ouves, Esopo? Ó Esopo?
 
ESOPO Estou zingando.
 
XANTO Ora eu te irei buscar, mais que estejas no inferno. Donde estás, maldito?
 
ESOPO Se eu quisera dizê-lo, então não me escondera.
 
XANTO Anda para cá, insolente; que fazias aí escondido?
 
ESOPO Estava jogando a escondidas; também a gente há de brincar! (Sai)
 
XANTO Ei-lo aqui. Ora dize: eu mandei a Geringonça algumas línguas?
 
EURÍPEDES Tu não disseste?
 
ESOPO Senhor, eu não quero meter a mão entre duas pedras. Olhem, por isso eu sou inimigo de enredos.
 
EURÍPEDES Tu não mo disseste?
 
ESOPO Senhora, eu que tenho com isso? Está galante! Vossas mercês lá brigam, lá tem seus ciúmes, e eu então é que hei de pagá-lo?
 
EURÍPEDES Como é isso?! Tu não o negues; basta, fique com a sua mocinha, senhor Xanto, que eu me vou para casa de meu pai. (À parte) Estou ardendo! 
 
XANTO Senhora, não se vá de casa, por sua vida.
 
ESOPO Deixe-a ir, que é uma boca menos em casa.
 
EURÍPEDES Por estas, birbantão, que eu me verei vingada.
 
XANTO Fale bem, aliás...
 
EURÍPEDES Ainda me indignas mais? Hei de arrancar-te essas barbas.
 
(Cantam Eurípedes e Xanto a seguinte: ária a duo)
 
EURÍPEDES Velho caduco!
 
XANTO Bravo insolente!
 
EURÍPEDES Tu com desvelos com uma michela!
 
XANTO Cala-te, serpente; não grites mais.
 
EURÍPEDES Hei de gritar.
 
XANTO Queres-te calar?
 
EURÍPEDES A que del-Rei, que meu marido com torpes zelos me quer matar!
 
XANTO Cala-te, serpente; não cuide a gente que faço tal.
 
EURÍPEDES Por estas, velhaquete, que me hei de ver vingada.
 
XANTO Ó louca arrebatada, que me hás de tu fazer?
 
EURÍPEDES Hei de me ir para casa de meu pai.
 
XANTO Para casa te irás de Satanás.
 
(Vai-se Eurípedes)
 
ESOPO E foi-se como um foguete de rabo; porém eu hei de levar os estouros.
 
XANTO Agora, Esopo, que mereces tu que te eu faça?
 
ESOPO Mereço um bom prêmio.
 
XANTO O prêmio há de ser este; toma, velhaco. (Dá-lhe)
 
ESOPO Não aceito; tire-se para lá!
 
XANTO Vês, infame, que por amor de ti se foi minha mulher de casa?
 
ESOPO Senhor, cuidava eu que vossa mercê me havia de agradecer o afugentar-lhe de casa um dragão, uma víbora e um basilisco, que era aqui o veneno desta casa; e sobre fazer-lhe este bem, ainda vossa mercê se agasta? Esopo, se não, veja: é certo que vossa mercê queria falar a Geringonça no jardim esta noite; e que melhor ocasião podia vossa mercê Ter do quê, indo-se de casa a senhora, sua mulher?
 
ESOPO Pior será, quando vossa mercê perder tudo quanto possui.
 
XANTO De que sorte?
 
ESOPO De que sorte?! Não se lembra que prometeu no banquete beber o mar, e, se o não fizesse, que perderia toda a sua fazenda?
 
XANTO Eu disse tal coisa?
 
ESOPO E por sinal que deu o seu anel; com que vossa mercê há de beber o mar, ou livrar toda a sua fazenda?
 
XANTO Mal haja o banquete e mal haja o vinho, e mal haja eu, que me embebedei!
 
ESOPO Vossa mercê cuida que todos sabem embebedar-se? Ora aqui estou eu, que também me embolquei, mas com tanta prudência, que não me meti a apostar, nem a não apostar.
 
XANTO Já não tem remédio; o ponto está, como me hei de eu haver; porque confessar que estava bêbado é injúria e grande ignomínia; beber o mar é impossível; perder os meus bens impraticável. Que farei neste caso, Esopo?
 
ESOPO Matar-se com um pouco de veneno, e com isto se acaba tudo. 
 
XANTO Ó Júpiter, para quando guardais os rios? 
 
ESOPO Há de dizer isso a Baco, e não a Júpiter.
 
XANTO Meu Esopo, agora é que eu quero ver as tuas habilidades; se tu me livras deste empenho, eu te dou a liberdade.
 
ESOPO Pois, senhor, para quando são as suas filosofias? Assentemos nós que a filosofia não serve senão para argumentar e quebrar a cabeça.
 
XANTO Pois, homem, para esta ocasião é que eu quero que me valhas; tens a liberdade, já to disse.
 
ESOPO Promete-me a liberdade?! Veja lá o que diz!
 
XANTO Prometo.
 
ESOPO Levante o dedo para o ar.
 
XANTO Não só o dedo, mas toda a mão.
 
ESOPO Ora, pois, ande comigo, que o tirarei desse mar, e o porei em porto salvo.
 
XANTO Vê lá o que dizes!
 
ESOPO Ande; ande, que mal sabe com quem vai. (Vão-se)
 
 
CENA V Mutação de mar. Depois de se dizer dentro o que se segue, sairão Periandro, Ênio e o mais que puderem.
 
DENTRO Vamos ver a Xanto beber o mar.
 
OUTRO Vamos a praia; andem depressa, para tomarmos lugar.
 
(Saem Periandro e Ênio)
 
PERIANDRO Confesso-vos, Ênio, que já estou arrependido da aposta; porque bem sei que Xanto não há de beber o mar.
 
ÊNIO Deixai, que isso é bom para se dar um alegrão ao povo.
 
PERIANDRO A gente vem concorrendo cada vez mais.
 
(Saem Filena e Geringonça com os rostos cobertos)
 
GERINGONÇA Senhora, aí o que está de gente, para ver as habilidades do senhor seu pai!
 
FILENA O caso é, Geringonça, que meu pai está mui caduco, e Esopo ainda mais tonto do que é. Vês tu a asneira de dizer que há de beber o mar!
 
GERINGONÇA Lá está Periandro e Ênio.
 
FILENA Já os vi. Tem sentido e não os percas de vista.
 
GERINGONÇA E se nos conhecerem aqui?
 
FILENA É impossível entre tanta multidão de gente; e mais vindo nós disfarçados.
 
PERIANDRO Muito tarda este bebedor dos mares!
 
(Saem Xanto e Esopo, e todos darão muitos gritos e risadas)
 
TODOS Vítor, lá vem o bebedor dos mares!
 
ESOPO De que se riem? De que fazem algazarras? Pois saibam que o senhor Xanto não só é capaz de beber.
 
XANTO Esopo, que é o que determinas fazer? Não vês este povo alvoroçado, e o meu crédito em balanças?
 
ESOPO Eu serei o fiel dessas balanças; e verá quanto pesa o meu talento.
 
PERIANDRO Senhor Xanto, por vossa mercê se esperava; vamos a isto.
 
XANTO Esopo, e agora que hei de dizer?
 
ESOPO Valha-o mil diabos! Não tema; tenha valor! Moradores de Atenas, o senhor Xanto, meu senhor, aqui vem para beber os mares, como apostou; e assim, primeiro que o faça, quer desencarregar a sua consciência; pois, bebendo o mar, como com o favor de Deus o há de fazer, porque tem barriga para tudo, eis que, bebido o mar, por força o há de urinar, e, urinando-o, há de alagar toda esta terra, e morrerão todos afogados.
 
PERIANDRO Para tudo há remédio. Depois que Xanto beber o mar, torne a urinálo na mesma praia, e irá o mar para o seu mesmo lugar.
 
XANTO Está bem; e se os peixes me entrarem pela goela, como há de ser isso?   ESOPO Não diga asneiras; pois para não engolir os peixes, podia beber o mar por um funil. Essa não é a dúvida; o caso é que prometeu beber o senhor Xanto.
 
PERIANDRO Prometeu beber o mar.
 
ESOPO Pois bem; como a aposta foi de beber o mar somente, mandem fechar todos os rios vão dar ao mar; porque de outra sorte beberá, não só a água do mar, mas também a dos rios, o que não é da aposta. 
 
ESOPO Se vossas mercês não podem fazer um outro impossível.
 
ÊNIO Tem razão Esopo.
 
XANTO Fechem os rios, e eu beberei o mar, para que estou pronto.
 
PERIANDRO Isso é impossível: desfaçamos a aposta.
 
XANTO Desfaçamos.
 
TODOS Victor Xanto!
 
OUTRO Victor Esopo!
 
ESOPO Victor eu, e victor amigos!
 
XANTO Anda, que te quero um tabelião para passar-me a carta deste empenho. (Vai-se)
 
ESOPO Vamos a casa de um tabelião para passar-me a carta de alforria. Vou tão contente! (Vai-se)
 
FILENA Ó Geringonça, não te descubras, que aí vem Periandro chegando-se para nós.
 
GERINGONÇA Dize bem; vejamos o que faz.
 
PERIANDRO Senhoras, querem um criado para as acompanhar? Não lhe merece reposta o meu rendimento? Só com acenos me dizem que não. Valha-me Deus, eu estou perdido pelo brio desta moça! Hei de segui-la. Não te vás, formosa Vênus, que sem dúvida nasceste agora das escumas desse mar, para abrasar os corações. Se como a deidade te adoro, não desprezes as vítimas de um coração; descobre esse rostinho, que como Sol se quer nublar nessa importuna nuvem. Não importa que me cegues com raios, se amor já me cegou com delícias.
 
FILENA Uma vez que queres que em descubra, aqui me tens.
 
GERINGONÇA E a mim também. 
 
(Descobrem-se)
 
PERIANDRO Que é que vejo? Estou corrido! Cuidavas, Filena, que te havias de ir, sem que me falasses?
 
FILENA Queres agora dizer que saibas que era eu, falso, ingrato, inconstante?! Esses são os teus extremos? Essas as tuas finezas? Tão depressa te mudaste?
 
PERIANDRO Filena, não tens razão; eu bem sabia que eras tu; mas, como estavas galanteando comigo, eu também quis fingir que não te conhecia, sòmente para te ouvir; e, quando isto não fora, aí verás que, quando cheguei a amar, sempre foi a ti, e não sei que simpático influxo me arrebatava o coração, que te estava querendo.  
 
FILENA Sempre me ofendeste na imaginação de que era outra.
 
PERIANDRO Meu bem, meu amor, nem por pensamento te ofendi; e, se acaso me não crês, deixa-me sepultar nesse mar, que só assim verás que mais quero a morte, que viver nos desagrados de teus olhos.
 
FILENA Tem mão, que eu não quero finezas mortas; deixa-me, Periandro; deixa-me lamentar as tuas falsidades ao som da minha mágoa.
 
(Canta a seguinte ária)
 
Nesse líquido elemento, Apesar de meu tormento, Vejo, ó falso, o teu retrato, Pois que tanto se parece Na inconstância a esse mar. Donde está, tirano ingrato, A constância, que dizias? Donde a fé, que prometias? Pois não sabes ser amante, Por mudável, inconstante, Leve o mar o teu amor.
 
(Vai-se)
 
PERIANDRO Espera, Filena; não te vás com tanta celeridade; porém hei de seguirte, apesar da tua ligeireza; que, se amor te formou das penas asas, também saberei fazer dessas asas penas. Geringonça, detém a Filena.
 
GERINGONÇA Fez muito bem. Vocês são falsos, e se querem dourar? Pois sofram estes desprezos. (Vai-se)
 
CENA VI Praça. Mutação de noite, e sai Esopo.
 
ESOPO Com a turbamulta da gente me perdi de meu senhor Xanto, e isto é já noite. Aonde acharei a este maldito? Estará em alguma taverna? Pois aqui mora um tabelião, e de nota, que sabe fazer bem as cartas de alforria. Ele aqui há de vir, que este é o tabelião da casa. Ora graças a Deus, que já não serei singelo, senão forro, e eu forrado poderei com mais liberdade dizer a Filena o meu amor; pois tenho o demo da bugia presa no cepo do meu coração, e eu lhe farei tais monarias, que ela saiba onde a bugia tem o rabo. Porém lá vem quem quer que é.
 
(Saem Messênio e guardas)
 
MESSÊNIO Quem vem aí?
 
ESOPO Eu, senhor, não vou; venho.
 
MESSÊNIO De onde vem?
 
ESOPO Eu venho da geração de meu pai, por ascendência.
 
MESSÊNIO Que armas traz?
 
ESOPO Ainda o rei-de-armas me abriu as minhas.
 
MESSÊNIO Você faz-se tolo? Busquem-nos aí, a ver se leva alguma faca.
 
ESOPO Senhores, se eu venho a pé, como hei de trazer faca?
 
MESSÊNIO Busquem-no bem.
 
PRIMEIRO HOMEM Aqui tem uma coisa na algibeira.
 
MULHER O que é?
 
ESOPO Isso é um corno, que trago aqui por amor do quebranto. Ui, senhores! Vossas mercês querem buscar lá por de trás?
 
SEGUNDO HOMEM Sim, para ver se traz algum ferro lá escondido.
 
ESOPO À que del-Rei, senhores! As minhas nádegas não são de contrabando. Busquem embora, que aí não há ferro; ferrado sim.
 
MESSÊNIO Que trouxa é essa, que traz aí nas costas? Tirem-lha fora, e vejamos.
 
ESOPO Se vossas mercês ma tirarem, digo que são valentes.
 
PRIMEIRO HOMEM Ela está atada de sorte, que a não posso tirar.
 
MESSÊNIO Que é isso que levas aí?
 
ESOPO Não é nada; é uma corcova, para servir a vossas mercês.
 
MESSÊNIO Apostemos que és Esopo?
 
ESOPO Com que só Esopo é corcovado?
 
MESSÊNIO Dize: para onde vás?
 
ESOPO Eu não sei para onde vou.
 
MESSÊNIO Assim responde à Justiça? Levam-no preso.   ESOPO Vejam vossas mercês se disse eu bem, que não sabia para onde ia; pois na verdade que eu não sabia que ia para a cadeia.
 
(Sai Xanto)
 
XANTO Donde se esconderia este Esopo, que tenho andado quebrando os narizes, sem poder topar com ele? Ali está a Justiça. Vou-me retirando.
 
MESSÊNIO Quem vem lá?
 
XANTO Amigos.
 
MESSÊNIO Que amigos?
 
XANTO Sou Xanto, filósofo.
 
MESSÊNIO Senhor Xanto, veio vossa mercê a boas horas.
 
ESOPO As boas horas veio vossa mercê, às avessas.
 
XANTO Senhor Messênio, que fez Esopo, pois o tem preso?
 
MESSÊNIO Por não falar com cortesia à Justiça.
 
XANTO Vossa mercê, senhor Messênio, por quem é, há de soltar a Esopo; pois bem sabe que é bobo e chacorreiro; e, se alguma coisa respondeu, seria por graça.
 
MESSÊNIO Bastava ser coisa de vossa mercê para o soltar. Soltem a Esopo!
 
ESOPO Pô, Diabo, como fede! Os esbirros deviam soltar algum preso.
 
XANTO Vossa mercê viva mil anos, senhor Messênio, pela garantia que em fez de soltar a Esopo.
 
ESOPO Vossa mercê viva mil anos, pela galantaria que me fez em prenderme.
 
MESSÊNIO Vamos correndo o bairro. 
 
(Vão-se)
 
ESOPO Ora, senhor, aqui mora um tabelião; vamos, para me fazer a carta de alforria.
 
XANTO Qual a alforria?
 
ESOPO Essa agora é boneca! Vossa mercê não me disse que, se o livrava de beber o mar, ficando com crédito e honra, que me havia de dar a liberdade?!
 
XANTO Assim o disse, não o nego; mas eu já te dei a liberdade.
 
ESOPO De que forma?
 
XANTO Quando eu aqui cheguei, estavas preso, e por amor de mim te soltaram. Logo, já te dei a liberdade e tenho cumprido a minha palavra.
 
ESOPO Essa não sabia eu. Assim se pagam os benefícios?! Mas eu tive a culpa. Deixara-o 
 
EURÍPEDES Beber o mar, que, quando nada, podia ficar hidrópico com muita facilidade; e não fora eu taralhão, que o livrara dessa entaladura; porém eu me vingarei.
 
XANTO Olha, Esopo, se me trouxerdes minha mulher para casa com alguma indústria, eu te darei a liberdade.
 
ESOPO Meta-me aqui o dedo na boca, para ver se o mordo. No es la burla para dos vezes.
 
XANTO Anda para casa. Não te agastes. (Vai-se)
 
ESOPO Vou feito um vinagre. (Vai-se)
 
CENA VII Mutação de exército. Tocam tambores e clarins, e sairão Cresso, rei de Lídia e Temístocles a cavalo.
 
TEMÍSTOCLES Invicto Cresso, rei de Lídia, aonde intentas passar com os triunfos? Sem dúvida queres escurecer o nome e valor do mesmo Marte.
 
REI Temístocles, quando os homens, como eu, chegam a desembainhar a espada, há de ser para conquistar o mundo; agora me falta avassalar esta pequena parte da Grécia; e seja de todas estas a primeira que sinta o raio da guerra, pois, degolada a cabeça, o corpo logo se prostra.
 
TEMÍSTOCLES Os Atenienses. Senhor, são tão destros nas armas como nas letras; e bastava haver nela tantos sábios, para ser difícil render-se; que o bom conselho é o que dá as vitórias, maiormente tendo lá um homem a quem chamam Esopo, que dizem que é astucioso e grandes ardis.
 
REI Quem faz caso de um homem à vista de um exército? Que gente temos?
 
TEMÍSTOCLES Cinquenta mil homens de infantaria, e vinte e quatro de cavalaria, fora os vivandeiros e gastadores.
 
REI Toca a passar mostra, que quero recrutar as tropas e batalhões e deles escolher poucos e bons, para ir sobre Atenas; e a mais gente fique para se empregar em outras peças com os cabos que eu nomear.
 
TEMÍSTOCLES Toca a passar mostra.
 
(Irão saindo os soldados ao som da caixa)
 
REI Temístocles, vinde tomar as ordens e chamar os cabos a conselho.
 
 
CENA VIII Descobre-se um templo e no fim dele estará uma estátua de Júpiter, ao pé da qual há de haver uma águia com três raios nas unhas, a qual se há-se mover ao seu templo, e cantará o coro; e ao mesmo compasso irão saindo Messênio, Xanto, Periandro e Esopo, o qual dançará, e depois que se cantar, tocarão tambores.
 
ESOPO Aqui nos correm a caixa.
 
MESSÊNIO Que novidade é esta?
 
XANTO Isto é caso nunca visto!
 
(Sai Ênio)
 
ÊNIO Senhores, toda a cidade está alvorotada à vista de um poderoso exército com que El-Rei Cresso de Lídia vem destruindo os campos, e já à vista das nossas muralhas; e tu, Messênio, como general das armas sai a defender-nos.
 
MESSÊNIO Eu vou e verá El-Rei Cresso o meu valor.
 
ÊNIO Sempre tive agouro com este Júpiter. Valha o Diabo a El-Rei Cresso, que no melhor que eu estava fazendo um contratempo, nos veio fazer um passa-pé daqui fora.
 
MESSÊNIO Vamos, senhores.
 
XANTO Esperai; pois, já que estamos aqui no templo de Júpiter, consultemos o seu oráculo, e o que ele nos disser obraremos.
 
PERIANDRO Aconselhou como sábio.
 
MESSÊNIO Pois, Xanto, pergunta tu, que como douto o farás melhor.
 
ESOPO Meu senhor fala aos joves como ninguém.
 
XANTO Grande oráculo de Júpiter, como resistiremos a El-Rei Cresso de Lídia?
 
ESOPO Pois aquilo tinha muito que dizer? Tudo é opinião neste Mundo.
 
(Haverá como terremoto e estrondo)
 
ESOPO Irra, que terremoto! O templo parece que se vem abaixo! Este Júpiter será gago, que tanto lhe custa a falar?
 
(Canta-se o recitado seguinte, como em resposta do oráculo de Júpiter)
 
Ao mais livre de vós e ao mais escravo Consultai, que é um oráculo vivente, E vereis claramente Do que saber quereis o desengano. Ele será o remédio deste dano; E para que o saibais com mais clareza, Dessa águia reparai na ligeireza.
 
(Voa a águia acima dita e se põe sobre a cabeça de Esopo, que cairá por terra, e depois se irá por como estava)
 
ESOPO Vocês não veem a pássara, que anda voando de verdade?
 
XANTO A águia de Júpiter voando! Isso é novidade! E vai direita para Esopo.
 
TODOS Que portento!
 
ESOPO Xô, diabo! Passa fora!
 
XANTO Deixa; não enxotes, tolo; olha que é sacrilégio.
 
ESOPO Com que, por ser de Júpiter, deixarei que me tire um olho! E mais de quê, eu sei porventura se é águia, ou corvo?! E isto com três raios nas unhas, que me chamusque o cabelo.
 
XANTO Quem será o venturoso, sobre quem se ponha esta águia?
 
ESOPO Eu sou o venturoso desgraçado! Xô, à que del-Rei!
 
(Voa outra vez a águia e torna para o mesmo lugar, e levanta-se Esopo)
 
PERIANDRO Sem dúvida que Júpiter quer que Esopo seja o oráculo.
 
MESSÊNIO Pois responda Esopo.
 
XANTO Que há de dizer um escravo?
 
ESOPO Eu não tenho dúvida em decifrar este enigma da águia; mas há de ser com condição que me hão de dar a liberdade.
 
TODOS Dê-se a liberdade a Esopo.
 
MESSÊNIO Xanto, dá a liberdade a Esopo e quando não, lha dará o povo e ficará livre.
 
XANTO O que hei de fazer por força, quero-o fazer por vontade. Esopo, estás liberto.
 
ESOPO Agora, sim! Nobres Atenienses, dai-me atenção, que falo sério. Bem vistes que a águia de Júpiter se pôs sobre a minha cabeça. A águia é o símbolo dos Impérios, e eu era escravo, e isso quer dizer que o Império de El-Rei Cresso nos quer avassalar; mas, como depois disso o escravo conseguiu liberdade, também Atenas terá a mesma fortuna, se seguir os meus conselhos.
 
XANTO Bem decifrado enigma!
 
TODOS  Viva Esopo, e ele seja o Diretor desta guerra.
 
XANTO Esopo, aquela casa é tua; ainda que libertos estás, não te apartes de mim.
 
ESOPO Algum diabo, que eu me vá de casa, estando nela a senhora Filena, a quem entro agora a servir a mostra-me seu amante às escâncaras. Xanto, vamos, que hoje vos faço a honra de ser vosso hóspede.
 
TODOS Viva Esopo, nosso libertador!
 
ESOPO Não gabem a porca, antes de passar o marrão.
 
TODOS Vamos a pelejar!
 
(Canta o coro)  
 
ATO II
 
CENA I Mutação de selva, e no fim haverá um palácio onde estará a mulher de Xanto, e sai Esopo,
 
ESOPO Venho deitando o bofe pela boca fora. Boa fé, que ainda depois de liberto não tenho uma hora de sossego. Pois meu patrão está ateimado a que lhe leve para casa a mulher, que lhe fugiu. A isto venho eu com tanto perigo, porque os inimigos não tardarão muito em vir. Se me agarram, lá ai Esopo os diabos. Como trarei eu esta maldita mulher para casa, que uma mulher teimosa é pior que um cancro, que não tem cura? Mas ali vejo uma Quinta; e, se me não engano, lá está uma mulher; e polo fartum da cólera é a senhora Eurípedes, pois agora a ela lhe arderá o rabo! Há por aqui quem venda alguns perus, patos, galinhas, coelhos e outras coisas comestíveis?
 
EURÍPEDES Esopo, que é isso? Que buscas? Anda cá. É possível que me não viesses ver até agora?
 
ESOPO Ai senhora, confesso-lhe que não tenho tido uma hora de meu com o casamento de meu amo o senhor Xanto.
 
EURÍPEDES Como é isso? Xanto casa?! Pois eu já morri?!
 
ESOPO Prouvera a Deus! (À parte) Sim, senhora; casa o senhor Xanto com a mais linda rapariga que há nesta terra. Apenas vossa mercê se foi de casa escumando como uma cadela de fila, quando logo foram tantos os casamentos que saíram a meu amo, que isso foi uma coisa nunca vista. Ajuntaram-se na porta tantas mulheres todas as gritar: a mim, a mim! Outras diziam: eu, eu! Então acabei de ver quanto valia um filósofo. Meu amo, vendo que choviam nele mulheres como na rua, mandou que subissem todas e que o levassem por oposição, visto estar vago o estrado de vossa mercê. Foi coisa para ver como elas se opunham umas às outras! Qualquer delas sabia bem da arte de amar; porém Geringonça (que também entrava no concurso) levou a palma em vida; e, como meu amo estava afeiçoado de Geringonça, ela foi a que triunfou e com efeito está teúda e manteúda em casa. Amanhã se faz o casamento, para o que venho a apenar todas as aves de pena. Adeus, senhora. Há por aqui quem venda alguns perus, patos ou galinhas?
 
EURÍPEDES Espera, Esopo; olha cá o que te digo.
 
ESOPO Se tem alguns perus para vender, venham, que os quero comprar.
 
EURÍPEDES Ele pagará o pato. Há maior desaforo! Que este magano de meu marido não basta namorar-se da criada, mas também casar com ela! Estou uma víbora.
 
EURÍPEDES Eu o creio.   EURÍPEDES Xanto casar-se com outra mulher?! Isto é crível?
 
ESOPO Pois se ele está vivo! Não se fora vossa mercê da casa.
 
EURÍPEDES Espera, Esopo, que eu vou contigo perguntar a esse insolente se há de casar com outrem, estando eu viva.
 
ESOPO E tão viva, que tem o espírito no corpo.
 
EURÍPEDES Se apanhara agora aquele velhaco, lhe havia de dar muito coice. Estou ardendo com zelos! Montanhas, como não caís sobre mim para sepultar-me?
 
ESOPO Espere, se quer que caia um troco sobre o seu corpo; isso farei eu.
 
EURÍPEDES Deixa-me, Esopo, que estou zelosa.
 
ESOPO Parece que lhe ardeu o rabo.
 
(Canta Eurípedes a seguinte ária)
 
A víbora insana Dos zelos com ira Penetra tirana O peito que espira Nas ânsias da dor. Frenética morro; Aflita suspiro, Languente respiro Nos zelos de amor. 
 
(Vai-se)
 
ESOPO À fé, que ela vem para casa. Ora já logrei o meu intento. Mas que ouço? Tambores? O inimigo já vem chegando; vamos a defender a praça. 
 
(Toca o tambor)  
 
CENA II Mutação de arraial, e no fim estará um castelo com gente de guerra, e saem El-Rei Cresso, Temístocles e mais soldados.
 
TEMÍSTOCLES Soberbos e arrogantes são os muros de Atenas! Parecem inconquistáveis!
 
REI Por isso mesmo será Atenas o alvo de minhas iras militares. Se vos parecem soberbos e arrogantes esses muros, logo os vereis reduzidos a lamentável estrago. Ó Atenas, ou tu te hás de render, ou eu hei de ficar sepultado debaixo de tuas muralhas.
 
TEMÍSTOCLES Senhor, o bom Capitão deve ser prudente, e não temerário.
 
REI A prudência é capa dos medrosos. O empreender possíveis é princípio de triunfar. Vá volantim à praça e diga aos Atenienses que quem se acha nesta campanha é El-Rei Cresso de Lídia, a cujo valor se tem sujeitado todo o Peloponeso; que me acho com a flor de minhas tropas; que, se quiserem sujeitar com capitulações honrosas, pagando-me um leve tributo, escusarão de experimentar os rigores da guerra e um assalto rigoroso; e, quando não, não ficará pedra sobre pedra.
 
(Irá um volantim ao muro e dará o mesmo recado, ao que respondem da muralha)
 
MESSÊNIO Dizei a El-Rei Cresso de Lídia que Atenas, como soberana, nunca reconheceu superior; e que seu exército não nos assombra; pois os de Atenas brigamos com dobradas armas, que são as do entendimento e as da guerra; e assim, que nós resistiremos até morrer.
 
REI Notável resolução!
 
(Canta o Rei a seguinte ária e recitado, e depois dá-se o assalto)
 
Ânimo, pois, soldados valorosos; Castiguemos a bárbara ousadia De Atenas temerária, Sentindo o insensível  De Mavorte feroz a fúria horrível.
 
ÁRIA
 
A fábrica altiva De tanto edifício Cruel sacrifício De Marte será. O fogo que acende Belona no peito O muro desfeito Em cinzas fará.
 
REI Valorosos soldados neste primeiro assalto consiste a honra e o valor. Toca a investir!
 
(Toca-se, e se dá o assalto, arrimando duas escalas, por onde subirão alguns soldados a brigar com os da praça, e se lançará ao mesmo tempo algum fogo. Depois de alguma resistência, entre as vozes dos soldados dirá o rei)
 
REI Toca a recolher; suspenda-se o assalto, que morreu muita gente.
 
CENA III Mutação de sala, onde estarão Xanto, Ênio e Periandro, e haverá como uma grande cadeira no fim.
 
XANTO Não é razão que pelo exercício das armas se suspenda o das letras; e assim, enquanto pelejam os soldados no muro, não quero esteja ocioso o discurso nas aulas. Sentemo-nos e vá de argumentos.
 
(Sai Esopo)
 
ESOPO Ai, quem me acode, que morro?
 
XANTO Que tens? Que te sucedeu?
 
ESOPO Venho esfaltado de brigar com os inimigos, que deram um assalto na praça.
 
PERIANDRO Pois vencemos?
 
ESOPO Eu, suposto lá me achasse, não vi coisa alguma.
 
PERIANDRO Como? Isso implica.
 
ESOPO Não implica; de sorte que eu ia para ver o assalto, quando me disse um soldado, que era todo uma nata, e estava sentinela: se quer ver, há de pagar à porta! 
 
ESOPO E quis a minha desgraça que não levava dinheiro; e, como me viram sem laia, deram-me logo uma baixa redonda.
 
PERIANDRO Bom diretor temos para esta guerra! Entendo, Esopo, que, se tu fazes das tuas, que todos ficaremos cativos de El-Rei Cresso.
 
ESOPO Se isso assim for, pegue vossa mercê no senhor Júpiter e dê-lhe muito acoite; pois ele foi o que me alcovitou para ser general desta guerra.
 
XANTO E que novas me dás de minha mulher?
 
ESOPO Ainda essa é pior guerra, porque é uma guerra porca; pois, quando se encoleriza, tocando com as vaquetas das pernas no tambor da sua paciência, cada palavra é uma bala, e cada saliva um perdigoto.
 
XANTO Pois, homem, vem para casa, ou não?
 
ESOPO Esteja descansado, que ela logo vem; porém, ainda que mal pergunte, hoje há aqui conclusões?
 
XANTO Há uma conferenciazinha; e tu, Esopo, também hás de argumentar.
 
ESOPO Quem defende?
 
PERIANDRO Eu defendo três pontos.
 
ESOPO Quais são, que eu também quero meter o meu bedelho?
 
PERIANDRO As questões são curiosas.
 
Diga, que também sou curioso.
 
PERIANDRO O primeiro ponto é que o maior indício do amor é andar um amante triste. O segundo ponto é que o amor, para ser perfeito, há de ser cego. E o terceiro definir coisa é o amor.
 
XANTO Eu presido; argumente Ênio e Periandro.
 
ESOPO Na terra dos cegos quem tem um olho é rei. Argumente o senhor Ênio, que eu estou já pulando para conseguir esgrimir a espada da eloquência.
 
ÊNIO Ora contra o primeiro ponto, em que se afirma o maior indício do amor é andar triste um amante, argumentando assim: A tristeza é indício do desgosto; o amor é o maior gosto; logo, não pode ser a tristeza indício de um gosto, qual é o amor.
 
XANTO Repita.
 
PERIANDRO Nego que o amor seja o maior gosto.
 
ÊNIO Provo. Se o amor não fora gosto, todos o aborreceriam; e, como todos procuram o amor, logo o amor é gosto.
 
PERIANDRO Todos apetecem o amor com vontade constrangida, concedo; com vontade livre, nego.
 
XANTO Admiravelmente; porque a vontade forçada não é vontade.
 
ESOPO Isso se acaba com a experiência. Vamos às galés, e faça-se autonomia em um forçado, para ver se tem a vontade livre.
 
ÊNIO Contra.
 
ESOPO Ora cala-se, que não há de levar a melhor de se seu Mestre; pois, ainda que diga uma asneira, sempre há de vencer. Deixe-o agora comigo, que hei de buscá-lo: Faciat mihi dicendi veniam, Pater Magister barbatus, e enamoratus cum Mixela sua, contra punctum corridum sic argumentor: Se o indício maior do amor fosse a tristeza, non tangeretur violam Barbeirus visinhum mecun ad namorandam cachopan; sed sic est que a viola é significativo da alegria: ergo barbeiro namorandam fregonam non usaretur de coisa alegre.
 
PERIANDRO Nego a menor, que seja a viola significativo da alegria; pois às vezes nela se tangem sons tristes.
 
ESOPO Non potest esse; argumentor ita: Não haverá barbeiro, que ad namoradam, vel bichancreandam fregonam non tangat oitavado; átqui que o oitavo é som folgazão; ergo, amor inginhatur com coisa alegre.
 
XANTO Distingo: O oitavo é som folgazão: ut vulgo a arrepia, concedo; porém se é o oitavo mole, nego.
 
ESOPO Tudo o que é mole, se arrepia; o cabelo se arrepia, porque é mole; ergo, o oitavo mole e o arrepia se não podem separar, por serem ejusdem furfuris. Este argumento não tem resposta; assim o diz Galeno: Omne mole arripiatur; ou surripiatur, como diz a glosa.
 
XANTO Ora cala-te, que não dizes nada.
 
ESOPO Olhem vossas mercês; sempre um exemplo aclara muito bem um calcanhar. Vá fora da forma: Se a tristeza fora significativo do amor, seguir-se-ia que o burro era a mais amante criatura, pois é certo que não há animal mais triste, melancólico e sorumbático do que o burro; e assim, ou vossa mercê me há de conceder que o burro é amante, ou há de negar que a tristeza não é sinal de quem tem amor. Quid dicis ad haec?
 
XANTO Digo que tens razão.
 
ÊNIO Vítor Esopo! Boa paridade!
 
ESOPO Pois eu não disse por paridade; o certo é que eu sou um grande talento.
 
ÊNIO Contra o segundo ponto das conclusões que quis que o amor, para ser perfeito, há de ser cego: o amor reside na vontade; o entendimento é o farol que guia a vontade; logo, se a luz do entendimento alumiara a vontade, nunca o amor seria cego.
 
PERIANDRO Respondo que nesse caso também o entendimento está cego. Se o entendimento está sem luz, como pode guiar a vontade?
 
ESOPO Espere, espere, que agora lhe salto nas ancas: totus amor est albarda; átqui que albarda est enxerga; ergo, o amor há de enxergar.
 
XANTO Quem te disse a ti que o amor era albarda?
 
ESOPO Ui, senhor, desde que me entendo, ou antes de me entender, sempre no berço me embalaram com aquela cantiga:
 
O amor é uma albarda, Que se põe em quem quer bem; Eu, por não ser albardado, Não quero a ninguém.
 
XANTO Isso é questão de nome; vamos ao terceiro ponto, que é definir o amor.
 
PERIANDRO Agora defina Esopo o que é o amor, que nós lhe argumentaremos.
 
XANTO Dizes bem; ouçamos o que diz, e vejamos o seu juízo.
 
ÊNIO Bem está, que ele tem grande juízo. Assim o tivera eu!
 
ESOPO O meu juízo já andou demandando em juízo; mas eu, por lhe faltar a vontade, me subo magistral e definirei o amor. 
 
TODOS Ora ouçamos a Esopo: chitom!
 
(Sobe Esopo à cadeira; e, assentando-se nela, diz)
 
ESOPO Vulcano, aquele célebre ferreiro, a quem a Gentilidade hipotecou o domínio do fogo, foi marido de Vênus (ainda que outros dizem que Vênus é que foi a sua mulher) Valha a verdade, que eu com isso me não meto! O que sei que é, estando Vênus ao pé de uma bigorna em que Vulcano estava batendo um ferro em brasa e sobre este descarregando o martelo, eis que salta uma faísca, prega-se na barriga de Vênus e, como à queima-roupa, ateia-se o incêndio na camisa; mas quis não sei quem que, como Vênus era filha do mar alto, o fogo a não pudesse abrasar, fazendo-lhe uma empola na barriga. Cuidado, senhores, com o fogo, principalmente junto da formosura; porque a beleza é isca, que com qualquer fogo se ateia; é mecha, que com qualquer faísca estoura. Bem se viu no presente caso, mas não parou aí o estrago, porque a tal empolazinha, ainda que diziam os médicos, não é nada, não é nada, ela em nove meses cresceu de tal sorte, que aprecia um tambor. Vendo-se a formosa Vênus em tanto perigo, mandou chamar três velhas, suas conhecidas, e insignes mezinheiras. (Eram elas mulheres muito honradas no seu corpo, e nos seus adornos mui parcas) Cada uma, conforme a sua antiguidade, foi-lhe apalpando a barriga. A primeira velha disse: – Senhora, a barriga de vossa mercê tem tal quentura, que me persuado que tem nela um incêndio. Disse a Segunda: – Pois eu, se me não engana o tacto, acho a barriga de vossa mercê tão dura, que cuido tem dentro dela um calhau. Respondeu a terceira velha: – Com licença das senhoras comadres, cuido que o que Vênus, minha senhora, traz na barriga é um bicho, pois pelos saltos que dá nela, assim me atrevo a afirmar. Palavras não eram ditas, quando estoura Vênus pelas ilhargas, e saiu como uma pelota um rapaz, cego de ambos os olhos, com aljava ao ombro e na mão um arco; e, pondo-se em pé, disse a criança: – Não quebrem a cabeça, que o que minha mãe tinha na barriga era o amor, que sou eu! Vendo as velhas este prestígio, disse a primeira: – Não cuides. Cupido (que o rapaz logo trouxe o nome consigo), que não cuides que me deste quinau, pois tanto montava dizer que Vênus, tua mãe, tinha na barriga um incêndio, que o Ter amor; porque amor e incêndio tudo é o mesmo. A quantos amantes na tirania de um desdém faz o amor seu foguete, e de rabo, quando dá as costas aos carinhos, por mais que busca pé para disparar nas meninas dos olhos o foguete de lágrimas, que chora? Todas as árvores de geração são esgalhos da árvore do fogo do amor, donde cada bomba é um pomo e cada folha um tranque; porque todo amor acaba de estouro. Para as damas é o amor borralho; para os moços esquentador; para os asnos fogo selvagem; para os lacaios fogo lento; para os tafuis fogo viste linguiça; para os pretos tição; para os rapazes fogueira, e para todos Inferno. Disse a boa da minha primeira velha. Quando a Segunda, inchando o gorgomilo e encrespando as cordoveias, disse: – Pois na verdade que me não enganei em dizer que Vênus tinha um calhau na barriga; pois nenhuma outra coisa é o amor senão uma pedra; e se não, vejam: A cabeça do amor é pedra de porco espinho, pois pica os pensamentos amorosos; a testa é mármore, de que se lavram as estátuas da ausência com o buril da memória: os olhos são esmeraldas, cor da esperança, com que engana; a boca rubim, pelo sanguinolento; a garganta pedra hume, pelo que aperta; o peito diamante, porque um amor só com outro amor se lavra; os braços, por vitoriosos, pedras vitorinas; as mãos pedra lipis, pelo que cauterizam, e finalmente o rabo pedra bazar. É o amor, pelo forte, rocha viva; quando prosa, pedra de raio; quando engoda, pedra de açúcar; quando atrai, pedra íman; quando experimenta finezas, pedra de tocar; quando vence impossíveis, a melhor pedreira; e quando doura agravos, pedra filosofal. Para as mulheres, pedra de estancar sangue; para os homens, pedra de funda; para quem foge, ou as amola, rebolo; para os barbeiros, pedra de afiar; para as cozinheiras, pedra de ferir lume; para os mochilas, pedra da rua; para os marujos, lancho da praia; para os meninos, confeito seixinho; para os gulosos, pedra de cevar; para alguns, pedra cordial; e para todos, pedra de escândalo. Ainda não tinha bem acabado de dizer a última sílaba, quando a outra velha, abrindo a caixa da boca, tirou o cachundé da eloquência e, já quase enfurecida, disse: – Suposto, senhores, que eu seja mulher, não hei de ficar vencida; porque, se afirmei que Vênus tinha na barriga um bicho, não disse mal. Pois que coisa é o amor, senão um bicho, um animal, e um lagarto? E, senão pergunto: Que é o amor senão uma hidra de sete cabeças, que nem o mais valente Hércules pode vencer? É cameleão, que se sustenta com o vento das lisonjas; é tarântula, que com os descantes cura o veneno; quando diligente, é santopeia; quando se ateia, aranha; quando com vista mata, lince; quando cega, toupeira; quando desdenhoso, ouriço; quando tímido, lebre; quando valente, tigre; quando fiel, cachorro; quando menino, lesma; quando arrastado, cobra; quando trombudo, elefante; quando néscio, camelo; quando furioso, leão; e quando para, sendeiro. É o amor para as damas, arminho que regala; para as freiras, cãozinho que afaga; para as velhas, dragão que mete medo; para os mancebos, cavalinho da alegria; para os velhos, cavalo cansado; para as cozinheiras, gata borralheira; para as feias, cão de arame; para os valentes, anta; para os granadeiros, lontra; para os sapateiros, bezerro; para os casados, touro; para os pacientes, cabrão; para os asnos, burro, que dá coices na alma; e finalmente bugio, porque a todos prega o mono. Pra prova desta verdade perguntai a esses amantes o que fazem, para explicar o seu amor! Sabeis o que fazem? Fazem um bicho; porque o mesmo é fazerem um bicho, que dizerem que tem amor; pois o amor é bicho. É o amor bicho de concha, que no mar de Vênus se gerou; é bicho de seda, que, transformando-se em borboleta, se parece com o amor nas asas; é bicho de cozinha, que tempera os gênios mais ásperos; é sabichão, porque a todos engana. Quando nos embebeda, bichaninha gata; quando nos mete medo, bicharoco; quando no chupa o sangue da bolsa, é bicha; e finalmente é bicho carpinteiro, que não pode estar quieto com os seus bicharocos. E concluiu a velha toda esta arenga, fazendo um horrendo e espantoso bicho, dizendo: Quem vossa mercê, senhor Cupido? Essa é boa! Essa é a definição do amor que lhe deram as três velhas, vindo a concluir que o amor é fera, raio e pedra; fera nos estragos, raio nos incêndios e pedra na dureza. 
 
ESOPO E quem quiser mais vá a sua casa.
 
XANTO Por certo que definiste bem o amor; e em prêmio da tua sabedoria terás o grau de doutor em filosofia.
 
PERIANDRO Justo é que laureemos a Esopo.
 
ÊNIO Esopo merece todas as honras de sábio.
 
XANTO Hás de ser mestre do curso que há de abrir para o ano.
 
ESOPO Isso é pulha! Mestre do curso! Muito hei de gostar em alfazema e alecrim, para perfumar a aula, que cheirará, que será um desamparo.
 
XANTO Hás de ser mestre do curso que se há de responder a uma pergunta solta, que é costume acadêmico.
 
ESOPO Quem pergunta, saber quer. Ora vá!
 
XANTO Dize, Esopo: por que razão chamam aos corcovados poetas?
 
ESOPO Sic quarit, e respondeu: Chamam aos cancundas poetas, porque os versistas deste tempo são poetas, mas é cá para trás das costas.
 
PERIANDRO Boa resposta!
 
ÊNIO Boa agudeza!
 
ESOPO Aí está ela muito à ordem de vossa mercê.
 
XANTO Ora eu te constituo doutor, Esopo, pela autoridade que tenho da República.
 
PERIANDRO Muito bem, senhor Doutor.
 
ÊNIO Senhor Doutor? Seja-lhe muito parabém.
 
ESOPO Com que só basta dizer o senhor Xanto que sou doutor, para logo o ser?!
 
XANTO Quem o duvida?
 
ESOPO Ora eu cuidava que para ser doutor era necessário andar um homem em Salamanca sete anos, e no cabo só uma palavra basta para ressuscitar a um néscio do sepulcro da ignorância!
 
(Sai Eurípedes gritando muito, e dará com a cadeira no chão e ficará Esopo debaixo dela)
 
EURÍPEDES Donde está este patife e este velhaco de meu marido? Donde está, que lhe quero perguntar se há de ir raso com outra mulher, estando eu viva? Tudo há de ir raso nesta casa; não há de ficar pedra sobre pedra.
 
ESOPO À medida que del-Rei, que morro, que me estalou a corcova! Antes queria ser burro vivo, que doutor morto.
 
XANTO Senhora, que terremoto é esse que vem fazendo? Que tem?
 
EURÍPEDES Ainda que me pergunta que tenho? Você casado com Geringonça, estando eu viva?!
 
XANTO Eu, senhora?! Isso é testemunho!
 
EURÍPEDES Esopo, não mo disseste?
 
ESOPO É verdade; mas, como vossa mercê não queria vir para casa fazer vida marital com meu patrão, foi-me preciso fingir que ele se casava; porque vossa mercê então, acossada dos zelos, viria para a sua companhia.
 
XANTO Eu te perdoo a peça, pela indústria com que a trouxeste para casa.   EURÍPEDES Esopo, desavergonhado, tu me foste enganar? Pois em ti vingarei a minha raiva. (Dá-lhe)
 
ESOPO Tá, tá! Tenha mão para lá, que não já sou seu cativo, que me libertou o povo; e além disso sou doutor em filosofia, que é o mesmo que mestre em alhos; e já agora tão bom, como tão bom.
 
EURÍPEDES Está bem; tu mo pagarás. Anda, Xanto. (Vai-se)
 
ÊNIO Vinde, Periandro, que já não posso aturar o diabo da mulher.
 
PERIANDRO Ide, Ênio, que quero ver se posso falar com Filena que há dias que não a vejo.
 
ÊNIO Pois ficai-vos embora. (Vai-se)
 
PERIANDRO Se estará ainda Filena mal comigo, pois desde o dia que o pai foi para beber o mar, me não quis falar? Bem disse Esopo que o amor era pedra, fogo e fera, pois tudo tenho, e tudo acho em meu amor: fera na condição de Filena; fogo no incêndio de meu peito; e pedra no imóvel com que me detenho nesta casa, que parece que sou o mesmo edifício aonde habita Filena. Oh, quem nunca soubera o que era amor!
 
(Sai Filena)
 
FILENA Quem está aqui?
 
PERIANDRO Quem há de ser, senão quem adora, não só o ídolo de tua formosura, mas até as paredes do templo, onde te elevas a deidade?
 
FILENA Se soubera que estavas aqui, não passara por esta sala.
 
PERIANDRO A tanto chega o teu ódio, que nem ver-me desejas?
 
FILENA Não posso responder, porque minha mãe já veio para casa e lhe vou falar.
 
PERIANDRO Espera, que te não hás de ir, sem primeiro fazermos as pazes; pois sem razão vejo que estás contra mim.
 
FILENA Não quero admitir desculpas, que hão de ser tão falsas como tu, que as pretendes dar; deixa-me, Periandro, que vou ver minha mãe.
 
PERIANDRO Escuta sequer um breve instante, Filena, as queixas de um amante aflito; não queiras que de todo acabe desesperado aos golpes de uma mágoa.
 
FILENA Por me não deteres mais, dize o que queres dizer.
 
PERIANDRO Pois escuta.
 
(Canta Periandro a seguinte ária)
 
Ingrata, não sei porquê, Podendo eu ser feliz, Fazes com teu rigor Que chegue a enlouquecer. Cruel deidade, vê Que, ainda que infeliz, Em mim se acha amor, Que puro sabe arder.
 
Compadecida da tua mágoa, buscarei hora em que com mais vagar te desculpes, e eu te satisfaça. (Vai-se)
 
 
CENA IV Mutação de Câmera, e sai Esopo com um papel na mão.
 
ESOPO Grande peso tenho sobre as minhas costas! Não bastava esta corcova, mas sobre ela ainda um amor, como um inchaço! Eu confesso que sim, tinha amor à menina, depois que a vi ontem caindo-lhe a baba pelos cantos da boca, ainda fiquei abrasado. Vejam agora a asneira deste meu amor, em que havia achar motivo para se atear! Eu tomara declarar-me com ela. Se pegar, muito bem; quando não, pouco se perde; mas eu acho de mim para mim que ela não há de ter dúvida a ser minha amante, pois já agora sou doutor e ela que mal lhe estará levar em capelo a minha contubérnia amorosa?
 
(Sai Filena)
 
FILENA Esopo, dois dias que não dás lição. Ora vamos a isso.
 
ESOPO Ora digam agora vossas mercês sem paixão: quem se não há de namorar daquela cara, que aprece pintada a óleo de linhaça?
 
FILENA Vamos à lição, se queres; se não, vou-me. Isso não quero. Olhe, menina, ninguém corre atrás de nós; tempo tem a lição; conversemos um pouco primeiro.
 
FILENA Ora conversemos, que eu gosto muito das tuas graças. 
 
ESOPO Mais entendo eu que gosta das minhas desgraças. 
 
FILENA Das tuas desgraças?! Como?
 
ESOPO Bem; já estou metido na tramoia. Eu começo a explicar-me. Como está o senhor seu pai dos flatos?
 
FILENA Que tem cá as tuas desgraças com os flatos de meu pai?
 
ESOPO Isto foi um entreparente; mas o caso é que as minhas desgraças vossa mercê... quando... hoje... amanhã... Eu estou fora de mim! Não digo coisa com coisa!
 
FILENA Que dizes, que te não entendo?
 
ESOPO Agora, eu me explico. De sorte que eu... não... não... e maneira... que vossa mercê... não... sim... não... espere... faça vossa mercê de conta...
 
FILENA Que hei de fazer de conta? Tu estás bêbado?
 
ESOPO Não estou bêbado, por vida minha; ora espere, que eu me explico neste soneto:
 
Ora aspiro, ora temo, ora duvido; Ora grave, ora meigo, ora severo; Ora enjeito, ora peco, ora não quero; Ora paro, ora tenho e ora envido;
 
Ora inculto, ora monstro, ora Cupido; Ora pronto, ora tímido, ora fero; Ora livre, ora escravo, ora impero; Ora amante, ora ingrato, ora sentido;
 
Ora morro, ora vivo, ora me afago, Ora rio, ora choro, ora me assanho; Ora já, ora não, e ora logo.
 
Ora envido, ora perco e ora ganho; Ora incêndio, ora neve e ora fogo.
 
Estranho variar de amor estranho!
 
FILENA Tens dado mais horas, que um relógio e em tantas não te pudeste explicar.
 
ESOPO Pois, senhora, nas horas desse relógio apontava o mostrador do meu enleio, quando a formosura de vossa mercê me tem feito em quartos, e por instantes morrendo na repetição dos golpes.
 
FILENA Sim? Pois que é?
 
ESOPO É o coração, que está a bater.
 
FILENA Pois isso que tem? A todos faz o mesmo.
 
ESOPO Será; mas eu acho que o meu coração não cabe na pele, porque tem dentro...
 
FILENA O que tem?
 
ESOPO Tem a, a, a...
 
FILENA Se não passas do A, pouco sabes. Que é o que tens, que estás gago?
 
ESOPO Quero dizer amor, e não me chega a língua. Ora escute, que cantando me explicarei; pois que o amor é tarântula, como disse um discreto, que fui eu, com a música curarei o veneno do coração.
 
(Canta Esopo a seguinte)
 
Sabes tu quem me atormenta? De mansinho, aqui em segredo: É... mais ali, que tenho medo! Ora digo resoluto: És tu mesma, ingrata, tu. Tu fabricas este enredo Aos meus olhos, que lamentam O rigor daquele mostro, Que anda cego, nu e cru.
 
FILENA Com quê, te namoraste de mim?! Vivas muitos anos, que eu disso não me ofendo.
 
ESOPO Sim, mas eu queria...
 
FILENA Que querias?
 
ESOPO Eu sei! Querei que me correspondesse também, que nos escrevêssemos de parte a parte, ainda que sempre falamos; queria que desse mais um coração de azeviche, com uma fita da sua anágua, e a fita havia falar em esperança. E indo nós assim andando, aos depois o tempo daria de i alguma coisa; pois que diz? Sim?
 
FILENA Valha-te o Diabo, mofino, que sempre hás de estar de pachorra! Vamos à lição, anda, que ao depois quero me notes uma carta para Periandro, que me hei de escrevê-la pela minha própria mão, e da minha letra, tal e qual.
 
ESOPO Com quê, não há que deferir ao meu requerimento; e, sobre não ser admitido como amante, hei de ser alcoviteiro? Isso, não há lei que o mande; e, se Cupido tal souber, é capaz de se leva de um jacto; eu irei colhendo favores às furtadelas. Ora ande, menina; escreve lá.
 
FILENA Dize devagar, e que amanhã me fale; escolhe tu que for mais seguro.
 
(Vai ditando Esopo e escreve Filena)
 
ESOPO Meu bem Esopo, de quem fio os segredos do meu coração, diga o quanto este se abrasa nas chamas do amor; não lhe posso dizer mais, nem menos; que aos bons entendedores pouco lhe basta. Amanhã à tarde espero vê-lo no pátio escuro para o enxergar melhor, o qual cai para a estribaria do cavalo de meu pai. Muito sua pelo sovaco. Ponha um F com um E atrás.
 
FILENA Há de ser P, e não E. Não vês tu que se chama Periandro?
 
ESOPO É o que me faltava, querer a discípula ensinar ao mestre! Diga lá o A, B, C.
 
FILENA A, B, C, D, E, F.
 
ESOPO Basta; pare aí. Não vê, tolinha, que o E está atrás do F, e não o P? Ponha, ponha como lhe digo.
 
FILENA Tens razão; eu ponho.
 
ESOPO Ao menos a carta é toda lida desta forma.
 
Lê Esopo, de quem só fio os segredos do meu coração.
 
ESOPO Meu bem Esopo, de quem só fio os segredos do meu coração.
 
FILENA Não quero; hás de ler assim: Meu bem, vírgula; Esopo de quem só fio, etc.
 
ESOPO Não faça caso de pontos e vírgulas, que já se não usam. Ai, que aí vem seu pai!
 
ESOPO (à parte) Não a darei senão a mim, que eu daqui em diante hei de ser o teu Periandro. 
 
(Sai Xanto)
 
XANTO Esopo, que escrito é esse, que aí tens?
 
ESOPO É a carta da menina.
 
XANTO Como vai ela com o ler?
 
ESOPO Admiravelmente: já dá escritos a maior facilidade do mundo. 
 
XANTO Sendo tu seu mestre, não duvido que esteja tão adiantada.
 
ESOPO Ah, senhor, que, se ela tomara bem as minhas lições, talvez quisera hoje noutro estalo.
 
XANTO São raparigas; querem brincar. Ora, Esopo do meu coração, depois que você veio este tigre de minha mulher para casa, ainda não pude mais falar a Geringonça, e importa falar com ela coisa de grande empenho. Estimara que amanhã à noite nos viéssemos no pátio da estribaria. Esopo, peço-te isto como amigo. Adeus, que me não posso deter.
 
ESOPO Este pátio da estribaria, que diabo terá para os amantes? Porém só na estribaria merece estar quem é amante.
 
(Sai Geringonça)
 
GERINGONÇA Ora, Esopo, tu fazes zombaria de mim?
 
ESOPO Doutor de quando em quando.
 
GERINGONÇA Que ande eu morrendo de amores por ti, e que tu tão seco, tão despegado e desdenhoso me faças desprezos!
 
ESOPO Mulher, ou tição do Inferno, não me deixarás? Como queres que te queira bem, se não acho por onde te pegue! Não vês, que és uma cozinheira, e eu sou um doutor?
 
GERINGONÇA Tu és doutor?
 
ESOPO Quando nada; por quê? Não me viste logo na cara o resplendor doutoral? Vê tu agora se está bem a um doutor casar com uma cozinheira. Já se tu foras doutora, tranca; porém uma criada chirle, fedendo a adubos, non sufretur in rerum natura.
 
GERINGONÇA Ai, tu sabes latim?
 
ESOPO In totum, ite, ite ad temperandas panellas.
 
GERINGONÇA Agora te quero mais: olha, que importa que tu sejas doutor? Não vês que o cavalo alimpa a égua?
 
ESOPO Ergo, cavalus sum ego?
 
GERINGONÇA Não entendo o que dizes; fala-me como dantes.
 
ESOPO Non possum, quia in hac hora venit mihi flatum filosofandi.
 
GERINGONÇA Donde aprendeste isso tão depressa?
 
ESOPO Venit ab alto, e non te importat.
 
GERINGONÇA Que o achaste na porta?   ESOPO Não há maior desesperação! Queres tu também agora aprender latim? Mulher, como te hei de dizer? Não te posso querer bem.
 
Deixa-me; quanto mais me segues, mais me persegues. Arre com a sarna!
 
GERINGONÇA Que sofra eu estes desprezos!
 
(Canta Geringonça a seguinte ária)
 
Vou-me embora, Esopo ingrato, Já te deixo, pois não quero Teus repúdios aturar. Tu desprezas o meu trato, Sem olhar que te venero? Pois o amor ma há de vingar. 
 
(Vai-se. Sai Messênio)
 
MESSÊNIO Esopo, estamos perdidos.
 
ESOPO Por quê? Algum nos busca?
 
MESSÊNIO Saiu do exército de El-Rei Cresso um soldado a desafiar um dos nossos, e que amanhã o esperava no campo, só por só, e com armas iguais; e, quando não, que incorreríamos em pena de cobardes; e o pior é que não há quem queira aceitar o desafio, porque os melhores cabos e soldados estão doentes das feridas das setas; e assim, pois Júpiter te escolheu para Diretor desta guerra, dize o que faremos.
 
ESOPO O caso ainda assim é de barbas; mas, por vida de Esopo, que eu mesmo hei de sair em pessoa ao desafio.
 
MESSÊNIO Tu, como, se não sabes jogar as armas, e os inimigos são destros nelas?
 
ESOPO Vossa mercê, senhor Messênio, Esopo, está enganado. Quem lhe disse que eu não sabia jogar as armas? Ainda não há muitas horas que joguei a minha espada com um tambor ao jogo das chapas.
 
MESSÊNIO Não te ponhas com graças; dá remédio a coisa de tanto empenho.
 
ESOPO Pois, senhor, tenho dito; eu mesmo sairei; eu posso fazer mais que dar conselho e executá-lo? Ora ande, que na guerra vale mais a indústria que o valor.
 
MESSÊNIO De ti tudo se espera. 
 
(Vão-se)
 
 
CENA V Mutação de arraial e aparecerá a praça, e a um lado El-Rei Cresso com alguns soldados, e no meio do teatro Temístocles com espada e rodela.
 
REI Já que fizeste o desafio, vê lá como te sais dele; não nos desacredites.
 
TEMÍSTOCLES Tão poucas experiências tenho dado do meu valor em tantas campanhas, para que agora Vossa Majestade desconfie de mim?
 
REI Bem sei que és bom soldado e valoroso; mas nem sempre a fortuna pode ser favorável. Queira Júpiter que triunfes, que a tua glória será a minha.
 
TEMÍSTOCLES Venha quem vier; venha o mais valente soldado dos Atenienses, que do primeiro revés o hei de descabeçar. Olá da praça, não vem esse valente?
 
(Haverá uma porta na muralha da praça, por onde sairá Esopo armado com capacete, espada e rodela, e dará dentro o que se segue)
 
ESOPO (dentro) Já vou; espere, que me estou apolvilhando. Cuidado, não me fechem a porta do muro, que importa.
 
(Sai Esopo)
 
ESOPO Ora salve Deus a vossa mercê.
 
TEMÍSTOCLES Você é o do desafio?
 
ESOPO Cuido que sou eu, se me não engano. Arre, lapas! Estava eu manso e pacífico, quem me meteu em desafios? Ah, D. Quixote, aonde estás, que aqui eras tu gente!
 
TEMÍSTOCLES Ora, pois; vamos a isso depressa.
 
ESOPO Ui, senhor, que pressa tem vossa mercê? Morra eu de cutiladas, mas não quero morrer de afogadilho. Com licença de vossa mercê, já venho.
 
(Faz que se vai e torna a voltar)
 
TEMÍSTOCLES Aonde vás?
 
ESOPO Vou mudar de camisa, que entendo que estou mijado com alguma coisa mais.
 
TEMÍSTOCLES Bem contrário tenho eu! Desta vez logro o triunfo. Meçamos as armas: estão iguais. 
 
(Medem as espadas)
 
ESOPO Estão iguais?! Não há tal!
 
TEMÍSTOCLES Como não?
 
ESOPO A sua espada tem punho de prata, e a minha de cabelo. Não, senhor; hão de ser armas iguais, ou não hei de brigar.
 
TEMÍSTOCLES Iguais se entende do mesmo comprimento. Bem parece que isto não é terra de soldados, mas sim de filósofos.
 
ESOPO (à parte) Tu o amargarás na conclusão. 
 
TEMÍSTOCLES Pois estão as armas iguais, agora partamos o sol.
 
ESOPO Que parta o Sol? Quer-me você partir o Sol da índia com os dentes? Quem parte o Sol, melhor me partirá a cabeça.
 
TEMÍSTOCLES Bem estamos. Toquem os clarins a investir.
 
ESOPO Mande antes dobrar os sinos, porque eu desta vez fico enterrado.
 
(Tocam uma marcha com as trompas)
 
REI Que farão os dois, que tanto tardam a investir?
 
TEMÍSTOCLES Ora, vamos.
 
ESOPO Pois vamos? Adeus, até amanhã.
 
TEMÍSTOCLES Briguemos; quando não, vou dando.
 
ESOPO (à Parte) Dê, dê, que eu farei queixa a sua mãe. E que fará agora Geringonça?   TEMÍSTOCLES Ora já te não posso aguardar, que as dilações perigam o meu crédito (Investe)
 
ESOPO Espere, espere; tenha mão, que já não pode brigar.
 
TEMÍSTOCLES Por quê?
 
ESOPO Porque o ajuste foi ser com armas iguais; quanto a isso, não se me dá.
 
TEMÍSTOCLES Não se te dá armas? Pois em que te fias?
 
ESOPO Fio-me na couraça.
 
TEMÍSTOCLES Pois, se as armas estão iguais, que mais falta aqui para a lei do duelo?
 
ESOPO O desafio foi que havia ser só por só.
 
TEMÍSTOCLES Só estamos.
 
ESOPO De burro. Isso é não ser valente. Você com gente de escolta atrás?! Aonde está aí a graça? Não sabe que nec Hercules conra duo; quanto mais quem não é para ser criado de Hércules?
 
TEMÍSTOCLES Eu venho só e não trago nenhum comigo. (Volta-se)
 
ESOPO Quer agora negar o que eu estou vendo? Olhe para trás e verá com os seus olhos. Ai! Um, dois, três, dezenove, cinquenta.
 
Ao voltar Temístocles a cara, dá-lhe Esopo uma cutilada e deitará a fugir a praça e cai Temístocles.
 
ESOPO Agora, que se vira, reviro eu. Zumba! (Vai-se)
 
TEMÍSTOCLES Ah, traidor, que me mataste! Traição, traição!
 
REI Que foi isso, Temístocles? Tu ferido dessa sorte?!
 
TEMÍSTOCLES Que há de ser? Um traidor, que, dizendo-me que eu trazia frente de escolta, indo a virar a cara me deu uma cutilada.
 
DENTRO Viva Esopo, Esopo viva! Vitória!
 
REI  Com quê, Esopo foi o que veio ao desafio? Ainda estou mais picado!
 
TEMÍSTOCLES Veja nossa Majestade se disse eu bem, que Esopo nos havia de fazer a guerra.
 
REI Pois juro que daqui em diante apertarei mais o cerco, só para apanhar às mãos esse velhaco de Esopo; anda curar-te na minha tenda.
 
 
CENA VI Mutação de colunas, ou pátio escuro azulejado, e no fim estará uma porta, e sai Eurípedes.
 
EURÍPEDES Venho como tonta! Isto é o que quer que é. Estando eu no melhor do sono, não acho na cama o meu marido. Vou à cama de Filena, também não a acho, nem Esopo aparece. Tenho corrido toda a casa alto a baixo, sem ver nenhum. Até me obriga a vir por este pátio. Entrei na estribaria, nada encontro. Que diabo será isto? Mas eu cuido que sinto pisadas; eu me retiro para este canto, que hoje haverá: "cerra, Espanha!" (Retira-se)
 
(Sai Filena)
 
FILENA Aqui mandei que esperasse Periandro, e Esopo me disse que ele já aqui estava; mas eu não sei por onde ponho os pés, e tenho dado mil quedas; pois com escuro da noite não sei por onde venho, nem por onde piso. Ai, amor, a quanto obrigas!
 
(Sai Xanto)
 
XANTO Agora acabo de ver que é cego o amor, pois como cego venho às apalpadas por tantos corredores, até chegar a este pátio, que há de ser esta noite a campanha do amor, em que quero falar a Geringonça.
 
FILENA Mas eu cuido que ali vem gente; quem há de ser, senão Periandro?
 
XANTO Sinto pisadas, e o vulto, se me não engano, para mim se vem chegando; sem dúvida é Geringonça; que espero, que lhe não falo? Vem embora, pois tu és a luz que me traz cego a falar-te. Tanto tardaste?
 
FILENA A voz é de meu pai; estou perdida! Ora, quando os velhos têm amor, que farão os moços! Eu vou-me retirando. Há maior desgraça, que, quando busco a Periandro, encontro meu pai! (Vai-se)
 
XANTO Com os escuros não atino aonde ela está.
 
(Vai Xanto chegando para onde está Eurípedes, e sai Esopo)
 
XANTO Oh! Cá estás tu?! Pois agora já poderemos falar.
 
EURÍPEDES Ai, é o senhor Xanto? Pois eu me calo, até que ele se declare bem, que quero ver a quem busca.
 
ESOPO Esta casa parece-me encantada; pois desde a meia-noite, que saí da cama, até agora, estive sem atinar com o pátio. Valha-te o Diabo, pátio, que a tantos fazes patear! Ora aqui estou eu no meio do campo. Venha agora Filena a desafiar-me, e veremos como se porta comigo. E o velho fica logrado, que eu não dei o recado a Geringonça.
 
XANTO Minha Geringonça, não sabes que morro por ti? Pois como me desprezas?
 
EURÍPEDES Eu me dito, meu feito! Ora quero fingir-me Geringonça.
 
XANTO Não me respondes, amores?
 
EURÍPEDES Como quer que o queira, se vossa mercê quer tanto a senhora Eurípedes?
 
XANTO Valha o Diabo Eurípedes, que por sua causa não me declaro teu amante! Tomara que já morrera para casar contigo.
 
EURÍPEDES Há quem isso ouça! Eu quero disfarçar ainda.   ESOPO Muito tarda Filena! Donde estará esta bugia? Mas parece-me que já a estou vendo vir, tique, tique, com a sua anágua de franjas, sapatinho de tessum, o cabelo desgrenhado, coberta com a sua capona. Mas ai, que agora me lembrou uma coisa; que, se ela me abraçar, poderá topar com a minha corcova e por ela conhecer-me pelo tacto! Pois bom remédio! Em tal caso, direi que me abrace pelas gâmbias, que é hoje o rigor da França; mas, se me não me engano, aí vem gente, e o pisar é de mulher.
 
(Sai o burro, que vai para Esopo)
 
Ela é sem dúvida, que a conhece o nariz pelos aromas que exala; e como serena! Ora fingir-me quero Periandro: Vem cá, planeta da quarta esfera; vem, formosa Vênus, a mitigar o febricitante ardor de meu peito, com o açúcar queimado dos teus carinhos. Não me dizes nada? Estás muda? Sem dúvida que o teu pudor te embarga as vozes na chancelaria do peito. (Zurra o burro) Cala-te, cala-te; não te sufoques. Coitadinha da minha menina, como estás touca! Estou tão contente! Desta vez hei de dar duas figas ao amor.
 
XANTO Muito te resistes, ingrata Geringonça!
 
EURÍPEDES Quero apurar bem a paciência.
 
ESOPO Ora agora, meus amorinhos. Meu feitiçinho, dá-me essa mão de jasmim ou esse pé de cravo, para pôr e dispor no canteiro de meu coração. (Zurra) Fala de mansinho, não ouça teu pai. Sempre me vás a fugir? Olha cá! Queres tu casar comigo? (Zurra) Sim? Pois havemos sair a furto, deixa estar; mas tua mãe não o sabia.
 
XANTO Ora isto é já desesperação.
 
(Faz que pega nela)
 
EURÍPEDES Retire-se de lá; quem é?
 
ESOPO Menina, não gastemos mais tempo; ajustemos o nosso amor. Ora dáme um abraço; anda, não sejas burra.
 
Ao ir Esopo abraçar o burro, dá-lhe este dois coices, e aos gritos de Esopo sairá Geringonça com uma candeia acesa.
 
ESOPO À que del-Rei, que me matas! Ingrata, com isso pagas o meu amor?!
 
GERINGONÇA À que del-Rei, ladrões no pátio. (Sai)
 
EURÍPEDES Guarde Deus a vossa mercê, senhor Xanto, pois que vai?
 
XANTO Isto é encanto; mofino homem, que há de ser de mim?
 
ESOPO Ui, Filena converteu-se em burro! Andou discreta, para a não conhecerem. Ó Filena, torna-te outra vez em gente, que com a baralhada que aqui vai, ninguém repara.
 
GERINGONÇA Eu estou pasmada! Que diabo é isto que vejo!
 
EURÍPEDES Que diz agora, velhaco, magano? Pois quer que eu morra, para casar com Geringonça? À que del-Rei, sobre este magano!
 
ESOPO E o velho como está réu!
 
XANTO Não te posso responder: vou matar-me, antes que me mates. (Vai-se)  
 
EURÍPEDES Peguem-me nesse magano.
 
GERINGONÇA Ai, senhora, deixe o triste velho; bem lhe basta os seus achaques.
 
EURÍPEDES Ainda acodes por ele, velhaca? (Vai-se)
 
GERINGONÇA Não sou amiga de ouvir pendências. Esopo, que fazes aqui ao pé do burro?
 
ESOPO Cala-te, que não é burro; é Filena, que está disfarçada, para a não conhecerem. Não me dirás para que me trouxestes agora essa candeia, pois com ela fizeste tanto desarranjos?
 
GERINGONÇA Com quê, esta é Filena?
 
ESOPO De que tanto espantas? Nunca ouviste dizer que Vênus se converteu em gata? Pois que muito que Filena se converta em burro? Pois por certo que não é Vênus melhor do que ela.
 
GERINGONÇA Pois dá-lhe um abraço.
 
(Sai Filena gritando)
 
FILENA Venham acudir a meu pai, que está para se enforcar na grade do leito, por não aturar as guerras de minha mãe!
 
GERINGONÇA Esopo, fica-te com o teu burro. (Vai-se)
 
ESOPO Ora só esta a mim se sucede! Que estivesse eu esfaltando-me em dizer finezas a um burro! Sem dúvida levei dou coices, cuidando que levava dois pescoções.
 
FILENA Andem acudir a meu pai, que se enforca.
 
ESOPO Deixe-o enforcar, que eu também vou fazer o mesmo. Arre com a cancaborrada da noitezinha! Olhem, não há coisa mais fiel que o nariz; por isso lhe fedia o bafo a cevada; mas, como tinha o nariz cego de amor, cuidei que me cheirava a beijoim.
 
FILENA Anda; não te detenhas, que meu pai ninguém; e, se não, vamos e verá. Ah, ingrata, não te perdoo o susto desta noite, que toda foi uma burrada!
 
(Cantam Eurípedes, Esopo e Geringonça a seguinte ária, a 3)
 
EURÍPEDES Cala-te, cala-te, marafona; Cala-te, infame bribantona; Se não, vou saltando em ti.
 
GERINGONÇA Que fiz eu, senhora quê? Porque assim sem mais nem mais, Tão cruel não me trate assim? Deixe a moça. Ouves tu? Não lhes digas chus nem bus, Até passar-lhe o frenesi.
 
EURÍPEDES Hoje aqui te hei de matar.
 
GERINGONÇA Hoje aqui te hei de estar.
 
ESOPO Eu aqui hei de ficar.
 
EURÍPEDES Pois que os zelos.
 
GERINGONÇA Pois que a dor,
 
ESOPO Pois que amor,
 
TODOS Já me faz desesperar.
 
EURÍPEDES Não te quero mais em casa; Vai-te, vai-te para fora.
 
GERINGONÇA Saiba Deus e todo mundo A inocência em que me fundo.
 
ESOPO Cala-te, filha; alimpa o ranho, Toma o manto e vai-te embora,
 
TODOS Que os enredos deste pátio Não se podem aturar.
 
 
CENA VII
 
Mutação de Câmera. Saem Xanto e Esopo.
 
XANTO Esopo, ouve-me, por tua vida.
 
ESOPO Senhor, eu confesso-lhe que já estou arrependido e arrenegado; nem quero ouvi-lo, nem quero nada desta casa; vou-me embora.
 
XANTO Pois por quê?
 
ESOPO Ui, senhor! É zombaria andar aqui em uma roda viva, Esopo de dia, Esopo de noite, como se eu fora algum boneco de cortiça? Uma casa de enredos e um enredo sem fim? Vossa mercê libidinoso, e sua filha rude, sem tomar as minhas lições; e sobretudo uma mulher brava. Haverá resistência que tal possa sofrer? Pois...
 
ÁRIA Ver o tigre de minha ama, Quando em cólera se inflama, Dizer ao marido amante: Venha cá, velho bribante! E o velho paciente, Com voz baixa e tremebunda, Lhe diz: – cala-te lá, serpente. Quando diz de lá Filena: Mãe, não seja impertinente;  Tenha modo, e tenha siso!  Mas confesso que com riso  Me faz isto escangalhar. E que o mísero carcunda,  Vendo tanta barafunda,  Tal se atreva a tolerar! 
 
(Sai Messênio)
 
MESSÊNIO Que seja possível que estejas a cantar, Esopo, quando estamos na maior aflição! 
 
ESOPO Pois quê? Temos outro desafio?
 
MESSÊNIO Não vês o miserável estrago em que está a praça, com um cerco há tantos tempos, sem nos vir socorro de parte alguma, e já não há comer para os soldados? Nestes termos, dize: o que havermos de fazer?
 
XANTO Senhor, eu sou de parecer que nos entreguemos, que não há resistência a um poder tão grande.
 
ESOPO Cala-se lá; não se meta aonde não chamam. Ah, senhor Messênio, Júpiter, que me nomeou para general, bem sabe o que fez, que ele não se engana comigo. Mande vossa mercê escolher um par de soldados, os que lhe parecem mais valentes, e a cada um dê uma saia e uma mantilha, e que se preparem com armas curtas e esperem por mim à boca da noite no postigo da muralha, que eu lá estarei, e que façam o que eu disser.
 
MESSÊNIO Que intentas fazer?
 
ESOPO Logo o saberá. Andem comigo, que são uns fonas.
 
XANTO Queira Deus, Esopo, que acertes.  
 
CENA VIII Mutação de arraial. Descobre-se a praça com o cerco dos soldados, El-Rei e Temístocles.
 
REI Notável constância tem mostrado os Atenienses neste sítio, apesar de todo o meu poder, se resistem valentes!
 
TODOS Eu entendo, senhor, que cedo capitularão, pois, segundo as informações que deu um soldado que fugiu da praça, está já sem mantimentos; com que cedo lograremos a vitória.
 
REI Tomara haver às mãos este Esopo, que só por ele aperto o cerco da praça. Mas não vês abrir-se o postigo da muralha?
 
(Sai do postigo Esopo, vestido de mulher, e da mesma sorte alguns soldados, com alguns cutelos, que ao depois puxarão por eles, e diz dentro Esopo o seguinte)
 
ESOPO (dentro) Não me fechem a porta, que aliás perderemos o peso e feitio.
 
MESSÊNIO Vai descansado, Esopo, que aqui fico eu; e Júpiter permita que te não suceda alguma.
 
ESOPO Quando eu der um assobio, fazer o que tenho dito e fingir fala de mulher. 
 
(Saem) 
 
TEMÍSTOCLES Quem vem lá?
 
ESOPO Senhor soldado que já foi quebrado, somos umas aflitas mulheres, que queremos falar a El-Rei Cresso, ou da Lídia.
 
REI Aqui me tendes. Que é o que quereis?
 
ESOPO Vossa Majestade sabia que eu sou uma donzela, salvo tal lugar, que com estas companheiras saímos da praça, ou para melhor dizer nos lançaram à margem.
 
REI E por que vos expulsaram?
 
ESOPO Eu sei? Senhor, Vossa Majestade, se algum dia foi mulher, bem saberá das nossas mazelas; mas, pelo que me disse um tio meu, tambor, que se lançava a gente inútil para a guerra, porque comíamos o comer dos soldados.
 
REI Pois tanta falta há de mantimentos?
 
ESOPO Ai, senhor, isso não se fala; eu ontem comi uma frigideira de lêndeas, por não ter outra coisa; esta minha companheira, parindo ontem um filho uma vizinha sua, o comeu, e ainda lhe lambeu os beiços. Pois água? Só dos olhos bebemos as lágrimas. Enfim, senhor, nós estimávamos muito que nos deitassem fora, para enchermos a barriga; pelo que vos pedimos, senhor, que nos mandeis dar de cear e agasalhar; e adverti que a clemência nos príncipes é a melhor pedra que adorna a tua coroa.
 
REI Temístocles, agasalhai essas mulheres, que eu me vou recolher. (Vaise)
 
TEMÍSTOCLES (à parte) Suposto que o escuro da noite mal me deixa perceber as feições desta moça, pelo metal da voz e pelo modo, me tem cativado. 
 
ESOPO Pois havemos dormir no campo, senhor soldado?
 
TEMÍSTOCLES No campo não, mas na minha barraca sim, pois me compadeço de vós; e na vossa companhia suavizarei as asperezas de Marte. Assim o permita o amor.
 
ESOPO (à parte) Amor? Ai que graça! É nome, esse, que nunca ouvi. Estou bem vindo, se o soldado me namora! 
 
TEMÍSTOCLES Ora dizei-me: que faz lá esse magano de Esopo? Ainda é vivo?
 
ESOPO Coitado de Esopo! Anda bem achacado e já está quase louco com uma teima notável, dizendo que é mulher e não homem.
 
TEMÍSTOCLES Tão grande juízo havia de dar volta; pois sinto; que, suposto me enganasse no desafio, contudo sei que é homem de prendas.
 
ESOPO Com que, vossa mercê é do desafio? Ora consola-se com as disposições do Céu.
 
TEMÍSTOCLES Ora, meu amor, eu mando acomodar as tuas companheiras, e tu vem para a minha barraca.
 
ESOPO Para a sua barraca? Isso não!
 
TEMÍSTOCLES Ora anda.
 
ESOPO E a minha reputação?
 
TEMÍSTOCLES Vem segura, que os cavalheiros têm honra e piedade.
 
ESOPO Pois olhe, nessa certeza me fio; porém também me há de fazer o favor de mandar retirar todos os soldados para as suas tendas.
 
TEMÍSTOCLES Dizes bem; espera aqui, que eu mando aquartelar a gente, que suponho que os da praça não se atreverão a sair. (Vai-se)
 
ESOPO Isso é certo; tomaram eles bem pão! Olá, companheiros fiéis, cuidado; acometer com valor e ir dando a troxe-moxe, que os apanhamos na cama.
 
(Sai Temístocles)
 
TEMÍSTOCLES Todos já se recolheram; anda comigo.
 
ESOPO Eu não vou sem as minhas companheiras. Olá, agora! (Assobia)
 
Investem as mulheres a Temístocles, e mais soldados, entre os quais haverá pendência, e se recolhem pelo postigo do muro; e, quando Esopo for, achará a porta fechada.
 
TEMÍSTOCLES Acudam todos. Traição, traição, que são os homens, e não mulheres!
 
ESOPO Dar a matar; morram estes cães!
 
TODOS Morram os traidores!
 
ESOPO Vamos, que já vem muitos.
 
SOLDADOS Vamos para a praça. (Vão-se)
 
ESOPO Não fechem a porta, que ainda falto eu para entrar.
 
DENTRO Não pode ser, que já os inimigos vêm de envolta com os nossos.
 
ESOPO Se vem de envolta, não há que temer, que são crianças; abra depressa.
 
DENTRO Não há ordem.
 
TEMÍSTOCLES Dá-te à prisão; se não, mato-te.   ESOPO Ai, meu bem, não me leves presa, que eu vou por vontade.
 
TEMÍSTOCLES Ainda te finges mulher, velhaco?
 
TODOS Morra esse traidor!
 
(Sai o Rei)
 
REI. Que alvoroto foi este?
 
TEMÍSTOCLES Senhor, as mulheres eram homens disfarçados, que vieram com armas; e, apenas nos apanharam recolhidos, fizeram logo algum estrago nos nossos, que pudera ser mais; e todos fugiram e só apanhamos este.
 
REI Dize: quem és?
 
ESOPO Eu sou ninguém.
 
TEMÍSTOCLES Agora conheço que és Esopo.
 
REI Confessa a verdade.
 
ESOPO Senhor, eu sou Esopo, que peço perdão a Vossa Majestade da minha descortesia.
 
REI Velhaco insolente, tantas me tens feito, que agora te mandarei enforcar.
 
ESOPO Olhe, senhor, que eu sou nobre, e não posso morrer enforcado.
 
REI Ou possas, ou não possas, hei de te matar; e só o deixarei de fazer, se me fabricares uma torre no ar.
 
ESOPO Aceito; dê-me a sua palavra, e juntamente me há de dar os materiais.
 
REI Prometo tudo; pois vejo que tu não hás de fazer a torre no ar, e assim sempre te venho a matar; vamo-nos, e levem-no preso, para que não fuja.
 
ESOPO Ai, amada Atenas, que não sei se te virei mais! Adeus, Filena; adeus! (Vai-se)  
 
CENA IX Mutação de jardim com estátuas, e cantará o coro uma copla, sai Filena.
 
FILENA Só a música me diverte neste amoroso tormento em que vivo; pois, sobre não poder mais falar a Periandro, que suponho Esopo lhe não deu o recado, agora sei que Periandro vai também a pelejar, pela falta de soldados. Oh, que bata-lha sente o meu coração! Esopo, por ver se acaso podia divertir a minha mágoa, vim a este jardim, cujas estátuas estão feitas com tal artifício, que repetem fielmente o eco que uma pessoa articula. Divirta-mo-nos cantando.
 
(Canta Filena a seguinte copla em ecos)
 
Em tanta pena prepara para ara, O peito, quando se inflama flama ama, Uma fineza amorosa amorosa, rosa, Que amor em prantos derrama rama, ama.
 
(Sai Periandro)
 
PERIANDRO Mudas estátuas que vivamente pronunciais o que articula um amante peito, já que pela minha boca me não atrevo a dizer o que sinto, por me não sufocar a pena, dizei pela vossa o que sem remédio choro.
 
(Canta Periandro a seguinte copla)
 
Nesta frondosa floresta resta esta, Quero, pois que o mal conspira, pira ira, Dizer-te, que por amar-te marte arte, Este prado me convida vida ida.
 
FILENA Amado Periandro, bem sei que vens a despedir-te, ou a dobrar-me os tormentos. Com quê, é certo que partes para a guerra?
 
PERIANDRO Bem sabes, Filena, que nunca me desejei apartar de teus olhos um instante; porém os soberanos preceitos se devem obedecer, maiormente por não caber em mim a nota de covarde.
 
PERIANDRO Não deixa de amar-te quem busca a Marte; assim, minha Filena, as vozes desta despedida sejam as eloquências do pranto.
 
(Canta Periandro e Filena a seguinte ária a duo)
 
PERIANDRO Filena idolatrada,
 
FILENA Querido bem desta alma,
 
PERIANDRO Adeus, que já me ausento!
 
FILENA Adeus, oh, que tormento!
 
PERIANDRO Que eu vou a pelejar.
 
FILENA Que eu fico a suspirar.   PERIANDRO Mais ai, Filena amada,
 
FILENA Ai, Periandro amante,
 
PERIANDRO Que te amo na partida,
 
FILENA Que te amo nesta ida,
 
AMBOS No pranto a vida dar. 
 
(Vão-se)
 
 
CENA X Mutação de arraial e castelo, e haverá uma tábua com quatro balaústres, e em cada um, um corvo, e Esopo dentro da dita tábua irá voando; e saem ElRei, Esopo e outros.
 
DENTRO Vamos ver a torre no ar, que faz Esopo.
 
REI Esopo, vê que nisso está a tua vida ou a tua morte.
 
ESOPO Faremos muito por não morrer desta vez.
 
REI Que significam estes corvos?
 
ESOPO São os meus oficiais. Ora pois, atenção. Iça arriba! Os corvos não podem chegar aos espetos de carne; parecem Tântalos.
 
REI Notável ideia! Já está bem alto.
 
ESOPO Ora, senhor, eu aqui estou pronto, como disse, para fazer a torre no ar. Mande-me os materiais: cal, pedra, tijolo, madeira e o mais que for preciso para fabricar a torre.
 
REI Quem to há de lá levar nesta altura em que estás?
 
ESOPO Pois, como me faltam com os materiais que prometeram, não está da minha parte o deixar de fazer no ar a torre, como afirmei.
 
REI Assim é; desce para baixo, que eu te perdoo a morte, pois da tua parte não faltaste ao prometido.
 
ESOPO Eu não sou tão tolo, que, estando no ar, que agora, mais que nunca, é livre, e estando à vista de Atenas, desça para baixo, aonde me pondes estirar em três paus. Eu tomarei a liberdade por mim mesmo.
 
(Com a tramoia vai Esopo voando, e mete-se dentro na praça)
 
DENTRO Aqui vem Esopo pelo ar; isto é novidade, e parece coisa de encanto! Viva Esopo!
 
REI Voou para dentro da praça: grande astúcia!
 
TEMÍSTOCLES Senhor, se não matarmos a Esopo, nunca conquistaremos esta cidade. Bem vê já Vossa Majestade como é ardiloso.
 
REI Estou tão picado da peça, que agora mesmo a mando acometer; e até me não me entregarem a Esopo, não há de cessar o combate. Olá! Toca a investir e dar um assalto geral na praça!
 
(Toca e se dá o assalto)
 
DENTRO Estamos perdidos. Entreguemo-nos.
 
REI Entreguem a Esopo só, que não quero mais; quando não, a todos mandarei passar à espada, sem exceção de pessoas.
 
DENTRO Entregue-se a Esopo, que não é razão que por um se percam todos; entregue-se Esopo.
 
ESOPO Ah, tiranos! Ah, ingratos! Com isso me pegais o bem que vos tenho feito?
 
(Deitam a Esopo do muro abaixo por uma corda)
 
REI Anda cá, Esopo. Que mereces que te faça? Assim se engana aos Príncipes? Hoje hás de ficar sem vida.
 
ESOPO Pois, senhor, antes que me mates, ouve-me duas palavras ao menos.
 
REI Dize; mas sem esperança de perdão.
 
ESOPO Era uma vez um vilão que, vendo-se perseguido de gafanhotos, pois toda a sua lavoura destruíam, começou um dia a matá-los; e, como visse uma cigarra, também lhe quis tirar a vida; ao que respondeu a cigarra: – Tenha mão vossa mercê, que sem razão me mata, pois eu não ofendo as plantas da terra; antes com a minha voz alegro aos caminhantes. Perdoou-lhe o vilão, ouvindo tais razões. Assim, da mesma sorte, ó Rei, eu não sou figura para te fazer oposição, nem que destrua o teu reino; sou, sim, uma cigarra, que não tenho mais do que esta voz ou esta indústria, com que tenho defendido (mais violentado, que por vontade) esta praça; e, se um vilão perdoou a morte à cigarra, tu, que és um rei, por que me não perdoarás também?
 
REI Valha-te Deus por Esopo! Já estás perdoado: quero ser teu amigo daqui em diante, que os homens das tuas prendas são para estimar. Pede o que quiseres, que tudo te hei de fazer.
 
ESOPO Peço, senhor, que ajusteis as pazes com os Atenienses e que cessem já estas guerras.
 
REI Assim o farei. Olá da praça! Abram as portas, que pelos rogos de Esopo tenho feito as pazes e levanto o cerco.
 
DENTRO Viva El-Rei Cresso de Lídia! Abram-se as portas! (Entram)
 
 
CENA XI Depois de entrarem, haverá mutação de sala e irão saindo todas as figuras.
 
TODOS Viva El-Rei Cresso de Lídia! Viva!
 
REI Nobres Atenienses, a Esopo daí os vivas, pois ele foi o que me pediu a paz. E assim, por que não fique sem prêmio um homem de tanto juízo e que deu tanto em que cuidar aos meus soldados, mando que Esopo seja, enquanto viver, governador desta praça enquanto ao político, e como a Rei lhe obedeçam.
 
ESOPO Beijo as mãos a Vossa Majestade, pela honra que me faz.
 
TODOS Viva Esopo, e viva El-Rei!
 
ESOPO Viva até que morra! Agora, com licença do senhor Rei, quero casar, para que seja meu padrinho. Venha cá Filena.
 
PERIANDRO Se Esopo casa com Filena, estou perdido!
 
FILENA A isto só podiam chegar as minhas desgraças!
 
XANTO Que se viesse Esopo em tantas alturas! Coisas são da fortuna!
 
ESOPO Filena, pois sempre amou a Periandro, casem, que eu serei o padrinho, já que fui o medianeiro.
 
PERIANDRO Beijo-te os pés, Esopo, pelo favor.
 
FILENA Ora, concluiu-se o nosso amor.   ESOPO E, pois, Geringonça sempre me quis bem, há de ser minha mulher. Geringonça, dá cá essa mão de almofariz, para com ela pisar a pimenta do meu afeto.
 
GERINGONÇA Lembrou-se Deus da minha pobreza e honestidade.
 
EURÍPEDES Já agora, não andará Xanto com Geringonça com amorinhos.
 
ESOPO Senhores, isto está concluído, e com bodas se dá fim à vida de Esopo, pedindo a este auditório perdão dos erros, repetindo o coro os vivas desta vitória.
 
(Canta o coro)

 

 

                                                                  Antônio José da Silva

 

 

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