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Mar Mediterrâneo, julho de 1545
O mar era uma massa negra na escuridão da noite, e o navio dançava suavemente ao sabor da leve ondulação que se fazia sentir à entrada da baía. O Corça Veloz estava à capa, a menos de duas milhas da costa, protegido por um promontório. No castelo da proa via-se um jovem cavaleiro, sozinho, firmando-se com uma mão agarrada a um cabo que descia do cimo do mastro de vante. O ar estava húmido, desconfortável, e ele usou a outra mão para limpar as gotas de suor que lhe perlavam a testa. Por trás dele estavam instalados dois compridos canhões, cujas bocas estavam tapadas para evitar que os salpicos das ondas os inundassem. Há muito que se habituara ao balanço da galera, e naquele mar calmo não tinha verdadeira necessidade de se agarrar para manter o equilíbrio; ainda assim, mantinha a mão aperrada em volta do cabo pegajoso, enquanto perscrutava a escuridão. Os ouvidos esforçavam-se por captar o menor dos sons que contrastasse com o contínuo marulhar das ondas contra o costado. Já tinham passado mais de três horas desde que o capitão e três marinheiros tinham ido a terra num batel. Jean Parisot de La Valette tinha-lhe dado uma palmada amigável no ombro e mostrara os dentes num sorriso reconfortante quando lhe dissera para assumir o comando do navio enquanto ele estivesse ausente.
— Senhor, quanto tempo ides demorar?
— Não mais do que umas horas, Thomas. Só o tempo necessário para ter a certeza que os nossos amigos se acomodaram para a noite.
Os dois homens tinham instintivamente lançado um olhar na direção da baía que se abria por detrás do promontório. Ali, a cerca de três milhas, um navio mercante turco estava ancorado junto à praia, no local exato em que o pescador com que se tinham cruzado na véspera lhes dissera que o encontrariam. A maior parte da tripulação devia estar na praia, a descansar à volta de fogueiras, e no galeão deviam ter ficado apenas uns quantos homens, atentos a qualquer perigo vindo do oceano. As águas perto da costa africana eram frequentadas por corsários, mas não eram os perigosos piratas que os turcos mais temiam. Um decreto do sultão Solimão, em Istambul, protegia o navio das depredações desses assaltantes do mar. Existia porém uma outra ameaça muito mais real para as embarcações muçulmanas que atravessavam o Mar Branco, nome que os turcos davam ao Mediterrâneo. Provinha da Ordem de S. João, um pequeno bando de cavaleiros cristãos que travava uma incansável guerra sem quartel contra todos os que seguiam os ensinamentos de Maomé. Aqueles cavaleiros eram tudo o que restava das grandes ordens religiosas que em tempos tinham dominado a Terra Santa, até serem expulsas por Saladino. A Ordem estava agora instalada num rochedo inóspito, a ilha de Malta, que lhes fora oferecido pelo rei de Espanha. A partir dali, os cavaleiros e as suas galeras aventuravam-se mar adentro para atacar os muçulmanos onde quer que os encontrassem. E era assim que, naquela noite sem luar, uma das embarcações de combate da Ordem se estava a preparar para atacar a grande nave mercante ancorada ali tão perto.
— O saque será rico... — adiantara Thomas.
— É bem verdade, mas estamos aqui para, antes de mais, fazer o trabalho de Deus — relembrara-lhe o capitão, em tom austero. — Tudo o que conseguirmos será bem empregue para prosseguir o combate aos que seguem a falsa fé.
— Sim, senhor. Sei-o bem — retorquira Thomas, apaziguador e envergonhado pela ideia de que o cavaleiro mais velho pudesse ter pensado que era o saque que lhe interessava.
La Valette soltara uma risada.
— Tende calma, Thomas. Já vos conheço bem. Não sois menos devoto do que eu ou outro qualquer membro da Ordem, e, como guerreiro, sois de igual calibre. A seu tempo ser-vos-á atribuído o comando de uma galera. E quando chegar esse dia, nunca vos esqueceis do que um navio de combate é verdadeiramente: uma espada na mão direita de Deus. A ele pertencem os despojos.
Thomas assentira, e La Valette saíra pela portinhola na amurada e descera para se juntar aos quatro homens no bote que subia e descia junto à proa da galera. O capitão soltara uma breve ordem, e os marinheiros tinham começado a remar, fazendo o bote avançar. Depressa tinham sido engolidos pela escuridão, sob o olhar atento de Thomas.
Agora, horas depois — demasiadas horas, assim lhe parecia —, a cabeça de Thomas estava cheia de receios pela sorte do capitão. Havia já muito tempo que La Valette saíra. A alvorada aproximava-se e, a menos que o capitão regressasse em breve, tornar-se-ia impossível aproveitar a cobertura da escuridão para lançar o ataque contra os turcos. E se La Valette e os seus homens tivessem sido capturados? A ideia súbita provocou-lhe um calafrio que lhe arrefeceu o coração. Os turcos tinham particular deleite em torturar lentamente e prolongar o estertor de qualquer cavaleiro da Ordem que lhes caísse nas mãos. Logo outro pensamento alarmante lhe tomou conta da mente. Se La Valette tivesse sido aprisionado, o peso do comando cairia sobre os seus ombros; e nesse momento preciso tomou consciência de que não estava ainda preparado para capitanear uma galera.
Adivinhou um movimento nas suas costas e espreitou sobre o ombro; um vulto alto subia as curtas escadas que levavam ao pequeno castelo da proa. O homem vinha de cabeça descoberta, mas tinha o tronco protegido por um gibão acolchoado, por baixo de um casaco escuro onde uma cruz branca mal se via à luz das estrelas. Oliver Stokely era um ano mais velho do que Thomas, mas tinha-se juntado à Ordem mais recentemente, o que fazia dele seu subordinado na hierarquia dos cavaleiros. Apesar disso, tinham-se tornado amigos.
— Algum sinal do capitão?
Thomas não pôde evitar um pequeno sorriso perante a questão desnecessária. Não era o único cujos nervos estavam a ser postos à prova por aquela longa espera.
— Ainda não, Oliver — respondeu, tentando aparentar despreocupação.
— Se ele se demorar muito mais, teremos de desistir do ataque.
— Duvido que ele demore muito.
— Achais? — Stokely fungou. — Sem o elemento da surpresa, arriscamo-nos a perder mais homens do que é aceitável.
Era um ponto relevante, considerou Thomas. Havia menos de quinhentos cavaleiros ainda alistados na Ordem, em Malta. A interminável guerra contra os turcos cobrava um elevado preço em sangue, e estava-se a tornar cada vez mais difícil preencher as fileiras. Os reinos europeus entretinham-se em guerras entre si, e havia regras estritas para a entrada na Ordem, o que fazia com que o número de jovens nobres a apresentarem-se à seleção diminuísse sem parar. No passado, um veterano como La Valette ter-se-ia feito ao mar com uma dúzia de jovens cavaleiros a bordo, todos eles desejosos de provar o seu valor. Naqueles tempos, tinha de se contentar com cinco, e desses só Thomas já tinha enfrentado os turcos em combate.
Apesar disso, Thomas conhecia o capitão suficientemente bem para saber que ele não fugiria a uma batalha, a não ser que os números fossem extremamente desiguais. O coração de La Valette ardia de zelo religioso, ainda mais encarniçado pela sede de vingança que o possuía devido ao sofrimento que tinha suportado havia muitos anos, quando durante algum tempo não passara de um escravo agrilhoado a um estreito banco de madeira numa galera turca. La Valette tivera a boa fortuna de ter uma família capaz de pagar o resgate e tirá-lo dessa situação. A maior parte dos que eram lançados às galés eram forçados a trabalhar até à morte, atormentados pela sede, pela fome e pela agonia das feridas provocadas pelas pesadas argolas de ferro que eram usadas para os manter presos nos seus lugares. E por isso, refletiu Thomas, La Valette combateria, mesmo que não conseguisse surpreender o inimigo.
— E se lhe aconteceu alguma coisa? — Stokely olhou em redor, para se certificar de que os homens no convés mais abaixo não o podiam escutar. — Se o capitão desaparecer, alguém terá de assumir o comando.
Aí vem, pensou Thomas. Stokely preparava-se para proclamar o seu direito ao lugar. Tinha de se afirmar antes que o amigo o fizesse.
— Sendo o seu lugar-tenente, eu tomarei o seu lugar, no caso de morte ou captura. Sabeis bem disso.
— Mas eu sou um cavaleiro há mais tempo do que vós — ripostou Stokely, num murmúrio quase lamentoso. — Seria melhor se fosse eu a assumir o posto de capitão. Os homens prefeririam ser comandados por alguém mais experiente. Meu amigo, apercebeis-vos disso, com toda a certeza?
Fosse o que fosse que ia na cabeça de Stokely, a verdade era que a capacidade de combate patenteada por Thomas tinha sido notada pelos seus superiores. Logo na sua primeira ação, tinha comandado um ataque a uma povoação costeira perto de Argel, e capturara um galeão carregado de especiarias. Depois disso fora destacado para servir sob La Valette, o mais ousado e bem-sucedido dos capitães da Ordem, para fazer a guerra aos turcos. Aquela era a sua terceira campanha em mar alto, e tinha já forjado uma forte ligação com a tripulação e os soldados que guarneciam a galera de La Valette. Não tinha qualquer dúvida de que todos eles prefeririam vê-lo assumir o comando, em vez de um cavaleiro que se tinha juntado a eles havia menos de um mês, vindo dos escritórios onde eram tratados os intrincados problemas da logística da Ordem.
— Seja como for — replicou Thomas, tentando não ferir os sentimentos do amigo —, esse assunto não tem de nos preocupar. O capitão há de regressar e daqui a pouco, não tenho qualquer dúvida.
— E se isso não suceder?
— Ele voltará — afirmou Thomas com firmeza. — E teremos de estar prontos para o combate no momento em que ele regressar. Dai ordens para os remadores serem amordaçados. E os homens que preparem o armamento.
Stokely hesitou brevemente antes de anuir com um gesto de cabeça e voltar a descer os degraus para o convés, o qual se estendia por uns cinquenta passos ao longo da parte central da esguia galera, antes de dar lugar a uma popa coberta, onde se situavam as acomodações de cavaleiros e oficiais. Acima do convés elevavam-se dois mastros cujas vergas se dobravam sob o peso do pano recolhido das duas velas gémeas. Thomas ouviu as suas ordens a serem transmitidas, e um grupo de homens desceu ao diminuto porão para ir buscar os tampões de cortiça e as correias guardadas numa arca. Pouco depois levantou-se um burburinho zangado dos homens acorrentados aos bancos. O protesto foi silenciado por uma ameaça rosnada pelo oficial encarregado da coberta, e pelo estalido do cabedal seco na pele nua.
Thomas entendia perfeitamente os sentimentos das desafortunadas criaturas que manejavam os longos remos da galera. De forma a assegurar que nenhum deles lançava um grito de aviso ao inimigo quando o navio acelerasse para se lançar contra uma presa, os capitães das galeras de ambos os lados do conflito tinham adotado o expediente de colocar uma rolha de cortiça na boca de cada homem, mantida no lugar por tiras de cabedal apertadas num anel de ferro. Era terrivelmente desconfortável e sufocante, especialmente quando era exigido aos homens que se esforçassem aos remos. Thomas já vira homens sufocar e até morrer nalgumas das batalhas em que entrara. Ainda assim, considerou, era um mal necessário, naquela cruzada persistente contra os que seguiam uma falsa religião. Por cada homem que sufocava na sua mordaça, vidas cristãs eram salvas pela ausência de aviso dado a um inimigo desprevenido. O outro único sinal da presença de uma galera era o fedor a excrementos e urina, que se amontoavam sob os bancos e lá eram deixados a acumular-se até que o navio era tirado da água ao fim de uma época de campanha. Se não fosse a brisa que soprava de terra, o terrível cheiro podia bem espalhar-se o suficiente para alertar o inimigo.
No convés acima da coberta, os soldados da Ordem — espanhóis, gregos, portugueses, venezianos e alguns franceses, todos eles mercenários — levantaram-se. Envergaram a custo os seus uniformes acolchoados e apertaram as proteções que cobriam as articulações mais expostas.
O equipamento era difícil de colocar, e assim que o Sol se levantasse, tornar-se-ia um forno. Em condições normais, a ordem para se prepararem só seria dada quando a galera começasse a aproximar-se da sua presa, mas Thomas apercebera-se da tensão que tomara conta dos homens, devido àquela espera ansiosa, e considerara ser preferível dar-lhes alguma coisa com que se ocuparem enquanto aguardavam pelo regresso do capitão. Além disso, dera-lhe uma oportunidade para exercer a sua autoridade sobre Stokely, e relembrar-lhe a posição que ocupava na cadeia de comando.
Os ouvidos de Thomas foram alertados pelo som de um chapinhar que vinha da direção do promontório. De imediato todos os outros pensamentos foram varridos da sua mente, e ele esforçou os sentidos, perscrutando as sombras negras e ondulantes do mar, em busca de algum sinal de movimento. Avistou por fim a forma quase invisível de um pequeno bote, no qual homens se esforçavam aos remos. Um tremor de alívio passou-lhe pelo coração quando viu a pequena embarcação a aproximar-se da galera, ao sabor do movimento das pás dos remos.
— Parem... — ordenou La Valette em voz baixa, e no instante seguinte escutou-se um baque surdo, que marcou o choque do bote contra as sólidas madeiras do casco. Uma corda serpenteou pelo ar e foi agarrada por um dos marinheiros. La Valette subiu rapidamente, enquanto Thomas descia do castelo da proa para se encontrar com o capitão. Os outros cavaleiros e oficiais aglomeraram-se ao redor.
— O galeão ainda lá está, senhor? — indagou Stokely.
— Está, sim. Os turcos dormem como bebés — anunciou La Valette. — A tripulação do galeão não nos vai dar problemas.
Stokely fechou as mãos, palma com palma.
— Graças a Deus.
— De facto — assentiu o capitão. — O Senhor abençoou-nos com uma excelente oportunidade, e foi essa a razão por que me atrasei a regressar... — La Valette fez uma pausa para se certificar de que todos os seus seguidores estavam atentos ao que anunciava. — O galeão não será a única presa a pertencer-nos quando este combate estiver terminado. Duas galeras corsárias juntaram-se a ele. Estão ancoradas aqui perto. Meus senhores, temos uma rica recompensa à nossa espera.
Fez-se um momento de silêncio enquanto os outros homens tomavam consciência das novidades. Thomas olhou em redor para as faces dos companheiros, e reparou que alguns trocavam olhares nervosos. O mestre da galera, responsável pelo velame, limpou a garganta e comentou:
— Senhor, isso põe-nos numa desproporção de três para um.
— Não. Dois para um. O galeão pouca importância tem nessas contas. Depois de termos tratado da saúde às galeras, cairá nas nossas mãos sem dificuldade.
— Ainda assim, seria temerário tentar um ataque — protestou outro. — Especialmente agora, que a aurora se aproxima velozmente. Teremos de nos retirar.
— Retirar? — La Valette soltou uma exclamação brusca. — Nunca. Qualquer homem ao serviço da Ordem vale pelo menos por uns cinco turcos. Além disso, Deus está connosco. Por isso, são os turcos que têm menos gente. Mas não vamos exigir demasiado à providência divina, sim? Como dizeis, depressa a manhã se levanta. Portanto, senhores, temos muito pouco tempo a perder. A galera está a postos?
— Sim, senhor — respondeu o mestre, com um aceno.
— E os homens?
— Sim, senhor — esclareceu Thomas. — Já mandei que se preparassem.
— Ótimo. — La Valette olhou em volta para os seus oficiais e ergueu um punho. — Vamos então fazer a obra do Senhor, e soltar a sua ira sobre o Turco infiel!
. . .
Já se notava alguma claridade no horizonte oriental quando o Corça Veloz começou a dobrar o promontório. Por trás da ponta rochosa, a baía abria-se num vasto crescente com mais de cinco quilómetros de largura. As silhuetas do galeão e das duas galeras salientavam-se perfeitamente contra a faixa pálida da areia da praia, sobre a qual se avistava um tímido brilho alaranjado, vindo dos restos de uma fogueira que aquecia ainda os que a rodeavam.
— Chegámos tarde de mais — comentou Stokely, ao lado de Thomas no convés. — O dia nascerá muito antes de os alcançarmos. Os turcos ver-nos-ão chegar, com toda a certeza.
— Não. Vimos do poente, a escuridão ainda nos dará cobertura por mais algum tempo. — Thomas já vira La Valette utilizar aquela tática nos seus ataques ao inimigo, e era uma forma comprovada de disfarçar a sua aproximação até ao último momento.
— Só se os turcos forem completamente cegos.
Thomas engoliu a irritação que começava a sentir. Aquela era a primeira “caravana” de Stokely, como a Ordem chamava às campanhas no mar. O jovem cavaleiro acabaria por aprender a confiar na experiência dos capitães que combatiam os turcos havia muitos anos — desde que vivesse tempo suficiente para isso, refletiu. Havia muitas formas de um cavaleiro ao serviço da Santa Fé partir ao encontro do Criador. Combate, doença, afogamento, todos eles cobravam a sua parte, sem cuidar de qual era a ascendência de um homem, se provinha de uma das mais nobres famílias da Europa ou se nascera na sarjeta. O afogamento, em particular, era um perigo sempre presente. A armadura metálica que protegia um cavaleiro na batalha, bem como o resto do seu equipamento, era suficientemente pesada para o enviar diretamente para o fundo do oceano, se por acaso tivesse o azar de cair para a água.
Thomas olhou ao longo da galera, notando as posições dos grupos de soldados, alguns dos quais equipados com bestas, e avistou La Valette à popa, aprumado, rígido, ao lado da seca figura do mestre da galera. Nenhum homem erguia a voz acima de um murmúrio, e o único som que se escutava era o das ondas a desabarem sobre os penedos na base do promontório, além do ranger ritmado dos remos e do mergulho das pás na água. Depois de a galera ter rodeado o promontório, o timoneiro dirigiu o Corça Veloz para a costa, apontando à mais próxima das galeras inimigas. Thomas tinha-se acostumado ao hábito do capitão, de guardar para si mesmo os seus planos, mas ainda assim adivinhava-lhe as intenções. La Valette queria eliminar primeiro a mais próxima das galeras. Mesmo que o galeão conseguisse levantar âncora e deixar a baía antes de as duas galeras serem dominadas, seria fácil para a ágil embarcação de combate da Ordem persegui-lo e capturá-lo.
A leste, a luz era já mais forte, e a silhueta da ponta rochosa do outro lado da baía recortava-se com nitidez contra o céu. O odor pestilento vindo das galeras inimigas chegou ao convés do Corça Veloz, juntando-se ao não mais agradável cheiro que dominava o navio cristão.
A galera estava já a menos de meia milha do inimigo quando soou um toque estridente, um claro sinal de alarme. Thomas sentiu na nuca um arrepio gelado de ansiedade, e agarrou com toda a força no pique que empunhava. Da ré da galera, a voz de La Valette soou com clareza, dirigindo-se aos homens.
— Batedor, velocidade de combate! Artilheiros, preparem os canhões!
À medida que o tambor começava a marcar um ritmo persistente na coberta, surgiu um brilho pálido na proa da galera: a luz de presença tinha sido retirada do seu recipiente para fornecer lume aos mestres dos canhões, que logo se colocaram junto às suas armas, à espera de ordem para fazer fogo.
O coração de Thomas ia acelerando em compasso com o ritmo do tambor, e o convés estremecia debaixo dos seus pés a cada remada violenta. Olhando para bombordo, avistava pequenos vultos a levantarem-se estremunhados em redor da fogueira na praia. Muitos ficavam atónitos a ver a galera avançar velozmente pela baía na sua direção. Outros apressavam-se a correr para a margem e a entrar na água, começando a nadar na direção do galeão. Os que não sabiam nadar empurravam botes para as ondas e apinhavam-se a bordo. Na amurada da mais próxima das galeras inimigas começavam a alinhar-se figuras escuras. Muitas usavam turbantes e gesticulavam contra a ameaça que se aproximava, enquanto pegavam nas armas. Os gritos corriam livremente pelo espaço que separava os dois navios.
Entretanto, nem um homem na galera cristã desperdiçava tempo a falar; os únicos sons a bordo eram o do tambor, o marulhar da água ao longo do casco desenhado para a velocidade, e os grunhidos abafados dos remadores. Thomas voltou a olhar ao longo do convés, e conseguiu, à luz ainda hesitante, divisar a expressão que preenchia o semblante do capitão. La Valette mantinha-se imóvel, a mão esquerda apoiada no punho da espada, o rosto, envolto numa barba curta, sempre com ar sério e determinado. Era seu costume conduzir os homens à batalha em silêncio, sabendo perfeitamente que essa atitude perturbava o inimigo. Só no último instante bradariam um formidável urro coletivo, antes de se lançarem sobre os oponentes.
Um estrondo soou de repente, e Thomas encolheu-se sem pensar, enquanto estilhaços saltavam pelo ar. Uma pequena nuvem de fumo sobre a galera inimiga denunciava o disparo de um arcabuz. O homem que atirara já tinha entretanto apoiado a longa arma no convés e recarregava-a. Thomas olhou para os dois lados, para verificar se alguém tinha notado a sua reação, mas os homens à sua volta mantinham o olhar fixo em frente, e os lábios de Stokely moviam-se em silêncio, enquanto ele rezava para si mesmo. O olhar do outro cavaleiro cruzou-se com o de Thomas, e ele parou de rezar e desviou a vista quando se apercebeu de que estava a ser observado.
Viram-se mais penachos de fumo, a que se seguiu o zunir das balas de chumbo por cima das cabeças, mas só um outro disparo atingiu a proa da galera. Thomas forçou-se a manter-se imóvel enquanto via outros disparos a serem efetuados, cada um deles marcado por um rápido clarão avermelhado e uma nuvem de fumo que se desvanecia em poucos segundos.
— Besteiros! — gritou La Valette. — Preparados!
Os soldados da Ordem ainda usavam aquela arma obsoleta. Não possuía o alcance e o poder das armas de fogo empregues pelos turcos, mas era mais fácil de manejar e capaz de infligir feridas terríveis quando bem assestada. Um pequeno grupo de homens avançou e ocupou posições em ambos os lados da amurada à proa. Usando a engrenagem localizada na base da arma, puxaram as cordas atrás antes de colocarem os projéteis no sulco que corria ao longo da sua parte superior.
— Disparem à vontade! — veio a clara ordem da popa da galera. Os estalos dos arcabuzes inimigos foram respondidos com os surdos baques das cordas libertadas de repente da tensão acumulada, levando os dardos a descreverem arcos pouco pronunciados sobre as águas até desaparecerem pelo meio dos homens que ocupavam o convés do navio corsário.
Já não havia mais do que uma centena de passos a separar as duas naves, calculou Thomas. Na amurada inimiga estavam dezenas de homens de turbante, soltando desafios aos cristãos e brandindo cimitarras e piques. A meio do casco já começavam a sair os primeiros remos, enquanto a tripulação tentava desesperadamente colocar o navio em movimento. Thomas preparou-se para a ordem de dar fogo aos canhões da galera, e viu um dos mestres a olhar sobre o ombro.
— Vá lá, vá lá — resmungava o homem.
La Valette aguardou ainda mais um momento, e só então levou as mãos em concha à boca e soltou a ordem.
— Fogo!
2
De imediato, os mestres das equipagens dos canhões levaram as pontas incandescentes das suas acendalhas aos cones de papel recheados de pólvora negra que estavam aplicados aos cimos dos canos. Ao deflagrar, a pólvora soltou um assobio característico que foi imediatamente seguido por um ribombar quase capaz de estourar os tímpanos e um salto, quando um jato de fogo e labaredas saltou da boca de cada canhão. O recuo das peças provocou um estremeção no convés, e Thomas cambaleou para a frente, antes de recuperar o equilíbrio. Cada um dos canhões tinha sido cuidadosamente carregado com uma mistura de grandes pregos, correntes e metralha de chumbo, capturada a um navio inimigo havia alguns meses. Havia uma satisfação especial ao utilizar contra o inimigo munições que ele próprio empregava, considerou Thomas. O cone letal de fragmentos metálicos atingiu o flanco do navio corsário. Estilhaços de madeira saltaram em todas as direções quando a amurada foi destruída em dois pontos distintos. Por trás dela, os guerreiros de turbante foram derrubados como se fossem bonecos, acumulando-se em pilhas ensanguentadas no convés.
— Por Deus e por S. João! — incentivou La Valette, e os seus homens fizeram eco do grito, lançando um urro coletivo que arranhou gargantas, escancarou bocas e arregalou os olhos, tornando-os presas de uma excitação quase fanática.
— Por Deus e por S. João! — gritaram uma e outra vez, à medida que a galera deslizava a toda a velocidade, embalada contra o casco do navio inimigo.
— Aguentem-se! — avisou La Valette, a sua voz de trovão quase inaudível sobre o clamor dos homens. Thomas manteve a boca fechada e cerrou os dentes enquanto se agachava, se agarrava à amurada com uma mão e plantava firmemente os pés, afastados um do outro. Os que o rodeavam, pelo menos os que ainda mantinham a calma suficiente para se aperceberem do que se ia passar, seguiram-lhe o exemplo e esperaram pelo impacto. O convés pareceu dar um salto sob o seu corpo, e o soldado mais próximo foi projetado contra o seu ombro antes de cair desamparado no convés, no que foi imitado por muitos outros. O mastro de vante rangeu em protesto, e ouviu-se um estalo quando uma das enxárcias se partiu. Da coberta veio um coro abafado de gritos, lançados pelos aterrados remadores, que tinham sido projetados para fora dos seus bancos mas travados dolorosamente pelas grilhetas que os prendiam. A proa do Corça Veloz tinha sido fortemente reforçada para aguentar o tremendo impacto de uma colisão provocada, e agora erguia-se no ar enquanto desfazia, ao som de estilhaçar e ranger, o casco da galera dos corsários, que adornara com o choque. Os gritos de terror do inimigo justificavam-se pela quantidade de gente que tinha escorregado pelo convés inclinado, empilhando-se em desalinho junto à amurada. Alguns não tinham conseguido interromper a queda, e tinham mesmo tombado para a água.
— Jesus! — murmurou Stokely enquanto se punha de pé ao lado de Thomas.
O Corça Veloz tinha-se por fim detido, e deu-se um curto momento de calma enquanto as atordoadas tripulações recobravam os espíritos. Depressa porém se voltou a ouvir o vozeirão de La Valette a cortar o ar frio da alvorada.
— Ganchos de abordagem! Apontem para o outro bordo, e não falhem!
— Vinde daí. — Thomas baixou a ponta do pique e fez um gesto a Stokely, incitando-o a segui-lo enquanto corria para a proa e pegava num dos pesados ganchos de ferro, preso a um baraço de corda. Soltou um pequeno comprimento, fez rodar o gancho e lançou-o sobre a cabeça, antes de deixar correr a corda. O gancho descreveu um arco sobre o convés inimigo e desapareceu por cima da amurada no bordo oposto. De imediato, Thomas pegou na corda e puxou com todas as forças. Enquanto se debruçava para prender a corda num cunho, outros ganchos sobrevoaram o navio inimigo e prenderam-se ao casco.
— Recuar! — ordenou La Valette. — Depressa. Mestre, use o chicote!
Os remadores regressaram penosamente aos seus estreitos bancos e pegaram nos cabos dos remos, de superfícies polidas por anos de manuseamento por turnos e turnos de desgraçados como eles. A ordem para ciar foi dada antes que todos os remadores estivessem prontos, e as pás chapinharam inconsequentemente e em desalinho. Depois de prenderem as suas cordas, Thomas e Oliver regressaram à sua posição, à cabeça do bando de homens armados no convés. Durante um momento, o Corça Veloz não se mexeu, e a proa continuou a pressionar o casco do navio corsário. Por fim, com um ligeiro estremeção, começou a recuar, e as cordas dos ganchos retesaram-se e ficaram em tensão, atravessando o convés inimigo. Ouviu-se um grito de alarme vindo da popa, quando o capitão dos corsários se apercebeu do perigo. Alguns dos seus homens começaram a tentar cortar as cordas que se estendiam por cima deles, mas com o convés tão inclinado como estava, só os que tinham conseguido trepar até ao bordo afastado conseguiam atacar as cordas.
Mas já era demasiado tarde. O Corça Veloz começava a recuar, fazendo adornar o outro navio, preso por todos os ganchos cravados no casco. O bordo mais próximo mergulhou sob a água e rapidamente, num movimento quase gracioso, a galera virou-se por completo, lançando a tripulação e o equipamento solto à água. Thomas apanhou num relance, através das grelhas de ventilação da coberta, as expressões horrorizadas dos remadores do navio corsário; os homens continuavam acorrentados aos bancos. Depressa desapareceram, tragados pelo mar, e só o casco da galera, revestido de cracas, ficou à vista nas águas agitadas, resplandecendo sob o Sol. Os cabos dos ganchos foram cortados, fazendo as cordas cair para o mar. Em torno do casco, dúzias de homens lutavam para tentar manter-se à tona. Os que sabiam nadar tentavam alcançar a praia, que ficava a uma distância relativamente curta. Outros agarravam-se a quaisquer destroços flutuantes que conseguissem encontrar, ou tentavam trepar para o casco.
Uma aclamação soltou-se dos homens na galera cristã, mas Thomas não se sentia com ânimo para se juntar a eles. Não conseguia libertar o espírito da imagem dos rostos dos remadores quando a embarcação inimiga se tinha virado. A maior parte daqueles homens eram cristãos como ele, feitos prisioneiros e condenados às galés, apenas para morrerem, lamentavelmente, às mãos de outros homens que partilhavam a sua fé. Naquele instante conseguia ainda imaginá-los presos sob a água, a debaterem-se no frio e na escuridão, presos pelas correntes e destinados a um lento afogamento. Sentiu-se agoniado perante tais pensamentos.
Uma mão bateu-lhe no ombro. Olhou em volta e descobriu Stokely, de sorriso aberto, até que se apercebeu do ar sombrio de Thomas e franziu o sobrolho.
— Thomas, que se passa?
Tentou responder, mas não tinha palavras para descrever o horror que lhe arrefecia o coração. Tentou libertar-se daqueles sentimentos, e abanou a cabeça.
— Nada.
— Então juntai-vos a nós. — Stokely apontou para os outros homens no convés, que continuavam a celebrar vibrantemente.
Thomas observou-os com brevidade e virou a atenção para a outra galera inimiga, a menos de um quarto de milha de distância. Os corsários tinham cortado o cabo da âncora e virado o navio, de forma a apontar diretamente ao Corça Veloz. Thomas acenou com a cabeça na direção do inimigo.
— Não vamos ter hipótese de surpreender aqueles da mesma maneira.
Um movimento atraiu-lhe o olhar, pelo que se virou; avistou a tripulação do galeão a trepar pelo cordame e a espalhar-se pelas vergas, preparando-se para soltar todas as velas. Depressa se colocariam em movimento, mas perante a fraquíssima brisa que soprava, dificilmente conseguiriam sair da baía antes do fim da contenda entre as duas galeras. Haveria tempo para se ocuparem daquela presa depois, decidiu Thomas enquanto voltava a dar atenção à galera corsária.
Depois de o Corça Veloz se libertar da sua primeira vítima, La Valette deu ordens para avançar, e os remadores voltaram a esforçar-se para impelir a galera. Devagar a princípio, mas aumentando de velocidade a cada remada, a esguia embarcação progrediu. Ouviu-se um breve e estridente grito de terror quando um dos corsários ainda na água percebeu que se encontrava no caminho dos remos, mas logo uma pá de grandes dimensões se abateu sobre o crânio do homem, fazendo-o imergir e calando-o para sempre.
No castelo da proa, as equipagens de artilharia atarefavam-se a limpar os canos dos dois canhões e a recarregá-los, empurrando pelo tubo o saco que continha a carga de pólvora, a que se seguia outro saco, este contendo as peças sortidas de metal que tanto estrago causavam quando disparadas a curta distância. No convés, junto às duas amuradas, os besteiros retesavam as cordas das suas armas, preparando uma nova descarga de dardos letais. Thomas avistava os turbantes dos combatentes inimigos por sobre a proa da galera corsária, que se aproximava velozmente; preparavam os arcabuzes para o combate. Por baixo deles, sobressaindo das portinholas aos dois lados da proa, viam-se os canos de dois canhões, as suas bocas escuras como dois olhos negros que fitavam sem remorso a sua presa.
— Vai ser um combate sangrento — sussurrou um dos homens atrás de Thomas.
— Sim — respondeu-lhe um camarada. — Que o Senhor tenha piedade de nós.
Stokely virou-se para eles, furioso.
— Bico calado! O Senhor está connosco. A nossa causa é justa. São os infiéis que devem pedir piedade.
Os homens calaram-se ao sentirem o olhar feroz do cavaleiro, que se virou e se empertigou para confrontar o inimigo. Thomas aproximou-se e falou-lhe em surdina.
— Ainda não descobri nenhuma prece capaz de nos proteger de uma bala inimiga, ou da metralha dos seus canhões. Se fosse a vós, lembrar-me-ia disso quando eles abrirem fogo.
— Isso é uma profanidade.
— Nada disso, é apenas experiência, e bem amarga. Guardai as vossas orações, e preparai a mente para a dura tarefa de matar ou ser morto.
Stokely pareceu preparar-se para responder, mas acabou por cerrar as mandíbulas e os lábios, optando por contemplar a galera inimiga que vogava pelas águas calmas, aproximando-se a cada segundo. O horizonte a leste parecia estar em fogo com o brilho líquido do Sol, prestes a irromper por trás da massa escura do promontório distante. No instante seguinte, os detalhes dos corsários ficaram recortados de forma evidente quando os primeiros raios de Sol se lançaram sobre o oceano, fazendo com que Thomas e os outros se vissem forçados a semicerrar a vista. O inimigo estava tão próximo que o som das suas aclamações e o tilintar das suas espadas contra as orlas dos escudos arredondados chegava com facilidade ao outro navio. O espaço entre as duas galeras fechava-se rapidamente, e depressa Thomas ouviu os primeiros sons de disparos, quando os mais impacientes dos arcabuzeiros tentaram provocar estragos no navio cristão. Apesar da distância, que ainda era superior a duzentos passos, um dos artilheiros foi atingido na cabeça; o crânio do homem explodiu, enquanto ele caía para trás, lançando sobre os companheiros uma chuva de gotículas de sangue, miolos e osso.
— Porque é que La Valette não dá ordens para ripostar? — perguntou Stokely.
— O capitão sabe o que faz.
Outro disparo teve êxito, atingindo um dos soldados no estômago, provocando um som grave ao trespassar a placa peitoral e a proteção almofadada que a envolvia por dentro. O homem largou o pique e caiu para o convés a rebolar, gemendo em agonia.
— Levem-no para baixo! — ordenou Thomas, e outro dos soldados pousou a arma e arrastou o homem até à escotilha por trás do castelo da proa, levando-o pelas escadas abaixo até ao diminuto porão onde eram mantidas as reservas de comida e água. Ali ficaria até haver tempo para lhe tratar do ferimento, depois do combate. Se os corsários triunfassem, ali se afogaria ou seria morto, se o navio fosse saqueado.
Quando o soldado regressou ao seu posto, a distância entre os navios estava reduzida a metade, mas os canhões ainda não tinham disparado, apesar das balas que zuniam sobre as cabeças ou se alojavam nas madeiras do Corça Veloz. Thomas viu que o mestre artilheiro mais próximo se preparava para levar a acendalha ao rastilho de pólvora, e lançou um brado imediato.
— Esperai pela ordem!
O outro olhou em volta com uma expressão amedrontada, no preciso momento em que se avistou um clarão na proa da galera inimiga. No momento seguinte, outro clarão. Logo o ar em redor de Thomas se encheu com uma cacofonia de estalos, estrondos, e o retinir agreste de metal contra metal. Vários dos besteiros na proa foram derrubados, bem como parte da equipagem de um dos canhões. Thomas foi sacudido quando algo fez ricochete contra a sua armadura, e cambaleou para o lado, tentando manter o equilíbrio. Depois de um momento de espera, rebentou no convés um coro de gritos e gemidos vindos dos feridos. Thomas percorreu o corpo com o olhar, mas não viu sinais de qualquer ferida. Olhou em redor e viu Stokely a levar uma mão à cara. O sangue golfava por baixo da manopla, e escorria pelo aço polido da armadura.
— Estou ferido... — disse, em choque. — Ferido.
Thomas puxou-lhe a mão para trás e verificou que lhe tinha sido arrancado um pedaço de carne da maçã do rosto.
— É uma ferida superficial. Haveis de sobreviver.
Virou-se para avaliar o que se passava no convés, e notou que vários homens, talvez uma dúzia, tinham sido abatidos. Nesse preciso momento, o mestre artilheiro sobrevivente levou a acendalha ao pavio da sua arma, e de imediato se viu o clarão repentino, a nuvem de fumo e o estrondo que se propagou pelas madeiras da galera e pelos corpos a bordo. Thomas avistou a outra acendalha ainda na mão sem vida do mestre abatido e correu para a proa para a apanhar. Ajoelhou-se ao lado do canhão e esperou um momento até o fumo clarear e ele conseguir avistar o navio inimigo mesmo à sua frente. Mal teve tempo para se encolher e levar a chama ao pavio cheio de pólvora, e a arma de imediato saltou violentamente ao descarregar metal sobre o inimigo próximo.
— Recolher remos! Leme todo para bombordo! — gritou La Valette, da popa.
Os remadores puseram o peso sobre os cabos para extrair as pás da água e começaram a recolher os remos, ao mesmo tempo que o leme rasgava a água e forçava a proa a rodar de forma a passar ao longo do casco da embarcação inimiga. No momento seguinte sentiu-se um choque tremendo, seguido de um ranger profundo e duradouro enquanto os dois cascos deslizavam um contra o outro. Alguns remos, tanto de um navio como de outro, não tinham sido recolhidos a tempo, e ouviu-se uma série de estalidos fortes quando os longos cabos de madeira se estilhaçaram.
Antes que o Corça Veloz se imobilizasse, já La Valette, de espada na mão, tinha descido do castelo da popa e corrido para se juntar ao grupo de soldados que Thomas e os outros cavaleiros lideravam. O capitão deitou uma olhadela em redor para ter a certeza que os seus homens estavam a postos e por fim levantou a espada, apontando-a sobre a amurada, na direção do inimigo.
— Por Deus e por S. João!
3
La Valette trepou para a amurada e saltou sobre o estreito espaço vazio entre os cascos, aterrando no convés do barco inimigo. Alguns membros da tripulação já tinham começado a lançar ganchos de abordagem e a forçar a aproximação das duas galeras.
Thomas respirou fundo, firmou a mão na pega do pique e repetiu o grito que o seu comandante soltara.
— Por Deus e por S. João!
Imitou então também o gesto e saltou para a outra embarcação. O veterano cavaleiro já se tinha encaminhado para o centro do convés do navio corsário, fazendo rodar a longa lâmina da sua espada num arco letal à sua frente, para forçar o inimigo a recuar e abrir espaço para os homens que o seguiam. Soaram disparos vindos de ambos os lados, quando os arcabuzeiros descarregaram as armas e as largaram de imediato, pegando então nas cimitarras e avançando para a refrega. Thomas firmou os pés no convés e olhou em redor rapidamente, escolhendo enfrentar a ameaça mais próxima, um homem de grande envergadura e turbante na cabeça, e de pele escura como o carvão, cujos olhos rebrilhavam sobre a barba espessa. Empunhava uma pesada cimitarra numa mão, e um escudo redondo na outra. Correu pelo convés na direção de Thomas, girando a lâmina para a desviar do pique do adversário. Mas Thomas deixou a ponta descer e passar sob a espada do corsário, antes de a fazer subir e apontar às vestes que cobriam o peito do outro.
Por instinto, o corsário lançou o escudo contra o cabo do pique, afastando-o de forma a falhar o alvo e se limitar a rasgar as roupas. Thomas recolheu o pique e voltou a ameaçar o inimigo, fazendo sucessivas fintas para o manter à distância. Na periferia do seu campo de visão reparou que La Valette estraçalhava um crânio com um potente golpe, fazendo jorrar uma fonte de sangue. Do outro lado, Stokely conduzia um pequeno grupo de homens numa carga ao longo da amurada. Abriu-se um espaço entre Thomas e o corsário negro, como se tivessem um palco para o seu duelo privado.
O homem soltou um berro súbito, provavelmente algum insulto, e avançou, atacando o pique e fazendo a ponta tombar. Prosseguiu no avanço, lançando o escudo contra a placa peitoral de Thomas. O impacto foi absorvido pelo revestimento interno da armadura, e o inglês soltou a mão direita, cerrou-a num punho e enviou-a com toda a força contra o rosto do oponente. As proteções articuladas dos dedos, de metal, rasgaram a pele do corsário, e escutou-se um som de esmagamento quando os ossos do nariz cederam. O homem soltou um rugido animal de dor e fúria, e voltou a lançar o escudo contra Thomas, forçando-o a recuar, aproveitando logo o espaço ganho para manobrar a cimitarra num arco apontado à cabeça do cavaleiro.
Thomas apercebeu-se do movimento, um arco metálico a reluzir à luz do Sol nascente, e saltou para o lado. A cimitarra assobiou-lhe aos ouvidos e abateu-se sobre as tábuas do convés com estrondo, arrancando estilhaços. Antes que o corsário se pudesse endireitar, Thomas rodou o pique e lançou uma estocada decidida. A ponta apanhou o outro no ombro e derrubou-o de imediato. Caiu pesadamente de costas, e Thomas aproveitou para novo golpe, desta vez ao cimo do peito, por baixo da clavícula. A ponta acerada atravessou o corpete branco, rasgou carne e esmagou ossos ao penetrar profundamente no corpo do corsário. O rosto deste contorceu-se, os olhos e a boca cerrados num esgar de dor, de tal forma que fazia lembrar um pedaço de madeira carbonizada. Por fim rolou sobre o convés, as mãos a apertarem a ferida de onde o sangue jorrava e se espalhava pelas vestes ondulantes que lhe cobriam o corpo.
Thomas colocou a bota sobre o peito do inimigo e extraiu a ponta da arma. Olhou em redor, pronto a enfrentar nova ameaça. La Valette e um grupo de homens avançavam para a popa a golpes de espada; era onde o capitão corsário e os seus homens o aguardavam, determinados a defender a sua posição. Na direção oposta, Stokely e o seu grupo tinham conseguido chegar ao castelo da proa e entretinham-se a massacrar as equipagens dos canhões. Mas todo o convés era um campo de batalha caótico. As armaduras dos cavaleiros e dos mercenários que os acompanhavam davam-lhes uma clara vantagem. A fé fanática que os inimigos punham nos ensinamentos do seu profeta proporcionava-lhes uma coragem tremenda, mas que de pouco servia. As suas cimitarras deslizavam sobre as armaduras, e só um golpe afortunado às juntas, ou uma estocada à face, podiam provocar feridas importantes aos cristãos. Um punhado dos camaradas de Thomas tinha caído, mas os outros avançavam sem cessar, dizimando as fileiras dos corsários.
Ainda assim, alguns dos combatentes inimigos ofereciam desafios formidáveis. Thomas escolheu um combatente alto e magro, bem equipado, com um escudo de grandes dimensões e uma cimitarra finamente decorada, que parecia estar de guarda a uma escotilha que dava acesso ao porão da galera. Aos seus pés jazia um corpo, e a cruz branca sobre o fundo vermelho do colete revelava que se tratava de um cavaleiro da Ordem. O corsário sorriu e levantou a espada, de forma a que Thomas se pudesse aperceber do gume ainda húmido e vermelho. Ignorou o óbvio desafio. O outro tinha pele clara, talvez fosse um dos que, raptados em criança nos Balcãs, eram educados como muçulmanos, como os infames janízaros que constituíam o corpo de elite do exército do sultão. Na ponta do elmo esvoaçava uma pluma de crina de cavalo negra, e o elmo era negro também, reluzindo como se fosse coberto por verniz, tal como sucedia com as placas de metal que tinham sido cosidas no gibão que usava. Uma cicatriz lívida na face revelava que se tratava de um combatente experiente, mas também que em tempos um adversário qualquer o tinha ferido com gravidade, notou Thomas.
Apresentou-lhe a ponta do pique e, quando ele se aproximou, fez uma imediata finta como se fosse tentar atingir-lhe o rosto. O outro nem piscou os olhos, limitando-se a abanar a cabeça, como se lamentasse a sorte do fraco adversário que tinha pela frente.
— Muito bem então — rosnou Thomas por entre os dentes. — Experimenta lá esta!
Colocou o peso por trás da estocada e saltou para a frente. O corsário desviou-se para o lado sem esforço e lançou a sua fina lâmina contra a cabeça de Thomas. Este esquivou-se, e o gume afiado limitou-se a escorregar ao longo do aço do elmo, embora o impacto o deixasse atordoado por alguns momentos. Deu um passo atrás e abanou a cabeça, enquanto manejava o pique de forma a manter o adversário à distância. O outro sorriu, mas depressa cerrou os lábios numa máscara de determinação e avançou, a lâmina a voltear quase demasiado depressa para permitir que a visão a acompanhasse. Thomas ignorou o movimento e alterou repentinamente a pega do pique, passando a utilizá-lo como um bordão, como fizera tantas vezes na sua meninice em Inglaterra. Era forte e poderoso, como qualquer homem educado para se tornar um cavaleiro, e tinha resolvido passar à ofensiva.
A tática ousada e simples apanhou desprevenido o corsário, que não conseguiu mover-se com a presteza suficiente para se afastar do caminho da longa haste do pique. Thomas chocou contra ele, empurrando-o para trás e fazendo-o tropeçar, obrigando-o a concentrar-se em tentar manter-se de pé. Mas acabou por embater na amurada, com tanta força que o ar que se soltou dos seus pulmões embateu contra Thomas, forçando-o a piscar os olhos ao ver-se atingido pelo odor da refeição matinal do homem. O corsário soltou a espada e o escudo e deixou-os cair, tentando apanhar o cabo do pique e empurrá-lo para trás. Thomas enfrentou-o, e, com cada músculo e tendão dos seus braços, continuou a pressionar, obrigando-o a agachar-se e cair para o convés. A haste encostou-se ao cimo do peito do homem, e Thomas empurrou-a para cima, por baixo do queixo, contra a garganta. As mandíbulas do corsário abriram-se e o homem contorceu-se enquanto tentava desesperadamente impedir que o adversário o sufocasse.
— Maldito... sejas... cristão — pronunciou, num francês com forte sotaque. — Que ardas... no Inferno!
A face de Thomas estava a curtos centímetros da do corsário, pelo que conseguia ver todos os detalhes das feições do outro, e o suor que lhe brotava da testa enquanto lutava pela vida. A respiração do homem já era difícil e os olhos rebolavam-lhe, e por fim algo cedeu na garganta, produzindo um som abafado. O corsário teve um espasmo, os olhos esbugalharam-se, ferozes e enormes, e a boca produziu uma série de estalidos e suspiros. Thomas sentia a força do outro a diminuir, mas continuou a fazer pressão no pique, até que a cabeça do adversário rolou para o convés, as mão largaram o cabo e ele ficou ali, a contemplar sem ver o céu rosado, com a ponta da língua a irromper por entre os dentes.
Thomas rebolou para o lado, o pique a postos para o caso de haver por ali outro inimigo prestes a atacá-lo, mas só os mortos e moribundos lhe faziam companhia próxima. O combate pela posse do navio estava praticamente terminado. Stokely e os seus homens tinham limpo a proa, enquanto La Valette e os outros soldados continuavam a avançar para a popa da galera. O capitão inimigo e um punhado dos seus homens lutavam ainda no espaço confinado, golpeando selvaticamente os homens de armadura que os pressionavam. Enquanto Thomas observava, La Valette levantou a sua espada sobre a cabeça e desferiu um poderoso golpe na diagonal. O cavaleiro era um homem de constituição poderosa, e a tentativa do capitão inimigo de aparar o golpe nada pôde para alterar o curso da lâmina. No momento seguinte, o aço afiado rasgou o turbante e cravou-se no crânio do homem, penetrando até ao queixo.
Quando os corsários em redor se aperceberam de que o seu capitão estava mortalmente ferido, lançaram as armas pelo solo e arrojaram-se de joelhos, pedindo clemência. Espadas e piques cortaram-nos e esfacelaram-nos por ainda mais alguns momentos, até que a refrega amainou. La Valette soltou a espada, limpou-a nas vestes do corsário e embainhou-a, antes de se virar para contemplar a carnificina que ocorrera no convés da galera. Avistou Thomas.
— Sir Thomas! Vinde.
Thomas apressou-se a abrir caminho na direção da ré da embarcação, passando por entre os cadáveres amontoados no convés ensanguentado. Parou na base das curtas escadas que levavam à popa soerguida e olhou para o seu comandante. La Valette tinha sido atingido na cabeça, e o seu elmo apresentava uma mossa profunda, mas não havia sinais de que estivesse ferido ou sequer atordoado, e contemplou calmamente o subordinado.
— Ides tomar o comando aqui.
— Comando? Sim, senhor.
— Eu vou regressar ao Corça Veloz e perseguir o galeão. — Fez um gesto com a mão e Thomas olhou em redor, reparando então que as velas da grande embarcação de carga se tinham enfunado com a brisa matinal, e que ela estava prestes a sair da baía. Se conseguisse alcançar o mar alto, a sua melhor resposta ao vento poderia permitir-lhe escapar, especialmente se a ondulação se intensificasse à medida que o vento aumentava.
— Deixo-vos Sir Oliver e mais vinte homens — continuou La Valette. — Libertai os cristãos que encontrardes entre os remadores. Mas tomai atenção. Não quero ver nenhum maometano a fingir que é um dos nossos.
— Sim, senhor.
— Acorrentai os novos prisioneiros aos bancos. Depois procedei às reparações que sejam necessárias, livrai-vos dos cadáveres e regressai a Malta.
— Malta? — Thomas franziu o sobrolho. Ainda faltava muito tempo para o fim da época de campanha. Não fazia sentido regressar de imediato à sede da Ordem. Mas a decisão fora tomada pelo capitão, e Thomas não tinha qualquer direito de a contestar. Endireitou as costas, e inclinou levemente a cabeça. — Será feito como dizeis, senhor.
— Isso mesmo. — La Valette deitou-lhe um olhar severo por momentos, antes de afrouxar o tom e prosseguir numa voz baixa, de forma a que apenas o jovem cavaleiro o pudesse escutar. — Thomas, afundámos uma embarcação inimiga e capturámos outra. Daqui a pouco tempo, espero, tomaremos também aquele galeão. É forçoso conduzir as nossas presas para Malta, onde ficarão seguras, e reabastecer o Corça Veloz antes de prosseguir na missão. Pelo meio-dia teremos três navios, e quase nenhuns homens para os tripularem. Não podemos arriscar-nos a novos confrontos até pormos as nossas presas a salvo em Malta. Percebeis?
— Sim, senhor — retorquiu Thomas, sem emoção.
— Somos já muito poucos. Há na Europa quem pense que a Ordem é a vanguarda do combate que a Igreja trava contra o Turco. A verdade é que somos, sim, a retaguarda. Nunca vos esqueçais disso. De cada vez que perdemos um homem, o inimigo fica um passo mais perto da vitória. — Os olhos do homem pareciam trespassar Thomas. — A seu tempo, se viverdes o suficiente, ser-vos-á confiado o comando de uma galera, e sereis então o responsável pelas vidas dos homens que vos servirem. Não é algo que se possa assumir sem muito refletir.
Thomas anuiu.
— Senhor, compreendo.
— Tratai de o garantir. — La Valette recuou um passo e contemplou os homens espalhados pelo convés. — Sargento Mendoza! — chamou.
Um vulto pesado correu para ele e fez uma continência rápida.
— Senhor?
— Tu e os teus homens ficam a bordo, sob o comando de Sir Thomas. Os outros, de volta ao Corça Veloz, e depressa.
Os homens designados para acompanharem o capitão atravessaram rapidamente o convés até alcançarem o ponto onde a proa do seu navio estava encostada à galera corsária, graças aos inúmeros ganchos que tinham sido lançados. Treparam para a amurada e atravessaram para a outra galera. Assim que o último dos homens deixou a embarcação conquistada, Thomas deu ordens para que fossem afrouxados os cabos dos ganchos, de forma a poderem soltar-se as pontas e serem devolvidas ao convés do Corça Veloz. Abriu-se um espaço entre as duas galeras, e La Valette soltou a ordem para lançar os remos e fazer recuar o navio até poderem rodar a proa e aproar ao galeão que se escapulia. Por fim os remos, num ritmo constante, começaram a impulsionar a esguia galera na direção da sua presa. Thomas contemplou as manobras por mais alguns momentos e focou-se então no seu comando temporário.
4
A primeira coisa a fazer era tratar dos homens aprisionados na coberta. Virou-se para o sargento.
— Venha comigo, com mais dois homens. Os outros que tratem dos cadáveres. Separem os nossos homens, para lhes darmos um funeral decente.
Dirigiu-se com Mendoza para a grade que fechava a passagem para a coberta. Ao aproximar-se, ouviu o clamor que se erguia lá de baixo, seguido de um grito de terror que foi rapidamente silenciado. Havia um parafuso a prender a grade, e Thomas ajoelhou-se para o soltar, enquanto notava o cuidado dos corsários, que acorrentavam os remadores aos bancos e depois ainda tinham a preocupação de trancar o acesso à coberta.
— Ajude-me aqui com a grade.
Os dois homens levantaram a grade e lançaram-na para o convés. Thomas espreitou pela abertura e recuou de imediato, atingido por um jorro de ar quente impregnado com o mais pestilento odor que alguma vez encontrara. Havia movimentos lá em baixo, e as correntes tilintavam quando quem as usava se movia. Avistou por fim rostos que se viravam para a luz pálida que entrava pela escotilha. Caracóis imundos e desgrenhados e barbas enormes cobriam as feições emaciadas dos prisioneiros. A maior parte deles era branca de pele, mas também se avistavam alguns homens com pele mais escura, embora não fosse fácil perceber o tom por baixo da camada de sujidade que a todos cobria. Havia uma escada que descia até ao passadiço estreito que se estendia entre as filas de bancos alinhados nos dois bordos da galera. Desceu e avistou à vante um vulto que segurava um pequeno chicote, perto do batedor, também ele agrilhoado junto ao tambor. Thomas e os seus homens viram-se obrigados a curvar os pescoços enquanto avançavam, observados por olhos esperançosos de ambos os lados.
— O Senhor seja louvado... — soltou uma voz sumida. — São cristãos... Cristãos! Vamos ser libertados!
As palavras tiveram efeito em muitos dos seus camaradas, que levantaram as mãos na direção dos seus salvadores, implorando pela liberdade. Alguns limitaram-se a tombar e chorar sobre os remos, enquanto os ombros lhes eram sacudidos por soluços incontroláveis.
O encarregado da coberta soltou o chicote ao ver Thomas a aproximar-se, e colocou as mãos juntas num pedido, enquanto murmurava em francês.
— Senhor, por favor... Por favor.
— Onde fica o pino que fecha as correntes? — inquiriu Thomas.
O outro espetou o dedo, apontando um aro cravado profundamente numa trave do chão, logo atrás da posição do batedor.
— Ali.
Thomas afastou-o com a mão. Lutou contra a náusea provocada pelo cheiro indescritível que vinha das profundezas do porão. Como podia um homem aguentar uma coisa daquelas?, perguntou-se. Encontrou o anel que fechava a corrente e localizou o pino que a fixava. Pegou na sua adaga e começou a tentar soltá-lo. Ao fim de um momento, o pino saltou do seu encaixe, e Thomas pôde começar a fazer passar a corrente pelo anel, acumulando-a ao pé do banco mais próximo. Olhou para os rostos dos homens que lá estavam sentados.
— Quem de entre vós é cristão?
— Eu! — ripostou enfaticamente o homem mais próximo — Eu, senhor. Sou de Toulon.
— Libertem-no — ordenou Thomas.
— Eu também! — apressou-se a anunciar o vizinho do homem.
— Mentiroso! — rosnou este. — És um mouro. Os corsários capturaram-te em Valência.
— Sargento, liberte o francês. O outro fica acorrentado. — O mouro, um descendente dos árabes que em tempos tinham governado a Espanha, abriu a boca num protesto, mas ao notar a expressão implacável que Thomas ostentava, fechou-a e deixou pender a cabeça sobre o remo, resignado. Thomas olhou em volta enquanto mais vozes se levantavam e proclamavam a sua fé. Se todos diziam a verdade, não mais de um terço dos homens permaneceria aos remos, o que não seria suficiente para a viagem de regresso a Malta. À medida que o tumulto de vozes aumentava, resolveu interrompê-lo. Respirou fundo e lançou um grito sobre toda a cena.
— SILÊNCIO!
Os remadores, habituados ao regime duro imposto pelos encarregados, silenciaram de imediato os protestos. Thomas voltou-se de novo para o sargento.
— Liberte os cristãos, mas só eles. Todo e qualquer homem que se proclame cristão e que seja desmascarado como mentiroso, será imediatamente executado.
— Sim, senhor — respondeu o sargento, sem surpresa.
— Prossiga. — Thomas já não conseguia aguentar o cheiro daquelas criaturas e do lugar que ocupavam. — Estarei lá em cima.
— E quanto àquele? — Mendoza apontou para o encarregado, que ainda tentava passar despercebido junto à popa, sem se atrever a enfrentar o olhar dos homens que mantivera sob a lei do chicote. Thomas olhou-o por momentos e reparou que o homem não tinha largado o instrumento do seu poder.
— Ele? Deixe que sejam os homens que libertar a decidir o seu destino.
Virou-se e afastou-se ao longo do passadiço a caminho da escada, lutando contra o desejo de correr e sair daquele buraco infernal o mais depressa possível. Subiu para o convés, apressou-se a chegar-se à amurada, onde podia sentir o vento fresco na cara, e respirou profundamente para tentar expulsar os últimos resquícios do ar pestilento da coberta. Apesar de saber perfeitamente como se passavam as coisas no interior de uma galera, só o tinha visto com os próprios olhos num par de ocasiões. O que vira deixara-o desgostoso, mas os homens que remavam nas embarcações da Ordem eram criminosos, piratas e seguidores de fés falsas. E por muito más que fossem as condições nas galeras cristãs, nunca tinha visto homens tratados de uma forma tão vil como naquela galera de corsários. Sentiu uma cólera profunda ao pensar no inimigo, e um desejo ardente de fazer a sua parte para varrer o Islão da face da Terra.
Um repuxo na superfície do mar ali perto fê-lo olhar à volta; alguns dos seus homens lançavam os cadáveres pela borda fora. Os corpos tinham sido desarmados e despojados de quaisquer peças de roupa que pudessem valer um preço decente nos mercados de Malta. Dois outros homens vigiavam um punhado de prisioneiros feridos, sentados no convés junto à base do mastro de ré. Ao contemplá-los, Thomas sentiu o coração endurecer e tornar-se apenas uma pedra fria no seu peito. Afastou-se da amurada e dirigiu-se para junto deles, acenando a outro grupo de soldados para que o acompanhassem. Ao chegar junto dos prisioneiros, parou e avaliou-os, sem esconder o ódio que sentia. Eram mais de vinte, e a maior parte ainda envergava algum género de armadura, além das bainhas vazias que lhes pendiam dos cintos. Quase todos tinham feridas tratadas sem grande cuidado, apenas embrulhadas em tiras de pano. Eram feridas superficiais e todos recuperariam, pelo menos o suficiente para ocuparem lugares nos bancos de remadores daquela ou de outra galera.
— Deixem aqui os oficiais. Os outros, lá para baixo, para os remos — ordenou, em tom firme. Os homens separaram os prisioneiros, levando a maior parte a caminho da escotilha, enquanto um pequeno grupo ficava sentado no convés. Thomas contemplou-os por momentos antes de dar nova ordem. — Matem-nos. Lancem os corpos borda fora.
Um dos homens que tinham estado a guardar os prisioneiros deitou um olhar a um companheiro, antes de reunir coragem para pigarrear e inquirir.
— Senhor? Os oficiais valem bom dinheiro.
Thomas sentiu a mão a tremer, e agarrou-a com firmeza.
— Dei-te uma ordem. Mata-os! Fá-lo!
Soaram passos nas suas costas, e Stokely interpôs-se entre ele e os prisioneiros.
— Não podeis assassinar os oficiais. São nossos prisioneiros.
Thomas engoliu em seco e respondeu com azedume.
— São o inimigo. São turcos, infiéis.
— Não deixam de ser criaturas de Deus, mesmo que ainda não tenham abraçado a verdadeira fé — ripostou Stokely. — Aceitámos a sua rendição. Não podemos chaciná-los assim. Seria uma ofensa às tradições da cavalaria.
— Cavalaria? — Thomas fez uma careta, que se transformou num sorriso. — Não há lugar para tais ideais na guerra contra o Turco. A morte é o que eles merecem.
— Não podeis...
Thomas silenciou-o com a mão erguida.
— Estamos a perder tempo. Quero pôr-me a caminho o mais depressa possível. Mas primeiro temos de nos livrar desta... praga.
Empunhou a lâmina, e antes que alguém pudesse detê-lo, passou a fio de espada o mais próximo dos corsários, um jovem num corpete finamente debruado, ainda demasiado novo para ostentar uma barba. O corsário suspirou e tombou para o convés enquanto uma mancha escarlate se espalhava rapidamente pelo algodão branco das suas vestes. Com gestos fracos, tentou agarrar uma ponta do corpete para fazer pressão sobre a ferida e estancar o sangue que corria. Thomas avançou, cego a tudo pelo seu desejo de sangue. Voltou a golpeá-lo, desta vez no pescoço, cortando a espinha e quase lhe decepando a cabeça. Olhou em redor, para os seus homens.
— Agora tratem de cumprir as ordens que vos dei! Matem-nos a todos. Tu, começa. — Apontou para um dos homens que tinham estado a vigiar os prisioneiros.
O soldado baixou o pique e cravou-o no peito do corsário mais próximo. Os outros começaram a gritar, pedindo clemência em francês e espanhol, bem como nas suas línguas nativas. Depois de os dois primeiros serem executados, os outros soldados juntaram-se à matança. Thomas afastou-se e Stokely continuou a assistir à cena com o horror e a relutância bem expressos no trejeito dos lábios.
— Isto está... errado. — Abanou a cabeça. — Errado.
— Se assim pensais, talvez seja melhor reconsiderardes a vossa pertença à Ordem. — Thomas encolheu os ombros e virou-se, enquanto o último dos prisioneiros era abatido. — Vede se os corpos são atirados fora como indiquei.
Enquanto caminhava para a proa, Thomas nada sentiu por momentos. Tinha esperado uma sensação de alívio, o vazar da tensão que se tinha acumulado durante a batalha e depois na coberta. Mas tudo o que sentia era uma dormência fria. O sangue que manchava o convés em redor, as armas abandonadas, eram apenas detalhes, e as suas recordações do combate eram imagens soltas e fugazes, limpas de qualquer emoção, de remorso ou até mesmo de qualquer sensação de triunfo. Tudo o que sabia era que ainda estava vivo, e que os seus camaradas tinham conseguido uma pequena vitória. Nada mais do que uma alfinetada na grande besta do poder turco que avançava sem cessar, fazendo daquele mar e das terras que o rodeavam o domínio do Islão. O sangue continuaria a correr, os homens continuariam a morrer pela espada ou pela exaustão e pela fome, agrilhoados aos remos das galeras que percorriam aquele mar atormentado. Mulheres e crianças continuariam a ser levadas como escravas para se tornarem concubinas ou serem educadas por muçulmanos, para que um dia travassem a guerra contra aqueles que em tempos tinham visto como família. E pelo seu lado, os cavaleiros de S. João e todos os que com eles partilhavam a causa lutariam pela sobrevivência. E assim tudo prosseguiria. Espada e cimitarra, presas num duelo infindável e sangrento, cuja única recompensa era a miséria que recaía sobre as gentes de ambas as fações.
Dirigiu-se à pequena escotilha sobre o porão de vante, onde matara o gigante negro. Deixou-se sentar pesadamente enquanto desapertava a armadura, tirava as manoplas e lutava com as fivelas que lhe apertavam o elmo. Ao fim de algumas tentativas, lá conseguiu tirá-lo e colocá-lo sobre as tábuas do convés, a seu lado. O suor colava-lhe o cabelo ao escalpe, e a brisa matinal refrescava-lhe a pele agora exposta. Deixou-se recostar por um momento contra a amurada, até que uma sombra lhe caiu sobre o rosto. Piscou os olhos, abriu-os e avistou Stokely à sua frente.
— Cumprimos as vossas ordens. E os cristãos foram libertados. — Fez um gesto para a parte traseira do convés, onde umas quarenta figuras esqueléticas, embrulhadas em trapos, se amontoavam em torno de cestas com pão, tentando obter um pedaço a que arrancavam sofregamente nacos que mastigavam com vigor. Stokely contemplou-os por momentos. — Estavam com fome, mas ainda assim tiveram tempo de primeiro fazer o encarregado em pedaços. Não é que ele não merecesse.
— Se o dizeis.
Stokely espreitou para a escotilha.
— Já fostes ver o que há aí em baixo?
Thomas abanou a cabeça.
— Talvez haja mais comida que possamos dar àquela gente.
Thomas acenou com a mão na direção da estreita passagem.
— Fazei como vos aprouver.
Stokely meteu pela escada que levava ao diminuto compartimento. Um instante depois, Thomas ouviu-o soltar uma imprecação de surpresa, antes de o chamar.
— Thomas!
— Que se passa?
— Chegai cá abaixo!
A urgência na voz do amigo fez com que Thomas rodasse de forma a saltar para o interior do porão.
— Que é?
Virou-se e avistou Stokely agachado junto a um monte de trapos. Não havia espaço suficiente para se manter de pé, e Thomas avançou também agachado. O monte de trapos mexeu-se e, graças aos raios de luz que penetravam pela grelha do porão, Thomas percebeu que se tratava de uma mulher. Cobria-a um trapo reduzido e imundo, e quando ela se virou para eles, o tecido escorregou e expôs as marcas em carne viva que lhe percorriam os ombros e as costas. O cabelo era longo e escuro, e uma das mãos estava presa a um aro de ferro na parede do porão. Olhou para os dois homens, os olhos cheios de desconfiança. A pele dela era pálida, e exibia uma nódoa negra no rosto. Os lábios gretados entreabriram-se e a língua tentou humedecê-los antes de ela murmurar:
— Quem sois?
— Cristãos — retorquiu Sir Oliver. — Tomámos esta galera.
— Cristãos — repetiu ela, enquanto examinava o aspeto dos dois homens.
Fez-se um silêncio breve enquanto a mulher e os dois cavaleiros se avaliavam. Ao contemplá-la, Thomas percebeu que era muito bela, mesmo naquele estado, espancada, magoada e acorrentada, a viver na sua própria porcaria. Algo se alterou na profunda frieza que tomara conta do seu coração. Virou-se de forma a alcançar o aro e puxou da adaga. A mulher encolheu-se ao avistar a lâmina, e ele apressou-se a apontar para a peça que prendia as correntes ao anel cravado nas tábuas do casco.
— Vou tirar-vos daqui.
Ela assentiu, e Thomas inseriu a ponta da adaga e começou a tentar soltar o pino. Fez uma breve pausa e olhou para ela.
— Como vos chamais?
Ela voltou a humedecer os lábios e respondeu com voz rouca:
— Maria de Venici.
Thomas assentiu, e voltou a sentir o coração a palpitar quando a contemplou.
— Maria — repetiu devagar, saboreando cada sílaba do nome. — Maria.
5
Malta, dois meses depois
O crescente lunar resplandecia sobre a ilha de Malta, riscado apenas por finas nuvens prateadas. Uma faixa de brilho refletido espalhava-se sobre as águas do porto, na direção da crista de Sciberras, e o ar mantinha-se quente e parado. Thomas pouca atenção dava ao que o rodeava. Noutra noite qualquer, não deixaria de sentir o prazer sensual de uma noite de verão no Mediterrâneo, e teria feito uma pausa para melhor absorver a vista e os sons que embelezavam o momento.
Mas não naquela noite.
O coração batia-lhe com impaciência e ansiedade, enquanto esperava à sombra das muralhas do forte de St. Ângelo, lar da Ordem, edificado na ponta rochosa da península de Birgu. A fortificação guardava a entrada do porto e dominava a pequena povoação, cujos telhados vermelhos pareciam cinzentos e desbotados ao luar. Ao longo da base da muralha corria um estreito caminho que levava ao cais na margem, onde Thomas aguardava. Deu um pulo quando o sino da catedral bateu meia-hora depois da meia-noite. Maria já devia ter chegado há bastante tempo. Afastando-se ligeiramente das rochas na base da muralha, esforçou a vista para espreitar ao longo do caminho, mas nada se movia. Sentiu um súbito receio de que ela pudesse ter mudado de ideias e tivesse decidido que não devia correr o risco de se encontrar a sós com ele mais uma vez.
Já tinham sido avisados para pôr um travão na sua relação. La Valette tinha puxado Thomas para o lado durante uma das sessões matinais de treino com armas, para lhe dar umas palavras sem alarde. Relembrara ao jovem cavaleiro de que Maria de Venici esperava apenas pela chegada do irmão, com a recompensa que a Ordem aceitara pela sua salvação.
Os lábios de Thomas tinham-se mexido, divertidos. A palavra mais adequada à situação era resgate. Claro que tal infeliz termo nunca encontrara lugar nas mensagens trocadas entre a Ordem e a família Venici.
— A vossa afeição mútua não passou despercebida — indicara La Valette. — E devo avisar-vos que ela não é aceitável, Thomas. Maria está prometida a outro, e não há qualquer futuro para esta... amizade que cresceu entre vós.
— Senhor, quem vos contou? — inquirira Thomas.
Antes de poder evitá-lo, o olhar de La Valette dirigira-se quase que por instinto para os outros jovens cavaleiros que praticavam movimentos de ataque contra bonecos de madeira instalados no pátio do forte de St. Ângelo. Thomas tinha espreitado por trás dele e avistara Oliver Stokely, que os observava. Quando os seus olhares se tinham cruzado, Stokely voltara a dar atenção ao boneco que tinha estado a atacar, pintado de forma a assemelhar-se a um turco, completo com uma face de traços cruéis, tez escura e olhos negros.
O delator fora portanto aquele homem, que sempre considerara um amigo, concluíra Thomas. A surpresa não fora grande, ainda assim. A amizade entre os dois arrefecera nas semanas passadas desde o regresso da galera a Malta, à medida que se tornara evidente que a mulher que tinham libertado preferia a companhia de Thomas. Tinha-se mostrado sempre grata e amigável com Stokely, mas as suas feições iluminavam-se na presença de Thomas, e fora a ele que pedira que a acompanhasse em passeios, primeiro por Birgu e depois pelos campos em redor.
Fora aí que tudo se passara, recordara Thomas, enquanto o seu pulso acelerara. À sombra de uma das raras árvores da ilha, no alto de Sta. Margarida, de onde se tinha uma bela vista sobre Birgu e o porto. Ao tropeçar, ela tinha-se encostado a ele, e a testa dela raspara-lhe na face quando ele lhe segurara o braço, para impedir que ela caísse. Maria olhara para cima, sorrira, e tinham-se beijado. Fora um ato instintivo, e Thomas sentira-se chocado perante aquele seu gesto impulsivo, até que ela pusera a mão por trás do pescoço do jovem e o puxara para ela, para um novo beijo. Tinham procurado um canto escondido no meio das muralhas, onde Thomas lançara a sua capa pelo solo, e ali tinham passado o resto da tarde, antes de regressarem a Birgu ainda afogueados de paixão e trepidantes. Era uma ligação perigosa, e ambos o sabiam. Mas nada podiam e nada fariam para contrariar o calor que lhes corria pelas veias.
Isso sucedera vários dias antes do aviso de La Valette. Dias em que Thomas sofrera as penas dos seus deveres quotidianos como se fossem uma eternidade no purgatório. Depois corria para se encontrar com ela no local combinado, um pequeno jardim junto aos portões da cidade. Fora em tempos pertença de um mercador veneziano, que o legara aos ilhéus. O jardim fornecia aos visitantes sombras e a doce fragrância das flores e das ervas. Não havia em toda a ilha local mais propício para um encontro de amantes. E era lá que estavam, à sombra de uns arbustos, quando Stokely surgira e parara a pé firme no caminho, sob o brilho inclemente do Sol. Fitara-os em silêncio enquanto os dois se afastavam um do outro, surpresos. A cicatriz no rosto de Stokely ainda estava lívida, e a pele esticada ao canto da boca desenhava-lhe um ar de permanente escárnio.
— Oliver. — Maria sorrira. — Assustastes-nos.
— Isso vejo eu — ripostara ele, friamente. — É portanto para aqui que tendes fugido a correr, Thomas.
Thomas levantara-se do banco que tinha partilhado com Maria.
— Escutai, este é o nosso segredo. Gostaria de vos pedir que não o contásseis a ninguém.
— Pedi à vontade, maldito — retorquira Stokely, furibundo. — Isto não está certo. Thomas, fizestes um voto de castidade. Como todos os cavaleiros.
Thomas fungara com desprezo.
— Esse voto não tem sentido. Mais atenção lhe é dada na fuga do que na obrigação, como bem sabeis. O Grão-Mestre d’Omedes não se importa nada de fechar os olhos, quando lhe convém.
— Ainda assim, é um voto. O meu dever é relatar isto.
Os dois tinham-se confrontado, e Thomas ficara espantado ao descobrir a cólera e mesmo o ódio que ardia nos olhos do amigo.
— Oliver, não podeis fazer isso. Se não pela nossa amizade, então por cavalheirismo para com Maria.
— Não me dais lições de cavalheirismo! — cuspira Stokely. Thomas rangera os dentes e cerrara os lábios, enquanto as mãos se tinham fechado em punhos. Mas antes que o confronto se tivesse tornado mais sério, sentira que Maria lhe puxava gentilmente o braço. Ela colocara-se entre os dois e sorrira nervosamente a Stokely.
— Não há necessidade disto. Sobretudo entre amigos.
— Não vejo aqui quaisquer amigos meus — respondera Stokely, numa voz esforçada.
Maria franzira o sobrolho.
— Oliver, considero-vos um amigo, e tereis para sempre a minha sincera gratidão por me salvardes dos turcos, tal como sucede com o Thomas.
— E é assim que um amigo mostra a sua gratidão?
— Não vos zangueis comigo. — Ela tentara pegar-lhe na mão, mas Stokely dera um brusco passo atrás. Maria soltara um pequeno grito. — Oliver... É do mais fundo do meu coração que vos falo quando vos chamo meu amigo. Meu querido amigo.
— Então porque traís desta forma a minha amizade? Como fazeis os dois, aliás.
— De que forma vos traí? Alguma vez vos menti? — lançara ela.
Quando ele não respondera, ela baixara a cabeça, contristada.
— Considerava-vos meu benfeitor e amigo, como considero o Thomas. E agora, mesmo que ele seja mais que meu amigo, isso não vos torna menos do que isso. Querido Oliver, compreendei por favor.
— Não me chameis tal coisa! A menos que lhe deis o mesmo significado que eu desejo que tenha.
— Tendes a minha afeição. Peço-vos que não abuseis dela.
Stokely resmungara qualquer coisa inaudível, deitara um último olhar furibundo a Thomas e rodara sobre os calcanhares, afastando-se a passos largos pelo jardim. Thomas ficara a vê-lo afastar-se, acabando por soltar um suspiro.
— Vamos ter problemas. Lembra-te do que te digo.
Maria abanara a cabeça.
— Oliver é um bom amigo, e uma pessoa de bem. Depressa acalmará.
Thomas pensara por momentos e encolhera os ombros.
— Espero que tenhas razão, meu amor.
Assim que proferira tais palavras, sentira o coração dar um pulo, e lançara um olhar rápido a Maria. Ela estava a sorrir-lhe, deliciada, e respondera num sussurro: — E agora sim, sei-o com toda a certeza...
— Thomas, escutais-me?
A mente de Thomas esforçara-se por relembrar o que o seu superior tinha acabado de lhe dizer, mas sem resultados. Abrira a boca, mas não conseguira encontrar palavras para responder. La Valette soltara um silvo exasperado e passara a mão pelo espesso cabelo escuro. Debruçara-se para o jovem.
— Mantende-vos longe daquela mulher. Se não o fizerdes, o infortúnio acabará por cair sobre ambos. Grande infortúnio. Percebeis?
— Sim, senhor.
— Podia pedir-vos que me désseis a vossa palavra em como não voltareis a vê-la, mas não desejo colocar-vos numa posição em que a vossa própria alma ficaria em risco por causa dos mais básicos dos instintos animais que a todos atormentam. — Thomas sentira um momento de fúria ao ouvir caracterizar daquela forma os seus sentimentos. — Portanto, estou a ordenar-vos que vos afasteis de Maria de Venici até que o irmão a leve desta ilha — prosseguira La Valette. — Está entendido? Não vos aproximeis sequer da casa onde ela está instalada.
— Compreendo.
— Ainda bem. — La Valette empertigara-se e soltara um sorriso. — Comunicar-lhe-ei o que foi decidido. E que seja este o fim desta história.
Porque é que ela ainda não veio? Thomas espumava. Ela tinha recebido a sua mensagem, e respondera que se encontraria com ele, apesar do aviso de La Valette. Portanto, o que poderia tê-la feito demorar-se daquela forma? Uma mudança de ideias, ou outra causa? Deus meu, que tenha sido outro o motivo, pediu Thomas em silêncio, antes de se sentir envergonhado por estar a solicitar a intervenção divina para um propósito que sabia ser considerado ignóbil por muitos outros.
Decidiu esperar até que o sino marcasse a primeira hora da madrugada. Se Maria não tivesse chegado até essa altura, depreenderia que ela não viria de todo, e que aquele amor, o primeiro da sua vida, estava condenado.
A noite alongou-se e quando surgiu por fim o grave som do sino, o cavaleiro soltou um lamento profundo e encetou o caminho de regresso. Foi nesse momento que ela emergiu da escuridão e se lançou a correr para ele; sem palavras, abraçaram-se e trocaram um longo beijo, e todos os receios do jovem se desvaneceram.
— O que é que te atrasou? — perguntou por fim.
— Peço-te desculpa, meu amor. A mulher do mercador em cuja casa fui acomodada é uma bruxa desconfiada, e vigia-me como um falcão.
— E com boas razões. — Thomas riu.
Maria deu-lhe um empurrão no peito.
— Não zombes. Tive de esperar até ter a certeza que já não havia movimento na casa antes de me atrever a sair. Vim assim que pude. Não temos muito tempo. Tenho de estar no meu quarto antes que os criados despertem, pela alvorada.
Beijou-o de novo, mas Thomas sentiu nela alguma tensão, pelo que recuou.
— O que se passa? — indagou.
A pele da jovem estava pálida sob o luar quando ela o encarou, e sentiu-a estremecer.
— Thomas, o que nos vai acontecer? Estamos em pecado, não há outra forma de o descrever. Vou casar-me com outro homem, mas ofereci-te o meu coração e o meu corpo. Para que serve tudo isto? O meu irmão chegará a qualquer momento. E depois disso nunca mais nos veremos.
— Devemos portanto aproveitar ao máximo o tempo de que ainda dispomos.
— Já o fizemos, mais do que a prudência aconselharia — lembrou ela, nervosa.
— Ao demónio com a prudência. Há que seguir a nossa natureza, os nossos corações.
Ela abanou a cabeça e falou em tom suave.
— Tolo. Adorado tolo. Não somos mais do que pequenas peças num mecanismo intrincado. Só podemos obedecer aos caprichos de outras forças, muito mais poderosas. Nada podemos para as contrariar.
— Podemos, sim — respondeu Thomas, empolgado. — Podíamos deixar Malta. Vem comigo para Inglaterra, para a minha casa.
— Deixar Malta? Como? Achas que conseguirias roubar um barco com a mesma facilidade com que me roubaste o coração?
— Que me lembre, não foi roubado, e sim entregue com toda a liberdade. — Thomas esfregou o queixo, enquanto imaginava possibilidades. — Podíamos esconder-nos a bordo de um navio mercante. Desembarcávamos em França e prosseguíamos a partir daí. — Falava sem grande ponderação, e até a si mesmo as palavras que proferia soavam tolas e vãs. A falta de Maria seria imediatamente notada, e quando se descobrisse que também ele tinha desaparecido, não era difícil imaginar as consequências. Maria estava à guarda da Ordem. Esta não poderia dar a impressão de ter falhado nesse dever. Uma galera veloz seria enviada em perseguição de qualquer embarcação que tivesse deixado a ilha. Seriam alcançados antes do fim do primeiro dia de viagem, e trazidos de volta para enfrentarem a ira do Grão-Mestre. Sabia-o perfeitamente, mas o coração exigia-lhe que planeasse a fuga com Maria.
— O que podemos fazer? — lançou, irado. — Não posso desistir de ti!
— Podeis, sim. — Uma voz falou no seio das sombras que dominavam o caminho. — Mais depressa do que julgais.
Viraram-se para a origem do som e Thomas avistou um vulto que emergia para o luar mortiço. Um homem, com a mão sobre o punho da espada. Outros homens surgiram por trás dele.
— Oliver... — sussurrou Maria.
Thomas engoliu em seco e tentou soar calmo quando se dirigiu ao seu antigo amigo.
— O que fazeis aqui?
— Thomas, não há necessidade de vos fazerdes passar por parvo, ainda mais do que tendes feito até aqui — ripostou Stokely. — Sabeis perfeitamente qual a razão da minha presença. — Virou-se e fez um gesto aos homens que o acompanhavam. — Prendam-nos a ambos. Levem a senhora de volta às suas acomodações.
Dois homens aproximaram-se, e Thomas avançou, interpondo-se entre eles e Maria, enquanto erguia os punhos.
— Thomas, não! — pediu ela, com urgência na voz. — É tarde. Demasiado tarde para nós.
— A Maria tem razão — interveio Stokely. — É demasiado tarde. Está tudo acabado entre vós. É tempo de conduzir a senhora de volta a quem a alberga...
Thomas não se mexeu, e Maria rodeou-o, pegando-lhe na mão e apertando-a rapidamente, antes de serem separados. Thomas observou com desespero e angústia enquanto as três figuras se afastavam pelo caminho na direção de Birgu. Só então Stokely emitiu uma ordem curta que fez com que os soldados avançassem e prendessem os braços de Thomas por trás das costas. Stokely avançou um passo e abanou a cabeça com ar de gozo.
— Meu caro Thomas, o que será de vós agora?
6
A expressão no rosto do Grão-Mestre, Jean D’Omedes, foi-se tornando cada vez mais sombria enquanto escutava Stokely. Fora acordado pouco depois da segunda hora da noite, e tinha-se exasperado com o seu criado até que a causa para tão inopinado despertar tinha acabado por se impor à sua mente estremunhada. Tinha-se então vestido à pressa e convocado Romegas, o mais antigo dos seus capitães de galeras, e Jean de La Valette, para se reunirem a ele na sala do conselho da Ordem, no coração do forte de St. Ângelo.
A improvisada audiência era iluminada apenas por algumas velas de luz trémula. Thomas estava de pé entre dois guardas armados, perante os três homens que se sentavam por trás de uma longa mesa. Stokely tomara uma posição lateral, e de lá expusera a sua acusação. Quando terminou, instalou-se um silêncio tenso, até que o Grão-Mestre pigarreou e encarou Thomas com ar severo.
— Tendes alguma ideia do mal que fizestes à Ordem? Quando souber do sucedido, a família Venici nunca nos perdoará. Muito menos o duque da Sardenha, a cujo filho estava prometida Maria. A nossa posição já é bastante precária, e a última coisa de que precisamos é de fazer novos inimigos.
Romegas, furioso, lembrou mais pormenores.
— Se nos for negada permissão para reabastecer os navios no porto de Nápoles ou na Sardenha, a nossa capacidade de atacar os corsários e os turcos será fortemente afetada, senhor.
O Grão-Mestre inspirou, indeciso.
— O que vamos nós fazer?
— Senhor, creio que não tenhamos grande escolha — ripostou Romegas. — Teremos de punir Sir Thomas, e de forma exemplar. A família Venici não aceitará nada menos do que isso.
— Esperai. — La Valette rodou ligeiramente no assento, para se dirigir aos outros homens sentados à mesa. — Não há necessidade de tomar decisões drásticas. Ainda há tempo para ocultar este caso a olhos exteriores.
— Pergunto-me se será esse o caso — ponderou o Grão-Mestre, antes de lançar um olhar arguto a Thomas. — Ainda vamos a tempo? Sir Thomas, a honra da senhora está ainda intacta?
Thomas corou, e o olhar de desafio que tinha mantido desmoronou-se, levando-o a contemplar o chão pedregoso em frente à mesa.
— Estou a ver — concluiu d’Omedes, sem mais. — Teremos então de seguir o que propõe Romegas. A punição deve ser rápida e severa. É preciso que todos vejam que a Ordem agiu com decisão contra este apóstata.
— Ele violou um juramento sagrado — lembrou Romegas. — E traiu a honra da Sagrada Igreja. Os Venici hão de exigir a sua cabeça. E desconfio que nada mais será capaz de aplacar a sua ira.
La Valette fungou em sinal de desdém.
— Não estais a sugerir seriamente que executemos Sir Thomas?
Romegas anuiu.
— É precisamente isso que estou a sugerir.
— Por que razão? Por ter sucumbido à fraqueza da carne? Não é razão para enforcar um homem. Por Deus, se assim fosse, mais de metade dos cavaleiros da Ordem já deviam estar pendurados, por manterem amantes ou por violarem as mulheres do inimigo.
O Grão-Mestre ergueu uma mão.
— Peço-vos que vos acalmeis. Não estamos aqui para julgar os outros cavaleiros. Somente Sir Thomas.
— Se não formos capazes de seguir o mesmo padrão em todos os casos, quer-me parecer, senhor, que o nosso código de honra não tem qualquer valor.
O sobrolho do Grão-Mestre franziu-se, revelando a sua ira.
— La Valette, exagerais.
— Não, senhor. Sois vós que avançais para lá do aceitável. — La Valette apontou para Thomas. — Conheço bem este cavaleiro. Combateu ao meu lado nestes dois últimos anos. Nunca vi igual devoção ou coragem ao serviço da Ordem. Sir Thomas é um dos mais promissores cavaleiros da sua geração. Seria pouco ajuizado erradicar tamanho talento precisamente quando temos tanta falta de combatentes válidos. Puni-lo, sim. Talvez uma flagelação pública. Deverá ser o suficiente para lembrar a todos os homens que se devem comportar com honra e dentro das regras da cavalaria. E isso é tudo o que é necessário.
— Não chega — ripostou Romegas. — Se fizermos apenas isso e permitirmos que Sir Thomas permaneça no seio da Ordem, ele tornar-se-á uma permanente lembrança da nossa vergonha e, pior ainda, da nossa leniência e indulgência para com a falta de disciplina e moralidade desregrada. Os nossos jovens cavaleiros precisam de uma lição. Têm de ser recordados da solenidade e importância do juramento que mantém a coesão da Ordem. Que a morte de Sir Thomas sirva para reafirmar os laços que nos unem. Senhor, insto-vos a decretar a sua execução.
La Valette abanou a cabeça.
— Matá-lo será correr o risco de desencorajar outros jovens de valor a juntarem-se à Ordem. O crime de Sir Thomas é apenas o de ser um jovem, e todos conhecemos perfeitamente os poderosos desejos e necessidades que em tempos também nos assaltaram. Se ele for executado por um temporário lapso na sua capacidade de julgamento, então homens do seu calibre, homens de que tanto precisamos, recusarão juntar-se a nós. Há melhores maneiras de o punir — continuou La Valette. — Formas que demonstrarão claramente que não toleraremos indiscrições deste género. Eu digo que devemos expulsar Sir Thomas da Ordem.
— Expulsá-lo? — O Grão-Mestre fez uma careta. — Que punição vem a ser essa?
— Não existe outra mais vergonhosa. — La Valette virou-se para Thomas. — Creio ter avaliado corretamente este homem. Para ele, ser membro da Ordem é a maior honra a que um homem pode aspirar nesta vida. É a Ordem que dá forma e valor à sua existência. Tirem-lhe isso e a sua vida seguirá em vergonha, consciente do tremendo peso da sua perda em cada um dos dias da sua existência. É essa a punição que lhe deve ser imposta. Além disso, vivendo, poderá continuar a colocar o seu talento para a guerra ao serviço da cristandade, algures que não aqui.
Thomas sentiu-se grato pela intervenção de La Valette. Talvez lhe salvasse a vida. Mas as palavras do seu mentor encerravam uma profunda verdade. Na sua mente não havia maior desonra do que ser expulso da Ordem. O que faria depois? A sua honra pouca valor teria aos olhos de todos os que viessem a saber da sua história.
O Grão-Mestre manteve-se em silêncio enquanto pesava o destino a dar ao jovem cavaleiro. Por fim respirou fundo e pronunciou-se.
— Tomei uma decisão. Sir Thomas Barrett será despojado da sua patente e de todos os privilégios que lhe cabiam enquanto membro da Ordem. O seu brasão será retirado dos alojamentos dos cavaleiros ingleses, e ele será expulso da ilha assim que se puder arranjar-lhe lugar num navio. Não poderá jamais regressar, sob pena de morte, e à exceção de uma permissão expressa da Ordem. Será portanto exilado, e nessa condição permanecerá até que a morte o reclame ou até que, por vontade do Grão-Mestre e nas condições a determinar no momento próprio, tal pena seja revogada. — Bateu com os nós dos dedos no tampo da mesa. — Levem o prisioneiro.
— Não! — gritou Thomas. — Deixem-me ver Maria uma última vez.
— Como vos atreveis? — lançou Romegas, furibundo. — Levai daqui esse suíno insolente! Imediatamente.
Thomas sentiu os guardas que o ladeavam a pegarem-lhe nos braços. Lutou enquanto eles o arrastavam para a porta.
— Deixai-me vê-la! Uma última vez. Tenho de a ver. Por piedade!
— Levai-o daqui! — instou d’Omedes.
Thomas continuou a contorcer-se, mas os guardas agarravam-no com força e forçavam-no a aproximar-se da porta.
— O que vai ser dela? O que ides fazer-lhe?
— A vez dela chegará — afirmou o Grão-Mestre. — Também ela será julgada e punida de acordo com a sua falta. Disso podeis ter a certeza.
Thomas sentiu o coração dilacerado, e lançou um olhar de súplica a Stokely enquanto era puxado pelos guardas.
— Oliver, pela amizade que em tempos nos uniu, peço-vos que tomeis conta dela. Sou eu o merecedor da vossa ira, não ela, não Maria. Ela está inocente. Prometei-me que a protegereis!
Stokely manteve-se firme e silencioso, e apenas um leve sorriso de satisfação traiu o que sentia ao ver Thomas ser levado da sala e a porta fechada atrás dele.
7
Barrett Hall, Hertfordshire
13 de dezembro de 1564, Dia de Sta. Luzia
A primeira mensagem chegou ao entardecer, num dia frio e cinzento. Thomas estava sentado à secretária, numa velha cadeira de madeira esculpida, a contemplar a paisagem através das pesadas vidraças. O campo que se estendia à frente do solar estava coberto por um manto de neve. Os reflexos distorcidos do fogo que morria na lareira refulgiam em tons de vermelho e dourado nos vidros da janela. Lá fora imperava uma luz fria e azulada, desconfortável, e ele mirava as suas profundezas sem se mexer ou dar sequer qualquer sinal de vida. Era como se o seu coração estivesse tão frio e imóvel como o mundo exterior, envolto num lençol branco, à espera de um reavivar de cor e crescimento quando a estação mudasse. A primavera regressaria, tão certo como o quotidiano nascer e pôr do sol, mas tal perspetiva pouco conforto lhe oferecia. Os anos tinham passado como um tecido que se tornava gasto e antigo, e pouca atenção lhes dera. O seu espírito há muito que se transformara em pedra — duro, rígido, insensível. Mas apesar de o coração se lhe ter secado e mirrado, ainda se preocupava com o seu bem-estar físico, pelo que comia de forma regrada e praticava exercício todos os dias, fosse qual fosse o tempo ou o seu estado de saúde. Era uma criatura de hábitos.
Ao longo dos anos que tinham decorrido desde que fora banido da Ordem de S. João, Thomas mantivera-se em plena condição física, e tinha posto as suas consideráveis capacidades guerreiras a bom uso. Muito desse tempo passara-o como mercenário, a combater nalguma das intermináveis guerras que assolavam a Europa. A morte, fosse por doença, pela fome ou em consequência de uma batalha, tinha-o acompanhado de perto, mas sempre o poupara, apesar dos ocasionais ferimentos que recebera. Além disso, o estudo e a leitura constantes tinham-lhe mantido a mente também ágil. Estava decidido a não sucumbir ao marasmo que parecia tomar conta da nobreza inglesa, que nada mais fazia do que vegetar indolentemente nos seus jardins ornamentais e nos seus grandes solares. Designavam-se por lordes e cavaleiros, mas nem um em dez seria capaz de assumir a posição que lhe corresponderia na frente de uma batalha.
Aos quarenta e cinco anos, Thomas ainda se movia com facilidade e leveza. Tinha já alguns traços de cinzento nas têmporas e na barba, e o rosto curtido começava a enrugar-se, mas a maior parte das pessoas apercebia-se por instinto de que ele não era um homem com quem se pudesse gozar. Havia ocasiões, que se iam tornando cada vez mais raras, em que ia assistir a algum evento na corte e acabava por atrair a indesejada atenção de algum bêbado emproado, que ouvira uma qualquer história acerca de Sir Thomas e resolvera testar o calmo e discreto cavaleiro. Porém, há muito que Thomas tinha dominado a arte de afastar os tolos de uma forma polida e sem atrair mais atenções. Era bem melhor exibir uma tolerância madura do que alinhar numa confrontação que terminaria inevitavelmente numa humilhação pública de um homem muito mais jovem. Thomas experimentara por si o fel e a vergonha desse género de humilhação na juventude, e aprendera bem o valor da ponderação. Fora uma lição que lhe valera muitas horas a sós, na escuridão, de rosto enfiado numa almofada grosseira, a esconder a sua miséria dos olhares dos outros. Não tinha qualquer desejo de fazer novos inimigos, pelo que permitia que a truculência destes jovens aristocratas ingleses lhe passasse por cima sem mácula, e fazia tudo para a ignorar.
Numa única ocasião tinha-se visto forçado a ferir outrem para se defender. Fora havia mais de dez anos, numa festa em honra do Lorde Mayor de Londres. Thomas vira-se confrontado por um jovem vistoso, alto e corpulento, e demasiado cheio do que julgava serem as suas capacidades marciais. Ainda assim, não escondera o nervosismo ao confrontar Thomas. Os olhos jovens estavam alerta e escancarados, a mão tremia-lhe ligeiramente ao deslizar para o punho da espada. Antes que a lâmina subisse mais do que uns centímetros na sua finamente decorada bainha, já a mão de Thomas se tinha cerrado como uma grilheta de ferro em torno do pulso do jovem, enquanto abanava a cabeça com um sorriso gentil de aviso, antes de se virar e se afastar. Mas o idiota tinha soltado um grito de afronta e prosseguira o movimento para desembainhar a espada. Thomas rodopiara e prendera o braço do jovem à perna com um golpe rápido de uma adaga que parecera surgir do nada, tal a velocidade empregue. O jovem caíra para o solo. Thomas recuperara a lâmina e tratara da ferida antes de apresentar as suas desculpas ao anfitrião e deixar a festa.
Abanou a cabeça perante tal recordação, ainda furioso consigo mesmo por não ter lido corretamente a expressão do jovem, a tempo de evitar o incidente. Tinha já demasiado sangue nas mãos, e não queria provocar mais sofrimento a quem já tanto mal fizera, fossem cristãos ou infiéis. A memória dos seus atos atormentava-o desde que regressara a Inglaterra. Tornara-se por fim apenas outra cicatriz que se apagava com a idade e a familiaridade.
Apertou mais o casaco junto aos ombros e ergueu-se do lugar junto à janela, dirigindo-se à lareira onde colocou cuidadosamente mais dois pedaços de lenha. Contemplou-os por momentos, fascinado com a forma como o vapor se escapava a assobiar pelas fendas da madeira, até que um estalo súbito e uma chuva de fagulhas anunciou a aparição de uma chama brilhante e amarelada no seio das brasas que rebrilhavam por baixo da madeira. Voltou ao lugar e sentou-se de novo, dirigindo o olhar para as sombras que cresciam no exterior.
Por cima dos estalos da lenha, ouviu sons que denunciavam alguma comoção na entrada, e a sua curiosidade foi despertada. Havia apenas um punhado de servos a viverem na mansão. Não tinha necessidade de mais gente. Seguramente não precisava das dúzias de criados que tinham cuidado dos seus pais e irmãos havia muito tempo, na sua infância, ainda antes de o pai lhe ter arranjado um lugar na Ordem. Os seus pais tinham falecido pouco tempo depois de Thomas deixar a Inglaterra, e sobre isso recebera apenas uma carta escrita em tom austero do seu irmão mais velho, Edward, que o informara da doença que os levara a ambos num intervalo de poucos dias. Depois fora Edward a sucumbir num acidente de caça e, no ano seguinte, o jovem Robert morrera no mar, ao serviço de um corsário cuja única presa fora a disenteria que varrera a tripulação, deixando a bordo apenas uma meia dúzia de figuras esqueléticas que mal tinham conseguido regressar a Dartmouth alguns meses depois. Ao regressar a casa, Thomas escutara a história da boca da criada que fora a ama de Robert. Robert tinha sempre sido o favorito da família, de cabelo claro e sempre bem-disposto, com um gosto pela aventura, muito ao contrário de Thomas, calado e sempre encafuado em si mesmo. Mas Thomas nunca tivera inveja do irmão, nem alguma vez desejara alcançar a sua popularidade. Ao invés, limitara-se a amá-lo como todos os outros.
E agora era o único que restava. Vivia sozinho, à parte o criado, John, uma idosa criada, Hannah, e um jovem que cuidava do estábulo e dos seis cavalos que lhe restavam, bem como do picadeiro por trás da mansão. Stephen raramente falava com os outros, e era mais cavalo do que homem, a crer em Hannah. Além destes, o único outro servo da família era o responsável pela propriedade, que vivia em Bishops Stortford e supervisionava os rendeiros que trabalhavam a terra, recolhendo as rendas e entregando-as no banco em nome do seu senhor, a quem enviava um relatório sobre os negócios duas vezes por ano.
A mansão de Hertfordshire era pertença da família desde havia oito gerações. Thomas era o último na linhagem da família. Nunca se casara, e não tinha herdeiros. Quando morresse, a propriedade passaria para a posse de um primo distante, um homem que Thomas nunca conhecera e por quem nada sentia.
De tempos a tempos alguns amigos do pai tinham tentado arranjar-lhe um casamento. Tinha, educada mas insistentemente, declinado todas as perspetivas que lhe eram oferecidas. Algumas dessas mulheres vinham de boas famílias, eram atraentes e até mesmo inteligentes. Mas nenhuma pudera superar o mais ínfimo termo de comparação com Maria, e só serviam para lhe lembrar tudo o que perdera e que nunca poderia recuperar naquela vida. E a natureza da sua separação fora tal que pouca esperança havia de que qualquer poder divino lhes permitisse voltarem a reunir-se na vida eterna. Era no espírito dessa perda perpétua que Thomas vivia a sua vida. Depois de Maria nada mais existia, apenas o excruciante lembrar do toque, do gesto, do sorriso, da expressão, dos fragmentos de momentos em que tinham estado nos braços um do outro.
Durante momentos as memórias assaltaram-no sem quartel, e Thomas viu-se obrigado a abanar a cabeça, furioso, enquanto apertava os punhos e olhava pela janela, sem ver a serenidade silenciosa que se estendia à sua frente. Por fim o momento passou e ele suspirou, a exalação aliviada de alguém que acaba de passar pelas mãos e faca do cirurgião.
Escutou-se um bater à porta do estúdio, e Thomas afastou o olhar da janela.
— Sim?
A tranca subiu e a escura e pesada porta de carvalho abriu-se para o interior, deixando passar John. Este acenou-lhe e fez um gesto na direção do corredor escurecido que levava ao estúdio.
— Senhor, chegou um mensageiro.
— Mensageiro? — Thomas franziu o sobrolho. — Quem é ele?
— Um estrangeiro, senhor — respondeu John, semicerrando os olhos para mostrar a desconfiança que sentia. — Disse que se chamava Philippe de Nanterre.
Thomas manteve-se calado por momentos.
— Não reconheço esse nome. Disse quem o enviou, ou que tipo de mensagem traz?
— Afirmou que a mensagem era destinada apenas aos vossos ouvidos, senhor.
Thomas sentiu um toque de ansiedade. O que estaria um francês a fazer em Inglaterra, na sua casa, se não fosse para relembrar algum aspeto de uma vida passada, já há muito posta de parte?
— Onde está ele? — perguntou, enquanto franzia as sobrancelhas.
— Na entrada, senhor. — John encolheu os ombros — Pareceu-me o melhor.
— Pede-lhe que entre e deixa que se aqueça ao fogo do salão. É um ato cristão oferecer-lhe hospitalidade, especialmente nesta altura do ano.
Não apreciava aquela intrusão. Nos anos mais recentes, poucos o tinham ido visitar por razões sociais, e menos ainda o tinham convidado para alguma festa ou banquete. Normalmente, tratava os visitantes inesperados como uma fonte de irritação, um assunto que podia despachar rapidamente e depois ignorar. Sentia uma tremenda lassitude nos ossos, e pouco lhe agradava ver-se forçado a abandonar o lugar junto ao fogo onde planeava passar a noite. Se aquele homem, Philippe de Nanterre, lhe tinha ido apresentar alguma oferta para prestar serviço militar, partiria desapontado. Thomas já fizera a sua paz com o mundo, e com os seus inimigos, e só queria que o deixassem também em paz. Afagou a barba bem aparada e olhou para o criado.
— Conseguiste adivinhar de que assunto se trata?
— Consegui, de facto. — John sorriu. — Traz-vos uma carta, senhor. Avistei-a na sacola enquanto levava o cavalo para o estábulo. Já lhe foi devolvida com toda a discrição e segurança.
Thomas não evitou sorrir por sua vez.
— Calculo que a sacola estava entreaberta, por singular acaso.
— Senhor, não me podem ser assacadas responsabilidades por a fivela estar mal apertada. Preocupei-me apenas em trazer-vos alguma informação.
— E bem o fizeste. E de que trata a carta que por acaso tiveste nas mãos?
— É um pergaminho, dobrado e selado. No exterior não havia qualquer indicação do remetente.
— Por acaso reconheceste o selo?
— Não, senhor.
— Descreve-mo, então.
— Uma cruz, senhor. Uma cruz com uma dentada em cada ponta.
Thomas sentiu uma espécie de tontura e fechou brevemente os olhos, lutando contra a maré de memórias e imagens inesperadas e indesejadas que ameaçavam subjugá-lo. Ao mesmo tempo havia uma esperança a nascer-lhe no peito, alimentada pela curiosidade. Respirou profundamente antes de voltar a abrir os olhos e contemplar o criado.
— Leva-o para a cozinha e dá-lhe de comer.
— Senhor? — John arregalou os olhos. — Mas trata-se de um estrangeiro. Não podemos confiar nele. Mandá-lo-ia embora sem delongas, se fosse a vós, senhor.
— Ainda bem que não és, então. Depressa reinará a escuridão, e a estrada para Bishops Stortford deve estar gelada e escorregadia. Não seria aceitável enxotá-lo. Nem seguro. Se assim o pretender, diz-lhe que pode passar aqui a noite. Dá-lhe comida e um leito. E diz-lhe que gostaria de falar com ele, daqui a pouco.
John resmungou, mas sabia perfeitamente que não devia contrariar o seu senhor. Thomas sorriu levemente.
— Deve ter feito uma longa jornada para me encontrar. O mínimo que podemos fazer é oferecer-lhe a hospitalidade desta casa. Agora vai, e trata do homem.
John baixou a cabeça e deixou o estúdio, fechando a porta atrás de si. Enquanto os seus passos ecoavam pelo salão revestido a painéis de carvalho, Thomas cofiou a barba, pensativo. Reconhecera perfeitamente a descrição que John fizera do selo. Era o emblema dos Cavaleiros Hospitalários. Ao fim de tantos anos de espera, a Ordem quebrava por fim o seu silêncio.
. . .
Assim que abriu a porta da cozinha e entrou, percebeu que a rotina e isolamento que tinham caracterizado a sua vida nos anos mais recentes estavam terminados. Com as costas para o fogo, o mensageiro estava debruçado sobre uma malga fumegante. Os olhos levantaram-se, curiosos, ao sentir a entrada do senhor da casa, e levantou-se de imediato, enquanto limpava os lábios às costas da mão. Era um sujeito entroncado, e uma cicatriz esbranquiçada cruzava-lhe a testa. O rosto era curtido, e a expressão firme mas educada; ainda assim, Thomas percebeu que se tratava de um jovem, pouco além dos vinte anos de idade. Um soldado, envelhecido antes de tempo, como sucedia com todos os noviços que conseguiam sobreviver aos seus primeiros anos na Ordem. Ainda envergava um manto pesado e escuro, próprio de quem cavalgava pela noite. No ombro notava-se uma cruz branca, suja e manchada, cujos braços se alargavam antes de se dividirem em duas pontas, uma por cada língua falada na Ordem.
— Sir Thomas Barrett? Tenho uma mensagem para vós. Do Grão-Mestre. — O inglês era bom, embora com um sotaque carregado, do Sul de França, calculou. Thomas anuiu e fez um gesto ao visitante, indicando-lhe que se sentasse.
Falou em francês.
— Se não vos importardes, usaremos a língua mais comum na Ordem.
— Com agrado o faço — retorquiu o mensageiro também em francês.
Thomas acenou na direção dos dois servos.
— Eles pouco sabem da minha vida passada. Não gostaria que fossem espalhar boatos na aldeia. As coisas já são difíceis para os que se mantêm fiéis à Igreja de Roma.
— Compreendo.
Thomas virou-se para John.
— Podes deixar-nos. E tu também, Hannah.
Quando a porta se cerrou, Thomas, de pé junto à ponta da mesa, encarou o mensageiro.
— Então?
— O Grão-Mestre...
— Quem é ele? — interrompeu Thomas.
— Quem?
O homem mais jovem fora apanhado de surpresa.
— Peço desculpa — explicou Thomas. — Há já algum tempo que não estou envolvido nos assuntos da Ordem. Não faço ideia de quem a comanda neste momento.
— Oh... — O mensageiro não escondeu a surpresa. — Eu sirvo o Grão-Mestre Jean de La Valette.
— La Valette — assentiu Thomas. — Lembro-me bem dele... Deve estar um velho.
O mensageiro contemplou-o, perplexo, e Thomas sorriu.
— Sempre teve um ar envelhecido. E sempre foi o homem mais duro que alguma vez conheci. Dizei-me, ainda é ele quem lidera a primeira marcha forçada dos noviços?
O mensageiro não reprimiu uma careta.
— Oh, sim. E continua a deixar todos de rastos.
Riram os dois, o que aliviou a tensão que se mantivera até ali. Thomas puxou um banco de debaixo da mesa e sentou-se, enquanto sorria perante a lembrança de um homem de quarenta e tal anos, ágil e magro, a avançar a passo largo à cabeça de uma coluna desfeita de jovens a arfar para se manterem a par do veterano cavaleiro. Mas o sorriso apagou-se quando o olhar se lhe prendeu na cruz impressa na capa do mensageiro.
— Irmão, de onde vindes?
— A minha família tem uma propriedade perto de Nîmes.
— Ah, bem me parecia que reconhecia o vosso sotaque, Philippe de Nanterre. Tendes portanto uma mensagem para mim.
— Sim, senhor.
Thomas sentiu o coração a acelerar no peito.
— Tomaram finalmente uma decisão. Pergunto-me se continuarei excluído da Ordem, ou se finalmente vou ser chamado ao seu seio.
— Senhor, não vos compreendo.
Thomas encarou-o, tentando discernir se o jovem era tolo a ponto de se atrever a troçar dele. Mas a confusão do mensageiro parecia genuína, e Thomas afastou o assunto com um gesto rápido da mão.
— Não importa. Dai-me então a mensagem.
— Sim, senhor. — O jovem lançou a mão à pequena sacola de cabedal que estava sobre as lajes junto às suas botas. Pousou-a sobre as gastas tábuas da mesa e deteve-se, enquanto examinava desconfiado a fivela que fechava a sacola. Deitou o olhar à porta da cozinha e abanou a cabeça antes de abrir o fecho. Procurou no interior até extrair um pergaminho dobrado e fechado com um selo de cera. Passou-o a Thomas, que o recebeu com uma pequena hesitação. Levou-o até junto dos olhos e virou-se de forma a que o fogo da cozinha iluminasse o selo da Ordem e as palavras inscritas junto a ele. Para Sir Thomas Barrett, Cavaleiro da Ordem de S. João. O coração acelerou-lhe quando leu uma segunda vez a parte final do destinatário.
— Como é que me haveis encontrado?
— Sir Oliver Stokely deu-me todas as indicações, senhor.
— Sir Oliver. Por esta altura já deve ocupar uma posição de relevo. Supondo que ainda é o mesmo homem que conheci em tempos.
Philippe anuiu e respondeu à pergunta implícita.
— Sir Oliver é o secretário do Grão-Mestre.
— Ora bem, subiu até ao topo. — Thomas riu. — Para um inglês, quero eu dizer.
— Senhor?
— Não é nada. Acabai de comer. — Thomas voltou a atenção para o pergaminho. Meteu um dedo por baixo da dobra e quebrou o selo. O documento estalou enquanto ele o desdobrava e alisava sobre a mesa. Começou por fim a ler.
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A abertura da mensagem era clara, e o desdém e desprezo de Sir Oliver Stokely eram evidentes desde as primeiras palavras.
Sir Thomas,
Escrevo esta mensagem por solicitação expressa do Grão-Mestre, Jean Parisot de La Valette, uma vez que usamos a mesma língua. Tal como eu, deveis estar consciente de que, em circunstâncias normais, a vossa suspensão da Ordem não poderia ser revogada. Dada a natureza danosa da vossa conduta no episódio ocorrido há cerca de vinte anos, foi sempre minha opinião que a exclusão da Ordem era a mais leve penalidade que vos podia ser imposta. A corrente crise exige, porém, que o Grão-Mestre ponha fim ao vosso exílio. Desta forma, e no respeito do juramento que por vós foi prestado quando vos juntastes à Ordem, é-vos ordenado que vos dirijais a Malta da forma mais expedita que vos for possível, sob pena de eterna desgraça aos olhos dos vossos pares e de Deus.
Creio que não se torna necessário relembrar-vos a profunda vergonha que haveis causado aos vossos pares ingleses. A ameaça que pende correntemente sobre a Ordem e sobre toda a Cristandade oferece-vos uma oportunidade para a redenção, não apenas a vós mas a todos os da mesma nacionalidade. Tendo tido alguma proximidade convosco, não espero que sejais capaz de honrar o vosso compromisso com a Ordem, e considero que, em qualquer caso, a vossa eventual contribuição para a nossa defesa seria de somenos importância. Contudo, as instruções do Grão-Mestre não me deixam alternativa que não seja transmitir-vos esta convocatória, e assim o faço em respeito ao seu desejo.
O homem que vos leva esta mensagem dar-vos-á mais informações sobre a presente situação aqui em Malta. Podereis solicitar-lhe detalhes que a prudência me aconselha a não colocar por escrito.
Vosso,
Sir Oliver Stokely, Cavaleiro de Justiça da Ordem Hospitalária de S. João, neste dia de 6 de novembro.
Thomas levantou o olhar para interpelar o mensageiro.
— Esta carta foi escrita em novembro. Haveis feito uma viagem veloz.
Philippe encolheu os ombros.
— O tempo é um luxo a que a Ordem não se pode permitir.
— Assim parece. Conheceis o conteúdo desta missiva?
— Não, senhor. Os mensageiros foram alertados para os perigos que poderiam encontrar e receberam cartas para distribuir pelos nossos irmãos cavaleiros. Na minha lista, sois o quinto. E ainda tenho mais dois a contactar. Um em York, e o último na Dinamarca. Se Deus o permitir, regressarei a Malta antes da chegada do inimigo.
— Compreendo. Quantos cavaleiros estão a ser convocados?
Philippe olhou-o por momentos, e o desespero tomou conta do seu semblante, antes de responder.
— Todos.
Thomas riu.
— Todos? Vá lá, meu caro jovem, não brinqueis comigo.
— Sir Thomas, como já vos disse, não temos tempo a perder. Daqui a seis meses, um ano no máximo, a Ordem pode já ter sido apagada da face da Terra pelo infiel.
Thomas estava mais do que habituado a jovens com tendência para floreados retóricos, mas resolveu manter a sua opinião para si mesmo, por respeito ao seu convidado.
— Diz a carta que me podeis relatar todos os detalhes. Portanto, desembuchai.
Philippe afastou a malga de sopa.
— Em outubro passado, os nossos espiões informaram que o sultão Solimão tinha convocado uma reunião dos seus conselheiros para discutir a estratégia a empregar na campanha próxima. Embora nenhum espião tenha conseguido estar na reunião, não deixaram de assinalar o elevado número de vizires, almirantes e generais que se apresentaram no palácio. Vinham de todos os cantos do Império Otomano. Havia até enviados de Dragut, e dos outros corsários, e dos piratas da Costa da Barbária. Era evidente que os Turcos estavam a planear algo em grande escala para este ano. Pouco depois começámos a receber relatórios de outros agentes, que mencionavam grandes depósitos de armas, pólvora, e de abastecimentos como cereais e carne salgada. Dezenas e dezenas de novas peças de artilharia foram produzidas nas fundições do sultão, e os melhores artilheiros e engenheiros do Império foram também convocados a Constantinopla. Depois chegaram notícias de que se estava a proceder a concentrações maciças de navios nos portos do Egeu, e que estavam a chegar colunas de soldados a acampamentos próximos. — Philippe debruçou-se ligeiramente sobre a mesa. — É bem evidente. Planeiam atacar a Ordem. Aniquilar-nos.
Thomas sorriu.
— Sim, é evidente que tencionam atacar alguém. Mas porquê Malta? Porquê agora? Decerto que o Solimão tem problemas mais prementes noutras áreas. Temo que o nosso amigo Grão-Mestre se esteja a precipitar um tanto.
— Não. — Philippe bateu com a mão na mesa. — Como vos atreveis a pôr em dúvida a sua palavra?
Thomas encarou-o e falou em tom baixo.
— Cuidado, rapaz. Não tolero que me falem assim, muito menos na minha própria casa.
Por momentos, o mensageiro manteve o olhar aceso, em claro desafio a Thomas. Mas depressa notou o brilho frio e impiedoso nos olhos do homem mais velho, e recordou o pouco que ouvira em Malta sobre a reputação de Sir Thomas. Vacilou, e acabou por baixar o olhar para o tampo da mesa.
— Senhor, peço-vos desculpa. Foi uma longa viagem, e o cansaço afeta-me o julgamento. Não quis de modo algum desrespeitar-vos. O meu único propósito era defender a honra do Grão-Mestre... e a vossa.
Thomas assentiu.
— Compreendo-vos perfeitamente. Agrada-me verificar que La Valette ainda tem o poder de inspirar uma tão feroz devoção nos seus homens. Mas porque está ele tão certo de que Solimão vai desferir um golpe contra a Ordem? E porquê agora, quando está em posição de se lançar sobre a Cristandade em toda a região dos Balcãs? — Franziu o sobrolho. — Não vejo qualquer senso nessa decisão de atacar Malta.
— Senhor, é claro. Desde o começo do seu reinado, há mais de quarenta anos, que Solimão reclama os títulos de “Rei dos reis” e “Senhor supremo da Europa e da Ásia”. Sempre teve em mente subjugar todos os reinos da Cristandade, e impor o Islão a todos os seus súbditos. Agora sente-se a envelhecer, e teme morrer antes de cumprir a sua ambição.
Thomas sorriu.
— Uma bela fantasia. Luto há tempo suficiente para compreender que um plano dessa envergadura não está ao alcance de ninguém, nem sequer do sultão.
— Fantasia ou não, senhor, é esse o seu plano. Os espiões do Grão-Mestre ouviram-no dos lábios do próprio Solimão. Malta é o primeiro passo, e a nossa Ordem o primeiro alvo. Temos sido um espinho cravado na sua carne, e agora parece ter resolvido destruir-nos. — O jovem cavaleiro reordenou os pensamentos e prosseguiu. — A causa imediata da decisão do sultão em tomar Malta tem a ver com o facto de termos aprisionado no verão passado uma das suas mais queridas naus de comércio. O comandante Romegas tomou o navio junto à costa do Egito. Levava a bordo uma senhora de alta estirpe, e o governador turco de Alexandria. No porão seguia uma fortuna em seda e metais preciosos. O valor foi estimado como o equivalente a oitenta mil ducados...
Thomas abanou a cabeça perante a incrível possibilidade de encerrar num navio, por grande que fosse, um tamanho tesouro.
Philippe sorriu brevemente.
— Foi também essa precisamente a minha reação, senhor. E podemos imaginar a reação do sultão ao saber das novidades. Há décadas que a Ordem perturba os negócios de Solimão. Temo-nos tornado cada dia mais ousados, e ele resolveu por fim destruir-nos.
— Por vingança? — Thomas arregalou um olho. — O Solimão de que me lembro nunca permitiria que o coração lhe comandasse a mente.
— Tal não é o caso — afiançou Philippe. — Não é apenas por vingança que ele almeja juntar Malta ao seu vasto império. Depois de Malta cair, a Sicília não tardará. E da Sicília poderá atacar a Itália e conquistar Roma, o coração da nossa fé. Mesmo isso não satisfará o seu apetite. Não antes de cruzar os Alpes e conseguir matar ou escravizar até ao último dos cristãos. — Philippe voltou a debruçar-se e bateu com um dedo no tampo da mesa. — Achais por acaso que esta ilha, por longínqua que seja, está a salvo das mandíbulas trituradoras da sua ambição?
Thomas gargalhou.
— Belas palavras. Creio distinguir nelas a voz de Sir Oliver.
Philippe recostou-se, com um sorriso.
— Bem, eu tentei. Sois realmente tão astuto como a raposa, como me diziam.
— Diziam?
— Os irmãos que se recordam de vós, ao tempo em que servíeis na Ordem.
— Já não deve haver muitos — comentou Thomas.
— Não, de facto.
— E aqueles que se recordam de mim hão de também lembrar a forma como deixei a Ordem.
— É bem verdade, senhor. Mas velhas disputas devem ser postas de lado nesta altura.
Thomas agitou um dedo em frente ao mensageiro.
— É evidente que não compreendeis realmente as divisões que existem entre as diferentes nacionalidades na Ordem. No meu tempo, discutíamos entre nós quase com tanta ferocidade como aquela com que nos lançávamos sobre os infiéis.
— Nesse caso, senhor, creio que não encontrareis grandes mudanças quando chegardes a Malta.
— Chegar a Malta? — Thomas olhou-o com intensidade. — Rapaz, não tenteis presumir aquilo de que nada sabeis. O que vos faz pensar que irei a correr pôr-me ao serviço daqueles que me exilaram? Se foram honestos convosco, Philippe, deveis estar ao corrente das circunstâncias que levaram à minha saída de Malta.
Philippe abanou a cabeça.
— Tudo o que ouvi foi que em tempos haveis estado envolvido num qualquer escândalo. Nada mais me disseram.
— Nesse caso, continuam rígidos e convencidos como sempre. Nada lhes devo.
— Proferistes um juramento. Desse juramento não há forma de sair, senhor... A não ser pela morte.
Thomas olhou para as sombras no canto da cozinha, e lançou um sorriso amargo.
— Dá-me ideia que todos os membros da Ordem se verão dessa forma livres do seu juramento, muito em breve.
— Não estaremos sozinhos, senhor. O Grão-Mestre apelou ao auxílio de todos os reinos cristãos. Se responderem, por certo triunfaremos sobre os infiéis.
A fé pouco sofisticada do jovem encheu de tristeza o veterano cavaleiro. Philippe, e centenas como ele, enfrentariam a morte agarrados àquelas noções idealistas, como se fossem relíquias sagradas pelas quais combater e morrer. Thomas tinha alimentado a esperança de nunca mais se ver arrastado para tamanha tolice, e tentou explicar, pela compaixão que sentia pelo seu hóspede.
— Dizei-me, Philippe, desde que haveis deixado Malta para vir até aqui, não haveis por acaso passado por algum reino cristão envolvido numa qualquer espécie de conflito com o seu vizinho? Não conheceis a sorte que milhares de católicos sofreram neste país? Enquanto nós, cristãos, estivermos tão empenhados em nos destruirmos uns aos outros, que hipóteses há de nos juntarmos para resistir ao avanço dos infiéis? Não haverá mais cruzadas. Esquecemos a única e verdadeira Igreja do Senhor, e Solimão é o nosso castigo. O nosso julgamento.
Philippe abriu a boca para protestar, mas Thomas ergueu uma mão para o silenciar, e depois de uma breve pausa prosseguiu em tom calmo e resignado.
— Voltai para junto do Grão-Mestre, e dizei-lhe que eu irei. Não para morrer por aqueles que me exilaram. Não para morrer pela fé. Mas irei, por razões que só a mim dizem respeito. — Levantou-se — Agora, vou deitar-me. O meu servo dar-vos-á acomodações para a noite. Calculo que queirais partir para York logo pela alvorada.
Philippe assentiu, e quando Thomas se dirigiu para a porta, o jovem mensageiro fez menção de falar.
— Sir Thomas. Tendes a minha gratidão, e a de todos os nossos irmãos em Malta.
Thomas deteve-se à porta, mas não se voltou. Ao invés, os ombros descaíram-lhe, e lançou um profundo suspiro.
— Gratidão? Nada tenho aqui que me prenda, e gostaria de rever Malta antes de partir. É tudo.
Saiu da cozinha e viu John a levantar-se de um banco no corredor. Fez um gesto na direção da cozinha ao passar pelo criado.
— Trata dele. Tenciona partir antes de eu me levantar amanhã de manhã.
— Sim, senhor.
Thomas foi-se deitar de imediato, enquanto as memórias, reavivadas pelo mensageiro, rodopiavam na sua mente. Hannah tinha colocado uma tábua aquecida entre as mantas, mas, mesmo com essa ajuda, não conseguiu acomodar-se, e o sono não veio, afugentado que era por uma sucessão de imagens e emoções que não se deixavam banir da cabeça. Por fim desistiu, e ficou a contemplar o teto do quarto, e a escutar o gemer do vento na lareira. A perspetiva de um regresso a Malta era agridoce. Era o local onde em tempos estivera certo de pertencer. Era lá que tinha amado Maria. Talvez até, por alguma espécie de milagre, ela vivesse ainda, e albergasse aquele mesmo amor que nunca o deixara em todos os anos de separação. Amaldiçoou-se por ser um velho tonto, virou-se de lado e conseguiu por fim adormecer.
Quando acordou, o vento tinha morrido e um sol radioso inundava-lhe o quarto por uma fresta nas cortinas. O lume na fogueira tinha-se apagado também, havia muitas horas, e nos vidros das janelas tinha-se acumulado gelo. Ergueu-se rigidamente e sentou-se na borda da cama por momentos, enquanto relembrava os acontecimentos da noite anterior. Estava convencido da justeza da sua decisão. De qualquer forma, àquela hora o mensageiro já teria partido, e levaria a sua resposta até Malta. Era demasiado tarde para mudar de ideias. Teria portanto de se preparar mais uma vez para a guerra. Com essa ideia em mente, vestiu-se e dirigiu-se ao estúdio, onde John lhe levaria o pequeno-almoço assim que escutasse o som dos pesados passos do seu senhor a descer as escadas.
John confirmou-lhe que o jovem cavaleiro tinha partido à primeira luz do dia, com um pequeno cesto de pastéis e queijo que lhe dariam para o dia de viagem.
Depois de uma malga de papa, Thomas envergou uma espessa capa com capuz e dirigiu-se a pé pelos campos até à quinta de um dos seus arrendatários. Havia árvores a abater num dos bosques que cresciam na propriedade, e tinha combinado juntar-se ao camponês e aos seus filhos para as derrubar. Era trabalho pesado, que podia perfeitamente ter evitado, mas ele apreciava o exercício e a sensação agradável de satisfação que sentiu foi imensa quando, por volta do meio-dia, contemplou a pilha de lenha que tinha sido reunida. Depois de se despedir dos outros, Thomas regressou ao solar, livre dos pensamentos que lhe tinham perturbado a noite. Decidiu que partiria para Malta dentro de uma semana.
Foi nesse momento que chegou o segundo mensageiro.
O cavaleiro atravessava o arco da entrada no preciso instante em que Thomas sacudia a neve das botas junto à entrada principal do solar. O som dos cascos da montada era abafado pela neve, de forma que quase não houve aviso da sua chegada. Thomas levantou a vista ao pressentir movimento, e viu o homem a puxar pelas rédeas para levar o cavalo a atravessar o pátio e ir ter com ele. Envergava um manto azul, e o género de calções que se tinham tornado moda em Londres. O azul do uniforme indicava que era um servidor de uma casa poderosa. Ao aproximar-se, ergueu uma mão enluvada e apontou para Thomas.
— Tu aí! Uma palavra.
Thomas endireitou-se e cruzou os braços, enquanto o cavalo atravessava o pátio a trote, lançando para o ar uma pequena chuva de cristais brancos de neve a cada passada. Deteve-se a uma dúzia de metros de Thomas, e plumas de vapor saíram das narinas do animal.
— Podes dizer-me se isto é Barrett Hall?
— É.
O homem suspirou, aliviado, e saltou da sela, aterrando sobre a neve sem alarde, ainda com as rédeas na mão. Lançou um sorriso ao interlocutor.
— Saí de Londres pela madrugada. O dia todo a cavalgar. Depois de Bishops Stortford meti-me por um caminho esquecido. Levei horas a dar com isto. Quase ninguém com quem me cruzei sabia sequer que isto existia.
— Gostamos de nos manter longe da confusão — admitiu Thomas. — Quanto menos visitantes, melhor. — Não empregou um tom hostil, mas o semblante do cavaleiro endureceu ao presumir que estava de alguma forma a ser menosprezado, e quando voltou a falar, foi em tom arrogante.
— Homem, o teu senhor está? Avisaram-me que ele raramente se afasta da casa nos últimos anos.
— É verdade — concordou Thomas.
— E está em casa? — indagou o homem, apressado. — Não tenho tempo para jogos. Tenho de regressar a Londres assim que tiver cumprido o que me foi ordenado.
— O senhor ainda não entrou. O que desejais dele?
— Algo que lhe devo dizer em pessoa, que não pode ser transmitido por um criado.
— Então dizei-o.
A expressão de irritação do outro aumentou por um instante, até que se apercebeu do que tinha ouvido, e mudou instantaneamente de atitude, baixando a cabeça.
— Senhor, as minhas desculpas. Não fazia ideia.
— Nesse caso, porque é que partistes do princípio de que vos dirigíeis a alguém de estatuto inferior?
O homem levantou a cabeça e fez um gesto vago.
— Senhor, as vossas vestes não são as típicas de um cavalheiro. Pensei...
— Pensastes? Presumistes? Julgais sempre um homem pela sua aparência?
— Senhor, eu... eu... eu posso apenas pedir-vos desculpa.
Thomas olhou-o com intensidade, até que o outro baixou a vista para o chão. O homem tinha cometido um erro honesto, e sem má vontade, mas ainda assim havia algo que irritava Thomas. Era um exemplo típico da sociedade que girava em torno da corte real e da gente menor que se agarrava à periferia desse círculo. A aparência era tudo, e a substância do caráter de cada um podia ser ignorada. Thomas sentia tudo aquilo como uma ofensa ao seu modo de ver os homens e o mundo, e a isso juntava-se um ressentimento amargo por ter visto a sua privacidade invadida nada menos de duas vezes em menos de um dia.
— Muito bem, que novas me trazeis?
— Uma convocatória, senhor, de facto. — O homem voltou a levantar a vista, e usou um tom respeitoso. — Do meu amo, Sir Robert Cecil. Deseja que o visiteis na sua casa, em Drury Lane, em Londres, amanhã, às seis horas em ponto.
— Deseja? E se eu disser que não?
O queixo do homem descaiu, como se não tivesse compreendido, como se não pudesse sequer ser considerada a possibilidade de algo que não fosse a imediata aquiescência à vontade do seu senhor. Engoliu nervosamente antes de responder.
— Não me foram dadas quaisquer instruções para a eventualidade da vossa recusa, senhor.
— Uma pena. — Thomas encolheu os ombros. — Nesse caso, o que me trazeis é uma ordem. E, nesse caso, sou obrigado a comparecer. Muito bem, dizei ao vosso amo que lá estarei à hora marcada.
— Sim, senhor.
Thomas contemplou-o por momentos. O homem tinha passado mais de metade do dia na sela, e não conseguiria regressar a Londres antes de escurecer. Os portões da cidade já estariam fechados, e o mais provável seria ver-se obrigado a procurar um alojamento para a noite no exterior das muralhas. Seria um gesto caridoso oferecer-lhe descanso e alimento antes de ele partir, como fizera com o francês. Por outro lado, o seu hóspede anterior não tinha sido tão impertinente. Por isso, resolveu não se mexer da frente da porta.
— Já tenho a vossa mensagem, podeis deixar-me.
— Sim, senhor. — O criado assentiu, claramente feliz por o deixar. Apoiou uma mão na sela e colocou um pé no estribo. Tentou subir, mas o frio tinha-lhe afetado as articulações, e voltou a escorregar para o solo. Com um grunhido de irritação, Thomas avançou e ajudou o homem a subir para a sela.
— Obrigado, senhor.
Thomas acenou, e o homem pegou nas rédeas e fez a montada rodar, colocando-a depois a trote enquanto atravessava o pátio e saía pelo arco da entrada, o som dos cascos a desvanecer-se rapidamente. Thomas ficou a olhar para o arco por momentos, até que se voltou e entrou em casa, enquanto chamava.
— John! John! Caramba, homem! Onde é que te meteste?
— Aqui estou, senhor! — veio a resposta da cozinha. A porta abriu-se e o velho servidor surgiu, ainda a recolher migalhas do queixo.
— Amanhã, vou precisar das sacolas, do manto, botas e espada. Trata de os limpar e prepara-os para eu os pôr logo pela manhã. Vou a Londres.
— Sim, senhor. — John inclinou ligeiramente a cabeça. — Posso perguntar-vos quanto tempo estareis longe?
— Quem sabe? — Thomas sorriu sem vontade. — Ao que parece, pouco terei a dizer sobre a data do meu regresso.
9
Londres
A escuridão crescia à medida que Thomas se aproximava da capital, que à distância de alguns quilómetros fazia lembrar uma nódoa escura a estender-se pela paisagem. O piso da Grande Estrada do Norte tinha congelado, e os profundos sulcos que a cruzavam tinham obrigado Thomas a seguir a passo no seu cavalo, atrás do carro de um mercador de lãs, e metido numa longa fila de vagões, cavaleiros e peões que se dirigiam a Londres antes que os portões da cidade se encerrassem por aquela noite. Thomas deixara-se ir tranquilamente ao passo da coluna, ao contrário dos correios montados que tinham passado por ele durante o dia. De ambos os lados da neve espezinhada e dos traços de terra congelada que marcavam a estrada, estendia-se sobre campos e bosques um manto branco. O céu estava carregado, e desde o meio-dia que esvoaçavam de vez em quando alguns flocos; a queda de um nevão parecia iminente. Das chaminés de quintas isoladas e de aldeolas que se espalhavam pela paisagem subiam finos rolos de fumo. Aqui e além, avistava-se, através de uma janela, o brilho rosado de um fogo, que não deixava de criar em todos os viajantes o desejo de encontrar o conforto de uma lareira quente.
Apesar do longo dia de viagem e do frio que se lhe entranhara na carne até o fazer encolher-se sob o pesado manto, os pensamentos de Thomas estavam bem longe dali. Dedicava ao que o rodeava uma pequena parcela de atenção, não mais do que a necessária para guiar a montada e estar consciente do que se passava em seu redor. O que o preocupava realmente era a razão para a convocatória que recebera, para uma visita à casa de Sir Robert Cecil, o secretário de Estado da rainha. Thomas sabia perfeitamente que Cecil fora um firme apoiante de Isabel nos difíceis anos que esta passara antes de subir ao trono. Era, como ela, um devoto protestante, e a principal força por trás dos esforços para suprimir a influência dos Católicos em Inglaterra. Detinha um enorme poder e era o mais importante estadista no país, pelo que se punha a questão: o que quereria ele de um obscuro cavaleiro que não tinha posto o pé em Londres nos últimos três anos?
Desde que regressara das guerras na Europa, Thomas optara por permanecer na sua pequena propriedade, a supervisionar as culturas e o crescimento dos seus rebanhos, e a tratar de assegurar condições de vida dignas para os seus arrendatários. Nas raras visitas que fizera a Londres tinha-se apresentado na corte em muito poucas ocasiões, e sempre tivera o cuidado de não chamar a atenção sobre si mesmo, com uma exceção, ocorrida ainda durante o reinado de Maria, a rainha católica. Mesmo nessa ocasião, em que derramara algum sangue, a que corresponderia o castigo de amputação de uma mão, não tinha tentado diminuir a severidade da punição chamando ao caso a sua filiação religiosa. Em todo o caso, acabara por ter apenas de pagar uma pequena multa, o que alguns poderiam ter atribuído a alguma leniência de Maria para com um correligionário católico. Custava-lhe a crer que esta chamada, tantos anos depois, pudesse ter algo a ver com uma nova apreciação de tão velho assunto.
Não se tinha juntado à causa dos que advogavam os direitos dos Católicos em público, nem dos que conspiravam em privado. Era um jogo muito perigoso. Os espiões de Sir Robert Cecil eram numerosos, e as recompensas para quem denunciasse católicos eram tentadoras para quem quisesse ajustar velhas contas ou para quem se deixasse levar pela ganância. Havia alguns casos de aristocratas cuja fé fora usada como pretexto para o confisco das suas propriedades, e até para a sua condenação como traidores. Muitos homens tinham conseguido grandes fortunas por perseguirem católicos, tal como muitos tinham ficado ricos nos tempos da dissolução dos mosteiros pelo rei Henrique. Todos esses homens apoiavam agora Isabel, pelo menos enquanto ela lhes garantisse os direitos sobre as suas recém-adquiridas fortunas.
Era-lhe difícil imaginar que as suas modestas posses pudessem ter atraído a atenção de Cecil ou de algum dos da sua fação. O único motivo que Robert Cecil podia ter para solicitar a sua presença em Londres só podia estar relacionado com a visita daquele jovem cavaleiro da Ordem. Thomas sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Se fosse essa a razão, tinha-se andado a enganar a si mesmo ao pensar que a sua discreta permanência nos confins da paisagem inglesa o tinha posto a coberto do escrutínio. Confirmava-se assim que muito pouco escapava aos penetrantes olhos de Cecil e dos seus homens, refletiu com uma ponta de irritação, enquanto murmurava uma imprecação contra os cavaleiros que o tinham forçado a deixar a Ordem. Muito depois de se ter resignado a passar os dias que lhe restavam numa vida calma, tinham-se dado ao trabalho de lhe pedir auxílio. E assim que a crise tivesse passado e se sentissem capazes de dispensar os seus serviços, voltariam sem dúvida a escorraçá-lo.
O repicar de um sino distante, a anunciar a quarta hora da tarde, interrompeu-lhe o curso do pensamento. Espreguiçou-se na sela e conduziu o cavalo para a berma da estrada para apreciar o caminho que ainda tinha a percorrer. A coluna desordenada de viajantes e vagões tinha acabado de passar por uma crista de onde se conseguia avistar a capital sob o seu tapete de espesso fumo. Àquela distância, a neve acumulada nos telhados já parecia suja. A pouco menos de um quilómetro, via-se o grande mercado de Smithfield, para onde os mercadores de carne de todo o país conduziam os seus rebanhos, para venda e abate. A curta distância dos redis e filas de estábulos, havia um espaço aberto, onde se avistavam vários postes de madeira queimada erguendo-se sobre pilhas de cinza fina. Um desses montes parecia fresco, já que ainda fumegava e derretia a neve que tombava sobre ele.
Sabia perfeitamente que era ali que os hereges eram executados, queimados vivos. Havia cerca de dez anos, tinha estado no meio de uma multidão que testemunhara a execução de três sacerdotes protestantes que tinham desafiado os éditos da rainha Maria, ao pregarem em público depois de as suas licenças para tal terem sido revogadas. A rainha obrigara toda a corte a assistir ao espetáculo, que apreciara com satisfação evidente sentada num cadeirão almofadado e finamente decorado, colocado num estrado erigido para o evento. Thomas lembrava-se bem dos gritos lancinantes dos homens. Os pregadores tinham-se contorcido por entre as labaredas que se tinham espalhado rapidamente pelos feixes de lenha acumulados sob os pequenos apoios para os pés. Em poucos minutos os corpos tinham ficado envoltos num turbilhão de brilhantes chamas amarelas e vermelhas, que não os escondiam por completo — figuras enegrecidas ainda a debaterem-se contra as correntes que os prendiam, ao mesmo tempo que os seus gritos se ouviam por cima do crepitar da lenha. A lembrança, ainda bem viva, gelou-lhe o coração. Desviou o olhar dos postes e deu um estalo com a língua para que o cavalo acelerasse o passo, recomeçando a trotar.
Para lá de Smithfield avistava-se a muralha da cidade. Em tempos fora uma formidável linha de defesa, mas também já havia muito que era negligenciada. Havia brechas onde secções inteiras tinham ruído, e o fosso que em tempos rodeara toda a cidade estava cheio com montes de lixo e desperdício humano. Um fedor intenso dominava o ar frio quando Thomas passou sob o amplo arco de Newgate e entrou em Londres. Os sons da grande cidade assaltaram-lhe imediatamente os ouvidos, vindos de todos os lados. Gritos de vendedores ambulantes, choros de crianças, berros daqueles que se esforçavam por se fazer ouvir sobre o ruído ambiente, tudo o atingia, bem como o odor do pão a cozer, de carne cozinhada e de carne rançosa, e o omnipresente cheiro do esgoto. As principais vias de Londres pareciam à beira do esmagamento pelos edifícios que se empilhavam nas suas margens, debruçando-se sobre elas, já que cada andar se projetava sobre o que lhe ficava debaixo, deixando as ruas envoltas numa penumbra que abatia o espírito de Thomas.
Foi com algum alívio que, quando a luz já morria por trás das linhas abruptas dos telhados e mergulhava toda a cidade nas sombras, virou para uma avenida larga em Holborn. Thomas fez por ignorar os vendilhões que corriam ao lado do cavalo, tentando interessá-lo em petiscos e lenços, mas manteve um olho atento sobre as sacolas que seguiam à garupa do cavalo, para garantir que nenhum meliante tentava aliviá-lo das suas posses. Por fim avistou a entrada para Drury Lane e conduziu a montada para uma rua mais calma. As lojas de ambos os lados tinham bom aspeto, e os letreiros bem cuidados anunciavam uma variedade de bens de preço elevado: tecidos finos, vinhos e queijos, talheres e copos importados da Europa. Por entre as lojas viam-se grandes casas, cuja dimensão e opulência aumentava à medida que a rua se aproximava de Aldwych e do Tamisa, que corria logo atrás.
Quando a última luz do dia se apagava, Thomas deteve um rapaz que corria a cumprir um recado, com um pequeno pacote firmemente preso debaixo do braço. Perguntou-lhe onde ficava a casa de Cecil, e foi-lhe indicada uma propriedade imponente numa esquina onde Drury Lane cruzava outra rua. A fachada dava para Drury Lane e mostrava madeiras ricamente trabalhadas, conjugadas com padrões geométricos desenhados por tijolos de fino acabamento. Ao lado, um portão dava acesso a um pequeno pátio ligado aos estábulos, mas um par de criados de aspeto poderoso impediu-lhe a passagem até ele anunciar o encontro que tinha marcado com o dono da casa, depois de desmontar e passar as rédeas do cavalo a um pajem. Foi conduzido por uma porta nas traseiras da casa e entregue aos cuidados de um dos criados da casa, que envergava um cuidado uniforme do mesmo azul que o mensageiro que o tinha visitado em casa na véspera. Mais uma vez, Thomas teve de explicar a razão da sua visita, e foi então conduzido ao átrio da casa, por umas escadarias acima e depois por um corredor iluminado por velas que revelavam pinturas penduradas nas paredes cobertas por painéis de madeira; quase todas representavam cenas de caça ou algum membro da família ostentando um ar severo. Um único quadro mostrava uma cena religiosa, reparou Thomas antes de ser conduzido a uma pequena sala de espera com bancos de madeira encostados às paredes, iluminada e aquecida por uma lareira. Um jovem de aspeto esguio ocupava-se a alimentar o fogo mortiço com alguns pedaços de lenha. Olhou por cima do ombro ao notar a chegada de Thomas. Tinha feições morenas e um aspeto delicado; os olhos eram castanhos e davam-lhe ao semblante um aspeto penetrante que Thomas achou um tanto perturbador.
— Informarei o secretário do amo da vossa chegada, senhor — anunciou o criado. — Desejais algum tipo de refresco enquanto aguardais?
— Apreciaria com gratidão uma taça de hidromel aquecido.
— Hidromel? — As sobrancelhas do criado subiram ligeiramente, e Thomas não evitou algum gozo perante a incapacidade que o homem revelava em colocá-lo nalgum dos nichos da hierarquia social vigente em Londres. As roupas que envergava eram de bom corte mas não tinham quaisquer adornos, e o cabelo bem aparado, como a barba, não exibia qualquer pretensão de seguir o estilo dos cavalheiros mais atentos à moda. Thomas passaria bem por um comerciante abonado, ou por um pequeno proprietário rural, mas o facto de ter uma reunião agendada com Sir Robert Cecil apontava para um estatuto mais elevado, pelo que o homem acabou por inclinar a cabeça. — Como pretendeis, senhor. Hidromel será.
Fechou a porta ao sair, enquanto o homem junto à lareira observava Thomas com olhos que pareciam tudo perscrutar, antes de fazer um aceno respeitoso e voltar a concentrar-se no atiçar do lume. Quando deu a tarefa por concluída, esfregou as mãos e sentou-se num banco próximo da lareira. Ao seu lado ficava a outra porta da sala. Thomas tirou o manto, as luvas e o chapéu, e pousou-os ao seu lado no banco onde se tinha sentado, do outro lado da sala. Por momentos limitou-se a gozar a atmosfera sossegada e deixou que o calor penetrasse gradualmente pelas roupas, até afastar por completo o frio que o tinha dominado.
Por fim levantou a vista para examinar o jovem que com ele partilhava o compartimento; foi com surpresa que percebeu que o outro também o contemplava com atenção. Longe de se sentir desconfortável ao perceber que tinha sido descoberto numa evidente análise e de baixar a vista, o jovem continuou a estudá-lo de uma forma que Thomas considerou um tanto grosseira.
— Conheço-vos? — perguntou.
— Não.
— E vós a mim, conheceis-me?
— É a primeira vez que vos vejo. — A voz era culta, mas Thomas não conseguia perceber de onde era aquele sotaque. Mas antes que pudesse continuar a conversa, a porta junto ao jovem abriu-se e um escrivão de ar frágil numa farda azul entrou no compartimento. Limpou a garganta e olhou para Thomas.
— Sir Thomas Barrett?
— Sim.
— O amo vai receber-vos agora.
— Já? Não era suposto falarmos antes das seis.
— Ele está agora à vossa espera, senhor.
— Muito bem. — Thomas levantou-se do banco e deitou uma última olhadela ao jovem, que em resposta se limitou a inclinar ligeiramente a cabeça.
A porta abria-se para um pequeno quarto com uma janela que dava para o pátio traseiro da casa. Por baixo dessa abertura estavam uma mesa e um banco, ladeados por baús repletos de documentos. O secretário adiantou-se a Thomas e bateu levemente a uma porta na outra extremidade do escritório. Depois de uma breve pausa, levou a mão ao ferrolho e abriu a porta, dando um passo para o interior.
— Senhor, Sir Thomas.
— Fá-lo entrar, por obséquio — respondeu uma voz profunda.
O homem recuou e fez um gesto a Thomas, indicando-lhe que entrasse. O gabinete da casa do secretário de Estado era proporcional à importância do seu proprietário. A sala estendia-se do pátio das traseiras até à rua principal, para onde davam uma série de janelas vidradas. Nas paredes alinhavam-se estantes repletas, mais livros do que Thomas alguma vez vira juntos. Calculou que deviam estar ali uns quatrocentos a quinhentos exemplares. Uma biblioteca privada verdadeiramente esplêndida, concluiu com inveja mal escondida. Havia duas lareiras, uma a cada ponta da sala, e cadeiras espalhadas entre as estantes, as suficientes para acolher uns trinta a quarenta convidados. Entre as duas lareiras estava posicionada uma grande secretária, sobre a qual se via um tabuleiro de madeira que acolhia uma pilha de documentos. Ao seu lado, cuidadosamente dispostos, estavam dois tinteiros e um punhado de penas. Por trás da mesa sentava-se um homem encorpado, com uma veste de seda. O cabelo era aparado de forma precisa em torno do escalpe, e a barba formava uma ponta declarada sobre um princípio de duplo queixo. Aparentava ser alguns anos mais novo do que Thomas. No compartimento só estava outra pessoa, um homem magro e de vestes negras que chegavam quase ao chão. Estava de pé junto a um dos fogos, a aquecer as costas. Os dois olharam para Thomas rapidamente, até que o homem por trás da secretária lhe dirigiu um gesto impaciente.
— Vinde, Sir Thomas, sentai-vos. Aqui. — Indicou uma das cadeiras acolchoadas dispostas em arco do outro lado da secretária. — Vós também, meu bom Francis.
Thomas fez o que lhe era indicado e escolheu para se sentar uma cadeira no meio da sala, de forma a que o outro tivesse de se sentar noutro ponto, longe da posição que implicitamente indicava maior importância. Depois de se acomodarem, Sir Robert debruçou-se para a frente e fixou um olhar imperturbável em Thomas. O semblante indicava alguma boa disposição, e o tom de voz era agradável.
— Espero que a vossa jornada de hoje não vos tenha causado incómodo?
— Correu tudo bem, senhor. As estradas são seguras, e a neve era ligeira. Andei bem e depressa.
— Ao que vejo. Chegastes a Londres mais depressa do que eu esperava.
Thomas sorriu levemente.
— Alguém que é convocado pelo secretário de Estado não fica a desperdiçar tempo com inutilidades, Sir Robert. E portanto cá estou, ao vosso inteiro dispor.
— De facto assim é, e até me atrevo a dizer que a razão por que vos mandei chamar aqui ocupa o lugar principal dos vossos pensamentos.
— Claro que sim.
— Deixai-me então informar-vos de que a vossa presença neste local se deve ao caráter delicado da tarefa que tenho ideia de vos confiar. Apesar de a nossa abençoada soberana estar no trono há cinco anos, existem ainda muitos que veem a sua ascensão ao trono com evidente má vontade, e não apenas devido ao seu comprometimento com a religião protestante. Suponho que o nome de John Knox vos seja familiar?
— Já o ouvi, sim.
— E sabeis sem dúvida como ele vocifera contra o próprio princípio de uma mulher poder ascender ao trono. Talvez tenhais até lido algum dos panfletos que ele lançou acerca disso.
— Teria de ser muito tolo para o fazer, Sir Robert. Esses panfletos foram banidos. Se bem me lembro, ser encontrado na posse de um deles é uma ofensa capital.
— Assim é. Mas estais com certeza familiarizado com as suas teorias.
— Já ouvi falar delas, sim — retorquiu Thomas com todo o cuidado, consciente de que o outro homem na sala o observava, sem dúvida para poder testemunhar futuramente. — Embora não me recorde quem é que as mencionou, para falar com franqueza.
— Naturalmente. — Sir Robert sorriu. — E de pouco serviria que eu vos pressionasse quanto a este assunto, e ainda menos utilidade teria sujeitar-vos a algum sofrimento para reavivar essa memória quanto aos nomes envolvidos nessa conversa. — Gargalhou levemente, como que para sublinhar a irrelevância do comentário, mas Thomas compreendeu perfeitamente a velada ameaça de o submeter a tortura. Estava completamente à mercê daquele homem, fossem quais fossem as suas opiniões acerca de Knox ou de outro qualquer dos que se opunham à rainha Isabel. Como católico, enfrentava uma dupla ameaça. Devolveu o olhar de Sir Robert sem demonstrar qualquer emoção. Instalou-se um silêncio desconfortável, até que Sir Robert se recostou levemente e ergueu as mãos, como se se lembrasse de alguma coisa.
— Ah! Perdão, esqueço as minhas maneiras. Devia ter-vos apresentado um ao outro. Sir Thomas, é com prazer que vos apresento Sir Francis Walsingham, meu companheiro em muitas das tarefas que desempenho ao serviço da nossa soberana. Confio inteiramente nele, sem qualquer reserva — acrescentou, com ênfase.
Thomas virou-se para o outro e assentiu, à laia de cumprimento.
— Walsingham.
O homem encarou-o e respondeu com frieza.
— É um prazer conhecer-vos, Sir Thomas.
— Tendes de perdoar Sir Francis — lançou o anfitrião, com nova gargalhada. — Não tem qualquer amor pela Igreja de Roma, e por vezes isso leva-o a esquecer a etiqueta. Mas deixemo-nos de dançar à volta da questão. Sir Thomas, asseguro-vos que não foi para vos acusar de heresia que vos pedi que aqui viésseis. Tenho uma missão para vos confiar. Que será também uma oportunidade para servirdes a vossa soberana e o vosso país, e que poderá desfazer qualquer dúvida que possa existir quanto à vossa lealdade para com eles.
— Não vejo como pode a minha lealdade a qualquer um deles estar em dúvida — contrariou Thomas, tentando adotar uma fórmula conciliadora.
— Evidentemente que não. O vosso coração é leal, e eu não vos teria convocado se tivesse alguma dúvida, por menor que fosse. Aceitemos então esse facto. Concordais? — Lançou um olhar de aviso a Walsingham. Este anuiu.
— Muito bem. O que nos leva à primeira questão que gostaria de vos pôr, Sir Thomas. Creio bem que há duas noites fostes visitado por um cavaleiro francês, um membro da mui seleta Ordem dos Cavaleiros Hospitalários de S. João. — Virou-se para Walsingham. — É esse o título que empregam, não é?
— Mais ou menos.
Os olhos de Cecil fixaram-se em Thomas, e as rugas de bom humor que se espalhavam a partir dos cantos dos olhos alisaram-se, deixando apenas um olhar frio e insensível.
— Quereis ter a bondade de nos informar da razão por que um cavaleiro francês com laços a uma ordem militar católica se deu ao trabalho de atravessar toda a Europa para vos visitar, Sir Thomas?
10
Portanto, e tal como suspeitara já, era a visita de Philippe de Nanterre a razão de ter sido chamado ali, pensou Thomas. Durante vinte anos fizera tudo o que pudera para evitar atenção ou afastar qualquer suspeita, e agora tudo se esfumara, graças ao jovem cavaleiro e aos seus superiores em Malta. O sentimento que o inundava era mais de ressentimento que de receio, e respondeu a Cecil sem desviar o olhar.
— Veio trazer-me uma carta.
— Uma carta? — inquiriu Walsingham. — Onde está?
— Na minha casa. No meu estúdio.
— E o que dizia ela?
— A carta era-me dirigida a mim, Sir Francis. Não vejo razão para partilhar convosco o seu conteúdo.
— Não? — Walsingham sorriu pela primeira vez, os finos lábios a separarem-se ligeiramente para revelar dentes bem alinhados mas escurecidos. — Pergunto-me o que tendes a esconder.
— Nada.
— Então dizei-nos.
Thomas rangeu os dentes e sentiu a primeira vaga de ira a correr-lhe pelas veias enquanto fitava Welsingham. O homem era provavelmente uns dez anos mais novo do que ele, e estava portanto fisicamente no seu auge, mas tinha passado demasiado tempo em Londres, e a palidez da sua compleição denunciava falta de força e vigor. Thomas tinha perfeita consciência de que, num combate, facilmente o faria em pedaços, e o mero pensamento dessa possibilidade fez despertar nele uma ânsia pela violência que havia muito mantinha subjugada. Era porém aí que residia o verdadeiro perigo, pelo que se obrigou a afastar a tentação. Fechou os olhos por alguns instantes e acalmou a respiração. Nada tinha a ganhar com uma confrontação daquele género.
— A carta foi-me enviada por Sir Oliver Stokely, de Malta — começou. — Solicita-me que honre o juramento que prestei à Ordem e que regresse para participar na defesa da ilha contra a hoste que o sultão dos Turcos está a formar para lançar contra Malta. É essa a substância da missiva.
— Sir Oliver Stokely — repetiu Cecil, com um ligeiro sorriso. — Por acaso ainda é meu primo, embora distante. Éramos chegados em crianças, até que ele permitiu que a sua fé o afastasse. Para longe, como a sua presença em Malta ilustra de forma eloquente. Mas estou a afastar-me do nosso assunto. Calculo que o vosso visitante vos tenha pedido uma resposta, antes de prosseguir nas suas viagens.
— Assim foi.
— E o que lhe respondestes?
— Aceitei.
Cecil and Walsingham trocaram um rápido olhar, e Thomas julgou perceber alguma desilusão ao saberem da resposta. O primeiro voltou a encará-lo.
— Porque aceitastes?
— Fiz em tempos um juramento que é ainda válido. O Grão-Mestre convocou-me, devo responder ao apelo.
— Considerais-vos ainda preso a um juramento feito há tantos anos?
— Um homem vale o que vale a sua palavra — retorquiu Thomas. — Ainda assim, é verdade que já passou muito tempo desde que partilhei com entusiasmo os objetivos e as crenças da Ordem.
— Discordais então da ideia de defender a Cristandade contra os Turcos?
— Não. Acredito na autodefesa. Vivi o suficiente e vi o bastante para saber que só um tolo oferece a outra face. O que mais desejo é que a paz triunfe entre os homens das diversas fés. O que nos deu a guerra contra o Islão, para além do sangue derramado, do sofrimento e da destruição? Sabeis há quantos anos está a Ordem em guerra contra este inimigo? Há mais de cinco séculos. — Por momentos Thomas sentiu o peso de tanto tempo devotado a alimentar o ódio e a violência mais irracional. Geração após geração banhada no sangue dos inocentes. Abanou lentamente a cabeça. — Preferiria que a luta terminasse e que pudesse existir paz entre a Cristandade e o sultão.
— Paz com o sultão? — Walsingham soltou uma risada áspera. — Alguma vez se ouviu ideia mais absurda?
Thomas olhou para ele.
— Se tiver de matar de novo, não será em nome da religião.
— Todavia, nada vos custou abraçar a vida de mercenário e matar por dinheiro ao longo de muitos anos — desdenhou Walsingham, e preparava-se para prosseguir quando o seu superior levantou uma mão e o deteve.
Cecil cruzou as mãos e contemplou Thomas com ar pensativo.
— Um sentimento admirável, Sir Thomas, em boa verdade. Num mundo melhor, partilharia por certo das vossas convicções. Porém, este mundo está repleto de pecadores que não pensam senão em ações malévolas, e tudo temos de fazer para lhes vedar tal curso de ação. O sultão é um deles, e tem de ser detido. O vosso antigo camarada, Sir Oliver, tem toda a razão quando vos confia que a Ordem está em perigo, lá em Malta. As nossas fontes disseram-nos exatamente a mesma coisa.
Os olhos de Thomas semicerraram-se.
— Perdoar-me-eis, Sir Robert, mas como podeis saber o que Sir Oliver me escreveu?
— Ah. — Uma expressão pesarosa tomou conta do semblante de Cecil. — Esperava devolver-vos isto daqui a mais algum tempo. — Pôs uma mão no interior das vestes e extraiu uma folha de papel dobrada com um selo familiar, já quebrado, e empurrou-a pela mesa na direção de Thomas. Este contemplou a carta que recebera, sem esconder a surpresa.
— Como é que isto vos veio parar às mãos?
— Imaginais que poderíamos permitir a um soldado estrangeiro que se passeasse livremente por toda a Inglaterra sem que nos assegurássemos de que todos os seus movimentos seriam vigiados?
— Foi seguido até à minha casa?
— É claro.
Só então Thomas se apercebeu de todas as implicações.
— Mas esta carta estava no meu estúdio esta manhã. Eu mesmo a coloquei lá, sobre a secretária. Estou certo disso.
— Sim, assim foi. Mas um dos meus agentes fez uma pequena visita à casa depois da vossa partida. Conseguiu persuadir um dos vossos servidores a fazer um relato do que se tinha passado, e revistar o vosso escritório foi coisa de minutos. A carta foi encontrada e foi-me trazida de imediato. Eu e Sir Francis lemo-la mais de duas horas antes da vossa chegada.
— E o vosso homem magoou algum dos meus servidores para obter essa informação? — inquiriu Thomas, aparentemente calmo.
— Tal não foi necessário. — Cecil sorriu. — Os vossos servidores são católicos, como vós. Foi muito simples, bastou lembrar-lhes o destino que espera quem é acusado de heresia, e que as provas necessárias para acusar um servo são bastante menos complexas do que no caso de um homem com o vosso estatuto, Sir Thomas.
— Embora também essas se possam encontrar — acrescentou Walsingham em tom de ameaça.
— Sir Francis, por favor, não há qualquer necessidade de proferir ameaças contra o nosso ilustre convidado. — Cecil voltou-se de novo para Thomas. — Aqui está, a carta é vossa. Guardai-a, por favor. Lamento ter sido obrigado a lê-la, mas na minha posição sou forçado a precaver qualquer ameaça a Sua Majestade. Deveis compreendê-lo.
— Perfeitamente — retorquiu Thomas, enquanto pegava na carta, segurando-a com as pontas dos dedos como se estivesse conspurcada. — Não há qualquer comportamento baixo ou abuso da lei que não sejais capaz de usar para forçar as pessoas a submeterem-se à vossa vontade.
Cecil encolheu os ombros sem hesitar.
— Faço o que tem de ser feito.
— E era realmente necessário roubar esta carta? Porque é que foi preciso perguntar-me o propósito da missão de Sir Philippe, se, graças à leitura da mensagem, já estáveis ambos ao corrente de tudo?
— Tínhamos de saber se diríeis a verdade. Se não nos esconderíeis alguma coisa. A verdade é que haveis passado o teste.
— Fico muito satisfeito — replicou Thomas, com azedume. — Penso que é chegado o momento de me explicardes a tarefa que foi mencionada. Embora deveis estar cientes de que jamais vos auxiliarei a perseguir os meus irmãos de fé aqui em Inglaterra.
— Não esperaria outra coisa de um homem com a vossa integridade, Sir Thomas. Pois muito bem, vamos lá ao que importa. Como sabeis, os Turcos estão a preparar-se para desferir um poderoso golpe contra um dos pilares da influência cristã no Mediterrâneo. Se conseguirem tomar Malta, seguir-se-á a Sicília. E depois a Itália, e a própria Roma. Se Roma cair, será o toque a finados da nossa fé, tanto protestante como católica. Solimão nunca escondeu o seu objetivo de se tornar senhor do mundo conhecido e de impor o Islão a todos os seus súbditos. Escolheu uma excelente ocasião para lançar as suas forças contra nós. A Europa está dividida por guerras e fações religiosas. A Espanha e a França estão presas às goelas uma da outra, e a grande armada que Veneza estava a pensar em enviar contra os Turcos foi desmantelada depois da cobarde aliança que firmaram com Solimão, para proteger os seus interesses. Como vedes, os vossos irmãos da Ordem não podem esperar grande auxílio exterior quando enfrentarem os Turcos. Só a Espanha prometeu enviar as forças que puder dispensar. — Cecil fez uma pausa para dar maior ênfase às suas palavras seguintes. — Se concordardes em regressar a Malta, estareis na vanguarda do combate para salvar a Europa do infiel. Salvai Malta, e todos seremos salvos.
Thomas não resistiu a lançar um sorriso cínico.
— Fui portanto aqui chamado para ser convencido a juntar-me à luta contra o Islão.
— Sim, mas também há outro propósito. — Cecil recostou-se e designou Walsingham com um dedo. — Sir Francis, explicai-lhe.
O outro homem ordenou os pensamentos antes de começar.
— Uma vez que haveis decidido regressar a Malta, tereis a oportunidade de servir os interesses de Inglaterra de uma forma mais direta. Há pouco haveis criticado Sir Robert e a mim próprio acerca das medidas que nos vemos obrigados a tomar de forma a preservar a ordem no país.
— Ordem é uma palavra — contrariou Thomas. — Uma outra palavra para descrever a situação é tirania.
— Seja como for, as nossas ações previnem a ocorrência de um muito maior mal, nomeadamente uma guerra civil. Desde que o rei Henrique negou a supremacia da Igreja de Roma, o nosso país tem sido dilacerado pelas tensões entre católicos e protestantes. É um verdadeiro milagre que a situação ainda não tenha degenerado num conflito civil aberto. Não preciso de vos lembrar dos horrores que têm ocorrido nos Países Baixos e em França. John Knott tem-nos descrito por escrito de forma bem clara.
— Talvez não devêsseis dar crédito a tudo o que podeis ler no Livro dos Mártires — avisou Thomas.
— Pode ser — concordou Cecil. — Mas não podeis negar que ocorreram bastantes atrocidades. Afinal, deveis tê-las visto com os vossos próprios olhos quando haveis servido por essas paragens. Aceitando que há uma nota de sensacionalismo em Knott, há ainda assim suficiente verdade nas suas palavras para nos permitir pintar o quadro do que sucederia aqui em Inglaterra se as diferenças religiosas se exprimissem através da violência. O sangue correria nas ruas das nossas cidades. Até agora isso não aconteceu porque os Protestantes se têm de modo geral mantido unidos na sua oposição ao catolicismo. Mas o que ocorreria se surgisse uma divisão entre os nobres e a rainha? Tal facto daria ânimo aos Católicos, e pouco tempo seria necessário para estarmos em guerra aberta.
— Talvez — refletiu Thomas. — Mas o que poderia provocar tamanha divisão?
Cecil trocou um olhar com Walsingham antes de retomar a palavra.
— Há um documento na posse dos cavaleiros de Malta que, se algum dia for tornado público, poderá dilacerar este país. Os aristocratas virar-se-iam contra a rainha, a plebe contra os aristocratas, e depois todos lutariam contra todos. É essa possibilidade que tentamos evitar.
— Haveis dito que poderá dilacerar este país. Porquê, pergunto eu? Acho difícil de acreditar que um simples documento possa provocar tamanhas convulsões. Além disso, o que tem esse documento a ver comigo ou com a Ordem?
— O conteúdo do documento é conhecido apenas por um grupo restrito de homens. E é bem melhor que assim continue a ser. É um conhecimento perigoso. Posso dizer-vos que estava na posse de um cavaleiro inglês da Ordem, há cerca de dezoito anos. Ele morreu em Malta antes de conseguir levar o documento ao que seria o seu destino último. Tanto quanto sabemos, ainda se encontra em Malta. A vós, basta-vos saber que o documento existe e que deve ser recuperado e trazido até mim ou, se tal não for de todo possível, destruído.
— O que me impedirá de o ler, se o encontrar?
— Está selado. Se o selo for quebrado, saberei que alguém o leu. Contudo, não será vossa a tarefa de o encontrar. Para isso, temos outra pessoa. Seguireis para Malta com um escudeiro. O homem em questão é o nosso agente. Uma vez que estará lá para vos servir, a sua presença não atrairá atenções demasiadas. A missão que lhe cabe é encontrar o documento. Se algum dos dois sobreviver ao cerco turco, deverá regressar a Inglaterra com o documento. Se Malta for tomada, será dever do último dos dois a sobreviver destruí-lo, para evitar que caia nas mãos do inimigo. Sir Thomas, não vou tentar disfarçar o imenso perigo que esta missão envolve — concluiu Cecil. — Mas este jogo tem apostas muito altas, e isto representa uma hipótese de servirdes o vosso país, a vossa fé, e de salvardes inúmeras vidas. Agora, calculo que tendes algumas questões a colocar-nos.
— Tenho de facto, Sir Robert — ripostou Thomas. — Primeiro, se esse documento é assim tão importante, porque é que nunca foi revelada a sua existência? A Ordem responde apenas ao rei de Espanha. Não posso acreditar que Filipe não o tivesse usado se pudesse assim prejudicar os interesses da Inglaterra, como afirmais.
— Bem pensado — notou Cecil. — Temos de assumir que o documento não foi utilizado dessa forma porque a Ordem ignora o que tem em mãos.
— Como pode isso ser?
— O documento deixou Inglaterra nas mãos de um cavaleiro, Sir Peter de Launcey.
Thomas franziu o sobrolho.
— Lembro-me dele. Um bom homem.
— Era-o, de facto. Poucos anos depois de terdes deixado Malta, Sir Peter recebeu autorização para visitar a família em Inglaterra, uma vez que o seu pai estava à beira da morte. Pouco depois de regressar a Malta, caiu ao mar do convés de uma galera, e afogou-se. O que não é conhecido é que o rei Henrique lhe tinha confiado este documento, para que Sir Peter o mantivesse em segurança. Henrique estava doente na altura, e não sabia se sobreviveria. No caso de recuperar, Sir Peter devia trazer-lhe de novo o documento. Se Henrique falecesse, como veio a suceder, Sir Peter devia levar o documento a Roma e apresentá-lo ao Papa. Mas Sir Peter morreu em Malta, e Henrique faleceu quase ao mesmo tempo. Só um punhado dos seus mais próximos conselheiros sabia do documento, e só o revelaram sob coação.
— Quereis dizer, sob tortura.
— Sim — admitiu Cecil, sem hesitação. — E o documento permanece em Malta, onde Sir Peter o deve ter escondido. Tereis de o encontrar, se for possível. Ou melhor, o nosso agente fá-lo-á. Mais perguntas, Sir Thomas?
— Sim. Pareceis certo de que vou aceitar esta missão. Porque não hei de eu recusá-la?
— Porque sois um cavaleiro, deste reino como da Ordem de S. João, e isso dá-vos certas obrigações. Sois um homem de honra e de princípios. Se vos é apresentada a oportunidade de evitar a catástrofe que ameaça o vosso país, aproveitá-la-eis, a menos que me tenha equivocado grandemente na avaliação do vosso caráter. Além disso, sois um católico, e viveis sujeito às decisões de uma rainha protestante e dos seus ministros, dos quais eu sou o mais poderoso. Não preciso de vos lembrar a delicadeza da vossa situação. Basta dizer que tendes a minha palavra de que vos protegerei depois de completada a missão. Se recusardes...
Thomas abanou a cabeça.
— Não preciso de ameaças.
— Talvez não, mas é bom que tenhais consciência de que não tendes realmente opção neste caso. Isso poderá confortar-vos nos tempos difíceis que se aproximam.
— Fico muito grato pela vossa solicitude — ripostou Thomas em tom azedo. — Tenho ainda mais uma questão. Quem é esse vosso agente, o tal que passará a ser o meu escudeiro? Presumo que seja o homem que espera na antecâmara.
Cecil sorriu.
— Vejo portanto que já vos haveis encontrado. O jovem Richard é um dos meus melhores homens. Atribuo tal facto ao tê-lo recolhido quando ficou órfão. Nunca conheceu os pais, pelo que a sua lealdade é toda para comigo. É muito promissor, e este será o primeiro verdadeiro teste às suas capacidades. Fala francês, espanhol e italiano como um nativo, e é fluente em maltês.
— Porém, não é totalmente inglês — comentou Thomas. — Tem sotaque, e tem um certo ar latino.
— É tão inglês como qualquer um de nós, e tenho completa confiança nele. Como tereis de ter também, se quiserdes levar esta missão até ao fim.
— A confiança tem de ser ganha, Sir Robert. Não é um bem que possa ser dado sem mais.
— Nesse caso, será melhor que traveis conhecimento com Richard o mais depressa possível. Sir Francis, ide buscá-lo.
Os olhos de Walsingham faiscaram de irritação perante o tom perentório do seu superior, mas ainda assim levantou-se de imediato e atravessou a sala. Thomas observou-lhe a forma furtiva e o movimento subtil que lhe fez lembrar um gato, uma comparação indicada para um homem que perseguia e matava as suas presas sem traço de compaixão.
Quando Welsingham desapareceu para lá da porta, instalou-se um silêncio que Thomas rompeu com voz calma, depois de se inclinar ligeiramente para a frente.
— Não tenho qualquer necessidade de um escudeiro. Seria melhor confiar-me a mim apenas a resolução deste assunto. Se vos der a minha palavra de que vos devolverei o documento sem o ler, o vosso espião poderá ficar por cá, longe do perigo.
Havia um ar divertido na cara de Cecil quando abanou a cabeça.
— Uma oferta galante, mas se é verdade que podeis não ter qualquer necessidade de um escudeiro, a minha de ter olhos e ouvidos no terreno em quem possa confiar plenamente é bem real. Tereis de levar Richard convosco, e não se discutirá mais o assunto.
Antes que Thomas pudesse responder, ouviu-se o som de passos, e logo a seguir Walsingham entrou, seguido pelo jovem que Thomas vira antes. Aproximaram-se da mesa e Walsingham retomou o seu lugar, enquanto o agente de Cecil se mantinha de pé.
— Richard, ao que sei, já te cruzaste com o nosso convidado — começou Cecil.
— Trocámos apenas breves palavras, senhor.
— Então é o momento para uma apresentação formal. Sir Thomas, eis Richard Hughes, o vosso novo escudeiro.
Thomas levantou-se e avançou até junto do jovem, parando à distância de um braço para o analisar com verdadeira atenção pela primeira vez. Hughes ara alto e de ombros largos. O gibão estava-lhe à medida, e não tinha quaisquer adornos desnecessários nas mangas, nem colarinho de rendas; o cabelo estava bem cortado, e livre dos óleos e pomadas que estavam em voga entre os jovens de certa posição social em Londres. Thomas aprovou a austeridade, e olhou diretamente para os olhos do outro. O olhar foi enfrentado sem qualquer temor, mas havia nele qualquer outra coisa além da audácia, sentiu Thomas. Uma frieza, um toque de ressentimento lá bem no fundo.
— Sejam quais forem as tuas ordens, serás, antes de tudo o resto, o meu escudeiro. Compreendido?
— Sim, senhor.
— Quando te der uma ordem, cumpri-la-ás sem a questionar, como é de se esperar de um escudeiro.
— Sim, senhor. Desde que não contrarie as instruções que recebi de Sir Robert.
— Pouca ideia tenho dessas instruções, mas se queremos convencer os cavaleiros da Ordem de que somos quem pretendemos ser, obedecer-me terá de se tornar a tua segunda natureza. Imagino que já tenhas sido instruído quanto aos deveres de um escudeiro?
— Sim, senhor.
Thomas arregalou uma sobrancelha.
— A sério? E quando é que Sir Robert te informou da tua missão, exatamente?
O olhar do jovem fraquejou, e ele espreitou sobre o ombro de Thomas, procurando o apoio do seu patrono. Cecil acenou.
— Diz a verdade.
— Há dois dias, senhor.
— Estou a ver. E neste tempo tão curto aprendeste todos os requerimentos da tua nova posição?
— Recebi ensinamentos muito completos do escudeiro do campeão da rainha, senhor. O resto posso aprender a caminho de Malta. Se me quiserdes instruir.
Thomas abanou a cabeça e virou-se para os outros.
— É uma loucura usar este homem.
— Contudo, ele acompanhar-vos-á — ripostou Walsingham com firmeza. — Treiná-lo-eis em tudo o que ele tem de saber e fazer. Começo a ficar farto da vossa truculência. Não se desse o caso de serdes a única pessoa que pode de facto servir os nossos propósitos, depressa encontraria melhor aposta. Ireis para Malta, e Richard será o vosso escudeiro. Este assunto está encerrado.
A ira inflamou-se no coração de Thomas, e por momentos sentiu-se tentado a confrontar Walsingham e a recusar a missão, fossem quais fossem as consequências. A satisfação de frustrar os seus intentos, a possibilidade de o desafiar a defender pela espada a arrogância com que se expressava quase foram demasiado para Thomas.
— Ele já concordou com o nosso pedido — interveio Cecil. — Não há nada mais a dizer. Acalmai-vos, estamos todos do mesmo lado. Não há necessidade de deixar triunfar a fúria. Tudo o que é necessário é que Sir Thomas trate dos seus assuntos e arranje quem possa administrar a sua propriedade a contento durante a sua ausência. A natureza da sua missão é de molde a não lhe exigir muito tempo na preparação da bagagem necessária à participação na campanha que se avizinha.
— Quanto tempo tenho para me preparar?
— Dois dias. — Sir Francis sorriu. — Há um galeão dinamarquês a carregar em Greenwich. Zarpa para Espanha daqui a dois dias. Seguirão ambos a bordo desse navio.
— Boa sorte — acrescentou Cecil, e depois, com algum zelo: — Que Deus vos acompanhe...
11
Bilbau, Espanha
Véspera de Ano Novo, 1565
Thomas ficou a olhar, mal contendo a frustração, enquanto o seu escudeiro se envolvia numa discussão com o capitão do porto. Já se tinham passado muitos anos desde que falara aquela língua pela última vez; mesmo nessa altura o seu conhecimento dela fora bastante incompleto, e agora não conseguia mais do que apanhar algumas palavras trocadas entre Richard e o oficial, sem conseguir apreender o que quer que fosse do sentido da conversa. E entretanto ali ficara de pé sobre as reluzentes pedras do cais, enquanto a chuva fina e persistente lhe decorava a capa com gotículas frias. Tinham desembarcado do navio dinamarquês por volta do meio-dia, e de imediato tinham sido interpelados por uma patrulha. O sargento que comandava o grupo de soldados espanhóis tinha querido saber qual o propósito daquela viagem, e recusara-lhes autorização para se movimentarem até lhe ser apresentada documentação que provasse que Sir Thomas tinha passagem livre pelo território espanhol. À carta de Sir Oliver pouca consideração tinha sido dada, e fora enviado um homem para chamar o capitão do porto.
Thomas, Richard e os soldados que compunham a patrulha tinham-se visto forçados a esperar ali, no meio do rebuliço do cais, enquanto nas suas costas os barcos de pesca e os cargueiros dançavam ao sabor da ondulação cinzenta que entrava pelo porto, vinda do Golfo da Biscaia. Ao fim de algum tempo, o sargento tinha decidido recolher-se numa taberna próxima, deixando ordens para que os dois ingleses fossem mantidos sob vigilância, e para que ninguém saísse dali até se saber qual a decisão do capitão do porto. E assim o grupo tinha-se resignado a ficar à espera, Thomas e o escudeiro sentados sobre os seus sacos de viagem e embrulhados nos seus mantos, enquanto os soldados espanhóis se apoiavam nos postes de atracação e a chuva escorria sem cessar das bordas dos seus capacetes prateados.
Era inverno, e a atividade no porto era reduzida, pelo que a carga de artigos em vidro da Dinamarca e lã de Londres tinha sido rapidamente descarregada e levada para um armazém, antes de a tripulação se ter retirado para a coberta e para o relativo conforto das suas redes de dormir. No cais tudo se mostrava tranquilo, à exceção do som da chuva e do assobio do vento que se levantava em rajadas. Alguns dos habitantes locais passavam, deitando olhares desconfiados aos dois ingleses sob vigilância. Por seu lado, Thomas sentia-se bem feliz por estar de novo em terra firme. Nos anos que passara embarcado ao serviço da Ordem raramente tinha navegado em pleno inverno, e nunca em águas tão expostas à fúria própria da estação no Oceano Atlântico.
O galeão dinamarquês tinha deixado a foz do Tamisa e atravessara o Canal da Mancha antes de seguir ao longo da costa francesa. Uma violenta tempestade tinha-os empurrado para o mar alto, e nos cinco dias seguintes pouco descanso houvera para a tripulação, que combatera o mar alteroso, tendo perdido muito velame e madeiras na luta. A água gelada corria livremente pelo convés, empapando as roupas, enquanto o navio estremecia e rangia com o impacto de cada onda, empinando-se e mergulhando entre elas. O enjoo que sofrera fora o pior de que se recordava, e depois de ele e os outros passageiros — Richard e três padres que regressavam a Espanha, vindos de Amesterdão — terem deitado fora os últimos pedaços sólidos que os seus estômagos continham, tinham-se recolhido à pequena cabina que partilhavam. Thomas sentara-se com as costas apoiadas numa das espessas vigas e pusera os braços em torno dos joelhos para tentar aquecer-se. Richard fizera o mesmo, com a cabeça baixa, enquanto os padres tinham pegado nos terços e tinham-se posto a rezar, até as vozes lhes falharem e se virem reduzidos a pouco mais do que preces murmuradas, pedindo misericórdia ao Senhor.
Fora nesse momento de maior vulnerabilidade que Thomas procedera a uma cuidada apreciação do seu companheiro, observando-o com toda a atenção enquanto ele se mantinha imóvel, de cabeça entre os braços. Apesar da juventude, que não devia ultrapassar os vinte anos, pelo cálculo de Thomas, parecia ostentar uma maturidade, uma evidente presença de espírito, que o levava a observar com atenção o que o rodeava e as gentes que com ele contactavam. Até ali pouco dissera a Thomas, para lá do absolutamente necessário e próprio de gente educada. Só quando o galeão enfrentara as revoltas águas do Canal é que a máscara de impassibilidade escorregara por um momento. Estavam no convés quando uma vaga rebentara sobre a proa. Richard, apanhado de surpresa, vira-se derrubado e arrastado. Enquanto era levado pela água ao longo do convés, tinha lançado um grito de alarme, e olhara para Thomas com um apelo mudo mas instintivo por auxílio. Thomas firmara-se, de pernas bem abertas para se equilibrar e uma mão bem agarrada a uma antepara, e com a outra mão conseguira alcançar a mão do jovem e levantara-o do convés. Uma onda que vinha na esteira da grande vaga fizera-os tropeçar e juntar-se como se fossem dois amigos num abraço. Richard respondera com um movimento rápido que o afastara, enquanto o semblante regressava à frieza habitual, os olhos escuros a semicerrarem-se enquanto acenava em gratidão, antes de descer à cabina para trocar as roupas encharcadas. Fora um momento ínfimo, mas tinha revelado um aspeto mais humano do seu caráter, e na altura Thomas não evitara um sorriso perante a vergonha do seu escudeiro ao mostrar-se vulnerável.
Assim que a tempestade amainara, o capitão rumara a terra, e tinham aportado em La Rochelle para reparações e descanso antes de prosseguirem viagem. O galeão retomara o curso ao longo da costa da Biscaia, e cruzara a fronteira marítima entre França e Espanha num dia de Natal triste e cinzento. A intenção de Thomas era desembarcar em San Sebastián, mas o porto estava cercado pelos franceses, e o capitão tinha resolvido seguir para Bilbau, apesar dos protestos dos padres, que tinham exigido desembarcar ali mesmo.
Enquanto Thomas permanecia sentado no cais, a remoer os acontecimentos recentes, o soldado regressou finalmente com o capitão do porto, que se lançou numa longa tirada assim que Richard tentou explicar o propósito da viagem dos ingleses. Entretanto, o sargento saiu discretamente da taberna e juntou-se de novo aos seus homens, antes que fosse notada a sua ausência. Thomas escutou a furiosa troca de palavras durante mais alguns minutos, até que se fartou e se pôs de pé, ainda que a custo. O corpo já não era um instrumento bem afinado, e já não lhe respondia com a mesma vontade. Os músculos tremiam de frio e de humidade e estavam pesados enquanto avançava para se interpor entre os dois homens presos na discussão.
— Qual é o problema com este nosso amigo?
Richard só então reparou na sua aproximação.
— Diz ele que todos os portos de Espanha estão fechados a viajantes provenientes de Inglaterra, por ordem do rei Filipe, em represália pela continuada perseguição aos Católicos levada a cabo pela rainha.
— A sério? Diz-lhe que eu próprio sou um católico.
Richard traduziu, mas o outro ripostou de forma curta enquanto empinava o nariz.
— Diz ele que ainda assim sois um inglês.
— É bem verdade, mas não é caso para pedir desculpa. Diz-lhe que é ele que nos deve desculpas por nos deter aqui desta forma.
Richard hesitou.
— Senhor, é suposto que tentemos passar por Espanha da forma mais discreta possível.
— Discrição é uma coisa, humilhação é outra, muito diferente. Sou um cavaleiro inglês, e viajo ao serviço da Ordem de S. João, para defender a Cristandade contra o Turco. Se este homem me nega a passagem, terá de responder não apenas ao seu rei, mas também ao Deus que é dele e meu. — Enfiou a mão no interior do manto e extraiu o estojo de couro em que levava a carta de Sir Oliver. Tirou-a e mostrou-a ao capitão do porto. — Eis o selo da Ordem, nesta carta que me convoca para a batalha. Diz-lhe.
Richard anuiu e dirigiu-se ao oficial espanhol. A expressão deste alterou-se ao inclinar-se para inspecionar o selo. Alarmado, afastou o documento com um gesto e começou a falar com irritação. Dobrou o pescoço na direção de Thomas, lançou um aceno a Richard e virou-se para dar ordens ao sargento que comandava a patrulha, antes de se afastar para o interior da cidade.
Thomas recolheu a carta e guardou-a cuidadosamente, antes de voltar a falar.
— Então?
— Disse que podíamos ficar aquartelados nos aposentos dos oficiais da alfândega. O sargento levar-nos-á lá. Disse ainda que nos vai preparar salvo-condutos para atravessar a Espanha até Barcelona. É lá que está a ser preparada uma frota para ir combater os Turcos, sob as ordens de Don Garcia de Toledo. Além disso, fornecer-nos-á dois cavalos para a viagem.
Thomas lambeu os lábios, encantado com as notícias.
— É fantástico o que pode ser conseguido de um destes oficiais subalternos com a ameaça de uma pequena vingança divina.
Os cantos da boca do escudeiro curvaram-se num sorriso breve.
— Bem, confesso que enfeitei a história mais um bocadinho.
— Oh?
— Disse-lhe que a carta estava também assinada pelo vice-rei da Catalunha.
Foi a vez de Thomas sorrir.
— Ah, foi portanto a autoridade terrena e não a divina que o fez mudar de ideias.
— Como é frequente acontecer com oficiais subalternos.
Entretanto, o sargento chamava-os e dava ordens a dois homens para pegarem nas bagagens. Por fim deixaram o cais varrido pela chuva e começaram a subir uma rua estreita para o interior da cidade.
. . .
O edifício da alfândega era quadrado; no piso térreo situavam-se os escritórios aonde os mercadores levavam os seus manifestos de carga e pagavam as taxas correspondentes. Poucos navios se aventuravam no oceano durante o inverno, pelo que o único funcionário já tinha encerrado o expediente e se dedicava à limpeza das penas de escrita com um trapo velho quando chegaram os dois ingleses. Foram conduzidos ao andar de cima, a um quarto modesto com quatro camas simples, algumas cadeiras e uma pequena lareira ladeada por uma pilha de combustível. O homem levou-lhes uma candeia e algum pão e queijo, além de um jarro de vinho, antes de lhes desejar uma boa noite. Ouviram a porta do edifício a ser fechada e aferrolhada.
— E pronto, cá estamos. — Thomas soltou um suspiro enquanto passeava o olhar pelo quarto. — Fico na cama mais próxima da lareira.
— Como desejardes.
Agora que estavam a sós, Thomas reparou que o seu companheiro tinha deixado de empregar a deferência que um escudeiro devia ao seu cavaleiro.
— Podes acender o fogo antes de comermos. Temos de nos aquecer e secar as roupas.
Richard fez uma careta, mas antes que ele abrisse a boca, Thomas levantou um dedo num aviso claro.
— Sei muito bem o que estás a pensar.
— Nesse caso, porque não mo dizeis?
— Foste enviado numa missão a mando de Sir Robert Cecil, e não para ser realmente o meu escudeiro, e começas a ficar farto disso.
— Gostava de saber porque me sentiria assim? Afinal, sou um homem educado. Estudei em Cambridge, falo várias línguas, desempenhei várias missões valiosas para o secretário de Estado. E tudo isso me preparou perfeitamente para ser o capacho de um cavaleiro que há muito já passou o seu apogeu. — Fez uma pausa e rangeu os dentes, antes de concluir de forma apologética. — Peço o vosso perdão, estou gelado, e exausto. Falei sem pensar.
Thomas riu e abanou a cabeça, assombrado.
— Foi o mais longo discurso que me dirigiste desde que deixámos Inglaterra. Deveras.
Richard encolheu os ombros, abriu o fecho da capa e deixou-a cair no chão, ensopada.
— Bem, é bom saber um pouco da tua história — prosseguiu Thomas em tom divertido. — E que achas que os meus melhores anos já estão no passado distante.
— Peço desculpa.
— Não é necessário. Tens razão, já não sou o guerreiro que fui na juventude. Mas garanto-te que quando tinha a tua idade, o meu corpo estava tão tonificado como o teu. Talvez mais ainda. Se calhar até hoje, quem sabe?
O jovem tinha removido a veste de couro e tirado a camisa de lã antes de olhar para Thomas com uma expressão divertida.
— Quereis experimentar a vossa força contra a minha?
— Achas que tenho algum receio de o fazer?
— Não. Do que sei de vós, Sir Thomas, concluo que não. Mas penso também que tal desafio seria imprudente da vossa parte.
Thomas franziu uma sobrancelha, mas manteve-se calado enquanto removia também as vestes encharcadas, até ficar de pé só em botas e calções, e revelar o poderoso torso que ainda possuía. As marcas brancas e retorcidas na pele denunciavam antigas cicatrizes e eram claramente visíveis ao brilho pálido da candeia; notou que Richard o contemplava com curiosidade, antes de desviar o olhar, embaraçado.
— Eu vou acender a lareira — anunciou Thomas. — Está ali outra candeia. Pega nela e vai ver se descobres mais cobertores por aí. Quero passar uma última noite bem aquecido antes de seguirmos viagem.
Richard assentiu. Aproveitou uma palha tirada de um dos colchões para fazer uma acendalha e deu lume ao pavio da candeia antes de sair do quarto. A sós, Thomas agachou-se lentamente no chão ao lado da lareira. A pele húmida parecia ainda mais fria naquele ar gelado, e ele estremeceu enquanto preparava uma acendalha de pequenos paus sobre uma cama de palha, a que aplicou a chama. O fogo pegou de imediato e ele debruçou-se, soprando gentilmente para ajudar a chama a crescer. Daí a pouco já se ouvia o assobio e o crepitar das chamas que rodeavam o material na lareira. Quando Richard regressou, já o quarto era iluminado com o tom rosado do fogo bem desenvolvido, e as sombras dançavam nas paredes.
— Cá estão. — Richard trazia ao peito alguns cobertores, e passou-lhe um. — Encontrei-os num armário. Almofadas também, se vos forem necessárias.
— Passo bem sem elas. — Thomas acenou um agradecimento e pegou na manta, desdobrando-a rapidamente e lançando-a sobre os ombros, antes de colocar mais alguma lenha na lareira.
Richard pegou também numa manta e sentou-se na borda da cama que Thomas escolhera, debruçando-se ligeiramente para melhor receber o calor do fogo. O silêncio instalou-se, até que ele decidiu falar.
— Essas cicatrizes. Foi ao serviço da Ordem que as conseguistes?
— Algumas. Outras foram obtidas noutras paragens. — Thomas recostou-se de forma a ficar de frente para o jovem. Tocou no ombro esquerdo. — Uma seta acertou-me aqui, na Flandres. Foi só músculo, mas sangrei como um porco, se bem me lembro. — Moveu a mão para o peito esquerdo. — Aqui foi um golpe de adaga, profundo. Esta foi numa expedição ao porto de Argel. La Valette não queria que as armaduras nos dificultassem os movimentos. Houve uma escaramuça a bordo de um galeão que atacámos, e um corsário saltou das sombras à minha frente e desferiu o golpe. A segunda estocada teria acabado comigo, mas o capitão interpôs-se e liquidou-o. — Thomas olhou para o fogo, a testa franzida ao relembrar aquelas cenas. Mostrou o cotovelo esquerdo. — Esta foi de uma queimadura, quando atacámos um forte de corsários ao pé de Tripoli. O inimigo estava a empregar uns potes incendiários. Um rebentou na muralha, ao lado da escada por onde eu estava a trepar, e a nafta a arder passou pela cota de malha e pelo gibão, e chegou-me à pele. — Estremeceu ao lembrar a terrível e intensa dor que tinha suportado durante a longa noite que durara o assalto ao forte.
— E essa aí na vossa testa? — indagou Richard, em voz baixa.
— Isto? — Thomas ergueu a mão e seguiu a fina cicatriz desenhada alguns centímetros abaixo do cabelo. Manteve-se em silêncio por instantes, enquanto passeava o dedo para trás e para a frente, e Richard olhou-o, expectante, os olhos a rebrilhar com o reflexo do fogo que aquecia o quarto. Thomas pigarreou. — Esta, arranjei-a quando escorreguei no chão gelado e bati com a cabeça na porta de uma estalagem.
O queixo de Richard descaiu e o jovem acabou por soltar sonoras gargalhadas a que Thomas se juntou, enchendo o quarto de boa disposição. O riso prosseguiu para lá do que seria de esperar, traduzindo o amainar da tensão entre os dois homens, pela primeira vez desde que se tinham encontrado. Por fim, enquanto o riso esmorecia, Richard pareceu recobrar a noção da situação; levantou-se, pegou em duas cadeiras que levou para junto do fogo e pendurou as roupas a secar; hesitou um momento, mas acabou por fazer o mesmo com a capa, casaco e camisa de Thomas. Entretanto, Thomas pegara na pequena faca que levava sempre no cinto por trás das costas e cortava o pão em nacos e o queijo em fatias, oferecendo metade a Richard.
— Obrigado. — O jovem levantou-se e apontou para a cama. — Creio que esta é a vossa.
Thomas abanou a cabeça.
— Podes ficar com ela. — Deu uma palmada no colchão onde se sentara. — Isto serve muito bem.
Richard sentou-se e começaram a comer. Em muitas semanas, era a primeira refeição que não incluía o sabor a maresia e que não era estragada pelo balançar enjoativo do galeão a avançar lentamente pelas ondas escuras debaixo de um céu cinzento. Em consequência, e apesar de não passar de pão e queijo, o sabor parecia-lhe inigualável, e ao sentir o corpo aquecido e o estômago cheio, Thomas não pôde deixar de se sentir satisfeito. Isso devia-se também à perspetiva de algum companheirismo onde antes nada mais existira do que uma tolerância azeda, entre ele e Richard. Thomas queria saber mais sobre o agente de Cecil, em parte porque queria descobrir tudo o que pudesse sobre o documento e a natureza precisa das ordens que Richard recebera, mas também por simples curiosidade e um desejo de conhecer melhor o jovem. Sabia bem, porém, que querer saber tudo demasiado depressa poderia levar Richard a erguer de novo as suas defesas. Pegou no jarro de vinho e encheu uma taça para cada um. Passou-a a Richard. As roupas começavam a fumegar, enchendo o quarto de um aroma salgado.
— Foste bem escolhido para esta missão — considerou Thomas. — Se falares tão bem as outras línguas como falas espanhol, serás por certo muito útil.
Richard lançou um sorriso.
— Útil? Talvez um homem da minha condição social devesse considerar essa observação como um elogio.
Thomas sentiu-se tentado a lançar algumas perguntas, mas havia na voz do jovem um traço de cólera e de vergonha, e decidiu não insistir naquele momento.
— Desempenhaste bem o teu papel — prosseguiu Thomas. — Mas teremos de ser tão bons como os melhores atores de Londres se quisermos convencer os outros membros da Ordem quando chegarmos a Malta. Não basta que te comportes como um escudeiro. Tens de começar a pensar como um. Tens de fazer o que te pedir sem hesitar e sem mostrar aquele ressentimento que por vezes deixas transparecer. Terás de tratar de manter a minha armadura, equipamento e roupas limpos. Terás de mostrar a cortesia devida a quem encontrares, seja qual for a sua classe social. Terás de te portar em todos os momentos como um cavalheiro que aspira a tornar-se um cavaleiro. E não um qualquer cavaleiro, mas um membro da Ordem. Se conseguires fazer isso, passarás facilmente por escudeiro.
A expressão de Richard tornou-se amarga.
— Nesse caso, terei de passar por aquilo que nunca serei, muito menos um cavaleiro.
— Porquê essa ideia?
— A nobreza é um estatuto reservado aos que nada têm a sujar-lhes o passado. De pouco serve o valor de um homem se há no seu nome uma nódoa que nada pode apagar.
— Mas tu és de nascimento nobre — retorquiu Thomas. — Isso é bem evidente. És tanto um cavalheiro como eu, vejo-o claramente.
— Exceto pelo facto de eu ter nascido do lado errado da rua, Sir Thomas. E isso é algo que ninguém poderá alguma vez alterar. Sou um bastardo, reconhecido por quem me educou. Foi por isso que escolhi esta vida. E agora, se me perdoais, estou cansado e gostaria de dormir bem antes da jornada que começaremos amanhã. — Esvaziou a taça e deitou-se, virando-se de lado, de forma a oferecer as costas a Thomas e ao lume.
Thomas deixou-se ficar a contemplá-lo por algum tempo, tentando imaginar as origens do jovem. Como seria carregar o peso de um tal estigma num mundo em que detalhes desse género tanta importância assumiam, apesar da evidente malvadez e imoralidade de tantos que se intitulavam de nobres? O jovem tinha de facto boas razões para o azedume que mostrava. A natureza tinha-o prendado com uma mente brilhante, um corpo esbelto e uma constituição sólida. A sociedade, por seu turno, amaldiçoara-o com uma etiqueta que o prejudicaria até ao dia em que morresse. Por momentos, Thomas viu-se a sentir pena do seu companheiro, mas deteve-se. Não havia qualquer necessidade de aumentar as dificuldades de Richard mostrando-lhe um sentimento tão desprezível.
Suspirou e deitou mais alguma lenha no lume. Virou as roupas que secavam sobre as cadeiras, colocou as botas ao seu lado e subiu para a cama, onde se deixou ficar de costas a contemplar o teto. O sono não lhe chegava com a facilidade de outros tempos, e escutou o sino de uma igreja a bater a meia-noite antes de conseguir fechar os olhos e adormecer.
12
O caminho pelo Norte de Espanha passava pelas pedregosas terras de Navarra e Aragão antes de alcançar a Catalunha. A chuva era frequente, e os altos colos entre as montanhas estavam repletos de chuva e gelo que lhes retardavam a marcha. À noite, Thomas e Richard tentavam sempre parar em pequenas aldeias onde pagavam para dormir em estábulos sempre que não conseguiam alugar um quarto. Por duas vezes viram-se forçados a pernoitar ao relento, deixando os cavalos amarrados a árvores enquanto os dois se aninhavam em volta de uma fogueira abrigada por um penhasco bem orientado. Nessas ocasiões dormiam por turnos, temendo o aparecimento de algum grupo de salteadores dedicados a roubar viajantes desprevenidos. Certa vez foram seguidos durante metade do dia por um grupo de homens montados em pequenos cavalos mal mantidos. Thomas e Richard fizeram uma pausa no avanço para porem as espadas ao cinto, fazendo questão de as evidenciar. Pouco depois, os perseguidores fizeram alto e ficaram a vê-los afastar-se.
Os dois ingleses atraíam a atenção em todas as povoações por onde passavam. O rei e a Igreja não se tinham poupado a esforços para se assegurarem de que o povo considerava a ilha governada por Isabel, a rainha protestante, um antro de maldade e depravação, esquecido de Deus. E assim o cavaleiro e o seu escudeiro provocavam suspeição e medo, e apesar de nunca terem sido ameaçados ou rechaçados, graças ao salvo-conduto emitido pelo capitão do porto de Bilbau, não havia qualquer calor ou hospitalidade na forma como eram recebidos.
A conversa que tanto tinham apreciado na primeira noite que tinham passado em Espanha não teve continuidade; Richard tinha voltado a adotar um comportamento sombrio e ligeiramente hostil, embora fizesse como Thomas lhe pedira e se assegurasse de que todas as tarefas próprias de um escudeiro eram cumpridas sem falha. Depois de algumas tentativas de recuperar o momento de companheirismo que tinham partilhado, Thomas tinha renunciado à empresa e prosseguiram, trocando curtas palavras apenas quando tal era absolutamente necessário e comendo em silêncio todas as noites à volta do fogo ou nas trevas de um estábulo diminuto.
Cerca do meio-dia do quinto dia do novo ano, passaram a última crista das montanhas que dominavam a estreita planície onde Barcelona se banhava no Mediterrâneo. As nuvens tinham desaparecido ainda de manhã, e o Sol brilhava solitário no céu de um azul profundo. Apesar de estarem no pino do inverno, o oceano tinha forma de parecer brilhante e convidativo, e Thomas sentiu uma mágoa no coração ao lembrar a ilha no meio daquele mar, um lugar que em tempos acreditara que viria a ser a sua casa durante toda a vida, no seio de um bando de irmãos de armas que combatiam por Deus contra inimigos muito mais poderosos. Nessa altura tudo lhe parecera claro e nobre, até que Maria tinha irrompido pela sua vida dentro e ele começara a compreender lentamente que pouca nobreza havia a conseguir numa interminável guerra em que o progresso consistia apenas em infligir novos horrores ao inimigo. Belo como era, aquele esplendoroso mar era na realidade um campo de batalha tão velho como a História. Muito antes do conflito em que estavam mergulhados, o domínio daquele mar tinha levado romanos, egípcios, cartagineses, gregos e persas a tremendos combates. Quem saberia quantas naves de guerra jaziam no fundo, a desfazerem-se? Era um mar temperado pelas lágrimas e pelo sangue de sucessivas gerações de seres humanos, refletiu, com um estremeção.
Deu um estalo com a língua e carregou com os calcanhares nos flancos do cavalo.
— Vamos, não vale a pena ficarmos aqui parados a apreciar a paisagem.
Richard fez precisamente isso por mais uns momentos antes de o seguir, e foram percorrendo o caminho que serpenteava pela colina abaixo. No sopé, a cidade de Barcelona estendia-se à sombra de uma cidadela fortificada. No porto avistavam-se umas trinta ou quarenta galeras ancoradas; outras duas equilibravam-se em cima de espessos toros nos estaleiros reais, uma série de barracões compridos com telhados altos, que dominavam a margem. Na parada no exterior da fortaleza havia várias companhias de piqueiros a treinar sob as cores ondulantes dos seus estandartes. Era evidente que decorriam preparativos para enfrentar a ameaça que se erguia na outra ponta do Mediterrâneo. Mas seriam suficientes?, questionou-se Thomas. Por experiência própria, sabia bem que os Turcos eram capazes de apresentar vastas forças, quer em homens quer em navios. Eram seus os melhores artilheiros e engenheiros de cerco do mundo, e o tamanho e capacidade destrutiva dos seus canhões não tinham paralelo.
Quando se aproximaram das muralhas da cidade, o trilho juntou-se a uma estrada que seguia a costa. Pouco adiante, os dois cavaleiros passaram por um lento comboio de vagões carregados de barris de pólvora e metralha metálica. Thomas espicaçou a montada, de forma a adiantar-se à coluna e chegar antes dela ao portão principal da cidade. Fez um gesto a Richard para se colocar ao seu lado e pegou no salvo-conduto, que entregou a um dos soldados de plantão. O catalão ficou a olhar para o documento sem nada entender, até que lhes deu uma ríspida ordem para que aguardassem e foi em busca de um oficial à casa da guarda. Thomas saltou da sela e deixou-se escorregar para o solo com um grunhido de cansaço. Richard imitou-o de imediato e pegou nas rédeas dos dois cavalos, como competia a um escudeiro, reparou Thomas com satisfação.
O guarda regressou pouco depois com um homem de porte altivo que limpava a boca com uma mão enquanto contemplava o salvo-conduto que levava na outra. Deitou um olhar minucioso aos dois ingleses antes de se dirigir a Thomas, que apontou para o escudeiro.
— Richard, por favor.
À medida que os dois conversavam, Thomas tentava seguir o que era dito, mas a língua catalã era-lhe estranha aos ouvidos. A situação fazia-o sentir-se desconfortável e até vulnerável; não tinha ainda total confiança no jovem cuja companhia lhe fora imposta por Cecil e Walsingham. Richard sabia mais do que ele sobre o propósito daquela missão e sobre a natureza do documento sensível que estava no seu âmago. Se o documento fosse localizado e recuperado, quais seriam, perguntava-se Thomas, as ordens que o seu companheiro teria para depois? Ele não teria mais qualquer utilidade para Cecil; podia muito bem ser que as ordens de Richard incluíssem a eliminação discreta de um homem cujo conhecimento sobre a missão, embora limitado, poderia vir a revelar-se embaraçoso num momento ulterior. Teria de se precaver contra tal possibilidade de traição, até mesmo quando estivesse envolto numa batalha contra os Turcos. O pensamento fê-lo tornar-se amargo quanto a Richard e aos seus patronos em Londres.
Richard interrompeu-lhe os pensamentos.
— Senhor, expliquei ao capitão os motivos da nossa viagem. Diz ele que, uma vez que viajamos para Malta, seria melhor anunciar a nossa chegada na cidadela. Lá encontraremos Don Garcia de Toledo. O seu exército está a aprontar-se para embarcar para a Sicília, e poderemos seguir com a sua esquadra.
— Sicília?
— É lá que o rei Filipe está a concentrar forças para enfrentar os Turcos. Os Espanhóis serão reforçados por mercenários de Itália, incluindo as galeras do clã Doria. Aqui o capitão diz que ouviu dizer que será o maior exército jamais reunido para combater em nome de Cristo. E Don Garcia é o melhor general de toda a Europa. Diz ele que os Turcos serão esmagados de vez.
Thomas contemplou o oficial catalão, gordo e acostumado a uma vida tranquila. Não duraria muito tempo numa campanha extenuante.
— Diz-lhe que rezo a Deus para que tenha razão. Vamos então à cidadela.
— Ele diz que os seus homens nos vão conduzir até lá. — Richard deitou um olhar desconfiado ao espanhol, antes de prosseguir. — Tem havido rumores de que o inimigo tem espiões aqui em Barcelona. Parece-me que ele não confia muito em nós.
— Espiões? — Thomas soltou uma gargalhada. — Parecemos turcos, por acaso?
— Senhor, somos ingleses. E, ao que parece, há por aqui muito quem pense que os seus inimigos podem fazer causa comum. O que é compreensível. Nunca perdoaram aos Franceses por combaterem ao lado dos Turcos há vinte anos.
Thomas assentiu com emoção. Fora uma aliança que escandalizara o resto da Cristandade, que a julgara pouco melhor do que um pacto com o próprio demónio. Tinha durado pouco tempo. Os Franceses tinham ficado envergonhados pelos massacres de cristãos que os seus novos aliados tinham cometido ao longo das costas de Itália. Thomas conseguia facilmente imaginar o horror que aquele gesto causara nos cavaleiros franceses da Ordem, especialmente em La Valette.
— Muito bem, agradece então ao capitão por nos fornecer essa escolta.
Enquadrados por dois homens à sua frente e outros dois a segui-los, Thomas e o seu escudeiro levaram os cavalos a entrar na cidade protegida por espessas muralhas, dando logo para uma via larga. As torres da catedral de Santa Eulália erguiam-se sobre os telhados dos edifícios que se apinhavam aos lados da rua. As chuvas recentes tinham lavado muita da porcaria que cobria normalmente as ruas, e os cheiros mais ofensivos que se desprendiam da cidade eram amenos quando comparados com o fedor omnipresente em Londres. Tinham-se passado muitos anos desde a última vez que Thomas vira Barcelona, mas aquela era obviamente a primeira visita de Richard à cidade, a julgar pela franca curiosidade com que observava tudo à sua volta. Com o seu semblante moreno, poderia facilmente passar por um nativo, se não fosse a sua pronúncia sem traço de catalão. Cecil e Walsingham tinham escolhido muito bem o seu homem para aquela missão, concedeu Thomas.
Ao entrarem na praça aberta em frente à catedral, a atenção de Thomas foi presa pela fachada ornamentada e pelas três torres construídas de um entrelaçado de pedra. Imensamente diferente das catedrais inglesas, lembrou-se. Lançou o pescoço para trás para poder vislumbrar as cruzes que se projetavam lá no alto, para o azul do céu. Lá em cima circundavam bandos de gaivotas, pontos negros contra o brilho do firmamento. Por momentos sentiu o coração a elevar-se perante tão maravilhoso panorama, mas lembrou-se rapidamente de que do outro lado daquele mesmo mar, em Constantinopla, a grande cidade que os Turcos tinham rebatizado como Istambul, um homem como ele, um guerreiro, estaria por certo em frente à Grande Mesquita, contemplando enlevado um crescente dourado — um homem que ele poderia enfrentar em combate dentro de pouco tempo. A ideia fez com que um arrepio lhe descesse pela espinha. Não era medo, apenas um pressentimento de que era seu destino ser consumido no iminente embate entre fés e impérios.
O pequeno grupo atravessou a praça, e daí a pouco deixou para trás as estreitas ruelas da cidade e começou a subir a íngreme encosta que levava à cidadela. Soprava uma fresca brisa marítima, que dava ao ar um cheiro salgado. Ao alcançarem a entrada da fortificação, tiveram de explicar mais uma vez o propósito da sua presença. A escolta foi enviada de volta à muralha da cidade, e o cavaleiro e o seu escudeiro foram admitidos num pátio exterior onde puderam prender os cavalos e sentar-se num banco, à espera.
Não os fizeram esperar muito. Um oficial vestido de veludo vermelho dirigiu-se a eles, vindo dos gabinetes do governador.
— Sir Thomas Barrett? É uma honra conhecer-vos, senhor — anunciou num francês escorreito, antes de inclinar respeitosamente a cabeça. Thomas e Richard puseram-se de pé e retribuíram o gesto.
— Se mo permitis, apresento-me. — Lançou um sorriso faiscante. — Sou Fadrique Garcia de Toledo, e estou ao vosso serviço, bem como ao do vosso escudeiro, Sir Thomas.
O jovem parecia ter vinte e poucos anos, no máximo, e Thomas trocou um olhar de espanto com Richard antes de limpar a garganta e retorquir em francês.
— Sois vós o comandante da força que o rei Filipe vai enviar contra os Turcos?
— Eu? — As sobrancelhas do espanhol arquearam-se, divertidas. — Decididamente não, senhor. Creio que vos referis ao meu pai. Enviei-lhe novas da vossa chegada. Ele terá todo o prazer em acolher outro membro da Ordem que responde ao apelo para pegar em armas.
— Tem havido muitos de nós? — inquiriu Thomas.
O sorriso de Fadrique desvaneceu-se.
— Nem tantos têm passado por Barcelona como esperávamos, senhor. Sois, de facto, apenas o quinto cavaleiro que vimos. Claro que haverá outros que terão embarcado noutros portos. Estou certo de que nenhum membro da vossa Ordem negará a si mesmo a possibilidade de partilhar a gloriosa vitória que em breve celebraremos sobre o Turco.
— Esperemos que tenhais razão.
— Senhor, estou certo disso. Esta será a grande batalha dos nossos tempos. O encontro decisivo entre a nossa fé e a falsa fé do Islão.
Thomas mordeu os lábios, mas resolveu não contrariar a ideia do jovem.
O espanhol fez um gesto para a entrada da cidadela.
— Se me quiserdes seguir, oferecer-vos-ei algo que vos refresque enquanto aguardamos pelo meu pai.
Thomas sorriu fugidiamente ao relembrar as impecáveis maneiras dos Espanhóis ao lado de quem combatera em tempos. Inclinou a cabeça.
— Muito agradecidos.
No interior do edifício passaram por um salão abobadado em cujas paredes se abriam arcos que davam acesso a corredores sombrios. Para lá de um punhado de guardas de serviço, não havia sinais de muita atividade. Os passos dos três homens ecoavam nas paredes vazias.
— Tudo parece muito calmo — comentou Thomas. — Supunha que o pessoal do vosso pai estivesse atarefado a planear a campanha.
— Está tudo a ser pensado, asseguro-vos — retorquiu Fadrique, despreocupado. — A maior parte dos oficiais está lá em baixo nos estaleiros, a verificar o carregamento das galeras. Zarpamos para a Sicília daqui a poucos dias. E assim que juntarmos as nossas forças às dos nossos aliados, confrontaremos os Turcos.
Entraram numa câmara modesta, com uma comprida mesa ao centro. Aos lados da mesa havia cadeiras confortáveis e dois cadeirões mais ornamentados ocupavam as cabeceiras. Fadrique indicou-lhes a mesa.
— Sentai-vos, por favor. Dei ordens para que vos fossem trazidas comida e bebida. Agora tenho de me desculpar, mas tenho de ir ter com o meu pai, que depressa vos receberá. — Inclinou a cabeça mais uma vez e deixou-os. Depois de a porta se fechar, Richard deixou escapar um suspiro.
— Cinco cavaleiros apenas... Devia haver mais homens a caminho de Barcelona. Muitos mais.
— Ainda há tempo — contrariou Thomas. — E, tal como ele diz, podem ter tomado outras rotas.
Richard olhou firmemente para ele.
— Acreditais realmente nisso?
Thomas encolheu os ombros.
— Não faz mal nenhum esperar o melhor e aceitar o pior.
— Essa é a filosofia de um tolo.
Thomas não se deixou abater pelo comentário.
— Quanto piores forem as hipóteses, maior quinhão de glória nos caberá.
— Glória, pois, é para isso que vós, cavaleiros, viveis. Compreendo isso. Mas enquanto os vossos feitos gloriosos vão ficar anotados nos registos com o vosso nome, isso não sucede com aqueles que labutam nos escalões inferiores. Os nossos heróis nunca têm rosto. E pouco desejo tenho de contribuir para esse obscuro registo, Sir Thomas.
Foram interrompidos por um servo, que entrou na sala com uma bandeja. Aproximou-se da mesa sem lhes enfrentar o olhar e pousou-a. Inclinou fortemente a cabeça, recuou alguns passos, virou-se e esgueirou-se rapidamente.
— Aí está — comentou Richard. — É assim que se portam aqueles que não têm lugar na História.
Thomas não respondeu, ocupado a tirar um prato da bandeja, a colocar o outro em frente ao companheiro e a encher dois copos de vinho. Olhou então para Richard e falou em tom calmo, quase fatigado.
— Nada posso fazer quanto à forma como a História marca a passagem da vida de um homem, Richard. E nada posso alterar quanto ao teu nascimento. Portanto, de nada serve apoquentar-me com as tuas queixas, de forma tão pouco graciosa. Tudo o que importa é que cumpramos o nosso dever. Eu, o que me liga à Ordem que jurei defender com a vida. Tu, o que deves aos teus mandantes em Londres, ou seja, que cumpras a tarefa que te colocaram em mãos. Tens de me auxiliar no cumprimento do meu dever, tanto quanto possas. Por mim, estaria em melhores condições de te auxiliar se soubesse mais sobre o teu propósito em Malta.
Os escuros olhos de Richard contemplaram-no.
— Não posso dizer mais do que já adiantei.
— E o que sucede se algo de mal te acontecer?
— Nesse caso, atrevo-me a imaginar que Walsingham enviará outro agente para cumprir a missão.
— Estou a ver. E o teu senhor tem ao seu dispor um leque de homens que dominem tantas línguas como tu?
Richard baixou o olhar para o prato e entreteve-se a cortar um pedaço de costeleta de borrego. Deu uma dentada e começou a mastigar.
— Bem me parecia que não. — Thomas sorriu para si mesmo. — Portanto, se caíres, a missão termina. A não ser que me possas dizer mais alguma coisa sobre o documento.
Richard engoliu a comida.
— Não.
— Porque não? Com certeza que te apercebes de que é uma boa ideia?
— Tenho as minhas ordens.
— Compreendo. Mas se o que está em jogo é tão importante como Sir Robert adiantou, é por certo vital que um de nós consiga recuperar o documento e regresse com ele a Inglaterra.
— Partindo do princípio de que um de nós sobreviverá ao ataque a Malta — ripostou Richard, desencantado.
Thomas mordeu os lábios.
— Claro.
— Perdão, senhor, mas as minhas ordens são claras. Não vos posso dizer nada sobre o assunto.
— Porque não?
— Porque Walsingham não confia em vós.
— Estou a ver. E quanto a Cecil?
— Sir Robert respeita a opinião de Walsingham em quase todos os assuntos.
Thomas cruzou os dedos e apoiou-os no queixo, enquanto sentia a ira a crescer no seu íntimo. Era uma ferida na sua honra.
— Adivinho que as desconfianças deles provêm das minhas convicções religiosas... porque eu sou católico. Há algum aspeto do documento que o tornaria ainda mais perigoso se eu tomasse conhecimento do seu conteúdo?
— Não posso dizer — respondeu Richard, antes de meter um novo pedaço de carne na boca.
— Não podes, ou não queres?
— Já vos disse mais do que seria prudente. Se isto vos acalmar a mente, ficai consciente de que Cecil pensa que vos considerais primeiro um súbdito inglês, e só depois um católico. Mas basta. Não falarei mais sobre este assunto. Se assim o desejais, falai de outro tema.
— Muito bem. Diz-me então, és protestante, como os teus senhores, ou segues a Igreja de Roma?
Richard parou de comer enquanto pesava a questão.
— Seguramente que não tendes dúvidas sobre isso. Achais que Cecil alguma vez teria a seu serviço um católico? Nem se põe a questão.
— E foste sempre um protestante? — persistiu Thomas.
— Porque quereis saber?
— Quero conhecer-te melhor. No conflito que nos aguarda, gostaria de ter certezas sobre o tipo de homem que vai lutar ao meu lado.
— E saber se em tempos fui católico fará alguma diferença? — Richard sorriu. — Seria bem melhor saber se alguma vez matei um homem.
— E já o fizeste? — Thomas observou-o com toda a atenção.
— Não. Mas estou certo que o terei feito antes de regressar a Inglaterra.
Antes que Thomas pudesse prosseguir o interrogatório, a porta da sala abriu-se de par em par para deixar passar um homem corpulento, de cinquenta e muitos anos. O cabelo era grisalho e escasso, e a barba bem aparada seguia a linha de um queixo anafado. Os olhos, porém, eram vivos e curiosos, e rapidamente perscrutaram os dois ingleses que se erguiam dos assentos. Fadrique entrou depois do pai e procedeu às apresentações.
— Sua Excelência o Capitão-General do Oceano de Sua Majestade católica, o rei Filipe de Espanha, e Vice-Rei da Sicília, Don Garcia Alvarez de Toledo.
Don Garcia avançou para eles, parando a curta distância enquanto Thomas fazia uma vénia respeitosa.
— É uma honra conhecer-vos, senhor. Sir Thomas Barrett e o seu escudeiro Richard Hughes, ao vosso serviço.
— Disse-me o Fadrique que viajais para Malta. — Don Garcia tinha uma voz suave, com um ligeiro ciciar. — Em resposta ao apelo lançado por La Valette.
— Assim é — concordou Thomas.
— Nesse caso, Sir Thomas, sois extremamente bem-vindo. Sobretudo tendo em conta a vossa reputação, conquistada com esforço nos campos de batalha de toda a Europa. — Don Garcia sorriu calorosamente.
Thomas ficou surpreendido por a sua reputação ter chegado a Barcelona. Sorriu modestamente.
— Isso foi já há alguns anos.
— Na arte da guerra, a experiência é tudo.
— Quase. Mas os números também desempenham o seu papel.
Don Garcia deu-lhe um toque amigável no braço.
— Espero que a vossa jornada tenha decorrido sem incidentes de maior.
Lembranças da tempestade que tinham enfrentado na viagem até Espanha passaram-lhe pela ideia, mas ignorou-as, e assentiu.
— Dada a altura do ano, fizemos boa viagem, senhor.
Don Garcia olhou para ele sem se deixar iludir.
— O Atlântico no inverno pode transformar-se num verdadeiro monstro. Terdes chegado até aqui já foi um feito. E ainda bem que aqui estais. Vamos precisar de todos os homens para assegurar a defesa de Malta. Mas perdoai-me, deveis estar fatigado. — Fez um gesto a designar as cadeiras. — Sentai-vos, por favor. Não tinha intenção de interromper a vossa refeição.
Quando os quatro homens se sentaram, Thomas empurrou para longe o seu prato, com a comida ainda intocada. Indicou a Richard que o imitasse, já que não seria aceitável que o escudeiro se alimentasse sozinho à frente dos seus superiores.
— Sir Thomas, perdoai-me se ponho de parte a habitual conversa cortês e vou direito ao assunto. Tenho pouco tempo antes de zarpar para Malta. O que sabeis da situação?
— Só aquilo que o cavaleiro que foi a Inglaterra levar-me a convocatória me contou, senhor. Disse-me que o Grão-Mestre tinha informações sobre os planos do sultão, que eram de tomar Malta e erradicar a Ordem de S. João de uma vez por todas.
— Assim é — anuiu Don Garcia. — Para proteger as suas linhas, ele tem de tomar Malta. E é lá que temos de o travar. Não tenho dúvidas sobre a estratégia de Solimão. Ele e os seus aliados corsários têm vindo a estender a sua influência para o Mediterrâneo ocidental desde há muitos anos. A cada primavera temos vindo a observar o horizonte a leste, à espera do assalto, mas têm-se contentado com breves ataques às costas de Itália, França e Espanha, apresando navios, ou assaltando povoações costeiras para conseguir escravos. E pouco temos podido fazer para impedir essa atividade. Pela altura em que recebemos um relatório e despachamos uma força para o local do ataque, já o inimigo se escapuliu. Entretanto, tenho feito tudo o que posso para preparar as nossas defesas e ter todas as galeras a postos para quando chegasse o momento que considerava inevitável. E ele chegou agora. Não há qualquer dúvida. O nosso espião em Istambul viu com os próprios olhos os preparativos do inimigo. Galeras e galeões têm sido reunidos no Corno Dourado, e todos os dias chegam à cidade caravanas de vagões com pólvora, metralha, engenhos de cerco e rações. No exterior das muralhas, dezenas de milhares de soldados estão acampados à espera de ordens para embarcar. — Recostou-se e colocou as mãos sobre os braços do cadeirão. — Não há dúvidas, os Turcos estão mesmo decididos a avançar. Chegou o momento que tanto temi. É este o ano em que a nossa fé terá de triunfar ou tombar sob a sombra do crescente.
— Nesse caso, lutaremos até ao fim — comentou Thomas, com firmeza. — E se a Ordem for varrida do mapa, a forma como enfrentarmos essa destruição terá de ser inspiradora, para que o resto da Cristandade siga o nosso exemplo de combate.
— Peço a Deus que estejais certo, Sir Thomas. Se os governantes da Europa não se unirem e fizerem causa comum contra esta tremenda ameaça, estaremos perdidos. O nosso povo será forçado a ajoelhar-se e submeter-se à falsa religião. E pouco me consola saber que nenhum de nós sentados a esta mesa viverá para ver esse dia. Juro-vos que morrerei de espada na mão, e com o abençoado nome de Jesus nos meus lábios ensanguentados, antes de ser obrigado a beijar os pés a Solimão.
— Assim o juramos todos — replicou Thomas, enquanto se benzia.
O silêncio imperou por momentos, até que Don Garcia prosseguiu.
— Decidi concentrar as minhas forças na Sicília. Sua Majestade informou as outras potências europeias de que, se querem aliar-se à nossa grande causa, devem enviar os seus homens e navios para se reunirem a nós na Sicília. Se a fortuna estiver do nosso lado, terei suficientes navios para enfrentar a frota de Solimão. E poderei zarpar para sul se ele resolver atacar Malta em primeiro lugar, ou para norte se ele se decidir pela Itália.
— Um plano sábio, senhor — concordou Thomas.
— Sábio? Sim. — Don Garcia sorriu. — Mas, se não receber todas as forças que me foram prometidas, poucas esperanças teremos de vitória.
Fadrique pigarreou.
— Por poucos que venhamos a ser, teremos Deus ao nosso lado. Não podemos ser derrotados. O Nosso Senhor é omnipotente, e não o permitirá.
O pai olhou-o com indulgência.
— Claro, tens toda a razão. — Voltou-se de novo para Thomas. — Parto amanhã para a Sicília com seis galeras em escolta a quatro galeões, que levam os primeiros dois mil homens para estabelecer a minha base de operações. De lá seguirei para Malta, para conferenciar com La Valette. Tenho todo o prazer em vos oferecer, e ao vosso escudeiro, lugares no meu navio-almirante.
— Senhor, aceitamos de bom grado a vossa generosidade.
— Nesse caso, peço-vos para estardes a bordo pela alvorada. Partiremos de imediato. — Don Garcia levantou-se da cadeira, e os outros imitaram-no. — Por agora, tereis de me perdoar. Há ainda muitos detalhes a tratar. Fadrique tratará de vos arranjar aposentos adequados aqui na cidadela, e levará os vossos cavalos para os estábulos.
— Não são meus, são propriedade real, foram-nos emprestados pelo capitão do porto de Bilbau.
— Nesse caso, serão incorporados no meu exército. Por agora desejo-vos um bom dia, senhores. Façam-me o obséquio de concluir a vossa refeição e de descansarem. Fadrique, vem comigo!
Apesar do seu volume, Don Garcia movia-se com grande energia, e afastou-se a passos largos, com o filho a apressar-se para o seguir. A porta fechou-se nas costas de ambos, e os passos desvaneceram-se à distância. Richard puxou o prato para si e recomeçou a comer imediatamente, antes de se interromper.
— As nossas hipóteses não parecem propriamente agradáveis.
Thomas encolheu os ombros.
— Foi sempre assim para a Ordem. Ao longo de toda a sua história.
— O ideal heroico — considerou Richard. — Ou talvez apenas uma forma de adicionar uma dose de glória a uma compulsão suicida.
— Cala a boca. Não sabes o que dizes. Os homens da Ordem juraram combater pela glória de Deus e por nenhuma outra razão. O suicídio é um pecado, como muito bem sabes. — Thomas refreou a irritação, e prosseguiu em tom menos exaltado. — Além disso, como afiançou o filho de Don Garcia, Deus está do nosso lado.
— Pois, uma mudança de ideias divina vinha a calhar. Ao que parece, não se lembrou disso quando a Ordem foi expulsa de Rodes pelo mesmo Solimão. E onde estaria Ele quando a Ordem quase foi dizimada na queda de Acre? O que vos faz pensar que Ele vos apoiará, nos apoiará, aliás, em Malta?
— Não fará mal à nossa causa depositar fé em Deus — contrapôs Thomas, embora partilhasse das dúvidas expressas por Richard. Olhou para ele, e surpreendeu-o a contemplá-lo.
— Pergunto-me uma coisa. Se a vontade de Deus é mesmo provocar tanto sofrimento àqueles que O adoram, qual será o Seu verdadeiro objetivo?
— Cuidado, Richard. O que dizes é uma blasfémia.
— É apenas uma questão filosófica. O que eu discuto é que ambos os lados deste conflito iminente combatem em nome das suas fés. Se os Turcos triunfarem, quererá isso dizer que Deus nos abandonou, ou que era a fé deles a mais fervorosa? Se a fé de ambos os contendores for igualmente poderosa, serão apenas os homens a decidir o resultado da refrega.
Thomas não podia discordar, mas se não se via a matar em nome de Cristo, não deixaria de combater para evitar ser morto em nome de Alá.
— Se forem os homens a decidir, pois que assim seja. Estou pronto a desempenhar o meu papel. — Levantou-se. — Preciso de andar um bocado.
— Quereis...
— Não. Fica aqui. Acaba de comer, traz as nossas bagagens e descansa. Descansa tudo o que puderes. Depressa isso se vai tornar um luxo que almejarás como nenhum outro.
— Menos o descanso eterno.
Thomas ponderou as palavras do jovem, e acabou por abanar a cabeça.
— Até esse te poderá parecer bem apetecível antes de esta história terminar.
13
A flotilha tinha deixado o porto de Palma na ilha de Maiorca havia apenas uma dúzia de horas, e Thomas e Richard aproveitavam a brisa fresca da manhã, quando foi avistada a primeira vela. Um marinheiro no cesto da gávea punha a mão em pala sobre os olhos enquanto esticava o braço para apontar o horizonte a norte, na direção do vento que soprava das costas francesas.
O capitão do navio-almirante dirigiu-se à amurada na popa e pôs a mão em concha sobre a boca.
— O que vês?
Deu-se uma curta pausa enquanto o homem percorria o horizonte com o olhar, esforçando a vista para recolher o máximo de detalhes. No convés principal da galera toda a gente ansiava por novidades.
— Avisto duas velas latinas, senhor.
— Muito provavelmente é uma galera — afiançou Thomas.
— Como podeis saber? — indagou Richard, enquanto esticava o pescoço e tentava ver alguma coisa acima da ondulação. — Eu não consigo ver nada.
— E nada verás durante um bom bocado ainda. Na próxima hora ou coisa parecida não se conseguirá avistar o casco.
— O casco?
Thomas sorriu ao recordar que o escudeiro tinha passado a maior parte da viagem desde Londres na cabina do galeão, enrolado em si mesmo, em completa miséria.
— Não tens grande conhecimento das coisas do mar.
— Pois não, e não tenho qualquer intenção de voltar a por os pés num navio assim que esta história acabar — concordou Richard com ênfase.
— Sendo um homem educado, já deves ter ouvido dizer que o mundo é redondo.
Richard lançou-lhe um olhar irritado.
— É evidente.
— Nesse caso, deve ser-te óbvia a razão pela qual o velame de um navio é avistado antes do casco, já que o horizonte curva.
Richard rangeu os dentes.
— Sim, eu sabia.
— Ó do convés! — gritou o vigia. — Avisto mais velas. Três... Não, são cinco, ou mais. Parecem galeras... Sim, estou certo disso.
— Vem. — Thomas puxou pela manga do escudeiro e juntos subiram uma pequena escada para se juntar ao grupo de oficiais que rodeava Don Garcia.
O capitão tinha deixado a amurada e dirigia-se ao comandante da frota.
— Corsários, senhor.
— É pouco provável — protestou Fadrique. — Se o fossem, porque se aproximariam vindos de norte? Os covis dessas ignóbeis criaturas situam-se na costa africana, a sul.
— Estão do lado do vento, senhor — explicou o capitão. Em tempos, Thomas falara espanhol com fluência, e agora estava a recuperar rapidamente o uso da língua; apercebeu-se de que conseguia seguir a troca de argumentos sem dificuldade. O capitão prosseguia. — Estão em vantagem sobre nós. Muito provavelmente seguem-nos já há vários dias, e rumaram a norte para ganhar essa vantagem do vento. — Deu atenção a Don Garcia. — Meu senhor, quais são as vossas ordens?
O comandante espanhol passou a vista pelas embarcações que compunham a sua flotilha. As galeras formavam um cordão disperso em torno dos galeões, que seguiam ao centro. Os grandes navios estavam apinhados de soldados com as suas armas e outro equipamento. Seriam presa fácil para qualquer galera corsária que conseguisse passar por entre os navios de escolta.
— Temos de proteger os galeões a todo o custo — anunciou Don Garcia —, partindo do princípio de que são navios inimigos. Não quero correr quaisquer riscos. Capitão, dê ordens para que os homens ocupem os postos de combate, e transmita essas ordens às outras embarcações, por favor.
— Sim, senhor.
No instante seguinte o tambor que seguia no convés principal começou a fazer soar um ritmo frenético, e os soldados apressaram-se a colocar armaduras e elmos e a preparar as armas, enquanto os marinheiros trepavam pelo cordame e se espalhavam pelas vergas, à espera da ordem para recolher as velas. Da coberta vinha o som do chicote a estalar e do gemer das madeiras quando os remos foram inseridos nas suas aberturas e se projetaram nos flancos do navio de Don Garcia. Thomas sentiu o pulso a acelerar perante os sons e a movimentação, e até perante o odor que vinha de lá de baixo. Velhas memórias e sensações foram despertadas no seu íntimo, enquanto a galera se preparava para a batalha. Virou-se para Richard.
— Traz-me a couraça, o elmo e a espada. E equipa-te também. — Richard assentiu e apressou-se a descer ao porão, onde a bagagem tinha sido colocada durante a viagem.
Entretanto fora içado no mastro um longo estandarte vermelho e dourado, que agora dançava ao vento. Pouco depois também as outras galeras içavam as suas flâmulas, e o som de tambores espalhava-se sobre as vagas enquanto todos se aprontavam para o combate.
— Ó do convés!
Os oficiais na ré olharam para cima ao escutarem o apelo, e notaram que agora o vigia apontava para o sul.
— Mais velas! Pelo menos umas cinco galeras.
— Quantos navios a norte? — quis saber o capitão.
O vigia rodopiou rapidamente e fixou o olhar antes de responder.
— Seis, senhor! Já os avisto sem dificuldade. Vejo os cascos.
— Consegues distinguir que cores ostentam?
— Ainda não, senhor.
— Será que não são os nossos aliados? — supôs Fadrique. — Genoveses, talvez?
O pai abanou a cabeça.
— Não aqui, tão a ocidente. O encontro está combinado na Sicília. Quase seguramente que se trata do inimigo. Corsários da costa da Barbária.
— Concordo — disse Thomas. — É uma emboscada clássica, Don Garcia. Já vi este cenário muitas vezes.
— Do ponto de vista do caçador, calculo.
— É verdade. Quando as galeras da Ordem operavam em conjunto, era assim que procediam. Suspeito que o inimigo aprendeu as nossas técnicas. Aliás, os corsários e os homens da Ordem são semelhantes em muitas coisas.
— Exceto pelo facto de a Ordem ser abençoada pela Igreja de Roma.
— Tal como os piratas muçulmanos são abençoados pelos imãs da sua fé, senhor. No fim de contas, ou somos todos guerreiros sagrados, ou todos somos simples piratas.
Don Garcia franziu o cenho.
— Uma opinião profundamente perturbadora, Sir Thomas. Não me apetece pensar no inimigo, no inimigo do único Deus verdadeiro, de tal forma. Gostaria que não voltásseis a usar tais termos na minha presença.
— Assim será, Don Garcia.
— Aquilo de que quero ouvir-vos falar é da tática que empregam. Tendes alguma experiência quanto a isso, bem mais do que eu. Como irão eles tentar derrotar-nos?
Thomas fez uma pausa para pensar, projetando mentalmente as posições das três forças e tomando em conta a direção do vento.
— Os alvos deles serão os galeões. São as embarcações mais vulneráveis, senhor. Os corsários sabem perfeitamente que é lá que encontrarão a carga mais valiosa. Porém, depressa descobrirão que estão apinhados de tropas. Logo, ou ficam a observar e tentam varrer o convés com metralha fina antes de ensaiarem a abordagem, ou tentam afundá-los, para matar tantos dos nossos soldados quantos conseguirem. O que lhes garantiria uma choruda recompensa do sultão.
— Nesse caso, como podemos agir de forma a fazer gorar esses planos? Será demasiado tarde para rumar de volta a Palma?
— Deve ter sido isso que eles calcularam. Seguem rumos convergentes. Se for dada ordem para a nossa flotilha inverter o rumo, eles farão o mesmo e continuarão a aproximar-se de nós. Estaríamos envolvidos em combate muito antes de atingirmos a proteção dos canhões de Palma, senhor.
— Nesse caso, Sir Thomas, o que me aconselhais a fazer?
— Manter as galeras o mais próximo possível dos galeões. Não podemos permitir que o inimigo quebre esse cordão protetor. Disponde uma galera à frente, uma atrás e duas de cada lado da formação. Os galeões terão de seguir a par, para assistência mútua no caso de o inimigo tentar abordá-los. O maior perigo virá quando o inimigo tentar atrair as nossas galeras para longe das suas posições. Isso não poderá ser permitido, senhor. Temos de manter a formação, aconteça o que acontecer. Dado que o número de galeras deles é o dobro do nosso, esta é a nossa única esperança.
— Muito bem. — Don Garcia assentiu. — Capitão, temos de nos aproximar de cada uma das nossas embarcações à vez, para lhes darmos as ordens. Trate disso.
— Sim, senhor — acedeu o capitão, antes de se chegar à amurada e gritar ordens para que os remos fossem colocados na água.
Richard regressou do porão carregado com todo o equipamento e armas de Thomas. Pousou o fardo no convés e colocou-se por trás deste, para o ajudar na colocação das placas frontais e dorsais da armadura.
À medida que a embarcação passava pelos outros navios na flotilha, o capitão usava um megafone para comunicar as ordens. Quando por fim todas as galeras tinham já recolhido o pano, colocado os remos na água e formado um escudo de proteção, as velas dos dois grupos de navios corsários que se aproximavam vindos de ambos os lados já eram bem visíveis do convés. Pouco depois, o vigia confirmava sem margem para dúvidas a identidade dos perseguidores.
— Têm estandartes verdes.
Richard aproximou-se de Thomas e murmurou uma pergunta:
— Verdes?
— A cor do Islão. — Thomas inspecionou o escudeiro, puxando pelo elmo. Richard usava um modelo comum, com o visor levantado, como fazia Thomas. — Tens o elmo demasiado largo. Aperta a correia.
— Se a aperto mais, acabo sufocado.
— E se o usares assim largo, à primeira pancada ele roda na tua cabeça e deixas de ver. Tombarás às mãos do primeiro corsário suficientemente rápido para te apanhar pelo lado cego.
A ranger os dentes, Richard desapertou a fivela e apertou mais a correia.
— Assim está melhor — concordou Thomas. Voltou a agarrar o elmo e a dar-lhe uma sacudidela. — E trata de usar manoplas, se queres manter os dedos todos.
— Sim, senhor. — Richard baixou a cabeça. — Como ordenais.
Thomas virou-se para avaliar o progresso do inimigo. As duas formações de galeras eram bem visíveis, a pouco mais de uma milha de ambos os lados. Os seus estandartes verdes ondulavam como línguas de cobra ao sabor do vento ligeiro que soprava sobre o oceano. Por entre os vultos distantes que ocupavam o convés das galeras, cintilavam de vez em quando reflexos da luz em metal polido. Thomas sentiu algum alívio pela primeira vez desde que as embarcações tinham sido avistadas, já que notou que eram mais pequenas que as galeras da flotilha de Don Garcia. Aqueles cascos não levavam a bordo o mesmo poder de fogo, e não conseguiriam ímpeto suficiente para causar danos aos navios espanhóis em caso de colisão. Ainda assim, constituíam uma séria ameaça aos galeões, sobre os quais tinham uma tremenda vantagem de velocidade e manobrabilidade. Seria uma competição entre rapidez e poder puro, e Thomas lembrou-se dos combates de ursos a que tinha assistido em Londres. Ali ao menos os ursos, embora pesados e lentos em comparação com os seus verdugos, não estavam acorrentados.
— Aí vêm eles. — Anunciou o capitão.
Uma nuvem de fumo surgiu e dispersou-se velozmente à proa da galera que liderava o grupo a sul, e pouco depois o som de um disparo de canhão chegou aos ouvidos de quem seguia na popa do navio-almirante. O corsário alterou o rumo, dirigindo-se diretamente para a flotilha espanhola, e as outras galeras imitaram-no. Quando o som do sinal alcançou as galeras a norte, também elas aproaram à força comandada por Don Garcia. Este observou as manobras inimigas e lançou uma pergunta a Thomas, sem esconder a ansiedade que sentia.
— O que é que eles tencionam fazer? Como agiríeis no lugar deles?
Thomas cerrou os lábios e virou-se para avaliar mais uma vez a aproximação do inimigo. Estariam em cima dos navios espanhóis em menos de meia hora. Não havia tempo a perder. Não gostava de ter sido colocado naquela posição por Don Garcia, mas a verdade é que o espanhol tinha razão. Havia poucos cristãos em todo o Mediterrâneo que conhecessem melhor a forma de combater daquele inimigo do que os cavaleiros da Ordem. Avaliou rapidamente os rumos convergentes e limpou a garganta.
— Senhor, eles vão tentar forçar a formação. Se conseguirem atrair as galeras para fora das suas posições, poderão passar entre elas e causar grande destruição nos galeões. Nesta formação em que estamos, cada uma das nossas galeras pode cobrir o espaço que lhe está à frente. Os corsários não conseguirão passar entre elas sem se colocarem ao alcance das bocas de fogo montadas nas proas dos nossos navios. E os barcos deles são suficientemente pequenos para poderem ser afundados por um tiro bem colocado, ou pelo menos forçados a abandonar o combate. A única posição que não podemos cobrir com as nossas armas é a popa desta galera. Mas enquanto mantivermos a formação, poderemos oferecer proteção aos galeões.
Don Garcia considerou as palavras que escutara e assentiu.
— Estou a ver. Muito obrigado. Capitão!
O comandante do navio virou-se de imediato para ele.
— Senhor?
— Ouviste o que disse Sir Thomas. Mantém o rumo e a posição. Avisa as equipagens dos canhões que têm permissão para disparar à vontade sobre quaisquer navios inimigos que se cruzem à nossa frente.
— Sim, senhor.
Don Garcia virou-se de novo para Thomas.
— Agora resta-nos esperar e ver se tendes razão quanto às intenções do nosso inimigo.
Os corsários ainda navegavam à vela, e a manobra era conduzida com saber, de tal forma que à medida que convergiam para a força espanhola, também se lhe adiantavam. Quando por fim já tinham um bom quarto de milha de avanço, viraram de bordo, apontando à flotilha enquanto recolhiam as velas e aprontavam os remos para a aproximação final, num rumo perpendicular ao que era seguido pelos navios de Don Garcia.
— Chegou a hora de sermos testados — avisou Thomas, em tom calmo. Richard, a seu lado, lançou-lhe um olhar inquisidor, e Thomas acenou com a cabeça na direção do navio corsário mais próximo. — Olha para a proa.
Richard reparou no longo cano e no orifício escuro na ponta do canhão saliente da portinhola que se situava na proa da galera. Tendo-se colocado à frente do comboio espanhol, os corsários aproximavam-se dos navios da frente a seu bel-prazer. Avistou-se um jato de chamas seguido do elevar de uma pequena nuvem de fumo acinzentado numa das galeras, e Thomas avistou fragmentos de madeira a explodirem quando a bola de ferro penetrou no casco da galera espanhola mais adiantada. O estrondo do disparo alcançou o navio no momento em que os outros corsários disparavam também, e atingiam a galera da frente com mais dois tiros, enquanto outra bala caía na água, levantando um enorme repuxo. Um novo disparo vindo de um canhão carregado com pregos e correntes atingiu o convés da galera, varrendo os homens lá colocados como se tivessem sido atingidos por uma mão gigante.
— Mantém o rumo — sussurrou Thomas para si mesmo, enquanto observava. — Aguenta.
O comandante da galera manteve o mesmo rumo e absorveu o fogo inimigo, até deixar de estar na sua linha de fogo. Esse lugar foi ocupado pelas duas galeras que ladeavam os galeões. Os corsários estavam agora mais perto, e até se preocuparam em recuar ligeiramente à força de remos, para se manterem a uma distância que não permitisse aos arcabuzeiros espanhóis atingi-los. Thomas recordou que, na última vez que tinha estado envolvido numa batalha naval, os soldados da Ordem mal tinham começado a empregar o arcabuz. Na altura, não tinha apreciado a nova arma, já que era barulhenta, levava imenso tempo a carregar, muito mais do que uma besta, e era difícil de utilizar. Mas tinha acabado por prevalecer e se tornar fundamental.
Apesar de os corsários se encontrarem a mais de trezentos passos das galeras espanholas, os soldados não iam ficar à espera dos disparos inimigos sem tentarem responder. Pequenos repuxos surgiram na superfície do mar à frente das proas inimigas, e alguns tiros obtiveram mesmo algum êxito, traduzido na queda para o mar de uma figura do convés de um dos navios. A resposta foi consideravelmente mais letal, já que os disparos quase simultâneos dos corsários fizeram cair uma tempestade de metal cortante sobre os flancos dos navios espanhóis. Muitos homens foram derrubados, e as velas rasgadas, deixando as pontas soltas a flutuar ao vento como serpentes enraivecidas: os estilhaços de madeira que voavam pelo ar fizeram ainda mais estragos.
A proa da galera mais à esquerda começou a mudar de direção, apontando ao inimigo; a rotação acelerou quando os remos de bombordo ficaram pendurados fora de água e o ímpeto que levava fez a galera rodar de forma a enfrentar os que a flagelavam.
— Idiota! — soltou Thomas, enquanto os seus dedos se fechavam como garras sobre a amurada. — O idiota.
A galera disparou sobre os corsários assim que os seus canhões na proa tiveram linha de fogo. Nem sequer houve qualquer tentativa de estabilizar o navio e procurar melhores condições para os disparos. Ainda assim, uma das balas entrou precisamente pela portinhola do canhão sob o castelo de proa da galera inimiga mais próxima, e prosseguiu o seu caminho destruidor ao longo do comprimento da embarcação, matando remadores, destruindo bancos e estilhaçando remos, que saltavam ao longo do casco. O outro disparo tombou de forma inócua sobre o mar à frente da galera, lançando sobre os corsários que brandiam as suas armas na amurada nada mais do que alguns salpicos.
Assim que a galera espanhola fizera menção de mudar de rumo, os outros corsários tinham retomado o avanço, passando de ambos os lados da embarcação, de modo a aproveitarem da melhor forma a brecha que se abrira na formação de proteção aos galeões. O navio corsário danificado pelo disparo estava imobilizado, já que era preciso limpar as baixas entre os remadores, atirar os cadáveres para o fundo do porão, e redistribuir os sobreviventes pelos remos ainda utilizáveis. Enquanto o navio oscilava na ondulação, a galera espanhola continuou a atacá-lo, derrubando o mastro da vante e transformando a proa numa ruína de estilhaços e madeiras disformes. Thomas continuou a observar, tomando nota de que aquele corsário já não conseguiria envolver-se na batalha, e teria sorte se conseguisse evitar o afundamento. Pouco conforto lhe dava tal ideia, porém, já que as outras cinco galeras inimigas tinham agora caminho livre para se lançarem sobre os galeões. Um coro de estalidos soou quando os corsários trocaram salvas de fogo miúdo com a tripulação de uma galera, seguido do estrondo de um canhão vindo da galera que seguia à frente e à esquerda do navio em que Thomas se encontrava. O disparo atingiu a ré do corsário mais adiantado, derrubando os oficiais que lá se tinham juntado.
— Senhor. — Thomas virou-se para Don Garcia. — Temos de impedir os corsários de chegarem junto dos galeões.
— Isso vejo eu, obrigado. Temos de nos aproximar mais deles.
Thomas deitou outro longo olhar à cena até perceber que uma das embarcações inimigas ostentava uma flâmula de muito maiores dimensões que as outras. Apontou-a.
— Aquele ali deve ser o navio do líder do grupo.
Don Garcia seguiu a indicação com o olhar.
— Se conseguirmos tomá-lo ou afundá-lo, os outros poderão ficar desencorajados, senhor.
— E a formação? Se perseguirmos aquela embarcação, não poderemos continuar a cobrir a retaguarda das outras nossas galeras.
— É tarde de mais para isso. A formação só serve enquanto todos os navios mantêm a posição. — Thomas fez um gesto na direção da galera que continuava a fustigar o navio corsário já sem mastro, a afundar pela proa. — Agora, senhor, é cada navio por si mesmo.
14
–Capitão! — chamou Don Garcia, enquanto se dirigia para junto da balaustrada que dava para o convés principal. — Altere o curso para nos dirigirmos contra aquele corsário com o estandarte mais longo. Está a vê-lo?
— Sim, senhor.
— Os artilheiros que se preparem. Temos de o destruir rapidamente.
Enquanto o capitão transmitia as ordens, Thomas apreciou o desenrolar do ataque corsário. Cinco navios tinham conseguido esgueirar-se por entre a escolta, e aproximavam-se dos galeões, para dispararem à queima-roupa. Um dos navios inimigos tinha entretanto recolhido o pano, e viam-se figuras a correr pelo convés da popa, em busca de oficiais sobreviventes depois de uma descarga de metralha fina que os tinha ceifado. Por trás dos corsários, a galera espanhola responsável pelo estrago estava a rodar para voltar a juntar-se à batalha em volta dos galeões. A sul, as duas galeras encarregadas de proteger o flanco mantinham a posição, apesar de estarem sob fogo do segundo grupo de corsários.
— O que vai fazer agora o inimigo? — quis saber Richard.
Thomas ponderou a situação antes de responder.
— Se seguirem o que é habitual, vão tentar rasgar o cordame e as velas de forma a deter os galeões, e depois vão tentar limpar o convés com metralha fina, antes de tentarem a abordagem. Mas não têm tempo para isso. Acho que vão disparar sobre o convés de forma a provocar o maior número de baixas possível, antes de retirar. E depois vão repetir o padrão. Enquanto conseguirem manobrar com agilidade e evitar colisões, vão poder continuar com esses ataques rápidos aos galeões. — Inspirou o ar através dos dentes cerrados. — Os soldados a bordo vão ser muito castigados, a não ser que consigamos afastar os corsários.
O tambor que marcava o ritmo acelerou, e o navio-almirante virou-se para o líder inimigo que refreava a velocidade ao aproximar-se de um dos galeões. Viu-se um clarão e uma nuvem de fumo saiu da proa quando o canhão disparou sobre o galeão espanhol. Tal como Thomas temera, o tiro fora apontado ao convés, e abriu grandes clareiras no seio dos soldados ali apinhados. Pequenos relâmpagos e nuvens surgiram na amurada quando alguns dos homens equipados com arcabuzes ripostaram. As outras embarcações dos corsários tomaram posições em frente ao galeão e dispararam também, e os oficiais na galera de Don Garcia contemplaram desesperados e impotentes o preço que os seus soldados estavam a pagar.
— Porra, esta coisa não consegue andar mais depressa? — sibilou Richard, frustrado. — E porque é que ninguém dá ordem para abrirmos fogo? Já os temos ao alcance com toda a certeza.
Estavam a pouco mais de um quarto de milha do navio que liderava o ataque inimigo, mas este estava numa linha reta com o galeão.
— Não podemos disparar — apercebeu-se Thomas. — Arriscávamos atingir os nossos próprios homens.
O capitão também já se tinha apercebido desse perigo, e alterara a rota pelo tempo suficiente para garantir que o galeão não estaria na linha de tiro quando a galera voltasse ao rumo inicial. As outras galeras espanholas que ocupavam o flanco norte viravam de bordo para enfrentar o inimigo; as tripulações soltavam gritos de guerra enquanto tentavam auxiliar os camaradas que morriam no convés do galeão. Os corsários estavam atentos ao perigo, e os remos das suas embarcações mergulharam nas ondas de forma a virar também e se lançarem ao ataque sobre o galeão seguinte, abandonando o primeiro com madeiras estilhaçadas e vários ribeiros de sangue a saírem pelos escoadouros do casco. Os rostos dos homens na popa elevada do segundo galeão eram apenas pálidos pontos amedrontados que assistiam ao aproximar dos corsários, e Thomas conseguia imaginar o medo que lhes torcia os estômagos enquanto se preparavam para sofrer o mesmo destino que os seus camaradas tinham conhecido havia poucos momentos.
A perseguição aos desajeitados galeões tinha-se transformado numa caça fácil, já que as elegantes embarcações dos corsários avançavam rapidamente sobre as suas presas. O inimigo refreou a velocidade ao aproximar-se do segundo galeão, e os primeiros disparos atingiram-no na popa, rebentando com os painéis pintados e abrindo buracos no casco.
— Capitão, já os temos ao alcance? — quis saber Don Garcia, o punho cerrado sobre a pega da espada, de tal forma que os nós dos dedos estavam brancos.
O capitão avaliou a distância em silêncio, antes de responder.
— Senhor, ainda estamos um tanto longe. Mas talvez um tiro de sorte consiga produzir efeito.
— Então dá a ordem. De imediato.
O convés estremeceu quando troou o primeiro canhão, soltando uma nuvem de fumo que obscureceu a vista do alvo durante alguns instantes. O vento limpou o fumo enquanto os homens na ré se esforçavam por perceber se o disparo tinha tido sucesso. O navio subiu uma onda e Thomas e os outros avistaram um círculo de espuma branca rodeado por pequenas ondas, na água junto à popa da galera inimiga.
— Foi perto. — Don Garcia assentiu para si mesmo. — Fogo à vontade.
O segundo canhão disparou, e um golpe de vento afastou de imediato o fumo, permitindo observar uma secção da popa inimiga a explodir em pedaços. Soltou-se uma aclamação dos membros da tripulação, e alguns agitaram os punhos, celebrando.
— Os homens que carreguem os canhões com correntes e metralha — sugeriu Thomas. — E apontem aos remos. Se os destruirmos, facilmente poderemos colocar-nos ao seu lado, abordá-los e pôr fim ao combate.
Don Garcia anuiu e deu a ordem ao capitão, para que a transmitisse às equipagens dos canhões. Estas afadigavam-se a preparar as armas para novos tiros, enquanto o navio se aproximava do inimigo. Estavam a cerca de duzentos passos quando as bocas de fogo rugiram novamente. O primeiro disparo rasgou a superfície do oceano por trás dos remos de bombordo, destruindo os últimos da fila. No momento seguinte, o outro tiro acertou em cheio no objetivo. Pás e cabos saltaram para todos os lado, estilhaçados pelo impacto das correntes metálicas projetadas a alta velocidade. O navio corsário rodou de imediato, expondo todo o bordo, oferecendo um alvo perfeito para os artilheiros espanhóis.
— Castiguem-nos! — gritou Fadrique, a voz esganiçada com a excitação.
O pai lançou-lhe um olhar desaprovador, antes de centrar a atenção na galera inimiga. Os canhões disparavam a bom ritmo, já que as equipagens os recarregavam a toda a velocidade. A embarcação espanhola avançou sobre o corsário, e, à medida que a distância diminuía, mais devastadores eram os tiros, despedaçando remos, abrindo buracos nas madeiras e reduzindo homens a restos ensanguentados sobre o convés. Ainda assim havia uma resposta sob a forma de tiros de arcabuz que saíam da galera corsária e encontravam alvos no navio espanhol. Thomas viu o peito de um dos artilheiros explodir ensanguentado quando foi trespassado por uma bala de chumbo.
— Richard, vem comigo — ordenou, e desceu para o convés, dirigindo-se para vante até junto dos homens armados que se apinhavam entre os dois mastros. Os soldados tinham couraças e elmos, e os braços e coxas eram protegidos por vestes acolchoadas. Alguns empunhavam escudos e espadas pesadas, e traziam maças com pontas de ferro à cintura. Outros tinham piques curtos, que manobravam com as duas mãos. Thomas virou-se para o escudeiro e examinou-o de alto a baixo, testando as articulações e a fivela por baixo do queixo, até anuir, satisfeito.
— Estás pronto.
Richard concordou com um aceno demasiado rápido, e Thomas viu o medo nos seus olhos. Um medo familiar — o terror de um homem que pela primeira vez enfrenta uma batalha, a cabeça cheia do medo de ser ferido, ou de se portar de forma desonrosa. Thomas pousou-lhe uma mão no ombro e falou-lhe num tom suficientemente alto para ser escutado sobre os estalidos dos mosquetes e do bater do tambor na coberta.
— Mantém-te junto a mim. Preciso que me protejas o flanco. Estás pronto?
— Sim... Claro... Porque é que estamos a fazer isto?
Thomas franziu o sobrolho.
— O que é que queres dizer?
Richard fez um gesto abarcando os homens em redor.
— Lutar. Esse é o trabalho destes soldados. Nós não passamos de passageiros.
— Sou um cavaleiro. O meu dever é lutar. Como é teu também, já que te consideras meu escudeiro.
— Sim, sim, tendes razão. Mas o nosso lugar é além no convés da popa, e o nosso dever é defender Don Garcia com as nossas próprias vidas. É lá que devemos tomar posição.
Thomas olhou para o seu companheiro sem raiva ou desprezo perante a relutância do jovem em combater; sentia apenas algum desapontamento por Richard resistir à oportunidade de se pôr à prova. Se o jovem não conseguisse enfrentar os seus receios e avançar para o perigo, seria atormentado pela falta de confiança durante todo o resto da sua vida. Não era por amor à violência que Thomas decidira avançar e juntar-se aos homens que se preparavam para abordar a embarcação inimiga já tão próxima. Como dissera, tratava-se de um dever. Mas era mais do que isso. Para lá das suas dúvidas de consciência quanto àquela interminável guerra entre fés religiosas, as circunstâncias tinham-no colocado naquele conflito em particular, e portanto combateria e mataria sem qualquer reserva.
— Don Garcia está rodeado pelos seus oficiais. Está a salvo. O nosso lugar é aqui, onde podemos ter um efeito mais relevante do desfecho da refrega. É ao lado destes homens que combateremos.
A boca de Richard ia abrir-se num protesto, mas Thomas interrompeu-o antes que um som fosse pronunciado.
— Basta de palavras. Endurece o coração e agarra bem na tua espada.
O jovem engoliu em seco, ansioso.
— Devo orar?
— Se assim o desejas. Muitos homens fazem-no antes de uma batalha, mas nunca vi tal facto protegê-los de bala ou lâmina. — Sorriu de forma reconfortante. — Pensa apenas em sobreviver, e faz tudo o que for necessário para que isso aconteça. É esse o único pensamento adequado e correto a um soldado que se prepara para uma batalha. Pronto?
Richard respirou fundo.
— Estou pronto, Sir Thomas.
Os mastros e obras-mortas da galera corsária já ocupavam a maior parte do céu. Os artilheiros espanhóis fizeram os seus últimos disparos sobre o convés inimigo, antes de ser dada a ordem para virar a bombordo. Os remos do lado indicado mergulharam na água, enquanto os de estibordo davam um último impulso, antes de o encarregado ordenar aos remadores que os recolhessem. Escutou-se um barulho surdo na coberta quando os longos cabos de madeira foram puxados para dentro da embarcação. A ré do corsário passou rapidamente ao longo do bordo do navio espanhol, antes de as embarcações ficarem lado a lado. Thomas avistou os combatentes inimigos a acorrerem à amurada, lançando gritos de guerra e insultos à medida que o espaço entre os navios diminuía.
— Lançar ganchos de abordagem! — gritou o capitão, com as mãos em concha. Os marinheiros, a postos com os ganchos presos a baraços de corda, fizeram-nos rodar sobre a cabeça antes de os lançarem sobre o espaço vazio. Voaram sobre a água, levando atrás de si as cordas a serpentearem, e mergulharam para fora de vista pelo meio dos vultos que cobriam o convés da outra galera. De imediato, vários espanhóis pegaram nas cordas e começaram a puxar, apoiados na amurada, de forma a aproximar as duas embarcações. O ar encheu-se dos estalidos dos arcabuzes e dos gritos excitados dos homens à espera da oportunidade de se lançarem na batalha.
Uma vaga fez subir o navio de Don Garcia, que se abateu sobre o corsário, fazendo os homens a bordo dos dois navios quase perder o equilíbrio. O capitão lançou novo brado.
— Amarrem os cabos!
Os homens encarregues dos ganchos retesaram as cordas e prenderam-nas aos cunhos para garantir a amarração dos dois navios. Os soldados espanhóis lançaram pranchas sobre o estreito espaço entre as galeras e treparam às amuradas, lançando brados de desafio aos corsários que os esperavam. Thomas abriu caminho por entre os soldados, agarrou-se a uma enxárcia e trepou à amurada. Desembainhou a espada e olhou em volta para confirmar que Richard estava mesmo ao seu lado. À sua direita, um enorme sargento com um elmo aberto ostentando padrões elaborados apontou com a espada para o inimigo e urrou:
— Rapazes, comigo! Morte aos infiéis!
O homem saltou sobre a abertura e aterrou na amurada, mas o ímpeto fê-lo avançar, de forma a tombar no meio dos rostos escuros de vestes largas e das lâminas recurvas que o aguardavam. Pôs-se de pé com outro grito selvagem, e começou a desferir uma tempestade de golpes em redor, atacando freneticamente os homens que se tentavam escapulir do seu alcance. O sangue depressa começou a correr. Alguns soldados imitaram o sargento, mas outros preferiram correr pelas pranchas.
Thomas inspirou profundamente e saltou também. Durante um instante, avistou o fio prateado da faixa de água entre as duas galeras, mas logo tombou sobre um inimigo, um tipo pequeno em roupas de algodão sujas, e de turbante apertado na cabeça. Os dois homens rebolaram pelo convés, e Thomas lançou o braço esquerdo para se empurrar para cima assim que os pés encontraram onde se apoiar. Sentiu um bafo quente na cara e percebeu então que o homem em cima de quem caíra gritava de fúria, preso debaixo do peso de Thomas. Bateu com o punho da espada no rosto do outro, calando-o. Bateu-lhe de novo, com mais força ainda, sentindo os ossos a quebrarem-se perante a força do golpe. Agachou-se e trouxe a lâmina para a sua frente. Outro espanhol aterrou à sua direita, e nesse momento os corsários avançaram, numa tentativa de abater os atacantes antes que estes conseguissem dominar o convés.
Distinguiu algo a rebrilhar à sua esquerda, e avistou uma lâmina a cortar o ar, direita ao seu ombro. O golpe retiniu-lhe aos ouvidos quando o gume resvalou ao longo da proteção metálica. O gibão acolchoado que usava por baixo absorveu grande parte do impacto, e Thomas afastou a lâmina com o antebraço e desferiu um golpe no braço desprotegido do inimigo, abrindo-lhe uma ferida sem dificuldade com o aço bem temperado da sua espada. A espada do corsário caiu no convés e o sangue escorreu por cima dela, enquanto o homem recuava de dentes cerrados perante a dor. Thomas olhou para os dois lados rapidamente e viu um espanhol à sua direita a dobrar-se sobre si mesmo quando um grande mouro com uma cota de malha e um elmo de crista lhe enterrou um pique no estômago, fazendo-o recuar até à amurada e ser trespassado até que a ponta metálica se foi cravar na madeira.
Enquanto o mouro recuperava a sua arma, Thomas desferiu uma estocada contra o seu dorso, mas a cota de malha resistiu ao ataque. O homem grunhiu de dor e virou a ponta ensanguentada do pique contra Thomas. Ao avistar a armadura, porém, deixou a ponta descair e optou por tentar atingi-lo nas virilhas. Vinte anos antes, Thomas ter-se-ia esquivado sem dificuldade, mas naquela altura a sua única opção foi atirar-se para o lado, sobre o espanhol moribundo que tinha largado a sua arma e permanecia de boca aberta a contemplar o rasgão nas suas roupas e as tripas gordurosas e acinzentadas que tinham sido repuxadas pelo recolher do pique do mouro.
Thomas recuperou o equilíbrio e revidou, atacando a cabeça do outro. A lâmina embateu na guarda do rosto, dobrando-a, e a mandíbula do mouro sofreu o impacto e esmigalhou-se. O sangue e alguns dentes espirraram da boca aberta. Por momentos, o homem ficou atordoado e Thomas recuperou a espada e lançou uma estocada à garganta, retirando a lâmina e fazendo jorrar o sangue. Voltou a agachar-se, reposicionou a espada com a ponta, que ainda pingava, para cima, e olhou em redor. Os espanhóis continuavam a saltar para o convés inimigo e a envolverem-se na refrega. Um impacto à sua esquerda fê-lo rodopiar rapidamente, até que viu Richard de olhos esbugalhados e uma mão a tentar desviar a ponta da sua espada.
— Mantém-te perto de mim — ordenou-lhe, e avançou cuidadosamente pelo convés. A confusão era grande, mas notava-se que os espanhóis avançavam, abatendo todos os que estivessem ao seu alcance e abrindo espaços para que mais dos seus se juntassem ao embate. Perto da popa, Thomas avistou um homem de finas vestes, com um blusão verde, a conduzir um grupo de homens para o convés, e apercebeu-se de que devia ser o comandante inimigo com os seus oficiais. Se o conseguisse abater, o resto da tripulação depressa se renderia, decidiu. E sem líder, os outros navios corsários também poderiam perder a coragem e interromper o ataque.
— Por aqui! — Apontou para o homem e acenou a Richard para que o seguisse. Não tinham dado muitos passos até se depararem com um grupo de corsários a bloquear-lhes a passagem — cinco homens, sem armaduras, mas possuidores de escudos e cimitarras pesadas. Tinham-se mantido na retaguarda, mas ao verem os dois cristãos à sua frente, recuperaram a confiança e lançaram-se sobre eles com gritos de raiva. Thomas aparou um golpe, mas quase em seguida uma segunda lâmina embateu contra o cimo reforçado do elmo. Piscou os olhos e ripostou, golpeando um escudo até o fazer descer e poder agarrá-lo com uma mão e arrancá-lo das mãos do inimigo, ao mesmo tempo que o agredia com o punho da espada na face.
Mal deu conta da ação que se desencadeava à sua esquerda; ouviu Richard a lançar uma imprecação, antes de um choque selvagem de lâminas. Mas estava já entretido com um novo adversário, um homem de idade, uns dez anos mais velhos do que ele. Avaliaram-se mutuamente durante alguns segundos. Então o corsário tentou uma finta para testar a reação de Thomas. Este não reagiu, mantendo-se em posição. O segundo ataque foi a sério, e o inglês teve de aparar três golpes antes de tentar uma resposta que foi desviada no último momento pelo escudo do outro. Ao recuperar a posição da espada e voltar a atacar, desta vez ao rosto do inimigo, a bota de Thomas tropeçou no braço de um corpo esparramado no convés, e ele cambaleou e caiu para a frente, ficando à mercê do corsário que avançou sobre ele. Rolou para o lado e levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça, disposto a perdê-lo se isso significasse a sobrevivência. O corsário levantava a cimitarra, e o seu semblante mostrava uma expressão de triunfo quando desferiu o golpe fatal. Um relâmpago metálico pareceu surgir do nada, bloqueando a cimitarra, e outro movimento rápido em arco provocou um grunhido profundo.
Por momentos tudo pareceu acalmar-se, até que Thomas sentiu gotas quentes a tombar-lhe no rosto. Piscou os olhos para os limpar, e sentiu uma mão a colocar-se por baixo do seu braço e a pô-lo de pé. Richard olhava-o com ar preocupado.
— Senhor, estais ferido?
— Não... acho que não. — Thomas sacudiu a cabeça, e só então viu os dois corpos ao lado. Ambos abatidos por uma estocada direita ao coração. Richard empunhava a espada numa mão. Com a outra, sacou de uma adaga de folha larga. O homem que Thomas estivera a combater jazia de costas, as pernas ainda a remexer, enquanto apertava o pescoço com ambas as mãos e tentava impedir o sangue de sair às golfadas pela ferida por baixo do queixo. Richard avançou, ligeiramente inclinado para a frente, os braços descaídos ao lado do corpo, as duas armas prontas para a ação. Um africano entroncado com uma maça de pontas eriçadas tinha surgido no caminho e lançou um grito selvagem enquanto fazia descer a arma num arco. Thomas observou a forma como o seu escudeiro se esquivava agilmente ao ataque e de imediato cravava a adaga no grosso braço do inimigo e a arrancava rapidamente, rasgando-lhe o músculo. O africano urrou de agonia, mas conseguiu não largar a maça e voltar a lançar um golpe à cabeça do escudeiro. De novo Richard se desviou facilmente, e desta vez girou a espada, fazendo a ponta ir cravar-se sob as costelas do corsário. O próprio ímpeto do outro fez o resto; a lâmina avançou, trespassando órgãos vitais e vasos sanguíneos. Richard deu um passo à retaguarda enquanto torcia a lâmina e a puxava, antes de voltar a tomar posição.
Thomas respirava pesadamente e acenou um agradecimento.
— Obrigado, jovem Richard — disse, em tom rouco.
— Mais tarde haverá tempo para isso — foi a resposta pronta. O jovem avançava já, interpondo-se entre dois corsários que lutavam costas com costas. Os dois foram despachados com golpes de fina execução de que nunca se aperceberam sequer, e Richard deu ainda dois passos antes de se deter o tempo suficiente para que Thomas o alcançasse e voltasse a tomar o comando.
— Agora, faz o que te disse e mantém-te aí ao meu lado — lembrou.
— Como desejardes.
O combate em redor estava claramente a pender para o lado dos espanhóis. Os corsários já tinham sofrido pesadas baixas quando os disparos dos canhões com correntes tinham varrido o convés, e agora estavam já encurralados na proa e na popa, restando apenas um punhado de homens na zona central entre os dois mastros. Thomas e Richard já não estavam a mais de dez passos do ponto onde o comandante dos corsários e os seus oficiais combatiam o magote de espanhóis que os envolvia, todos eles ansiosos pela honra de abater o comandante inimigo e poder saquear o corpo. Porém, já vários dos seus camaradas tinham caído sob os golpes das ricas cimitarras dos corsários e, enquanto Thomas observava, outro teve a mesma sorte, quando a lâmina do líder inimigo lhe rasgou a clavícula e se cravou no seu peito, fazendo-lhe o braço direito tombar para o lado enquanto caía de joelhos. Thomas já estava suficientemente perto para ver as rugas no rosto do corsário, e a cicatriz que lhe cruzava a testa e a maçã do rosto. Tinha também perdido um olho. O outro rebrilhava, como os seus dentes, no seio do semblante feroz, escuro e curtido.
— Abram caminho! — gritou Thomas aos soldados espanhóis que enfrentavam os oficiais inimigos. — Para o lado, tu aí!
Empurrou um dos soldados para fora do caminho e abriu passagem entre outros dois, até se ver face a face com o comandante inimigo. Erguendo a espada, Thomas gritou:
— Mantenham as posições! Mantenham as posições!
Os espanhóis olharam-no, até que por fim a razão se sobrepôs e recuaram um passo, mantendo os oponentes sob vigilância.
Thomas ergueu a mão esquerda e apontou-a diretamente ao comandante dos corsários.
— Entrega o teu navio.
O outro não precisava de saber inglês para perceber o que lhe era ordenado, e os seus lábios torceram-se em desdém antes de cuspir no convés aos pés de Thomas. Este ignorou o insulto e virou ligeiramente a cabeça para o escudeiro, mantendo porém o corsário bem à vista.
— Diz-lhe que o combate está terminado. O navio é nosso. Se se render, ele e os seus homens serão poupados. Se não o fizer, serão todos mortos. — Baixou a voz. — Já tenho suficiente sangue nas minhas mãos, não preciso de mais. Diz-lhe.
Richard cumpriu as instruções. O corsário riu e abanou a cabeça. Rosnou uma resposta, ergueu a cabeça com altivez e contemplou Thomas com fúria, através do único olho que lhe restava.
— Ele responde que preferia morrer mil vezes do que aceitar a misericórdia vinda do filho de um chacal — traduziu Richard.
15
Não havia traço de tristeza ou remorso no coração de Thomas enquanto devolvia o olhar; apenas fúria pela desnecessária perda de vidas a que o corsário obrigara os seus próprios seguidores. Sentia o fogo a percorrer-lhe músculos e tendões enquanto mantinha os dedos aperrados no punho da espada, e anuiu sombriamente.
— Se é esse o seu desejo, pois que assim seja. — Limpou a garganta, e respirou fundo, de modo a que todos o escutassem. — Não há quartel! Abatam esses cães!
De ambos os lados, os espanhóis começaram a avançar, de espadas e piques bem apontados na direção dos corsários. Thomas esbracejou, enquanto gritava:
— Esse não! Não matem o de verde. O capitão é meu!
Os homens nas proximidades afastaram-se ligeiramente, abrindo um pequeno espaço onde Thomas e o corsário começaram a avaliar-se mutuamente. O momento passou rapidamente, e Thomas avançou, atacando com todo o seu poder. Não fez qualquer finta, já que o golpe que desferia tinha por objetivo terminar o duelo com um único movimento. Mas o corsário desviou-se com agilidade, dando um passo ao lado e aparando o golpe, dando ocasião a Thomas de perceber a tremenda força física daquele adversário quando as lâminas se cruzaram. Entretanto, a parada tinha-se tornado um contragolpe, com a lâmina a subir e a vibrar na direção do rosto de Thomas. Mal teve tempo para elevar a mão com que segurava a espada e bloquear a estocada com o punho da arma. No ar entre os dois homens choveram fagulhas. Avançou, aproximando-se tanto do corsário que este ficou sem espaço para manejar a espada. Com a mão esquerda agarrou a garganta do outro, apertando os dedos em torno do lenço de seda que rodeava o pescoço do homem. O corsário largou a cimitarra e tentou afastar-lhe a mão. Ao mesmo tempo, com a outra mão tentava afastar a espada de Thomas, fechando os dedos no punho da lâmina. Enfrentaram-se na busca de uma vantagem, de olhos presos um no outro. Um cheiro adocicado atingiu-lhe as narinas, enfrentando o fedor vindo dos remadores na coberta e o ar salgado do oceano. Sentiu que a mão esquerda era forçada para trás e percebeu que o corsário era mais forte do que ele. Foi um pensamento relampejante, mas foi o suficiente para um primeiro arrepio de temor lhe correr pela espinha.
— Não — silvou, enquanto inclinava a cabeça e a projetava para a frente com violência. A crista do elmo atingiu o corsário na testa, arrancando-lhe uma tira de pele. O homem rugiu de dor e fúria, e afrouxou a mão o suficiente para Thomas libertar a mão esquerda. Abriu os dedos e colocou-os sobre o peito do outro, empurrando com toda a força que conseguiu reunir. O corsário cambaleou, acabou por tropeçar e caiu pesadamente sobre o convés. Antes mesmo que o impacto lhe empurrasse o ar para fora dos pulmões, a ponta da espada de Thomas colheu-o no ventre, por baixo da placa que usava sob o vistoso casaco verde, e rasgou-lhe as entranhas até ao limite do braço esticado do cavaleiro inglês. O corsário soltou um grunhido e relaxou, de boca aberta e o único olho a fixar o céu azul sobre ele.
Thomas libertou a lâmina e virou-se para Richard.
— Diz aos homens para se renderem. Diz-lhes que o seu capitão caiu em combate. Depressa!
Richard levou a mão em concha à boca e lançou um brado que se fez ouvir acima do clamor da refrega. Ao escutá-lo, os mais próximos dos corsários arriscaram uma espreitadela naquela direção e avistaram o cadáver. Deixaram de combater, recuando e ficando à espera junto às escadas que levavam ao castelo da popa. Um punhado de espanhóis aproveitou para avançar de forma decidida, mas Thomas ordenou-lhes que parassem. Richard continuava a gritar avisos e virou-se para repetir o apelo na direção dos homens que ainda combatiam na proa. Os choques de lâminas foram diminuindo de intensidade, e os dois grupos acabaram por se separar e ficar a observar-se com animosidade.
— Ordena-lhes que deponham as armas — instruiu Thomas.
À medida que as espadas e os piques tombavam, Thomas voltou a dar atenção ao comandante inimigo. Jazia sobre o convés, as mãos cruzadas sobre o estômago. O sangue jorrava por entre a pele escura dos dedos, e ele gemia, de dentes cerrados.
Os sargentos espanhóis começaram a dar ordens para que os seus homens reunissem os prisioneiros junto ao mastro de vante. Os oficiais corsários ainda de pé contemplaram o líder abatido, antes de serem empurrados sem cerimónia para a proa. Thomas virou-se e descobriu Richard a curta distância. O jovem olhava fixamente para o sangue espalhado pelas armas que empunhava, e Thomas adivinhou nele o tremor característico de quem acabava de sobreviver à sua primeira experiência de combate. Embainhou a espada e pousou uma mão com gentileza no ombro do seu escudeiro.
— Lutaste bem.
Richard cerrou os lábios e anuiu.
— O crédito deve ir para quem te treinou no uso da espada e da adaga — prosseguiu Thomas. Não obteve reação, pelo que se aproximou e falou quase num murmúrio. — Richard, estás vivo e triunfaste sobre os teus medos. Passaste o teste. És agora um de nós, um guerreiro.
O jovem levantou o olhar.
— Senhor, estava cheio de medo. Mais do que alguma vez julguei possível.
— Compreendo. — Thomas ofereceu-lhe um sorriso amistoso. — E achas que eu não estava? Que isso não acontece com todos os que enfrentam um combate?
Nesse momento algo lhe captou o olhar, e notou então uma pequena poça de sangue aos pés de Richard, enquanto outra gota caía de um rasgo escuro na manga do braço com que o jovem empunhava a espada.
— Estás ferido.
O jovem pareceu um tanto confuso.
— Ferido? Eu... eu não me lembro de nada.
— Olha para ali. — Thomas apontou para a manga ensanguentada. — O teu braço. Larga as armas e vai tratar da ferida. Mais tarde teremos tempo para conversar sobre o que estás a sentir, quando o perigo estiver dissipado. — Thomas deixou o escudeiro a embainhar as armas com mãos trementes, e dirigiu-se à amurada da galera. As tripulações das embarcações inimigas mais próximas observavam os acontecimentos, ainda incertas quanto ao resultado do embate entre as duas galeras. As dúvidas foram-lhes desfeitas quando um dos espanhóis cortou o cabo que prendia o grande estandarte verde que esvoaçava sobre o convés. No instante seguinte a bandeira tombou para o convés, onde se amontoou por entre os corpos dos mortos e moribundos. Thomas aguardou ansiosamente enquanto os navios inimigos mantinham as suas posições, mas um dos navios espanhóis abriu fogo, e a corrente disparada rasgou a vela de vante da embarcação corsária visada, arrancando mesmo a ponta da verga. Antes que o navio da escolta pudesse voltar a disparar, a galera inimiga virou de bordo, dirigindo-se ao mar aberto. Uma linha perfeita de remos avançou, mergulhou e empurrou a embarcação, afastando-a da batalha. Um a um, os outros corsários separaram-se e recuaram para norte. Os seus camaradas a sul mantiveram o ataque por mais algum tempo, até que deixaram de disparar e se deixaram atrasar até ficarem fora do alcance das galeras espanholas.
O som de botas a palmilhar o convés fez com que Thomas se voltasse; avistou Don Garcia e os seus oficiais a atravessar uma das pranchas de acesso e a saltarem para bordo do navio. O alívio no semblante do comandante espanhol era evidente, e ele sorriu ao avistar o cavaleiro inglês.
— Sir Thomas, conseguimos pô-los em debandada! Agora que capturámos o navio principal, fogem como meliantes que levaram umas vergastadas. Onde está o comandante inimigo?
— Além, senhor. — Thomas apontou para a figura deitada de costas, cujas botas de cabedal raspavam no convés enquanto ele se agitava em agonia. Junto à amurada, Richard desabotoava a camisa e esticava-a sobre a placa peitoral que já retirara. A manga da camisa branca estava pegajosa com o sangue, e ele afastou-a com todo o cuidado até revelar um rasgão profundo no antebraço.
Thomas pegou-lhe no braço para examinar a ferida.
— É um corte limpo. Vê se o coses e pões uma ligadura.
Richard assentiu, com a face lívida enquanto contemplava a sua própria carne rasgada. Temendo que o escudeiro desmaiasse, Thomas levou-o até junto de um pequeno baú sobre o convés.
— Senta-te aí. Eu trato-te da ferida daqui a nada.
Don Garcia e o seu séquito avançaram por entre os corpos e as armas espalhadas pelo convés, aproximando-se da ré. Don Garcia assentia, entusiasmado.
— Menos um desses cães para atormentar o nosso povo. Bem feito, Sir Thomas. Vi como o haveis abatido.
Thomas inclinou a cabeça em forma de agradecimento.
Os oficiais de Don Garcia tinham pegado no corsário pelos braços e tinham-no arrastado até às escadas que conduziam ao castelo da popa, onde o tinham apoiado. O rosto do homem contorcia-se de dor até que fixou o olho no aristocrata e falou em espanhol por entre os dentes.
— Tiveste... a tua pequena vitória hoje, infiel... Morro. O Paraíso espera-me...
— Ah, falas portanto a minha língua. — Don Garcia sorriu brevemente. — Calculo que sejas um mouro, ou um traidor da mesma laia.
— Traidor, nunca... um mártir, pronto a ascender aos céus.
— Para ti não será o Paraíso, o que te espera é o tormento eterno para a alma negra que albergas — ripostou Don Garcia com ódio na voz. — É tudo o que podes almejar, tu e todos os seguidores do falso profeta. É essa a vontade de Deus.
Os lábios do corsário retorceram-se num arremedo de sorriso.
— Depressa saberemos a verdade... em breve, cristão. Os teus dias... estão contados. Depressa estarás onde estou eu agora... Tu e todos os que te rodeiam... Um poder imenso levanta-se. E varrerá à sua frente... todos os inimigos do sultão... e da verdadeira fé.
Don Garcia debruçou-se sobre o outro e pegou-lhe na barba, forçando a cabeça do homem a aproximar-se.
— Onde é que o sultão vai lançar o primeiro ataque? Fala, cão.
Soltou a barba, fazendo com que a cabeça do corsário embatesse nos degraus da escada. O homem estremeceu, mas voltou a sorrir.
— É em Malta? — indagou Don Garcia. — Ou na Sicília? Diz-nos.
— Vai para o diabo.
— Não. Serás tu quem o vai encontrar! — Virou-se para os seus oficiais. — Acorrentem-lhe os pés.
Thomas interpôs-se entre o moribundo e Don Garcia.
— Senhor, o que pretendeis fazer?
— Tenciono dar uma lição a esta escumalha, Sir Thomas. Agora, por favor, saí-me do caminho.
Um dos oficiais tinha trazido correntes do porão e colocara-as nos pés do corsário, fechando os ferrolhos. Depois enrolara os elos em torno dos tornozelos do homem. Este gritou de dor perante o tratamento desumano. Quando a tarefa foi concluída, Don Garcia voltou a dirigir-se ao homem.
— A tua ferida é mortal. Posso oferecer-te um fim rápido, se nos disseres em que ponto é que o sultão tenciona atacar primeiro. Se não o fizeres, serás lançado para as profundezas.
Thomas abanou a cabeça.
— Senhor, essa ameaça não serve qualquer propósito. Ele nada vos dirá.
— Então que se afogue nas trevas, sozinho. — Don Garcia aplicou um pontapé no homem caído, junto à ferida, fazendo-o soltar um grito de dor. — Dou-te uma última oportunidade. Fala.
Por momentos o corsário fechou o único olho com toda a força, e o suor correu-lhe pela testa até passar a vaga de agonia. Então levantou o olhar, o peito a subir e descer rapidamente enquanto tentava recuperar o fôlego. Havia sangue nos seus lábios, e quando voltou a falar, o líquido vermelho borbulhou ligeiramente.
— Vocês vão morrer... todos morrerão... E as vossas mulheres e crianças... Os vossos corpos serão repasto dos cães.
— Basta! — Don Garcia virou-se para o mais próximo dos seus oficiais e disparou uma ordem. — Livrem-me desta peste!
Fadrique e outro oficial debruçaram-se e pegaram no corsário por baixo dos braços, para o pôr de pé. Arrastaram-no então até à amurada. Os espanhóis apinhavam-se para ter uma visão do espetáculo, e começaram a soltar provocações. À vante, os prisioneiros protestavam aos gritos, uns de pesar, outros de medo, lançando-se de joelhos e pedindo a salvação.
Fadrique agarrava no corsário com firmeza, e olhava para o pai. Don Garcia anuiu, e o filho largou o outro, ao mesmo tempo que lhe dava um empurrão que o fez cair sobre a amurada. Thomas viu como a tranquilidade da superfície do mar explodia numa mistura de trapos verdes e espuma branca. E depois ficou a ver a rápida descida do corsário ao abismo, as vestes a ondularem com graciosidade como se fossem juncos ao sabor da corrente de um rio. Por fim, depois de um último ondular colorido, nada havia para ver além do azul do oceano.
— Menos um infiel com quem lidar. — Don Garcia acenou com ar satisfeito, antes de se virar para o capitão do seu navio-almirante. — Mande alguns homens à coberta para libertar os cristãos que estejam aos remos. Tragam-nos para o convés para serem alimentados e beberem água. Os prisioneiros que tomem o seu lugar. Os feridos capazes de recuperar que sejam acorrentados no porão. Os outros são para despachar.
— Sim, senhor — anuiu o capitão.
Don Garcia fez uma pausa para admirar a galera capturada.
— Uma bela embarcação. À Marinha de Sua Majestade serve sempre mais um bom navio.
. . .
À medida que os primeiros desgraçados eram ajudados a subir para o convés iluminado, abandonando o inferno que eram os bancos dos remadores, Thomas interrompeu a limpeza da ferida de Richard. Ver aquelas figuras emaciadas, dobradas por terem passado tanto tempo na baixa coberta da galera corsária, sujas e cobertas de escaras, despertou em Thomas uma dolorosa cadeia de lembranças.
— É difícil acreditar que aquelas criaturas são homens — murmurou Richard. Os remadores que tinham sido levados das masmorras da cidadela em Barcelona para ocuparem lugares no navio-almirante de Don Garcia não estavam em grande condição, mas pelo menos tinham tido repouso, alimentação e até se tinham podido lavar minimamente durante o inverno. Os homens que agora saíam para o convés tinham passado bem piores privações e degradações. Atiraram-se ao pão e queijo que lhes foram dados. Alguns dos soldados espanhóis contemplavam a cena com ar piedoso, enquanto outros arrancavam as roupas aos prisioneiros e as entregavam aos homens recém-libertados. Por fim, quando o último dos cristãos tinha sido levado para cima, os corsários foram obrigados a descer e acorrentados, destinados a trabalharem até à morte no navio que ainda há tão pouco tempo era sua pertença.
— Neste oceano, são comuns estas reviravoltas — comentou Thomas. — Depressa te acostumarás a elas, garanto-to. Se viveres o suficiente. Agora fica quieto, que isto vai doer.
Tinha tirado algum fio e uma agulha da arca com suprimentos médicos que estava na cabina que pertencera ao capitão da galera. Semicerrou os olhos, enfiou o fio pela agulha e deu um nó na ponta.
— Põe o braço ao alto e não te mexas.
Richard seguiu as indicações e deitou uma última olhadela aos lábios escancarados da ferida, antes de virar o olhar e o fixar no galeão mais próximo, onde a tripulação se atarefava a remendar o velame rasgado pelos disparos dos corsários. Thomas comprimiu os lábios da ferida com a mão esquerda e empurrou a agulha através da carne, passando pela ferida e saindo do outro lado. Puxou o fio até o nó se encostar à pele e começou a dar o segundo ponto. Richard rangeu os dentes e lutou contra a dor que tomava conta do seu ser.
— Por um momento, temi que não me seguisses para a refrega — disse Thomas, numa tentativa de afastar a mente do jovem dos pontos que lhe estava a aplicar. — Há bocado, antes da abordagem. Estavas com medo?
Richard lançou-lhe um rápido olhar.
— Sabeis que sim.
— E isso não te impediu de lutar como um leão.
— Fui treinado para combater.
— E bem. Quem te ensinou?
— Um dos homens de Walsingham.
— Um soldado?
— Nem por isso. — Richard sorriu timidamente. — Em tempos foi o chefe de um bando de meliantes em Londres. Foi condenado à forca por assassínio, mas Walsingham ofereceu-lhe um perdão em troca de obediência cega a todas e quaisquer ordens. Quando não estava ocupado a interrogar um qualquer suspeito de traição, tinha por obrigação treinar o resto dos agentes no uso de lâminas e na aplicação dos truques da luta nas ruas.
— Estou a ver. No currículo nada havia de cavalheiresco, imagino.
— Longe disso. Fomos treinados para matar rapidamente e sem alarde.
Thomas assentiu, e concentrou-se em executar o ponto seguinte antes de prosseguir.
— Mas adivinho que antes deste dia nunca tiveste razão para matar um homem.
O jovem manteve-se em silêncio e contemplou o convés.
— Não.
— Richard, não é um passo fácil. A verdadeira tragédia, agora que mataste, é que da próxima vez te pesará menos na consciência. O maior desafio que podes enfrentar é o de tentares manter a memória do homem que eras antes de a tua alma ficar manchada pelo sangue de outro. E quanto mais matares, mais difícil se tornará recordar.
— É isso que pensais?
— É o que eu sei. Aquilo que penso — respondeu Thomas em tom pesaroso.
— E foi por isso que haveis deixado a Ordem?
— Isso é comigo, e nada contigo. Mas admito que foi uma das razões pelas quais não pude continuar ao seu serviço. Matar era tão comum para nós que deixou de ter significado. E o mesmo sucede com o inimigo. É tudo o que cada parte sabe fazer, e o único ganho foi o aperfeiçoamento do conceito de ódio e de vingança. — O escudeiro pensou por momentos, até que a picadela de um novo ponto o fez estremecer.
— Nesse caso, como podeis estar aqui de novo? Poderíeis ter recusado o pedido de Sir Robert e de Sir Francis. Eles encontrariam outra pessoa.
Thomas levantou brevemente o olhar e soltou uma risada.
— Fui convocado pela minha Ordem, à qual estou ligado por um juramento solene. Quanto aos teus senhores poderem encontrar outra pessoa, poucos haveria tão ajustados às suas necessidades como eu. Eles precisavam de um homem pertencente à Ordem de S. João, porém um que não levasse ao extremo a fé da Ordem. Jovem Richard, os teus patronos são homens astutos. E leram-me tão facilmente como se fosse a página de um livro. — Fez uma pausa e refletiu brevemente sobre a outra razão que o levara a disponibilizar-se para um regresso a Malta: a necessidade de saber o que tinha sucedido a Maria. Teriam os espiões da rainha sabido também disso? Olhou para Richard. — Talvez mesmo mais astutos do que aquilo que eu pensava.
— Senhor?
— Nada. Bom, um último ponto e estamos despachados. — Richard voltou a cerrar os dentes enquanto Thomas furava a pele e puxava o fio. Utilizou a adaga de Richard para soltar a agulha e fez novo nó na ponta solta. Inspecionou o trabalho e pegou numa tira de pano limpo da arca, cobrindo a ferida com a ligadura.
— Pronto. Num mês vai sarar por completo, desde que não esforces o braço e não coces os pontos.
Richard olhou para o braço e baixou-o.
— Obrigado, senhor.
Thomas pôs-se de pé e esfregou o fundo das costas, enquanto olhava em redor. Os cadáveres tinham sido retirados do convés, atirados borda fora, e água tinha sido usada para limpar as maiores manchas de sangue. As velas tinham sido reparadas e a galera estava pronta a seguir. As outras galeras já tinham voltado a formar em volta dos galeões, e a bordo do navio capturado já só estava uma tripulação reduzida.
Thomas limpou as mãos a um trapo e deu uma palmada no ombro do seu escudeiro.
— Vamos, temos de voltar para o navio-almirante.
O escudeiro pegou na camisa e na armadura e encarou Thomas por momentos.
— Ao que parece, ambos carregamos os nossos segredos, senhor.
Thomas anuiu.
— E talvez em Malta a verdade possa surgir à luz do dia.
16
Dez dias depois, após os soldados que seguiam a bordo dos galeões terem desembarcado em segurança na Sicília, o pequeno esquadrão naval de Don Garcia chegou a Malta. O Sol desaparecia no horizonte ocidental, meio escondido por um ténue véu de neblina marinha, quando as esguias naves de guerra passaram a barra do porto natural com que a ilha de Malta havia sido abençoada. Ou amaldiçoada, considerou Thomas. As águas abrigadas estendiam-se profundamente para o coração da pequena ilha em vários braços de mar, separados por uma península cujo centro era percorrido por uma crista rochosa. A norte desta península ficava o porto de Marsamxett, e a sul o Grande Porto, que se tornara o lar da Ordem de S. João. Um porto com tão boas condições e a própria localização da ilha, no centro do Mediterrâneo, tinham atraído a atenção de todos os poderes navais ao longo dos séculos, desde os tempos dos antigos Impérios de Roma e Cartago.
Tinham passado mais de vinte anos desde a última vez que Thomas tinha posto os olhos na paisagem do Grande Porto, e muito tinha mudado entretanto. Tinha sido erguido um novo forte na extremidade da península, de forma a dominar as entradas dos dois portos, e novas obras defensivas tinham sido adicionadas a St. Ângelo, o forte onde ficava a sede da Ordem. A bandeira vermelha com uma cruz branca flutuava sobre as mais altas torres de ambos os fortes. Por trás de St. Ângelo estendia-se a cidade de Birgu, que tinha crescido sem parar para servir as necessidades dos cavaleiros e dos soldados da Ordem, na sua eterna guerra contra as hordas do Islão. Enquanto contemplava as espessas muralhas de calcário e as torres de St. Ângelo, Thomas sentiu uma dor na alma ao relembrar os anos que ali passara, os homens que considerara como irmãos, alguns dos quais haviam falecido perante os seus olhos e havia chorado. E outros ainda, como La Valette, que inspiravam devoção e um zelo fanático pela causa.
E houvera ainda Maria. Tinha tentado evitar pensar nela, mas a verdade é que não houvera um momento, em todos os anos que tinha entretanto passado em Inglaterra, em que a memória dela não se tivesse feito sentir no seu coração como uma farpa, uma constante lembrança de tudo o que perdera. Se ela ainda vivia, pedia a todos os santos que ali estivesse. Havia muito poucas razões para supor que ela tivesse escolhido permanecer naquele rochedo árido em pleno coração de um mar atravessado por uma guerra constante, mas Thomas não conseguia impedir-se de ter esperança. Muitas vezes se tinha permitido imaginar um reencontro, livre da passagem do tempo, ela ainda jovem, elegante, e com a expressão séria que refletia o espírito indómito que a habitava. Essas fantasias deixavam-no sempre desprotegido, vulnerável ao receio de que ela o rejeitasse, como em tempos ele se vira forçado a abandoná-la.
— Uma visão formidável.
Thomas abandonou o sonho que o perturbava e virou-se, reparando em Richard que, a curta distância e também junto à amurada, contemplava as defesas de St. Ângelo. O Sol já desaparecera por trás das alturas para lá do porto, e, aos olhos de Thomas, tanto St. Ângelo como o forte à entrada dos portos gémeos pareciam quase minúsculos na escuridão crescente.
— Formidável? — Thomas cerrou os lábios, pouco convencido. — Nem por isso, dirão os nossos amigos Turcos, acho eu. Não existe em toda a Cristandade qualquer fortaleza capaz de enfrentar com sucesso os tremendos canhões dos Turcos. E quando as muralhas tombarem, o resultado da refrega será decidido pela qualidade e quantidade dos homens que se enfrentarão corpo a corpo.
— A qualidade está assegurada. — Richard sorriu. — Não há melhores guerreiros neste mundo do que os cavaleiros da Ordem de S. João.
— Pode ser que sim, mas o sultão tem, pelo seu lado, a quantidade — retorquiu Thomas, pouco animado. — Diz-me, Richard, o que achas mais importante, a qualidade ou a quantidade? Na tua experiência de guerreiro, claro.
Era uma pergunta espinhosa, e Thomas de imediato se arrependeu de a ter colocado. Richard tentara simplesmente trocar com ele umas palavras amigáveis, mas Thomas tinha ficado irritado com o comentário repleto de complacência.
Richard franziu o sobrolho, e os lábios formaram uma fina linha, enquanto ele olhava fixamente para St. Ângelo. Thomas decidiu que a melhor forma de se desculpar seria promover uma mudança de assunto.
— Como está o teu braço hoje?
— A dor está a diminuir — ripostou o outro, ainda de olhar fixo.
— E tens mudado o penso todos os dias?
— Tal como haveis ordenado.
— E não há sinais de putrefação?
— Nenhuns.
— Excelente — assentiu Thomas.
Instalou-se um longo silêncio, durante o qual nenhum dos dois homens mostrou qualquer vontade de abandonar a amurada e ser o primeiro a ceder naquela confrontação não declarada. Thomas pressentia a tensão, a cólera e mesmo o ódio que ardiam no peito do companheiro, mas não punha sequer a hipótese de a aplacar com um pedido de desculpas, pelo que nada disse e agiu como se estivesse sozinho a apreciar o porto à medida que ele se abria de ambos os lados do navio-almirante de Don Garcia. As outras galeras do esquadrão progrediam em linha, à popa, vogando ligeiras nas calmas águas do porto, enquanto os remos mergulhavam num ritmo fácil e de bela simetria. Um canhão troou em St. Ângelo, lançando uma saudação à galera que passava, e que respondeu com um disparo de uma das suas bocas de fogo, fazendo o troar profundo ressoar nas paredes rochosas do forte, e lançando o alarme num bando de gaivotas que se lançou para o ar, a esvoaçar de espanto.
O navio-almirante dobrou a ponta do promontório e dirigiu-se para o braço de mar entre Birgu e o outro promontório descampado de Senglea, em cujos pontos mais elevados se viam moinhos de vento. À frente distinguiam-se os mastros de dúzias de cargueiros e barcos de pesca, atracados e fundeados junto ao cais que era ladeado pelos armazéns de Birgu. As muralhas de St. Ângelo ladeavam o braço de mar ao longo de mais uns cem metros, até chegarem ao canal que tinha sido aberto à custa de muito labor e que cortava o promontório, fornecendo ao forte uma última linha de defesa. Os olhos de Thomas foram atraídos para uma grande nau ancorada no canal. O castelo da proa, os bordos e a popa estavam pintados de verde e decorados a folha de ouro, e na proa avistava-se uma representação de uma mulher de véu e vestes negras, ornadas com estrelas e crescentes em tons de ouro e prata. Não havia que enganar quanto à origem da embarcação, e Thomas apercebeu-se de que devia ser aquela a nau de que Philippe lhe falara, e cuja perda tinha provocado a cólera do sultão.
— Recolher remos! — ordenou o capitão, e as pás, a pingar, foram levantadas e recolhidas para o interior do casco.
— Leme a bombordo!
O navio rodou lentamente para se alinhar com o cais, no espaço mais próximo do forte. Thomas avistou um pequeno grupo de homens que os aguardavam, muitos com os mantos da Ordem, ornados com a inconfundível cruz. Ali perto, um servo segurava nas trelas de dois cães de magnífico aspeto. Sozinho, um pouco à frente dos outros, avistava-se um vulto alto de cabelo e barba prateados, que envergava uma camisa preta, calças e manto curto. Observava sem expressão a aproximação da galera, cujo ímpeto continuava a levá-la para junto do molhe.
Thomas sentiu o pulso a acelerar, e uma velha afeição aqueceu-lhe o peito. Reconheceu o homem, apesar dos vinte anos que tinham passado, sublinhados pelo fardo do comando, que tinham contribuído para aprofundar as rugas daquele rosto.
— Jean Parisot de La Valette — disse para si mesmo.
— Hum? O velhote? — Richard contemplou-o com assombro, enquanto comparava a aparência do homem com as vestes bem mais ricas dos homens que o seguiam. — Nunca teria imaginado que aquele é o Grão-Mestre da Ordem de S. João.
— O hábito não faz o monge.
— Nem a idade avançada. Espero bem que a mente dele ainda esteja alerta.
— O Conselho Superior da Ordem nunca permitiria que ele ocupasse aquela posição se não fosse esse o caso.
Os marinheiros lançaram molhos de cabos aos homens que esperavam no cais, e a galera foi puxada até embater suavemente nos protetores de corda pendurados no molhe. Uma secção da amurada abriu-se, e uma prancha foi lançada até ao cais, para Don Garcia e o seu séquito poderem descer. O espanhol avistou Thomas por perto no convés, e acenou-lhe.
— Agradar-me-ia que vós e o vosso escudeiro se pudessem juntar a nós.
Thomas baixou a cabeça.
— Como desejardes, senhor.
Quatro dos soldados de Don Garcia apressaram-se a desembarcar e a formar uma pequena guarda de honra aos lados da prancha. Quando se colocaram em sentido, Don Garcia conduziu o seu séquito para terra, seguido por Thomas e Richard. Ao perscrutar as faces dos homens que esperavam atrás de La Valette, Thomas só conseguiu reconhecer Romegas, o mais destacado dos capitães de galeras no tempo em que Thomas participara nas campanhas da Ordem. Também ele envelhecera, mas por certo os sentimentos de pouca amizade que tivera por Thomas permaneceriam.
Don Garcia e La Valette trocaram cumprimentos e palavras de circunstância em francês, antes de, à vez, apresentarem os seus subordinados. Ao chamar Thomas, Don Garcia não suprimiu um pequeno sorriso.
— Grão-Mestre, creio que já conheceis este meu companheiro inglês, Sir Thomas Barrett.
Os olhos de La Valette continuavam claros e perspicazes, apesar de mais afundados nas órbitas. Esforçou levemente a vista quando Thomas se aproximou e inclinou a cabeça em sinal de respeito.
— Thomas... Tinha esperança de que respondêsseis ao meu apelo.
— Senhor, há vinte anos que o esperava.
Um relance de pesar passou pela expressão do idoso, antes de ele prosseguir.
— Naquelas circunstâncias, não havia muito que eu pudesse fazer, como espero que compreendais. Mas estais aqui agora. Ao meu lado, onde os vossos talentos mais são necessários.
O tom afetivo impressionou profundamente Thomas, e as memórias dos tempos de camaradagem encheram-lhe o pensamento.
— Senhor, estou pronto para cumprir o meu dever.
— Estou seguro disso. Dizei-me, ainda sois o mesmo guerreiro feroz e mortífero que fostes ao serviço da Ordem, há tantos anos?
— Com toda a sinceridade? Não, senhor. Mas ainda manejo uma espada com tanto ou mais jeito que a maior parte dos homens.
— Isso chegará. — La Valette sorriu e fez um gesto na direção do séquito que o acompanhava, em que nenhum elemento parecia mais jovem do que Thomas. — Como vedes, poucos de nós estão na flor da idade, mas somos inigualáveis em experiência e sabedoria, e agora mais ainda, uma vez que vos haveis juntado a nós. E por esse facto dou graças a Deus.
— Senhor, suspeito bem que haverá na Ordem quem não fique tão grato por isso — ripostou Thomas, evitando a tentação de olhar para Romegas.
— Thomas, não há mais do que um punhado de homens ainda vivos que se possam lembrar, e agora é a mim que obedecem, e a mim que prestam contas. — Fez uma pausa e pegou na mão de Thomas com gentileza. Tinha a pele seca e os ossos eram evidentes sob a pele manchada. — Ninguém questionará o vosso papel. O meu coração alegra-se por vos rever. — Olhou para trás de Thomas e pela primeira vez pareceu notar a presença de Richard. — E quem é o vosso jovem companheiro?
— O meu escudeiro, senhor. Richard Hughes.
— Também tu és bem-vindo.
— Muito obrigado, senhor. — Richard fez uma vénia.
— Sir Thomas, enviarei os meus criados para vir buscar a vossa bagagem. Assim que tiverdes comido, podereis retirar-vos para o albergue inglês. — La Valette assumiu um tom mais formal antes de voltar a dar atenção a Don Garcia, que tinha estado a seguir a breve troca de palavras com a curiosidade estampada no rosto.
— Não fazia ideia de que o meu passageiro fosse tido em tão alta consideração pela Ordem — notou o espanhol.
A expressão de La Valette refletiu alguma tensão, antes de responder.
— Sir Thomas era um dos mais promissores cavaleiros da nossa Ordem, antes de ter tido... de se ausentar. Já provou o seu valor, e não tenho qualquer dúvida de que ainda vai prestar grandes serviços à Ordem nos tempos difíceis que enfrentamos. Mas a luz está a desaparecer, e temos muito que discutir. Está a ser preparada uma refeição para vós e para os vossos oficiais nos meus alojamentos, Don Garcia. Alguns dos mais antigos cavaleiros da Ordem chegarão daqui a pouco. Não estavam em Birgu quando os vossos navios foram avistados, mas eu mandei avisá-los. Há muito que conversar.
— Assim é.
La Valette deitou o olhar à última das galeras espanholas que se aproximava enfim do cais.
— Só seis galeras? Calculo que a maior parte da força vos siga mais atrás, então?
Don Garcia olhou em redor, notando que já havia um magote de habitantes locais reunidos à volta do Grão-Mestre e dos seus acompanhantes. Aproximou-se e baixou a voz.
— Será melhor que falemos desses assuntos num ambiente... de maior privacidade. Se indicardes o caminho...
. . .
O semblante de La Valette endurecera. Estava com Don Garcia, sentados à cabeceira de uma comprida mesa instalada no centro do salão de banquetes de St. Ângelo, mas todos os homens presentes se tinham sentado em silêncio e escutado com toda a atenção enquanto Don Garcia anunciava as instruções que recebera do rei Filipe. O par de cães de caça dormia junto ao lume que ardia mansamente na grande lareira que corria ao longo de uma das paredes, um luxo numa ilha onde a madeira era tão escassa que se vendia ao quilo. Thomas estava a meio da mesa e pouco comera da primeira refeição decente que tivera desde que deixara Barcelona — costeletas de borrego com mel e pão fresco. A tensão entre Don Garcia e La Valette era palpável e o mau humor tinha estragado o apetite aos homens que enchiam o salão. Por momentos, Thomas invejou o seu escudeiro, que comia na outra mesa ao fundo, ao pé dos outros escudeiros e oficiais subalternos da pequena força de Don Garcia.
La Valette empurrou o prato para o lado e remexeu-se na cadeira, de forma a encarar melhor o seu convidado enquanto falava.
— No ano passado enviei uma mensagem a Sua Majestade, avisando-o dos planos do sultão de avançar para ocidente, e de que Malta seria o primeiro alvo dos Turcos. Fiz-lhe notar que, se quiséssemos manter Malta nas nossas mãos, ia precisar de cinco mil homens frescos, de canhões, pólvora e mantimentos. Até agora, em resposta, apenas recebi mensagens de apoio repletas de belas palavras.
— Sua Majestade partilha as vossas preocupações — retorquiu Don Garcia, calmamente. — Contudo, Malta é apenas um dos territórios que ele se vê obrigado a defender. Embora seja verdade que o mais óbvio alvo é Malta, o inimigo pode ainda assim tentar surpreender-nos, atacando noutro local... na Sicília, na costa de Itália ou mesmo na própria Espanha.
— E deixar Malta nas nossas mãos, em plenas linhas de abastecimento? — retorquiu La Valette, com azedume evidente. — Sua Majestade parece estar a precisar de algumas lições de estratégia militar.
— Grão-Mestre, Sua Majestade é o meu senhor soberano, bem como o vosso. A Ordem recebeu esta ilha em troca da sua lealdade ao rei. Sua Majestade nomeou-me Capitão do Mar Oceano, e colocou todas as suas forças, incluindo as da Ordem, sob o meu comando. Solicito-vos portanto que considereis esse facto quando emitirdes as vossas opiniões. — Don Garcia cruzou o olhar com o do Grão-Mestre e enfrentou a ira crescente deste, antes de prosseguir. — Em contrapartida, eu vejo-me obrigado a seguir as instruções que me foram dadas pelo meu rei. Ele indicou-me que não devo oferecer batalha aos Turcos antes de conseguir vantagem numérica, na terra como no mar.
— Nesse caso, nunca será travada uma batalha. Os navios e homens do sultão nunca serão menos numerosos que os de Espanha.
Don Garcia encolheu os ombros.
— Quanto a isso, nada posso fazer. Mas estou a fazer tudo o que está ao meu alcance para conseguir apoio material dos nossos aliados, e tenciono concentrar as nossas forças na Sicília, onde estarei mais bem posicionado para contrariar o inimigo, onde quer que ele escolha atacar. Concordo que o mais provável é que o sultão lance primeiro o olhar sobre Malta, e farei o que puder para vos fornecer as condições que vos permitam resistir a esse embate, se ele ocorrer aqui. Por agora, nada mais posso fazer do que deixar-lhe algumas companhias de soldados espanhóis, e de mercenários italianos. Quando a minha força aumentar, enviar-lhe-ei mais homens.
— Nessa altura poderá já ser demasiado tarde. — La Valette respirou fundo e acalmou a voz antes de prosseguir. — A Ordem não tem mais de seiscentos cavaleiros. Tenho aqui cerca de quinhentos, e espero que os outros respondam ao apelo, como fez Sir Thomas. Para lá disso, temos mil soldados, e enviei homens da Ordem a Itália para tentar recrutar mais alguns.
— E há a população local. Os Malteses lutarão ao vosso lado.
— Os Malteses... — La Valette não disfarçou a fraca consideração em que os tinha. — Sim, existe uma milícia, mas de fraca qualidade. Atrevo-me a dizer que fugirão como coelhos assim que virem um janízaro a apontar-lhes uma arma.
— Não me parece. É verdade que não são soldados profissionais, mas um homem é bem capaz de lutar como um demónio para defender a sua casa e a sua família. Não tendes mais do que treiná-los no uso das armas e liderá-los no combate, dando-lhes um exemplo que lhes permita lutar com empenho.
— Ainda que assim venha a ser, não conseguirei reunir muito mais do que três mil homens da população local. Portanto, no total, não seremos mais de cinco mil para enfrentar a horda que sobre nós cairá vinda do Leste. O último relatório que recebemos do nosso agente em Istambul diz-nos que uma vasta frota está a ser reunida, capaz de trazer cinquenta mil homens, bem como armas e abastecimentos para uma campanha completa. Ninguém pode enfrentar tal desproporção, Don Garcia.
Houve uma pausa, e Thomas observou a forma como Don Garcia cruzava as mãos e pousava a testa sobre elas.
— É tarde, e a nossa viagem foi cansativa — notou. — Amanhã poderemos discutir os preparativos para enfrentar os Turcos. Gostaria de apreciar as defesas pelos meus próprios olhos, Grão-Mestre, se fizerdes o favor de me guiar por elas.
— Será um prazer — ripostou La Valette, de forma abrupta.
— Nesse caso, gostaria de comer mais qualquer coisa, beber um pouco e depois dormir. — Don Garcia sorriu polidamente. — E o mesmo para os meus oficiais.
O diálogo foi interrompido quando a porta para o salão foi aberta por um criado, de forma a permitir a passagem de um grupo de homens. Thomas espreitou sobre o ombro. Vestiam mantos simples com o símbolo da Ordem sobre os corações, e compreendeu que deviam ser os cavaleiros que La Valette convocara do interior da ilha. Alguns eram jovens, mas de ar duro. Os outros eram veteranos, com cicatrizes de velhos ferimentos e outras marcas da passagem dos anos. Enquanto se dirigiam para as cadeiras e espaços nos bancos ainda vazios, o olhar de Thomas foi atraído por um dos homens mais velhos, aproximadamente da sua idade, alto e magro, com cabelo escuro que começava a rarear nas faces do crânio. Quase no mesmo instante, o recém-chegado reparou em Thomas e estacou a meio do passo, antes de se aproximar lentamente.
Thomas pôs-se de pé e deu alguns passos na direção do homem. O outro cavaleiro olhou-o de cima a baixo e inspirou profundamente pelo nariz antes de falar.
— Sir Thomas. Haveis portanto recebido a mensagem.
— Como vedes. Passou muito tempo, Oliver. Muito, muito tempo.
— Tinha alguma esperança que vos mantivésseis lá longe. A Ordem não precisa de vós.
— O Grão-Mestre parece ser de outra opinião.
Sir Oliver Stokely olhou de relance para a cabeceira da mesa.
— O maior dos nossos cavaleiros tem a memória curta. Esquece os danos que nos haveis causado.
Thomas sentiu um novo aperto de dor no coração ao relembrar velhos pecados.
— Era outro homem então. Como vós. Desde essa altura, não passou um dia em que não tenha sofrido e não me tenha arrependido. Não podereis perdoar-me?
— Nunca.
Thomas abanou a cabeça, triste.
— Lamento profundamente ouvir-vos dizer isso.
— Porquê? Acaso haveis pensado que eu estaria disposto a tudo esquecer, só porque haveis decidido responder ao apelo de La Valette?
— Oliver, há assuntos mais importantes que nos forçam à união. Não posso alterar o passado, mas juro-vos aqui e agora que tudo farei para garantir o futuro da Ordem.
Sir Oliver abanou a cabeça.
— Fazei como entenderdes. Mas mantende-vos longe de mim. Ou não serei capaz de responder pelos meus gestos.
Thomas anuiu, enquanto sobre ele recaía um cansaço pesado.
— Gostaria que as coisas fossem de outra forma. Fomos amigos, em tempos.
— Sim, até que a vossa verdadeira natureza se revelou. Já vos disse tudo o que tinha a dizer. Estais aqui. Lutai pela Ordem, sim, e quando tudo estiver terminado, parti e nunca mais regresseis.
— Muito bem... Mas há uma coisa que ainda tenho de saber.
Os lábios de Sir Oliver comprimiram-se num sorriso cruel.
— Calculei que essa pergunta estaria nos vossos lábios.
— Dizei-me então. — Thomas hesitou antes de continuar, ansioso por saber mas ao mesmo tempo receando a resposta. — Maria, ainda vive?
— Está morta.
— Morta?
Por momentos um lampejo de emoção passou pelo rosto de Sir Oliver, mas logo a expressão do homem voltou a endurecer.
— Sim, Maria está morta. Para vós, Thomas, ela está morta desde aqueles tempos. Não volteis a pôr-me perguntas sobre ela; com Deus por testemunha, juro que, se o fizerdes, me atiro a vós e vos mato com estas mãos nuas.
17
Ao fim da refeição, Thomas e Richard foram levados por um dos servidores do Grão-Mestre ao albergue dos cavaleiros ingleses. A casa fora propriedade de um mercador de vinhos até que a Ordem chegara a Malta e a confiscara. O homem pousou as bagagens, bateu à porta e esperou. Depressa ouviram o som de passos no interior, e a porta abriu-se. Ao entrar no átrio de uma casa que em tempos tão bem conhecera, Thomas virou-se para ver o criado do albergue — um homem de costas já vergadas pela idade, de camisa de algodão, calções e botas negras. Tinha na mão um candelabro de latão, e a luz da vela iluminava-lhe o rosto.
— Senhor, que desejais? — indagou numa voz fraca.
— Sou um cavaleiro inglês da Ordem. Preciso de acomodações, para mim e para o meu escudeiro.
— Inglês? — O ancião não escondeu a surpresa. — Sois o primeiro cavaleiro inglês a aparecer no albergue desde... há quase dez anos. Só está cá um outro cavaleiro nos dias que correm.
Enquanto o homem falava, Thomas tinha-o reconhecido, e agora sorria abertamente.
— Sejam os santos louvados! Jenkins, és tu?
— Sim, esse é o meu nome. — O ancião esforçou a vista e inclinou-se para melhor examinar o recém-chegado. — Senhor, como podeis saber o meu nome?
— Vá, vá, lembras-te de mim com toda a certeza.
O velhote ergueu a vela e escrutinou a face de Thomas. Só então os olhos se lhe arregalaram de assombro.
— Não... não pode ser. Sir Thomas... Sir Thomas Barrett! Pelo Senhor dos céus. Eu, eu nunca julguei voltar a ver-vos, senhor.
— Porém, cá estou eu. — Thomas gargalhou. — E o que é feito dos outros criados? O Harris? O Chapman?
O sorriso desdentado que tinha surgido na face do velho criado desapareceu.
— Já todos partiram, senhor. Sou o último dos caseiros.
— Mas deves andar perto dos setenta, se não me engano.
— Sessenta e oito em dezembro, senhor. — Fez uma rápida careta.
— Então como é que ainda serves, Jenkins?
— Senhor, se não fizesse isto, o que faria eu? Não tenho para onde ir. E nunca partiria enquanto houvesse um cavaleiro inglês no albergue, a quem servir.
— Que diabo vem a ser esta barulheira? — gritou uma voz nas trevas. — Jenkins, o que se passa? Desembucha, homem! Quem são esses tipos?
Uma sombra emergiu do corredor que saía do átrio, e um homem de poderosa constituição, com um pescoço de touro — se é que a curta transição entre a cabeça de cabelo quase rapado e os ombros musculosos podia ser assim descrita — avançou para o círculo de luz mortiça lançado pela vela que o criado tinha na mão. Aparentava ser uns dez anos mais novo do que Thomas, e a precisar de uma boa escanhoadela. Olhou com algum desdém para os recém-chegados, e Thomas notou o bafo a vinho que se evolava da sua boca quando se apresentou.
— Sir Thomas Barrett, então? — repetiu o homem. — Já ouvi esse nome. Não me recordo onde. Bom, eu sou Sir Martin Le Grange, de Wickle Bridge, perto de Hereford. Sabeis onde fica?
— Infelizmente, não posso dizer que sim.
— Verdadeiramente lamentável... para vós, claro. Bom, espero que vos sentis em casa. O Jenkins tratará de vós. Vou deitar-me. Estava pronto a recolher quando chegaram. Falamos mais de manhã, sim? — Acenou e virou-se, desaparecendo pelo corredor.
— Não foi propriamente a mais calorosa saudação que já recebi — resmungou Richard. — Ele é sempre assim tão... hospitaleiro?
— Só quando está com os copos — respondeu Jenkins.
Thomas tossicou.
— Fazes então o favor de nos levares aos nossos quartos?
— Claro, Sir Thomas. As minhas desculpas. Senhor, segui-me, por favor.
Jenkins fez menção de pegar nas bagagens com uma mão enquanto mantinha o candelabro ao alto com a outra. Thomas pegou-lhe gentilmente no braço e afastou-o das malas pesadas.
— O Richard tratará disso. É jovem e forte.
— E cansado — acrescentou Richard.
— Além disso, com a tua idade, Jenkins, não te deves esforçar.
O ancião endireitou as costas e ergueu o queixo, orgulhoso.
— Senhor, sou um criado do albergue inglês. É esse o meu dever.
— Evidentemente, e como poderias tu cumprir os teus deveres se te aleijasses a transportar coisas demasiado pesadas? — lançou Thomas com um sorriso.
Jenkins abriu a boca para protestar, mas optou antes por encolher os ombros e voltar-se para mostrar o caminho.
— Senhores, segui-me, por favor.
Thomas foi atrás dele, enquanto Richard resmungava aborrecido, pegava nas bagagens e seguia a passo acelerado, para tentar não perder de vista a tremeluzente luz enviada pela vela que o criado levava. Este conduziu-os pelo corredor que saía do átrio e dava para vários quartos. Ao olhar para as traves do teto, Thomas reparou nos pequenos escudos de madeira lá presos, cada um deles com o brasão de um cavaleiro inglês que tinha servido na Ordem. Havia alguns espaços vazios, assinalando a remoção dos símbolos de cavaleiros cujo comportamento fora considerado desonroso para a Ordem. Com os olhos, procurou a posição onde tinha estado em tempos o brasão dos Barrett. Havia lá apenas um gancho de madeira, e ele desviou o olhar com um sentimento de vergonha e culpa.
— Tu e o Sir Martin são as únicas pessoas a habitar aqui? — indagou Richard.
— É verdade, jovem senhor. Há outra pessoa que mantém aqui aposentos, Sir Oliver Stokely, mas as suas visitas ao albergue são raras. Há meses que não o vejo por cá. Ele tem uma casa perto do sopé da península de Sciberras. É lá que vive atualmente. Cá estamos, senhor. — Jenkins parou em frente a uma porta, levantou o ferrolho e conduziu-os ao interior. — Não é a cela que era costume ocupardes, senhor. Depois da vossa partida, foi convertida numa despensa. Espero que este quarto vos agrade.
Levantou o candelabro, e Thomas viu que o quarto tinha uns três metros de largo por cinco de comprimento. Havia uma cama, um baú, uma pequena mesa com cadeira, e cabides para as roupas. Ao alto na parede do fundo via-se uma janela com venezianas.
Thomas assentiu.
— Serve muito bem. Richard, podes deixar as minhas malas aqui.
O jovem olhou em redor.
— E eu fico onde... senhor?
O criado riu.
— Tenha calma, jovem senhor. Não ficareis no chão. Há uma acomodação para escudeiros aqui mesmo ao lado. Nos velhos tempos ver-vos-ias obrigado a partilhá-la com outros três, mas hoje tê-la-eis toda para vós.
— Sir Martin não tem escudeiro? — inquiriu Thomas.
— Não tem posses para tal, senhor. A família perdeu tudo quando Henrique lhes confiscou as terras há muitos anos. Foi aliás por isso que Sir Martin se juntou à Ordem. E é ele que trata das suas armas e armadura. Insiste muito nisso. Limito-me a servir-lhe as refeições, manter a lareira e cozinhar. Claro, agora que temos um escudeiro no albergue, talvez o jovem senhor Richard possa tratar de algumas das necessidades de Sir Martin.
Richard lançou um olhar de aviso a Thomas, enquanto meneava discretamente a cabeça.
— Evidentemente. — Thomas sorriu. — Verei o que podemos fazer.
Richard olhou-o com azedume antes de falar.
— Senhor, se mo permitis, vou levar as outras malas para a minha cela.
Thomas assentiu.
— Só um momento. — Jenkins dirigiu-se à mesa, onde se via uma grossa vela apoiada numa massa de cera sólida derramada sobre um prato. Acendeu o pavio, que vacilou mas depressa lançou uma chama estável que aumentou a luz disponível no quarto. — Pronto, jovem senhor. Segui-me.
— Depois de o meu escudeiro estar instalado, traz-me um jarro de vinho aquecido — pediu Thomas. — Há muita coisa que gostaria de saber acerca do que se passou nos anos em que estive longe.
Jenkins anuiu.
— Sim, senhor. Terei todo o prazer em contar-vos, e também em saber novas de Inglaterra.
O criado acenou ao escudeiro para sair, seguiu-o e fechou a porta atrás dos dois. Thomas olhou em redor, recordando vagamente que aquele fora o quarto de Sir Anthony Thorpe, um ríspido cavaleiro mais velho de uma qualquer obscura vila do Norfolk, que insistia sempre em dormir com a porta aberta. O seu sonoro ressonar espalhava-se por todo o corredor, perturbando o sono de todos os outros.
Depois de tirar a capa e a pendurar, Thomas pegou no prato onde a vela estava fixa e avançou até à porta. Escutou sons abafados de conversa na cela ao lado; era Jenkins a tentar desapertar a língua a Richard. Abriu a porta e saiu para o corredor, levantando bem a vela para melhor apreciar o que o rodeava. Para um lado o corredor seguia até às cozinhas, com portas de ambos os lados, para as celas dos cavaleiros e dos seus escudeiros. Um brilho mortiço sob a porta em frente revelou a localização do quarto de Sir Martin. Virou-se para o outro lado e refez o caminho que o trouxera do átrio.
Apesar de avançar com toda a cautela, o som dos seus passos era claramente audível ao dirigir-se para a lareira fria na parede oposta à porta da rua, que apenas realçava o ar vazio e abandonado do salão. Parou para olhar lentamente em redor, e relembrar. Havia no ar um ligeiro cheiro a carne assada, um cheiro comum em Inglaterra; naquele lugar, porém, trouxe-lhe de súbito à memória uma vívida lembrança: o seu primeiro festim no albergue. Tinha sido armado cavaleiro aos dezassete anos, juntara-se à Ordem um ano depois, e ainda tinha o coração inchado de orgulho ao sentar-se à mesa junto à lareira, ao lado de uma vintena de cavaleiros ingleses, a comer e beber enquanto o salão aquecia e se enchia com os sons da conversa em voz alta, e com as gargalhadas. Conseguia até recordar-se dos rostos. Sir Harry Beltham, de faces sempre rosadas, para complementar o cabelo e barba ruivos que rodeavam uma cara redonda. O riso dele era profundo e contagiante, e quando dera uma palmada nas costas de Thomas, o jovem cavaleiro tinha sido forçado a uns passos de corrida involuntária até quase ao meio do salão. Sir Matthew Smollett, um galês, alto, seco e de feições tão escuras que tinham dado azo a rumores de que haveria nele por certo algum sangue mouro. Tinha por hábito manter-se calmo e silencioso, observando tudo à sua volta com um sorriso astuto, lançando de vez em quando um comentário certeiro que relembrava aos outros ser possuidor de uma inteligência superior. Outros havia que Thomas recordava com afeição. E por fim Sir Oliver Stokely, um camarada de armas que em tempos considerara como amigo, mas que se tornara num inimigo feroz na altura em que se tinham separado. O encontro gélido com o seu antigo camarada ainda o afetava.
As memórias desvaneceram-se, e à sua volta ficaram apenas as sombras e o frio. Por momentos tentou ainda recuperar a lembrança dos seus camaradas animados num festim, mas o desejo pareceu-lhe vão e acabou por desistir. Com um coração pesaroso, regressou à cela e abriu a mala. Nela vinham algumas mudas de roupa e um punhado de bens pessoais. Retirou as escovas e o crucifixo de prata — uma herança de família — perante o qual tinha tido o costume de rezar todos os dias, de manhã e à noite. Tomou-o nas mãos e contemplou-o por momentos, pensativo, antes de o colocar sobre a mesa, encostado à parede. Deliberadamente, deixou para o fim a bolsa de couro. Desfez os nós que a apertavam e extraiu com todo o carinho o medalhão de ouro. Depois de uma breve hesitação, abriu-o e apreciou mais uma vez a madeixa escura que continha. Ficou imóvel por instantes, antes de juntar os lábios e tocar levemente o cabelo sedoso com o dedo mindinho, acariciando-o com todo o vagar.
— Maria...
Ouviu-se um bater à porta. Thomas fechou bruscamente o medalhão e voltou a colocá-lo na bolsa, que guardou na única gaveta da mesa.
— Entre.
Jenkins entrou, com um tabuleiro em que vinha o candelabro, um jarro rolhado e duas taças de latão. Virou-se e fechou a porta antes de atravessar o quarto e pousar o tabuleiro. Thomas sentou-se na cama e apontou-lhe a cadeira. Jenkins acenou um agradecimento e sentou-se com um suspiro, antes de tirar a rolha ao frasco e encher uma taça que passou ao cavaleiro, para depois encher outra para si. Thomas ergueu a taça e sorriu.
— Aos velhos camaradas, e aos amigos ausentes.
O vinho estava morno e agradável ao palato, e desceu confortavelmente até ao estômago. Bebeu, e abaixou o copo até ao colo, mantendo-o entre as duas mãos enquanto contemplava com afeição a figura do velho servidor do albergue. Jenkins esvaziou o copo e pousou-o na mesa antes de limpar os lábios com as costas da mão ossuda.
— Boa pinga, esta.
— Pinga? — Thomas arregalou um olho. — Isso foi mais do que um pingo, parece-me.
O criado encolheu os ombros.
— Senhor, quando um homem passa muito tempo a sós, a falta de alguém com quem conversar pouco mais lhe deixa como ocupação do que a bebida.
Thomas concordou, sabendo do que falava o outro.
Jenkins debruçou-se para a frente e baixou a voz.
— O vosso escudeiro não parece muito feliz com a sua sorte, se o posso dizer, senhor.
— Oh?
— Mostrei-lhe a cela, tentei puxar conversa, mas ele estava de mau humor. E também não me pareceu saber grande coisa quanto ao que tem de fazer para tratar dos vossos pertences. O couro das vossas botas está seco, e há sinais de ferrugem nas lâminas das vossas espadas. Impensável, nos velhos tempos. Por muito menos do que isso, seria espancado severamente. Não é nenhum miúdo, já tem idade para saber o que fazer.
— Tens razão, mas foi o melhor que consegui arranjar antes de deixar a Inglaterra. Não há muitos jovens dispostos a pôr o seu futuro em Inglaterra em risco optando por servir a Ordem.
— A sério? — Jenkins cerrou os lábios. — As coisas devem estar mesmo feias para os seguidores da verdadeira Igreja. Outra coisa não seria de esperar com um daqueles hereges no trono.
— Não sei se chamaria à rainha Isabel uma herege. — Thomas riu. — Sobretudo não à sua frente, ou à de alguém que lho pudesse ir relatar.
— Pouco me importa isso, senhor. Nunca regressarei a Inglaterra. Aqui morrerei, em Malta. De uma forma ou de outra. Portanto, posso dizer o que me apetecer sobre uma rainha protestante
Thomas pensou em Richard, na cela adjacente, e nos seus patronos em Londres. O jovem tinha sido treinado para matar, e aquela era a sua primeira missão importante, pelo que estava ansioso para obter êxito, e não permitiria que alguém o impedisse, muito menos o velho criado.
Bebeu outro trago da taça e comentou, em tom pensativo:
— Ela pode ser protestante, sim, mas até agora a rainha evitou executar tantos opositores religiosos como a rainha Maria fez antes dela. Tem tomado medidas para voltar a unir o nosso povo, e pode ser que se venha a revelar uma monarca tão boa como os melhores que já tivemos.
— Pfff! — fungou Jenkins com desprezo. — Tem o pensamento envenenado contra a Igreja de Roma. Não escapará à eternidade de tormentos que merece, ela e todos os que abraçam a heresia. Sua Majestade é tão nossa inimiga como o sultão.
— Mesmo sendo cristã?
— Mesmo assim — anuiu Jenkins, sem deixar lugar a dúvidas.
Thomas olhou para o velho criado com um coração pesaroso.
— Vejo que, desde que daqui saí, os servidores da Ordem não perderam nada da sua zelosa fé.
— O zelo é a nossa força, senhor. É isso que tem sustentado a Ordem nos séculos que decorreram desde que controlávamos a Terra Santa. E é-nos necessário, agora mais do que nunca. — Jenkins coçou o queixo, fatigado. — A verdade é que a Ordem não está em grandes condições para continuar a resistir aos Turcos. Graças às guerras na Europa, pouco sangue novo tem havido para recompor as fileiras dos cavaleiros. O capitão Romegas mal tem gente suficiente, entre soldados e marinheiros, para guarnecer metade das galeras da Ordem. E muitos dos cavaleiros já estão longe do auge, senhor. Oh, a fé e a coragem são tão fortes como outrora, mas os seus corpos já estão velhos e gastos. E o do Grão-Mestre mais do que o de todos. Ele é mais velho do que eu, e a vista e a força começam a falhar-lhe, pelo menos é o que me diz um amigo que o serve nos aposentos privados.
— Isso é só má-língua — retorquiu Thomas. — Quando o vi esta tarde, pareceu-me em boas condições físicas e mentais.
Jenkins lançou um sorriso fraco.
— Claro, senhor. O Grão-Mestre sabe perfeitamente que é para ele que todos olham para os conduzir através das ameaças próximas, e os cavaleiros e soldados mais ainda. Mas não consegue iludir a sua verdadeira condição aos que lhe estão mais próximos. — Encolheu os ombros. — Os homens poderosos parecem nunca notar a presença dos que os servem.
Thomas considerou o mal que poderia ser infligido ao moral da Ordem e de todos os que dele dependiam, se algum dia as pessoas vissem La Valette como os seus criados pessoais viam.
— Seria talvez melhor que não repetisses o que ouviste acerca do Grão-Mestre.
— Sim, senhor. Não queria de alguma forma desrespeitá-lo.
— Em condições normais, Jenkins, pouco me importaria. Mas estamos perante a mais grave das ameaças, e La Valette é o rochedo sobre o qual assentam todas as nossas esperanças. É um peso cruel para lançar sobre os ombros de um homem de idade que já deu toda a sua vida ao serviço da Ordem. Chegou a hora do seu mais grandioso desafio, e mesmo que o seu corpo já não seja mais do que uma sombra do que foi em tempos, o seu coração, a sua mente e o seu espírito estão tão capazes como sempre, e melhores pela vasta experiência de que dispõem. Se há alguém capaz de nos conduzir à vitória sobre o Turco, esse alguém é por certo Jean Parisot de La Valette.
Jenkins olhou-o por momentos, antes de responder.
— Belas palavras, senhor. Mas acreditais deveras nelas? Talvez fosse melhor se a Ordem elegesse um homem mais jovem para o substituir, e permitisse a La Valette retirar-se em paz.
Thomas abanou a cabeça.
— Quem não quereria estar no coração de um momento destes? Se a Ordem triunfar, ninguém esquecerá alguma vez o seu nome, e se formos esmagados, pertencer-lhe-á a honra e a glória de ter combatido até ao fim em nome da fé.
— Por mim, senhor, preferia que ele conseguisse toda essa glória de outra forma qualquer. Não tenho grande vontade de ser trespassado por uma espada turca, o que sucederá decerto se eles tomarem Birgu. Nenhum dos habitantes a tem.
— Tenho a certeza que o teu ponto de vista é partilhado por muitos dos cavaleiros. Quanto a mim, prefiro sobreviver a ser massacrado. Não estou certo de que Deus me tenha destinado um fim heroico mas sem esperança.
Instalou-se um silêncio desconfortável, até que Thomas esvaziou a sua taça e pegou de novo no jarro.
— Mas chega desta conversa. O que acontecer, acontecerá. Quero saber mais do que ocorreu por cá desde que deixei a Ordem.
A expressão de Jenkins endureceu e ele baixou a cabeça, recusando-se a trocar um olhar com o cavaleiro. Quando voltou a falar, a voz era sumida e trémula.
— Senhor, temos mesmo de falar disso? Temia este momento.
— Gostaria de saber o que sucedeu por cá.
— Talvez fosse melhor se procurásseis Sir Oliver, senhor. Ele poderá dizer-vos mais do que eu.
— Já me encontrei com ele — ripostou Thomas, magoado. — Ele não quer falar comigo. E é por isso que te peço, Jenkins. Há perguntas que tenho de fazer. Respostas que tenho de obter.
— Senhor, peço-vos, não mas fazei a mim. O meu coração alegra-se de vos rever. Sempre fostes um dos meus cavaleiros preferidos antes de... de serdes aconselhado a afastar-vos. Rogo-vos que não abrais velhas feridas. O que passou, passou. Nada pode ser alterado. O melhor é esquecer.
— Mas esquecer é-me impossível! — A angústia na voz do cavaleiro assustou Jenkins, que o fitou com uma expressão receosa.
Thomas debruçou-se sobre ele, os olhos em brasa.
— Quando fui banido, perdi tudo o que tinha significado para mim, tudo. Os meus camaradas, a minha honra, a minha fé e... e o meu amor. — A última palavra foi dita por entre dentes cerrados. — E durante vinte anos tudo aguentei. A princípio tentei fingir que o meu coração era de pedra, e que conseguia afugentar toda e qualquer emoção. — E falhara miseravelmente nessa tentativa. — Depois, quando percebi que não conseguia seguir esse caminho, dediquei-me a servir senhores da guerra por toda a Europa, e ainda assim não me consegui esconder das memórias que me assolavam no espaço livre entre trabalho e sono. Por fim o tempo conseguiu apaziguar algum do fogo que me consumia, e foi nesse preciso momento que fui de novo chamado aqui. Jenkins, não te posso dizer o que voltar a ver e cheirar esta terra fizeram ao meu coração. Voltar a percorrer as ruas de Birgu, voltar a entrar neste albergue, essas ações feriram a minha alma. Em tempos, fui feliz nestas mesmas paragens. Mas aquela que mais prezava, acima de tudo o que era a minha vida, já cá não está. Maria morreu.
— Quem disse?
— Sir Oliver. — Thomas recostou-se e esfregou a testa com vagar. — Ainda em Inglaterra, tinha pensado nisso, e tentei acreditar que assim era. Que mais podia eu fazer? Não tinha forma de saber o que acontecia por cá. Todos os membros da Ordem estavam proibidos de me contactar, e se me atrevesse a voltar à ilha, seria por certo executado. Acabei por aceitar que Maria tinha saído da minha vida, embora nunca do meu coração, e agora regressei para descobrir que ela morreu, e é como se me visse obrigado a aprender de novo a viver sem ela. Desculpa-me. — Thomas levou o olhar ao teto, e respirou fundo. Nunca pretendera deixar os seus sentimentos extravasar daquela forma, queria apenas preencher os detalhes da história que julgava conhecer. Mas era já tarde de mais, e o semblante frio e imperturbável que tinha apresentado ao mundo tinha-se derretido como neve na primavera.
— Meu pobre senhor — comentou Jenkins. — Não sabia que ela, Maria, tinha morrido. Tudo o que sabia era que ela tinha deixado Birgu depois de terdes sido banido.
Thomas sentiu o coração dar um salto.
— Para onde? Para onde foi ela?
— Não faço ideia, senhor. Tudo o que sabia era que tinha recolhido a um convento até a criança nascer. Depois disso, nada soube durante muitos meses. Até ao inverno seguinte, quando Sir Oliver estava a falar com La Valette aqui nos seus aposentos no albergue. Quando lhes trouxe vinho, escutei um pouco da conversa sobre esse assunto. Sir Oliver disse que a criança, um rapaz, tinha nascido, mas que era fraca e morrera pouco tempo depois.
— Tive um filho... — Thomas sentiu novo aperto no coração ao escutar aquela novidade. Um filho. Maria tinha tido o seu filho. Sentia-se preso entre a dor de saber tudo o que tinha perdido e a fúria por nunca o ter sabido até àquele momento. Passaram longos momentos até voltar a conseguir controlar os pensamentos e voltar a falar. — E Maria? O que foi feito dela depois?
— Não sei, senhor. Correu um boato de que ela tinha deixado Malta e recolhido a um convento em Nápoles. Nunca mais a vi desde que deixou Birgu. Se morreu, deve ter sido em Nápoles. — Fez uma pausa, antes de prosseguir em tom cauteloso. — Sir Oliver sabe muito mais do que eu. Perguntai-lhe.
— Fá-lo-ia, mas ele não quer discutir o assunto comigo. Ele odeia-me.
— E isso surpreende-vos? Era bem sabido que também ele tinha perdido o seu coração pela senhora. Ela escolheu amar-vos a vós. — Jenkins abanou a cabeça, lamentando. — É difícil um homem aceitar tal situação sem se tornar amargo e ressabiado. Já vivi mais do que o suficiente para o ver uma e outra vez. A inveja é uma cruel senhora do nosso espírito.
— Ainda assim, ela deixou as nossas vidas há tanto tempo, que as feridas no coração de Sir Oliver deviam ter tido tempo de sarar.
Jenkins deitou-lhe um olhar sabedor.
— Porém, o vosso coração ainda não está refeito.
— É bem verdade — admitiu Thomas.
— E a vossa chegada reabriu as feridas de Sir Oliver.
Thomas anuiu em compreensão, e sentiu de repente que a exaustão se apossava do seu ser. Estava farto daquela vida, dos incessantes fardos de dor e memória. Queria esquecer tudo e recomeçar, ou então pôr fim a toda a história. Fechou os olhos e deixou a cabeça escorregar até se apoiar nas mãos.
— Deixa-me, velho amigo. Preciso de descanso.
— Sim, senhor. Sei-o bem. — Jenkins ergueu-se a custo da cadeira e fez menção de pegar no jarro e nos cálices; hesitou e acabou por os deixar onde estavam, dirigindo-se lentamente para a porta. Deitou um último olhar ao cavaleiro que se debatia com os seus tormentos de alma, e fechou a porta atrás de si.
Malta 1565
18
Pouco depois do alvorecer na manhã seguinte, Thomas e Richard foram acordados por um servidor de La Valette, com ordens para se irem apresentar ao Grão-Mestre nos seus aposentos. Sir Martin ainda ressonava quando deixaram o albergue e cruzaram as ruas silenciosas até chegar à ponte levadiça que dava acesso ao forte de St. Ângelo. Don Garcia estava já com o Grão-Mestre, e impacientava-se por dar início à vistoria das defesas. Enquanto La Valette era especialista no combate naval, Don Garcia tinha uma experiência considerável de campos de batalha e cercos.
Começaram com as fortificações de St. Ângelo, que dominavam as zonas do porto por onde se fazia a aproximação ao promontório de Birgu. Don Garcia insistira na necessidade de subir a cada torre; quando por fim desceram às catacumbas do forte para examinar cisternas e armazéns, anunciou que estava satisfeito.
— Uma estrutura de fundações sólidas. Se os turcos entrarem em Birgu, os cavaleiros que sobreviverem poderão recuar para aqui e resistir até chegarem reforços.
— Ou até serem, sermos, feitos em bocados pelos canhões inimigos — respondeu o Grão-Mestre.
Don Garcia ignorou o comentário e pediu para ver as defesas de Birgu. Ficou muito menos satisfeito. Havia grupos de trabalho formados por escravos, agrilhoados em conjunto, que trabalhavam para aumentar a altura e espessura das paredes e bastiões que protegiam a base do promontório. Outros escravos, atentamente vigiados por soldados, atarefavam-se a desmantelar os afloramentos rochosos no exterior da muralha, de modo a aprofundar o pequeno fosso que se situava antes das defesas.
Uma pequena caminhada para sul levou o grupo ao fosso e muralha que protegiam o promontório de Senglea. Na sua entrada ficava o forte de S. Miguel, a proteger o fino lanço de terra que se estendia paralelamente ao braço de mar onde os galeões, navios pesqueiros e as sete galeras da Ordem estavam fundeados. Mais uma vez, Don Garcia explorou o forte de cima a baixo, e procedeu às suas observações das defesas a partir da torre que fornecia a mais ampla panorâmica.
— O ponto fraco é aquela margem em frente às falésias, além. — Apontou através do braço de mar que os locais conheciam como Ribeiro dos Franceses. Por trás dele, o terreno era plano antes de se erguer abruptamente a algumas centenas de metros do forte. — Os turcos podem bem montar ali canhões pesados para demolir as defesas exteriores. E não poderemos fazer grande coisa quanto a isso.
Thomas limpou a garganta.
— Senhor, creio que há um perigo muito maior.
Don Garcia virou-se para ele com um ligeiro franzir de sobrancelhas.
— E qual é? — indagou o comandante espanhol.
Thomas apontou para a base do promontório de Senglea, em frente aos penhascos. Havia ali alguns pequenos bastiões defensivos à beira da água, com paredes de rocha.
— Não há grande maneira de impedir um desembarque além. Se os turcos tomarem aquela ponta, podem desembarcar lá alguns canhões e bombardear S. Miguel pela retagurada. Além disso, também poderão destruir os navios no Ribeiro das Docas e disparar sobre Birgu.
— Tendes razão. — Don Garcia cofiou a barba. — Seria um desastre.
— Essa ameaça já está a ser colmatada — interveio La Valette. — Dei ordens para que fossem colocadas estacas no fundo, a dez passos da margem. Cada uma terá um anel de ferro para se poder passar uma corrente por ela. Qualquer navio que tente acostar ali vai embater na corrente, e quem estiver a bordo terá de nadar para terra.
— Isso é bom, muito bom — concordou Don Garcia. — Mas ainda assim, será preciso defender a margem. Mesmo que essa corrente impeça um desembarque, será necessário conter o inimigo na praia, de modo a que os vossos canhões o possam abater. Um parapeito ali daria muito jeito.
O Grão-Mestre fez um gesto para o escrivão que o acompanhava, para que tomasse nota da indicação.
Devagar, Don Garcia olhou em redor de todo o Grande Porto e da paisagem circundante.
— O problema com toda esta posição é que todos os fortes estão localizados de forma a ficarem sob ameaça de terreno mais elevado. Grão-Mestre, podeis ter uma magnífica base para as vossas galeras, não o disputo, mas tratando-se de um cerco em que o inimigo terá à sua disposição canhões, e muitos, a defesa destas posições não me parece fácil. O principal aspeto a vosso favor é que os turcos serão obrigados a atacar em frentes estreitas, qualquer que seja o seu alvo.
— O que vem a calhar, dados os poucos homens que tenho à minha disposição.
Don Garcia cerrou os lábios, pensativo.
— A questão é, qual dos fortes atacarão eles primeiro? Se fosse eu o comandante dos Turcos, começava por ali. — Levantou o braço e apontou para St. Elmo. — É o mais pequeno dos fortes e está isolado do resto das vossas defesas. Deve ser o mais fácil de capturar. Se St. Elmo cair nas suas mãos, o inimigo passará a dominar as rotas de aproximação a ambos os portos, e poderá ancorar os seus navios sem qualquer problema no Marsamxett. Além disso, poderá disparar sobre o Grande Porto e bombardear estes dois promontórios. Sem esquecer que uma tal conquista afetará o moral das vossas forças e aumentará a confiança das tropas inimigas. — Don Garcia ponderou todas as observações e anuiu para si mesmo. — Sim, é ali que ele vai atacar em primeiro lugar, estou seguro disso. É portanto vital que St. Elmo resista tanto tempo quanto for possível. Vamos lá ver então o forte...
. . .
Apesar de a primavera ainda mal ter começado e o ar continuar fresco, Thomas, Richard e os outros membros do pequeno grupo de oficiais transpiravam abundantemente enquanto subiam os degraus para o cimo da torre que se erguia solitariamente no exterior da face nordeste do forte de St. Elmo, entre este e o mar. Thomas chegou ao topo e deu um passo ao lado para se recompor e recuperar o fôlego. O Grão-Mestre adiantou-se até ao parapeito e recostou-se contra o calcário das ameias para recuperar. O rosto de Don Garcia também se apresentava afogueado pelo esforço, e por alguns momentos ninguém pronunciou palavra na plataforma superior da torre. Do outro lado das ameias, a face da torre caía a pique até à extremidade rochosa da península, onde esta encontrava o mar. Não havia vento, e a superfície do oceano parecia lisa e cinzenta, estendendo-se para o horizonte como uma folha de aço frio.
Richard olhou para os homens que o rodeavam com ar calculista, antes de sussurrar:
— Sir Thomas, há aqui demasiados velhos.
O cavaleiro lançou-lhe um olhar reprovador, mas não se atreveu a responder-lhe, já que duvidava que conseguisse falar sem ofegar, provando assim o ponto levantado pelo escudeiro.
— Olhe para eles — prosseguiu Richard. — O Grão-Mestre é uma relíquia de uma guerra antiga, e o mesmo se aplica à maioria dos outros cavaleiros mais proeminentes. Como podem esperar manter Malta nas suas mãos, com um bando de velhotes e os nativos da ilha? E mesmo que consigam encontrar alguns mercenários suficientemente idiotas para aceitarem o dinheiro, a situação continuará a ser insustentável.
Thomas lambeu os lábios secos e inspirou profundamente.
— Nunca subestimes o valor da... experiência. Estes homens, e eu, já combatiam os Turcos muito antes de teres nascido. Quando chegar a hora, o valor dessa experiência tornar-se-á claro. Se o inimigo cometer o mesmo erro que tu e desdenhar da qualidade dos cavaleiros da Ordem — Thomas sorriu friamente —, tanto eles como tu terão uma grande surpresa. Lembra-te do que te digo.
Virou-se e avançou firmemente pela plataforma até se juntar aos homens agrupados em volta de Don Garcia e La Valette. O espanhol soltava sons para si mesmo enquanto avaliava o forte lá em baixo. Da torre tinha-se uma vista privilegiada sobre o coração de St. Elmo, onde uma companhia de milicianos malteses treinava sob o comando de um sargento espanhol, que berrava ordens que um indígena, espadaúdo mas sem a ferocidade ou o volume vocal do sargento, traduzia.
— Quem deu ordens para construir o forte nesta localização? — perguntou a La Valette. — Vós?
— O Grão-Mestre que me antecedeu.
— E quem o aconselhou, se é que alguém o fez?
— Havia um engenheiro italiano com experiência de cercos, que devia ter supervisionado os trabalhos, mas morreu pouco depois de chegar a Malta.
— Uma pena, já que poderia ter impedido que o vosso antecessor fizesse um tal catálogo de asneiras.
— Oh?
— Para começar, este forte está no local errado. Devia estar além. — Don Garcia apontou para a crista da península que dividia os dois portos. — Dali poderia dominar todas as rotas de aproximação. Assim, o inimigo poderá ocupar a posição mais elevada e dominar o forte. Além disso, não existem abrigos ao longo do parapeito. Assim que um homem puser a cabeça à mostra por trás da muralha, ficará claramente delineado contra o céu, apresentando um fácil alvo a qualquer inimigo com um arcabuz que esteja escondido à frente do forte. E há muito pouco espaço nas muralhas, não se vai conseguir colocar lá mais do que uns poucos canhões. Vai ser necessário utilizar as torres. E ainda há outra coisa. Olhai lá para baixo. — Don Garcia apontou para o canto mais próximo do forte em forma de estrela. — Se os turcos conseguirem rodear a face do forte, facilmente conseguirão escalar aquele canto. É demasiado baixo. Será prudente construir ali um revelim.
Enquanto La Valette acenava em concordância, Richard inclinou-se para Thomas e sussurrou:
— Revelim?
— É uma fortificação que é construída para proteger um ponto mais débil — explicou Thomas com toda a calma. — Normalmente em forma triangular.
Don Garcia tinha estado calado por momentos, enquanto ordenava os pensamentos.
— Cada dia em que o estandarte da Ordem flutuar sobre St. Elmo é um dia a aproveitar para reforçar as defesas de Birgu e Senglea. Se conseguirdes resistir o tempo suficiente para que uma força seja reunida e vir em vosso auxílio, ou para que chegue o fim da época de campanha em outubro, haverá alguma possibilidade de que Malta continue nas nossas mãos.
— Garanto-vos que Malta resistirá — ripostou La Valette com firmeza. — A Ordem de S. João foi primeiro expulsa da Terra Santa, e depois de Rodes. Manteremos Malta a qualquer preço. Se não prevalecermos, então a Ordem perecerá aqui mesmo. Todos e cada um de nós a isso estamos decididos.
Don Garcia contemplou o velho cavaleiro.
— Uma morte gloriosa, então? É isso que buscais?
— Não receio a morte ao serviço de Cristo. Nunca a receei.
— Por louvável que seja a vossa dedicação à causa, aconselho-vos vivamente a que vos mantenhais à margem dos combates mais encarniçados, se os Turcos atacarem realmente Malta.
La Valette franziu o sobrolho.
— Nunca farei tal coisa.
— Mas devereis fazê-lo. Sois um homem orgulhoso, sei-o bem. Mas deveis ter em consideração o moral daqueles que comandais. Sois mais do que um simples comandante, sois a figura que os representa. É para vós que todos os olhares se voltarão, e devereis parecer forte e decidido em todos os momentos. Se fordes ferido ou morto, o espírito dos vossos homens será grandemente afetado. Sou um soldado há tempo suficiente para saber bem a verdade do que vos digo. A vontade de combater é volúvel. Sabeis perfeitamente tudo o que está em jogo na defesa desta ilha, e suplico-vos que mantenhais os interesses maiores acima do vosso orgulho. A Ordem já enfrenta a maior das ameaças.
— Seria então boa ideia que considerásseis enviar-me os soldados que solicitei a Sua Majestade. Cinco mil homens seriam uma importante contribuição para a segurança de Malta.
— Não tenho cinco mil homens que vos possa ceder. Tenho na Sicília pouco mais do que isso. Há mais homens a serem recrutados em Espanha, que em breve se juntarão ao meu exército. Como disse ontem à noite, enviar-vos-ei reforços assim que eles estiverem disponíveis, mas até lá tereis de vos munir de paciência.
— Paciência? — repetiu La Valette, com amargura. — Há meses que vos envio, bem como ao rei, detalhes do que os nossos espiões observaram nos estaleiros e arsenais do inimigo, e nada mais haveis feito do que construir uns navios e aguardar nos vossos castelos em Espanha, à espera que o inimigo avance. Digo-vos, ele vem aí, e será aqui que o destino da Ordem e do resto da Cristandade será decidido.
— Podereis ter toda a razão, mas tenho as minhas ordens e as minhas responsabilidades. Todavia, não me esquecerei de solicitar ao rei permissão para vos enviar mil dos meus melhores homens da Sicília, e farei tudo o que puder para vos enviar mais reforços assim que possível.
La Valette olhou diretamente para o comandante espanhol.
— E dais-me a vossa palavra quanto a isso?
A expressão de Don Garcia toldou-se visivelmente perante aquele ataque à sua honra. Reprimiu a fúria e ripostou num tom neutro.
— Melhor ainda, deixarei aqui convosco o meu próprio filho, como penhor da promessa que vos faço.
— O vosso filho?
Don Garcia olhou em redor e chamou Fadrique. Colocou a mão sobre o ombro do filho.
— Concordas com esta ideia?
O jovem espanhol pouca alternativa teria, mas era evidente na sua expressão que lhe agradava sobremaneira a possibilidade de provar o seu valor perante o assalto inimigo.
Pigarreou.
— Seria uma verdadeira honra combater ao lado dos cavaleiros da Ordem de S. João, senhor.
— Aí está. — Don Garcia voltou a dar atenção ao Grão-Mestre. — Como vedes, atribuo o maior valor à esperança de que esta fortaleza consiga resistir aos Turcos. Nesta ilha aposto o meu próprio sangue, ao vosso lado e ao dos vossos homens.
La Valette anuiu, e Thomas reparou no respeito que tomara conta da sua expressão.
— Muito bem. Estou certo de que o vosso filho honrará o nome da família. Agrada-me que ele combata a meu lado.
— Ótimo. — Don Garcia olhou para o filho durante um momento e afagou-lhe o rosto com carinho, antes de deixar a mão cair. — Grão-Mestre, há ainda dois assuntos que gostaria de discutir convosco antes de dar por concluída a minha visita e partir. Em primeiro lugar, ser-vos-á necessário criar um grupo de conselheiros que vos possam ajudar no planeamento da defesa da ilha. Sei bem que a Ordem tem um corpo dirigente, que comandais. Mas esse grupo é demasiado grande, pouco ágil e dado a conflitos internos. Deveis manter um conselho com poucos elementos, e não devem existir quaisquer sinais de divisão entre eles. Se algo vos acontecer, um dos membros desse conselho deve assumir o comando imediatamente. Portanto, deveis escolher para o conselho homens cuja liderança possa ser aceite pelos soldados com a mesma prontidão com que aceitam a vossa.
O Grão-Mestre mordeu os lábios por momentos, antes de assentir.
— Muito bem. E qual é o outro assunto?
Don Garcia virou-se e apontou para o outro lado do porto, onde as galeras da Ordem flutuavam ancoradas na base das paredes de St. Ângelo.
— Os vossos navios ficarão extremamente vulneráveis se ficarem aqui. Se os turcos cercarem Malta, de pouco vos poderão servir. Seria melhor se os colocásseis sob o meu comando. Os Turcos têm uma armada poderosa, e preciso de todas as galeras que encontrar para os combater.
— As minhas galeras ficarão aqui — contrapôs La Valette com firmeza.
— Porquê?
— Precisamos delas.
— Para que propósito? De que servirão elas, se Malta for sitiada?
— Preciso delas para proteger os navios que nos trarão comida, armas e homens, e para evacuar todos os que quiserem partir antes da chegada dos turcos. Ainda há por aí muitos corsários em busca de presa. Se levardes as minhas galeras, os cargueiros ficarão desprotegidos.
— Posso fornecer-vos algumas galeras para patrulhar as rotas de acesso a Malta até quando for possível.
— Para que precisaria eu delas, se posso usar as minhas?
Os olhos de Don Garcia semicerraram-se.
— Isto nada tem a ver com o facto de as duas melhores galeras serem vossa propriedade pessoal, pois não? — Baixou a voz. — Todos temos de fazer sacrifícios para o bem comum. Não podemos permitir que os interesses pessoais se sobreponham à razão, Grão-Mestre.
— E é a razão que me dita estas palavras — protestou La Valette. — Sem as nossas galeras, a Ordem é impotente. Mas se considerais que o meu argumento é parcial, procuremos uma opinião mais distante da questão. — O Grão-Mestre virou-se. — Sir Thomas, qual é a vossa opinião?
— Porquê perguntar-lhe? — objetou Don Garcia. — Ele é um membro da vossa Ordem. A sua opinião é tudo menos imparcial.
— Não serve a Ordem há perto de vinte anos, e não é um súbdito do rei de Espanha. A sua opinião é a de alguém que não está envolvido nesta questão. E então, Sir Thomas, que dizeis?
A mente de Thomas trabalhava a toda a velocidade, enquanto ponderava a resposta a dar. O pedido de Don Garcia fazia sentido, dada a ameaça iminente, mas sabia também como a Ordem prezava as suas galeras. Se apoiasse o espanhol, arriscava-se a ganhar a inimizade do Grão-Mestre e da maior parte dos cavaleiros. O que resultaria em azedume e divisões. Além disso, era uma excelente ocasião para cair definitivamente nas boas graças de La Valette. E sem isso, dificilmente poderia prestar alguma assistência à missão de Richard, ou descobrir mais alguma coisa sobre o destino de Maria. Limpou a garganta.
— Sem as galeras, os cavaleiros não podem atacar o inimigo. Os guerreiros da Ordem ver-se-iam confinados a este rochedo. Quando o cerco for levantado, a Ordem continuará a fazer a guerra aos Turcos e aos seus aliados, os corsários. E para isso, os cavaleiros precisarão das galeras. Se as levardes, que garantias podeis dar ao Grão-Mestre de que elas nos serão devolvidas? E, de qualquer forma, que diferença poderão sete galeras fazer, dada a desproporção das forças? Senhor, estais sob ordens estritas para não colocar desnecessariamente em risco as vossas embarcações ou os vossos homens. E portanto pouca diferença fará se as galeras ficam aqui ou se juntam à vossa frota.
Don Garcia olhou para ele sem esconder a fúria.
— É assim que me agradeceis as confidências que vos fiz?
— Senhor, nessa altura não estava consciente de que falávamos em termos privados.
O espanhol voltou a dirigir-se ao Grão-Mestre.
— Eis o que vale a vossa opinião imparcial. Muito bem, ficai com as vossas malditas galeras. Mas exijo uma promessa. Se existir alguma possibilidade de caírem nas mãos do inimigo, elas serão destruídas.
— Garanto-vos que tal sucederá. Atearei pessoalmente o fogo, do mastro à quilha, antes de as ver tomadas pelos Turcos ou, pior ainda, pelos demoníacos corsários.
— Nesse caso, assunto encerrado, embora mantenha que haveis prestado um mau serviço à causa que é de todos nós. Quanto às defesas, tendes as minhas opiniões, e rezo para que as sigais enquanto é tempo. Agora, tenho de regressar à Sicília e ao comando das minhas forças. Despeço-me de vós, com votos de fortuna. Senhores, vinde! — Don Garcia fez um gesto aos seus oficiais para que o acompanhassem.
Enquanto os espanhóis desciam as escadas para o interior da torre, La Valette ficou a vê-los até que o último desapareceu de vista; só nessa altura se aproximou de Thomas e sorriu calorosamente.
— Tinha esperanças de poder contar convosco. Só um cavaleiro pode compreender o que as galeras representam para a Ordem.
Thomas baixou a cabeça.
— Senhor, sou um vosso servo, e a minha lealdade é para com a Ordem, mas espero que as minhas palavras tenham sido sábias. É bem possível que Don Garcia tenha razão no fim de contas, e que aquelas galeras pudessem dar-lhe vantagem sobre o inimigo.
— Bem, a decisão foi tomada, pelo que nunca saberemos, Thomas. Afastai o assunto e não permitis que tome conta das vossas preocupações. — Deu-lhe uma palmada amigável no ombro e virou-se para descer a escadaria.
Thomas deixou-se ficar ligeiramente para trás, e Richard aproveitou para se debruçar para ele e comentar em surdina.
— Bem jogado, Sir Thomas. Haveis conquistado a confiança de La Valette. Poderemos aproveitar esse facto.
— Se o dizes. — Thomas pousou os cotovelos no parapeito e deixou o olhar espraiar-se pelo Grande Porto até chegar a Birgu. Tinha passado toda a manhã a tentar evitar pensar no breve encontro que tivera com Sir Oliver na noite anterior. A sua mente perturbada não conseguira acolher o sono, e naquele instante só lhe apetecia esquecer tudo o que tinha a ver com o propósito secreto para a sua presença ali. Havia um objetivo mais urgente, mais pessoal, que requeria clarificação. Só depois disso estaria em condições de enfrentar o inimigo com um espírito despreocupado.
. . .
Nessa noite, depois de os dois cavaleiros terem jantado, Jenkins e Richard receberam a incumbência de limpar a armadura de Thomas. Levaram-na para o átrio, em conjunto com uma caixa contendo trapos e recipientes com polimento e cera. Sentados em bancos junto à lareira, lançaram-se ao trabalho. Jenkins mostrou ao escudeiro como proceder: colocar polimento na superfície da armadura e espalhá-lo com um pano limpo até conseguir um aspeto baço uniforme, e depois esfregar com outro pano até obter um brilho reluzente. Richard trabalhou em silêncio durante algum tempo, até que resolveu encetar uma conversa.
— Jenkins, por acaso lembras-te de um cavaleiro chamado Sir Peter de Launcey?
— Claro, senhor — retorquiu Jenkins, enquanto deitava mais polimento no trapo que lhe cobria o dedo e depois o aplicava no cimo do elmo. — Não houve assim tantos cavaleiros de Inglaterra a juntarem-se à Ordem desde que Henrique resolveu afrontar o Papa. Lembro-me bem de Sir Peter, embora ele não tenha estado entre nós durante muito tempo. Juntou-se à Ordem uns dois anos antes da morte do rei. Um homem reservado, e de grande devoção. Mais do que a maior parte dos outros. Levava os seus votos a sério. Foi com tristeza que soube que tinha perdido a vida. Tinha acabado de regressar de uma viagem a Inglaterra. Se bem me lembro, tinha ido lá por causa de uma qualquer questão familiar. — Jenkins abanou a cabeça, pesaroso. — Fazer toda aquela viagem, para acabar afogado aqui no porto. Um acidente verdadeiramente trágico.
— Sim. Mais do que imaginas — disse Richard. — Sir Peter era meu primo.
Jenkins interrompeu a tarefa de polir o elmo, e levantou a vista.
— Senhor, de facto? Lamento ouvi-lo.
— Oh, não éramos chegados. Mas era da família. — Richard fez uma pausa enquanto pousava a placa peitoral e pegava na proteção da garganta. — Encontrei-me com o irmão dele antes de deixar Londres.
— Irmão? Não sabia que ele tinha um irmão.
— Bom, era de facto um meio-irmão. Era ainda uma criança quando Peter deixou a Inglaterra. Duvido que alguma vez ele tivesse falado disso. Seja como for, quando lhe disse para onde vinha, ele pediu-me para tentar resolver um pequeno problema que tinha.
Jenkins manteve-se concentrado no trabalho.
— Hum?
— Os bens pessoais de Sir Peter nunca foram devolvidos à família. Eles escreveram a Sir Oliver Stokely, mas nunca receberam resposta.
— É um homem ocupado. Não me surpreende.
— Ainda assim, teria sido uma pequena gentileza ter ao menos respondido à carta e tratar da devolução das suas coisas, por poucas que fossem.
— Bem, ele não deixou grande coisa. — Jenkins fez um trejeito para acumular saliva e cuspiu no cimo do capacete, pondo-se de imediato a esfregar furiosamente. — Um armário com roupas, uma Bíblia, um escritório e mais algumas peças. Mal enchiam uma pequena arca. A armadura foi levada para os armazéns da Ordem.
— Estou a ver... Calculo que não me pudesses mostrar a arca? Talvez ainda houvesse tempo para tratar do seu envio para a família antes da chegada dos turcos. Sei que isso seria muito apreciado. As notícias da sua morte deixaram-nos muito abalados.
Jenkins baixou o capacete e dobrou os dedos nodosos.
— A arca não está aqui.
— Não está?
Jenkins abanou a cabeça.
— Durante uns tempos ficou na cave. Mas depois uma cisterna do edifício adjacente começou a verter e tivemos de tirar tudo de lá de baixo. Se bem me lembro, tudo o que tinha algum valor foi levado para St. Ângelo. Foi a última vez que a vi. A arca foi levada para o forte num vagão com mais umas caixas e baús. Lembro-me bem dela, porque era bem bonita, com um revestimento lacado. Seja como for, e tanto quanto sei, ainda deve estar para lá.
— Bom. — Richard sorriu. — Lacada, dizes? Devia ser preta, calculo.
— Como o carvão. Com pegas em latão. E o brasão aplicado numa crista, na tampa.
— O brasão? Como é que era?
Jenkins olhou para os brasões representados nas traves do teto.
— Além. Aquele. Fundo vermelho e a cabeça de javali sob a flâmula dourada. Estais a ver?
Richard inclinou a cabeça para trás, fixou o olhar e anuiu.
— Deve ser fácil de encontrar, se a for procurar um dia destes.
Jenkins soltou uma risada.
— Não será assim tão fácil, mestre Richard. Guardaram-na nas masmorras, nas profundezas da fortaleza, onde também estão os arquivos e o tesouro da Ordem. Não se pode simplesmente entrar lá. Tereis de obter uma permissão escrita do Grão-Mestre em pessoa para entrar. Há lá uma fortuna em ouro, prata, gemas e sedas. Os proveitos dos ataques das galeras da Ordem a navios e portos inimigos.
— Não admira então que esteja tudo guardado e aferrolhado. — Richard riu. — Para evitar tentações. E aposto que bem vigiado também.
— Claro.
— Uma pena. Gostaria de poder enviar os pertences do Peter de volta à família.
Jenkins fez estalar os nós dos dedos e acenou na direção das grevas e manoplas.
— Já só faltam aquelas. Devemos acabar a tempo de eu ir tratar do jantar dos senhores.
Richard soltou um suspiro, pegou numa das grevas e começou a aplicar uma primeira dose de polimento. Deitou um olhar de soslaio ao criado, que estava aparentemente concentrado nas placas sobrepostas da armadura, e permitiu-se um sorriso satisfeito, uma vez que já sabia o que devia procurar e onde poderia encontrá-lo. O sorriso desvaneceu-se quando contemplou o desafio de entrar nas catacumbas — no profundo âmago da sede da Ordem, fortemente guardado.
19
O ritmo dos trabalhos nas defesas da ilha aumentou fortemente depois da partida de Don Garcia e do seu esquadrão de galeras. Seguindo os conselhos do espanhol, o Grão-Mestre deu ordens para a construção de um revelim para proteger o canto mais vulnerável do forte de St. Elmo. A rocha nua da península fornecia boas fundações, mas o tempo disponível antes da chegada dos turcos não permitiria mais do que a colocação de pedras para a construção de uma muralha exterior. Por trás dela, os defensores viram-se forçados a empilhar e pisar terra e entulho. Vista de fora, a nova fortificação tinha um aspeto formidável, mas a partir do instante em que se visse alvo do fogo e do poder penetrante das balas de ferro disparadas pelos canhões inimigos, depressa seria desfeita.
Entretanto, St. Elmo estava já completamente aprivisionado, e a modesta cisterna que se situava nas suas profundezas estava repleta até cima. Pólvora e balas estavam guardadas em armazéns, prontas a alimentar o pequeno número de peças de artilharia montadas nas plataformas do forte. Caixas bem protegidas, repletas de balas para os arcabuzes, tinham sido colocadas junto ao parapeito, e sacos de serrapilheira cheios de terra estavam empilhados no pátio, a postos para tapar qualquer brecha nas muralhas.
Todos os dias entravam no porto navios com cargas de cereais, vinho, queijos e carnes salgadas. Também chegavam ferramentas e materiais de construção, necessários à preparação das defesas e às reparações que não deixariam de ser precisas. Alguns destes navios tinham sido intercetados em pleno mar pelo esquadrão do capitão Romegas e requisitados sem delongas, já que as necessidades da Ordem se sobrepunham a quaisquer considerações de legalidade. Os armadores e tripulações recebiam promessas de futura compensação, embora tal estivesse dependente da sobrevivência de Malta perante o assalto turco.
Nos primeiros dias da primavera começaram a chegar as companhias de mercenários italianos e espanhóis que o Grão-Mestre contratara, aboletadas nas povações de Birgu e Mdina. Eram profissionais experientes, que tinham sido atraídos pela promessa de pagamento generoso dos cofres da Ordem, e pela possibilidade de saque. Era bem sabido que os membros do corpo de elite do sultão, os janízaros, se vestiam de forma esplendorosa e eram regiamente pagos em ouro e prata. Os cadáveres dariam aos mercenários grandes ganhos. Chegavam também pequenos grupos de aventureiros, que se dirigiam a Malta para oferecer os seus serviços à Ordem, motivados quer pelo fervor religioso quer pelo desejo de glória. Entre eles encontravam-se alguns dos cavaleiros que tinham recebido e honrado o apelo de regressarem a Malta para combater ao lado dos seus irmãos.
Durante todo o mês de abril, os defensores trabalharam arduamente para aumentar a altura e espessura das muralhas e bastiões que protegiam os promontórios de Senglea e Birgu. À frente das muralhas, escravos e grupos de trabalhadores malteses manejavam picaretas para partir o solo pedregoso e escavar um fosso com a profundidade suficiente para fazer gorar qualquer tentativa de escalar as muralhas. Tão curto era o tempo e tão desesperada a necessidade de melhorar as defesas que ninguém foi poupado ao trabalho duro. O Grão-Mestre, apesar da avançada idade, surgia todas as manhãs com uma túnica sem enfeites e uma faixa de pano atada em torno da testa, pronto a trabalhar durante duas horas, fosse no escavar do solo ou no meio da longa cadeia humana que passava cestos cheios de entulho para o lado de dentro das muralhas de Birgu. Todos os soldados e cavaleiros tinham de o imitar, e a indiferença resmungona com que os habitantes locais os viam habitualmente transformou-se em surpresa e por fim respeito, ao verem os filhos de algumas das mais nobres famílias da Europa a trabalharem ao seu lado. Ao fim de poucos dias já se tinha tornado um hábito saudar com uma aclamação La Valette, sempre que este aparecia e pegava na picareta ou no cesto.
Quaisquer edifícios próximos às muralhas e que por isso pudessem vir a ser usados como abrigos pelo inimigo foram demolidos, e as madeiras e entulho levados para o interior, para ficarem prontos a ser usados em futuras reparações. Àqueles que, devido a essa medida, ficaram sem casa, foram dadas novas acomodações na cidade. Não havia grandes dificuldades em encontrar-lhes lugar, já que uma corrente contínua de habitantes com dinheiro suficiente para financiar um exílio temporário embarcava a caminho da Sicília, Itália ou Espanha, onde aguardariam em segurança novas sobre o destino de Malta.
Pelos finais de abril já todos sabiam que a frota turca se tinha feito ao mar e rumava a oeste. Foram dadas ordens para que os fazendeiros e habitantes das pequenas povoações espalhadas pela ilha se preparassem para abandonar as suas casas e procurarem proteção em Mdina, uma vila fortificada numa colina que fora em tempos a capital da ilha, ou no interior das muralhas de Birgu. Nada devia ser deixado à mercê do inimigo, nem colheitas, nem gado, cabras, cereais ou frutos; além disso, foram feitos preparativos para contaminar a água de poços e cisternas com carcaças de animais ou detritos. Os turcos encontrariam apenas a desolação quando desembarcassem, e ver-se-iam obrigados a trazer para a ilha todos os abastecimentos de que necessitassem, ou a cair de fome perante as linhas defensivas dos cristãos.
A princípio, Thomas, Richard e Sir Martin tinham sido designados para treinar os milicianos malteses nos mais básicos conhecimentos de técnicas de combate. Havia muito que a política da Ordem desencorajava o uso de armas pelos locais, com receio de que um dia se tornassem suficientemente ousados para se revoltarem contra aquela Ordem de cavalaria cujo domínio lhes fora imposto. Em resultado dessa opção, a maioria deles era completamente estranha a espadas, piques e arcabuzes, e muito poucos tinham alguma vez usado alguma espécie de armadura. Uns poucos tinham sido selecionados para servirem como soldados da Ordem, e esses ajudavam nos treinos e traduziam as ordens para a língua local, que, aos ouvidos pouco habituados, soava bem mais próxima do árabe do que de qualquer língua europeia. De facto, os ilhéus, com as feições e peles escuras, tinham muito mais o aspeto de mouros ou turcos do que de cristãos. Porém, isso não os impedia de serem fanaticamente fiéis à Igreja de Roma, e de odiarem um inimigo que havia mais de um século os apoquentava sem cessar. Estavam desejosos de aprender e daí a pouco eram capazes de manejar as armas como soldados experimentados. Thomas insistira que também lhes fosse proporcionado treino com os arcabuzes, mas a penúria de pólvora era tal que não lhes foram permitidos mais de três tiros de treino depois de aprenderem a carregar as armas.
Quando o apressado período de treino terminou, os cavaleiros ingleses e o escudeiro foram colocados nos grupos de trabalho dirigidos pelo coronel Mas, um dos mercenários recrutados pelo Grão-Mestre. Foi-lhes dada a incumbência de edificar o revelim, e acordavam pela alvorada para tomar um rápido pequeno-almoço antes de se dirigirem ao cais pelas estreitas ruas. Aí, esperavam junto com outros soldados e civis para terem lugar nos botes que levavam os trabalhadores para o outro lado do porto, desembarcando-os no molhe abaixo do fortim. Junto às muralhas eram-lhes distribuídas picaretas e eles juntavam-se aos escravos que já trabalhavam na abertura de um fosso nas rochas em frente ao revelim.
Durante a maior parte da manhã trabalhavam à sombra, mas assim que os raios do Sol penetravam na trincheira, o calor começava a juntar-se ao desconfortável ambiente de trabalho, criado pelas pancadas das picaretas, a poeira constante, e o cansaço que se apossava dos membros. O brilho do Sol era suficiente para obrigar os homens a semicerrarem os olhos, e queimava todo e qualquer pedaço de pele exposta, enquanto os homens desferiam golpes de picareta vestidos com túnicas ensopadas de suor. Ao meio-dia saíam da trincheira e deixavam-se cair, derreados, à sombra de uns toldos. A refeição do meio-dia era-lhes entregue pelos miúdos que saíam do forte com jarros de vinho aguado e cestos de pão e fatias de um rijo queijo de cabra produzido na ilha. As vitualhas eram dadas aos soldados e aos malteses, enquanto os escravos ficavam ao sol e eram alimentados com uma papa quente de uma grande terrina, uma colherada por homem, servida nuns recipientes de couro gasto. Estes eram postos nas mãos sujas dos escravos que, acorrentados aos pares, lá se agachavam para saborear as parcas rações, pensadas para os manter vivos e capazes de trabalhar, e nada mais. Estavam descalços e vestiam rodilhas sujas com os seus próprios excrementos. O cabelo desgrenhado caía-lhes em cachos sobre as faces esquálidas, envoltas em barbas hirsutas.
No primeiro dia, Richard contemplou os escravos com pena evidente, e quando se tinham instalado para comer, foi roendo lentamente o pão até reunir a coragem para se dirigir a Thomas.
— Aqueles escravos parecem mais animais do que homens.
Sir Martin riu enquanto mastigava um pedaço de carne salgada. Engoliu e limpou a garganta.
— Dick, meu caro jovem, são bem piores do que animais.
Falou em tom elevado, de forma a que os mais próximos dos escravos o ouvissem. Um deles, de pele mais clara que os outros, levantou o olhar ao escutar o insulto e encarou-os de mau ânimo por baixo de caracóis de cabelo pastoso e cinzento de pó, mas manteve-se em silêncio.
— Ainda assim, são humanos — contrapôs Richard.
Sir Martin encolheu os ombros.
— Sejam o que forem, são o inimigo, inimigo da nossa fé, e se tivessem tal possibilidade, matar-nos-iam sem piedade. E tu, Dick, és um escudeiro, e tratar-me-ás com a deferência devida.
— Sou o escudeiro de Sir Thomas — ripostou Richard.
— Sem dúvida, mas isso não te livra de me chamares “sir” quando te dirigires a mim. — Sir Martin virou-se para Thomas. — Deveis domar o vosso escudeiro, falta-lhe alguma humildade.
Richard deitou uma olhadela a Thomas, e o cavaleiro suspirou.
— Richard, ele tem razão. Lembra-te do teu lugar e age de acordo com ele. Ou eu não serei tolerante. Percebido?
O escudeiro anuiu, sem esconder a relutância.
— Isto dito, a um cavaleiro é exigido que seja caridoso, até com os inimigos. — Thomas ergueu-se com dificuldade e caminhou até junto do mais próximo par de escravos, detendo-se sobre eles. — Parece-me que tu percebes alguma coisa da nossa língua.
O muçulmano que reagira ao insulto de Sir Martin olhou para cima, desconfiado, e acabou por anuir.
Thomas ofereceu-lhe o resto do pão que tinha estado a comer.
— Toma. Aproveita.
O escravo olhou desconfiado para o pão e não conseguiu esconder o desejo, lambendo os lábios. Hesitantemente, lá acabou por pegar gentilmente no naco que os dedos de Thomas seguravam. Lançou-se de imediato sobre ele, mantendo um olhar vigilante sobre Thomas, não fosse o cavaleiro mudar de ideias e exigir o pão de volta. O escravo que partilhava as correntes era um mouro de pele escura que parecia estar em sofrimento, já que começou a gemer audivelmente enquanto o companheiro comia. O primeiro homem interrompeu-se e acabou por partir ao meio o pão que ainda tinha na mão, dando um bocado ao outro. O gesto surpreendeu Thomas, que já testemunhara o nível de egoísmo a que os escravos eram muitas vezes levados pelo desejo de sobreviver. A compaixão, naquelas condições, era uma fraqueza que podia perfeitamente significar a morte.
— Foi a ti que ofereci o pão, não a ele. Porque é que o dividiste?
O escravo enfrentou-o.
— Porque assim escolhi... senhor. É uma liberdade que ainda possuo.
A pronúncia do homem era-lhe familiar, e Thomas sentiu-se curioso por descobrir mais sobre um escravo que falava como um nativo de Inglaterra e era ainda assim um muçulmano aprisionado.
— De onde és?
— De Tripoli, senhor. Era guarda-costas de um mercador, até que a sua nau foi capturada por uma das vossas galeras.
— E como é que um escravo de Tripoli fala tão bem inglês?
— Nasci no Devon, senhor. Na costa.
— Devon? — Thomas arqueou as sobrancelhas de espanto. — Que diabo estás aqui a fazer então?
O escravo baixou o olhar e prosseguiu.
— Tinha nove anos quando um navio corsário atacou a nossa aldeia, senhor. Mataram o meu pai e outros homens, e levaram as mulheres e crianças para venderem como escravos em Argel, no mercado. Nunca mais voltei a ver a minha mãe. O capitão dos corsários resolveu ficar comigo. Educou-me, treinou-me no combate e por fim vendeu-me ao tal mercador.
— E converteu-te ao Islão?
O escravo anuiu.
— É essa a minha fé.
Sir Martin cuspiu com nojo.
— Um traidor aos teus, é o que tu és!
O escravo encolheu-se e pareceu ficar mais pequeno perante tamanho desprezo.
Thomas agachou-se à frente do homem.
— Como te chamas?
— Abdul, senhor.
— Queria dizer o teu verdadeiro nome. O teu nome cristão.
— O meu nome é Abdul — confirmou o escravo com firmeza. — Abdul-Ghafur. Não sou cristão. Sou um muçulmano.
Thomas encarou-o, e por momentos o escravo enfrentou-lhe o olhar, desafiante e orgulhoso, mas depressa fraquejou e deixou descair os ombros.
— Não há já em ti nada da tua vida passada? Afinal, ainda falas a tua língua materna.
O escravo encolheu os ombros magros.
— Tenho algumas lembranças, mas de outra vida. Antes de me ser mostrada a verdade nos ensinamentos de Maomé, que a paz esteja com ele.
— Porém, a tua fé apenas te deu esta recompensa. — Thomas fez um gesto designando os outros destroços humanos que se encolhiam ali perto. — Tornaste-te um escravo. Renuncia ao Islão e poderás recuperar a liberdade, e regressar à tua casa em Devon.
— Já não há um lar para mim nessa terra. O rapaz que fui já não existe, Hospitalário. Agora sou Abdul. A seu tempo serei eu o senhor e tu o escravo. Talvez então me disponha a retribuir a tua caridade e te ofereça uma crosta de pão.
Thomas sorriu.
— Achas então que o sultão conseguirá tomar esta ilha?
— Como não? Deus está do seu lado. A fé dos seus soldados é mais forte do que a tua e a dos que combatem a teu lado. O resultado está decidido, e só um tolo dele duvidaria. Eu, e todos os escravos muçulmanos, serei libertado. Os cristãos que sobreviverem serão acorrentados e vendidos nos mercados do sultão. O líder da vossa Ordem será executado, e a sua cabeça espetada numa lança e montada bem alto, para que em Istambul todos a vejam e saibam que Deus é grande. — Os olhos do escravo rebrilhavam de fanatismo enquanto falava, e a voz tinha adquirido um gume cruel e severo. Por fim a expressão adoçou-se e ele voltou a dirigir-se a Thomas com fervor.
— Salvai-vos enquanto há tempo. Senhor, deixai este lugar. Que proveito pode ter um inglês em combater e morrer tão longe de casa? Ide, antes que o punho de ferro do sultão se feche sobre este rochedo e o reduza a pó.
— Podias bem colocar essa questão a ti mesmo. De qualquer forma... — Thomas pegou numa pedra do tamanho de uma ameixa e colocou-a bem à frente dos olhos do escravo. Então colocou a outra mão sobre a pedra e fechou as duas mãos com toda a força, fazendo uma careta quando os ângulos da pedra lhe picaram as palmas das mãos. Manteve a pressão por algum tempo, até aliviar a força com um suspiro e separar as mãos. A pedra estava tal e qual como quando fora envolvida naquele aperto, mas a pele das mãos de Thomas mostrava bem o efeito do exercício. — Vê. A pedra está inteira, e o teu sultão não terá mais sucesso do que eu, quando a sua frota cercar Malta. Pensa bem nisso.
Ergueu-se e regressou para junto dos seus camaradas. Sir Martin soltou uma profunda gargalhada e bateu as palmas.
— Oh, essa foi boa. Sir Thomas, haveis conseguido colocar o sacaninha andrajoso no seu lugar. Bem feito! — Pegou num calhau e atirou-o ao escravo, que se encolheu quando este o atingiu no ombro. — Hás de lamentar o dia em que traíste a Inglaterra! Mal si le das la fe falsa del Islam, como dizem em Espanha.
O escravo que se chamava Abdul-Ghafur respondeu com um frio olhar de ódio e murmurou qualquer coisa entre dentes, antes de voltar a colocar os olhos no chão. Sir Martin sorriu, satisfeito, e mastigou outro bocado de queijo com pão antes de o ajudar a descer com um trago do vinho diluído. Olhou para Thomas pelo canto do olho por uns momentos antes de limpar a garganta.
— Há uma coisa que tenho andado para vos perguntar, Sir Thomas. Já há algumas semanas.
— Oh?
— Sim, bem, é sobre, hum, sobre as circunstâncias que rodearam a vossa saída da Ordem há algum tempo... alguns anos antes do meu tempo, como sabeis.
— Sem dúvida — respondeu Thomas, sem levantar a voz. — O que me desejais perguntar que não saibais já? Calculo que tenhais inquirido sobre os meus assuntos pessoais junto de alguns dos outros cavaleiros.
Sir Martin encheu de ar as bochechas e inclinou a cabeça para o lado.
— Já falei com alguns, sim. Claro que não há por aí muita gente que já estivesse por cá no vosso tempo.
— Os suficientes para vos fornecer os detalhes que vos interessam, aposto.
— Por acaso, todos foram pouco loquazes. Tudo o que fiquei a saber foi que havia uma mulher envolvida no caso, e que houve uma espécie de escândalo dada a desonra que o assunto fez cair sobre a Ordem.
— Então já tudo sabeis. Nada mais há que seja preciso dizer. — Thomas fez um gesto abarcando o largo mar que os rodeava. — Sir Martin, creio bem que enfrentamos problemas mais prementes. Os Turcos podem lançar-se sobre nós a qualquer momento. E é nisso que devemos concentrar as nossas mentes. Não em acontecimentos que tiveram lugar há muitos anos.
O outro cavaleiro abriu a boca para responder, interrompeu-se e acabou por soltar um suspiro exasperado e levantar-se.
— Tenho de me ir aliviar. Já volto. — Virou-se e afastou-se pelo terreno pedregoso, na direção da latrina rasa que tinha sido escavada a uns cem passos do fosso de proteção do revelim. Thomas deu uma dentada no queijo que ainda tinha e mastigou-o a custo, dada a textura seca e fibrosa. Sentado à sua frente, Richard sacudiu as migalhas que lhe tinham caído na túnica e olhou rapidamente em redor antes de falar quase em surdina.
— Creio que é tempo de me contardes toda a história.
— Porquê?
— Porque preciso de a conhecer. Se quero levar a bom porto a minha missão nesta ilha, tenho de estar consciente de quaisquer ameaças potenciais ou vantagens que possam ajudar a alcançar o meu propósito.
— E calculo que farás bom uso de qualquer informação que te possa ajudar a ter uma vantagem sobre mim?
— Claro — retorquiu Richard sem emoção. — É essa a natureza do meu trabalho.
— Nesse caso, alguma vez questionaste a ética desse trabalho? Talvez o devesses fazer.
— Sirvo Sir Francis, que serve Cecil, e ambos servem a rainha e a nação. Portanto, a minha ética é inatacável. E nada se interporá entre mim e o meu propósito nesta ilha.
— Ora, Richard, vá lá. Não és propriamente o homem de ferro que finges ser. Estás bem treinado, mas não conseguiram tirar-te a capacidade de ter sentimentos pelos outros. Apercebi-me bem disso quando do combate na galera. E agora de novo, quando te preocupaste com aquele pobre escravo. — Thomas inclinou-se e deu uma palmada suave no peito do escudeiro. — Tens um coração. Agora não tentes matá-lo à fome, a não ser que queiras deixar de ser um homem para te tornares num mero mecanismo.
Richard olhou na direção da latrina, onde Sir Martin já se tinha agachado.
— Dizei-me exatamente o que se passou, antes que ele regresse — exigiu.
— E se eu recusar?
— Nesse caso, comprometeis a minha missão.
— E se isso pouco me importar?
Richard sorriu com ar astuto.
— Mas importais-vos. Também eu consigo olhar para o coração de outro homem. Se não conseguirmos cumprir a nossa tarefa, muitos outros sofrerão. E isso é algo que vós, Sir Thomas, não podereis suportar na consciência. Dizei-me portanto aquilo que preciso de saber.
Instalou-se um silêncio tenso, até que Thomas baixou a cabeça e começou a pensar. Havia pouco que valesse o segredo e, além disso, se o jovem se pusesse a investigar com algum empenho, depressa saberia todos os detalhes. Ordenou os pensamentos antes de começar.
— Muito bem. Há cerca de vinte anos, servia eu numa das galeras da Ordem, ao largo de Creta. La Valette era o capitão. Era evidente que ele se encaminhava para ocupar uma das posições dirigentes da Ordem, e era uma honra tremenda ser escolhido para servir no seu navio. Tinha sido uma viagem sem incidentes, não tínhamos tido sorte e não tínhamos encontrado nenhum navio turco. Aportámos então na costa sul da ilha, e descobrimos que um galeão turco tinha passado por ali na véspera, pelo que La Valette se lançou na perseguição. Quando os encontrámos numa baía isolada ao longo da costa, tinham-se-lhe reunido duas galeras corsárias. Como já descobriste, o Grão-Mestre não é homem para se deixar desencorajar por diferenças de números, portanto lançámos um ataque de surpresa, pela alvorada. Afundámos um dos navios, e capturámos o galeão e a outra galera. Fui colocado no comando desta e enviado de regresso a Malta. Foi quando estávamos a vasculhar o porão que encontrámos um cativo, uma mulher. — Thomas fez uma pausa ao sentir o familiar sopro da saudade no peito. — Maria era a filha de um nobre napolitano, prometida ao filho de uma família aristocrática da Sardenha. O navio em que seguia tinha sido tomado pelos corsários, e ela estava refém, à espera do pagamento de um resgate.
Thomas olhou para Richard, sentindo-se um tolo enquanto prosseguia.
— Digo-te que nunca vira uma mulher assim na minha vida. Era pequena, e de tez morena, com os mais belos olhos castanhos que é possível imaginar. Não seria honesto dizer que o meu primeiro pensamento foi de amor. Era apenas carne e osso, apesar dos votos que proferira... embora não houvesse muitos cavaleiros que os seguissem à risca. Aliás, não fui o único a ficar cativo da sua beleza. Acendeu-se porém uma centelha de afeição mais profunda entre nós. Se possuísses uma natureza cínica, estarias nesta altura a sorrir perante a ingenuidade dos meus sentimentos, a desdenhar da loucura da juventude, mas digo-te, com todo o meu coração e com toda a experiência de vida que entretanto adquiri, que ela foi o único verdadeiro amor que alguma vez tive. Nunca tinha tido antes disso um sentimento tão profundo, e nunca me abandonou a dor quase insuportável de o perder, desde então. Digo-te, Richard, o amor baloiça eternamente entre um paraíso de paixão e o tormento infernal. É esse o seu preço... e um preço que paguei de bom grado ao tempo, e que lamento desde esse dia. — Thomas estremeceu e abanou a cabeça. — Não. Não é isso que lamento. O que lamento é que não tenha sido capaz de ser mais forte.
Ficou em silêncio por momentos, a lutar para reprimir a fúria e o desprezo por si mesmo que ameaçavam consumi-lo.
— Vá — insistiu Richard, pouco cordial. — Dizei-me tudo.
Thomas rangeu os dentes, e inspirou profundamente, de tal forma que silvou.
— Amámo-nos sem receio e sem travão durante os meses de verão, enquanto uma mensagem seguia para a sua família, anunciando que ela tinha sido encontrada e que estava bem. Ambos estávamos bem cientes dos perigos das nossas ações, mas não conseguíamos refrear os nossos desejos. Portanto, encontrávamo-nos em segredo, ou tal supunha eu até ao momento em que La Valette me ordenou que pusesse fim aos contactos com ela. Claro que não o fiz. E sucedeu o inevitável. Fomos encontrados juntos, uma noite. Digo encontrados, mas não foi o caso. Maria tinha sido espiada e seguida por Sir Oliver Stokely, que se tinha imaginado meu rival na corrida à sua afeição, porque ela lhe tinha mostrado alguma amizade. Tal era apenas a sua natureza. Com todos era bondosa. Ele considerou tal gesto um símbolo de algo mais, algo que poderia ser seu, se eu não existisse. Portanto, reuniu alguns soldados para servirem de testemunhas, e apanhou-nos em flagrante. Fomos detidos e levados à presença do Grão-Mestre da altura.
— E então?
Thomas esfregou a testa.
— Minha culpa. Devia ter obedecido às ordens, e devia ter tido consciência dos perigos que Maria corria em consequência da nossa afeição. Nem La Valette conseguiu impedir a minha expulsão, e eu nada fiz para a evitar. Não merecia qualquer clemência, e tão-pouco era merecedor do seu amor. Por minha causa, a vida dela estava arruinada. A família repudiou-a. Nunca mais voltei a vê-la. Fui posto a bordo de um galeão, levado para Espanha com ordens para nunca mais voltar a colocar os pés em Malta, nem para tentar encontrar Maria. La Valette enviou-me uma última mensagem privada, prometendo que tentaria chamar-me de volta à Ordem quando chegasse o momento. E assim, esperei. Ano após ano. Sem saber se Maria vivia, se algum dia me seria permitido voltar a juntar-me aos meus camaradas. As minhas esperanças morriam todos os dias mais um bocadinho. Até que veio o chamamento. — Thomas respirou fundo para libertar a tensão que se lhe tinha acumulado no peito. — A minha oportunidade para a redenção. É demasiado tarde para corrigir o mal que fiz a Maria, mas talvez possa ainda mostrar-me digno da vida que me foi dada.
Thomas levantou o olhar e reparou que Sir Martin regressava da latrina. Já não havia tempo para dizer mais naquele momento. Voltou o olhar para o escudeiro, mas antes que pudesse falar, o ar foi cortado pela estridente nota de uma trombeta. Na muralha do forte, o coronel Mas debruçou-se apoiado nas mãos e gritou:
— O intervalo acabou! Voltem ao trabalho!
Os capatazes pegaram nos chicotes, feitos dos pénis ressequidos de touros, e começaram a obrigar os escravos a levantar-se e a descer para o fosso. Os outros membros do grupo de trabalho remexeram-se, soltaram grunhidos de cansaço, e alguns apressaram-se a terminar as rações que tinham saboreado com vagar demasiado. Thomas colocou a mão com firmeza no braço de Richard.
— Aconteça o que acontecer, não te desonres como eu fiz. Seja o que for que os teus patronos te ordenaram, faz apenas aquilo que for correto.
— E como saberei o que é de facto correto?
— Confia no teu coração. Não na tua ambição.
Richard abanou a cabeça com um ar de pena, libertou-se da mão de Thomas e fez menção de pegar na picareta.
— Não preciso nem de um nem de outra. Limito-me a cumprir o meu dever. E isso é tudo o que um homem deve fazer. Talvez se tivésseis pensado da mesma forma, Sir Thomas, vos tivésseis poupado a uma vida de tormento.
— Pela minha alma! — soltou Sir Martin, enquanto se aproximava. — Um tipo precisa de tempo suficiente para comer e cumprir as suas abluções, hã? Isto assim não pode ser.
Olhou para ambos, reparando na expressão pesarosa do escudeiro e na ansiedade que transparecia do semblante de Thomas.
— O quê? O que é que sucedeu?
— Nada — respondeu Thomas, obrigando-se a dominar as suas emoções. — Nada de nada. Vamos lá trabalhar. Vivemos sob a ameaça do Turco, e ainda há muito para fazer.
Pegou na picareta e seguiu Richard. Sir Martin ficou a vê-los afastar-se e comentou para si mesmo:
— Mas que bicho lhes mordeu? Por Deus, parece que não estamos em perigo, e que estes resolveram ajustar contas privadas para animar a situação.
20
Nessa noite, quando regressaram ao albergue, tinham uma surpresa à sua espera. Sentado à cabeça da longa mesa no salão, estava Sir Oliver Stokely, a ser servido por Jenkins. Quando os três homens entraram, o cavaleiro levantou o olhar de mau modo do prato de nacos de carne; os recém-chegados tinham os rostos sujos e as roupas cobertas de poeira, devido ao trabalho no fosso que tinham estado a escavar à frente da muralha. Instalou-se um silêncio tenso, até que Sir Martin lhe pôs fim com uma sonora gargalhada.
— Sir Oliver, há meses que não vos via por aqui! Julgava que me havias abandonado para sempre.
— Temo que sejamos obrigados a aturar a companhia uns dos outros nos tempos que se aproximam. Quando os turcos chegarem, ver-me-ei obrigado a abandonar a minha propriedade perto de Mdina. — Sir Oliver fez um gesto com o garfo, abarcando todo o salão. — Birgu será a minha morada enquanto durar o cerco, embora não ofereça o conforto a que estou habituado.
— A mim serve-me perfeitamente — retorquiu Sir Martin, enquanto desatava os cordões que lhe prendiam a túnica e a tirava por cima da cabeça, lançando-a na direção de Jenkins, que a agarrou com presteza. — Vê se nos podes arranjar alguma comida.
— Sim, senhor. — Jenkins inclinou a cabeça, antes de pegar nas túnicas dos outros dois homens e se retirar pelo corredor que ia dar à cozinha.
— Será escusado dizer — prosseguiu Sir Oliver — que estou longe de estar entusiasmado com a perspetiva de partilhar acomodações com um cavaleiro que cobriu a Ordem de vergonha eterna. Mas nada posso fazer quanto a isso.
Thomas encolheu os ombros.
— O passado não pode ser alterado, por muito que ambos o desejemos. — Sentou-se no banco que corria pela face lateral da mesa. — O que nos afastou em tempos deve ser posto de lado, dada a ameaça que paira sobre todos nós, Sir Oliver.
— Não é assim tão fácil afastar a vergonha que vos cobre como uma mortalha — ripostou o outro cavaleiro friamente. — Como ambos sabemos perfeitamente, todos os que de vós se aproximam acabam por sofrer. Talvez fosse melhor que deixásseis a ilha de vez, Sir Thomas. Ide agora, enquanto tal ainda é possível, e nunca mais regresseis para nos atormentar novamente.
— Partir? — Thomas enrugou uma sobrancelha, fingindo surpresa perante a sugestão. — Regressei em resposta a um apelo do próprio Grão-Mestre. Fui chamado de volta ao seio da Ordem. É assim próprio e correto que aqui esteja. Falais da minha desonra, mas ela nada seria comparada com a ideia de abandonar os meus camaradas nesta hora de dificuldade.
Os lábios de Sir Oliver torceram-se com desdém.
— Considero que a vossa presença pouca influência terá na forma como nos portaremos. Um cavaleiro e o seu escudeiro não farão diferença no desfecho do combate que se prepara, e certamente a sua falta não mais será sentida, passado o primeiro momento em que for notada a sua partida da ilha e regresso a Inglaterra.
— Não partiremos — interveio Richard. — Nem eu, nem o nobre cavaleiro que sirvo.
— Silêncio, lacaio! — Os olhos de Sir Oliver arregalaram-se de fúria. — O vosso escudeiro intromete-se em conversas que não lhe dizem respeito. Tem tanta noção do seu lugar e das suas obrigações como vós das vossas, Sir Thomas.
— É intempestivo e pouco ponderado — ripostou Thomas. — Mas, apesar de lhe faltar algum respeito perante os seus melhores, aprecio sobremaneira a sua coragem e as suas capacidades de combate. Creio que o presente conflito o vai transformar num verdadeiro homem, e nunca pensaria em privá-lo da honra de aqui estar, tanto como não me privaria a mim mesmo, ou a vós, ou a qualquer um dos poucos que se dispõem a enfrentar a pé firme os muitos que aí vêm. Todavia, reconheço que ele falou quando devia ter mantido o silêncio, e peço portanto desculpa pela sua exaltação. Como ele fará também.
— Desculpar-me? — Richard estava atónito. — Não o farei.
— Fá-lo-ás! — Thomas virou-se para ele. — Ou serás fustigado por insubordinação, como sucederia a qualquer outro escudeiro. Pede desculpa. Imediatamente. Não voltarei a pedir-to.
Sir Martin assistia à troca de argumentos com um ligeiro sorriso divertido.
— Um bom escudeiro precisa de ser espancado com regularidade, foi o que sempre achei.
Richard encolheu-se ligeiramente perante a fúria do seu senhor, mas continuou a olhar com ar de desafio; por fim, baixou os olhos e virou-se lentamente e a custo para Sir Oliver, mantendo ainda o silêncio. Quando este já se tornava penoso, o cavaleiro tamborilou com os dedos no tampo da mesa.
— Jovem, tens alguma coisa a dizer-me?
Os ombros do escudeiro descaíram ligeiramente, enquanto ele respondia numa voz tensa.
— Senhor, se vos aprouver, gostaria de vos pedir perdão pelos meus modos intempestivos. Ultrajei-vos ao presumir que podia falar livremente em frente a um superior. Por tal, peço-vos humildemente desculpa.
— Desculpas aceites. Agora toma o teu lugar ao fundo da mesa e não te atrevas de novo a interromper os teus superiores, ou, como avisou Sir Thomas, serás vergastado.
— Sim, Sir Oliver — respondeu Richard no tom mais humilde que conseguiu inventar. Baixou a cabeça e dirigiu-se para o banco ao fundo da longa mesa, onde se sentou. Sir Oliver voltou a dar atenção a Thomas. Estava prestes a começar a falar quando Jenkins regressou com três pratos numa mão e uma travessa de carnes frias e pão na outra. Colocou os pratos à frente dos dois cavaleiros e do escudeiro, enchendo-os com pilhas de fatias de carne e pedaços de pão. De um armário na parede trouxe-lhes também cálices, e um jarro de vinho diluído, antes de se retirar para a cozinha, onde ficou à espera de novas instruções. Enquanto os seus passos se perdiam à distância, Sir Oliver gesticulou na direção de Sir Martin.
— Pergunto-me o que faríeis vós na presente situação.
— Eu? — Sir Martin não escondeu a surpresa. — Qual situação?
— Suponho que conheceis aquilo que é preciso saber sobre o passado culposo de Sir Thomas?
Sir Martin deitou ao indigitado um relance, mas a expressão deste era fixa e impenetrável.
— Bom, sim, ouvi uma ou duas coisas aqui e ali, sim. Mas já conheci muitos cavaleiros que procuraram conforto nos braços de uma mulher de baixa extração.
— A filha de um nobre napolitano não é por certo uma mulher de baixa extração — ripostou Sir Oliver em tom frio. — Como qualquer cavalheiro decente deveria saber. A Ordem é capaz de olhar para o lado quando um cavaleiro ignora os seus votos e procura algum prazer com uma galdéria, mas conspurcar uma jovem de sangue nobre é outro tipo de ofensa, intolerável. Um homem capaz de o fazer não possui qualquer honra, e não pode gozar a companhia dos outros membros da nossa sagrada Ordem. Se eu fosse esse tipo de homem, não poderia suportar a vergonha das minhas ações. Deixaria Malta de imediato e exilar-me-ia pelo resto da minha desgraçada vida. A questão põe-se portanto: Sir Martin, o que faríeis vós no lugar de Sir Thomas?
O cavaleiro abanou a cabeça, desconcertado, e encolheu os ombros.
— Não me cabe a mim dizer.
— Cabe, sim — insistiu Sir Oliver. — Estou a perguntar-vos de forma bem direta.
— Eu... eu...
— Não há qualquer necessidade de incomodar Sir Martin — interrompeu Thomas. — Sendo um cavaleiro cuja moralidade não está de todo em questão, Sir Martin não tem de vos responder, nem a mim. O assunto termina por aqui — concluiu Thomas com firmeza.
— Não no que me toca — ripostou Sir Oliver por entre os dentes. — Não descansarei enquanto não fordes exposto como o canalha que continuais a ser, e punido de forma adequada ou obrigado a deixar esta ilha.
— Condenais-vos então à exaustão, porque não partirei. Não antes de ter passado a hora do maior perigo que a Ordem alguma vez enfrentou, ou que o Grão-Mestre me diga para partir.
— O que poderá bem vir a fazer, se eu conseguir persuadi-lo a ver a razão.
— La Valette vê perfeitamente. A questão é, será que ele vos vê por aquilo que sois realmente... um traidor aos vossos amigos?
Sir Oliver abriu a boca para responder, mas voltou a cerrá-la enquanto lutava para conter a fúria. Por fim deixou-se descair na cadeira e afastou o prato para o lado, sem apetite.
— Muito bem. Haveis decidido ficar. Com todo o meu coração, desejava que tal não fosse o caso. Vigiar-vos-ei de perto, Sir Thomas, e não esquecerei de orar para que de alguma forma possais desapontar o Grão-Mestre.
— Faríeis bem melhor em pedir por proteção do inimigo que contra nós avança.
— Se Deus assim quiser, seremos todos salvos.
— Nesse caso, para quê orar? — lançou Thomas. — E se eu vier a desapontar La Valette, será porque Deus assim o quis, não pela vossa influência.
Por momentos os dois cavaleiros encararam-se com animosidade, enquanto Sir Martin mastigava lentamente um pedaço de carne, com o olhar preso na superfície da mesa à frente do prato. Richard mantinha-se debruçado sobre a mesa, o queixo apoiado nos dedos entrecruzados. Escutava tudo com atenção, mas não se atrevia a levantar a vista e arriscar cruzar o olhar com algum dos outros.
— Um dia — comentou Sir Oliver — acabareis por colher aquilo que haveis semeado... — Respirou fundo. — Uma vez que não consegui persuadir-vos a deixar a ilha, chego ao motivo da minha visita ao albergue. Ao que parece, Don Garcia ofereceu ao Grão-Mestre alguns conselhos quanto à forma de conduzir a defesa de Malta.
— É verdade. — Thomas acalmou-se, e acenou na direção de Richard. — Nós estávamos lá.
— Nesse caso, recordareis que o Grão-Mestre foi aconselhado a instituir um conselho de guerra, limitado a um diminuto punhado de homens. Ao que parece, fostes escolhido para fazer parte desse augusto corpo de homens — concluiu Sir Oliver com mal-disfarçado desdém.
— Eu? — Thomas arregalou os olhos. Era certo que tinha servido cinco anos na Ordem, e muitos mais como mercenário, combatendo nos campos de batalha de toda a Europa. Tinha assistido a muitos cercos, e em dois deles tinha estado do lado dos defensores. Mas havia com certeza muitos cavaleiros da Ordem, com anos e anos de serviço, que se sentiriam ofendidos por aquela preferência do Grão-Mestre. La Valette arriscava muito com aquela nomeação. — É uma surpresa.
— De facto. Como é natural, procurei demovê-lo. Até agora, ainda não o comunicou a mais ninguém, para o caso de declinardes a oferta. — Sir Oliver debruçou-se e olhou para Thomas com fervor. — Não é forçoso que aceiteis. Aliás, seria bem melhor que não o fizésseis. Melhor para todos nós. A vossa nomeação provocaria divisão no seio da Ordem. É a vossa oportunidade de dar um passo no caminho da redenção, Thomas. Sabeis perfeitamente que nada de bom pode vir daqui.
— Ainda não percebo. Porque é que o La Valette me quer?
— Para lá da vossa considerável experiência militar, há duas razões, uma das quais ele explicou. Na opinião do Grão-Mestre, os níveis superiores da Ordem estão repletos de homens ambiciosos que poderão ser levados a usar a presente emergência para porem os seus interesses acima do bem comum. E esses homens são apoiados por fações no seio da Ordem. Não pode ser-lhes permitido que usem a ocasião para os seus jogos políticos. Quanto a vós, não tendes seguidores aqui. Vindo de fora, as vossas opiniões nada mais têm a guiá-las do que a necessidade imperiosa de derrotar os Turcos. Além disso, uma vez que combatereis ao lado dos cavaleiros de nível menos elevado, podereis informar o Grão-Mestre e os outros membros do conselho de guerra acerca do estado do moral das tropas comuns. Esta é a soma dos argumentos que ele forneceu para vos escolher.
— Fazem sentido — respondeu Thomas, antes de perguntar: — E qual é a outra razão?
— Muito simples. Sempre haveis sido um dos seus favoritos. Um protegido. Quando fostes compelido a deixar a Ordem, foi um grande desapontamento para La Valette. Creio bem que ele vos via da mesma forma que um pai vê um filho. E como qualquer pai, ele era e ainda é, sem dúvida, cego aos vossos mais profundos defeitos. Nos anos em que estivésteis ausente, era frequente ele falar de vós com afeição — disse Sir Oliver com azedume. — E agora, precisamente no momento em que ele mais precisa de conselhos sábios, dá largas aos sentimentos de um velho por quem vê como um filho pródigo. Uma tolice, ceder aos seus próprios sentimentos, mas é assim.
— Ainda assim, as palavras que vos disse são de grande razoabilidade. Creio que julgais a idade do homem de forma demasiado severa.
Sir Oliver mordeu os lábios.
— Talvez. Mas veremos. O conflito que se aproxima vai exigir o máximo de todos nós. Por acaso pensais que um homem de tamanha idade será capaz de aguentar as exigências que sobre ele pesarão? E quando a carga se tornar demasiada e ele ceder, talvez venhamos a ter necessidade de um novo líder.
— Vós, talvez?
— Possivelmente. E se vier a ser eu, podeis ter a certeza que o vosso estatuto privilegiado se extinguirá, e que sereis tratado sem mais atenções do que qualquer soldado comum. Haverá muitos membros da Ordem que tentarão punir-vos pela preferência que vos foi dada pelos caprichos do Grão-Mestre. — Sorriu friamente. — O que devo então dizer-lhe? Aceitais ou declinais a oferta que ele vos faz?
— Aceito. — Não havia qualquer dúvida no pensamento de Thomas quanto à resposta a dar. Estava determinado a servir o seu velho mentor da melhor forma que pudesse, e a justificar a fé que La Valette nele depositava. Além disso, aquele posto podia bem vir a ajudá-lo a localizar o troféu que Walsingham desejava e que o levara a enviá-lo com Richard para a ilha.
— Temia que fosse essa a vossa resposta — comentou Stokely. — Como sempre, estais pronto a colocar os vossos desejos pessoais acima das necessidades dos outros, e acima do que mandam o dever e a honra. Assim seja. Dei o melhor para vos dissuadir, e tenho a consciência limpa. Informarei o Grão-Mestre da vossa decisão. E assim dou por concluídos os assuntos que aqui me trouxeram. — Stokely levantou-se e cumprimentou Sir Martin com um breve aceno da cabeça. — Permiti-me ainda que vos avise para não vos associardes de forma muito próxima com este homem. Podereis vir a lamentá-lo, como outros tiveram motivo para tal.
Pegou na capa pendurada nas costas da cadeira e dirigiu-se para a porta. Saiu para a rua e, no momento seguinte, escutou-se o ferrolho a cair na sua posição quando a porta foi fechada.
Sir Martin deixou escapar um longo suspiro de alívio.
— Estava a ver que ele nunca mais se ia. O homem estava a estragar-me o apetite. Nunca apreciei particularmente a sua companhia, nem naquelas poucas ocasiões em que se dignou a passar a noite no albergue. — Olhou para Thomas. — Sir Thomas, ele não parece ter por vós grande afeição.
— Assim parece, de facto. — Thomas pegou numa fina fatia de salsicha seca do prato e mastigou-a devagar. A verdade era que a oferta de La Valette o deixara ansioso. Era uma tremenda responsabilidade, e estava determinado a não trair a confiança do Grão-Mestre. Em tudo, menos numa coisa. Olhou ao longo da mesa e notou que Richard o observava com um brilho de triunfo no olhar. Estava já, com toda a certeza, a planear forma de aproveitar aquela situação.
Sir Martin apressou-se a terminar a sua refeição com alvoroço, e limpou a boca nas costas da mão antes de se endireitar e suspirar, saciado. Acabou com o vinho no cálice e fez estalar os lábios.
— Ah, isto faz bem. Uma refeição decente, depois de um dia de trabalho árduo. E agora, dormir! — Levantou-se, um tanto rígido, enquanto esfregava o fundo das costas. — Senhores, desejo-vos uma boa noite.
Thomas acenou em resposta, enquanto Richard se punha de pé e dobrava o pescoço em sinal de respeito. Quando se ouviu a porta da cela de Sir Martin a fechar-se, Richard dirigiu-se a Thomas com uma expressão quase afoita.
— Começava a temer que não viéssemos a encontrar forma de entrar em St. Ângelo sem levantar suspeitas. Agora que tendes acesso ao covil do Grão-Mestre, podereis levar-me até às caves. Tenho a descrição da arca de de Launcey, e o que procuro estará por certo lá dentro. Se nos despacharmos, poderemos conseguir sair desta armadilha mortal antes que os Turcos cheguem.
— Sair? — Thomas arregalou os olhos. — Não tenho qualquer intenção de sair. Agora, nem pensar nisso. Sou preciso aqui. Todos os homens são.
Richard encarou-o, atónito.
— Estais louco? Quando o inimigo desembarcar nesta ilha, ninguém será poupado. Farão todos os fortes em migalhas e cortarão as gargantas de todos os sobreviventes.
— É uma possibilidade. — Um sorriso passou por instantes pelo semblante de Thomas. — Ou então enfrentamo-los e aguentamos até que os turcos desistam de submeter a ilha. Isso, ou Don Garcia chegar com o exército que está a reunir na Sicília.
— Podeis já agora pedir o Céu. — Richard soltou uma gargalhada seca. — A força de Don Garcia nunca passará de um exército de papel. O seu soberano nunca lhe permitirá assumir tantos riscos com os poucos homens de que dispõe, e quase aposto a minha alma que nem metade dos homens e navios que as outras potências lhe prometeram vão acabar por surgir. Quanto a os turcos fugirem, nem pensar nisso. Se Solimão ordenou que Malta fosse tomada, pensais por um único instante que aqueles a quem essa ordem foi dada se atreveriam a provocar a sua ira, falhando nessa missão? — Richard fez uma pausa para ver se as suas palavras tinham alcançado o intento, mas Thomas manteve-se silencioso, e o jovem silvou de exasperação antes de prosseguir.
— Sir Thomas, acompanho-vos há tempo suficiente para saber que sois um homem de valor. Há seguramente um lugar para vós ao serviço de Walsingham quando regressarmos a Inglaterra depois de concluirmos com êxito a nossa missão. Não atireis fora a vossa vida num qualquer gesto fútil.
Thomas agitou-se.
— Em primeiro lugar, a missão nunca foi realmente nossa, apenas tua. Eu não passei do pretexto para te introduzires na Ordem. Em segundo, não se trata de um gesto fútil, Richard. Seja o que for esse precioso documento que buscas, há momentos na vida de um homem em que ele tem de defender alguma coisa. Quando fui forçado a deixar a Ordem, perdi o meu lugar no mundo, bem como a mulher que amava. E agora ela já não existe, e tudo o que me resta é a oportunidade de fazer o que é correto.
— Pensei que estivésseis farto da interminável guerra que a Ordem trava.
— E estava, de facto. Mas a situação alterou-se. A própria existência destes cavaleiros e dos ilhéus que os acolheram está ameaçada. Se a Ordem for aniquilada e Malta cair, sabes bem o perigo que se abaterá sobre todos os reinos cristãos da Europa. Até mesmo a Inglaterra pode acabar por cair nas mãos do sultão. A batalha que se avizinha é o ponto fulcral em que balançam os destinos de duas civilizações. Até um homem, um único, poderá fazer diferença no resultado final.
— Um homem? — Richard abanou a cabeça. — Sir Thomas, haveis bebido demasiado no poço do fanatismo da Ordem... Ou isso, ou... talvez eu veja uma verdade bastante mais simples. Foi a oferta do Grão-Mestre que vos perturbou o julgamento. Sentis-vos lisonjeado pelo pedido para fazerdes parte do grupo de confiança, e não conseguis encarar a possibilidade de o desiludir. Não é isso?
— Há nisso alguma verdade, sim. Mas pouco importa — Thomas colocou a mão bem aberta sobre o coração. — Tudo o que sei é que tenho de me juntar ao resto da Ordem e lutar. Não há para isso qualquer boa razão. Só uma certeza que não admite dúvida. Ficarei e combaterei e, se tal for o meu destino, aqui morrerei.
— Desapontais-me. Tomava-vos por um homem bem mais sábio, mais racional.
— Bem, fico satisfeito por te desapontar. Mas farei tudo o que puder para te ajudar a completar a tua missão e a sair daqui antes que seja demasiado tarde, se não escolheres lutar ao meu lado.
Richard ponderou por momentos antes de responder sem mostrar emoção.
— Seria uma honra combater ao vosso lado. Acreditai-me. Mas não partilharia uma morte certa sem um propósito que valesse a pena. Portanto, teria de vos deixar morrer gloriosamente sozinho, ou nas fileiras do vosso precioso bando de irmãos. — Afastou o banco para trás e levantou-se. — Nada mais há a dizer. Amanhã poderemos discutir os detalhes e planear o nosso próximo passo. Boa-noite, senhor.
Trocaram breves acenos e Richard virou-se e dirigiu-se à sua cela, deixando Thomas a sós no salão decorado com lembranças dos cavaleiros ingleses que tinham devotado as suas vidas à Ordem. Contemplou os brasões inscritos nos pequenos escudos de madeira, e os estandartes encardidos pendurados nas traves do teto. No fundo do coração sabia, com toda a certeza que a um homem é possível ter, que a decisão de ficar e combater ao lado dos seus camaradas era a decisão certa, e a única que podia ter tomado.
21
18 de maio
Depois de se inteirar do efetivo disponível em cada posição, e de ouvir o relatório sobre a produção de pólvora, o Grão-Mestre levantou-se da cadeira e caminhou até à janela. Os seus cães favoritos, Apolo e Aquiles, saltaram de debaixo da mesa e foram juntar-se ao dono. Este correspondeu com um afago nas orelhas sedosas, enquanto o olhar se espraiava sobre a vista que se tinha dali, do baluarte de St. Ângelo, sobre as espessas muralhas, sobre a reluzente água azul do porto, até à península onde a crista de Sciberras dominava o pequeno fortim de St. Elmo. A manhã estava luminosa, o céu de um azul profundo, e os raios rasantes do Sol banhavam as pedras do forte num brilho amarelado. Uma ligeira brisa fazia dançar o estandarte da Ordem no mastro que se erguia em St. Elmo, pelo que a cruz branca sobre o fundo avermelhado se estendia preguiçosamente sobre o cenário. Havia um ruído de fundo, pouco distinto, que vinha dos que trabalhavam com picaretas numa tentativa de aprofundar o fosso que se abria à frente do fortim e que se propagava até ao outro lado do porto. Apesar dos ininterruptos preparativos militares, a cena parecia tranquila, e o bom tempo anunciava a chegada do verão, bem como do terrível calor que a estação não deixaria de trazer.
Da sua cadeira, Thomas escrutinou a aparência de La Valette, e notou que os pesados trabalhos dos últimos meses, longe de o terem deixado abatido, pareciam ter-lhe dado uma força e uma energia renovadas. Ali estava, ereto, movendo-se de forma deliberada. Só os caracóis esbranquiçados denunciavam a sua verdadeira idade, já que a face, embora curtida e vincada por rugas, parecia pertencer a um homem uns dez a quinze anos mais jovem, e os olhos cinzentos rebrilhavam sob as pesadas pálpebras. Ao olhar para o lado, ao longo da linha de cadeiras onde se sentavam os outros membros do conselho de guerra, Thomas reparou que Romegas e Sir Oliver Stokely pareciam tensos e fatigados. Só o coronel Mas parecia estar à vontade. A aparência podia ser enganadora, porém; o coronel era um soldado profissional até ao tutano, e era muito raro que deixasse transparecer qualquer emoção, à exceção da fúria que libertava sempre que se deparava com algum sinal de ineficiência ou preguiça nos homens que tinha sob o seu comando.
Com um suspiro, La Valette afastou o olhar da janela e enfrentou os homens que escolhera para servirem de conselheiros próximos, passando os olhos por cada um antes de quebrar o silêncio.
— Não consigo aceitar que falte pelo menos um mês até que as defesas de Birgu e S. Miguel fiquem prontas.
O coronel Mas inclinou ligeiramente a cabeça para o lado.
— Estariam já terminadas, senhor, se a ordem de as iniciar tivesse sido dada assim que cheguei à ilha. Como vos aconselhei a fazer.
— Obrigado, coronel, estou bem lembrado. Porém, não podemos voltar atrás e alterar essa decisão. Temos de exigir mais aos trabalhadores. Aumente os turnos em uma hora. Isso aplica-se a toda a gente, incluindo eu próprio. A partir desta tarde.
— Sim, senhor. O meu secretário redigirá a proclamação depois de terminarmos a reunião.
— E quanto à corrente do porto?
Romegas juntou as mãos.
— Está colocada entre as pontas de Senglea e Birgu. Os anéis foram presos aos postes mais sólidos que conseguimos encontrar e cravar no fundo do mar, que estão por sua vez presos por correntes aos rochedos das duas margens. Há uma estreita secção no centro onde a corrente pode ser afrouxada de forma a permitir a passagem de uma galera, se tal for necessário. Senão, só os mais pequenos botes poderão atravessá-la. As galeras inimigas não conseguirão penetrar no Ribeiro das Docas, senhor.
— Excelente. Essa ao menos é uma linha de defesa com que podemos contar. — La Valette virou-se de novo para o coronel Mas. — Assumindo então que o inimigo decida de facto atacar St. Elmo em primeiro lugar, devemos ter tempo suficiente para preparar as defesas de Birgu e S. Miguel. Uma vez que as fortificações deste lado do porto ainda estão incompletas, é essencial que façamos o inimigo perder o máximo de tempo em St. Elmo. Quanto tempo é que o forte conseguirá aguentar?
O coronel Mas pensou um momento antes de responder.
— A partir do momento em que sofra a primeira investida? Digamos dez dias para escavar trincheiras de aproximação, outros dois para instalar baterias de artilharia. Depois disso será uma questão de quanto peso poderão os canhões inimigos lançar contra as muralhas de forma a criar uma brecha suficientemente larga para poderem arriscar um assalto. Dado o lamentável desenho do forte e a qualidade do revelim, diria que os turcos subjugarão St. Elmo em menos de três semanas.
O Grão-Mestre suspirou, frustrado.
— Isso não é bastante. Se agora precisamos de um mês para completar as defesas deste lado, quando o inimigo começar a flagelar os grupos de trabalho, o tempo vai render ainda menos. St. Elmo tem de aguentar mais de três semanas, custe o que custar.
O coronel inchou as bochechas.
— Podemos encher o forte de tropas, e deve ser possível enviar reforços e evacuar os feridos sob a capa da escuridão, e manter os homens abastecidos com pólvora e comida, se começarem a escassear. Mas isso é partindo do princípio de que eles aguentam o tempo suficiente para esgotar os trinta dias de provisões que já lá estão armazenados. — O coronel fez uma pausa. — Ao mesmo tempo, temos de nos lembrar que cada homem que for enviado para o combate em St. Elmo será um homem a menos na defesa deste lado do porto quando o inimigo lançar as suas forças contra Birgu e Senglea. Chegará um momento em que enviar mais reforços não alterará nada no desfecho final do combate.
— E nessa altura o que acontece? — quis saber Sir Oliver.
— Teremos de decidir se evacuamos os últimos defensores, se lhes permitimos que se rendam, ou se lhes ordenamos que lutem até ao último homem.
— Estou a ver.
Ninguém falou durante alguns momentos, enquanto contemplavam a desesperada natureza do combate que se avizinhava. Foi o coronel a romper o silêncio.
— Dada a importância de que se reveste manter a posse de St. Elmo até isso se tornar completamente impossível, seria prudente colocar no comando do fortim um dos nossos mais experientes oficiais.
La Valette regressou à cadeira e sentou-se, fazendo estalar os dedos e apontando para o chão. Os cães obedeceram-lhe de pronto, e voltaram a deitar-se sob a mesa.
— Depreendo que se está a oferecer para esse posto.
— Sim, senhor.
— Apesar de saber perfeitamente qual vai ser o resultado? Coronel, será um combate sem esperança.
— É para isso que me pagam. — Lançou um dos seus raros sorrisos. — E de forma extremamente generosa, se comparada com alguns dos meus anteriores patrões.
— Sabia que para esta batalha tinha de recrutar os melhores — replicou La Valette, com um aceno gracioso. — Mas não gostaria de o perder tão perto do começo dos combates. Preferiria que ficasse aqui, onde a sua experiência vai ser mais necessária. Podemos resolver essa questão do comando do fortim mais tarde.
— Como desejardes, senhor.
— Senhor, ocorreu-me uma ideia — interveio Thomas, de imediato consciente dos olhares de desdém que Romegas e Stokely lhe lançavam. Depressa se tinha habituado ao desprezo que os dois votavam ao mais recente membro do conselho de guerra.
— Então?
— Estamos a partir do princípio de que o inimigo vai atacar em primeiro lugar o fortim de St. Elmo. Mas, e se não o fizer? Se os turcos resolverem assaltar Birgu ou Senglea primeiro, qual será a nossa resposta?
Romegas mal se virou na sua direção.
— Essa possibilidade foi levada em conta e afastada por Don Garcia quando inspecionou as defesas e deu os seus conselhos ao Grão-Mestre. A prioridade dos turcos será a de tomarem o controlo de um ponto de ancoragem seguro no porto de Marsamxett e completarem o cerco a Birgu e Senglea. Se bem me lembro, todos aceitámos a justeza do seu pensamento, e traçámos os nossos planos de acordo com ele.
— É bem verdade — admitiu Thomas. — Mas ainda assim, a questão põe-se: o que faremos se os turcos lançarem primeiro um assalto às fortificações deste lado do porto?
— Mas porque o fariam? — inquiriu Romegas, irritado. — Do ponto de vista tático, faz muito mais sentido tomar primeiro St. Elmo.
Stokely pigarreou e começou a falar.
— Grão-Mestre, este tipo de comentário é apenas mais uma prova da inaptidão de Sir Thomas em assuntos militares, o que me leva, mais uma vez, a pôr em causa a sua pertença a este conselho.
— Concordo por completo — acrescentou Romegas.
— Chega! — La Valette bateu com a mão no tampo da mesa. — Não quero ouvir-vos a contestar a minha decisão sobre a inclusão de Sir Thomas. Essa questão não voltará a ser discutida.
— E, de qualquer forma, Sir Thomas tem inteira razão — anunciou o coronel Mas. — Só porque faz sentido aos nossos olhos que o inimigo proceda de determinada maneira, não significa que ele o faça. Teremos de estar preparados para responder a qualquer contingência, senhor. Por muito improvável que possa parecer.
La Valette pesou a ideia por momentos e acabou por assentir.
— Muito bem, coronel. Preciso então que elabore um plano que nos permita enfrentar essa ameaça. Poderá apresentá-lo na reunião de amanhã.
— Sim, senhor.
O Grão-Mestre virou-se para Stokely.
— O que me leva ao último assunto pendente. O grau de prontidão do resto da ilha.
Stokely baixou ligeiramente a cabeça, à laia de concordância, e deitou uma olhadela rápida à lista de notas na folha que tinha no regaço, antes de responder.
— A guarnição de Mdina informa que está tudo preparado. A maior parte da nossa cavalaria já foi transferida para os estábulos da cidadela. Há rações para seis meses. As cisternas estão praticamente cheias, e a cidade tem abastecimentos para o mesmo período. O cavaleiro que haveis apontado como comandante, Pedro Mesquita, instalou-se na cidadela com o seu pessoal, e tem ordens para usar a cavalaria para flagelar os turcos sempre que essa oportunidade se oferecer. — Stokely olhou para Thomas. — Assumindo que o inimigo não decide atacar Mdina logo de entrada, claro.
— Eles vêm com o propósito de tomar o porto e destruir a Ordem — replicou Thomas, pacientemente. — Mdina fica no coração da ilha, é irrelevante para o objetivo principal do inimigo.
— Sir Thomas tem razão — interpôs La Valette. — Prossegui, por favor.
Stokely franziu brevemente o cenho antes de voltar às suas notas.
— Consegui fazer evacuar alguma da população de Mdina, mas a maior parte das gentes recusa-se a abandonar as suas casas e quintas. Alguns, até da minha própria casa, mantêm que não partirão, mesmo quando encorajados nos mais fortes termos. — Deitou um relance a Thomas. — Os que ficaram ainda não obedeceram à diretiva de fazer a colheita mais cedo e recolher animais e cereais para a cidade. O mesmo sucede com os agricultores mais próximos dos portos. E até agora, ainda não foram dados passos para inutilizar os poços.
Enquanto escutava, a expressão do Grão-Mestre tinha-se ido tornando mais grave, e ele acabou por erguer uma mão e deter Stokely.
— Isso não é aceitável. O povo tem confundido as minhas instruções com simples conselhos. As minhas diretivas não devem ser menosprezadas. Sir Oliver, a responsabilidade é vossa. Tratai de garantir que os idiotas dos camponeses fazem o que eu ordenei. Quero todos, até ao último homem, acoitados em segurança atrás das nossas muralhas antes do fim da semana. Nessa altura as quintas serão queimadas, os poços envenenados, e nada, nem um animal nem um grão de cereal, ficará para dar abrigo ou alimento aos turcos. Está claro? Se for necessário, empregai a força. Exijo que os habitantes se submetam à minha disciplina, tanto como os meus soldados. É a única forma de conseguirmos sobreviver ao que se aproxima. Dizei-lhes isso, e não aceiteis quaisquer protestos. Se não conseguirdes fazer cumprir as minhas ordens, tratarei de encontrar outro cavaleiro capaz de o fazer.
Stokely assentiu, o rosto corado de vergonha por ter sido alvo de uma crítica tão premente em frente de todos os outros.
— Será feito como ordenais, Grão-Mestre. Imediatamente.
A expressão austera de La Valette adoçou-se a pouco e pouco, e quando voltou a falar, foi com uma voz calma.
— Sir Oliver, sois um excelente administrador. Não conheci igual em todos os meus anos ao serviço da Ordem. Mas a guerra que nos preparamos para travar já não é dirigida às linhas comerciais do inimigo... não, eles vão trazê-la até à nossa porta. As vossas capacidades são mais necessárias do que nunca, mas as pessoas que comandais vão precisar de sentir uma mão firme. Será para vós que vão olhar à espera de ordens e inspiração, e tereis de assumir uma firmeza inabalável. Daqui em diante, todos são combatentes sob o meu comando, e a disciplina militar será aplicada a todos. Já não existem civis em Malta. Todos os homens, mulheres e crianças terão de desempenhar o seu papel na defesa da ilha. Ficou claro?
— Sim, Grão-Mestre. Peço-vos desculpa, senhor. Não voltarei a desapontar-vos.
La Valette sorriu calorosamente, e preparava-se para voltar a falar quando se escutou o ribombar de um canhão, uma vez, outra e ainda uma terceira. Antes que o som morresse, todos os homens presentes na sala estavam de pé e a correr para a janela.
— De onde vieram os disparos? — inquiriu La Valette, esforçando a vista enquanto percorria a vastidão do oceano à sua frente. Ao seu lado, Thomas também perscrutava a faixa do horizonte que era visível entre a Ponta do Enforcado e o extremo da península de Sciberras. Por enquanto nada se via, só a linha que separava o mar do céu.
— Veio do outro lado de St. Elmo — decidiu o coronel Mas. — Foram os canhões de alarme de um dos postos de observação.
Enquanto falava, avistou-se um relampejar no fortim de St. Elmo, e um jato de fumo e chamas rasgou o ar matinal. Um segundo canhão disparou, precisamente antes de o som do primeiro atingir as muralhas de St. Ângelo. Quando o terceiro canhão disparou, qualquer dúvida que ainda pudesse existir sobre o motivo da salva dos canhões de alarme tinha-se dissipado. La Valette respirou fundo e continuou a contemplar o outro lado do porto, enquanto dirigia a palavra aos membros do conselho de guerra.
— O inimigo chegou...
Os dois portos principais de malta com a localização das defesas da ordem
22
Quando os cinco homens alcançaram por fim o cimo da torre sinaleira de St. Ângelo, já as ruas de Birgu estavam apinhadas de gente que corria para as muralhas, para tentar encontrar um ponto de onde pudesse ver a aproximação da frota turca. Thomas foi o primeiro a chegar à plataforma, e avistou um dos cavaleiros mais jovens que, na companhia de um soldado com ar de veterano, perscrutava o horizonte a nascente. Sobre o mar ainda se espalhava uma fina neblina matinal, que escondia a linha de separação entre mar e céu.
— Conseguis vê-los? — quis saber Thomas.
Os dois homens olharam em redor e puseram-se em sentido ao avistarem o Grão-Mestre e os seus oficiais a emergirem das escadas atrás de Thomas, todos com as respirações pesadas.
— Não, senhor — replicou o cavaleiro.
— Então, de onde veio o aviso? De que direção?
— De algures ao longo da costa, para norte.
Thomas ergueu a mão para proteger a vista do brilho do Sol e tentou adivinhar qualquer coisa no meio da névoa, mas ainda nada se avistava, só a ondulação suave e os bandos de gaivotas que esvoaçavam junto à superfície das águas enquanto se alimentavam de um cardume de peixe miúdo. La Valette e os outros juntaram-se a ele na muralha e todos se puseram a examinar o horizonte. Ao fundo, o padrão dos disparos de aviso repetia-se, enquanto o sinal se espalhava pela costa e pelo interior da ilha. Para lá do som dos canhões, parecia ter descido um silêncio mortal sobre Malta. O burburinho que se erguia habitualmente das ruas estreitas tinha esmorecido, e havia no ar uma quietude estranha, enquanto os homens da Ordem e os habitantes da ilha esperavam pelo primeiro avistamento do inimigo. A Thomas parecia que o mundo sustinha a respiração, à espera do sinal que mudaria para sempre as vidas de todos os que aguardavam, quase encantados pelo momento.
Sir Oliver soltou um silvo.
— Se algum imbecil resolveu lançar um alarme falso, hei de esfolá-lo vivo...
— Além! — O soldado veterano esticou o braço e apontou para nordeste. As cabeças viraram-se em uníssono para olhar na direção indicada, os olhos a tentar penetrar a neblina para vislumbrar os navios inimigos.
— Onde? — resmungou La Valette. — Não vejo nada.
— Já vejo — indicou Thomas. — Além, mesmo para lá da Ponta do Enforcado. Uma vela.
Stokely resmungou.
— Se calhar é um navio isolado, ou uma flotilha de corsários a lançar um ataque.
— Depressa saberemos — concluiu Romegas, antes de avaliar o velho soldado com ar de evidente admiração. — Tens um olhar apurado. Especialmente tendo em conta a tua idade. Como te chamas?
— Balbi, senhor. — O homem inclinou a cabeça. — Francisco Balbi.
— Italiano, portanto? — Romegas olhou-o com maior atenção. — Deves ser um dos mercenários recrutados pelo coronel, não?
Mas deitou uma olhadela a Balbi.
— Ah, sim, tu és o tal que se proclamava um poeta, além de soldado da fortuna.
— Esse mesmo, senhor.
— Um poeta? — Romegas deu uma ligeira gargalhada. — Muito bem então, Balbi, aposto que nos dias que se aproximam vais arranjar material suficiente para escrever um poema épico. Trata de nos fazer famosos a todos, sim?
— Basta! — irritou-se o Grande Mestre. — Não vejo nenhum navio. Onde é que eles estão?
Thomas ficou surpreendido com o tom ansioso na voz de La Valette, e resolveu responder no tom mais calmo que conseguiu. Ergueu a mão e apontou diretamente para o único navio já visível. — Ali, senhor... E ali... Oh...
Como se um fino véu tivesse sido afastado de súbito, à primeira vela discernível juntavam-se outras, uma a uma, até serem dezenas, de ambos os lados, a ocupar toda a faixa do horizonte antes tapada pela neblina.
— Meu Deus — murmurou Sir Oliver.
Os outros mantiveram-se em silêncio, bem como os cavaleiros, soldados e civis que se aglomeravam nas muralhas de St. Ângelo e em todos os pontos elevados de Birgu. Do outro lado do porto, viam-se também as cabeças e ombros dos homens nas muralhas do forte. Muitos tinham trepado para o parapeito para terem melhor vista.
Foi La Valette quem quebrou o feitiço na torre. Baixou a mão com que tinha estado a proteger a vista e virou-se abruptamente para os seus conselheiros.
— Não há qualquer dúvida. É a frota invasora. É demasiado grande para poder ser outra coisa. Não podemos perder mais tempo. As primeiras tropas inimigas poderão estar a desembarcar ainda antes do fim do dia. Nessa altura, todos os civis terão de estar em segurança por trás destas muralhas. Sir Oliver, sereis o responsável por que isso aconteça em Birgu e Senglea. — Virou-se para Romegas. — Ireis a Mdina e informareis Mesquita da situação, para que ele evacue todo o centro da ilha. Coronel Mas, pegai num grupo de cavaleiros e tratai de garantir que a água de todos os poços fica impossível de utilizar. E lançai fogo a quaisquer quintas ou edifícios isolados, a tudo o que possa fornecer um abrigo ao inimigo. Regressai antes do anoitecer.
— E quanto às casas senhoriais? — indagou Sir Oliver. — Não desejais com certeza que sejam também destruídas?
— Essas sobretudo. Gostaríeis realmente de regressar à vossa casa depois de ela ter sido conspurcada por algum oficial turco e pelos seus companheiros? — La Valette não esperou por resposta, e virou-se para Thomas. — Levai um bote até St. Elmo, e verificai se a guarnição está pronta para o combate. Além disso, haverá por certo muitos habitantes a acoitarem-se no forte. Dei ordens para que recolhessem a Mdina, Senglea e Birgu, mas há de haver muitos em pânico e a dirigirem-se ao abrigo mais próximo. Não há espaço para eles em St. Elmo, e será necessário transportá-los através do porto antes que os turcos tornem essa transferência impossível. Tratai disso também.
— Sim, senhor — acedeu Thomas.
La Valette deitou um último olhar ao horizonte, semicerrando os olhos enquanto tentava divisar toda a vasta força que se aproximava da costa. Centenas de embarcações eram já visíveis: galeras, galeões e muitos pequenos navios de carga; um sinal claro da determinação do sultão em tomar a ilha e destroçar por completo a Ordem de S. João, que atormentava o mundo islâmico havia já três longos séculos. O Grão-Mestre respirou fundo.
— Senhores, tendes as vossas instruções. Que Deus tenha piedade de todos nós. Ide.
. . .
A guarnição do forte ainda estava plantada na muralha a observar a aproximação da frota inimiga quando Thomas e Richard entraram em St. Elmo. O pequeno pátio interno estava atulhado de cestos de maçãs e laranjas, sacas de farinha, rodelas de queijo e barricas de pólvora que tinham acabado de chegar das fábricas de Senglea. Thomas franziu o cenho ao contemplar aquela desorganização, e deteve um grupo de tropas espanholas que atravessava o pátio para ir observar melhor o inimigo da torre.
— Vocês! Porque é que estes abastecimentos ainda estão aqui fora? Levai-os de imediato para os armazéns! Onde está o vosso comandante?
Um dos sargentos no grupo apontou para a torre.
— Ali em cima, senhor. Vi Don Miguel a espreitar da torre.
— Bom. — Thomas apontou para as barricas de pólvora. — Arrumai primeiro a pólvora, antes que algum idiota entre em pânico e mande tudo pelos ares.
Thomas deixou o sargento a distribuir ordens e atravessou o pátio até à entrada da torre. Do outro lado da porta havia um salão repleto de longas mesas, sobre as quais ainda se viam os restos das refeições abandonadas quando os tiros de aviso tinham começado a soar pela ilha. Um criado ainda muito jovem entretinha-se a encher os bolsos com os pães sobrantes, e quando deu pela entrada do cavaleiro e do escudeiro, olhou para eles com ar culpado.
— Onde ficam as escadas para o cimo da torre? — inquiriu Thomas. O rapaz olhou para ele, receoso, e abanou a cabeça. Richard repetiu rapidamente a pergunta na língua da ilha, e o miúdo virou-se e apontou para uma porta de um dos lados do salão. Deixaram-no e seguiram pela passagem indicada até um corredor estreito que desembocava nas escadas. No cimo havia quase uma centena de homens apinhados junto ao parapeito, a contemplar a cena que se desenrolava no mar. Alguns envergavam os coletes vermelhos com a cruz branca que distinguia os cavaleiros da Ordem. Não havia tempo para procurar o comandante no meio da turba, pelo que Thomas levou a mão em concha à boca e gritou:
— Don Juan de La Cerda! Don Juan!
Os rostos rodaram na direção do grito, alguns com ar espantado. Um cavaleiro recuou do parapeito e aproximou-se de Thomas.
— Eu sou Don Juan de La Cerda.
Era um dos cavaleiros mais velhos, magro e seco, com uma coroa de cabelo grisalho em redor da careca. Fez uma careta enquanto contemplava Thomas de alto a baixo.
— Quem sois? Não me recordo de haver visto a vossa face.
— Sir Thomas Barrett.
Os olhos do cavaleiro arregalaram-se ao reconhecer o nome.
— O cavaleiro inglês.
— Um deles, sim.
— Aquele cujo nome tem andado nos lábios de toda a gente desde que chegou à ilha.
Thomas ignorou o comentário.
— Estou aqui a mando do Grão-Mestre, para supervisionar o forte e garantir que está tudo preparado para o combate.
La Cerda não escondeu um certo ar de surpresa, antes de responder com altivez.
— A minha guarnição está pronta. Não temos necessidade de supervisores.
— Pronta? — Thomas abanou a cabeça. — O pátio está uma confusão, e daqui a pouco vai-vos entrar pelo portão uma chusma de habitantes locais aterrorizados em busca de proteção, enquanto vós e os vossos homens estão aqui em cima a apreciar o cenário. — Falou em voz alta, de forma a que todos escutassem as palavras, mas também o desdém a que davam forma. — Pronta? Se é isto que considerais uma guarnição preparada, a batalha está perdida muito antes de começar. O Grão-Mestre precisa que vós e os vossos homens vos prepareis convenientemente, Don Juan. Quero metade dos vossos homens a limparem o pátio. Tudo terá de estar organizado e armazenado antes que os turcos desembarquem. A outra metade da guarnição deve formar grupos para sair e recolher todos os civis que ainda estejam entre o forte e as proximidades de Mdina. Se forem demasiado velhos ou estiverem doentes, os soldados terão de os carregar. Deverão ainda recolher todas as ferramentas úteis e os mantimentos que encontrarem e forem transportáveis. Tudo o resto deverá ser destruído. Nada que possa vir a ser usado pelos turcos deve ser deixado intacto. Percebido?
La Cerda hesitou.
— Com que autoridade vos atreveis a dar todas essas ordens?
— Já vos informei. Fui enviado pelo Grão-Mestre.
— Dizeis vós.
— Não há tempo a perder. — Thomas deu um passo na direção do outro cavaleiro. — Se continuardes a desperdiçar tempo, garanto-vos que o Grão-Mestre vos removerá do comando deste forte e vos oferecerá um posto digno da vossa indolência. Sugiro portanto que obedeçais às minhas ordens sem mais delongas. Não voltarei a avisar-vos.
Don Juan encarou-o por momentos, mas acabou por desviar o olhar. Virou-se de repente e distribuiu as ordens necessárias. Os sargentos levaram os homens pelas escadas nas duas extremidades da plataforma, deixando apenas alguns de vigia a fazer companhia aos dois cavaleiros e ao escudeiro.
— Não tendes o direito de me falar desta forma em frente dos meus homens — começou La Cerda, furioso.
— E vós não tendes o direito de os comandar, não sendo capaz de fazer aquilo que de vós é esperado. E agora, enquanto as ordens são executadas, necessito que me acompanheis enquanto inspeciono o forte. O meu escudeiro precisará de papel e tinta para tomar notas. Richard?
— Senhor?
— Registarás as minhas observações e recomendações para cada posição do forte.
— Sim, senhor.
— Don Juan, conduzi-nos aos vossos aposentos. Assim que o meu escudeiro tiver os materiais de que necessita, poderemos começar o périplo.
Os últimos resquícios de desafio em La Cerda desfizeram-se, pelo que anuiu e os levou pela escada mais próxima. Thomas seguiu-o, demasiado irritado para apreciar o facto de ter enfrentado o outro homem e triunfado. Antes de começar a descer, deitou um último olhar à frota turca. O Sol já tinha subido o suficiente para banhar toda a ilha nos seus raios cálidos e fazer desvanecer a névoa que antes cobrira o oceano, o que revelava a dimensão completa da força de invasão. Parecia que todo o horizonte estava coberto de velas e cascos, já a menos de cinco milhas da costa e distribuídos num gigante crescente pela superfície das águas. Os lábios de Thomas desenharam um curto sorriso perante o apropriado desenho da formação inimiga, e depois começou a descer as escadas.
. . .
Durante o resto do dia, a guarnição labutou na limpeza do pátio. La Cerda seguiu Thomas obedientemente em volta do forte, enquanto este ditava notas sobre o número de homens em cada posição, a disposição dos canhões do forte e o terreno coberto por cada arma disponível. Questionou La Cerda quanto ao armazenamento das munições e às disposições para a sua distribuição quando o cerco se iniciasse. Quis ainda saber o que estava previsto para tratar dos feridos e da sua evacuação para Birgu, se fosse possível manter aberta a comunicação entre os dois lados do porto.
Por volta do meio-dia começaram a chegar ao forte os primeiros civis, e Thomas e Richard contemplaram, do torreão que encimava o portão, uma longa fila de gente que se apressava na estrada poeirenta que corria pela península, mesmo abaixo da crista de Sciberras. À distância começavam a ver-se pequenas colunas de fumo a elevar-se sobre chamas que indicavam a queima de edifícios e reservas de mantimentos, realizada pelos grupos militares enviados do forte.
As pessoas, de semblantes ansiosos, eram conduzidas para o pátio. Muitas crianças choravam agarradas aos pais. Todos tinham ouvido histórias terríveis sobre os ataques dos corsários à ilha, e sobre famílias inteiras capturadas, cujos elementos tinham sido vendidos como escravos, arrancados dos braços uns dos outros para sempre. Só os que eram ainda demasiado pequenos para se aperceberem do perigo sorriam e gargalhavam, felizes por aquela mudança nas rotinas da vida quotidiana. Os membros mais velhos das famílias eram ajudados, ou pura e simplesmente levados ao colo. Alguns traziam gado, cabras, mulas e gaiolas com galinhas. Era-lhes permitido que entrassem com os animais mais pequenos, mas Thomas sabia que não haveria espaço para os animais de grande porte e, além disso, a guarnição não poderia alimentá-los. Eram por isso tirados aos proprietários à entrada do portão, levados para trás da esquina do forte e abatidos de imediato. Muitos foram desmanchados à pressa, e os nacos de carne atirados para barris de salmoura, de forma a juntarem-se às reservas alimentares da guarnição. Mas as carcaças de cães e mulas eram imediatamente atiradas para o mar.
Ao início da tarde, a atenção de Thomas foi atraída por um pequeno grupo que se aproximava a pé do fortim. As roupas que usavam eram de boa qualidade, e percebeu que deviam ser os habitantes de uma das casas senhoriais espalhadas pela ilha. À frente do grupo vinha uma figura altiva, apoiada num bordão. Atrás dele seguia um grupo de mulheres de lenços nas cabeças, lideradas por um vulto alto envolto num manto verde.
Richard riu.
— Não há nada como uma fuga apressada a um inimigo para fazer evaporar as mais óbvias distinções entre o povo comum e os seus supostos superiores.
— Oh, eles ainda assim tratar-se-ão bem, podes ter a certeza — respondeu Thomas.
Os dois homens continuaram a observar o grupo, e Thomas deu com o olhar a ser atraído para a mais alta das mulheres, que se deslocava com um ar de autoridade e ligeiramente à parte das restantes. Ao chegarem a uns cem passos do portão, sentiu uma velha memória a despertar na mente. Os detalhes fugiram-lhe por momentos, mas sentiu uma vaga e perturbante sensação na boca do estômago. Esforçou a vista, mas a distância ainda era demasiado grande. Havia porém algo de reconhecível, e depressa sentiu um arrepio a correr-lhe pela espinha e o pulso a acelerar. Os dedos fecharam-se sobre o parapeito com toda a força, e ele esticou o pescoço, incapaz de afastar o olhar.
Ao seu lado, Richard olhou-o, atónito.
— Sir Thomas, que se passa?
Thomas abriu a boca para responder, mas o queixo descaiu-lhe sem permitir a saída de sons. E nesse momento a mulher ergueu o rosto, emoldurado por tranças escuras e sem adornos, para admirar o forte de que se aproximava, e Thomas estremeceu, tomado por um turbilhão de esperança e negação simultâneas.
— É ela... Meu doce Jesus, é ela... Maria.
23
–Maria? — espantou-se Richard. — Impossível. Está morta. Foi o que disse Stokely. Como é que pode ser ela?
— É ela — respondeu Thomas, desarmado. — Tão certo como eu estar aqui a respirar.
— Onde?
Thomas ergueu a mão e apontou.
— A mulher de verde.
A qualidade das roupas que usava tornava-a evidente no meio da procissão de ilhéus assustados, e Richard reparou de imediato nela. Ainda estava a cerca de cinquenta metros deles.
— Deveis estar equivocado.
Thomas não replicou de imediato, temendo que o escudeiro tivesse razão, e que se tivesse deixado enganar pelo mais profundo dos desejos que o seu coração albergava, o de a rever. Olhou com toda a atenção, e a certeza que sentia quanto ao facto de ser Maria cresceu com cada passo que ela dava na direção do portão. Mas só existia uma forma de se assegurar e, antes de perceber bem o que fazia, Thomas deixou o parapeito e começou a descer as escadas que levavam ao portão pelo interior das muralhas.
— Sir Thomas! — gritou Richard. — Esperai.
Ignorou o escudeiro e acelerou o passo, fazendo o som das botas ecoar nas paredes rochosas da escadaria. Uma mão agarrou-lhe o ombro. Era Richard.
Thomas sacudiu-o e continuou a descer.
— O que ides fazer? — Richard lançou a pergunta à laia de apelo, mas não tentou segui-lo.
Thomas não sabia o que ia fazer; sabia apenas que tinha de ter a certeza. A dúvida já tinha começado a crescer de novo, e antecipava o temível golpe que o seu coração sofreria ao ver-se desmentido. Ao fundo das escadas saiu para o escuro túnel que vinha do portão; estava já cheio de gente que entrava no fortim. A mulher e o seu séquito ainda não tinham tido tempo de lá chegar, calculou Thomas. Colocou-se à margem da corrente humana e ali esperou, com o coração aos pulos, e uma leveza, quase uma inebriação, na mente.
O homem que trazia o bordão saiu da sombra. Logo a seguir surgiu a mulher, e já conseguia apreciar o fino trabalho de renda verde que lhe cobria o manto. O cabelo escorria-lhe pelos ombros, pondo à vista algumas madeixas já grisalhas. Fez uma pausa, a não mais de cinco passos dele, e percorreu com o olhar o interior do forte. Os olhos, escuros e penetrantes, passaram por Thomas e pelos grupos de soldados que levavam para lugar seguro os últimos fardos de abastecimentos que tinham estado empilhados no pátio pela manhã. Por fim, olhou piedosamente para os magotes de civis espalhados sobre as lajes, muitos deles a chorar de desespero. O pequeno grupo de servidores que a seguiam alcançou-a e o grupo foi empurrado pelos que vinham atrás, o que fez com que todos entrassem no pátio um tanto ao repelão.
A imagem de Maria que Thomas trouxera no pensamento ao longo de mais de vinte anos não era a desta mulher; havia, porém, suficientes semelhanças para alimentar o seu ardente desejo de que fosse realmente ela. Sentiu um ímpeto de chamar por ela em voz alta, mas não conseguiu fazê-lo, por receio de estilhaçar qualquer possibilidade de ser ela. A mulher deu mais alguns passos, cada um mais lento que o anterior, até que se deteve e ficou praticamente imóvel. Apesar da corrente de gente que lhe passava ao lado, incluindo os seus servidores, um sentido de quietude ligou-a a Thomas, e este ignorou toda a vertigem de detalhes que os rodeava, surdo às vozes dos soldados e aos choros dos civis. Lentamente ela rodou e então, quase como se não se atrevesse a enfrentar a realidade, os olhos dela seguiram as lajes que os separavam e subiram pelo corpo de Thomas acima, até lhe encontrarem o rosto. E quando o contemplou, os lábios dela moveram-se ligeiramente.
Qualquer dúvida que pudesse ter existido dissipou-se de imediato, e Thomas avançou devagar para ela, parando à distância de um braço, sem saber o que dizer. Que palavras poderiam expressar vinte anos de saudade, de permanente combate com a necessidade de aceitar que o passado não podia ser reescrito?
— Thomas... — disse ela, quase em surdina.
Ele lançou um meio sorriso, antes de se interromper e anuir.
— Sim. — Sorriu de novo. — Sim... Maria.
A expressão dela refletia choque e surpresa.
— Como pode ser? Como é possível?
Queria abraçá-la, sentia que o devia fazer, mas tanto tempo passara desde a última vez que se tinham tocado que lhe parecia ter esquecido como o fazer, e não queria arriscar-se a errar e ser afastado. Mas algo tinha de dizer.
— Fui chamado. La Valette pediu-me para vir. E eu vim, de Inglaterra. Esperava, rezava para que me fosse possível ver-te de novo.
De imediato surgiu um olhar assustado nos olhos dela, como se de repente se tivesse descoberto à beira de um precipício. Por um instante, Thomas receou que ela recuasse, se virasse e fugisse. Mas a expressão no rosto dela mudou rapidamente, e ela sorriu, embora incerta.
— E aqui me vês. — Abriu as mãos.
Thomas olhou para aqueles dedos, ainda finos como os recordava, mas percorridos por pequenas rugas, e com um tom de pele que lhes revelava a idade. Ainda assim, deu meio passo para ela e pegou-lhe nas mãos, sentindo um estremeção percorrer-lhe o corpo perante a suavidade fresca da pele dela.
— Disseram-me que tinhas morrido — disse, sem pensar.
— Morta? — Ela riu. — Não. Bem viva. Por agora. E tu? Muitas vezes me perguntei o que teria sido feito de ti depois de partires. Calculei que tivesses regressado àquela propriedade de que tanto falavas. Que tinhas tomado uma esposa, e que tinhas uma família. — Ela falava com uma animação forçada.
— Não há esposa nem família. Mas sim, tenho a minha propriedade.
Aquela conversa pública era como uma barragem que impedia a passagem de um fluxo ininterrupto de perguntas, de declarações, de coisas que tinham de ser ditas.
— Pensei muitas vezes em ti — continuou Thomas. — Todos os dias.
Ela sorriu, mas o sorriso logo se desvaneceu e ela deixou cair os dedos que segurava com doçura, deixando cair os braços ao longo do corpo enquanto abanava a cabeça.
— Tentei esquecer-te. Tentei...
— Sir Thomas!
O grito teve o condão de o afastar do turbilhão de emoções que o afogava, e ele virou-se para a voz; era La Cerda que atravessava rapidamente o pátio, na sua direção. Um servo de túnica escura com a estrela branca da Ordem no peito seguia-o. Thomas sentiu-se dilacerado entre o dever e a necessidade de não quebrar aquele frágil elo que o ligava a Maria. Olhou-a, quase suplicando.
— Peço-te que fiques aí um momento mais.
Maria assentiu e Thomas virou-se para La Cerda.
— O que se passa?
— Uma mensagem de Birgu. — La Cerda indicou o criado. — Fala.
— Sim, senhor. — O homem respirou fundo enquanto tentava manter-se rígido e debitar as instruções que recebera. — O Grão-Mestre envia-vos cumprimentos e solicita que regresseis de imediato a St. Ângelo, senhor.
— De imediato? — Thomas franziu o sobrolho. Deitou um olhar ansioso a Maria. — Mas ainda não terminei o que vim aqui fazer. Ainda há trabalho para fazer.
— Senhor, o Grão-Mestre pede a vossa presença — insistiu o homem.
La Cerda não dissimulou um sorriso trocista.
— Inglês, tendes as vossas ordens. Penso que posso bem voltar a encarregar-me do meu comando. Agradeço-vos pela vossa assistência. E agora, será melhor que partais.
Thomas rangeu os dentes e assentiu.
— Um momento apenas.
Virou-se e regressou para junto de Maria.
— Ouviste. Tenho de ir. Mas tenho de voltar a ver-te assim que for possível. Temos de falar.
— Falar?
— Claro; há tanto que quero dizer, tanto que quero ouvir. Diz que aceitas conversar comigo.
— Muito bem.
Thomas olhou em redor do pátio e avistou a porta para a pequena capela.
— Abriga-te ali. Eu voltarei e procurar-te-ei assim que me for possível. Prometo.
Pegou-lhe na mão e afagou-a com carinho, sentindo o tremor da pele dela e o calor que lhe subia pelo peito.
— Sir Thomas, por favor — lembrou o criado. — Temos de ir.
Largou a mão dela e falou em voz baixa, de forma que só ela o conseguisse ouvir.
— Eu volto.
Ela assentiu e rodou, fazendo um gesto ao seu pequeno séquito para que a acompanhassem à capela. Thomas olhou-a ainda por momentos, ao mesmo tempo que Richard surgia, vindo da entrada da torre. Manteve-se à parte, a curta distância, contemplando as costas de Maria com um olhar calculista.
. . .
À medida que o bote cruzava o porto, Thomas esforçava-se para não se virar e voltar a olhar, como se tivesse alguma esperança de que Maria estivesse no parapeito, a contemplá-lo. Apesar de se manter imóvel, o pensamento era um caos de memórias e esperanças selvagens. Chocava-o o facto de, com aquela idade, depois de tudo o que experimentara e de se ter obrigado a adotar uma visão do mundo que se podia considerar desencantada, ainda se via tão facilmente repleto de emoções embriagantes, e de ambições irrealistas, próprias da juventude. Parecia-lhe que o velho adágio era bem verdade: um homem crescia em anos, mas não em sabedoria.
Ao seu lado, Richard também seguia em silêncio, estranhamente imóvel, sem dúvida a tentar ordenar os pensamentos depois daqueles inesperados eventos. Quando o jovem quebrou finalmente o silêncio, o bote já se aproximava da altaneira massa de St. Ângelo, e Thomas não conseguiu evitar uma ponta de ressentimento ao pressentir, fatigado, mais uma sessão de perguntas sobre o seu passado e o seu coração.
— Porque é que Sir Oliver terá mentido sobre ela?
Thomas encolheu os ombros.
— Talvez por vingança. Ele sabia perfeitamente que pensá-la morta me faria sofrer.
Richard refletiu por momentos.
— A questão é, a presença dela afeta de alguma forma o nosso verdadeiro propósito para estarmos aqui?
— Porque o faria?
— Complicou bastante a situação para vós, e preciso da vossa ajuda para ter acesso aos arquivos. Não me agradam essas distrações.
— Cumprirei a minha parte — ripostou Thomas.
— Prometei-me apenas que não agireis de forma demasiado temerária antes de conseguirmos aquilo que me trouxe até cá.
— Isso depende bastante do Grão-Mestre. Depressa saberemos o que quer ele. — Thomas virou-se e apontou para o mar. As velas brancas e cascos escuros da frota turca estavam apenas a algumas milhas da costa; tinham alterado a rota para sul e passavam lentamente à frente da entrada do porto, muito para lá do alcance de qualquer dos canhões montados nas muralhas dos fortes da Ordem. — Embora também dependa deles.
Richard colocou a ponta do polegar na boca e continuou a ponderar. O bote rondou os penedos de St. Ângelo e o remador dirigiu-o para o pequeno cais na base do forte.
— O que pretendeis fazer quanto àquela mulher?
Thomas abanou a cabeça.
— Não faço ideia. Já me custa aceitar o facto de que ela está viva e aqui. Tenho de falar com ela, descobrir o que há no seu coração. Passaram muitos anos, e a nossa separação não se deu em circunstâncias felizes. Tanto quanto sei, a afeição que ela tinha por mim pode ter desaparecido há muito. Só posso falar com ela e tentar descobrir a verdade.
— E se a verdade for que ela ainda... vos ama?
Thomas fez uma careta.
— Não sei, com toda a honestidade. Se me foi realmente oferecida a oportunidade de corrigir o mal que me afligiu a consciência durante todo este tempo, então fá-lo-ei, com todo o meu coração.
— E se a afeição dela não for já vossa, o que fareis nesse caso? — Thomas virou-se para ele com uma expressão séria.
— Pensas que perderia a vontade de viver? Esqueces que há muito me habituei à ideia de viver, apenas e sem mais. Agora tenho muito por que viver. A Ordem, e Maria. Rezo para que possa salvar ambas e viver para gozar a satisfação de o ter feito. Chega para te descansar o espírito, Richard?
— Por agora. — Richard virou o olhar para o mar aberto. — Uma pena, não ter conseguido concluir a minha missão antes que a armadilha se fechasse.
O remador ciou com uma pá enquanto forçava a outra, fazendo a pequena embarcação rodar no último momento e roçar levemente pelas cordas que protegiam o molhe. O criado que fora enviado para chamar Thomas saltou para o cais, com o cabo de amarração nas mãos, e prendeu-o a um poste antes de ajudar o cavaleiro e o seu escudeiro a saltarem para terra. Thomas alisou os vincos do manto e chamou Richard com um gesto, começando a subir a escadaria estreita que levava ao forte.
. . .
O Grão-Mestre estava no seu estúdio com vários cavaleiros, apinhados junto à janela a observar a progressão da frota turca que se passeava pelo mar calmo. A retaguarda ainda estava a algumas milhas para norte, e só passaria pelo porto daí a algumas horas. Thomas indicou a Richard que devia permanecer junto aos outros escudeiros e servos que aguardavam fora do compartimento.
— Devem ser pelo menos uns trezentos navios — foi a estimativa vinda de um cavaleiro que Thomas ouviu ao aproximar-se.
— Pelo menos — retorquiu um homem mais alto, que Thomas reconheceu como o marechal de Robles, o mais antigo oficial militar da Ordem, um dos homens que rivalizara com La Valette antes de este ser eleito para a posição de Grão-Mestre. Thomas esperara ver Stokely naquele grupo, mas não havia sinal dele.
Quando La Valette reparou em Thomas, fez um aceno discreto, e virou-se para se dirigir à assembleia.
— O inimigo dirige-se para o sul da ilha. É claro que tencionam desembarcar na baía de Marsaxlokk, ou numa das outras enseadas na costa próxima. Não temos qualquer hipótese de os impedir, mas podemos tentar atrasar esse desembarque. Desta forma, dei ordem para que o marechal de Robles levasse mil homens e acompanhasse a progressão da frota inimiga ao longo da costa. — Encarou o marechal. — Podeis atacar qualquer tentativa de desembarque, mas não arrisqueis uma batalha em forma. Atacai rapidamente, liquidai quantos puderdes, e recuai antes que eles recebam reforços. Entendido?
— Sim, senhor; mas os homens estão entusiasmados — lembrou de Robles. — Vão querer mostrar o seu valor ao inimigo na primeira oportunidade.
— É vosso dever refrear-lhes os instintos. Depressa terão ocasião de provar o seu valor, quotidianamente.
— Sim, senhor. Mantê-los-ei sob controlo apertado.
— Fazei-o, sim. — La Valette indicou outro dos cavaleiros, um homem esbelto com cabelo louro até aos ombros. Parecia não ter mais de trinta anos de idade, e ostentava um bigode cuidadosamente aparado. Sorriu quando o Grão-Mestre o designou.
— Cavaleiro la Rivière. Foi-vos atribuído o comando de outra força mais pequena de homens montados. Será vosso objetivo emboscar e flagelar o inimigo assim que este se tiver instalado na ilha, depois de o marechal recuar para Birgu. Também vós não deveis correr riscos desnecessários. Quero apenas que o inimigo pense que temos homens à sua espera por trás de cada rochedo e parede da ilha, prontos a cair-lhes em cima e a cortar-lhes os pescoços. Este combate vai ser tanto uma guerra de nervos como um cerco convencional, e os subterfúgios e os truques vão nele desempenhar um papel tão importante como a coragem e a capacidade militar. — Fez uma pausa e olhou em redor. — Será um combate até à morte. Estamos em forte inferioridade numérica, pelo que o único caminho para a vitória passa por manter a vontade de resistir por mais tempo do que os turcos conseguirem manter a vontade de conquista. Não se deixem enganar, esta luta será tão dura, selvagem e brutal como as mais cruéis da História.
Deixou que as palavras calassem nos espíritos dos outros homens antes de voltar a falar de La Rivière.
— Há outro propósito que deveis alcançar com os vossos homens, além de enervar e destruir os batedores inimigos. Precisamos de prisioneiros para interrogar. Capturai uns tantos e trazei-os para cá, para serem questionados. Precisamos de informações detalhadas sobre a força e as intenções do inimigo, e depressa.
— Fá-lo-ei com todo o prazer, senhor. — La Rivière sorriu.
— Estou certo disso. Levareis Sir Thomas Barrett como vosso adjunto. Em tempos mostrou ter alguma aptidão para trabalhos deste género. Estou certo de que os seus velhos instintos despertarão com esta oportunidade. La Rivière, escutai os seus conselhos. Há poucos cavaleiros melhores do que vós sobre uma montada, e os vossos homens seguir-vos-ão até às mandíbulas da própria morte se tal lhes fosse pedido. Contudo, há em vós um lado impetuoso que exige uma influência moderadora, e é esse o papel que cabe a Sir Thomas. Compreendem ambos? — Thomas e La Rivière anuíram.
— Senhores, alguém tem questões?
Thomas levantou uma questão.
— Sim, senhor. Quando partimos?
— Ah! — La Valette soltou uma profunda gargalhada. — Mal podeis esperar por enfrentar o Turco, hã? O marechal de Robles levará os seus homens para o exterior de Birgu daqui a menos de uma hora. Vós e La Rivière saireis umas três horas antes da alvorada, de forma a poderdes montar emboscadas a coberto da escuridão. — Olhou para cada um deles à vez. Ninguém levantou mais questões. — Boa sorte, senhores, e que Deus vos acompanhe.
O marechal de Robles levou os seus homens para o exterior, e La Rivière e Thomas seguiram-no. Apresentou o cavaleiro francês a Richard, e explicou-lhe a missão que lhes fora atribuída.
— Regressa ao albergue e prepara o equipamento e as armas. Suponho que nos serão atribuídas montadas? — indagou Thomas junto de La Rivière.
— Claro. Não seria muito aceitável que um cavaleiro se dirigisse para uma batalha a pé. Ambos terão cavalos à disposição.
— Agradeço-vos. — Thomas baixou a cabeça e virou-se para se dirigir a Richard. — Nesse caso, não tenho nada que fazer nas próximas horas. Regressarei ao albergue por volta da meia-noite, antes de nos juntarmos à força junto ao portão principal de Birgu.
— Sim, senhor. E onde estareis até essa hora?
— Há uma coisa que tenho de fazer.
— Oh? — La Rivière arregalou os olhos. — O que pode ser assim tão importante? Ou talvez devesse perguntar, quem é que será assim tão importante?
Thomas encarou-o, preocupado por deixar transparecer os seus motivos tão facilmente. Enfrentou o cavaleiro francês com uma expressão firme.
— Assuntos pessoais, e qualquer cavaleiro que preze a sua honra devia saber que não tem nada a ver com isso.
. . .
O remador estava a acomodar-se no fundo do barco para descansar um bocado quando Thomas regressou ao cais e lhe ordenou que o levasse de novo para o outro lado do porto. Um punhado de outras embarcações fazia a travessia enquanto o Sol descia para o horizonte. Algumas levavam suprimentos para St. Elmo, e regressavam repletas de civis ansiosos por se recolher na comparativamente mais segura povoação de Birgu. O coração de Thomas alegrava-se perante a perspetiva de voltar a ver Maria e passar algumas horas ao seu lado antes de ter de voltar e preparar-se para a surtida com La Rivière. O desconforto que sentira antes ficara a dever-se ao choque de a descobrir ainda em vida, e à incerteza sobre o que lhe poderia dizer. Naquele momento sentia-se confiante de que seriam capazes de travar uma conversa normal; depressa descobriria o que se tinha passado com ela durante os anos de afastamento, e se ela ainda sentia alguma coisa dos intensos sentimentos que em tempos os tinham unido.
Quando o bote alcançou a pequena praia de seixos na base do forte, Thomas nem esperou que o remador o arrastasse para terra; saltou sobre a proa e chapinhou nas poças de água. Mal chegou a terra firme, correu pelo caminho que subia a falésia rochosa até ao forte. O pátio já estava envolto em sombras, e estava apinhado com centenas de malteses, a que se juntavam continuamente outros pela passagem aberta no portão principal. Nos seus semblantes era bem evidente o receio; alguns choramingavam e muitos outros prostravam-se de joelhos, orando sem cessar para que os céus os livrassem da fúria dos Turcos. Thomas foi abrindo caminho pela multidão, dirigindo-se à capela. A porta desta estava aberta de par em par e lá dentro brilhavam inúmeras velas. Os bancos estavam repletos de devotos, a rezarem com fervor. Os olhos de Thomas procuraram Maria em todas as faces, mas não encontrou o verde do seu manto em parte alguma. Percorreu lentamente o corredor central, olhando para ambos os lados, mas não havia sinal da sua presença. A ansiedade ia crescendo no seu espírito, e aproximou-se de um padre que acabava de sair do confessionário.
— Padre, procuro uma mulher. Ela deve ter estado aqui, onde lhe disse para esperar por mim.
— Uma mulher?
Thomas assentiu.
— Envergava um manto verde. Chegou pouco depois do meio-dia, com o pessoal da sua casa. Pedi-lhe para esperar aqui por mim. Viste-la?
— Ah, sim. Aliás, ela veio confessar-se.
— Então onde está?
— Partiu.
— O quê? — Thomas sentiu um golpe no coração. — Para onde foi?
— Não sei. Não mo disse. Tudo o que sei é que parecia muito perturbada, mas também quem não o estará nestas circunstâncias? Deu ordens ao pessoal que a acompanhava para recolherem os seus pertences e depois deixaram a capela. Foi a última vez que a vi.
— Deixou alguma mensagem para mim?
O padre olhou para ele.
— E quem sois?
— Sir Thomas Barrett. Um... amigo da senhora.
— Estou a ver. Não, não vos foi deixada qualquer mensagem.
— Nada?
— Nada. Lamento.
— E não tendes qualquer ideia de para onde ela foi? Talvez esteja ainda no interior do forte?
— Duvido. Vi o grupo que estava com ela a dirigir-se para o portão principal. O meu palpite é que se dirigiam ao cais, à procura de barcos que os pudessem levar para o outro lado, para Birgu. Se a quereis encontrar, sugiro que procureis por lá. E agora, se é tudo, há refugiados que precisam de conforto. Importais-vos, senhor?
Thomas desviou-se e deixou o padre passar. Sentia-se agoniado. Porque é que Maria não tinha esperado por ele? Porque é que tinha partido tão apressadamente? Não conseguia encontrar qualquer razão que não levasse à conclusão de que ela não queria revê-lo. Era uma perspetiva demasiado pesada, e Thomas agarrou-se à esperança de que existia uma razão premente para a obrigar a deixar o forte. Muito bem, era portanto necessário seguir-lhe a pista. Não ficaria satisfeito enquanto não soubesse a verdade sobre os sentimentos dela, fossem quais fossem, dos seus próprios lábios. Uma coisa era certa. Uma fortaleza cercada era um mundo muito pequeno. Seria uma questão de tempo até voltar a encontrá-la.
24
–Aqui está bem. — La Rivière levantou a mão para interromper a marcha da pequena coluna. Ainda estava escuro, e os vultos quase invisíveis dos cavaleiros e homens de infantaria seguiam separados por espaço suficiente para não estarem sempre a tropeçar uns nos outros. O cavaleiro que seguia imediatamente atrás dos dois líderes inspirou fundo e transmitiu a ordem a toda a coluna.
— Coluna! Alto!
Thomas virou-se rapidamente na sela e lançou um aviso, quase num silvo, irritado.
— Pouco barulho, idiota!
— Perdão, senhor.
Thomas fez a montada virar-se. Peter Von Harsteiner era um alemão alto e corpulento, com cabelo escuro muito curto. Tinha-se oferecido com todo o entusiasmo para fazer parte do grupo para a emboscada, e era evidente que idolatrava La Rivière, razão pela qual Thomas tivera fortes dúvidas quanto à sua inclusão. Teria preferido levar soldados mais experientes, habituados a missões daquele género, mas La Rivière já tinha escolhido os seus homens, e tinha afastado as preocupações do inglês com algumas graçolas. Thomas deteve a montada perto do alemão e dirigiu-lhe palavras em surdina.
— Cuidado, Von Harsteiner, os turcos já fizeram desembarcar algumas forças avançadas. Quereis denunciar a nossa presença?
O alemão abanou vigorosamente a cabeça.
— Não, senhor.
— A questão era meramente retórica — comentou Thomas, desalentado. — Mantende-vos calmo e calado. Avançai lentamente e com cautela, e não abrais a boca a não ser que seja mesmo necessário. Sei bem que o vosso sangue ferve, mas este género de trabalho exige precisão e autocontrolo. Compreendeis? Esta pergunta não era retórica.
Mesmo na escuridão, Thomas adivinhou o sorriso divertido do outro.
— Compreendo.
— Bom. — Puxou pelas rédeas e levou o cavalo a passo até junto de La Rivière. Falou em surdina. — Impetuoso, mas pronto a aprender. Seria bom colocá-lo numa posição onde não viesse a prejudicar-nos.
— Oh, ele não será um problema — respondeu o cavaleiro francês, sem dar importância ao assunto, enquanto observava a paisagem em redor. A coluna tinha estado a avançar por um caminho estreito, ladeado por um muro de pedras da altura da cintura de um homem, como era comum na ilha. De ambos os lados, o solo era irregular, com afloramentos rochosos e arbustos atarracados. Uma pequena quinta avistava-se à distância, e no ar noturno havia um cheiro a carne de porco. Depois da casa, o caminho subia até uma crista do onde se podia vislumbrar uma das baías da costa sul da ilha.
— Vamos colocar-nos dos dois lados do caminho — decidiu La Rivière. — Deixaremos os turcos virem meter-se na armadilha, e depois atacaremos dos flancos. O fogo dos arcabuzes será seguido por uma carga de cavalaria. A coisa estará terminada em pouco tempo.
— Se nos dispusermos dos dois lados, não haverá o perigo de os nossos homens dispararem sobre os seus próprios camaradas, por engano? — indagou Thomas, pacientemente.
— Achais que tal pode suceder?
— Ouvi dizer que já aconteceu, sim.
— Hmmm. Nesse caso, vamos colocar-nos do lado esquerdo. Os atiradores ao centro, e os homens montados nos flancos. Quando eu der o sinal, os homens abrirão fogo e depois carregaremos pela frente e por trás da coluna inimiga, esmagando-os no meio. Deve ser suficiente, não?
Thomas anuiu.
Enquanto os homens equipados com arcabuzes saltavam o muro e se colocavam em boa posição para disparar sobre a estrada, os cavaleiros e os seus escudeiros, oito no total, desmontaram e levaram os cavalos para locais mais escondidos. Quando La Rivière e Thomas ficaram satisfeitos com a disposição da sua pequena força, deixaram as montadas a cargo de Richard e avançaram cuidadosamente ao longo do caminho até à crista, a cerca de oitocentos metros do local da emboscada. Ao passarem pela quinta, avistaram uma pequena pilha de carcaças de porco, queimadas à pressa para não deixar nada que pudesse aproveitar ao inimigo. O cheiro acre da carne queimada enchia o ar, e fê-los prosseguir sem demora. Da sua esquerda vinha o ocasional som de disparos de mosquetes, e o rufar dos tambores à distância, do ponto onde o marechal de Robles e os seus homens enfrentavam os primeiros turcos a desembarcar na ilha, junto à baía de Marsaxlokk. Os campos pareciam calmos e tranquilos, e Thomas estava bem consciente do barulho que os seus passos produziam na seca e poeirenta face do trilho. Diminuíram o passo ao alcançar a crista e saíram da estrada, dirigindo-se a um amontoado de rochas a uns cinquenta passos dali, onde poderiam ficar escondidos enquanto esperavam a aproximação do inimigo. Ao rodearem o penedo de maiores dimensões, avistaram as pequenas enseadas que pontuavam a costa sul, e La Rivière parou de respirar enquanto soltava uma imprecação.
Apesar de a alvorada não passar ainda de um indício de céu menos escuro no horizonte oriental, as estrelas e o fino crescente lunar davam luz suficiente para revelar pelo menos uma centena de navios ancorados na baía que ficava mesmo por baixo da posição em que se encontravam. As massas escuras de algumas pequenas casas a menos de dois quilómetros dali marcavam a localização da aldeia piscatória em que terminava o caminho. Esforçando a vista, Thomas julgou ver algum movimento na margem, junto à aldeia.
— Além, já começaram a desembarcar a oeste de Marsaxlokk.
Mantiveram-se agachados, em silêncio, vigiando o inimigo na aldeia, e à medida que a aurora progredia no horizonte, revelava o panorama completo da invasão da ilha. Os navios ancorados na baía pareciam estar tão amontoados que davam a ideia de uma massa contínua e confusa, onde os mastros lembravam árvores desnudas pelo inverno. Entre os navios e a margem circulavam inúmeras embarcações de pequeno porte, levando para terra soldados e os seus pertences. Algumas das galeras tinham sido levadas até à praia, e delas também saíam homens, que desciam pranchas até à água e seguiam pelo meio das ondas até à areia. Havia muito tempo que Thomas não contemplava os guerreiros muçulmanos que tinha combatido na sua juventude, e admirou o panorama, enquanto as memórias de antigas batalhas eram acordadas.
Já havia uma força dianteira espalhada pelo terreno, a avançar com todo o cuidado; os homens tinham elmos cónicos, escudos redondos com um espigão central e vestes largas e leves. Por trás deles, outros grupos começavam a formar nas suas unidades. Tinham sido reunidos guerreiros de todos os cantos do Império Turco para aquela invasão. Cavaleiros couraçados com véus de cota de malha a proteger os rostos, arqueiros que tinham treinado a cavalo mas participariam a pé naquela campanha, homens das montanhas do Curdistão, com cabelos hirsutos e vestidos de peles. Mas o grupo mais impressionante estava naquele momento a desembarcar das galeras. Altos, de pele clara, de chapéus altos e brancos, sobre os quais volteavam longas plumas de avestruz. Cada um deles levava ao ombro um dos arcabuzes de cano comprido preferidos pelos Turcos. Embora fossem mais difíceis de manejar do que os utilizados pelos exércitos europeus, eram mais precisos, e mortíferos nas mãos de homens que tinham passado anos a treinar o seu uso. Para lá das armas de fogo, cada um tinha a sua cimitarra e um escudo, num fardo que levavam ao outro ombro. Assim que atingiam a margem, formavam em companhias e esperavam pelas ordens dos seus oficiais, de turbante.
— Janízaros — murmurou Thomas.
— Bem vejo — respondeu La Rivière. — Já alguma vez os haveis combatido?
— Sim, numa ocasião. — Thomas relembrou os acontecimentos enquanto respondia. — La Valette resolveu atacar um posto avançado inimigo, em Rodes. Não fazíamos ideia de que havia uma companhia de janízaros no forte até termos escalado as muralhas e suprimirmos as sentinelas. Quando escancarámos os portões, La Valette lançou-se ao ataque à frente das tropas. Só nessa altura é que percebemos o que estávamos a enfrentar. — Abanou a cabeça. — Lutaram como fúrias, apesar de poucos terem tido tempo de envergar qualquer tipo de armadura. Abatíamo-los, e eles continuavam a avançar, a usar os punhos ou até os dentes, se tivessem perdido as armas. Nunca tinha visto tão grande fanatismo, e sempre esperei nunca mais ter de o enfrentar de novo. — Virou-se para o francês. — Dá-me ideia que as nossas possibilidades diminuíram bastante.
La Rivière sorriu.
— Sou um jogador por natureza. E sempre me regi por este princípio: se as probabilidades são escassas, a recompensa será vasta.
Thomas suspirou.
— Calculo que a vossa fortuna não foi adquirida numa mesa de jogo.
— Nunca perdi mais do que aquilo que podia aguentar.
— Isso pode estar prestes a mudar. — Thomas voltou a concentrar-se nas forças inimigas que estavam a desembarcar na praia. A primeira companhia de janízaros já avançava, tomando a estrada que os levaria ao local onde estava montada a emboscada. Algumas centenas de metros adiante, os batedores turcos progrediam com todas as cautelas pelo terreno rugoso, a caminho da crista. — Estão a avançar.
— Espero que o de Robles tenha o bom senso de recuar para Birgu antes que seja flanqueado.
— Ele sabe o que faz — ripostou Thomas.
Deu-se um breve silêncio, até que o francês se virou para ele.
— Evidentemente, haveis combatido ao seu lado, antes...
— Antes de ser forçado a deixar a Ordem. Sim. Conheci-o nesses tempos. Um excelente soldado. Não tomará riscos desnecessários.
— Ao contrário de vós.
Thomas virou-se num repente.
— Há alguma coisa que desejeis saber de mim? Se assim for, vamos resolver isso antes de termos de lidar com o inimigo.
La Rivière soltou uma risada.
— Ah, parece-me ter encontrado uma fresta na vossa armadura. Mas não tendes de vos preocupar comigo, Sir Thomas, não me preocupo tanto com o código de honra como outros membros da Ordem. Juntei-me a ela para ter oportunidade de combater. É essa a minha vocação. Quanto a mim, o único erro que haveis cometido na história da paixão com a nobre italiana foi não terdes conseguido escapar.
— A sério? — retorquiu Thomas em tom gélido. — Supunha que o meu erro fora o de não ter respeitado os valores que eram esperados da parte de um cavaleiro.
— Tais valores têm-se tornado mais flexíveis em tempos recentes. Uma pena que a vossa, hã, indiscrição não tenha ocorrido uns dez anos depois. Duvido muito que a questão da vossa saída da Ordem tivesse sido sequer levantada.
— Achais que sim?
— Sei-o. Há pormenores da vossa infeliz história que não são do vosso conhecimento.
Thomas perguntou-se o que quereria dizer o francês com aquelas palavras, mas não apreciou o tom de troça, e resolveu não morder o isco. De qualquer forma, não havia tempo para aquela conversa, o inimigo aproximava-se e eles tinham de regressar para junto dos homens.
— Vamos, temos de ir.
Mantiveram-se agachados enquanto se afastavam das rochas, e apressaram-se a regressar ao ponto da emboscada. No horizonte já havia uma faixa de luz pálida, e quando os soldados inimigos chegassem àquele local, deviam ter o sol nascente a bater-lhes em cheio nos olhos, tornando ainda mais difícil que se apercebessem da ameaça. Thomas ficou satisfeito ao ver que não havia sinal nem som dos homens enquanto eles se aproximavam, e que foi só no último momento que a cabeça loura de Von Harsteiner se ergueu por trás do muro de um curral junto à quinta.
— Vêm aí? — quis saber o alemão, sem esconder o entusiasmo.
— Vêm. — La Rivière sorriu. — E não haverá falta deles.
Um traço de ansiedade percorreu o semblante de Thomas. O francês parecia ter um traço de temeridade que podia muito bem pôr em causa o sucesso da emboscada. Estava demasiado desejoso de enfrentar o inimigo. A tarefa que La Valette lhes atribuíra dependia da paciência, da furtivez e de uma disposição para retirar assim que a escaramuça ameaçasse transformar-se em algo mais sério. Era seu objetivo conseguir prisioneiros, e não fornecê-los ao inimigo.
Depois de recuperarem as montadas, Thomas e La Rivière juntaram-se ao grupo de escudeiros no flanco esquerdo. Os cavaleiros que ocupavam o outro flanco eram comandados por Von Harsteiner. Os homens estavam prontos, de sentidos alerta à aproximação do inimigo. Thomas deitou uma olhadela a Richard; estava a poucos metros de distância, agachado junto a um rochedo, uma mão no punho da espada.
Não tiveram de esperar muito tempo. Uma figura solitária surgiu ao cimo da crista e avançou cuidadosamente pelo trilho, espreitando para ambos os lados. Tinha um elmo cónico com crista e uma lança nas mãos. Ao chegar à quinta, deteve-se e examinou atentamente as redondezas. A certa altura Thomas teve a sensação de que o turco olhava diretamente para ele, e manteve-se completamente imóvel, à espera que o outro desse o alarme. Mas ele acabou por se afastar, e Thomas soltou um suspiro de alívio. À distância, os sons do combate vindos da direção por onde avançara de Robles aumentavam, e ajudavam a cobrir qualquer som dos cavalos, fosse um resfolegar ou uma batida com os cascos. O batedor turco deixou o caminho de súbito, e entrou na quinta. Ouviram os sons de mobília a ser movimentada e o homem saiu pelas traseiras com dois bancos nas mãos. Afastou-se do edifício, desfez um dos bancos contra uma rocha e começou a fazer uma fogueira.
Thomas olhou sobre o ombro e avistou um risco dourado no horizonte. Aproximou-se do cavaleiro francês e segredou-lhe.
— Se ele ficar ali, vai ver-nos assim que surgir o Sol. Temos de nos livrar dele.
— Podíamos fazê-lo prisioneiro — sugeriu Richard. — E regressar a Birgu.
— Precisamos de capturar um oficial — contrapôs La Rivière. — E de dar uma lição apropriada ao inimigo. Mas primeiro temos realmente de tratar daquele.
— Eu vou — sugeriu Richard.
Thomas abanou a cabeça.
— Não. Ficas aqui. Eu trato disto.
Por momentos La Rivière pareceu surpreendido, mas acabou por fazer um gesto na direção da quinta abandonada.
— Seja, meu caro inglês, avançai.
Desembainhou a adaga e avançou, escolhendo cuidadosamente o caminho por entre os minúsculos arbustos que escondiam os cavaleiros no flanco esquerdo da linha. Entretanto, o batedor continuava a tratar da fogueira, dispondo os pedaços de madeira num cone; depois, pegou nalguns trapos que trouxera de dentro da casa, rasgou-os e foi-os colocando nos espaços entre os pedaços de madeira. Enquanto trabalhava, levantava frequentemente a cabeça, perscrutando o terreno na direção do porto e de vez em quando olhando para trás, para a crista, claramente à espera dos seus camaradas. Thomas chegou ao pequeno estábulo, pouco mais do que uma barraca, e avançou colado à parede até à esquina, onde espreitou para ver o que fazia o soldado inimigo.
Depois de completar a fogueira a seu gosto, o turco levantou-se, espreguiçou-se e foi até ao muro que ladeava a propriedade, apoiando-se nele e oferecendo as costas a Thomas. Este aguardou alguns momentos para ver se o outro se mexia, mas o batedor parecia esquecido do mundo. Olhava para ambas as direções ao longo da estrada, acabando por ficar a olhar na direção de Mdina, cuja igreja possuía uma torre espiralada que se projetava em tom escuro contra o céu rosado da alvorada. Thomas brandiu a adaga que levava junto à cintura e avançou semiagachado, tendo o cuidado de não esmagar o cascalho debaixo dos pés e alertar o outro. O som dos disparos a leste diminuía de intensidade, indicando que de Robles e os seus homens tinham recuado e retiravam para Birgu. Quando Thomas já estava a menos de três metros do batedor, um movimento à sua esquerda atraiu-lhe a atenção, e vislumbrou um estandarte a erguer-se sobre a crista. O turco reparou também nele e virou-se ligeiramente nessa direção. Ao deparar com Thomas, os seus olhos arregalaram-se de alarme.
25
Não havia tempo para pensar. Thomas lançou-se para a frente enquanto puxava a adaga atrás com os músculos tensos, prontos para desferir o golpe. O batedor virou-se num salto, e a surpresa que sentira não lhe provocou mais do que uma hesitação mínima. Levantou o braço esquerdo para proteger o rosto, enquanto a mão direita se fechava em torno do punho de marfim da sua própria adaga. A lâmina recurva e fina estava já fora da bainha quando Thomas atacou.
Foi um movimento sem qualquer elegância; não estava a travar um duelo com o adversário, queria apenas empurrá-lo com força e obrigá-lo a cair. O homem era de constituição frágil, pelo que o impacto o empurrou contra a parede. Thomas aproveitou para tentar cravar-lhe a adaga com toda a força, rasgando vestes e carne e fazendo o adversário gemer de dor. Porém, o golpe foi desviado pelas costelas; a ferida sangrava abundantemente, mas não era impeditiva de movimentos. Com um rugido de fúria, o batedor fez rodar o braço armado com a faca e a lâmina resvalou contra a proteção do ombro de Thomas, saltando para cima, o que fez com que a ponta lhe passasse entre os cabelos e lhe rasgasse o escalpe, provocando uma dor semelhante à de uma queimadura. Thomas voltou a golpeá-lo, e desta vez conseguiu enterrar a lâmina nos tecidos moles do ventre do inimigo. Este soltou um grunhido profundo, mas ripostou com um murro no rosto de Thomas. O inglês ficou atordoado e cambaleou para trás, o que o afastou do alcance da faca do turco. O calcanhar embateu-lhe numa pedra solta, e ele caiu pesadamente para trás, o que fez o ar saltar-lhe dos pulmões.
Thomas ofegou e culpou-se amargamente por não ter conseguido uma morte limpa e rápida. Estava agora à mercê do inimigo, e esperava sentir a qualquer momento o golpe letal e frio da adaga do batedor turco. À medida que a visão lhe começava a clarear, conseguiu apoiar-se nos cotovelos e encolher as pernas para se pôr de pé. Avistou o outro, a uns três metros, de gatas, a tentar desesperadamente escapar e voltar para junto dos seus camaradas. Ao olhar para trás, viu Thomas a recuperar. Tentou pôr-se de pé, uma mão a apertar o estômago, a outra ainda agarrada à adaga e a apoiar-se no cimo do muro. Começou a andar para a estrada, na direção das tropas que se aproximavam, tentando gritar, mas o esforço era demasiado penoso e ele cerrou os dentes e concentrou-se em tentar escapar.
Ainda sem fôlego, Thomas perseguiu-o, cambaleando pelo pátio da quinta. Sentia o peito pesado, como se tivesse em cima um enorme peso, e começou a sentir-se tonto. Deteve-se e sacudiu a cabeça, para tentar afastar a náusea, só então percebendo que o batedor inimigo lhe tinha ganho terreno, mesmo ferido como estava. Podia muito bem conseguir escapar. O turco olhou para trás e apercebeu-se também desse facto, o que fez com que os seus lábios se abrissem num sorriso, rapidamente interrompido por uma vaga de dor. Soltou uma imprecação e continuou a arrastar-se.
— Não... — murmurou Thomas, desesperado e furioso. Cerrou o punho e obrigou-se a acelerar o passo, mas teve de parar ao fim de poucos metros, derreado. Reparou então num movimento próximo, e alguém passou por ele a correr. Tudo se passou muito depressa, um braço puxado atrás e projetado, um som surdo da direção do turco, que tinha acabado de alcançar a estrada. Soltou um gemido e tombou de joelhos, e a mão esquerda subiu-lhe pelas costas até ao cabo de uma faca que o tinha atingido por baixo da omoplata.
Richard virou-se para Thomas.
— Estais ferido?
Thomas abanou a cabeça.
— Apenas sem fôlego.
Satisfeito, Richard virou-se para o batedor e correu na sua direção. Aplicou-lhe um pontapé que o fez estatelar-se no solo. Debruçou-se sobre ele, aplicou-lhe a bota nas costas e recolheu a adaga. Num movimento rápido, pegou-lhe no elmo, puxou-lhe a cabeça para cima e degolou-o. O corpo estremeceu e as botas dançaram na poeira da estrada. Richard não esperou que as convulsões terminassem antes de limpar a lâmina nas vestes do outro e voltar a colocá-la no cinto. Pegou então num dos pés do turco e arrastou-o para o pátio.
— Ajudai-me — pediu a Thomas.
Ainda a recuperar o fôlego, Thomas embainhou a adaga e pegou no outro pé. Juntos, arrastaram o corpo para o pequeno celeiro.
— O que sucedeu?
Thomas levantou o olhar e descobriu La Rivière num dos cantos do edifício, agachado.
— Está tudo bem, senhor — respondeu Richard. — Tratámos da saúde ao batedor inimigo.
— Isso vejo eu. O que estais a fazer com ele?
— Vamos esconder o corpo aqui no celeiro, e depois regressaremos às nossas posições.
— Esperai. — La Rivière endireitou-se e espreitou para a estrada. Apontou para uma fenda na parede, onde algumas pedras tinham ruído, em frente aos homens que esperavam para fechar a emboscada. — Ponde-o além, encostado ao muro do lado afastado do caminho.
— O quê? — Richard franziu o sobrolho. — Mas assim vê-lo-ão.
— Precisamente! — La Rivière sorriu. — Fazei o que vos digo. Já aí vou ter convosco.
Richard olhou para Thomas, que anuiu, e arrastaram o corpo, instalando-o contra o muro, sentado. La Rivière dirigiu-se aos restos calcinados dos porcos e empunhou a adaga. Trabalhou com ela e depressa regressou para junto dos outros.
— Cá está. O toque final na nossa pequena armadilha.
O cavaleiro francês debruçou-se sobre o cadáver e abriu-lhe as mandíbulas com uma mão, enquanto lhe enfiava qualquer coisa na boca com a outra. Levantou-se de imediato com um aceno satisfeito.
— Já deve chegar.
Thomas olhou para a obra e avistou um focinho de porco, que saía dos lábios esticados do turco morto; percebeu imediatamente o que pretendia La Rivière.
— Porque haveis feito isso? — indagou Richard em tom calmo, mas indignado.
La Rivière gargalhou.
— Sir Thomas, explicai-lhe.
— O porco, para os muçulmanos, é um animal impuro. Recusam-se a comer a sua carne. Quando os camaradas deste homem virem isto, ficarão revoltados. A primeira coisa que farão quando o virem será baixar a guarda, e tentar por todos os meios remover da sua frente tamanha afronta.
— Exatamente — concordou La Rivière, antes de olhar na direção da crista. Os outros imitaram-no e Thomas viu a cabeça da coluna a surgir sobre ela, iluminada em cheio pelos primeiros raios do Sol nascente.
— Estão de frente para o Sol — comentou Richard. — Com alguma sorte, ainda não viram nada que os alarmasse.
— Vamos então — ordenou La Rivière. — Mantende-vos baixos.
Levou-os para longe da estrada, e correram pelos campos até aos penedos onde os homens estavam escondidos. Pegaram nos elmos dependurados das selas e colocaram-nos, apertaram as correias e ficaram junto aos cavalos, prontos para montar e carregar assim que La Rivière desse indicação para tal. Thomas tinha recuperado o fôlego, e tinha os lábios cerrados enquanto se recriminava amargamente. Tinha criado uma enorme confusão, em vez de despachar o batedor inimigo. Se não fosse Richard, o inimigo poderia ter escapado e avisado os seus camaradas acerca da armadilha que os esperava. Era-lhe penoso ter sido socorrido pelo escudeiro. Os dias em que fora um temível guerreiro já tinham passado, e aquela era talvez a última oportunidade que teria para cometer atos valorosos antes de se tornar bom apenas a contar histórias de glórias passadas a crianças, junto à lareira.
Fechou os olhos com força e obrigou a vergonha a desaparecer-lhe do pensamento. Um soldado não podia permitir-se distrações daquele género antes de um combate. Era uma lição que o mestre de armas do seu pai lhe tinha instilado desde o princípio do treino. Um soldado, sim, refletiu, mas a verdade é que para um cavaleiro existiam outros códigos e padrões de vida. A cavalaria acima de tudo. Contudo, não havia lugar para essas exigências morais na guerra interminável entre a Ordem e o Islão. Tudo o que importava era destruir o inimigo, onde e quando ele fosse encontrado.
Num momento de súbita revelação, Thomas compreendeu que era essa a verdadeira atração da Ordem para homens como ele e La Rivière. As guerras que ocorriam no seio da Cristandade, as mesquinhas rivalidades e menosprezos mútuos de reis e príncipes eram apenas pobres reflexos de causas pelas quais valia a pena realmente lutar, matar... e morrer. Só a Ordem oferecia uma clareza moral indiscutível. Era um mundo contra outro. Não havia quaisquer dúvidas que pudessem perturbar um homem, ou pelo menos um homem devoto, concluiu Thomas. Havia muito que se debatia com a sua fé, que a sentira a escorregar-lhe pelas mãos enquanto o jovem que fora se transformava num homem. Apesar das suas preces constantes, nunca tinha recebido qualquer resposta, muito menos uma visão ou um milagre. Nada mais do que um vazio que crescera na sua alma, e que lhe oferecera uma escolha clara: ou aquela vida era tudo o que existia, e um homem vinha do pó e ao pó retornava, aceitando a brevidade da existência, ou optava por praticar feitos que merecessem ser preservados na História da Humanidade. Compreendia isso — estava ali para dar sentido à sua própria existência. Não combatia pela glória de Deus, mas pela sobrevivência do mundo em que moravam os que n’Ele acreditavam, e os que eram obrigados a viver a sua ausência de fé em silêncio, como ele mesmo. Era por esses que estava pronto a lutar e a morrer. Endureceu o coração e recuperou a concentração, enquanto se fixava na aproximação do inimigo.
Os turcos marchavam pela estrada com evidente despreocupação, conversando e rindo, ideias e corações repletos da confiança típica de homens que davam início a uma campanha de cujo resultado não duvidavam. Vinham em força, tinham os mais poderosos canhões de todo o mundo, os melhores engenheiros de cerco, e eram enviados pelo sultão Solimão, o Magnífico, abençoado por Alá. Thomas compreendia a confiança que exibiam, mas também a argúcia do Grão-Mestre, que sabia quão importante era destruir aquela soberba assim que os turcos pusessem pé em solo maltês.
Enquanto o inimigo se aproximava, Thomas notou que não seriam mais de uns cem, armados de espadas e escudos, e alguns com piques. Não traziam armaduras, e para lá dos escudos a sua única proteção eram os elmos de latão polido com um pequeno véu de malha a proteger pescoço e ombros. As vestes eram largas, de forma a permitir-lhes os movimentos e diminuir o desconforto do calor de verão. À cabeça vinha um oficial num cavalo cinzento, cujos arreios e sela eram decorados com fios de prata. As roupas do oficial eram de seda escura, com estrelas e crescentes brancos cosidos no material. Tinha um turbante negro, e a sua fina barba e postura altiva e ereta na sela traíam-lhe a juventude. A sua inexperiência era também denunciada pela forma desatenta como os seus homens avançavam, e pela ausência de uma vanguarda.
Thomas olhou para La Rivière e notou que o cavaleiro francês observava atentamente a progressão do inimigo, sem qualquer sinal da leviandade que exibira anteriormente. Apercebeu-se do olhar de Thomas e devolveu-lho sem qualquer expressão, antes de voltar a observar os turcos. O som da sua conversa despreocupada enchia já o ar e sobrepunha-se às canções dos pássaros espalhados pelos arbustos junto à quinta. Quando se aproximaram da entrada para o humilde conjunto de edifícios, o oficial reparou no corpo do batedor encostado ao muro que ladeava a estrada. Puxou repentinamente pelas rédeas, ergueu a mão e deu uma ordem ríspida. A coluna interrompeu o avanço, e as línguas emudeceram, enquanto os homens tentavam perceber o motivo daquela paragem. O oficial lançou nova ordem, e os quatro homens na cabeça da coluna pousaram os fardos que levavam ao ombro na poeira do caminho e adiantaram-se, aproximando-se cuidadosamente do corpo.
La Rivière pousou a mão no corno da sela e preparou-se para apoiar o pé esquerdo no estribo e subir para a montada. Mas manteve o olhar fixo no inimigo.
Escutou-se um grito de horror, seguido por outro, mas desta vez de fúria. Seguiram-se mais gritos, e o jovem oficial levou o cavalo até junto dos homens. Debruçou-se da sela, pegou no focinho de porco que tinha sido colocado na boca do batedor morto, e lançou-o sobre o muro. Mesmo sem receber ordens para tal, a coluna começou a mover-se, já que os homens queriam perceber o motivo de toda aquela atividade.
La Rivière fez menção de montar, e Thomas lançou-lhe um apelo.
— Esperai. Deixai-os agrupar-se mais antes de atacarmos.
O francês hesitou um momento, preso entre a vontade de carregar sobre o inimigo e o evidente bom senso do conselho de Thomas, até que concordou e se voltou a imobilizar. À medida que mais turcos se apercebiam do ultraje feito ao batedor, os gritos de cólera aumentavam de tom, e mais homens se agrupavam à volta do oficial e junto ao corpo. Thomas pressentiu a tensão crescente nos homens que o rodeavam e nos que se ocultavam atrás das rochas e dos arbustos.
— Só mais um momento — murmurou, enquanto a coluna turca continuava a desagregar-se.
— Abrir fogo! — gritou uma voz à esquerda.
A cabeça de Thomas girou velozmente, a boca aberta para contrariar a ordem, até que percebeu que já não valia a pena.
O ar encheu-se do crepitar da pólvora nos pavios, a que se seguiram pequenas explosões quando os arcabuzes cuspiram as suas chamas e balas. Os turcos tinham-se voltado, alarmados ao ouvirem aquela ordem, e já alguns tombavam no meio da turba, ao serem atingidos pela descarga de projéteis de chumbo.
— À carga! — gritou La Rivière.
Thomas, Richard e os outros escudeiros saltaram para as selas, desembainharam as espadas e esporearam os cavalos a caminho da estrada. À esquerda, Thomas viu Von Harsteiner a bater com a espada na garupa do seu cavalo, enquanto liderava os cavaleiros colocados nesse flanco. O alemão berrava incoerências enquanto carregava, e Thomas percebeu que tinha sido ele a dar a ordem precoce de fogo. Entre os dois flancos, os combatentes apeados largaram os arcabuzes, pegaram nas suas armas de mão e lançaram-se em corrida contra os turcos, ainda atordoados pelo ataque e incapazes de reagir. Ao chegarem à estrada, os dois grupos de cavaleiros fizeram rodar as montadas e precipitaram-se sobre o inimigo. Agarrando as rédeas com a mão esquerda, Thomas debruçou-se para a frente e baixou a ponta da espada, o braço pronto para golpear, enquanto se aproximava da confusão de vestes largas e caras aterradas aprisionadas na estrada. Os inimigos mais próximos entraram em pânico ao ver os cavaleiros couraçados, e viraram-se para fugir. Alguns saltaram sobre o muro, outros correram para o meio dos camaradas, aumentando a confusão. Uns poucos mantiveram as posições, de escudos erguidos e espadas prontas.
Thomas escolheu um homem bem no seu caminho, e quando a montada o derrubou, golpeou-o, cravando-lhe a lâmina no ombro e puxando-a com força, antes de atingir a cabeça envolta num turbante e sentir o embate que fez o outro tombar desfalecido no solo. Os ouvidos de Thomas encheram-se do retinir dos choques das lâminas, do resfolegar dos cavalos e dos gritos e imprecações dos combatentes, que matavam e morriam. Viu Richard, de dentes cerrados, lançar o cavalo contra a massa de turcos enquanto volteava a espada e desferia golpes à direita e à esquerda, fazendo saltar gotas vermelhas pelo ar, sobre o flanco do cavalo e o metal polido da armadura.
Notou um relampejar de aço à sua direita e virou-se mesmo a tempo de erguer o braço e bloquear o golpe de cimitarra que se dirigia ao seu ombro. O retinir das lâminas soou-lhe aos ouvidos e o choque do impacto propagou-se ao longo do braço até ao ombro. Cerrou os dentes enquanto afastava a cimitarra e cravava o olhar num guerreiro inimigo, alto e forte, de cota de malha e elmo cónico. Olhos escuros contemplavam-no com ódio dos dois lados de uma guarda ornada, e o turco fungou, frustrado, enquanto recuperava a posição da lâmina e a levava atrás para lançar outro golpe na tentativa de derrubar Thomas. Apoiando-se nos estribos, o cavaleiro inglês dirigiu a ponta da espada contra a garganta do outro, com toda a força. A lâmina atingiu o homem por baixo da barba e acima da cota de malha, rasgando os tecidos, cartilagens e vasos sanguíneos até irromper pelos músculos da parte de trás do pescoço. Os olhos do turco arregalaram-se de choque e agonia, e os lábios abriram-se numa careta, enquanto Thomas puxava a espada. Enquanto o sangue espirrava da ferida, o homem deixou cair a espada e levou uma mão ao pescoço, tentando em desespero conter o fluxo. Mas foi empurrado para o lado pelos seus camaradas, que tentavam ainda escapar aos cavaleiros que destroçavam o desorganizado magote de tropas inimigas.
Apesar de os turcos serem mais numerosos que os atacantes, a surpresa e a ferocidade do assalto tinham destruído a confiança e a sobranceria que exibiam um momento antes, e eles quebraram as fileiras e fugiram em desalinho, trepando os muros, ou tentando passar pelos cavaleiros e fugir pelo caminho. Uma dúzia dos seus camaradas jazia já sobre os sulcos da estrada, a sangrar no meio da poeira. Só um dos homens de La Rivière tinha sido ferido por um golpe de pique na anca, que o tinha levado a coxear para trás do muro, onde mantinha uma mão a apertar a mancha de sangue que se lhe espalhava pelo gibão. O oficial turco e alguns dos seus homens ainda enfrentavam a pé firme os atacantes, e Thomas designou-o com a espada.
— Apanhem-no! Apanhem-no e acaba-se a coisa.
Richard trocou um olhar com ele e assentiu, antes de esporear o cavalo enquanto se debruçava sobre a sela, com a espada pronta a desferir golpes. Um punhado de soldados inimigos rodeava o oficial, prontos a protegê-lo com as suas próprias vidas. A montada de Richard embateu contra eles, fazendo cair dois homens enquanto ele feria um terceiro, decepando-lhe a mão e abatendo-o com um golpe profundo no pescoço. Thomas incitou também a sua montada, passando pelo escudeiro até enfrentar o oficial inimigo.
— Rende-te! — indicou. — Rende-te, ou morres!
Quer o turco compreendesse o francês ou não, percebeu claramente a exigência, e cuspiu com desprezo enquanto enterrava as esporas no flanco do seu cavalo e o conduzia contra o de Thomas. Mas o cavalo do turco era mais leve, e praticamente não fez recuar a montada de Thomas quando os peitos dos animais chocaram. A lâmina do oficial inimigo desferiu um golpe sobre Thomas, mas escorregou ao longo da guarda do ombro. Thomas ripostou de imediato, mas o outro aparou o golpe antes que os cavalos se cruzassem. Os dois homens puxaram as rédeas e viraram-se para dar continuação ao duelo. O turco conseguiu fazer rodopiar a montada mais depressa, e voltou a dirigir a espada contra a cabeça de Thomas. Não havia tempo para aparar o golpe, e Thomas viu-se obrigado a atirar-se para o lado. A lâmina cortou o ar com um assobio, e o inglês tentou recuperar uma posição ereta sobre a sela.
Avistou Richard a manobrar no outro flanco do turco e avisou-o.
— Deixa-o! Este é meu!
Richard hesitou, mas acabou por puxar pelas rédeas. O cavalo baloiçou a cabeça ao ver-se detido de forma tão abrupta. Thomas mal teve tempo para levantar a espada antes de ver novo golpe a dirigir-se contra o seu elmo. A cimitarra chocou com a espada junto ao punho, e Thomas instintivamente torceu o pulso para prender a lâmina do adversário. Deu um torção violento e conseguiu arrancar a cimitarra das mãos do oficial turco, deixando-a tombar para o solo antes de fazer avançar o cavalo e apontar a ponta da espada à garganta do outro.
— Rende-te!
Por momentos os olhos do turco faiscaram em desafio, e Thomas pensou que teria mesmo de o abater. Mas os ombros do homem acabaram por descair, e ele baixou a cabeça, derrotado.
— Richard, trata dele. Precisamos dele para o interrogar, mas se ele tentar escapar, não hesites em abatê-lo.
O escudeiro anuiu e ordenou a um dos soldados de La Rivière que lhe atasse as mãos atrás das costas, enquanto ele mantinha a espada apontada à cara do homem. Thomas reposicionou-se na sela e olhou em volta. Havia mais de uma vintena de inimigos no solo; alguns deles estavam apenas feridos e suplicavam pelas suas vidas, antes de serem calados pelos mercenários italianos. Mais longe, os sobreviventes da coluna estavam espalhados em fuga pelos campos. Eram perseguidos por La Rivière e os outros cavaleiros, bem como por muitos dos escudeiros, todos a soltar gritos excitados enquanto alcançavam e matavam as suas presas.
— Os loucos, perderam a cabeça — resmungou Thomas, irritado, enquanto embainhava a espada.
No instante seguinte ouviu um som estridente e olhou para leste, onde surgia um numeroso grupo de cavaleiros, talvez uns trinta, que se aproximava da estrada. Alguns dos cavaleiros e escudeiros detiveram-se ao ouvir aquele som, e os mais atentos aperceberam-se de imediato de que corriam o risco de ver o caminho para Birgu cortado. Viraram as montadas e galoparam de volta à estrada. La Rivière e dois dos escudeiros estavam muito mais adiantados, e reagiram mais lentamente. Thomas apercebeu-se do grave perigo que corriam. Mas tinha de pôr em segurança o resto dos homens. Respirou fundo e levou a mão à boca.
— Recuar! De volta a Birgu! Imediatamente!
Os mercenários e cavaleiros obedeceram de imediato, e começaram a deixar o local da emboscada, pondo o terreno irregular entre eles e os recém-chegados. Thomas virou-se para Richard , que continuava a guardar o oficial já amarrado.
— Leva-o daqui.
— E vós?
— Já vos sigo. Vai!
Richard anuiu relutantemente, e embainhou a espada antes de pegar nas rédeas do cavalo do turco e o levar na direção de Birgu. Passaram pelo ponto em que fora montada a emboscada e seguiram os outros cavaleiros. Thomas deixou-se ficar, observando com ansiedade a forma como La Rivière e os escudeiros, sem qualquer possibilidade de fuga, se dirigiam a uma pequena crista, onde deram meia-volta para enfrentar a muito mais numerosa cavalaria turca. O Sol já tinha subido acima do horizonte, e os seus raios refulgiam nas armas e armaduras polidas dos turcos, dando-lhes um tom avermelhado enquanto carregavam pela crista e rodeavam os três homens. Thomas avistou uma última vez o cavaleiro francês, antes de as espadas se acalmarem e a poeira começar a assentar.
Com um sentimento de derrota no espírito, Thomas fez rodopiar o cavalo e esporeou-o, retomando a estrada para Birgu.
26
–Trinta e cinco mil homens, dizeis? — La Valette cofiou lentamente a barba enquanto tentava digerir as informações que o coronel Mas obtivera no interrogatório. O Grão-Mestre encontrava-se com os seus oficiais mais próximos no bastião designado para os cavaleiros de língua castelhana, uma das mais fortes posições defensivas na linha de fortificações que protegia Birgu. Thomas tinha sido ali chamado nas primeiras horas da manhã. Durante a noite, os turcos tinham-se movimentado, estabelecendo um vasto arco em torno de Birgu e Senglea; o progresso das tropas inimigas era revelado pelas tochas que ardiam ao longo da paisagem, e pelo vociferar de ordens que se espalhava pelas trevas. A alvorada tinha mostrado o inimigo em formação para lá do alcance dos canhões montados nos bastiões das muralhas.
À medida que a luz pálida se derramava sobre a ilha, os soldados turcos tinham-se ajoelhado num movimento quase síncrono, em resposta aos chamamentos dos seus imãs, e o som das suas orações cantadas propagava-se facilmente até aos ouvidos dos que observavam a cena nas muralhas que defendiam os dois promontórios paralelos. O espetáculo da horda que se erguia contra eles tinha silenciado as línguas dos defensores, que olhavam com espanto e apreensão para as vestes coloridas e as armas reluzentes nas fileiras densas que cobriam todo o cenário. No terreno mais elevado por trás das formações de infantaria, Thomas via os engenheiros turcos já a preparar o terreno para a instalação de baterias de artilharia. Cada uma das armas tinha sido penosamente levada à mão das praias onde tinham sido desembarcadas no dia anterior. Dali a pouco estariam em posição, preparadas para bombardear os defensores, embora desse a ideia de que a sede de conquista e a arrogância do inimigo o poderiam levar a tentar trepar às muralhas sem esperar pelos disparos dos seus canhões.
— Sim, senhor — confirmou Mas, em tom sombrio. — E ainda aguardam a chegada de outra força sob o comando de Dragut, com cerca de dez mil homens.
Os outros membros do conselho remexeram-se nervosos, ao escutar o nome do grande líder dos corsários. Os navios de Dragut tinham levado o terror e a destruição a portos e navegadores por todo o Mediterrâneo. Dezenas de milhares de pessoas tinham sido levadas das suas casas e vendidas como escravas. Os corsários que o seguiam eram homens experientes, prontos a combater com a mesma ferocidade que a exibida pelo mais devoto dos fanáticos muçulmanos, embora o fizessem pelo saque em vez de pela fé.
— Com o Dragut, serão então quase quarenta e cinco mil homens — prosseguiu Mas. — Mais cerca de cem canhões de vários calibres, uns mil engenheiros e inúmeras máquinas de cerco. E da frota que os trouxe, pelo menos uns duzentos são navios de combate. Pelo que o inimigo não se limita a ser-nos superior em número, também o é relativamente a qualquer força que Don Garcia possa reunir na Sicília.
— Qual é a mais recente contagem dos nossos efetivos? — quis saber La Valette.
Mas consultou rapidamente as suas notas.
— Temos menos de setecentos cavaleiros, mil e duzentos mercenários espanhóis e italianos, e os quinhentos homens que guarnecem as galeras. Talvez uns duzentos voluntários gregos e sicilianos, e noventa escudeiros. Depois, temos a milícia. Tivemos alguma sorte nesse campo, as últimas contagens apontam para um total de mais de cinco mil homens em armas, bastante mais do que esperávamos. Sei bem que tendes algumas reservas quanto a eles, senhor, mas, ao que vi, estão determinados a defender as suas casas e famílias. Penso que nos surpreenderão pela positiva.
— Veremos — respondeu o Grão-Mestre, sem ocultar as dúvidas que sentia.
— Também há os escravos das galés — concluiu Mas. — Não combaterão por nós, claro, mas podemos empregá-los nas reparações das muralhas de Birgu e Senglea, e nos trabalhos para melhorar as defesas. — Houve um breve silêncio, até que Thomas falou.
— A proporção é só de sete para um. Até tenho pena dos turcos.
Os outros homens sorriram, à exceção de La Valette.
— Há algumas boas notícias — acrescentou Mas. — O oficial que capturámos disse que Solimão dividiu o comando entre o paxá Mustafa e o paxá Piyale. O primeiro controla todas as forças na ilha, enquanto o segundo comanda os navios. E ao que parece, já estão em desacordo quanto ao plano de ação. Quando chegar o Dragut, haverá três opiniões.
— São de facto boas notícias — admitiu o Grão-Mestre. — Suspeito porém que a reverência que todos têm pelo Dragut significará que será ele a tomar o comando global do cerco, e isso aumentará consideravelmente a ameaça. Trata-se do mais terrível oponente que a Ordem alguma vez enfrentou. Dragut é um excelente líder, e uma inspiração para todos os que o seguem.
— Senhor, admirai-lo? — indagou Mas.
— Evidentemente. — La Valette sorriu brevemente. — Não sou cego às suas qualidades guerreiras, mesmo não passando ele de um pirata que segue uma fé falsa. Não fosse o facto de ter nascido no sítio errado, e orgulhar-me-ia de combater a seu lado. — A expressão endureceu. — No entanto, sendo meu inimigo, farei tudo o que estiver no meu poder para o destruir sem piedade. Entretanto, rezemos para que a decisão do sultão de dividir o comando contribua para a derrota da sua causa. O prisioneiro revelou mais alguma informação de valor durante o interrogatório?
— Não, morreu antes disso, infelizmente.
— Uma pena. Mas pelo menos temos uma ideia mais precisa das forças com que nos confrontamos. — La Valette virou-se para Thomas. — Excelente trabalho na captura do oficial, Sir Thomas.
— Obrigado, senhor. Embora nos tenha custado a perda de um cavaleiro. Espero apenas que La Rivière e os que o acompanhavam tenham combatido até à morte. Se isso não sucedeu, é muito provável que o inimigo tenha agora tantas informações sobre as nossas forças e fraquezas como nós temos sobre as deles.
— Assumindo que La Rivière cedeu à tortura — interveio Stokely. — Penso que subestimais as suas qualidades. Alguns cavaleiros são mais fiéis aos seus juramentos que outros. La Rivière é um dos primeiros.
Thomas lutou consigo mesmo para manter uma expressão neutra perante aquele comentário, e respondeu em tom calmo.
— E eu penso que subestimais as qualidades dos verdugos do inimigo. Os Turcos são tão capazes na arte da tortura como na do cerco. E nenhum homem é imune à tortura. É apenas uma questão de encontrar o seu ponto fraco e de lhe quebrar o espírito. Mais cedo ou mais tarde, La Rivière falará. A nossa única esperança, se foi de facto capturado vivo, é que não revele demasiadas informações.
Instalou-se o silêncio entre os oficiais, enquanto contemplavam as cerradas fileiras de turcos que por fim completavam as suas orações e se punham de pé, enchendo de imediato o ar com o som ritmado dos tambores e címbalos, e as notas estridentes de trombetas, enquanto as armas eram erguidas e agitadas na direção das muralhas. O faiscar caótico dos reflexos da luz solar nas armas dos turcos fez lembrar a Thomas o reluzir do mar, como se o exército inimigo fosse uma onda gigantesca prestes a quebrar sobre uma margem rochosa.
— Estão mesmo decididos a atacar sem mais delongas — decidiu Thomas. Voltou-se para avaliar a linha disposta na muralha. Os dois bastiões ocupados por membros das línguas de Castela e Auvérnia eram as únicas fortificações que tinham sido concluídas. Os outros bastiões não tinham sido reforçados, e não conseguiriam aguentar o fogo dos canhões inimigos. O mesmo sucedia com vastas extensões da muralha entre os bastiões.
— Olhem para ali. — O coronel Mas apontou para as linhas turcas. Um grupo de oficiais de fina indumentária, com turbantes de cor turquesa, tinha-se destacado alguns passos à frente da linha de batalha. Atrás deles marchava uma companhia de janízaros, cujas plumas de avestruz encimando os altos chapéus davam a impressão de uma nuvem em movimento. O mais adiantado deles conduzia um homem de braços firmemente amarrados atrás das costas. Tropeçava enquanto era arrastado, e Thomas apercebeu-se de que estava descalço e nada mais trazia vestido do que os restos do colete vermelho com a cruz branca que tornava identificável um membro da Ordem. O cabelo louro pendia-lhe até aos ombros, e não podia restar qualquer dúvida sobre a sua identidade.
— É o La Rivière — murmurou Stokely. Deitou uma olhadela a Thomas e comentou com antipatia evidente. — Tínheis razão, ao que parece.
Os oficiais observaram a procissão que avançou ao longo das linhas inimigas, paralelamente às defesas. De vez em quando os oficiais turcos interrompiam a marcha e apontavam para Birgu enquanto questionavam o prisioneiro.
O coronel Mas abanou a cabeça.
— Não se devia ter deixado capturar com vida.
— Talvez não tenha tido oportunidade para outra opção — considerou Thomas. — Foi surpreendido, e eles queriam com toda a certeza apanhar um dos nossos cavaleiros vivo, tanto como nós queríamos capturar um dos oficiais deles.
— Ainda assim — resmungou o coronel —, era seu dever não cair vivo nas mãos do inimigo.
Thomas encolheu os ombros.
— Podeis culpá-lo como desejardes, a verdade é que já não há nada a fazer.
— Como é óbvio — confirmou Stokely, de novo com desdém.
O coronel Mas virou-se para La Valette
— Senhor, devíamos ordenar aos nossos canhões para dispararem sobre eles. Temos de calar o La Rivière antes que os turcos lhe possam extrair mais informações. E ao mesmo tempo talvez conseguíssemos abater alguns dos mais importantes oficiais inimigos.
La Valette semicerrou os olhos e ponderou, antes de abanar a cabeça.
— A distância é demasiado longa, e temos de poupar pólvora. Além disso, creio bem que La Rivière nos poderá prestar ainda algum serviço útil.
— Senhor?
— Observai-o.
O grupo inimigo continuava a examinar as defesas de longe. Por fim fizeram alto em frente aos bastiões ocupados pelos cavaleiros de Castela e de Auvérnia, e deu-se uma longa troca de palavras entre os turcos e o prisioneiro. Foi nesse momento que Thomas compreendeu aquilo a que o Grão-Mestre se referia.
— O La Rivière está a convencê-los a atacarem as nossas posições mais bem protegidas.
La Valette anuiu.
— Assim penso.
Thomas considerou a situação por momentos antes de prosseguir em voz baixa.
— Assim que descobrirem a verdade, vingar-se-ão nele.
— Esperemos então que a vingança e o sofrimento que virá sejam breves. — O Grão-Mestre virou-se para Mas. — Se La Rivière está a fazer aquilo que penso, temos de apoiar o embuste. Leve cinco companhias de arcabuzes para o exterior e avance o suficiente para provocar uma reação do inimigo. Devem trocar fogo, mas não se deixem envolver numa refrega mais intensa. Se o inimigo contra-atacar em força, devem recuar de imediato.
O coronel hesitou brevemente antes de responder.
— Senhor, será isso prudente? Já temos tão poucos homens... Haverá baixas por certo.
— Nada podemos para o evitar. Mas temos de fazer o inimigo pensar que é o resto da linha que está bem defendida, e que há de facto poucos homens a guarnecer estes bastiões. Se lançarem um ataque em força contra este local, sofrerão pesadas baixas e, com alguma sorte, ficarão convencidos de que todas as nossas defesas são tão fortes como esta. — Deu umas palmadas na espessa muralha que rodeava a ameia. — Vá, coronel, e prepare os homens. Pode comandá-los em pessoa. Que tenham o batismo de fogo. Verifique como se comportam debaixo do fogo inimigo. Acalmará os seus corações e dar-lhes-á confiança, verá.
— Será feito como ordenais, senhor. — O coronel baixou a cabeça.
Afastou-se e desceu a escadaria. La Valette e os outros voltaram a dar atenção ao inimigo, a tempo de ver o pequeno grupo de oficiais a afastar-se dos bastiões e percorrer a linha de batalha. Deu-se uma breve pausa, até que o barulho dos tambores, címbalos e metais inimigos cresceu até se tornar uma cacofonia que ecoava nas muralhas de pedra de Birgu e do forte de S. Miguel. Em resposta, escutou-se o rufar de tambores por trás das muralhas, e os portões abriram-se para deixar passar o coronel Mas e a primeira companhia de arcabuzes. Ao vê-los surgir, os defensores soltaram uma aclamação, e as cores da Ordem, bem como os estandartes dos mercenários, esvoaçaram ao sabor da leve brisa, agitados pelos porta-estandartes. O coronel Mas e a sua pequena força atravessaram a ponte levadiça sobre o fosso que corria ao longo da muralha. Os atiradores tomaram posição entre as ruínas dos edifícios e dos muros baixos que tinham sido demolidos à pressa nas semanas anteriores.
Thomas observou enquanto os homens carregavam e preparavam as armas, soprando nos pavios fumegantes para garantir que não se apagavam, prontos a fazer fogo assim que a ordem para tal fosse dada.
Assim que viram os inimigos armados a sair pelo portão, os turcos responderam na mesma moeda. Uma linha de janízaros destacou-se da formação inimiga, os longos canos apoiados nos ombros enquanto avançavam de forma confiante na direção da cidade. O coronel Mas subiu a uma pilha de escombros em plena vista do inimigo e deixou-se estar calmamente a vigiar o seu avanço, uma mão na perna, a outra no punho da espada. Thomas não pôde deixar de admirar a calma do oficial do corpo de mercenários.
Permitiu ao inimigo avançar até bem dentro do alcance dos defensores antes de soltar a ordem para abrir fogo. O ruído das pequenas explosões rolou ao longo da linha de atiradores, dispostos nos abrigos improvisados pela base da muralha. Pequenas línguas de fogo saltaram dos canos das armas e foram de imediato engolidas em espessas nuvens de fumo vindas da combustão da pólvora.
Thomas viu vários janízaros cair ao serem atingidos pelas pesadas balas de chumbo, e poeira e estilhaços de rocha a voar nos pontos onde balas perdidas embatiam no solo. Os arcabuzeiros começaram imediatamente a recarregar as suas armas. Os janízaros hesitaram brevemente, até que um dos oficiais brandiu a cimitarra e lhes ordenou que retomassem o avanço. Prosseguiram, mas agora já progrediam ligeiramente agachados, tentando fornecer alvos de menor dimensão aos atiradores cristãos. O coronel Mas deu ordens para os homens dispararem à vontade, e os mais afoitos dispararam imediatamente, muito mais depressa que outros dos seus camaradas; em pouco tempo os disparos sucediam-se sem cadência.
Uma vintena de janízaros jazia pelo solo, alguns a debaterem-se ou a tentar rastejar de volta às suas fileiras. Quando os seus camaradas chegaram a uns cem metros dos inimigos, o oficial deu ordem de alto e de responder ao fogo. Foi a última ordem que deu, já que um disparo o atingiu na cabeça, fazendo-lhe explodir o chapéu branco em milhentos fragmentos ensanguentados. O corpo entrou em convulsões e ele caiu de costas, de braços abertos, dando alguns pontapés no ar até se imobilizar. Os seus homens, porém, obedeceram à ordem, apoiando os longos canos das suas armas em varas de madeira e apontando cuidadosamente antes de abrirem fogo.
Apesar de as suas armas serem mais precisas, de eles estarem mais bem treinados e conseguirem carregar e disparar mais depressa do que os seus oponentes, os turcos estavam em campo aberto e constituíam alvos fáceis. Do bastião, dava a Thomas a sensação de que por cada homem de Mas que caía, havia pelo menos três inimigos a serem abatidos. O coronel percorria a retaguarda da linha, sempre a encorajar os homens, e por algum milagre conseguia evitar todos os disparos inimigos, que não poucas vezes atingiam pedras próximas ou faziam levantar poeira e cascalho mesmo junto aos seus pés. Enquanto a troca de fogo prosseguia, Thomas reparou que a linha inimiga tinha avançado em frente aos bastiões de Castela e Auvérnia, e em redor todos os defensores se preparavam já para o combate. Dúzias de arcabuzes carregados estavam encostados à parede interior das muralhas, prontos a serem usados. Jovens malteses, que tinham sido treinados para recarregar as armas, estavam preparados para assumir as suas tarefas. Mais abaixo, na estrutura do bastião, Thomas ouvia o ruído dos canhões a serem levados até às estreitas aberturas por onde disparavam, a partir das casamatas. Homens esperavam com piques, prontos a acorrerem e usarem as longas armas para empurrar para longe qualquer tentativa de usar escadas de assalto para trepar aos bastiões ou à secção de muralha entre eles.
Ao olhar em volta, Thomas reparou que o Grão-Mestre observava os preparativos inimigos para o ataque com uma estranha satisfação.
Soaram notas estridentes de trombetas; era o sinal, e os turcos lançaram um profundo urro coletivo e precipitaram-se pelo terreno aberto, dirigindo-se diretamente aos bastiões. Thomas notou que não havia entre a massa dos que carregavam qualquer traço dos chapéus identificativos dos janízaros. Era evidente que o comandante inimigo resolvera poupar as suas tropas de choque, e confiar o primeiro assalto às tropas menos valiosas, os sipaios e os fanáticos religiosos vestidos de roupas brancas. Enquanto eles avançavam, a troca de fogo à frente do portão principal prosseguiu sem interrupções, como se fosse uma batalha separada. O coronel Mas deitou uma olhadela rápida à horda em correria e voltou a dedicar toda a sua concentração à refrega que se desenrolava à sua frente.
No bastião, La Valette observou o avanço inimigo com uma calma desconcertante, que se foi transmitindo aos oficiais que o rodeavam. Tinham sido previamente colocados no solo indicadores da distância, e assim que os turcos alcançaram os marcadores mais distantes, os canhões nas casamatas abriram fogo, com uma explosão ensurdecedora que pareceu rasgar o ar. Thomas sentiu o empedrado a tremer por baixo das botas, e os ouvidos zuniram com o troar das bocas de fogo. O fumo subiu, cobrindo as muralhas, e entrou pelas gargantas dos homens ali colocados, quase os sufocando. À medida que o fumo se dispersava, Thomas viu que a metralha com que os canhões tinham sido carregados tinha aberto grandes clareiras nas fileiras inimigas, derrubando dez ou mais homens com cada tiro, transformando os corpos em retalhos ensanguentados.
Os turcos não vacilaram nem por um momento, e prosseguiram no avanço, passando sobre os cadáveres dos camaradas caídos na sua ânsia de atingir o fosso na base dos bastiões e da muralha entre eles. Ao passarem pela segunda linha de estacas de marcação, os arcabuzes entraram em ação, juntando os seus disparos aos cones de metralha que continuavam a jorrar das casamatas. Enquanto as chamas e o fumo se espalhavam sobre as defesas, as fileiras turcas começaram a sentir o impacto do fogo dos defensores, mas prosseguiram, saltando sobre os homens caídos e lançando gritos de guerra, as vestes a esvoaçarem.
— Deus! — exclamou Thomas, incrédulo. — Não sabem o que é o medo.
Os primeiros homens chegaram à orla do fosso e escorregaram ou saltaram pela íngreme face até ao fundo. Havia nos bastiões canhões preparados e alinhados com o fosso, e entraram então em ação, lançando projéteis pesados sobre os turcos que se atarefavam a tentar escalar a escarpa que levava à base da muralha. Thomas avistou apenas algumas escadas de assalto, e abanou a cabeça perante o disparate que era lançar um assalto daquele género antes de haver mais escadas disponíveis. O ângulo de tiro era agora tão abrupto que já havia homens de pé no parapeito para disparar sobre os inimigos que estavam quase diretamente por baixo deles.
— Dizei a esses idiotas para descer dali, antes que alguém os mate! — ordenou La Valette.
Stokely correu para o bastião e gritou a ordem. Só alguns dos homens mais próximos tinham consciência do que faziam e recuaram de pronto. Outros estavam demasiado empolgados, e limitavam-se a descarregar as armas e a entregá-las para serem recarregadas enquanto recebiam outras. Depressa um deles foi atingido, rodopiando ao receber uma bala vinda das fileiras turcas. Cambaleou sobre o parapeito, perdeu o equilíbrio e mergulhou para o fosso lá em baixo. Outro homem caiu antes que os soldados percebessem o perigo em que se colocavam, e recuarem rapidamente para uma posição protegida. Passaram então a lançar por cima do parapeito pesadas pedras, ajudados na tarefa pelos miúdos que tinham estado antes a recarregar os arcabuzes. A chuva de projéteis provocou muitas cabeças partidas e ossos fraturados nos turcos amontoados no fosso.
Apenas uma escada foi lançada contra a muralha, e quando os turcos começaram a trepar por ela, Thomas reparou que o cano de um canhão no outro bastião mudou ligeiramente de posição; o cano foi de repente envolvido por um jato de chamas e uma nuvem de fumo, e a escada, e os que a ocupavam, foram desintegrados e transformados em pedaços de madeira e carne.
Foi o ponto de viragem. Os homens no fosso hesitaram um momento, e então o primeiro resolveu recuar, no que foi imitado por outros, e a necessidade de escapar àquela carnificina propagou-se como uma doença contagiosa. Pouco depois, o assalto estava terminado, já que a horda corria agora em sentido contrário pelo campo aberto, tentando alcançar a segurança das suas posições originais. Os defensores responderam com urros de prazer, triunfo e gozo enquanto assistiam à debandada, embora alguns continuassem a disparar até que o último dos inimigos se colocou fora do alcance das armas. Em simultâneo com a retirada das forças envolvidas no assalto principal, também os janízaros envolvidos na escaramuça com os homens do coronel Mas recuaram. Recolheram os suportes das armas, colocaram ambos aos ombros e voltaram para trás, juntando-se à retirada geral. Um punhado dos homens de Mas largou os arcabuzes e empunhou facas, lançando-se na perseguição aos janízaros. O coronel não perdeu tempo em chamá-los à atenção, e eles detiveram-se e regressaram à sua linha, embora não escondessem a relutância com que o faziam. Formaram e regressaram ao portão, atravessando a ponte levadiça e recolhendo ao interior das defesas de Birgu.
Thomas contemplou o terreno à frente das muralhas, juncado de inimigos caídos, uns mortos e outros feridos, centenas deles. Do lado cristão, tinham sido perdidos alguns homens na muralha, e cerca de trinta dos que Mas tinha conduzido ao confronto com os janízaros.
— Excelente — comentou La Valette. — O primeiro assalto pertenceu-nos, senhores. O paxá Mustafa pensará duas vezes antes de voltar a tentar algo tão temerário.
Virou-se para observar os homens que ainda celebravam ao longo das muralhas. Os gritos de triunfo foram imitados pelos civis nas ruas próximas, e por toda a extensão das muralhas em torno de Birgu, e pouco depois também pelos defensores de S. Miguel, que tinham seguido os acontecimentos por trás das suas muralhas. Os sinos da catedral começaram a repicar, e várias bandeiras dançaram ao vento sobre St. Elmo, enquanto todos saboreavam a primeira pequena vitória sobre os invasores.
— Deixem-nos celebrar. — La Valette sorriu. — Eles que aproveitem. Dentro em pouco seremos testados com muito maior exigência, portanto devemos apreciar este momento. A seguir, enquanto os turcos fazem os seus preparativos para o cerco, podemos completar as nossas defesas. Venham, vamos regressar a St. Ângelo. — Preparava-se para se voltar e deixar o bastião quando se deteve e apontou.
— O que se passa ali?
Thomas avistou um grupo de janízaros que se tinha destacado à frente das fileiras desordenadas dos seus camaradas. Levavam com eles um poste, que cravaram no solo. Quando este ficou em posição, surgiram outros dois homens, arrastando entre eles La Rivière. Prenderam-lhe as mãos a um anel de ferro ao cimo do poste e arrancaram-lhe o colete das costas, deixando-o nu. Thomas e os outros assistiam impotentes.
— O que lhe vão eles fazer? — indagou Stokely, em voz baixa.
Os dois homens que tinham atado o cavaleiro francês ao poste exibiram varas esguias que tinham ao cinto, e fizeram-nas silvar pelo ar algumas vezes antes de se aproximarem dele.
— Bastonado — adiantou Thomas. — Vão espancá-lo até à morte.
— Com aquelas varas? — contestou Stokely.
— Sim, com aquelas varas — retorquiu Thomas enfaticamente. — Já as vi usadas nos Balcãs. Um homem pode levar horas a morrer, e a sua agonia aumenta a cada pancada.
Os dois janízaros tomaram posição, um de cada lado de La Rivière, e começaram a açoitá-lo com as varas, um de cada vez. O cavaleiro encolheu-se perante os primeiros golpes, até que se aninhou contra o poste, arqueando as costas e tentando manter-se imóvel e sofrer o suplício da forma mais estoica que pudesse. Os turcos acomodaram-se para apreciar o espetáculo, enquanto em Birgu todos contemplavam a cena com horror e desespero. Ao fim de uma hora de punição, os joelhos de La Rivière cederam, e ele ficou dependurado pela corda, a cabeça dobrada para trás e a boca aberta num grito silencioso de dor e tormento.
— Senhor. — Stokely dirigiu-se a La Valette. — Não podemos usar um dos canhões para pôr termo ao sofrimento do nosso irmão?
La Valette abanou a cabeça.
— Vede por vós mesmo. Escolheram bem a posição. Não há qualquer canhão que possamos orientar para aquele local. Nada podemos fazer, a não ser impedir que os nossos homens assistam a isto. Só deverão ficar nas muralhas os que estiverem de sentinela. Ordenai a todos os outros que recolham às suas acomodações. Imediatamente.
Enquanto os homens percorriam as estreitas ruas da cidade, era claro nas conversas que decorriam em voz baixa que a euforia inicial se tinha extinguido perante o espetáculo da tortura infligida a La Rivière. A tarde estendeu-se, e o castigo prosseguiu sob o olhar dos defensores que cumpriam o seu turno de vigia. No bastião de Castela, Thomas deixou-se ficar, ao pé de Stokely e do coronel Mas. O Grão-Mestre e os outros recolheram a St. Ângelo. Em frente às muralhas, pequenos grupos de turcos recolhiam os seus mortos para lhes dar enterro. Os feridos eram levados para o campo, para receberem cuidados. Quando tentaram recolher os que tinham tombado para o fosso, Thomas ordenou a uma das sentinelas que disparasse um tiro de aviso, para os manter afastados de forma a que não pudessem examinar de perto nem a muralha nem os bastiões. O grosso das forças que tinham conduzido o ataque matinal tinha-se juntado à procissão de tropas, vagões e trens de artilharia que seguiam para oeste de Senglea. Uma força de cobertura manteve-se em posição, ocupada a escavar trincheiras no terreno em torno de Birgu e Senglea.
Apesar de todas as atividades do inimigo, a atenção dos defensores era atraída de forma irresistível para a execução de La Rivière, que parecia interminável. Os dois primeiros janízaros já tinham sido substituídos ao começo da tarde, e os seus substitutos prosseguiram num ritmo constante de vergastadas até ao entardecer, altura em que um dos oficiais se aproximou para examinar o estado do cavaleiro. Agachou-se, ergueu-lhe a cabeça e examinou o rosto brevemente, após o que sacou da adaga e lhe cortou o pescoço.
— Por fim. — Stokely fechou os olhos e dobrou a cabeça. — Pobre alma.
O coronel Mas encolheu os ombros.
— Não devia ter-se deixado capturar vivo. Um erro que pessoalmente não tenciono cometer. Nem eu nem nenhum dos nossos homens. Foi uma lição custosa, mas que contribuirá para fortalecer a determinação de cada homem, mulher e criança nesta ilha. Como disse o Grão-Mestre, já não há civis em Malta. E agora todos ficaram a saber mais uma coisa, só há duas alternativas: a vitória ou a morte. — O coronel espreguiçou-se e voltou as costas ao inimigo. — Vou fazer a ronda das sentinelas, e depois informarei o Grão-Mestre de que o suplício de La Rivière terminou por fim.
— Muito bem — aceitou Stokely. — Ver-vos-ei na reunião vespertina.
O coronel baixou a cabeça e desceu as escadas. Só quatro soldados tinham ficado no bastião, para lá de Thomas e Stokely, e mantiveram-se respeitosamente à distância dos dois cavaleiros. Por momentos nenhum dos dois homens falou, enquanto contemplavam o corpo nu ainda amarrado ao poste. Então Stokely pigarreou vagarosamente.
— Ao que soube, haveis avistado Maria.
O sorriso de Thomas apagou-se enquanto se virava para Stokely.
— Haveis falado com ela?
Os lábios de Stokely formaram um sorriso de desdém.
— Oh, sim. A vossa aparição provocou-lhe uma enorme surpresa, mas ela recuperou e ganhou consciência da situação. Ela não deseja voltar a ver-vos, nunca mais.
Thomas sentiu uma pontada de ansiedade no coração, que se desvaneceu ao recordar o rosto dela, o choque evidente quando o vira e depois os traços inegáveis da velha afeição no seu olhar. Tinha a certeza que Stokely mentia.
— Devo confessar que voltar a vê-la foi também para mim uma tremenda surpresa, uma vez que me havíeis dito que ela morrera.
— O que eu disse foi que ela estava morta para vós.
— E eis que agora está bem viva aos meus olhos. Como eu estou aos dela. Onde está Maria?
Stokely encarou-o e respondeu:
— A salvo.
— A salvo? Do inimigo, ou de mim?
— Nenhum de nós está a salvo do inimigo. Mas posso pelo menos salvá-la de vós, Thomas. A essa miséria, posso poupá-la.
— Onde está ela? — inquiriu de novo Thomas, desta vez através dos dentes cerrados. — Dizei-me.
— Não o farei. Rever-vos já lhe perturbou suficientemente o espírito. Felizmente consegui instilar-lhe algum bom senso, e ela aceitou a ideia de que voltar a ver-vos seria uma tolice. Como afirmei antes, Thomas, ela está morta para vós. Não tenteis procurá-la.
— Hei de encontrá-la. — Thomas falou num tom baixo e ameaçador, com as mãos presas aos flancos para evitar a tentação de apertar o pescoço a Stokely. — Juro-vos. Hei de voltar a vê-la.
Stokely encarou-o por um momento antes de falar com uma veemência a que Thomas nunca assistira antes.
— Que Deus condene a vossa alma aos fogos eternos do Inferno, Thomas. Peço por isso com todas as fibras do meu ser. Nada mais mereceis.
Thomas franziu o sobrolho.
— Porque me odiais dessa forma? O que fiz eu para vos prejudicar de tal forma que nada mais sejais capaz de me desejar?
— Odiar-vos? Claro que vos odeio. Era a vós que ela amava. Sempre a vós. — Stokely rangeu os dentes. — Devia ter sido eu. Era eu quem merecia Maria, não vós... E nunca a tereis. E agora, fora do meu caminho.
Thomas enfrentou o olhar malévolo e frio do outro cavaleiro, e só depois deu um passo ao lado, lentamente. Stokely passou por ele e começou a descer as escadas. Thomas escutou os passos a desaparecer à distância, ainda abalado com o veneno que se soltava das palavras do outro. Ao fim de um momento voltou-se para observar à distância um trem de artilharia a fazer o caminho pela extremidade do porto, dirigindo-se à extremidade da península de Sciberras. Uma coisa era evidente. O inimigo tinha sido lesto a afastar a ideia de um assalto imediato a Birgu e Senglea. Lançaria portanto toda a sua força contra St. Elmo, tal como o Grão-Mestre tinha desejado. Os defensores tinham ganho mais algum tempo para melhorar as fortificações das posições mais importantes. As suas possibilidades de sobrevivência ao cerco aumentariam a cada dia que St. Elmo conseguisse resistir. Thomas olhou através do porto na direção do forte. O Sol poente banhava as muralhas num brilho acolhedor, e lançava sombras escuras onde os ângulos do seu desenho em estrela interrompiam a passagem da luz. A brisa tinha morrido, e os estandartes que ornavam o forte não se mexiam. Era uma cena pacífica, considerou Thomas. Algo que os oitocentos homens que constituíam a guarnição do fortim dificilmente voltariam a poder apreciar.
27
O ambiente no albergue nessa noite era de desânimo. Jenkins serviu-lhes uma simples papa de cevada, explicando que já não se encontrava nenhuma espécie de carne fresca nos mercados de Birgu. Para assegurar o futuro, o Grão-Mestre tinha dado instruções para que todos os animais fossem abatidos e a carne salgada e guardada nos armazéns junto à doca. Só um pequeno número de cavalos tinha sido poupado e era ainda alimentado. Com a chegada a Birgu de grandes números de refugiados, tinha sido necessário encontrar novas acomodações para os soldados, e portanto uma dúzia de mercenários italianos tinham sido colocados no albergue inglês, e encontravam-se assim à longa mesa do salão com Thomas, Richard e Sir Martin. A chegada dos mercenários tinha aumentado grandemente a carga de trabalho que Jenkins se via obrigado a suportar, e ele tratava os italianos com mal disfarçados desdém e ressentimento.
Os homens comiam absortos nos seus pensamentos, e imperava o silêncio, já que as únicas conversas se limitavam a um ocasional pedido para passar o pão, o sal ou o jarro de vinho diluído. Os mercenários tinham-se agrupado na ponta da mesa mais próxima da porta, deixando aos três ingleses a extremidade junto à lareira.
— Onde está Sir Oliver? — indagou Richard. — Ele disse que quando os turcos chegassem, viria tomar acomodações no albergue.
Sir Martin encolheu os ombros.
— Ele tem dinheiro suficiente para alugar aposentos próprios. E uma imagem de si mesmo tão inchada que não lhe permite partilhar acomodações com os seus irmãos cavaleiros.
Thomas remexeu a papa.
— Tendes alguma ideia de onde poderá ele ter tomado residência?
— Não — respondeu Sir Martin, e continuaram a comer.
— Foi uma pena o La Rivière — disse por fim Sir Martin. — Era um bom soldado. Nunca hesitou quando surgiu uma oportunidade de ir dar combate ao Turco. Um homem que não nos dá jeito nenhum perder.
Thomas assentiu.
— Mas era também demasiado temerário — contrapôs Richard. — Não tinha de ter morrido, se tivesse mantido presente o objetivo da surtida, que era conseguir prisioneiros.
Sir Martin baixou a colher e apontou-a ao escudeiro, irritado.
— Mais uma vez te esqueces do lugar que ocupas, jovem. Comentários como esse desonram La Rivière. Quando tiveres ganho as tuas esporas, e só nessa altura, poderás então julgar cavaleiros da Ordem. Assim sendo, ele morreu com a sua honra intacta.
— Não discuto tal ponto, senhor, mas o facto é que não precisava de ter morrido de todo.
Thomas suspirou, fatigado.
— Ao menos, ao morrer, prestou-nos um enorme serviço a todos.
— A que propósito? — perguntou Richard. — Tal como Sir Martin apontou, precisamos de bons soldados, e agora perdemos um cavaleiro e os dois escudeiros que morreram ou foram aprisionados ao mesmo tempo.
Thomas empurrou para o lado a malga, antes de se virar um pouco na direção de Richard.
— Foi o La Rivière que teve a presença de espírito para convencer os turcos a atacar a mais forte secção das nossas defesas. Noutros pontos o fosso é muito menor obstáculo, e nem sequer está coberto por canhões. Se os turcos tivessem lançado o assalto na área adjacente ao portão principal, era bem possível que tivessem conseguido escalar as muralhas. Se conseguissem depois manter aí uma testa de ponte e forçassem a entrada em Birgu, a nossa causa já estaria praticamente perdida. Assim, o inimigo foi repelido com grandes perdas na secção que julgava ser a mais fraca das nossas defesas. A experiência fez com que resolvessem escolher o que pensam ser um alvo menos temível. Por isso é que agora marcham contra St. Elmo.
O jovem baixou o olhar e contemplou as mãos.
— Falei sem conhecer todo o contexto das suas ações, senhor.
— O fardo da juventude — comentou Sir Martin. — A seu tempo aprenderás. Se sobreviveres a isto, claro.
Richard olhou de relance para Thomas.
— Senhor, peço desculpa.
— Não me deves nenhuma desculpa — indicou Thomas. — Foi o nome de um morto que atingiste. Mas pode ser que a coragem e presença de espírito de La Rivière tenham alterado o resultado do cerco. Pensa bem nisso, Richard, antes que te apresses a julgar qualquer outro homem no futuro. — Ergueu-se. — Vou para a cama. Senhores, desejo-vos uma boa noite. — Virou-se para a outra ponta da mesa e inclinou o pescoço. — Bem como aos nossos hóspedes.
Os italianos levantaram os olhares quando se aperceberam do gesto e adivinharam o seu significado, respondendo com iguais gestos, antes de voltarem a dedicar-se à refeição e a ocasionais trocas de palavras sussurradas.
Thomas regressou à sua cela e fechou a porta. Sentou-se sobre a cama e tirou as botas e calças antes de se deitar e contemplar o teto. Um fino raio de luar entrava por uma fresta da janela que ficava por cima da cabeceira e projetava um arco de luz de aspeto fantasmagórico na parede oposta. Cruzou os braços por baixo da cabeça e bocejou. Havia dois dias que não pregava olho. A tensão resultante do combate noturno e os acontecimentos do dia pesavam-lhe, e sentia-se mais cansado do que alguma vez se sentira em muitos anos. Cerrou os olhos e respirou calmamente, mas o sono continuou a não vir. Ouviu passos a passarem pela porta e a voz de Sir Martin a protestar vagamente contra os italianos, antes de uma porta próxima se fechar com estrondo.
A sua mente fatigada voltou à breve troca de palavras com Stokely no cimo do bastião. Que papel desempenhava ele no meio daquela história? Teria realmente passado vinte anos a alimentar o azedume de um amante rejeitado? Talvez a inveja e o ciúme fossem tão capazes de se manter graças a migalhas de lembrança como o amor. Seria o ciúme a fazer com que Stokely se recusasse a revelar o paradeiro de Maria, ou seria realmente, como ele proclamava, o desejo dela? Tinha de a encontrar. E depressa.
Escutou-se um leve bater à porta, e por momentos Thomas considerou a possibilidade de o ignorar e fingir que dormia. Mas pensou que qualquer coisa que o afastasse da fixação em Maria seria bem-vinda. Soltou uma imprecação surda e sentou-se.
— Entre!
A fechadura abriu-se e a porta deixou passar Richard, iluminado por uma vela. Do salão vinham ainda sons de conversa, agora mais animada e desabrida, depois de os ingleses terem deixado a mesa.
— Sir Thomas, preciso de vos falar — anunciou Richard.
Jenkins passou por trás do jovem a caminho da cozinha, para voltar a encher o jarro de vinho.
— Nesse caso, entra.
Richard fechou a porta e atravessou o quarto. Pousou a vela junto à cama e pegou na única cadeira existente no compartimento.
— Se é sobre o que se passou há bocado — começou Thomas —, queria apenas lembrar-te de que deves pensar antes de emitires algum comentário. Tens uma certa tendência para esquecer a atitude que se espera de um escudeiro. Mesmo de um escudeiro que já não é um miúdo.
Richard abanou a cabeça.
— Não é nada disso. Tenho um assunto muito mais importante a discutir. — Deitou uma olhadela à porta, como se temesse ser escutado, e depois debruçou-se para Thomas e prosseguiu num tom urgente. — Fui a St. Ângelo hoje, enquanto todos estavam no bastião.
— Fazer o quê?
— Ver o que conseguia descobrir quanto à localização da arca, claro. Disse às sentinelas que as vossas manoplas tinham ficado esquecidas nos aposentos do Grão-Mestre, e que me tínheis enviado para as ir buscar.
— Muito apropriado. E as sentinelas deixaram-te entrar?
— Deixaram. O vosso nome parece ter algum peso, pelo menos por estes dias. Atravessei para St. Ângelo e fingi que as procurava debaixo da vigilância do mordomo de La Valette, disse que vos devíeis ter equivocado, e saí. Foi fácil continuar o caminho pelo interior da fortaleza, até aos armazéns. Foi aí que encontrei o primeiro dos problemas que enfrentamos.
— A sério?
— Os cães do Grão-Mestre. Os canis ficam numa arcada, no caminho para os armazéns. A entrada para as catacumbas fica ao fundo do corredor. Há uma antecâmara, onde estão colocados quatro guardas. São uma dificuldade, claro, mas a verdade é que os cães começaram a ladrar assim que entrei no corredor, o que alertou imediatamente os guardas, evidentemente.
— O que sucedeu então?
— Disse-lhes que me tinha perdido. Dois deles acompanharam-me até à saída da fortaleza e ficaram a ver se me ia embora.
— Esperemos que não achem necessário reportar o incidente. Se despertasses a curiosidade de alguém do pessoal de La Valette, encontrar essa tal arca podia tornar-se muito mais difícil.
— Mais difícil ainda? Nesta altura parece-me já quase impossível. Tendes a certeza que não há outro caminho para as catacumbas? Uma outra entrada, ou uma conduta de esgoto que passe ali por baixo, ou por perto?
— Nada que eu conheça.
Richard franziu o sobrolho. Thomas observou-o por momentos, e coçou o queixo.
— Isto tudo não é um bocado fútil, nestas condições?
— Como?
— Estamos sitiados pelo inimigo. Se o cerco não for levantado, não há qualquer possibilidade de deixar Malta. E se os Turcos conseguirem os seus objetivos, de pouco ou nada servirá conseguir o documento, ou não.
— Tem uma enorme importância — ripostou Richard com firmeza. — Se caísse nas mãos do inimigo, depressa este se aperceberia da sua relevância, e ficaria na posse de um instrumento que lhe daria grande vantagem em qualquer negociação com a Inglaterra.
Thomas sorriu com sarcasmo.
— Que inimigo é esse? Os Turcos, os Católicos, ou a Ordem?
— De facto, todos eles.
— Ah, que pena. Por um instante cheguei a pensar que podias ter encontrado alguma ligação a La Valette e aos que o seguem.
— Oh, há uma ligação, sem qualquer dúvida. Sair desta armadilha vivo. Até que tal suceda, farei tudo o que puder para derrotar o nosso adversário comum. Mas neste caso não se trata de fazer do inimigo do meu inimigo um amigo, Sir Thomas. Se formos descobertos enquanto procuramos o documento, duvido que nos seja mostrada qualquer clemência, assim que La Valette perceber os verdadeiros motivos da nossa presença aqui. O Grão-Mestre tem o seu quê de impiedoso, e por muito que aprecie as vossas capacidades e experiência, não vos perdoará o embuste.
— Pois não. Pelo menos assim o imagino — concordou Thomas. — O perdão é um bem escasso nos tempos que correm.
Richard lançou-lhe um olhar arguto.
— O que quer isso dizer?
— Nada que te diga respeito.
— Claro que me diz respeito. Preciso da vossa ajuda para cumprir a minha missão. Não posso aceitar que vos mostreis distraído dela. Tem alguma coisa a ver com aquela mulher, Maria?
Thomas manteve-se calado por momentos.
— Sabes bem que sim.
— Então será melhor que pratiqueis a discrição. Não posso permitir que ela interfira com os nossos planos.
Thomas sentiu um sopro frio a varar-lhe o coração.
— Isso é alguma ameaça?
— Não, queria apenas recordar-vos do vosso dever para com o país e a rainha. Lembrai-vos disso.
Thomas esticou-se para a frente, até que o seu rosto se aproximou do do escudeiro.
— Richard, vê se percebes isto. Se algum dia magoares Maria, ou agires de forma a colocá-la em perigo, matar-te-ei.
Richard olhou-o sem temor.
— Matar-me-íeis para a salvar? De facto?
Os olhares dos dois homens cruzaram-se por momentos, até que Thomas se deixou cair para trás, desencorajado. A paixão que lhe ardia no coração era bem real, mas a resolução férrea de Richard em executar a missão e cumprir o seu dever davam aos seus sentimentos um ar de autoindulgência e faziam soar a oco as suas ameaças ridículas.
— O que farias tu na minha situação? — indagou.
— Não faço ideia.
— Nesse caso, tenho pena de ti.
— Guardai a vossa pena — silvou Richard. — A vossa ligação imaginária a essa mulher é uma fraqueza. O que pensais poder alcançar? Dizei-me. Quais são os vossos planos? O que tendes para lhe oferecer?
— Uma oportunidade para corrigir o mal que nos foi feito a ambos. Talvez se conseguirmos sobreviver a este pesadelo, possamos ainda ficar juntos, como devíamos ter ficado desde há tanto tempo. O meu plano consiste em saber se ela quererá ser a minha esposa, e levá-la para Inglaterra, onde poderemos envelhecer juntos e em paz.
Richard abanou a cabeça.
— Não há tolo igual a um velho tolo. E qualquer tolo consegue ver que tudo isso são castelos nas nuvens, baseados num grau de afeição e esquecimento dessa senhora que me parece próximo da fantasia. Por certo vedes isso.
— Vejo apenas aquilo que está no meu coração.
— Que vos cega a tudo o resto. Nesta altura, o meu mais fervente desejo seria conseguir levar a cabo as ordens de Walsingham sozinho, mas isso não será possível. Tendes de me ajudar.
— Achas mesmo que sim? — Thomas recostou-se contra a parede. — Se te ajudar a levar a bom porto a tua missão, espero em troca alguma ajuda tua também. — Os olhos de Richard semicerraram-se.
— E o que quereis exatamente que eu faça para vos ajudar?
— Para já, preciso de saber onde está Maria. Os civis que foram evacuados de St. Elmo foram trazidos para aqui. Ela tem de estar algures em Birgu.
— Não duvido. É bem sabido que muitos dos vossos irmãos cavaleiros mantêm amantes, e que alguns até casaram em segredo e vivem como esposos nas suas casas e propriedades na ilha. Hipócritas! — desdenhou Richard. — Tal como todos os que a Igreja de Roma ostenta como modelos de virtude. Hipócritas, do primeiro ao último. — Ergueu um punho fechado, e o tom de voz mostrou bem a emoção amarga que o possuía. — Por Deus, se alguma vez tivesse o poder de os destruir, varria-os da face da Terra.
— A eles? — Thomas fez uma careta de surpresa. — Falas como um cristão, ou como um muçulmano? Porque neste momento não vejo forma de distinguir.
Richard baixou o punho e abriu os dedos.
— Peço-vos perdão — murmurou. — Estou muito fatigado. Não me apercebi do que dizia.
Os dois homens permaneceram em silêncio. Thomas contemplou o companheiro com franca curiosidade.
— O que te fizeram eles, para que odeies estas pessoas de forma tão profunda?
— Nada... Não é nada. Irritei-me por momentos. Nada mais.
— Há muito mais, sim. Por um instante revelaste o que te vai no coração, e avistei nele uma escuridão e uma cólera de que nunca suspeitara. Richard, o que se passa? O que te atormenta a alma de forma tão cruel?
— Basta dizer que não tenho qualquer razão para amar aqueles que servem a Igreja de Roma — retorquiu Richard em tom frio. — Sou filho de católicos que me abandonaram quando era pequeno. Tive uma infância complicada, e pouco carinho conheci antes de entrar ao serviço de Sir Robert, algum tempo antes de me juntar aos agentes de Walsingham. Foi Cecil quem me ensinou que o Catolicismo não passa de uma vil corrupção do Cristianismo, e por isso devotei a minha vida a destruir a sua influência na Inglaterra, e onde quer que o encontre. — Respirava rapidamente, e demorou algum tempo até que a raiva que lhe ardia no ser se acalmasse o suficiente para poder retomar a palavra de forma mais controlada.
— Sir Thomas, se me ajudardes, sim, garanto que vos ajudarei também. Encontraremos a carta, e a vossa Maria, e ambas levaremos desta ilha, de regresso a Inglaterra, se tal for o vosso desejo.
— É-o de facto, e espero ardentemente que também seja o dela.
Richard anuiu.
— Temos então um acordo. Tão bom como se fosse assinado com sangue. — Ofereceu a mão, e Thomas aceitou-a.
— Espero bem que a vossa Maria valha tudo isto — comentou Richard com um sorriso pouco animador.
28
Ao longo dos dias seguintes, o constante arrastar das rodas metálicas dos canhões inimigos propagou-se com clareza sobre as águas do porto. Das muralhas de St. Ângelo, os defensores nada mais podiam fazer do que observar as distantes figuras, quais formigas, a esforçarem-se agarradas a longas cordas para levar as peças de artilharia ao longo do trilho mal marcado que serpenteava ao longo da crista de Sciberras. Os engenheiros turcos tinham-se adiantado às armas, melhorando o caminho e aplanando uma extensa área rochosa a umas centenas de metros de St. Elmo. Depois de preparado o terreno, ocuparam-se a instalar a primeira bateria que iam usar para bombardear o forte. Por fim, um a um, os canhões foram colocados nas suas posições, e longas filas de homens transportaram metralha e barris de pólvora até à bateria, para alimentar as bocas de fogo. Assim que todos os preparativos ficaram completos, a bateria abriu fogo.
O primeiro disparo rasgou a tarde primaveril. Um penacho de fumo soltou-se da posição e elevou-se no ar. Os que observavam do bastião no outro lado do porto concentraram o olhar no forte, e pouco depois avistaram uma pequena explosão de rocha e solo a curta distância das muralhas, logo seguida por outra na face rochosa da base destas. O ribombar dos canhões espalhou-se pela baía, fazendo com que as orelhas dos cães de caça de La Valette se eriçassem, e os animais se levantassem a rosnar de onde tinham estado deitados, aos pés do dono. O Grão-Mestre debruçou-se para eles e afagou-lhes as cabeças aveludadas carinhosamente, tentando acalmá-los.
— Um tiro de sorte — comentou Stokely. — Acertaram à primeira tentativa.
O coronel Mas abanou a cabeça.
— Não vão precisar da sorte para nada. O terreno é rijo. Qualquer disparo que fique curto vai fazer ricochete e atingir o forte quase com tanta força como se fosse um impacto direto.
Thomas concordou. Tinha presenciado alguns cercos nas condições pantanosas dos Países Baixos, onde o terreno mole engolia os projéteis numa nuvem de lama e solo húmido. Só os impactos diretos conseguiam algum resultado. Ali, em Malta, as condições eram perfeitas para os artilheiros turcos.
Um segundo canhão disparou, fazendo com que o pelo nos dorsos dos cães se eriçasse, e eles ladraram com ar feroz. Outros cães espalhados pela cidade juntaram-se ao coro a cada disparo efetuado. La Valette tentou sem sucesso acalmar os animais, até que soltou um suspiro irritado e fez um gesto a um dos servos, ordenando-lhe que os levasse para o canil, situado no corredor que levava à entrada das catacumbas. Richard deu um passo ao lado para os deixar passar, olhando-os com uma hostilidade mal disfarçada.
Os doze canhões da bateria continuaram a fazer fogo à vez, num bombardeamento incessante, e depressa se tornou claro que os turcos tinham decidido concentrar os seus esforços no revelim e nas duas pontas mais próximas do forte em forma de estrela. Enquanto os canhões troavam, os engenheiros já tinham avançado mais um pouco, descendo ligeiramente da crista, e começando a instalar uma segunda bateria; mais adiante, uma série de flâmulas verdes em postes finos marcavam a localização das entradas para as trincheiras de aproximação que estavam a escavar no solo rochoso com picaretas, pás e martelos.
Os poucos canhões montados nas muralhas do fortim disparavam sobre os engenheiros inimigos de cada vez que a trincheira avançava e eles se esgueiravam uns passos para instalar barricadas provisórias, de forma a proteger os homens que escavavam a secção seguinte. Ao mesmo tempo, uma companhia de janízaros abrigava-se por entre as rochas e penedos mais próximos das defesas. Apontavam os longos canos dos seus arcabuzes às muralhas e disparavam sobre qualquer defensor que fosse suficientemente tolo para se expor sobre o parapeito e lhes fornecer um alvo.
Todos os dias, pela alvorada e depois ao entardecer, o Grão-Mestre e os seus conselheiros avaliavam o avanço do inimigo e ficavam desanimados com a velocidade a que as trincheiras turcas caminhavam na direção do forte, apesar de seguirem em ziguezague. A fraca qualidade das rochas utilizadas na construção de St. Elmo era evidente na forma como a face das muralhas se desfazia e na rápida pulverização das pontas dos cantos do forte mais próximos das baterias. Mesmo depois de a luz desaparecer, e durante toda a noite, os canhões turcos continuavam a disparar num ritmo incessante de detonações que eram acompanhadas por acessos de latidos de todos os cães de Birgu.
Os dias que se seguiram foram gastos em melhorias nas defesas de Senglea e Birgu. Tal como tinham feito antes, La Valette e os cavaleiros de maior relevo juntaram-se aos soldados e aos habitantes nas tarefas de aumentar a espessura das muralhas e na construção de uma segunda linha de defesa, aproveitando o espaço e os materiais das casas demolidas para esse propósito. Para lá da muralha, grupos de escravos normalmente usados aos remos nas galeras e o punhado de prisioneiros que tinha sido capturado, agora acorrentados aos pares, tinham sido enviados para aprofundar e alargar os fossos que defendiam as bases dos promontórios. Um esquadrão de arcabuzeiros fora colocado uns duzentos passos mais à frente, para evitar que os atiradores janízaros tentassem atrapalhar o trabalho no exterior das muralhas. A atividade só terminava quando o Sol se punha e os escravos eram enviados para as suas celas, enquanto os restantes recolhiam às suas casas ou acomodações provisórias.
Pouco tempo havia disponível para Thomas e Richard se dedicarem às respetivas missões. E mesmo quando surgia uma nesga, estavam demasiado exaustos para conseguirem fazer mais do que comer, quando regressavam ao albergue. Depois, enquanto Richard se deixava cair na cama e adormecia, Thomas voltava a sair, para assistir à reunião vespertina do conselho de guerra de La Valette, em St. Ângelo. Por enquanto havia pouco mais a discutir do que o progresso nas obras de defesa, e na destruição crescente das fortificações de St. Elmo. Stokely apresentava o relatório sobre os níveis das reservas de alimentos. Não havia qualquer troca de palavras entre Stokely e Thomas fora das reuniões; Stokely arranjava sempre forma de sair primeiro, enquanto o Grão-Mestre se envolvia em prolongadas discussões com Thomas e o coronel Mas sobre a situação militar, olhando pela janela e contemplando o cerco a St. Elmo.
A massa escura do fortim de linhas regulares dominava a extremidade da península de Sciberras. Dela soltava-se um ténue brilho alaranjado que provinha de braseiros e fogueiras acesos no pátio para cozinhar, mas não se viam sinais de sentinelas de serviço nas muralhas. Os atiradores turcos tinham provocado inúmeras baixas até que os defensores tinham aprendido a lançar apenas rápidas miradas sobre o parapeito, ou a procurar posições protegidas onde se podiam deitar e vigiar as atividades do inimigo. Ainda assim, de vez em quando avistava-se um clarão no solo à frente do forte, quando um atirador furtivo disparava sobre qualquer movimento que notara na muralha. Mais atrás, os engenheiros turcos continuavam a escavar as trincheiras à luz das tochas, por trás das suas barricadas móveis. Na crista, onde se situavam as duas baterias, os canhões continuavam o seu trabalho ao longo da noite. Cada disparo rasgava a escuridão com um lúgubre brilho avermelhado que iluminava brevemente a paisagem, onde se viam filas de homens com cestos de vime cheios de rochas e solo, usados para regularizar as paredes das trincheiras; depressa tudo voltava a cair na escuridão — até ao disparo seguinte.
Thomas não conseguia evitar alguma admiração pela forma eficiente como os turcos conduziam o cerco. Nos anos que servira na Ordem, tinha-os combatido sobretudo no mar, e só ouvira relatos das suas capacidades militares noutros teatros da boca dos poucos cavaleiros mais antigos e dos soldados que tinham combatido o exército de Solimão em Rodes. Não havia dúvida de que as suas capacidades técnicas excediam largamente as da maior parte dos exércitos que Thomas enfrentara em solo europeu. Só as armaduras dos cavaleiros, a sua longa experiência de combate e devoção à causa se opunham às numerosas vantagens ao dispor dos Turcos.
No fim do mês de maio, La Valette reuniu os conselheiros ao meio-dia para lhes dar más notícias. O pequeno conselho estava sentado em volta da mesa no seu estúdio. Sobre ela estava um pequeno rolo de papel, ao lado do corno de vaca vazio ao qual tinha sido preso com cera quente. Como era habitual, os cães de La Valette estavam deitados aos seus pés, sob a mesa. Estavam treinados para acompanhar o Grão-Mestre na caça, pelo que estavam acostumados a armas de fogo e já se tinham desabituado de ladrar ao ouvirem o ruído dos canhões inimigos, o que não sucedera com os outros cães de Birgu.
— Recebi um despacho de Don Garcia. Veio por Mdina, e um pastor local que atravessou o porto a nado. O vice-rei informa-me que os reforços de Génova, de que tem estado à espera, sofreram um atraso. — La Valette exprimia-se numa voz recheada de indignação. — Diz-nos Don Garcia que não devemos esperar ajuda antes do fim de julho. E ordena-nos que nos aguentemos até lá.
— Julho? — O coronel Mas soltou um suspiro de frustração. — Mais dois meses? Duvido que St. Elmo aguente sequer mais duas semanas, e depois os turcos virar-se-ão para Birgu. — Fez uma pausa enquanto procedia a um cálculo rápido. — Com as nossas defesas no estado em que estão, devemos esperar a queda de S. Miguel e Birgu no mês seguinte à tomada de St. Elmo. E nesse caso, será aqui, neste forte, que teremos de nos defender. Com alguma sorte, talvez consigamos preservar St. Ângelo até à chegada de Don Garcia e da sua coluna de socorro.
— Seria realmente necessária muita sorte — retorquiu La Valette. Levantou a mão para atrair a atenção do criado que tinha estado junto à porta, em respeitoso silêncio. — Faz entrar o capitão Medrano.
Depois de uma brevíssima espera, um oficial alto, com uma barba aparada, entrou na sala e dirigiu-se para a mesa. Usava uma placa peitoral manchada por alguns encostos às paredes, e Thomas notou que o gibão tinha nódoas de suor e sujidade. Os olhos apresentavam a falta de brilho típica de um homem exausto, e também o cabelo mostrava riscos de poeira dispersos.
— Uma cadeira para o capitão — ordenou La Valette, e o criado apressou-se a trazer mais um assento para junto da mesa. Medrano sentou-se de forma rígida e cruzou as mãos no colo, enquanto o Grão-Mestre o apresentava.
— Duvido que algum de vós tenha encontrado o capitão anteriormente. Chegou uns dias antes dos turcos, e foi de imediato destacado para a guarnição de St. Elmo. É um dos oficiais superiores da La Cerda. Foi-nos enviado para apresentar um relatório sobre as condições que se vivem do outro lado do porto. Capitão? — La Valette convidou-o a dirigir-se ao conselho.
— Sim, senhor — assentiu Medrano. Limpou a garganta e começou a falar no tom claro e direto de um soldado profissional.
— O comandante pediu-me que vos informasse de que a situação em St. Elmo é crítica. O revelim está à beira do colapso, tal como o canto sudoeste do forte. O de sudeste também já não aguentará muito mais. As trincheiras do inimigo estão a menos de cinquentas passos do bordo do fosso, e pensamos que eles farão o primeiro assalto daqui a menos de dois dias. Nada podemos fazer para lhes prejudicar o avanço. Assim que um dos nossos homens surge por cima do parapeito, é abatido por algum janízaro oculto. Só ontem perdemos vinte homens dessa forma. Por causa disso, somos forçados a rastejar ou gatinhar sob a proteção do parapeito, e a tentar construir abrigos com as pedras soltas que colhemos nos montes de entulho que se acumulam aos cantos do forte. O que é também uma atividade arriscada, dado o bombardeamento constante. O moral dos homens está em baixo. Pouco descanso conseguem obter, e têm de estar sempre de armas prontas, não vá o inimigo tentar um assalto súbito. O comandante calcula que o forte poderá resistir mais uns oito dias. Dez no máximo, senhor — concluiu.
— Dez dias, capitão, não chegam — ripostou La Valette. — Vós tendes de nos conseguir mais tempo. Soubemos hoje que não haverá auxílio externo antes de dois meses. Cada dia a mais que consigais aguentar aumenta as possibilidades de que a nossa Santa Ordem prevaleça. La Cerda não pode desistir de lutar.
— O que quer La Cerda de nós? — perguntou Thomas.
— Senhor?
— Presumo que não vos pediu para arriscar a vida numa travessia do porto em plena luz do dia para virdes apenas relatar-nos as condições no forte. Que mais disse ele? O que deseja?
Medrano baixou o olhar de imediato.
— La Cerda pede permissão para evacuar o forte. Afirma que os feridos podem ser colocados em botes enviados deste lado do porto depois de escurecer. Depois disso, haveria uma redução gradual do número de homens nas muralhas. Todas as armas e equipamentos que não pudessem ser removidos seriam lançados ao poço, e as cisternas seriam inutilizadas. Os últimos homens a abandonar o forte acenderiam os rastilhos das cargas dispostas no paiol da pólvora. Nada de útil ficaria nas mãos do inimigo.
— Estou a ver. — La Valette pareceu ponderar. — E quando é que La Cerda tenciona executar esse plano de abandono do forte?
— Esta noite mesmo, senhor, se a ordem for dada.
— Fora de questão! Não haverá qualquer evacuação. Dizei isso a La Cerda quando regressardes ao forte. Ainda têm lá mais de seiscentos combatentes. É impensável que ele considere sequer abandonar a posição, quando o cerco mal começou. É um pedido vergonhoso. Vergonhoso! Ouvistes?
— Sim, senhor. — Medrano baixou a cabeça. Hesitou um momento antes de acrescentar: — Concordo com a vossa opinião.
La Valette olhou de novo para ele, e falou em tom mais calmo.
— Obrigado, capitão. É esse o espírito de que precisamos. Dizei-me, na vossa opinião, o que poderemos fazer para ajudar St. Elmo a resistir durante o máximo de tempo possível?
Medrano pesou a questão por momentos, antes de responder.
— Reforços, senhor. Para acalmar os nervos da guarnição, e para lhes mostrar que não foram abandonados. Enviar-lhes algum dinheiro e vinho também. Não há nada que um soldado mais aprecie do que o peso das moedas na bolsa. Há um armazém vazio onde podem ser montadas umas mesas de jogo, e onde se poderá vender vinho. Isso ajudará a que não pensem constantemente na situação em que se encontram.
— Muito bem, tratarei disso.
O coronel Mas debruçou-se sobre a mesa.
— Há algumas outras medidas que podemos tomar para garantir que o forte aguenta até ao fim. Algumas das armas que temos estado a manter em reserva para a defesa de Birgu. Talvez fosse boa ideia surpreender o inimigo com elas neste momento, senhor.
— Quereis dizer as rodas-de-fogo e os lançadores de nafta?
— Sim, senhor. Se os juntarmos aos projéteis incendiários que La Cerda tem à sua disposição, estou seguro de que poderemos fazer o inimigo pagar um pesado preço por St. Elmo, e aguentá-los por bastante mais tempo do que La Cerda julga possível.
O Grão-Mestre cruzou as mãos e ponderou a sugestão. Por fim, anuiu.
— Muito bem, tratai então de os fornecer ao forte. Quanto a homens, enviaremos mais cento e cinquenta dos mercenários. Há um outro assunto. Como é evidente, La Cerda não está em condições de manter o comando. Temos de o substituir por alguém à altura da tarefa que enfrenta. Entretanto, nomeio-vos, capitão Medrano, como comandante interino. As vossas ordens serão redigidas imediatamente, de forma a que vos possam acompanhar no regresso ao forte. — Fez uma pausa. — Juan de La Cerda serviu fielmente a Ordem no passado, e é um cavaleiro de valor. Aliviado do fardo do comando, tenho toda a confiança nas suas capacidades de combatente. Não pretendo humilhá-lo desnecessariamente. Ficará na guarnição. Capitão, arranjai-lhe um cargo que lhe pese menos.
— Sim, senhor.
— Muito bem, podeis deixar-nos. Esperai enquanto o meu secretário redige as vossas ordens. Depois regressai rapidamente a St. Elmo, antes que La Cerda mine ainda mais a coragem daqueles que liderou até agora.
Medrano levantou-se da cadeira e deixou a sala. La Valette ditou rapidamente os detalhes das novas disposições ao seu escrivão, e assinou a ordem antes que este saísse para passar o documento para as mãos do capitão, que aguardava no exterior.
La Valette suspirou.
— Tenho de encontrar o homem adequado para aquele posto. Um que saiba que caminha para uma morte certa, mas que o faça sem hesitações. Alguém que esteja determinado a fazer com que o inimigo pague por isso o mais alto preço. Não pode ser um exaltado, e sim alguém capaz de escutar a razão e planear as coisas com frieza. Nem pensar noutro La Rivière. E tem ainda de ser um homem que os outros sejam capazes de seguir, com o mesmo sentido do dever, ainda que conscientes da inevitabilidade do desfecho.
— Homens desse calibre são raros, senhor — comentou Mas. — Não me conto entre eles, mas se for esse o vosso desejo, assumirei o comando de St. Elmo.
— Não esperava menos de si, coronel. Mas por agora serve melhor os interesses da Ordem deste lado do porto. Quando St. Elmo cair, como acabará por acontecer, serão necessários todos os esforços dos melhores de nós para aguentar esta posição aqui.
— E porque não Sir Thomas? — sugeriu Stokely. — Tem a necessária experiência militar, e já provou que tem nervos de aço quando capturou aquele oficial turco e trouxe os homens de La Rivière em segurança de volta a Birgu.
La Valette olhou para Thomas com a questão no olhar.
— Bem? Sois voluntário?
Thomas lançou um olhar azedo a Stokely, antes de enfrentar o Grão-Mestre. Não havia no seu íntimo qualquer dúvida quanto à resposta que daria, mas precisava de um momento para aceitar todas as implicações dessa mesma resposta. Nunca mais voltaria a ver Maria. Nunca faria a sua paz com ela, nunca teria possibilidade de ir além disso. E podia estar a condenar ao falhanço a missão de Richard, mesmo que o seu escudeiro fosse poupado ao destino que o esperava se o acompanhasse para St. Elmo. Se o que lhe tinham dito sobre o documento era verdade, as consequências desse falhanço seriam terríveis, lá longe, em Inglaterra. Havia por isso inúmeras razões de peso para dar uma resposta negativa a La Valette, e só uma para aceitar. Aquela que representava tudo o que era pedido a um cavaleiro.
— Senhor, sentir-me-ei particularmente honrado se for aceite a minha oferta de ocupar esse posto.
La Valette enfrentou-lhe o olhar por um momento, e depois sorriu.
— Sir Thomas, haveis passado o teste. Porém, vejo-me obrigado a declinar a vossa oferta, apesar dos poderosos argumentos apresentados por Sir Oliver. Não tenho dúvidas sobre as vossas capacidades para o comando do forte, mas por agora preciso de vós ao meu lado. Este comando terá de ser entregue a outrem. Vou pensar nesta questão. O capitão Medrano servirá por alguns dias. É um bom homem, embora não seja o mártir dedicado que se torna necessário. Bom, por agora há trabalho a fazer, aqui em Birgu. Declaro encerrada esta reunião.
— Senhor, há ainda outro assunto — interveio Stokely. — Tal como discutimos anteriormente.
Uma expressão de piedade atravessou a face do Grão-Mestre, antes de anuir.
— Claro. Obrigado por mo recordardes, Sir Oliver.
La Valette deu um estalo com os dedos, e num instante Apolo e Aquiles estavam de pé e lambiam-lhe os dedos, com as caudas a abanar. Sorriu calorosamente enquanto lhes acariciava os focinhos, antes de respirar fundo.
— Os cães, não há maneira de se calarem com os canhões. Isto está a desgraçar os nervos das pessoas em Birgu e Senglea. Sir Oliver pensa que seria melhor silenciá-los.
O sobrolho do coronel Mas franziu-se.
— Silenciá-los?
— Além de perturbarem o descanso das pessoas, consomem rações — lembrou Stokely. — Será difícil para os afetados, mas provavelmente acabaria sempre por chegar um momento em que isto teria de acontecer. Será melhor fazê-lo agora e preservar comida de que podemos vir a ter necessidade mais tarde.
— Será realmente difícil, sim — comentou La Valette em tom brando, enquanto continuava a acariciar os cães.
— Claro que não há necessidade de dar o mesmo destino aos vossos cães, senhor — apressou-se a adiantar Stokely. — Ou pelo menos a estes dois, os vossos favoritos. Não fará grande diferença se eles forem poupados.
— Talvez não. — La Valette passou os dedos nodosos pelas orelhas de um dos cães.
Thomas observava-o com atenção. Abria-se uma oportunidade para desimpedir o caminho para o cofre onde se encontrava fechado um documento vital para a segurança de Inglaterra. Clareou a garganta e abanou a cabeça com tristeza.
— Senhor, fará uma enorme diferença se estes dois cães forem poupados. Neste momento, cavaleiros e povo estão lado a lado, irmanados, partilhando perigos e provações. É essa a nossa força. É isso que nos une. Não podemos pôr em risco esse sentimento de comunidade pondo-nos à margem dos éditos que o Grão-Mestre lança sobre a população em geral. Se os cães de toda a gente têm de ser silenciados, então todos os cães devem ter o mesmo destino. Até mesmo estes dois, os vossos favoritos.
— Sim, são-no de facto... — reconheceu La Valette em tom quase de surdina.
Os animais parecerem sentir que estavam a ser elogiados, e as caudas dançaram enquanto contemplavam o dono com olhos de adoração. La Valette afastou o olhar e cruzou as mãos com força sob o queixo.
— Leva-os! — ordenou ao criado. — Leva-os para o canil, para junto dos outros, e trata do que for necessário fazer, imediatamente.
O homem aproximou-se da mesa, pegou nas coleiras e levou-os para longe do dono. Ao chegarem à porta, Apolo virou a pesada cabeça e olhou uma última vez para o dono, antes de se deixar conduzir para fora da sala. Depois de a porta se cerrar, ninguém falou durante alguns momentos. Por fim, Thomas tossicou e falou.
— Lamento, senhor. Mas é pelo bem comum. Gostaria que tudo fosse diferente.
— Sim, pois, um mal necessário. — La Valette respondeu num tom que tentava atribuir normalidade à decisão que tanto lhe custara. — E afinal, são apenas cães. O menor dos sacrifícios que podemos esperar nos dias que se avizinham. A reunião terminou, meus senhores. Peço-vos por favor que me deixais a sós.
Os conselheiros levantaram-se e começaram a deixar o compartimento. Thomas foi o último a sair, e fez uma pausa à porta, vendo como o idoso Grão-Mestre olhava para o chão onde havia poucos minutos os seus amados cães tinham estado deitados. Tinha-lhe sido penoso insistir na destruição dos animais, mas a verdade é que eles barravam o acesso aos arquivos, e teriam de ser afastados de uma forma ou de outra.
— Eram apenas cães — disse para si mesmo, enquanto fechava a porta com delicadeza.
29
No segundo dia de junho, pela madrugada, os vigias nas torres de St. Ângelo avistaram velas a aproximarem-se da ilha. La Valette estava a conduzir a reunião matinal do seu conselho na plataforma sobre o baluarte, pelo que todos viram as treze galeras a dirigirem-se para a entrada do porto, antes de aproarem a noroeste e ancorarem junto da costa. A embarcação que liderava o comboio vinha engalanada com um toldo verde-esmeralda em que estavam embutidos estrelas e crescentes. Dos turcos que esperavam junto à margem ergueu-se um grito, repetido vezes sem conta.
— Turgut! Turgut!
Richard e alguns dos outros escudeiros estavam também por ali, e ele virou-se para Thomas com um sobrolho franzido.
— Turgut?
— É o nome que eles dão ao corsário que nós conhecemos como Dragut.
— Este é, em definitivo, um dia mau — considerou La Valette. — De todos os homens que Solimão podia enviar contra nós, é este o que mais temo. É uma verdadeira lenda no campo inimigo, tanto como um demónio para o mundo cristão. Os seus homens veneram-no, e o seu valor num campo de batalha é incalculável. E ainda por cima chega com mais treze galeras carregadas de combatentes.
— Isto não vai agradar aos nossos — comentou Stokely. — Depressa todo o homem, mulher e criança de Birgu saberão que Dragut se juntou aos turcos. Senhor, temos de fazer alguma coisa para reforçar a determinação da nossa gente.
La Valette acenou em concordância.
— E agora, mais do que nunca, temos de colocar a nossa fé no Senhor Nosso Deus, e pedir a Sua piedade e salvação.
Dragut fora entretanto levado para a margem numa barca ornamentada, e as aclamações inimigas atingiram novo paroxismo quando ele colocou o pé na areia. O percurso que fez em torno do porto a norte era escondido pelo volume de St. Elmo e da península de Sciberras, mas o contentamento dos turcos e o seu vibrante acolhimento era fácil de escutar das muralhas de St. Ângelo.
Os sons foram abafados momentaneamente pelo estrondo dos canhões que continuavam a castigar St. Elmo sem interrupção. As outrora escorreitas linhas das muralhas tinham sido quebradas pela pesada metralha de ferro, e os escombros escorriam para dentro do fosso que as separava dos turcos, quase o preenchendo. Só a torre isolada na parte de trás do forte parecia ainda estar intacta. O contínuo embate dos projéteis contra as paredes enchia o ar de uma cortina castanha de poeira que se mantinha a pairar como um verdadeiro lençol quando a brisa caía durante as horas mais quentes do dia. As flâmulas que marcavam a posição das trincheiras inimigas já não estavam a mais de dez passos da muralha, e a previsão de La Cerda parecia prestes a cumprir-se, refletiu Thomas.
O Grão-Mestre tinha dado ordens para que fosse enviada aos defensores toda a ajuda possível. Todas as noites havia botes a atravessarem o porto, levando suprimentos e regressando com os feridos. Os turcos, fosse por descuido ou mera arrogância, não se davam ao trabalho de interferir com a passagem desses barcos. Apesar de estarem sob bombardeamento constante, os defensores estavam prontos para enfrentar o assalto que se daria no momento em que surgisse a primeira brecha nas muralhas.
O homem que La Valette tinha escolhido para assumir o comando do forte era o capitão Miranda, um veterano soldado espanhol. Quando tinha sido apresentado ao conselho de guerra, Thomas ficara impressionado com a explicação que Miranda fizera dos seus planos para a defesa do forte. O coronel Mas tinha-o recomendado como um líder decidido e calmo, de palavra fácil e escorreita e, mais importante ainda, capaz de inspirar os seus subordinados.
Enquanto esperavam pelo primeiro assalto inimigo, os sobreviventes abrigavam-se sob as ruínas do parapeito, em grupos de três, dois homens armados de arcabuzes e um com um pique. Vasilhas de barro repletas de materiais incendiários estavam colocadas a intervalos regulares. Numa armação estavam alguns dos perigosos foles de nafta, prontos a ser colocados em ação — eram armas aterradoras, que lançavam jatos de fogo líquido prontos a consumir qualquer ser vivo que encontrassem pela frente. Para completar o arsenal dos defensores, havia rodas-de-fogo nas paredes, prontas a serem ateadas e lançadas sobre os atacantes.
Eram uma arma nova, concebida por La Valette, e cuja utilização tinha sido demonstrada aos seus conselheiros poucos dias antes. Rodelas de tonéis, cobertas com várias camadas de um tecido ensopado em gordura e piche, que depois eram mergulhadas em água a ferver. Thomas e os outros tinham visto como dois soldados tinham pegado numa, mantendo-a à distância com pinças de ferro, enquanto um terceiro homem a acendia. Fora depois atirada sobre a muralha de St. Ângelo, precipitando-se num espetáculo flamejante sobre o estreito canal escavado entre o forte e Birgu. Thomas imaginou facilmente o terrível efeito que uma arma daquele género teria nos turcos quando assaltassem as muralhas quase desfeitas de St. Elmo.
Enquanto Dragut cumpria a sua volta triunfal ao porto até chegar ao acampamento principal que se estendia pelo sopé da península de Sciberras, La Valette dispensou os seus conselheiros e mandou chamar o arcebispo de Malta.
. . .
— Uma procissão penitenciária? — Sir Martin coçou a barba nascente no queixo enquanto Jenkins lhe passava a breve mensagem que recebera de um dos servos da Ordem, pouco tempo antes. Os ingleses e os mercenários italianos tinham acabado de se sentar para a refeição vespertina, depois de passarem toda a tarde a trabalhar na paliçada que se erguia no interior das defesas da cidade. — Esta noite?
— Sim, senhor. Às oito, a começar na escadaria da catedral, dando a volta por toda a cidade e acabando no largo do mercado, para o sermão. Toda a gente em Birgu deve estar presente. Todos os civis, e todos os soldados que possam ser dispensados dos seus deveres. — Os olhos de Jenkins rebrilharam de expectativa. — Robert de Eboli será o pregador.
Richard trocou um breve olhar com Thomas.
— Esse Robert de Eboli é alguém de quem já devesse ter ouvido falar? — inquiriu este.
— Oh, senhor, sim! É um simples frade, mas prega com tamanho fervor e paixão que é como se o Senhor lhe tivesse abençoado a língua. Já ouvi dois sermões dele na catedral, e ninguém na congregação deixou de se sentir tocado por uma presença divina. É bem verdade, senhor. — Jenkins levou ao alto o jarro de vinho, deitou um olhar de relance aos italianos e resmungou. — Os senhores ali ao fundo parecem estar com sede. À velocidade com que avançam pela minha despensa, os mantimentos que nos restam não vão durar muito.
— E nós também não — adiantou Sir Martin. — Carpe calix et non postulo credo, eh? Enche-me a taça.
— Esperemos que a procissão e o sermão ajudem a fazer subir o moral — comentou Thomas. — Já que Don Garcia não vai conseguir enviar-nos reforços durante alguns meses, que Dragut se veio reunir ao exército do sultão e que St. Elmo está à beira de ceder, não me surpreende que La Valette peça ajuda a Deus. Talvez a piedade divina seja a única coisa que nos possa ainda salvar.
— A piedade e uma espada bem afiada. — Sir Martin riu, enquanto apanhava o último naco de guisado com um pedaço de pão. — Quem diria que a carne de cão podia ser tão tenra? O Jenkins fez um belo trabalho. — Colocou o pão na boca e mastigou. Quando terminou, afastou a gamela, recostou-se e espreguiçou-se. — O vosso escudeiro está sombrio esta noite.
Thomas olhou para Richard, que mantinha os olhos presos na mesa, enquanto levava a colher à boca quase de forma mecânica. Ao escutar o seu nome, levantou o olhar.
— Senhor, estou fatigado, nada mais.
— Como estamos todos, jovem. — Sir Martin atirou as pernas sobre o banco e rodou. — Portanto, vou descansar antes da procissão. Dizei ao Jenkins para me acordar às sete e meia.
— Sim, senhor.
Sir Martin pôs-se de pé e dirigiu-se em passo cansado para a sua cela. Richard esperou que ele estivesse longe antes de se dirigir a Thomas com um tom de urgência na voz.
— É a nossa oportunidade de entrar nas caves de St. Ângelo. Os cães já foram liquidados, e não haverá mais do que um punhado de homens de serviço. Quando é que teremos melhor ocasião?
Thomas não estava tão certo.
— Há a ponte levadiça, e o pátio, e as escadas, e depois as sentinelas à entrada. Como é que te propões atravessar tudo isso sem ser notado? Além disso, estarão à espera da nossa presença na procissão.
— Na procissão, sim. Mas poderemos facilmente escapulir-nos antes do começo do sermão. As ruas estarão vazias, e há formas de lidar com quaisquer sentinelas. Temos de aproveitar o ensejo. Entrar nos arquivos foi aquilo que nos fez vir até cá.
— Como não te cansas de me lembrar — ripostou Thomas, pouco entusiasmado. — Muito bem, então. Será esta noite.
. . .
As ruas principais de Birgu estavam brilhantemente iluminadas por tochas e velas que todos os que participavam na procissão transportavam. O arcebispo caminhava lentamente à frente do seu rebanho, mantendo ao alto, com as duas mãos, uma cruz dourada. Atrás dele seguiam o Grão-Mestre e os cavaleiros mais antigos da Ordem, de cabeça descoberta e envergando túnicas negras sem adornos nem cintos. Em vez das botas usuais, usavam sandálias nos pés. Todos levavam as mãos juntas e as cabeças baixas, enquanto entoavam as juras de penitência da Ordem, que tinham aprendido de cor quando se tinham juntado a ela, muitos anos antes. Depois vinham os outros cavaleiros, os soldados e por fim os civis, numa corrente de humanidade que dirigia preces silenciosas a Deus, para que Este lhes perdoasse os pecados, lhes concedesse a Sua misericórdia e os livrasse dos seus inimigos. Thomas e Richard tinham-se juntado à retaguarda da coluna de cavaleiros, e adotado a mesma postura humilde enquanto percorriam as ruas da cidade. À distância continuava a ouvir-se o ribombar e troar dos canhões, e sobre a península de Sciberras avistava-se um reflexo avermelhado a cada disparo. Enquanto os habitantes de Birgu oravam, os seus camaradas e amigos em St. Elmo continuavam sujeitos aos canhões turcos e à ameaça de um assalto iminente.
O ar da noite estava cálido, e as capas com capuz que Thomas e Richard usavam para esconder as suas identidades eram abafadas. Embora aceitasse o argumento do companheiro quanto àquela noite ser a melhor oportunidade que teriam para procurar o documento, Thomas tinha sérias dúvidas sobre o plano elaborado por Richard. Não estava pormenorizado, e dependia demasiado da fortuna, parecia-lhe. E teriam de viver com o permanente risco de virem a ser identificados, até lhes ser possível deixar Malta e regressar a Inglaterra. Ou até ao dia em que perecessem por entre o fogo e as lâminas aguçadas, ao lado de todos os que tinham ficado presos por trás das defesas de Malta.
Depois de percorrer os limites da pequena povoação, o arcebispo conduziu as pessoas para a praça central de Birgu. Ao emergirem da rua para o espaço iluminado em frente da catedral, Richard puxou pela manga de Thomas e foi-se desviando para uma arcada que dava para a entrada de uma padaria a um canto da praça. Por lá ficaram, meio escondidos nas sombras, enquanto deixavam os milhares de pessoas passar e começar a encher a praça. O arcebispo chegou ao cimo das escadas à entrada da catedral e virou-se para a multidão, iniciando as orações. La Valette e os cavaleiros posicionaram-se de ambos os lados, e os habitantes mais prósperos e influentes foram-se acomodando nos degraus.
— Vamos — instou Richard.
— Ainda não. Espera até que os últimos tenham passado por nós. Não vale a pena chamar as atenções por nos estarmos a dirigir em sentido contrário a toda a gente.
Richard assentiu e recolheu-se de novo às sombras do arco. Ao olhar para a rua, Thomas constatou que ainda havia algumas centenas de pessoas a chegar, e voltou a focar-se no que se passava na praça. Parecia já estar repleta, mas a multidão continuava a avançar. Crianças e jovens tinham trepado às bases das estátuas e às colunas dos edifícios mais faustosos. À entrada da catedral, o arcebispo recolheu-se, cedendo o lugar a um frade alto e magro, cuja face angulosa era orlada por uma barba e tonsura brancas. O homem passeou o olhar intenso pela praça e por fim ergueu uma mão para calar as últimas conversas murmuradas e preces apressadas que se ouviam pela multidão.
— Irmãos! Escutai-me! — Dirigia-se à turba em francês, a língua comum a todos os que combatiam e viviam em Malta desde que a Ordem lá se tinha instalado. A voz era esganiçada, mas espalhava-se sem problemas por toda a praça. — Queridos irmãos, somos abençoados por aqui estarmos neste dia. Há entre nós quem se julgue amaldiçoado por se ver rodeado por inimigos cuja falsa fé e natureza cruel só podem ser obra do demónio. São-no sim, e é bom que os temamos. Em lugar da fé e da virtude, os seus corações estão repletos de crueldade, luxúria, avareza e obediência cega ao tirano Solimão e ao falso profeta. — Robert de Eboli fez uma breve pausa para deixar as palavras assentarem nos espíritos dos ouvintes. — E está tudo dito quanto ao caráter do inimigo que enfrentamos. Por isso é que eles não são dignos de alcançarem a vitória, e é por isso que nunca a alcançarão. Deus tem piedade dos bons e dos devotos, daqueles que reconhecem os seus pecados e deles se arrependem em consciência à luz do Senhor. Esses conhecerão o Seu amor e a Sua proteção ao longo das agruras e acasos da vida... Nós, poucos mas dedicados, somos deveras afortunados. Este local foi escolhido para nele se travar a maior das batalhas entre a luz da Cristandade e as trevas do Islão. A grande prova deste tempo aproxima-se, e só a absoluta devoção à nossa causa pode garantir-nos a vitória. Nos tempos futuros, o mundo cristão há de contemplar com assombro o nosso grande feito, e cada um de vós poderá ostentar com orgulho no coração o inestimável tesouro de saber que aqui estivestes, ao lado do Grão-Mestre, a combater na batalha de todas as batalhas. Há por toda a Europa reis e rainhas que se amaldiçoarão por não poderem ter estado aqui onde nós estamos agora. — O frade lançou os braços ao alto. — Quem dos aqui presentes seria capaz de tamanha vergonha, e de trocar de lugar com um desses tristes soberanos? QUEM?
As palavras ecoaram pela praça, e Thomas reparou que nem uma única mão se erguia perante a força da retórica e o temor de ser envergonhado à frente de todos os seus pares. À medida que os seus olhos percorriam as gentes apinhadas nos degraus abaixo do frade, detiveram-se de súbito numa figura iluminada por uma tocha. Uma mulher. Embora usasse um véu escuro sobre o cabelo, a face era claramente visível, e Thomas sentiu o coração dar um salto. Deu meio passo em frente.
— O que se passa? — indagou Richard. — Que é?
— É Maria, ali. — Thomas apontou.
Estava junto de um homem que envergava o manto de um cavaleiro. A cabeça dele estava tão inclinada que escondia o rosto, mas a proximidade a Maria indicava claramente que não eram estranhos um ao outro.
— Tenho de falar com ela.
— Não! — Richard segurou-lhe o braço e manteve-o preso. — Agora não. Temos um trabalho a fazer.
Os olhos de Thomas não se desprendiam de Maria, e ele sentiu o pulso a acelerar.
— Não podeis chegar junto dela esta noite — lembrou Richard. — Pode ser esta a nossa única oportunidade para procurar aquilo que viemos buscar.
— Ela é aquilo que eu vim buscar.
— E por aqui continuará, depois desta noite. A oportunidade para recuperar o documento não. Senhor, sede forte. Se não me apoiardes neste momento, isso poderá provocar milhares de mortes em Inglaterra.
Thomas sentiu-se dilacerado entre a consciência e o coração.
— Não faço ideia do que está nesse documento que procuras, mas sei que tenho de falar com Maria.
— E assim será. Juro que tudo farei para que esse encontro se torne possível — prometeu Richard, num palavreado rápido. — Mas agora vinde, temos de ir, imediatamente. — Thomas continuava a contemplar a praça. O homem levantou a cabeça, e a luz da tocha revelou-lhe claramente o semblante. Sir Oliver Stokely. Debruçou-se para sussurrar qualquer coisa a Maria, e ela lançou um breve sorriso, como que para lhe agradar.
A pura emoção que assolava o peito de Thomas pareceu tornar-se uma faca que alguém torcia, e depois de um breve momento de confusão, uma verdadeira torrente de pensamentos e de possibilidades correu-lhe pela mente inflamada. Conversas e acontecimentos recentes caíram nos seus lugares, e a esperança que sentira um momento antes desmoronou-se perante uma maré de cólera e um amargo sentimento de traição.
— Sir Thomas. Vinde. Antes que o momento se perca.
Deixou-se levar da arcada, pela rua escura e deserta, e logo Maria, Stokely, o frade e a sua audiência fascinada se perderam de vista. Enquanto os seus passos ecoavam nas paredes dos edifícios que ladeavam a rua, a voz de Robert de Eboli ainda chegava até eles.
— Todos devem pedir perdão, ou perecer nos eternos fogos do Inferno...
30
Percorreram as ruas escuras e silenciosas, onde só os gatos se aventuravam, sem terem já de se preocupar com os cães vadios que normalmente os desafiavam. Em breve chegaria a vez dos gatos, refletiu Thomas, se o cerco se prolongasse e as reservas de mantimentos começassem a justificar um racionamento apertado. Ao aproximarem-se do canal que separava Birgu do forte, o terreno começou a subir. Aquela era a zona mais pobre da cidade, onde os pescadores viviam em barracas de dois andares, o de cima para as pessoas e o de baixo para estender e guardar as redes e armazenar peixe salgado para o inverno. Mais adiante, a estreita via desembocava numa área plana coberta de cascalho, que era a parada onde treinavam os homens da guarnição. Do outro lado desta localizava-se a ponte levadiça que dava acesso ao interior do forte. Parecia só haver uma sentinela à entrada, com um pique nas mãos e o elmo descaído sobre o rosto. Nas torres do forte, do qual três faces davam para o porto, avistavam-se outras sentinelas.
— É o momento de nos prepararmos — avisou Richard em surdina, enquanto se instalavam à sombra da última casa de pescadores. Tiraram as botas e puxaram os capuzes sobre as cabeças. Richard foi à sacola que trazia por baixo da capa e extraiu dois bocados de corda desbotada que ataram às cinturas, à maneira de frades. Pegou depois no porrete de couro que tinha colocado no fundo da mala quando deixara Inglaterra. Passou a pega pelo pulso e fez um movimento experimental para sentir o peso e recordar o modo mais adequado de utilizar a arma. Olhou para Thomas.
— Pronto?
— Tão pronto como posso estar para uma coisa destas.
Richard lançou um rápido sorriso na escuridão.
— Esta coisa é aquilo para que fui treinado. Confiai em mim e segui as minhas instruções, e tudo sairá bem.
Levantaram-se e, com Richard na liderança, começaram a atravessar a parada. Thomas sentia-se algo desconfortável com aquela inversão na hierarquia, mas ao mesmo tempo sabia que tinha de confiar no jovem. Já não estava a fingir ser apenas um escudeiro, e tinha voltado a ser o agente de Walsingham, especializado nas artes do engano e da dissimulação. O som dos canhões era ali mais alto do que na cidade, e as chamas que saltavam das baterias no terreno por cima de St. Elmo iluminavam brilhantemente a crista distante a cada descarga. Ao avançar sobre as gastas tábuas da ponte levadiça, Thomas não conseguiu deixar de considerar o vazio que se abria para as trevas de ambos os lados. Ao espreitar para baixo, avistou o convés da nau turca que tinha sido capturada no ano anterior, e que tanto ajudara a desencadear a decisão do sultão, de erradicar definitivamente a Ordem de S. João.
Os dois homens já quase tinham atravessado toda a extensão da ponte quando o guarda pareceu despertar do seu torpor na posição que tinha adotado, encostado à muralha junto ao portão.
— Quem vem lá? — indagou, enquanto baixava a ponta do pique e agarrava o cabo com as duas mãos.
— Frei Guberto e Frei Henrique, da catedral — respondeu Thomas, com uma calma que não sentia.
— O que querem? Deviam estar a assistir ao sermão, a estas horas.
— Vimos de lá — prosseguiu Thomas, enquanto se aproximava do homem. — Com ordens do Grão-Mestre. Vai receber em audiência Robert de Eboli, e mandou-nos avisar o mordomo para preparar qualquer coisa para comerem.
— O mordomo também está no sermão — ripostou o guarda. — Vi-o sair com os meus próprios olhos.
— Estás certo disso, meu filho? — Thomas aproximou-se e de repente lançou os braços para cima, de forma a prender os pulsos do guarda, atónito. No momento seguinte Richard rodeou o homem e lançou-lhe o porrete com força contra a nuca. Bateu-lhe com um baque surdo, antes que o guarda pudesse gritar. Desmaiou e Thomas amparou-o e deixou-o deslizar para o solo, por dentro do portão, de forma a não ser tão visível do exterior.
— Não, aí não. — Richard pegou no guarda por baixo dos braços e começou a arrastá-lo na direção da ponte.
— O que estás a fazer? — sussurrou Thomas.
— Ele pode reconhecer-nos.
— Espera. — Thomas colocou-se entre Richard e a ponte. — Está escuro, e nós usamos capuzes.
— Ele ouviu a vossa voz.
— Nesse caso, será um risco que eu aceito. Deixa-o — disse, em tom firme.
Richard esperou um momento.
— E se ele recuperar os sentidos? Ou se alguém o descobrir?
Thomas sabia bem que a atitude de Richard era a mais correta, em termos de segurança e analisada com toda a frieza, mas não estava preparado para assistir a mais uma morte sem sentido.
— Deixa-o, e vamos tratar disto.
— É uma tolice — resmungou Richard. — Ides fazer com que nos matem.
— Isso não acontecerá, se nos despacharmos. Deixa-o, já disse.
— Maldito sejais! — Richard deixou o guarda tombar para o solo e, antes que Thomas pudesse reagir, deu-lhe uma nova pancada com o porrete. — Pronto, assim fica a dormir mais um tempo.
Sem esperar por comentários de Thomas, Richard virou-se e correu pela entrada. Thomas respirou fundo para acalmar a fúria e seguiu-o. Ao fim da arcada, entraram por um corredor estreito para onde espreitavam aberturas de onde alguém poderia disparar sobre eventuais invasores, passaram sob as pontas aceradas de uma porta gradeada, e depois o corredor fez um ângulo reto que dava para outra porta semelhante; por fim, desembocou no pequeno pátio interno do forte.
Tudo estava calmo e tranquilo ali; até os canhões inimigos que disparavam do outro lado do porto eram abafados pela massa das muralhas que se erguiam para as estrelas. Esperaram um momento, os corações a bater desalmadamente enquanto tentavam descortinar qualquer sinal de movimento. Por fim, satisfeitos por ainda não terem sido descobertos, os dois homens atravessaram o pátio até à entrada dos armazéns e catacumbas escavados nas rochas sob St. Ângelo. Fizeram uma pausa à entrada, espreitaram pelas escadas e notaram que a sala da guarda estava iluminada por algumas velas. Não vinha de lá de baixo qualquer som. Desceram cautelosamente até ao patamar e olharam em volta. O ar bafiento era ali mais frio, e o suor na testa de Thomas tinha arrefecido. Havia duas grandes mesas com bancos aos lados. Sobre elas estavam algumas travessas de madeira, bem como taças de latão decoradas com versículos islâmicos, parte do saque que a Ordem acumulara desde que tinha chegado a Malta. Dali partiam três corredores.
— Para que lado? — inquiriu Thomas, num sussurro.
Recordou a última vez que ali estivera, havia vinte anos, quando comandara um grupo de soldados encarregados de levar uma arca cheia de moedas de prata do porão da galera de La Valette para as catacumbas, onde ficaria em segurança. Mas nessa altura só existia um corredor a partir daquele compartimento.
Richard apontou para a esquerda.
— Segui-me.
Atravessaram a sala e entraram pelo corredor. A meio deste havia uma vela na parede, que mal iluminava as portas que se sucediam regularmente de ambos os lados. Enquanto Richard mostrava o caminho, Thomas sentia um tremor frio de ansiedade a correr-lhe pela espinha. Se fossem encontrados ali, não haveria forma de explicar a situação. Pouco adiante, o corredor chegava a uma nova bifurcação, com aberturas em várias direções. O cheiro a cães encheu-lhe de repente as narinas.
— Já estamos perto — disse Richard. — Vamos pela direita, e são mais uns vinte metros até à sala onde estão as sentinelas que guardam a entrada.
— E quando lá chegarmos?
— Trataremos do que encontrarmos, da mesma forma que tratámos do guarda ao portão.
— Partindo do princípio de que só lá estará um guarda.
— Exatamente.
— Grande plano. — Thomas abanou a cabeça. — E se lá estiverem quatro, como viste antes?
— Teremos de tratar de quatro guardas.
Rodearam a esquina e aproximaram-se agachados da porta ao fundo do corredor onde o Grão-Mestre tinha mantido os seus cães. As portas dos canis estavam escancaradas, e à luz de outra vela Thomas viu os ganchos em que estavam penduradas as coleiras e trelas dos animais que tinham sido mortos às ordens de La Valette. À frente havia uma porta numa passagem abobadada. Estava aberta, e lá dentro via-se mais luz. Não se escutava qualquer som enquanto Thomas e Richard avançavam pela passagem; o jovem aprontou o porrete na mão direita, e brandiu a adaga com a outra mão, sem fazer ruído. Thomas meteu a mão na sua sacola e extraiu também um porrete, que preparou para entrar em ação.
Estavam a cerca de três metros da porta quando escutaram um ruído de algo a resvalar sobre a madeira, seguido de um grito de triunfo que foi respondido por uma imprecação curta. Detiveram-se de repente. Richard levantou uma mão para sinalizar a Thomas que aguardasse. Avançou e espreitou lentamente pela esquina. Recuou de imediato e falou ao ouvido do cavaleiro.
— São dois, e estão a jogar dados. A uns dois passos da porta. Teremos de os surpreender. Pronto?
— Sim, mas nada de mortes, a não ser que sejam mesmo necessárias, percebido?
Richard fez uma careta e abriu a boca para retorquir, mas pensou melhor e preferiu encolher os ombros.
— Muito bem, aos três então.
Os dois homens prepararam-se, junto à porta. Na penumbra, Richard olhou mais uma vez para Thomas, que assentiu, e quando os dados voltaram a soar, contou em surdina.
— Um... dois... três.
Saltaram em frente; Richard empurrou a porta com estrondo e irrompeu pela sala, com Thomas a seu lado. Os dois guardas estavam debruçados sobre uma mesa. Viraram as cabeças perante a intrusão, os olhos esbugalhados de surpresa.
Richard saltou sobre o mais próximo deles, fazendo o porrete descrever um arco pelo ar. O guarda tentou impedir o golpe com o braço, mas foi demasiado lento, e o pesado saco de couro embateu-lhe no crânio, fazendo-o rolar sobre o banco e desabar no solo. Thomas correu em redor da mesa, dirigindo um golpe à cabeça do outro homem. Mas este tinha tido tempo para se levantar do banco, e o porrete só atingiu a mesa; o impacto fez as taças que lá estavam saltar pelo ar, derramando líquido sobre os dados e as moedas espalhadas pelo tampo. O guarda sacou uma adaga de uma pequena bainha que tinha à cintura e apontou-a ao atacante. Thomas lançou-se para o lado para evitar o golpe letal. O guarda agitou a lâmina de um lado para o outro, forçando-o a recuar. Ao sentir as costas contra a parede, Thomas saltou para a frente, agarrando na mão com que o homem empunhava a adaga e aplicando-lhe um potente murro no queixo. A cabeça do guarda foi projetada para trás. Thomas deu-lhe outro murro, com força, e ele cambaleou, soltando um grunhido, até tropeçar no banco derrubado e rolar pelo solo. Ali ficou a piscar os olhos, ainda de adaga na mão, até perder o conhecimento. Richard passou sobre o corpo e dirigiu-se à entrada das catacumbas, uma pesada porta de madeira cravejada de pontas metálicas.
— Temos de encontrar as chaves — lembrou Thomas.
Richard abanou a cabeça.
— Duvido que os guardas as tenham. — Remexeu na sacola à procura de qualquer coisa, até tirar um conjunto de pequenos instrumentos metálicos, agrupados num anel. Os cantos da boca levantaram-se ligeiramente ao notar a expressão de Thomas, que não sabia o que era aquilo. — Ferramentas profissionais.
Pôs-se de lado, para deixar que a luz das velas iluminasse a fechadura. Escolheu duas das ferramentas, que inseriu na fechadura, e foi remexendo com suavidade, explorando o mecanismo. Thomas observava-o com a admiração comum a todos os que veem alguém fazer algo que eles próprios nunca pensariam em conseguir. A sua atenção passou da fechadura para o ar de concentração absoluta evidente no rosto do jovem.
Escutaram-se uma série de estalidos no interior da fechadura, e por fim Richard recolheu as ferramentas e abriu o ferrolho. A porta girou sem ruído nas dobradiças bem oleadas, e uma corrente de ar fresco subiu da escuridão que se abria do outro lado.
— Trazei as velas — instruiu Richard.
Thomas pegou nelas, tirando-as dos suportes na parede, e passou uma ao jovem.
Assim que passaram pela porta, Thomas pressentiu a vastidão do espaço em que se encontravam, mesmo antes que o brilho fugaz das velas pudesse revelar as suas dimensões. O teto era em abóbada, e nas paredes havia colunas bojudas para suportar a massa do forte que se erguia lá em cima, à superfície. O teto era baixo, mas a cave era comprida e larga e dividida em duas por uma linha de colunas espessas. Filas de prateleiras de madeira estendiam-se à frente dos dois homens, para lá da área iluminada, e continuando para a escuridão. Sobre as prateleiras havia cestos com rolos de documentos, caixas, folhas soltas e pequenas arcas, muitas delas seladas com cera para impedir a humidade de estragar os conteúdos. O ar movia-se levemente, e havia muito pouco do cheiro a bafio que Thomas esperava; compreendeu que devia existir alguma forma de ventilação que impedia a formação de bolores.
— Deve haver aqui centenas de baús... milhares — resmungou Richard. — Temos de as inspecionar rapidamente, antes que o sermão termine e o resto da guarnição regresse.
— Nesse caso, procura nesta metade — decidiu Thomas. — Eu procuro na outra.
Separaram-se e começaram a percorrer os apertados espaços entre as prateleiras, agachando-se de vez em quando para ver o que havia nos níveis mais baixos. Havia muitos baús no meio dos arquivos, de facto, e Thomas verificava cuidadosamente cada um, para ver se eram negros ou feitos de madeira escura com enfeites de latão, e procurando a crista na tampa. Entretanto, não se esquecia que o tempo estava contra eles. Dependendo da inspiração e resistência de Robert de Eboli, o sermão podia durar mais umas duas horas, ou mais. Mas dado o cansaço geral, também podia ser concluído mais cedo.
Ao fim da primeira fileira de prateleiras, havia uma área fechada por grossas barras de ferro, cravadas no chão e no teto. A porta tinha duas fechaduras, com ar sólido e pesado. Por trás dela havia dúzias de arcas, e junto à parede empilhavam-se rolos de fina seda que rebrilhavam à luz da vela que empunhava. Num cabide ao lado estava pendurada uma coleção de cimitarras com punhos e guardas de ouro e prata incrustados de gemas. Aquele era o tesouro da Ordem, compreendeu Thomas, saqueado em navios e povoações costeiras e propriedades do mundo islâmico. Uma fortuna capaz de rivalizar com os tesouros de qualquer monarca na Europa. Pago com o sangue de centenas de cavaleiros e dezenas de milhares de soldados e civis, gente comum, tudo pela religião. Thomas sentiu uma náusea ao contemplar aquela riqueza e imaginar os séculos de sofrimento que representava, até àquele preciso momento, e às semanas e meses que se aproximavam, até ao fim do cerco. E ainda assim, o conflito passaria de geração em geração até ao fim dos tempos. Ou até que a Humanidade se curasse da febre religiosa.
Se existisse uma presença divina neste mundo, com toda a certeza contemplaria com o mais absoluto horror os feitos que eram cometidos em seu nome, refletiu. Nunca sentira tal presença, nunca dera pelo mais ínfimo indício da sua existência; só notara os elementos indiferentes de um mundo natural que englobava homens, animais e fés, sem lhes dar qualquer importância. Eram pensamentos perigosos, e sabia-o. Mais do que perigosos, letais. Esforçava-se portanto por os manter à distância, e chegava ao ponto de orar em comum com os crentes, como se tentasse esconder as suas mais profundas convicções não apenas dos outros, mas também de si mesmo.
Algo caiu para o chão ali perto, e Thomas deu um pulo e virou-se para a origem do som. Um brilho no meio das prateleiras revelou a posição de Richard.
— Richard? — chamou, sem se arriscar a levantar muito a voz.
— Parece-me que descobri. Sim... Sim! Aqui.
Thomas apressou-se a percorrer aquela fila de prateleiras e viu o companheiro debruçado sobre um baú que tinha puxado para fora do nível mais baixo da prateleira. Enquanto se aproximava, Thomas avistou a crista do malogrado Sir Peter de Launcey à luz da vela que Richard colocara na prateleira mais elevada. Estava pintada num relevo esculpido com algum talento. O brilho da laca era bem visível nos pontos em que os dedos do jovem tinham afastado décadas de pó que se tinham acumulado sobre a tampa. Pegas de latão envolviam e protegiam o elegante trabalho. Uma fechadura pequena e delicada ocupava a frente do baú, e Richard voltou a pegar nas suas ferramentas.
— Mantende a vela aí, a dar luz. Não a abaneis. Isto vai ser um verdadeiro desafio, parece-me. — Richard selecionou uma das mais finas varetas, e inseriu-a na fechadura. O rosto estava imóvel, concentrado, enquanto os dedos procediam a pequenos ajustamentos na ferramenta. — Não consigo sentir o mecanismo... Excelente trabalho, do melhor que já encontrei... Maldição.
Extraiu a peça e escolheu outra, a mais pequena de todas, e voltou a tentar, cerrando os olhos enquanto procurava acionar os mecanismos que abririam o fecho. Thomas observou-o por momentos e deitou um olhar ansioso à entrada das catacumbas.
— De quanto tempo precisas?
Richard fez uma pausa e abriu os olhos.
— Do que for necessário. Agora, por favor, deixai-me concentrar-me.
— Certo, mas despacha-te.
Richard focou a atenção no trabalho, de dentes cerrados, enquanto tentava criar uma imagem mental dos mecanismos da fechadura. Por fim tirou o arame e limpou a testa com a mão.
— Não consigo. O serralheiro que construiu isto era melhor do que eu. É um trabalho de génio...
— Talvez, mas o génio não está à altura do aço, como Arquimedes descobriu. — Thomas pegou na adaga e agachou-se ao lado de Richard. Meteu a ponta da lâmina na pequena fenda por baixo da tampa do baú.
— O que estais a fazer? — indagou Richard.
— Isto. — Thomas formou o punho com a mão esquerda e bateu na pega da adaga com toda a força. Ouviu-se um estalido metálico, e a lâmina penetrou na fenda, fazendo saltar a tampa. — Cá está.
Richard olhou-o, furioso.
— Oh, sim senhor, muito bem feito! Quem quer que olhe para isto vai logo perceber que a fechadura foi forçada.
— Quem é que vai reparar? Pelo pó que cobre isto, diria que ninguém lhe toca há muitos anos. Agora, apanha o que viemos buscar, coloca o baú no lugar e vamo-nos daqui.
Richard mordeu a ira e abriu a tampa. A luz das velas revelou uma pequena bolsa de couro, apinhada de moedas. A pequena abertura no topo revelava o brilho do ouro. Ao seu lado estava uma cruz também de ouro, com um rubi ao centro, presa num cordão. Havia também uma Bíblia, algumas cartas, e um tubo de couro. Richard pegou-lhe e inspecionou-o. A tampa na extremidade estava selada com cera, sobre a qual fora impresso um símbolo. Anuiu para si mesmo e murmurou:
— Cá está. Isto é o que viemos buscar.
Os olhos de Thomas estavam presos ao selo.
— Isso é o selo real. O Grande Selo de Inglaterra.
Richard não lhe respondeu, limitando-se a guardar com todo o cuidado o estojo na sacola.
— Vamos.
Fechou a tampa e voltou a colocar a arca na prateleira. Fez um pequeno ajustamento à posição, de forma a cobrir completamente a área limpa de pó que se formara ao longo das décadas. Endireitou-se e recuperou a vela.
— Vinde.
Depois de Richard voltar a trancar a porta, apressaram-se a deixar as catacumbas, passando pelos dois homens ainda desacordados ao lado da mesa. Um deles gemeu levemente, mas voltou a cair no silêncio. Os dois assaltantes pousaram as velas e deixaram a sala, correndo pela passagem até à sala da guarda e depois pelas escadas acima até ao pátio. Pararam para garantir que estava tão vazio como antes, e saíram pelo portão, onde a sentinela continuava ainda esticada nas sombras, a respirar aos soluços. A pressa com que tentavam afastar-se do forte fez com que os seus passos ecoassem ao atravessar a ponte levadiça.
— Quem vem lá? — chamou uma voz do cimo da muralha. — Michel? És tu?
Richard estacou, mas Thomas empurrou-o.
— É demasiado tarde para isso. Continua.
Atravessaram o resto da ponte e começaram a cruzar a parada em passo acelerado.
— Michel? — chamou outra vez a mesma voz. No momento seguinte, o tom mudou. — Vocês aí! Parem!
Ignoraram a ordem e desataram a correr até chegarem ao ponto onde tinham deixado as botas. Da direção da catedral vinha o som de cânticos, que se espalhava sobre os telhados da cidade; ali perto, porém, escutaram passos e vozes entretidas em conversa. Thomas puxou Richard para as sombras junto à parede e puxou sobre eles um bocado de uma rede de pesca. Alguns vultos aproximavam-se pela rua estreita.
— Quero lá saber do que ele diz — resmungou um. — Não há nenhuma ajuda a caminho. Estamos sozinhos neste aperto. Enquanto durarmos.
— Sempre a olhar para o lado risonho da situação, hã, Jules? — O outro riu. — Até depois deste magnífico sermão do Robert de Eboli?
— O quê, achas mesmo que o Senhor, e a Sua coorte de anjos, vão mesmo descer numa onda de luz celestial e fulminar os seguidores do falso profeta, e salvar-nos dos desígnios de Solimão e das suas hordas?
— Talvez, se o pedirmos com fervor, e cumprirmos todos os preceitos de um cristão — ripostou alguém, em tom defensivo. — Se formos pios.
— Oh, então boa sorte! — rosnou o primeiro homem que falara. — Eu? Prefiro confiar num pique bem afiado e em pólvora bem seca.
Passaram pelos dois ingleses e seguiram pela parada, na direção da ponte levadiça. Thomas sabia que depressa iam descobrir o camarada inconsciente, assim que a atravessassem. Destapou-se e calçou as botas. Assim que Richard o imitou, escapuliram-se pela rua abaixo, afastando-se rapidamente do forte. Não tinham dado ainda vinte passos quando escutaram um grito de alarme, que se perdeu de imediato quando um dos canhões lá longe disparou mais uma vez sobre St. Elmo. Estugaram o passo e depressa se cruzaram com outro grupo de homens, com quem trocaram acenos. Chegaram por fim à rua principal, que ia dar à catedral. Os cânticos já tinham terminado, e a rua começava a encher-se de pequenos grupos de habitantes e soldados que regressavam a casa ou às suas acomodações na cidade. Conscientes de que seguiam ao contrário da corrente humana, pelo menos até chegarem à rua transversal onde se situava o albergue inglês, mantiveram-se junto às paredes e moveram-se da forma mais discreta possível. Ouviram pedaços de conversas, a maior parte das quais elogiosas para Robert de Eboli. Muita gente falava com grande confiança sobre o grande exército que Don Garcia estava a reunir na Sicília para vir em auxílio de Malta e esmagar as forças do sultão turco.
Estavam quase a chegar à rua do albergue quando Thomas avistou Stokely um pouco à frente. Conversava animadamente com Romegas. Maria caminhava um passo atrás dele, ao lado de uma criada. Thomas interrompeu o passo, antes de rodear apressadamente uma esquina e se esconder.
— O que se passa? — perguntou Richard.
— Tenho de descobrir uma coisa. Volta para o albergue. Irei lá ter daqui a pouco.
— Porquê? — Richard olhou em volta, mas não se apercebeu de qualquer ameaça óbvia.
— Vai! — ordenou-lhe Thomas, irritado, enquanto o empurrava pela rua abaixo.
Richard tropeçou e parou para olhar para Thomas com uma expressão de preocupação. Depois, afagando a sacola, como que para se certificar de que o tubo de couro ainda lá estava, afastou-se.
Thomas deixou-se ficar imóvel e observou os vultos que passavam na rua. Ouviu a voz de Stokely, e viu-o passar, ainda à conversa com Romegas, seguidos pela figura alta e esguia de Maria, de olhos fixos no chão à sua frente. Thomas sentiu o impulso de saltar para a rua por trás dela, pronunciar-lhe o nome e pedir-lhe para o seguir até outra ruela, mas temeu escutar uma resposta negativa ou que ela, ou a criada, gritassem assustadas e alertassem Stokely. Portanto, manteve a boca fechada, misturou-se na multidão e seguiu-os de perto, mantendo a cabeça baixa de forma a que o capuz lhe escondesse o rosto, para o caso de ela olhar de repente para trás, por qualquer motivo. Stokely e Romegas prosseguiram em conjunto mais uns cem metros, pela rua principal, até que Romegas se deteve, se despediu e seguiu pela rua que levava ao forte. Stokely pegou no braço de Maria e virou para uma outra transversal. Thomas parou no cruzamento e arriscou uma espreitadela, que lhe permitiu perceber que Stokely se dirigia a um portão que dava para um pátio. Por trás deste, erguiam-se as paredes de uma modesta casa. Stokely parou e olhou para trás, como se temesse ser seguido. Concluiu que ninguém o perseguia, e só então bateu ao portão. Foi aberto de imediato, e Stokely levou a sua pequena comitiva para dentro, e a porta fechou-se atrás dele. Thomas esperou um momento antes de entrar na estreita rua e passar lentamente à frente do portão. O muro tinha uns três metros de altura, e não havia sítios onde apoiar as mãos ou os pés para trepar. O portão tinha um ar sólido, e era reforçado com tábuas de carvalho. Prosseguiu mais uns passos, voltou para trás e esperou. Não demorou muito até outras pessoas virarem para aquela rua e se encaminharem para uma casa próxima. Thomas dirigiu-se a um homem rotundo que, como muitos dos que tinham assistido ao sermão, envergava uma capa escura.
— Senhor, peço desculpa. — Thomas falou em francês. — Tenho uma mensagem a entregar na casa de um cavaleiro inglês. Disseram-me que ele habita nesta rua, mas não sei em que casa.
— Sir Oliver Stokely? — O vizinho arregalou um olho. — Sim, vive aqui. Naquela casa, a seguir à minha.
— Muito obrigado, senhor. Mas a mensagem não é para ele, e sim para a senhora. Maria, creio que assim se chama.
— Sim. — O homem assentiu. — Trata-se da esposa.
— Esposa...
O homem deu um toque no próprio nariz.
— O que estes cavaleiros dizem respeitar e o que fazem na realidade têm tanto a ver como a água e o azeite, hã? — Thomas ficou calado, e o homem franziu o sobrolho. — É tudo?
— Sim. — Thomas forçou-se a sorrir. — Muito obrigado, senhor. Desejo-lhe uma muito boa noite. É tarde. Tratarei de entregar a mensagem noutra ocasião menos tardia.
Virou-se e afastou-se a caminho do albergue, com o coração pesado como chumbo.
31
–Ladrões, aqui mesmo no coração das nossas defesas. — La Valette abanou a cabeça, verdadeiramente consternado. — É um ultraje. Alguém tentou penetrar no forte e chegar aos nossos arquivos esta noite passada. Dou graças a Deus por não terem previsto a qualidade da fechadura, porque senão teriam saqueado tudo o que lhes aprouvesse. Senhores, isto é um escândalo. — Olhou para os seus conselheiros, dispostos ao redor da mesa. — E mais, dois dos nossos homens ficaram feridos.
O silêncio tenso só foi quebrado pelo coronel Mas.
— Tivemos sorte por não terem sido mortos, bem como pelo facto de a fechadura não ter cedido.
— A sorte nada teve a ver com isso. Aquela fechadura foi feita por um dos melhores serralheiros de Paris, tal como as das portas de acesso ao tesouro. O senhor Berthon garantiu-me que seriam inexpugnáveis.
Thomas anuiu pensativamente, imitando os outros. Apesar da calma que aparentava, tinha o coração aos saltos, e sentia perfeitamente o suor que lhe preenchia as palmas das mãos.
Stokely lançou-lhe um olhar curioso, antes de voltar a concentrar-se nas palavras do Grão-Mestre.
— Quero que estes assaltantes sejam encontrados e castigados exemplarmente. Não haverá qualquer piedade, seja qual for o seu estatuto. E a mesma pena será aplicada a todos os crimes deste género, daqui em diante. Estamos todos juntos nisto, quer os que servem a Ordem, quer o povo de Malta. Coronel, quero que seja espalhado pelas ruas de Birgu um aviso de que há uma recompensa. Cem peças de ouro para quem capturar estes criminosos, ou possa dar informações que levem à sua captura.
— Sim, senhor — acedeu o coronel Mas.
— Muito bem; além disso, quero ver redobrada a guarda do arquivo, bem como a do portão principal. Isto não pode voltar a suceder. — La Valette bateu a mão com toda a força sobre o tampo da mesa. Voltou a contemplar os homens que o rodeavam, e só então a sua expressão começou a suavizar. — Agora, há outros assuntos de que temos de tratar. Primeiramente, Sir Oliver, o vosso relatório sobre as reservas de água. Ao que sei, estamos a consumir mais água do que aquilo que pensávamos.
— Assim é, senhor. Mas há outros problemas. Uma das cisternas de S. Miguel foi contaminada com água do mar. Deve existir alguma fenda que permitiu a entrada de água salgada. Em consequência, perdemos aproximadamente um oitavo da nossa reserva. Sugiro que comecemos imediatamente a racionar a água. Admito que esta medida não será popular...
— Chhh! — O coronel Mas ergueu uma mão para o calar.
— Coronel, tenho de protestar.
— Silêncio, oiçam. — O coronel fez um gesto na direção da janela. — Há algo de errado.
Tinham-se habituado de tal maneira ao ritmo irregular dos disparos que vinham do outro lado do porto que já o ignoravam sem mesmo dar por isso. Mas naquele momento imperava um silêncio bizarro.
Thomas apercebeu-se de imediato do significado que aquele silêncio encerrava.
— Estão a assaltar St. Elmo.
Ouviu-se o arrastar de cadeiras quando todos se precipitaram para as janelas e olharam para a ponta da península de Sciberras, do outro lado das calmas águas do porto. O som dos tambores e metais do inimigo soltava-se das trincheiras, e Thomas conseguia vislumbrar as diminutas figuras dos janízaros a correr sob um grande estandarte verde, ao cimo do qual esvoaçava um penacho de pelo de cavalo branco. Surgiram das trincheiras e percorreram o solo acidentado, aproximando-se do fosso defensivo que se estendia à frente do forte. Os defensores surgiram no parapeito e os primeiros penachos de fumo dos arcabuzes irromperam no ar da manhã. Os que observavam em St. Ângelo escutaram o som do fogo vindo do forte, que se intensificou quando os atiradores turcos começaram a alvejar os que se expunham nas muralhas semidestruídas de St. Elmo.
— Ali. — O coronel Mas levantou o braço e apontou para a ponta do revelim, que se avistava por trás do forte. — Aquilo é um estandarte inimigo a esvoaçar? Não consigo perceber.
Thomas esforçou a vista para tentar perceber os pormenores através do ar tremeluzente. Era bem verdade que havia um estandarte a esvoaçar sobre o revelim, mas nem a sua natureza nem a dos vultos que se movimentavam na área podiam ser percebidas àquela distância. Nesse instante, como que em resposta à ansiedade que sentiam, a brisa fez o estandarte alongar-se, e desfez qualquer dúvida que existisse quanto à cor que ostentava.
— É do inimigo, sim — confirmou Stokely. — Tomaram o revelim.
La Valette abanou a cabeça.
— Impossível! Mal começaram o ataque. Isso é impossível.
Apesar da evidência dos seus olhos, Thomas partilhava a descrença do Grão-Mestre. Os turcos teriam tido de atravessar o fosso e transpor todos os obstáculos lá colocados, e depois escalar as muralhas do revelim antes mesmo de entrarem em combate com os defensores. E ainda assim, por incrível que parecesse, o estandarte inimigo tinha sido cravado no revelim, e pequenas nuvens de fumo mostravam que o inimigo já disparava sobre o forte a partir da posição recém-conquistada.
O coronel Mas cerrou os punhos, frustrado.
— Que diabo se passa além? O que está o Miranda a fazer?
— Enviai de imediato um barco — ordenou La Valette. — Quero um relatório sobre a situação.
— Sim, senhor. — O coronel anuiu e apressou-se a sair da sala. Os outros continuaram a observar, com crescente desespero, enquanto as forças inimigas emergiam do fosso em toda a frente do forte e começavam a lançar as suas escadas de assalto, apoiando-as nas muralhas arruinadas. A luz do Sol refletia-se nas armaduras e armas dos homens que defendiam o parapeito, até que o fumo e as chamas começaram a obscurecer a vista. Daí em diante só os clarões de projéteis incendiários e as chamas rodopiantes dos arcos de fogo foram fugidiamente visíveis por entre o fumo e poeira que rodeavam o forte.
Em baixo, na água profundamente azul do porto, Thomas avistou um bote a atravessar a plácida ondulação, dirigindo-se ao pequeno molhe na base do forte. Os remadores malteses empenhavam-se a fundo, e a embarcação avançava velozmente. Estava já para lá do meio do seu trajeto na água calma quando atraiu a atenção dos turcos. Um punhado de franco-atiradores, janízaros, viraram os longos canos das suas armas, afastando as miras do forte e assestando-as no bote. Pequenas erupções surgiram na água à frente e em redor da embarcação. Os que seguiam o avanço em St. Ângelo gritaram encorajamentos e animaram a progressão dos seus camaradas. Os disparos do inimigo foram-se tornando mais certeiros à medida que o bote se aproximava da margem. Por fim, um atingiu a proa do barco, fazendo saltar estilhaços pelo ar. Um dos remadores agarrou o braço e soltou o seu remo, que mergulhou na água e fez rodar a embarcação até que o homem do leme corrigiu o rumo e gritou ao ferido que retomasse o controlo do remo. Quase por milagre, o bote saiu do alcance dos atiradores ao aproximar-se do cais, no sopé da formação rochosa. Os remadores deixaram-se cair sobre os remos, esgotados, enquanto o oficial que Mas designara para recolher informação sobre o ataque saltava pela proa e corria pelos degraus esculpidos na rocha, dirigindo-se à entrada nas traseiras do forte, junto à torre independente.
O pequeno drama estava terminado, e Thomas assobiou, aliviado. La Valette ordenou aos conselheiros que o seguissem e levou-os para fora da sala, até à torre sobre o bastião, de onde podiam ter uma vista mais ampla do ataque a St. Elmo. O Sol subiu no céu e levantou-se uma brisa de norte, dispersando o espesso banco de fumo que rodeava a frente do forte. Enquanto o ar clareava, tornava-se evidente o renhido combate que ocorrera pelo controlo do revelim e das muralhas. À frente destas havia pilhas de cadáveres, misturados com os destroços de escadas de assalto. No cimo, mais corpos se viam, debruçados sobre o parapeito, de onde escorriam riscos vermelhos que contrastavam com o branco das pedras irregulares das muralhas. Sobre a carnificina, continuava a ondular o estandarte da Ordem, e avistavam-se as distantes figuras dos cavaleiros, reluzentes, enquanto incitavam os homens e desafiavam o inimigo, mostrando-se bem à vista dos atiradores instalados nas trincheiras, que pouca hesitação sentiam perante a possibilidade de atingirem os seus próprios camaradas.
Stokely limpou o suor da testa e abanou a cabeça, siderado.
— Até quando é que os turcos podem aguentar tamanhas perdas?
— Eles que prossigam — ripostou La Valette, num tom frio. — Quantos mais homens perderem na conquista de St. Elmo, menos teremos de enfrentar quando se decidirem a atacar Senglea e Birgu. E o moral das tropas também ficará abalado.
As palavras podiam soar calculistas e impiedosas, pensou Thomas, mas o Grão-Mestre dizia a verdade. Enquanto St. Elmo se aguentasse, os turcos continuariam a lançar homens contra as defesas e a sofrer tremendas punições nesses assaltos. E nos períodos entre eles, os seus canhões gastariam pólvora e munições preciosas, dos suprimentos que tinham trazido consigo desde Istambul. Mais importante ainda, refletiu Thomas, estavam a desperdiçar dias preciosos da campanha. Quando chegassem a chuva e as tempestades de outono, poucas hipóteses teriam de receber reforços e abastecimentos.
Por fim, quando os sinos das igrejas de Birgu anunciavam o meio-dia, o ataque inimigo começou a dar sinais de esgotamento. Os turcos retiraram das muralhas para as trincheiras, deixando o solo em frente ao forte atapetado com os corpos dos seus camaradas. O revelim, porém, manteve-se nas suas mãos, e os seus engenheiros pareciam já ter deitado mãos à obra para reforçar as defesas, aumentando a altura das paredes. Quando o último dos elementos inimigos retirou, as bocas de fogo na crista retomaram a atividade, martelando as defesas. Nas muralhas, os defensores voltaram a desaparecer de vista, recolhendo aos seus recantos escondidos.
La Valette virou costas ao triste espetáculo, e Thomas reparou que parecia cansado, mas não deixava de ostentar no olhar a mesma determinação inflexível.
— Que Deus seja louvado. Conseguimos ganhar mais um dia.
Ao meio-dia, Thomas chamou Richard, enquanto comiam uma rápida refeição de pão e queijo, que ajudavam a descer com um vinho local, ácido, quase avinagrado. Thomas fez um relato do que fora discutido na reunião da manhã. Richard escutou-o em silêncio.
— Pelo menos conseguiste aquilo que procuravas — concluiu Thomas. — Espero bem que tenha valido a pena arriscar as nossas vidas.
— Riscos desse género fazem parte da natureza deste jogo — retorquiu o escudeiro. — É por isso que não sois adequado a desempenhar o trabalho que me cabe.
Thomas abanou a cabeça, entristecido.
— Mas é também por isso que não mereces servir como um cavaleiro, Richard. Estratégias desonestas não encerram qualquer honra.
— A sério? Vós, cavaleiros, matais pela vossa causa, enquanto eu faço o que for necessário pelo meu país. Seríeis vós capaz de explicar... de justificar, porventura, qual dos caminhos se reveste de maior valor ético? — Perscrutou Thomas com o olhar, e por fim lançou um sorriso breve. — Bem me parecia que não.
Thomas olhou-o com a frustração de alguém que sabe estar certo, mas já não tem forças para explicar a situação. Por alguma estranha razão, sentia uma obrigação de guiar aquele jovem, como se fosse realmente o seu escudeiro, ou um filho desencaminhado. Por fim, suspirou.
— Espero que tenhas escondido o teu troféu num sítio seguro.
— Está tão bem escondido como me foi possível, dadas as circunstâncias.
— Ótimo. Então a tua missão aqui está praticamente concluída. Só te falta sobreviver ao cerco — acrescentou, com um sorriso irónico. — Juntemos então esforços para prestar um bom serviço a La Valette e à Ordem. Até que o cerco termine, sirvo apenas o Grão-Mestre, e tu serves como meu escudeiro, esquecendo a obediência a Walsingham e aos seus esquemas. Concordas?
Richard pensou por alguns momentos, e anuiu.
— Até que o cerco termine.
O jovem voltou a concentrar-se na comida, deu uma dentada no pedaço de queijo e mastigou com vigor enquanto olhava para St. Elmo, do outro lado do porto.
. . .
Quando o oficial que o coronel Mas tinha enviado ao forte regressou e foi apresentar o seu relatório, já a tarde caía sobre a ilha. Entrou no estúdio do Grão-Mestre e ficou de pé junto à mesa, com uma ligadura ensanguentada a envolver-lhe a cabeça. Só ao fim de alguns instantes é que Thomas o reconheceu: era Fadrique, o filho de Don Garcia. Trocaram um breve aceno de reconhecimento.
— Quereis uma cadeira? — perguntou-lhe La Valette.
— Não, senhor. — Fadrique empertigou-se orgulhosamente. — Ficarei de pé.
— Muito bem. Apresentai o vosso relatório. O que aconteceu no revelim?
— O capitão Miranda não está seguro dos acontecimentos, senhor. Ao que parece, uma das sentinelas foi abatida por um atirador furtivo. Os homens que estão de serviço nas zonas mais expostas habituaram-se a manter-se deitados, de forma a não oferecerem alvos claros ao inimigo. Esta manhã, ao que parece, os camaradas da sentinela morta pensaram que o homem ainda estava vivo e a vigiar as ações do inimigo. Foi assim que os turcos conseguiram lançar uma escada de assalto naquela área do revelim e lá colocar um grupo de janízaros, antes que os nossos se apercebessem do perigo. Quando reagiram, já foi demasiado tarde, e o revelim foi tomado pelos turcos.
— Porra, que falta de cuidado — reagiu o coronel Mas com fúria. — O Miranda tentou ao menos recuperá-lo?
— Sim, senhor. Por duas vezes. Da segunda vez também tomei parte no contra-ataque. Mas os turcos já tinham fortificado o revelim, e tinham lá colocado uma força numerosa. Abatiam-nos à medida que tentávamos forçar a entrada. Perdemos três cavaleiros e muitos homens antes mesmo de lá chegarmos. Por fim lançámos um assalto corpo a corpo. O capitão Miranda conseguiu penetrar com três homens, mas foram rechaçados e acabámos por ter de retirar para o forte.
— Portanto, o revelim está mesmo perdido? — quis saber La Valette.
— Sim, senhor. Não estou a ver forma de o recuperarmos, agora que os turcos o controlam. Já tinham começado a estabelecer uma nova posição de fogo antes de eu regressar. Daqui a pouco poderão disparar sobre as muralhas e atingir o coração de St. Elmo. — Fadrique fez uma breve pausa antes de concluir o relatório. — O capitão Miranda considera que o forte não poderá resistir muito mais tempo. No máximo alguns dias. Já foi abordado por um grupo de cavaleiros que lhe pediram que vos enviasse um pedido formal para obter permissão para evacuar o forte.
— Evacuar? — La Valette franziu o sobrolho. — Está fora de questão. O capitão Miranda e os seus homens sabem quão vital é aquela posição. Têm de a aguentar a todo o custo, o mais que puderem. Ouvistes? — Espetou um dedo na direção de Fadrique.
O espanhol lançou um suspiro.
— Senhor, limito-me a repetir aquilo que me foi dito.
O Grão-Mestre acalmou-se.
— Claro. Peço-vos desculpa, meu caro jovem. Realizastes um excelente trabalho. Ide, e o meu médico que vos trate dessa ferida.
— Pouco mais é do que um arranhão, senhor.
— Nesse caso, pouco tempo deve levar a tratar. — La Valette pôs fim à conversa, indicando a porta com um gesto rápido. Fadrique baixou a cabeça e saiu. Quando a porta se fechou atrás do jovem espanhol, o coronel Mas debruçou-se sobre a mesa e pousou nela os cotovelos.
— Senhor, quais são as vossas intenções?
La Valette pensou por momentos.
— O Miranda tem de aguentar. Podemos fornecer-lhes mais munições e homens, a coberto da noite.
— Mas não por muito mais tempo, senhor. Esta tarde avistei engenheiros turcos a marcarem o terreno para a instalação de mais baterias na Ponta do Enforcado e no promontório oposto. Quando as tiverem em posição, poderão varrer o porto na área entre St. Elmo e este forte. Nenhum barco conseguirá atravessar. A guarnição ficará isolada. E, de qualquer forma, reabastecer o Miranda é apenas parte do problema. O ponto vital é o moral. Se os homens já lhe solicitam que peça permissão para retirar, foi dado o primeiro passo no caminho do motim. — O coronel Mas olhou em redor. — Senhores, já servi em muitos exércitos, já combati em muitas guerras, e vi o bastante para saber que permitir que essa semente cresça é o fim de um exército. Tão certo como uma derrota sofrida em batalha. Não podemos permitir que os homens de St. Elmo retirem.
— Porque não? — arriscou Stokely. — Será seguramente melhor que venham engrossar os nossos números do que serem feitos prisioneiros pelo inimigo.
— Não. Se o Grão-Mestre lhes permitir a retirada, será estabelecido um precedente. Que encorajará todos os que em Birgu e Senglea não possuem a força de vontade para aguentar a todo o custo. Muito melhor será que permaneçam em St. Elmo e nos deem todo o tempo que conseguirem. É uma dura realidade, sei-o bem. Mas não temos escolha. Têm de se manter nos seus postos.
La Valette anuiu, pensativo.
— Mas existe de facto o risco de tal decisão os levar à revolta. O que poderá ser pior do que permitir-lhes deixar St. Elmo.
— Por outro lado, se puderem ser persuadidos a lá ficarem e combaterem até ao fim por sua livre vontade — interveio Thomas —, darão um exemplo que inspirará todos os que defendem a ilha noutros pontos.
— E como poderemos persuadi-los, exatamente? — indagou o coronel Mas. — Ao que parece, já tomaram uma decisão, e de cada vez que uma arma inimiga dispara sobre o forte, essa resolução torna-se mais forte.
— Aqueles homens são cavaleiros da Ordem de S. João, a última das grandes ordens militares que se propuseram a combater o Islão e a recuperar a Terra Santa. Não há em toda a Cristandade maior honra do que pertencer a esta Ordem. Portanto, o que poderia magoar os corações dos homens que defendem St. Elmo mais do que a vergonha?
La Valette encarou-o.
— Sir Thomas, o que estais a propor?
— Sugiro que façais um apelo ao seu sentido de honra, que lhes relembreis a tradição de que fazem parte. Recordai-lhes o juramento que fizeram, de que combateriam os inimigos da Cristandade até à sua última gota de sangue. Essa é apenas uma parte da estratégia que recomendo. A outra é lançar um apelo a voluntários aqui em Birgu, para substituir aqueles a quem já falta a coragem para defender St. Elmo. Calculo que todos os que pouco sabem das reais condições no forte se apresentarão sem demora. Se os homens da guarnição de Miranda voltarem a insistir na história da evacuação, devereis assentir, e informá-los de que por cada homem que deseja deixar St. Elmo, existem três ou quatro em Birgu dispostos a tomar-lhe o lugar. Quando souberem disso, temerão a vergonha e a desonra bem mais do que aquilo que os faz recear a morte. Apostaria nisso a minha vida.
— E bem pode suceder que essa aposta se revele necessária. — La Valette sorriu, e virou-se para o coronel Mas. — O que pensa desta ideia?
— Penso que a reputação que os ingleses têm de serem retorcidos é bem merecida. — O coronel refletiu por momentos. — É de facto o melhor curso de ação, senhor. Apesar do que eu próprio disse há pouco. Em circunstâncias normais, insistiria e aplicaria normas disciplinares. Porém, a nossa situação é desesperada, e por vezes os homens precisam de mais do que simples ordens para se sentirem obrigados a combater.
— Muito bem — assentiu La Valette. — Apelaremos à honra dos homens. Entretanto, lançarei uma proclamação a pedir voluntários para reforçar o forte de St. Elmo. E rezo para que tenhais razão quanto a haver homens com a coragem necessária para responder a esse pedido, Sir Thomas.
Thomas tinha perfeita consciência de que os outros elementos do conselho o fitavam, e não conseguiu evitar um breve momento de medo antes de clarear a garganta para falar com toda a calma que conseguiu reunir.
— Senhor, peço a vossa permissão para me apresentar como primeiro voluntário para reforçar St. Elmo.
32
Um dia depois, já todas as vagas na pequena força que ia ser enviada para St. Elmo estavam preenchidas, e muitos homens tinham mesmo sido recusados. O frade, Robert de Eboli, tinha insistido em acompanhar os homens, para lhes dar apoio espiritual na luta. O Grão-Mestre deu por concluída a reunião da tarde e pediu ao coronel Mas e a Thomas para ficarem mais um pouco.
— Estais certos da vossa decisão? — inquiriu La Valette. — Não me agrada perder de uma vez dois dos meus melhores conselheiros.
O coronel Mas assentiu gravemente.
— Como bem defendeu Sir Thomas, é a única hipótese. É vital que ninguém duvide de que partilhamos os mesmos riscos, e o mesmo destino, sem qualquer exceção. Menos vós, senhor. Sois indispensável. Os homens em St. Elmo estão perto do ponto de rutura, e já estão muito para lá dos normais códigos de obediência, e de qualquer apelo a que cumpram o seu dever. Tudo o que lhes resta é de facto o sentido de honra. Se eu e Sir Thomas chegarmos ao forte com cinquenta voluntários e lhes dissermos que há mais um milhar em Birgu dispostos a tomar os seus lugares, eles ficarão, e combaterão até ao fim. Estou certo disso.
— Quando partis?
— Amanhã à noite, senhor. Esta noite vou descansar. Quando me levantar, amanhã cedo, precisarei de algum tempo para escolher os meus homens, e para pôr os meus assuntos em ordem. Há cartas a escrever.
O Grão-Mestre cofiou a barba, perdido em pensamentos. Virou depois o olhar para Thomas.
— E quanto a vós? Ainda é tempo de mudardes de ideias.
— Senhor, seguirei com o coronel.
— Porquê?
Thomas não respondeu de imediato. Não havia uma razão clara e simples. Ou melhor, ela existia, e todas as outras razões a ela conduziam. Maria era a esposa de outro homem, de Sir Oliver Stokely, e assim devia ser havia já muitos anos. Para ele, estava perdida para sempre, a menos que quebrasse os últimos resquícios de conduta moral que ainda o prendiam. E mesmo assim a situação seria sem esperança, já que ela nunca aceitaria ficar com ele nessas condições. E havia ainda a questão da sua fé perdida, refletiu Thomas. Tinha sido uma longa e penosa caminhada até chegar à crença de que nada existia para além daquela vida terrena. Descobrir que Maria vivia ainda, e que albergava por ele sentimentos semelhantes aos que ele tinha por ela, preenchera o vazio na sua alma, e dera um novo propósito e significado à sua vida. Agora, porém, até isso o deixara, e se a sua vida tinha tão pouco sentido, talvez ao menos a sua morte pudesse servir algum propósito imbuído de nobreza.
Limpou a garganta e enfrentou o olhar inquisitivo de La Valette.
— Porque é essa a minha escolha.
— E se eu preferir ordenar-vos que fiqueis? Já me é bem difícil sacrificar o coronel Mas. Vejo-me obrigado a perder-vos também? Preciso dos conselhos de homens em quem possa confiar.
— Senhor, neste momento a maior necessidade é de homens que possam dar o exemplo — retorquiu Thomas. — Há muitos outros homens de valor na Ordem, e podeis confiar nos seus conselhos. Poderão até ter sido rivais uns dos outros no passado, mas o passado acabou. Todos os homens que aqui estão acabaram por aceitar um propósito comum. Os nossos lugares ao vosso lado serão preenchidos por outros.
La Valette sorriu tristemente.
— É verdade o que dizeis... Desejava apenas que não tivessem sido precisos estes tristes acontecimentos para que os nossos camaradas o compreendessem. É uma pena que só a extinção iminente seja capaz de nos unir por completo numa causa comum.
— E mesmo assim... — O coronel Mas arqueou uma sobrancelha. — Peço desculpa. Há demasiado tempo que não passo de um soldado. Atividade que tende a desenvolver o cinismo num homem.
La Valette olhou-o e começou a sorrir, até que rebentou em gargalhadas. Thomas juntou-se a ele, e até Mas, com as suas cicatrizes e marcas de muitas batalhas, condescendeu em lançar um sorriso. Durante um breve instante, o tremendo fardo que tinham partilhado no último mês pareceu sair-lhes dos ombros, e na sala imperou um sentimento de leveza que, noutro tempo e noutro lugar, poderia ser confundido com amizade.
O estrondo dos canhões turcos a abrirem mais uma vez fogo do outro lado do porto quebrou o encanto. La Valette levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e abraçou o coronel Mas.
— Agradeço-lhe, coronel. É de facto um excelente soldado. E um bom homem. Lamento tê-lo recrutado para a nossa causa. Merecia um fim bem melhor do que este.
— Não há necessidade de desculpas. Sou um mercenário, senhor. Vou para onde a guerra me leva e, em boa verdade, o meu fim já devia ter chegado há muito. Além disso, não são muitos aqueles de nós que têm uma saída de cena tão honrosa. Normalmente é uma doença ou a sífilis que acaba connosco. Desta forma será muito melhor. — Semicerrou os olhos. — Prometei-me apenas que o meu contrato será honrado. Tenho uma mulher e filhos em Barcelona.
— Tratarei disso. Tendes a minha palavra.
— Muito obrigado, senhor. — O coronel Mas pôs-se em sentido, baixou a cabeça numa saudação final, virou-se e marchou para fora da sala, deixando Thomas a sós com o Grão-Mestre. Houve um momento de silêncio embaraçado, enquanto o homem mais velho contemplava o cavaleiro inglês. Uma afeição misturada com mágoa tomou-lhe conta do olhar.
— Tenho imensa pena de não ter podido contar com os vossos serviços durante tantos e tantos anos, Thomas. Desde o primeiro dia em que vos apresentastes na minha galera que me apercebi do vosso potencial. Desenhei os meus planos para vós. Devotei a minha vida à Ordem. Neguei a mim mesmo uma esposa, uma família. — O olhar tombou-lhe para o chão, e a voz pareceu tremer. — Quando fostes forçado a partir, senti-me como se tivesse acabado de perder um filho... Quando regressastes, o meu coração aqueceu, pela primeira vez em muito tempo. E agora? — Voltou a olhar para Thomas. — Ainda não é tarde de mais para mudardes de ideias. Como já disse, preciso de homens com o vosso valor ao meu lado. E estas não são palavras vãs.
— Senhor, o meu caminho abre-se à minha frente. Segui-lo-ei até ao fim... Mas o meu coração alegra-se por saber que a minha existência representou para vós algo de relevante. — Pegou na mão que La Valette lhe oferecia e apertou-a com firmeza durante um momento, sentindo o tremor de emoção no toque do outro homem. Retirou então a mão. — Adeus, senhor. Tal como o coronel, também eu tenho assuntos a arrumar antes de partir.
. . .
Parou ao portão, e olhou sem ver para o batente de latão à sua frente. Esteve ali algum tempo, enquanto a pálida luz da alvorada nascia. Uma patrulha de soldados tinha passado e deitara-lhe olhares curiosos antes de prosseguir, pouco tentados a interrogar um dos cavaleiros da Ordem. Thomas respirou fundo, decidido a dar aquele passo mas incerto quanto às palavras que poderia utilizar, e receoso quanto à receção que poderia esperar. Tinha ali chegado uma hora antes, mas mantivera-se escondido num estreito beco entre duas casas no lado oposto da rua. Stokely saíra ao raiar do Sol, embrulhado numa capa, e seguira pela rua na direção de St. Ângelo. Quando ele desaparecera, Thomas saíra do seu esconderijo e atravessara lentamente a rua até à parede do pátio que ficava para lá da pesada porta de madeira ladeada por cantarias de calcário.
Pegou no batente e bateu duas vezes.
Houve uma curta espera antes de escutar uma porta a abrir-se, algumas imprecações, e o ruído de passos sobre cascalho, até que o ferrolho foi levantado. A porta entreabriu-se apenas o suficiente para deixar um rosto espreitar, e Thomas reconheceu uma das criadas que acompanhara Maria em St. Elmo.
— O senhor não está — disse ela.
— Eu sei. Vim visitar a senhora Maria.
A criada não escondeu a surpresa. Abanou a cabeça.
— Ninguém vem visitar a minha senhora.
— Eu vim. Por favor, vai dizer-lhe que Sir Thomas Barrett está à porta. Diz-lhe que lhe peço apenas um momento, nada mais.
A criada fez uma careta e fechou a porta. O ferrolho voltou a cair, e os passos recuaram até à casa. Apesar do seu desejo de controlar os sentimentos, Thomas sentiu o coração a acelerar e as palmas das mãos húmidas enquanto esperava. Quando o ferrolho voltou a soar, quase se assustou; não tinha dado por passos a aproximarem-se. A porta abriu-se, e lá estava Maria. Envergava um vestido azul-escuro, e tinha o longo cabelo apanhado. Por baixo da bainha do vestido comprido espreitavam pés nus. Ela olhou-o por momentos, sem expressão, e ele temeu que ela simplesmente lhe pedisse para se ir embora. Mas então a porta escancarou-se e ela deu um passo ao lado.
— Entra, por favor.
Thomas atravessou o portão, que Maria cerrou atrás dele. Olhou rapidamente em redor e notou que o pátio não passava de um pequeno quadrado aberto na frente da casa. Ainda assim, estava repleto de plantas em vasos e cestos pendurados, onde flores de todos os feitios e cores aguardavam a luz do dia para brilharem. Num dos lados havia um banco comprido e baixo, à sombra de uma treliça onde cresciam agarradas outras flores. Olhou de novo para Maria e viu-lhe a sombra de um sorriso aos cantos da boca, antes de ela se virar para a criada.
— Lúcia, deixa-nos. As botas de Sir Oliver estão a precisar de serem limpas. Trata disso.
A criada baixou a cabeça e apressou-se a regressar ao interior da casa. Maria virou-se para Thomas e indicou o assento. Sentaram-se cada um na sua ponta, deixando entre eles quase um metro de veludo almofadado.
— Porque não me esperaste na capela em St. Elmo? — indagou Thomas, em tom gentil.
Ela olhou-o por momentos antes de replicar, hesitante.
— Tive tempo para pensar, e fiquei com medo.
— Com medo? De mim?
Ela abanou a cabeça.
— Claro que não.
— Então de quem? De Sir Oliver?
— Não. — Ela afastou o olhar, e contemplou as próprias mãos, cuidadosamente cruzadas no regaço. — Tive medo do que seria capaz de fazer. Tive medo de agir de uma forma que depois lamentaria.
— Maria, o que queres dizer?
Ela levantou de novo a vista.
— Thomas, não és nenhum tolo. Sabes perfeitamente o que quero dizer. E sei que ainda tens por mim os sentimentos que tinhas há tantos anos. Vi-o nos teus olhos, na tua expressão.
Thomas assentiu.
— E tu? Não sentes o mesmo?
— Porque o sentiria, depois de tudo o que causaste na minha vida? — A voz dela tornou-se repentinamente fria e severa. — Antes de te conhecer, estava destinada a entrar pelo casamento numa das grandes casas da Sardenha. Teria sido a senhora de um palácio, nunca passaria qualquer privação. E então tu arrebataste o meu coração. Sofri a vergonha pública, fui escorraçada pela minha própria família. Perdi-os a eles, perdi-te a ti e ao nosso filho, e teria passado o resto dos meus dias confinada a um convento, ou pior ainda, se o Oliver não me tivesse ido salvar. Tenho para com ele uma enorme dívida. E tu também.
— Porquê?
— Pelo facto de estar aqui hoje perante ti, e por não teres ainda mais na consciência para lá do que te atormenta.
As palavras dela calaram profundamente no coração de Thomas, e ele baixou o olhar, contemplando as mãos inúteis sobre os joelhos. O silêncio impôs-se e prolongou-se de forma incómoda enquanto a manhã se alongava, até que Thomas conseguiu falar de novo.
— Daria tudo para voltar atrás no tempo e desfazer a malfeitoria que cometi contra ti.
— Mas não podemos voltar atrás. O que está feito, feito está.
Ele olhou-a.
— Nesse caso, o que queres que eu faça como penitência?
— Thomas, a penitência de pouco serviria — comentou ela, em tom triste. — Tudo o que nos resta é viver com as consequências das nossas ações.
Ele engoliu em seco.
— Compreendo. Nesse caso, devo deixar-te.
Quando fez menção de se levantar, Maria debruçou-se rapidamente, agarrando-lhe o braço e parando-lhe o movimento.
— Desistes assim tão facilmente? Onde foi parar o destemido cavaleiro que conheci em tempos?
— Por que razão ficaria? — inquiriu Thomas, amargo. — Já não há no teu coração qualquer amor por mim.
— Não? — Ela debruçou-se e deu-lhe um breve e delicado beijo nos lábios, recuando com um sorriso estampado no rosto. — Como podes duvidar dos meus sentimentos?
Sentiu uma vaga de alívio e alegria que lhe encheu o peito como uma maré, e os seus lábios abriram-se num sorriso, enquanto se soerguia para se aproximar mais dela. Os olhos de Maria arregalaram-se em alarme, e ela levantou uma mão.
— Não. Fica aí onde estás.
— Mas...
— Fica aí, disse eu. E insisto. Thomas, pelo amor que me tens, e pelo amor que ainda te tenho, mantém-te longe de mim. Rogo-te.
Deixou-se cair sobre a cadeira, confuso e ansioso.
— Maria, és tudo para mim. Passou toda uma vida desde a última vez que te abracei. Por favor.
Ela sorriu tristemente.
— Como dizes, passou uma vida. E nesse tempo, uma nova vida foi-nos dada, a ti e a mim. Tiveste a tua vida lá em Inglaterra, e em muitas campanhas por toda a Europa, ao que ouvi dizer. Uma vida preenchida, não duvido.
— Sem ti, uma vida vazia.
— Ainda assim, uma vida. E eu construí para mim outra vida. Quando me consegui forçar a aceitar o facto de que nunca mais te veria. — Fez uma pausa, e o sorriso desapareceu. — Foram precisos dois anos para conseguir voltar a viver. E durante todo esse tempo, Oliver tomou conta de mim. Apesar de ser um cavaleiro, tem uma alma gentil, Thomas, e é um bom homem. Sabia bem que ele me amava, e eu tinha afeição por ele... mais do que afeição. E assim casámo-nos. Em privado, claro. A Ordem faz por ignorar muitas coisas, mas não atura tudo, como tu e eu descobrimos. Desde então, tenho sido a sua esposa. Aprendi até a ser feliz. — Deitou um olhar severo a Thomas. — E então regressaste à minha vida, e foi como... como uma tempestade que assolasse o meu coração. Não posso mentir. O meu primeiro impulso foi o de te abraçar e beijar. Tê-lo-ia feito, se tivesse ficado à tua espera na capela. Mas tive tempo para pensar. Tempo para avaliar como isso iria magoar Oliver. E como eu e tu não poderíamos nunca voltar a ser tão felizes como outrora.
— Porque não? — inquiriu Thomas, numa voz esganiçada. Cada uma das palavras dela tinha sido uma pedra a pesar-lhe ao pescoço, arrastando-o para um abismo profundo.
— Meu amor, vivemos hoje sob a sombra da cimitarra turca. O pouco que me resta viver, preferia não ver manchado como a causa de dor e sofrimento de outrem. Não poderia suportá-lo. Nem tu, se escolheres ser honesto contigo mesmo. — Lançou-lhe um olhar suplicante. — Sabes que tenho razão.
Abanou a cabeça
— Não teria de ser assim.
Era uma mentira, que lhe rasgou o coração no preciso instante em que proferiu as palavras. Naquela mesma noite juntar-se-ia aos homens condenados em St. Elmo, e nunca regressaria. Tinha muito poucas horas para fazer as pazes com Maria. De nada serviria atiçar as chamas da paixão entre eles numa falsa promessa de futuro. Ela olhava-o, à espera. Anuiu devagar.
— Obrigada, Thomas. — Aproximou-se dele e pegou-lhe na mão. O toque da sua pele desencadeou nele um tremor que se estendeu por todo o seu corpo. — Agora podemos conversar. Sem rancor. Sem lamentos. Há coisas que deves ficar a conhecer.
— Eu sei. Oliver contou-me o destino da criança.
Ela pareceu surpreendida.
— Destino?
— Que morreu pouco depois do nascimento.
Maria franziu o sobrolho, e uma chama de fúria brilhou-lhe nos olhos.
— Ele disse-te isso?
— Sim.
— Disse-te que o nosso filho falecera?
— Sim.
— Mas ele vive. Vive. — Ela parecia confusa. — Não pude criá-lo. Não mo foi permitido. Nos primeiros anos de vida mantivemo-lo em segredo, e Oliver disse à Ordem que ele tinha morrido poucos dias depois de nascer. Fingimos que a criança era o filho de uma das serviçais, mas alguém nos traiu. Decidiram tirar-mo.
— Quem?
— Os cavaleiros. A Ordem resolveu enviá-lo para onde eu não o pudesse encontrar. Onde não viesse a lançar a vergonha sobre toda a Ordem. Supliquei a Oliver que não o permitisse. Roguei-lhe, e ele prometeu que encontraria uma solução.
— Que género de solução?
— Enviou-o para Inglaterra, para ser criado por um dos seus primos. Foi a última vez que o vi. Mas tenho notícias dele de vez em quando. Soube que se tornou um jovem garboso. Espera aqui.
Maria levantou-se num pulo e entrou na casa. Regressou um momento depois, voltando a sentar-se e a mostrar-lhe o que trouxera. Abriu a mão, revelando um pequeno medalhão num fino fio de prata. Abriu o medalhão com um sorriso e olhou para o retrato em miniatura que lá estava. Ainda a sorrir calorosamente, mostrou-o a Thomas.
— Este retrato foi-me enviado quando ele fez dezasseis anos. Este é o nosso filho. O nosso Ricardo.
Com um frio tremor premonitório, Thomas pegou no medalhão e contemplou as feições familiares lá ilustradas. Mais jovem, sim, e os caracóis escuros no cabelo, que herdara da mãe, estavam agora aparados cuidadosamente, mas não havia que enganar perante aqueles olhos escuros e as feições morenas do homem em que se tornara.
33
–Meu Deus... — murmurou Thomas, quase sem palavras. A mente fervilhava-lhe com as correntes de engano e traição em que tinha sido apanhado e usado. Ergueu então o olhar para Maria, cuja expressão passara da afeição magoada que exibira à ansiedade pura.
— O que se passa, Thomas? Diz-me.
— Alguma vez mostraste isto a alguém? O Oliver viu este retrato?
Maria parecia confusa.
— Porquê?
— Preciso de saber. Alguma vez mostraste isto ao Oliver?
— Não.
— Há alguma hipótese de ele saber sequer que isto existe?
Ela abanou a cabeça.
— Não me parece. Mantive-o sempre escondido. Ele é um bom homem, e sempre foi carinhoso comigo. Porque haveria eu de lhe ferir o coração recordando-lhe o passado e a afeição que sentia por ti?
O coração de Thomas encheu-se de receio enquanto fechava o medalhão e o devolvia.
— Guarda-o bem guardado, e não o mostres a ninguém. Tenho de ir. Agora. Tentarei regressar ainda hoje, se conseguir, prometo.
Ela ficou desanimada.
— O que se passa? Qual é o problema? Thomas, diz-me.
— Não posso. Ainda não. Confia em mim. — Levantou-se, fez menção de partir, mas virou-se e pegou na mão dela, levando-a aos lábios enquanto fechava os olhos e aspirava o perfume da sua pele, prendendo-o nos pulmões até ser forçado a exalar. Largou-lhe a mão, virou-se e afastou-se rapidamente, a caminho do portão. Abriu-o com brusquidão e saiu para a rua. Quando o portão se fechou atrás dele, teve um último vislumbre de Maria a levantar-se da cadeira com a angústia estampada no rosto.
Caminhou apressado pela rua e virou no cruzamento para se dirigir ao albergue. Tinha os pensamentos em desalinho com o que acabara de descobrir, e não prestava especial atenção ao que se passava à sua volta. Foi assim que não reparou no vulto ao fundo da rua, semiescondido nas sombras à entrada de uma padaria, como se fizesse parte do grupo de clientes que esperava a sua vez para serem atendidos. Por momentos o homem contemplou a passagem de Thomas, e depois dirigiu-se com vagar para o portão da casa.
. . .
— Sei quem tu és — avisou Thomas em tom frio, enquanto cerrava a porta da cela atrás das costas.
Richard levantou o olhar da pequena secretária onde estava a escrever. Tinha o tronco nu, e a pele brilhava com o suor. Pousou a pena e puxou casualmente um pano manchado de tinta para cima da folha de papel, de forma a esconder as linhas escritas em letra pequena mas bem desenhada.
— De que falais? — perguntou, com toda a calma.
Thomas fechou brevemente os olhos e voltou a ver a imagem no medalhão, e o rosto de Maria. Sabia mais do que o seu coração conseguia suportar, e estava incerto quanto aos seus sentimentos e quanto ao que devia dizer ao jovem na sua frente — ao agente de Walsingham, ao seu escudeiro, ao seu filho. Mesmo naquele momento, contra todas as certezas que lhe enchiam a mente, era difícil aceitar — ou acreditar — na realidade.
— Richard... Ricardo. Vi a tua imagem na gravura que foi enviada para a tua mãe.
Richard franziu o sobrolho.
— Que dizeis? A minha mãe? Que loucura vos possui?
— Sei a verdade. Não temos tempo para fazer jogos. Podes estar em grave perigo.
Richard arregalou as sobrancelhas.
— A sério? Que raio de ideia, correr perigo numa cidade cercada por fanáticos muçulmanos.
Thomas sentiu um acesso de cólera a nascer.
— Basta! Sei que és de facto meu filho.
Os olhos de Richard arregalaram-se brevemente, mas depressa as suas feições voltaram a tomar uma expressão neutra.
— E o que vos faz pensar de tal forma?
— Vi o teu retrato numa gravura. Agora mesmo, quando estive a falar com a tua mãe.
Richard sorriu friamente.
— Essa seria uma conversa sem grande hipótese de diálogo. A minha mãe morreu há muitos anos, era eu ainda uma criança. — A expressão endureceu. — Mas sei bem quem sois, pai. O homem que usou uma jovem criada para o seu prazer, e que a escorraçou quando ela ficou grávida. E que nunca reconheceu ter um filho, por receio da vergonha que passaria.
Foi a vez de Thomas franzir o sobrolho.
— O quê?
Richard semicerrou os olhos.
— Essa gravura, quem vo-la mostrou?
— Maria, claro. A tua mãe.
Richard inspirou apressadamente.
— Não. Não pode ser. A minha mãe era uma aia. Lembro-me dela. Disseram-me que morreu depois de eu ter sido mandado para Inglaterra, para ser criado pela família de Stokely, num ato de caridade. — Rangeu os dentes quando a memória lhe despertou todo o ressentimento. — Reconheço que seria inevitável que descobrísseis a minha identidade antes que surgisse o momento adequado a que eu a revelasse. Assim que a missão estivesse concluída, e que tivesse em minha posse aquilo que vim buscar, nesse momento dir-vos-ia, para que ficásseis a saber tudo, antes de eu decidir se vos mataria.
— Matar-me? — Thomas sentiu um punho de gelo a fechar-se em torno do coração. — Porquê?
— Porquê? — Richard soltou uma gargalhada seca. — Porque não? Haveis abandonado a minha mãe, forçaste-la a abandonar-me. Haveis feito com que fosse criado por estranhos que sempre me trataram como se eu devesse ter vergonha de estar vivo. Não fosse a família de Sir Oliver e o seu apoio, nunca teria tido oportunidade de chegar a Cambridge e atrair a atenção de Sir Robert Cecil. — Fez uma pausa. — Que foi muito mais um pai para mim do que vós alguma vez fostes.
— Por Deus, juro que não sabia — retorquiu Thomas — Ou teria movido céu e terra para te encontrar e criar-te eu mesmo.
— Claro. Como qualquer outro nobre, sempre disposto a assumir as suas responsabilidades a respeito de um filho bastardo.
— Não. Tudo teria sido bem diferente. Serias, és, meu filho.
— Sou o fruto amargo da vossa breve união com a minha mãe, e nenhum de vós alguma vez me quis.
— Não é verdade. — Thomas deu um passo em frente, angustiado. — Não sabia de ti, e a tua mãe foi forçada a entregar-te. E ainda está viva.
Richard fungou com desprezo.
— Pai, guardai as vossas frágeis mentiras. A verdade, sei-a bem. Walsingham contou-me tudo, depois de investigar o meu passado. Há anos que mo disse, e quando surgiu a oportunidade para esta missão, escolheu-me para a desempenhar e disse-me que tinha autorização para fazer convosco aquilo que bem entendesse quando tudo terminasse.
Thomas estremeceu.
— É vingança o que procuras?
— Evidentemente. Foi essa perspetiva que me fez suportar todos estes anos. E foi essa a recompensa que Walsingham me ofereceu, além de um pagamento extremamente generoso.
Thomas estava estupefacto perante o calculismo gélido que a voz de Richard traduzia; ao mesmo tempo, refletia nos tenebrosos esquemas que perpassavam pela organização de Walsingham. E só então se apercebeu de tudo.
— Meu Deus, há anos que ele planeia isto.
Richard fez uma careta.
— Não vos compreendo.
— Walsingham. Tem estado a preparar-te para esta tarefa. E mantendo-me sob vigilância constante. Deve ter recebido a incumbência dos homens que ocuparam a sua posição anteriormente. Sempre à espera da oportunidade de nos pôr em rota de colisão. — Thomas abanou a cabeça, assoberbado pela profundidade dos esquemas congeminados pelos chefes dos espiões ingleses. Era uma compreensão que tudo iluminava, e foi com dificuldade que Thomas a afastou da mente naquele momento. Encarou de novo Richard.
— Mentiu-te. A tua mãe é Maria. Contou-te uma história para espicaçar o ódio que me tinhas. É portanto tua intenção matares-me, é isso?
O filho contemplou-o em silêncio por momentos, antes de responder.
— Era, sim...
— E agora?
Richard respirou fundo e limpou o suor que lhe humedecia a face com um pedaço de pano. Quando falou, tinha os ombros ligeiramente descaídos.
— Infelizmente passei demasiado tempo na vossa companhia. Apesar de todos os vossos pecados e faltas como pai, acabei por conhecer o homem que há em vós. Vi a vossa coragem e reconheci o vosso sentido de honra, e até a compaixão que sentis pelos outros. Walsingham avisou-me que passar algum tempo ao lado do inimigo enfraquece a resolução de o liquidar. Ele esperava este desenvolvimento, e eu fui suficientemente tolo para lhe jurar que não fraquejaria. Que a minha sede de vingança nunca poderia ser saciada pela vossa companhia. Mas era ele quem tinha razão. Já não albergo em mim o desejo de vos matar. Mas ainda desejava magoar-vos, punir-vos. Era essa a minha nova intenção. Revelar-vos tudo, quer sobrevivêssemos ou não ao cerco. Dir-vos-ia tudo sobre a forma como a minha vida fora estragada, e amaldiçoar-vos-ia.
— Amaldiçoado, sim, já o sou — retorquiu Thomas, a garganta apertada pela tensão de tentar esconder a amargura que ameaçava engoli-lo. — Duas vezes perdi um filho. Uma vez quando me disseram que morrera em criança, e agora, quando soube dos anos que me foram negados.
— Não sois um pai para mim, e nunca o sereis. — Richard fechou os olhos por momentos. — Mas, se é verdade o que afirmas, a minha mãe vive ainda... Meu Deus, ela está ainda viva.
— Tens de ir falar com ela — adiantou Thomas, em tom suave.
— Para dizer o quê? Por onde começar?
Thomas abanou a cabeça.
— Quanto a isso, não sei, mas talvez as palavras surjam quando estiverem face a face.
— Preciso de tempo para pensar... mesmo que a minha mãe viva ainda, isso nada muda entre nós. Repudio-vos como pai. Mas, por muito que me custe, admiro-vos como homem. E por agora é tudo o que pode haver entre nós.
Thomas impediu-se de prolongar a discussão. Ainda havia esperança de que o seu filho pudesse mudar de ideias, ainda havia tempo para uma possível reconciliação. Então recriminou-se amargamente. Não, claro que não havia tempo. Nem para ele, nem para Maria. Daí a poucas horas partiria para St. Elmo, e havia ainda muito a preparar.
Deixou-se cair pesadamente sobre a ponta da cama de Richard e olhou para o filho, ainda magoado por não ter sido capaz de reconhecer nele as feições que herdara de Maria. Sentia a necessidade de se dirigir a ele e afagar-lhe a face, mas deteve a intenção por recear o inevitável afastamento brusco e a impressão que tal gesto daria de que não passava de um velho tolo e desesperado.
— Richard, ofereci-me para reforçar a guarnição de St. Elmo, com o coronel Mas. Partimos esta noite.
O filho encarou-o, mas o olhar desviou-se quando retorquiu num tom calmo:
— Isso é a morte quase certa.
— Assim parece. A menos que Don Garcia e o seu exército cheguem a tempo.
— Pouco provável.
— Sim.
Deu-se um breve e agonizante silêncio, até que Richard engoliu em seco, nervoso.
— Seguir-vos-ei.
Thomas abanou firmemente a cabeça.
— Não. Ficarás aqui, onde tens uma hipótese de sobreviver. Além disso, tens a obrigação de levar o documento a Walsingham.
Richard assentiu.
— Assim é. Mas posso arranjar forma de ele chegar a Inglaterra mesmo que eu morra antes que Malta seja salva dos Turcos. E se cedermos, está suficientemente bem escondido para que o inimigo nunca o encontre. E... a minha mãe sabe que eu estou cá?
— Não. Mas é bem possível que o adivinhe, agora que eu vi a gravura e reagi daquela forma — admitiu Thomas.
— E se ela sabe, é bem possível que outros o adivinhem. Se se descobre que sou um espião, a minha vida pouco valor terá.
Thomas ponderou por momentos.
— Maria nunca poria a tua vida em risco. Manteve o medalhão com o teu retrato em segredo. Até do Oliver.
— Sir Oliver Stokely?
Thomas sorriu com tristeza.
— O marido dela, ao que parece.
— Mas ele é um membro da Ordem. O casamento é-lhe vedado.
— Tal como muitas outras coisas, mas o que não é ostentado é muitas vezes permitido.
Richard lançou-lhe um olhar de curiosidade.
— Deve magoar-vos descobrir isso.
— Tanto como descobrir que tenho um filho. Um filho de quem posso estar orgulhoso.
Richard desviou o olhar.
— Se Sir Oliver descobrir a verdade, serei aprisionado, torturado e executado. Mesmo que ele próprio não tenha estômago para isso, La Valette insistirá em que as coisas se passem assim. Prefiro morrer em St. Elmo de espada na mão do que na roda, ou na ponta de uma corda. Irei convosco.
— Não. — Desta vez Thomas arriscou um gesto, e pegou na mão do filho. — É a morte certa. Não te enviarei para um destino assim.
— Não me enviareis. Sou eu quem o escolhe.
— E eu digo-te que ficas. — As palavars saíram-lhe num repente, como se de uma ordem se tratasse, e Thomas lamentou de imediato o tom em que as proferira. Baixou a voz e prosseguiu com mais calma. — Richard... meu filho, peço-te, não venhas comigo. Este destino, escolhi-o apenas para mim mesmo. Suportá-lo-ei com alegria, se souber que te deu, a ti e à tua mãe, uma hipótese de sobreviver ao cerco. Se estiveres comigo, recearei por ti a toda a hora. Se fosses ferido ou morto perante os meus olhos, morreria mil mortes em St. Elmo, ao invés de uma apenas. Por favor. — Apertou a mão do jovem. — Fica cá.
Richard manteve-se em silêncio, perdido em pensamentos, até que anuiu com evidente relutância, e Thomas se permitiu soltar um pequeno suspiro de alívio.
— Obrigado. — Retirou a mão e levou-a à testa. — Há uma coisa que tenho de saber antes de partir. Esse documento que foste enviado para recuperar. O que é?
Richard olhou-o com ar de desconfiança.
— Porque perguntais?
— Se vou morrer, gostaria que tal acontecesse com uma mente liberta de dúvidas. Antes de eu deixar Londres, Walsingham assegurou-me de que precisava do documento para salvar muitas vidas em Inglaterra. Mas podia estar a mentir-me. Gostaria de saber se fui enviado para Malta sob um pretexto desonesto, ou se contribuí de alguma forma para o bem neste mundo. Portanto, meu filho, diz-me. O que é assim tão importante que tenha levado homens poderosos em Inglaterra a conspirar ao longo de anos, de forma a que os dois acabássemos aqui neste lugar?
Richard considerou o pedido e assentiu rapidamente.
— Já conheço o conteúdo do documento, assumindo que Walsingham me contou a verdade. — Sorriu. — A minha confiança na sua palavra já não é bem a mesma. Será melhor que possais ler por vós o documento. Fazei-me o favor de vos levantardes.
Thomas fez o que lhe fora pedido, e Richard levantou a ponta da cama e afastou-a da parede. A superfície fora rebocada há muito tempo, mas as atividades de gerações de escudeiros tinham feito estalar o estuque em vários pontos, e havia tijolos à vista aqui e ali. Richard ajoelhou-se junto a uma secção da parede que tinha ficado à mostra e pegou na adaga. Inseriu a ponta entre dois dos tijolos e puxou um com todo o cuidado até conseguir agarrá-lo com os dedos e extraí-lo por completo. Colocou-o no solo e enfiou a mão na pequena abertura.
A expressão do jovem gelou, enquanto estendia os dedos de forma a percorrer todo o orifício e soltava uma torrente de imprecações em surdina.
— O que se passa? — quis saber Thomas.
— Não está cá. — Richard olhou em redor com uma expressão de choque. — Desapareceu.
34
Dez dias depois, 22 de junho, forte de St. Elmo
Os canhões inimigos calaram-se, e por momentos reinou o silêncio sobre o terreno martirizado na ponta da península de Sciberras. A poeira no ar em torno do forte começou lentamente a assentar sobre os corpos espalhados pelo solo, dando-lhes a aparência de esculturas em pedra. Alguns já ali estavam a céu aberto há dias, inchados e a entrar em putrefação, espalhando um doentio odor doce pelo ar. Era o meio de junho, e o calor diurno depressa começaria a fazer aumentar o desconforto e a trazer os enxames de insetos que não deixariam de aproveitar para se saciarem nas feridas e nas vísceras dos mortos e moribundos.
Para os defensores, cada dia era um tormento, com o sol inclemente a castigá-los sem pausa, enquanto eles se agachavam por trás do parapeito, vestidos nos seus gibões acolchoados e nas armaduras que rapidamente ficavam tão quentes que eram quase impossíveis de tocar, e se tornavam assim uma fonte de tortura adicional, ainda que os protegessem. O suor escorria livremente pelos rostos e pingava das testas, enquanto aguardavam pelo avanço do inimigo. Para alguns dos homens, mais velhos ou mais fracos que os seus camaradas, o calor era demasiado, e eles tombavam, tentando engolir o ar enquanto remexiam nas fivelas que lhes fechavam as placas em torno do peito, num esforço para tirar as armaduras. Alguns faleciam quando o coração lhes falhava, lançando imprecações incoerentes enquanto as suas línguas inchadas se remexiam contra os lábios gretados.
Houve um movimento súbito nas trincheiras turcas, e um estandarte verde foi agitado no ar, seguido pelo som de tambores e címbalos, em coro com uma aclamação ruidosa. Emergiram cabeças no cimo da trincheira, e depressa os primeiros elementos inimigos surgiram à vista.
— Aí vêm eles! — gritou o capitão Miranda. Virou-se para o tambor que esperava junto dele. — Toca o alarme!
O rufar do tambor começou a soar sobre as arruinadas muralhas do fortim de St. Elmo. Os homens que tinham estado acoitados nas salas do interior saíram para o pátio e correram pelas escadas acima, para ocupar os seus postos nas muralhas, juntando-se aos camaradas de vigia. De imediato, os dois canhões e os atiradores furtivos instalados sobre o revelim capturado abriram fogo, abatendo vários homens que mal tinham chegado ao cimo das defesas.
Thomas estava posicionado na barricada erigida ao cimo do monte de entulho, que era tudo o que restava do canto noroeste do forte. E Richard estava a seu lado, já que nada o persuadira a ficar em Birgu, depois de descobrir que o documento tinha desaparecido. Tinham sido chamados à muralha uma hora antes da alvorada, quando as sentinelas tinham escutado o começo das orações dos imãs — sinal seguro de um ataque iminente. Thomas olhou em redor, para os soldados espanhóis destacados para aquela posição, alguns já agachados por trás do parapeito, outros ainda a correr dobrados sobre si mesmos para os seus postos. Ao longo da barricada estavam dispostas várias selhas, suficientemente grandes para um homem se poder enfiar lá dentro e extinguir o fogo das armas incendiárias do inimigo, se fosse atingido por uma delas. Havia também pilhas de arcabuzes, carregados e prontos a usar, e as armas incendiárias dos defensores — pequenos potes de barro cheios de nafta, dos quais sobressaíam pavios, prontos a ser acesos antes de serem lançados para o meio das fileiras inimigas. De ambos os lados da barricada, onde o parapeito original ainda se mantinha de pé, outros homens preparavam os arcos-de-fogo e sopravam brasas, mantendo-as à beira da ignição. Thomas e Richard estavam de cócoras ao centro da barricada, ao lado do lançador de nafta e da sua equipagem de dois homens. Um operava o fole que projetava o líquido, enquanto o outro ligava a mangueira de couro ao barril que continha a mistura que ardia com ferocidade infernal assim que era inflamada pela chama do pavio colocado à frente do bocal que saía do fole.
— Cuidado com isso — avisou Richard. — Senão, transformamo-nos todos em tochas.
— Senhor, eu sei o que faço — ripostou o espanhol, com um sorriso lúgubre. — Mantende-vos fora do meu caminho, sim?
Os gritos dos inimigos cresciam de volume enquanto se aproximavam da orla do fosso e começavam a subir o entulho que o preenchia agora.
— Mantende-vos agachados! — gritou Thomas, acenando aos homens que tinham a tentação de espreitar por cima da barricada, ansiosos. Os atiradores turcos mantiveram o fogo até ao último instante e, como que para justificar o aviso de Thomas, uma bala fez ricochete numa pedra e tilintou contra o cimo de um capacete cristão próximo, pouco à esquerda do cavaleiro. O homem atingido deixou-se cair, atordoado e a piscar os olhos.
— Mantende-vos em baixo até eu dar a ordem! — voltou a gritar. Olhou rapidamente para os dois lados; os homens observavam-no, ansiosos, agarrados aos arcabuzes ou piques enquanto esperavam ordens. Era já plenamente audível o som de pedras soltas a serem pisadas, por entre aclamações e gritos incoerentes dos mais fanáticos dos elementos inimigos. Thomas refreou o impulso para se levantar e espreitar sobre a barricada, até que por fim respirou fundo, fechou a viseira do elmo, e endireitou-se. Por momentos viu apenas o cimo do monte de escombros, mas logo avistou um turbante e um elmo cónico, e de repente havia na sua frente um mar de rostos ferozes, dos turcos que trepavam pelos escombros para mais uma vez assaltar a muralha arruinada, impedindo os seus atiradores de prosseguirem o fogo.
— Agora! — Thomas ergueu o pique ao alto e, com um urro coletivo, os seus homens puseram-se de pé ao longo de toda a linha da barricada, que ocupava uns vinte metros. Ouviu-se um estrondo quando o primeiro dos arcabuzes foi disparado. Foi um tiro à queima-roupa, e o número de alvos tornava virtualmente impossível falhar o tiro. Thomas viu um homem de vestes brancas e escudo redondo tombar no meio dos seus camaradas, a cimitarra a voltear pelo ar e a desaparecer enquanto ele caía. Outros tiros soaram dos dois lados, e mais turcos foram abatidos enquanto tentavam cobrir os últimos metros mais íngremes até à barricada.
— Preparar armas incendiárias! — gritou Thomas, e os homens encarregados da tarefa acenderam os pavios. — Lançar!
Os homens soltaram grunhidos enquanto atiravam os potes por cima da barricada, com os pavios a arder e a deixar um traço de fumo no ar matinal, descrevendo arcos sobre as cabeças dos inimigos mais próximos e desaparecendo no seio da horda, até estourarem junto ao solo com clarões súbitos, e envolvendo os turcos mais próximos em chamas e fumo. As vestes largas incendiavam-se com facilidade, e os homens berravam de terror e de agonia enquanto se desfaziam das armas e batiam nas chamas; os seus camaradas afastavam-se à pressa, temendo que as labaredas se propagassem sobre eles. À direita, Thomas viu que também estavam a ser acesas as primeiras rodas-de-fogo. Os homens que as seguravam com pinças de ferro levaram-nas até ao parapeito e deixaram-nas rolar sobre a barricada. O rugir das chamas encheu o ar por momentos, mas logo foi abafado pelos gritos de pânico lá em baixo. Nesse momento as primeiras bombas incendiárias turcas tombaram sobre a muralha; uma caiu a curta distância do parapeito. O estrondo foi grande, e Thomas virou-se, assistindo ao espalhar de uma verdadeira piscina de fogo sobre as lajes do pavimento. Apontou para a pilha de potes incendiários ali perto, num cesto, e gritou:
— Tirai isso daí! Depressa!
Os homens mais próximos estavam tão entretidos a disparar os seus arcabuzes que não o ouviram. Pressentindo o perigo, Richard largou o pique e correu para o cesto, saltando sobre as chamas. Pegou no cesto, precisamente quando algum do líquido o alcançava, e pequenas labaredas já lhe lambiam um dos lados. Thomas deu meio passo atrás na barricada, o peito cheio de receio pelo filho. Richard cerrou os dentes enquanto levava o cesto para longe do fogo, só depois parando para bater nas chamas que tentavam pegar. Thomas soltou um suspiro de alívio e voltou a enfrentar o inimigo.
Os turcos, conscientes de que a única forma de evitar o fogo e as balas dos defensores era lançarem-se sobre eles para um combate corpo a corpo tão depressa quanto lhes fosse possível, carregavam sobre a barricada. Mas havia uma última arma entre eles e os cristãos. Thomas fez sinal ao homem que empunhava o fole de lançamento de nafta. Este anuiu e levantou o bocal na direção do inimigo, enquanto acionava o fole. Um jato de nafta líquida saiu e foi instantaneamente incendiado pelo pavio instalado junto à ponta do bocal. Uma língua brilhante de chamas estreitas arqueou perante os atacantes e caiu sobre eles, queimando cabeças, membros e corpos. Os defensores soltaram gritos de deleite e triunfo, enquanto os seus inimigos eram assados vivos à sua frente. Mas nem isso impediu que os turcos continuassem a avançar, passando sobre os camaradas abatidos, sempre a aproximarem-se da barricada.
Thomas preparou o pique. Richard apressou-se a colocar-se ao seu lado, com a arma levantada sobre a cabeça. E por fim os turcos alcançaram a barricada, de ambos os lados da larga frente de chamas emitidas pelo fole de nafta. Através da viseira, Thomas concentrou o olhar num oficial que vestia uma brilhante armadura articulada, e que lançava incessantes encorajamentos aos seus lanceiros, enquanto estes corriam ao assalto. Thomas levantou o pique, apontou cuidadosamente, e lançou-o com toda a determinação. A ponta atingiu o homem, mas a armadura era de boa qualidade e não se deixou perfurar. Ainda assim, o impacto fez o homem perder o fôlego, e ele dobrou-se sobre si mesmo, a arfar. Os seus homens rodearam-no e os sons de choques e contactos de lâminas de aço fizeram-se ouvir ao longo da barricada.
Apesar do número imensamente superior de atacantes, os defensores tinham melhores armaduras, e dispunham ainda da vantagem de ocuparem um ponto mais elevado. A maior parte dos espanhóis tinham pesados piques com que desferiam estocadas que obrigavam os turcos a manterem-se à distância. Os turcos brandiam as suas cimitarras e atacavam as hastes, bem como qualquer braço ou mão expostos. Um homem com uma pele de leão sobre a cabeça e os ombros irrompeu pela turba à frente de Thomas, e agarrou na haste do seu pique, mesmo por trás da ponta metálica. Instintivamente, o inglês segurou-a com toda a força e puxou-a para si. Outro homem imitou o primeiro. Ao lado, Thomas viu um sipaio trepar para cima da barricada e erguer a lâmina, pronto a desferir um golpe sobre Richard, que combatia um fanático de vestes brancas.
Vendo o perigo que ameaçava o filho, Thomas largou o pique, fazendo com que os dois homens na outra ponta rebolassem para trás. Empunhou uma maça que estava encostada à parede da barricada e fê-la girar num arco curto mas poderoso, dirigido às canelas do sipaio, antes que este atacasse. A cabeça de ferro rasgou carne e osso, e o homem caiu para o lado. Thomas fez a arma voltear de novo, esmagando-lhe o crânio numa explosão de sangue, osso e miolos. Richard, ainda inconsciente da ameaça que sobre ele pendera, usava de novo o pique, obrigando o adversário a esquivar-se para não ser atingido na face.
Um impacto brusco no seu ombro esquerdo fê-lo girar, e Thomas usou de novo a maça para afastar a espada de um novo oponente. Nesse momento não tinha outro adversário por perto, e aproveitou para olhar para os dois lados, para avaliar a forma como decorria o combate. Havia três homens no chão, derrubados por trás da barricada. Outro homem tinha perdido uma mão, e mantinha o coto apertado junto ao peito enquanto tentava dirigir-se às escadas. Foi avistado por um atirador no revelim, e a cabeça deu-lhe um salto para o lado quando foi atingido. Caiu de borco, a poucos metros da salvação.
Um movimento à sua direita despertou-lhe a atenção, e mal teve tempo para se desviar do golpe de uma lâmina curva que se abatia sobre ele. Embateu com um profundo retinir na sua guarda do ombro. Virou-se rapidamente e bateu na espada com a maça, obrigando-a a cair sobre uma pedra no cimo da barricada. A lâmina partiu-se, e o turco que a empunhava lançou uma imprecação e atirou os restos da espada contra o cavaleiro inglês, sem lhe causar qualquer dano. Os protestos do homem foram abruptamente interrompidos quando Richard lhe rasgou o peito com a ponta do pique. O homem conseguiu libertar-se com um grunhido, e recuou para o seio da horda de turbantes, elmos cónicos e vestes largas.
Uma seta passou a zunir junto à cabeça de Thomas, e ele reparou que alguns arqueiros inimigos se tinham posicionado nos montes de escombros, e disparavam sobre as cabeças dos seus camaradas. Os defensores, estando num plano mais elevado, constituíam alvos fáceis.
— Cuidado com as setas! — avisou Thomas, num grito que se sobrepôs ao clamor da batalha. Foi ainda assim tarde de mais para o soldado que operava o fole de nafta. Uma seta atingiu-o no ombro, e a mão saltou-lhe de uma das pegas do fole. O bocal tombou e deixou de projetar chamas. De imediato os turcos mais próximos soltaram um grito de satisfação.
— Richard! — gritou Thomas. — Pega no fole!
Richard anuiu e largou o pique, acorrendo ao soldado ferido e pegando na arma que ele estivera a usar. Do outro lado da barricada, os turcos começavam a avançar, sentindo que estava ao seu alcance uma ocasião de prevalecer definitivamente sobre os defensores. Richard pegou no fole e pousou a arma sobre a barricada, apoiando o bocal sobre uma pedra lisa que ali tinha sido colocada para esse propósito. Preparou a arma, fazendo com que o líquido voltasse a correr. Soltou-se de imediato um novo arco de chamas. Richard apontou-o diretamente para o meio da massa de turcos que progredia para o centro da barricada, e o fogo abateu-se sobre eles, incendiando-os como tochas humanas que gritavam e se contorciam enquanto ardiam até à morte. Trabalhou com uma expressão determinada, percorrendo toda a frente, lançando fogo sobre a horda agora aterrorizada. Os que vinham mais atrás interromperam a sua progressão, observando com horror a terrível cena à sua frente, e começaram a recuar, procurando abrigo no meio dos escombros espalhados junto ao fosso.
O medo propagou-se de homem para homem, e depressa os que tinham alcançado a barricada começaram a recuar, até que só restava um oficial a gritar desafios aos cristãos, e desprezo aos seus próprios homens, que fugiam. Fazia balançar uma pesada cimitarra sobre a barricada, tentando afastar os oponentes. Trepou para o parapeito e, à vista de todos, instou os seus homens a seguirem-no. Porém, um dos espanhóis pegou num arcabuz, agachou-se, apontou e abateu-o calmamente com um tiro no queixo. A bala irrompeu pelo cimo do turbante num jato de sangue, e ele ficou imóvel por um instante, como uma estátua, até tombar sobre os corpos calcinados e ensanguentados dos seus homens no exterior da barricada.
Aliviado, Thomas compreendeu que tinham quebrado o ímpeto do ataque inimigo.
— Abrigai-vos — ordenou, chamando os homens que o rodeavam. — Richard, tu também. — O jovem ainda se expunha claramente por trás do fole.
Richard baixou a arma e agachou-se por fim por trás da barricada, para apagar a pequena chama do pavio e se assegurar de que o fole não provocava problemas. Se o inimigo voltasse ao ataque, o pavio podia ser de novo ateado rapidamente a partir das brasas usadas para dar fogo aos arcabuzes.
Thomas soltou um brado.
— Sargentos, mantende o inimigo sob vigilância!
Dirigiu-se ao lado esquerdo da barricada, e foi tomando nota das baixas ao longo do caminho, enquanto lançava palavras de encorajamento e louvor aos soldados espanhóis cujas faces sujas se abriam em sorrisos perante o facto de terem sustido outro ataque e terem sobrevivido. Alguns não tinham tido tanta sorte. Dos quarenta homens que ocupavam aquela posição pela manhã, quatro estavam mortos e outros cinco feridos, embora três ainda fossem capazes de usar armas e se recusassem a abandonar os seus postos. Os outros gatinharam até às escadas e recolheram a custo à enfermaria.
Depois de regressar ao seu lugar ao centro da linha, Thomas deixou-se cair junto a Richard com um suspiro de cansaço.
— Água? — Richard ofereceu-lhe o cantil, e Thomas agradeceu-lhe com um aceno enquanto pegava no recipiente, tirava a rolha e inclinava a cabeça para trás, sorvendo um bom trago e fazendo-o circular pela boca seca, antes de o baixar e devolver. Olhou para o céu limpo que os cobria. Daí a poucas horas, as muralhas estariam a escaldar, e não haveria qualquer sombra disponível. Teria de assegurar que havia água suficiente para aguentar os homens mais um dia. Agora que o assalto falhara, o inimigo dedicar-se-ia como de costume aos disparos ocasionais sobre os defensores, enquanto os oficiais tentavam convencê-los a formar e preparar outra carga.
Já tinham decorrido vários dias desde que ele, Richard e o coronel Mas se tinham juntado à guarnição de St. Elmo. Ao longo daquele tempo, tinha reparado na crescente relutância do inimigo em renovar os assaltos depois de se ver rechaçado. Tinham-se dedicado aos disparos furtivos e a pequenos ataques para tentarem lançar peças incendiárias para o meio dos cristãos. A guarnição chegara a ser de oitocentos homens. Quando Thomas chegara ao forte, esse número estava praticamente reduzido a metade, e agora já só restavam uns trezentos. Todas as noites chegavam alguns reforços de Birgu, mas era claro para os defensores que o Grão-Mestre começava a poupar as suas tropas para o combate que se avizinhava quando St. Elmo caísse por fim nas mãos do inimigo. E já pouco tempo faltava para isso suceder, refletiu Thomas.
Olhou para o filho.
— Devias ter ficado em Birgu.
Richard abanou a cabeça.
— Não tinha grande escolha, a partir do momento em que descobri que o documento tinha desaparecido. Alguém sabe mais sobre mim, sobre vós, do que nos convém. Falhei na minha missão, e não estaria em segurança se tivesse ficado em Birgu. Pelo menos aqui estou certo de que ninguém me persegue. — Soltou uma risada. — O problema é que, se os turcos não nos aniquilarem, e se por algum milagre Don Garcia chegar com uma força de socorro, o mais provável é que acabe nas mãos dos verdugos ao serviço de La Valette.
— Parece-me bem que esse é agora o menor dos nossos problemas — retorquiu Thomas, calmamente. — Os turcos acabaram de instalar uma bateria que cobre todo o porto. Não nos chegarão mais reforços de St. Ângelo. — Deitou uma olhadela aos soldados acoitados por trás da barricada. Muitos estavam feridos e ostentavam ligaduras sujas, e os rostos exauridos mostravam claramente o estado de exaustão e resignação perante o destino inevitável que os aguardava. Voltou-se de novo para o filho e sentiu uma enorme tristeza a tomar conta do seu ser.
— Devia ter fugido com Maria e tê-la levado para Inglaterra comigo, fosse qual fosse o risco que corrêssemos. Se tivesse sido assim naquele momento, nenhum de nós estaria agora nesta posição.
Richard encolheu os ombros.
— É demasiado tarde para isso. Nada pode ser alterado. Não há qualquer vantagem em vos culpardes, pai.
A palavra saiu-lhe dos lábios antes que se apercebesse de que a pronunciara, e os dois homens encararam-se.
— Tinha esperança de te ouvir chamar-me por esse nome antes do fim. — Thomas afagou-lhe o braço com afeição. — Obrigado.
— Sou o vosso filho — respondeu Richard, simplesmente.
Thomas sorriu.
— Meu filho... Soa bem. Tenho orgulho em ti. E sei que a tua mãe também o teria. — Thomas contemplou o solo entre as botas e pensou por momentos. — Que trapalhadas fazemos nesta vida. Temos tão pouco tempo neste mundo, e eis o resultado. Que desperdício... Devia ter construído uma vida melhor para nós. Lamento.
— Não há necessidade de desculpas — comentou Richard, com ar fatigado. — Além disso, se morrermos como mártires da causa, temos lugar assegurado no Paraíso, claro.
Thomas manteve-se calado por momentos.
— Acreditas realmente no Paraíso, Richard? Em Deus, na nossa fé, na Bíblia?
O filho lançou-lhe um olhar preocupado.
— Essas questões podem ser perigosas, se escutadas por outros. Se fosse a vós, mantê-la-ias para mim.
— Estamos muito para lá dessas preocupações, agora.
Richard encheu as bochechas de ar, soltou-o, e pensou um pouco antes de prosseguir.
— Dizeis que não tendes fé na Igreja de Roma?
— Não. Nem na Igreja de Roma, nem em qualquer Igreja ou fé. Tudo morreu para mim, e já faz muitos anos que assim é.
Richard encarou-o e abanou a cabeça.
— Nesse caso, para que serve esta guerra? Porque estais então pronto a morrer ao serviço da Ordem?
— Estou aqui porque nada tenho que me dê uma razão para viver. Perdi Maria, e nada posso fazer para te proteger. Tudo o que me resta é lutar para impedir o triunfo e a tirania de outra fé falsa sobre o mundo. Solimão ameaça o mundo que eu conheço, e essa é razão suficiente para me opor a ele. Diz-me, Richard. Acreditas em Deus?
Richard permaneceu em silêncio.
— Não és nenhum tolo — prosseguiu Thomas. — Deves ter-te interrogado sobre a razão por que as tuas preces nunca são respondidas; porque é que Deus nada faz para impedir o mal. — Fez uma pausa. — Alguma vez leste o paradoxo de Epicuro?
Richard abanou a cabeça.
— Se bem me lembro, é algo deste género:
Se Deus quer mas não pode,
Não é omnipotente.
Se pode mas não quer,
É malévolo.
Se quer e pode,
Porque existe então maldade no mundo?
Se não quer nem pode,
Porquê então chamar-lhe Deus?
Acenou com a mão, designando todo o cenário.
— Se alguma vez houve necessidade de Deus se manifestar, de dar o mais pequeno sinal de encorajamento aos que o servem, é aqui e agora. Porém, nada existe, nada se passa, somos apenas nós e o inimigo.
Richard fez uma careta.
— Pensei nisso, mas as implicações não me agradam.
Thomas assentiu e deixou o assunto passar. Mas havia outra questão para a qual necessitava de uma resposta.
— Esse documento que tantos problemas nos tem dado, afinal de que se trata exatamente?
— Será melhor que não o saibais.
— Mas ias-mo mostrar, lá em Birgu.
— Estava errado. Se fordes capturado vivo, existe o perigo de virdes a revelar o que sabeis sobre o documento. Lamento, mas não posso dizer mais nada. Por favor, esquecei o assunto.
Thomas sentiu o desapontamento por verificar que Richard não confiava plenamente nele. Calou-se por momentos, antes de se levantar ligeiramente, agachando-se para espreitar com todo o cuidado por cima da barricada. O terreno repleto de escombros e cadáveres que se estendia à sua frente estava calmo. Viu então um movimento e reparou numa pluma a agitar-se ligeiramente por trás de um bloco de pedra tombado, e escondeu-se no preciso momento em que o atirador furtivo disparava. A bala atingiu uma pedra próxima ao ponto onde a sua cabeça estivera, e ricocheteou, saltando para o interior do fortim.
As horas prolongaram-se enquanto eles aguardavam por trás da barricada, e os atiradores de ambos os lados tentavam atingir qualquer um que se expusesse descuidadamente.
35
O coronel Mas surgiu por volta do meio-dia, passando de posição em posição a recolher relatórios sobre os combates matinais e os números de baixas, para apresentar a Miranda. Apesar de possuir uma patente superior, Mas tinha decidido obedecer às ordens do capitão. A guarnição tinha os olhos em Miranda, que por sua vez a inspirava com a sua coragem e calma debaixo de fogo, e o coronel tinha tido o bom senso de não perturbar a ordem estabelecida.
Escutou o relato que Thomas lhe fez do assalto, e tomou nota das baixas num pedaço de papel amarrotado que voltou a dobrar e a colocar na sacola.
— Como vão as coisas no resto do forte? — perguntou Thomas.
— Nada bem — admitiu Mas. — O inimigo enviou um grupo para norte do forte, aproveitando a distração criada pelo ataque às muralhas, e conseguiu penetrar na torre externa. Ocuparam-na. Todo o forte está cercado, à exceção de um trilho que vai dar ao molhe.
— Mas se eles ocuparam a torre, então esse caminho também não é seguro.
— É sim. É uma vala de esgoto. Removemos a grelha de proteção e camuflámos a abertura. Sempre nos dá uma via de comunicação com Birgu, embora isso de pouco valha.
Richard passou a vista pelas muralhas semiarruinadas do forte até à torre isolada que se erguia entre o forte e o mar. Sobre o parapeito desta, esvoaçava agora uma flâmula verde, e de vez em quando surgia uma cabeça a espreitar para o forte em baixo.
— Dali podem vigiar tudo o que se passa no pátio.
O coronel Mas anuiu.
— Dizei aos homens para tomarem todas as precauções quando descerem da muralha para irem buscar munições, água ou comida. Daqui em diante, o Miranda quer que os homens se mantenham nos seus postos. Será mais seguro dessa forma. E quer os oficiais reunidos na capela ao entardecer. Cuidado até lá chegarem. — Acenou uma despedida, agachou-se e escapuliu-se para a secção seguinte da muralha.
Thomas e os outros mantiveram-se sentados ao sol, mordiscando de vez em quando um biscoito seco ou uma tira de carne curada, tanto para acalmar o apetite como para ajudar o tempo a passar. O sol abatia-se sobre eles sem clemência, e o suor escorria-lhes das testas à medida que coziam dentro das suas armaduras metálicas e pesadas. Várias vezes se escutou uma chuvada de disparos e se ouviram gritos vindos de uma das outras secções da muralha, e nessas ocasiões os homens agarravam-se às armas, temendo que fosse o prenúncio de um novo assalto. Mas o combate amainava rapidamente, e voltava-se ao lento ritmo do cerco.
Por fim, o Sol desceu para o horizonte, começando a lançar longas sombras sobre as muralhas e a dar algum alívio do calor que os defensores tinham suportado ao longo de tantas horas. À medida que a luz morria, soou uma trombeta nas linhas turcas, e os homens que tinham estado acoitados por entre as pilhas de escombros à frente do forte recuaram, colados ao solo, de volta às trincheiras. Assim que o último se abrigou, as baterias na crista rochosa ribombaram e retomaram o bombardeamento do forte. Quase por instinto, os homens que defendiam as muralhas estremeceram e encolheram-se um pouco mais.
Thomas tocou no braço de Richard.
— Vou apresentar o relatório ao Miranda. Ficas no comando até que alguém te substitua. Regressarei o mais depressa possível.
— Sim, senhor — respondeu Richard, antes de sorrir perante a sua própria formalidade. — Sim, pai.
— Mantém a cabeça baixa, percebido?
Richard anuiu, e Thomas lançou um último olhar ao filho, para o caso de não voltar a ter essa oportunidade, e sentiu, ao afastar-se, o já familiar aguilhão da culpa misturada com afeição.
Moveu-se agachado até ao ponto em que o ângulo da muralha já não o podia proteger, nem da torre nem do revelim. Espreitou para as duas fortificações ocupadas pelo inimigo e avistou cabeças a espreitarem de volta, dos soldados turcos que vigiavam o forte. Logo vários tiros foram disparados da torre, já que o inimigo avistara sinais de movimento numa secção próxima da muralha.
Aproveitou a diversão e correu pelo espaço aberto, na direção das escadas que levavam ao pátio. Ouviu um grito vindo do revelim, seguido de uma rajada. Estilhaços de pedra passaram perto dele, mas Thomas continuou a correr e desceu as escadas aos saltos, quatro e cinco degraus de uma vez, numa correria que ameaçava o próprio equilíbrio. Na base das escadas lançou-se para trás de um pedaço de muralha que o protegia da vista do inimigo e respirou fundo, ofegante. Em redor, o pátio estava repleto de escombros e poeira no ar, a qual se enfiava pela garganta. Havia poucos homens à volta, agora que o inimigo conseguia alcançar quase todo o interior do forte a partir das posições que ocupava.
Quando recuperou o fôlego, foi rodeando o pátio, dirigindo-se à capela, que felizmente ficava fora da linha de fogo. Um pequeno grupo de homens estava sentado a um dos lados da porta, a jogar aos dados sem ponta de entusiasmo, e mal olharam para ele quando passou e entrou na capela. O edifício poucas parecenças tinha com uma igreja normal; estava embutido no forte, e tinha apenas umas poucas janelas altas, que o transformavam num sítio escuro e pesado, onde a guarnição prestava culto. Embora tivesse capacidade para cerca de quatrocentas pessoas, naquela tarde só lá estavam alguns homens, sentados nos bancos arranjados em círculo, no espaço em frente ao altar. A maior parte dos oficiais, bem como o frade, Robert de Eboli, já lá estavam quando Thomas percorreu a igreja, a desapertar as fivelas que lhe prendiam o elmo e a tirá-lo.
O capitão Miranda estava sentado numa cadeira. Tinha o braço esquerdo ao peito, e a perna direita entre talas improvisadas a partir dos cabos de alguns piques. Em torno do joelho tinha uma ligadura ensanguentada. A cara estava queimada pelo sol, e a pele apresentava-se vermelha e a pelar. O coronel Mas também tinha sido ferido nessa tarde, e mal se reconhecia debaixo das ligaduras que lhe cobriam um olho e metade da cabeça. Quase todos os outros oficiais tinham sido feridos, e Thomas refletiu que a reunião se parecia mais com uma enfermaria do que com um conselho de oficiais. Todos tinham um ar exausto e imundo, e aquilo que tempos tinham sido barbas bem aparadas eram agora montes de pelos emaranhados e colados por sangue seco e restos de comida.
— Fico feliz por verificar que ainda estais connosco, Sir Thomas. — Miranda forçou-se a sorrir. — Sois dos poucos que ainda se mantêm de pé.
Thomas assentiu e sentou-se num dos bancos, tentando ignorar a dor nos membros e o desconforto das roupas que não trocava havia mais de uma semana. Não havia tempo nem disposição para conversas de ocasião enquanto esperavam pelo último oficial, e, quando este chegou, Miranda dirigiu-se de imediato aos seus subordinados.
— Somos agora menos de cem a guarnecer as muralhas, e muitos de nós já foram feridos. Os turcos tomaram a torre, e graças a isso podem fazer fogo de cobertura para proteger quem tentar atravessar o fosso com escadas de assalto para lançar contra o que nos resta de parapeito. Senhores, o fim está próximo. Estamos praticamente sem pólvora. Duvido sinceramente que possamos sobreviver ao próximo dia. — Fez uma pausa. — Combatemos duramente perante forças muito superiores. Podemos orgulhar-nos dos nossos feitos. Aguentámos muito mais do que se julgava possível. Tenhamos esperança de que a nossa perseverança tenha permitido ao Grão-Mestre preparar Birgu e Senglea para o assalto que ocorrerá assim que formos destruídos. Dei ordens para que as tapeçarias da capela e todos os objetos sagrados fossem destruídos ou escondidos. Assim que Robert de Eboli e os outros irmãos tiverem cumprido essa tarefa, passarão por todas as posições; aceitarão a confissão e administrarão os últimos ritos a todos os que assim desejarem. O coronel Mas tratará de organizar uma última distribuição de água a toda a guarnição, antes de as cisternas serem inquinadas com cadáveres do inimigo. Todos vocês devem destruir tudo o que tiver qualquer valor se cair nas mãos do inimigo. — Fez nova pausa e olhou em redor, para cada oficial à vez. — Há uma fogueira sinaleira preparada no bastião, onde pode ser vista do outro lado do porto. Se o forte estiver à beira de cair, o último homem capaz deve acendê-la. Depois disso, será cada um por si. Alguém tem alguma coisa a acrescentar?
Um dos mais jovens cavaleiros avançou.
— Senhor, será demasiado tarde para evacuar o forte? Podíamos pedir voluntários para formar uma retaguarda enquanto sinalizávamos a Birgu, para que nos enviassem embarcações.
Miranda abanou a cabeça.
— Demasiado tarde. No momento em que o inimigo se apercebesse do que se estava a passar, varreria os poucos que estivessem ainda por cá e massacraria o resto enquanto tentavam escapar. Além disso, há demasiados feridos, não os poderíamos evacuar. Devemos resignar-nos ao nosso destino e tomar a resolução de partir em combate, de uma forma que reflita os elevados padrões da Ordem de S. João.
— E quanto aos feridos? — indagou o coronel Mas. — Não podemos deixá-los cair nas mãos do inimigo. Já vimos o que os Turcos fazem aos seus prisioneiros.
Thomas observou de perto a reação de Miranda.
— Os feridos serão trazidos para aqui. A cada homem será entregue uma adaga, que poderá utilizar para lutar no leito, ou como lhe aprouver.
Miranda tinha escolhido bem as palavras, já que o suicídio era um pecado.
— Quando os turcos ultrapassarem as muralhas, todos os homens que conseguirem deverão retirar para aqui. Nesta capela travaremos a nossa última batalha. Se algum de vós decidir pedir clemência, será a sua escolha, mas se fosse a ele, não esperaria grande coisa. O inimigo pagou um alto preço de sangue por esta conquista, e está sedento de vingança. — Fez uma pausa. — Há uma boa notícia que quero partilhar convosco. Capturámos hoje um prisioneiro que nos afiançou que Dragut foi abatido pelo disparo de um dos nossos, quando inspecionava as máquinas de cerco.
Os oficiais murmuraram o prazer que a notícia lhes trouxera.
— É um sinal. — Frei Robert levantou-se e ergueu uma mão, apontando um dedo ao teto. — O Senhor observa-nos, e a Sua mão derruba o nosso inimigo.
— Foi uma bala que matou Dragut — comentou Thomas em surdina. — Ninguém o atirou para o lado.
Alguns dos oficiais sorriram, mas Robert virou-se, irado.
— Inglês, portais-vos como um ímpio. Orámos pela salvação, e o Senhor resolveu responder ao nosso pedido.
— Fico feliz — ripostou Thomas, mesmo antes de uma bala de canhão turca atingir o telhado da capela e fazer desabar estuque e poeira sobre os bancos mais próximos da entrada. Os oficiais estremeceram, e depois de um curto silêncio, Thomas prosseguiu: — Ao que parece, talvez não tenhamos orado o suficiente.
Robert apontou-lhe o dedo.
— Como vos atreveis a tamanha impertinência? Por acaso duvidais do Senhor Nosso Deus? — Os olhos dele semicerraram-se. — Isto cheira a heresia. Capitão Miranda, este homem deve ser detido, e a sua fé examinada.
— Não sejais absurdo — rosnou Miranda. — Neste momento, dava bem o meu peso em ouro para ter uma companhia de hereges a combater ao nosso lado. — Suspirou e esfregou a testa. — Calculo que tenha sido o cansaço a toldar a mente de Sir Thomas. Os seus comentários nada significam. Se assim o desejais, Robert, deveis oferecer uma prece por ele, enquanto rezais pela ajuda divinal.
O padre manteve a sua posição por momentos, de expressão furiosa no rosto. Por fim, a expressão amainou, e ele inclinou a cabeça e sentou-se.
— Todos estamos exaustos, senhor. Como tal, perdoo a Sir Thomas.
Thomas rangeu os dentes e respondeu num tom irónico:
— E eu aceito o vosso perdão.
A porta da capela abriu-se, e um sargento entrou em corrida, lançando um brado.
— Senhores, há barcos a saírem de Birgu!
Miranda franziu o cenho.
— Barcos? É uma loucura. La Valette não deve saber ainda que o inimigo cobre todo o porto com as suas armas. Sir Thomas, ide até à muralha e tentai avisá-los, antes que seja tarde de mais. Ide!
Thomas pegou no elmo e correu em direção ao sargento.
— Mostrai-me.
Felizmente já tinha caído a escuridão, e os atiradores inimigos já não conseguiam distinguir os alvos dentro do forte. Thomas e o sargento correram pelas escadas até à secção da muralha que dava para o porto. Tinha sofrido poucos danos, pelo que se aproximaram do parapeito e contemplaram o porto na escuridão, olhando na direção da forma maciça de St. Ângelo.
Thomas perscrutou a água até os avistar, seis pontos negros a avançarem para a península. No momento seguinte os artilheiros turcos também os divisaram, e depressa se ouviu um disparo à direita de Thomas, quando os turcos metralharam a flotilha. Levantaram-se inúmeros salpicos das pequenas ondas à frente dos barcos.
Thomas levou as mãos em concha à boca e gritou com todas as forças, sentindo os pulmões a arder com o esforço:
— Voltai para trás! Voltai para trás!
Mas continuaram a avançar, e outro disparo soou, embora não tivesse sucesso. O terceiro disparo atingiu o barco da frente, e o estilhaçar das madeiras, associado aos gritos dos homens atingidos, chegou claramente aos ouvidos dos homens na muralha.
— Deus meu — lamentou o sargento. — Vão ser feitos em postas.
— Voltai para trás! — gritou Thomas de novo. — Por piedade, voltai para trás! Salvai-vos!
As embarcações estavam já a meio caminho, mas mais próximas da bateria turca, e facilmente visíveis contra o escuro cinzento do mar no horizonte. Mais disparos se abateram sobre a superfície da água, e logo outro dos botes foi atingido, a proa desfeita pela saraivada de fragmentos metálicos. Começou a afundar-se, e alguns dos homens ainda a bordo saltaram para a água e começaram a nadar na direção de St. Ângelo. Alguns usavam armaduras e levavam armas, pelo que se debateram para se livrar delas antes que a água os engolisse. Mas depressa o bote e os homens desapareceram. Thomas sentiu-se nauseado pelo acontecido.
O sargento esticou o braço e apontou.
— Estão a voltar para trás!
O último dos barcos tinha girado e começava a regressar a Birgu. Outro imitou-o, mas dois mantiveram o rumo
— Remem mais depressa, porra — murmurou o sargento.
Thomas desejou ardentemente que se apressassem. Depressa passariam para fora do alcance das armas turcas, protegidos pela falésia. Outra arma troou, varrendo a superfície da água mesmo por trás do barco mais atrasado. Mas já estavam a salvo dos canhões. Tinham ainda de enfrentar os atiradores inimigos espalhados por entre os rochedos em redor do forte. Thomas virou-se para o sargento.
— Pegai em cinco homens e ide ter comigo à vala nas traseiras da capela. Sabeis onde fica?
— Sim, senhor.
— Então ide.
Separaram-se, e Thomas regressou à capela, enquanto o sargento corria ao longo da muralha, na direção do ângulo do forte que dava para o porto. Quando Thomas entrou na capela, todos se viraram para ele.
— Então? — quis saber o coronel Mas. — Conseguiram passar?
— Só dois dos botes, senhor. Estão a aproximar-se do molhe agora mesmo. Vou sair com um grupo pela vala, para os trazer cá para dentro.
O coronel anuiu.
— Vou colocar um guarda na vala até regressarem.
O sargento apareceu com os homens da milícia maltesa e Thomas levou-os para as traseiras da capela. Ali, no canto por trás do altar, situava-se um acesso ao esgoto. Agachou-se para levantar a tampa e pô-la de lado. O fedor dos excrementos humanos encheu o ar, mas Thomas ignorou-o e desceu para o túnel baixo. Havia um brilho pálido no ponto onde a vala saía do forte, onde uma tela de tecido fora pintada para parecer uma rocha, escondendo a abertura. Thomas avançou pela vala, e os homens seguiram-no. Ao chegar à tela, parou e afastou-a com todas as cautelas. Não havia sinais de movimento nas rochas por baixo da muralha. A vala seguia por um estreito canal até ao mar, perto do trilho que ia dar ao molhe.
— Sigai-me — sussurrou Thomas, e levou-os para o ar fresco da noite no exterior. O grupo avançou em silêncio sobre o chão pedregoso, até chegarem ao trilho. Thomas escutou o som dos remos, e apressou-se. Tinham quase chegado aos degraus que desciam para o molhe quando uma figura emergiu das rochas e lançou uma saudação amigável numa língua que Thomas não reconheceu. Ergueu uma mão à laia de resposta e avançou enquanto o homem continuava a falar. Só no último momento é que o tom do outro se alterou, denunciando o alarme, mas nesse momento foi silenciado por um golpe na cabeça aplicado por Thomas, antes que pudesse gritar. Um dos soldados malteses cortou-lhe imediatamente as goelas, e o pequeno grupo prosseguiu pelas escadas abaixo. Na base destas, Thomas viu os dois botes a acostarem e os homens a saírem. Um deles deteve-se quando avistou Thomas e o seu grupo a aproximarem-se.
— Quem vem lá?
— Vimos de St. Elmo — anunciou Thomas no tom de voz mais elevado que resolveu arriscar. — Viemos escoltá-los até ao forte. Quantos são?
— Dezasseis. Os últimos voluntários de Birgu.
— Quem vos comanda?
— Eu. — Um homem alto avançou na direção de Thomas. Não havia qualquer necessidade de anunciar o seu nome. Thomas tinha-lhe reconhecido a voz, e acenava já um cumprimento.
— Bem-vindo ao forte de St. Elmo, Sir Oliver.
36
Depois de Stokely se ter apresentado ao capitão Miranda, Thomas puxou-o para o lado e segredou-lhe com ênfase.
— Temos de falar.
— Sim, temos — retorquiu Stokely. — Mas seria melhor que o fizéssemos num local com maior privacidade.
— Segui-me. — Thomas conduziu-o para fora da capela, através do pátio, até à sala de refeições.
— Não são propriamente as mais cómodas acomodações — comentou Stokely ao olhar em volta do grande salão, que em tempos servira de sala de refeições para toda a guarnição. Logo no início do cerco, o capitão Miranda tinha feito instalar algumas mesas de jogo e um bar improvisado, onde os homens podiam comprar os melhores vinhos dos armazéns. Agora que os soldados tinham abandonado qualquer esperança de saírem vivos do forte, tinham também desistido de tentar ganhar dinheiro aos seus camaradas, e tinham deixado o local deserto. Servia agora como enfermaria, e havia trapos ensanguentados e cestos cheios de ligaduras espalhados pelo chão. A pouca iluminação era fornecida por umas velas dispersas, e ouviam-se ocasionalmente gemidos e tosse dos homens que jaziam em enxergas junto a uma das paredes. Thomas encontrou uma garrafa de vinho ainda por abrir atrás do balcão, e instalou-se numa mesa no canto da sala, onde serviu uma taça para cada um, empurrando uma sobre o tampo na direção de Stokely.
Este hesitou um momento antes de lhe pegar e se forçar a sorrir.
— A que vamos brindar?
Thomas ergueu a sua taça.
— A Maria.
— Ah, sim... Maria.
Beberam um pouco, cada um deles observando o outro sem esconder a desconfiança. Por fim, Thomas pousou lentamente a sua taça.
— Oliver, porque estais aqui?
— Ofereci-me para o último grupo de reforços para St. Elmo.
— E La Valette deu-vos permissão para virdes?
— Não soube de nada. Suspeito que depressa descobrirá. Mas é tarde de mais para me deter. Para o melhor ou para o pior, cá estou.
— Para o melhor? — Thomas soltou uma gargalhada amarga. — De que forma poderá isto ser melhor? Oliver, estais completamente equivocado. Aqui só vos espera a morte.
— Sei-o bem. — Beberricou um pouco de vinho. — Nada mais procuro, agora que conheço e que aceito a verdade.
— E que verdade poderá essa ser?
Stokely pegou na taça entre as duas mãos, como se os dedos se fechassem com delicadeza sobre a garganta de alguém.
— Antes de deixardes Birgu, descobristes onde estava a Maria e fostes vê-la.
Thomas hesitou. Não queria que algum mal recaísse sobre Maria por causa da sua necessidade de lhe falar, mas a verdade é que isso já pouca diferença poderia fazer, naquelas circunstâncias. Stokely estava condenado, tanto como outro qualquer dos homens que restavam em St. Elmo.
— Sim, fui.
Stokely acenou levemente.
— Obrigado pela honestidade. A verdade é que vos vi a sair da casa.
— Percebo. — Thomas sentiu um temor a crescer-lhe no peito. — E o que fizestes? Oliver, se lhe fizestes algum mal...
— Depois de vos ver sair da casa, da nossa casa, a minha mente encheu-se de penosas imagens. Apesar do nosso casamento de todos estes anos, nunca perguntei a Maria quais os sentimentos que nutria por vós. Ela sofreu horrivelmente por vos perder, e por perder o filho, mas foi forte, e seguiu em frente. A seu tempo acabou por aceitar o que se passara, ultrapassá-lo e refazer uma vida. — Oliver fez uma pausa e suspirou. — Quando ela aceitou tornar-se minha esposa, eu tive perfeita consciência de que nunca passaria de uma pálida sombra do que ela realmente desejava, mas a verdade é que isso para mim era suficiente. Além disso, passámos bons tempos juntos, e ela parecia satisfeita com o que o destino acabara por lhe reservar. — Fez nova pausa, e a leveza do tom com que falara até ali desapareceu de súbito, dando lugar a alguma raiva. — Tudo isso se alterou a partir do momento em que ela vos viu. Maria nada disse quando voltou a casa, mas eu soube de imediato. Tinha tentado mantê-la longe de vós, na nossa quinta perto de Mdina, mas a partir do momento em que a frota inimiga foi avistada, tornou-se evidente que Maria teria de recolher a Birgu, e que chegaria o momento em que descobriria que tínheis regressado. Quando lhe perguntei, ela contou-me o que sucedeu. — Encarou Thomas com mal disfarçada fúria. — Não consigo explicar a forma como isso me dilacerou o coração. Exigi-lhe que nunca mais vos voltasse a ver ou vos dirigisse a palavra. Temi que ela ainda quisesse estar convosco. Pensei em lançar-me de joelhos aos seus pés e implorar-lhe para ficar comigo. Pensei em jurar-lhe que preferia morrer a perdê-la. Em vez disso, fiz algo muito mais estúpido, algo tão mesquinho que estremeço de vergonha ao recordá-lo agora. — Stokely pegou na taça e vazou-a de um trago. — Ameacei-vos.
— A mim? Como?
— Disse-lhe que tinha informações que podia usar para vos fazer deter e condenar como espião. A vós e ao Richard... o filho dela.
A sensação que já tivera de ameaça regressou, mais fria e perigosa. Thomas debruçou-se sobre a mesa.
— Que informações? — perguntou, quase num silvo.
Stokely não se deixou intimidar. Contemplou Thomas com desdém.
— Por acaso pensais que não sabia do medalhão? No instante em que pus os olhos em Richard soube precisamente de quem se tratava. O que me surpreendeu foi que depressa se tornou evidente que isso não tinha sucedido convosco. Claro, desde o princípio que tinha suspeitado que a vossa rápida resposta ao apelo do Grão-Mestre se devia a razões outras, pouco relacionadas com o desejo de servir a Ordem. Mas Richard? As últimas notícias que tivera dele, através do meu primo, indicavam que tinha deixado Cambridge para se pôr ao serviço de um patrono em Londres, nem mais nem menos do que Walsingham. É evidente a razão da sua presença aqui. O jovem Richard vendeu a alma ao demónio e tornou-se uma das criaturas de Walsingham. O roubo do documento da arca de Sir Peter de Launcey é a prova final de que se trata de um espião.
— Sabíeis portanto quem ele era?
Stokely anuiu.
— Calculo que podia tê-lo feito deter assim que o reconheci, mas era o filho de Maria. Se algo lhe sucedesse e ela viesse a descobrir que eu tinha tido um papel nesse evento, nunca me perdoaria. Além disso, estava decidido a descobrir qual era o seu propósito. Assim que soube da tentativa de penetrar no arquivo, verifiquei a arca e descobri que as fechaduras tinham sido forçadas, e que o testamento tinha desaparecido.
— Testamento? — Thomas tentou esconder a surpresa. Por fim tinha-lhe sido revelada a verdadeira natureza do documento misterioso. Se jogasse as suas cartas com critério, poderia vir a descobrir mais ainda. — Sabeis portanto disso?
— Há anos que sei disso. Desde que Sir Peter o trouxe para Malta. Ele sabia perfeitamente a ameaça que aquele testamento representava se caísse nas mãos erradas. Suspeitava fortemente de que tinha sido seguido desde Inglaterra, pelo que me confessou o segredo, para o caso de alguma coisa lhe acontecer. Acabou, porém, por ser um simples acidente a provocar-lhe a morte. Depois disso, tratei de garantir que o testamento era guardado na arca e que esta era colocada no arquivo, onde ficaria em segurança e de onde poderia ser recuperado se alguma vez fosse necessário usá-lo. Quando desapareceu, soube de imediato onde poderia encontrá-lo. Vasculhei a cela de Richard enquanto vós estáveis de serviço. Devo dizer que não fiquei particularmente impressionado com a escolha do esconderijo, mas é verdade que sabia perfeitamente o que procurava e que género de espaço seria necessário para o esconder. O testamento está de novo em segurança. Ninguém conhece o seu paradeiro a não ser eu. E lá ficará. Um dia talvez alguém o descubra, mas talvez o melhor seja mesmo que se perca. — Stokely fez nova pausa. — Imagino que Walsingham vos informou do testamento antes de deixardes Inglaterra.
Thomas hesitou.
— Discutiu-o comigo, sim.
Stokely encarou-o.
— Não lhe conheceis o conteúdo, pois não?
— O Walsingham garantiu-me que, se fosse mal utilizado, causaria uma enorme perda de vidas.
Stokely soltou uma gargalhada amarga.
— Foi tudo o que vos disse? Pobre Thomas, fostes pouco mais do que um instrumento nas mãos deles. — Olhou sobre o ombro de Thomas, notando a aproximação de outra figura. Sorriu fracamente. — Richard, porque não te juntas a nós?
Thomas virou-se rapidamente e avistou o jovem, que os observava com uma expressão fria e distante. Manteve-se imóvel por momentos, antes de pegar num banco e o colocar à cabeceira da mesa, entre os dois cavaleiros.
Stokely sorriu sem gosto.
— Estávamos precisamente a discutir o testamento. Ao que parece, nem tu nem os teus superiores lá em Inglaterra se dignaram fornecer ao Thomas todos os detalhes. O que me parece pouco leal, dado que, por causa dele, estará morto daqui a pouco tempo. Portanto, porque não lhos contas, a menos que prefiras que eu o faça?
Richard não respondeu.
Stokely assentiu.
— Muito bem.
Cruzou as mãos e ordenou rapidamente os pensamentos, antes de começar.
— Éramos ambos jovens e tu, Richard, nem sequer eras nascido, quando Henrique dissolveu todos os mosteiros em Inglaterra e vendeu ou distribuiu as suas vastas propriedades e tesouros em ouro e prata. Muitos nobres adquiriram grandes fortunas em resultado destas medidas. Um outro efeito foi o de aprofundar a divisão entre Católicos e Protestantes, que cresciam em número, uma divisão que levou a centenas de mortes em Inglaterra e dezenas de milhares por toda a Europa. Ao que parece, no fim da vida, Henrique reconheceu os danos que causara, e tentou regressar com o seu reino ao seio da Igreja de Roma. Depois de todos os danos que causara à autoridade papal, o Vaticano decidiu que haveria um preço a pagar pela absolvição do rei. Só aceitariam a Inglaterra de volta se todos os bens que em tempos tinham sido dos mosteiros fossem devolvidos à Igreja.
» Todos os nobres que tanto tinham beneficiado da generosidade de Henrique ver-se-iam despojados das suas fortunas. Não deixariam de se revoltar contra o rei, o que lançaria a Inglaterra numa guerra civil. Henrique estava a morrer, e a sua única prioridade era salvar a alma e garantir a entrada no Paraíso. Já pouco ligava aos assuntos terrenos. Mas a corte pensava de outra forma, e ficaria horrorizada se descobrisse as intenções do soberano. Portanto, ele redigiu o seu testamento e derradeiras vontades em segredo. Só os mais próximos dos conselheiros sabiam da sua existência. E o documento foi confiado a Sir Peter de Launcey, para que o trouxesse para Roma.
» Ele tomou o caminho, bem consciente de que, assim que fosse descoberta a sua missão, os mesmos conselheiros, muitos dos quais muito tinham a perder com a anulação da dissolução, não deixariam de enviar agentes no seu encalço para recuperar o testamento. Partindo do princípio de que as estradas para Roma deviam estar bem vigiadas, viajou através de Espanha até Malta, onde a Ordem o poderia proteger. Nessa altura já tinha começado a ter reservas sobre a sua missão. Compreendia perfeitamente as implicações do documento, e estava dilacerado entre o que era bom para o seu país e o que servia a sua fé. Foi por esses dias que me tomou na sua confiança e me pediu conselho. Mas antes que eu pudesse chegar a uma decisão, afogou-se. — Stokely fez uma pausa. — Tinha o testamento de Henrique nas minhas mãos, e facilmente o podia ter passado ao Grão-Mestre da altura. Mas escolhi não o fazer. Não queria nas minhas mãos o sangue de dezenas de milhares de ingleses. Portanto, coloquei o testamento na arca de Sir Peter e mandei colocá-la no arquivo.
— Porque não vos limitastes a destruí-lo? — indagou Thomas.
— Era algo de demasiado poderoso para ser destruído de ânimo leve. Enquanto estivesse em segurança, nada de mal podia causar aos herdeiros do rei. E por mim, tudo poderia continuar como sempre. Desde esses dias, porém, tenho sabido do crescimento do número de Protestantes em Inglaterra, e visto a perseguição aos Católicos intensificar-se a cada ano que passa no reinado de Isabel. Decidi então que, se fosse necessário, encontraria forma de usar o testamento para refrear a mão castigadora dos Protestantes.
Thomas estava atónito.
— Atrever-vos-íeis a chantagear a rainha?
— Esperava sinceramente nunca vir a ter causa para tal.
Richard falou por fim.
— E considerais que o testamento está seguro nas vossas mãos?
— Mais nas minhas do que nas de Walsingham ou nas de Cecil. Eles usá-lo-iam apenas para reforçar a sua posição na corte. A rainha nunca se atreveria a desafiar a vontade dos homens que a poderiam ameaçar de tornar públicos os desejos do seu pai no leito de morte.
— Melhor será que os meus patronos tenham o testamento do que ele ficar nas mãos de um católico ou cair nas dos muçulmanos, como parece agora bastante mais provável — ripostou Richard com amargura.
— Posso ser um católico, mas, antes de o ser, sou um inglês — contrariou Stokely.
Pela primeira vez, Thomas sentiu alguma simpatia por Stokely. Mas de imediato se recordou de que aquele era o homem que desposara Maria e que tudo fizera para impedir que eles se voltassem a ver.
— Há algo que me baralha — disse. — Porque é que achastes necessário ameaçar Maria com a possibilidade da minha prisão? Ela disse-me que não vos poderia deixar. Disse-me que era tarde de mais para alterar o passado. Que era agora a vossa esposa e assim seria até ao fim.
Stokely olhou-o com uma expressão de descrença.
— Ela disse-vos isso?
— Sim.
Stokely cerrou os olhos, e a face contorceu-se-lhe de dor.
— Meu Deus, falei de mais. Estava furioso. Depois de vos ver sair da casa, confrontei-a e disse-lhe que sabia que tínheis lá estado. Disse-lhe que sabia que me tinha sido infiel.
— Não. Não foi — disse Thomas. — Teria dado tudo para que tal sucedesse, mas ela recusou-me.
— Ela recusou-vos? — Stokely abanou lentamente a cabeça. — Que fiz eu? Meu Deus, que fiz eu? Irritei-me. Acusei-a de infidelidade, de traição. E ela enfrentou a minha ira e manteve-se em silêncio. E depois disse-me que nunca me amara. Que só a vós tinha realmente amado. — Stokely engoliu em seco. — Perdi a cabeça. Bati-lhe. Que Deus me ajude, pela primeira vez na vida, bati-lhe.
Thomas cerrou o punho e lutou para combater a cólera que crescia no seu íntimo.
— Ela caiu na cadeira. — Stokely tremia enquanto rememorava os acontecimentos. — Tinha sangue no lábio, e vi o medo nos seus olhos. E pior, nojo, e pena. Como desejei que ela ripostasse, que me batesse, que gritasse. Mas ela limitou-se a olhar para mim. Saí e fui à catedral, pedir pelo meu perdão. Quando voltei a casa, ela e a criada tinham desaparecido. Não tinha deixado qualquer nota. Desapareceu, apenas. Vasculhei Birgu durante dois dias até perceber que nunca voltaria a encontrá-la, e que mesmo que tal sucedesse, ela nunca voltaria a aceitar-me ao seu lado. — Sorriu fracamente. — Ela foi tudo o que alguma vez me importou. E foi nessa altura que resolvi vir para aqui e morrer ao vosso lado. Não por alguma amizade de tempos passados, mas pelo ódio que vos tenho. Thomas, sois a causa da minha miséria. Se a providência me proporcionar tal deleite, ver-vos-ei morrer antes de tombar por minha vez.
— Nesse caso, será melhor passar a ter cuidado com as costas — respondeu Thomas. — Ao que parece, tenho inimigos por todo o lado.
— Não. Não tendes de me temer.
— Oliver, não vos temo. Tenho apenas pena de vós.
— E eu odeio-vos, desde sempre vos odeio. Mas, como tantas vezes sucede com o ódio, de forma imperfeita. Vejo isso agora. Antes, queria magoar-vos, e depois destruir-vos, como se isso de alguma forma resolvesse o assunto. Mas nunca poderia chegar. O meu ódio é insaciável. Fazer-vos sofrer nada pode para o diminuir. — Sorriu. — É estranho, mas agora quase me sinto em paz. Não temo a morte. Tudo o que temia era a perspetiva da vida sem Maria. E aqui tudo termina. Aqui, em St. Elmo. Para mim, para vós, e para o vosso filho. Pobre Maria. Ela ainda pensa que Richard está em Inglaterra, em segurança. Para seu próprio bem, espero que nunca venha a descobrir a verdade. — Esvaziou a taça e levantou-se. — Pronto, aí está tudo o que era preciso dizer. Vou procurar um sítio para descansar, embora não consiga dormir. Só existe uma forma de me libertar do que me atormenta.
Sem esperar por resposta, dirigiu-se para o pátio.
Richard, de expressão lúgubre no semblante, fez menção de se levantar da mesa e o seguir, mas Thomas agarrou-lhe no pulso com firmeza.
— Deixa-o.
— Haveis escutado também — soltou Richard. — Ele magoou a minha mãe.
— Stokely já sofreu o suficiente. E, de qualquer maneira, está como todos nós, a caminhar à sombra da morte. De nada serviria apressar-lhe o fim.
Richard abanou a cabeça.
— Tendes tanta falta de coração que não vos sentis compelido a agir?
— Meu filho, o meu coração está agora repleto. Não o escutaste? Ela ama-me, e sempre assim foi. E sabes já que ela te adora. Preferia que estivesses ao lado dela e que fosses poupado a este destino, mas tal desfecho já não pode ocorrer. — Soltou o pulso do jovem e pegou-lhe na mão. — Pelo menos estaremos juntos no fim.
Richard olhou para o pai, lutando para controlar as emoções, e anuiu.
— Juntos, no fim.
37
23 de junho
Na hora que antecedeu a aurora, os preparativos do inimigo para o assalto que se aproximava eram claramente audíveis para os sobreviventes que se espalhavam ao longo das muralhas arruinadas do forte. A maior parte deles tinha-se concentrado junto à brecha que se abrira quando uma secção da muralha ruíra por fim, incapaz de continuar a resistir ao pesado bombardeamento dos turcos. Os defensores escutavam trocas de murmúrios entre os atacantes, ainda abrigados nas trincheiras que rodeavam todo o forte. Na água, ao longe, escutava-se o mergulhar de remos e os ocasionais gritos de homens que, à proa das embarcações, sondavam a profundidade do porto. As massas escuras das galeras eram claramente discerníveis na escuridão, à medida que tomavam posições que lhes permitissem adicionar o poder dos seus canhões ao bombardeamento que prenunciava o assalto final a St. Elmo.
Na posição que escolhera, Thomas, como muitos outros, não pregara olho. Durante as longas horas da noite tinha-se deitado, com a cabeça apoiada numa almofada improvisada, e contemplara as estrelas. O céu noturno estava límpido, e as estrelas brilhavam com fulgor. Enquanto as mirava, Thomas recolhia algum conforto na serenidade eterna que o banhava. As estrelas tinham lá estado muito antes de ele começar a respirar, e lá continuariam na noite seguinte, horas depois de ele e os outros terem perecido. A sua frieza distante parecia zombar das atribulações mesquinhas com que a Humanidade se entretinha. Todas as grandes causas, os esforços heroicos, o fanatismo religioso que motivava homens a matar outros homens e a enfrentar a morte de moto próprio, tudo parecia trivial quando comparado com o Universo, refletiu Thomas. Não desejava para si a morte de um mártir. Mais do que tudo, queria viver, agora que estava certo do amor que Maria lhe devotava. Pensar na vida que poderia ter sido sua trouxe-lhe um sorriso amargo aos lábios. Quando o pensamento derivou para o que se ia passar no dia que se aproximava, não conseguiu evitar o medo da morte. Esperava que ela viesse de forma rápida, e que pudesse morrer antes que Richard sofresse a mesma sorte, de forma a ser ao menos poupado a tão terrível espetáculo.
Virou-se para contemplar o filho, sentado de costas contra o parapeito a curta distância, o queixo apoiado no peito, a respiração tranquila. Apesar das circunstâncias, o cansaço tinha levado a melhor sobre o jovem e tinha-o entregue nos braços do oblívio, ainda que por apenas algumas horas. A cena comoveu Thomas para lá do que lhe era possível suportar, e sentiu a garganta apertada perante a perspetiva de perder aquilo que tinha acabado de receber, o mais precioso tesouro que um homem podia atingir em vida, um filho. Não dispusera de mais do que um punhado de dias para o conhecer, e era com um travo doce e amargo na boca que discernia nele virtudes preciosas e curiosos traços de caráter que não viriam a ter ocasião de amadurecer em pleno.
A alguma distância ao longo da muralha, do outro lado da brecha, conseguia adivinhar a forma imóvel de Stokely, de joelhos apertados pelos braços enquanto contemplava o interior do forte. Thomas mais não podia do que tentar imaginar o desespero que aquela alma atormentada devia estar a sentir, e desejou apenas que também Stokely encontrasse a paz numa morte rápida.
Quando o som de preces murmuradas se ergueu em torno de todo o forte como se fosse uma onda a rebentar numa costa distante, Thomas inclinou-se sobre o filho e abanou-lhe gentilmente o ombro. Não houve resposta, e Thomas sacudiu-o de novo, com maior empenho, até que Richard respirou fundo e se empertigou, assustado e confuso. Piscou os olhos por momentos e por fim encarou o pai.
— Deixaste-me dormir. — O tom de voz traduzia uma acusação. — Meu Deus, deixaste-me dormir naquelas que serão as minhas horas finais.
— Foi melhor assim.
Richard manteve o silêncio por momentos, antes de esfregar o pescoço enrijecido.
— Sonhei que estava de volta a Inglaterra, que era um miúdo, a caçar coelhos numa manhã cristalina de outono...
— Ah, coelho — comentou Thomas. — Ora aí está uma coisa que trincaria agora de bom grado. — Fez uma pausa e arregalou um olho. — É véspera de S. João. Uma pena que não tenhamos possibilidade de participar no banquete tradicional. — Thomas sorriu perante a imagem que evocara, mas a sua expressão endureceu rapidamente. — Vai à capela. Diz ao Mas e ao Miranda que o inimigo vem aí.
— Sim, senhor.
— E depois volta para aqui. — Thomas sentiu uma pontada de angústia. — Apressa-te. Quero-te aqui ao meu lado, aconteça o que acontecer.
Richard anuiu.
— Sim, pai.
Levantou-se, embora agachado, e afastou-se do parapeito, progredindo por entre as pilhas de escombros e os cadáveres que tinham sido amontoados para reduzir o risco de os defensores tropeçarem neles quando se envolvessem na refrega final. Na ponta da muralha, Richard meteu pelas escadas, saindo do campo de visão. Thomas voltou a concentrar-se nas atividades do inimigo. Pelos sons que vinham de todas as direções, as suas intenções eram claras. Quando fosse dado o sinal, lançar-se-iam ao assalto do forte, escalando o que restava das muralhas com as escadas, enquanto ao mesmo tempo conduziriam uma incursão pela brecha. E desta vez pouco haveria para os suster. A pólvora mal dava para uns poucos disparos, e as armas incendiárias estavam praticamente esgotadas. Toda a nafta já tinha sido usada. E quando os defensores esgotassem os seus últimos trunfos, só lhes restaria pegar nas armas e combater até ao fim.
Ao longo da muralha, os defensores despertavam, e aqui e além via-se uma brasa acesa, sinal de que os homens equipados com arcabuzes preparavam a sua última descarga. Outros enfiavam os elmos e apertavam firmemente as correias por baixo dos queixos; os que possuíam armaduras verificavam todos os fechos e faziam alguns ajustamentos. Alguns empunhavam piques, outros preparavam as espadas, adagas, machados e maças. Thomas espreitou na direção da brecha na muralha e viu Stokely a pegar na pesada espada que requeria o uso das duas mãos e que ele tinha selecionado no armeiro do forte — uma arma difícil de manejar, mas letal quando bem usada.
Na escuridão antes da alvorada instalou-se uma calma, um silêncio, uma quietude, como se os defensores fossem figuras num quadro composto de sombras. A leste, o céu mostrava já o tom pérola do começo do dia e, à medida que o véu de escuridão começava a levantar-se, Thomas identificava mais pormenores no terreno esventrado que se estendia em frente às muralhas. As bandeirolas colocadas pelo inimigo para marcar as suas posições não se moviam no ar sereno. Armas inutilizadas, escudos destruídos e amolgados, armaduras inúteis espalhavam-se pelo meio dos escombros das muralhas, e por entre os cadáveres que ninguém tinha recolhido. Muitos destes estavam inchados pela decomposição, agravada pelo calor do Sol, e os seus membros estendiam-se em ângulos grotescos. E depois havia o cheiro do campo em que a batalha se desenrolava havia já um mês, um perfume nauseabundo a sangue e carne em putrefação, misturado com o odor acre de madeiras queimadas e com a poeira das muralhas que entrava por todo o lado. Por algum motivo desconhecido, aquele conjunto de odores e sensações parecia a Thomas ainda mais pungente e asqueroso naquela manhã. Ou talvez fosse apenas um aguçar dos sentidos, dada a consciência de que estava a viver as suas últimas horas, concluiu.
Olhou para as escadas, desejando que Richard regressasse antes que o inimigo lançasse o assalto. Pensou brevemente na possibilidade de deixar a sua posição e ir procurá-lo, e logo se culpou. Que exemplo seria para os homens que comandava... Fortaleceu a sua resolução e manteve o olhar fixo na direção do inimigo.
O primeiro dos tambores turcos começou a soar, e o som vindo das sombras aumentou rapidamente de intensidade quando outros se lhe juntaram. Um retinir de címbalos e o lamento das gaitas juntaram-se ao alvoroço; e então, quando os primeiros raios de Sol rasgaram o horizonte a leste, os imãs conduziram os adoradores na shahada — a afirmação comum a todos os Muçulmanos de que não existe outro deus além de Deus, e que Maomé é o seu profeta. Um murmúrio suave rodeou o forte quando os homens no seu interior se prepararam, sabendo que o assalto final estava iminente.
Um som de raspar chamou a atenção de Thomas, e ele reparou, aliviado, que era Richard a emergir das escadas, com uma cadeira em cada mão. Logo a seguir surgiram mais homens: quatro soldados, que traziam, meio ao colo e meio arrastados, o coronel Mas e o capitão Miranda. Richard colocou as cadeiras a um dos lados da brecha, perto da posição ocupada por Thomas, e depois ajudou a instalar os dois oficiais nos assentos.
— A minha espada — pediu Mas, apresentando a mão livre.
Um soldado retirou o cinturão que tinha ao ombro e passou-lho. Uma arma foi também entregue a Miranda.
— Estou pronto. — O coronel fez um gesto aos homens que o tinham levado até à muralha. — Tomem as vossas posições, e que Deus esteja convosco.
Os soldados inclinaram as cabeças numa saudação final e foram-se espalhando pela muralha. Richard ajoelhou-se junto ao pai.
— O que fazem eles? — indagou Thomas, apontando para os dois oficiais. — Porque é que se colocaram ali?
— Foi ideia do coronel. Quando lhe transmiti a vossa mensagem, ele declarou que preferia morrer num sítio onde os homens o pudessem ver, em vez de na capela. Miranda concordou.
Thomas abanou a cabeça, enquanto observava os dois homens sentados de forma aprumada, as pernas esfaceladas à sua frente, cobertas de pensos sujos e ensanguentados.
— Loucura...
O murmúrio que vinha das trincheiras turcas morreu, mas o som dos seus instrumentos recrudesceu de fervor. Thomas virou-se para o filho, aproveitando aquela última oportunidade para o ver de perto e lhe transmitir toda a sua afeição.
— Gostava... — Tentou prosseguir, mas não encontrou palavras que se adequassem ao momento.
Richard sorriu brevemente, e apertou-lhe a mão com calor.
— Pai, eu compreendo. Há tanto que eu gostava de dizer e fazer, se para isso nos tivesse sido concedido o tempo.
Um canhão solitário troou no cimo da crista, dando sinal para o início do assalto. O som profundo espalhou-se pelas reentrâncias do porto até ser afogado num urro frenético, soltado pelos turcos ao saírem dos seus esconderijos e se precipitarem através da curta distância que os separava da massa arruinada de St. Elmo. Os defensores ripostaram de imediato, sem esperar por ordens, e dos canos dos arcabuzes saíram rápidos os primeiros dardos de fogo. A hoste inimiga espalhou-se pelo terreno juncado de detritos e começou a subir a rampa de entulho que conduzia à estreita brecha. Thomas fixou aí a sua atenção. O primeiro turco morreu, abatido por um tiro na cabeça, mas, ao cair para a frente, foi de imediato espezinhado pelos que o seguiam. Mais homens tombaram, atingidos no peito ou na cabeça, alvos fáceis a tão curta distância.
Thomas levou a mão à boca e berrou:
— Incendiárias!
Os pavios a arder desenharam curtos arcos no ar, até que os potes se desfizeram no seio da horda inimiga, lançando ondas de chamas selvagens que pegavam fogo aos homens que gritavam de terror e agonia.
— Aplicai-lhes, rapazes! — gritava o coronel Mas, aplicando golpes de espada em pleno vazio. — Pela nossa sagrada fé!
Miranda fez eco do grito, e depois os seus lábios recuaram num riso feroz.
— Matai-os a todos!
Thomas colocou a espada em riste e esperou. Ao seu lado, Richard aperrou o pique. Os turcos surgiam, insensíveis aos que caíam atingidos por balas, por projéteis incendiários ou até pelas pedras atiradas contra eles dos dois lados da brecha. O grande declive do monte de entulho que tinham de escalar forçava-os a reduzir o passo, o que lhes custou mais baixas, mas não os fez interromper o avanço, ansiosos por enfrentarem os defensores num corpo a corpo letal.
Thomas avançou, de espada em punho, consciente da presença de Richard ao seu lado, com o pique em posição de ataque. Um sipaio, que se tinha adiantado alguns passos aos seus camaradas, correu para o parapeito, de boca escancarada enquanto lançava o seu grito de guerra. Levava uma lança em riste sobre a cabeça, e lançou-a contra Richard. O jovem desviou-a facilmente para o lado, fazendo ouvir um estalido resultante do choque de madeira contra madeira. Ripostou com uma estocada poderosa, com todo o seu peso por trás, e a ponta de aço rasgou as roupas do inimigo e afundou-se no seu peito.
Mais homens escalavam as muralhas, e Thomas viu-se confrontado com uma cabeça com turbante que tentou de imediato atingir; conseguiu atordoar o homem, embora não o ferisse, já que o tecido enrolado e espesso amorteceu o embate da espada. Porém, um novo golpe rasgou-lhe uma artéria na garganta e o homem tombou de imediato. Thomas procurou novo oponente. Sentiu um impacto no ombro, e qualquer coisa lhe saltou à frente dos olhos — a haste de uma seta. Outras surgiram, vindas do magote de combatentes ainda na base do monte de destroços, e foram seguidas por clarões e nuvens de fumo quando os arcabuzeiros inimigos dispararam sobre os alvos escolhidos. A cabeça de um miliciano maltês junto a Stokely explodiu como se fosse uma melancia madura, espalhando sangue pelo rosto do cavaleiro inglês. Richard espetou o pique no ombro de um homem de cabelo hirsuto, vestido de peles, que urrou de dor antes de se libertar e tentar atingir o elmo de Richard com uma moca. O jovem empregou o pique como um bastão para bloquear o ataque, e de imediato baixou a ponta metálica, enganchando-a na perna do adversário e fazendo-o cair de costas, antes de lhe cravar a arma no peito.
Thomas ouvia perfeitamente os berros do coronel Mas nas suas costas.
— Por Deus! Por S. João! Lutai! Lutai!
Stokely avançou corajosamente para a brecha, onde tinha espaço para manejar a espada, e fê-la rodar sobre a cabeça com as duas mãos, antes de se dirigir contra um oficial inimigo que corria a toda a pressa para reclamar a honra de ser o primeiro homem a passar pela brecha. Este avistou o brilho da lâmina do cristão à luz da alvorada e ergueu o escudo redondo para bloquear o golpe. Porém, o peso da enorme espada e a força selvagem com que tinha sido desferido o golpe eram demasiado até para o melhor dos escudos. Um estalo brutal denunciou o esmagamento do escudo, e a lâmina prosseguiu, decepando o braço do turco junto ao cotovelo e penetrando-lhe o flanco, desfazendo armadura, couro, camisa e carne, e expulsando-lhe todo o ar dos pulmões. O golpe projetou-o para o lado, e ali ficou, desamparado e atónito, a contemplar o sangue que jorrava do coto do braço. Ainda assim, recuperou o suficiente para cerrar os dentes e tentar atingir o cavaleiro inglês. Stokely desviou o golpe e ripostou direito ao pescoço do outro. Um som húmido ilustrou o momento em que a cabeça do turco saltou pelo ar e foi cair sobre os seus homens, salpicando-os de sangue até tombar no solo.
Soltou-se um gemido coletivo dos lábios inimigos, e por um momento pareceram vacilar. Já tinham perdido mais de vinte homens e a todo o momento outros tombavam, presos no fogo cruzado dos defensores situados dos dois lados da brecha. Começaram a recuar pelo declive, só se detendo quando encontravam algum abrigo atrás do qual se pudessem agachar.
— Protegei-vos! — avisou Thomas.
Os homens recuaram da brecha para a segurança do que restava do parapeito de ambos os lados, enquanto as balas turcas salpicavam a muralha. Um dos voluntários malteses atrasou-se, e soltou um grito quando uma bala o atingiu na coxa. Caiu sobre os escombros, largando a espada. Tentou sentar-se e examinar a ferida, mas logo um segundo disparo o atingiu no rosto, e o impacto fê-lo tombar para trás. Por momentos Stokely ficou sozinho, de espada bem levantada, em claro desafio aos turcos. Um tiro defletiu-se na placa peitoral da sua armadura, fazendo-o dar um passo atrás. Outro disparo fez ricochete na espessa proteção do ombro, até que ele se voltou e se afastou a passo da linha de tiro, para se agachar por trás do parapeito junto a Thomas e Richard, de respiração pesada.
Os homens que ainda tinham arcabuzes utilizáveis mantinham-se atentos à brecha e escolhiam cuidadosamente os alvos, gastando os seus últimos grãos de pólvora só quando o inimigo se mostrava. Os atiradores turcos devolviam o fogo em muito maior quantidade, disparando várias vezes sobre qualquer homem que se atrevesse a espreitar sobre o parapeito. Thomas olhou ao longo da muralha e verificou que o perímetro ainda mantinha a integridade. Das suas cadeiras, Mas e Miranda continuavam a lançar desafios e encorajamentos, enquanto faziam brilhar as suas espadas ao ar fresco da manhã.
— Ah, foi o que pensei — comentou Stokely em voz baixa, e Thomas virou-se; o cavaleiro contemplava o sangue nos dedos e no metal brilhante da manopla.
— Fostes ferido?
Stokely confirmou com um gesto de cabeça, e apontou para o centro da placa peitoral. Havia ali um pequeno orifício, e dele saía um pequeno fio de sangue, agora espalhado pela mão do próprio Stokely. Sorriu fracamente ao encarar Thomas.
— Senti o impacto de um terceiro tiro. Mas pensei que tinha sido detido pela armadura. Infelizmente, não foi o caso.
— Richard! — Thomas virou-se para o filho. — Leva Sir Oliver para lá para baixo, para a capela.
Enquanto Richard se preparava para pousar o pique, Stokely ergueu uma mão.
— Não. Deixai-me.
— Mas, senhor, estais ferido.
— De facto, e em breve estarei morto. E antes aqui, em plena batalha, do que esquartejado como um cão ao pé dos outros inválidos. Deixai-me, digo-vos. A ferida não me prejudica os movimentos, pelo menos por agora.
Thomas viu a mancha escura no gibão por baixo da armadura, e compreendeu que se tratava de uma ferida mortal. Mesmo que, por milagre, St. Elmo conseguisse resistir, Stokely morreria devido à perda de sangue ou ao envenenamento da ferida por fragmentos de metal ou tecido que tivessem ficado cravados no corpo. A expressão de Stokely era calma enquanto limpava o sangue dos dedos, na bainha do colete, e voltava a pegar no punho da espada.
— Morrerei um homem mais valoroso do que aquele que viveu.
Thomas lançou-lhe umas palavras de conforto.
— Não há necessidade para todo esse remorso. Cumpristes o vosso dever e muito para além dele... Oliver, gostaria que tivesse sido sempre possível considerarmo-nos um ao outro como amigos.
— Amigos? — Stokely sorriu e abanou a cabeça. — Nunca.
O som de disparos ao longo da muralha tornou-se cada vez mais raro, e Thomas viu como, um a um, os homens depunham os arcabuzes e pegavam em armas de mão, até que, menos de uma hora depois de o Sol se ter erguido acima do horizonte, nem mais um tiro foi disparado do interior do forte de St. Elmo. Passou um longo momento até que o inimigo percebeu que já não estava debaixo daquela ameaça. Um grito elevou-se da trincheira mais próxima, e os turcos saltaram dos esconderijos e correram de novo ao assalto.
— Protegei a brecha! — gritou Miranda. — Irmãos, aguentai a posição!
O som dos passos e saltos no monte de escombros aumentou, e Thomas ajudou Stokely a pôr-se de novo de pé. Com Richard e os poucos sobreviventes, assumiram as suas posições junto à brecha e prepararam as armas. Thomas avistou as cabeças e ombros das primeiras fileiras de soldados inimigos. Acima deles rebrilhavam as lâminas curvas das suas espadas e lanças. No meio deles corriam arqueiros e arcabuzeiros, já sem receio de serem abatidos pelos defensores. Enquanto Thomas observava, um dos inimigos agachou-se ligeiramente, apontou e deu fogo à arma. Esta saltou ao cuspir chamas e fumo, e o capitão Miranda deu um estremeção na sua cadeira. O braço com que segurava a espada tombou, e a lâmina caiu-lhe das mãos enquanto ele contemplava o buraco do tamanho de um ovo de pássaro que surgira sobre o seu coração. O queixo descaiu-lhe e moveu-se em vão, enquanto ele tentava soltar um último brado. Lançou a cabeça para trás e gritou por fim:
— Irmãos, lutai!
Ouviram-se mais disparos, e dois dos defensores tombaram por terra.
Richard brandiu a arma.
— Venham cá e lutem como homens, cobardes!
Nesse momento Thomas notou um movimento e virou-se instintivamente. Um pote incendiário voava pelo ar na sua direção. Não tinha tempo para saltar para o lado, e o recipiente estilhaçou-se contra a sua armadura. De imediato sentiu um clarão tremendo e um calor súbito, e as chamas envolveram-no dos pés à cabeça em labaredas faiscantes de vermelho e amarelo.
38
Durante um breve instante só se apercebeu do brilho e do calor, e recuou, a cambalear, para longe do fogo junto à muralha. Deixou cair a espada, e começou a bater nas chamas, antes de reparar que também tinha as mãos em chamas. A dor atingiu-o de repente — uma agonia que lhe rasgava os nervos e percorria o lado direito da face e o braço e a perna esquerdos.
— Pai! — gritou Richard.
Thomas não respondeu, mas sentiu a garganta a apertar-se perante um poderoso gemido que lhe vinha do mais profundo do peito e tentava escapar-se por entre as mandíbulas cerradas. Sentiu outras mãos a baterem nas chamas, e alguém lhe pegou no braço e o levou para longe do parapeito. Ali perto, junto ao cimo das escadas que levavam ao pátio, tinha sido colocada uma selha cheia de água do mar, pronta para um momento daqueles, e antes que Thomas tomasse verdadeira consciência do que sucedia, foi empurrado lá para dentro. A dor no rosto diminuiu de imediato, e sentiu o sabor salgado do mar nos lábios. Mas logo a cabeça voltou à superfície, e a dor lancinante regressou. O olho direito recusava-se a focar uma imagem, e ele fechou-o com força, enquanto tremia.
— Ajudai-me! — pediu Richard. — Temos de o levar para a capela!
Uma parte da mente de Thomas reagiu violentamente contra tais palavras.
— Não! Quero ficar e lutar! — Lutou para sair da selha e pôr-se de pé, a pingar. Obrigou a mente a reassumir o controlo do corpo através da barreira de dor. — A minha espada, deem-ma!
Richard olhou para ele horrorizado, e foi Stokely quem lhe colocou a arma na mão.
— Ei-la.
Sem hesitar, Thomas avançou na direção da linha de homens embrenhados numa dura refrega pelo controlo da brecha. Alguns dos turcos tinham conseguido forçar a passagem para a muralha, e dois janízaros tinham-se lançado sobre o coronel Mas. Este manejava a espada com desespero, aparando os ataques e conseguindo mesmo vibrar uma estocada na garganta de um dos oponentes. Mas foi então atingido por um projétil e caiu da cadeira. De imediato o outro janízaro saltou sobre ele e desferiu uma chuva de golpes sobre o rosto exposto do coronel, reduzindo as suas orgulhosas feições a tiras ensanguentadas. Antes que Thomas pudesse acorrer em seu socorro, sentiu um impacto no ombro esquerdo que o fez rodar e cair de joelhos. De novo houve mãos a segurarem-no e a puxarem-no para a segurança.
— Temos de o tirar daqui! — gritou Richard.
— Pega nele — sugeriu Stokely. — Eu protejo-vos.
Atordoado, quase cego pela intensidade da dor, Thomas sentiu que lhe punham o braço sobre os ombros de alguém e seguiu aos tropeções pelos degraus, quase inconsciente, enquanto vaga sobre vaga de agonia e desespero o percorriam.
Um clamor desesperado ergueu-se no forte.
— A brecha foi tomada! Os turcos estão a entrar!
Richard apertou o corpo do pai ainda com mais força, e espreitou para trás, enquanto descia a custo as escadas. Os turcos jorravam pela brecha e já corriam pelas muralhas, desbaratando os poucos homens que ainda se lhes tentavam opor. Por todo o perímetro de St. Elmo irrompiam mais turcos, e todos os defensores ainda capazes corriam para o refúgio dos armazéns, onde poderiam opor uma resistência final ou tentarem esconder-se. Logo atrás de Richard vinha Stokely, a coxear mas de espada em riste, pronto a derrubar qualquer inimigo que se aproximasse demasiado.
Ao alcançarem o pátio, juntaram-se a um grupo de homens que corriam para a entrada da capela. O sino começara a repicar, mas o som quase não se ouvia sobre os gritos de triunfo do inimigo, e os gritos de clemência e desespero dos defensores. Não haveria clemência. Os turcos tinham já perdido demasiados homens naquele mês que levara o cerco, e nada mais desejavam do que satisfazer a sua sede de vingança sangrenta. Stokely protegia-lhes as costas, e Richard prosseguiu a custo para a capela. A um dos lados viu um soldado espanhol tombar de joelhos ao cimo das escadas e juntar as mãos em prece ao ver-se rodeado por vários turcos. Estes não hesitaram um momento, e encarniçaram-se sobre o espanhol num frenesim de lâminas a faiscar e sangue a saltar.
— Força, pai — sussurrou Richard. — Mais um bocadinho.
Uma bala atingiu a porta da capela quando estavam quase a alcançá-la, estilhaçando a madeira escura. À porta estavam dois soldados de espadas aperradas, a fazerem gestos frenéticos para que eles se apressassem.
— Para dentro, depressa! — gritou um sargento com o colete da Ordem. Richard estugou o passo, quase arrastando o pai pela ombreira.
— Fechai a porta! — ordenou Stokely, depois de os seguir para o interior. Para os seus camaradas ainda no exterior, era já demasiado tarde. Um punhado deles lutava ainda em grupo no cimo das escadas, mas os outros já tinham sido varridos e massacrados pelos turcos. A porta fechou-se com estrondo, e Stokely ajudou o sargento a puxar um banco pesado contra ela. Virou-se então para Richard e apontou para a outra ponta da capela. — Leva-o para ali, por trás do altar. Depressa!
Richard assentiu e continuou a arrastar o peso morto do pai, que gemia de dores, pelo centro da capela. Todos os bancos tinham sido empurrados contra as paredes, para fazer espaço para deitar os feridos. Muitos destes estavam agora sentados e olhavam com ansiedade para a entrada da capela, enquanto os gritos de júbilo do inimigo ecoavam nas muralhas do forte. Richard arrastou Thomas pelos degraus ao fundo da capela e rodeou o altar antes de libertar o seu fardo com delicadeza em cima das lajes que ladeavam a grade de acesso ao esgoto.
— Oh, Deus... — gemeu Thomas por entre dentes cerrados. — Dói... Dói tanto.
Richard fez uma careta ao notar a carne viva que cobria toda a face direita do pai. Apressou-se a desapertar as fivelas e tirou-lhe o elmo e a armadura, deixando-o de gibão, calções e botas. Thomas soltou um grito quando as manoplas lhe foram retiradas, arrastando também alguma pele e carne completamente queimadas. Richard virou-se então para a pesada grelha que cobria o acesso ao esgoto, esforçando os músculos para a levantar e abrir uma passagem.
Ouviu-se um estrondo contra a porta da capela, e um grito de alarme do sargento.
— Estão mesmo do outro lado!
— Aguentai-os um bocado — ordenou Stokely, enquanto cambaleava na direção do altar, agarrando a zona da ferida com uma mão e arrastando a espada pelo chão com a outra.
Ao chegar junto a Thomas e Richard, ofegava, pelo que precisou de descansar um momento.
— Richard, uma última coisa... — Stokely levou a mão ao pescoço e pegou numa chave presa a uma fina corrente de prata. Arrancou-a, partindo o colar, e colocou-a na mão do jovem. — Aí está. Na minha escrivaninha há um fundo falso... lá dentro está um pequeno cofre... Esta é a chave que o abre.
— O testamento de Henrique?
Stokely anuiu.
— Seria melhor para todos se o destruísses...
Richard contemplou a chave e depois colocou-a no interior do gibão com um movimento decidido.
Stokely apontou para Thomas, que gemia penosamente no chão.
— Salva-o... tira-o daqui.
Richard anuiu, pegou no pai por baixo dos braços e arrastou-o para o túnel, deixando-o escorregar a princípio até não conseguir aguentar mais; o corpo do cavaleiro caiu inerte pelo resto da distância. O escudeiro sentou-se na orla da abertura e olhou para Stokely.
— Não vindes?
— Não. — Stokely indicou o sangue que continuava a jorrar por baixo da placa que lhe protegia o peito. — Esta ferida é mortal. Ficarei aqui, com os outros.
Richard abanou a cabeça, pesaroso.
— Senhor, que Deus vos proteja.
— Vai! — Stokely incitou-o com um gesto decidido.
Assim que Richard desapareceu, Stokely arrastou-se até à grelha e empurrou-a para o lugar, antes de se colocar à frente do altar, apoiando-se na espada enquanto tentava recuperar as forças. Os embates na porta tinham-se tornado mais pesados, e mesmo com o peso do banco contra ela e os esforços desesperados de dois soldados, a madeira tinha começado a ceder. O repicar dos sinos tinha-se calado, e Stokely avistou Robert de Eboli a emergir da porta que dava para a pequena torre sineira da capela. O frade trazia à sua frente uma cruz de prata, que manteve erguida bem ao alto enquanto avançava para o centro da capela e se virava para a entrada, antes de ajoelhar. Os turcos no exterior continuavam a tentar forçar uma abertura, e já tinham conseguido criar uma fresta, que aumentava a cada momento. Pelo espaço aberto, um feixe de luz penetrou a penumbra e espalhou-se sobre o símbolo nas mãos do frade, fazendo refletir uma gigantesca e fantasmagórica cruz na parede por cima da porta.
— Vejam! — gritou Robert. — O Senhor está connosco! Estamos salvos! — A porta cedeu nesse preciso instante, e os dois soldados junto a ela tiveram de saltar para trás, enquanto preparavam as armas para enfrentar os turcos que irrompiam pela capela. Um dos sargentos soltou um grito feroz e rodou a espada no ar antes de a abater sobre um guerreiro de vestes largas, rachando-lhe o crânio. Porém, antes que pudesse recuperar a arma, viu-se rodeado de inimigos que o golpearam sem piedade, a ele e ao seu camarada, até que os dois homens tombaram completamente esfacelados no solo. Mais turcos entravam decididos na capela. Stokely sacudiu a cabeça, tentando afastar as tonturas que sentia.
— Parem, infiéis! — urrou Robert, na mesma voz decidida e ressonante com que cativava a sua congregação. Ostentou a cruz em frente aos turcos que se aproximavam. — O Senhor Deus ordena-vos que vos detenhais. Em seu nome, ordeno-vos que deixeis esta casa e esta ilha, e que nunca mais regresseis.
Um oficial dos janízaros aproximou-se do frade e falou em francês, com evidente desdém.
— Cristão, onde está esse teu deus? — Olhou em volta, como que à procura, despertando o riso dos seus homens. Então ergueu a espada ao alto e fê-la descrever um veloz arco com toda a força. Robert mal teve tempo para emitir um grito de terror antes de a sua cabeça tombar para o solo, ao lado do corpo. O torso entrou em colapso e a cruz tilintou junto à cabeça decepada. O oficial virou-se para os homens e soltou uma ordem. Com um clamor de júbilo, estes espalharam-se pela capela e lançaram-se sobre os feridos espalhados pelo chão, esquartejando e assassinando, sem responder aos pedidos desesperados de clemência.
Vários inimigos aproximaram-se de Stokely. Este convocou as poucas forças que lhe restavam, levantou a espada e fê-la girar sobre a cabeça, de forma a ganhar maior ímpeto.
— Por Deus e por S. João! — A ponta ensanguentada silvou no ar perante a aproximação do primeiro inimigo, um turco corpulento com uma cimitarra de folha larga e um grande escudo redondo. Quando a espada, no seu movimento circular, estava para trás de Stokely, o turco avançou. O cavaleiro cristão tinha calculado que seria esse o movimento do oponente, pelo que recuou em simultâneo, enquanto baixava a espada e evitava o escudo, atingindo-lhe o joelho e esmagando-lhe de imediato o osso. Contudo, ao cair, o turco fez girar a sua própria lâmina, apanhando a face lateral do elmo de Stokely.
A força do impacto provocou-lhe uma explosão de luz na cabeça, e antes que a visão lhe voltasse a clarear, já tinha vários outros turcos em cima de si. Arrancaram-lhe a espada das mãos e derrubaram-no. Adagas cravaram-se na sua carne, por todas as aberturas da armadura, até que o oficial ordenou aos seus homens que parassem.
— Idiotas, esse é um daqueles malditos cavaleiros! Porquê matá-lo assim, quando o podemos tratar como o porco que é? Tirem-lhe a armadura e ponham-no em cima do altar!
Ainda aturdido, Stokely sentiu-se puxado e manejado, enquanto os turcos o despojavam das placas de proteção, e depois das roupas, até o deixarem nu. Foi levantado do chão e colocado sobre a fria pedra do altar, os ouvidos a zumbir com os gritos e gemidos dos últimos feridos que estavam a ser massacrados. Tentou libertar-se, mas mãos fortes mantiveram-no preso no lugar. A visão começou a clarear, e viu o oficial inimigo debruçado sobre ele, com uma adaga bem evidente na mão.
— É isto que fazemos a todos os suínos que se atrevem a desafiar Solimão e Alá.
Levantou a lâmina sobre o peito de Stokely. O cavaleiro moribundo convocou as forças que lhe restavam, abriu a boca e lançou um derradeiro desafio.
— Que Deus proteja a fé sagrada!
E então a lâmina desceu, rasgando-lhe o peito. O impacto tirou-lhe o fôlego, e Stokely deixou a cabeça tombar para o lado enquanto sentia o metal a cortar-lhe o esterno, até lhe expor as entranhas. A escuridão engoliu-o quando sentiu os dedos do turco a fecharem-se sobre o seu coração ainda palpitante. Os lábios de Sir Oliver Stokely moveram-se uma última vez, enquanto formavam palavras.
— Deus amado, protege Maria...
39
Enquanto seguia pelo túnel do esgoto, Richard escutou o último grito de desafio de Stokely, e lançou uma olhadela para trás, para a grelha. A qualquer instante um turco sentir-se-ia curioso perante aquela passagem e decidiria explorá-la. A única esperança era que o tremendo fedor a excrementos afastasse o inimigo pelo tempo suficiente para que ele conseguisse levar o pai até ao fim do túnel e se pudessem ocultar nos rochedos que ladeavam o caminho que levava ao molhe. Pegou em Thomas por baixo dos braços, firmou a pega e puxou. O tecido das mangas raspou na carne queimada dos braços, e Thomas deixou escapar um gemido.
— Calado! — repreendeu-o Richard. — Quereis matar-nos?
Thomas cerrou as mandíbulas para reprimir a vontade de gritar. Começou a tremer quando o choque se apossou dele, e não conseguiu evitar alguns gemidos estrangulados que ecoaram ao longo das paredes do túnel. Richard debruçou-se sobre ele para lhe falar ao ouvido.
— Pai, por piedade, aguentai-vos sem fazer barulho.
Puxou o peso morto do corpo de Thomas, arrastando-o sobre os fios de líquido que corriam por entre a lama fétida que forrava o chão da conduta. Alcançou por fim a rede que protegia o ponto onde a vala passava sob a muralha. Deitou o pai no solo, afastou a rede para o lado e espreitou para o exterior, já iluminado pela luz do dia. De cima, sobre as muralhas, vinham os sons de comemoração. Ouviam-se disparos ocasionais, que se juntavam às celebrações, mas não se avistava ninguém naquele lado do forte, que dava para o porto, virado a Birgu e Senglea. Richard empurrou a rede e rastejou para fora da vala. Olhou rapidamente para ambos os lados, e só avistou um punhado de homens a alguma distância, demasiado grande para eles se aperceberem das cores que envergava. Ergueu-se e acenou, como se tudo estivesse bem. No momento seguinte um dos inimigos acenou em resposta, e voltou a atenção para o que se passava no interior do forte.
Richard puxou Thomas para fora da vala, colocou-o de pé e pôs-lhe o braço são por cima do ombro.
— Já falta pouco. Agarrai-vos a mim.
Escolheram o caminho por entre as rochas até chegarem ao trilho. Richard esperava ser avistado das muralhas a qualquer momento, o que resultaria decerto no lançamento de um alarme. Mas prosseguiram o penoso avanço sem serem descobertos, e Richard calculou que os turcos estariam ocupados a procurar os últimos defensores que ainda pudessem resistir nas entranhas do forte, e a vasculhar tudo em busca do saque que a muitos fora prometido em troca da participação na campanha. Não teriam grande sorte, refletiu. Quase tudo o que possuía algum valor fora lançado ao poço do forte na noite anterior, quando os defensores tinham por fim enfrentado o facto de tudo estar perdido.
Richard levava Thomas na direção dos degraus que conduziam ao molhe quando ouviu o som de botas nas rochas. Um vulto surgiu de súbito à sua frente, e a mão do jovem deslizou rapidamente para o punho da espada. Mas deixou escapar imediatamente um enorme suspiro de alívio quando reconheceu um dos malteses que compunham a milícia. O homem olhou espantado para os dois ingleses e virou-se para a água.
— Espera! — pediu-lhe Richard em maltês. — Preciso de ajuda.
— Nem pensar — ripostou o homem. — Agora é cada um por si.
— Ajuda-me — suplicou Richard. — Por piedade, ajuda-me.
O homem hesitou, mas acabou por se ir colocar do outro lado de Thomas e lhe pegar no braço, antes que Richard o pudesse avisar da condição do pai. De imediato, Thomas lançou a cabeça para trás e urrou de dor. Antes que alcançassem o cimo das escadas, ouviu-se uma voz a interpelá-los, vinda das muralhas.
— Não olhes para trás! — avisou Richard. — Continua a andar.
A voz voltou a chamar, com insistência. Depois de uma breve pausa, seguiu-se um aviso. Prosseguiram, fazendo os pés de Thomas saltar de degrau em degrau nas escadas que serpenteavam por entre os rochedos até ao molhe.
— Oh, não... — murmurou Richard, desesperado. Não estava ali nenhum bote. Só se avistava a proa oscilante de uma embarcação afundada, tudo o que restava de um bote estraçalhado pelos canhões inimigos, que tinham varrido a extensão de água entre os dois fortes ocupados pelos cristãos. Ouviram-se novos gritos vindos da muralha, e Richard olhou por cima do ombro, mas ainda não havia sinais de uma perseguição. Seguiram até à ponta do molhe e sentaram Thomas com as costas apoiadas contra um poste antes de se livrarem das roupas, ficando apenas de tangas. Depois Richard fez o mesmo com o pai, estremecendo ao avistar pela primeira vez a extensão total das queimaduras que lhe marcavam o corpo. Grande parte da face direita e do pescoço de Thomas estavam em carne viva, como se ele fosse uma peça acabada de abater no talho. O mesmo sucedia com grande parte do lado esquerdo do corpo. Pedaços de pele tinham sido arrancados e tinham voltado a colar-se à carne em posições estranhas, com secreções brancas e cinzentas à mistura. A remoção das roupas custou novas agonias ao cavaleiro, e Thomas lutou com todas as suas forças para vencer a urgência de gritar bem alto.
— Vamos ter de nadar para sair daqui — avisou Richard.
— Deixa-me — aconselhou Thomas, por entre os dentes.
— Não. Agora nunca. — Richard abanou a cabeça e forçou-se a lançar um breve sorriso. — Não quero perder um pai assim tão cedo, depois de por fim o encontrar.
Pegou no braço direito de Thomas e saltaram para a água. O soldado maltês mergulhou ali perto. A água fechou-se sobre a cabeça de Thomas, mas depressa o rosto voltou a romper a superfície. A água estava fria e acalmou instantaneamente a agonia das queimaduras. Ainda assim, não conseguia mexer o braço ou a perna esquerdos para nadar sem ser apoquentado por dores horríveis.
— Richard, não vou conseguir. Por favor... peço-te que te salves.
— Flutuai de costas — ordenou-lhe o filho. — Tu, pega-lhe no braço, e vamos embora.
Thomas deixou-se levar de costas, enquanto os companheiros começavam a nadar em direção à outra margem, a cerca de quatrocentos metros de distância. Durante algum tempo deixou-se apenas ir, até que resolveu esforçar o pescoço e tentar ver St. Elmo. Conseguia ver toda a face da muralha virada para Birgu e Senglea. No parapeito distinguiam-se vultos que agitavam no ar espadas e lanças, pouco mais do que sombras recortadas contra o brilhante sol matinal. Alguns finos rastos de fumo elevavam-se no ar antes de se dispersarem. Então, enquanto olhava, a bandeira da Ordem agitou-se no poste e foi arriada a toda a velocidade. Pouco depois, o estandarte verde do Islão ergueu-se sobre o forte, ao som de renovadas aclamações.
— O que aconteceu a Sir Oliver? — inquiriu Thomas. — Onde está ele?
Richard elevou a cabeça acima da superfície da água para responder.
— Morto. Lançou os seus últimos golpes na capela.
Os três homens avançavam pelo porto, e já estavam a mais de cem metros do molhe quando Thomas avistou um grupo de turcos, armados com arcabuzes, a descer as escadas em corrida. Apressaram-se até à ponta do molhe, onde dois deles instalaram os apoios para as armas e apontaram. Uma pequena nuvem de fumo ergueu-se em torno do primeiro homem a disparar, e a bala atingiu a superfície da água uns dois metros ao lado de Thomas, fazendo saltar um espirro de água. O segundo disparo aproximou-se mais, com a direção certa mas demasiado alto, pelo que atingiu a água à frente dos nadadores. Seguiram-se mais disparos, alguns a falharem por completo, outros bem próximos.
O soldado maltês gritou de repente:
— Olhai para ali! São os turcos, vêm aí!
Richard esforçou o pescoço para conseguir ver por cima da ondulação. Um bote tinha sido lançado à água de uma das baterias que ocupavam a margem da península de Sciberras. A bordo vinham homens com arcabuzes. Outros embarcavam num segundo barco.
— Maldição — rosnou Richard. — Vão alcançar-nos de certeza antes de chegarmos ao outro lado. — Virou-se para o outro homem. — Temos de nadar mais depressa!
Esforçaram-se mais ainda, arrastando Thomas pelas águas; a mente do cavaleiro oscilava entre a lucidez e o oblívio. Já tinham atravessado metade do braço de água quando escutaram um ribombar vindo da direção de St. Ângelo, e Richard avistou um penacho de fumo a soltar-se de uma das torres. Virou rapidamente a cabeça e viu um pilar de água a desmoronar-se junto ao mais próximo dos barcos turcos, já a menos de cem passos de distância. A proximidade do tiro perturbou os remadores inimigos, e alguns deixaram os remos arrastar-se pela água, o que fez o barco começar a rodar. Os soldados empilhados nas proas perderam o equilíbrio, e um deles deixou cair o arcabuz, que saltou sobre as tábuas e caiu no mar. Um oficial desembainhou a espada e começou a desfiar ordens à tripulação. Esta rapidamente retomou o controlo dos remos, e o barco virou de bordo até se voltar a alinhar com as suas presas e recomeçar a caça.
O canhão do forte cristão voltou a disparar, e desta vez Richard viu o projétil embater no mar logo atrás da popa da embarcação, levantando uma coluna de espuma e provocando uma onda que a fez dançar. O oficial continuou a incitar os tripulantes, e o navio começou a encurtar rapidamente a distância. Na ocasião seguinte em que Richard arriscou uma olhadela, ficou horrorizado ao ver que o inimigo já não estava a mais de trinta metros. Um dos homens à proa apontou a arma e preparou-se para disparar, depois de firmar as pernas contra os movimentos do barco. Fechou o olho direito enquanto levava a acendalha ao pavio sobre o cano.
Nesse momento o barco pareceu saltar pelo ar, e pedaços de madeira explodiram misturados com água a voar. Os turcos foram atirados à água, enquanto soltavam gritos de terror. Houve grande agitação enquanto os soldados chapinhavam e os destroços tombavam em seu redor. Richard viu o oficial a debater-se para se manter à superfície, enquanto as roupas e a armadura o arrastavam para o fundo. As mãos vieram uma última vez à tona antes de desaparecerem, destino que foi seguido por muitos dos soldados, prejudicados pelo equipamento pesado. Mas havia um outro barco que continuava a progredir a toda a velocidade, embora viesse mais atrasado.
Richard sentiu uma cãibra dolorosa na perna direita, mas obrigou-se a prosseguir. Parecia-lhe que todos os músculos do corpo lhe doíam e pesavam, e temeu pela primeira vez não possuir forças para alcançar a outra margem do porto, ainda a uns duzentos metros de distância. Via os homens nas muralhas de St. Ângelo a incitarem-nos, e ouviu o canhão a disparar de novo, desta vez contra o segundo bote.
— Richard... — Thomas falava em voz baixa, engasgando-se com a água que lhe lavava a face. — Filho... deixa-me.
— Não.
— Tenho tantas dores... a morte seria preferível. Salva-te.
— Não, pai, não vos abandonarei.
— É como se já estivesse morto. Não vou sobreviver a estas feridas.
Richard agarrou-o ainda com mais força e continuou a bater os pés, usando as últimas reservas de energia para avançar mais uns metros.
— Deixa-me.
— Não. Não morrereis. — Richard cuspiu a água que lhe entrara para a boca. — Pensai em Maria. Ela está ali em Birgu. À vossa espera. Pensai só nisso.
— Maria... — sussurrou Thomas, quase a perder a consciência.
— Senhor! — O soldado levantou a mão da água e apontou. — Veja!
Richard voltou a esticar o pescoço para seguir com o olhar a direção que o homem indicava, e avistou um bote a sair de St. Ângelo. A luz do Sol cintilava nas armaduras e espadas enquanto a embarcação avançava sobre a minúscula ondulação. A esperança do jovem reacendeu-se ao vê-lo, e ele obrigou-se a continuar, embora os pulmões e os músculos lhe ardessem a cada movimento. O canhão voltou a disparar, e ele espreitou para trás, notando que o inimigo não desistira da perseguição, antes manifestava redobrada intenção de os alcançar e liquidar, garantindo que nem um só homem da guarnição de St. Elmo sobreviveria à tomada do forte. Os homens no bote vindo de St. Ângelo exibiam a mesma determinação para salvarem os seus camaradas, e remavam com todo o vigor. Era impossível a Richard perceber quem triunfaria naquela competição, ocupado que estava em dar mais uma braçada, cada vez menos firme. As rochas na base do forte e as muralhas que se erguiam a partir delas pareciam longe, demasiado longe.
Ouviu por fim uma voz a chamá-los, a incentivá-los, e daí a pouco os remos mergulhavam ao pé deles, seguidos por uma onda mais forte, até que as tábuas do casco da embarcação lhe preencheram o campo de visão.
— Colocai-os a bordo! E depressa!
Mãos pegaram-lhe nos braços e puxaram-no para fora de água, fazendo-o passar por cima do bordo e tombar no fundo do bote. Deixou-se ficar de costas, a contemplar o céu azul e a ofegar, com o coração aos pulos no peito. Ouviu um estrondo quando um arcabuz disparou, e logo outro se lhe seguiu. O inimigo respondeu na mesma moeda, e vários projéteis atingiram a proa do barco. Foram trocadas mais algumas salvas, até que um coro de júbilo lhe chegou aos ouvidos.
— Estão a fugir! Bons tiros, rapazes. E agora, de volta a St. Ângelo.
Enquanto sentia o bote a rodar, Richard viu-se tapado por uma sombra. Respirou fundo, levantou-se e notou então que se tratava de Romegas, o capitão mais antigo ao serviço da Ordem.
Romegas acenou, carrancudo
— Tu és o escudeiro de Sir Thomas.
— Sim, senhor.
— O teu senhor parece estar em má condição.
— Sei-o bem.
— São tudo o que resta da guarnição? Não escapou mais ninguém?
— Não vi mais ninguém. Talvez alguns tenham conseguido esconder-se no meio das rochas e das grutas à beira-mar. Não sei, senhor.
— Estou a ver. — Romegas passou-lhe uma bexiga com vinho. — Toma. Bebe um trago.
— Ainda não. — Com um esforço tremendo, Richard sentou-se e avistou o pai, deitado de costas, a tremer. Por trás dele estava o soldado, os braços em torno dos joelhos. O jovem arrastou-se até junto do pai e pegou-lhe na mão. Os olhos de Thomas entreabriram-se e ele virou a cabeça com um franzir de pálpebras, contemplando o filho.
— Estamos a salvo?
Richard anuiu, tentando manter o olhar afastado das terríveis queimaduras no corpo do pai.
— A salvo? — Romegas abanou a cabeça, enquanto se virava para observar o forte de St. Elmo, bombardeado e arruinado, e agora sob os estandartes e flâmulas do inimigo. — O prelúdio terminou. Agora chegou a vez de Birgu e Senglea sentirem todo o peso do inimigo. A menos que Don Garcia venha rapidamente em nosso auxílio, temo bem que o pior ainda esteja para vir.
40
Muitos dias se passaram até que Thomas voltasse a ter consciência permanente do que o rodeava. Sentia a luz do dia a bater-lhe nas pálpebras, e escutava os irregulares estrondos da artilharia, bem como os embates distantes da metralha metálica a atingir os seus alvos. O seu corpo estava tão fraco que mal conseguia mover os dedos, e a mais ínfima tentativa de mexer a cabeça provocava-lhe uma dor lancinante que se espalhava pelo rosto e pescoço. Deixou-se portanto ficar quieto e calado, respirando profundamente num ritmo regular, enquanto o seu pensamento tentava apreender todos os detalhes da situação que enfrentava. Sabia perfeitamente onde se encontrava, mas a última coisa que recordava com algum detalhe era o assalto final a St. Elmo. A carga do inimigo pela brecha, as mortes de Miranda e Mas, e o súbito irromper das labaredas quando o pote incendiário o tinha atingido e deixado em chamas. Depois disso, perdia o sentido do tempo.
Lembrava-se da agonia ardente que lhe tinha consumido cada fibra do ser, um vislumbre dos feridos deitados na capela, Stokely, moribundo, apoiado na espada enquanto tentava recuperar algumas forças. E depois o fedor de um espaço fechado e escuro, o alívio da água que lhe acalmava as queimaduras, um momento de serena confusão a flutuar de costas e a contemplar um céu tranquilo e depois a aceitação da aproximação da morte. E o regresso da agonia, quando o tinham retirado do mar.
Depois disso tinha perdido a consciência, e a sua existência tornara-se um delirante pesadelo de dor e febre. Tinha a cabeça envolta em ligaduras e sucederam-se dias em que suportou um calor medonho, enquanto contemplava um teto de estuque que curvava sobre ele, e uma faixa de luz que vinha da janela por trás. Recordava-se de vozes, uma austera e que abordava sem rodeios as questões relativas ao seu tratamento, e outra, a de Richard, e por fim uma voz feminina, Maria, inquestionavelmente. As palavras eram confusas, e não conseguia entender do que falavam. Quando estava a sós, o seu pensamento enchia-se de terríveis imagens de fogo, sangue, espadas e fumo, feridas pavorosas. A cabeça parecia querer estourar com uma cacofonia de sons imaginados, tambores e címbalos, gritos de homens envolvidos em duelos mortais, gemidos dos moribundos...
Mas tudo começava a desaparecer, e Thomas compreendia que a sua mente estava a emergir de um período negro de caos. Respirou fundo e abriu os olhos. A princípio, a visão era turva, e a luz que entrava pela janela era demasiado brilhante e dolorosa, o que o obrigou a piscar e fechar os olhos. Pouco depois abriu-os de novo, com mais cuidado. Pouco a pouco, a visão do seu olho esquerdo clareou, e avistou o estuque branco mas sujo do teto. O seu olho direito não conseguia mais do que notar manchas de luz e sombra, sem lhes dar forma. Mexeu cautelosamente os membros e estremeceu perante a rigidez e dor que lhe trespassaram o braço e o flanco esquerdos. Estava consciente de outros homens em redor, deitados, alguns em silêncio, outros a gemer ou a murmurar incoerências para si mesmos. De vez em quando havia vultos a moverem-se por entre eles, homens que envergavam vestes de frades e monges. Por fim, um deles aproximou-se e debruçou-se sobre ele para o examinar.
— Estais de novo acordado. — O monge falava francês, e sorriu quando enxugou o suor que lhe orlava o cabelo. — E a febre parece finalmente ter cedido.
— Finalmente? — Thomas franziu o sobrolho e tentou continuar a falar, mas tinha a garganta demasiado seca, e só conseguiu emitir um som rouco e sem significado. — Onde...
— Estais na enfermaria de St. Ângelo. Em segurança. Deixai-me ajudar-vos.
Ouviu-se líquido a correr, e o monge colocou uma mão com todo o cuidado sob a cabeça de Thomas e levantou-a ligeiramente. Com a outra mão, levou uma taça de latão aos lábios do paciente e ajudou-o a beber. Thomas, agradecido, bochechou, fazendo a água rodar pelo interior da boca seca, antes de engolir. Sorveu mais alguma água antes de acenar e deixar a cabeça descair de novo. O monge ajudou-o a apoiar-se na almofada, retirou a mão e colocou-a na testa do cavaleiro inglês.
— Sim, tendes a testa mais fresca. Isso é bom. — Sorriu de novo. — Quando vos trouxeram para aqui, estava certo que não conseguiríeis sobreviver. As vossas queimaduras são graves, e tendes uma ferida de bala na perna. Ao que parece, fostes atingido quando vos tiravam da água. Entre as queimaduras e a perda de sangue, não tinha qualquer esperança de que tivésseis alguma hipótese de sobreviver àquela noite. Sir Thomas, tendes uma constituição sólida. Mesmo assim, foi por pouco. Instalou-se a febre, e temi que vos perdêssemos. A vossa sobrevivência deve-se aos incansáveis cuidados da senhora que cuidou de vós.
— Senhora?
— A viúva do falecido Sir Oliver Stokely, ao que sei. Além disso, diz que é uma vossa amiga de há muito tempo. — O monge tentou sufocar um sorriso compreensivo, e Thomas sentiu uma ponta de irritação contra o homem.
— Irmão, qual é o teu nome? — indagou Thomas, em voz rouca.
— Christopher.
— Bom, Christopher, para tua informação, a senhora Maria é de facto minha amiga há muitos anos, e uma mulher acima de qualquer crítica.
— Evidentemente. Não quis ofender ninguém.
— Onde está ela?
— A descansar. Mal deixou a vossa cabeceira nestas últimas semanas. Tratou de todas as vossas necessidades, embora tenha tido o auxílio do vosso escudeiro de vez em quando, quando o jovem tinha algum tempo livre dos seus outros deveres. Ela alimentou-vos, lavou-vos e limpou-vos, e mudou os vossos pensos. A pobre senhora está esgotada. Quando percebi que a vossa febre estava a ceder, mandei-a para casa, para descansar. Isso foi esta manhã. Ela disse que regressaria ao entardecer.
Thomas assentiu. Olhou para o monge.
— Falaste em semanas. Há quanto tempo estou eu aqui? Qual é a data de hoje? Em que mês estamos?
— Ora, é o vigésimo segundo dia de agosto, senhor.
— Agosto? — Thomas deu um pulo, abismado. — Mas... Nesse caso, estive aqui quase oito semanas.
O monge anuiu.
— E durante quatro dessas semanas, a vossa sobrevivência esteve em grande dúvida, apesar da vossa sólida constituição de inglês. Nas duas últimas semanas estivemos a combater a febre. Só há poucos dias fiquei realmente confiante na vossa recuperação. Embora quando eu fale em recuperação, não me possa esquecer das consequências dos vossos ferimentos, que permanecerão para sempre.
— E quanto ao cerco?
O monge cerrou os lábios.
— Os turcos atacam-nos de todos os lados. Todas as noites bombardeiam o centro de Birgu, e já provocaram a morte a dúzias de mulheres e crianças. Ainda mantemos todos os bastiões e as muralhas, embora por pouco. O Grão-Mestre tem menos de um terço dos homens que tinha ao início. A comida e a água começam a escassear, e o moral está em baixo. Correu um boato de que Don Garcia e o seu exército chegariam no fim de julho, mas nada se passou. E todos os dias os canhões turcos desfazem mais um bocado das muralhas. De cada vez que abrem uma nova brecha, lançam um assalto, e nós rechaçamo-los. — O monge fez uma pausa enquanto abanava a cabeça, assombrado. — Sabe Deus onde encontrarão eles coragem para se lançarem contra nós uma vez e outra. Já tentaram tudo. Até trouxeram galeras de pequeno porte por terra, através da península de Sciberras, para tentar um desembarque em Senglea. Foram desfeitos junto à margem, e os navios destruídos pelos nossos canhões. Os que não foram logo mortos, à espadeirada ou a tiro, afogaram-se, foram às centenas... Pelo menos o moral é um problema tão grande para os turcos como para nós. Segundo os prisioneiros que temos conseguido, o paxá Mustafa está a ter cada vez mais dificuldades para convencer os seus homens a lançar novos ataques. Há doença e fome no acampamento turco. Temo bem que daqui a pouco tempo o número de mortos seja bem superior ao de vivos neste rochedo esquecido por Deus. — Fechou os olhos e esfregou o queixo, fatigado. Suspirou e forçou-se a sorrir. — Mas basta de falar do cerco. Necessitais de descanso.
— Não. Tenho de saber dos meus ferimentos. Quando é que estarei em condições de voltar a combater?
— Combater? — O monge pareceu atónito.
Thomas sentiu um arrepio frio a percorrer-lhe a espinha. Durante alguns momentos lutou para se conseguir sentar e ver o seu próprio corpo, mas estava ainda demasiado fraco e acabou por desistir, soltando um silvo de frustração. Pegou no braço do monge com a mão esquerda.
— Diz-me tudo.
O monge inspirou, receoso.
— Haveis sofrido enormes queimaduras na perna esquerda e bacia, braço esquerdo, e no lado direito do pescoço e rosto. O olho foi danificado, e duvido que consigais ver muito com ele. Não tenho razão?
Thomas anuiu.
— Nada mais que sombras.
— Tal como eu temia. — O monge apontou para o lado esquerdo do corpo de Thomas. — Pele e músculos sofreram grandes danos, e levarão muitos meses para recuperar. O braço e a perna ficarão sempre afetados, e não voltarão a dobrar-se com a facilidade doutros tempos. E provocarão dores. Diria, portanto, que os vossos dias de combatente terminaram, Sir Thomas. Apesar da falta de homens com que o Grão-Mestre se debate, que o leva já a recrutar rapazes, velhos e qualquer homem que ainda esteja em condições de pegar numa arma, tenho de dizer que o conflito presente terminará muito antes de conseguirdes recuperar o suficiente para voltar a desempenhar nele qualquer papel.
— Traz-me um espelho — solicitou Thomas.
— Mais tarde. Deveis descansar. Trar-vos-ei sopa e pão.
— Quero um espelho. Agora.
O monge hesitou, mas acabou por anuir.
— Como desejardes, Sir Thomas. Um momento, então.
Levantou-se e deixou a sala. Enquanto ele estava longe, Thomas cerrou os dentes e puxou-se para cima na cama, apoiando os ombros na almofada e a cabeça na parede por trás da cama. Por momentos teve de lutar com a dor que lhe subiu pelo flanco acima. O monge regressou com um pequeno espelho, um quadrado de aço polido, e passou-o a Thomas.
— Aqui está. Embora provavelmente não venhais a apreciar aquilo que virdes.
Thomas levou o espelho à altura dos olhos e contemplou o seu reflexo. Mais ou menos a meio da face, a pele estava lisa e brilhante, como se fosse um mármore muito bem polido, cruzado por veios vermelhos e púrpura. A pele ao redor do olho direito estava inchada e vermelha, e a íris estava raiada de sangue e com um aspeto leitoso. Ajustou o ângulo e viu que daquele lado do crânio só lhe restavam alguns tufos de cabelo, e a orelha parecia mirrada. Moveu de novo o espelho e afastou o lençol que lhe cobria o corpo; examinou todo o lado esquerdo, chocado com a carne torturada que lá descortinou. Engoliu em seco, devolveu o espelho e voltou a cobrir-se.
— Ela viu-me assim? — perguntou, temeroso.
— Nas duas primeiras semanas, asseguro-vos que tínheis um aspeto mais horrível ainda. — O monge apontou-lhe para a cabeça. — As cicatrizes ficarão, mas o tom da pele voltará ao normal. A maior parte do cabelo também voltará a crescer, embora fiquem algumas carecas. Talvez venhais a descobrir que o vosso voto de castidade se tornou mais fácil de cumprir, daqui em diante. — Sorriu para mostrar que estava a brincar, embora fosse uma piada de mau gosto.
Thomas virou a cara para a parede.
— Estou cansado. Preciso de dormir.
— Sim. Com certeza, Sir Thomas. Desejais que envie uma mensagem à senhora Maria, para que ela saiba que estais acordado?
— Não — ripostou, rapidamente. — Ela que descanse também.
Thomas ouviu o arrastar das sandálias do monge ao afastar-se, e fechou os olhos com força enquanto eles se enchiam de lágrimas de pesar. Já não se sentia um homem. Sentia repulsa pelo que tinha visto ao espelho, e envergonhado pela ideia de que nunca mais voltaria a ser capaz de combater ou caçar, ou tomar parte nas atividades comuns a outros homens. Pior ainda, se os turcos triunfassem e tomassem Birgu, ele e todos os outros demasiado fracos para se poderem defender seriam mortos onde jaziam, como suínos.
Acabou por cair num sono inquieto, e despertou perto do meio-dia, ao que calculou pelo ângulo da luz que jorrava pela janela. Ao remexer-se e abrir os olhos, avistou Richard sentado num banco junto à cama. A cabeça do jovem tinha-lhe descaído para o peito, e no queixo crescia uma espessa pelagem escura. O cabelo estava empapado de suor e poeira, e tinha grandes olheiras em redor das pálpebras. O gibão estava imundo e rasgado em vários pontos, e tinha arranhões frescos e crostas espalhados pelas mãos e face.
Thomas usou a mão esquerda, apesar da dor que o movimento lhe provocou, para afagar a face do filho. Richard agitou-se, como se tentasse afastar um inseto incómodo, e Thomas não conseguiu evitar um sorriso perante o gesto, enquanto deixava cair a mão para cima da cama.
— Richard...
Os olhos do jovem piscaram ao escutar o seu nome, e ele deu conta de si, cansado, mas com um sorriso quente a formar-se nos lábios.
— Estais finalmente de novo connosco.
— Duvidaste de que isso aconteceria?
— Eu não. — Richard soltou uma risada. — Só aquele monge. Tinha a certeza de que estávamos a desperdiçar os nossos esforços, e que tudo o que havia a fazer era administrar-vos a extrema unção. Disse-lhe que tinha estado tempo suficiente ao vosso serviço para saber que não íeis partir assim tão facilmente.
Thomas olhou em volta do quarto, e confirmou que ninguém mais os podia ouvir.
— Ele sabe que sou teu pai?
— Não. Tal como não sabe nem desconfia que sois um homem sem fé.
Thomas acenou, aliviado. Ambos os factos podiam tornar-se perigosos, e era impossível saber o que teria revelado enquanto delirava com febre. Fez um gesto na direção da mesa próxima.
— Dá-me água, por favor.
Conseguiu beber sem ajuda, e quando a língua e a garganta ficaram humedecidas, sentiu-se mais capaz de conversar.
— O monge deu-me uma ideia geral do que sucedeu desde que vim aqui parar, mas diz-me, como é que o Grão-Mestre tem aguentado tudo isto?
— Ele? — Richard sorriu. — La Valette é tão duro como o aço, sem qualquer dúvida. Está por todo o lado, a encorajar os homens e a prometer-lhes que havemos de sobreviver a esta provação. Digo-vos, é um homem possuído pela ideia fixa de contrariar a vontade do sultão Solimão. E também tornou impossível qualquer pensamento de rendição.
— Como?
Richard mordeu os lábios antes de revelar
— Foi algo que se passou depois da queda de St. Elmo. Na manhã seguinte, logo pela alvorada, um vigia em St. Ângelo avistou uns objetos a flutuar na água, junto à muralha. Acabou por se perceber que eram os corpos de quatro cavaleiros e de Robert de Eboli, pregados a cruzes e decapitados. Quando foram recolhidos, vimos que tinham sido cravadas placas nas cruzes, identificando os corpos: Mas, Miranda, Stokely e Monserrat, bem como Robert de Eboli. Além de os decapitar, os turcos também lhes tinham arrancado os corações.
— Doce Jesus — murmurou Thomas. — E depois, o que aconteceu?
Richard cerrou os lábios.
— La Valette devolveu-lhes o gesto. Mandou vir das masmorras todos os prisioneiros turcos, e levou-os para as muralhas de St. Ângelo, bem à vista do inimigo. E lá mandou degolá-los, um de cada vez, e no fim deu ordens para que as cabeças fossem colocadas nos canhões e disparadas sobre o porto, para as linhas inimigas. No dia seguinte, o paxá Mustafa enviou um arauto, para anunciar que daqui em diante não haverá quartel. Se Birgu e Senglea tombarem, os seus homens passarão a fio de espada todos os sobreviventes. — Richard fez uma pausa. — Portanto, agora é mesmo vitória ou morte.
— Sempre foi. La Valette estava em Rodes quando se renderam ao sultão. Imagino que foi nessa altura que decidiu que nunca voltaria a provar o fel de uma derrota semelhante. — Thomas manteve o silêncio por momentos, até que voltou a pegar na mão do filho. — Salvaste-me a vida. Estou em dívida para contigo. E temo que nunca te poderei pagar, não com este corpo.
— Pai, destes-me a vida. Quem poderá alguma vez pagar tamanha dívida? Não penseis mais nisso. Era o meu dever, como vosso escudeiro, e como vosso filho.
Thomas apertou a mão do filho.
— Se ao menos eu merecesse ser teu pai...
Richard desviou o olhar e retirou a mão.
— Se fosse a vós, não me sentiria muito orgulhoso de mim. Já fiz muitas coisas duvidosas nesta vida. Não vos esqueceis de que servi Walsingham. Vim cá apenas para obter o testamento de Henrique, e consegui-o. Stokely disse-me onde o podia encontrar. Se eu sobreviver, Walsingham estará à espera que eu lho leve.
Thomas pensou por momentos. O testamento constituiria sempre uma arma potente nas mãos de qualquer grupo que o possuísse. Os Católicos usá-lo-iam para rebentar com as grilhetas em que Isabel mantinha alguns dos mais poderosos homens do reino. Walsingham não se importaria de o usar para obrigar a rainha a apoiar a perseguição encarniçada que conduzia contra os Católicos em Inglaterra, a quem via como inimigos.
Olhou diretamente para o filho.
— Podes levá-lo de volta, sim. Ou podes destruí-lo. Compreendes perfeitamente todas as implicações desse documento. A escolha é tua. Acredito que farás a opção correta. Após um momento de silêncio, prosseguiu: — Ninguém está para lá da redenção. Tal como nenhum homem é incapaz de cometer ações erradas. Filho, sei-o melhor que muitos. Pensa bem. Não gostaria de te ver passar a vida a carregar um fardo tão pesado como o que eu suportei. Aprende com a minha experiência.
Richard olhou para ele, e depois para a porta.
— Tenho de ir. Tenho de preparar os meus homens para uma patrulha esta noite. Voltarei quando puder. Adeus, pai.
Levantou-se, e saiu. Parou à porta, e então surgiu Maria, que lhe pegou nos braços e o beijou na face. Richard recebeu o beijo de forma atabalhoada, antes de lhe tocar no braço com gentileza. Inclinou a cabeça, escapou do seu amplexo e seguiu pelo corredor. Maria olhou-o com evidente enlevo, e depois virou-se para o interior do quarto, para Thomas, um sorriso a acender-se-lhe na face ao descobrir que ele estava acordado. A imagem que vira no espelho ainda estava fresca na mente de Thomas, e ele virou a parte queimada da cara para longe dela, enquanto ela se aproximava e se sentava.
Nenhum deles pareceu decidir-se a falar, até que Thomas engoliu em seco, nervoso, e pigarreou.
— Lamento a tua perda. Oliver era um bom homem.
— Sim... Sim, era. — A tristeza na voz dela era genuína. — Foi bom para mim, até quase ao fim. Foi o teu regresso que o fez mudar. Nada havia a fazer. Nunca lhe pude dar tudo o que ele queria de mim. Aquilo que tiveste quase sem pedir. — Ela afagou-lhe o rosto, um tanto a medo. A pele dela era suave e fresca, e Thomas fechou os olhos enquanto aspirava o doce aroma que se evolava dela.
— Devia ter sido melhor esposa para ele. — Maria olhou na direção por onde saíra Richard. — E Oliver devia ter-me permitido ser uma melhor mãe para o meu... o nosso filho. Ele sabe a verdade, mas não consegue perdoar-me velhas faltas.
Thomas deu uma gargalhada sem humor e ela virou-se para ele de cenho franzido.
— O que é?
— É só que todos conseguimos fazer uma enorme trapalhada. Eu, tu, Oliver, Richard. Não há como escapar ao passado. Não para nós, nem para La Valette, nem sequer para Solimão. Todos somos prisioneiros da nossa história, Maria.
— Só se o permitirmos. — Ela debruçou-se para ele e beijou-lhe a testa. — Há tempo para mudar.
Um disparo de canhão atingiu o forte, e o impacto sentiu-se no quarto, fazendo cair algum estuque. Thomas não se coibiu de sorrir.
— Não para os que estão envolvidos neste combate.
— Para nós, e para o Richard, há ainda uma possibilidade de refazer os laços que foram quebrados. Gostaria bem que tal sucedesse. Gostaria de te voltar a ter nos meus braços, meu amor.
— Mesmo neste estado? — ripostou Thomas, enquanto virava a cara para que ela pudesse ver as terríveis cicatrizes que lhe rasgavam a face e o escalpe. Levantou o lençol para lhe mostrar o flanco esquerdo. A calma expressão de Maria nunca se alterou.
— Pensas por acaso que não conheço a tua condição? Fui eu quem mudou os teus pensos e que te limpou as feridas. Tratei das tuas mais básicas necessidades. Conheço o teu corpo de forma mais íntima do que a tua mãe alguma vez conheceu. Sofri pelas tuas dores enquanto cuidava de ti, e todas as noites rezei para que vivesses. E Deus, na sua infinita misericórdia, respondeu-me.
As palavras de Maria não encontraram eco no coração de Thomas.
— Se foi por vontade de Deus que sofremos tudo o que sofremos, o que sabe então Deus acerca da misericórdia? Maria, estou farto de Deus. Tudo o que me importa daqui em diante, és tu, o Richard e os homens ao lado de quem combato. — Fez uma pausa e sorriu tristemente. — Embora devesse dizer, combati. Porque daqui em diante serei um pobre soldado.
Maria olhou para ele.
— Não tens já fé?
— Em Deus, nenhuma. E até há pouco, muito escassa nas pessoas. Porém, nestes últimos meses, vi o melhor e o pior dos corações dos homens. Tenho como uma grande pena que seja necessário um conflito acerca de algo tão insubstancial como a fé para testar o valor, mas também a venalidade dos homens.
— É um teste a que Deus te está a submeter — contrariou Maria, com fervor. — A forma como testa a nossa decisão. Ele ainda tem um propósito para ti, Thomas.
Ele pegou na mão dela e olhou-a bem nos olhos.
— Maria. Sou aquilo que tens perante ti, e nada mais. Não serei nunca um peso na tua vida. Amo-te, desde sempre. Mas não sou o mesmo homem que conheceste enquanto era um jovem cavaleiro. Para mim, és ainda a mesma Maria, e nada mais desejo que ficar a teu lado até ao fim da minha vida. Mas não poderia suportar que houvesse entre nós algum traço de pena. Nem pelo estado do meu corpo, nem pelo meu caráter, nem pelas minhas crenças. Gostaria que pensasses nisso antes de escolheres ser minha esposa, se tal for o teu desejo.
— Mas é, meu amor.
Thomas tocou-lhe os lábios com os dedos.
— Não digas mais por agora. Não quero que me dês uma resposta antes de pensares seriamente no assunto. E estou fatigado. Muito fatigado. Vai, e falaremos de novo depois de eu ter repousado, e de tu teres refletido.
Ela fez menção de falar, mas interrompeu-se. Os lábios cerraram-se numa linha fina, e ela acedeu.
Inclinou-se sobre ele para lhe beijar a pele quase repelente da face queimada, e levantou-se.
— Até amanhã.
— Amanhã. Sim — anuiu ele.
Ela sorriu e deixou o quarto à pressa, de mão sobre a boca enquanto saía e seguia pelo corredor. O som das sandálias desvaneceu-se rapidamente, e Thomas contemplou o teto, de coração pesado. Até que Maria pesasse a realidade daquilo em que ele se tornara, não poderia aceitá-la. Tê-la como esposa, para depois a ver desejar ter feito outra escolha seria o pior de todos os destinos, refletiu.
— Vejo que as vossas visitas já partiram.
Abriu os olhos e viu Christopher, que lhe sorria. Trazia uma bandeja com uma malga, uma taça, uma colher e um pequeno pedaço de pão seco.
— A refeição que vos prometi. Conseguis sentar-vos, ou precisais da minha ajuda?
— Consigo fazê-lo sozinho. — Thomas cerrou os dentes e puxou-se pela cama acima, até apoiar as costas na parede. O monge colocou a bandeja sobre o banco ao seu lado e Thomas descobriu que o aroma agradável da sopa o fazia sentir-se esfomeado. Enquanto sorvia algumas colheradas cuidadosas, o monge espreitava pela janela.
— Há nuvens a norte. Vem aí chuva. Talvez mesmo uma tempestade. Sim, uma tempestade, parece-me bem. O fim do verão aproxima-se. Queira Deus que consigamos resistir até à chegada do outono.
41
Nos dois dias seguintes, Maria cuidou dele desde a manhã, e ao terceiro dia Thomas sentiu-se finalmente capaz de ir dar uma volta até às muralhas do forte. O ar estava calmo, e as bandeiras e estandartes dos dois contendores pendiam imóveis sobre os postes. Havia nuvens escuras no céu, sinal da repentina mudança do tempo que assinalava o fim do verão. Os canhões inimigos concentravam o fogo no que restava das defesas de Birgu, e por isso as muralhas de St. Ângelo eram um sítio seguro, pelo menos naquela altura. Maria nunca mais referira a troca de palavras que tivera lugar entre eles no primeiro dia depois de Thomas recuperar da febre, e as conversas entre eles eram agora raras e inócuas, enquanto ambos tentavam descobrir o caminho da reaproximação. Só ganhavam animação quando debatiam o futuro.
A última vez que contemplara o porto e a paisagem circundante de St. Ângelo, as penínsulas de Senglea e Birgu estavam praticamente intocadas pelo cerco. Mas agora Thomas avistava um panorama apocalíptico, de morte e destruição. Uma boa parte das fortificações de S. Miguel e Birgu tinham sido já arrasadas, e as muralhas principais já pouco mais eram do que montes de entulho que se estendiam entre os bastiões, também já muito afetados. Praticamente todos os edifícios na cidade de Birgu tinham sido danificados pelos tiros, e muitos tinham mesmo ruído por completo. Mastros e velame emergiam do mar na margem leste da península, consequência da ordem de La Valette para que lá fossem afundados navios, para impedir qualquer tentativa de desembarque turco nesse ponto. Tinha passado um mês desde o assalto por mar a Senglea, que tinha sido derrotado, e o braço de mar entre as duas penínsulas detidas pelos defensores ainda estava atulhado de destroços de galeras e de centenas de cadáveres inchados e sem cor, que levavam um cheiro nauseabundo às ruas de Birgu sempre que a brisa soprava do lado do mar.
Os turcos tinham instalado baterias em todos os pontos elevados, e mantinham uma barragem incessante, tentando destruir por completo as defesas exteriores e lançando de vez em quando uns tiros sobre a própria cidade, para castigar a população civil e fazer baixar o pouco que lhes restava de moral. A paisagem entre as muralhas e as trincheiras turcas estava marcada pela passagem das balas de canhão, e chamuscada pelas armas incendiárias que ambos os lados usavam. As costumeiras cortesias em tempo de guerra tinham sido esquecidas; qualquer grupo que se arriscasse a tentar recolher os cadáveres para lhes dar enterro era imediatamente alvo do fogo inimigo. Em consequência dessa política, havia milhares de corpos e membros despedaçados em frente às muralhas, dos quais as gaivotas se alimentavam sem serem incomodadas.
Thomas contemplou a cena num silêncio chocado. Apesar de ter sido testemunha próxima da selvajaria ocorrida no combate por St. Elmo, tudo isso lhe parecia apenas um ensaio em pequena escala para o que agora apreciava. Era difícil acreditar que o inimigo não pudesse simplesmente subir os montes de entulho que eram praticamente tudo o que constituía as defesas de Birgu. Apenas a paliçada construída à pressa no interior das muralhas, que bloqueava o acesso às ruas da cidade, lhes poderia opor alguma resistência.
Maria observava a sua reação ao primeiro vislumbre do campo de batalha.
— Já é difícil recordar o aspeto que esta ilha tinha antes da chegada dos turcos. Parece ter sido há muito tempo. Por vezes tenho dificuldade em lembrar-me de que houve uma vida antes de tudo isto. Ou em acreditar que um dia voltará a haver uma vida que não esteja sempre mergulhada na sombra destes dias.
— Acabará por passar da memória — retorquiu Thomas. — Daqui a cem anos tudo estará esquecido, e não merecerá mais do que uma breve menção sobre a história do nosso tempo. Somos bons a esquecer estas coisas; se assim não fosse, a guerra já teria tido um fim universal.
— Algumas coisas não se esquecem — comentou Maria quase em surdina. — Não podem ser esquecidas, por muito que a mente assim o deseje.
Thomas manteve o silêncio por momentos, e acabou por anuir.
— Assim é.
— Então, porquê negar-lhes as consequências? — indagou ela, em tom argumentativo. — Se encontrares algo de puro e verdadeiro, e tiveres a certeza da sua natureza, no mais fundo da tua alma, não o deves abraçar? Com tanta devoção como a que usas na fé em Deus?
Thomas desviou o olhar da devastação que se estendia lá fora e fixou nela o seu único olho funcional.
— Estás tão certa do nosso amor mútuo como estás certa da tua fé?
— Evidentemente.
— Diz-me então qual é a base da tua fé? Que prova tens de que existe um Deus? Alguma vez ele se manifestou na tua presença? Diz a verdade.
— Não.
Thomas suspirou.
— Nem a mim, nem a muitos outros. E porém é-nos exigido que acreditemos, sob pena de morte por heresia.
Maria pegou-lhe na mão, com uma expressão ansiosa e magoada.
— Thomas, porque dizes essas coisas? Porque é que tentas fazer-me vacilar na minha fé? Diz-me.
— Maria, se és capaz de acreditar que este mundo existe por capricho de um Deus que nunca se mostrou, se és capaz de acreditar que existe um propósito divino por trás do massacre de homens bons e de inocentes sem nódoa, tudo isso sem a mais ínfima prova, diz-me tu porque devo eu acreditar que o amor que sentes por mim é mais real que essa fé?
— Porque o sinto, porque sei que ele existe, e está aqui! — Levou uma mão ao peito. — É para mim tão real como a minha própria carne, como o sangue que a percorre.
Thomas olhou-a e notou o brilho da convicção no seu semblante. Por momentos, a paisagem torturada que rodeava St. Ângelo desapareceu, e só existia aquele pequeno espaço entre eles.
— Que mais queres de mim? — quis saber Maria. — Que mais posso eu dizer? Terás assim tantas dúvidas sobre o que sentes por mim?
— Nunca — retorquiu Thomas imediatamente. — Mas eu mudei, é tudo. Sou apenas uma ruína de homem, e não aceito que a afeição que me mostras seja maculada por um único grão de piedade. Nem quereria que me aceitasses agora e depois o lamentasses no tempo que nos possa restar.
A expressão de Maria endureceu.
— Thomas, julgas-me volúvel. É uma cruel acusação que é lançada sobre quem passou tantos anos a pensar em ti com tanto amor.
— Não tanto que te levasse a recusar o casamento com outro homem. — Era uma frase cruel, e Thomas lamentou ter pronunciado tais palavras no preciso momento em que elas lhe saíram dos lábios.
— O que querias tu que eu tivesse feito? Deixar-me morrer de fome nalguma sarjeta? Fechar-me num convento para o resto da vida? Não tinha qualquer razão para crer que algum dia regressasses por mim, e de facto nunca o fizeste. Vieste quando o teu mestre te chamou, e não antes. — Thomas franziu o sobrolho ao escutar a forma como ela retratava a sua obediência a La Valette, e sentiu cair sobre si o peso da culpa, ao considerar a acusação. Uma rajada de vento soprou o cabelo de Maria para a face, e ela afastou-o com um gesto irritado, enquanto caíam as primeiras gotas de chuva. Thomas pegou-lhe na mão e levou-a até um abrigo para sentinelas, uma pequena abóbada de onde uma estreita fresta oferecia um panorama sobre o porto. A chuva aumentou de intensidade. O espaço em que se encontravam era apertado, e não dispunha de mais do que um pequeno degrau de pedra onde uma sentinela se poderia apoiar para descansar um momento. Thomas percebeu que tinha de se aproximar dela, e que os seus braços ficariam em contacto enquanto contemplavam a chuva a tombar. Sentiu a carne dela a tremer e virou-se; ela chorava. Sentiu um aperto de culpa e levou uma mão ao rosto dela, para afastar suavemente uma lágrima que lhe descia pela face.
— Não chores.
Ela encarou-o com o lábio a fremir de emoção.
— Porque não? Partes-me o coração, e pedes-me para não sentir mágoa?
Thomas abanou a cabeça.
— Não queria...
Debruçou-se sobre ela e beijou-a. Foi um gesto desajeitado, e ela recuou. Mas depressa lançou os braços sobre os ombros dele e o puxou para ela, respondendo ao beijo. Os olhos dela, abertos a princípio, fecharam-se quando se encostou a ele, os lábios colados numa carícia terna que lhe enviou ondas de êxtase por todo o corpo. Um clarão súbito de um relâmpago iluminou as muralhas do forte, e pouco depois o som do trovão atravessou as nuvens cinzentas, terminando com um estalido abrupto que os assustou aos dois. Afastaram os rostos e olharam-se nos olhos, até que Thomas começou a rir, nervoso.
— O que é? — Ela franziu o sobrolho, desconfiada. — O que te diverte tanto?
— Nada... É só o facto de eu ser um tão chapado idiota. Um velho idiota. — Debruçou-se e beijou-a novamente. — Temos tão pouco tempo à nossa frente, e eu esbanjo-o como um jovem irresponsável.
. . .
A chuva continuou a cair por mais de uma hora, embatendo nas lajes com um silvo constante, interrompido apenas por séries de relâmpagos e trovões que afogavam o som dos canhões turcos. Pela primeira vez em meses o ar estava fresco, e o vento que acompanhava a tempestade tinha um gume cortante que os fez arrepiar enquanto se mantinham abraçados. Permaneceram em contacto, sentados no degrau duro da guarita, e conversaram em tom doce sobre os anos decorridos desde que tinham sido separados, e sobre os tempos anteriores, passados juntos. A distância entre eles depressa se desvaneceu por completo, e Thomas, feliz e satisfeito, pousou o rosto sobre o cimo da cabeça dela, aspirando o perfume do seu cabelo. Por fim o vento começou a amainar, e a chuvada transformou-se num chuvisco, até que as nuvens começaram a abrir e o Sol brilhou sobre os telhados que ainda resistiam e as arruinadas muralhas da cidade. Maria ergueu a cabeça e cheirou.
— O que é? — indagou Thomas.
— O cheiro da guerra desapareceu. Pelo menos por agora.
Thomas sorriu. Ela tinha razão. O constante cheiro a queimado, a pólvora e corpos em putrefação, desaparecera. Encheu os pulmões de ar puro e sentiu como se um raio de esperança tivesse trespassado as trevas que envolviam o presente.
Um soldado surgiu ao cimo das escadas que vinham do interior do forte. Olhou em volta, admirando o mundo lavado, e sorriu brevemente para si mesmo. Avistou-os então na guarita e apressou-se na sua direção.
Parou à entrada e inclinou a cabeça.
— Sir Thomas Barrett?
— Sim?
— O Grão-Mestre enviou-me à vossa procura. É seu desejo que, agora que haveis recuperado o suficiente para retomar os vossos deveres, vos avistais com ele.
— Recuperado? — Thomas arregalou um olho.
— Que loucura é esta? — inquiriu Maria. — Não vedes que Sir Thomas foi ferido com gravidade? Precisa de descanso e mais tempo de recuperação.
O soldado olhou para ela.
— Senhora, todos os homens são necessários na defesa de Birgu. Incluindo os feridos que se possam movimentar. Daqui em diante, se podem caminhar, não são considerados feridos.
Maria abriu a boca num protesto, mas Thomas levou os seus dedos aos lábios dela, com ternura.
— Não recusarei marchar para a batalha. Agora, tenho todas as razões para combater. — Virou-se para o soldado. — Onde está o Grão-Mestre?
— No posto de comando avançado, senhor.
Thomas fez um gesto a designar o penso no braço esquerdo.
— Estive ausente da refrega durante algum tempo. Não estou familiarizado com as disposições mais recentes.
O soldado anuiu em compreensão.
— O Grão-Mestre e os seus oficiais estão na sede da guilda dos mercadores, na praça principal, senhor. Volto para lá agora. Posso mostrar-vos o caminho.
— Obrigado.
Thomas sentiu Maria a apertar-lhe a mão com força e quando a fitou, notou a angústia que lhe preenchia a alma.
— Thomas, fica. Fica comigo. Por favor... Imploro-te.
Respondeu ao aperto dela antes de se libertar e sorrir docemente.
— Voltarei para junto de ti assim que puder.
O soldado rodopiou e dirigiu-se à entrada das escadas. Thomas seguiu-o, obrigando-se a não virar a cabeça para a ver uma última vez.
Os dois homens deixaram as muralhas de St. Ângelo e atravessaram Birgu. Parecia não haver um edifício intacto. Pilhas de tijolos, estuque e telhas viam-se por todos os cantos, e os restos calcinados de alguns edifícios evidenciavam os fogos provocados pelo bombardeamento turco. De vez em quando ouviam o assobio de uma bala a passar-lhes por cima e o estrondo do impacto e da queda das construções atingidas. Estava a ser feito um esforço para manter o centro das ruas desimpedido, para permitir a circulação, mas a escala da destruição ameaçava ser mais forte do que o trabalho dos defensores. Por várias vezes Thomas e o soldado viram-se obrigados a trepar por pilhas de entulho compostas de tijolos e madeiras.
Thomas ficou surpreendido por ver a quantidade de pessoas que se arriscavam pelas ruas, e se ocupavam a vasculhar as ruínas, fazendo pausas apenas quando escutavam o silvo de novo disparo sobre a cidade e se abrigavam onde lhes fosse possível, até o perigo passar. Os rostos esquálidos contemplavam-nos desconfiados, enquanto eles seguiam caminho.
— Saqueadores — comentou o soldado. — Procuram comida e coisas de valor. O Grão-Mestre proclamou uma ordem a proibir saques, mas não há soldados suficientes para a fazer cumprir. Além disso, muita gente está à beira da fome, e a ordem pouco lhes diz.
— Fome?
O soldado assentiu.
— As rações foram outra vez reduzidas, há três dias. São agora um quarto do que era distribuído no começo do cerco. Se ele prosseguir muito mais tempo, os desgraçados vão começar a cair aos magotes.
— E em que estado está o moral dos habitantes?
— Oh, os Malteses são tesos — admitiu o homem. — Não se ouve uma palavra a sugerir a rendição ou sequer a aceitação de termos. Estão prontos a seguir o velhote até ao fim. Ele luta ao seu lado, partilha todos os perigos e só se permite comer quando eles o fazem também. Portanto, ele é o seu herói. Cá estamos, senhor.
O soldado indicou o que restava de um grande edifício, do outro lado de um espaço aberto coberto por montes de entulho, e Thomas apercebeu-se espantado de que estava a olhar para o que fora em tempos a elegante praça principal de Birgu. Fizeram cuidadosamente o caminho até à entrada da sede da guilda dos mercadores, fazendo uma paragem a meio para se agacharem enquanto uma bala gemia pelo ar ao passar sobre eles. Ficaram à escuta do impacto, mas ele não se deu.
— Falharam — comentou o soldado, com satisfação.
Levantaram-se e prosseguiram. À porta do edifício, uma sentinela reconheceu o soldado e fez-lhes sinal para passarem. Do outro lado do arco da entrada abria-se um salão, onde os mercadores da ilha e os armadores se costumavam encontrar para tratar dos negócios. Havia janelas altas que em tempo tinham dado luz ao estuque branco das paredes, sobre as quais estavam pregados retratos dos mais influentes membros da guilda. Mas agora as lajes do pavimento estavam cobertas de poeira e cascalho, e montes de telhas marcavam os pontos em que o telhado ruíra. O soldado conduziu Thomas através do salão até umas escadas que levavam aos armazéns situados sob o edifício. Desembocaram num corredor que se prolongava em ambas as direções, iluminado por velas montadas em suportes nas paredes.
— Encontrareis o Grão-Mestre lá ao fundo. — O soldado apontou para a esquerda.
Thomas acenou um agradecimento, e o soldado virou à direita para se juntar a um grupo de homens sentados a uma mesa, a beber e a jogar dados. Várias aberturas ladeavam o corredor, e, ao passar, Thomas notou que algumas das salas estavam a ser usadas como enfermarias. Outras serviam de armeiros e paióis, recheadas de armas e armaduras, barricas de pólvora e cestos com munições para os arcabuzes. A certo ponto havia um buraco na parede, e um túnel tinha sido escavado a partir dele até às caves de um edifício contíguo. Havia um espaço aberto onde tinham sido colocadas várias mesas. Dois homens sentavam-se a uma delas, debruçados sobre um mapa da ilha.
À fraca luz das velas, Thomas reconheceu Romegas, envolvido numa conversa de tons urgentes com um homem magro com uma barba esbranquiçada. Só ao fim de alguns momentos reconheceu neste o Grão-Mestre. La Valette levantou o olhar ao escutar passos e sorriu com ar fatigado enquanto acenava a Thomas para se aproximar e tomar assento à mesa.
Romegas fez um breve aceno de saudação.
— Fico feliz por vos ver de novo, Sir Thomas. Temi o pior quando soube dos vossos ferimentos. Foi uma felicidade que tivésseis conseguido escapar de St. Elmo mesmo no fim.
Thomas adivinhou no tom do outro uma nota de crítica, e apontou para as cicatrizes no rosto.
— Tendes uma singular conceção da felicidade.
Romegas encolheu os ombros.
— Haveis sobrevivido, com um mero punhado de homens, quando todos os outros morreram. A isso chamo fortuna, por falta de outra palavra.
Thomas sentiu a cólera a crescer.
— E que palavra seria essa? De que tentais acusar-me, precisamente?
O Grão-Mestre pigarreou audivelmente.
— Senhores, por favor, basta. Somos já poucos para nos permitirmos desperdiçar forças em questiúnculas sem significado. Foi por isso que vos convoquei, Sir Thomas, mesmo sabendo que ainda estáveis na enfermaria. Preciso de todos os homens ainda com força e vontade de enfrentar os turcos. Já perdemos tantos homens de valor, o meu próprio sobrinho, e Fadrique, o filho de Don Garcia. Ao menos o vosso escudeiro ainda vive. E provou já ser um combatente valoroso, dos mais bravos que já vi. — Sorriu brevemente, antes que o semblante voltasse a escurecer. — Sois os meus dois últimos conselheiros. Guardai a vossa ira para o inimigo.
Thomas ficou chocado.
— Só restamos os três? Sei bem o que aconteceu a Stokely, mas e o marechal de Robles?
Romegas coçou a testa.
— Foi atingido na cabeça, há vários dias. Mas não podíeis saber disso, Sir Thomas. Muito sucedeu enquanto recuperáveis das vossas feridas. Birgu e Senglea foram atacadas pouco depois da queda de St. Elmo. Já haveis visto os danos que a cidade sofreu, mas permiti-me que vos diga que a muralha está praticamente reduzida a uma ruína, destruída pelos bombardeamentos e pelas minas escavadas pelos engenheiros inimigos. Só os bastiões resistem ainda aos canhões turcos. Construímos uma paliçada no interior, mas é uma fortificação bem pobre, com menos de três metros de altura, e já não dispomos de mais de mil homens para manter os turcos à distância. A maior parte dos nossos soldados já foi ferida, e todos estão exaustos e esfomeados. A pólvora está perto do fim, e continua a não haver sinais da força de socorro que Don Garcia nos prometeu.
Thomas mordeu os lábios.
— Se as coisas estão nesse pé, seremos por certo derrotados.
— Não, Don Garcia acabará por vir ajudar-nos — contrapôs La Valette, com decisão. — O meu bom amigo Romegas inclina-se mais para vincar as nossas dificuldades, esquecendo as oportunidades. A situação é difícil, mas isso é apenas metade do panorama. Sabemos que a doença grassa no campo inimigo, e que o moral é baixo, dadas as enormes baixas que têm sofrido desde o início do sítio. E agora a estação está a mudar, e a chuva ajuda ao desconforto que sentem. Se conseguirmos suster as tropas do paxá Mustafa mais algum tempo, ele ver-se-á forçado a deixar a ilha antes da chegada do outono. — Fez uma pausa e semicerrou os olhos, com ar astuto. — Se eu fosse o inimigo, lançaria todas as forças num derradeiro assalto, a qualquer preço.
— Porquê? — perguntou Romegas.
— Porque estaria ciente de que o meu senhor, o sultão, não me mostraria qualquer piedade se regressasse a Istambul depois de fracassar no cumprimento das suas ordens; por isso, faria tudo o que pudesse para manter a minha cabeça em cima dos ombros. É por isso que acredito que muito em breve o paxá Mustafa nos vai atacar com todo o poder de que ainda dispõe. — La Valette olhou para os seus conselheiros sobreviventes. — Quando vierem, estarão mais desesperados do que nunca para nos varrer do mapa. Teremos de mostrar ainda mais determinação, se não queremos que eles trucidem todos os homens, mulheres e crianças de Birgu.
— Há mais uma coisa que podemos fazer — lembrou Romegas. — Ainda temos St. Ângelo. Podemos defender o forte, mesmo que percamos Birgu. Senhor, sugiro que recuemos o que resta da nossa força de combate para o forte. Podemos aguentar lá ainda mais de um mês, até à chegada de Don Garcia ou do outono.
Thomas abanou a cabeça.
— E os civis? Nunca conseguiríamos albergá-los a todos no forte. Estais a sugerir que os abandonemos à mercê dos turcos? — Pensou em Maria, e voltou-se para o comandante. — Senhor, não podemos fazê-lo.
— Mas podemos ver-nos forçados a tal — insistiu Romegas. — De que outra forma poderemos fazer as nossas reservas alimentares resistir? As pessoas já passam fome. Os nossos homens não terão forças para combater, daqui a poucas semanas. O forte é mais fácil de defender do que a cidade e as suas muralhas. Faz todo o sentido. E pode ser a nossa última hipótese de salvar a Ordem, senhor.
— Mas custar-nos-ia a reputação — contrapôs Thomas. — O nosso nome ficaria para sempre nos anais da infâmia se abandonarmos as gentes de Birgu à sorte e aos turcos. Não haveria qualquer piedade, apenas um banho de sangue.
Romegas sorriu friamente.
— É a guerra, Sir Thomas. Uma guerra que eu e o Grão-Mestre temos conduzido ao longo de todos os anos em que servimos a Ordem. O que importa, acima de tudo, é a sobrevivência da Ordem.
— Pensava eu que o que importa é suster a maré do Islão — reagiu Thomas.
— Enquanto vivermos, seremos sempre uma espada cravada no flanco do inimigo — insistiu Romegas. — Para garantir que assim seja, temos de estar dispostos a fazer sacrifícios. Para o bem de todos.
Thomas notou a expressão marcada no rosto do Grão-Mestre, enquanto ele refletia na sugestão de Romegas e lhe dava resposta.
— É verdade. Podíamos defender St. Ângelo muito mais facilmente do que Birgu, e talvez mesmo pelo tempo suficiente para resistir ao cerco... Porém, o que Sir Thomas afirma é também verdade. Nunca poderemos esquecer que a Ordem foi criada para proteger os bons e os inocentes. — Pensou mais alguns momentos, e por fim suspirou. — Creio que já sei o que devo fazer. Sim, estou certo disso.
Romegas lançou uma olhadela a Thomas e sorriu, acreditando que vencera a discussão.
— Sim, senhor, tudo pelo fim último.
— Enganais-vos — retorquiu La Valette. — Não haverá qualquer retirada para o forte... Não depois de a ponte levadiça ser feita em pedaços, por minhas ordens.
42
A penumbra do entardecer foi rasgada pelo breve clarão de uma explosão selvagem, e o único olho funcional que restava a Thomas viu-se forçado a cerrar-se momentaneamente pelo relampejar ofuscante. O lençol de chamas e fumo que se ergueu foi acompanhado por um estrondo ensurdecedor, que ecoou por toda a Birgu. Pedaços da ponte levadiça rodaram lentamente pelo ar, pareceram querer flutuar por instantes e tombaram por fim numa chuva de estilhaços que metralhou os telhados dos edifícios mais próximos e mergulhou no canal que tinha sido escavado entre o forte e a cidade de Birgu.
O Grão-Mestre, seus conselheiros e oficiais superiores assistiram em silêncio à destruição deliberada.
— Senhores, a partir deste momento não há para nós qualquer possibilidade de retirada para uma posição reforçada — anunciou La Valette. — É essa a mensagem que enviamos, quer aos turcos, quer aos nossos homens. Com a ajuda de Deus, manteremos Birgu nas nossas mãos. Se falharmos nesse dever, pereceremos nas suas ruínas. O teste final aproxima-se. — Virou-se para contemplar as alturas que rodeavam a cidade, todas elas controladas pelo inimigo. — Esta manhã conseguimos capturar um oficial inimigo. Revelou-nos que os turcos se estão a preparar para um ataque final. É essa a razão para a ausência de assaltos nos últimos oito dias, e também explica porque é que o paxá Mustafa tem concentrado o fogo dos seus canhões no que resta das muralhas. O inimigo atacará amanhã, à primeira luz da alvorada. — Fez uma pausa, enquanto os oficiais digeriam o significado daquelas notícias. — Se este ataque fracassar, acredito que será difícil ao paxá Mustafa incentivar os seus homens a prosseguir com os ataques, o que significará que poderemos realmente sobreviver a este cerco. Descansem bem esta noite, e que todos estejam nos seus postos amanhã, uma hora antes da alvorada. — Olhou para os seus seguidores com uma expressão resoluta. — Estou demasiado cansado para proferir um discurso motivante. Tenho poucas palavras para vos oferecer. Combatemos o Turco de acordo com as melhores tradições desta Ordem. Sinto-me honrado por vos ter comandado e combatido ao vosso lado, e ao de todos os que tombaram na defesa da Santa Fé. Nenhum foi menos que um herói. Homens alguns poderiam ter feito mais para alcançar maior quinhão de honra e glória. Se for nosso destino encontrar a morte no dia que se aproxima, que assim seja. O nosso martírio inspirará o resto da Cristandade no combate contra os infiéis. Seremos vingados. E se sobrevivermos, teremos para contar uma história que aquecerá os corações dos homens por muitas e muitas gerações. Todos os que souberem dos nossos feitos não poderão deixar de parar e pensar, e concluir com entusiasmo e verdade que na longa história do nosso eterno combate, foi este o nosso melhor momento. — Caminhou por entre os oficiais, apertando as mãos a todos, um a um. — Que Deus esteja convosco. Se precisarem de mim, estarei na catedral, em oração. — Virou-se então e seguiu em passo rígido para o coração de Birgu.
Thomas acompanhou-o com o olhar, bem consciente da mudança que se operara no Grão-Mestre. Nos últimos meses, enquanto as tensões acumuladas deixavam o seu efeito bem à vista nos outros homens, La Valette parecia ter sido o único a ganhar forças e determinação. Mas os seus longos anos tinham por fim feito sentir o seu peso naqueles ombros, e pela primeira vez o Grão-Mestre tinha dado a imagem de um homem fraco, frágil, emaciado, tudo o que seria de esperar num homem já com setenta anos.
— Surpreende-me que ele tenha aguentado tanto — comentou Richard em surdina, fazendo eco dos pensamentos do pai. — Parece-me que agora ele abandonou a esperança.
— Não. Ele não. Ele nunca — retorquiu Thomas. — Pode estar exausto, mas o coração continua forte como sempre.
— Espero que tenhais razão. Sem La Valette, já há muito que os turcos nos teriam varrido do mapa.
— Calculo que estejais contente com a decisão do Grão-Mestre?
Thomas rodou e descobriu Romegas de pé a seu lado. O homem acenou na direção dos restos arruinados da ponte.
— Sir Thomas, teria sido bom que me tivésseis apoiado. La Valette deixou no forte apenas os homens suficientes para guarnecer os canhões. Se Birgu tombar amanhã, St. Ângelo não conseguirá resistir mais do que uns dias. Uma guarnição mais numerosa talvez aguentasse umas semanas, ou mesmo uns meses. Mas já é tarde — concluiu, com azedume.
Thomas abanou a cabeça.
— Estais enganado. Se tivéssemos optado por abandonar Birgu, teríamos perdido a vontade de lutar, e o ímpeto do inimigo ver-se-ia renovado. Desta forma não existe qualquer fuga para os nossos homens. Quando amanhã enfrentarem o inimigo, terão os corações forrados de metal, e preferirão morrer a ceder nem que seja um centímetro aos turcos.
— Veremos. — Romegas virou-se e afastou-se, atravessando o terreno livre até ao forte, onde ficou especado a contemplar os restos das longas tábuas da ponte, quebradas pela força da explosão.
O pequeno ajuntamento de oficiais começou a dispersar, e Thomas chamou discretamente Richard.
— Vem, regressemos a casa de Stokely. — Seguiram pela rua, devagar, dadas as constantes dores na perna de Thomas. — Não estou certo de que deva informar a tua mãe sobre o ataque iminente — começou o cavaleiro.
— Porque não? — Richard não escondeu a surpresa. — Ela tem o direito de saber. O direito de procurar a paz, para o caso de amanhã ser o fim. Não?
Thomas anuiu.
— Estava mais a pensar no receio que ela vai sentir por mim. Não entro em combate desde aquele último dia em St. Elmo.
— Estais em condições de pegar em armas?
— La Valette acha que sim.
— E o que pensais vós?
— O meu braço direito está fraco, por falta de exercício. Só vejo de um olho, e a carne do meu braço esquerdo e da minha perna esquerda está rígida e dói-me sempre que mexo os músculos. — Olhou para Richard e forçou-se a sorrir. — Portanto, não estou muito pior do que a maior parte dos homens que amanhã tomarão as suas posições na muralha da cidade. Tu deves estar encantado. Quase não tens um arranhão.
Richard encolheu os ombros.
— A minha sorte não é eterna. Mais dia, menos dia, acabarei por ser atingido.
Thomas parou e pegou-lhe no braço.
— Tens medo?
Por momentos, Richard pensou em negá-lo. Mas acabou por assentir.
— Claro, pai. Não sou particularmente corajoso, por disposição natural.
— Não foi isso que ouvi. La Valette disse-me que, enquanto estive na enfermaria, combateste como um veterano. Não tens já nada a provar sobre a tua coragem.
— Pelo contrário. Luto com ardor sobretudo devido ao medo que sinto. Estou tão assustado que só quero que o combate termine, o mais depressa possível. Uma bala certeira seria uma caridade. Enfrento cada ataque com o medo no coração e o suor frio nas palmas das mãos e a escorrer-me pela espinha. — Enfrentou o olhar do pai. — Não ficarei surpreso se tiverdes vergonha de mim.
— Vergonha? — Sentia o coração dilacerado pelo desejo, impossível de concretizar, de proteger o filho, de o guardar dos tormentos que o afligiam. Pousou as mãos nos ombros do jovem. — Richard, não poderia estar mais orgulhoso de ti. És o mais corajoso homem que alguma vez conheci.
Richard abanou a cabeça.
— Não passo de um cobarde.
— Um cobarde é alguém que imagina os riscos e se vira para deles fugir. A coragem vem do poder da vontade que nos faz ficar e enfrentar o perigo. Richard, sei disto muito melhor do que a maior parte dos homens. É esse o padrão contra o qual me testei durante toda a minha vida.
Richard olhou para ele com ar cético, e Thomas soltou uma risada.
— Pensaste seriamente que eu era diferente de ti? O medo é a espora que faz avançar os homens como nós. De que outra forma o poderíamos controlar e não permitir que se tornasse senhor do nosso destino? Ao que me parece, também nisso somos iguais, pai e filho.
Richard anuiu, o lábio tremeu-lhe por momentos, e por fim afastou desajeitadamente o olhar e esfregou disfarçadamente qualquer coisa ao canto do olho. Thomas sentiu uma pontada de dor perante o evidente sofrimento do filho, que julgou dever-se à vergonha.
— Não há qualquer necessidade de te acusares.
Richard soltou um riso nervoso.
— De nada me acuso. Estou feliz. Feliz por ter um pai... Feliz por vos ter como meu pai.
Todas as preocupações que afligiam Thomas se dissiparam instantaneamente, cedendo lugar a uma alegria serena, e ele puxou o filho para junto de si, abraçando-o e beijando-lhe a testa. Depois, tal como se tivessem acabado de partilhar uma boa piada, soltou-o e deu-lhe um leve soco amigável no peito.
— Esta noite beberemos juntos. Pelas chagas! Se alguma vez existiu um verdadeiro teste à coragem de um homem, foi a de consumir uma garrafa desta zurrapa local.
Richard riu, e prosseguiram o caminho, Thomas deixando o braço ferido apoiar-se no ombro do filho.
Quando alcançaram o portão da casa de Stokely, Thomas adiantou-se para abrir o trinco. Levantou-o e empurrou o portão para dentro. Ao olhar para trás, verificou que o jovem tinha ficado parado na rua.
— O que se passa?
— Nada. — Richard sorriu. — Nada de nada. Não fico aqui esta noite. Vou passar a noite ao albergue.
Thomas franziu o sobrolho.
— Porquê?
— Pai, já tive direito ao meu momento de proximidade convosco. Parece-me bem que esta noite fiqueis a sós com a minha mãe. Ver-vos-ei amanhã, na muralha. Boa-noite. — Richard inclinou a cabeça com uma expressão doce, virou-se e afastou-se, sendo tragado pelas sombras que dominavam a rua. Thomas deixou-se estar à entrada do pequeno pátio, tentado a chamar por ele.
— Thomas? — A voz de Maria surgiu do interior da casa. — És tu?
Esqueceu a rua lá fora e cerrou o portão nas suas costas. Avistou-a à porta de casa, recortada pelo brilho pálido do candelabro na pequena sala de entrada. Acima dela, as paredes da casa subiam até onde se podiam ver os destroços das traves que tinham servido de base ao telhado, antes de este ter sido desfeito por uma bala turca. A maior parte das telhas tinham caído sobre a habitação, e no primeiro andar só tinha restado um quarto habitável. Depois de trancar o portão, Thomas atravessou o pátio e subiu os degraus para a apertar nos braços e a beijar nos lábios.
Quando se separaram, ela perguntou:
— Onde está o Richard?
— Fica no albergue esta noite.
— Porquê?
— Quis dar-nos uma ocasião para estarmos sós.
— Porquê? — Uma careta desenhou-se no semblante dela. Thomas pegou-lhe nas mãos e massajou-lhe as palmas com os polegares. Maria pareceu magoada, mas acabou por assentir. — Bom, será como ele deseja. É uma pena, já que preparei uma refeição para partilhar com toda a minha família. Encontrei porco salgado na despensa, além de algum queijo para acompanhar a ração de pão.
— Um verdadeiro banquete — comentou Thomas, bem-disposto.
Maria soltou uma risada enquanto o puxava para dentro e fechava a porta nas suas costas.
. . .
Mais tarde, repousavam nus numa esteira, por trás da treliça que protegia a varanda do único quarto ainda em condições, e contemplavam o firmamento. O céu estrelado era atravessado por estreitos farrapos de nuvens prateadas. A norte, uma densa massa escura cobria o horizonte e avançava sem cessar para a ilha. Apesar de a estação estar a mudar, a noite não estava fria, pelo que não enfrentavam qualquer desconforto. Os seus corpos ainda irradiavam calor, depois de terem feito amor. Maria estava apoiada contra o flanco direito dele, a cabeça a repousar sobre o seu peito, enquanto os dedos brincavam por entre os pelos que lhe cobriam o ventre.
— Mais do que tudo, gostava de falar do futuro — começou ela, em voz tranquila. — Mas sei bem que esse é um luxo ao qual não nos podemos entregar. Pelo menos não durante algum tempo. Só quando o cerco terminar.
Thomas sorriu com tristeza.
— Meu amor, não devíamos olhar para o futuro. Não devíamos de todo.
Ela manteve-se em silêncio por momentos, e depois levantou a cabeça, apoiada num cotovelo.
— Meu querido Thomas, o futuro é a única coisa que me pode confortar. O presente pouco mais nos oferece do que um perigo constante, e no passado só vejo escuridão e desespero. Há demasiada dor no meu passado. Tudo o que temos é este momento.
Thomas acariciou-lhe o rosto, sem ter a certeza se devia dar-lhe a conhecer tudo o que o preocupava. Acabou por decidir que não tinha qualquer direito de lhe esconder a verdade.
— Minha doce Maria, esta pode bem vir a ser a última noite que passamos juntos. Os turcos vão atacar pela manhã. La Valette pensa que será a derradeira tentativa que farão para nos derrotar. Empregarão todos os meios e todos os homens neste assalto. Teremos de os enfrentar nesses mesmos termos.
— Vais combater também?
— Tem de ser. Para defender a Ordem, Birgu e, mais do que tudo, para te proteger.
— Nesse caso, lutarei a teu lado.
Thomas abanou a cabeça.
— Não podes. Não há lugar para as mulheres na frente de combate.
— A sério? E achas que vamos ficar todas de mãos a abanar enquanto os turcos vos esmagam e dão largas à sua sede de sangue e luxúria sobre nós? Thomas, garanto-te que todas as mulheres, todas as crianças, sabem perfeitamente o que está em jogo. E todos estamos prontos a fazer o que pudermos para derrotar o inimigo.
— Não. Ficarás aqui, onde estarás em segurança.
— Segurança? — Ela soltou uma gargalhada amarga. — Se as defesas forem rompidas, todos morreremos ou seremos escravizados. Prefiro mil vezes morrer ao teu lado do que ficar aqui à espera de ser violada e esquartejada. Não permitirei que a minha vida termine dessa forma. Serei eu a escolher o fim. — Colocou os dedos sobre os lábios dele. — É a minha última palavra. Não podes dissuadir-me.
— Nem a tal me atreveria — retorquiu, num tom divertido. — Mas chega desta conversa. Abraça-me.
Ela voltou a apoiar a cabeça no peito dele e aninhou-se contra o seu corpo; Thomas fechou os olhos e deixou o pensamento concentrar-se naquela sensação de proximidade e calor. Lá fora, uma nuvem cobriu a ilha, apagando as estrelas uma a uma. Pouco depois de o sino da catedral bater a meia-noite, as primeiras gotas de chuva começaram a abater-se sobre a cidade em ruínas, aumentando de ritmo à medida que o aguaceiro se desenrolava, acompanhado de uma brisa fria que fazia a água atravessar a treliça. Levantaram-se da esteira e regressaram para a cama, onde se abraçaram por baixo das quentes mantas.
. . .
Quando chegou a hora que antecedia a alvorada, a chuva não tinha amainado, e parecia pelo contrário cair ainda com mais força, sendo acompanhada por relâmpagos e trovões. Quando o sino anunciou a hora combinada, Thomas acendeu uma vela, levantou-se e vestiu-se, bem consciente de que Maria também tinha acordado e o observava. Quando acabou de envergar o gibão, virou-se para ela.
— Ajudas-me com a armadura?
Ela anuiu e sentou-se, enquanto pegava no seu vestido. Seguiu-o para o andar de baixo, onde a armadura e as armas estavam arrumadas numa arca junto à porta. Thomas pegou na placa peitoral e segurou-a no sítio, enquanto ela colocava a placa das costas e apertava as correias. Ela ajudou-o também com as manoplas, e apertou as proteções para os braços e mãos. Quando se preparava para lhe colocar as proteções das pernas, Thomas abanou a cabeça.
— Não consigo usá-las por cima das partes feridas. São demasiado dolorosas. Só falta o elmo, por favor.
Ela colocou com todo o cuidado a proteção almofadada sobre o crânio, antes de pegar no elmo aberto e o enfiar na cabeça dele, ajustando a fivela por baixo do queixo.
— Aí está.
Thomas experimentou movimentar-se, fazendo um esforço de concentração para não denunciar a agonia que lhe percorria o lado esquerdo do corpo, de alto a baixo. Assentiu, satisfeito, e pegou na espada, passando o cinturão sobre o ombro. Maria correu ao quarto e regressou pouco depois com o cabelo apanhado e envergando uma camisa e calções, roupas mais adequadas a um jovem do que a uma senhora. Colocou umas botas de pele flexível e apertou os laços. Por fim, pegou num cinto com adaga no meio das armas ainda no baú, e apertou-o à cintura, antes de se virar para Thomas.
— Estou pronta.
O brilho tímido da vela dava à pele dela um tom rosado e suave, e ele sorriu.
— Há uma última coisa que te quero pedir antes de partirmos. Escrevi uma carta ao Richard. Deixei-a na arca junto à cama. Se me acontecer alguma coisa, promete-me que a carta lhe chega às mãos.
Maria anuiu.
— Ótimo. — Thomas sorriu. — Vamos então.
. . .
Uma carroça cujas paredes laterais tinham sido reforçadas com sólidas pranchas de madeira nas quais estavam cravadas pontas metálicas bem aguçadas era o que servia de portão para a paliçada construída à pressa no interior das muralhas da cidade. Era feita dos materiais obtidos nas casas demolidas e do entulho das partes da muralha que tinham ruído. Não tinha mais de uns três metros de altura, e fazia um arco nas duas extremidades, onde se juntava aos dois bastiões desgastados mas que ainda aguentavam o fogo inimigo. Por trás dela tinha sido preparado um passadiço, onde se dispunham mulheres e crianças, bem como homens idosos, todos eles encolhidos com a chuva, mas ocupando as suas posições sob as ordens de um punhado de soldados designados para comandar aquela última linha de defesa. Empunhavam armas de todo o género, desde piques a espadas, machados e mocas, e tinham à disposição cestos repletos de pedras para lançar sobre as cabeças dos turcos, se estes conseguissem forçar a passagem sobre o que restava da muralha principal.
Maria separou-se de Thomas junto à carroça, e pegou num bastão antes de subir os escassos degraus que levavam ao passadiço. Ele saiu. Havia escadas a postos no exterior, para o caso de os homens na muralha se verem forçados a recuar. Richard esperava-o no terreno vazio. Subiram juntos para a área da muralha onde o Grão-Mestre já tomara posição, sob o estandarte ensopado da Ordem. La Valette estava junto ao parapeito, as mãos enluvadas sobre as pedras resplandecentes de humidade, a contemplar as trincheiras turcas.
Richard deitou o olhar ao céu e piscou os olhos para evitar as gotas de chuva.
— Hoje não haverá disparos. Ninguém consegue manter a pólvora seca neste dilúvio. Será um combate corpo a corpo. E os turcos não terão nada a perturbar-lhes o assalto às muralhas.
— Não é bem assim, meu caro jovem. — La Valette virou costas ao inimigo. — Pode estar demasiado húmido para os nossos canhões e arcabuzes, mas não para as nossas bestas.
Thomas passou o olhar ao longo da face interna da muralha e reparou, à fraca luz dada pelos primeiros indícios da alvorada, que os homens que normalmente estariam armados com arcabuzes seguravam bestas e tinham por perto aljavas repletas de projéteis.
La Valette gargalhou.
— Sir Thomas, tenho a agradecer-vos pela lembrança. Estavam empilhadas nas caves, por entre relíquias de guerras passadas. Mandei-as vir de St. Ângelo durante a noite. Esperemos que os nossos homens as ponham a bom uso.
O Grão-Mestre voltou a virar-se para o parapeito, e os defensores aguardaram debaixo da chuva enquanto a alvorada lutava para rasgar as escuras nuvens que cobriam o céu. À medida que a luz ganhava força, Thomas apercebia-se do estado lamacento e escorregadio do terreno junto aos restos da muralha. A uns cem passos de distância, os estandartes ensopados dos turcos marcavam a posição das trincheiras dos assaltantes. Avistavam-se movimentos furtivos, que indicavam que prosseguia a preparação do ataque. De vez em quando escutava-se um coro de preces que se sobrepunha à chuva e ao ribombar dos trovões que se seguiam aos relâmpagos, cujos clarões ofuscantes iluminavam brevemente o campo de batalha.
Ninguém conseguiu determinar o momento em que o Sol se elevou do horizonte, já que as pesadas nuvens tudo cobriam. Por fim, um vulto emergiu da trincheira mesmo em frente ao estandarte do Grão-Mestre e avançou alguns passos antes de se deter e empunhar uma cimitarra incrustada de joias. Apesar das roupas encharcadas, era evidente que se tratava de alguém importante. Ostentava um grande turbante e uma placa peitoral finamente decorada.
— É o paxá Mustafa em pessoa — anunciou Romegas, esforçando a vista contra a chuva.
O peito do comandante turco inchou quando ele inspirou antes de soltar uma ordem que se sobrepôs ao silvar da chuva. Ao escutarem o comando, incontáveis vultos saltaram das trincheiras, soltando um clamor enquanto corriam sobre toda a extensão das delapidadas muralhas de Birgu. Os céus eram rasgados por relâmpagos que davam quadros instantâneos de milhares de faces determinadas e de bocas escancaradas em gritos selvagens enquanto avançavam, meio em pé e meio rastejando, pelo terreno enlameado que os separava dos defensores, determinados a eliminá-los a todos da face do mundo.
43
–Preparar as bestas — ordenou La Valette.
Romegas levou a mão em concha à boca e gritou, esforçando-se para ser ouvido sobre a chuva sibilante. A ordem foi repetida ao longo da muralha, e todos os besteiros aprestaram as armas e apontaram-nas para o terreno por onde o inimigo já surgia.
Thomas olhou para o lado. Parecia-lhe que já existiam mais brechas do que secções intactas na muralha, e os escombros das partes danificadas tinham ruído até ao fosso à frente da muralha, fornecendo aos atacantes passagens seguras para se lançarem ao assalto. Os defensores tinham feito alguns esforços para obstruir as brechas com barricadas, mas estas pouco abrigo forneciam, e seriam facilmente ultrapassadas por um ataque decidido. Olhou de relance para a paliçada interior, tentando avistar Maria, mas era impossível distingui-la por entre as figuras ensopadas que povoavam o passadiço.
— Os turcos vão ter uma surpresa e tanto, quando se puserem ao alcance das bestas — comentou Richard, com uma satisfação cruel.
Thomas anuiu. Antes da chegada da chuva, um assalto significaria, para os atacantes, submeter-se a um fogo constante de canhões e armas ligeiras, vindo das muralhas. Naquela manhã, podiam carregar sem perigo. Pelo menos, era isso que esperavam. Os mais velozes dos inimigos já se adiantavam aos seus camaradas, e atrás deles vinha toda a massa dos turcos, oferecendo um alvo impossível de errar. La Valette ergueu a mão direita e esperou até os assaltantes estarem a menos de cem passos; só nessa altura fez o braço descer rapidamente, enquanto soltava uma palavra rápida.
— Agora.
Ao mesmo tempo que Romegas repetia a ordem, todos os que tinham estado atentos ao sinal também dela faziam eco, pelo que se escutou de imediato um coro de estalidos abafados quando os braços das armas se moveram rapidamente, soltando os pesados projéteis em arcos pouco pronunciados através da chuva, direitos ao inimigo. No momento seguinte, Thomas avistou dezenas de turcos a deterem-se de repente. Alguns mergulharam para a frente e debateram-se no solo, enquanto outros cambaleavam enquanto tentavam arrancar os projéteis barbados que se tinham cravado nos seus corpos. Um punhado de homens morreu instantaneamente.
Os atiradores na muralha pousaram as bestas, colocaram os pés nos estribos na extremidade das armas e lutaram para voltarem a puxar as cordas para a posição de disparo. Os mais fortes despacharam-se mais depressa, e dispararam de novo, abatendo mais inimigos que entretanto aceleravam o passo, tentando alcançar as muralhas antes que sofressem mais baixas às mãos daquela arma antiquada.
Thomas procurou com a vista o comandante inimigo, e avistou o grande turbante do paxá Mustafa a dançar no meio das fileiras dos seus homens encharcados. O veterano general ao serviço do sultão avançava, fazendo dançar a espada sobre a cabeça. Um pequeno grupo de guarda-costas janízaros avançava ao seu lado; e um deles transportava o estandarte pessoal de Solimão, que fazia dançar de lado a lado, de forma a que o símbolo fosse facilmente visto pelos homens.
O primeiro turco alcançou o fosso numa posição lateral relativamente ao bastião, e Thomas pôde apreciar a forma como ele progredia sobre o terreno enlameado, as roupas a descaírem-lhe como se fossem pregas de pele. Um dos besteiros mais próximos apontou e colocou um dardo nas costas do homem, mesmo abaixo do pescoço. O turco tombou de borco, e as pernas entraram em convulsões. Surgiram mais dos seus camaradas, as roupas, armaduras, peles e armas a reluzirem com a chuva. Mais algumas dezenas de homens foram abatidas enquanto atravessavam os escombros para se lançarem sobre os defensores. No último momento, os besteiros largaram as suas armas e pegaram nas espadas, piques e maças. Depressa o ar se encheu dos sons de armas a abaterem-se sobre escudos, do tilintar das lâminas que se entrechocavam, e dos gritos e urros de guerra, imprecações e gemidos de agonia vindos dos feridos, a que se sobrepunha o som constante da chuva e o pingar constante das grossas gotas nos elmos e armaduras.
— A postos! — ordenou Romegas aos homens no bastião, antes que uma escada de assalto embatesse no parapeito. Thomas ergueu a espada e avançou sobre ela, ao mesmo tempo que surgiam duas mãos de pele escura no degrau cimeiro, e um capacete cónico se anunciava. Thomas fez abater a espada com toda a força, fazendo o gume penetrar através das vestes do homem no ombro, até ser detido pela cota de malha que o turco usava por baixo da camisa. Ainda assim, o impacto fê-lo cair e afetou-lhe o braço de tal forma que ele perdeu o contacto com a escada. Lançando um grunhido, o homem foi projetado para trás e ficou dependurado, até que o outro braço cedeu também, e ele caiu para o solo. De imediato surgiu outro turco a tomar o seu lugar, trepando apressadamente e olhando para o parapeito.
— Richard! — chamou Thomas. — A escada! Usa o teu pique. Depressa, rapaz!
O turco ergueu o escudo para proteger a cabeça enquanto subia os últimos degraus. A espada de Thomas resvalou contra uma proteção, e o cavaleiro recolheu-a para tentar um golpe mais direto. Mas o turco era experiente, e facilmente aparou o golpe. Colocou uma mão sobre o parapeito, preparando-se para saltar para o interior do bastião. Nesse momento Richard, em corrida, carregou com o pique em posição baixa, de forma a enganchá-lo no degrau de cima da escada e poder empurrá-la com toda a força. Os olhos do turco arregalaram-se de medo quando começou a afastar-se do parapeito e então, com um último esforço da parte de Richard, a escada foi-se estatelar sobre a brecha, levando consigo os três homens que estavam a subir por ela.
Ao longo da muralha havia centenas de homens envolvidos em combates mortais, e Thomas percebeu que o peso dos números ia acabar por forçar os defensores a recuar. Havia mais escadas a serem lançadas contra as faces do bastião, e o Grão-Mestre e os homens que o acompanhavam viram-se arrastados para um combate desesperado pela manutenção da sua posição. Enquanto Richard cravava o pique no rosto de um inimigo, Thomas olhou em redor e avistou La Valette de pés bem plantados, a baixar a ponta do pique e a avançar contra um janízaro que tinha chegado ao cimo da sua escada e já lançava uma perna sobre o parapeito. O Grão-Mestre atacou, e o outro mal conseguiu rodar a cimitarra de forma a aparar o golpe. La Valette recuou a arma e, com toda a calma, como se estivesse a praticar um exercício, voltou a atacar. Desta vez fez descer a ponta no último instante, pelo que a lâmina do oponente falhou a interceção e o homem foi atingido no estômago. O rosto do turco contorceu-se de dor, e ele deixou cair a espada, agarrando-se ao cabo do pique que La Valette continuava a empurrar. O janízaro tombou para lá do parapeito, e a ponta libertou-se da ferida. Romegas afastou o seu comandante, pegou no cimo da escada e torceu-a para o lado, fazendo os inimigos que a subiam perder o equilíbrio, e soltar gritos de alarme enquanto a escada caía sobre a brecha próxima.
Da posição superior no bastião, Thomas apercebeu-se de que havia vários locais da muralha em que os defensores já estavam a ser forçados a recuar das barricadas que protegiam as inúmeras brechas. Os turcos não perdiam tempo, e depressa faziam cair as pedras que as compunham, desmontando os obstáculos antes de se lançarem pelas passagens para continuar a fazer recuar os defensores. A sua atenção foi atraída por outra escada que se apoiava no parapeito ao pé de si. Castigou a mão do inimigo assim que ela surgiu sobre o parapeito, rasgando os nós dos dedos e continuando o trabalho no degrau da escada. Ouviu um uivo de agonia, e a mão dilacerada foi recolhida. Richard usou mais uma vez o pique para afastar a escada da muralha.
— Aqui! — gritou Romegas, e Thomas virou-se; o veterano e dois dos sargentos enfrentavam vários homens que tinham conseguido subir para a outra extremidade do bastião. Thomas virou-se para o filho.
— Vai! Ajuda o Romegas. Eu consigo aguentar aqui.
Um vislumbre de preocupação atravessou o semblante ensopado do jovem, mas ele anuiu e correu na direção de Romegas. Escutou-se o som da madeira contra a pedra quando mais uma escada surgiu à frente de Thomas. O turco que a escalava tinha um elmo cónico com um turbante apertado na orla, e os olhos reluziam sobre uma barba espessa, que pingava água sobre a placa peitoral da armadura que usava. Já tinha o peito à altura do parapeito e erguia o escudo quando Thomas atacou. A lâmina obrigou o escudo a descer antes de defletir o golpe, mas o impacto foi tão forte que a ponta da espada do cristão se quebrou.
— Ah! — exclamou o turco, antes de passar uma perna sobre o parapeito e desembainhar a cimitarra. Thomas viu que só lhe restava um meio metro de lâmina, que acabava numa ponta recortada. Era pouco para um combate convencional. Resolveu improvisar, e lançou-se sobre o turco. O pé esquerdo escorregou-lhe nas lajes molhadas, e fê-lo perder o impulso, pelo que não conseguiu derrubar o oponente. Ficaram encostados, face a face, contra o parapeito. Os lábios finos do turco arregalaram-se num rosnar enquanto se debatia para se libertar e conseguir ter espaço para manejar a cimitarra. Thomas tentou usar a mão esquerda para controlar o oponente e não o deixar escapar. Uma dor lancinante percorreu-lhe o membro, obrigando-o a soltar o inimigo e a deixar o braço pender, inútil. Esticou o braço direito, orientou a lâmina partida e empurrou-a sob a orla do escudo do turco. A ponta embateu na orla inferior da armadura deste, pelo que Thomas recuou, reorientou e golpeou de novo, sentindo que desta vez rasgava o ventre do inimigo.
O homem soltou um suspiro explosivo, e a sua saliva atingiu o rosto de Thomas. O turco usou o punho da cimitarra para atingir Thomas na face lateral do elmo, batendo uma e outra vez enquanto o inglês tentava desesperadamente manejar a espada de forma a atingir os órgãos vitais do adversário. Nesse momento, o seu pé esquerdo voltou a escorregar, e ele caiu para trás, arrastando o turco, que caiu por cima dele e o fez perder o fôlego. Enquanto o turco se tentava levantar, Thomas torceu a espada para um lado, fazendo o rosto do outro contorcer-se de agonia. Com um esforço enorme, o turco conseguiu libertar-se e rolar para o lado. A lâmina do cristão soltou-se do terrível rasgão que causara, com um som húmido. O sangue salpicou o punho da espada e as manoplas de Thomas. A ferida era mortal, e o turco sabia-o, quando se ergueu sobre Thomas, ainda de joelhos. Um movimento do escudo afastou a lâmina partida, e os olhos rebrilharam-lhe de fúria quando ergueu a cimitarra e fez menção de golpear o inglês no rosto.
Naquele instante o clamor da batalha em redor pareceu-lhe silenciar-se, e nada mais pareceu a Thomas existir no mundo para lá da ponta da lâmina inimiga que se precipitava sobre ele; cada partícula do seu ser estava congelada num terror absoluto.
Mas no derradeiro instante o turco vacilou, devido à ponta do pique que lhe irrompeu subitamente pela garganta. Tombou sobre o parapeito, o sangue a borbulhar na boca e a jorrar da ferida. Thomas lutou para se levantar, e uma mão surgiu para o auxiliar, segurando-lhe no braço. La Valette olhou-o com preocupação.
— Sir Thomas, fostes ferido?
Estava abalado, mas não sentia qualquer dor, para lá da sensação de queimadura no braço esquerdo.
— Não, senhor.
— Então tratai de descobrir outra arma. — La Valette empunhou o pique, pronto a lutar, e olhou em redor do bastião e sobre o parapeito. Thomas apercebeu-se de que os turcos estavam a ganhar terreno, estabelecendo posições sólidas em várias secções da muralha, e continuando a avançar pelas brechas. O peso dos números estava a revelar-se impossível de contrariar.
— Não vamos conseguir defender esta linha — reconheceu La Valette. — Temos de recuar para a paliçada interna. — Virou-se e procurou Romegas com a vista. O capitão, ajudado por Richard, estava a liquidar um turco que tinha conseguido subir à torre. Lançaram o corpo sobre os que o tentavam imitar, e um rápido empurrão com o pique fez ruir mais uma escada de assalto. Por momentos o bastião ficou limpo de inimigos, mas já havia nas lajes encharcadas dois corpos que envergavam os coletes da Ordem. Um outro estava apoiado no parapeito, o rosto transformado numa máscara sangrenta de carne e ossos dilacerados, o corpo e os membros a tremerem sem qualquer controlo.
— Romegas! — chamou La Valette. — Comigo!
Assim que o outro se juntou a ele, La Valette apontou para os homens que combatiam desesperadamente para manter a comprometida integridade da linha ao longo da muralha.
— Lançai o sinal para recuar para a paliçada interior, assim que eu tiver ocupado a posição junto ao portão, com o estandarte. Ficai aqui com os outros e guardai o bastião.
Romegas apontou para um dos corpos no solo, e Thomas avistou o estandarte caído ao lado do cadáver.
— Senhor, o porta-estandarte foi abatido.
La Valette assentiu e virou-se para Thomas.
— A honra recai sobre vós. Pegai no estandarte, e segui-me com o vosso escudeiro.
Thomas chamou Richard e pegou no estandarte com a mão útil, apoiando-o contra o ombro. Os três homens desceram as escadas até à base do bastião. Dois soldados guardavam a entrada e, à ordem de La Valette, levantaram os ferrolhos de ferro e abriram a pesada porta. Thomas e Richard seguiram o Grão-Mestre através do espaço aberto por trás dos homens que combatiam na muralha para suster a investida turca. Havia uma pequena abertura junto à carroça na paliçada, que não permitia a passagem a mais de dois homens em simultâneo, e foi por ali que se recolheram para o interior da última linha de defesa de Birgu. A grunhir com o esforço, La Valette trepou para o passadiço, e Richard auxiliou Thomas a imitá-lo, antes de se lhes juntar.
La Valette virou-se para o bastião e ergueu a mão num aceno. Romegas respondeu com um gesto semelhante e logo a seguir ouviu-se o estridente som de uma trombeta, a sobrepor-se aos sons da batalha e da chuva. Os homens que estavam na retaguarda da linha de batalha voltaram-se de imediato e juntaram-se aos feridos que recolhiam à segurança da paliçada. Os que ainda combatiam começaram a recuar, afastando-se lentamente dos duelos que travavam, e só depois virando-se para correr pelos degraus abaixo ou pelos escombros soltos que ladeavam a muralha.
Assim que os turcos se aperceberam do que se estava a passar, levantou-se uma aclamação por toda a frente de batalha, e eles precipitaram-se, ansiosos por perseguir e varrer os defensores, de forma a porem fim ao terrível cerco que já tinha ceifado tantas vidas dos seus camaradas. Entraram por todas as brechas, abatendo todos os que se tinham demorado a responder ao sinal, ou tão enraivecidos pela fúria do combate que não se tinham dado ao trabalho de retirar, e que desafiavam os turcos com gritos selvagens até serem mortos pelos golpes incessantes das lâminas inimigas.
— Ficai com a minha adaga.
Thomas virou-se para Richard e viu o cabo da arma que lhe era oferecida. Acenou em agradecimento e passou o estandarte para a mão esquerda, colocando a perna do mesmo lado em torno da base da haste e apoiando-a no ombro.
Richard baixou a ponta do pique sobre a paliçada de pedra, e encarou com ar determinado a vaga inimiga que descia das pilhas de escombros e começava a atravessar o espaço aberto. À sua esquerda, a uns vinte metros do Grão-Mestre, Thomas viu Maria a auxiliar um soldado a trepar a paliçada. Muitos apressavam-se a subir as escadas e a passar para o lado de dentro, enquanto outros se precipitavam pela abertura junto ao vagão. La Valette observou atentamente o momento em que os últimos defensores e feridos se aproximavam das escadas. Os primeiros dos turcos já corriam atrás deles. Thomas ouviu o som surdo do disparo de uma besta e viu um dos turcos a lançar os braços ao céu e cair para a frente quando um projétil lhe esmagou o joelho. Mais dardos atravessaram o espaço, e poucos falharam o alvo, dada a curta distância a que eram apontados. Os inimigos mais conscientes do perigo agacharam-se e usaram os escudos para se protegerem, e continuaram a aproximar-se, mas com todas as cautelas. Isso deu a alguns dos mais atrasados dos defensores o tempo necessário para alcançarem e subirem as escadas.
Nesse momento o paxá Mustafa surgiu numa das brechas da muralha, ladeado pelo seu porta-estandarte. Apontou com a cimitarra para a paliçada e lançou uma ordem aos seus homens. O grito foi repetido por milhares de bocas, e os turcos carregaram em força. Na base das escadas ainda havia alguns cristãos à espera de vez para subir. Alguns ainda se viraram contra o inimigo, apontando-lhe os piques, ou fazendo rodopiar as espadas e maças, prontos a golpear.
— Recolham as escadas! — gritou La Valette. — Depressa!
Escutaram-se gritos de desespero dos homens abandonados no exterior, enquanto os últimos felizardos corriam pelos degraus acima e se lançavam sobre o parapeito. As escadas foram de pronto recolhidas. Alguns homens tentaram agarrar-se a elas, e tiveram de ser sacudidos. Thomas viu como uma das escadas caía para o exterior, uma oferenda ao inimigo.
— Fechem o portão! — ordenou La Valette aos homens junto ao vagão, que empurraram a pesada estrutura com os ombros, forçando-a a cobrir a pequena abertura, e depois selando a passagem com correntes. Treparam então para o leito da carroça e pegaram nas bestas para disparar sobre a horda que carregava desordenadamente na sua direção. Ao longo de toda a última linha de defesa, os besteiros aproveitaram a derradeira oportunidade de diminuir os efetivos turcos, abatendo mais algumas dezenas que tombaram sobre as poças e pedras molhadas, trespassados pelos projéteis letais. Thomas avistou o mais atrasado dos defensores, ainda a correr, numa fútil tentativa de alcançar a segurança antes de ser engolido pelo inimigo. O homem tinha sido ferido numa perna e coxeava enquanto corria, com um braço lançado num apelo aos camaradas na paliçada, implorando-lhes que o salvassem. Mas nesse momento tropeçou e caiu. De imediato, um homem calvo vestido de peles de animais lançou-se sobre ele e brandiu uma lança nas duas mãos. O soldado ainda se conseguiu levantar, o rosto sujo de lama, a boca aberta num último grito. O turco fez descer a lança entre as omoplatas da sua vítima. A ponta irrompeu pelo peito, e o rosto do homem contorceu-se em agonia, antes de voltar a cair e desaparecer imediatamente de vista, pisoteado pela horda inimiga.
Havia agora suficientes homens na paliçada para tomar o lugar das mulheres e crianças, que recuaram para trás do passadiço e se muniram de pedras para lançar por cima da fortificação. Atiravam os seus projéteis com gritos agudos de puro ódio, e Thomas via como eles embatiam nos elmos e escudos dos inimigos. Alguns conseguiam obter os seus objetivos, atingindo rostos desprevenidos e ferindo muitos dos fanáticos desarmados que se tinham juntado ao exército de Solimão com o fito único de matar os inimigos do Islão e procurar o martírio. Por fim, os turcos alcançaram a paliçada e abateram os últimos defensores encurralados, antes de tentarem atingir os rostos que os contemplavam do alto com evidente ódio.
Thomas viu La Valette debruçar-se e dar uma estocada com o pique no ombro de um atacante, antes de recolher a arma e voltar a golpear. Richard lançou um grito quando a ponta de uma lança lhe atingiu uma manga e fez um rasgão na pele. A camisa desfez-se quando ele libertou o braço e usou o pique para abater o homem que o ferira. Durante alguns momentos, os turcos amontoaram-se na base da paliçada, fornecendo presas fáceis a quem, de cima, golpeava e estocava a densa massa de roupagens e armaduras. Os primeiros grupos com escadas de assalto forçaram a passagem pela turba e encostaram os seus engenhos contra a paliçada. De imediato os seus camaradas começaram a trepar, ansiosos por de novo poder confrontar os defensores de Birgu.
Thomas pegou na adaga ao ver uma escada assentar sobre o cimo da paliçada à sua direita, entre ele e Richard. Oscilou quando o primeiro dos turcos começou a subir. O inglês debruçou-se e atacou-lhe a mão. O turco pareceu ignorar a dor; içou-se sem tirar os olhos de Thomas, quase como se tentasse trespassá-lo com o ódio que por eles enviava. Libertou a mão, fazendo jorrar o sangue, e pegou na cimitarra. A lâmina atravessou o ar na direção do pescoço de Thomas, que mal teve tempo para lançar o peso para um dos lados e evitar o golpe que seguramente o teria decepado. O turco soltou uma imprecação e fez menção de tentar repetir o gesto. Antes que o conseguisse, porém, uma pedra acertou-lhe em cheio no nariz, fazendo saltar o sangue pelas narinas. O homem pestanejou e sacudiu a cabeça. Richard, que acorrera entretanto, fez rodar o pique e usou a haste para o atirar para o meio das espadas, armaduras e elmos cónicos dos seus camaradas.
O paxá Mustafa continuava a incitar os seus homens, a espada sempre em riste, a boca bem aberta enquanto lançava frases de encorajamento. Começou então a avançar para a paliçada, com um guarda pessoal a abrir-lhe o caminho. Durante algum tempo, Thomas só conseguiu seguir a sua progressão pelo terreno graças ao avanço do estandarte de crina de cavalo que se movia por entre o mar de elmos, turbantes, cabeças, pontas de lança e lâminas de espada.
— Senhor — gritou a La Valette, enquanto apontava para o estandarte. — Vede, ali!
O Grão-Mestre seguiu a indicação de Thomas, e reparou que o comandante inimigo se dirigia diretamente para a sua posição.
— Ele quer matar-me.
Thomas assentiu.
— Senhor, será melhor que vos retireis da paliçada.
— Não. O nosso destino está preso por um fio. Devo ficar aqui, onde o povo me pode ver.
La Valette virou-se no preciso momento em que uma lança lhe atingia o ombro protegido pela placa. Um dos turcos tinha trepado aos ombros dos seus camaradas para visar o Grão-Mestre; este limitou-se a virar o pique contra ele e a trespassá-lo.
Thomas continuou a acompanhar o progresso do estandarte inimigo enquanto este se aproximava. Por fim, o mar de gente à sua frente abriu-se, deixando passar uma companhia de janízaros para criar um espaço para o seu comandante e a sua guarda pessoal, constituída por guerreiros altos e espadaúdos, com armaduras cintilantes e brandindo pesadas cimitarras — homens selecionados no corpo de elite do exército de Solimão. Dois deles pegaram numa escada dos seus camaradas e colocaram-na contra a paliçada, diretamente à frente de Thomas e do estandarte da Ordem de S. João. Já conseguia divisar o paxá Mustafa, o rosto curtido e molhado pela chuva enquanto dava ordens aos seus homens e apontava para Thomas. O primeiro dos seus soldados lançou-se pela escada acima. Thomas tentou feri-lo com a adaga, mas o janízaro era rápido, e esquivou-se ao golpe. Apanhou o pulso de Thomas, prendeu-o e manteve-o sob pressão enquanto subia o último degrau e lançava a bota enlameada sobre o parapeito. Tentou desembainhar a cimitarra. Thomas tentava libertar-se, mas o outro homem era demasiado forte para ele, e os seus lábios já se torciam num sorriso cruel.
— Protejam o estandarte! — gritou La Valette, alarmado.
Richard estava dois passos à direita do pai, entretido a empurrar uma escada para longe. Assim que concluiu a tarefa, virou-se e lançou-se contra o janízaro. O homem pressentiu o perigo e largou o pulso de Thomas. Lançou um braço para cima, de forma a desviar a ponta de aço para longe. Thomas aproveitou para fazer o seu ataque, cravando a adaga uma e outra vez no braço do inimigo. Este lançou um urro de fúria e dor, e fez um movimento brusco com a mão que empunhava a cimitarra, atingindo Thomas no peito e fazendo-o perder o equilíbrio; cambaleou à beira do passadiço, até que acabou por tombar para trás, arrastando na queda o estandarte.
De imediato se levantou um lamento dos lábios dos defensores mais próximos, que foi respondido com gritos de júbilo do outro lado da paliçada. O janízaro passou a outra perna sobre o parapeito e enfrentou Richard, lançando golpes selvagens com a cimitarra. O jovem bloqueava-os a custo com o cabo do pique. Outro janízaro surgiu por cima da paliçada e virou-se contra La Valette, aproximando-se cautelosamente e sem tirar os olhos da mortífera ponta do pique. Outros dois homens seguiram-no rapidamente, e depois um quinto, com o estandarte de Solimão, que se apressou a cravar no parapeito e a fazer oscilar para os dois lados. Thomas levantara-se entretanto, apressando-se a reerguer o estandarte da Ordem na mão em condições, deixando a adaga pelo chão.
— Aguentai! — gritou para os dois lados. — Aguentai firmes!
— Fazei-os recuar! — instou La Valette. — Por Deus e por S. João! Matai-os!
Vários vultos ultrapassaram Thomas, que reparou num miúdo, com não mais de doze anos de idade, que trepou para o passadiço e se lançou sobre o janízaro que defrontava Richard. Os pequenos punhos abateram-se sobre o rosto do turco, arranhando-o, e ele mordeu a pele exposta acima das luvas. O homem encarou-o com ira, pegou-lhe no cabelo e lançou-o contra as pedras do parapeito, esmagando-lhe o crânio e atirando o cadáver como um saco de ossos para o solo, junto a Thomas. Um grito agudo de miséria e cólera rasgou o ar, e uma mulher magra passou sobre o corpo e lançou uma pedra contra o janízaro. A pedra aguçada cortou-lhe a sobrancelha, fazendo correr o sangue sobre os olhos, o que o obrigou a parar para limpar a face. A distração custou-lhe a vida, já que Richard lhe lançou o pique contra o ventre num movimento rápido, torcendo a ponta e recolhendo-a com violência. O turco cambaleou contra a paliçada e caiu, e a mulher lançou-se sobre ele de imediato, com outra pedra na mão, que usou para o agredir repetidamente até lhe reduzir a face a uma polpa de carne e ossos esmagados, enquanto as lágrimas lhe corriam pela face e um gemido animal se soltava da garganta.
Outras crianças e mulheres avançaram para a frente de combate, atacando os janízaros de todas as formas, arrancando-os do passadiço e espancando-os até à morte. O porta-estandarte inimigo contemplou a cena incrédulo, enquanto os malteses desfaziam os seus camaradas com as mãos nuas, como se fossem animais selvagens. Richard largara entretanto o pique e correra na sua direção, até o atingir no rosto com a manopla, fazendo com que as proteções metálicas dos dedos lhe rasgassem a pele. O jovem bateu várias vezes no homem e agarrou o estandarte com a mão esquerda, travando uma desesperada luta pela sua posse. A refrega em redor pareceu amainar, como se todos os combatentes quisessem ver qual seria o desfecho daquele embate singular.
O porta-estandarte turco não largou o cabo enquanto suportava o ataque de Richard. A princípio tentou usar a mão esquerda para o travar, até que num movimento inesperado a lançou à garganta do jovem, começando de imediato a apertar. Thomas viu como o rosto do filho se contorcia de dor. Richard renovou os seus esforços, golpeando com todas as forças que lhe restavam. E então a cabeça do homem saltou para trás com um grunhido, e ele cambaleou, assombrado, enquanto os dedos largavam o pescoço de Richard. Vacilou e caiu sobre o parapeito, e Richard arrancou-lhe das mãos o estandarte antes que tombasse para o solo. De imediato Richard ergueu no ar o estandarte inimigo assim conquistado, e um clamor de triunfo irrompeu dos defensores na muralha e na retaguarda. O jovem inglês fê-lo dançar no ar por momentos, provocando os turcos, e por fim lançou-o com desprezo para o interior da paliçada, onde aterrou na lama.
Os turcos ficaram subitamente em silêncio. E então o primeiro começou a recuar, e esse movimento propagou-se pelas fileiras, sendo imitado por mais e mais homens. Thomas subiu para junto de Richard e manteve o estandarte da Ordem bem ao alto, enquanto juntava as suas aclamações às dos outros defensores. Lá em baixo via o paxá Mustafa a ameaçar os seus homens, de espada em riste, enquanto berrava ordens para que o ataque prosseguisse. Alguns acataram as ordens e voltaram para trás, mas nesse momento uma pedra atingiu o comandante inimigo no queixo, e ele caiu de joelhos, atordoado, o sangue a fluir da ferida. Um lamento desesperado soltou-se dos que o rodeavam mais de perto, e o impulso de retirar tornou-se imparável. Os guardas pessoais do paxá apressaram-se a pegar no seu comandante e a levarem-no para trás, na direção da brecha mais próxima. Em toda a frente de combate, os turcos recuavam pelo espaço livre, em direção à muralha da cidade.
— Atrás deles! — ordenou La Valette. — Expulsem-nos! Não podem ficar com o controlo da muralha!
A ordem foi repetida, e os defensores saltaram para o exterior da paliçada e começaram a perseguir os turcos. Cavaleiros, soldados, mulheres e crianças juntaram-se ao contra-ataque, correndo atrás do inimigo e abatendo como lobos todos os que se deixavam apanhar. Da paliçada, Thomas agoniou-se com o espetáculo. Já não se tratava de guerra, tudo não passava de um massacre selvagem e sangrento. Mulheres e crianças lançavam-se sobre as suas presas com facas, machados e mocas, fazendo saltar sangue e carne pelo solo, onde nem a chuva persistente conseguia lavá-los. Uma velha atarefava-se sobre um janízaro já morto, até conseguir pegar nele pelas barbas e erguer no ar a cabeça cortada, enquanto soltava um estridente grito de triunfo.
— Richard! — ordenou La Valette. — Pegai no estandarte inimigo. O troféu é vosso. Depois segui-me.
Os três homens esperaram enquanto o vagão era libertado das correntes e empurrado para o lado. Saíram então para o exterior e passaram por entre os cadáveres espalhados pelo solo, regressando ao bastião. Romegas saudou o Grão-Mestre com um sorriso largo, e apontou na direção das trincheiras inimigas. O terreno que se estendia à frente de Birgu estava coberto por um mar de vultos em fuga. Espalhados sobre a muralha, em cima dos montes de escombros que marcavam as brechas, os soldados e o povo de Birgu apreciavam o espetáculo à chuva, acenando, rindo, provocando e gritando insultos ao inimigo que lhes dava as costas.
— Graças sejam dadas. — As palavras, proferidas em voz baixa pelo Grão-Mestre, não escaparam aos ouvidos de Thomas. — Sobrevivemos.
44
11 de setembro
Parou de chover, e durante alguns dias o céu clareou, permitindo ao Sol brilhar sobre a devastação do campo de batalha. O bombardeamento turco foi reatado, sendo interrompido por ataques isolados sem grande ímpeto, e que rapidamente eram desbaratados pelo fogo cerrado dos defensores acantonados nos escombros das muralhas que protegiam Birgu e Senglea. O Grão-Mestre tinha deixado de fazer reuniões com os seus conselheiros. Já nada havia a discutir. As rações começavam a escassear, e o número dos que defendiam a cidade era tão pequeno que um último assalto determinado resultaria por certo numa derrota e na aniquilação completa. Tudo o que lhes restava era resistir até onde fosse possível.
Todas as manhãs, Thomas levantava-se antes da alvorada e ocupava a sua posição no bastião, ao lado de Richard e dos outros defensores, e ali ficava a observar e a esperar, os sentidos alerta a qualquer sinal da preparação de novo ataque. Mas estes acabaram por deixar de acontecer, e até o número de baterias empenhadas no bombardeamento das defesas diminuiu. A Thomas, dava a sensação de que o inimigo tinha perdido a vontade de prosseguir com o cerco, e pela primeira vez permitiu-se ter esperança de que ele, Maria e Richard viessem a sobreviver. Regressariam a Inglaterra, decidiu, e viveriam a vida que por tanto tempo lhes tinha sido negada. Havia algo de profundamente correto na idílica fantasia a que se dava. Era assim que as coisas deviam ser, dizia a si mesmo com um sorriso interior, sem dúvida, depois de tudo o que tinham padecido.
Não rezava para que fosse esse o desfecho, embora soubesse que Maria o fazia, e com todo o fervor, esquecendo tudo o resto. Tinha-a visto, de joelhos em frente ao pequeno altar que tinha instalado na cave, as contas do rosário presas na mão, os olhos pregados na pequena estatueta da Virgem Maria, os lábios a trabalhar sem pausa enquanto lançava as suas preces em silêncio. Fazia uma pausa de cada vez que uma bala turca zumbia por cima da casa ou se esmagava contra um edifício próximo. Thomas observava, com um sofrido desapontamento nela e em todos os que ainda se mantinham presos à noção de que aquele mundo era a criação de um Deus de amor e compaixão. Mas as convicções religiosas de Maria não a levavam a negar-se a todos os prazeres de uma relação carnal; um dos compromissos aceites pelos crentes que Thomas via como um sinal do profundo vazio a que correspondia a religião.
Sabia que, de alguma forma, já não sentia o peso da culpa que o tinha acompanhado desde que abandonara a fé, momento em que tinha ficado com a sensação de que falhara, em relação a si mesmo e a todos os que o rodeavam. Agora era como se um manto que lhe prendia os movimentos lhe tivesse sido tirado dos ombros, e sentia-se livre, embora um tanto receoso pela ideia da finalidade que vinha com a morte. Ao mesmo tempo, essa ideia era uma permanente lembrança da necessidade de viver cada momento da forma mais completa. Não havia qualquer eternidade de recompensa numa vida futura, a promessa do Paraíso não mais era do que um doce para apagar a amargura de uma breve vida que para muitos não passava de uma luta contra a fome e a morte violenta. Não havia melhor forma de manter as pessoas agarradas a uma crença, pensava para si mesmo, com uma expressão amarga.
— O que se passa?
Thomas piscou os olhos, afastando os pensamentos. Richard olhava-o com curiosidade, sentado ao seu lado contra o parapeito do bastião.
— Em que pensáveis? — quis o jovem saber.
— Em nada. Uma fantasia passageira.
Thomas ergueu-se a custo por trás do parapeito, e espreitou cuidadosamente para as trincheiras inimigas, que terminavam a cerca de cem passos. As bandeiras turcas que marcavam a posição ainda lá estavam, caídas sobre as estacas no ar calmo daquela manhã. Não havia sinal de movimento ali, nem mais para trás ao longo das trincheiras, onde normalmente se viam grupos de homens a trazer abastecimentos dos navios para os acampamentos inimigos. Richard levantou-se também e espreitou sobre o parapeito, os olhos a perscrutarem o terreno em busca de qualquer sinal de atiradores inimigos dissimulados.
— Hoje estão muito calmos.
— Calmos, é pouco — resmungou Thomas. — Foram-se foi embora.
— Embora? — Richard escrutinou cuidadosamente as trincheiras inimigas. — Pode ser um truque.
Thomas mordeu os lábios.
— Vamos descobrir.
Voltou a sentar-se e desapertou a fivela do elmo. Pegou num dos arcabuzes carregados que estavam encostados ao parapeito, prontos a serem usados, colocou o elmo sobre a ponta do cano e ergueu-o devagar numa das ameias, de forma a exibir claramente a pluma sobre as pedras da muralha. A seguir fê-lo rodar em volta da ameia até ficar completamente à vista das trincheiras inimigas.
— Se houver um deles ali fora, não vai deixar passar a ocasião de visar um dos cavaleiros da Ordem — explicou Thomas.
Não houve resposta à sua provocação. Esperou mais alguns momentos, até que baixou o arcabuz e recuperou o elmo.
— Manda um dos homens dar as novas a La Valette. Que lhe diga que não há sinais do inimigo em frente à nossa posição. Quando eu voltar, vou poder confirmar isso pessoalmente.
Richard inspirou rapidamente.
— Ides lá fora?
— Claro. Temos de ter a certeza.
— E se for um truque? Uma tentativa de nos atrair para fora das muralhas?
Thomas deu um toque na borda do elmo.
— Viste isto. Nem um único disparo. Abandonaram as trincheiras, estou certo disso.
— Mas porque o fariam?
Thomas sorriu.
— Não quero tentar o destino, e não te vou confessar todas as minhas esperanças, pelo menos não antes de ver isto com os meus próprios olhos. — Deu uma palmada amigável no ombro do filho. — Richard, já chega de conversa. Manda a mensagem a La Valette, e depois fica a vigiar. Pode bem ser que regresse com mais pressa do que aquela que levo ao sair.
Não esperou por resposta; correu ao longo do parapeito até à brecha mais próxima, onde fora apressadamente erguida uma barricada improvisada. Espreitou sobre ela e varreu com o olhar o terreno que se deparava à sua frente. Depois de concluir que não havia movimento, respirou fundo, saltou a barricada e escorregou pelo declive de escombros até à ponta da trincheira, para onde se lançou, colando-se de imediato ao solo, com a respiração já pesada. Esperou, com os ouvidos atentos a qualquer som de vozes ou pés. À direita, ali perto, um cadáver estava meio envolto em poeira e cascalho. No turbante e na roupa desfeita havia uma mancha castanha já seca, resultado da passagem de uma bala pelo crânio do homem. A cabeça estava atirada para trás, e os olhos fitavam o céu azul, enquanto as moscas esvoaçavam e zumbiam junto à pele do rosto, inchada, e passeavam sobre a carne putrefacta. Pelo aspeto e pelo cheiro que se desprendia do corpo, Thomas calculou que já devia ali estar havia uns dez dias; era um dos muitos que os turcos não se tinham atrevido a recuperar para lhe dar um funeral de acordo com os seus costumes.
Cada vez mais certo de ter razão na sua expectativa, Thomas rastejou até à borda da trincheira e espreitou mais uma vez. Ao longo da encosta, o terreno rochoso estava marcado pelos sulcos resultantes de disparos inimigos que tinham ficado curtos, e que normalmente faziam ricochete no solo e acabavam por atingir as defesas. Escadas partidas, armas e equipamento abandonados estavam espalhados pelo terreno, misturados com os mortos, cujos ventres inchados e disformes apodreciam sob o calor do Sol. As ruínas de uma torre de assalto encontravam-se a menos de vinte metros; Thomas ergueu-se lentamente e depois correu a toda a velocidade até à estrutura, com a cabeça e os ombros encolhidos. Mas continuou a não se ouvir qualquer grito de alarme, nem o estalido de qualquer arma de um franco-atirador. Encolheu-se por trás do abrigo das sólidas tábuas e recuperou o fôlego, antes de se atrever a espreitar na direção do bastião. Reparou no brilho do Sol no aço, e viu Richard, que o observava também.
— Mete a cabeça para baixo, pateta! — comentou para si mesmo, enquanto fazia um gesto furioso com a mão, mas Richard continuou a expor a cabeça sobre o parapeito. Temendo pela sorte do filho, Thomas deixou o abrigo e correu na direção da mais próxima das bandeiras turcas, que indicava uma posição avançada nas trincheiras, supondo que se houvesse algum atirador inimigo escondido por ali, o acharia um alvo bastante mais fácil do que Richard. Não correu a direito, optando antes por uma trajetória em ziguezague. Durante o trajeto, o coração batia-lhe com toda a força, numa mistura de medo e esforço. De repente, deu por si sobre a orla da trincheira, pelo que saltou lá para dentro, aterrando sobre as mãos e os joelhos numa poça de água lamacenta que se tinha acumulado no fundo. Lançou-se de imediato contra a parede, as mãos bem abertas contra a rocha, a ofegar. Olhou para um lado e para outro.
Nada se movia. Estava sozinho.
Assim que a respiração se acalmou, empunhou a espada e dirigiu-se cuidadosamente para uma abertura que calculou que desse para uma das trincheiras de circulação das tropas inimigas. Os turcos pouco tinham deixado para trás, só trapos sujos e equipamento estragado. Ao rodear a esquina, seguiu pela trincheira que se dirigia para uma das baterias, uma que se tinha calado havia já três dias. Enquanto avançava no meio do silêncio e da quietude, avistou cestos de vime cheios de areia e cascalho, que protegiam a localização da bateria, mas nem sinal dos tubos negros que tinham passado os últimos dois meses a flagelar Birgu.
Por fim a trincheira começou a subir e desembocou junto à bateria. O ar na posição fortificada estava pesado e cheirava a queimado; Thomas avistou os restos calcinados dos trens de transporte de canhões, partes de barricas e tábuas usadas para construir as plataformas para os canhões. A curta distância via-se um grande monte de terra. Perto do cimo deste, um grupo de cães vadios tinha esgaravatado a fina camada de solo que fora lançada sobre a vala comum, para se alimentar dos cadáveres que assim tinham conseguido expor e satisfazer a sua fome imensa.
Da plataforma sobrelevada no centro da bateria, Thomas conseguia ver nuvens de fumo vindas das baterias no outro lado do porto, mas não avistava qualquer sinal de atividade nas baterias mais próximas das fortificações nas entradas dos dois promontórios de Senglea e Birgu. Sentiu a esperança a crescer, e esta depressa foi substituída pela alegria, ao compreender que o inimigo estava mesmo a abandonar o cerco. Lançou um último olhar às cristas rochosas de ambos os lados, e depois embainhou a espada e apressou-se a refazer o caminho de volta pelas trincheiras até ao bastião, a uns quinhentos metros dali. Considerou a possibilidade de avançar a direito pelo campo aberto, mas ainda havia hipóteses de que o inimigo tivesse deixado por ali alguns atiradores, para castigar os defensores assim que estes se atrevessem a deixar as defesas.
Quando chegou ao bastião, o Grão-Mestre já o aguardava, com um brilho de excitação no rosto cansado.
— Então?
— Desapareceram, senhor. — Thomas dirigiu-se ao parapeito e deixou-se ficar bem à vista das trincheiras, enquanto explicava o trajeto que fizera. — Fui até àquela bateria além. Não vi ninguém, e constatei que os turcos levaram todo o equipamento e abastecimentos que conseguiram, e queimaram o resto. Abandonaram a posição deste lado do porto, estou seguro disso.
La Valette assentiu.
— Os vigias em St. Ângelo também viram alguns dos canhões a serem retirados das baterias do alto de Sciberras.
O já habitual troar de disparos intermitentes, vindos do outro lado do porto, era prova de que pelo menos algumas das baterias ainda estavam ativas. Thomas virou-se para St. Elmo e para a península que se estendia por trás do forte. Contemplou os clarões e nuvens de fumo dos disparos que se seguiram e comentou:
— Senhor, estou convencido de que em cada uma daquelas baterias já não existe mais do que um canhão. No total não serão mais do que uns seis. Ficaram lá para atrair a nossa atenção e cobrir a retirada do exército para os navios.
— Então derrotámo-los! — exclamou Richard, enquanto dava um murro na palma da outra mão. — Por tudo o que é sagrado, conseguimos.
— Não. — La Valette cofiou o queixo, pensativo. — O paxá Mustafa deve saber perfeitamente que estamos à beira da derrota. Só teria de esperar mais uns dias para que a fome ou o fraquejar da nossa vontade nos levasse à rendição. Se fosse a ele, ficaria aqui até tudo estar terminado, e apresentaria o meu troféu ao sultão. Só pode haver um motivo para isto. Os turcos devem saber que vêm aí reforços. Don Garcia deve estar finalmente em movimento.
Deu-se um breve silêncio enquanto os outros consideravam a conclusão do Grão-Mestre.
— Nesse caso, senhor, o que vamos fazer? — indagou Richard. — Abandonamos as defesas e perseguimo-los?
La Valette franziu ligeiramente o sobrolho.
— Jovem, seria uma força bem lastimável que deixaria Birgu para travar essa batalha. Um grupo de espantalhos armados em heróis. Não. Se Don Garcia vem aí de facto, esperaremos por ele. Com uma exceção. — Virou o olhar na direção de St. Elmo. — Vamos retomar o nosso forte. Gostaria bem de voltar a ver o estandarte da Ordem a flutuar além. Assim que pudermos. — Olhou para Thomas. — Temos dez cavalos ainda nos estábulos. São tudo o que nos resta. Pegai neles, Sir Thomas. Vós, o vosso escudeiro, e mais oito homens que podeis escolher. Ide até St. Elmo. Se não encontrardes turcos, ocupai o forte e içai a bandeira na torre. Mandai dois homens ao cimo da crista para observar o inimigo, e procurar qualquer sinal do exército de Don Garcia. Ainda há tropas frescas em Mdina. Vou enviar lá um homem, com ordens para a guarnição estar pronta a marchar em apoio às forças de Don Garcia.
— Muito bem, senhor. — Thomas dobrou o pescoço. — Sairemos assim que estivermos prontos.
. . .
O vasto acampamento que se tinha espalhado pelo terreno em volta do porto estava abandonado e juncado de equipamento e pilhas fumegantes, marcando os locais em que os turcos tinham perdido algum tempo a queimar tudo o que podiam. Thomas e o pequeno grupo de cavaleiros entraram no campo pouco antes do meio-dia. O Sol brilhava no céu limpo e já sufocava a paisagem no seu calor inclemente. O odor das queimadas era igualado pelo fedor vindo das latrinas inimigas, o que fez com que Richard levasse as costas da luva ao nariz, enquanto as montadas esqueléticas avançavam a passo pelo campo.
Ao aproximarem-se da outra ponta, onde o caminho levava pela península de Sciberras até ao forte de St. Elmo, deram de caras com algumas tendas, as únicas ainda de pé. O ar estava pesado com o cheiro adocicado da carne putrefacta, e Thomas engoliu em seco ao dirigir o cavalo para a entrada da tenda mais próxima. O zumbido das moscas no ar parado era o único som que se escutava, para lá do bater dos cascos dos cavalos e do seu resfolegar ocasional. Através das abas entreabertas, avistou fileiras de homens deitados em enxergas imundas. Todos eles estavam mortos, muitos com as gargantas cortadas; era evidente que os turcos tinham decidido não permitir que um único dos seus homens fosse capturado, ou que se lançasse à mercê dos vingativos malteses.
— Meu Deus... — murmurou Richard, enquanto se debruçava na sela e espreitava para a cena de horror no interior da tenda.
Thomas virou-se para ele com uma expressão fatigada.
— Pergunto-me como ainda consegues pronunciar palavras desse género. — Fez o cavalo rodar e lançou-o a trote, para abandonar aquela cena macabra o mais depressa possível, e encher os pulmões de ar limpo.
Prosseguiram pelo trilho, a crista a elevar-se à sua esquerda, as águas cristalinas do porto à sua direita. Da crista também não vinham sinais de atividade. Passaram por quatro das baterias a partir das quais os canhões inimigos tinham castigado Senglea e Birgu, e St. Elmo antes disso. Duas das bocas de fogo tinham sofrido danos nos trens e tinham sido abandonadas, e por isso os canos tinham sido inutilizados com uma carga rebentada no seu interior.
Por fim a estrada rodeou um afloramento rochoso e abriu à frente dos cavaleiros um panorama sobre as arruinadas muralhas do forte. Thomas refreou o cavalo e contemplou a cena. O terreno à frente do forte estava cravejado de trincheiras inimigas. Tinha sido construída uma rampa de rocha e terra compactada, de forma a que os turcos pudessem levar os seus canhões até ao cimo do que restava das muralhas e instalá-los lá, para disparar sobre o outro lado do porto. Também ali não havia sinais de vida. Thomas fez sinal com a mão para avançarem, e a pequena coluna retomou a aproximação ao forte, a trote. Quando se aproximaram mais, Thomas reparou num alinhamento de estacas no cimo da rampa, cada uma delas com um objeto esférico escuro e disforme no cimo. O seu estômago revoltou-se com o asco e a cólera, ao perceber a natureza dos objetos.
— Aquilo não são... cabeças? — indagou Richard.
Thomas assentiu sem palavras, e acelerou o passo do cavalo para que Richard e os outros não se apercebessem das emoções que o assaltavam. Depois de dois meses ao sol, pouco havia de reconhecível nos semblantes secos das cabeças nas estacas. Os lábios tinham-se arrepelado, pondo os dentes à mostra, e a pele retesara-se sobre os ossos. Uns pedaços de cabelo ainda pendiam dos escalpes, mas os olhos já havia muito que tinham sido devorados pelas gaivotas. Thomas sentia-se agoniado perante aquele panorama. Aqueles restos infames eram tudo o que restava dos camaradas que tinham dado as suas vidas para manter St. Elmo nas mãos da Ordem, por muito mais tempo do que alguém alguma vez julgara possível. Tinham pago com sofrimento e morte para salvar os seus camaradas em Senglea e Birgu. Ao contemplá-los, Thomas sentiu a angústia de ter sobrevivido. Tentou afastar o sentimento, lembrando-se de que tinha combatido enquanto pudera, e que ter ficado para trás e morrido também teria sido um gesto vazio — pior do que isso, agora que tinha Maria e o seu filho por quem viver. Mas o mudo testemunho ao sacrifício que aquelas cabeças representavam zombava do seu raciocínio e envergonhava-o.
Passou o último dos infames troféus e entrou no forte, seguido pelos seus homens. O bater dos cascos ecoava nas muralhas esburacadas que rodeavam o pátio interior.
Thomas limpou a garganta.
— Quem traz o estandarte?
— Eu, senhor — retorquiu um dos sargentos.
— Desmontai e segui-me, então. — Largou as rédeas e deixou-se escorregar da sela pela garupa do cavalo. Olhou para Richard. — Manda dois homens de visão apurada ao cimo da crista. Quero saber o que anda a preparar o paxá Mustafa. Não pode já ter concluído o embarque de todos os homens. Além disso, eles que vejam se divisam alguma coisa dos reforços. Entendido?
Richard assentiu.
— Passem uma busca ao forte. Eles podem ter deixado alguém para trás, alguns feridos, algum prisioneiro. Se assim for, poderemos ficar a saber mais acerca do que eles preparam.
Fez um gesto ao sargento para que o seguisse, e atravessou o pátio até à entrada da torre do fortim. Ouviu Richard a dar as ordens num tom pouco animado. O que era compreensível. Também ele presenciara todos os horrores da amarga batalha pela conquista de St. Elmo, e era como se os fantasmas de todos os que tinham morrido os contemplassem em silêncio. Quando Thomas chegou ao cimo das escadas e emergiu na plataforma da torre, viu de imediato que o estandarte turco que tinha sido ali colocado para desafiar os defensores do outro lado do porto tinha sido retirado.
— Sargento, hasteai as nossas cores. Se ainda houver turcos na ilha, que fiquem a saber que St. Elmo voltou a ser nosso.
— Sim, senhor. — O sargento pegou na bandeira firmemente dobrada que tinha na sacola e aproximou-se da base do mastro. Trabalhou rapidamente, atando-a com cuidado e, quando tudo ficou pronto, içou-a. A ligeira brisa que soprava sobre o porto fez com que o estandarte vermelho ondulasse de imediato. Poucos momentos depois, Thomas escutou um ténue eco dos festejos que se davam do outro lado das águas, e avistou a guarnição de St. Ângelo a agitar os braços de júbilo. Já havia botes na água a atravessar o porto, carregados de homens com equipamento e rações para alguns dias, até que o cerco terminasse de todo. Virou-se para examinar o canto do forte onde ele e os seus homens tinham aguentado o bombardeamento e enfrentado o fogo e o aço inimigos, dia após dia. Sentiu um aperto quando contemplou o ponto onde o coronel Mas e o capitão Miranda tinham enfrentado o derradeiro assalto, amarrados às suas cadeiras, e mantendo até ao fim a sua promessa de defender St. Elmo até ao limite das suas forças.
— Senhor, vede além. — O sargento protegia os olhos e esforçava a vista para norte. Thomas imitou-o. No ar tremeluzente da distância havia uma nuvem de poeira sobre a seca paisagem, na direção de Mdina, que só podia ter sido provocada pela passagem de um grande grupo de homens.
— Quem serão? — perguntou-se o sargento. — Nossos, ou deles?
Thomas coçou o queixo.
— São os turcos. Vão atacar Mdina. — Tentou avaliar o número de homens pelo tamanho da nuvem de pó que envolvia a coluna. — Devem seguir ali todos os homens que ainda tinham disponíveis. Ao que parece, o Grão-Mestre estava equivocado quanto à aproximação dos reforços.
O sargento escarrou para o exterior da torre.
— Se Don Garcia não desembarcou, o inimigo vai por certo tomar Mdina, senhor. Não há outra hipótese. E as reservas de alimentos que lá conseguirem poderão ser suficientes para lhes permitir regressar a Birgu e subjugar-nos pela fome.
— Nesse caso, só nos resta esperar que Mdina resista ao assalto — ripostou Thomas. A esperança que começara a crescer no seu peito voltou a diminuir. Afastou o olhar da nuvem de pó e contemplou o oceano. A pouco mais de uma milha da costa, levantava-se uma névoa fina, mas ainda conseguia avistar os mastros e velas da frota turca a dirigir-se para a ponta norte da ilha. — Vão para a baía de S. Paulo. Depressa saberemos a razão para esta deslocação. Ficai aqui e mantende-vos de vigia. Se a coluna inimiga mudar de direção, ide lá dizer abaixo. Se os turcos resolverem reocupar St. Elmo, teremos de abandonar o forte a tempo.
O sargento anuiu e Thomas deixou-o na torre, enquanto descia para o pátio. Ao sair para o brilho do Sol, protegeu o olho e olhou em redor. Dois dos homens seguravam os cavalos, e tinham-nos levado para uma estreita faixa de sombra que ladeava uma das muralhas. Richard saía da capela, e Thomas chamou-o com um gesto.
— Tira aquilo dali. — Apontou para a rampa e para as cabeças empaladas. — Tira-as e leva-as para a capela, por agora. Mais tarde poderemos dar-lhes um funeral digno.
Richard não se mexeu, e ficou a olhar para as cabeças por momentos, antes de se virar para o pai.
— Devíamos deixá-las lá. Para que a nossa gente perceba a verdadeira natureza dos Turcos.
— Não — ripostou Thomas com firmeza. — Temos de as remover. São uma afronta a qualquer réstia de humanidade que exista neste conflito.
Richard riu com amargura.
— Toda esta guerra é uma afronta à Humanidade. Deixai que as cabeças recordem isso a todos. São aqueles os verdadeiros frutos da guerra. Que seja essa a lição para todos os que as virem, para que saibam o que a guerra fez de nós.
Thomas fez uma pausa antes de retorquir em tom mais calmo.
— Achas que podes ensinar aos nossos homens qual foi o terrível preço que aqui foi pago? Meu filho, eles já o sabem bem. Os seus corações sangram com a tragédia de tudo isto. Que propósito serviria deixá-los ver mais esta atrocidade? Só os conseguiria inflamar mais ainda. A sua sede de vingança crescerá, e a violência de que se tornarão capazes só poderá gerar mais violência ainda.
— Pois que assim seja. Até que o mundo se veja livre do Islão.
Um desespero profundo tomou conta de Thomas, ao contemplar a terrível e profunda raiva que desfigurava a expressão do filho.
— Richard, há de vir um momento em que este conflito terá de terminar, ou será ele que acabará connosco. Não te apercebes disso?
O jovem baixou o olhar e respondeu com esforço.
— Sim, vejo-o, mas não consigo abafar os meus sentimentos. Não neste momento. Não depois de ver isto.
— Não desperdices o resto da tua vida perdido em ódio. Há coisas muito melhores para abraçar. Levei demasiado tempo a compreendê-lo. Não gostaria de te ver repetir os meus erros, Richard. — Colocou uma mão sobre o ombro do filho. — Ajuda-me a removê-las, sim?
Os lábios de Richard comprimiram-se numa linha fina, mas quando levantou o olhar, foi para anuir ao pedido. Thomas ordenou aos restantes homens que continuassem a vasculhar o forte, enquanto os dois se dirigiam ao cimo da rampa, até junto da primeira cabeça. Thomas deteve-se brevemente em frente dela, e agitou a mão para afastar as moscas, o que fez o ar encher-se de zumbidos. Ali de perto conseguiram reconhecer o suficiente do rosto para perceber de quem se tratava.
— Capitão Miranda...
Por momentos a imagem do vivaz espanhol encheu-lhe o pensamento; ele, que tinha inspirado os seus homens a lutarem contra a certeza da derrota, de espada em riste, o sol a rebrilhar na lâmina e na armadura enquanto desafiava o inimigo aos gritos. A imagem desvaneceu-se, e nada mais havia do que o resto encolhido e lívido ali à sua frente. Respirou fundo e pegou na cabeça com as duas mãos.
Um ribombar de cascos fê-lo girar nos calcanhares, e avistou um dos homens que tinham sido enviados ao cimo da crista, a cavalgar a toda a brida a caminho do forte. Abandonou a desagradável tarefa que se preparava para iniciar, e desceu a rampa com Richard ao seu lado. O cavaleiro refreou a montada mesmo junto a eles, espalhando poeira e pedras pelo ar. Apontou com o braço para o norte e soltou palavras apressadas.
— Senhor, os reforços chegaram! Além, para as bandas de Naxxar. Estão a preparar-se para dar batalha aos turcos.
Thomas sentiu o pulso a acelerar-se perante tais novas.
— Quantos são?
O soldado fez um cálculo rápido.
— Sete, talvez oito mil homens.
— Oito mil? — A testa de Thomas franziu-se com a preocupação. — E o inimigo?
— Duas vezes esse número, senhor.
As possibilidades continuavam esmagadoramente do lado dos turcos, refletiu Thomas, preocupado. Mas havia outro fator a considerar: os homens da força de socorro estavam frescos, enquanto o inimigo estava cansado e faminto.
— Há barcos a saírem de St. Ângelo — indicou ao cavaleiro. — Ide até ao cais, levai um dos botes para o outro lado e relatai ao Grão-Mestre o que vistes.
Enquanto o homem seguia para o outro lado do forte, Thomas voltou para trás.
— E agora? — indagou Richard.
— Agora? — Thomas soltou um sorriso amarelo. — Richard, só há um sítio onde se pode estar neste dia. O destino de Malta e de toda a Cristandade depende do resultado desta batalha que se aproxima. Se Don Garcia triunfar, os Turcos serão esmagados. Se ele não o conseguir, os nossos inimigos retomarão o cerco com a certeza de que nos poderão obrigar à rendição, sem terem de se dar ao trabalho de nos atacar. Don Garcia vai ter necessidade de usar todos os homens dispostos a lutar por ele. É em Naxxar que se decide o nosso destino. Vem!
45
Quando Thomas e os seis homens que levara consigo alcançaram o posto de comando da força de socorro, os cavalos estavam completamente esgotados. Tinham cavalgado em redor do porto norte, fazendo um círculo por trás do exército turco, antes de galoparem por fim a corta-mato para se juntarem aos homens que formavam na encosta em frente à pequena vila de Naxxar. A sua aproximação tinha sido notada, e uma companhia de piqueiros tinha-se destacado para os enfrentar, regressando às fileiras quando foram avistados os coletes vermelhos que os cavaleiros usavam e que os identificavam claramente.
Algumas das tropas espanholas soltaram uma aclamação semientusiasta quando Thomas e os outros passaram por trás das fileiras, mas a maior parte dos homens estavam afogueados e sedentos, encostados às armas, a cozer lentamente no interior das armaduras e elmos. A pouco mais de um quilómetro dali, os turcos alinhavam-se para a batalha próxima. Thomas reparou de passagem que o inimigo dispunha apenas de dois pequenos esquadrões de cavalaria, dispostos cada um no seu flanco. O resto do exército era composto de infantaria, na maior parte sipaios, corsários e os janízaros sobreviventes. Pouco havia dos sons de tambores e gaitas que tinham acompanhado os seus primeiros ataques aos fortes em torno do porto, e nada das aclamações com que nessa altura se galvanizavam. A linha de batalha turca estendia-se pela paisagem irregular, ocupando muito maior largura que a dos oponentes.
A curta distância por trás do centro da posição, Thomas avistou o comandante espanhol das forças de socorro junto aos seus oficiais, as armaduras a rebrilhar ao sol inclemente, plumas de vermelho vivo a oscilarem como sangue a jorrar. Dirigiu a exausta montada para junto dos oficiais que se viraram para o ver assim que deram pela sua aproximação. Thomas deteve o cavalo e inclinou a cabeça.
— Venho de Birgu. Da parte do Grão-Mestre.
— Ele ainda está vivo? — indagou um dos oficiais.
Thomas assentiu, e olhou em redor.
— Onde está Don Garcia? Preciso de falar com ele.
— Don Garcia está na Sicília — respondeu um oficial de estatura elevada e de barba aparada. — Sou eu o comandante desta força. Don Alvaro Sande, ao seu serviço. — Acenou uma saudação formal, antes de prosseguir em tom altivo. — E posso saber o vosso nome?
— Sir Thomas Barrett. Pensava vir ao encontro de Don Garcia.
— O rei ordenou a Don Garcia que não se pusesse em risco, nem que arriscasse a frota. A frota turca não teria dificuldades em dominar as nossas galeras. Portanto, Don Garcia viu-se obrigado a regressar a Palermo assim que ficou concluído o desembarque do exército. — Don Alvaro não fez qualquer esforço para esconder a sua frustração. — Tenho ordens para fazer levantar o cerco e expulsar os turcos da ilha.
— Estou a ver. Senhor, são estes todos os homens que tendes à vossa disposição?
— Todos os que se puderam arranjar, sim. E é com eles que esperam que varra a hoste turca do mapa. Como vedes, Sir Thomas, o meu rei continua um incorrigível otimista quanto ao que pode ser conseguido com recursos mínimos. Mas dizei-me, como vão as coisas para La Valette e os seus seguidores?
— Ainda mantemos Birgu, Senglea e Mdina em nosso poder, senhor. St. Elmo foi perdido, mas está de novo em nosso poder.
— Excelente. — O semblante de Don Alvaro animou-se. — Deveis portanto ter muitos milhares de homens que se podem juntar à minha força. Calculo que o Grão-Mestre esteja em movimento com essas tropas para se reunir a mim?
— Lamentavelmente, senhor, não é esse o caso. Metade dos cavaleiros foi morta, muitos dos outros estão feridos. Do nosso exército restam cerca de seiscentos homens da milícia e dos mercenários. Há uma pequena guarnição em Mdina, mas não passa de algumas centenas de homens. — Thomas virou-se para a povoação distante e apontou para uma pequena força posicionada no cimo de uma colina perto das muralhas de Mdina. — Além, senhor.
O olhar de Don Alvaro fixou-se na guarnição de Mdina.
— Ah, julgara que eram apenas mais alguns dos inimigos. Estamos portanto em tremenda inferioridade numérica.
Thomas hesitou por momentos, mas acabou por se aventurar.
— Senhor, quais são os vossos planos?
Don Alvaro designou a pequena elevação onde tinha formado o seu exército.
— Temos a vantagem posicional. É aqui que devemos aguardar que o inimigo nos ataque. Seria assim que faria numa situação normal. Mas os turcos parecem enfraquecidos. Nos últimos meses devem ter sofrido o mesmo género de provações que vós.
— Senhor, os vossos homens estão frescos. Atacai agora, enquanto eles ainda estão a dispor-se no terreno — pediu Thomas.
Don Alvaro piscou os olhos para afastar deles o suor, enquanto considerava as opções ao seu dispor.
— Os meus homens passaram nove dias no mar, à espera de oportunidade para desembarcar sem sofrer baixas. Muitos ainda sofrem de enjoo. Mas podemos vir a não ter melhor ocasião de esmagar estes turcos...
— Senhor, não há tempo para hesitar — instou Richard, em tom irritado. Esticou um braço para apontar na direção de St. Elmo. — Os nossos camaradas morreram além, à espera da prometida força de socorro. A vossa demora, senhor, foi paga com o nosso sangue. Agora que aqui estais, é tempo de cumprir o vosso dever. Atacai os turcos e lançai-os ao mar!
Os olhos de Don Alvaro faiscaram.
— Como te atreves a dirigir-te a mim nesses termos, insolente criatura?
— Senhor, perdoai o meu escudeiro — interveio Thomas. — Foi um cerco duro, e todas as nossas reservas de paciência foram levadas ao limite. Mas ele não deixa de ter razão. O tempo de atacar é agora. Quanto mais aguardardes, mais fracos ficarão os vossos homens, e maiores serão as probabilidades de derrota. Atacai agora, enquanto eles ainda têm a força e a vontade para o fazer.
Don Alvaro manteve-se em silêncio por momentos, até anuir com ar sombrio.
— Muito bem. Creio que devemos atacar.
Thomas sentiu que se aliviava a tensão no seu coração, e o alívio tomou conta do seu ser. Mas sabia que tinha de agir antes que Don Alvaro mudasse de opinião ou perdesse a coragem. Esporeou o cavalo por entre duas companhias de piqueiros, e foi colocar-se à frente do exército. Sentiu o sangue a correr nas veias, ardendo de desejo de desferir um ataque decisivo ao inimigo. Desembainhou a espada e fê-la dançar sobre a cabeça, de forma a chamar a atenção de todos.
— Escutai-me! Escutai-me!
Apesar do suor que lhes escorria em bica e que lhes minava as forças, os homens da força de socorro deram-lhe atenção. A linha de batalha estendia-se ao longo da encosta, pelo que praticamente todos o viam com clareza. Fez uma breve pausa para ordenar os pensamentos, e preparou-se para discursar.
— Há muitos meses que todos esperam por este momento — começou. — E muitos anos antes disso. Quase juro que não há entre vós um homem cujas famílias ou amigos não tenham sofrido em consequência dos assaltos dos corsários que servem Solimão. Eles assassinaram os vossos irmãos, levaram muitos para a escravidão. Todos vocês conhecem os nomes que gelam o sangue das nossas gentes — Barbarossa, Dragut...
Ouviram-se gritos irados e imprecações, à menção dos nomes dos corsários, e Thomas deu-lhes tempo para se acalmarem enquanto recuperava o fôlego para continuar. Sentia o peito apertado e sufocado pelo peso da armadura.
— Agora esses dois demónios estão mortos, e o poder de Solimão encolhe. A grande hoste que enviou contra Malta chegou repleta de arrogância, de ambição e cupidez. Pensavam que seria fácil conquistar os meus irmãos cavaleiros e o povo desta ilha. Pensavam que nos varreriam em questão de semanas... Detivemo-los durante quatro meses, e cobrámos aos servos do sultão um tremendo preço! Mas também nós o pagámos... Muitos dos meus irmãos já partiram, bem com outros soldados que muitos de vós devíeis conhecer. Por exemplo, o capitão Miranda.
Houve gritos de surpresa e pesar dos mercenários que tinham servido sob o comando de Miranda noutras campanhas. Thomas aguardou que o clamor se acalmasse, antes de prosseguir.
— O nobre capitão morreu como um herói. Ao lado do coronel Mas.
Mais gritos de raiva irromperam nas linhas.
— Heróis, os dois. — Thomas apontou com a espada na direção do porto. — Morreram juntos a defender a brecha nas muralhas do forte de St. Elmo. Morreram, e os seus corpos foram cruelmente mutilados pelos turcos. Há menos de uma hora deparei com as suas cabeças montadas em estacas, como troféus, cortadas e deixadas a apodrecer sob este Sol inclemente! — Apontou a espada contra a linha de batalha inimiga. Mais uma vez a cólera irrompeu nas vozes dos soldados, e a força começou a mover-se e a descer o declive.
— Lembrai-vos de St. Elmo! — gritou Thomas. — É este o nosso grito de batalha. Lembrai-vos de St. Elmo!
Richard e os outros incitaram as montadas ao longo da linha, repetindo o grito que depressa se espalhou pelas fileiras. Don Alvaro apressou-se a dar ordens aos seus oficiais, enquanto ainda possuía algum controlo sobre os homens. Thomas agarrou nas rédeas e voltou-se para enfrentar os turcos.
— Chegou a hora da nossa vingança!
— Não façam prisioneiros! — gritou Richard, transtornado. — Não há quartel!
Os poucos homens montados levaram os cavalos a passo na direção do inimigo e, com uma só vontade, o resto da força de socorro seguiu-os, de piques aperrados e espadas em riste, as cores dos seus estandartes a esvoaçar no ar quente e trémulo. Ao olhar para trás, Thomas avistou a expressão fixa no rosto de Don Alvaro, até que ele cerrou os dentes, desembainhou a espada e se juntou ao avanço com o resto dos seus oficiais.
Os soldados espanhóis mantiveram a formação enquanto se aproximavam dos turcos, entoando o grito de guerra de Thomas, e pedindo a proteção dos santos. Por trás da linha turca, Thomas avistou a guarnição de Mdina também em movimento, avançando sobre a retaguarda inimiga sem temor da monumental diferença de números. Para lá da excitação, temperada pelo medo como sempre, sentia no mais íntimo do seu ser uma profunda calma, como se aquele fosse o momento pelo qual esperara toda a vida. As dúvidas que o tinham assaltado quanto à sua fé e à justiça das causas religiosas desapareceram, e tudo o que ficou no seu espírito foi a necessidade de derrotar aquele inimigo. Richard seguia a seu lado. A espada estava na bainha enquanto ele conduzia o cavalo e descia o visor do elmo, deixando apenas à vista os olhos que brilhavam com uma intensidade feroz. Thomas empunhou a espada e mais uma vez incitou as tropas ao avanço.
À sua frente, os turcos cerravam fileiras e aprontavam as armas. Um grupo de homens com arcabuzes avançou cinquenta passos e apoiou as armas em varas de ferro. Apontaram aos oponentes e esperaram até eles ficarem ao seu alcance. Levaram então o lume aos pavios, fazendo as armas disparar com pequenas nuvens de fumo e dardos de fogo a saírem dos canos. A descarga inicial foi mal calculada, e Thomas reparou que só um punhado de homens tinha sido atingido. Os turcos recarregaram as armas de forma rápida e eficiente, e voltaram a disparar, conseguindo resultados mais precisos à medida que o exército cristão se aproximava. Já jaziam feridos ou mortos mais de vinte homens na encosta árida, deixados para trás pelos seus camaradas. Alguns tentavam recolocar-se de pé e gritavam encorajamentos. Um choque metálico atraiu a atenção de Thomas, que se virou na sela e viu um dos seus homens a deslizar da sela. Durante alguns momentos tentou resistir, enquanto o sangue jorrava por baixo da sua placa peitoral, mas depois os seus dedos sem vida largaram as rédeas e ele caiu para o chão, desaparecendo de vista no meio dos piqueiros que o ladeavam.
A força espanhola chegou ao sopé do declive, a menos de cem passos do inimigo. Os arcabuzeiros turcos recolheram os seus suportes, colocaram as armas ao ombro e regressaram às suas fileiras. O calor do dia e o suor que escorria pelas testas dos espanhóis, quase os cegando, deixavam fora de causa qualquer ideia de uma carga selvagem. As fileiras prosseguiram o avanço a passo cadenciado. Os piqueiros baixaram as pontas das suas armas e avançaram sobre a linha turca num coro de choques metálicos e impactos em escudos. Soltaram-se gritos de ambos os lados, que foram aumentando de intensidade à medida que o combate corpo a corpo progredia.
Thomas manteve a espada ligeiramente de lado, pronta a desferir um golpe, enquanto incitava a montada para o meio dos turbantes, elmos pontiagudos e cimitarras cintilantes empunhadas pelos sipaios à sua frente. Fixou o olhar no mais próximo, e lançou uma estocada contra o homem, ferindo-lhe o ombro e recolhendo a lâmina antes que ela lhe fosse arrancada das mãos. Escolheu de imediato outro alvo, um homem alto e de pele escura, cujos dentes irregulares se mostravam num rosnar ao virar-se para Thomas. Ergueu uma lança e tentou atingir o peito do inglês, rasgando-lhe o colete antes de embater contra a placa peitoral. Thomas atacou a haste da lança, obrigando-a a descer, e depois golpeou a garganta do turco com a ponta da espada, enquanto esporeava o cavalo e arrancava a espada com um gesto selvagem.
Abriu-se um espaço à sua frente, e Thomas aproveitou a oportunidade para olhar para os lados. Os atacantes tinham irrompido pelas linhas turcas, com os piques à frente, e usavam as suas armas de forma metódica, dando estocadas sobre os inimigos quase desprotegidos, repetindo uma sucessão de gestos que os fazia avançar de forma constante. Em volta dos combatentes elevava-se já uma nuvem de poeira sufocante, mas Thomas reparou que havia já alguns turcos a recuar e recusar o combate. Abriu a boca para incitar os piqueiros, quando o seu cavalo soltou um relincho de dor e terror e se empinou, com os cascos a tentarem atingir o turco que lhe tinha ferido o pescoço com um golpe de cimitarra. Thomas lançou o peso para a frente, agarrando as rédeas com firmeza enquanto o animal ferido escoiceava e se empinava, forçando os homens de ambos os lados da contenda a afastar-se dos cascos que eram agitados pelo animal moribundo. As pernas cederam, e a montada caiu por terra, a resfolegar em pânico. Thomas apressou-se a libertar-se dos estribos e a saltar antes que o cavalo rebolasse e o prendesse. No momento seguinte, o animal, ao sentir a ausência de peso na sela, voltou a agitar-se e a escoicear.
Thomas afastou-se e preparou-se para enfrentar os turcos a pé. Escolheu dois janízaros entre os vultos que corriam pela poeira. Eles avistaram-no ao mesmo tempo, e carregaram, as plumas de avestruz a dançarem sobre os chapéus brancos. Thomas levou a espada acima da cabeça para desviar o primeiro golpe dos oponentes, e viu as fagulhas a saltarem enquanto um retinir metálico lhe chegava aos ouvidos. O impacto magoou-lhe o pulso, e a cimitarra escorregou ao longo da sua espada, acabando por lhe bater na proteção do ombro. Thomas viu o segundo inimigo a saltar enquanto levantava a espada, e percebeu que não tinha tempo para ripostar ao golpe do primeiro dos oponentes. Por instinto, enviou o punho da espada contra o rosto do janízaro com toda a força e sentiu o sucesso do golpe quando o nariz do outro se partiu e a pele da face se rasgou. O turco recuou e quase caiu, até ficar de repente numa posição hirta, e a ponta ensanguentada de um pique explodir através das vestes que lhe cobriam o ventre. O homem tombou de joelhos, e Thomas viu um soldado espanhol por trás dele, os dentes cerrados numa máscara de triunfo, antes de apoiar uma bota nas costas do cadáver e soltar de novo o pique.
Thomas nem teve tempo para acenar um agradecimento. O primeiro janízaro estava de novo na sua frente, a postos para o duelo. Por momentos a batalha que se desenrolava em volta pareceu distante, como se os dois tivessem um combate privado a disputar. Mas o encantamento durou pouco, e o turco saltou em frente, com a cimitarra a zunir pelo ar. Thomas deu um rápido passo ao lado e desferiu um golpe ao ponto onde calculava que o braço do janízaro estaria quando fizesse descer a cimitarra. O aço rebrilhou quando a lâmina atingiu o pulso do outro e o decepou de uma vez. O homem soltou um urro animal e atirou-se contra Thomas, tentando apanhar-lhe a garganta com a mão que lhe restava. Thomas sentiu as unhas a cravarem-se-lhe na pele e cerrou os olhos enquanto lutava para afastar a mão do outro. Quando conseguiu libertar-se dos dedos, empurrou o janízaro para longe e trespassou-o com a espada. O turco caiu no solo e ficou a ofegar enquanto o sangue lhe corria da ferida sobre o coração e do coto que tinha no lugar do pulso.
— Pai! — Richard aproximou-se pelo meio da poeira, com uma expressão ansiosa. — Estais a sangrar.
Thomas sentia o líquido quente na face, a escorrer para o canto da boca, onde lhe dava a provar o sabor salgado e férreo.
— Estou bem — disse, a ofegar. — Bem.
De espada em riste, olhou em redor, mas não parecia haver outros inimigos por perto, e o som da batalha parecia estar a afastar-se. Voltou-se para o jovem.
— Onde está o teu cavalo?
— Levou um tiro na cabeça. Perdi a espada quando caí, por isso... — Richard mostrou o pique que empunhava. — E agora?
Thomas tinha perdido a sensação de onde se encontrava, e a poeira obscurecia o que o rodeava, mas o Sol começava a descer para ocidente.
— Por aqui. Fica ao pé de mim.
Seguiram o som da contenda, passando sobre cadáveres e parando apenas para dar o golpe de misericórdia aos feridos inimigos que ainda pudessem ser vistos como uma ameaça. A poeira começou a tornar-se menos densa, até que a paisagem se abriu à sua frente, mostrando a baía de S. Paulo. Tornou-se de imediato evidente que os turcos estavam em plena debandada. Fugiam dos homens da força de socorro, muitos atirando fora as armas e outros equipamentos para poderem escapar mais facilmente. Atrás deles seguiam os seus inimigos, que despachavam sem piedade qualquer turco demasiado lento ou fraco para escapar. Os primeiros cavaleiros da guarnição de Mdina juntavam-se à perseguição, carregando dos flancos e gritando de cruel alegria quando alcançavam e derrubavam o inimigo que tanto pavor e sofrimento lhes tinha provocado ao longo dos meses de cerco. Ao observar o massacre que se desenrolava à sua frente, parecia a Thomas que uma matilha de feras esfaimadas tinha sido atiçada contra os turcos indefesos. Já não havia qualquer resquício de ordem nos dois exércitos, apenas vultos espalhados pela paisagem árida.
Com Richard ao seu lado, seguiu na direção em que fugiam os turcos, passando por campos e restos calcinados de quintas incendiadas. A armadura pesava-lhe, e cada passo parecia exigir-lhe um tremendo esforço; o suor continuava a escorrer-lhe pela testa e a ensopar-lhe a roupa, colando-lha à pele e irritando-a. Por fim, depois de alguns quilómetros de marcha, alcançaram o cimo de uma crista que dava para a baía onde, em tempos, S. Paulo desembarcara para converter os habitantes da ilha ao novo credo de paz e irmandade universal. Naquele dia, porém, a cena era digna do mais negro e sangrento pesadelo.
Os soldados turcos estavam encurralados ao longo da baía. Alguns grupos tinham-se virado contra os perseguidores e combatiam na margem. Noutros pontos, centenas de homens tinham avançado pelo mar adentro, tentando chegar às centenas de embarcações ancoradas na baía. Havia pequenos botes a circular desesperadamente entre as galeras e a praia, tentando salvar o maior número possível de camaradas. Pelo meio avançavam os homens da força de socorro cristã, abatendo sem remorso todos aqueles que conseguiam alcançar e saqueando-lhes os corpos, antes de prosseguir. Uma vintena de turcos amontoava-se junto a um dos botes, e lutava entre si para embarcar. A pequena embarcação baloiçava fortemente, e a tripulação tentava afastar os homens. Por fim, uma oscilação mais pronunciada fez o bote virar por completo, lançando todos os homens pela borda fora. Junto à margem, a água já estava vermelha de sangue, e uma espuma rosada acumulava-se sobre o cascalho, empurrada pelas suaves ondas.
— Olhai para ali — disse Richard, a apontar para um grupo de janízaros que ainda combatia à beira da água, a uns quatrocentos metros do ponto onde se encontravam. Eram talvez uns cem, a maior parte equipados com lanças, com que mantinham os perseguidores à distância, enquanto um punhado deles usava metodicamente os arcabuzes, disparando e recarregando sobre alvos fáceis de escolher. No centro da formação em crescente via-se um oficial de vestes de seda e um turbante adornado com joias.
— É o paxá Mustafa. — Thomas respirava com dificuldade pelos lábios gretados, e a voz era rouca. — Se o capturarmos, a humilhação do sultão será completa.
— Então vamos. — Richard começou a descer o declive, mantendo o pique bem aperrado. — Vamos lá capturá-lo.
— Espera! — Thomas tentou seguir o filho. — Espera por mim.
O Sol já estava baixo no céu, e lançava sombras alongadas sobre a carnificina, dando às sujas e ensanguentadas armaduras dos cristãos um aspeto sinistro, enquanto eles prosseguiam a sua empresa letal. Thomas avistou um punhado de botes turcos a saírem do navio-almirante inimigo e a dirigirem-se para o seu comandante e guardas. Quando os botes se aproximaram da margem, de imediato um grande número de homens se precipitou para eles, avançando pela água avermelhada. As tripulações tinham ordens evidentes para apenas recolherem os janízaros; atacaram impiedosamente todos os outros que se punham ao seu alcance e continuaram a avançar. O estandarte de Mustafa tinha já despertado a atenção dos perseguidores, e desenrolava-se uma encarniçada refrega entre os piqueiros espanhóis e os janízaros.
— Temos de nos apressar — avisou Richard, fatigado. — Antes que ele escape.
Apesar de sentirem os membros pesados como chumbo, os dois lançaram-se em corrida, com as bainhas das espadas a baterem-lhes nas pernas. Já só um punhado de turcos opunha alguma resistência na margem da baía. Alguns largavam as armas e lançavam-se de joelhos para se renderem, mas eram abatidos sem piedade. Havia barcos a recolher os últimos dos homens ainda na água, e Thomas avistou atividade nas proas das galeras, à medida que as equipagens preparavam os canhões de bordo para disparar sobre os cristãos na praia, num último gesto de desafio antes de as humilhadas tropas do sultão deixarem de vez a ilha.
O paxá Mustafa, acompanhado pelo seu porta-estandarte e outros dois homens, encaminhava-se para um dos botes vindos do navio-almirante. Atrás dele, os seus guardas continuavam a combater, dando-lhe tempo para escapar.
— Por aqui! — lançou Thomas, exausto, enquanto cortava caminho para se dirigir para o comandante inimigo. Entraram na água, direitos ao estandarte pessoal do sultão, uma crina de cavalo preta que dançava de um lado para o outro enquanto o homem que o transportava avançava para o barco. Mustafa virou-se na direção do chapinhar e avistou os dois ingleses que se aproximavam, adivinhando-lhes as intenções. Deu uma ordem aos dois guardas que o protegiam, que de imediato se viraram para Thomas e Richard, erguendo as cimitarras. Richard manteve o pique acima da água e enfrentou o mais próximo dos janízaros. O turco fingiu desviar-se para um lado, mas não contou com a resistência da água, que não lhe permitiu o movimento, e o pique atingiu-o no flanco. Richard empenhou-se no golpe e soltou rapidamente a ponta. Thomas alcançou-o e avançou contra o outro guarda. Não se preocupou com a elegância dos movimentos, usou apenas determinação e força bruta. Golpeou repetidamente, forçando o outro a recuar. O turco acabou por tropeçar no fundo marinho, e tombar de costas. Thomas avançou imediatamente e manteve a cabeça do homem debaixo de água com a mão esquerda, enquanto espetava a espada e o sangue se espalhava pela água em redor.
Thomas voltou-se; Mustafa tinha acabado de alcançar a proa do bote mais próximo, a pouco mais de cinco metros dali, e dois homens esforçavam-se por o puxar para bordo. Richard viu também que o comandante inimigo estava quase a escapar; atirou fora o pique e avançou com grande estardalhaço sobre o porta-estandarte, que esperava a sua vez de embarcar. Richard agarrou no homem, fê-lo virar e aplicou-lhe um murro na face. O turco manteve o estandarte agarrado com uma mão, e tentou atingir Richard com a outra. O jovem piscou os olhos, momentaneamente desorientado, e depois rosnou, furioso, e voltou a atingir o homem com toda a força, fazendo-lhe a cabeça saltar para trás. Largou o estandarte, e Richard soltou um grito de triunfo ao pegar nele e o elevar no ar, mostrando a todos que o tinha capturado.
Thomas notou que Mustafa tinha sido puxado para o bote e se sentava de forma atabalhoada e pouco digna na proa, enquanto a tripulação mergulhava os remos e começava a afastar-se da margem. Por trás do comandante, um soldado levantou-se, firmou os pés e levantou um arcabuz ligeiro; apontou a Richard.
— Não! — gritou Thomas, a voz desesperada. Sem pensar, empurrou Richard para o lado e interpôs-se entre o barco e o filho no preciso momento em que a chama jorrou do cano da arma. Viu o diminuto anel de fumo, um assobio no ar quente, e sentiu um impacto, como um murro bem assente no estômago. O choque fê-lo perder o fôlego. Viu os lábios do paxá Mustafa abrirem-se num sorriso cruel, enquanto o bote se afastava.
Richard emergiu da água com uma expressão de fúria no rosto. Ainda agarrava o estandarte com as duas mãos, e olhou para Thomas furioso.
— O que é que estais a fazer? Porque é que... — As palavras morreram quando avistou o buraco na placa peitoral de Thomas.
Com uma sensação de desgraça, Thomas percebeu que tinha sido atingido. Olhou para baixo e viu a mossa na armadura, no ponto em que curvava sobre o abdómen. O sangue corria do orifício e escorria pelo metal polido.
— Oh, Deus, não... — sussurrou. — Isto não. Não agora.
— Pai! — Richard lançou o estandarte para a margem e correu na sua direção. — Pai, fostes atingido.
Thomas abanou a cabeça, sem querer acreditar, mas sabendo perfeitamente que a ferida era mortal. A dormência do impacto estava a desvanecer-se, e uma dor terrível começava a espalhar-se pelo seu estômago. Cambaleou até junto do filho e tombou-lhe nos braços antes que a força das pernas lhe faltasse. Um véu escuro começava a descer-lhe sobre a visão, e sentia-se agoniado, enquanto a sua consciência começava a desvanecer-se.
Richard pegou-lhe por baixo dos braços, debatendo-se para o levar para terra. Thomas mal deu pela voz do filho a chamar, desesperado.
— Aqui! Ajudai-me! Por tudo o que é sagrado, ajudai-me!
46
–Nada mais podemos fazer por ele — afirmou La Valette com doçura, enquanto se aproximavam da porta da enfermaria. Maria não respondeu, mantendo o olhar fixo em frente. O brilho do Sol nascente banhava as muralhas acima deles, e em Birgu os sinos de todas as igrejas continuavam a repicar, como faziam desde que as novas da derrota dos Turcos tinham chegado à cidade. O pátio de St. Ângelo estava repleto com os feridos que tinham começado a chegar de Naxxar na noite anterior.
— Foi um milagre ele ter sobrevivido a esta noite — prosseguiu o Grão-Mestre. — Quando o escudeiro o trouxe, já tinha perdido imenso sangue. Mas disse apenas que vos queria ver. Mandei-vos chamar de imediato. Mal consigo imaginar a força de vontade que o mantém ainda neste mundo. Fez-me um derradeiro pedido. — La Valette interrompeu a marcha à entrada da enfermaria e virou-se para Maria. — Algo estranho, e creio que o deveis saber antes de o verdes.
— O que foi? — Maria franziu o sobrolho.
— Pediu duas coisas. Que vos caseis aqui e agora, e que eu prepare e sancione a adoção do seu escudeiro como filho e herdeiro legal. É verdade que aquele jovem não deixou a cabeceira de Sir Thomas desde que o trouxe do campo de batalha, mas creio bem que há neste pedido algo mais profundo do que o mero reconhecimento do serviço leal. — La Valette abanou a cabeça. — Uma situação muito peculiar. Mas a Ordem muito deve a Sir Thomas, e fico feliz por poder cumprir aquilo que ele deseja. A questão é, e quanto a vós?
Maria nada disse, mantendo os lábios cerrados com toda a força, e acenando apenas em concordância.
— Muito bem. Tudo está já preparado. Há um sacerdote à espera, e eu próprio serei testemunha da cerimónia, bem como o escudeiro. Mas pesa-me sobremaneira que vos venhais a tornar viúva tão pouco tempo depois de vos haverdes tornado esposa.
Maria engoliu em seco e manteve a cabeça bem altiva, enquanto respondia.
— Não posso conceber maior felicidade do que a de tornar-me esposa de Sir Thomas. Levai-me até ele, então.
. . .
Uma hora depois, a cerimónia estava concluída. Thomas deixou-se escorregar para o leito com um sorriso de contentamento, com a esposa e o filho sentados cada um a seu lado, e agarrando-lhe numa das mãos. Tinha o cabelo colado ao escalpe, e o suor perlava-lhe a pele pálida e os tecidos esbranquiçados da cicatriz que lhe rasgava o rosto. Sentia frio, e o pouco que lhe restava de forças esvaía-se rapidamente. Só a agonia que lhe ardia no estômago lhe permitia manter um pensamento coerente. Sabia que pouco tempo de vida lhe restava, e sentiu um pico de cólera até recordar que era por estar a morrer que o filho vivia ainda. Anuiu para si mesmo e murmurou:
— O destino é justo.
Virou a cabeça para Richard e humedeceu os lábios, de forma a poder falar de forma inteligível. Mas o esforço foi quase superior às suas forças, e a voz saiu-lhe fina e esforçada.
— Jura-me que cuidarás da tua mãe. Toda a vida ela sofreu por minha causa. Jura-me que a tratarás como é devido.
— Juro-o.
Thomas sorriu.
— Enches-me de orgulho. Não há homem que não se sentisse honrado por poder chamar-te filho.
Richard engoliu em seco, emocionado, e colocou a mão suavemente sobre o peito do pai.
— Sei-o bem. E a vós o devo.
— Não. Eu devia ter sido um pai melhor. Um homem melhor. — Virou-se para Maria, os olhos marejados pela dor e pela saudade. — Um marido melhor.
Ela tentou combater as lágrimas, até se debruçar para o beijar na face e lhe murmurar ao ouvido:
— Não existe no mundo homem melhor. És tudo para mim... meu amor.
A visão de Thomas começava a turvar-se, e já mal tinha forças para respirar. A expressão dele transformou-se num esgar de agonia.
— E tu... para mim. Sempre... Para sempre. Perdoa-me.
Os olhos de Thomas cerraram-se, enquanto a respiração se tornava mais difícil, até que um último suspiro o deixou silencioso e imóvel. Não havia dúvidas de que tinha chegado o momento da morte; aquela quietude final do corpo e do espírito, da qual não existia regresso. Filho e esposa contemplaram-no em silêncio, cada um vertendo as suas lágrimas. A dor que sentiam era imensa, e ali permaneceram sentados, juntos, enquanto as horas corriam.
Quando o entardecer já tomava conta da ilha, La Valette regressou à enfermaria para apresentar os seus sentimentos. Maria largou por fim os dedos já gelados de Thomas e ergueu-se com grande esforço. Contemplou mais uma vez o rosto repleto de marcas e debruçou-se para lhe beijar a testa, antes de se virar e afastar lentamente, a mão apoiada no braço de Richard. La Valette acompanhou-os até ao exterior.
— Asseguro-vos que Sir Thomas nunca será esquecido. Nem ele, nem nenhum dos que resistiram ao cerco. — La Valette respirou fundo, como que a saborear o ar. — Quando o resto da Cristandade souber que os Turcos foram rechaçados de Malta, ganharão uma nova alma e unir-se-ão num propósito comum. Solimão e o seu Império foram humilhados, mas ele depressa voltará ao ataque. Porém, não mais a Europa viverá no receio de cair na sombra do crescente. E tudo por causa do que aqui sucedeu, aqui em Malta. Graças aos que morreram, como Thomas, e graças aos que lutaram e sobreviveram, como vós, Richard.
Abraçou o jovem, antes de recuar e sorrir com ar curioso.
— Sois um merecido herdeiro do nome de Sir Thomas. Quase como se tivésseis nascido para ocupar esse lugar.
La Valette virou-se para Maria e dobrou visivelmente o pescoço.
— Senhora, bem gostaria que tudo isto tivesse terminado de forma mais favorável aos vossos desejos. Mas fez-se a vontade de Deus.
Os lábios de Maria entreabriram-se, como se ela fosse responder, mas só conseguiu acenar.
— Há uma coisa mais. — La Valette extraiu das dobras das vestes uma folha de papel dobrada, selada com a crista dos Barrett. Entregou-a a Richard. — Sir Thomas deu-me isto há vários dias. Pediu-me que vo-la entregasse, se algo lhe acontecesse. — Sorriu com tristeza. — Duvido que ele esperasse realmente o pior, mas... aqui está.
Richard pegou hesitantemente na carta, e acenou um agradecimento. La Valette voltou a inclinar a cabeça e dirigiu-se aos seus aposentos, para trabalhar na infinda lista de novos problemas que tinham surgido após o fim do cerco, e que requeriam respostas urgentes. Richard aguardou que ele desaparecesse antes de se virar para Maria.
— Importais-vos?
— Não. Esperarei por ti na muralha. Sopra uma brisa agradável. — Ela baixou a cabeça e dirigiu-se lentamente à base das escadas que levavam à muralha. Richard avançou até ao feixe de luz projetado por uma tocha que ardia num suporte de ferro na parede, abriu a carta e começou a ler.
Meu muito querido Richard
Não sou um homem de grande conhecimento. E não serão os meus parcos feitos e ações a fazer de mim um homem notável. Creio bem, aliás, que já pouco tempo me resta para ser um homem, e nada mais. Se a morte me encontrar, que seja esta breve nota o meu testamento para ti. Se sobreviver, talvez estes pobres pensamentos possam adquirir algum do peso e do valor que gostaria de lhes dar.
Gostaria que ficasses certo, e que dissesses isto também à tua mãe, de que ela sempre teve razão sobre a verdade incorruptível que vive nos nossos corações. Diz-lhe que ela sempre foi aquilo que mais amei neste mundo, embora sejas tu, meu filho, quem mais me importa. Os dois sentimentos não se confundem, mas nem por isso se excluem mutuamente. Pelo contrário, ambos formam uma parte da ligação entre dois amantes e o fruto do seu amor. Nada mais importa. Tudo o resto empalidece em comparação.
Meu filho, tornaste-te tão querido aos meus olhos nestes poucos meses como qualquer filho podia conseguir ao longo de toda uma vida. Olho-te com orgulho justificado. És possuidor de uma tremenda coragem, mas também de compaixão e sabedoria. Não me agrada que desperdices tais dons no ignóbil serviço de um réptil como Walsingham. À tua espera há um caminho bem melhor, se decidires tomá-lo. Se algum sentido houve para as provações que sofremos neste estéril rochedo, foi que o verdadeiro documento que era teu destino levar daqui para fora não era aquele que foste enviado para recuperar, e sim este que tens agora nas mãos.
Vivi uma vida bem preenchida. Fiz muitas coisas de que me arrependo, e fiquei a conhecer os limites das ambições e crenças que orientam a vida de homens e mulheres. Fica ciente de que tentei ser um bom homem, e que a medida dessa bondade é apenas humana. Acabei por afastar toda a ideia de que existe neste Universo um Deus, seja ele Cristão ou concebido pelos Muçulmanos. Não há nada de remotamente divino na carnificina e na crueldade de que ambos fomos testemunhas,
De entre todas as causas que ocupam as mentes da Humanidade, de todos os trabalhos de fé e sabedoria que foram vertidos em palavras, na minha vida encontrei apenas uma verdade que valeu a pena aprender, e que agora te transmito.
Ei-la: eu amei e fui amado. E concebi um filho. Essa é toda a divindade necessária a um homem neste mundo.
O teu pai, que te adora.
Richard releu a carta, mais devagar, e depois dobrou-a cuidadosamente e colocou-a no interior do gibão, junto ao coração. Subiu as escadas para se juntar à mãe, e olhou para o outro lado do porto, para a arruinada forma de St. Elmo.
Sentiu a mão dela a pousar-lhe no ombro.
— Richard, estás bem?
O jovem engoliu toda a amargura que sentia pela gratidão infinita que devia ao homem que fora seu pai e amigo, e a quem nunca poderia pagar. Virou-se para ela com um sorriso forçado e assentiu.
— Sim.
Debruçou-se para ela, beijou-lhe a face e pegou-lhe nas mãos.
— Mãe, vamos para casa.
— Casa?
— Inglaterra. — Richard sentiu um aperto de saudade ao pronunciar aquela palavra. Mas havia ainda uma tarefa a cumprir antes de poder arrumar todos os seus assuntos. — Há uma pessoa que tenho de ver em Londres. Depois disso, temos uma bela casa à nossa espera. E um nome de família, bem como um título. — Abriu a mão para contemplar o anel, com um nó na garganta. — Farei tudo o que puder para me tornar o digno filho de Sir Thomas Barrett, cavaleiro da Ordem de S. João.
Ela obrigou-se a sorrir, mas não conseguiu olhá-lo nos olhos, pelo que desviou a vista.
— Tenho a certeza de que ele ficaria orgulhoso de ti.
— Nada mais desejo nesta vida. — Richard calou-se por momentos, e depois limpou a garganta. — Tereis de fazer preparativos para a viagem. Vou deixar-vos à vontade.
Maria virou-se para ele, sem esconder alguma ansiedade.
— Onde vais?
— Há uma coisa que tenho de fazer. É importante. Assim que terminar, vou ter à vossa casa.
— Promete-me.
— Mãe, prometo-o.
Ela ficou em silêncio por momentos.
— Muito bem. Mas não te demores. És tudo o que me resta... meu querido filho.
Richard sentiu uma onda de afeição a subir-lhe pelo peito, e pegou na mão dela, que apertou suavemente.
— Serei o mais rápido possível.
. . .
Fechou a pesada porta do albergue nas suas costas, abafando o repicar dos sinos que se propagava sobre os telhados de Birgu e ecoava pelas ruas repletas de gente excitada, ainda extasiada pela realização de que tinham acabado de passar pela maior provação das suas vidas e sobrevivido. O átrio estava quieto e escuro, já que a luz só entrava pela janela alta. Richard olhou em redor e seguiu pelo corredor que levava à cozinha. Pegou numa vela e acendeu-a com a pederneira de Jenkins. Com a pequena luz à sua frente, desceu à cave que se estendia sob o albergue, um local seguro para o testamento de Henrique. Numa minúscula e esquecida reentrância da parede, remexeu um tijolo solto e tirou-o, antes de inserir os dedos na cavidade e extrair o pergaminho que fora enviado para encontrar e fazer regressar a Inglaterra. Parecia-lhe estranho que aquela velharia lhe tivesse há pouco tempo parecido um enorme e perigoso tesouro. Richard pegou-lhe e examinou o velo sedoso à trémula luz da vela. Depois, sem mais hesitações, levou o canto do documento até à chama e esperou que a língua amarela começasse a lamber a orla do documento, criando uma linha brilhante que se espalhou rapidamente, deixando atrás de si apenas uma cinza de tom uniforme. Manteve-o na vertical enquanto lhe foi possível, facilitando o trabalho da chama, até que o calor o obrigou a largá-lo e deixá-lo cair para o solo, avivando a chama até embater na pedra e soltar algumas fagulhas que depressa se extinguiram e deram lugar à escuridão quando o resto do pergaminho foi consumido pelas labaredas. Soltou um suspiro, voltou as costas à cena, e regressou para a cozinha.
Ao seguir pelo corredor, notou que havia movimento no átrio. Prosseguiu em silêncio até ao fim do corredor e avistou Jenkins, a debater-se com uma escada que tentava encostar à parede.
— Jenkins.
O velhote assustou-se e olhou em redor. Soltou o ar aliviado quando percebeu que se tratava de Richard, e sorriu. O sorriso apagou-se rapidamente, e ele abanou a cabeça com tristeza.
— É bom voltar a ver-vos, jovem senhor Richard... embora gostasse mais ainda se Sir Thomas estivesse convosco.
— Já sabes, então.
Jenkins anuiu.
— Disse-me um dos servos de St. Ângelo, enquanto oferecíamos graças ao Senhor, na catedral. Voltei para aqui assim que o serviço terminou. Tinha uma coisa a fazer.
— Também eu. — Richard sorriu. — O que estás a fazer?
Jenkins foi até à mesa e pegou num fardo de lã vermelha. Desembrulhou-o e extraiu do interior um pequeno escudo de madeira com um brasão, que mostrou a Richard.
— Guardei-o com todo o cuidado, quando o albergue recebeu instruções para o tirar da parede. Esperava que um dia pudesse voltar ao seu lugar, senhor. Foi uma longa espera. Creio que não haverá melhor momento para o recolocar. Senhor, não me quereis ajudar? As minhas pernas e braços já não são tão firmes como foram.
— Claro. — Richard abriu a mão. — Deixa-me fazê-lo.
Jenkins hesitou brevemente, mas passou a Richard o pequeno escudo.
— Obrigado, senhor. Como podeis ver, há um pequeno anel na parte de trás.
Richard virou a peça para verificar.
— Podeis pendurá-lo naquele prego além. — Jenkins apontou para o espaço vazio na trave, perto da ponta da escada. — Onde esteve, noutros tempos.
— Muito bem.
Richard subiu só com uma mão, agarrando o brasão do pai na outra. Quando a cabeça ficou ao nível da trave, esticou-se e enganchou a peça no prego, ajustando-a até ficar direita. Satisfeito, desceu do escadote e ficou a admirá-la ao lado de Jenkins. Os dois olhavam para cima. A tinta não se tinha apagado durante os longos anos em que a peça estivera armazenada, e o desenho parecia tão fresco como no dia em que tinha sido pendurado pela primeira vez no salão.
— É bom voltar a ver as coisas no seu lugar — comentou Jenkins.
Richard assentiu.
Mantiveram-se em silêncio por mais uns momentos, até que o jovem se voltou e ofereceu a mão ao velho servidor do albergue inglês.
— Jenkins, vim dizer-te adeus. Estou de volta a Inglaterra.
— A sério, senhor? — O velhote parecia desapontado. — Tinha esperanças de que ficásseis. Agora que o último dos antigos cavaleiros partiu, o albergue precisa de sangue novo.
O semblante de Richard endureceu perante a infeliz escolha de palavras. Obrigou-se a lançar um breve sorriso.
— Talvez um dia. Daqui a uns anos. Creio ter merecido um descanso quanto a combates e guerras. Mas se algum dia a Ordem precisar de mim, regressarei. Espera por mim.
Os dois sorriram, perfeitamente conscientes de que Jenkins estaria morto e enterrado muito antes desse dia.
— Senhor, adeus, então. — Jenkins baixou a cabeça, e abriu-lhe a porta. Richard saiu para o sol resplandescente que banhava a cidade. Ao escutar o ferrolho a fechar-se atrás de si, sentiu-se possuído por uma enorme leveza, como se todas as preocupações lhe tivessem sido levantadas dos ombros. Respirou fundo, deitou uma última olhadela ao albergue por cima do ombro, virou-se, e seguiu ao encontro da mãe.
Para o Tom
Depois da febre agitada desta vida, dorme finalmente em paz;
A traição esgotou contra ele os seus recursos;
Punhal ou veneno, rebelião interna, invasão do estrangeiro,
Nada já o pode atingir.
William Shakespeare
(Trad. de Ricardo Alberty, Ed. Verbo, 1973)
After life’s fitful fever he sleeps well.
Treason has done his worst. Nor steel nor poison,
Malice domestic, foreign levy, nothing
Can touch him further.
NOTA DO AUTOR
Ao longo da História, poucos cercos se revestiram de tanta importância como o de 1565. Teve lugar numa altura em que o Império Otomano estava no seu auge, e poucas dúvidas existiam de que o sultão Solimão governava a superpotência do seu tempo. Os reinos europeus não se atreviam a contrariar os seus interesses, e viviam em permanente receio dos seus poderosos exércitos. Para as nações costeiras do Mediterrâneo — ou do Mar Branco, como era conhecido entre os turcos otomanos — existia ainda o terror adicional do poderio naval do sultão, que muitas vezes era exercido por frotas de corsários a seu soldo, comandadas por personagens lendárias como Barbarossa e Turgut, cujos nomes provocavam, só pela sua menção, pânico nos corações dos cristãos da época. Atacando geralmente pela calada da noite, os corsários saqueavam cidades e povoações costeiras, matando milhares e levando outros tantos, ou mais ainda, para a escravatura.
Não existem também grandes dúvidas acerca da grande estratégia desenhada por Solimão. O seu propósito era esmagar os inimigos cristãos entre as pinças do seu exército e da sua marinha. Acreditava ser uma escolha divina que lhe permitiria completar a duradoura ambição do mundo muçulmano — sujeitar todas as outras nações à vontade de Alá, sob o jugo do Império Otomano. O reino de Espanha era uma imagem simétrica dessa ambição, igualmente impiedoso e pronto a invocar a religião para justificar todas as suas ações. Foi portanto perfeitamente adequado que o mais celebrado momento do grande combate entre os dois poderes tivesse decorrido em Malta, a ilha situada em pleno coração do mar, cujo controlo tinha sido tão discutido ao longo de centenas de anos.
Nessa época, a Ordem de S. João pouco mais era do que a guarnição de um posto avançado do mundo cristão. A Ordem estava em declínio, e o número dos seus membros decaía regularmente, já que as guerras na Europa apelavam a muitos dos cavaleiros que noutros tempos podiam ter sido levados a servi-la. Havia muitas nacionalidades na Ordem, e não faltavam tensões entre os seus membros, um facto que não era ajudado por um longo historial de derrotas e retiradas em face das forças do Islão. Dado o caráter fanático dos cavaleiros que compunham a Ordem no século XVI, com a ideia fixa no combate aos infiéis, torna-se difícil acreditar que a origem da Ordem no século XII se deveu a um simples padre, que pensou numa forma de oferecer comida e abrigo aos peregrinos que visitavam a Terra Santa. Depressa os serviços da Ordem começaram a incluir o fornecimento de escoltas armadas aos peregrinos, antes de ela própria se tornar uma formidável força paramilitar que passou à ofensiva com evidente deleite.
Porém, as ordens militares acabaram por se revelar insuficientes para contrariar os desafios que enfrentavam, e foram expulsas da Terra Santa em 1291 (quando quase foram aniquiladas). Reagruparam-se em Chipre, invadiram a ilha de Rodes em 1310 e usaram-na como uma base para as operações navais contra os inimigos da Cristandade. Por fim, em 1523, o recém-coroado sultão, Solimão, enviou uma poderosa frota e um exército para derrotar a Ordem. Não se tratava de uma tarefa fácil, uma vez que os cavaleiros tinham edificado um vasto conjunto de fortificações em torno do seu quartel-general, que os visitantes de Rodes ainda hoje podem apreciar. Solimão era ainda jovem, e mais dado ao cavalheirismo do que a prudência aconselharia. Em vez de esmagar a Ordem que tinha sido uma ameaça constante para os Turcos, apiedou-se dos cavaleiros e permitiu-lhes sair com vida, abandonando a ilha com tudo o que pudessem transportar. Foi um erro que lhe custou caro, já que a Ordem regressou à ofensiva assim que estabeleceu uma nova base em Malta.
No momento em que o paxá Mustafa e o paxá Piyale lançaram o seu assalto à ilha, descrito neste livro, o sultão estava mais velho, mais sábio e mais impiedoso. Desta vez, ordenara que nenhuma piedade fosse mostrada para com a Ordem. Mas enquanto Rodes ficava a menos de um dia de viagem das costas da Turquia, Malta apresentava muito maiores dificuldades em termos logísticos. As linhas de comunicação ficavam muito mais esticadas, mas a própria natureza da ilha apresentava um desafio diferente. Malta era um rochedo árido, onde os habitantes lutavam todos os dias para sobreviver com o que conseguiam arrancar do solo fino e árido, de onde as árvores estavam praticamente ausentes. Por isso, os turcos viram-se obrigados a levar consigo a madeira necessária para construir todos os engenhos de cerco. Além, claro, dos abastecimentos em comida e munições requeridos para levar a cabo a sua missão. A verdade é que subestimaram as suas necessidades, e foram dizimados pela fome e pelas doenças nos últimos dias da campanha. A decisão do sultão de dividir o comando foi igualmente debilitante. Em contraste, a inquestionável autoridade de La Valette, ampliada pela sua coragem pessoal, deu aos defensores um poderoso sentido de missão. Nenhum dos lados vacilou na coragem com que se lançou no combate, e quando se pensa no calor esgotante e nas privações que os combatentes sofreram, é difícil não ficar assombrado perante a sua bravura e resistência.
O facto de a Ordem ter conseguido humilhar o sultão transformou-a numa celebridade por toda a Europa. Até na Inglaterra protestante a vitória foi celebrada. Em resultado, o dinheiro e os homens voltaram a fluir, em tais números que a Ordem avançou com uma empreitada assinalável, aterrando a crista de Sciberras e construindo uma nova cidade fortificada, batizada em honra e celebração de La Valette. O exemplo da Ordem inspirou os poderes europeus a unirem-se contra o sultão, cuja marinha acabou esmagada na batalha de Lepanto, seis anos depois da humilhação em Malta. Esta alteração do poder levou por sua vez ao longo declínio da Ordem. Permaneceu em controlo da ilha até à chegada de Napoleão e do seu exército, a caminho do Egito, em 1798. Num evidente contraste com os seus heroicos antecessores, os cavaleiros da Ordem resistiram a Napoleão durante cerca de noventa minutos, rendendo-se em seguida. Consequentemente, a Ordem viu-se forçada a deixar Malta, e estabeleceu uma nova sede em Roma, onde ficou até hoje.
Embora o cenário seja hoje em dia muito diferente, ao explorar o porto atual um visitante ainda pode ter uma ideia dos desafios que se puseram aos turcos. Da primeira vez que entrei em Valetta, fiquei impressionado com a posição do forte de St. Elmo, e é fácil de entender porque teriam os turcos escolhido essa fortaleza para alvo do primeiro assalto. Embora as edificações da cidade se espalhem por todos os lados, as principais características do porto mantêm-se intactas, e é fácil imaginar o cenário como ele terá sido em 1565. Existe um excelente museu no palácio do Grão-Mestre, com uma bela coleção de armas e equipamentos da época do cerco. Para quem quiser ler mais acerca do cerco e do seu contexto histórico, um bom começo é Malta 1565: Last Battle of the Crusades (Malta 1565: A Última Batalha das Cruzadas), de Tim Pickles, que está incluído na excelente série da Osprey. Existe também um relato na primeira pessoa, fascinante, escrito por Francisco Balbi Di Correggio. Em parte diário e em parte comentário, é um relato detalhado, visto do ponto de vista de um soldado vulgar, enredado nos eventos. A obra de Ernle Bradford, The Great Siege: Malta 1565 (O Grande Cerco: Malta 1565) fornece uma visão geral do combate; mais recentemente, Empires of the Sea (Impérios do Mar), de Roger Crowley, oferece uma admirável visão do contexto em que decorreu o cerco.
Quanto ao documento que está no cerne desta história, é claro que as preocupações do rei Henrique VIII quanto à vida eterna que o esperava depois da morte se foram adensando com a idade. A sua rutura com a Igreja de Roma tinha deixado a Inglaterra isolada do coração da Europa, e para o fim do seu reinado ele mostrava-se empenhado em retomar as relações com os potentados católicos. O ponto mais difícil era a exigência do Papa, que queria que bens e propriedades perdidos pela Igreja Católica durante a Reforma lhe fossem devolvidos. Mas qualquer tentativa de recuperar esses bens das mãos dos que mais tinham beneficiado com o confisco das propriedades da Igreja teria provocado cisões profundas na elite aristocrática que governava a Inglaterra, podendo mesmo levar a uma guerra civil. Esse seria o móbil para a tentativa desesperada de Sir Robert Cecil e Sir Francis Walsingham para recuperarem o testamento, que relatei neste romance.
Leia nas próximas páginas do livro de Simon Scarrow
Pretoriano
A cidade de Roma em 50 d.C. é um lugar perigoso. A traição espreita a cada esquina e um obscuro movimento republicano, conhecido como os libertadores, cobre a cidade com os seus tentáculos. Temese que a próxima conspiração surja do coração da própria Guarda Pretoriana. Sem saber em quem pode confiar, o Secretário Imperial Narciso convoca a Roma dois dos seus homens mais corajosos e leais: os veteranos Macro e Cato.
Incumbidos da tarefa de infiltrarem a Guarda Pretoriana, Cato e Macro enfrentam um duro teste para ganharem a confiança dos seus camaradas. E quando finalmente estão prestes a descobrir os segredos da conspiração, surge um velho inimigo que os poderá denunciar, com consequências fatais. Será uma corrida contra o tempo para salvarem as próprias vidas antes que consigam revelar os nomes dos traidores que pretendem derrubar o Império?
Mais informações em
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1
Havia já dez dias que o pequeno comboio de vagões cobertos percorria a estrada quando finalmente atravessou a fronteira e entrou na Gália Cisalpina. As primeiras neves já tingiam de branco as altaneiras montanhas a norte, e os picos reluziam, alvos, recortados contra o céu azul. O inverno precoce tinha ainda assim sido clemente para com os homens que acompanhavam a pé os vagões e, apesar de o ar se manter frio e agreste, nem um pingo de chuva tinha caído desde que tinham deixado as instalações da cunhagem imperial na Narbonesa. As baixas temperaturas tinham feito gelar toda a humidade, criando uma crosta rija sobre a estrada, a qual facilitava a progressão das pesadas carroças.
O tribuno pretoriano que comandava o comboio tinha feito adiantar a montada até alcançar o cimo de uma crista na estrada, e aí deteve o avanço do animal. À sua frente desenhava-se uma longa reta que subia e descia ao sabor da topografia. O tribuno avistava claramente Piceno, uma povoação ainda a alguns quilómetros de distância, onde devia encontrar-se com a escolta montada enviada de Roma pela Guarda Pretoriana — o corpo militar de elite a quem cabia proteger o Imperador Cláudio e a sua família. A centúria de tropas auxiliares que tinha escoltado as quatro carroças desde que se tinham posto a caminho regressaria então ao seu aquartelamento junto às instalações da cunhagem, e deixaria a função de proteger a coluna aos pretorianos que, sob comando do tribuno, a conduziriam em segurança até à capital.
O tribuno Balbo virou-se na sela para observar o comboio enquanto este progredia pela subida até ao ponto onde se encontrava. Os auxiliares eram germanos, recrutados na tribo dos Queruscos, todos eles homens de grande estatura e aspeto feroz, o qual era amplificado pelas barbas hirsutas que se projetavam do interior dos seus elmos. Balbo tinha-lhes ordenado que mantivessem os capacetes enquanto avançavam por entre as colinas, como precaução contra qualquer emboscada montada por algum dos bandos de salteadores que tinham o costume de se aproveitar dos viajantes distraídos. Havia poucas probabilidades de os meliantes se atreverem a atacar aquela coluna, como o tribuno bem sabia. A verdadeira razão para a ordem que emitira tinha sido o desejo de manter escondidas as gadanhas selvagens dos auxiliares, para evitar alarmar qualquer civil com quem se cruzassem. Embora apreciasse o facto de os auxiliares germanos serem realmente de confiança para um trabalho daquele género, já que deviam a sua lealdade diretamente ao Imperador, Balbo não conseguia deixar de sentir o típico desprezo romano por aqueles homens, recrutados nas tribos selvagens que viviam para lá do Reno.
— Bárbaros — concluiu para si mesmo, enquanto abanava a cabeça. Estava habituado ao brilho e à perfeita compostura das coortes pretorianas, e não tinha apreciado particularmente as ordens que recebera para se dirigir à Gália e assumir o comando de mais uma caravana com moedas de prata enviadas da cunhagem imperial. Depois de tantos anos de serviço na Guarda, Balbo tinha ideias bem firmes sobre qual devia ser a aparência de um soldado, e se fosse o comandante de uma coorte de auxiliares germanos, a primeira coisa que faria seria ordenar que cortassem aquelas malditas barbas e se apresentassem como verdadeiros soldados.
Além disso, sentia falta de todos os confortos que tinha ao seu dispor em Roma.
O tribuno Balbo era o perfeito exemplo de um membro da sua classe social. Tinha-se juntado aos pretorianos e prestado serviço em Roma, subindo nas fileiras antes de ser transferido para a Décima Terceira Legião, no Danúbio, passando aí vários anos como centurião antes de solicitar um regresso à Guarda Pretoriana. Mais alguns anos de serviço sem mácula tinham-no elevado à posição de tribuno e ao comando de uma das nove coortes da guarda pessoal do Imperador. Só tinha de esperar mais uns tempos até se reformar da tropa levando consigo uma apreciável gratificação, para depois assumir um posto administrativo nalguma cidade de Itália. Até já tinha uma em vista: Pompeia, onde o seu irmão mais novo possuía um estabelecimento privado de banhos e ginásio. A povoação situava-se na costa, com uma vista privilegiada sobre a baía de Neapolis, e tinha um número decente de teatros, além de uma bela arena rodeada de tabernas onde era fácil encontrar bom vinho a preço em conta. Não faltava sequer a forte possibilidade de uma zaragata ocasional com os homens da cidade mais próxima, Nuceria, pensou embevecido.
Atrás das primeiras cinco secções de auxiliares vinham as quatro carroças, veículos pesados, cada um deles puxado por dez mulas. No banco de cada uma sentavam-se o condutor e um soldado, e atrás deles viam-se peles de cabra bem esticadas e amarradas, a cobrir as arcas aferrolhadas que ocupavam os leitos dos vagões. Em cada uma das carroças seguiam cinco arcas, e cada uma destas continha cem mil denários acabados de cunhar — num total de dois milhões, o suficiente para pagar o salário de uma legião durante um ano inteiro.
Balbo não se impediu um instante de devaneio, a pensar no que poderia fazer com uma fortuna daquelas. Mas rapidamente afastou tais ideias. Era um soldado. Tinha feito o juramento de proteger e obedecer ao Imperador. O seu dever era garantir que os vagões chegavam em segurança ao tesouro imperial em Roma. Os seus lábios cerraram-se de irritação quando se lembrou que alguns dos seus camaradas pretorianos tinham um entendimento um tanto ou quanto mais flexível do conceito de dever.
Ainda não tinham passado dez anos desde que alguns membros da Guarda Pretoriana tinham assassinado o anterior Imperador e a sua família. Em boa verdade, Gaio Calígula não passara de um déspota alucinado, mas um juramento era um compromisso solene que Balbo não conseguia conceber que pudesse ser quebrado. Continuava a desaprovar a eliminação de Calígula, embora o novo Imperador, escolhido pelos pretorianos, se tivesse revelado um governante muito mais avisado. Recordou a confusão que envolvera a subida de Cláudio ao trono. Os oficiais responsáveis pela morte do seu antecessor tinham tido a intenção de devolver o poder ao Senado. Porém, quando o resto dos seus camaradas tinha percebido que a inexistência de um Imperador significava também o fim da Guarda Pretoriana, e de todos os privilégios de que beneficiava quem lhe pertencia, tinham-se apressado a considerar opções para um sucessor, e alguém tinha lançado o nome de Cláudio. Enfermo, gago, estava longe de corresponder à figura ideal de um líder do maior Império do mundo conhecido. Mas a verdade é que se revelara, em termos gerais, um governante justo e eficiente, admitiu o tribuno.
O seu olhar prosseguiu até às últimas cinco secções de auxiliares germanos que marchavam atrás dos vagões. Não tinham propriamente um ar marcial, mas Balbo conhecia o seu valor em combate, e a reputação que tinham adquirido era mais do que suficiente para afastar das mentes dos vulgares salteadores de estrada a ideia de atacar a coluna. De qualquer forma, o perigo, por pequeno que fosse, já tinha desaparecido, agora que o comboio começava a descer para a vasta planície do Pó.
Deu um estalo com a língua e pressionou o flanco da montada com as botas. O cavalo resfolegou e pôs-se em movimento, a passo, e Balbo conduziu-o de novo para a estrada, passando pelas fileiras de auxiliares na vanguarda, e pelo seu comandante, o centurião Armínio, até reocupar a posição à cabeça da coluna. Tinham progredido bem. Ainda não era meio-dia e estavam já a menos de uma hora de Piceno, onde aguardariam pela escolta pretoriana, se esta ainda não tivesse chegado à povoação.
Estavam a cerca de três quilómetros de Piceno quando Balbo ouviu o som de cavalos que se aproximavam. A coluna atravessava um pinhal, cujo aroma forte enchia o ar frio. Um afloramento rochoso encobria a vista da continuação da estrada. Balbo recordou instintivamente os dias que passara no Danúbio, em que o truque favorito do inimigo consistira precisamente em encurralar colunas romanas em locais confinados como aquele. Refreou o cavalo e ergueu a mão no ar.
— Alto! Remover mochilas!
Enquanto os vagões se detinham com um ruído surdo, os auxiliares germanos apressaram-se a pousar na beira da estrada as cangas que levavam aos ombros, onde seguiam dependuradas várias peças de equipamento; cerraram imediatamente as fileiras em torno da coluna. Balbo passou as rédeas para a mão esquerda, preparando-se para empunhar a espada, e perscrutou as sombras que reinavam sob as árvores de ambos os lados da estrada. Nada se movia. O som dos cascos cresceu, ecoando na superfície da estrada pavimentada e nas rochas. Finalmente surgiu à vista o primeiro cavaleiro a descrever a curva por trás do penedo; envergava o manto vermelho de um oficial. O capacete com crista vinha pendurado na sela. Por trás dele apareceram cerca de vinte homens, enrolados em enlameadas capas brancas que os assinalavam claramente como membros da Guarda Pretoriana.
Balbo encheu as bochechas de ar e deixou-o escapar-se com um silvo de alívio.
— À vontade!
Os auxiliares pousaram os escudos e as lanças, e Balbo esperou que a coluna montada se aproximasse. O seu líder refreou o cavalo, passando a um trote que se reduziu a um passo vagaroso nos últimos cinquenta metros.
— Senhor, é o tribuno Balbo?
Balbo examinou cuidadosamente as feições do outro oficial. Aquela face era-lhe familiar.
— Centurão, qual é a senha correta? — demandou.
— As uvas da Campânia estão maduras e à espera da colheita, senhor — replicou o outro, em tom formal.
Balbo fez que sim com a cabeça, ao escutar aquilo que esperava.
— Muito bem. Era suposto que nos aguardasses em Piceno, centurião...
— Gaio Sínio, senhor. Centurião da Segunda Centúria, Oitava Coorte.
— Ah, é isso. — Balbo recordava-se vagamente daquele nome. — Então, o que estás aqui a fazer no meio da estrada?
— Chegámos ontem a Piceno, senhor. Parecia uma cidade abandonada. A maior parte da população tinha ido até um santuário próximo para um festival qualquer, uma coisa local. Por isso, pensei que seria melhor avançar e vir ao seu encontro e dos seus rapazes. — Fez um gesto a designar os auxiliares germanos.
— Não são meus — resmungou Balbo.
— Bom, senhor, avistámo-lo a aproximar-se, e pronto, aqui estamos. Prontos para escoltar as carroças até Roma.
Por momentos, Balbo contemplou o centurião em silêncio. Apreciava soldados que se mantinham fiéis às ordens tal e qual tinham sido recebidas, e não estava certo de aprovar a iniciativa de Sínio para se encontrar com ele em plena estrada, em vez de o aguardar na povoação, como tinha sido combinado. Os planos para a entrega da prata tinham sido cuidadosamente delineados em Roma havia já mais de dois meses, e todos os intervenientes deviam segui-los à risca. No momento em que alguns oficiais resolviam infringi-los por sua própria ideia, os planos começavam a desmoronar-se. Decidiu ali mesmo que havia de ter uma palavrinha com o comandante de Sínio quando regressassem ao quartel dos pretorianos, às portas de Roma.
— Centurião Armínio! — gritou Balbo por cima do ombro. — Venha cá!
O oficial que comandava os auxiliares germanos apressou-se a responder. Era um indivíduo alto e de ombros largos, cuja armadura mal continha a musculatura do torso. Olhou para o tribuno, exibindo uma barba que aos raios do Sol quase dava a impressão de estar em chamas.
— Senhor?
Balbo acenou na direção dos cavaleiros.
— A escolta vinda de Roma. Serão eles a proteger as carroças daqui em diante. Tu e os teus homens podem regressar imediatamente para a Narbonesa.
O germano cerrou os lábios e respondeu num latim com forte pronúncia.
— Senhor, foi-nos ordenado que fizéssemos a troca de escoltas em Piceno. Os rapazes esperavam poder divertir-se esta noite na cidade, antes de voltarem para trás.
— Sim, pois, mas isso já não será necessário. Além disso, duvido bastante que os habitantes locais apreciassem essa invasão de uma horda germana. Sei muito bem como se portam os teus homens assim que emborcam uns copitos a mais.
O centurião Armínio franziu o sobrolho.
— Tratarei de garantir que não provocam estragos, senhor.
— Não o farão de todo. Estou a dar-te uma ordem direta para fazeres meia-volta e regressares à Gália de imediato, estás a perceber?
O outro anuiu lentamente, sem esconder o azedume. Por fim, depois de um curto aceno ao superior, virou-se e encaminhou-se para junto do comboio.
— Peguem nas mochilas! Preparem-se para marchar! Vamos voltar para a Gália, rapazes.
Alguns dos homens resmungaram. Um deles soltou mesmo uma imprecação em tom elevado na sua língua nativa, obrigando o centurião a repreendê-lo com rispidez.
Balbo olhou para Sínio e comentou, em surdina:
— Não podemos permitir que estes bárbaros de cu peludo vão atormentar os pacatos cidadãos.
— Pois não, senhor, tem toda a razão — concordou Sínio. — Já é suficientemente mau que a guarda da cunhagem e dos comboios de prata tenha sido confiada aos germanos. Devia ser trabalho para verdadeiros soldados de Roma, fossem eles legionários ou uma coorte da Guarda.
— Ao que parece, o Imperador não confia muito em nós — atreveu-se Balbo a dizer. — Nos últimos anos houve demasiados oficiais superiores a entrarem em jogos políticos. E depois nós é que temos de levar com isto. Seja como for, não podemos fazer nada. — Empertigou-se sobre a sela. — Os teus homens que formem em redor das carroças. Assim que os auxiliares se retirarem, poderemos prosseguir.
— Sim, senhor. — O centurião Sínio fez a saudação e voltou-se, para transmitir as ordens aos seus homens. À medida que os germanos, no meio de resmungos, formavam numa coluna simples atrás das carroças, os cavaleiros ocupavam as posições em torno do comboio; daí a pouco as duas forças estavam prontas para seguirem os seus respetivos caminhos. Balbo aproximou-se do centurião Armínio para lhe dar algumas derradeiras instruções.
— Vais regressar à Narbonesa o mais depressa possível. Eu não estarei lá para controlar os teus homens, mas não te atrevas a permitir que causem quaisquer problemas nas povoações que atravessarem no regresso. Entendido?
O centurião cerrou os lábios com força e anuiu.
— Muito bem, podes seguir então.
Sem esperar por resposta, Balbo fez o cavalo rodopiar e seguiu na direção oposta para se juntar ao centurião Sínio, que o aguardava à cabeça da coluna. Fez um gesto com o braço, dando ordem para cavaleiros e vagões se colocarem em marcha. Os condutores fizeram estalar as rédeas e os veículos puseram-se em movimento com um profundo som de trovão, vindo das pesadas rodas com cintas metálicas. O martelar dos cascos das mulas e cavalos ajudava a tornar o ruído quase ensurdecedor. Balbo avançou sem olhar para trás até alcançar o penedo que marcava a curva na estrada. Aí chegado, espreitou sobre o ombro e avistou a retaguarda da coluna de auxiliares já a algumas centenas de metros de distância, marchando de regresso à Gália.
— E já vão tarde — murmurou para si mesmo.
As carroças e a sua nova escolta fizeram a curva em redor das rochas e enfrentaram uma nova e longa reta a caminho de Piceno, seguindo ainda uns quatrocentos metros por entre o pinhal. Depois de se ter visto livre das tropas germanas, Balbo sentia o seu humor a melhorar. Refreou o andamento da montada até se ver ao lado do centurião Sínio.
— Então, quais são as novas de Roma?
Sínio pensou por momentos e respondeu com um sorriso divertido.
— A nova esposa do Imperador continua a apertar o nó à volta do velhote.
— Oh? — Balbo franziu o sobrolho perante a grosseira referência à Imperatriz.
— Pois. O que se ouve dizer pelo palácio é que a Agripina mandou o Cláudio despachar as amantes para bem longe. Como é natural, ele não se mostra muito entusiasmado com a ideia. Mas essa é a menor das suas preocupações. Sabe aquele miúdo dela, o Lúcio Domício? Ela anda a espalhar a ideia de que vai ser adotado pelo Cláudio.
— Faz sentido — respondeu Balbo. — Não serve de nada fazer o miúdo sentir-se excluído.
Sínio olhou para ele com ar de algum espanto.
— Não sabe da história a metade, senhor. A Agripina está, de forma muito evidente e pública, a pressionar o Cláudio para que nomeie o jovem Lúcio como seu herdeiro.
Balbo arregalou os olhos. Aquele sim, era um desenvolvimento perigoso: o Imperador já tinha um herdeiro legítimo, Britânico, seu filho da primeira mulher, Messalina. Com aquela medida, nasceria uma clara rivalidade quanto ao acesso ao trono. Balbo abanou a cabeça.
— Por que raio haveria o Imperador de concordar com isso?
— Talvez já não possua a lucidez de outros tempos — sugeriu Sínio. — A Agripina anda a espalhar a ideia de que apenas deseja que Britânico tenha alguém que o proteja, e que não há ninguém melhor para isso do que o seu novo irmão mais velho... Alguém que cuide dos seus interesses depois de o Cláudio esticar. E esse dia já esteve mais longe. O velhote anda magro como um palito e tem um ar frágil. Portanto, quando ele desaparecer, parece que os pretorianos vão ter um novo chefe, e que ele será o jovem Lúcio Domício. Uma reviravolta e tanto, hã?
— Sim. — Balbo manteve-se em silêncio enquanto sopesava todas as implicações daquela novidade. Em criança, o filho do Imperador, Britânico, tinha sido muito popular entre os elementos da Guarda Pretoriana; costumava acompanhar o pai nas visitas ao aquartelamento, envergando uma pequna armadura feita à sua medida e insistia sempre em participar na instrução e no treino com armas, o que divertia enormemente os homens. Mas a criança tinha-se transformado num jovem mais dedicado aos estudos. E agora o jovem Britânico ia ter um competidor nas afeições dos pretorianos.
— E há mais, senhor — continuou Sínio em voz melíflua, deitando uma olhadela sobre o ombro, como que para se certificar de que os homens não o ouviam. — Se realmente lhe interessar ficar a saber.
Balbo olhou intensamente para ele, tentando perceber até que ponto podia confiar no outro oficial. Em anos recentes tinha visto muitos homens condenados à morte por darem demasiada liberdade à língua, e não tinha qualquer vontade de se juntar a esses números.
— Há algum perigo associado ao ato de ouvir o que tens para dizer?
Sínio encolheu os ombros.
— Isso só depende de si, senhor. Ou, mais precisamente, depende do primeiro objeto da sua lealdade.
— A minha primeira e única lealdade é para com o meu Imperador. Tal como deve ser a tua e a de todos os homens na Guarda Pretoriana.
— A sério? — Sínio encarou-o frontalmente, e sorriu. — E eu a pensar que a primeira lealdade de qualquer romano seria sempre para com Roma, antes de tudo o mais.
— Roma e o Imperador são uma e a mesma coisa — retorquiu Balbo, em tom firme. — O juramento que fazemos compromete-nos perante ambos. É perigoso afirmar algo de diferente, e aconselho-te a não voltares a tocar nesse assunto.
Sínio contemplou-o por momentos, mas acabou por desviar o olhar.
— Não importa. Tem razão, senhor, claro.
Sínio deixou a montada ficar para trás, até ficar atrás do seu superior. O comboio alcançava o fim do pinhal, e emergia numa zona de terreno aberto. Balbo não se tinha cruzado com outros viajantes desde a madrugada, e não avistava nenhuns a virem da direção de Piceno. Lembrou-se então do que Sínio dissera a propósito do festival. Pouco à frente, a estrada descia para uma cova na paisagem, e Balbo remexeu-se na sela ao avistar algum movimento por trás de uns arbustos raquíticos.
— Há ali qualquer coisa — disse a Sínio. Ergueu o braço e apontou. — Estás a ver? Ali a uns quatrocentos metros, onde a estrada começa a descer.
Sínio olhou na direção indicada e abanou a cabeça.
— Estás cego ou quê? É evidente que há qualquer coisa ou alguém a mexer-se ali naquela zona. Sim, já vejo agora. Um grupo de pequenos vagões e mulas no meio dos arbustos.
— Ah, sim, senhor, agora já os distingo. — Sínio observou a área por momentos e prosseguiu. — Pode ser uma caravana de mercadores acampada.
— A esta hora do dia? E já tão perto de Piceno? — Balbo fungou, mostrando desdém pelas sugestões. — Não me parece. Vamos lá ver de perto.
Incitou o cavalo, acelerando pela estrada até perto da mata de arbustos que ocupava a depressão. Sínio acenou à secção mais adiantada de cavaleiros para que o seguissem, e imitou o seu superior. À medida que se aproximava, Balbo apercebia-se de que o número de carros era maior do que primeiro pensara, e avistou também um grupo de homens agachado no meio dos arbustos. A ansiedade que tinha sentido antes da troca de escoltas regressou, como se alguém estivesse a espetar-lhe agulhas frias na nuca. Deteve-se a uns cem passos dos carros e homens mais próximos, à espera que Sínio e os seus homens o alcançassem.
— Isto não me agrada. Aquela cambada está a preparar alguma, aposto. Sínio, diz aos teus homens para estarem a postos.
— Sim, senhor — respondeu Sínio, sem ponta de entusiasmo.
Balbo escutou o som de uma espada a ser desembainhada e agarrou com força as rédeas enquanto se preparava para liderar o avanço dos guardas montados.
— Desculpe, senhor — pronunciou Sínio em voz calma, enquanto enterrava o gládio nas costas do tribuno, entre as omoplatas. A ponta da arma rasgou a capa e a túnica e prosseguiu, dilacerando a carne e ossos até atingir a espinha do oficial. A cabeça de Balbo deu um solavanco com o impacto, e ele soltou uma exalação de espanto, ao mesmo tempo que os dedos, embora crispados, se lhe abriam, soltando as rédeas. Sínio deu uma forte torção à espada antes de a retirar. O tribuno caiu para a frente sobre a sela, os braços descaídos ao longo dos flancos do cavalo. O animal espantou-se, e esse movimento fez com que Balbo escorregasse da sela. Tombou pesadamente no solo e rebolou até ficar de costas. Fitou o céu com os olhos muito abertos, enquanto tentava dizer alguma coisa.
Sínio virou-se para os seus homens.
— Tratem dos condutores, e tragam as carroças para aqui. — Olhou para baixo, para o tribuno. — Peço perdão, senhor. Era um bom oficial, e não merecia este fim. Mas tenho as minhas instruções.
Balbo tentou falar, mas não conseguiu emitir qualquer som. Sentia frio e medo, coisa que não lhe sucedia havia anos. A visão começou a turvar-se-lhe, e percebeu que a morte se aproximava. Já não seria para ele o tranquilo fim de vida em Pompeia, e sentiu pena por nunca mais voltar a ver o irmão. A vida do tribuno esvaiu-se rapidamente, e o seu olhar ficou preso ao céu enquanto o corpo jazia imóvel sobre o solo. Na estrada, por trás dele, ouviram-se alguns gritos de surpresa e choque que rapidamente foram cortados quando os condutores das carroças foram eliminados sem delongas. A coluna prosseguiu depois até junto dos carros que esperavam. Sínio virou-se para um homem de físico poderoso que o seguia e indicou-lhe o cadáver do tribuno.
— Céstio, põe-no numa das carroças com os outros. Quero dois homens adiantados na estrada, para não ter surpresas. Outros dois para voltarem àquela curva lá atrás e se certificarem de que os auxiliares não se armaram em espertos e resolveram vir gozar uma folga privada em Piceno.
Os homens com os carros saíram de entre os arbustos e alinharam os veículos mais pequenos na estrada. Seguindo as instruções de Sínio, os baús foram rapidamente retirados das carroças e passados para os carros, um por cada. Assim que ficaram bem acondicionados, foram cobertos com fardos de panos baratos, sacas de cereal e montes de trapos velhos. As equipagens de mulas que tinham puxado as carroças foram desatreladas, e os animais foram distribuídos pelos carros para puxar a pesada carga. Depois de vazios, os vagões foram levados para o meio da vegetação e as rodas foram-lhes retiradas, de forma a ficarem mais baixos e escondidos, e ser impossível vislumbrá-los a partir da estrada. Os cadáveres foram levados para longe e lançados a uma fossa escavada em terreno lamacento, e depois cobertos com ramos secos. Por fim os homens reuniram-se à volta dos carros, enquanto Sínio e mais alguns cortavam vários ramos para disfarçar as aberturas na vegetação, nos locais por onde os vagões tinham sido empurrados, e para apagar as marcas dos rodados. A fina camada de gelo tinha impedido que se formassem sulcos na terra.
— Está bom assim — decidiu Sínio, atirando fora as ramagens que tinha usado. — Senhores, é altura de trocarmos de roupas!
Tiraram apressadamente as túnicas e capas militares e trocaram-nas por vestes civis e variadas, em todos os estilos e cores. Quando os uniformes foram dobrados e arrumados em fardos colocados por trás das selas, Sínio contemplou o grupo. Assentiu, satisfeito; davam todo o ar de não passar de um grupo de mercadores e comerciantes como outros que viajavam com regularidade entre as cidades e povoações da Itália.
— Todos têm as vossas instruções. Vamos sair daqui em grupos separados. Depois de passarem Piceno, sigam os caminhos que vos foram indicados até ao armazém lá em Roma. Ver-nos-emos de novo quando lá chegarem. Vigiem de perto os carros. Não quero que nenhum larápio de meia-tigela dê de caras com o conteúdo dessas arcas. Sejam discretos, desempenhem os vossos papéis, e ninguém suspeitará de nada. Entendido? — Olhou em redor. — Ótimo. Vamos lá a pôr os primeiros a caminho!
Ao longo da hora seguinte, os carros foram deixando a depressão na estrada, sozinhos ou em grupos de dois ou três, a intervalos irregulares, e intercalados com os cavaleiros. Alguns dirigiram-se a Piceno, outros mudaram de direção na encruzilhada à entrada da cidade, rodeando-a por leste ou ocidente e seguindo um caminho indireto para Roma. Quando o último carro partiu, Sínio passou uma última revista ao local. Viam-se alguns rastos feitos pelos carros à partida, muito mais pesados do que antes, e pelos cascos de mulas e cavalos, mas duvidava que pudessem atrair alguma atenção da parte dos viajantes que estivessem a chegar ou a deixar Piceno.
Com um breve aceno de satisfação, Sínio dirigiu a sua montada para a estrada e conduziu-a a passo indolente a caminho da povoação. Pagou a portagem aos guardas à porta da cidade e parou numa taberna para comer uma tigela de guisado e beber uma caneca de vinho quente antes de prosseguir viagem. Deixou a cidade pelo portão sul e seguiu pela estrada de Roma.
A tarde já ia avançada quando descortinou uma pequena coluna de cavaleiros em mantos brancos, que vinha de sul. Puxou o capuz da sua túnica castanha e gasta para cima da cabeça, de forma a esconder as feições, e ergueu uma mão à laia de saudação quando se cruzou com os pretorianos que iam ao encontro do comboio vindo da Narbonesa. O oficial que comandava a coluna ignorou o gesto, e Sínio sorriu para si mesmo quando o imaginou a tentar explicar aos seus superirores em Roma o desaparecimento das carroças e das arcas de prata que trasportavam.
2
Óstia, janeiro de 51 d.C.
O mar estava agitado e mostrava um tom cinzento, exceto onde ténues véus de espuma branca se elevavam no ar, levantados pela forte brisa das cristas das vagas que cresciam à medida que se aproximavam da margem. Acima, também o céu se apresentava carregado, coberto por uma ininterrupta cortina de nuvens baixas que se estendia até ao horizonte. A ajudar ao tom deprimente do cenário, caía uma chuva fina e fria, persistente, que depressa tinha ensopado o cabelo escuro do centurião Macro, colando-lho ao escalpe enquanto ele contemplava o porto. Óstia tinha mudado profundamente desde a última vez que ali estivera, uns anos antes, quando regressara da campanha na Britânia. Nesse tempo, o porto pouco mais fora do que um cais exposto aos elementos onde se fazia o transbordo de passageiros e carga, que iam ou vinham de Roma, uns trinta e poucos quilómetros para o interior segundo o curso do Tibre. Uma série de pontões de madeira projetavam-se da margem para haver onde desembarcar os produtos importados de todo o Império. Um fluxo bastante menor de exportações deixava a Itália para as distantes províncias sob o domínio de Roma.
O porto encontrava-se agora envolto em obras, consequência de um vasto projeto de desenvolvimento ordenado pelo Imperador, parte das suas ambições de fomentar o comércio. Ao contrário do seu antecessor, Cláudio preferia usar o tesouro público para o bem comum, em vez de o delapidar em luxos absurdos. Dois grandes molhes estavam em construção, crescendo como braços titânicos que abraçavam as águas do novo porto. O trabalho não se interrompia por causa das inclemências do tempo no período invernal, e o olhar de Macro repousou por momentos nas infindas filas de pobres escravos acorrentados que empurravam grandes blocos de pedra sobre rolos de madeira até ao fim dos molhes, onde eram lançados ao mar. Bloco a bloco, construía-se assim uma muralha para proteger as embarcações dos assaltos do mar. Mais ao largo ainda, tinha sido criado um quebra-mar. O proprietário da estalagem onde ele e o seu amigo Cato estavam alojados dissera-lhe que uma embarcação, das maiores que alguma vez tinham sido construídas, fora carregada com grandes pedregulhos e afundada, para fornecer as fundações do quebra-mar. Depois tinham sido lançados mais blocos sobre o convés até emergirem da água, e agora, a pouco e pouco, erigia-se ali um farol. Macro mal conseguia distinguir os pequenos vultos nos distantes andaimes, enquanto eles laboravam arduamente para terminar mais um nível do edifício.
— Antes eles do que eu — resmungou para si mesmo, enquanto puxava o manto sobre os ombros, numa tentativa de melhor se proteger da chuva.
Todas as manhãs dos últimos dois meses, tinha dado aquele passeio ao longo da margem, e o seu interesse pela evolução dos trabalhos no porto tinha ido diminuindo com regularidade ao longo do tempo. O porto, como era normal, tinha um belo conjunto de tabernas e bares bem animados e próximos dos locais de atracagem, para aproveitar ao máximo a clientela de marinheiros regressados de viagens mais ou menos longas e com dinheiro fresco no bolso. Na maior parte do ano, o veterano não teria tido falta de gente interessante com quem partilhar bebidas e histórias. Mas nos meses de inverno o tráfego naval era reduzido, pelo que o porto andava tranquilo e os bares eram frequentados apenas pelos clientes do costume, aqueles para quem o álcool era um bem essencial. A princípio, Cato não se importara de o acompanhar nuns copos de vinho aquecido, mas o jovem tinha começado a meditar sobre a situação: a mulher com quem planeava casar estava a um dia de marcha, em Roma, mas ele via-se impedido de a ir visitar ou até mesmo de a informar da sua presença em Óstia pelas estritas ordens que recebera do palácio imperial. Macro sentia pena do amigo, já que havia quase um ano que Cato não estava com Júlia.
Antes de chegarem ao porto, Macro e Cato tinham estado no Egito, onde Cato se vira obrigado a assumir o comando de uma força francamente impreparada para repelir uma vaga de invasores núbios. Tinha sido por pouco, refletiu Macro. Tinham regressado à península itálica na expectativa de serem justamente recompensados pelos seus esforços. Cato mais do que merecia ver a sua promoção a prefeito confirmada, tal como Macro merecia poder escolher a legião em que queria ser colocado. Ao invés, depois de apresentarem um relatório a Narciso, o secretário imperial, na ilha de Capri, tinham sido mandados para ali, para aguardarem novas ordens. Fora identificada uma nova conspiração para derrubar o Imperador, e o secretário imperial precisava da ajuda de Macro e Cato para neutralizar a ameaça. As ordens que Narciso lhes dera eram bem explícitas. Deviam permanecer em Óstia, alojados sob nomes falsos, até lhes chegarem novas instruções. O estalajadeiro era um liberto que tinha servido no palácio imperial em Roma antes de receber a liberdade e uma pequena gratificação, suficiente para se instalar em Óstia com aquele pequeno negócio. O secretário imperial confiava nele para tratar dos dois hóspedes sem fazer muitas perguntas. Era imperioso que a sua presença fosse mantida em segredo de toda a gente em Roma. Narciso não mencionara sequer o nome de Júlia Semprónia. Cato compreendera perfeitamente o alcance daquelas palavras e, nos primeiros tempos, tinha contido a sua frustração. Mas depois o tempo começara a esticar: passou um mês, depois dois, e continuava a não chegar uma nova palavra de Narciso, o que tinha levado ao limite a paciência do jovem oficial.
A única informação que Narciso lhes facultara referia que a conspiração contra o Imperador envolvia uma obscura organização de conjurados cujo objetivo era devolver o poder ao Senado. O mesmo Senado que fora diretamente responsável por conduzir a República a décadas de sangrenta guerra civil, depois do assassinato de Júlio César, considerou Macro com azedume. Não se podia confiar nos senadores, o poder não podia cair-lhes de novo nas mãos. Gostavam demasiado dos seus jogos políticos, e pouco ligavam às consequências que as suas atividades lúdicas produziam para o povo. Claro que havia honrosas exceções, reconheceu para si mesmo. Homens como o pai de Júlia, Semprónio, e Vespasiano, que em tempos comandara a Segunda Legião em que Macro e Cato tinham servido durante a campanha na Britânia. Dois homens decentes, de facto.
Deitou um último olhar aos escravos que trabalhavam no quebra-mar e cobriu-se com o capuz da capa militar. Virou-se e encetou o regresso ao porto, ao longo da estrada que seguia junto ao mar. Também ali se avistavam as evidências do novo surto de desenvolvimento de Óstia. Vários armazéns de grandes dimensões tinham sido edificados junto ao novo cais, e outros estavam ainda em construção em áreas que tinham sido arrasadas para arranjar espaço para os novos projetos. Percebia-se que quando o trabalho estivesse concluído, aquele seria um porto moderno e eficiente. Mais uma prova do poder e da riqueza de Roma.
O caminho que seguia juntou-se à estrada que levava ao porto, e as suas botas militares de solas cardadas denunciaram, pelo ruído, que tinha passado a caminhar por uma via pavimentada. Atravessou a porta da cidade, com uma ligeira troca de acenos com a sentinela, que já tinha aprendido a evitar cometer a asneira de exigir a portagem de entrada a um legionário. Um dos benefícios de ser um soldado era estar isento de algumas das normas mais irritantes que governavam a vida dos civis. O que era pura e simplesmente justo, considerou Macro, uma vez que era o sacrifício dos soldados que tornava possíveis a paz e a prosperidade que se viviam no Império. Tirando, evidentemente, aqueles ociosos poltrões que passavam os dias em aconchegados postos de guarnição em regiões mais que apaziguadas como a Grécia, ou como aqueles convencidos imbecis da Guarda Pretoriana. Fez uma careta. Aqueles tipos recebiam vez e meia o salário dos legionários, apesar de não terem nada que fazer para lá de se aperaltarem para uma ou outra cerimónia e de vez em quando tratarem de despachar com eficiência quem se visse condenado como inimigo do Imperador. As hipóteses de enfrentarem alguma ação real eram escassas. Isto dito, tivera ocasião de os ver em ação numa ocasião, na Britânia, durante a breve viagem que o Imperador empreendera para recolher o crédito pelo sucesso da campanha. Tinham demonstrado um certo valor em combate, admitiu a custo.
Os blocos de apartamentos que ladeavam a rua por onde seguia, de três e quatro andares de altura, ajudavam a esconder a já diminuta luz matinal, e davam à via que levava ao coração da cidade uma atmosfera fria e escura. Ao chegar à encruzilhada de onde irradiavam as ruas que levavam aos outros bairros de Óstia, Macro virou à direita, seguindo pela longa avenida que atravessava o centro, uma área relativamente pequena onde se apinhavam os principais templos, as casas de banhos mais luxuosas e o fórum, como se competissem pela atenção dos cidadãos. Era dia de mercado, pelo que a rua estava congestionada, com mercadores e funcionários municipais a tratarem dos seus afazeres. Uma fila de escravos acorrentados pelos tornozelos seguia a caminho dos calabouços do mercado, ocupando a borda da estrada sob a vigilância atenta de um punhado de brutamontes equipados com pesados cajados. Macro atravessou o fórum, que se estendia dos dois lados da rua, virou para uma via lateral, e depressa avistou a imponente fachada colunada da Biblioteca de Menelau, onde tinha combinado encontrar-se com Cato. A biblioteca fora oferecida à cidade por um liberto grego, que tinha feito uma fortuna na importação de azeite. Estava bem apetrechada, com uma mistura de livros arrumados de forma bastante eclética nas estantes.
Macro lançou o capuz para trás quando começou a subir os degraus que levavam à entrada. No interior deu imediatamente de caras com um funcionário sentado a uma secretária, aquecido por um braseiro próximo. Assim que viu que o novo visitante era um soldado, os olhos do homem semicerraram-se, denunciando alguma desconfiança.
— Senhor, posso ajudá-lo?
Macro limpou a humidade da testa e anuiu.
— Procuro uma pessoa. Um soldado, como eu.
— Sim? — O funcionário arregalou uma sobrancelha. — Senhor, tem a certeza de que veio ao local correto? Isto é uma biblioteca.
Macro encarou-o sem perder a fleuma.
— Sim, já tinha reparado.
— Senhor, se me permite, sugiro que talvez venha a ter mais sucesso na procura do seu camarada se se dirigir a um dos estabelecimentos na proximidade do fórum. Creio bem que esse tipo de local é bastante mais popular entre a soldadesca do que esta biblioteca.
— Pois, mas acredita quando te digo que combinei encontrar-me aqui com esse meu amigo.
— Bem, senhor, não é de todo habitual que este local seja escolhido como ponto de encontro para os soldados — insistiu o funcionário, marcando bem as palavras.
— Será verdade, mas este meu amigo também não é propriamente um soldado típico. — Macro sorriu. — Portanto diz-me, viste-o? E limita-te a responder à pergunta, sim? Não é preciso olhares-me de alto, a não ser que queiras passar uns minutos mais animados.
O outro percebeu que aquele entroncado visitante de ar rude não se ia deixar enxotar. Limpou a garganta e pegou numa tábua encerada e num estilete, tentando dar a entender que tinha sido interrompido quando se preparava para concluir uma qualquer tarefa burocrática absolutamente vital e de grande complexidade.
— Senhor, entrei de serviço há pouco tempo. Se o seu amigo se encontra nas nossas instalações, deve ter entrado mais cedo, já que eu não o vi, e não tenho qualquer ideia do seu paradeiro. Sugiro portanto que o procure.
— Estou a perceber — replicou Macro, com toda a calma. Deixou-se estar imóvel por momentos, e depois debruçou-se sobre a secretária, deixando que a bainha da capa tombasse sobre a tábua em que o funcionário escrevinhava. O homem parou e olhou para cima, ansioso.
— Senhor?
— Um último conselho, à laia de despedida — ameaçou Macro. — Olha, rapaz, se fosse a ti, pensaria seriamente antes de tratar as pessoas com todo esse desdém. Voltas a usar esse tom comigo, e pode muito bem suceder que eu acabe por confundir a tua bela e arrumada biblioteca com um dos tais animados estabelecimentos de que falavas... Percebes?
O outro engoliu em seco.
— Sim, senhor. As minhas desculpas. Peço-lhe que se sinta à vontade para procurar o que quiser na biblioteca, as nossas instalações estão à sua inteira disposição.
— Ora aí está! — Macro lançou um sorriso. — Custa tanto ser agradável com as pessoas como ser um completo cretino, não é?
O homem olhou em redor com ar nervoso, para ver se algum dos seus colegas estava por perto, mas tal não era o caso. Olhou de novo para o soldado que o atormentava, com ar desanimado.
— Sim, senhor. É como diz.
Macro afastou-se por fim, a esfregar as mãos para as aquecer. Tinha um ódio inesgotável por aquela gentinha que ocupava posições menores, cujo único propósito neste mundo parecia ser prejudicar os que tinham coisas realmente importantes a fazer.
A biblioteca tinha um vasto átrio, com passagens em todas as paredes. Depois de uma breve hesitação, Macro dirigiu-se à do meio, oposta à entrada; os seus passos ecoavam nas altas paredes. Entrou num salão comprido, forrado a estantes repletas de rolos de escritos. O teto, uns dez metros acima do chão lajeado, tinha sido pintado com cenas náuticas, que eram iluminadas pelas estreitas janelas colocadas bem ao cimo das paredes. Ao centro da sala havia uma fila de mesas e bancos, e uma vez que era ainda cedo naquela manhã fria, estavam apenas três pessoas naquele espaço: dois homens idosos debruçados sobre um pergaminho que discutiam em surdina, e a inconfundível e magra figura de Cato, embrulhado na sua capa militar. Estava sentado na ponta da sala, onde uma faixa de luz lhe dava alguma iluminação, ainda que pouco adequada para examinar as largas folhas de papiro que tinha à sua frente.
O barulho claro das botas de Macro no soalho fez com que os dois velhos abandonassem a sua discussão e encarassem com ar carrancudo o recém-chegado, que de forma tão evidente perturbava o silêncio habitual na biblioteca. Embora Cato não pudesse ter deixado de ouvir o som das botas do amigo, continuou a ler até Macro estar bem próximo, e só então colocou um dedo sobre o papiro para marcar onde ia e olhou para cima. O rosto parecia ainda mais magro, e ele olhou para Macro sem qualquer expressão enquanto este se sentava no banco do outro lado da mesa. O jovem oficial tinha sofrido uma grave ferida no rosto quando da sua passagem pelo Egito, e agora exibia uma cicatriz esbranquiçada que vinha da testa, atravessava o nariz e descia pela face. Apesar do aspeto dramático, não o tinha realmente desfigurado. Na opinião de Macro, era até uma marca de que o amigo se podia orgulhar. Algo que o distinguia de outros oficiais de ar quase imberbe que serviam o Imperador, e que o denunciava como o veterano experimentado em que se tinha tornado, desde o longínquo momento em que, havia oito anos, se juntara à Segunda Legião, então apenas mais um recruta desajeitado.
— Encontraste o que procuravas? — Macro acenou para as folhas à frente de Cato, antes de apontar para as estantes repletas na parede. — Há aqui material mais do que suficiente para te manter entretido, hã? Deve ajudar a passar o tempo.
— Passar até quando, é o que me pergunto. — Cato ergueu a mão livre e coçou levemente a face, no ponto onde a cicatriz terminava. — Há quase um mês que não sabemos nada do Narciso.
Cato enviara uma mensagem ao secretário imperial através do estalajadeiro, pedindo para saber porque é que ele e Macro tinham de ficar confinados a Óstia. A resposta fora seca, e dissera-lhes apenas para esperarem. O aborrecimento de Cato perante a espera forçada no porto alternava com a fúria que sentia por ser impedido de ver Júlia. O que não deixava de o atormentar era a possível reação dela à cicatriz. Estaria disposta a aceitá-lo com aquele aspeto, e recebê-lo-ia nos seus braços de novo? Ou teria alguma reação de repulsa? Pior ainda, Cato temia que ela tivesse pena dele e por isso se lhe oferecesse. Esse pensamento destroçava-o por dentro. Não podia saber qual a resposta da jovem antes de a voltar a ver, e nem sequer a podia preparar para o encontro, uma vez que Narciso o proibira de a tentar contactar.
— O que é que estás para aí a ler? — interrompeu-o Macro.
Cato concentrou-se, esquecendo os devaneios.
— Uma cópia da gazeta de Roma. Estive a pôr-me a par dos acontecimentos na cidade nos últimos meses, para ver se há algum indício do que faz com que o Narciso precise de nós.
— E?
— Nada que salte à vista. Apenas o habitual rol de cerimónias, anúncios de nomeações e nascimentos, casamentos e mortes dos grandes e poderosos. Havia por aqui uma menção ao senador Semprónio. Foi louvado pelo Imperador por ter sufocado a revolta dos escravos em Creta.
— E nem uma referência ao nosso papel nessa história, aposto — resmungou Macro.
— Por acaso, não.
— Que grande surpresa. Mais alguma coisa digna de nota?
Cato olhou de relance para as folhas à sua frente e abanou a cabeça.
— Nada de importante, a não ser... — Pesquisou por entre as folhas, estudando cada uma brevemente, até que extraiu uma. — Cá está. Um relatório de há duas semanas, que dá conta de que um dos oficiais da Guarda foi emboscado e morto por salteadores, perto de Piceno. Os assaltantes não foram encontrados... Deixa uma viúva chorosa e um filho pequeno, et cetera. — Cato levantou de novo o olhar. — É tudo.
— Não parece ter nada a ver com a nossa presença aqui — comentou Macro.
— Pois, suponho que não. — Cato recostou-se e espreguiçou-se, enquanto bocejava longamente. Quanto terminou, apoiou os cotovelos na mesa e olhou para Macro. — E assim se passa mais um dia na maravilhosa cidade de Óstia. Como é que nos vamos distrair hoje? No teatro, nada. Está demasiado frio para ir à praia e nadar. A maior parte dos banhos públicos estão fechados até que o negócio anime quando chegar a primavera, e o nosso bom amigo Espúrio, esse maravilhoso anfitrião, recusa-se a acender a lareira para aquecer a casa antes da chegada do entardecer.
Macro soltou uma gargalhada.
— Caramba, estás mesmo com um humor miserável! — Pensou por momentos e arqueou as sobrancelhas. — Olha, já te digo. Segundo o Espúrio, há material novo no bordel que fica ao pé dos Banhos de Mitra. Queres ir até lá ver o que há? Sempre nos mantinha quentes e satisfeitos. Que dizes?
— Tentador. Mas não me apetece.
— Uma porra. Estás é a guardar-te para aquela miúda, não é?
Cato encolheu os ombros. A verdade era que não encarava de bom grado a possibilidade de visitar as prostitutas repletas de doenças que serviam os habitantes locais e os marinheiros de passagem. Se apanhasse uma maleita com alguma delas, seria o fim de qualquer hipótese de uma união feliz com Júlia.
— Vá o Macro, se lhe apetece mesmo. Por mim, vou voltar à estalagem, ver se como qualquer coisa, e depois vou instalar-me num canto e ler um bocado.
— Ler um bocado — repetiu Macro, descrente. — Miúdo, mas o que tens tu nas veias afinal? Sangue, ou um caldo aguado?
— Seja qual deles for, vou ficar no quarto a ler. Pode fazer o que bem lhe apetecer.
— E vou fazê-lo. Assim que tiver comido qualquer coisa para retemperar as forças.
Os bancos rasparam no chão quando os dois soldados se puseram de pé. Cato juntou as folhas das gazetas e devolveu-as à estante antes de se dirigir para a porta com Macro, não evitando perturbar de novo os outros dois homens com os seus passos largos.
— Chhhiu! — Um deles levou um dedo aos lábios. — Isto é uma biblioteca, não sei se sabem!
— Biblioteca! — ripostou Macro, com ar enojado. — Um bordel de ideias, isso sim. A única diferença é que uma biblioteca nunca nos há de deixar com um ar satisfeito e um calorzinho cá dentro, pois não?
— Lamentável! — explodiu o outro idoso. Virou-se para Cato. — Senhor, por favor, peço-lhe que faça o obséquio de levar o seu companheiro para longe desta sala.
— Ele não precisa de incentivo, acredite. Vamos, Macro. — Cato pegou no amigo pelo braço e orientou-o para a saída do edifício.
. . .
O cozinheiro de Espúrio, um antigo marinheiro que tinha perdido uma perna num acidente, serviu-lhes um guisado ralo com centeio e nacos de carne que talvez tivessem em tempos pertencido a uma peça de borrego bem temperada; era difícil de dizer, porque se alguma vez tinham sabido a alguma coisa, fora já há muito tempo, e a textura que apresentavam era igualzinha à de uma casca de árvore bem ensopada. Mas pelo menos a comida estava quente, e sempre lhes acalmava o apetite. Quando Cato pediu pão, o cozinheiro resmungou, afastou-se e regressou com um pão seco e velho que pousou na mesa com estrondo.
— Espúrio! Vem cá! — gritou Macro, assustando os outros quatro clientes que jantavam na sala. O estalajadeiro estava ao balcão, a colocar as suas canecas de barro barato nas prateleiras. Voltou-se, irritado, e lá se dirigiu à mesa dos dois oficiais.
— O que se passa? Importa-se de manter a voz mais baixa?
Macro fez um gesto designando a tigela de guisado, que ainda continha cerca de um terço da porção inicial.
— Até é provável que eu esteja com fome suficiente para comer esta porcaria, mas quando me é apresentado um pão que eu não seria capaz de forçar pela goela da porra de um porco, aí digo que já chega. — Pegou no pão e bateu-o no tampo da mesa. — Foda-se, rijo que nem uma pedra.
— Ora, ensopem-no no guisado. Depressa ficará mole — sugeriu Espúrio, com ar amigável.
— Quero pão decente — retorquiu Macro, com firmeza. — Cozido de fresco. E quero-o agora. Já.
— Desculpe, mas não há nenhum.
Macro puxou o banco para trás. Prosseguiu em tom baixo, para ter a certeza que os outros clientes não o escutavam.
— Olha, disseram-te para tratares de nós, e não tenho dúvidas de que estás a ser bem pago para nos forneceres cama e comida.
— Pois sim; recebo uma ninharia para vos aturar aos dois — protestou Espúrio. — Ou melhor, receberei, quando vocês partirem e o Narciso pagar a conta. Enquanto isso não sucede, é o meu lucro que sofre.
Macro sorriu.
— Aquela víbora do Narciso nunca dá mais uma moeda do que tem de ser, e é pelo menos tão provável que te venha a enganar como que venha a cumprir a sua palavra, como nós já tivemos ocasião de comprovar em diversas ocasiões.
— Macro, já chega — recriminou-o Cato. — Não vamos discutir as nossas atividades passadas.
Macro virou-se e deitou um olhar furibundo ao amigo, mas depressa se acalmou, e a sua expressão mudou.
— Seja. Mas não me agrada mesmo nada ser deixado pendurado em Óstia, e forçado a confiar nesta espelunca para me dar abrigo e comida. Cato, isto não está certo.
— Claro que não, mas não há nada que possamos fazer quanto a isso. — Cato virou-se para o estalajadeiro. — Ora bem, nós percebemos que não te agrade que a nossa presença te tenha sido imposta. Também a nós pouco agrada esta situação. Mas para ver se conseguimos aturar-nos uns aos outros sem haver problemas, sugiro que tentes arranjar maneira de nos alimentar um bocadito melhor. Para começar, proponho que arranjes ao meu amigo aquilo que ele pediu, pão fresco.
Espúrio respirou fundo, e anuiu com um ligeiro movimento da cabeça.
— Vou ver o que consigo arranjar. Desde que me prometam que não vão arranjar problemas com o resto dos clientes.
Cato assentiu.
— Prometemos.
O homem regressou ao balcão e começou a falar em voz baixa com o cozinheiro. Cato lançou um sorriso a Macro.
— Está a ver o que se consegue com um bocadinho de persuasão amigável?
Macro fungou.
— Tem os seus usos. Mas terei de acrescentar que já comprovei que de vez em quando a aplicação da força também pode produzir resultados muito aceitáveis.
— Não no caso em que não se quer atrair a atenção geral sobre a nossa pessoa.
Macro abanou a cabeça.
— Cato, nesta altura até me agradava um bom bocado de atenção. Este lugar está a dar comigo em doido. Já é mau termos de ficar aqui plantados à espera que o Narciso resolva alguma coisa. Mas o pior é que o sacana não nos deu senão uma mísera parte do salário atrasado que temos acumulado, e nestas condições não podemos sequer comer decentemente ou procurar acomodações mais confortáveis.
Cato manteve-se em silêncio por momentos.
— Não tenho dúvidas de que isso é propositado, para nos amolecer um bocado.
Antes que Macro pudesse responder, ouviu-se barulho de rodas de vagão na rua, abruptamente interrompido quando o veículo se imobilizou em frente à estalagem. Espúrio apressou-se a acorrer à porta, abriu uma fresta e saltou rapidamente para o exterior, fechando-a atrás de si. Macro e Cato ouviram uma rápida troca de palavras abafadas, e então o veículo prosseguiu a marcha, rodeando o edifício até às traseiras, onde existia um pequeno pátio com lugar para os cavalos dos viajantes que escolhiam passar a noite no estabelecimento.
— Novos clientes para esta espelunca — concluiu Macro. — Não achas que os devemos avisar quanto à qualidade do serviço?
— Deixe lá isso — aconselhou Cato, farto. Fixou o olhar na tigela que tinha à frente, antes de pegar relutantemente na colher e continuar a sorver aquele guisado intragável. Pouco depois o cozinheiro reapareceu, um tanto afogueado, e dirigiu-se à mesa coxeando ligeiramente, para lhes apresentar um pão ainda quente. Macro cheirou e olhou para o amigo com ar de espanto.
— E não é que está acabadinho de cozer?
Pegou no pão, partiu-o ao meio e lançou um pedaço na direção de Cato, antes de se lançar de novo e com evidente deleite ao ataque do caldo ainda fumegante. Das traseiras da estalagem vinha o som de vozes e de cadeiras a serem arrastadas, e levou algum tempo até que Espúrio voltasse a emergir da porta baixa por trás do balcão. Olhou em redor para os outros clientes e depois atravessou a sala, dirigindo-se à mesa onde se sentavam os dois amigos.
— O que foi agora? — resmungou Macro. — Aposto que o sacripanta nos vai pedir para mudarmos de quarto, para ceder o nosso ao novo hóspede.
— Não me parece.
Espúrio debruçou-se sobre eles e falou quase em surdina.
— Sigam-me.
Cato e Macro trocaram um rápido olhar, e Cato retorquiu:
— Porquê?
— Porquê? — Espúrio franziu o sobrolho. — Senhor, venha, sim? Depressa saberá porquê. Aqui não posso dizer mais nada. — Acenou muito ligeiramente na direção dos outros ocupantes da sala. — Se me faço entender.
Macro encolheu os ombros.
— Não, nem por isso.
— Bom — decidiu Cato. — Vamos lá.
Deixaram o que restava da refeição e levantaram-se para seguir o homem até à porta que dava para os fundos da casa. Os outros clientes olhavam-nos com curiosidade à medida que passavam, facto que não escapou a Cato, que reagiu com um sorriso divertido. Espúrio passou primeiro pela porta, seguido por Macro e depois por Cato, que teve de se abaixar para passar. Do outro lado havia uma pequena sala, iluminada por uma solitária lamparina. À meia-luz, Cato reparou que as paredes estavam cobertas por ânforas de vinho e cestas com hortaliças, e que de um gancho pendia um saco de rede repleto de pão fresco, ao lado de duas peças de carne curada. Era evidente que o estalajadeiro se alimentava perfeitamente, embora os seus clientes não pudessem dizer o mesmo. Na ponta da sala havia outra porta, ligeiramente aberta, e a passagem estava bem iluminada por uma lareira que ardia na sala contígua. Espúrio entrou, de novo seguido por Macro, que soltou imediatamente uma imprecação. A nova sala era ampla, e no centro via-se uma mesa larga. O fogo onde eram preparadas as refeições ardia bem vivo sob uma grelha de ferro, e lançava uma luz rósea por todo o compartimento. Sentada à cabeceira da mesa via-se uma figura de pequeno porte embrulhada num manto sem quaisquer ornamentos. Levantou o olhar do pão e queijo que lhe tinham sido postos à frente e sorriu ao avistar Macro e Cato.
— Bem aparecidos, meus senhores. Muito agradecido por terem vindo juntar-se a mim! — Narciso acenou-lhes para que se sentassem no banco do outro lado da mesa. — Aliás, sou eu que me junto a vós.
— O que está aqui a fazer? — indagou Macro. — Já tinha começado a temer que estivesse inclinado a deixar-nos pendurados para sempre.
— Centurião, é de facto um prazer voltar a ver-te — retorquiu Narciso, sem lhe dar troco. — A tua espera terminou. O vosso Imperador precisa de vós. E agora mais do que nunca...
3
Cato respondeu à saudação do secretário imperial com um olhar frio. Apesar de ter nascido como escravo do palácio imperial, Narciso trabalhara duramente e fora libertado por Cláudio, anos antes de este se ter tornado Imperador. Como liberto, o estatuto social de Narciso era inferior ao do mais humilde dos cidadãos de Roma, mas sendo um dos mais próximos conselheiros do Imperador, detinha mais poder e influência do que qualquer um dos aristocratas que se sentavam no Senado. E era também Narciso quem controlava a vasta rede de espiões dedicada a identificar qualquer ameaça contra o seu senhor. Fora nessa posição que recorrera aos serviços de Cato e Macro em ocasiões anteriores, e que agora se preparava para o fazer de novo, refletiu Cato com amargura.
Depois de o estalajadeiro ter trazido um jarro de vinho e três copos, Narciso dispensou a sua presença.
— Por agora é tudo, Espúrio. Trata de garantir que não somos interrompidos nem escutados.
— Sim, senhor. — O homem inclinou a cabeça e virou-se para sair. Ao chegar à porta, parou. — Senhor?
— O que é?
— A minha filha. Há alguma notícia dela?
— Pergila, não era? Sim, ainda estou a tentar convencer o Imperador a conceder-lhe a liberdade. Estas coisas levam o seu tempo. Trata de cumprir a tua parte do acordo, e eu farei o que puder por ela. — Narciso fez um gesto com a mão. — Agora, deixa-nos.
O homem afastou-se, e Narciso esperou que o som dos seus passos se desvanecesse e a porta do pequeno compartimento adjacente se fechasse.
— Um servidor leal e bastante útil, mas às vezes torna-se exigente. Bom, já chega de falar do Espúrio! — Narciso debruçou-se sobre a mesa e acenou na direção do jarro. — Macro, podias encher-nos os copos. Devíamos celebrar esta reunião de velhos amigos.
Macro abanou a cabeça.
— Meu amigo é a última coisa que se pode considerar.
Narciso encarou-o por momentos e por fim anuiu.
— Muito bem então, centurião. Eu mesmo farei as honras. — Inclinou-se, tirou a rolha do recipiente, e encheu os copos com um vinho escuro. Pousou o jarro e ergueu o seu copo. — Ao menos, junta-te a mim num brinde... Morte aos inimigos do Imperador.
Macro tinha estado a olhar para o vinho com ar de quem revê um velho companheiro, pelo que revelou apenas um leve trejeito de relutância antes de pegar no copo mais próximo e repetir o brinde. Bebeu um bom trago e fez estalar os lábios.
— Portanto é esta pinga que aquele sacana do Espúrio nos tem escondido.
— Não têm sido bem tratados, então? — quis saber Narciso. — Dei instruções claras ao Espúrio para que ficassem bem instalados.
— Ele fez o seu melhor — respondeu Cato. A acreditar no estalajadeiro, o homem não tinha recebido qualquer compensação pelos dois hóspedes que lhe tinham sido impostos fazia já dois meses. Além disso, se Narciso estava a usar a filha do homem para o forçar a corresponder às suas exigências, Cato estava pouco disposto a aumentar os problemas de Espúrio. — Deu-nos um quarto asseado e as refeições são servidas a tempo e horas. O Espúrio tem-te servido bem.
— Calculo que sim. — Narciso reparou na expressão supresa de Macro, e franziu o sobrolho. — Embora me pareça que o teu amigo não ache que ele próprio tenha sido particularmente bem servido.
— Somos soldados — ripostou Macro. — Estamos habituados a bem pior.
— Bem o dizes. E chegou o momento de mais uma vez servirem Roma. — Narciso sorveu algum líquido, e também ele lambeu os lábios. — Um falerniano. O Espúrio está mesmo a tentar impressionar-me!
— Imagino que tenha alguma pressa em regressar ao palácio — começou Cato. — Será melhor então tratarmos do assunto que aqui o trouxe.
— Jovem Cato, gosto de te ver tão prestável — respondeu Narciso num tom frio. Pousou a taça com um movimento brusco. — Muito bem. Recordam-se do nosso último encontro?
— Em Capri, sim.
— Levantei então a possibilidade de existir uma nova ameaça dos Libertadores. Essa escumalha parece ter decidido não descansar até se livrar do Imperador. Como habitualmente, proclamam que agem em nome do Senado e do povo de Roma, mas a verdade é que só conseguiriam mergulhar Roma numa nova idade das trevas, como a que sofremos nos tempos de tiranos como Sula e Mário. O Senado seria de novo palco da luta de fações pelo poder. Em poucos meses teríamos em mãos uma guerra civil. — Narciso fez uma breve pausa. — O Senado teve a sua utilidade no tempo anterior ao Império. Agora só uma autoridade suprema pode manter a ordem necessária. O facto é que não se pode confiar nos senadores para garantir a segurança e o bem-estar de Roma.
Cato soltou uma gargalhada seca.
— Mas calculo que se possa confiar num secretário imperial...
Narciso manteve o silêncio por momentos, as narinas dilatadas, enquanto tentava digerir o desdém que aquelas palavras revelavam. Acabou por assentir.
— Sim, eu, e aqueles que me servem, somos tudo o que se interpõe entre a ordem e o caos sanguinário.
— Até pode ser que seja verdade — admitiu Cato. — Mas na realidade essa ordem que jura defender também é por vezes bastante sanguinária.
— Há um preço a pagar pela ordem. Achas realmente que a paz e a prosperidade podem ser conseguidas e mantidas sem o ocasional derramamento de sangue? Vocês os dois, soldados, deviam perceber isso melhor do que ninguém. Mas o que não sabem é que as guerras que travam em nome de Roma estão longe de terminar quando as armas se calam. Existe outro campo de batalha, longe da fronteira, onde a luta nunca amaina, e onde se combate pela ordem. É essa a guerra que eu travo. Os meus inimigos não são bárbaros ululantes. São criaturas de falas mansas, que se escondem na sombra e que buscam o poder para si mesmos, à custa do bem público. Podem até disfarçar as suas ambições vis nas vestes dos princípios, mas acreditem quando vos digo que não há artimanha a que não sejam capazes de recorrer para conseguir os seus malvados fins. É por isso que Roma precisa de mim, e porque precisa de vocês. Homens como nós são a sua única esperança de sobrevivência. — Narciso calou-se e serviu-se de mais vinho, enquanto humedecia os lábios.
— É engraçado — comentou Cato. — Quando outros homens agem em defesa dos seus próprios interesses, chama-lhe mal. Quando somos nós a fazê-lo, somos patriotas.
— Apenas porque a nossa causa é justa. Ao contrário da deles.
— Uma diferença de perspetiva, nada mais.
— Cato, não te ponhas a dignificar os nossos inimigos com abstrações filosóficas. Limita-te a perguntar a ti mesmo em que Roma preferirias viver. Na nossa, ou na deles?
Macro deu um estalo com a língua.
— Ora aí está um bom ponto.
— Pronto! — Narciso mostrou-se radiante. — Até o centurião Macro consegue perceber a justeza daquilo que afirmo.
Macro franziu o sobrolho e arqueou uma sobrancelha.
— Até o centurião Macro... Obrigadinho.
Narciso soltou uma risada e encheu a taça de Macro até cima.
— Não quis ofender. Queria apenas demonstrar que a distinção entre o certo e o errado nesta história é abundantemente clara para um homem de ação como tu.
Enquanto Macro refletia na frase, o secretário imperial prosseguiu, apressado.
— De qualquer forma, Cato, a verdade é que tens muito pouca margem de escolha. Respeito evidentemente o teu direito a emitir uma opinião, por muito pouco ponderada que seja, mas a verdade é que terão de fazer o que eu vos disser, se tu e o Macro querem ter um futuro nas vossas carreiras; e sobretudo se queres mesmo casar com a maravilhosa filha do senador Semprónio.
Cato baixou a cabeça e passou lentamente os dedos pelos escuros cabelos encaracolados e desalinhados. Narciso tinha-os precisamente onde os queria. O que ele e Macro mais desejavam era regressar às legiões. Cato ansiava pela promoção que significaria a sua elevação à classe equestre, já que só assim o seu casamento numa família senatorial seria tolerado.
— Bem, miúdo. — Macro interrompeu-lhe a sequência de pensamentos. — O que dizes? Tudo é aceitável, desde que sirva para nos tirar daqui. Além disso, não acredito que seja assim tão mau. Não pode ser mais perigoso do que aquilo por que já passámos.
Narciso cerrou os lábios, sem proferir uma palavra.
Com um suspiro resignado, Cato levantou a cabeça e enfrentou diretamente o olhar do secretário imperial.
— O que quer que nós façamos desta vez?
Narciso sorriu devagar, com o ar de um homem habituado a conseguir tudo o que queria.
— Vou começar por vos dar alguma informação geral sobre a situação atual. — Recostou-se e cruzou os dedos. — Como já sabem, o regime quase soçobrou em consequência das conspirações engendradas pela Messalina. Aquela mulher era veneno puro. Não havia nenhum ato tão baixo que ela se recusasse a cometer. A única coisa que se podia comparar à sua falta de moral era a ambição de que dava mostras. Sabia exatamente o que fazer para manter o Cláudio a comer-lhe da mão. E não apenas ele, o mesmo se aplicava a muitos outros, incluindo o Políbio, um dos outros conselheiros do Imperador.
— Reconheço esse nome — afirmou Cato. — Não se suicidou há tempos?
— Assim lhe foi ordenado. Em nome do Imperador. Não teve sequer tempo de fazer um derradeiro apelo a Cláudio, já que recebeu a visita de alguns guardas pretorianos que resolveram pressioná-lo a resolver o assunto.
— Assassinaram-no?
— A linha entre assassínio, execução e suicídio tornou-se bastante ténue nos últimos tempos. A morte, venha como vier, muitas vezes resolve uma dificuldade política, ou responde a um desejo de vingança, ou chega simplesmente em resultado do capricho de alguém com autoridade suficiente para a exigir. E por essa razão não se podia permitir a Messalina permanecer numa posição em que podia exercer maior influência sobre o Imperador do que os seus mais próximos e leais conselheiros. Portanto, quando ela decidiu aproveitar uma ocasião em que o Imperador se ausentou de Roma para se divorciar dele, casar com o amante e apoderar-se do poder, tivemos de agir. Cláudio estava aqui em Óstia, a inspecionar os progressos nas obras do porto. Foi nessa altura que me chegaram as notícias. Vislumbrei de imediato o perigo iminente e falei com os mais próximos do Imperador, Calisto e Pallas. Tivemos de recorrer a todos os nossos poderes de persuasão até levar o Cláudio a aceitar a verdade sobre a Messalina. E mesmo assim ele negou a evidência, afirmou que não podia ser. — Narciso tremia visivelmente enquanto recordava os acontecimentos. — Então encorajámo-lo a beber algum vinho, para amortecer o choque. E nessa altura apresentámos-lhe o decreto para a sua prisão e execução, além de outros destinados a assegurar a prisão dos seus aliados.
— Espertalhaço! — comentou Macro, sem esconder a aprovação. — E o que fez o Imperador quando recuperou o uso das suas faculdades?
— Mortificou-se ao longo de todo um mês. Enquanto nós os três tratávamos de despachar os outros membros da conspiração. O importante disto é que vocês se apercebam de como é fácil enganar o Imperador, e de como isso o torna vulnerável — a ele, mas também a Roma.
— E como é essa história com a nova esposa? — quis saber Macro. — A Agripina. Se bem me lembro, ela é sobrinha dele.
— Pois. O que provocou um belo escândalo, quando Cláudio fez o anúncio público da sua escolha para nova esposa. O que eu tive de lutar para conseguir que o Senado aprovasse uma decisão para remover uma união desse género da lista de casos de incesto. Felizmente, um dos mais notáveis senadores andava mesmo à procura de uma ocasião para voltar às boas graças do Imperador. Tratou do caso e conseguiu fazer aprovar a nova lei. Mas mesmo assim não foi nada fácil, posso garantir-vos.
Cato tinha estado a refletir durante a conversa.
— Quem é que teve a ideia de sugerir a Agripina?
Deu-se um breve silêncio, até que Narciso respondeu num tom quase venenoso:
— O Pallas. Disse que teríamos mais hipóteses de evitar uma repetição do caso Messalina se escolhêssemos uma noiva dentro da própria família imperial. Além disso, ele tem alguma influência sobre ela. Calculámos que seríamos capazes de a manter na linha e ao mesmo tempo assegurar que o Cláudio continuaria a ouvir os nossos conselhos.
— E resultou? A nova Imperatriz tem-se portado da forma que vocês esperavam?
Narciso inclinou ligeiramente a cabeça.
— Não nos tem dado muito trabalho. O único problema foi ela ter chegado a este casamento com alguma bagagem desnecessária.
— Bagagem?
— O filho. Lúcio Domício Ahenobarbo. Pelo menos, era assim que se chamava, antes de a mãe ter convencido o Imperador a adotá-lo. Agora passou a chamar-se Nero Cláudio Druso Germânico. O filho natural do Cláudio não está propriamente agradado com este arranjinho. O Britânico não reconhece o seu irmão adotivo, e recusa-se a chamar-lhe Nero. Portanto não há propriamente amor fraternal entre eles. Quando Cláudio partir para o mundo das sombras, ou seja lá para onde forem os imperadores endeusados, estes dois vão-se atirar ao gasganete um do outro para lhe suceder no trono.
Macro abanou a cabeça.
— Sim, parece-me que quando esse momento chegar, vamos ter uma confusão das antigas.
Cato pensou por momentos antes de voltar a tomar a palavra.
— Mas o Britânico é o herdeiro do Imperador, portanto é o primeiro na linha de sucessão, não é?
— Ah, se as coisas fossem assim tão simples... — retorquiu Narciso. — O Nero tem catorze anos, é quatro anos mais velho do que o meio-irmão. O Britânico também tem outra desvantagem: a mãe era a Messalina, o que o deixa um tanto mal visto perante o próprio pai. Se ele se tornar Imperador, temo que os inimigos da mãe vão passar um mau bocado. É o tipo de jovem que atribui uma elevada prioridade à vingança.
Macro sorriu.
— Existe portanto alguma justiça nesta vida. Essa perspetiva deve estar a provocar-lhe umas noites mal dormidas.
A expressão de Narciso endureceu subitamente.
— Centurião, se soubesses nem que fosse a mais ínfima fração do que me pesa na mente, duvido que alguma vez conseguisses fechar os olhos. O Imperador é vulnerável a ameaças vindas de todos os quadrantes. A sua saúde começa a fraquejar, e tenho de fazer tudo o que posso para o proteger e assegurar que a paz e a ordem perduram.
— E quando ele morrer? O que fazer então? — inquiriu Macro, curioso.
— Teremos de nos assegurar de que a escolha recaia sobre o melhor sucessor.
— E quem tem em mente? — quis saber Cato.
— Ainda não estou certo. Tanto o Nero como o Britânico são ainda muito jovens, e ambos têm as suas falhas e virtudes. Quando chegar o momento, eu e os outros conselheiros do Imperador faremos essa escolha e levaremos Cláudio na direção correta, de forma a nomear o sucessor mais adequado.
Cato cerrou os lábios por segundos.
— Não estou a ver o que tem tudo isso a ver comigo e com o Macro. Não há nada que possamos fazer para influenciar a sequência dos acontecimentos.
— Como te disse, achei que era importante mostrar-vos o panorama global, para que percebam a gravidade da situação e compreendam perfeitamente o que vos vou pedir para fazerem.
Os dois oficiais trocaram um olhar rápido, e Cato acenou a Narciso para prosseguir.
O secretário imperial concentrou-se e começou, em tom quase de surdina.
— Há divisões no palácio, pelo que os Libertadores resolveram passar à ação. A chave para qualquer mudança de poder em Roma é o controlo da Guarda Pretoriana. Foi o apoio dos pretorianos que permitiu a Cláudio ascender ao trono. Quando o Imperador falecer, serão eles a dirimir a questão de quem tomará o trono. Se os Libertadores conseguirem tomar o controlo dos pretorianos, essa questão — qual dos dois filhos lhe sucederá — tornar-se-á académica. Serão ambos mortos, bem como o resto da família imperial, os seus servidores e aliados. — Fez uma pausa, para deixar que as suas palavras penetrassem bem nas mentes dos dois homens que o escutavam. — É por essa razão que o comando da Guarda é partilhado por dois prefeitos, e que a guarda pessoal do Imperador é composta por mercenários germanos — homens em quem ele pode confiar. Porém, um dos prefeitos está já há meses doente, o que deixou os pretorianos sob o comando único do outro, Lúcio Geta, um homem que me desperta várias preocupações. Nos últimos tempos tem incrementado o treino dos homens, levando-os em duras marchas, aumentando a prática com armamento e realizando exercícios de combate. E recentemente esses exercícios mudaram de caráter. Nas últimas semanas, o treino tem-se centrado em combate urbano e técnicas de cerco.
— A mim parece-me um comandante consciencioso — comentou Macro. — Se estivesse no lugar dele, procederia da mesma forma.
— Estou seguro que sim. Mas não era esse o costume dos prefeitos que o antecederam. Mais preocupante ainda é que a maior parte dos oficiais parece ser-lhe ferozmente fiel, já que olham para o Geta com evidente consideração. — Narciso abriu as mãos. — Como devem compreender, tenho todas as razões para desconfiar deste homem.
Macro encolheu os ombros, mas Cato anuiu ligeiramente.
— E há mais. No mês passado, um dos tribunos da Guarda foi morto na estrada.
Cato assentiu.
— O Balbo.
— Precisamente. Como sabes?
— Li isso na gazeta. Não tinha muito mais formas de passar o tempo. Ao que li, o Balbo foi morto por vulgares salteadores de estrada.
— Foi essa a versão que foi posta a circular. O que ela não dizia era que ele estava à frente de uma coluna que transportava moedas de prata vindas da cunhagem na Narbonesa. O grupo de busca encontrou o corpo desnudado na berma da estrada, numa evidente tentativa de o fazer parecer vítima de um simples assalto. Não lhes custou muito descobrir depois os restos dos vagões que compunham a coluna. Mas as arcas com o dinheiro tinham desaparecido. No total, foram roubados cerca de dois milhões de denários.
Macro assobiou.
— Pois. Uma soma impressionante; e o que assusta é que entre servidores do Imperador e pretorianos, não havia mais do que um punhado de homens a saber da existência desta coluna. Foi uma coisa preparada por gente bem colocada no regime. Não há qualquer dúvida. Todos os que sabiam foram interrogados, alguns torturados, mas os meus homens não conseguiram sacar-lhes qualquer informação. Ou estavam inocentes ou eram suficientemente duros para aguentarem a pressão.
— Talvez tenha havido alguma fuga de informação — sugeriu Cato. — Alguém pode ter escutado ou visto um indício que revelou o plano.
— É possível. Mas os meus homens são de confiança, e discretos. Sabem muito bem o preço elevado que pagarão se me dececionarem. Restam, portanto, os pretorianos. Ou a segurança interna não presta, ou existem traidores nas fileiras. Era essa a ideia que tinha, até há poucos dias. Nessa altura ocorreu um golpe de sorte. Um dos pretorianos embebedou-se e começou à tareia numa espelunca qualquer ao pé do Circo Máximo. Foi confinado ao quartel. Uma investigação mais aprofundada revelou que o homem tinha passado o dia todo a gastar dinheiro, a oferecer bebidas tanto a camaradas como a desconhecidos. Para mais, também tinha perdido uma pequena fortuna em prata nas apostas, mas apesar disso não tinha recorrido às poupanças que mantinha no quartel. Dei ordens para que fosse libertado, e o centurião pô-lo de faxina por um mês. Há duas noites, indiquei aos meus agentes que o raptassem e levassem para um local secreto fora da cidade, para um interrogatório mais apertado. Revelou-se um tipo teso, o que tornou infelizmente necessária a utilização de meios, digamos, mais rigorosos. Antes de morrer, confessou que tinha estado envolvido no ataque ao comboio da prata, e revelou um nome. O de um centurião que serve na coorte à qual está atribuída a guarda do palácio imperial, um tal Marco Lurco. Segundo o nosso homem, o Lurco é um dos líderes da conspiração. Portanto, temos agora certo que existe uma fação de traidores na Guarda Pretoriana.
— E esse pretoriano mencionou alguma ligação aos Libertadores? — indagou Cato.
— Sim. — Narciso respirou fundo. — A situação é séria. Só vejo uma razão para andarem atrás de uma fortuna como esta. Estão a angariar fundos para uma guerra. E quando tiverem dinheiro suficiente, é minha convicção que o vão usar para comprar o apoio da Guarda Pretoriana quando tentarem derrubar o Imperador.
Instalou-se o silêncio. Macro esvaziou o copo e voltou a enchê-lo, enquanto tentava dar a impressão de estar a ponderar seriamente as informações que recebera.
— Bom, isso é tudo muito interessante, mas o que tem a ver connosco?
— É muito simples. Preciso de ter, no seio da Guarda Pretoriana, homens em quem possa confiar inteiramente. Portanto, tu e o Cato vão incorporar-se na Guarda, entrar na conspiração, identificar os líderes e então, se necessário, eliminá-los. Ah, e vão também localizar e recuperar a prata roubada.
Macro encarou-o assombrado e acabou por soltar uma gargalhada.
— Simples, de facto. Não tem agentes mais habituados a essas tretas de capa-e-espada? Nós somos soldados, e não temos grande jeito para eliminar um homem com uma facada nas costas. Há com toda a certeza gente mais qualificada que nós para este género de coisa.
— Oh, sim, tenho um pequeno grupo de homens que podia usar. Mas é um grupo mesmo pequeno, e não posso arriscar-me a perder algum deles. Além disso, neste caso preciso de homens que facilmente passem por soldados. — Narciso fez uma pausa e lançou um sorriso sardónico. — Bom, deixemo-nos de rodeios. Vocês são dispensáveis. Além disso, sei perfeitamente que vão aceitar a missão. Como poderiam não o fazer?
Macro abanou a cabeça.
— Teríamos de estar doidos para aceitar este trabalho.
— Não têm escolha, uma vez que o que vocês mais desejam está nas minhas mãos para conceder — ou negar, conforme me pareça adequado. — O olhar de Narciso virou-se para Cato. — Não é verdade?
Cato anuiu, com evidente relutância.
— Macro, ele tem razão. Se queremos realmente regressar às legiões, e se quero ver confirmada a minha promoção, que escolha temos?
— Precisamente.
— Não — ripostou Macro. — Cato, pensa bem. Somos soldados. Fomos treinados para combater. Não para espiar, não para brincar aos agentes imperiais. Esse tipo de gente vai perceber à distância o que andamos a tentar. Não quero acabar com a garganta cortada e o corpo atirado para a Cloaca Máxima. Eu não. Não me vou meter nisto. E tu também não, se ainda tens algum bom senso.
— Não se trata de nenhum esquema mal-amanhado que acabei de conceber enquanto vinha de Roma — disse Narciso, com uma intensidade gélida. — Pensei nisto com muito cuidado, e tenho a certeza que vocês os dois têm muito mais probabilidades de obter sucesso do que os meus agentes. São soldados experimentados, pelo que se integrarão entre os pretorianos com facilidade, ao contrário dos meus homens, cuja falta de hábitos militares saltaria à vista. Além disso, são perfeitos desconhecidos em Roma, enquanto os meus homens são sobejamente conhecidos. Se me vir obrigado a usar outros, terei de os contratar longe da cidade, e não saberei ao certo quais as suas capacidades nem até que ponto poderei confiar neles. A verdade é que precisamos uns dos outros. Se conseguirem levar isto a bom termo, dou-vos a minha palavra de honra de que serão ambos generosamente recompensados.
— Não estou muito confiante quanto ao valor da sua palavra — arriscou Macro.
— Como planeia inserir-nos na Guarda Pretoriana? — interveio Cato. — Se um par de oficiais aparecer de repente a fazer perguntas a torto e a direito, a atenção dos opositores não deixará de ser desperta.
— Claro; é por isso que vocês vão entrar para a Guarda como legionários. Dois veteranos da Segunda Legião, acabadinhos de chegar da Britânia. A vossa nomeação para a Guarda foi uma recompensa pela bravura no combate contra os bárbaros. É uma história credível, e não se afasta demasiado da vossa experiência, pelo que não terão muito que inventar. A única diferença será na vossa patente. Não vos deverá ser muito difícil desempenhar um papel desse género.
— Falar é fácil — resmungou Macro. — E se damos de caras com alguém que já tenhamos encontrado antes?
— É pouco provável. Já passaram mais de três anos desde que estiveram em Roma pela última vez, e nesse tempo viviam num quarto alugado na Subura, uma vez que estavam a receber apenas meio salário. Ninguém vos conhece na Guarda Pretoriana. E no palácio ninguém vos reconhecerá, à exceção talvez de alguns dos meus escribas.
— E quanto ao senador Semprónio? — indagou Cato. — E a Júlia? Se os encontrarmos, as nossas identidades serão reveladas.
— Pensei nisso também. — Narciso sorriu. — Tratei de pôr o senador a conduzir um inventário das propriedades do Imperador na Campânia. Indiquei-lhe que devia levar consigo a filha, para que ela pudesse aproveitar o ambiente social. Um trabalho sem perigos ou inconvenientes, mas que os manterá longe da capital até à primavera. Por essa altura estou seguro de que vocês já terão identificado os traidores na Guarda Pretoriana, bem como os seus cúmplices na cidade.
— Há outros bem capazes de nos reconhecer. O senador Vespasiano, por exemplo.
Narciso assentiu.
— Sei-o bem. O Vespasiano foi eleito para o consulado este ano, pelo que estará ocupado no Senado a maior parte do tempo.
— O Vespasiano é cônsul? — Macro sorriu. — Excelente notícia.
— Embora partilhe a tua admiração pelas suas capacidades, devo dizer que a sua elevação ao consulado me levanta algumas preocupações. Pode muito bem revelar-se mais ambicioso do que aquilo que eu pensava.
— Ora, vá lá! — Macro abanou a cabeça. — Não pode desconfiar do Vespasiano. Depois de tudo o que o homem fez pelo Imperador? Caramba, se não fosse ele, arrisco-me a dizer que a campanha da Britânia teria sido um desastre. E depois ainda houve aquela história com os piratas. Sempre serviu Cláudio com toda a lealdade.
— Eu sei. Mas o meu trabalho é estar sempre atento a sinais de perigo. Qualquer mostra de ambição tem de ser escrutinada em detalhe. Portanto, mantenho o Vespasiano debaixo de apertada vigilância. — Fez uma pausa antes de continuar. — Seria muito pouco prudente arriscarmo-nos a sermos vistos juntos, portanto apresentar-me-ão os vossos relatórios através de um dos meus agentes, o Sétimo. Será ele o único a saber da vossa missão, além de mim, claro. Poderão encontrá-lo na Vinha de Dionísio, no Boário, daqui a dois dias.
— Como é que o reconheceremos? — quis saber Cato.
Narciso tirou um anel do mindinho da sua mão esquerda e entregou-o a Cato.
— Usa este anel. O meu agente terá um igual.
Cato pegou no anel para o examinar de perto, e apercebeu-se de um desenho finamente gravado na pedra vermelha: Roma, sobre uma esfinge.
— Bonito.
— Evidentemente que o quero de volta, depois de servir o seu propósito. — Narciso contemplou os dois amigos. — Muito bem, têm mais alguma questão?
— Só uma. — Macro inclinou-se sobre a mesa. — O que nos sucederia se recusássemos esta tão generosa oferta de emprego?
Narciso fixou nele um olhar frio.
— Ainda nem tinha pensado nisso. Pela excelente razão de que nem conseguia imaginar que fossem tão idiotas a ponto de recusar o trabalho.
— Então, pense depressa. — Macro recostou-se e cruzou os braços. — Arranje uns meliantes quaisquer para lhe fazerem o trabalho sujo. Eu sou um soldado profissional, e dos bons. Mais cedo ou mais tarde vai surgir uma vaga para mim nas legiões. Posso esperar.
— Por quanto tempo, pergunto eu. Talvez não muito, se comparado com o tempo que eu estou disposto a deixar-te aqui a apodrecer.
A expressão de Macro toldou-se.
— Vá-se foder. E leve consigo todos os seus malditos esquemas. — As mãos do centurião cerraram-se em punhos, e por momentos Cato temeu que o amigo estivesse mesmo disposto a desfazer o secretário imperial à pancada. A mesma ideia passou pela cabeça de Narciso, que se encolheu de forma bem notória. Macro olhou-o com desprezo e depois levantou-se abruptamente. — Cato, vamos mas é beber um copo. Algures longe daqui. Num lugar que não cheire tão mal.
— Não — contrapôs Cato, com firmeza. — Temos de aceitar. Não vou ficar em Óstia nem mais um minuto do que aquilo a que já fui obrigado.
Macro olhou para o amigo por momentos e acabou por abanar a cabeça.
— Cato, estás parvo. Esta serpente vai acabar por fazer com que nos matem. Por que carga de água é que nós vamos conseguir desmascarar os Libertadores, se todos os agentes do Imperador falharam até agora?
— Ainda assim, estou disposto a tentar. E você acompanhar-me-á.
— Bah! — Macro atirou as mãos para o ar, num gesto de desistência. — E pensava eu que te conhecia. Pensava que eras mais esperto do que isto. Ao que parece, estava errado. Cato, estás por tua conta. Não me quero meter nesta história.
Dirigiu-se para a porta, escancarou-a e fechou-a com estrondo, depois de sair. Cato escutou os passos do amigo a afastarem-se com um peso crescente no coração. Macro tinha toda a razão quanto aos perigos envolvidos, e Cato compreendeu de súbito que tinha pouca confiança em ser capaz de levar a missão a bom porto sem o duro e confiável centurião ao seu lado. Sentiu uma ponta de medo, pela primeira vez em muitos meses. A perspetiva de enfrentar sozinho os esquivos inimigos do Imperador era arrepiante.
— Se fosse a ti, não me preocupava muito — animou-o Narciso. — Agora que conseguiu soltar a raiva que acumulou contra mim, há de mudar de ideias em pouco tempo.
— Espero bem que tenha razão.
— Acredita no que te digo, raras vezes me engano na avaliação de homens. E o nosso amigo Macro não representa um grande desafio nesse capítulo. Estou por acaso enganado? Conhece-lo perfeitamente.
Cato refletiu brevemente.
— O Macro é capaz de algumas ideias surpreendentes, por vezes. Não o deve subestimar. Mas sim, acho que no fim acabará por me acompanhar. Quando arrefecer e perceber que está nas mãos de alguém que tem a possibilidade de lhe tornar a vida muito difícil. Parto do princípio de que não foi uma ameaça vã.
Os finos lábios de Narciso reviraram-se num sorriso quase trocista, enquanto ele se levantava.
— O que é que achas?
— Seja. Mas tenho um conselho a dar-lhe, se quiser que esta missão decorra sem problemas. — Cato fez uma pausa. — Nunca, mas nunca lhe chame amigo à frente dele.
Simon Scarrow
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