INCLINADAS sobre a mesa, todas desfolhavam figurinos. Alternavam-se exclamações de entusiasmo ou repulsa:
- É lindo, este vestido! - Horroroso! - Eu gosto desta maneira de armar o véu. - Aqui tens um modelo que dir-se-ia desenhado para ti, Isabel...- Não acho nada, a Isabel é magra demais. - Prefiro este. - Que disparate! Ir engrossar uma figura daquelas...-Eu só a vejo em fato de estilo. - Nem por sombras, o que lhe convém é um "drapé" colante. - Não, menina. - Sim, menina. - Você não percebe nada disto. - E tu, então, com essas ideias de mulher de uniforme. - Terá você, sequer, a mínima noção do chique?
Debicavam-se! Não admira, tratava-se de escolher um vestido de noiva. Porque iam casar-se Florêncio Morot-Léandre e Isabel Morlain-ville. A princípio, ficara decidido esperar que a guerra acabasse de todo, visto o moço ter voltado ao exército. Mas amavam-se demasiado, os dois, e há tanto tempo...
Assim, durante a última licença, Florêncio dissera ao pai, cuja autoridade justa mas severa continuava a dominar a família, mau grado o carácter independente de todos:
Queremos casar imediatamente, pai.
Em tempo de guerra? Não pensaste, meu rapaz.
Pensei e muito. Se morrer, teremos sido felizes alguns dias, pelo menos. A Isabel usará o meu nome. Julgas então que, embora sendo unicamente noiva, ela seria capaz de refazer a vida com outro? Conheço-a! Considerar-seia minha viúva do mesmo modo. Portanto, que o seja de facto.
Os lábios do homem crisparam-se: morto, viúva... Com que tranquilidade os jovens de hoje falam de tudo o que há de mais trágico!
É uma loucura! - declarou.
Talvez. Tudo o que é belo tem um pouco de loucura. E se a avó te tivesse recusado a mãe, quando tinhas a minha idade, raciocinarias do mesmo modo, que eu sei...
O sr. Morot-Léandre contemplou longamente o filho. Belo rapaz! Pensar que poderia desaparecer sem deixar filhos que lhe herdassem traços, o nome que as irmãs abandonariam uma após outra! Abriu a cigarreira:
- Queres?
Florêncio aceitou o cigarro - nunca se recusa- enquanto pensava: "Impacienta-me a lentidão da gente razoável!" Repetiu:
- Então, quanto ao nosso casamento, dizes
que sim?
O pai expeliu uma nuvem azul de fumo. Florêncio tem uma ruga de inquietação no rosto.
- Paizinho...
Readquiria a sua voz de garoto, aquela voz simultaneamente imperiosa e terna que reclamava, segundo a idade, um cavalo de pau, uma trotineta, uns patins, uma bicicleta, uma carta de conduzir, uma espingarda de caça, um avião. Um avião e Isabel: quantas vezes repetira estas palavras! Solange e Catarina haviam até composto uma canção: letra de Solange, música de Catarina.
Pois bem, casem-se! - disse bruscamente - já que vivemos num mundo às avessas.
És fantástico, paizinho! Oh! obrigado, obrigado! Vou dizer à mãe.
Florêncio ia sempre "dizer à mãe". Precipitou-se-lhe no quarto, abraçou-a, deu-lhe a notícia em voz quase gritada, abraçou-a de novo, sufocando-a entre os braços fortes, despenteando-a.
- Vou a casa da Isabel - disse por fim.
A mãe deteve-o, maliciosa:
- E se o sr. Morlainville recusar o consentimento?
-O sr. Morlainville? Ela faz tudo o que quer do pai. Um poeta! Ora, por esse lado, posso estar tranquilo.
E ouviu-se o alegre ruído de seus passos, galgando a escada. Ruído de outrora, cujo regresso fez sorrir a mãe. Teria finalmente voltado a alegria perdida durante os escuros anos em que o filho, tão querido, sufocava num campo de prisioneiros de guerra?
Chegado ao patamar de Isabel, Florêncio, doido de contente, gritava, antes que lhe abrissem a porta:
- Consegui! Consegui!
Isabel percebeu imediatamente. Pousou-lhe a linda cabeça encaracolada no ombro robusto e deixou-se estar assim, sem dizer nada.
- Como o seu coração bate, minha querida,
- notou Florêncio.
Então ela ergueu os olhos para ele:
- Meu amor!
E ele beijou-lhe, uma após outra, as pálpebras macias, como a impedi-la de chorar. Não suportava as lágrimas de Liseron, ainda que fossem de alegria.
Breve lhe veio à ideia o segundo pai.
- Temos de ir anunciar-lhe - disse Florêncio. - Vamos.
-Anunciar-lhe? Que descaramento! Vamos pedir-lhe que consinta - replicou ela. E ele riu chamando-lhe "menina exemplar".
Deram a mão e entraram, a rir, no gabinete de trabalho do sr. Morlainville, conhecido no mundo das letras sob o nome de Romain Villanel. Era um homem célebre, mas para Isabel era simplesmente o "paizinho".
- Paizinho - disse ela -, vimos pedir-te autorização para casar agora. Já.
João afastou a cadeira da secretária e ajeitou melhor o corpo esguio. Ambos o observavam um tanto ansiosos, apesar de tudo.
Julguei que esperassem o fim das hostilidades... Que aconteceu para modificar essa decisão sensata?
Nada. Isto é, uma coisa capital. O meu pai cedeu - respondeu Florêncio.
João Morlainville, num gesto peculiar, passou a mão pela vasta fronte, onde o pensamento e a viuvez tinham cavado fundas rugas. Com um sorriso triste - não sabia sorrir doutro modo desde a morte de Jeanine - inquiriu:
-Portanto, tendo o sr. Morot-Léandre cedido, vêm pedir ao sr. Morlainville que ceda também?
- Não compreendeste! - exclamou alegremente Isabel. - Ninguém pede nada ao sr. Morlainville, que é um senhor penetrado de bom senso e prudência. Dirigimo-nos ao poeta Romain Villanel. Os poetas não se sentem bem entre virtudes razoáveis e monótonas, ó meu paizinho-.poeta, diz que sim, depressa! Nós amamo-nos tanto, não podemos esperar mais. Estou farta de ser noiva. Quero ser mulher. A mulher dele.
No passado, João viu destacar-se a silhueta de Jeanine, que apaixonadamente amara, que tanto tempo esperara, e de quem nunca se cansara, em seus erros, em seus defeitos, nas suas falhas. Era tão breve, a felicidade! Como findava depressa a vida humana!
- Pobres pequenos - murmurou com ternura
- não podem mais. Pois bem! Casem! Os nossos dias são demasiado breves... Sejam felizes!
- És um amor! - gritou Isabel.
Abraçaram-se. E os noivos partiram para a alegre casa Morot-Léandre.
Só, o poeta apoiou-se na secretária e, de olhos fixos no retrato de Jeanine, enfeitado, em todas as estações, com as mais belas flores, evocou aquela que amara como Florêncio amava Isabel.
Depois, olhou em volta, com um olhar novo, sem hábito, como que encarando pela primeira vez o que o rodeava. Móveis, estatuetas, escolhidos com gosto de artista e cuidados pelas mãos de Isabel, como tudo se tornaria mudo e triste quando ela se fosse!
Estremeceu. Julgando sentir frio procurou reanimar o fogo. Ajoelhado e imóvel, contemplava as chamas. Sonhava? Não, pensava, o que é totalmente diferente.
Lá fora, Florêncio dava o braço a Isabel. Respiravam fundo. O ar frio de Dezembro parecia-lhes delicioso.
- Vamos casar, querida - disse Florêncio. - Vamos ser felizes.
Mas volta para o exército?
Por pouco tempo. Agora, é um instante enquanto corremos com eles. Sim, tenho a certeza, minha medrosa pequenina.
Ainda não me atrevo a acreditar na felicidade, Florêncio. As decepções foram tão duras, tão repetidas!
Agora acabaram-se! Diga, Liseron, onde é que vamos ficar?
Pensava ficar com o paizinho. Ele vai sentir-se tão só!
Florêncio sentiu-se invadir pela cólera:
Quero tê-la para mim, só para mim. Mas você gosta de toda a gente. O seu pai, o seu pai... Também ele deixou os pais. Porque não nós?
Porque os pais dele tinham uma vida normal e ele é infeliz. Florêncio, pense um pouco na sua situação. Ter amado uma mulher como ele amou a pobre Jeanine, e perdê-la tão tragicamente! Precisa que o rodeiem de afecto, que o ajudem a viver, enfim.
- É curioso... a mim dá-me a impressão de que ele quer estar só. É diferente de toda a gente, o Romain Villanel.
De qualquer modo, meu insensato, onde íamos nós arranjar casa? Não sabemos para que guarnição o vão mandar depois... Portanto, o melhor é ficarmos com o paizinho. Não se irrite. Sou eu que tenho razão. Como sempre, aliás - acrescentou sorrindo.
Pode-se, ao menos, comprar mobília? Arranjamos um cantinho só para nós? O seu quarto de solteira fica para os filhos.
Isabel repetiu: "os filhos", e era maravilhoso imaginá-los no seu quarto branco. Florêncio prosseguia, obcecado pela mesma ideia.
-Quando é que a gente se casa? Os banhos já estão publicados há tanto tempo, nada impede que o casamento seja... vejamos, daqui a oito dias?
Está doido! E o meu vestido de noiva? Então caso-me de tailleur".
Isso nunca! Diga-me, acha que se faça uma coisa assim muito pomposa? Por mim, só lá que?ria os pais, as minhas irmãs e o João Lucas.
A Denise tem tanta vontade de servir de dama de honor, com um vestido até aos pés! - disse Isabel sorrindo. - Há cinco anos que sonha com isso!
É verdade! Com João Lucas por cavalheiro. Tolinha! O João Lucas não lhe liga.
Tem a certeza? Talvez a ame a seu modo. Diferente do futuro cunhado, certamente. Mas a Denise contentar-se-á. É um coraçãozinho terno, tão simples, tão esquecido de si mesmo!
- Absolutamente o género de mulher que se deixa bater pelo marido... Isabel, olhe esta montra de mobílias. Compramos uma cómoda parecida com aquela. Ou então pedimos à avozinha que nos dê a da saleta: é parecida com esta. E quero aquela poltrona de veludo azul, para si. Quando eu chegar à noite, encontro-a ali sentada, a ler.
Não! A fazer "tricot" para os bebés.
Eu, um tipo estúpido, ajoelho-me e abraço-a até a sufocar. Os novelos caem e você desata a gritar: "Basta! Deixe-me! Já me fugiram as malhas". Mas, no fundo, sente-se radiante. E eu contar-lhe-ei tudo o que fizer, bom e mau. Você também conta. Não esconderemos nada, absolutamente nada. Detesto mistérios, como em sua casa. Na nossa, os pais dizem tudo um ao outro. E amam-se tanto agora como no dia em que casaram.
Talvez ainda mais, Flô. Eu creio que o amor dos casados se torna cada dia mais belo. É-se só um. Acabamos até por nos parecermos...
Liseron querida, você nunca se há-de parecer com um selvagem como o Florêncio.
Ela chegou-se mais para ele:
Acho lindo, o selvagem. E gostaria de ter meia dúzia de rapazes parecidos com ele.
E eu duas miúdas parecidas com a mãe.
Porquê só duas?
Para não serem demais - declarou.- Quatro raparigas numa casa... Oh! aqueles caprichos, aquelas vozes esganiçadas!
Oiça, você tem vocação para o celibato. Ainda está a tempo, sabe?
E riram tão espontaneamente que um senhor, já velho, que se arrastava apoiado a uma bengala, murmurou, ao passar junto do belo par (a rapariga de olhos azuis, o oficial tão alto e elegante).
ESTAVA decidido: 21 de Dezembro, casamento de Isabel e Florêncio.
Tudo ia mudar. Isabel, no termo da sua vida de rapariga, sentia-se repartida entre o passado e o futuro. O passado? Um amálgama de felicidade e sofrimento, mais intensos que o da maioria das raparigas. O futuro? Oh! como se anunciava belo! E todavia receava.
"Não posso acreditar. Desejei tanto que este dia chegasse!"
Aquela velha angústia da sua adolescência, desconcertada por brutais contradições de sentimentos e circunstâncias, possuía-a de novo. No entanto, julgara-se apaziguada, fortificada - de certo modo, até, endurecida - pelo contacto diário das realidades dolorosas e repugnantes, imposto pelo trabalho social.
E eis que a "Liseron" de outrora readquiria a fragilidade que uns tinham amado e outros escarnecido.
"Hei-de ser assim, estúpida, inquieta, até que possa realmente apoiar-me em Florêncio. Pensar que daqui a alguns dias ele será meu marido!"
Pousou o rosto no tampo fresco da cómoda, cujas gavetas abrira, e murmurou a meia voz, para si, para sua alegria: "meu marido".
Repetiu, certa de que, algures, onde Florêncio se encontrava, teria por alegre estribilho estas palavras: "minha mulher".
Entre eles era tão simples, tão são o desejo de serem só um.
Mas, depois de sorrir de contentamento, Isabel suspirou.
"Não irá acontecer alguma coisa? Decididamente, não posso acreditar."
E voltou ao seu trabalho de arrumação. Tratava-se de escolher, entre objectos familiares, aqueles que abandonaria com a sua vida de rapariga, e os que guardava. Nem todos eram belos, os privilegiados, nem úteis, mas estreitamente ligados ao desenvolvimento e evolução da família. Aqui, um pequeno adorno infantil, oferecido por Marieta, no dia dos seus sete anos: "Não, não deito isto fora..." Os curtos bilhetes de Florêncio prisioneiro: relíquias! Haviam sido tão intensamente desejados, com tanta emoção acolhidos! Lera-os e relera-os tanta vez! Uma agenda que a senhora Flaviot lhe depusera nas mãos depois da morte da filha. "Nunca seria capaz de a ler. Faça dela o que quiser, você, de quem a pobre Odília gostava acima de tudo... Sim, a mim também, mas criticava-me, enquanto que por si tinha uma espécie de culto, Isabel."
Na pequena agenda, em caligrafia nervosa, irregular, alguém traçara linhas de dor, revolta, pensamentos ousados, mórbidos, outros delicados e tristes, alguns apelos a Deus. O nome de Isabel aparecia com frequência: "Visita de Isabel, chique, bonita... A Liseron disse-me coisas lindas de que propositadamente trocei... Tenho ciúmes : o Cláudio só a vê a ela... Queria detestá-la, fazer-lhe mal, a ela que tem tudo e eu nada. Não sou capaz. Admiro-a."
Era preciso destruir a agenda... Os pobres segredos do coração de Odília. Até mesmo Florêncio devia ignorá-los. E depois, Marieta diria com o seu bom-senso: "Deita isso fora, meu amor. Uma tuberculosa... Podes contagiar-te".
Marieta, Marieta... não estaria presente no casamento. Não seria ela quem vestiria a noiva com os mesmos gestos ternos com que vestira o bebé para o baptismo, a comungante, nos seus véus de cambraia. Não poria o chapéu das uvas, aquele chapéu que Isabel guardara tanto tempo na pequena caixa redonda, junto com um grande alfinete de cabeça de azeviche. Ah! porque morreriam as pessoas? Porquê essa terrível lei do desaparecimento dos seres mais queridos? Para onde vão? Onde estão? Com Deus, certamente, em Cristo, que um dia pronunciou um impressionante "eu quero". "Eu quero que onde eu esteja também eles estejam." Mas em que ponto localizar este "onde eu esteja"? Os amados tornaram-se mudos, eles que tanto falaram; nenhum voltou, a dizer onde estava.
Vertigem. Pensamentos pesados. De novo se insinua a angústia. Isabel chama em seu auxílio a força, a sensatez, a alegria de Florêncio. Mas Florêncio, de novo no seu sector militar, só voltará na véspera do casamento. Será preciso atravessar sozinha aquele período incerto em que todos a julgam feliz e se sentirá triste. Porque uma rapariga como Liseron não aperta a felicidade nos braços, antes imagina que ela nunca virá.
"Sou ridícula" - suspirou. "Isto em que estou a mexer traz-me tanta coisa à ideia! Quem me dera ser como a Fani que abandonou tudo quando casou. Eu prendo-me, prendo-me...
Apressou-se, aumentando, não sem pesar, o monte de coisas que excluía da sua vida.
"Mas guardo algumas. Numa casa, é preciso um pouco de passado para que de facto seja um lar. Onde será a nossa casa? Para que guarnição nos conduzirá a vida militar de Florêncio? Ele sonha com países longínquos, aventura. E eu amo tanto a suavidade do céu de França e o meio familiar!... Oh! Não o hei-de impedir nunca de ir para a África ou para a Ásia. Não, certamente, não hei-de opor a minha sensibilidade feminina à sua vocação de homem. Hei-de segui-lo para toda a parte, e em toda a parte hei-de ser feliz, por estar junto dele... Apesar de tudo, é pena que eu não tenha o espírito de aventura da Solange. Logo que a guerra acabe, parte para as missões. A Fani engana-se, quando insinua que a vida no exército a tenha feito perder a vocação: Sei perfeitamente que nada mudou. A Solange arranjou um ar desenvolto, arrapazado. Fala calão, fuma. Fica-lhe bem o uniforme militar: mas isso não impede que esteja firmemente decidida a vestir o fato até aos pés e a touquinha de postulante. Uma rapariga daquelas não muda de ideias. De resto, ninguém muda de ideias em casa dos Morot-Léandre. A Catarina, por exemplo... ah! aquela Catarina!"
No momento em que evocava, com o nome de Catarina, a tortura da família que deplorava a paixão da rapariga por Estêvão Magloire, o velho artista, ouviu alguém a assobiar.
-Será o João Lucas?
E João Lucas entrou, soberbo de juventude:
- Que estendal, senhora mana! Oh! que coisinhas horrorosas! Vais deitar tudo isto fora, espero. Se bem que uma menina sentimental como esta querida noiva se deva prender às mínimas coisas de antigamente. Queres que te ajude ? Comigo, vai-se tudo num instante.
Isabel estendeu os braços sobre os seus tesouros.
-Selvagem! Tira as mãos daí!
Ele riu em belas gargalhadas sonoras de rapaz.
- A minha irmã é uma antiquada. Escuta, Bebel, sê boazinha, deixa-me mexer. Adoro este género de coisas. Juro que te peço autorização antes de deitar fora a mínima relíquia dos teus verdes anos.
Ela riu, por sua vez.
Mexe! Tudo o que está em cima da mesa está aberto à tua curiosidade. Ou-murmurou com malícia-à tua cobiça.
Hem? Que dizes? Repete... Cobiçar estas porcarias? Parece que estás a fazer troça de mim. Vais ver o caso que faço disto.
Pegou numa estatueta: fez troça. Depois outra. Enrolou na cabeça um lenço garrido:
-Estou giro? Pareço uma linda menina. "Como é parecido com a mãe", pensou Isabel. Sempre com o lenço, apoderou-se dum álbum de fotografias.
- Vamos rir. Oh! estas modas! O quê, o paizinho usou bigode à gaulês? E este colarinho
engomado?... Já viste a Teresa, em miúda?
Que grande bucha! Ah! cá está a família em peso. Um querubim vestido de veludo: sou eu.
Tu? Não eras muito feia; um gato selvagem, os olhos comem-te a cara toda. A Fani com uma pose pretensiosa: "Vejam como sou bela", a Teresa com as mãos cruzadas sobre a barriga. A mãezinha... ah! recordo-me deste vestido. Sabes, aquele vestido brilhante semeado de rosas? Era miúdo e pensava: a mãezinha é uma rosa.
Guardou silêncio por instantes. E depois:
Já que querias deitar isto fora... Eu guardo.
Não tinha intenção de destruir todas as fotografias. Deixa-me uma em que estejamos os seis.
Ele calava-se. Contemplava asperamente a imagem fora de moda. Por fim guardou-a na algibeira.
- Deixo-te o resto do álbum. Continuemos.
Tentou ainda troçar de tudo mas algo quebrara a sua alegria. As recordações invadiam-no. Tão novo, conhecia já a tortura do "nunca mais".
- Isabel, este tinteirinho de marfim! Tinha-to roubado. E aquele velho demónio da Marieta fez-me uma destas cenas! Até lhe dei um pontapé... não deites fora o tinteiro. Isabel... este terço branco a que faltam contas, emprestaste-mo durante o meu sarampo. Pegávamos-lhe cada um por sua ponta. A mãezinha ralhava-te: "Cansas o mano, Isabel, com as tuas orações". Mas não... isto repousava-me e eu não me atrevia a dizê-lo... Isabel, olha, durante o famoso sarampo, para me entreteres, costumavas desenhar com esta lapiseira. Eu achava-a linda. Não deites fora... Oh! este postal do lago de Annecy! Divertimo-nos bastante, naquele Verão. Lembro-me de que tu namoriscavas com...
- Mentira - gritou Isabel, vermelha. – Eu já gostava do Florêncio.
- Mas namoriscavas gentilmente com um tipo chamado Hugo Lesoir . Tinhas remorsos pelo Florêncio, ao mesmo tempo. Oh! eu não era crescido, mas percebia tudo muito bem. De resto, o namoro agradava à mãezinha, que nunca desejou que casasses com o Florêncio... A mãezinha! Lembras-te como dançava bem à noite, no terraço, à beira do lago? Pensavam que fosse tua irmã... Isabel, um dente de bebé! O primeiro dente da Edith? Não guardes: em breve terás os dos teus filhos. Cartas... Oh! minha querida, atadas com uma fita azul, cartas de amor, pela certa. Sim, reconheço a letra pequena e certa do Florêncio. O que não dava para as ler! Vamos, não tomes esses ares de leoa. Não tocarei nas preciosas cartas. Mas dás-me isto? E isto? Compreendes? A nossa infância...
Julgava que devia atirar tudo para o lixo... Ainda és mais tolo do que eu, meu pobre João Pulga!
É sinal de que estou velho. Sabes, a guerra muda muito um sujeito... Mas que ideia é essa de me chamares João Pulga assim de repente? Um nome inventado pelo teu Florêncio para me irritar.
Que queres? Revolvemos o passado todo. E o pequenino João-Pulga de antigamente voltou.
João Pulga, João Pulga - murmurou ele. - Isabel, apesar de tudo, foi este o melhor tempo. Agora, já não se pode dizer: "a casa"... A mãezinha partiu. Tu vais partir. O pai já partiu.
-Que queres dizer com isso: "o pai já partiu"?
Sim, o seu pensamento já cá não está. Onde? Não sei. Com a mãezinha, certamente. Ou mais para além? Está a tornar-se estranho, o pai. Não, nada alegre, a casa. Portanto, quando já cá não estiveres...:-e fez um gesto vago: - Ponho-me também a andar.
Oh! João Lucas, que contas fazer ?
Ele arrancou da cabeça o adorno feminino e pôs-se de pé:
- Alistar-me no exército Leclerc. Vinha para to dizer mas o teu estendal desviou-me para o passado. Vamos, não chores. Como queres que um rapaz da minha idade se interesse pelo grego e pelo latim, quando ainda ficaram alemães na nossa terra?
- Mas... eles vão desaparecer. Os nossos blindados atingiram Estrasburgo, Haguenou... aproximamo-nos de Mulhouse.
Ele envolveu-a num grave olhar de homem. E apiedou-se da pequena noiva que parecia ignorar perigos tão ameaçadores.
Não desaparecem sem que a gente os empurre. Vou ter com os que estão a "empurrá-los". Aqui tens!
Tens razão - suspirou Isabel, volteando o lenço entre as mãos. -Mas então, tu crês, tu crês que...
Não creio nada, menina, não sei de nada. Não sou político nem general. Mas quero ir ter com os outros.
Quando partes, João Lucas ? Não deixas de ir ao nosso casamento, pois não ? Seria tão triste casarmo-nos sem ti.
Um gesto largo e vago:
- Espero ir... a menos que me chamem antes
disso. Mas que rapariga! Já se pôs verde como
uma alface. Senta-te. Escuta...
Ele sentou-se à beira da mesa, defronte dela:
Espero lá estar, minha jóia. No entanto - e readquiriu o seu tom mundano-prepara a Denise para a grande decepção que não deixará de sentir se tiver que fazer sozinha o peditório no dia 21. Pobre miúda, para ela é uma festa, isso de passear pela igreja de vestido até aos pés, acompanhada por este encantador cavalheiro; encantador a seus olhos, sobretudo.
Tu não és amável para com ela.
Amável, amável! Ora... Adora-me e eu não a adoro. Aí tens. Que posso eu fazer? Achas possível amar por dever? Tu amaste o Hugo Lesoir? A Catarina ama o Saint-Ivy? O Sílvio amou a Teresa, logo ao princípio?
- As tuas comparações não provam nada. A Denise é uma pequena deliciosa que saberia tornar feliz a criança grande e amimada que és e serás toda a vida. Mais nenhuma mulher havia de saber amar assim o insuportável João Lucas!
Ele encolheu os ombros:
Vou, talvez, mudar no Exército. Até talvez vá morrer... Portanto é inútil agravar o desgosto da Denise.
Cala-te - suplicou Isabel. - Eu julgava que a guerra ia acabar... que mais ninguém morria.
Então ele fez por rir e por que ela risse. Mas soava falso. Lá fora, uma bruma cinzenta, opaca, envolvia Paris.
Também os dias vindouros estavam envoltos em bruma...
ESTRANHO, esse inverno de 1944! A França perguntava a si própria: "Quando? como terminará isto?" Porque a independência de Paris, o coração, não libertara o grande corpo martirizado pela corrente atroz que o prendia. Paris respirava: os membros sofriam ainda.
No entanto, o vestido de noiva de Isabel aprontava-se.
Vestido precioso. Tecido cuja beleza fora longamente preparada: fiado por bichos de seda... aprontado por máquinas. E depois medido, cortado, com o ruído seguro do aço; dobrado por mãos cuidadosas, envolvido em papel fino, transportado com precaução a casa da noiva que, há meses, o guardava. Certamente, não seria um vestido de sonho, em teia de aranha, mas uma vitória do trabalho, paciência e gosto.
Do mesmo modo, Liseron preparava a sua alma de mulher. "Este sacramento é grande": quantas vezes repetia para si essas quatro palavras de S. Paulo, extraindo-lhe um sumo carregado de vida. E sabia que Florêncio, nas planícies da Alsácia, pensava também que "este sacramento é grande" e preparava para ele a sua alma de rapaz. Estranha preparação, eficaz e rude, a vida de exército. E ela sentia-se feliz por se ver como ele, obrigada a sacrifícios de ordem material, mortificando o desejo de conforto.
Nos seus sonhos de rapariga, sempre, imaginara um lindo enxoval: para si, sedas cor de rosa, bretanhas de linho, rendas delicadas. Para a sua casa, pesados damascos e bordados ricos. Ora, não tinha nada. Nada era razoável comprar nesse inverno. Com uma pontinha de melancolia, apesar de tudo, pensava:
"Caso-me como qualquer rapariga pobre. Que havia de dizer a Jeaníne?"
O sumptuoso enxoval deixado por Jeanine continuava encerrado em gavetas perfumadas. João nunca permitiria que lhe tocassem.
"Mesmo assim, é um exagero", dizia consigo Teresa, que não tinha reservas de roupa interior e que, simples como era, teria achado lógico recolher essa herança materna. Parecia-lhe que os mortos o permitiam...
Mas Estefânia - embora louca por vestidos bonitos - cerrava os lábios e o seu rosto como que envelhecia à mínima alusão ao enxoval da mãe. Não, não conseguiria usar nada que tivesse pertencido à pobre mulher cuja beleza ela vira esmagada. Teresa não o aceitava muito bem. Isabel compreendia.
De resto, a questão depressa fora abandonada. Outros problemas, mais graves, eram apaixonadamente discutidos pelas três irmãs. Natália, a mais velha dos Morot-Léandre, procederia bem em continuar médica do exército, deixando o filho no campo? Catarina obstinar-se-ia, apesar da oposição dos pais, em casar com Estêvão Magloire, o músico trinta anos mais velho do que ela? Solange não abandonaria as suas ideias de convento, agora que usava uniforme? Denise, a mais nova, acabaria por ser amada por João Lucas, o herói dos seus sonhos?
Natália? Estefânia defendia-a: "Ao menos, faz alguma coisa. Procede bem. A criança cria-se melhor no campo do que em Paris, onde não há o necessário." Teresa censurava-a, achando que o lar estava acima de tudo. Isabel, repartida, como sempre, entre sentimentos complexos, hesitava. Todavia, com certeza, mais tarde, não iria confiar os seus filhos a terceiros. Mas não teria Natália o dever de pôr a sua ciência ao serviço dos soldados?
Solange? Fani dizia: "Estou certa de que perdeu a vocação. Basta olhar para ela". Teresa dizia: "Uma vocação profunda resiste a tudo". Isabel servia-se do célebre argumento: "Os Morot-Léandre nunca mudam de ideias".
O caso de Catarina era o mais apaixonante. Porque se mantinha absolutamente decidida a ser mulher de Magloire. O pai recusara o consentimento; o cabelo da mãe havia embranquecido... O desgosto que lhes causava afligia a Cigana, e profundamente, porque tinha um coração de ouro. Mas nada a fazia ceder.
- Visto que nós nos amamos.
-O teu Magloire! Trinta anos mais velho do que tu... Um feitio impossível... Todo um passado sentimental atrás de si.
- A idade? Não conta. Um feitio impossível?
Comigo não. Um passado sentimental? Farei por que o esqueça - replicava a Cigana com os olhos a brilhar.
E ia para o piano e tocava com tanto entusiasmo que o pai fechava todas as portas: acabaria por enternecer-se, se escutasse. "Ah! porque razão ensinei piano às minhas filhas?!" Gritava, isolando-se no escritório.
Magloire, esse, declarava que os pais tinham razão e que se afastaria de novo. Mas, desta vez, para um país tão longínquo que Catarina nunca o poderia encontrar. Então ela cantava-lhe à moda de Mireille: "Je me ferai hirondelle et vous retrouverai" .
Para o músico, que adorava Catarina, o conflito era terrível. Quando da primeira fuga, supusera que o seu afilhado, Joel Saint-Ivy, saberia ganhar o jovem coração ardente. Mas aquele coração dera-se duma vez por todas; e era tão atraente, tão magnificamente simples na sua paixão, Catarina, que ele fraquejava.
Doloroso conflito! Isabel revia-o, tricotando uma camisola para Florêncio, quando o telefone tocou. Uma voz cantante:
- Sou eu; Catarina. Preciso de te ver. Não, não, não há nada de extraordinário. Também não há notícias do Florêncio. Trata-se de mim, simplesmente. Já aí vou.
Isabel achou-a linda, com a sua pele corada pelo ar cortante, os lábios redondos e vermelhos, o queixo de curva voluntariosa, os grandes olhos de paixão. Catarina nunca perdia tempo com discursos.
Preciso de ti, Bebel. Sempre a mesma história. Quero casar com o Magloire. O pai não quer. Ainda há pouco houve uma cena.
Outra!
Sim, outra. Isto tem que acabar. Já que não cede, nem eu cedo - oh! sou bem sua filha - é preciso fazê-lo ouvir a razão.
Ele julga ter razão, precisamente.
Uma forma de razão que é uma desrazão. Não sei quem foi que disse: "O coração tem razões
' Far-me-ei andorinha e hei-de encontrar-te.
que a razão desconhece". Foi Pascal? Obrigada... E houve também outro grande homem que disse: "O raciocínio bane a razão". Foi o Molière? Como és sábia, digna discípula de Cristal. Vai longe, longe, o Instituto e as aulas de literatura. Como éramos miúdas...
Sim... eu chamava-lhes "as rapariguinhas escocesas", por causa dos vossos vestidos. Morria por lhes falar e não tinha coragem.
Não supunhas que virias a ser nossa irmã! Mas voltemos a Pascal e Molière. Não eram nenhuns tolos; podemos crer neles portanto; logo, é possível arranjar elementos para chamar "à razão" o meu desrazoável pai. Mas é preciso encontrar argumentos vigorosos... Compreendeste? Compreendeste mesmo? Não tomes esse ar de menina ajuizada. Escuta: só tu é que tens poder para acabar com esta casmurrice paternal.
Eu?! Que é que eu posso fazer?
Lá em casa, é tudo louco por ti. Acham-te bonita, distinta, doce, fina, enfim tudo aquilo que nós não somos, apesar da boa educação recebida, nós, as terríveis Morot-Léandre. Chamavas-nos as "rapariguinhas escocesas": no moral, é a mesma coisa: quadrados de todas as cores... Vais casar-te daqui a quinze dias, feliz criatura!
Mas olha lá, há quanto tempo estou eu à espera?
O tempo? Segundo os filósofos modernos, o tempo tem apenas um valor relativo. Como sou mais ardente do que tu, a minha espera, mais curta segundo o calendário, conta o mesmo. É assim, não te zangues. Portanto, vais proceder como uma irmãzinha gentil. Pedes ao teu futuro sogro - como prova da sua afeição por ti - que conceda à Catarina o direito de também ser feliz. Vestes o vestido e pões o chapéu de que ele gosta mais: aquele, dum azul suave que te fica tão bem. Um pouco de pó de arroz, não muito. Um nadinha, nadinha de "bâton"; tens que o beijar sem deixar marcas que o paizinho detesta. Tomas o teu ar mais cândido, mais "liseron", pois quê! E dizes-lhe...
Não digo coisa nenhuma. Não quero vê-lo zangado.
Sério? Com que então a menina, que chora por qualquer gato tinhoso, não estende a mão para ajudar a irmã do seu bem-amado Florêncio? Não acredito. Veste-te depressa e vai ter com ele ao escritório: boulevard Haussmann - não quero a mãezinha ligada a isto. Espero-te aqui. Entretanto, dás licença que me sente ao piano?
-Para tudo o que quiseres, não está ninguém em casa. Sabes, Catarina, acho-te infame. Pedes-me impossíveis. Mas... Está bem! Eu vou.
-? Tinha a certeza! Pega lá o chapéu, as luvas, o lenço. Estás um amor. Exactamente o género que agrada ao pai... na verdade é estranho que as filhas viessem tão diferentes do seu ideal feminino.
Parecem-se com ele, olha! - disse Isabel amuada.
A Denise não. Por isso é o seu "ai Jesus", o seu tesouro. Essa, quando lhe pedir para casar com o rapaz que ama, ouve um "sim" dito com todo o gosto.
És parva, Catarina. Sabes muito bem a quem é que ela ama. E o João Lucas não é o marido que convém à tua irmã.
Sabes lá! Eu sou a Cigana, adivinho o destino das pessoas. Mas, desaparece. Estás rabugenta e não dizes senão asneiras.
Tenho razões de sobra. Do que te foste lembrar!
Fechada a porta Catarina abriu o piano. Alegria de correr os dedos sobre o teclado! A sua alma cantava, chorava, suplicava. Já não era revolta. Antes uma lancinante queixa humana, uma oração.
João Morlainville, ao voltar mais cedo do que o costume, reconheceu a execução de Catarina, a qual, julgando-se só, magnificamente só, libertava todo o seu segredo. Aproximou-se furtivamente do salão. Estranho poder o da música: formava-se um mundo à parte. Reencontrava Jeanine: Jeanine, rapariga linda e frívola, por quem julgara ser amado. Jeanine, mulher jovem, deliciosa, ao lado dum marido mais rico do que ele o era nessa época. Jeanine viúva, desamparada. E depois a "sua" Jeanine finalmente, sua companheira, sua felicidade. Jeanine que, todavia, o desdenhava, chamando-lhe "manga de alpaca", e, em seguida, Jeanine desabrochando plenamente junto do marido que se tornara célebre. Jeanine envelhecida, e ainda mais amada na sua fragilidade de flor demasiado aberta; Jeanine... Jeanine intangível agora. Mas que a música trazia para tão perto.
"Mas onde é que esta garota foi buscar um tal sentido da vida? É uma loucura, contrariar o seu amor pelo artista incomparável, o Magloire. Ela nunca se libertará. Apesar da sua idade, do carácter original, os destinos de ambos foram feitos para se unirem. Pobre Cigana, como é que o pai ainda lhe não viu esta personalidade de excepção? Oh! os homens de negócios!"
Por muito tempo ainda, Catarina tocou. Os seus trechos favoritos - aqueles que trabalhara com o mestre - vinham, uns após outros. Depois, improvisava. E João, imóvel por detrás da porta, decifrava totalmente o sentido de cada frase: poeta, punha versos onde só existia música.
Correu uma chave na porta. Isabel apareceu com as suas peles cinzentas, e o seu fato azul forte.
- Já de volta, paizinho?
-Schiu!
Então veio ter com ele, tirou o chapéu e encostou-lhe a cabeça ao ombro. Sentia-se cansada, tão cansada de ter lutado contra uma vontade de homem. A este outro homem, bem diferente, a seu pai, quisera contar a entrevista. Mas o piano cantava sempre. Por fim, desprendeu-se e, com tristeza:
Paizinho, todavia, tenho que ir dizer-lhe que o pai não cede. Sim, enviou-me em embaixada. Mas ele foi de tal modo duro! "Nunca consentirei nessa loucura. Não vou permitir a desgraça de minha filha".
A desgraça - repetiu João -, a desgraça...
O improviso de Catarina impressionara-o: revelara uma paixão impossível de conter. Reconhecia-o, ele que amara Jeanine com um amor exclusivo, absoluto. Passou a mão pela testa:
Filha, vou eu, vou eu ter com o Morot-Léandre.
Tu, paizinho ?
Sim, falar-lhe-ei como homem. E... como viúvo duma mulher querida. Vai dizê-lo à Cigana. E ela que tenha esperança, Creio que não soubeste encontrar as palavras necessárias.
-Oh! vai depressa.
- Não, ainda está zangado. Vou amanhã.
Prometo.
Paizinho, és tão bom, tão bom... Ele teve um suspiro:
É que, vês tu, sofri tanto...
O Natal consigo, será maravilhoso, Liseron". Isabel lia e relia essas palavras da última carta de Florêncio. A quantos Natais a alegria faltara; dificuldades familiares, angústias da guerra, o cativeiro de Florêncio... Desta vez, o Natal seria feliz.
"Só consigo ser perfeitamente feliz junto do Florêncio. Dá-me a impressão que o esperei a vida inteira. Sim, vai ser belo, o nosso Natal!"
Mas o pai, como passaria esses dias de festa em que Jeanine tanto gostava de fazer-se amimar? Abandoná-lo era uma sombra na alegria do seu casamento. Evidentemente, o abandono seria breve, visto Florêncio apenas dispor duma curta licença, finda a qual voltaria às fronteiras; mas coincidia com o Natal e João ir-se-ia sentir só, tão só...
"Mesmo assim, é preciso que se arranje uma festa para que o paizinho se não sinta tão gelado. Vou pedir à Teresa, que organize alguma coisa em casa dela. Aqui ia tornar-se ainda mais triste".
Ao sair para a Avenida encontrou-se com João Lucas que regressava.
- Vais para o metropolitano? - interpelou-a. - Levo-te até à Etoile. Vamos conversando pelo caminho.
Tinha uma voz esquisita, voz do garotinho de outrora, quando se preparava para uma confidência difícil. Caminhavam lado a lado, no mesmo passo rápido.
Raio de tempo! - disse João Lucas. - Húmido, frio, mesmo bom para apanhar gripes.
Espero - respondeu ela alegremente - que o sol descubra no dia 21, embora seja o dia da inauguração oficial do inverno.
21?... Ah! Sim... o dia do teu casamento.
Já tens toda a tua fatiota em ordem? Sabes que quero um cortejo todo chique!
Se já tenho... o quê?... Ah! sim... não, não vale a pena. Escuta - disse, dando o braço à irmã - não desmaies. É provável que não assista ao teu casamento.
Perdeste a cabeça?
Oh! Toda a gente a perde, num momento destes. Há razão para isso.
Não compreendo.
Tanto pior, ou tanto melhor. Isabel, disse-te que queria alistar-me no exército Leclerc. Está feito. Portanto, é possível que, no dia 21, já eu esteja longe.
Mas se tudo corre bem... Se as nossas tropas já atingiram Estrasburgo.
"Pobre garota! - pensou - não tem a mínima noção dos acontecimentos. Como é mulher pensa apenas no amor dela e esquece a enormidade das coisas gerais".
Mas respondeu somente:
- Para que as nossas tropas avancem mais,
é preciso que todos os rapazes se alistem. Portanto, vou também.
Podias ter esperado um pouco, João Lucas.
Não podia - replicou áspero. - As mulheres nunca compreendem.
Deixaram-se, em frente do Arco do Triunfo que se desenhava sob o céu cinzento. Isabel estava perturbada, inquieta, sentida.
"A Teresa, que é cheia de bom-senso, vai certamente censurar o João Lucas. Deixar-nos precisamente na altura do casamento! Com franqueza, não acho bem."
Mal entrou na casa pequenina de Montmartre, anunciou o novo contratempo. Mas Teresa, em tom calmo, não teve hesitação em declarar:
- Faz ele bem.
E desviou logo a conversa, o que desconcertou a pobre noiva.
O pai? Muito trabalho?
Sim. Estão a tirar um filme da sua última peça. E nem calculas o que isso o enerva, o realizador não procura captar-lhe todos os cambiantes. É como se lhe deformassem o pensamento. Tudo isto o arrelia, percebes.
Oh! os poetas, os poetas! - murmurou a Maçã que tinha sempre um ar de quem pensava noutra coisa.
Isabel, que a estranhava, disse com timidez:
Vinha precisamente falar-te dele, Maçã. Não passarei o Natal em casa e ele ir-se-á sentir tão só, tão triste, sobretudo se o João Lucas partir também.
Fica descansada! eu convido-o. Almoça em nossa casa.
A Maçã adorava dizer "nossa casa" e a mana Fani achava-a muito plebeia.
- Queria - continuou Isabel - qualquer
coisa mais do que um almoço de família. Não poderias arranjar uma árvore de Natal para os teus filhos e os da Fani? Não me dirijo a ela:
não havia de saber. Arranjava tudo muito lindo muito caro, mas sem intimidade, sem encanto. Aqui tudo se presta... Será verdadeiramente "Christmas", como dizem os ingleses. l saberás encontrar ideias lindas da mãezinha para que os miúdos se divirtam e os grandes se sintam menos tristes. Não é verdade? Teresa abriu as mãos.
Sabes, não sou rica. E tudo custa muito caro.
Mas a Fani pagará de boa vontade! E depois, eu já arranjei presentinhos. Teresa, diz que sim! Senão o dia de Natal - que deveria ser o mais belo da minha vida - não o será inteiramente. Repara que isto é um pouco triste: a todos os meus Natais de criança e de rapariga, faltou qualquer coisa, mesmo quando me enchiam de presentes e bombons. Não deveria dizer-te talvez: todos vocês foram sempre bons para mim. Mas havia sempre um cantinho triste no meu coração.
A Maçã tomou nos joelhos a pequenina Maria e, acariciando-lhe os cabelos, contemplava longamente esse rosto tão semelhante ao de Sílvio. .- Querias uma árvore de Natal, Maria?
- Oh! Sim, mãezinha! Como a do meu livro
de imagens. Um pinheiro desta altura e coisinhas que brilham nos ramos todos, e brinquedos. Neve, neve também!
Os rapazinhos tinham-se aproximado.
E fazemos uma roda à volta dele... e cantamos... Acendem-se velinhas às cores... Mãezinha, deve ser uma coisa tão bonita, tão engraçado! Nunca vimos uma árvore de Natal a sério. Dizes-nos sempre: "Depois da guerra".
A guerra não acabou - respondeu gravemente Teresa. - Vocês sabem bem.
Mas os alemães já não estão em Paris.
Vês - interveio Isabel - também lhes tem faltado qualquer coisa à felicidade do Natal... Maçã, porque é que estás hoje tão esquisita?
- Não sei, filha... O tempo... Não me sinto
muito bem... Enfim, já que tens tanto interesse, faço uma árvore de Natal e convido o paizinho.
Mas...
Ergueu-se bruscamente. Maria julgou ser brincadeira e pôs-se a rir, Isabel olhou-a atónita. A Teresa habitualmente tão calma e hoje tão nervosa:
- Como vai o Sílvio? - perguntou, receando nova fantasia do marido de Teresa.
Mas esta respondeu:
- Bem. Muito ocupado, neste momento. Quase nunca o vejo. E tu, que contas de novo? O teu vestido de noiva, está pronto? Encontraste sapatos a teu gosto?
Teresa tinha diante dela a cestinha de trabalho sempre transbordante. Isabel tirou de dentro uma peúga e ambas se puseram a passajar os calcanhares gastos pelos pés turbulentos de Francisco, Domingos e Maria.
Novidades? O meu vestido está a fazer e vai ficar lindo; mas não consigo encontrar sapatos bonitos... Depois do casamento pensamos ir passar alguns dias em Fontainebleau. A floresta é bonita em qualquer estação.
E têm lá recordações - replicou sorrindo Teresa. - Lembras-te do piquenique, antes do vosso noivado? Violetas por toda a parte. Adormeceste no chão, ao pé de mim. E olhava-te, tão comprida, tão delgada, tão criança ainda... Quem me diria que, já nessa altura, havia um moço que amava aquela garotinha alta...
Sim, recordações maravilhosas! Eu ainda não sabia que nos amávamos, mas sentia-me tão feliz enquanto colhia violetas. Já era amor, essa felicidade.
-Era amor - murmurou Teresa, sonhando também com o prelúdio do seu próprio romance.
- Mas deixa - continuou Isabel - que te anuncie a grande "nota do dia": o casamento de Catarina. Dois dias a seguir ao nosso. Na intimidade, bem entendido.
De branco ?
Oh! não. Nunca procede como os outros, a Catarina. Pediu que lhe pagassem um casaco de peles em lugar do vestido de noiva. O padrinho é o nosso pai. Sabes, é que foi ele quem arrancou o consentimento ao sr. Morot-Léandre. É estranho, não achas?
Isso explica-se. Gostou da mãezinha a tal ponto que aprendeu a captar todos os aspectos da paixão. Como tu, como eu... Apesar dos erros do Sílvio, nunca poderia casar com outro. É por isso que compreendo a Cigana. Tu também, não é verdade?
Sim e não... Vai casar com um velho e é tão bom sentir que ambos somos novos! Há nisso uma determinada espécie de alegria que acho maravilhosa. E se tivéssemos casado antes destes horríveis anos de guerra, teríamos conhecido, o Florêncio e eu, uma felicidade ainda mais fresca. A guerra envelheceu-nos, podes crer.
Depressa hão-de rejuvenescer! O Florêncio é dinâmico e tu tens uma frescura de nascente. Lembras-te das nascentes da montanha?
Sim, antes de a vermos sabemos que está ali, por causa da frescura, o verde é mais vivo nas folhas, do clarão das flores. Quantas vezes, ao ajoelhar-me junto da água, para lavar as mãos e beber, pensei: "Esta nascente quereria ser para alguém".
Teresa sorriu, mostrando os belos dentes:
- Esse alguém... chamava-se Florêncio.
Não somente ele... Vês tu eu espero e desejo ter piedade, amor, força para ajudar muitos, além dele.
Os teus filhos.
Os meus filhos, sem dúvida. Mas isso ainda me não basta. Sinto dentro de mim um tal desejo de alargar o círculo! E de ser uma nascente portadora da vida, que vá longe, muito longe...
Teresa ergueu para Isabel os olhos verdes, brilhantes:
Ambiciosa! Eu, contento-me com a minha casa. Mas nem a todos se pede o mesmo. Escuta a voz que fala dentro de ti. Devemos sempre escutar. Mesmo que peça coisas difíceis.
Sobretudo se as pede - murmurou Isabel. - É preciso que nos saibamos ultrapassar, não achas? - Continuou - E aí tens a razão porque amo o Florêncio: possui o gosto do difícil. Nunca será um medíocre, um senhor curvado, preso ao dinheiro, ao bem-estar. E crê que nunca o deterei a meio do caminho de aventura que escolher. Segui-lo-ei.
Decididamente, o amor transforma as pessoas. Tu, a garotinha medrosa e frágil que se escondia nos braços da Marieta, hás-de segui-lo em caminhos de aventura?... Ah! aí vem o Sílvio.
Os petizes correram para o pai soltando gritos de alegria. Ele ergueu-os nos braços, um de cada vez, e beijou depois as bochechinhas rosadas da mulher.
Princesa Isabel, perde então o seu tempo a remendar as peúgas dos meus filhos? - disse, com aquele seu sorriso trocista, o sorriso vaidoso de outrora. - Julgava-a ocupada nos últimos retoques da magnífica boda.
Porque é que está a troçar, Sílvio?
Porque me apetece...-respondeu somente, o que enervou Isabel.
Vocês hoje estão impossíveis. Dir-se-ia que alguma catástrofe os ameaça. Sim, você, Sílvio, e o João Lucas e até a Teresa. Tão próximo do Natal, não está certo.
Tão próximo do Natal... tão próximo do Natal...-repetia, embalando a filhinha. - Com franqueza, nem sequer me lembrava do Natal.
Lembrou-se a Isabel - disse Teresa. - Vinha pedir-me para fazer cá em casa uma Árvore para toda a criançada da família: para distrair o pai do seu desgosto, nesse dia.
-Como eu cá não estarei... você compreende, Sílvio...
Ele olhou-a de modo estranho. E bruscamente:
Seja. Faça-se a Árvore. Mas onde é que se vai buscar o pinheiro e os enfeites? Arruinamo-nos. Estou sem vintém.
A Fani paga - tranquilizou Isabel rindo. Ela está sempre pronta a pagar. Para imaginar é que não. Por isso quereria que a festa fosse aqui. Têm ambas tanta imaginação e compreendem tão bem as crianças!
Como a Teresa quiser. Compete-lhe decidir.
E a si também. Conto consigo! Vai fazer centenas de bonecos para a Árvore.
Ele pôs-se a assobiar sem responder. Então Isabel zangou-se a sério:
É inútil conversar hoje. Você está na disposição de não tomar nada a sério. Nem sequer o meu casamento!
Que queres - murmurou a Maçã -, vivemos um momento tão estranho...
-Olha, hoje tive um encontro - anunciou Sílvio. - Uma das minhas primas da província, a Mariana. Foi ela quem me reconheceu. Da última vez que a vi, num casamento na minha terra, era ela uma garotinha de voz esganiçada. Agora é uma linda rapariga bem lançada e que parece ter ideias muito desempoeiradas. Aborrecia-se mortalmente no seu vilarejo, amarrada a uma máquina de escrever; acabou por conseguir que os pais a deixassem vir para Paris. Quer ser "alguém": disse-me isto com um arzinho resoluto e enternecedor.
Que idade tem? - perguntou Teresa.
Quinze anos. Tem mais quatro irmãos e três irmãs. Talvez por isso a deixassem partir... uma espécie de preceptora em casa duma gente que a faz trabalhar muito e a alimenta mal. Mas, à noite, estuda apaixonadamente na sua mansarda sem fogo. Interessante, na verdade. Não é propriamente bonita, mas tem um rosto que fala. Uns olhos ardentes, uma cabeleira em desordem, uns dentes muito brancos. É alta, forte. Disse-lhe que viesse ver-te.
Se é preceptora - exclamou Isabel - podia ir para casa da Fani!
Não, minha jóia... Perder-se-ia, em casa da Fani. Adquiria o gosto pelo luxo. Ao cabo dum mês vê-la-íamos pintada, garrida, devorada pelo desejo de ser tão chique como a Fani... Eu... acho que a devíamos ocupar aqui. Assim... não estarias só, Teresa.
Porque razão se encheram de lágrimas os olhos de Teresa? Apesar disso tenta sorrir:
Onde a metíamos nós, Sílvio? É tão pequenina, a nossa casa.
Ali no divã. Mas ela parece-me muito independente. Não sei se vai querer. Em todo o caso, convidei-a a almoçar no domingo. Por grande deferência, deixam-na sair.
Isabel, tendo já passajado um bom número de peúgas, sacudiu os fios que se lhe haviam pegado . ao vestido e, beijando a pequenina Maria:
- Estás contente por ires no cortejo? O teu vestido já está pronto?
-Que vestido ? - perguntou a pequena. - Eu sei lá!
Então Isabel foi-se embora, decepcionada, triste. Ninguém ali pensava no seu casamento. Oh! se a Marieta vivesse ainda... Essa, não pensaria em mais nada.
"- Senhor Florêncio, confio-lhe a Isabel. Nunca a faça chorar."
"Creio que só duas pessoas me tiveram amor como eu gosto: a Marieta e o Florêncio."
A noite chega depressa em Dezembro. O céu, sem estrelas, a terra, sem claridade. Ao fundo das ruas tortuosas e negras de Montmartre, Paris estendia a sua massa escura. Tudo se calava. Uma angústia como que adejava sobre a cidade, todavia liberta da ocupação estrangeira. Isabel admirava-se de sentir essa impressão.
"É verdade, a guerra ainda não acabou. Esquecia-me... Ah! não devia ter ido a casa da Teresa. Costumo trazer de lá paz, confiança. Hoje, achei-os esquisitos. E sinto-me triste, eu, que vou casar daqui a dias. Porquê?
Deteve-se sobre Paris. Mas nada se via. Nada se ouvia. Silêncio... Silêncio que recordava os dias trágicos. E aquela tristeza, aquela tristeza, como se qualquer coisa estivesse para vir...
ÚLTIMA prova. A costureira afasta-se, aprecia a obra, está vermelha de prazer. Com um alfinete entre os dentes, exclama:
- Que linda noiva, menina Isabel!
Isabel olha o grande espelho e não se reconhece. Muito esguia, no cetim branco, escapa ao tempo, à moda. Já nada tem da pequena Morlainville no seu tailleur de linhas sóbrias.
"O Florêncio irá gostar do meu vestido?", pergunta a si própria.
Tem muito interesse - toda a vida desejou agradar, é essa a sua fraqueza - em que todos os que forem ao casamento a admirem. Mas que o vestido seja "amado", isso é um cambiante reservado ao esposo. O coração bate-lhe sob o tecido de reflexos leitosos. Ei-lo enfim bem próximo, esse dia tão desejado!
Encontra palavras justas e amáveis para felicitar a costureira, agradecer-lhe, assim como às aprendizas:
- A senhora tem tanto gosto! Eu bem sabia
que havia de sair obra-prima.
Está seguro apenas por alfinetes. É no próprio dia, já sobre a noiva, que se dão os últimos pontos nesse vestido que será usado uma única vez. Isabel despe-se com infinita precaução. Enfia a saia pregueada, a camisola de lã, o casaco de pele. E, depois das últimas recomendações sobre o véu e as flores, volta para casa. A alegria canta dentro dela, e também aquele orgulho que toda a rapariga sente por ser "a noiva". Uma noiva que oferece ao homem que ama uma alma e um corpo absolutamente puros. Nada perturbou nunca a sua brancura. Ele possuí-la-á inteiramente. E também ela o possuirá inteiro, apesar das tentações, dos perigos, do desânimo desses anos de guerra. Sabe-o. Disse-lho ele. Guardou-se para a sua mulher.
Tarde opaca. Isabel atravessa o Sena que corre em ondas pesadas sob a ponte. Expulsas pelas últimas tempestades as gaivotas pousam a sua brancura sobre o amarelo lodoso do rio e o cinzento do céu. Em Petites-Dalles havia tanta gaivota! Petites-Dalles, recordações longínquas. Não passava então duma garotinha desconcertada pela novidade da vida. Agora a vida já não parece nova a Isabel Morlainville.
"Envelheci demais. Gostava de tornar a ser como quando tinha quinze anos, gostava de ser ainda a fada que não sabia dançar... e que ele fosse ainda o Chinês, que gostava de passar por homem de sociedade, mas logo se punha a falar como um colegial. Éramos tão novos! Mas a mãe do Florêncio disse-me no outro dia, a rir: "Deixa, filhinha, voltarás a sentir-te nova, e ele também, durante a lua-de-mel". Gosto da mãe dele. Uma verdadeira mãe. E sei perfeitamente que também ela gosta de mim. É tão bom!..."
Quando chegou, esperava-a uma silhueta delgada em uniforme: Solange. Isabel ficou radiante.
-Chegas cedo, para o nosso casamento. Ainda bem! Venho agora da última prova do meu vestido de noiva. Um sonho!
Solange assobiava de mãos nos bolsos. Mas Isabel habituara-se aos seus modos desprendidos.
-Vem para junto do fogo. Vamos tomar qualquer coisa quente.
Instalaran-se. A lenha ardia com dificuldade, apesar disso sentiam-se bem. Solange tinha um ar preocupado.
Queres um cigarro? São bons, sabes, americanos. Não, tu não fumas, menina ajuizada? Se a gente, no exército, não fumasse... Enfim, não temos tempo a perder. Parto dentro duma hora.
O quê? E o casamento? Voltas, não?
-Mas ó filha, tu vives na lua? É triste constatar que sou sempre eu quem dá novidades aborrecidas. Isabel, minha Liseron pequenina, escuta. ..
Oh! cala-te, vais dizer-me que o Florêncio morreu!
Que tontice! Não, não morreu nada! Apenas tenho que explicar-te uma coisa que te vai aborrecer. Parto esta noite e não volto. Todos temos que estar nos nossos postos. Todos, percebes? Começando pelos oficiais. Portanto, portanto... não há licenças. Nem mesmo para casar. O Florêncio não pode vir.
Mas tu estás doida! Ou é apenas maldade? Por favor, não brinques com uma coisa destas.
Solange pegou-lhe nas mãos:
-Nem doida, nem má. Informada. Não tens sabido de coisa alguma, minha querida. Absorvida pela ideia do casamento, não lês o jornal, não ouves o rádio, e o teu pai não ousou dizer-te.
- Dizer-me o quê?
- Que isto vai mal. Os alemães atacam de novo. Evacuámos as nossas posições ao longo do Reno. Precisamos de defender a Alsácia. O Florêncio, que encontrei de passagem, deu-me esta carta para ti. Lê, já que não queres acreditar-me.
Creio que não será muito extensa...
Ele escrevia:
"Liseron querida, tenho o coração partido por ver a nossa felicidade fugir de novo. Seja valente, uma verdadeira mulher de soldado. A luta vai ser breve com certeza. E casaremos. Amo-te, oh! como eu te amo!"
Isabel, branca e de lábios trémulos, voltou-se para Solange e, presa dessa violência que por vezes a possuía, atirou-lhe palavras injustas:
Tu, és sempre tu quem me traz más notícias. Já a morte de Jeanine...
Sim - confirmou Solange gravemente -, sempre eu. Duro privilégio, asseguro-te. E, de cada vez, pergunto a mim própria: "Porque hei-de ser eu?" Certamente convirá que seja eu, a missionária de amanhã.
Missionária, tu? Com o teu tipo, os teus cigarros, a tua vaidade, o teu mau carácter?
-Com tudo isso - respondeu Solange empalidecendo também. - Deus tornou-me assim. E aceitei. Isabel também tu precisas de aceitar.
- Não posso. Não quero. Já sofri demais.
Não aceito que a felicidade nos seja arrancada precisamente no momento em que a íamos agarrar. Estou farta, ouves-me?, farta de sensatez, de resignação, do tipo "Liseron" de que vocês tanto troçaram. Sou mulher. Quero o homem que amo. A guerra, a guerra, uma monstruosidade.
Quero o Florêncio. Tudo o resto me é indiferente ou odioso.
Mesmo a França? - perguntou a outra, o busto erecto, os olhos erguidos.
Tudo. Quero o meu marido.
Ele pertence, acima de tudo, ao país.
Não fales assim. Não sabes o que dizes. Tens um coração de pedra.
Deus esculpiu-mo, acredita, para que se possa encontrar nele um refúgio.
Nunca amaste. Apesar de todos os teus namoros.
Amo. Amo-O, a Ele. E amo todos os outros, por Sua causa. Em Si.
A voz suavizara, ganhando reflexões ternas, ora as duma criança, ora as duma mulher.
Chora, peço-te! Faz por chorar - dizia a voz, a nova voz de Solange.
Não posso - respondia uma voz também nova, a voz de Isabel revoltada.
Pode-se, quando se reza.
Não posso rezar.
- Então rezo eu, em teu nome.
Ergueu-se, cruzou os braços sobre a jaqueta militar:
Meu Deus, é a Solange que fala. Vai dizer frases curtas, estúpidas, porque não sabe dizer outras. Mas Vós ides escutá-la porque ela Vos deu tudo. Ajudai a minha irmã Isabel. Que ela se ajoelhe diante da cruz.
Cala-te, cala-te - murmurou Isabel.
Ela, que tantas vezes serviu de exemplo aos outros, não deixeis que se torne uma revoltada. Que ela volte a ser a nossa Liseron. Se eu tivesse um coração de santa, falaria melhor, mas sou a Solange, e isso não é grande coisa. Mas ela, a nossa Isabel, é preciosa diante de Vós. Se uma rapariga de coragem recusa o sacrifício que a França pede, que farão as outras, as que nada compreenderam nunca? Meu Deus, custa-me, isso de me ir fechar no noviciado. Pois bem! ofereço-vos esse sofrimento que prevejo, o adeus à casa, o horrível barretinho de postulante, a regra, a obediência, a mortificação, tudo; ofereço-Vos tudo pela Isabel e pelo Florêncio. Nada mais tenho. Nem méritos, nem virtudes. Mas o que tenho, aceitai-o.
Isabel encolheu os ombros:
Tu, tu a falar assim? Mentes. Dantes mentias... Ou será realmente o que pensas?
O que penso, acredita. Fui muito má. Mas agora já não minto. Estás fechada na tua revolta. Isabel, Isabel, se a Marieta aqui estivesse...
Oh! a Marieta...
A esse nome benfazejo, as lágrimas brotaram enfim.
Marieta, porque morreste? Eu era a tua pequenina. Tinhas-me embalado como a um bebé. Tu havias de compreender.
A Marieta dizia-te o mesmo que eu: "Volta a ser a nossa Liseron".
Juntas, calaram-se. Isabel chorava. Solange, maquinalmente, acendera outro cigarro. Por sobre os telhados, com ruído pesado, passavam aviões.
Finalmente Solange levantou-se.
- Já é tarde. Tenho que partir, Isabel, não imaginas o que me custa ter-te feito sofrer. Mas foi melhor que fosse eu. Se ficares a detestar-me, não tem importância... Diz, se por acaso eu encontrar o Florêncio, que é que lhe digo?
Isabel levantou-se também.
- Dizes-lhe, dizes-lhe... que o amo. Que pergunta tão estúpida!
Pousou a cabeça no ombro da amiga, vestida de tecido áspero.
- Querida - murmurou Solange - , não é duma rapariga em uniforme que precisas para te consolar. Vai ter com a Maçã. Ou com a mãezinha. A mãe é... sei lá! é a mãezinha. Adeus, Liseron. Volta a encontrar a tua paz, a tua ternura. Sê digna do teu soldado.
Para onde vais, Solange?
Para onde se combate. Talvez não volte. Que importa? Disse duma vez por todas a Deus: "Aceitai-me". Deste ou de outro modo, compreendes...
Foi-se embora. Os sapatos grossos rangeram. Isabel ouviu-os por muito tempo. Deixara atrás uma nuvem de fumo azul e a recordação de palavras inesperadas. A Solange... Aqueles Morot-Léandre...
Só, Isabel sentiu-se de repente fraca. Quando o pai chegou encontrou-a estendida, febril, chamando por Marieta, em delírio. Mandou chamar Teresa e esperou-a impaciente, como a João Lucas.
Ele foi o primeiro a chegar; acolheu a notícia do casamento adiado com grande fleuma.
- Claro, o Florêncio não tem licença! De resto, eu também vou partir, paizinho.
A Maçã chegou, sem fôlego, da corrida.
Pobre Isabel! Sim, vou tratá-la. Mas que hei-de eu fazer aos miúdos? O Sílvio encorpora-se amanhã no exército Leclerc.
Também esse - murmurou João.
Então não sabias?... Eu trazia para cá os pequenos mas vinham cansar a Isabel.
Deixa-os na Fani.
Não. A casa dela é muito chique. Os meus homenzinhos simplórios arranjavam lá a mania das grandezas. Preferia deixá-los em casa entregues à prima do Sílvio. Está como preceptora em casa duma gente injusta sem bondade nenhuma. O Sílvio queria-a em nossa casa: chegou a ocasião favorável. Tem só quinze anos, mas agora as raparigas já sabem desembaraçar-se com essa idade. Paizinho, queres deixar-me com a Isabel e ir lá a casa, organizar as coisas com o Sílvio?
Quando ele saiu, a boa Teresa tomou a mão quente da irmã:
Os homens enervam quando estamos com um desgosto. Comigo, minha querida, podes gritar, chorar, dizer tudo o que te passe pela cabeça. Sou a tua irmã mais velha. Sempre foste amiga da gorda Maçã. E eu sou uma mãezinha...
Sofro tanto, Maçã, tanto...
-Com certeza, queridinha. É duro ser mulher num tempo destes, e ver partir sempre o homem que amamos. O Sílvio vai ter com o Florêncio. O João Lucas também. Rapazes de valor. Também nós havemos de ter valor.
Maçã, o meu vestido de noiva...
Não foge, o teu vestido. Esperar-te-á e, no dia do teu casamento, estarás ainda mais bonita do que estarias no dia 21.
Maçã, se ele morrer?
Tolice! Porquê esperar o pior? Confia-o a Deus.
Já não posso rezar. Já não posso.
Rezaremos em teu lugar...
- Falas como a Solange. Oh! se soubesses tudo o que ela me disse. Ela é uma santa.
-Não me surpreende. Há tanta riqueza na alma de todos esses Morot-Léandre.
- Disse, disse... mas apetecia-me arrancar-lhe o cigarro. Era irritante ouvir frases como as suas, ditas, em tom desprendido, por uma rapariga de cigarro entre os dedos.
Isso que tem? Mas não te excites, Isabel. Isabel, obstinada, endireitou-se:
Quando se foi embora, disse...
Cala-te, estás vermelha, cansas-te.
- Disse: "Vou para onde se combate. Talvez não volte. Que importa? Desde que disse a Deus "aceitai-me" deste ou de outro modo, compreendes..." É belo, não achas? Mas eu não estou à altura. Não posso submeter-me. Amo demasiado o Florêncio, o meu vestido de noiva é demasiado belo...
E desatou a divagar, falando das flores que lhe ornariam o diadema... das árias de violino que Saint-Ivy executaria durante a missa... das luvas brancas de Florêncio. E o apelo a Marieta voltava sempre:
"Marieta, sinto-me mal... Marieta, pega-me na mão. Marieta, dá-me de beber..."
Mas não era Marieta quem respondia. Teresa, outra mulher de espírito sensato, de coração amante, de mãos benfazejas, estava ali. Teresa, que também sofrera por amor.
VINTE e três de Dezembro. A casa Morot-Léandre despertara cedo.
"É hoje o casamento da Catarina" - fora o primeiro pensamento consciente de todos.
E ninguém se sentia feliz. Excepto Catarina, a seu modo, diferente do das outras noivas.
O pai, que mantinha, sem nunca voltar atrás, qualquer promessa que fizesse a outrem ou a si próprio, conduzi-la-ia ao altar, se bem que ela tivesse exclamado:
Com cortejo? Mas para quê tanto espalhafato? E se a gente entrasse na igreja como qualquer pessoa?
Não serás "qualquer pessoa". E já que consenti neste casamento, serei o pai da noiva. Se mo permite...
Acordara nervoso: "Um genro da idade do sogro, é grotesco". Levantara-se cedo: impossível voltar a adormecer. E além disso queria cuidar cada pormenor da sua toilette. Para fazer honra, apesar de tudo, à sua Catarina.
Demorando-se um pouco mais na cama, não eram cor-de-rosa as ideias da mãezinha: também lhe desagradava, o casamento. E, além disso, muito feminina, pensava que, pela segunda vez, casava uma filha sua sem o vestido tradicional. Visto Solange não querer casar, seria preciso então esperar a vez de Denise, para uma boda de branco. Essa não casaria de tailleur! Mas quando casaria a Denise, apaixonada por João Lucas que via nela apenas uma garotinha? Ah! o casamento de Florêncio e Isabel, sim, teria sido uma festa de alegria perfeita, e a noiva tão bonita... Mas onde se encontraria o seu filho, em que lugar? Voltaria? Florêncio, Florêncio, aquele belo rapaz, vindo de tão longe... Desposaria jamais a sua Isabel?
Tudo partira: Florêncio, Sílvio, João Lucas, Natália e o marido, Solange... Todos distantes. Em que sítio? Talvez algum deles já estivesse morto...
"De nada vale estar a magicar deitada", -disse para si própria, com os olhos cheios de lágrimas. - "Vou-me levantar. Não falta trabalho, visto cá almoçarem os noivos e os padrinhos. Ah! quem me dera que fosse Saint-Ivy, o noivo da Catarina!"
Por toda a casa errava já uma pequenina sombra, silenciosa e leve: Denise. A mãe foi encontrá-la na cozinha, preparando-se para moer café. Vê-la, refrescava os olhos e o coração.
A pé tão cedo, mãezinha? Devias descansar mais.
Não conseguia dormir...
-Nem eu. É engraçado: cada vez que uma se casa, é impossível dormir! Hoje, e quando foi a Natália... Dores de cabeça, mãezinha? Não te aflijas assim: a Catarina ama o seu Magloire. E asseguro-te que o não amaria se ele não merecesse. Sabes que a Catarina é uma original.
Porque razão tive eu filhos desta têmpera? - disse a mãe, esforçando-se por sorrir.
Oh! eu cá, não sou original. Sou até insípida, como diz o estafermo do Florêncio.
Tu és um amor. Mas porque andas tão atarefada?
-O paizinho diz que faço o café como ninguém, e ele hoje precisa de mimo. Descobri um bocadinho de café verdadeiro na dispensa; estou a fazer-lhe o pequeno almoço. Os homens ficam de bom humor, quando comem bem.
- Que rica dona de casa! Ah! tu hás-de tornar um homem feliz!
Denise sacudiu os caracóis, ainda não penteados e disse com um sorriso malicioso e lindo:
- Sim senhora, minha mãe. Como Vossa Senhoria. É tão bom ter uma mãe a quem se pode imitar.
- Dá cá um beijo! - exclamou a mãe.
Então a pequena deixou o moinho de café e veio aninhar-se.
Macio, tão macio, o teu roupão de veludo, mesmo velho. Mãezinha, ninguém hoje deve fazer cara feia ao Magloire. Iríamos desgostar a Catarina. E hoje é o seu grande dia! Queria que o tornássemos realmente um dia feliz. Tu bem sei que te vais portar bem. Mas Deus queira que o paizinho não tome os seus ares de senhor zangado... Magloire é muito susceptível.
Como é que sabes?
Vi. Tem umas rugas lindas na testa, rugas de génio. Mas aqui, e aqui sim, tem rugas de pequenas contrariedades repetidas com frequência. Adivinha-se que sofreu. Para quê fazê-lo sofrer ainda mais, se já se lhe disse que sim?
Denise, confessa, vai ser-te difícil tratar este cunhado pelo nome próprio?
Ela soltou uma gargalhada:
- É muito velho, lá isso é verdade! Mas tenho que ir filtrar o café. Tu também o vais tomar com o paizinho, não?
- Não. Vês tu, prefiro deixá-lo só com a sua Denise... Dás-lhe paz.
A rapariga inclinou-se sobre a água que fervia, e, despejando-a, pouco a pouco, sobre o café:
- Mãezinha, a Isabel também dá paz ao Florêncio. E a Teresa ao Sílvio. Os homens – não faças troça da minha grande experiência - precisam que as mulheres lhes dêem paz.
Era esguia e elegante, no seu roupão claro. A mãe perguntava a si própria com um pouco de angústia se aquela petiza, criada para tornar uma casa feliz, se não enganaria desejando fundar um lar com João Lucas Morlainville, caprichoso, independente, demasiado belo, e mal educado pela pobre Jeanine. Qual a razão de tal escolha? Suspirou:
Vamos tratar de pôr a mesa. Não esqueçamos que há muita gente a almoçar.
Nem por isso. Tu e o pai. A Catarina e o Magloire. Eu. O sr. Morlainville e a Isabel... se ela vier! E o tal senhor velhote que serve de padrinho ao Mag..., ao Estêvão. Mãezinha, não queres flores na mesa?
Com certeza. Vai tu comprá-las. E brancas. Tudo branco, não te esqueças.
- Logo que o pai acabe de almoçar.
Preparou com arte a mesa do pai. A chávena que ele achava mais cómoda, um lindo toalhete, manteiga economizada da sua própria parte; torradinhas. Quando ele chegou, com ar maçado, o rosto distendeu-se-lhe: cheirava bem e estava ali Denise, vestida de azul claro.
- Almoce depressa, paizinho, está tudo bem quente.
Nenhuma resposta. Não queria dizer nem uma palavra, nessa manhã. Mas Denise era suficientemente esperta para o obrigar a dizê-la. Num arzinho dolente, queixou-se da dificuldade dos seus estudos, solicitando conselhos. Depois mostrou-lhe as mãos cheias de frieiras, o que o enterneceu. Por fim, falou de Isabel, que para o sr. Morot Léandre era quase tão querida como a própria Denise: Isabel estava melhor, o pai supunha-a capaz de comparecer.
É bonito da parte dela... É preciso coragem para assistir a um casamento quando já se devia estar casada, há dois dias.
Ora! Um casamento como este! Uma comédia.
Então, Denise zangou-se.
- Paizinho, queria que hoje fosse delicado. O casamento não é comédia, visto que se amam. Sabes perfeitamente que toda a gente estima Magloire, como homem, e admiram-no, como artista. Fez tudo para afastar a Catarina. Ela nunca cedeu. Ama-o, que queres tu? E já que consentiste agora, não tens nada que tomar ares ofendidos.
Um pouco mais de respeito, menina.
Não vale a pena, a gente entende-se bem assim. Promete-me que serás de facto o pai da noiva. Vá, prometa à sua Denise...
Sua gatinha interesseira! Felizmente que tu não escondes amores no coração!
Sabe-se lá?! - disse ela a rir. - Ninguém sabe com que sonham as raparigas...
Afastou-se e voltou depois:
- Sou eu que te faço o nó da gravata. Quando
estás de mau humor, arranja-lo sempre que parece uma trouxa.
No seu quarto, Catarina cantava. A meia-voz, mas cantava. Era só música, nesse dia. Enquanto se vestia, trauteava as árias preferidas de Magloire. Aquelas que ambos amavam. E experimentava uma plenitude de felicidade. Nem por um instante chorou o vestido de cetim branco, ou a juventude dum marido da sua idade. Não, ela pousara definitivamente o seu amor.
Os Morlainville também se aprontavam. João pedira que fosse ele o padrinho da Cigana cujo romance o interessava e comovia. Quanto a Isabel, mal curada ainda do seu acesso de febre, era-lhe preciso um esforço terrível para assistir ao casamento da amiga. Mas Catarina estaria tão pouco acompanhada! E havia tanta gente a censurá-la! Apesar disso, era-lhe duro comparecer. Ao deparar uma gaveta, com as luvas que deveria usar com o vestido de noiva, Isabel exclamou :
- Não sou capaz!
Sim, era preciso. Por amor a Catarina, enfiou o seu mais bonito vestido, penteou-se bem. E esforçou-se por sorrir. Mas o sorriso mentia. O coração ainda não encontrara paz. E sem paz, Isabel era outra. Que cansaço, céus, que cansaço! Quereria dormir meses seguidos sob a protecção de Teresa. Mas não. Era preciso que recomeçasse a viver. E, daí a pouco, ouviria a troca de promessas de dois esposos.
A campainha tocou.
Um senhor que pede para falar com a menina.
Não, estou cansada.
Insistiu muito.
Em Isabel o apelo dos outros soava demasiado forte para que pudesse resistir-lhe durante muito tempo.
- Mande-o entrar.
Encontrou, na sala, Saint-Ivy, passeando agitado dum lado para o outro.
- Meu pobre amigo! -disse estendendo-lhe
ambas as mãos.
Compreendera. Então, asperamente, ele patenteou a sua dor.
Acabou-se, acabou-se, vai casar. Perdida para mim. Você não pode saber como a amo. Não suportarei vê-la casada com esse velho tonto. É vergonhoso, que ele se aposse da sua juventude! Em breve estará velho e um velho mau. Ela vai sofrer. Ainda é possível impedir. Ela tem o direito de dizer "não". Vá falar com ela, vá persuadi-la a renunciar a fazer a sua própria desgraça.
Desgraça? Não, meu amigo. Ela conhece-o há muito tempo. Ama-o pelo que realmente vale; e esse amor a ajudará a suportar-lhe os defeitos.
O seu principal defeito é ser velho. Nunca a há-de amar como um homem novo. Nem mesmo poderá dar-lhe filhos. Em breve a veremos desiludida, desesperada.
Não creio.
Impeça um crime destes! Suplico-lhe. Endoideço. Faço uma asneira. Houve tempo em que tive esperança. E depois, de novo ele exerceu o seu poder de sedutor hipócrita. Ela ama nele o artista. Mas também eu sou artista e tenho só vinte cinco anos.
Despedaçada ela própria, Isabel teria então que apoiar esse outro ser despedaçado? Impossível aparentemente. Mas quantas vezes curara ela a sua própria dor mitigando a dor alheia. Escutou as queixas do rapaz, por todo o tempo que ele quis falar. Depois, escolhendo as palavras, tentou tocar-lhe as cordas mais altas.
- Você sofrerá... para sempre! A Catarina não é rapariga que seja possível esquecer. Mas sofrerá menos duramente, dum outro modo, e o seu talento ganhará um valor ainda maior. Tornar-se-á um grande artista... Também eu desesperei nestes dias. Que revolta! Por isso o compreendo tão bem... mas não fiquemos neste mau caminho, nem você, nem eu. Sabemos perfeitamente que temos que aceitar. Aceitemos juntos, quer? Ainda o não fiz. Fechava-me, endurecia, preparava-me para ir mal disposta à missa deles. Quer que durante essa missa eu ofereça a sua dor com a minha?
O rosto escondido nas mãos esguias de artista, ele, certamente, chorava. Isabel fez um esforço para rezar, ela que há tantos dias o recusava. Esforço duro, mas seguido duma sensação estranhamente doce. O Senhor embalava seus filhos, visto que ela e Joel sofriam juntos. E o Senhor inspirou-lhe esta ideia:
- Vá pedir ao paizinho que o ajude!
Ele olhou-a surpreendido:
Ao seu pai? A um homem daqueles? Ir aborrecê-lo com o meu desgosto?
Um homem daqueles? É um homem, simplesmente.. Então você desconhece a sua história? Amou a minha madrasta desde muito novo. Ela preferiu um outro, o pai das minhas irmãs mais velhas. O pai também casou, mas sem amor, porque amava sempre Jeanine. A minha mãe não foi muito feliz. Morreu nova... E depois, Jeanine enviuvou. E o pai pediu-a de novo. Casaram. Ele adorou-a. E sabe como ela morreu, tragicamente. Portanto, como você, ele viu a mulher amada casar com outro. Compreendê-lo-á.
Tenho vergonha de lhe fazer esta pergunta: Teria ele alguma vez pensado em matar-se? Ou... em matar? Teria sentido ódio?
Talvez, Joel. Vá perguntar-lhe como pôde resistir.
Está bem.
Fechada a porta sobre o rapaz, Isabel voltou para o quarto. E, sentando-se defronte da fotografia de Florêncio, murmurou:
"Fui cobarde. E tu és sempre valente. Deixei-me ir abaixo, e tu lutas com toda a tua energia. Julguei-me sozinha a sofrer, quando tantos rapazes foram arrebatados pela guerra e tantas mulheres choram. Detestei a tua irmã porque se iam casar primeiro do que eu. Mas agora, vou levantar-me. E, sobretudo, vou amá-los a todos. Vês, foi a piedade por Saint-Ivy que me devolveu a paz. É tudo o que existe de verdadeiro: amar".
Acabou de se arranjar com apuro, em honra de Catarina.
..Catarina... Era mais do que nunca a Cigana, com um belo olhar selvagem. O pai conduziu ao altar aquela rapariga, vulgarmente vestida, como teria conduzido uma noiva de longa cauda sedosa. Exigira que ela levasse um ramo de flores brancas.
Pareço uma idiota: um ramo com um casaco de peles e um chapéu!
Pareces o que és: uma rapariga digna do branco.
Estêvão Magloire, as costas curvadas, o cabelo grisalho, vinha atrás. De facto, ninguém diria que fosse o noivo. O seu rosto, tão expressivo, marcado pela vida, tinha, no entanto, a expressão feliz do de qualquer rapaz no dia das suas bodas. Que sonho, meu Deus! Ter junto de si aquela primavera!
Uma voz maravilhosa, em acordo com um violino, cantou para eles. Catarina dissera : "Quero música durante toda a missa". E houve música, durante toda a missa...
Isabel, os olhos cerrados, contendo as lágrimas, oferecia, como prometera, a dor de Saint-Ivy com a sua.
EM casa da Maçã, Francisco, o filho mais velho, empoleirado num escadote, conversa, como sempre.
- Vou explicar-te a família - diz à prima Mariana. - Os primos não se parecem nada connosco.
Mariana, uma rapariga alta de perfil definido, queixo voluntarioso, prepara a decoração da árvore de Natal.
- Explica lá mas trabalha. Eu já te conheço:
armas em orador. pões-te com gestos, a olhar para o espelho, e o trabalho... está quieto!
Ele encolheu os ombros, vexado:
Se eu cá não estivesse, queria ver como é que te saías com a decoração da árvore!
Saía--me muito bem, mas acho justo que sejas tu, que és rapaz, a trepar ao escadote.
De acordo. Mas continua com as tuas grinaldas. Vou então explicar-te a família... Há o avôzinho, um homem célebre, que faz versos e peças de teatro. Um tipo que seria um camaradão, se não fosse aquele ar triste... A avozinha morreu este Verão, num bombardeamento. Era linda! Depois, há a tia Isabel, um amor de tia, bonita, alta, delgada, com cabelos pretos, olhos azuis, bochechinhas cor-de-rosa. A mãe chama-lhe "a minha miúda". No entanto, vai casar. Devia até já ter casado, no outro dia, com um oficial, o Florêncio, um tipo estupendo. Esteve prisioneiro e fugiu. Parece-me que sempre foram noivos. Mas o Florêncio voltou para a guerra. O vestido de noiva já estava pronto e tudo, tudo. Triste, não achas?
Não te voltes para falar, Francisco.
Ora! Depois há o João Lucas. A gente nem o trata por tio. Compreendes, entre rapazes... Às vezes é muito simpático, outras vezes é embirrante, afectado, insuportável. Também partiu. Finalmente, temos os Bastien, o tio Paulo, a tia Fani. Ele é velho, feio, rico, maçador. A tia Fani é nova e bonita, mas eu acho-a um bocadinho estúpida. Os filhos, vais vê-los: a Edith, um bocadinho vaidosa. Chique demais. E o Guy, um miúdo insuportável, estragado de mimo. No entanto, a mãezinha diz que ele, no fundo, é bom rapaz. Aqui tens. Achas que vais reconhecê-los, quando os vires?
Julgas que sou idiota? Não precisei muito tempo para vos conhecer a fundo, a vocês três.
-Que pensas de nós?
Tu, um homenzinho fixe, não és mau, mas demasiado autoritário e julgas saber tudo. O Domingos é bom como a mãe mas um pouco mole. A Mariucha há-de vir a ser terrível ou deliciosa... E acho-os felizes por terem a mãe que têm.
A tua não é simpática?
É, sim, pobre mãezinha. Mas tem demasiado trabalho, demasiadas ralações com nós sete. E depois... não é o mesmo género de mãe.
Mariana deixara na província uma mãe excelente, mas desprovida de personalidade. Viúva sem fortuna e absorvida por cuidados materiais, dissera à filha de génio independente: "-Vai para Paris, se é essa a tua vontade, contanto que me não peças dinheiro".
Imediatamente a rapariguinha partira, ávida de ver coisas novas e confiante que, uma vez em Paris, completaria a sua educação e se tornaria "alguém". Fórmula que se vincara em seu espírito e tinha para ela uma acção estimulante. Teresa achava a prima talvez demasiado original, mas era tão inteligente e activa que se podia realmente contar com ela. E, ao menos assim, a pequena estava entre família!
Graças à habilidade de Francisco e Mariana, o pinheiro ficou magnífico. Puseram-no no atelier, o sítio onde mais se sentia a falta do pintor, que regressara ao exército.
Uma cabecita sonhava com essa árvore, uma cabecita tão sonhadora e fantasista como a de Sílvio: a de sua filha Maria, a quem chamavam Mariucha, alternadamente insuportável ou deliciosa, amuada ou risonha. Teresa nem sempre a compreendia. Também ela tinha um filho à sua semelhança, Domingos. As mesmas faces redondas e coradas, os mesmos olhos verdes, os mesmos gostos, a mesma serenidade. Mas Mariucha, oh! aquela Mariucha... seus desesperos e alegrias, maldades e arrependimentos, seus silêncios, suas gargalhadas, suas danças, seus caprichos. O pai adorava-a, e ela não se consolava da sua ausência.
Isabel, que compreendia, preparara-lhe a mais deliciosa das bonecas, vestida de fada como Liseron" se mascarara, num dia da sua adolescência. Para Edith, um "bocadinho vaidosa", segundo Francisco, trouxera um pequeno enfeite, da última moda. Há sempre uma moda, houve-a mesmo no inverno de 44! - Isabel, querendo fazer-se bela para Florêncio, prestara-lhe atenção: excessiva atenção, pensava. E era com desejo de desprendimento, de simplicidade, que ela renunciava a essa linda fantasia em favor de Edith, essa Edith tão querida, a primeira criança que lhe pesara nos braços e despertara nela o sentido da maternidade. Edith vaidosa? Em aparência. Fani quisera fazer dela uma rapariguinha mundana. Mas Isabel conhecia as possibilidades daquele pequeno coração, e a criança sentia-se compreendida pela tia. Isso criava entre elas uma intimidade muito especial, da qual, de resto, Fani não sentia ciúmes. Guy era o seu tesouro, porque se parecia consigo. Porque o seu nascimento marcara a reconciliação do casal. E porque era rapaz. Por vezes, revelava-se injusta para com Edith. Então, a criança refugiava-se junto da madrinha e, sem nunca se lamentar, sentia o seu desgosto adivinhado. Chegava amuada e partia alegre. Isabel emanava paz. Não lhe chamara, um dia, Florêncio, "Nossa Senhora da Paz"?
O dia de Natal ergueu-se, cinzento, duvidoso. Nem mesmo havia coragem para regozijo na cidade finalmente liberta. Que se passaria nos exércitos? Isabel chegou a casa de Teresa carregada de embrulhos que Mariana lhe retirou das mãos, para esconder. Foi ter com a Maçã à cozinha onde, apesar das inquietações, o almoço natalício se preparava.
Feliz Natal, Maçã... Feliz Natal, apesar de tudo.
Feliz Natal, irmãzita. Deixa, hão-de voltar em breve, todos seremos felizes, e poder-se-ão fazer bons almoços sem ter que contar tudo por ração. É repugnante a avareza a que fomos condenados ! Lembras-te dos Natais de antigamente, com galinha, chocolate e azevinho na mesa?
-Oh! estou certa de que nos vais servir um almoço delicioso. Trouxe-te coisas... E deixa-me ajudar-te, Maçã. O paizinho está a contar histórias aos netos. Conta-as tão bem, com palavras tão belas! Quando eu tinha a idade deles, encantava-me. E acho que agora ainda as conta melhor do que no meu tempo.
- Pobre paizinho, o primeiro Natal sem a mãe! Todos estamos "sem". Ele, sem a mãe; tu sem o Florêncio. Eu, sem o Sílvio.
-Mas a Catarina está "com"... com o Estêvão. Sempre vou ter um cunhado muito velho, Teresa...
-O Paulo ainda é mais. E depois o coração dum grande artista não envelhece, enquanto que os algarismos gastam. Que enfadonho aquele sujeito! Se eu tivesse um marido assim... Mas, ouve lá, que tal foi o almoço das bodas, divertido?
- Perfeitamente banal, convencional. O sr. Morot Léandre nunca virá a gostar do genro.
O raio de sol foi Denise. Tão gentil com todos!
Quando se foi embora - contou-me ela - a Catarina apertou-a nos braços: "Migalhinha! Não hei-de esquecer nunca o que hoje fizeste por nós!
- Mas eu não fiz nada. -Se não fosses tu, o pai teria estado intolerável. Adivinho que desde manhãzinha estiveste a amimá-lo para que ele se mostrasse mais gentil. E, além disso, todo o ambiente era forçado, mas havia o teu sorriso".
Então Denise perguntou: "Catarina, és feliz, profundamente feliz? - A felicidade canta em mim", respondeu Catarina. Finalmente tomou a mão da irmã: "Pela última vez a Cigana vai ler-lhe a sina. Ama... sofre pelo homem amado. Mas acabará por ser amada". Denise estava vermelha de emoção ao contar-me isto.
-Que estúpida. Gostar do João Lucas...
- Também tu pareceste estúpida por gostar do Sílvio, e a Catarina por amar Magloire, e o pai por amar a mãezinha. Vês, o que importa é amar. "O amor é forte como a morte". eixWo a Imitação.
- Pois é. Queres lavar a salada?
Lugares vagos à mesa. Cada qual pensa num ausente. Mas a Isabel e Teresa esforçam-se por sorrir: para que o dia seja realmente a festa dos garotos. É só depois da refeição, enquanto eles brincam, que se evoca o pavor da hora. Aquele novo avanço dos alemães... Tudo recomeçará? Isabel procura motivos de confiança. Os combatentes são tão bravos! Partiram com tal entusiasmo! É um potente factor para a vitória, o valor dos soldados. João, pensativo escuta-a e contempla-a. É valente, a sua filha, sabe sofrer. Tão nova, sofre melhor que ele próprio. Terá sido pouco generoso? Nessa noite de Natal, uma voz interior o empolgava, o instigava a que desse outro carácter à sua resignação morna e passiva. Qual? não o sabia. Sente a impressão estranha de estar perante uma nova curva da estrada. À tarde, Fani trouxe os filhos e saiu depressa, não se interessou pela árvore de Natal que, no entanto, fora quase exclusivamente ela a pagar.
- Vamos a um bridge. Deixo-lhes os miúdos.
Como a nurse tem feriado, a Isabel terá que os levar à noite. Que longe que é o teu Montmartre, Teresa!
Guy fez uma fita porque queria que a mãe ficasse. Ela enterneceu-se, beijou-o, prometeu-lhe coisas irrealizáveis, suplicou-lhe que "fosse bonzinho". E por fim, vendo a hora avançar, repeliu-o bruscamente:
- Aborreces-me; Edith, toma conta do teu irmão.
Partiu, com as suas peles, o seu perfume, e as suas pérolas. Os gritos do rapazinho cessaram no mesmo instante; pegou na mão de Domingos e pediu:
- Mostra-me os teus brinquedos ?
- Que mal educado! - murmurou Teresa, mas muito baixo, para que Edith não ouvisse.
Edith, muito bem vestida e penteada, Edith, garotinha elegante, mas de olhar triste.
- Deixa os rapazes fazerem o que quiserem -acrescentou em voz alta. - Se se baterem, paciência. Faz tudo o que te apetecer. Tudo o que te apetecer. Tudo o que possa divertir-te, Edith.
Gostava - pediu ela, muito polidamente -de ver os desenhos do tio Sílvio. - Mas talvez ele os tenha arrumado antes de partir, não, tia Teresa?
Não, eu sei onde estão... Vai vê-los com a tua madrinha.
A madrinha sorria, da maneira que Edith gostava. Usava uma blusa azul pálido, suave ao olhar, suave ao tacto. Iria voltar as páginas, apontando com o dedo esguio o que era digno de ser admirado. Quando ela explicava as coisas, todo um mundo se abria. Nem os pais, nem a nurse explicavam. E todavia, a sua pequena alma sentia-se ávida, nesses meses em que, em preparação para a Comunhão Solene, recebia um início religioso surpreendente, emocionante. Descobria o divino. Esse divino em que, com certeza, vivia a madrinha. E não a mãe. Não o pai. Não a nurse. No entanto, nunca revelara à tia que era esta a parte mais dolorosa do seu sofrer. Edith era uma garotinha tão bem educada! Demasiado... A mãe ensinara-lhe que só gente vulgar dizia o que pensava. Mas com a madrinha não era preciso contar. Os meigos olhos azuis liam.
João, contemplando-as, a sua filha e a neta de Jeanine, sentia quanto a mais velha dava à pequena. Como conseguira Isabel encontrar paz, depois de tão cruel decepção? Como voltara a ser a alma fresca e pura junto de quem as alterações desapareciam? Ele, João, não se resignara ainda. Resignar-se-ia jamais? Nessa festa de Natal, algo dentro de si o chamava e dizia: "Dá"... Nem mesmo sabia o que lhe pediam que desse.
- Está tudo pronto! - anunciou finalmente Mariana, as faces em fogo, os olhos brilhantes.
Então Teresa bateu as palmas para juntar as crianças. A porta do atelier abriu-se sobre a árvore deslumbrante. Cantaram-se velhas árias do Natal.
- Paizinho - disse Teresa -, é o avô quem deve distribuir os brinquedos.
Guy soltava gritos de cobiça, apesar das discretas repreensões da irmã. Essa, agradeceu em termos tão perfeitos que Francisco lançou a Mariana um olhar trocista que significava: "Bem te dizia. Uma toleirona". Não era toleirona, era uma criança cuja espontaneidade fora sufocada.
Mas o mais encantador era ver Mariucha em plena euforia. Mariucha, olhos dilatados de admiração, boca entreaberta. Mariucha cujo coraçãozito batia forte sob o vestido dos domingos. Mariucha, que via realizar-se o seu sonho.
Teresa olhou para a filha e, erguendo-a nos braços, beijou-a apaixonadamente.
- Meu amor... meu amor...
Nada género Maçã, tais efusões. Mas Isabel compreendeu que "meu amor", era Sílvio revivendo em Mariucha. Aproximando-se de ambas, murmurou:
- Ela é tão parecida com o Sílvio!
E sonhou com o dia em que, apertando um filho contra si, ela sentiria reviver nele Florêncio.
Assim se passou o Natal, a maravilhosa festa em que Deus vem.
E na frente da batalha, os homens batiam-se pensando na árvore de Natal da sua infância.
ERA o dia de Ano Novo. O primeiro, desde 1940, em que Paris podia respirar livremente. Mas que traria 45? A batalha continuava. Aos pessimistas todos os males se afiguravam possíveis. Mas um belo e sólido optimismo apoiava-se no valor dos chefes e desses rudes rapazes que tinham visto, em Agosto de 44, passar em carros decorados de flores. E depois, havia já a registar um ligeiro recuo inimigo. A esperança, podia apoiar-se em factos.
Mas sentir lá Florêncio, João Lucas, Sílvio, Natália, Roland, Solange! E Saint-Ivy... - que partira também depois de longa conversa com João Morlainville em que este lhe dissera: "Faça qualquer coisa. Não se feche no seu desgosto".
Regressariam todos?
Mesmo assim trocaram-se boas-festas, nessa manhã. Mas Isabel não desejou "ano feliz" a seu pai. Apenas o abraçou, mais demoradamente do que de costume. E ele apertara-a com força. Decidira não aceitar reunião alguma, saída alguma que pudesse distinguir esse dia dos outros; ficaria junto do pai, no limiar desse primeiro ano começado sem Jeanine. Escreveria aos seus soldados, para que soubessem que pensava neles. Cartas breves, sem banalidades. Palavras curtas de longo sentido. Enquanto escrevia, perguntava a si própria:
"Que fará o paizinho no escritório? Não vou lá, sinto que deseja estar só".
João fazia por ler. Mas pensava demasiado intensamente. Revia no passado cada dia de Ano Novo junto de Jeanine. Pretexto para presentes, para saídas mundanas, para uma multidão de mimos esperados e que, por vezes, a decepcionavam, quando o seu valor era modesto. A linda boca deformava-se numa ruga descontente. E João sofria, adivinhando que ela lamentava ter desposado um burocratazinho sem nome. Nos últimos anos antes da guerra, os seus direitos de autor haviám-lhe permitido cumulá-la. Então, ela sorria, contente. Nesse ano, nem mesmo uma flor na sua campa. Nada.
O passado. Tudo isso. Que seria o futuro? Isabel ia casar, João Lucas também trataria da sua vida. Em breve, ali ficaria, velho e só. Estranho: afigurava-se-lhe que o esperavam em qualquer parte. Onde? Quem? A sua alma sentia-se atraída pelo passado e pelo futuro.
Pegou na caneta e traçou versos que exteriorizavam essa misteriosa sensação de espectativa. Versos que datou cautelosamente: 1 de Janeiro de 1945, como se esta data pudesse vir a ter alguma importância. No entanto, na sua casa de viúvo, era um dia igual aos outros. E não oferecera um presente à filha.
Uma visita? João prevenira que não queria receber ninguém. Desdenhava a piedade curta e passageira das pessoas. Não queria ouvir palavras que feriam pretendendo consolar... Mas não, era para Isabel, Isabel que nunca fechava a sua porta, Isabel que ouvia com uma gentileza incansável as confidências mais pesadas. Certamente, alguém lhe viera dar as boas-festas. João voltou aos seus versos.
Essa visita, com que alegria a recebera Isabel! Rosa, era Rosa Martin... a linda normanda mudara. O clarão da sua juventude não brilhava já do mesmo modo. O seu rosto demonstrava certo cansaço: três meses passados nas prisões alemãs! Todavia, nunca tivera tanta nobreza e encanto.
Entre as duas amigas, não existiam palavras convencionais. Desde que Isabel Morlainville, filha da burguesia, travara conhecimento com Rosa Martin, filha dum pescador morto no mar, que as suas relações tinham tomado e conservado, através dos anos, um certo cunho de verdade, de simplicidade. Pouco instruída, de origem muito humilde, Rosa possuía a verdadeira distinção, a dos sentimentos. Ela e Isabel compreendiam-se sempre.
Depois daquele horrível período de prisão, a perfumaria deve ter-lhe parecido um sonho, não, Rosa? Que contraste!
Oh! Vai achar-me estúpida: os perfumes enjoam-me. Até os mais delicados.
Mesmo o meu: "o amanhecer dum lindo dia"? - perguntou Isabel, a rir.
Não, esse é um caso à parte. Tem tantas recordações para mim! É o perfume da sua alma, Isabel querida. Mas o ambiente frívolo, luxuoso, dos salões de venda, é-me difícil suportá-lo. Compreende, conheci a tragédia em toda a sua aspereza. Comparado com isso, o bâton, o pó de arroz, os vernizes, as essências perfumadas, meu Deus!, não significam nada. Já não gosto do meu trabalho.
No entanto, a sua situação pode tornar-se brilhante dum dia para o outro. Estou convencida de que em breve a nomearão gerente.
Nem pense em tal coisa! Para obter esse lugar seria preciso que cedesse às instâncias de tal ou tal chefe. Bem sabe que já uma vez o desejo de me manter séria me prejudicou. Não, não, nunca serei gerente.
Tem pena?
Não. Prefiro estar unida às outras empregadas. Posso assim esperar ser como que o fermento na massa... Algumas raparigas que confiam na Rosa, sua colega, duvidariam de Rosa, a gerente. No entanto, estou a ficar velha.
Velha? Mas é tão nova, Rosa!
Isso é um engano. Nestas profissões de luxo depressa somos enfileiradas com as "solteironas", sobretudo se não se tem namoro. Deixamos de ser consideradas, e a confiança das pequenas foge imediatamente. Compreende, já não somos da mesma idade. E aqui tem o que me preocupa: por um lado, não posso contar com nenhum posto importante, por outro, começo a tornar-me velha para o balcão. Mudar de ofício, é muito difícil. Eu nada sei. Não tenho instrução. E, ao mesmo tempo, o exercício dum emprego de luxo tornou-me incapaz doutro género de trabalho, numa fábrica, por exemplo. Sim, numa fábrica, para estar entre operárias, partilhar do esforço delas, amá-las, ajudá-las, mesmo sem dizer nada, pelo exemplo. O exemplo do trabalho bem feito, da benevolência, espalha-se numa oficina... olhe, é como a nuvem de perfume dum vaporizador. Mas hesito em ir para a fábrica. Preferia outra coisa. E queria dizer-lhe a minha ideia, Isabel; que é estúpida talvez, louca. Vai dizer-mo francamente, não é verdade?
Com certeza, Rosa, nós sempre nos falámos com franqueza.
Então escute. Na cadeia, nem todas as minhas companheiras eram da Resistência como eu. Havia lá detidas por infracção à ordem pública, ladras, prostitutas... Os alemães misturavam-nos propositadamente com as piores mulheres que se possa supor. A princípio, que repulsa, que revolta! Julgava-as com dureza, desprezava-as. E, depois passou-se em mim qualquer coisa de estranho: dei comigo a gostar delas. Como irmãs, se tinham a minha idade; ou como filhas, se eram adolescentes. Algumas tornaram-se também minhas amigas, escutaram-me. E desde que fui liberta que não penso senão nelas. No entanto, não posso deixar-me prender para voltar à gaiola, Isabel... Está-se a rir? Mas é muito sério. "É preciso" que eu volte à cadeia. Tenho que me ocupar daquelas pobres mulheres. Na maioria não são más de fundo. Ninguém as guiou, ninguém lhes mostrou o bom caminho. Muitas vezes têm bom coração. Era possível salvá-las. Por isso vim perguntar-lhe, a si que sabe tanta coisa, se não haverá uma obra que se ocupe das prisões.
- Há muitas, Rosa. Mas você não pode fazer-se assistente social, o curso é difícil.
Rosa corou.
- Não me compreendeu. Eu queria ser religiosa e ir às prisões.
Algo de grande se passava. De mãos juntas, Isabel contemplava essa rapariga magnífica, integralmente pura, atraída pelo que existia de mais baixo.
- Isso é duro - murmurou. - Vai sentir repugnância, sofrer demasiado!
Rosa sorria:
- Se soubesse como me agrada a ideia de ir
procurar o que está perdido... fazer qualquer
coisa nova duns restos de honestidade; verdadeiro
amor, de recordações vergonhosas. Isabel, creia-me, o tempo da caixeirinha passou. O da religiosa vai começar. As minhas filhas esperam-me nas cadeias. Conto consigo para me conduzir até elas. Será tão simples... nada tenho a deixar.
-De qualquer modo, Rosa, a sua independência... aqueles pequeninos nadas no vestir, no alojamento, na comida, a que você é sensível, como toda a gente... Os perfumes, Rosa, os perfumes - acabou por gritar -, parece idiotice falar de perfumes, mas é um símbolo. Vai viver entre tudo o que existe de feio, sujo, grosseiro. Poderá ter coragem?
Isabel, quando você quis, contra a vontade da senhora Morlainville, ser assistente social, não se sentiu assim atraída, também, para o que existe de mais miserável?
É verdade, Rosa.
-Não disse, tantas vezes, que se lhe afigurava carregar sobre os ombros a miséria do mundo?
É verdade, Rosa.
Então compreenda-me e ajude-me a dar tudo. Estou farta de meias-medidas.
Mas, Rosa, são precisas, no Mundo, almas inteiramente votadas que, sob uma aparência semelhante à nossa, sejam apóstolas.
O meu tempo passou, já lho disse. Já não posso ser a igual, a colega, nunca serei a directora. Portanto, quero ser a mãe.
Partiu. E pouco depois entrava Denise. Uma Denise excitadíssima:
Isabel, imagina que encontrei ontem uma rapariga que me falou do João Lucas. Chama-se Gertrudes, conhece-la?
Não conheço todas as amigas do João Lucas, minha jóia. Que te disse essa Gertrudes?
Amiga? Falava como se fosse sua noiva.
Que descaramento! Garanto-te que ele não está noivo.
Dum modo ou doutro, andam sempre juntos os dois. Trabalharam juntos na Resistência, depois de terem dançado tudo o que lhes apeteceu. Ela é muito chique e desembaraçada! Alta, de cabelos oxigenados, os olhos pintados, os lábios e as unhas também. Tem nem sei quantos diplomas.
Viste-os?
Claro que não, mas...
Já vejo o que foi: como patetinha que és mostraste a tua loucura pelo vadio do João Lucas. A bela Gertrudes aproveitou-se disso para te arreliar.
Denise puxou do lenço.
Não te importas que chore? Sabes que lá em casa é proibido, e os outros levam a vida a ralhar ou a fazer troça.
Quem são os outros? Não está lá ninguém.
É verdade, Isabel... Evidentemente que não poderei lutar com a Gertrudes. Ela é... é uma força, e eu, um nadinha qualquer. Há-de casar com ele, verás!
Denise, ouve uma coisa. O meu irmão talvez seja uma bondade, mas já teve mais dum namoro, não tenhas ilusões.
Ora, ora, ora! Bem sei. Mas nenhuma o ama como eu. Achas que virá a gostar de mim? Diz-me a verdade, Isabel.
Não sei, Denise. Pode ser que volte da guerra transformado. Em suma, por que razão o amas desse modo? Tem tantos defeitos...
Amo-o tal como é. Julgas que vou casar com algum idiota? Ah! não! As minhas irmãs casaram com quem quiseram. Hei-de fazer o mesmo.
Há notícias de Catarina e da sua viagem de núpcias?
Ela nunca escreve. Não tem paciência. Um destes dias aparece sem dizer nada. Como é que é possível gostar dum velho? Acreditas que ela seja feliz?
A que se chama ser feliz? Certamente que sofrerá junto dum marido que nem tudo vê do mesmo modo que ela. E ele - que a adora - receará sempre decepcioná-la. Que é que tu queres, escolheram isto. Por mim acho preferível sofrer primeiro e amar depois.
É também a minha opinião. Se eu casar com o João Lucas e ele me arreliar, sentir-me-ei feliz na mesma. Escuta... informa-te sobre a Gertrudes. Gertrudes Monfort. Mora com a avó, na Avenida Mozart. É licenciada e não sei que mais. Fala dele como de propriedade sua. Defende-me! E a ele também. Ela não havia de o fazer feliz.
Isabel riu-se.
Tu estás convencida de que existe uma única pessoa capaz de fazer o meu mano feliz: a menina Denise Morot Léandre.
Claro! - gritou a pequena. - Denise Morot-Léandre talvez seja uma parvinha. Mas, repito: ninguém o há-de amar, ninguém o há-de compreender como esta parvinha... Vou-me embora. Feliz Ano Novo, Isabel! Esquecia-me de te dar as boas-festas e foi para isso que cá vim. Desejo que cases breve. Desejo tanto...
...Ir de dama de honor-completou Isabel, a rir.
Trocista... Está sempre tudo a fazer troça de mim.
Quando ela partiu, Isabel preparou o chá e foi para junto do pai.
Ele como que saiu dum sonho:
- Já tão tarde? Parece-me que tiveste visitas.
E ela falou-lhe de Rosa. Em silêncio, João escutava-a.
SOMBRA rápida ao longo das ruas ainda escuras, João Morlainville regressava da missa. Isabel esperava-o. E admirava-se, olhos postos no relógio: "tanto tempo..."
Ignorava que, desde há alguns dias, ele deixara de assistir à missa paroquial. Na capelinha dos Beneditinos, os frequentadores da primeira missa haviam notado a presença dum homem alto e grisalho que seguia o ofício nos mínimos detalhes litúrgicos, para se embeber, depois, numa longa prece. Gostou de chegar - Não está muito frio, lá fora? - perguntou-lhe a filha de olhos claros. -O teu almoço está pronto. Dá cá o sobretudo. Oh! paizinho, encher assim a algibeira. Que lindo missal! não o conhecia.
Começou a folheá-lo mas deteve-se no receio de ser indiscreta. Mas João disse, muito simplesmente:
- O missal Beneditino. Agora assisto à missa na rua de la Souree.
Ela não exclamou: "Tão longe!", não; disse:
- Compreendo! A gente reza tão bem naquela capelinha!
INo entanto o pai sentiu que ela se admirava, e no mesmo tom calmo - paz que de lá trazia - deu uma explicação breve: o seu gosto pela liturgia, e murmurou:
É agora a pátria da minha alma.
Estou contente, paizinho - respondeu Isabel.
E foi tudo. Mas habituada a captar a expressão daquele rosto, pensava: "Tem hoje o seu olhar de sonho".
E, respeitando essa qualquer coisa de grande que adivinhava, não fez mais perguntas. Em silêncio, com as mesmas delicadas atenções dos dias de abundância, serviu-lhe a habitual beberagem que tinha certa aparência de café, o pão estritamente racionado, e aquele nadinha de manteiga roubado à sua própria ração.
- "Eu passo perfeitamente sem as coisas!"
Assim justificava Isabel as suas renúncias.
Renúncias em favor de João Lucas, antes da sua partida, e agora em favor de João. Bem entendido, nem um nem outro davam por isso, os homens nunca se apercebem destes pormenores. E ela experimentava um secreto prazer em reduzir as suas rações pessoais sem que eles o soubessem: dádiva mais completa ainda, mais pura.
Mas quantas vezes se lhe impunha o problema do futuro! "Que será do pai, depois do nosso casamento?" Receava trair a missão indicada pela carta de sua mãe, carta encontrada numa gaveta por Liseron adolescente, e que exercera uma tão profunda influência no desenvolvimento da sua personalidade: "Confio-te o teu pai" Sem dúvida, se Jeanine soubesse que morria!
Ter-lhe-ia confiado simultaneamente João, o marido e Romain Villanel, o poeta. E ela iria abandoná-lo? Certamente, o destino normal é deixar os pais pelo marido. Mas se um deles fica só, desamparado? No decurso do seu trabalho de assistente social, Isabel conhecera muitos desses pais, abandonados pelos filhos no limiar da velhice que, lenta, tristemente, se deixam afundar no silêncio, no esquecimento, no abandono. Visão de hospícios de velhos... Visão de casinhas poeirentas... Estremeceu.
- Come, paizinho, come bem, peço-te.
Parecia-lhe que levá-lo a "comer bem", nessa manhã, seria cumprir parte da tarefa de que se encarregara, ela, filha desse grande sensível que, por duas vezes, conhecera a viuvez. E depois achou-se tola: decerto a felicidade de João não dependia daquilo. Beijou-o, ao passar:
- Entendemo-nos bem, nós dois, não achas?
Ele não respondeu. Aquiesceu apenas, num gesto de cabeça. Levantou-se, beijou-a também e saiu para o trabalho.
Isabel acendeu a telefonia, enquanto arranjava a casa, grande demais agora, onde adejavam as recordações de Jeanine e o seu perfume tenaz. A rádio, aquela voz do homem invisível, propagando o melhor e o pior através do mundo, seria possível escutá-la, mais tarde, sem recordar esses dias em que a respiração suspendia na espectativa de cada palavra? Que iriam dizer nessa manhã de Janeiro? Que nomes surgiriam, evocando ferozes lutas? Estrasburgo, Colmar, por que se batiam Florêncio, João Lucas, Sílvio, Joel, essas cidades queridas, perdê-las-íamos, enquanto os novos caíam na terra da Alsácia? Mas já não havia sinal de avanço inimigo. Teriam sido estabilizados certos pontos? Seria o fim?
Ouvindo bater, correu à porta, pensando que os jornais iriam fornecer-lhe novos motivos de esperança. Pequenos que fossem, não seria mais o desespero. Basta que um pedaço de azul se recorte entre as nuvens para que acreditemos que o sol voltou.
Mas diante dela erguia-se um rapaz alto, magro, gola levantada, chapéu enterrado.
Você, Ariel? O meu pai acaba de sair.
Dá-me licença que entre? Esperava encontrá-lo ainda, mas tive que dar tanta volta... Enfim, encontrei-a, a si.
Venha para o escritório do pai - disse, sem prazer.
Ariel sempre a perturbara pelo seu encanto mórbido, pelas suas declarações atrevidas.
Ele desabou sobre uma poltrona e, então somente, tirou o chapéu. Uma fisionomia transtornada apareceu:
Parece muito cansado...
Cansado? Sim. Como um animal perseguido.
Um riso duro.
- Isabel, já tomou parte nalguma caçada?
Duvido: o seu doce coração não suportaria esse prazer selvagem. Sabe como é? Perseguem o veado, espiam-no, acabam por agarrá-lo. E matam-no. Pois bem! Vou ser agarrado pelos cães.
Por assim dizer, ele "recitava" estas estranhas palavras. Ariel representava sempre, mesmo na realidade. Isabel teve um gesto de impaciência:
- Oh! Não fale por enigmas. O que há, afinal?
Ele pôs-se a assobiar.
- O que há, encantadora Isabel ? Tem diante de si um tipo que, procurado pela polícia, será detido dentro de algumas horas, interrogado, metido na prisão, e, sem dúvida, condenado à morte.
Deteve-se para gozar o efeito produzido.
Ah! impressiono-a. Esses olhos azuis readquirem a sua ternura, Isabel - decididamente gosto do seu nome - vou contar-lhe a história em duas palavras. Ao que parece, colaborei. Evidentemente, representei para os ocupantes, aceitei os seus convites: festas, refeições, bebidas, aceitei trocar o dinheiro que me ofereciam. E o pior é que tive por amiga uma espia de grande estilo. Uma criatura maravilhosa: linda, inteligente, sem receio de nada, nem de ninguém. Enlouqueceu-me por completo... como você o poderia ter feito se tivesse querido, Isabel. Bom, parece que, pelo que ela me fazia dizer quando bebia, houve gente no teatro que foi presa e... causo-lhe repugnância, hem? Mas juro-lhe que não vi tão longe. Sou um inconsciente, eu. Nunca imaginei que aquela Magda - sim, era alemã - representasse tão terrível papel. O caso é que, tendo sido presa, se apressou a denunciar-me. Acusam-me de coisas que fiz sem dar por isso e também de coisas que não fiz. Em resumo, sei que vão prender-me também.
Não pode partir?
Oh! É inútil tentá-lo. Os cães espreitam o veado, possuí-lo-ão. E depois, sou um fatalista. Mas quis dizer adeus a Romain Villanel... Um grande homem, o seu pai. Pelo seu talento. Pelo seu valor moral. Às vezes despertava em mim o desejo de ser direito. Há-de dizer-lho, Isabel.
Digo. Mas, meu amigo, é sempre ocasião de "ser direito" num momento tão trágico: porque não recorda as melhores coisas da sua vida, as mais puras? Recordar... sei lá, a sua mãe, a sua primeira comunhão, um belo poema recitado uma noite no palco e o público com lágrimas a escutá-lo, Ariel.
Tudo isso está gasto, velho, acabado! Você, rapariguinha, ignora que as almas se gastam como os móveis, como os fatos.
Isso não é verdade! Os móveis e os fatos são feitos de materiais sem vida. E as almas vivem, hão-de viver sempre.
Liseron... Sei perfeitamente que detesta que a trate por Liseron: nome reservado para o heróico combatente.
Não esqueça que já deveria ser sua mulher.
Não esqueço coisa alguma. Deu-lhe para aí, porquê? Oh! não é feio nem idiota, nem mau, o seu Florêncio. Mas rude, sem cambiantes. Você filha de poeta, poetisa - tem feito versos que contam, sabe?-, unir o seu destino ao desse rapagão impetuoso, turbulento, colérico, simplista? É um absurdo. Você obstinou-se em seguir a sua ideia de pequena apaixonada por um colegial; e recusou o meu amor apaixonado, o amor dum artista como você mesma, dum rapaz que, pela primeira vez, experimentava um sentimento puro... Isabel, ter-me-ia regenerado. Oh! reconheço que não era um partido digno da menina Morlainville. No vosso mundo burguês, os preconceitos fazem lei. Foi preciso uma coragem extraordinária a Catarina Morot-Léandre para casar, contra vontade do papá, da mamã, do conselho de família e do décimo-sexto bairro, com esse velho louco. Admiro aquela rapariga. Mas você? Oh! nunca teria coragem de os enfrentar.
Por que razão comparar-me com Catarina? Ela amava Estêvão Magloire, apesar da sua idade e defeitos. E você sabe que nunca o considerei senão como o melhor intérprete do meu pai, um rapaz de muito talento e o primo da pobre Odília.
-Oh! Talvez tenha havido alguma coisa mais. Jura que nunca a perturbei? Estou-me a lembrar duma certa manhã em que foi pedir socorro à sua velha criada Julieta... Henriqueta... não, Marieta. Um dragão! Precisou então de socorro, Isabel?
Contra si, Ariel.
E contra si, também. Isabel, você é a única mulher que Cláudio Ariel amou.
E Magda, a linda alemã?
Ingénua! Nunca a amei. Enlouqueceu-me. Aquele tipo de mulher, sabe-o bem... mas você, você... os seus olhos de criança tão azuis... A sua boca redonda, um pouco entreaberta... o seu sorriso triste... o seu pescoço delgado... o seu corpo esguio, em forma de vaso estreito... o veludo rosado das suas faces... o seu perfume. E o seu dom de poesia. A sua piedade por tudo quanto sofre... A sua ingenuidade... Enlouquece-me.
Sim, é realmente loucura. Não diga mais nada. Vá-se embora, meu pobre Ariel.
Ele contemplou-a e disse bruscamente:
- Primeiro vai beijar-me.
Ela teve um sobressalto. E depois, cruzou as mãos sobre o peito, onde o coração batia forte.
Então pousou na face ossuda, mal barbeada, os seus lábios redondos e macios. Numa e noutra, sem que ele fizesse o mínimo movimento. E olhando-o bem nos olhos:
- O Florêncio permitir-lho-ia. Beije uma irmãzita.
Ele fez "ah!" e, inclinando-se, beijou, com respeito, o rosto que se oferecia.
- Liseron - murmurou-, Liseron...
Passou a mão pela testa:
Tenho que partir. Comprometeria a casa. Não há criadas, assim o espero. Tinha arranjado um alibi. Procuram-me a Leste de Paris e estou a Oeste. Mas encontram-me. Antes da noite, estarei no xadrez. E, daqui a algumas semanas, talvez receba cinco balas na pele. Adeus, Liseron, Liseron deliciosa. Morrerei a pensar em si.
Não, Cláudio... Em mim, não.
Você disse Cláudio... Obrigado!
Cláudio, é em Deus que é preciso pensar.
Vamos rezar tanto, o paizinho e eu. E a Rosa, a Rosa Martin, você lembra-se?
No patamar, ela estendeu-lhe ambas as mãos. Uma após outra, ele beijou-as. Enterrou o chapéu, levantou a gola do sobretudo, e desapareceu, espiado pela morte.
Isabel chorava. Tempo demasiado rude para o coração frágil de Liseron. "Se alguma vez houver guerra, eu morro", dissera outrora a Marieta. A guerra chegou: não morreu. É mais difícil do que parece, morrer.
ISABEL acabava de fazer pequeninas coisas: pontos de costura, arrumação de gavetas.
Certamente, tudo isso era necessário e fazia parte do dever. Mas que mediocridade ao lado do magnífico esforço dos soldados! Ao menos, quando exercia as funções de assistente social, trabalhava para o país. Porém, supondo casar-se, deixara tudo. E sentia-se agora de mãos vazias. O pai? nem sempre precisava dela. Isabel criara o gosto pelo trabalho e doação totais: as bagatelas não a satisfaziam; afiguravam-se-lhe inúteis todos os seus gestos.
"Vamos lá comprar açúcar", disse suspirando, "e levar os sapatos do pai ao sapateiro".
Estava frio. Um frio triste, um céu pardacento. Na rua, deteve^-a uma voz:
- Isabel Morlainville!
Aquela mulher magra de traços cavados, não a reconheceu. Mas, um pálido sorriso deu-lhe um traço de família:
- Maria Amada! Oh! fale-me da sua irmã.
- Está muito doente. Não sabia? - perguntou, com certa amargura.
Isabel perturbou-se:
-Não, confesso. Devo ter-lhe parecido indiferente. Mas tive muitos desgostos durante esta guerra, o cativeiro do meu noivo, a morte da minha madrasta. Diga-me, que aconteceu à sr.a D. Inês?
Há muito que ela sofria duma doença cardíaca que se agravou depois duma gripe. E principalmente, não pôde suportar as emoções da guerra. Estava sempre a repetir: "Tanto sofrimento pelo mundo!"... Agora está de cama e o médico receia o pior.
Eu poderia vê-la? - perguntou Isabel. - mas com certeza que está com pressa. Quer que a leve a casa? Conversamos pelo caminho.
Isabel que possuía a arte de interrogar com inteligência e escutar com simpatia, soube e adivinhou muita coisa dolorosa, enquanto caminhava ao lado de Maria Amada. Cristal - assim as alunas crescidas haviam alcunhado a professora, devido à clareza das suas explicações e à rectidão da sua personalidade -, Cristal em breve iria morrer. E a irmã não sabia como organizar a vida: enfermeira da querida doente e estenodactilógrafa numa administração. Estava agora de licença, situação que não se poderia prolongar indefinidamente. E precisava ganhar a vida.
- A minha irmã cada dia se torna mais terna, paciente, esquecida de si mesma. Mas é impossível abandoná-la o dia inteiro. De resto, não sou boa enfermeira; ia precisamente pedir às Irmãs se alguma delas consentiria em ir tratá-la de manhã, quando eu voltar ao serviço.
-E o resto do tempo?
- Temos uma vizinha prestável... Que fazer?
Não posso pagar a diária duma enfermeira, mandá-la para o hospital, nunca! E o caso é que o médico a acha mal tratada, pobrezita...
Apelo... "Vai", diz uma voz dentro de Isabel, "achavas-te inútil, desperdiçada, presa a bagatelas. E eis que encontras em plena rua, entre a mercearia e o sapateiro, a "tua" obra, a que te espera. Outrora, Cristal deu-te muito: chegou o momento de devolver. Não é só nos centros oficiais de actividade social que se é "assistente". Isabel, confundes os valores. O Evangelho é mais simples: ama, diz ele".
Então, passando o braço sob o de Maria Amada, tão magro, coberto por uma manga tão gasta, disse:
Não há necessidade de ir ter com as Irmãs. Têm tanto que fazer! Se me dá licença, vou eu, todas as manhãs, tratar da sr.a D. Inês. E irei também de tarde. Tenho o diploma de enfermeira, sabe? Sozinha com o meu pai, tenho tempo de sobra, visto que, infelizmente, o meu casamento foi adiado para uma data impossível de prever. Assim poderá voltar descansada para o escritório. Não recuse! Estava precisamente à procura duma ocupação que me não deixasse tanto tempo para pensar e inquietar-me. E eu devo tanto à sua irmã...
Não creio que ela aceite - murmurou Maria Amada, muito nervosa. -É tão reservada!
Vamos perguntar-lho. Agora mesmo, será possível?
Logo que entrou no pequeno apartamento, tão confortável outrora, Isabel reconheceu a atmosfera da doença. Quando Maria Amada a conduziu junto da irmã, teve um choque: que cara! Só os olhos viviam naquele corpo descarnado. Pensar que fora linda, a Cristal! Todavia, um sorriso nos lábios pálidos devolveu-lhe à fisionomia um pouco do antigo encanto.
A Isabel! Que alegria em vê-la!
E, se consentir, há-de ver-me todos os dias. A sua irmã contou-me que, para ir tranquila, para o escritório, ia pedir às religiosas que se ocupassem um pouco de si. Mas eu tenho o meu diploma de enfermeira e muito tempo livre. E sou sua amiga. Deixe que a trate como se fosse minha mãe. É-o um pouco, "educou-me", no sentido profundo da palavra. A senhora e a minha velha Marieta foram as minhas verdadeiras educadoras. Tratei da Marieta quando esteve doente. Chegou a sua vez!
Os grandes olhos encheram-se de lágrimas. Inês experimentava uma espécie de revolta. Revelar a essa linda rapariga a miséria do seu corpo, as deficiências dum lar que Maria Amada já não conseguia manter, a pohreza da alimentação?... A mulher requintada que fora, sofria -na sua delicadeza, na sua altivez. E havia ainda esta particularidade: uma antiga discípula.
Isabel adivinhou todo este pensar confuso, e disse risonha:
- Trago a bata branca e o véu, e já nada terei da sua Isabel de antigamente. Não recuse.
É Deus que quer. Se assim não fosse acha que eu teria encontrado a Maria Amada justamente no momento em que ela se dirigia às Irmãzinhas e em que, muito aborrecida, eu pensava:
"Levo uma vida estúpida. Que hei-de fazer?"
Não acha este encontro providencial?... Vamos, está combinado. Voltarei esta tarde para que a sua irmã me ensine o sítio das coisas. E assim ela poderá voltar ao trabalho quando quiser.
-Não, não, filhinha, não posso aceitar. Que diria o sr. Morlainville?
- O paizinho? Absolutamente nada. Contanto que esteja quando ele chegar...
Então, Maria Amada perguntou timidamente:
- Ele compôs nova peça? Um volume de versos?
Isabel sentiu um tremor naquela voz. Tendo servido, em tempos, de secretária a seu pai, a irmã de Cristal amara-o demasiado... Pobre coração de mulher, coração que permanecera vazio. O de Inês fora cumulado pelo amor divino. E o sofrimento dava à sua personalidade o supremo e misterioso acabamento.
Isabel tratara de muita gente: cuidar duma santa era diferente. Uma vez aceite a humilhação de se abandonar entre as mãos da pequena Morlainville, Cristal voltou a ser Cristal: simplicidade, paz, pureza. E era impressionante saber o que sofria sem nunca se lamentar. Impressionante ouvi-la inquietar-se incessantemente com Maria Amada: "Ela tem fogo no quarto? O almoço é bom?" e esquecer-se por completo de si mesma. Impressionante contemplar-lhe as linhas ascéticas do rosto magro.
Humanamente, poder-se-ia dizer: "Que triste fim!" Mas Isabel dizia consigo: "Que elevação, que santidade!" E, junto desse leito de agonia, Isabel, desesperada por ter visto a felicidade escapar-se uma vez mais, pensava menos na felicidade. Também ela se desprendia, se simplificava. Era mais "Liseron". Quantas vezes lhe vinha à memória um outro doente, aquele Pedro Jacquelin que, no sanatório, revelara à garotinha a beleza e as exigências da vida espiritual. E morrera... Marieta morrera... Cristal ia morrer. Perdas sucessivas... Isabel experimentava já o frémito que sacode mais e mais à medida que, avançando em idade, se vêem desaparecer os amigos, os mestres na arte de viver. E este pensamento empolgava-a: Cristal carregou sobre si a miséria do mundo: "Eu dantes dizia à Marieta: "Se houver guerra, o meu coração quebra-se". Resistiu porque sou nova. O coração de Cristal quebrou".
Um dia, em que evocava o seu fim próximo,, Cristal, sentindo-a profundamente comovida, disse-lhe:
Sim, é dura a lei da morte, minha querida. Mas em breve sentirá a vida brotar de si. Os seus filhos substituirão os amigos de que tem saudade.
E se eu não tiver filhos? Se o Florêncio morrer?
Não há "ses", para Deus. Ele sabe. Ele ama-a.
Consigo, nunca houve "ses". E tinha sempre um ar feliz...
-Sim - murmurou a doente. - A minha vida foi bela. A minha única mágoa - mas terrível - é deixar atrás de mim a minha irmã. Que será dela, que não foi talhada para a solidão? E nem mesmo o trabalho lhe interessa...
- Quando me casar, o paizinho talvez precise duma secretária - sugeriu Isabel.
E, de súbito, corou sob o véu; falara estouvadamente. Mas Cristal, magnificamente simples, respondeu:
- Sabe bem que isso lhe não conviria.
Tinham-se compreendido.
Agora, a vida de Isabel readquiria a sua plenitude. Gostava de enfermagem, e àquela doente, com que respeito a tratava! Certamente, havia também repugnância... mas aceitava-a como expiação de sua delicadeza egoísta, do requinte excessivo de seus hábitos.
Outra forma de actividade: arrumar a casa das duas irmãs, trazer-lhe certo bem-estar. Graças aos seus cuidados, Maria Amada comia melhor, apresentava-se melhor vestida, voltava a ter a sensação de "lar". E Cristal admirava o valor adquirido pela garotinha que conhecera um pouco mole e indecisa. "O marido será feliz". Por Florêncio, em segredo, oferecera Cristal a sua vida. Fani achava tudo aquilo idiota. Tratar duma moribunda, que loucura! Tinha horror a qualquer espécie de doença, principalmente se destruía a beleza. Um dia, foi ter com o padrasto, - Paizinho, é preciso proibir a Isabel de continuar neste ofício. Vai perder a frescura e a
saúde. Se o Florêncio soubesse disto, ficava furioso. Peço-te, serve-te da tua autoridade.
Ele olhou a linda mulher, um pouco murcha já.
Não me reconheço o direito de impedir Isabel de fazer o bem. Quando a tua mãe e eu lhe permitimos que tirasse o seu diploma de enfermeira, previmos que o utilizaria. Porque razão não há-de ela tratar da sua antiga professora, como tratou os doentes do dispensário?
A mãezinha não suportaria uma coisa destas! - exclamou Fani que, no fundo, amava a irmã e se inquietava de a ver assim em contacto com a doença. -Mas tu deixa-la fazer tudo o que lhe passa pela cabeça. No entanto sabes muito bem que é uma original, com tendência para exagerar tudo.
Ainda bem. E em que queres tu que se ocupe a Isabel depois da terrível decepção do seu casamento adiado?
Quero que se distraia. Que venha a minha casa.
Deixa-a seguir o seu caminho, que não é o teu.
Não há nada a fazer. Vivo rodeada de excêntricos - declarou Fani, descontente.
E ao regressar a casa, pensava:
- Deus queira que a minha filha não vá pelo
caminho da madrinha.
Aquela miúda inquietava-a, aborrecia-a. Muito correcta, já menina de sociedade, boa estudante, dócil e gentil. Mas Fani sentia bem que qualquer coisa se lhe escapava.
Naquele dia, chegando de mau humor, foi direita ao quarto de Edith, ver o que fazia a filha. Lindo quarto, grande luxo. Mas Edith prefere o atelier do tio Sílvio. Montmartre, a casinha da tia Teresa, eis o que ama, sem confessar. E, secretamente, tem admiração pelo tio Sílvio. Ora, Fani nunca reatara com ele relações totalmente cordiais.
Não perdia, portanto, uma só ocasião de o amesquinhar diante da filha: "Aquele menino bem... aquele boémio... não tem distinção..."
Palavras que faziam sofrer Edith como sofrem as crianças quando se ataca alguém ou alguma coisa que lhes parece digno de admiração ou afecto.
Fani entrou bruscamente:
-Que estás tu a fazer? Gatafunhos? Mostra cá.
Não, oh! não! - suplicou a pequena.
Obedeça!
Arrancou-lhe das mãos uma folha de papel onde Edith traçara um desenho. Bonito desenho para uma garotinha: um pássaro pousado num ramo.
- Porque é que estás a perder tempo em lugar de trabalhar?
Já fiz os meus deveres. -Revê as lições.
Já as sei.
Vai brincar com o teu irmãozinho.
Ele não me deixa tocar no meccano, nem no comboio, nem em nada.
Porque não és condescendente nem gentil. De qualquer modo não quero bonecadas.
Eu gosto tanto de desenhar, mãezinha!
Não é isso que irás estudar: hás-de tirar direito, para ajudares teu pai nos negócios.
O paizinho sabe muito bem como eu detesto tudo isso.
Quem está encarregada da tua educação é a tua mãe. Aqui tens o caso que faço dos teus desenhos.
Apoderou-se da folha e rasgou-a em pedacinhos. E foi-se embora, descontente consigo mesma, enquanto a miúda chorava o seu desenho, os seus sonhos.
UM veículo travou ruidosamente defronte da casa dos Morot-Léandre. Denise, que areava o fecho da porta, pôs-se alerta. "Um carro militar. Meu Deus, será o Florêncio?"
Meia dúzia de badaladas da sineta do portão, apressadas, alegres. Denise corre através do jardim. O carro já partiu, deixando no passeio uma rapariga de uniforme que sorri.
- Solange! Que surpresa! Vem depressa ver a mãezinha.
-Estão todos bem? - pergunta Solange, correndo tanto como a irmã.
Sim. E por lá? Flô, João Lucas, Sílvio, Saint-Ivy?
Boas notícias do Flô. Dos outros, nada. Julgas que a gente se encontra todos os dias como tu encontras a Isabel? Sempre a mesma ingénua!
E tu, sempre a troçar!
É verdade. Mas lá não tenho ninguém a quem arreliar. Portanto, prepara-te. Tenho que recuperar o tempo perdido!
Denise está encantada. Ainda não conseguiu habituar-se ao seu papel de filha única.
- Mãezinha! - grita, toda afogueada -, uma visita!
A mãezinha acha a visita maravilhosa. Solange está magra mas tem boa cara. E parece tão feliz por se ver em casa!
- É engraçado, uma casa verdadeira - diz,
olhando para tudo. - É simpático. Não me lembrava que fosse tão simpático.
E depois, sonhadora:
- É agradável chamar mãezinha a alguém.
Não me lembrava que fosse tão agradável.
Denise assobiou espantada:
Que lindo! Falas bem, minha querida. A gente até parece que está na Academia Francesa.
Garanto-te que não falo assim todos os dias. Se te contasse alguma coisa em linguagem de soldado, não perceberias patavina, minha boneca. Sobretudo, parvinha como és.
Mãezinha - gemeu Denise-, voltou só para me fazer arreliar.
Faz-te bem - declarou Solange. - Deves ter-te tornado uma déspota, nesta situação de filha única. E aposto que o paizinho te apodrece de mimo. A sua Denise! A sua filhinha ajuizada, a única loura, a única obediente, a única que tem o dom das lágrimas... A Natália, a Catarina e eu, três decepções. Sobretudo a Catarina, hem, mãezinha?
Um silêncio. Solange instala-se, acende um cigarro, oferece outro a Denise que recusa.
Uf! Que horror!
Falem-me do jovem par. Qual era o aspecto do Magloire em noivo? Sorridente? Radioso? Triunfante?
Muito bem, asseguro-te - respondeu a mãe. - Estava grave e comovido, apenas.
E o paizinho, furioso?
-O paizinho foi muito decente - protestou Denise. - Mas de manhã eu tinha-o tratado bem... aquele café com leite - sem leite, quero dizer. A gente ainda não perdeu o hábito de chamar café com leite.
E depois desse feliz dia, tên-nos visto?
Raramente. A Catarina tem mais do que nunca os seus olhos de cigana. Modificou toda a casa com o pretexto de que tudo aquilo "cheirava a solteirão".
Ele deixou-a fazer isso porque estão em lua-de-mel. Mas, no fundo, deve chorar amargamente os seus velhos trastes. Ah! querido mestre, tudo é de prever quando se escolhe para esposa uma mulher trinta anos mais nova do que nós! Conta mais, nada me diverte tanto como pensar nesse casalinho.
A mãe indigna-se:
- Não tem nada de divertido, Solange. Fomos obrigados a aceitar. Mas que pena, meu Deus, que pena que uma rapariga como a tua irmã estragasse assim a sua vida!
- Mas ela não estragou nada, mãezinha! Ela vive. Oh! esta sensatez burguesa, como a gente a acha mesquinha, ao voltar donde eu voltei! O contacto contínuo com a morte ensina a ver as coisas de modo diverso. Não posso explicar-te... o tempo, o dinheiro, a juventude, tudo está nivelado. E o que conta, é a intensidade dos sentimentos. A Catarina e o Magloire amam-se: perfeitamente. A Estefânia também casou com um velho. Mas unicamente porque era rico. Nunca será feliz, enquanto a nossa Cigana é, e divinamente. Aí está.
Empoleirada numa esquina de mesa, Denise escutava a irmã com avidez. Denise adorava as irmãs.
E o meu almoço, que já o esquecia! Não, não, já não temos criada. Mãezinha, fica com a Solange. Eu trato de tudo.
Faz um creme de chocolate! - gritou-lhe Solange. Eu trouxe chocolate americano. Vai à minha carteira. Tira-o todo.
Quando ficaram sós, contemplou atentamente a mãe.
Tu estás com má cara. Ralas-te a pensar em todos. Tive notícias do Florêncio. Combate. É dos que retomaram Colmar. Julga-se que tudo terminará em breve.
Regressarão todos? - suspirou a mãe. - Tantos rapazes que têm caído. Todos os dias sabemos duma morte.
Vi o Saint-Ivy - disse Solange. -Esse, tenho a impressão de que se expõe loucamente. Nunca há-de esquecer a Catarina.
- Ninguém esquece, quando ama, Solange.
Houve um silêncio, entre ambas.
- A que horas volta o pai? Imagina que estou com vontade de me ir vestir de "menina".
Creio que ele gostará, pobre paizinho!
A mãe comoveu-se. A Solange de outrora preocupava-se tão pouco com o que pudesse dar prazer aos outros.
Vai vestir-te - disse ternamente -, os teus fatos estão no armário, no sítio do costume.
Vou pôr o vestido de veludo, o pai gosta muito.
E foi-se, porte marcial. Em breve a ouviram cantar, lá em cima, abrir móveis. Denise, mexendo o seu creme, regozijava-se:
"Que bom. Parece antigamente".
Repartida entre o "antigamente", em que os cinco formavam alegre grupo, e o "mais tarde", em que seria casada, Denise não se sentia muito em equilíbrio. Como Isabel, pensava: "Que será do paizinho quando eu partir?" Sombra na felicidade do futuro, felicidade em que dominava uma figura alta de rapaz. Mas tê-lo-ia, ao João Lucas ?
"Tenho que falar daquela Gertrudes à Solange."
Infelizmente, para tanta coisa que projectava dizer a Solange, o dia seria curto.
Justamente, a outra chamava:
- Denise! Denise, sobe!
-Não posso largar o meu creme.
- Despacha-te e vem. Não encontro nada do que preciso para me vestir.
Pouco depois era Denise quem chamava:
Solange! Queres rapar o tacho?
Com certeza. Chocolate... Mas também te apetece, Denise. Rapa tu!
-Não, já que estás cá!...
Solange apareceu na cozinha, em combinação de seda cor-de-rosa. "Roubou-ma", notou Denise. "Deus queira que não ma faça estalar nas costuras!" Solange assumiu um ar feliz.
Está óptimo. Ouve cá: Vou-me embora às quatro horas. Arranja modo de eu ver a Isabel.
Se a gente a convidasse para a sobremesa? Assim, almoçava com o pai, depois víamo-la e comia o doce. Tens razão: não há alegria sem a Isabel.
Telefona. Anda! Despacha-te.
A esta hora não está em casa. Não sabes ? Passa as manhãs a tratar da Cristal. Lembras-te? A sr.a D. Inês. Está a morrer. A Isabel ocupa-se dela e assim a irmã pode trabalhar.
Isso não me espanta da parte de Isabel. Uma jóia de rapariga! Calculo: arruma a casa, vai à praça, cozinha, trata da doente. E sempre bonita, sempre elegante. Ah! Ela passou por um destes desesperos, quando o casamento foi adiado. É violenta no fundo, a nossa Isabel. Quando sofre muito... escuta, vou explicar-te o que acontece. Toda a paixão que encerra, apesar daquele ar doce, sai cá para fora em vagas terríveis. Mas depois a sua paz torna-se duma espécie ainda mais elevada, e sente uma louca ânsia de dar-se. Sim... absolutamente lógica a sua dedicação por Cristal. Absolutamente dentro da sua maneira de ser. Está então a morrer? Como vão longe os anos do colégio!
-Se tu acabasses de te vestir? Daqui a pouco está aí o pai.
- Preciso duma quantidade de coisas. Não sei onde é que a mãezinha encafuou as minhas jóias. Empresta-me um alfinete, um anel e uma pulseira. E quero brilhantina e bâton: o pai não gosta do que eu uso. Não te esqueças de telefonar à Liseron.
O sr. Morot-Léandre que regressava mal disposto devido aos filhos dispersos e à guerra, ficou espantadíssimo ao encontrar certa rapariga vestida de veludo, bem penteada e sorridente. Nunca Solange fora tão agradável.
Que fizeste ao teu uniforme?
Está pendurado no guarda-vestidos à minha espera. Iremos juntos, mas, por algumas horas, quis ser a menina do papá. Não gostaste?
Ele não se cansava de a olhar, de a ouvir, espiando todas as manifestações duma personalidade que certamente evoluira, para bem ou para mal. Na sua última passagem, Solange parecera-lhe arrapazada, trocista, insolente. Hoje, linda e boa. Não pôde impedir-se de murmurar:
- Como te tornaste amável!
Ela riu:
- O verbo "tornar-se" diverte-me. Paizinho mau!
E depois lenta, gravemente:
- Quando todos os dias se vê gente morrer...
Continuaram no mesmo tom. Falavam de "homem para homem" sem rodeios, enquanto a mãe punha a mesa.
-?Têm morrido muitos?
Uma coisa terrível.
O teu irmão?
-Muito exposto. Até agora, nada.
A Natália? O marido?
A Natália está na retaguarda. O Roland na primeira linha. Vi-o uma vez, não o reconhecia, emagreceu tanto... trabalha dia e noite.
O pequeno Morlainville?
Tão exposto como Florêncio. Mais, até.
Esperam breve o fim das hostilidades?
Nota-se um enfraquecimento sensível por parte do inimigo. Mas que ruínas! Sobretudo na Bélgica.
Não achas essa vida demasiado dura, minha querida?
Não, paizinho, sinceramente. Estou de acordo com a vida dura. A vida comodista faz de mim uma rapariga estúpida. E tu bem sabes que escolhi a vida dura... para sempre.
O pai fechou os olhos sobre o seu desgosto, depois envolveu com um braço aqueles ombros, por uma vez, vestidos de veludo.
-O que escolheste, não to recusarei.
Mas uma vòzita alegre gritou:
-Está o almoço na mesa!
Então, levantaram-se. Da mesma altura, olharam-se nos olhos. 0 pai reconheceu a sua raça. Pousou no rosto fresco um beijo respeitoso.
À mesa, apareceram todos os petiscos preferidos de Solange. E ela extasiava-se:
- Onde foste tu descobrir tudo isto, Denise?
-Nas minhas reservas!
- A Denise é uma esplêndida dona de casa - explicou a mãe-, deixo-a fazer quase tudo.
- Feliz o homem que a levar! – exclamou Solange, tranquila. - Quando me apresentas tu o meu futuro cunhado?
Denise fez-se vermelha e, còmicamente desastrada, apressou-se em desviar a conversa:
- Este óleo não é bom, mãezinha.
A Solange de outrora teria continuado a implicar. A nova Solange - embora com olhar malicioso - entrou no jogo e comparou as diversas qualidades de azeite.
Isabel chegou, por fim. E saboreou-se o creme de chocolate. Momento feliz... Pelo menos superficialmente. No fundo, todos sofriam.
Porém, dia para dia, Isabel aceitava melhor o sacrifício, por ver como Cristal oferecia o dela. O corpo desfazia-se: a alma adquiria a suprema beleza. Entre doente e enfermeira, extraordinária comunhão se estabelecera. Tão simplesmente como Isabel tratava de Cristal, aceitava esta a humilde dependência dos enfermos. Para elas tudo se tornava natural, como tudo o é entre uma mãe e o seu filho bebé. A educadora, que tanto dera a Isabel, era agora quem recebia. E, no entanto, a rapariga continuava a receber. A moribunda ensinava-lhe o que não vem nos livros, mostrava-lhe como a confiança, depois de quase putrefacto o corpo, pode dar à alma uma ligeireza divina. Cada dia Isabel via elevar-se mais a alma de Inês.
Às três horas, Solange espreguiçou-se. Aninhada junto ao fogo, na mais cómoda poltrona - a mais velha, a mais querida, a melhor -, saboreava a suavidade da vida familiar.
-Como eu era tola, antigamente, quando dizia da casa "Que sensaboria!" Eu... Bem, tenho que voltar ao meu uniforme.
Denise seguiu-a; sentou-se no chão de pernas cruzadas, sua posição preferida. Diante de si, Solange despiu o vestido de veludo, as meias finas, os lindos sapatos, a combinação de seda cor-de-rosa.
Tens qualquer coisa para me dizer - encorajou. - Trata-se do João Lucas, não é verdade? garanto-te, não sei de nada. Pronto, lá começa a choradeira... Mas ele vai voltar, o teu João Lucas!
Solange... ele não gosta de mim. Encontrei uma rapariga que diz que é noiva dele. É muito bonita, a tal Gertrudes. Muito melhor do que eu. Alta, chique, bem feita.
És uma burra. Uma burrinha. O teu género agrada muito a certos rapazes.
- Mas a ele não.
Tens a certeza? E depois tu tens sempre a mania de te apagares. Aposto que nem sequer lhe escreves. É que a Gertrudes escreve.
Tenho medo de o aborrecer.
E Gertrudes, a pretensão de o encantar. Com franqueza, ama-lo apaixonadamente? Concordo que é bonito, inteligente, artista, mas herdou da mãe muita falha e leviandade: nunca será marido de confiança. Vejo-o muito bem estoirando fortunas, amando outra mulher, fazendo fitas... Aceitas tudo isto?
Aceito; eu amo-o. Mas tu julga-lo com demasiada severidade. Eu vejo o fundo. As pessoas valem sempre mais no fundo, Solange. Esse fundo, é - não faças troça de mim-, é um jardim que é preciso cultivar, regar, senão seca. Estou certa de que, se casar com o João Lucas farei florir o seu jardim.
Silêncio. Solange faz o nó da gravata ao espelho. Numa pobre vozinha, Denise suplica:
- Não fales aos outros no meu jardim. Diriam que sou idiota.
Quem são os outros, minha filha? Já cá não estão os outros.
É verdade... Oh! se tu soubesses como me sinto só, perdida na casa. E depois, eu não faço nada, enquanto tu levas uma vida tão bela... eu sou tão inútil.
Burrinha... Sim, burrinha, outra vez. Tu és a alegria, o consolo dos pais. Asseguras o bem-estar, manténs esta coisa maravilhosa, "a casa". Quando cheguei, esta manhã, entrou-me pelo coração, envolveu-me de bem estar, a atmosfera da casa. Vês tu, agora que vivo tão rudemente, realizo bem o valor "da casa". Um oficial recordava-me, no outro dia, esta passagem dum livro de Saint-Exupéry: "O maravilhoso duma casa não é que nos abrigue e aqueça, mas que deponha em nosso coração provisões de ternura".
Denise teve vontade de perguntar: "Que oficial?". Era bem bonita para que fosse amada, a irmã. Mas Solange, abotoando a jaqueta, declarou:
- Aqui tens: de novo soldado. Mas levo provisões de ternura. Vamos! levanta-te e dá-me um
beijo, minha burrinha querida...
E partiu, cigarro entre os lábios, deixando o vestido de veludo, a combinação cor-de-rosa, tudo o que a tornava tão feminina. Por muito tempo Denise meditou nestas palavras: "provisões de ternura".
ESTENDIDO entre um belo fogo vermelho e o dono querido, Presto tinha o aspecto dum valente cão adormecido.
Através das pálpebras semicerradas, porém, espiava Catarina.
Presto odiava-a. Que viera fazer para junto deles aquela mulher, que passava a rir, a cantar, exuberante de vida? Até esse dia, haviam sido sempre tão felizes, o mestre e o cão! Presto ia à casa de jantar, levava um osso à sucapa. Presto dormia no seu quarto. Para Presto todas as atenções. Acabara, essa felicidade. Uma noite, ela ficara. E Presto fora dormir para um canto da cozinha.
Sem dúvida, aceitava que ela lhe servisse a sopa. Bastante boa, de resto. Mas logo que, querendo acariciar, ela pousava a mão na rude cabeça negra, Presto arrebitava as orelhas e rosnava. Baixinho, por causa do dono: mas rosnava, E um clarão de dentes brancos mostrava que, se quisesse, morderia.
Ora Catarina gostava que à sua volta os seres se mantivessem felizes - animais e pessoas. Já tivera que pôr na rua a criada que, antes da sua chegada, imperava na casa e que, com ar insolente, olhava de soslaio os gestos, as frases, as compras da senhora. A criada? O Magloire, era-lhe indiferente. E Catarina, não encontrando substituta, fazia ela o que era preciso e, como em tudo, saía-se bem. Melhor até do que a criada, segundo o paladar de Presto que demonstrava claramente preferir a sopa de agora. Passava-se, portanto, sem criada. De Presto, porém, ninguém poderia privar Magloire. Gostavam demasiado um do outro - Presto e o dono.
Catarina, sentada no outro lado da chaminé, tricotava uma camisola para o marido. As agulhas compridas, agitando-se, faziam aquele seu inevitável ruído, insignificante a qualquer ouvido profano. Mas o ouvido do músico tudo registava. Como era enervante! Oh! nada diria à sua Catarina. Além disso, era para ele que trabalhava. E sentia sobre si o belo olhar da Cigana, enquanto as mãos hábeis tricotavam. Uma suavidade lhe descia até o fundo da alma. Uma música. O seu aspecto, porém, era o de qualquer cavalheiro absorvido por um jornal.
"O que os homens gostam dos jornais!", pensava Catarina, "o pai é exactamente como o Estêvão. No entanto, seria mais gentil dizer qualquer coisa à mulher, conversar. Eu gosto de falar. E vou falar mesmo".
- Querido, quero tirar-te as medidas para a manga.
Presto, arrancado à sonolência pela voz inimiga, rosnou.
- Cala-te, Presto! - ordenou o dono, em tom seco.
E tomou outro, estranhamente doce, para se dirigir à inimiga. A inimiga que, no entanto, o estava a incomodar, que lhe media o braço. E Catarina - que descaramento! - sentou-se nos joelhos do mestre, beijou-o... "Vou rosnar".
- Presto, cala-te!
E, desta vez, recebeu uma palmada. Catarina, a cabeça no ombro do marido, disse tristemente:
O Presto não gosta de mim. Porquê? Queria que ele fosse meu amigo. Queria fazer dele o meu cão.
Um cão nunca é de duas pessoas.
É, quando se trata de esposos. Os esposos têm tudo em comum. O cão, como a mobília, o dinheiro, o gosto de viver ou a tristeza, a música. Eu tenho ciúmes do que cumulou o teu passado? Não, tudo o que contribuiu para te tornar grande, acho belo e bom, faz parte do nosso tesouro comum.
Mas eu, minha querida-murmurou ele-, tenho um ciúme terrível de tudo o que pôde, antes de mim, tocar o teu coração de rapariga.
Nada houve antes de ti, Estêvão. A música e tu.
- Amaste a família, Catarina.
Ela teve um sobressalto:
- Ah! isso sim. E ainda amo. A família, o pai, a mãe, as manas, o Florêncio, a avozinha, a casa, a Châtaigneraie. Tudo isso é sagrado.
Mas nada tem a ver com o meu amor por ti, com o amor.
O homem hesitava em pronunciar um nome. Disse-o, todavia:
-Saint-Ivy.
Ela sacudiu a cabeça - oh! perfume dessa cabeleira revolta!
O teu afilhado? Uma criança aos meus olhos. Bem sei que gostou de mim. E lamento-o. Mas eu, só gostei de ti.
É novo ele. Dar-te-ia uma felicidade jovem.
Que não seria felicidade. Felicidade, para mim, és tu.
Com ele - repetiu obstinado - terias começado a vida sobre um plano diferente. Eu trouxe-te para uma velha casa cheia de coisas antigas que quase fazem parte de mim, mas te desagradam.
Catarina não protestou. Nunca mentia. Tentou servir-se habilmente da ocasião que se apresentava para obter alguns sacrifícios.
-Talvez a gente não fique com todas essas velharias. Há algumas bonitas, mas outras... Olha, se quisesses, mudávamos as cortinas do nosso quarto que são duma cor tão insípida... Tirava-se aquele bronze, que parece um chocolate... Forrávamos estes cadeirões verde-rã de qualquer outra cor harmoniosa.
- Já modificaste bastantes pormenores.
-Ousarás ter saudades do teu quebra-luz fora de moda? Repara como a lâmpada ganhou classe, com este chapéu engrinaldado de notas de música. Como a luz se tornou bonita! Espalha paz, como o luar. E não gostas dos meus peixes vermelhos?
-Qualquer dia, o Presto come-os.
- Oh! Se o Presto fizer isso, ponho-o na rua!
Rosnadela: compreenderia? Ou será apenas a irritação de ouvir o seu nome na boca da inimiga? A mão esguia de Estêvão desce sobre ele e acaricia-o. Delícia! Delícia! Presto solta latidos de contentamento, e como Catarina - magoada sem bem saber porquê - abandonou os joelhos do mestre, Presto pousa neles a cabeça.
"É estúpido" - pensa ela-, "creio que o Estêvão gosta mais do Presto do que de mim".
Sente-se tolamente triste. Mais ainda quando o marido lhe diz:
- Pelo menos não mudes o pano da minha mesa. Bem sei que é feio, usado, mas sempre o tive. Peço-te que o poupes, Catarina.
Voltou ao seu jornal. Ela ao tricô. E depois, não se contendo, dirige-se para o piano. As suas mãos percorrem-no, revelando tudo o que as palavras não exprimem. O mestre largou o jornal.
Escutava. Sentia-se novo. Feliz.
Ergueu-se também, abriu o segundo piano e susteve, com a sua, a execução da esposa, acrescentando adoráveis variantes ao andante de Beethoven que ela escolhera. Reencontravam-se assim no único mundo em que podiam estar perfeitamente unidos.
- Até logo - disse Natália para o soldado que conduzia o veículo. -Virei ter consigo a este mesmo sítio.
E desceu para o metropolitano, pensando:
"Deus queira que não encontre ninguém".
Era bizarro, uma Morot-Léandre, esconder-se, embora dissesse consigo: "Não tem nada de mal. Uma boa obra. Visitar um ferido. Faz parte dos deveres do médico".
Chegou, sem encontros, ao hospital onde o seu cartão lhe permitiu entrar sem dificuldade. Percorreu filas e filas de camas altas e duras onde jaziam rapazes, muitos de cabeça ligada. Alguns gemiam.
Mas o que procurava tinha os olhos fechados, numa semi-sonolência. Pegou-lhe na mão. Uma expressão de felicidade distendeu os braços cavados pelo sofrimento.
Natália, você... Oh! é esplêndido.
Foi-me bastante difícil vir. Mas consegui: precisavam duma enfermeira no carro.
Ele apertava-lhe a mão com força. E esqueciam tudo, contemplando-se. Como eram azuis os olhos do rapaz!
- Dê-me notícias dos camaradas. Quais é que morreram? Pobres rapazes... Agora, fale-me de si.
Escutou-a. Tudo que diziam os lindos lábios risonhos o encantava. Como era sã, robusta e atraente. Uma queixa lhe subiu do coração:
Natália, como poderíamos ser felizes!
Não, sou casada, Gabriel.
Você não ama o seu marido.
Escolhi-o. É pai do meu filho.
Ele não lhe deu o amor por que anseia uma mulher ardente como você. Confesse que a decepção lhe veio pouco a pouco. É inteligente, não contesto, bom. Mas, acima de tudo, profissional. O cérebro absorvido pelo trabalho, o coração familiarizado com o sofrimento dos outros e insensibilizado. Você julgou amá-lo. Mas, hoje, vê claro. Deixe esse companheiro cujo passo não acerta com o seu, através da estrada. O seu companheiro sou eu. Não poderei viver sem si. Nem você sem mim.
Tentação. Tentação cruciante.
É preciso, Gabriel. Não sou livre.
O divórcio liberta.
Na minha família, não.
Prefere os preconceitos familiares à vida cheia, magnífica? Natália, não faça do seu destino qualquer coisa de medíocre. Liberte-se dos laços que a sufocam.
Você é doido - murmurou, procurando dominar-se. - E eu também. Nunca deveria ter vindo.
Mas veio... Afinal, não teria sido para se despedir? Possivelmente, vou morrer. A infecção não cedeu: você, que é médica, sabe-o bem. Mas ignora uma coisa: para viver preciso de felicidade. Uma palavra sua, ainda que não seja promessa, uma esperança. Está a chorar? Vá-se embora. É dura e fraca, ao mesmo tempo, uma burguezinha à moda antiga, incapaz de se afirmar.
Agitava-se. A mão ardia.
- Schiu, meu filho, schíu! Está a fazer mal
a si e a mim. Oh! o tempo passa. Tenho que ir.
- Assim? Deixando-me tão infeliz?
Ela teve quase um soluço:
- Gabriel, nada posso prometer. Mas não
desespere... Tenha esperança.
Apressou-se em sair. Lá fora, o nevoeiro avançava na noite. Correu para o metropolitano apinhado de gente. O coração pesava-lhe, embora se julgasse feliz.
Restava-lhe pouco tempo para apanhar o veículo militar. Remorso de ter vindo a Paris sem abraçar a família. Precisamente, tivera notícias do sector de Florêncio. Paciência, escreveria uma palavra a tranquilizá-los.
Caminhando apressada, no Châtelet, para alcançar a outra linha, ouviu que a chamavam: "Natália!" Era Isabel. Teve um movimento de cólera, muito Morot-Léandre.
- Minha filha, não posso demorar-me. Tenho o carro militar à espera.
Isabel, como certos seres particularmente sensíveis, tinha intuições súbitas: sentiu: que Natália estava profundamente perturbada.
- Vou contigo. Tomo depois o meu carro.
Passou o seu sob um braço rígido. Natália sofria cruelmente com este encontro com Isabel, a sua paz e pureza.
"Que me deixe! Que me deixe! Oh, que pegajosa!"
Mas a pegajosa não a largou. Felizmente havia assunto: o sector de Florêncio.
- Uma sorte ter-te encontrado - disse a rapariga-, levarei notícias aos teus pais.
-Não quero que lhes digas que me encontraste. Proíbo-to. Ouves?
Que estranha Natália! Isabel perguntou ternamente:
Cansada, minha querida? Conta. Há alguma coisa que não corre bem?
Que ideia! Imaginas sempre impossíveis. Tudo vai lindamente. Estou é com dores de cabeça. O melhor é deixares-me, Isabel. Não sei o que tenho. Os nervos em ebulição.
-Não fales. Apoia-te em mim. Pensa em coisas agradáveis. Pensa... no teu menino.
Cala-te. Não me fales dele. Tu não podes compreender.
Não, certamente. Mas... sinto. Natália, recordas o que uma vez disseste à Solange, que me contou?
-O que foi? Que disse eu de extraordinário?
- Disseste-lhe - e estas palavras produziram nela o efeito dum choque eléctrico: - "mantém-te uma Morot-Léandre".
A rapariga desprendeu bruscamente o braço e, com olhar duro, disse, entre dentes:
- Basta. Não te suporto. Deixa-me continuar sozinha. E, repito, estás proibida de falar do nosso encontro a quem quer que seja. Eu escreverei aos pais a dar notícias do Florêncio.
Como quem foge, desapareceu na multidão. Isabel seguiu de novo o longo corredor monótono onde, entre dois muros de cimento, passam e repassam, dia e noite, pessoas atraídas pelo apelo do trabalho ou da vida familiar, do prazer ou da dor.
"A Natália sofre. A Natália está em tentação. Oh! Aqueles Morot-Léandre! Confiarei a sua alma a Cristal."
Que não confiaria ela a Cristal?
SEMPRE ela! Em todo o lado, Denise a encontrava. Antes, moravam em bairros afastados, mas Gertrudes e os pais tinham vindo morar em casa da avó para se aquecerem juntos, nesse inverno de angústia. E as duas raparigas, encarregadas do governo da casa, não podiam sair que se não encontrassem face a face. Às vezes Denise fingia que não via, mas Gertrudes, a grande Gertrudes que a dominava, não perdia ocasião de entabolar conversa. Simpatia? Não. Desejo de alardear a sua intimidade com João Lucas: "para que a Morot-Léandre se convencesse bem que o moço não estava destinado à sua insignificante pessoa".
No padeiro? Gertrudes. No talho? Gertrudes. Na leitaria? Gertrudes. E até na igreja, Gertrudes.
"Não serve de nada morar em Paris", pensava Denise, "a toda a hora se é incomodado pelos vizinhos, como em qualquer vilarejo".
Nesse dia, tiritava Denise na bicha paciente dos apreciadores de couve - humilde legume que se tornara precioso - quando ouviu uma voz alta e precisa, demasiado precisa:
- Bom-dia, Denise.
Foi necessário falar. Das coisas mais prosaicas, como é costume nas bichas. Mas Gertrudes, muito chique com a sua canadiana, as suas luvas forradas, as suas calças de ski, logo achou meio de irritar a petiza.
- Você deve estar gelada com esse casaco, minha pobre Denise.
Que tinha com isso? Denise, tão meiga, era, no entanto, altiva como todos os membros da sua família.
O meu casaco é perfeitamente confortável- replicou, com as mãos nas algibeiras.
É verdade, você nunca foi aos desportos de inverno, não está equipada para o frio. Ah! o que nos divertimos! O João Lucas deve-se lembrar da nossa última estação em Superbagnères. Não sabia que ele tinha ido a Superbagnères? Divertimo-nos à louca. Que alegres serões! Você não imagina. No próximo inverno iremos à Sabóia.
"Nós, nós..."
As mãos de Denise crispavam-se nas algibeiras.
- Sem dúvida, não tem notícias recentes...
- continuou Gertrudes. - A sua última carta era mais optimista.
Oh! A sua última carta! Nunca João Lucas escrevera a Denise. Fugindo a um imenso desejo de chorar, escolheu, ao acaso, uma couve qualquer e, de regresso a casa, a mãe repreendeu-a. Enquanto Gertrudes, sorriso trocista nos lábios, escolhia a mais rechonchuda, a mais frisada das couves, a mais linda, pensando:
"Que idiota! nem sequer sabe comprar legumes".
Ora, Denise sabia muitíssimo bem comprar os seus legumes. E cozê-los. E prepará-los. E servi-los de modo tão apetitoso que a gente lambia-se, só de os olhar. Gostava de ouvir seu pai dizer:
-Que lindo prato! Estou cheio de fome!
Às vezes, porém, não sentia grande apetite. Mas sabia dar com isso tanto prazer à sua benjamina, loura e terna. Ah! INão seria ela quem tomaria resoluções desconcertantes, como Natália médica, Catarina esposa dum velho rabugento, Solange missionária. E Florêncio com a sua arenga: um avião e Isabel. A falar verdade, a escolha de Isabel revelara-se excelente. O avião? Passada a guerra, certamente renunciaria. Tudo se tornaria diferente. No entanto, mestre Florêncio não era personagem lá muito fixe. Denise, ao menos, era um cordeiro, um tesouro. Casá-la-iam com um bom rapaz, e continuaria a ser, com Isabel, a mais bela figura feminina do rancho.
Assim discorria, sem ter em conta João Lucas. Era pessoa que o não preocupava. E, nessa manhã, entrou satisfeito, acompanhado por um rapaz. Apresentou-o à mulher:
Pedro Leduc, filho dum dos meus colegas. Dás licença que almoce connosco?
Com todo o gosto - respondeu, se bem que inquieta.
Haveria com que alimentar outro conviva? Foi depressa consultar Denise. Dotada de verdadeiro génio culinário, a pequena conseguiu arranjar uma refeição bastante agradável. E vendo-a agir, a mãezinha dizia consigo: "Que bela dona de casa, a nossa Denise! Deus queira que case bem..." Mais perspicaz do que o marido, receava João Lucas. Muito simpático, João Lucas, mas quantas objecções a pôr ao seu carácter e preferências! Se Denise conseguisse esquecer o romancezito da sua meninice! Mas era evidente que o papel de soldado dava uma auréola aos rapazes. O alegre companheiro, o par das festas, passava a ser considerado um herói.
O almoço ficou bom. Denise serviu-o com delicada e encantadora simplicidade. Discreta e rápida, ia e vinha sem permitir que a mãe se levantasse. Pedro Leduc, que não tinha irmãs, apenas umas primas vaidosas, observava-a com admiração e prazer. O seu sorriso espirituoso, o nariz um pouco arrebitado, davam-lhe um aspecto de retrato do século dezoito. Pequenina, delgada, mas redondinha, tinha proporções perfeitas. É qualquer coisa de tão ingénuo!
"Uma verdadeira rapariga. Tinham-me dito que as Morot-Léandre eram independentes e insuportáveis. Mas esta é um sonho."
Morot-Léandre espiava as reacções do convidado. Um rapaz com quem simpatizava, que de boa vontade associaria aos seus negócios, a quem possivelmente, daria a sua Denise. Ideia que desde há meses o absorvia; tomara informações dignas dum detective, sobre o moço e respectiva família. Tudo era favorável. Já que seria preciso separar-se um dia de Denise, porque não em favor daquele? Ao menos, não a levaria para longe. As outras filhas tanto o tinham decepcionado e irritado! Todavia não podia impedir-se de lhes admirar a personalidade forte e voluntariosa.
À noite, num pequeno tom desprendido, perguntou à mulher:
Que tal achas este rapaz?
Muito simpático.
E tu, Denise?
-Sei lá... parece bom moço. -Bom moço, bom moço... é mais do que isso. Falas como se fosse um garoto.
Denise, que tricotava, ergueu para o pai o célebre narizito de que João Lucas tanto troçara e Pedro Leduc achara encantador:
Paizinho - perguntou -, porque não combate ele, como os outros?
Esteve dois anos prisioneiro.
-O Florêncio, quatro. Também fugiu?
Não. Foi devolvido à vida civil, como engenheiro.
Devia partir de novo.
Foi mobilizado numa fábrica. São precisos homens em toda a parte, Denise.
Eu admiro os que se batem.
"Aí está. Pensa em João Lucas", disse para si a mãe.
- No entanto, deves compreender - começou o pai.
E pôs-se a explicar-lhe a vida social. Mas Denise bocejou:
Irrita-me, tudo isso. É muito complicado, paizinho. Eu julgo segundo o que vejo. E acho os rapazes que se alistaram no exército Leclerc muito superiores ao teu Pedro Lerroi.
Leduc.
É parecido... O teu Leduc todos os dias vai tranquilo para o escritório.
Que é uma fábrica. És mulher e basta, confundes tudo.
Lamenta-o, senhor meu pai ? É justamente por isso que sou o seu tesouro: porque sou mulher. Confessa?
E sorria com tal encanto que ele pensou: "Nem em favor de Leduc, nem de qualquer outro, nunca terei coragem de me separar da minha Denise."
De súbito, deu uma palmada na testa:
- Esqueci-me das cartas na algibeira do sobretudo. Vai buscá-las, Denise.
Ela levantou-se, indignada:
-E ainda dizem que as mulheres são estouvadas! Um senhor da tua idade! Se já se viu!
Correu, o coração a bater. Talvez houvesse uma palavra de João Lucas, algumas linhas bastariam. Mas não. Voltou decepcionada. E todavia, trazia nas mãos uma carta preciosa.
-A avozinha escreveu.
-Oh! Dá-me depressa!-exclamou a sr.a Morot-Léandre. -Que alegria, receber notícias da mãezinha.
Nesses dias em que vida e morte se batiam em contínuo duelo, qualquer notícia dos entes queridos causava alegria. E depois, a avozinha... a casa... o Limousin... a recordação de alegres férias... Denise empoleirou-se no braço da poltrona da mãe:
- A avozinha tem uma letra muito miúda. Faz-te mal aos olhos, queres que leia eu?
Novidades várias e de interesse. A sr.a Honorat não traçava uma linha banal. Sabia evocar as pessoas, as coisas, e firmar bem o cunho da sua personalidade em tudo que contava. Para cada um dos netos, uma palavra pessoal, um conselho, um estímulo, uma razão de esperança. Não criticava ninguém. Corajosa, directamente, falava de Estêvão Magloire como dos outros, libertando assim Catarina e o marido daquela como que muda reprovação que os fazia sofrer. Sempre adorara Catarina: com Florêncio, a Cigana era secreto objecto da sua predilecção.
O sr. Morot-Léandre franzira as sobrancelhas ao escutar a passagem referente aos Magloire. Enterneceu-se quando a sogra falou de Florêncio. Encolheu os ombros quando ela se informava de João Lucas Morlainville, sem notar - o que não sucedeu com a mãe - um ligeiro enfraquecimento na voz de Denise.
Quando terminou, a pequena murmurou, sonhadora, os olhos fixos no fogo pálido e renitente:
- A avozinha... queria vê-la... queria voltar a Châtaigneraie. Afigura-se-me que nunca fomos tão felizes como lá. Formávamos grupo os cinco, com os Morlainville. Éramos novos, novos...
A mãe riu, um pouco nervosa:
Novos! Achas-te velha então?
Sim. Nunca mais será a mesma coisa. Nunca mais seremos aquele grupo de crianças a correr, os pés nus nas sandálias velhas, a cantar, a dizer tolices...
-Já não será a mesma coisa, querida. Será outra. Uma felicidade diferente: mais bela, talvez.
Mãezinha, é possível ser feliz, envelhecendo?
Denise - repreendeu o pai -, a filosofia não era o teu género. Terias virado em neurasténica?
Ela suspirou:
- Eu queria... queria... olha, nem mesmo sei o que queria.
Calaram-se os três. O fogo crepitava. Lá fora, o vento gemia. Na Alsácia, os soldados deviam senti-lo asperamente. Denise pôs as mãos, rezando por eles. Pelo irmão, por João Lucas. Tinha a certeza que Gertrudes não rezava por ele: portanto, no plano espiritual, estava-lhe ela mais próxima. Veio-lhe à ideia que era como se o envolvesse num manto de bênçãos.
Mãezinha - disse por fim-, gostamos tanto da Châtaigneraie! Lá é que a Isabel e o Florêncio se deviam casar.
Olha, uma boa ideia! - exclamou o pai, largando o jornal. -Um grande casamento em Paris, assusta-me. Lá, seria muito mais bonito. Vai-se pensar nisso, Bichinho.
Com uma condição: vou na mesma de vestido comprido.
Ah! as mulheres! - exclamou o sr. Morot-Léandre a rir. - Sempre e em qualquer parte hão-de pensar nos respectivos vestidos!
O fogo mortiço enviava um reflexo avermelhado e dançante ao rosto da rapariga. Era uma noite pensativa, cheia de emoção, magnífica.
- Acende a telefonia - ordenou o pai -, são horas do noticiário.
Escutaram apaixonadamente. Tudo corria melhor. Alegria. Esperança. Colmar estava retomado.
Mas a voz longínqua foi coberta pela campainha do telefone. Denise correu e ouviu o seguinte:
Está? É a Isabel. Quem está ao telefone? Denise? Se a tua mãe aí estiver, pede-lhe o favor de vir.
Mãezinha, a Isabel chama-te. Estava com uma voz esquisita.
Prestando atenção, ouviu o nome de João Lucas. Imediatamente quis pegar no aparelho. A mãe deteve-a. Meu Deus, que quereriam ocultar-lhe? Porque motivo a mãe respondia com pequenas explicações pasmadas, confusas, tristes? É impossível perguntar a Isabel: a mãe desligara.
Que há? Que há?
Notícias não muito boas. A Isabel acaba de saber que o irmão foi ferido.
Morto? - gritou a rapariga.
Não, minha querida. Ferido. Bastante gravemente, disse a Isabel. Porque havemos de imaginar logo o pior?
Ela soluçava, a cabeça escondida no ombro da mãe - e o pai observava-a. Sensível, a sua pequenina Denise, sim. Mas uma emoção tal... Esconderia algum sentimento pelo rapaz? Não ousava irritar-se, dominado pela terrível grandeza da situação. Mas pasmava e sofria. Sofria por vê-la sofrer. Então, disse com bondade:
- Também eu, Denise, fui ferido. Durante a outra guerra, no Chemin des Dames. E voltei... e tu sabes que hoje existem mais recursos do que naquela altura. A ciência fez tantos progressos !
- É verdade? Mesmo verdade, paizinho?
Trocou o ombro da mãe pelo do pai. Sentia-o mais forte. E além disso, combatera...
ANOITECER frio. O vento forte geme. Os últimos reflexos duma luz bacenta, vão extinguir-se. Troar de canhões, a que já se não presta atenção: é a habitual orquestra da vida de guerra.
No celeiro duma quinta demolida, Florêncio espera o momento de prosseguir. Come. Está esfomeado. E pensa. Há semanas que não pensava. Engraçado, viver sem pensar, preocupado apenas em agir. Estranho, sentir-se fora do tempo, da sociedade. A idade? As habituais preocupações dum rapaz? Já nada contam. Ele é soldado.
Todavia - voo de ave, quase imperceptível, de tão rápido - a ideia de Isabel atravessa muitas vezes esse nevoeiro opaco. E, de cada vez, o coração quebra, enternece-se, por instantes.
Nessa noite, a ave tem tempo de pousar. Florêncio revê a noiva, no passado. Todo um passado de amor revive, desde aquele baile de máscaras em que ela foi fada e ele mandarim chinês, bem pouco mundano. "Não sei dançar", confessara timidamente a garotinha alta. E ele então! Apesar disso, teria jamais havido baile mais belo do que aquele, entre as estrelas e o mar? E a flor trepadeira em que ela pousara um beijo, ao passar, beijo furtivamente colhido por Florêncio. .. E a madressilva da despedida... E tudo, tudo, o laço de veludo azul, talismã contra o mau génio, aquele vestido de organdi até aos pés, numa noite de verão, o jardim da casa de seus pais... Tudo. As lágrimas sobre a morte de Marieta, as gargalhadas durante os passeios no Limousin com as mocinhas e João Lucas... O seu perfume, as suas frivolidades e os seus pensamentos elevados... Seus versos e seus tricôts...
"Deveria ser minha mulher... Se eu morrer, não usará o meu nome... Não teremos tido um filho... Mas será livre. Livre de casar com quem quiser. Casará? Eu, se perdesse Isabel, nunca, nunca amaria outra mulher... Aqui, há tantas que não desejam outra coisa. No exército rodeia-nos a tentação, com esta espécie de fatalismo que nos faz pensar: "Já que vamos morrer..." Falaram-me da Natália. Calúnias? Mostrei o meu desprezo à enfermeira que se atreveu a aludir a uma ligação da minha irmã. Mas não me sinto certo de que ela tivesse mentido. A Natália é ardente, o Roland, um intelectual, não lhe dará aquele tipo de felicidade absoluta, violenta, que nós os Morot-Léandre exigimos, eu como as minhas irmãs. E não é lá muito maternal. Que diria a mãezinha se soubesse disto... À Solange, guarda-a a sua vocação. Ah! Não quereria ver a minha Liseron no exército, no meio destes homens. Liseron... Isabel."
Só de lhe pronunciar o nome, se sentia repousado, à vontade, feliz. A vida junto dela, que maravilha! Mas viria a conhecer essa vida junto de Isabel? À sua volta, a morte ceifava. Quantos, de entre os companheiros! Oh! era preciso fugir ao sentimentalismo desperto pela recordação de tal rapaz, particularmente simpático... daquela horrível ferida... Uma só coisa importava: expulsar o inimigo! Isso custava caro, e custaria ainda... Mas nunca o preço seria demasiado.
Iriam dormir, nessa noite? Havia palha no curral. Lá dormiriam os seus homens; decidiu ir buscar alguma para si. Ergueu-se, pesadamente - estava tão cansado! -, dirigiu-se para a porta, semiarrancada. As trevas tinham um tom avermelhado: incêndio por toda a parte. E um rosnar ininterrupto. Prestou o ouvido... pareceu-lhe ouvir um apelo. Sim, sim, uma voz que se lamentava. Reuniu alguns homens e dirigiram-se para o lado donde vinha o lúgubre queixume. Francês ou boche, era preciso socorrer o ferido.
- Parece falar francês - disse o cabo. - Ora escute, meu tenente.
- Por aqui... por aqui... -repetia a voz.
Numa ravina, avistaram um longo corpo estirado:
- Dói-me... Dói-me... O meu braço.
Florêncio iluminou o ferido com a lanterna eléctrica. Vejamos, vejamos, estaria a sonhar?
- João Lucas!
As pálpebras pesadas soergueram-se. O rapaz estava demasiado fraco para se admirar do encontro:
Meu velho Florêncio... Vou morrer. Perdi todo o meu sangue.
Morrer?! Nós estamos aqui, meu filho. Tem confiança.
Ergueram o pobre corpo banhado em sangue. Suave, lentamente, conduziram-no até à quinta. O braço esquerdo pendia terrivelmente desarticulado. Florêncio, comovido, beijou o amigo.
- Coragem, Pulguinha. A gente vai safar-te disso!
João Lucas fitou Florêncio. E nunca os seus olhos haviam sido tão belos. Depois, perdeu o conhecimento. E foi um moribundo que Florêncio viu remover na primeira ambulância. Então, uma onda de raiva o possuiu. João Lucas, aquele magnífico rapaz, o amigo de infância, o irmão de Isabel, o apaixonado de Denise! Ah! Vingá-lo-ia!
Os seus homens, pasmados de ouvir o tenente chamar o ferido pelo primeiro nome, adivinharam que existia forte laço entre ambos. E aceitaram, sem protestar, a brusquidão, as ordens violentas do chefe. Insuportável de génio, mas justo e compreensivo para o soldado... E o tal João Lucas, que belo rapaz, mesmo assim...
No dia seguinte, soube-se muita coisa sobre ele... porque uns camaradas o seguiam. Fora devido a ele que se fizera o avanço. Morlainville, voluntário para uma missão dum perigo louco, tinha sozinho destruído um pequeno posto que barrava o caminho. E voltava para junto deles, gritando "Passem!" quando uma granada, lançada não se sabe donde, lhe atingira o braço.
- Ah! - repetiam - era um tipo estupendo. Sempre pronto para ir adiante. E alegre, bom camarada. Pobre rapaz! Mais um que desaparece...
Então, o tenente Morot-Léandre entrou em furor. Porque razão enfileirar Morlainville com os mortos?
No fundo, porém, desesperava. Todo aquele sangue... E depois, mesmo que vivesse, seria um amputado. Ele, João Lucas? Ah! a guerra!
Em Paris, estavam sem notícias. Dolorosa espectativa. João Morlainville envelhecera subitamente. Isabel não compreendia como era possível suportar tal angústia, sem morrer. E Denise, agora incapaz de sufocar os seus sentimentos, chorava dia e noite, mesmo diante do pai, horrorizado pela dor da sua garotinha. Da têmpera de Florêncio, implicava com todos, começando pela mulher:
Estavas cega! Como é que consentiste que a Denise se apaixonasse por aquele menino bem? Deverias tê-la distraído, relacioná-la com outros rapazes. Estamos arranjados, agora! Uma miúda tão sensível, vai cair doente. E por um homem que a não merece!
És injusto - respondia a mãezinha. - João Lucas tem defeitos, defeitos de criança mimada. Mas é inteligente, enérgico, tem uma grande alma. Lembra-te da forma como agiu durante o último período da ocupação de Paris... E depois, que queres? É um bonito rapaz, espirituoso, simpático. E o amor não é coisa em que se possa mandar. Não me surpreende que a Denise se prendesse.
Todos os dias, nas lojas do bairro, continuava Denise a encontrar Gertrudes. A rapariga mostrara viva emoção ao saber que o seu "flirt" fora gravemente ferido. E, facto curioso, a inquietação aproximava-as. "Sabe alguma coisa?" perguntavam uma à outra.
Mas ninguém sabia de nada.
Uma manhã, esperando a sua vez na leitaria, Gertrudes viu aparecer Denise.
"Que mau aspecto! Nem sequer se penteou. Arrasta-se como uma velha. Que há? Terá recebido alguma má notícia?"
Gertrudes precipitou-se:
- E então?! Fale, diga depressa!
- Aqui não. Diante de toda a gente, não - murmurou uma pobre vòzita.
Então Gertrudes marcou o seu lugar e o de Denise, na bicha, e afastaram-se um pouco. Denise, contendo os soluços infantis, balbuciou:
- Se soubesse...
Morto?
Não. Não! Graças a Deus. Está vivo. Salva-se.
- Então?
Novo soluço:
- Amputado. Não puderam salvar--lhe o braço. O esquerdo.
Silêncio. Colocada bruscamente perante a trágica realidade, Gertrudes vai exclamar, sem dúvida, como Denise: Coitadinho!
Gertrudes fez-se amarela. Há momentos em que a pintura de nada serve. Sacode a cabeça:
- Que horror! - exclama. - Que horror!
Um homem acabado.
E reclama asperamente o seu lugar, seguida pelo olhar estarrecido de Denise. Foi então tudo o que encontrou para dizer: "Que horror! um homem acabado"?
Também Denise volta ao seu lugar: é preciso. Todavia, a mãe compreendeu-a. "Fica, minha querida. Hoje, faço eu as compras". Mas uma força atraía Denise para a rua. Sem que a si própria confessasse, queria dar a notícia a Gertrudes, para ver, sim, para ver como a outra o amava. Agora, Denise sabe. E como que uma suavidade vem envolver o seu sofrimento:
"Sou a única a amá-lo. Já não é necessário lutar contra Gertrudes. Apenas me terá a mim. Coitadinho, coitadinho..."
Repete esta palavra: "coitadinho", incansavelmente, esquecida de como ele é grande.
Quando voltou, o saco muito pesado, a mãe admirou-se da paz que se lhe lia no rosto, inchado de lágrimas. Denise não tinha agora mais força para esconder o que quer que fosse:
- Encontrei a Gertrudes. A Gertrudes quer-me convencer de que ambos estavam noivos.
Mãe, sabes o que ela disse, quando soube? "Que
horror! Um homem acabado". Mordeu os lábios e foi, aos empurrões, para o lugar na bicha. Sem mesmo me pedir pormenores, mãezinha. Estou indignada.
"Deliciada, queres tu dizer" - pensou melancólica a mãe. - "Eis-te sozinha a amá-lo. Ama-lo, neste momento, como nunca o amaste."
E estremeceu, perante os dias vindouros.
João Morlainville, esse, ficara esmagado sob o golpe. O seu filho, o seu esplêndido João Lucas, atingido por tal desgraça. A seguir à mãe, o filho. Meu Deus, que diria Jeanine se soubesse que o filho era um aleijado? Melhor lhe fora morrer, antes do golpe. Mas ele, ele, o pai, carregava o peso de toda aquela imensa dor. Oh! se conseguisse saber pormenores, saber donde partia a amputação, de que modo a pobre criança aceitava o facto, se o organismo reagia normalmente, se a alma se resignava...
A incerteza matava-o. Encarava, com Isabel, todas as possibilidades. Um dia, exclamou:
Quero ir vê-lo!
Não to permitirão, paizinho. É demasiado próximo da frente.
Mas tu, tu, como enfermeira, não conseguirás obter um livre-trânsito?
Talvez... Mas...
Mas o quê? Por Deus, não levantes objecções !
Aquele "mas" era Cristal, cujo fim se aproximava. Falar dela a João: impossível. Ele nunca admitiria paralelo entre a amiga e o irmão.
Para sossegar o pai, pediu o livre-trânsito. João apelou para dois amigos influentes, para que lhe fosse concedido. E - o coração despedaçado, uma vez mais, entre dois deveres, duas afeições - procurou quem a substituísse junto da doente. Quando finalmente conseguiu a certeza da assistência duma religiosa e o livre-trânsito, pediu ternamente a Cristal licença para a deixar durante dois dias, enquanto iria ver João Lucas.
Aquele rosto, já sem vida, crispou-se; nos olhos passou como que um clarão de pavor. E a pobre voz sem timbre murmurou:
- Partir, você? Não, não, Isabel, espere que eu vá... Agora, pouco falta.
Isabel não insistiu. Mas, uma hora depois, Cristal chamava-a:
- Parta, minha querida. Parta em paz.
Num último gesto de santidade, Cristal consentia em sacrificar o único bem que lhe restava. Sem dúvida, conviria que morresse em despojo total. Secretamente, a sua alma compreendera-o: faltava ainda qualquer coisa ao seu holocausto.
Quando Isabel se despediu, deixando um véu de religiosa inclinado sobre o leito de miséria, sentiram, uma e outra, que se não voltariam a ver.
Não voltaram a ver-se. Na madrugada seguinte, a alma de Cristal ergueu voo.
Montmartre!" - murmurou o soldado.
- "Que prazer, encontrá-lo no mesmo sítio. Dantes, adorava coisas novas. Agora, parece-me maravilhoso voltar ao mesmo sítio.
Estou velho..."
Mas soltou uma gargalhada. Não se sentia velho, absolutamente. Uma juventude estranha excitava-o, empurrava-o para a frente. A guerra ia acabar. E, para ele, já acabara, até! Bem aventurada icterícia que lhe valera a licença de convalescente, precisamente no momento em que, a sua natureza fantasista a imperar de novo, Sílvio se sentia farto da vida do exército, e sonhava com o seu atelier, a sua mulher, os seus filhos.
Subia devagar, ainda fraco. E, de tempos a tempos, voltava-se para contemplar Paris. Ele amava Paris como se ama uma pessoa. Chegado a termo fez pausa. A emoção afogava-lhe o peito. Ter roçado, tanta vez, pela morte, e retomar agora a posse da doce felicidade, da paz! Sobre a grande cidade, o céu era já primaveril.
A primavera. Teresa, Francisco, Domingos, Maria. Os pincéis. Os colegas. A vida, a vida, afinal! Parecia-lhe que regressava de entre os mortos. Para agradecer ao Senhor da vida, entrou na basílica e rezou, como Teresa lhe ensinara a rezar, com palavras verdadeiras. Depois, chegou a sua casa... estarão lá? Ou será obrigado a sentar-se no degrau da escada, à espera? Seria horrível! Sílvio nunca soube esperar. Sobe, atento a cada ruído revelador de presença... Aqui, tosse-se: o velho vizinho. Ali, escreve-se à máquina. Mais acima, briga-se... Subamos ainda. Nada... Não estão, meu Deus! Mas de súbito, uma voz canta, muito fresca, e ele ouve estas palavras:
"Quand le bien aimé reviendra..." (*)
Teresa!
Bate à porta com ambos os punhos cerrados. Costumava fazer isso, quando, sempre estouvado, se esquecia da chave, e Teresa ralhava... O canto interrompe-se. Um grito:
- Sílvio!...
A porta abre-se e aparece um rosto corado onde brilham uns olhos cor de folha. E, de todos os cantos, aparecem crianças.
Beijar Teresa, as suas faces tão vermelhas, apertar nos braços o corpo roliço! Respirar aquele são perfume de alfazema. Ver o sorriso dos seus dentes brancos... Teresa: paz, segurança, felicidade, sensatez. Não se cansaria nunca de beijar Teresa. Mas bate-se o pé, lá atrás:
- E nós? Paizinho, beija-nos!
Francisco, o autoritário, a ninguém cederia os
(*) Quando voltar o bem-amado...
seus direitos de primogénito. Domingos nem mesmo luta, e já se resignou até a ver a sua vez tomada por Mariucha. Esta, porém, decidiu de repente ser a última, para se demorar mais tempo nos braços do pai. Decisão que a ambos agrada, e ela bem sabe. Deixa-se erguer, lânguida e leve, aninha-lhe a cabeça no ombro. Ele cobre de beijos os cabelos, acaricia-lhe as pernitas nuas. E por fim:
- Não me beijas também, Mariucha?
Então, o rostozinho miúdo e risonho desprende-se, rosado de prazer. A filha fixa o pai. O pai olha a filha. Adoram-se, os dois! Parecem-se tanto! Quando já se olharam bastante, Mariucha pousa-lhe os lábios na face direita. Uma careta.
- Picas!...
Depois, na face esquerda. No gesto de gatinho enjoado:
- Cheiras a tabaco.
Ele está aborrecido... Mariucha deu uns beijos tão curtos, prudentes, quem sabe se repugnados... Mas ela estala a rir e, sem se preocupar com a barba, nem com o cheiro a tabaco, cobre de deliciosos beijos todo o rosto do pai. Saciar-se-á jamais? Mas sim, desprende-se, salta para o chão:
-Espera! Vou mostrar-te os meus desenhos. Tão bonitos como os teus.
E como Teresa lhe disse:
Deixa o pai sossegado! Mariucha ergue o narizito insolente:
O paizinho voltou. Quem manda é ele. Então, Teresa, de castigo, põe-na ao canto.
Ela esforça-se por soluçar, certa de que o pai a libertará. Bem entendido, ele vai buscá-la pensando, sem o dizer, que Teresa é uma mãe demasiado severa. Uma criança tão pequenina...
Tanta coisa para contar! Teresa não se cansa de o olhar. Ainda está amarelo. Pensar que poderia ter morrido... E ei-lo ali!
Já não voltas?
Volto, mas não para combater. Isto vai acabar. Não há mortos, entre os amigos?
Ela cita-lhe alguns nomes. Também ele cita outros. Emudecem; mesmo as crianças se calam. Eles, garotos de tempo de guerra, sabem bem quanto a vida é frágil. Escutam, olhos dilatados de interesse. É tão agradável ouvir as pessoas crescidas conversar! Dizem coisas que a gente nem sempre compreende bem, mas que calam cá dentro. Algumas, recordá-las-emos toda a vida.
De repente, Teresa dá um salto:
- As minhas panelas ao lume!
Mas volta da cozinha, toda contente:
Não houve desgraça. Estava lá a Mariana. Vem para aqui, Mariana.
Parece que és parva, Mariana, devias ter vindo logo -diz Domingos.
E quem é que fazia o almoço? - riposta Francisco.
E Mariucha, saltando sobre os joelhos de Sílvio, emite as suas ideias pessoais:
- Não é preciso comer. Conversamos todos.
É muito melhor.
No rosto de Mariana aparecem duas covinhas maliciosas:
- Nem todos pensam como tu. Por isso...
E segreda ao ouvido de Teresa, que bate palmas:
- Que boa ideia! És um amor. Queres que te ajude?
Mas Mariana nunca precisa de ajuda.
Tranquilo sobre a sorte do almoço, o círculo familiar cerra-se de novo. Sílvio pergunta, hesitante:
- E o João Lucas? Pobre pequeno! Que desgosto !
Com lágrimas nos olhos, Teresa conta que Isabel visitou o irmão. Em revolta, em desespero.
Mas tu sabes que a nossa Isabel tem um extraordinário poder consolador. Deixou-o apaziguado. É claro que ela diz: "Não lhe vali de nada". Imagina: a essa mesma hora, morria Cristal. É verdade, não podes saber de quem se trata. Uma professora que a Isabel e as Morot-Léandre tiveram no Instituto. Uma mulher incomparável: inteligente, boa, com imenso ascendente sobre as alunas. Isabel perdera-a um pouco de vista quando veio a encontrá-la, moribunda. Adivinhas o que fez?
Tornou-se sua enfermeira?
Exactamente. Dedicou-se, como a Isabel sabe dedicar-se. E foi-lhe penoso deixar a doente para ir, a pedido do pai, visitar João Lucas. Como ela previa, a morte passou-se na sua ausência. E a Isabel afirma que esse último sacrifício oferecido por Cristal veio trazer um pouco de paz ao pobre rapazinho.
Sílvio murmurou, sonhador:
Mistério de almas... João Lucas doente... Que diria a tua mãe, tão orgulhosa do filho? Amá-lo-ia, agora, como antes?
Nunca conheceste a mãezinha. Valia mais do que crês. Asseguro-te que tinha por nós verdadeiro afecto. Sobretudo pelo miúdo.
E o pai, como reagiu?
-Completamente obcecado pelo desgosto. Duas desgraças tão próximas!
E Denise!
Porque falas de Denise?
- Porque ela é louca por ele. Vai amá-lo mais do que nunca. Mas pergunto a mim próprio qual será a reacção do papá Morot-Léandre, que esperava que aquela filha o consolasse da excentricidade das outras.
- Ora, a Natália por exemplo nada tem de extraordinário.
Ele pôs-se a assobiar...
Uma mulher médica, já não é muito vulgar. E mulher no exército... Fala-se dela, sabes!
Oh! não é possível. Que calúnia!
Minha Maçãzinha querida, como muito bem diz Isabel, guardas ilusões de criança. Tu nem imaginas a que tentações estão expostas estas mulheres que vivem dia a dia ao lado dos soldados. Sem falar do encanto e personalidade de certas médicas. Enfim, admitamos que nada disse!
E almoçaram alegremente. Tudo estava bom. Mariana, as faces em fogo, quis servir ela própria com a ajuda de Francisco.
- Descansa, Teresa! - disse ela. - Um dia, para variar.
-Se soubesses como é simpática - murmurou Teresa enquanto a prima voltava à cozinha. - Teimosa, é claro. Ideias muito pessoais. Mas inteligente, desembaraçada. Um valor, esta pequena. Consegue estudar e ajudar-me. Fica cá, para sempre, não é verdade?
- Com certeza. Será mais uma filha. Quatro.
Um encantador sorriso-o sorriso das mães em expectativa - fez brilhar os dentes de Teresa. Fixou Sílvio. Então, ele compreendeu: enquanto lá a morte espreitava, refloria a vida aqui.
- Cinco - emendou Teresa-, mas schiu...
Logo, a gente fala.
Mariana, precedida pelo seu lacaio, chegou com soberbo bolo entre mãos:
- O bolo de que mais gosto! - exclamou Sílvio. - Pousa-o na mesa e anda cá que te quero
dar um beijo, fadazinha. Pelo bolo, pela ajuda à prima grande, por tudo, enfim. Não sou grande orador. Mas quando digo "obrigado", isso significa alguma coisa!
- Bem sei - respondeu a rapariga. -Tudo
o que se diz, cá em casa, tem significado! É muito bom, viver com vocês.
Comeu-se o bolo. Bebeu-se um vinhinho dourado. Mariucha exibiu os seus desenhos, Francisco, as suas construções; Domingos, apenas os seus olhos verdes e a sua candura. E depois, Sílvio, cantando a plenos pulmões, foi para o atelier fazer desordem. Vê-lo feliz, que alegria para Teresa! Bem sabia que, em breve, o humor mudaria, que o rapaz, sempre instável, iria conhecer momentos de depressão, que iria duvidar de tudo e de si próprio.
"Mas eu cá estou. Apoiar-se-á em mim."
Esta era a razão de viver de Teresa. Servir de apoio. E rodeava-a tanta desorientação!
No dia seguinte, Sílvio em visitas aos amigos de Montmartre, Teresa foi surpreendida por Natália. Uma Natália de rosto em tempestade.
-Traz-me alguma má notícia? O João Lucas?
- O João Lucas está tão bem quanto possível. Não se trata do seu irmão, é... de mim. Preciso de si, Teresa.
Então, Teresa lembrou-se das insinuações de Sílvio.
- Conte-me o que a apoquenta, Natália. Bem sabe como somos amigas, embora nos não pareçamos nada.
Natália mordia os lábios, puxava os dedos das luvas.
Finalmente, decidiu falar:
- Aqui tem... conheci um rapaz no exército.
Amei-o. E amou-me. Você sabe, aquela vida torna tudo uma confusão. Facilmente esquecemos... esquecemos o passado, as promessas, o dever. Você compreende isto, diga, Teresa?
Compreendo, Natália. E então?
Então... ele foi ferido. Gravemente. Julguei enlouquecer de angústia, longe dele. Trouxeram-no para Paris, para tentar um tratamento novo. Ele esperava curar-se e queria que eu deixasse Roland, que me divorciasse.
Tê-lo-ia feito?
Sei lá, Teresa! Mas morreu. Era isto o que eu queria dizer a alguém. Ele morreu. E eu sinto necessidade de gritar a minha dor, de explicar, de contar... Nós, os Morot-Léandre, não sabemos guardar o que pensamos, o que sentimos. Não somos reservados como o seu pai, como a Isabel, capazes de se enclausurarem num desgosto, por orgulho ou por caridade. Não. Foi por isso que vim. Porque procurava alguém e você é alguém. Mas também porque é simples, boa, porque é mulher. Censura-me, certamente, e eu não quero que me lamente nem que me faça sermões. Peço-lhe que aja apenas como mulher. Teresa, eu amava-o... Chamava-se Gabriel. Era valente. Tinha uma personalidade diferente da do meu marido que se tornou seco, insensível. Eu amava-o. Ouve-me? Eu amava-o!
De quem seriam aqueles versos que mental, inconscientemente, Teresa repetia:
Il faut craindre surtout les orages sans pluie El les chagrins sans larmes.1
Que chore, que chore...
Teresa toma-lhe a mão: retirara a aliança, pobre Natália.
- Tem que voltar a pôr o anel, minha querida. O Roland é seu marido para sempre. Recorde o seu noivado, o casamento, os primeiros tempos de vida em comum.
Ele mudou.
Você também. Nós mudamos continuamente. Mas para nos tornarmos cada vez mais nós próprios. Ajude-o a ser ele próprio. Suavize os ângulos da sua personalidade de sábio, pela sua influência de mulher. Seja realmente mulher. Realmente mãe. A guerra está a acabar, mande vir o seu filho. É o que a salva: ser mãe.
Oh! Teresa, Teresa, você é-o a um ponto tal!
Teresa fechou os olhos por momentos. Quando reergueu as pálpebras, Natália deslumbrou-se com a alegria que neles brilhava.
E em breve o serei uma vez mais. Ainda ninguém sabe. Digo-lhe a si, porque será a sua salvação, Natália ser de novo mãe... É certo que não o esquecerá...
Nada se esquece - murmurou Natália com os dentes cerrados. - Acredita que recordo sempre aquele rapazito Fleurville que tanto me fez sofrer, era eu ainda garota?
É verdade, a gente nunca esquece. Mas, com as recordações, constrói-se uma vida nova. Natália, o seu marido, o seu filho, os seus doentes. Todos a reclamam, a esperam. Desprenda-se do resto. A guerra vai acabar. Repare, a estrada estende-se livre diante de si, renovada.
Natália ergueu-se, beijou-a; partiu, direita e altiva. Sob a abóbada da basílica, porém, caiu de joelhos. E chorou, enfim.
OS lilases floriam. Em toda a Châtaigneraie adejava a embriaguez de um perfume azul. A senhora Honorat, abrindo a janela nessa manhã de Abril, sorriu à paisagem. Como há vinte anos - e talvez mais ainda - amava o odor do lilás. Amava-o melhor, principalmente. O corpo roliço curvara, deformara-se. Mas o rosto, que não tinha emagrecido, conservava a mesma frescura campesina. E na sua alma não existiam rugas.
Recordou, respirando o ar delicioso, uma outra manhã de Abril, a mais bela da sua vida. Jovem e alegre, dissera consigo, deitando para trás as cortinas: "O lilás floriu para o nosso noivado". Nunca esqueceria o perfume daquela manhã. Em honra da noiva, colheram-se os cachos brancos. E, desde que enviuvara, colhia, todos os anos, para florir o retrato do noivo de outrora, o mais belo, o mais cheiroso dos lilases brancos. Murmurava: "Querido". E fechava os olhos para imaginar que ele estava ali.
Vestiu-se rapidamente, queria ir ela própria fazer a colheita. Bem entendido, o seu pensamento estava em oração e sonho pelos netos. Aqui, na Châtaigneraie, também Florêncio celebrara o seu noivado. Mas seis anos haviam passado sem que a guerra permitisse que os pobres pequenos casassem. Seis anos! Como é que o mocetão impaciente, a sensível Isabel tinham podido suportar tão longa espera? Ah, se tivessem adivinhado! Mas não se adivinha, graças a Deus! E afinal, temos mais força do que imaginamos... muito mais. A Isabelinha, por exemplo.
Agora a guerra estava definitivamente acabada, certamente iriam casar.
"Gostava de assistir ao casamento. A pequena deve ficar tão bonita! Mas a Paris não posso ir: a viagem é muito longa."
-A senhora come antes de sair? - gritou a criada. -Não está calor nenhum.
Correndo em passinhos curtos, também era velha, Eugenia colocou um bom casaco nos ombros da patroa.
Vou aos lilases - explicou esta -, e almoço quando voltar. Quero colhê-los antes do nascer do Sol.
O sol não tem assim tanta força em Abril. Ideias da senhora, estes passeios de madrugada. ..
Talvez sejam ideias da senhora. Você também tem as suas, Eugenia.
Nunca sairia a uma hora destas por prazer.
Risonha, a velha senhora afastou-se. Meu Deus, que linda manhã! Oh! o cuco... Deteve-se. O cuco. Primavera. Esperança. A única ave cujo nome é semelhante ao canto. A ave que vem de tão longe anunciar a Primavera. Desde que a ouçamos, sabemos que a felicidade dos belos dias recomeçará. Cuco... ei-lo próximo, alegre e trocista. E depois, foge. Cuco, ao longe. É uma brincadeira, um espicaçar e ao mesmo tempo, uma alegre saudação. Cuco! A guerra vai acabar. Os prisioneiros já regressam. Florêncio poderá desposar Isabel. Cuco!
"É tolice, na minha idade, sentir vontade de chorar quando se ouve o cuco."
Então procurou ver, ao certo, qual seria a sua idade: setenta e quatro anos já. Não, não, impossível. E depois, que importa afinal? O que importa é a idade da alma, uma alma de vinte anos!
Cuco... a ave passa... A ave vai-se.
"Está a dar a volta ao vale para ver se nada mudou."
Ao passar junto da quinta dos Salignac, foi surpreendida por um som desacostumado de vozes e risos.
"Teria o prisioneiro regressado?"
Aproximou-se para colher a sua parte daquela felicidade:
- O André voltou! - gritou logo uma voz de
mulher. -Ah! O que ele tem para contar. Entre, senhora Honorat. Tome café connosco.
Entrou, os braços carregados de flores brancas. Viu um rapaz alto, magro, sujo, mas radiante, de mãos dadas com uma rapariga.
- A sua prometida. Fomos logo preveni-la.
Então a senhora Honorat estendeu ao moço as flores brancas:
- Ofereça-lhe o ramo de noivado.
Tudo falava de renovação, nessa manhã. De volta ao jardim, colheu novos lilases. E o cuco cantava sempre, sobre a campina de um verde pálido.
Quando chegou, foi repreendida.
- Tanto tempo lá fora! A senhora não é sensata.
...Sensata: a palavra afigurou-se-lhe ridícula.
- Então não sabe, Eugenia? Os prisioneiros começam a regressar. O André Salignac voltou.
Vi-o com a noiva.
-O que para aí vai ser de casamentos! O sr. Florêncio devia casar cá.
- Oh! Deslocar tanta gente... E depois, a menina deve preferir um grande casamento em Paris.
-Sabe-se lá... A menina não é assim tão amiga de grandes pompas. A sua defunta madrasta, essa era. E aquela irmã rica. Mas ela? É um cordeiro. Eles que venham casar a Chataigneraie. Eu faço-lhes um belo banquete, com tudo aquilo que não existe em Paris: criação, carne fresca, ovos do próprio dia, creme, boa manteiga... Até sou capaz de fazer um bolo de noiva igual ao dos pasteleiros da cidade. E ainda cá temos aquele vinho antigo que os alemães não conseguiram encontrar.
A senhora Honorat encolheu os ombros.
-Está a sonhar, Eugenia. Sim, sirva o meu café com leite. Mas primeiro vou meter os lilases na água.
O lilás do seu eterno noivado.
Também Isabel metia os lilases na água. O primeiro lilás vindo dos jardins do arrabalde. Floria com ele o retrato de Jeanine, a quem nunca faltara a oferta dum ramo desde o trágico dia. E, também ela tinha o pensamento em oração e sonho pelos ausentes. Florêncio, quando voltaria? João Lucas: iam trazê-lo para Paris. Pensava no seu casamento. Mas não ouvia o cuco. Não entra em Paris, a pequena ave selvagem.
Uma vez arrumada a casa, saiu. Sentia necessidade de ver os Morot-Léandre, de ouvir falar de Florêncio. !No caminho, encontrou Denise, cesto enfiado no braço, que implorou:
- Vem comigo às compras. Conversamos.
Isabel bem sabia que assunto a pequena iria abordar:
Notícias?-perguntaram ao mesmo tempo, o que as fez rir.
O Florêncio escreveu-me - disse Isabel. - Vai tudo bem. Está na Alemanha com os americanos. Tem comido imenso. Espera que tudo termine em breve.
- E do João Lucas? Do João Lucas?
Denise deu o braço à amiga.
O João Lucas pediu a um camarada que nos escrevesse. Vão trazê-lo para um hospital de Paris.
Não está pior?
Não, riquinha, pelo contrário. Acham-no transportável e esperam que cicatrizará breve.
Silêncio. Denise aperta-se contra Isabel:
Escuta... Ah! Cá estamos na peixaria. Tenho que ir para a bicha e prestar atenção. O paizinho é muito exigente com o peixe.
E tu pareces perceber muito disto - comenta Isabel, colocando-se na bicha, a seu lado.
Gosto disto, de cozinhar. Gosto de tudo que diz respeito à casa. É fazer felicidade. Não compreendo a Natália que diz que é muito melhor comer no hotel ou na cantina.
-Cada um tem a sua vocação, que queres? A Natália também "faz felicidade", quando trata dos seus doentes.
- Fará ela a de Roland? - murmurou a petiza. - Encontrámo-lo, não parecia de bom humor. A propósito de cozinha, sabes que a Catarina se está a sair muito bem? Que rapariga tão esperta! O Estêvão teve sorte. Sorte demais:
não posso habituar-me a ver a Catarina tão nova, tão alegre, casada com aquele velhote. Por mais que ela faça, a casa deles cheira a mofo. E o cão detesta-a. Isabel, a Catarina enganou-se...
-Não estou tão certa disso como tu. Tudo depende da ideia que se faz da felicidade.
-Ouve cá, aconselhas-me o pargo ou a dourada?
Como era engraçada e encantadora, Denise nas suas funções de dona de casa! De súbito, a garota deu uma cotovelada em Isabel.
- Olha! a Gertrudes.
Impossível fingir que se não tinham visto. Denise fez correctamente as apresentações. E Gertrudes sentiu-se na obrigação de pedir notícias do ferido.
- O meu irmão sofre menos agora - respondeu Isabel. - A cicatrização faz-se lenta, mas normalmente.
Denise espiava pelo canto do olho. Denise escutava, enquanto escolhia o peixe.
-Deve estar completamente desesperado!
-Não. Prende-se pouco a pouco à vida. Começa a compreender que poderá reencontrar a sua actividade.
Mas amputado... É horrível!
Sim, horrível. Mas nós amamo-lo ainda mais. Ele sente-o. E isso ajuda-o a curar-se.
Gertrudes notou o "nós" e pensou:
"Ela insiste no "nós" para juntar Denise a esta afeição. A miúda é tão simplória: a perspectiva da dedicação a um enfermo deve afigurar-se-lhe maravilhosa. Desejo-lhe felicidades."
E alto:
-Então, até à vista e muito prazer. Quando é que você casa? Seis anos de noivado, que paciência! Cumprimentos ao seu irmão. Bye-bye, Denise!
Denise respondeu-lhe com um seco "Até à vista", e um olhar de mulher.
Depois, voltaram Morot-Léandre. Primeiro, silêncio. Por fim Denise suspirou:
Isabel, já detestaste alguém? Responde sinceramente.
Estou a pensar.
Diante dela passaram as silhuetas dos que a haviam feito sofrer: Jeanine... João Lucas, às vezes... Odília... Cláudio Ariel... Amara-os.
- Não, nunca tive ocasião de odiar. E depois, creio que o não saberia.
-É pavoroso o que te vou confessar: eu detesto a Gertrudes.
-Não o deves.
- Fez-me muito mal. Roubou-me João Lucas.
-Querida, o João Lucas nunca a amou, certamente. Quando ela se gabava, mentia. O João Lucas ainda não amou.
- Ainda não... ainda não. Ouve, quando eu entregar o peixe à mãe, sobe ao meu quarto. Preciso de te falar.
Depois da porta fechada sobre o lindo quartinho, dantes habitado por duas rapariguinhas, a petiza deixou-se cair sobre o divã, e aí, o rosto entre as mãos:
-O paizinho nunca consentirá.
Explica-te, querida. De que se trata?
Não te faças parva. Compreendes muito bem que o pai não tinha vontade nenhuma que eu casasse com o João Lucas. Queria para genro: 1.? - um engenheiro; 2.? - um rapaz estável, calmo. E eu, agora que o teu irmão é infeliz, amo-o mais do que nunca. Mas o paizinho declarou, no seu tom seco: "Gostava de saber o que fará ele, só com um braço. O Morlainville bem pode preparar-se para conceder uma mesada ao filho". Disse-o de propósito... E leva a vida a convidar cá para casa um tipo que me destina para marido, bem vejo. O meu João Lucas, mas eu adoro-o, nunca gostarei doutra pessoa. Se o paizinho julga que eu vou ceder! Tanto como as outras. A Natália, a Catarina, a Solange acabaram por seguir o caminho que lhes agradava. Verdadeiras ovelhas endiabradas, e eu, um cordeirinho. Mas não para aceitar um marido que não me agrade. Escuta, eu quero, quero, sim, quero ver o João Lucas, logo que chegue.
Isso, minha filha, se os teus pais consentirem.
Cordeiro, também tu... Para começar, vais dizer-lhe que eu o amo. Arranja-te para lho dizeres, sem dizer. Ele compreenderá. Pobre pequeno, deve supor que agora é impossível amá-lo! Ele, que era tão bonito e tão orgulhoso da sua beleza... Que ele saiba que eu o acharei melhor do que nunca.
De que serve tudo isso, filhinha? O teu pai nunca admitirá que ligues a tua juventude à sorte precária dum amputado. Eu sou enfermeira, sei que a amputação causa uma impressão penosa. Uma repugnância instintiva.
Quando se ama, não.
Depois, o João Lucas não tem bom feitio. A sua desgraça tê-lo-á tornado ainda mais nervoso.
Não sabes. Tu desconheces as reservas de coragem que existem nele... Eu sei, porque amo. E além disso, se sofre, precisa que o consolem, que o encorajem, que o amem, em suma.
Denise, Denise, conjugas todo o verbo amar!
Éo mais belo, minha trocista. Escuta, aqui tens o que te peço: primeiro revelar-lhe a fidelidade da pequena Denise do nariz arrebitado, cabelo cor de café com leite, lágrima fácil, que ele tanto ridicularizou. Depois, reflectir para lhe encontrar uma situação com que ganhe esse horrível e indispensável dinheiro. Também se pode trabalhar só com um braço. Há negócios, empresas... Arranjemo-nos, enfim, para que, apenas curado, ele encontre uma situação capaz de satisfazer o mauzão do meu pai.
Mau? Se ele te ouvisse. Ele que te adora.
Há-de ouvir-me e de ceder. Mas é preciso que tenha diante de si uma boa causa. Isabel, tu tens andado toda a vida à procura da felicidade dos outros. Encontra a minha.
DECIDIDAMENTE, a qualidade de enfermo era-lhe ali ainda mais pesada do que na frente. João Lucas sufocava de desgosto, naquele hospital de arrabalde parisiense. Os outros rapazes readquiriam o antigo vigor, a antiga beleza. Ele? um corpo a que sempre faltaria qualquer coisa. Os outros tinham vastos projectos entusiastas: procurar fortuna e aventura além dos mares, nos países novos. E todos falavam de uma mulher: esposa, noiva, amiga.
"Eu caso-me este Verão": frase que se tornara banal, à força de repetida, no hospital.
E as noivas, as esposas, as amigas vinham visitá-los.
Evidentemente, também João Lucas recebia visitas femininas, e lindas visitas que eram notadas. Sua irmã Isabel, que tinha o cuidado, ele bem o sabia, de se vestir o melhor possível em sua honra, a elegante Fani, última moda, com a bonequinha Edite, menina de luxo: Teresa, simples, mas tão agradável; vinha também Catarina, alegre, fantasista.
Um dia, durante a sua visita, ele fora de súbito possuído duma estúpida neurastenia ao recordar que Catarina costumava brincar às ciganas e ler a sina nas mãos. Ora, ele só tinha uma, agora.
Que tens, meu velho? - perguntou Catarina vendo o rosto crispar-se-lhe.
Dói-me a mão que se foi.
Catarina, que adivinhava tudo, adivinhou o que o pobre garoto pensava. Com uma ternura que lhe não era habitual, tomou-lhe a outra mão, bela, leve como a da mãe, e, fixando-lhe as linhas bem definidas:
- Vejo aqui muita coisa interessante. O teu passado de menino mimado. E o teu heroísmo.
Vejo as tuas fraquezas, as tolices que fizeste. E as grandes qualidades que dormiam em ti. Vejo um magnífico futuro de homem, se tu quiseres, João Lucas Morlainville.
Ele tentava sorrir, em vão. Catarina sentia, oh! como ela sentia a angústia daquele coração.
- E que mais, Cigana? - perguntou trocista.
Ela ergueu para o rosto torturado os seus grandes olhos cheios de expressão.
Vejo amor, muito amor.
Pasmas-me!...
- Um amor que chorou contigo e te espera para poder dar-te tudo o que um homem pode esperar. Mas é uma avezita tímida, este amor:
nem mesmo soubeste vê-lo. Todavia, João Lucas, estender-lhe-ás a mão - sim, a tua única mão, não receio pronunciar estas palavras que te ferem, é preciso que te habitues. Esta mão é a mão direita, a mão forte. Estendê-la-ás à pequena ave: ela pousará; levá-la-ás para casa. E ela te dará a felicidade. Aqui tens o que te diz a Cigana. Não lhe perguntes nada. Mas reflecte. Não te falta tempo para reflectir, tu que corrias Paris de lés a lés. Pensa a fundo, faz-te bem e descobrirás o valor das minhas predições. Até à vista, meu Adónis querido. Sim, Adónis, estás belo como nunca, palavra de honra!
Foi-se, no seu passo desengonçado, e João Lucas notou que ela não perdera a mania de fazer dançar a saia, ao caminhar, num jeito boémio.
- Linda mulher... Pena ter casado com aquele porco espinho. Mas se gosta dele...
Devaneio... Que quereria ela dizer com a sua ave? A Cigana nunca fala ao acaso. Dessa visita, uma alegria ficara. Catarina trazia sempre como que uma música consigo. Depois, tivera a coragem de referir-se à mão... E acaba por dizer: "Estás belo como nunca".
Exactamente as palavras necessárias para arrancar ao desânimo aquela alma fechada em si mesma.
Quando Isabel veio, no dia seguinte, alegrou-se por encontrar o irmão mais calmo. Pela primeira vez, conversaram normalmente. Ele escutava de facto, respondia, interessava-se pelas notícias emitidas por Isabel e acolhidas tão fria e brutalmente, até esse dia. Foi mesmo a ponto de interrogar:
- Quando casas ?
Um sorriso formando covinhas, maravilhoso, um pouco espantado:
No dia de S. João, imagina! O paizinho escolheu esta data. Por ser o mais belo, o maior dia do ano.
Sempre poeta, o nosso pai!
-E depois, há ainda outra razão. É o dia dos seus anos. Dos da mãezinha. E dos teus.
Esquisita festa! Uma morta! Um doente! Um viúvo!
A morta, o paizinho sente cada vez mais a sua presença. Já não é o mesmo. Se soubesses como se acalma, se suaviza. Parece - como é que te hei-de explicar isto? - parece que já não vive na terra.
O paizinho! Há-de acabar monge; verás! De qualquer modo não julgues que, de futuro, o S. João continue a ser uma festa para mim. Porquê? Olha, esta monstruosidade...
Tu sabes o que pagaste com o teu braço, meu querido. Escuta: houve regozijo em toda a parte, quando foi promulgado o fim das hostilidades. Dançou-se nas ruas. Voltámos a ver o Arco do Triunfo em transparência de alabastro sobre a noite azul e as fontes luminosas brotaram em torno do obelisco. Todos os sinos repicaram. As nossas bandeiras, libertas, desenrolaram as suas pregas tricolores. Milhões de vozes entoaram a Marselhesa. Sabes em que é que eu pensava, caminhando ao lado do pai? Em ti, meu riquinho. Foste tu quem pagou esta alegria. E nunca te agradeceremos o suficiente. Não compreendes que a gente te ama mais ainda do que dantes?
- A gente, quem?
Ela riu:
Grande tolo. O paizinho, eu, a Fani, a Teresa, os miúdos. O Sílvio, o Florêncio. E as Morot-Léandre.
Oh! as Morot-Léandre... Cada uma com as suas preocupações, a sua vocação, as suas manias, o seu amor.
E para uma delas cuidados, vocação, amor - e até manias-resumem-se num nome: João Lucas Morlainville, cruz de guerra, agraciado com a Ordem Militar.
Tudo isso?! - exclamou. - A Ordem Militar também? Mas não fiz mais do que os outros.
A citação te dirá o que fizeste, se já o esqueceste. Temos orgulho em ti.
Olha, deste-me um golpe - murmurou, fechando os olhos. - Ainda não estou lá muito forte...
Como se parecia com Jeanine adormecida! Passou a mão pela testa e suspirou:
A mãezinha ficaria contente...
Ela está contente... Olhe, quem é que ali vem?
Isabel, a boca entreaberta de espanto, tomara aquele "ar idiota" tão criticado por sua madrasta. Aquela senhora, aquela rapariga... era a senhora Morot-Léandre com a Denise!
- É gentileza demais... Não se devia ter incomodado - disse o rapaz. - Obrigado, minha
senhora. Obrigado, Denise.
Denise trazia um lindo vestidinho e pó de arroz. Mas ele notou logo o seu desejo de chorar. Então, comovido ele próprio, e querendo libertar-se arreliou-a:
- Podes chorar, Denise. É aborrecido veres-me só com um braço.
Ela não pôde resistir, e duas lágrimas lhe rolaram pelas faces redondas. Não lágrimas de criança, furtivas, apressadas: lágrimas lentas, lágrimas de mulher.
Arreliou-a de novo:
- Vais fazer desaparecer o pó-de-arroz. Os meus parabéns: pela primeira vez na vida, estava bem posto.
Então um sorriso surgiu, entre as lágrimas:
Ah! Não mudaste! Sempre implicante.
E tu sempre coração sensível. O dom das lágrimas que as tuas irmãs...
De súbito interrompeu-se, sentia um nó na garganta. Em voz rouca, murmurou:
- Ah! esta Denise, esta Denise...
Seria ela a avezita tímida, a avezita pálida que deveria acolher na sua mão, na sua única mão?
"O pai dela não há-de consentir", pensou.
Em breve, a mãezinha falava de Florêncio. Assunto inesgotável, entre aqueles três que profundamente o admiravam.
Saiu capitão. O noivo vai ter três galões. O casamento é no dia 24.
O dia dos teus anos - disse Denise.
Julgas que lá vou?
O quê? Não vais? Mas eles não podem casar sem ti! A avozinha está à tua espera. Ficas com o quarto do terraço para poderes deitar-te ao sol. Porque vais convalescer para a Châtaigneraie.
Muito me contas! Alguém perguntou a minha opinião, antes de decidir tudo isso?
Ela deitou-lhe a língua de fora, como a garotinha de antigamente.
- Denise - exclamou a mãe, escandalizada.
Mas João Lucas ria, o que alegrou Isabel.
Sempre bebé... Palavra de honra que estás convencida de que eu me vou deixar mimar pela tua avó?
É a avozinha de toda a gente! A Châtaigneraie é a casa de toda a gente. E se te recusas a ir ao casamento, também eu não vou.
Eh! minha querida, e o teu vestido comprido?
Fica no armário. A Solange que faça sozinha o peditório.
A Solange? Essa futura monja?
Porque não? "Quero divertir-me pela última vez", declarou.
Nova gargalhada de João Lucas:
Ah! Estas Morot-Léandre; que moças! Sempre imprevistos!
Como era bom vê-lo rir! Mas a mãezinha achou que a visita se ia tornando longa:
- Não devemos cansar o João Lucas.
Beijou maternalmente o ferido e puxou Denise pela mão:
- Vamos, filhinha.
Mas Denise soltou-se, e, cheia de simplicidade, beijou o amigo em ambas as faces. Como o beijo era terno, fresco, puro! Todo o dia João Lucas sonhou...
Denise mereceria ser repreendida? Em casa, a senhora Morot-Léandre tentou-o:
Uma menina não beija assim um rapaz. O teu pai não teria gostado.
Apetecia-me muito - respondeu, tranquila, a pequena. - A ele também. E o paizinho... ora! é altura de começar a ser razoável.
És tu, minha querida, quem foge à razão. O João Lucas tem muitas qualidades, somos muito amigos dele. Mas pensa: é um rapaz com o futuro praticamente cortado. Que poderá ele fazer? Muitos anos passarão antes que lhe seja possível sustentar uma família. E até o seu carácter terá mudado...
Falou durante largo tempo. Denise tricotava com ar de menina ajuizada. De repente, porém, o trabalho saltou ao ar, como entre as mãos de Catarina ou Solange.
- Raciocinas como gente velha, mãezinha! Se for preciso esperar, esperarei. Se formos pobres, seremos pobres. Julgas que eu tenho algum interesse em ter muita coisa? Se ele estiver triste, de mau humor, mais uma razão para o consolar.
Se o paizinho recusar o consentimento... Mas não recusa.
- E se o João Lucas te não amar?
Ela suspirou:
- É isso que me aflige, mãezinha. Creio que há-de vir a gostar de mim. Agora, que é infeliz, precisa duma mulher como eu. Uma Gertrudes seria incapaz de o compreender, de o encorajar, de o ajudar, de o fazer esquecer a sua enfermidade. De levá-lo a ser tão hábil com um só braço como os outros com os dois. Mãezinha, sinto-me encarregada dele, é esquisito, não achas?, da sua felicidade, da sua evolução moral... Não faças troça de mim. Já não sou nenhuma miúda. Como diz a Isabel, o sofrimento cava, cá dentro. E a gente torna-se profunda...
Um silêncio. Denise apanhou o tricot e, um pouco confusa, desembaraçou a lã.
Aí estou eu com acessos de mau génio, como os grandes. Mãezinha, escuta. Gosto de João Lucas. Gosto desde o primeiro dia em que o vi. Tem uma data de defeitos e é doente. Tanto se me faz. Nunca amarei outro. Se ele não quiser casar comigo, fico para tia. Mas - acrescentou a rir - não reveles isto ao paizinho: no fundo, ficaria radiante de me ver solteirona, sempre ao pé dele, percebes...
O teu pai... O teu pai... - murmurou a mãezinha.
Ah! bem sei: um teimoso de marca. Mas eu encarrego-me dele. Se alguém me ajudasse... Mas toda a gente esmaga o João Lucas com a sua piedade, em lugar de o encorajar e de o ajudar a fazer a sua vida. É estúpido, mãezinha!
Enquanto assim discutiam, João Lucas, cigarro entre os lábios, pensava. E era simultaneamente suave e áspero. Suave: a recordação de Denise, a sua afeição, as suas lágrimas, o seu sorriso, os seus dois beijos. Recordava outros beijos. Em tudo diferentes dos de Denise.
Iria à Châtaigneraie, levando a sua desgraça para o meio da alegria geral? Todavia, ela dissera tão gentilmente: "Se não fores, também não vou".
Um felizardo, o Florêncio, em casar com Isabel. Certamente, esperara. Mas a vida anunciava- se-lhe esplêndida: a mulher amada, a profissão ambicionada.
"Eu, que poderei eu fazer? Sou licenciado, aceitar-me-ão no Ministério. Num Ministério... como o paizinho. Mas esse fazia mais qualquer coisa; era Romain Villanel. Eu, não passarei nunca dum horrível burocrata, não pensando senão no aumento, na reforma. E uma mulher "bem" nunca me quererá: enfermo e medíocre. Fico com o pai. Viveremos como celibatários... Dantes, queria ser actor. Maneta! Não vale a pena tentar nada, meu velho. Serás toda a vida funcionário público".
Sentiu uma dor no braço. Teve um riso seco:
"Vai mudar o tempo! A Marieta era advertida de todas as mudanças de tempo pelas suas "guinadas", como dizia. Estou um velho. Ah! devia estar morto".
No entanto, havia as lágrimas de Denise. E os seus beijos...
QUE alegria, ouvi-lo por toda a casa! ? "A casa acordou", pensava Denise radiante. "Meu Florêncio, poderíamos ter-te perdido", pensava a mãe, "ou ver-te regressar... como João Lucas".
E o pai não se cansava de ouvir as histórias de Florêncio, que possuía o dom de comunicar vida a tudo o que contava. Histórias divertidas, no exército. Florêncio combatera duramente, sofrera muito. Em seu coração permaneceria para sempre, como aguda lâmina, a saudade dos companheiros perdidos. Mas a alegria do regresso suavizava essa ferida. A casa, os pais, Denise, o seu quarto, Isabel!
Isabel... Oh! reencontrar Isabel. Em família, expandia-se alegre, ruidosamente. Junto de Liseron, tornava-se outro Florêncio, sonhador, romanesco, um tanto louco. Não se cansava de contemplar o pequeno rosto daquela que fora o amor da sua adolescência. Aquela que, em breve, seria sua mulher. Sua mulher. Tratava-a por tu, por você, embaraçava-se, ele sabia lá... Sabia apenas que aquela, e nenhuma outra, poderia ser a sua companheira, a sua razão de felicidade, de paz, de fé, de esperança. Para se tornar aquilo que queria ser, que deveria ser, precisava da influência de Liseron.
Hem! mãezinha - disse -, fiz boa escolha, confessa.
Fizeste, sim, a Isabel é absolutamente a mulher que convém ao grande maluco do meu filho. Prometes-me fazê-la feliz?
O quê, mãezinha, vais dizer como a Marieta, antes de morrer: "Confio-lha, senhor Florêncio. Nunca a faça chorar"? Mas eu queria perguntar-te porque é que a Denise tem tão má cara. Doente? Ou são maleitas de amor?
Não adivinhas? Bem sabes que ela sempre gostou do João Lucas. Coisa que nunca agradou ao teu pai. Agora então!...
Agora, porquê? Um rapaz que julgávamos leviano e se revelou um herói. Conquistou o seu valor.
E também a sua enfermidade, Florêncio.
Julgas que uma rapariga como a Denise recuará perante a sua doença? Pelo contrário. Amá-lo-á cem vezes mais e a sua felicidade será consagrar-se a ele.
Sim, mas a situação... Compreende que o teu pai, interessado em assegurar a Denise um futuro tranquilo, não tenha o mínimo desejo de a ver casada com um rapaz sem grandes possibilidades.
Florêncio pôs-se a assobiar, acendeu um cigarro, deu a volta ao botão do rádio, gritou: "Que horror!", procurou outra emissão que não lhe agradou mais, deitou fora o cigarro, abraçou a mãe, a ponto de a sufocar, dizendo:
-Como são atadinhas, as pessoas respeitáveis ! Felizmente, estamos cá nós.
Partiu, fazendo bater todas as portas e estremecer os quadros - mas os retratos da família regozijavam-se, talvez, que o ímpeto dessa juventude os despertasse - subiu a escada a quatro e quatro, gritou: "Denise!" e entrou em turbilhão no quarto da irmã.
- Que estás tu a fazer, minha franganita?
Um chapéu novo? Porque queres tu fazer-te bonita? Aposto que tens um apaixonado. Vamos, não cores. Eu sei tudo. Eu sou o teu irmão mais velho. Fala, conta, chora, bem entendido. E depois a gente verá.
Mas, para sua grande surpresa, Denise conservou os olhos enxutos. Colocou o amoroso chapelinho sobre o quebra-luz. E, cruzando os braços, num gesto de Natália, disse, com o modo de Solange e o olhar de Catarina:
Já que sabes tudo, ajuda-me. Gosto do João Lucas. Acho vergonhoso esmagá-lo com uma piedade insolente, como se ele fosse um inválido, quando é novo e bonito. E herói. Amo-o. O paizinho não quer admitir isto... Flô, toma conta, estás a embaraçar-me as linhas.
Ama-te, esse João Lucas novo e bonito ?
Não tenho bem, bem a certeza. Fartou-se de namorar. Era tão jeitoso! Mas, para certas raparigas, desde que foi ferido, deixou de contar. Uma tal Gertrudes, por exemplo.
-Bem sei. Nariz e boca grandes, olhos pequenos, queixo voluntarioso. Chique. Nada parva. Namoradeira cem por cento. E interesseira. Andava então atrás do João Lucas?
Fazia-se passar por sua noiva, só isto! Oh! Aquela rapariga! Encontrava-a em todas as bichas, no leite, no pão, em todo o lado. E tinha um modo de exibir a sua amizade por João Lucas! Apetecia-me esbofeteá-la. Mas tu estás a rir, insuportável criatura!
Deixa-me rir. É tão engraçado, a Denise grande amorosa! Continua a história. Acabaste por esbofeteá-la?
-Oh! imagina... Quando eu lhe disse o que aconteceu ao João Lucas, sabes como reagiu? Fez-se cor de batata e disse: "Que horror! Um homem acabado". E voltou para a bicha, com ar insolente.
- Ela é que é um bom horrorzinho! - exclamou Florêncio. - De qualquer modo, viste-te livre dela.
-Sim, mas isso não é razão para que ele me ame. Não sou bonita, nem muito inteligente. Uma mulher vulgaríssima.
Ele fixou-a:
Ouve, franga, queres a minha opinião, a opinião dum rapaz? És adorável, não duvides. Não penses que seja preciso um perfil grego, montes de diplomas e desembaraço para agradar aos homens. A Isabel...
Oh! a Isabel é muito diferente de mim, Flô. Isabel. Bonita, artista, poetisa, fina, boa. Tudo a seu favor.
Isso é verdade - disse ele, sonhador e muito feliz com o elogio -, mas tu não és nada mal. E, palavra de honra, para quem vem de longe como o João Lucas, a Denise representa precisamente a felicidade ambicionada. Escuta, vamos estudar o caso: Há dois pontos que te inquietam: 1.? Ama-me?; 2.? O pai consentirá?
Como és inteligente! Mas, se fazes favor, larga os meus alfinetes.
Ora urge esclarecer estes dois pontos. 1.? Faze-te amar.
Julgas que é fácil? Nem sequer me deixam ir vê-lo sem a mãezinha.
A mãezinha não é nada de terrível. Ela deixa-te beijá-lo ?
Denise corou:
- Eu beijei-o. E a mãe ralhou-me...
Vais continuar a beijá-lo. A mãe vai continuar a ralhar-te, e é tudo. Quanto ao problema nº 2, seria necessário, para obrigar o pai a ceder, que o João Lucas se lhe apresentasse como o marido de confiança, ambicionado por todos os pais. De momento, confessa, ele não tem grande coisa a oferecer-te. Vou pensar. E, tranquiliza-te, eu cá estou e sou um tipo feliz. Quero que tu também o sejas. Mas, diz-me, o que é que fazes se o João Lucas não gostar de ti? Foges para o convento, como a Solange?
Fico solteira. Já avisei a mãezinha, mas proibi-a de dizer ao pai. Ficava radiante de me ter, para sempre, em casa e ainda mais se oporia ao meu amor por João Lucas.
Parece Molière: o pobre pai ciumento, a menina que se vota ao celibato... Mas estás a fazer o senhor muito negro. A gente o fará ceder. O pior, na minha opinião, seria se o João Lucas - para seguirmos ainda o estilo do grande século -não correspondesse à tua chama... Meu Deus, Denise, como estás hoje parecida com as tuas irmãs! E nem sequer choras!
A cabecita delicada inclinou-se:
- Não. Mas creio que seria capaz de chorar de alegria...
Então ele beijou-a, fez saltar o chapéu com um soco enquanto ela gritava: "Estragas tudo!", saiu, atirando com a porta e precipitou-se no quarto da mãe:
- Mãezinha, vou a casa da Isabel - e desapareceu.
Isabel esperava-o. Esperava-o sempre. Tinha necessidade dele para viver, como ele tinha necessidade dela. Eram um só. Ele contou-lhe as conversas que tivera com a mãe e Denise.
- É espantoso, não chorou. Tinha o mesmo olhar ardente de Catarina. Ela, a pequenina Denise. Como deve amá-lo! Não quero que atravesse estas crises de esperança e desespero. Cansam e a miúda não aguenta. O que é que a gente pode fazer por ele? Procura. Encontra. Se a Denise for infeliz, não conseguirás ser realmente feliz. Conheço-te.
Um lindo sorriso melancólico:
- Dantes, ambicionava dar felicidade a toda a gente. E vi sofrer tanto... Escuta, Florêncio, eu vou ser feliz contigo, mas não do mesmo modo que há seis anos, no tempo da pequenina Liseron, em toda a sua frescura. Não te aborreces?
Ele beijou ternamente a noiva:
- A Liseron há-de florir outra vez, minha
querida. Como "o amanhecer dum lindo dia". Oh! o perfume escolhido por Rosa... Encontro-o sempre em ti.
Ela queria falar-lhe precisamente de Rosa, mas ele voltou a Denise:
Tens alguma ideia? Encontra-las sempre, no teu coração...
Deixa-me reflectir... Oh! encontrei, Florêncio. O Paulo, o velho Paulo! Pedimos-lhe que arranje uma situação ao João Lucas. Tem imensos negócios e é bom, debaixo daquela aparência seca.
Estupendo! Liseron querida, anda dançar!
Tomou-a nos braços e cantou enquanto dançavam. Era delicioso. Dançar. Dançarem juntos, assim, por prazer, em jovens que se amam e trão, no mesmo ritmo, ao longo da vida. Dançar. Como era suave e leve, aquele corpo de rapariga! Isabel erguia a cabeça para lhe sorrir. Ele bebia aquele sorriso.
Finalmente, pararam:
-Somos malucos - murmurou. - E estou toda despenteada.
- Vaidosa! Vou-te despentear mais ainda.
Prendeu-lhe a cabeça com ambas as mãos e cobriu de beijos as madeixas escuras.
Basta, Florêncio! Basta de criancices. Pensemos na felicidade dos miúdos. Vou a casa da Fani.
Também vou. Brinco com os garotos enquanto tu fazes diplomacia. Sei muito bem brincar com crianças.
Você é uma criança. Atenção! Em casa da Fani, tratamo-nos por você. É mais chique.
A tua irmã, minha querida, que toleirona!
Snob, principalmente. Aborrece-me pela Edite de quem ela quer fazer uma boneca. Vamos! Tens senhas de metropolitano?
Fani não estava. Mas os petizes receberam-nos. Que alegria, ver Edite à vontade! Isabel encarregou Florêncio de fazer andar o comboio eléctrico de Guy, que a mãe cumulava de brinquedos, e pediu a Edite que lhe mostrasse as suas bonecas.
Havia-as magníficas. E providas de todo o enxoval, de toda a mobília com que pode sonhar uma miúda. Ela interessou-se por cada uma, interessou-se de facto, deu-lhe conselhos sobre a maneira de vestir as filhas. Edite, num rasgo de confiança, passou os braços em torno do pescoço de Isabel:
- Madrinha, vou mostrar-te aquela de quem mais gosto.
E tirou do armário uma boneca de cabelos desfrizados, cara desbotada, vestida com um vestido nada bonito.
Oh! Conheço-a - exclamou Isabel. - A boneca que te deu a Marieta quando eras pequenina. Como é que ainda a tens?
Schiu! A mãezinha ia deitá-la fora. A nurse disse-me assim: "Um horror. Não percebo como uma menina de sociedade se diverte com uma boneca tão vulgar". Mas eu pedi-lhe que não ma tirasse. E à nurse não lhe interessa aquilo de que eu gosto ou não. Sabes como se chama a minha boneca? Adivinha, madrinha... É um segredo.
A criança embalava nos braços o humilde brinquedo e erguia para Isabel um olhar malicioso e terno.
- Desisto - disse Isabel, temendo despertar naquele coraçãozito qualquer sentimentalismo inútil.
Então, doce, gravemente:
-Chama-se Marieta.
Ó felicidade! A querida velhinha deixara tal recordação? Não era Isabel a única a amá-la nesse passado onde, uns após outros, se refugiam os entes mais queridos? Com a mesma gravidade, a mesma doçura, interrogou:
Então lembras-te da Marieta, minha querida?
Um bocadinho. Muito pouco. Estava-se bem, ao colo dela. Tinha óculos e uma blusa toda abotoada. Cantava assim: "No jardim de meu pai, há um passarinho". Nunca falo nisto à mãe. Dizia logo: "É tola!" Oh! Aí vem a mãezinha.
Marieta desapareceu logo no armário. E tomou-se chá. Um chá copioso, elegante. Abordou-se a questão "moda". Florêncio voltou para junto de Guy, a quem a presença do oficial tornava manso como um cordeiro. Edite foi estudar piano. E Isabel falou de João Lucas.
Fani gostava do rapazinho, mas a ideia de qualquer mutilação enchia-a de horror, desde que presenciara o drama em que perdera a mãe. Raramente ia ao hospital e ignorava os altos e baixos da resignação de João Lucas.
Pobre pequeno, o seu futuro é muito duvidoso.
Por que razão, Fani?
Quem casará com ele?
Oh! conheço uma... A Denise ama-o. Sonha devotar-se-lhe inteiramente.
Que coragem deve ser precisa para casar com um amputado! Enfim, os Morot-Léandre são todos tão originais! Admitamos que o ame. Mas que pode ele fazer? O senhor Morot-Léandre não entregará a filha a um insignificante.
Por que razão um insignificante? É inteligente, expedito, nada preguiçoso. Tem o dom de agradar. Pois eu tinha pensado que o Paulo teria possibilidades de lhe arranjar uma situação. Bem podia fazer isso pela família...
O Paulo, o Paulo...-murmurou Fani.- Nem sempre está bem disposto. Está velho, sabes... Ah! Bem fazes tu em casar com um rapaz novo. Se a Catarina me tivesse pedido conselho...
Deixemos a Catarina ser feliz a seu modo. E ocupemo-nos do nosso irmão. Fani... creio que a mãezinha nos pede que velemos por ele.
Desde aquela trágica primavera que Estefânia não podia ouvir pronunciar o nome da mãe sem que despertasse dentro de si, apesar da sua habitual aspereza, uma torrente de emoção.
Seja - disse, depois dum silêncio -, falaremos ao Paulo. Mas ambas. Espera que ele chegue. Tu, os teus olhos, a tua voz têm uma eloquência a que se não pode resistir.
Mas tu és a sua mulher, e ele ama-te, Fani.
Ela suspirou:
- Evidentemente. E é muito bom.
Não disse: "Eu amo-o".
MANHÃ de domingo, naquelas horas leves em que, por sobre os telhados, os sinos falam do Senhor. Antes do vazio ócio e dos prazeres pesados da tarde, a alma sente-se límpida, infantil, inclinada à felicidade e ao bem. Isabel tinha a sua alma de manhã dominical. Era plenamente Liseron.
- Paizinho, não te esqueças que almoçamos hoje em casa das Morot-Léandre. Não te ponhas a trabalhar! - gritou.
Ele abriu a porta do escritório:
Pediste que servissem o almoço cedo para que eu chegue ao hospital logo no começo da visita?
Está sossegado, a Denise toma conta! - respondeu a rir.
João admirou-se:
A Denise, a Denise... Explica-te, Isabel. Por que razão aproximas tantas vezes o nome da pequenina Denise e do teu pobre irmão?
Porque a pequenina Denise amou toda a vida o meu irmão. Amava-o feliz, ama-o agora ainda mais. Decidiu casar com ele. Ora as Morot-Léandre são umas obstinadas, sim, ela é igual às irmãs. Aqui tens... existiam dois pontos duvidosos: Amá-la-ia João Lucas? Que futuro esperava o nosso pequeno? Pois bem! confessei o João Lucas. Ele disse-me assim: "É tão fresco, tão repousante, uma Denise. Fui um idiota em arreliá-la tanto, em namorar meninas fúteis. Passa-se ao lado da felicidade... Agora é demasiado tarde. Não sou homem casável". Deixei-o falar. Enquanto não tivermos tudo arranjado... Porque, se tu não fosses um senhor na lua, terias perguntado por que razão ia eu tantas vezes a casa da Fani. Conspirávamos, ela, o Florêncio e eu para decidir o Paulo a dar uma situação ao cunhado. Ele decidiu-se. Vem cá falar-te uma noite destas. E então, paizinho, o João Lucas passará a representar "um bom partido" (é horrível o termo, não achas?) e o sr. Morot-Léandre já não poderá dizer à Denise "não casas com esse rapaz".
Fizeste isso, minha querida?...
Fizemos isto, paizinho.
Eu, que antevia para o meu filho a vida insípida, monótona, de funcionário... aquela que eu tive.
Mas, ao mesmo tempo, era Romain Villanel. Ele, o nosso miúdo, o filho mais querido da mãezinha, será - assim o Paulo o prometeu - um chefe com iniciativas a tomar, ordens a dar. Não imediatamente, é claro: tem primeiro que iniciar-se nos negócios. Mas tem diante um belo futuro. E junto de si, a deliciosa Denise.
Numa voz baixa de emoção, ele murmurou, estendendo-lhe os braços:
- A tua mãe ficaria contente. Obrigado.
Ela aninhou-se contra ele, pensando:
"Em breve me irei embora, deixá-los-ei".
Também ele pensava nessa separação. Mas de modo diferente desde que soubera que diante desse filho ferido, desamparado, se abriam as estradas vastas duma vida inteligente e feliz. As últimas barreiras tombavam. João Morlainville teria agora o direito de hesitar diante de um novo caminho? Voltou para o seu gabinete e, o rosto entre as mãos, pôs-se à escuta, no profundo silêncio que o dominava mais e mais. Era tão grave o que pedia a voz...
Entretanto Isabel recebia uma visita: Rosa Martin, tão radiante, que ela se admirou.
Que bonita está! Uma autêntica rosa.
Mas não venho nada bem vestida. Tenho muita coisa para lhe contar, Isabel. É a última vez que nos vimos antes do seu casamento. Sempre se casa na Châtaigneraie ? Mesmo que fosse cá, eu não poderia assistir. Parto amanhã, Isabel.
Para onde? Descansar, para Petites-Dalles?
Um lindo sorriso de felicidade.
Nada disso. Vou para o noviciado. Espero ser admitida entre as Irmãs das prisões. Sim! Desde que lá estive que trago em mim o peso da desgraça dos detidos. É a esses seres infelizes, culpados, expulsos da sociedade, que quero consagrar a minha vida. Isabel, garanto-lhe, os prisioneiros chamam-me. Finalmente, finalmente a miúda que pescava camarão, caixeira de bazar, vendedeira de perfumes e pinturas, encontrou o seu lugar. Se soubesse como me sinto feliz!
Mas isso vai ser terrível. Você, tão pura, mergulhar nessa lama!
Que importa? O desígnio da Providência foi tão claro: nenhum futuro, no meu ofício, precisamente por causa da pureza. A influência diminuindo à medida que me ia tornando velha, como elas dizem. Esta estadia na prisão que me revelou sofrimentos, tentações, vergonhas que eu totalmente ignorava. Como tudo é simples, luminoso! Só me resta partir, sem nada deixar atrás. Nada nem ninguém.
E eu, Rosa?
Você, minha querida? Você não precisa da pobre Rosa Martin.
A gente precisa sempre das amigas.
A sua amiga rezará por si. A si devo tudo, sabe? Sim... desde o primeiro momento em que a vi, em Petites-Dalles . Nunca hei-de esquecer aquela linda garotinha que veio comprar sandálias ao bazar e honrou com o seu sorriso a pobre caixeira, obrigada pelo patrão a pintar-se e vestir-se de modo inconveniente. Isabel Morlainville falou-me com tanta gentileza! Acreditou em mim, deu-me o gosto da pureza. Eu admirava-a, vinha dum meio provinciano, duro. Foi você quem me revelou a piedade, a bondade, a generosidade. O seu amor pela garota pobre e inculta que eu era, fez brotar em mim não sei que chama. Devo-lhe realmente tudo.
Isabel escutava, profundamente comovida. Entre ambas, todo o passado despertava embalado pelo murmúrio do mar contra os recifes normandos. E o futuro, o seu futuro de mulher definia-se. Murmurou:
- Rosa, vou dizer-lhe uma tolice. Ter vivido
entre perfumes... e ir para nauseabundas prisões. Acha que conseguirá?
Rosa teve um sorriso maravilhoso.
- Isabel, recorde o Evangelho de Maria Madalena: quebra aos pés do Senhor o vaso cheio de perfume. Faço o mesmo. É tudo o que tenho: ofereço-o.
Um belo silêncio caiu. As suas almas, destinadas a caminhos tão diferentes, reuniam-se uma última vez, na hora da partida. Dar tudo: era assim que ambas encaravam o futuro.
Tenho ainda outras novidades - acabou por dizer Rosa. - A congregação em que vou entrar tem, é claro, facilidade em visitar as prisões. Tive ocasião de conversar com um detido que você conhece, Isabel. Um actor... Cláudio Ariel... Encarregou-me duma mensagem para si.
Já foi julgado?
Ainda não. Com certeza o condenam à prisão perpétua.
Ele... um rapaz de nervos, de fibra! Mais lhe valia morrer, Rosa.
Passam-se grandes coisas nas prisões. Para aquela alma, em particular, parece-me. Aqui tem a sua mensagem: "Peça à Isabel Morlainville que reze por mim. Diga-lhe que a amei muitíssimo. Se, um dia, eu puder encontrar a paz e a fé, será graças a ela". Ainda acrescentou uma coisa que eu não compreendi: "Ela será Beatrice conduzindo Dante ao Céu". No metropolitano, com a ajuda da Irmã que me acompanhava, transcrevi estas palavras no meu bloco: tinha tanto medo de me esquecer! A Irmã disse-me que Dante era um grande poeta e Beatriz a mulher que ele amou. Oh! fi-la chorar, Isabel!
Pobre Cláudio! Precisamos de rezar tanto... Rosa, acho que o paizinho gostaria de a ouvir falar dele.
Não acrescentou: "e de a ver pela última vez". Mas tinha a certeza disso: João admirava tanto a simples e linda Rosa Martin!
Ele ouviu, comovido, o que ela contou do seu ex-intérprete. Rosa ia retirar-se discretamente, quando Isabel a reteve:
Não se despede do paizinho?
Para onde vai, Rosa? - perguntou João.
Ela respondeu, com a simplicidade habitual:
Para o convento, sr. Morlainville. Ser Irmãzinha das prisões.
Você? - murmurou ele.
Eu - respondeu ela, abrindo as mãos, num gesto de oferenda. - Foi-me pedido. Não posso recusá-lo.
Rosa, minha Rosinha... Escute. Quero dizer-lhe uma coisa. Ouve também, Isabel. Ouve, uma linda história.
Falou lentamente, as pálpebras semicerradas:
- Um dia, a Isabel entrou em casa emocionada, contando que a sua amiga Rosa, habituada a uma profissão de luxo, deixara tudo para se manter fiel ao seu ideal de pureza, e se fizera mulher a dias. As suas mãos esguias lavavam a louça e a roupa... Fazia os trabalhos mais duros, os que são recusados pela dona da casa. Nesse momento, ia eu pôr em cena uma peça moralmente perigosa. Era ansiosamente esperado, o sucesso estava garantido, trar-me-ia a celebridade e a fortuna. Quando soube do sacrifício da Rosinha, rasguei "Patrícia". Suspeitava a força do seu exemplo ?
Ela ouvia, estupefacta. Ela, uma ignorante, uma rapariga do povo? Ele, aquele senhor célebre?
Ele pôs-se de pé:
- Rosa, muitas crises se sucedem na vida de um homem. A morte de minha mulher transtornou tudo. Mas a dor atroz que me estrangulava, não deveria manter-se estéril. Uma vida nova me era indicada. E eu não a queria. Mil pretextos para reter-me: a guerra, a inquietação quanto ao noivo de Isabel, a desgraça de João Lucas.
Mas, uma após outra, as barreiras caíram. A guerra acabou, o Florêncio voltou, a Isabel vai casar-se. João Lucas - soube-o esta manhã - vai casar, também, e trabalhar. Restava apenas... o meu egoísmo. Deixe-me que lhe leia estas linhas em que eu há pouco meditava. Ou lê antes tu, Isabel. O que está sublinhado a lápis.
Estendeu-lhe o livro de Saint-Exupéry. Ela leu:
"Nada fez para que te evadisses, velho burocrata. Construíste a tua paz à força de cegar com cimento, como o pedreiro, toda a frincha sobre a luz. Nada te agarrou pelos ombros quando ainda era tempo."
A voz de Isabel quebrou. Pressentia tanta grandeza! E Rosa, essa murmurava - como o teria feito a camponesa normanda, com o tom, o acento e tudo... a infância volta nas horas de intensa emoção:
- Oh! Sr. Morlainville, sr. Morlainville...
Então ele acrescentou:
- Quando o João Lucas já não precisar do pai e eu o tenha confiado à pequenina Denise, também eu, Rosa, partirei.
Isabel olhava-o, as mãos juntas. Mas ele fixava apenas Rosa. Concluiu:
- Um mosteiro beneditino consentirá, espero-o, em acolher o velho burocrata que, por duas vezes, Rosa, as suas mãos de criança agarraram pelos ombros.
FALAVA-SE de vestidos, em casa dos Morot-Léandre. É sempre apaixonante. Sobretudo quando se trata dum casamento. E já pouco faltava para o grande acontecimento: as bodas de Florêncio Morot-Léandre e Isabel Morlainville, na velha igreja provinciana próxima da Châtaigneraie.
- Um vestido de noiva com uma cauda tão comprida, não é nada próprio para o campo - declarou Solange, repelindo os figurinos. – A costureira arranjará meio de pôr isso curto.
Mas uma voz furiosa estalou: a de Florêncio.
- Que tens tu com isso ? Proíbo, eu proíbo que alguém tire um centímetro que seja à cauda do vestido. Estas raparigas! Estas raparigas! O que é próprio, o que não é próprio, quero lá saber disso! Trata-se então dum casamento de campónios? Quer nos casemos numa paróquia de Paris, quer nos casemos no campo, o que é preciso é que a noiva vá linda. Quando estava no campo de concentração, bastante sonhei com o vestido de noiva da Isabel. Tu, Solange, és uma mulher sem gosto.
Solange, vexada, ripostou:
Os homens não percebem nada disto. Então tu, que és um selvagem.
Schiu! schiu! - fez Isabel, a quem as brigas sempre desconcertavam.
Mas Solange, empoleirada numa mesa, insistia. Ela adorava discussões.
E os nossos vestidos de damas de honor, também são até os pés? É uma tolice. Olhem, se é assim, eu vou de uniforme.
Solange, Solange, eu quero um vestido comprido - gemeu Denise. - Cresci durante a guerra, quando ninguém dançava, nem existiam tecidos. Nunca tive um fato comprido. Gosto tanto do que me fizeram em Dezembro! Não quero que mo cortem...
O belo riso musical de Catarina:
Que complicações! Eu casei-me vestida de gente. Foi bem mais agradável. Trazer uma grande rabana atrás, que penitência!
No entanto, devias ter ficado estupenda, vestida de noiva - notou Denise. - Ficam-te tão bem as saias rodadas...
Dum salto, Catarina estava no meio da casa e a saia voava, dançava. Os outros aplaudiram. E ela, com muita dignidade, estendeu a mão para fazer a colecta.
- A propósito de colecta, não teremos parceiros, espero em Deus? - perguntou Solange.
- Por mim, não me interessa nada. Um grande asno a pisar-me os calcanhares. Mas Denise, a sentimental, deve querer um cavaleiro. É mais romântico...
- Não quero nada.
E corou muito.
As irmãs bem sabiam porquê: João Lucas ou ninguém. Ora João Lucas recusara-se.
Merendou-se. Não havia nada que comer - era, pelo menos, o que imaginavam. Mas, mesmo assim, Denise conseguiu servir boas coisas. Felicitaram-na. Exclamaram uma vez mais: "Feliz o homem..."
Eu - disse a Cigana - queimo sempre os bolos.
O teu marido resmunga quando lhe apresentas um bolo queimado?
Evidentemente. Ainda é rabugento. Mas eu ando a domá-lo. Também domo o Presto. E já começa a consentir que eu lhe dê as boas-noites. É tão engraçado, domar um cão!
E um marido? - perguntou a insolente Solange.
Mais ainda. Eis um prazer que não conhecerás, minha querida, e uma arte que não poderás ensinar às tuas negrinhas. Sem experiência alguma da vida, pretende "isto" dirigir os outros !
Idiota! A gente adquire experiência vendo viver. O pai e a mãe: estilo Philémon e Bancis. Tu, Catarina, com o teu ouriço...
-Olha lá, se fosses delicada?
Em família, é inútil... Continuando: a Natália e o seu Esculápio; a Teresa e o seu boneco articulado, a Fani e o seu velho Paulo; instrutivo, tudo isto. Vês tu, há velhos a quem a vida nada ensinou e novos que engoliram, dum trago, toda a sabedoria...
A menina Solange Morot-Léandre, por exemplo.
Sim - afirmou Solange, o rosto subitamente envelhecido. - Vi e ouvi muita coisa! Parece-me ter vivido cem anos... Bebé Denise, por que razão me olha com ar tão pensativo?
Porque... por nada - balbuciou Denise.
Tu, minha filha - continuou Solange, sacudindo a cinza do cigarro -, pertences à classe de mulheres que adoram o seu dono e senhor, ainda que este as espanque. A miúda picou-se:
- Estão sempre a troçar de mim. Mas olhem que vocês também as fizeram boas!
As mais velhas desataram a rir.
- Olha, olha o cordeiro a mostrar os dentes.
Mudaste muito, Denise. Explica-nos as razões desta transformação.
Transbordavam de malícia. Então Isabel veio em socorro da petiza:
Deixem-na. Tem muita razão em defendèr-se. Vocês são umas pestes e ela um amor. Falemos doutra coisa. Catarina, achas que o teu marido consentirá em tocar, durante a missa do nosso casamento?
Peço-te, minha querida, que o trates pelo seu nome. Vocês obstinam-se em dizer: "o teu marido, o teu marido". Tem um nome de baptismo, como toda a gente. Renova correctamente o pedido. Anda!
Ela obedeceu:
O Estêvão consentirá em tocar?
Espero que sim. Por mais que vocês lhe chamem "o ouriço" - oh, não mintam, que eu bem sei - ele é bom, gentil.
Oh! minha querida, gentil...-imitou Florêncio, em voz aflautada e com a mão sobre o coração. - Ouve, Catarina, suprime o adjectivo gentil, é como se lhe pusesses na cabeça um chapéu cor-de-rosa...
Mantenho "gentil" - replicou Catarina, batendo o pé. - Vocês não o conhecem. Vocês intimidam-no. Sim, riam, se quiserem, eu repito: é tímido. E vê-vos a todos, à sua volta, dispostos a caírem-lhe em cima, como lobos...
Então a gentil criança apavora-se? Pobre Estevinho!
Mas vocês estão malucos? Que ideia de se irritarem uns aos outros deste modo!
Um dos mais vivos prazeres da vida familiar. Gozemos os últimos momentos. Em breve todas nos separaremos. Ficará somente o pai e a mãezinha, com o seu desespero.
O desespero é a Denise?
A Denise? Voará também, quando o pai disser o sim fatídico.
É difícil, levar o paizinho a ceder! - declarou Florêncio. - Bastante me custou!
Sim, mas a Denise... o tesouro... o amor...
Por isso mesmo: entregá-la a um patifório, que desgosto!
Um patifório, um patifório - entoou a Cigana.
E todos pegaram em coro, batendo o compasso com as mãos e os pés.
Um patifório, um patifório...
Vou-me embora - anunciou Denise com dignidade.
Mas o irmão agarrou-a:
- Fica, migalhinha. Já não te aborrecemos
mais. Juramos-te. De resto, vem aí uma visita.
Vê lá quem é.
Ela correu à janela.
-Catarina, é o teu marido.
Não conheço. Ela hesitou:
É o Estêvão.
Perfeitamente, conheço. Diz ao Estêvão que venha aqui ter connosco.
Pobre pequeno, vai ficar tão intimidado! - lacrimejou Solange.
-Tu, será uma sorte se te conservarem no convento...
Atirou-lhe um novelo de lã à cabeça. Solange devolveu-lho, com igual violência. E foi no meio do bombardeamento que entrou Estêvão Magloire. Naturalmente, todos os olhos cintilavam de malícia, e a sua sensibilidade de artista, em extremo vulnerável, fremia. Mas a Cigana sabia segredos para restabelecer situações críticas.
- Um cigarro ? São do pai, pode-se roubar.
Imagina, estávamos a falar da missa do casamento dos pequenos.
"Oh! estes ares de matrona", pensou Florêncio.
- E a nossa Isabel quer fazer-te um pedido.
Passo-lhe a palavra.
Isabel também estava intimidada. Mas a sua graça dissimulou o embaraço. Fixou o músico.
- Estêvão... - disse.
E logo ele ficou contente. Ao menos aquela tratava-o -como irmão.
- Estêvão, eu tenho um desejo que hesito
em revelar-lhe... Seria para nós uma tal honra
e uma tal alegria se você consentisse em tocar
durante a missa do nosso casamento...
Por sua vez, ele fixou-a. Que rapariga harmoniosa! Como resistir àquele trémulo sorriso?
- A honra e a alegria são minhas - respondeu.
No seu canto, Solange cochichou:
Que bem que falam, minha querida! Estêvão prosseguiu:
Que queres ouvir?
- Uma coisa que faça chorar! - exclamou
Denise.
Então todos riram. E Catarina propôs vários trechos.
- Estêvão - disse ela -, se te pusesses ao
piano? Tocarias isto e depois aquilo. E a Isabel
escolheria.
A maldosa Cigana esperava devolver assim ao seu plano superior o homem que a impertinência dos novos ridicularizara. Ele hesitava. Mas Isabel teve, para lhe suplicar, aquele olhar... oh! aquele olhar azul que sempre tinham presente Cláudio Ariel, na prisão, Hugo Lesoir num gabinete de negócios, aquele olhar tão feminino, simultaneamente doce e ardente e de que só Florêncio conhecia todos os cambiantes.
O artista dirigiu-se para o piano. As suas mãos esguias e brancas como que acariciaram o teclado, antes de principiar a audição. Através da janela aberta, vinha o perfume do jardim. Isabel e Florêncio, de mãos dadas, Solange, empoleirada numa mesa, Catarina na mais cómoda poltrona, Denise no chão, sobre uma almofada, recolhiam a admirável onda musical. Um homem que tocava assim? Mas a sua idade nada contava, era novo, apaixonado... E os jovens, transportados ao mundo da música, mundo à parte, viviam a sua vida plena, aquela que foge ao tempo, às circunstâncias.
Todos viam um caminho novo ante si e nele se lançavam.
O trecho terminou.
- Outro - disse Catarina, depois dum momento de magnífico silêncio.
E depois, foi outro mais. Finalmente, embriagado de música, Estêvão Magloire ergueu-se. Fixou-os. Isabel e Denise estavam pálidas. Solange endireitara-se. Catarina sorria docemente. Florêncio tinha o seu semblante de guerra, duro e belo. Nenhum pensava em felicitá-lo, em agradecer-lhe, o que lhe agradou: palavras teriam sido miséria.
Denise, numa pobre vòzita trémula, foi a primeira a falar:
-Se tocar assim, no dia do casamento, toda a gente chorará.
E fundiu-se em lágrimas. Depois, temendo a troça dos outros - mas nenhum pensava nisso - anunciou:
- Vou fazer chá para si, Estêvão.
Desapareceu. Isabel dirigiu-se para o músico:
- Estêvão, você exprimiu tudo o que em mim
canta. Obrigada.
Então ele beijou a mão que ela lhe estendia e murmurou:
- Eu também conheço a felicidade de amar,
Isabel.
UM pouco mais curvada do que por ocasião do noivado de Florêncio, a avozinha Honorat passeia. Todavia, o seu passo é igualmente vivo, o seu sorriso igualmente alegre. Poucas rugas no rosto arredondado.
Inspecciona as roseiras, aquelas roseiras tão ternamente cuidadas para o grande dia. Para festejar Isabel, as rosas todas. Mas principalmente as brancas. Algumas têm um perfume delicioso...
"Eu também me casei na estação das rosas" - murmura a velhinha. - "Amanhã de manhã irei colher os ramos, ao nascer do sol, como, para mim, o paizinho..."
Vai chegar depressa, "amanhã de manhã". A noite de S. João é tão curta! As estrelas mal têm tempo de pousar no céu onde o sol se demorou infinitamente para logo regressar, impaciente. As aves acabaram por adormecer. Mas as crianças, dormirão?
A avó, que ainda diz "paizinho", diz sempre "as crianças".
Pois não, avozinha, as crianças não dormem. Tinha razão em duvidar. Como seria possível adormecer na noite de S. João e na véspera do casamento de Florêncio e Isabel?
Por largo tempo os noivos contemplaram a paisagem. O que diziam? Nada. Calar-se em conjunto, é maravilhoso... Florêncio ardia. Mas da sua Liseron desprendia-se tal suavidade, quando ele prendia nas suas grandes mãos aquela outra tão esguia...
A passos lentos, regressaram à velha casa. As cigarras cantavam por entre os fenos. Por toda a noite cantariam, por toda aquela noite de S. João...
À porta, beijaram-se.
- Dorme, meu amor - murmurou Florêncio.
- Amanhã dormirás nos meus braços.
Ela pousou-lhe a cabeça no ombro.
- Dorme, meu querido. Serei tua para sempre.
Ele ficou escutando o ruído das sandálias ao longo da escada. Da janela do primeiro andar, ela debruçou-se para lhe enviar um beijo na ponta dos dedos.
Voltou para a rua. Era lá fora que dormiria - se fosse capaz de dormir! Recordava noites de guerra, de guerra em chama, ameaçadora, em que o canhão troava. Noites de primavera sangrenta... Noites de cativeiro, entre o silêncio das neves, ou escaldantes... Noites em que o prisioneiro não sossegava na sua tarimba de tábua... Noites de evasão, quando dormia, escondido, nas florestas da Alemanha... Noite do regresso, maravilhosa de esperança... Noite de 25 de Agosto, Paris em festa, o Arco do Triunfo iluminado... Noites de Alsácia, quando os camaradas - os mais jovens, os mais ardentes - caíam à sua volta... Noite em que encontrara João-Lucas banhado em sangue.
E aquela noite, a última da sua vida de rapaz. Amanhã, seria a noite com Isabel.
Estendeu-se, contemplando o veludo do céu onde a custo, as estrelas despontavam. A terra cheirava bem. A sua mocidade experimentava estranha plenitude. Dormir? Certamente, não. São tão poucos os momentos de perfeita felicidade! Não voltaria a guerra? Não teriam de suportar novas separações? Oh! pensar em vez de dormir, pensar em Isabel, na casa que seria a deles, nos filhos que nasceriam e que desejavam numerosos. Pensar. Pensar, com os olhos muito abertos.
Mas era demasiado novo para resistir ao sono. Adormeceu, de súbito. E as estrelas, os gritos, o perfume dos prados, das rosas, toda a Natureza, em redor do longo corpo adormecido, celebrava o S. João, o Verão, a juventude das coisas, o amor...
Dorme, Florêncio. Dorme. E sonha com a tua noiva.
A noiva, essa decidira dormir.
"Senão, minha querida" - dissera Fani, especialista em beleza - "ficas feia."
E ela não queria nada estar feia. Começou lentamente a despir-se, depois foi até à janela... As cigarras, as cigarras... foi em sua honra que afinaram os violinos? É sempre possível imaginá-lo e enviar um obrigado à criação, um obrigado ao Criador. Liseron gostava de agradecer e de sentir Deus contente.
Três palmadinhas na porta.
- Sou eu, a Denise.
Denise, em camisa de noite cor-de-rosa, os cabelos esparsos pelos ombros. Uma boneca.
- Queria dar-te as boas noites, minha Isabel.
Amanhã, estarás longe. E quando voltares...
nunca mais será a mesma coisa. Olha, sabes o
que me disse o paizinho?
Debruçaram-se ambas à janela. Para o céu transparente, erguia-se o murmúrio da folhagem.
Quer dizer - prosseguiu Denise-, eu fui a primeira a falar...
Que coragem, migalhinha! E então?
Fui com ele para o pé da ribeira. É o sítio que o torna mais gentil, gosta da água. Sentámo-nos os dois na erva. Eu tinha na mão um ramo azul e branco. Ele disse assim: "As tuas cores!" E eu respondi-estava aflita, podes crer
"Enquanto espero o ramo do noivado, todo branco". - Não me digas que já pensas nisso?!
Penso, paizinho. - Ainda és muito nova. - Estou em idade de casar. Julgam-me sempre um bebé. - És o meu bebé. E não sei se sabes que não te largarei assim tão facilmente. - E se eu já tivesse escolhido? - Desagrada-me. Pode-se saber o nome do cavalheiro? - Tu já desconfias, chama-se João-Lucas... - Não consinto. - Por que razão? - Um garoto. - Que soube ser um herói. - Um doente. - Ainda mais merece que o amem. - Sem situação. - Há-de tê-la. - Só com um braço? - Sim, o sr. Bastien vai associá-lo aos seus negócios. E prometeu lançá-lo.
Então, ficámos sem falar, durante cinco minutos. Os homens detestam que a gente fale quando estão a pensar. Depois, disse: "Tu ama-lo realmente, Denise?"-Sim, paizinho. Desde sempre.- Não queres casar com o Pedro Leduc?, um rapaz de valor que me agradaria para genro...
- Não me agrada para marido".
Suspirou... Então eu beijei-o devagarinho, devagarinho. E ele disse: "Escuta. Não quero fazer-te chorar. Não recuso que cases com o teu João Lucas, mas não me comprometo a nada. Ele demonstrou o que valia nas grandes ocasiões: que mostre, agora, o que vale em épocas normais. Nem noivado, nem promessas, antes da experiência. Só dou a minha Denise a um rapaz capaz de lhe ser fiel, de trabalhar como eu trabalhei e de assegurar a felicidade duma família. Se revelar que possui estas qualidades, será teu marido". Supões como o abracei?! Mas fui perguntando: "Daqui a quanto tempo, paizinho?" - Dois anos, pelo menos. Não casarás com um aprendiz, nem com um convalescente". Aqui tens, Isabelinha querida, o que eu queria contar-te. O paizinho deu-me licença para dizer ao João Lucas. Já disse! Sinto-me feliz!...
E desapareceu, na sua camisa cor-de-rosa. As estrelas brilhavam ainda mais... Uma pancada na porta.
- Sou eu, a Solange. Ah, devaneias, doce noiva. Escuta, queria dizer-te... dizer-te obrigada.
Sem ti, ter-me-ia tornado uma pessoa detestável.
Não direi: deste-me o exemplo. Detesto a palavra "exemplo", cheira a gramática velha. Mas descobri no álbum da avozinha (ela fecha-o à chave, mas eu sei onde está a chave) um pensamento duma tal senhora Swetchine: "Caminhando direito, levamos os nossos irmãos a erguerem-se".
Isabel, trouxe-te isto, como ramo de núpcias.
Obrigada por teres caminhado tão direito. Liseron querida, devo-te a regeneração da minha vida.
E o pijama de riscas desapareceu. "Quem se seguirá?" pensou Isabel.
Foi Catarina que entrou, num longo roupão de cetim.
- Liseron querida, venho beijar-te. Como é lindo, serem ambos novos! Uma felicidade que eu não conheci.
Isabel apertou-se contra a mulher:
Mas és feliz, mesmo assim? Fala segundo o teu coração, agora que é noite e estamos sós.
Sim, sou feliz - respondeu uma voz grave e bela. - Porque o amo. E porque amar é tudo o que importa. Mas... há "mas", compreendes? Todavia, não lamento coisa alguma.
Nem Saint-Ivy? Pobre Saint-Ivy!
Oh! não, sofro quando penso que sofre, é tudo. Mas nada lamento. No entanto, reconheço que os pais podem ter razão... Guarda o segredo da Cigana. Amanhã há-de rir! Serás a única a saber que, por vezes, ela chora...
Como as irmãs, Catarina foi-se. Entre as mãos de Isabel depusera um segredo, e pesado. Mas Isabel sabia que, toda a sua vida, suportaria, um pouco, o peso do fardo alheio.
Só Natália se absteve de vir. Não queria projectar o mínimo reflexo duvidoso na brancura filial da alegria de Isabel. De Teresa, sólida, sensata, apaziguante, fizera sua confidente. E, além disso, estava lá Roland.
No dia seguinte, grande balbúrdia. Enquanto a senhora Honorat colhe rosas cintilantes de orvalho, vibra-se por toda a casa. Escuta as vozes e, muito velha França, murmura aqueles versos de Lamartine, evocando o tempo em que
La maison vibrait comme un grand coeur de pterre, De tons les coeurs jayeux qui battaient sous son toit'
Florêncio e Isabel partiram juntos para a igreja. Muito cedo. Comungaram lado a lado. Regressaram, com ar grave e doce, de mãos dadas. As trepadeiras estão em flor. Os pássaros cantam de alegria. Como os corações. Seus corações moços que crêem, esperam e amam de modo igual. Ao fundo da igreja, estava João Morlainville.
Ainda ao longe, ouviram o ruído da casa, que os divertiu. As irmãs por vestir e pentear, A casa vibrava como um grande coração de pedra Por tantos corações alegres que batiam sob o seu tecto.
Punham flores em toda a parte, prendiam grinaldas, tiravam dos armários as baixelas de prata das grandes ocasiões, estendiam belas toalhas adamascadas.
"Também eu hei-de casar na Châtaigneraie, no tempo das rosas" - pensava Denise. - "Dois anos! É tanto, dois anos! O João-Lucas não é lá muito paciente..."
Por fim, chegou o momento de vestir a noiva. E Isabel sentiu, de súbito, uma mágoa terrível. Era Marieta quem devia vesti-la, como no dia do seu baptizado, da sua primeira comunhão, do seu primeiro baile... Marieta de mãos deformadas mas tão hábeis, Marieta feia, que tanto apreciava a beleza, a elegância, Marieta que dera à pequenina órfã a ternura duma afeição maternal.
"Marieta, onde estás?"
De cabeça escondida nos braços, chorou. Mas, como sempre que pensava na querida velhinha, uma paz a envolveu. "Jóia, jóia, nunca te abandonei. Sou agora uma grande dama do Céu. Eu te abençoo, meu amor."
Então, limpou as lágrimas e banhou os olhos. Se Florêncio a visse chorar na manhã do casamento...
Muita gente se propusera para a vestir. Uma honra, vestir a noiva. Mas a mãezinha de Florêncio, que compreendia tudo, declarou que eram as irmãs de Isabel as designadas.
- Sim - disse a Maçã, contente. - Eu faço as coisas fáceis. E a Fani, que tem tanto chique, coloca o véu e as flores.
Então, deliciosamente aproximadas pela irmãzita, as duas mulheres puseram mãos à obra. Cada uma pensava no seu próprio casamento. O de Teresa, junto dum moribundo. O de Fani, grande sucesso mundano, mas sem amor. Hoje, como era lindo, simples e fresco, o casamento de Isabel!
Com franqueza - perguntava a noiva - acham que a minha cauda não se tornará ridícula no campo?
Garanto-te que não - respondia o árbitro das elegâncias. - A Edite leva-a. Há quinze dias que não pensa noutra coisa. A nurse diz que, até a dormir, ela fala em cetins brancos.
E como é que eu posso dançar com esta coisa toda?
O riso de Teresa:
Põe-la no braço.
Fani, eu não quero ter um ar muito pintado.
Está descansada, respeitarei a transparência da Liseron.
- Então também conheces a alcunha?
O riso de Fani:
O segredo de Polichinelo. O nome fica-te bem! E escolheste campainhas para o véu. Espera, espera... deixa pôr um bocadinho de pó de arroz. Tens perfume? O teu?
A Rosa, como presente, trouxe-me um frasco tão bonito! Muito não... não vaporizes muito, Fani.
Uma nuvem! Para que sejas realmente tu. Estás linda. Que linda! É preciso chamar o Florêncio: deve ser ele o primeiro a admirar.
Teresa inclinou-se sobre o corrimão da escada:
- Florêncio! Florêncio!
Ele estava no quarto da mãe que verificava a perfeição do seu traje:
- Que há, Teresa?
Nem Teresa, nem Estefânia. Apenas uma rapariga que lhe estende os braços. Mas ele não ousa tocar-lhe. É tão bela, tão pura! Uma após outra, beija-lhe as mãos. Depois, os olhos.
- Oh! querida! Você coroou-se de campainhas.
Disse você, como outrora, naquele dia em que pousou furtivamente os lábios de garoto grande na flor trepadeira beijada, de passagem, pela pequenina Isabel.
A passos lentos, desta vez, desceu a escada. E o sr. Morot-Léandre, que se agitava - segundo o costume dos pais dos noivos - preveniu-o de que eram mais do que horas de partir.
Então, todos os sinos repicaram, espalhando pelos campos a alegre notícia e convidando a comparecer. E os vizinhos saíram das suas casas para junto dos outros que, morando longe, há muito se haviam posto a caminho. Um casamento tão lindo, não se perde! Convidados de sociedade! As modas de Paris!
O velho Paulo conseguira trazer o carro. Mas Isabel disse:
- Quero ir a pé. Está tão bom tempo!
Apoiada ao braço do pai, enquanto Edite levava nas mãos a longa cauda leitosa do vestido, caminhava entre trepadeiras em flor.
"Que linda noiva!" - murmuravam as avezitas. Pelo menos, era assim que João Morlainville, o poeta, traduzia o seu canto. De todo o Céu, ele vinha. Fora certamente o cuco quem as avisara: "Venham, são as bodas de Liseron. A menina cujos olhos são pervincas, as faces rosas, e o cabelo negro e brilhante como as amoras. A menina que é terna para os animais, para as plantas, para as gentes".
E ela, pálpebras descidas, caminhava como em sonho. "Serei eu?" murmurou.
"Parece um conto de fadas", pensava a pequenina Edite.
Na igreja de vitrais azuis, a noiva avançou entre alas de povo que a murmuravam linda.
"Vou chorar", pensava, "mas não quero. A Fani diz que fico feia..."
Pois bem! chorou mesmo. Culpa de Estêvão Magloire. Tocou demasiado bem. Vida e morte, esperança e dor, todos os grandes sentimentos humanos fremiam sob as suas mãos. Os desaparecidos voltavam... A jovem mãezinha de que mal se recordava... Jeanine... Pedro Jacquelin... Odília... Marieta... Cristal. E o futuro empurrava-a para a frente, enquanto o passado a prendia com o eterno "lembras-te?" Oh! recordar, será suave ou terrível? Contra o coração apertava, agora, alegrias antigas, velhas mágoas que julgara esquecidas!...
Atrás dela, João-Lucas, uma das mangas vazia, recordava as palavras de Denise, ditas na véspera à noite: "João Lucas. O paizinho deixa. É preciso esperar, mas disse que sim".
E Denise era tão refrescante para um rapaz marcado pela desgraça! Bonita, no seu vestido branco cintado de veludo azul - como o laço caído, outrora, dos cabelos de Isabel e escolhido pela noiva exactamente do mesmo tom. Na cabeça, uma capeline, onde corriam miosótis. Fazia a colecta com Solange muito chique e catita, enquanto ela, a petizinha, era apenas frescura e graça. Quando lhe estendeu a bolsa, João Lucas viu que ela chorara. Naturalmente! Decidiu logo arreliá-la. Mas não: doravante, respeitaria as lágrimas de Denise. Ela chorara quando o vira sofrer!...
Depois do copo de água, o pai de Florêncio levantou-se para saudar a noiva. O pai de Isabel respondeu em verso. E depois conversou-se, simplesmente, comendo as cerejas do jardim.
- As minhas filhas são todas umas extravagantes - declarou o sr. Morot-Léandre. - Felizmente tenho uma nora sensata. Isabel meiga, linda, distinta, razoável, à sua saúde!
Ela ergueu o copo, exclamando:
Razoável? Nem por isso, pai... Se me tivesse recusado o Florêncio...
Eu - disse a Cigana, que tinha um lindo vestido - predigo a sorte dos noivos: vejo, no futuro, uma multidão de pequenos Morot-Léandre, admiravelmente educados. Muito mais ajuizados do que nós, orgulho e alegria dos avós que dirão: "Viva a Isabel!... Viva a rainha Isabel!"
Porquê rainha, Cigana? - perguntou o noivo. - Estarei destinado a rei de alguma ilha do Pacífico?
-Rainha? Porque vai reinar na tua casa. Por amor. É esse o verdadeiro destino da mulher.
Então cada marido - incluindo Roland - se voltou para a esposa com um olhar de gratidão. A avozinha pensou naquele que, em dia igual, a fizera rainha. E João cerrou as pálpebras, pensando em Jeanine.
Dançou-se... Isabel colocou a grande cauda no braço. Sorria. Mas à sua felicidade misturava-se certa melancolia, porque pensava naqueles que nunca seriam felizes: Cláudio Ariel, Joel Saint-Ivy, Maria-Amada. E seu pai. Todavia a dor deste último parecia-lhe noutro plano, misteriosa.
Dançou-se muito tempo... E depois, os noivos foram-se. Florêncio desceu bruscamente do automóvel para de novo beijar a mãe.
João Morlainville, vendo-os afastarem-se, alegres, na tarde doirada, sentiu-se de novo "agarrado pelos ombros". Junto dele estava seu filho, a mão - a sua única mão - na de Denise. Os lábios do poeta murmuraram baixinho:
"Sim, irei, Senhor, quando estes dois já não precisarem de mim. Eu irei. Eu vou..."
E ali ficaram, em silêncio, os três, à espera que o apito do comboio no vale lhes anunciasse que Florêncio e Isabel haviam partido para a sua bela viagem.
Para a viagem acidentada da vida, levando com eles a Esperança!
Berthe Bernage
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