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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESPIÃO E AMANTE / Ian Fleming
ESPIÃO E AMANTE / Ian Fleming

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

Eu ESTAVA fugindo. Estava fugindo da Inglaterra, de minha infância, do inverno, de uma seqüência de desagradáveis e desinteressantes casos de amor, das poucas peças de mobiliário e da confusão de roupas muito usadas que minha vida londrina juntara à minha volta; e estava fugindo da monotonia, do ranço, do esnobismo, da claustrofobia de horizontes fechados e de minha incapacidade de fazer progresso na corrida de ratos, embora eu fosse uma rata bastante atraente. De fato, estava fugindo de quase tudo, exceto da lei.
E já havia realmente corrido muito - exagerando um pouco, quase metade da volta do mundo. Com efeito, viera desde Londres até o "Dreamy Pines Motor Court", motel que ficava dezesseis quilômetros a oeste de Lake George, famosa estância turística nos Adirondacks - aquela vasta extensão de montanhas, lagos e pinheirais que cobre a maior parte do território do norte do Estado de Nova York. Partira em l. o de setembro e agora era sexta-feira, 13 de outubro. Quando partira, a encardida fileirinha de bordos domesticados de minha praça estava verde ou pelo menos tão verde quanto podem ser as árvores em Londres no mês de agosto. Agora, na legião de milhões de pinheiros que marchava para o norte em direção à fronteira do Canadá, os verdadeiros bordos selvagens flamejavam aqui e acolá como explosões de shrapnel. E sentia que eu ou pelo menos minha pele havia igualmente mudado - da palidez encardida que era a marca de minha vida londrina para a vivacidade, a cor e a animação de viver ao ar livre, de deitar-me cedo e de todas aquelas outras queridas coisas maçantes que haviam sido parte de minha vida em Quebec antes de ter ficado decidido que eu devia ir à Inglaterra para aprender a ser uma "dama". Era, naturalmente, muito pouco elegante essa tez de cereja madura, de vigor pela alegria. Eu deixara até mesmo de usar batom e esmalte de unhas. Mas, para mim, fora como despir uma pele emprestada e voltar à minha própria. Sentia-me infantilmente alegre e contente comigo mesma toda vez que olhava no espelho e descobria que não tinha desejo de pintar uma cara diferente sobre a minha. Não estou sendo pretensiosa quanto a isto. Eu estava apenas fugindo da pessoa que fora nos últimos cinco anos. Não me sentia particularmente satisfeita com a pessoa que era agora, mas odiara e desprezara a outra, e estava contente por ter-me livrado de sua cara.

 

 

 

 


A estação WOKO (poderiam ter imaginado um prefixo mais grandioso!), em Albany, capital do Estado de Nova York, situada cerca de oitenta quilômetros ao sul de onde me encontrava, anunciou que eram seis horas. A previsão do tempo que se seguiu incluía uma tempestade com ventos muitos fortes. A tempestade estava descendo do norte e atingiria Albany mais ou menos às oito horas. Isso significava que eu ia ter uma noite barulhenta. Não me importava. Tempestades não me assustam e embora, pelo que eu sabia, a alma viva mais próxima estivesse a quinze quilômetros de distância na estrada secundária não muito boa que leva a Lake George, o pensamento dos pinheiros que logo se estariam sacudindo lá fora, trovão, do relâmpago e da chuva já faziam sentir-me confortável aquecida e protegida por antecipação. E sozinha! Acima de tudo, sozinha! "A solidão torna-se um amante, o isolamento um pecado querido." Onde teria eu lido isso? Quem o escrevera? Era exatamente dessa maneira que eu me sentia dessa maneira que, quando criança, sempre me sentira até ter-me forçado a "entrar no banho", "ser uma pessoa da multidão", um bom tipo, igual. E que embrulhada eu fizera do "companheirismo"! Afastei a lembrança do malogro com um encolher de ombros. Nem todos precisam viver amontoados. Pintores, escritores, músicos são pessoas solitárias. Estadistas, almirantes e generais também. Mas, acrescentei para ser justa, criminosos e lunáticos igualmente o são. Digamos apenas, para não sermos muito lisonjeiros, que os indivíduos verdadeiros são solitários. Não é uma virtude. Pelo contrário. A gente deve partilhar e comunicar-se para ser membro útil da tribo. O fato de eu me sentir muito mais feliz quando sozinha era sem dúvida um sinal de caráter defeituoso, neurótico. Dissera isso a mim mesma com tanta freqüência nos últimos cinco anos que agora, naquele anoitecer, apenas encolhi os ombros e, abraçando-me à minha solidão, caminhei através do grande saguão até a porta e saí para dar uma última olhada ao crepúsculo.
Odeio pinheiros. São escuros e ficam muito parados. A gente não pode abrigar-se embaixo deles, nem subir neles. São muito sujos, com uma sujeira preta muito pouco vegetal, e quem se encostar nessa sujeira 'misturada com sua resina fica realmente sujo. Acho suas formas denteadas vagamente hostis e a maneira como se aglomeram tanto dá-me a impressão de um exército de lanças barrando minha passagem. A única coisa boa neles é o cheiro e, sempre que consigo encontrá-la, uso essência de folhas de pinheiro no banho. Aqui, nos Adirondacks, a interminável vista de pinheiros era positivamente repugnante. Eles cobrem todo metro quadrado de terra nos vales e sobem até o topo de toda montanha, de modo que a impressão é de um tapete cheio de farpas estendido até o horizonte - uma vista interminável de pirâmides verdes de aparência estúpida esperando ser derrubadas para transformar-se em fósforos, cabides e exemplares do "New York Times".
Mais ou menos cinco acres dessas estúpidas árvores foram derrubados para a construção do motel, único nome que este lugar realmente merece."Motel" não é mais uma palavra decente. Tornou-se elegante usar "Motor Court" ou "Ranch Cabins" depois que os motéis ficaram associados à prostituição, gangsterismo e assassínios, atividades para as quais seu anonimato e sua falta de supervisão são muito convenientes. O local, do ponto de vista turístico, era muito bom. Havia essa sinuosa estrada secundária através da floresta, agradável via alternativa entre Lake George e Glens Falls, ao sul, e no meio dela um pequeno lago, habilmente denominado Águas Sonhadoras e tradicionalmente preferido para piqueniques. Na margem sul desse lago é que foi construído o motel, com o saguão voltado para a estrada e as casinhas com os quartos abrindo-se em semicírculo por trás desse- edifício principal. Havia quarenta quartos com cozinha, chuveiro e lavatório. Todos tinham alguma espécie de vista do lago que ficava atrás deles. A construção e o desenho eram o que havia de mais moderno - fachadas de pinheiro envernizado e belos telhados de madeira, ar condicionado, televisão em todos os quartos, parque infantil, piscina, campo de golfe sobre o lago com bolas flutuantes (cinqüenta bolas, um dólar) - todos os atrativos, enfim. Comida? Bar no saguão e, duas vezes por dia, entrega de secos e molhados trazidos de Lake George. Tudo isso por dez dólares para solteiro e dezesseis para casal. Não era de admirar que, com um empate de capital de uns duzentos mil dólares e uma temporada que durava apenas de 1. ° de julho a princípios de outubro ou, no referente ao cartaz de "Não há vagas", de 14 de julho ao Dia do Trabalho, os proprietários estivessem achando a coisa difícil. Pelo menos foi o que me disseram aqueles horríveis Phanceys, quando me contrataram como recepcionista por apenas trinta dólares por semana, além de cama e comida. Graças a Deus agora estavam longe de mim! Uma canção no coração? Houvera todo um coro celestial às seis horas daquela manhã, quando sua cintilante perua desaparecera na estrada a caminho de Glens Falls e depois de Troy, de onde provinham os monstros. O Sr. Phancey fizera uma última investida contra mim e eu não fora suficientemente ágil. Sua mão livre correra como um veloz lagarto por meu corpo antes que eu enterrasse o salto do sapato em seu pé. Então ele desistira. Quando seu rosto contorcido se desanuviara, dissera maciamente: "Está bem, gostosa. E veja se cuida bem do acampamento até o patrão vir buscar as chaves amanhã ao meio-dia. Sonhe com os anjos hoje à noite." Depois dera um sorriso que eu não entendera e se dirigira para a perua de onde sua esposa estivera olhando, sentada no lugar do motorista. "Vamos, Jed", disse ela rispidamente. "Você pode dar vazão a esse fogo hoje à noite em West Street." Engatou o carro e, dirigindo-se a mim, disse suavemente: "Agora, adeus, belezinha. Escreva-nos todos os dias." Depois tirou do rosto o sorriso falso e vi de relance pela última vez seu perfil comprido e murcho quando o carro virou em direção à estrada. Ufa! Que casal! Saído diretamente de um livro - e que livro! Querido Diário! Bem, não era possível haver pessoas muito piores e agora estavam longe. Daqui por diante, em minhas viagens, a raça humana precisa melhorar!
Fiquei lá parada, olhando o caminho por onde os Phanceys tinham ido embora e relembrando-os. Depois, virei-me e olhei para o norte para ver como estava o tempo. Fizera um belo dia, claro como na Suíça e quente para meados de outubro, mas agora altas e ameaçadoras nuvens, pretas com cabelos dourados pelo sol poente, juntavam-se no céu. Lufadas rápidas de vento passavam ziguezagueando entre as copas das árvores na floresta e de vez em quando faziam balançar a única luz amarela por cima do posto de gasolina deserto lá na estrada ao fundo do lago. Quando uma lufada mais forte chegou até mim, fria e açoitante, trouxe consigo o sussurro de um rangido metálico da luz dançante e a primeira vez que isso aconteceu estremeci deliciosamente ao ouvir o barulhinho fantasmagórico. Na margem do lago, além da última das casinhas, pequenas ondas batiam rápidas contra as pedras. A superfície metálica do lago era agitada por repentinas brisas que as vezes provocavam um lampejo branco. Contudo, entre as furiosas lufadas, o ar ainda estava parado e as árvores de sentinela através da estrada e por trás do motel pareciam estar-se aproximando silenciosamente para aglomerar-se ao redor da fogueira dos edifícios brilhantemente iluminados às minhas costas.
De repente, tive vontade de ir esconder-me e sorri comigo mesma. Era a pungente comichão que as crianças sentem durante o brinquedo de esconde-esconde no escuro, quando, dentro do armário embaixo da escada, a gente ouve o suave rangido da tábua do soalho e o sussurrar dos pegadores que se aproximam. Depois, a gente se encolhe em emocionante angústia e aperta bem as pernas, esperando o êxtase da descoberta, a fenda de luz da porta que se abre e então - o momento supremo - o urgente "Psiu!! Venha aqui comigo!", o macio fechar da porta, e o corpo risonho e quente bem apertado ao seu.
Ali em pé, uma "moça" agora, lembrei-me disso tudo e reconheci a comichão sensual causada pela fugidia apreensão - o calafrio na espinha, o arrepio intuitivo que vem dos sinais primitivos de medo de nossos ancestrais irracionais. Achei divertido e abracei-me ao momento. Logo os trovões estourariam e eu voltaria do uivo e do caos da tempestade para minha bem iluminada e confortável caverna, prepararia uma bebida, ouviria o rádio e me sentiria segura e animada.
Estava ficando escuro. Nessa noite não haveria coro dos pássaros. Há muito tempo eles haviam lido os sinais e desaparecido em seus próprios abrigos na floresta, como tinham feito os outros animais - os esquilos, as tâmias e os veados. Em toda esta enorme área selvagem agora só havia eu ao ar livre. Respirei fundo uma última vez o ar suave e úmido. A umidade reforçara o cheiro de pinheiro e musgo, e agora havia também no fundo um forte cheiro de axila da terra. Era quase como se a floresta estivesse suando com a mesma agradável excitação que eu sentia. Em algum lugar, bem perto, uma nervosa coruja perguntou alto "Quem?" e depois fez-se silêncio. Afastei-me alguns passos da porta iluminada e fiquei no meio da estrada empoeirada, olhando para o norte. Uma forte lufada de vento atingiu-me e jogou meus cabelos para trás. Um relâmpago lançou sua mão branco-azulada através do horizonte. Segundos depois, o trovão rosnou baixo como um cão de guarda acordando e em seguida chegou o vento forte e as copas das árvores começaram a dançar e soltar folhas, enquanto a luz amarela sobre o posto de gasolina balançava e piscava lá na estrada como que para avisar-me. Estava-me avisando. De repente, a luz dançante foi borrada pela chuva, com sua luminosidade embaçada pelo cinzento lençol de água que avançava. As primeiras pesadas gotas de chuva caíram sobre mim. Virei-me e corri.
Bati a porta depois de passar, fechei-a a chave e prendi corrente. Entrara exatamente em tempo. A avalancha caiu firmou-se em um estável rugido de água cujos padrões de som variavam desde o pesado tamborilar sobre as pranchas inclinadas do telhado até as batidas mais altas e precisas nas janelas. Um momento depois juntou-se a esses sons a animada violência das calhas inundadas. E ficou pronto o ruidoso padrão de fundo da tempestade.
Eu ainda estava lá parada, ouvindo confortavelmente, quando o trovão, que vinha rastejando quietamente às minhas costas, saltou de emboscada. De repente, o relâmpago iluminou a sala e, no mesmo instante, houve um ensurdecedor estrondo que abalou o edifício e fez o ar vibrar como uma corda de piano. Foi uma única e colossal explosão, que poderia ter sido uma enorme bomba caindo a apenas alguns metros de distância. Houve um tinido agudo quando um painel de vidro caiu de uma das janelas ao chão e depois o barulho da água batendo sobre o linóleo.
Não me movi. Não pude. Fiquei parada e encolhi-me, com as mãos sobre os ouvidos. Eu não queria que fosse assim! O silêncio, que fora ensurdecedor, recuou diante do rugido da chuva, rugido que havia sido tão confortador, mas que agora dizia: "Você não pensou que pudesse ser tão ruim; Nunca tinha visto uma tempestade nestas montanhas. É realmente bem fraquinho esse seu abrigo. Gostaria de ver as luzes apagarem-se só para começar? Depois o estrondo de um raio através desse seu forro de tábuas? Em seguida, só para liquidá-la, um raio pondo fogo no prédio - eletrocutando-a talvez? Ou vamos apenas assustá-la para que você saia correndo sob a chuva e tente percorrer aqueles quinze quilômetros até Lake George. Você gosta de ficar sozinha, não gosta? Bem, então experimente isto!" Novamente o quarto ficou branco-azulado, novamente, bem em cima de minha cabeça, houve o ensurdecedor choque da explosão, mas desta vez o choque alargou-se e correu de um lado para outro em um furioso canhoneio que fez as xícaras e os copos tilintarem por trás do balcão do bar e a madeira ranger sob a pressão das ondas de som.
Senti as pernas fracas, cambaleei até a cadeira mais próxima e sentei-me, com a cabeça entre as mãos. Como podia ter sido tão tola, tão imprudente? Se pelo menos alguém viesse ficar comigo, se alguém viesse dizer que isso era apenas uma tempestade! Mas não era! Era uma catástrofe, o fim do mundo! E tudo dirigido contra mim! Agora! Estava vindo de novo! A qualquer momento! Eu precisava fazer alguma coisa, procurar socorro! Mas os Phanceys haviam dispensado o serviço da companhia telefônica e o telefone fora desligado. Só havia uma esperança! Levantei-me e corri para a porta, estendendo a mão para a grande chave que controlava o anúncio de "Há vagas" e "Não há vagas" em néon vermelho por cima da porta. Se eu ligasse o "Há vagas", talvez alguém passasse pela estrada. Alguém que ficaria satisfeito em encontrar abrigo. Todavia, quando puxei a chave, o raio, que me estava vigiando, crepitou maldosamente na sala, e, quando o trovão estrondou, fui agarrada por uma mão gigantesca e jogada no chão.


2 - Queridos dias mortos

QUANDO VOLTEI a mim, percebi imediatamente onde estava e o que acontecera. Encolhi-me bem no chão, esperando ser atingida de novo. Fiquei assim uns dez minutos, ouvindo o rugido da chuva, pensando se o choque elétrico não me causara uma lesão permanente, não me queimara, talvez por dentro, deixando-me incapaz de ter filhos, ou não embranquecera meus cabelos. Talvez toda minha cabeleira tivesse sido queimada! Levei a mão aos cabelos. Senti que estava tudo direito, só que havia um galo no parte de trás da cabeça. Movi-me cuidadosamente. Nada estava quebrado. Não sofrerá coisa alguma. Depois, a grande geladeira "General Electric" no canto deu sinal de vida e começou sua alegre e doméstica vibração. Percebi que o mundo ainda estava andando e que o trovão passara. Levantei-me muito fraca e olhei ao redor, esperando não sei que cena de caos e destruição. Mas tudo estava lá, exatamente como eu havia "deixado" - a mesa de recepção de aparência importante, a estante de arame para livros e revistas, o comprido balcão do bar, a dúzia de asseadas mesas com tampas de plástico multicor e incômodas cadeirinhas de metal, a grande vasilha de água gelada e a cintilante cafeteira - tudo em seu lugar, tão normal quanto poderia ser. Havia apenas o buraco na janela e uma poça dágua que crescia no chão como prova do holocausto por que acabávamos de passar a sala e eu. Holocausto? De que estava eu falando? O único holocausto fora dentro de minha cabeça! Havia uma tempestade. Tinha havido trovão e relâmpago. Eu me deixara aterrorizar, como uma criança, pelos grandes estrondos. Como uma idiota, segurara uma chave elétrica - sem sequer esperar por uma pausa entre os raios, mas escolhendo exatamente o momento em que ia haver outra faísca. Isso me fizera desmaiar. Eu fora castigada com um galo na cabeça. Bem feito, gata assustada, estúpida e ignorante! Mas, espere um pouco! Talvez meus cabelos tivessem ficado brancos! Atravessei a sala, bem depressa, apanhei minha bolsa sobre a mesa, entrei atrás do balcão do bar, curvei-me e olhei no comprido espelho embaixo das prateleiras. Olhei primeiro inquisitivamente para meus olhos. Eles também me fitaram, azuis, claros, mas arregalados pela suspeita. Lá estavam os cílios e as sobrancelhas, castanhos, uma testa interrogativa e depois, sim, o topo castanho bem definido, com a confusão de cabelos castanhos muito escuros, perfeitamente comuns, curvando-se para a direita e formando duas ondas. Muito bem! Apanhei meu pente e corri-o brusca e raivosamente pelos cabelos. Tornei a pôr o pente na bolsa e apertei o fecho.
Meu relógio dizia que eram quase sete horas. Liguei o rádio e, enquanto ouvia a WOKO assustando seus ouvintes com histórias sobre a tempestade - linhas de transmissão de eletricidade caídas, o rio Hudson subindo perigosamente em Glens Falls, um olmo tombado obstruindo a Rota 9 em Sara-toga Springs, alarma de inundação em Mechanicville - prendi com fita adesiva um pedaço de papelão sobre a vidraça quebrada e, depois de apanhar um pano e um balde, enxuguei a poça dágua no chão. Em seguida corri pelo curto passeio coberto até as casinhas no fundo e entrei na minha, Número 9, do lado direito na direção do lago. Despi-me e tomei um banho frio de chuveiro. Minha camisa branca Terylene sujara-se na queda. Lavei-a e pendurei-a para secar.
Já me esquecera do castigo que a tempestade me impusera e do fato de ter-me portado como uma tola. Meu coração estava cantando de novo diante da perspectiva de passar a noite sozinha e partir novamente no dia seguinte. Por um impulso, vesti o que tinha de melhor em meu minúsculo guarda-roupa - minhas calças de toureiro de veludo preto, com o indecente zíper dourado na parte de trás, que já era impudicamente justa. Sem me preocupar com soutien, pus meu suéter Camelot de lã dourada com larga e solta gola sanfona. Admirei-me no espelho, resolvi dobrar as mangas acima dos cotovelos, enfiei os pés em minhas sandálias Ferra-gamo douradas e corri de volta para o saguão. Restava apenas um bom gole no litro de uísque "Virgínia Gentlemen" que já me durara duas semanas. Enchi um dos melhores copos de cristal com cubos de gelo e derramei o uísque sobre eles, sacudindo a garrafa para que caísse até a última gota. Depois puxei para perto do rádio a mais confortável poltrona da parte de recepção da sala, liguei o aparelho, acendi um dos últimos cinco cigarros de meu maço de "Parliament", dei um bom trago em minha bebida e aconcheguei-me na poltrona.
O comercial, só sobre gatos e como eles gostavam de "Pussyfoot Prime Liver Meal", ergueu seu som contra o firme rugido da chuva, cujo tom só se alterava quando uma lufada de vento particularmente forte lançava a água como metralha contra as janelas e sacudia levemente o edifício. Dentro, era como eu havia imaginado - à prova dágua, aconchegante, cinzento e cintilante de luzes e cromo. A WOKO anunciou quarenta minutos de "Música Para Ser Beijada" e de repente os Ink Spots começaram a cantar "Someone's Rockin my Dream Boat". Fui levada de volta ao rio Tâmisa, cinco verões antes. Estávamos vagando diante de Kings Eyot em um bote e, ao longe, avistava-se o Castelo de Windsor. Derek remava enquanto eu mexia com o toca-discos. Só tínhamos dez discos, mas sempre que chegava a vez do L. P. dos Ink Spots e tocava "Barco de Sonhos", Derek pedia: "Toque de novo, Viv." E eu tinha de ajoelhar-me e encontrar o lugar com a agulha.
Por isso agora meus olhos se encheram de lágrimas - não por causa de Derek, mas por causa do doce sofrimento de menino e menina, sol e primeiro amor com suas melodias, instantâneos e cartas "seladas com um beijo de amor". Eram lágrimas de sentimento pela infância perdida e de autopiedade pela dor que fora sua mortalha. Deixei duas lágrimas rolarem por minhas faces antes de enxugá-las e resolvi ter uma rápida orgia de recordações.
Meu nome é Vivienne Michel e, quando estava sentada no motel "Dreamy Pines" relembrando, tinha vinte e três anos de idade. Tenho um metro e sessenta de altura e sempre pensei que tinha um bom físico, até quando as moças inglesas da "Astor House" disseram que meu traseiro era muito saliente e que eu precisava usar um soutien mais apertado. Meus olhos, como já disse, são azuis e meus cabelos castanhos-escuros com ondas naturais. Gosto das maçãs do meu rosto bem altas, embora aquelas mesmas moças tenham dito que elas me fazem parecer "estrangeira". Meu nariz é muito pequeno e minha boca muito grande, de modo que às vezes parece sensual quando não quero que pareça. Tenho um temperamento sangüíneo que, gosto de pensar, é romanticamente colorido de melancolia, mas sou caprichosa e independente a tal ponto que aborrecia as irmãs no convento e exasperava a Srta. Threadgold na "Astor House". ("As mulheres devem ser como salgueiros, Vivienne. Os homens é que devem ser como carvalhos e freixos.")
Sou franco-canadense. Nasci perto de Quebec em um lugarzinho chamado Sainte Famille, no litoral da Ile d'Orléans, uma ilha comprida que fica como um enorme navio afundado no meio do rio St. Lawrence quando ele se aproxima do estreito de Quebec. Cresci dentro e ao lado desse grande rio. Em resultado, meus principais passatempos são nadar, pescar, fazer excursões pelo campo e outras coisas ao ar livre. Não me lembro muito de meus pais - a não ser que amava meu pai e me dava mal com minha mãe - pois tinha oito anos quando ambos morreram em um desastre de aviação durante a guerra, ao aterrar em Montreal para assistir a um casamento. Os tribunais confiaram-me à guarda de minha tia viúva, Florence Toussaint, que se mudou para nossa casinha e me criou. Nós nos dávamos muito bem e hoje chego quase a amá-la, mas ela era protestante, enquanto eu fora criada como católica e tornei-me vítima da luta religiosa que sempre foi a praga da Quebec cheia de padres, quase exatamente dividida entre as duas religiões. Os católicos venceram a batalha pelo meu bem-estar espiritual e fui educada no Convento Ursuline até os quinze anos. As irmãs eram severas e davam importância demais à piedade, em resultado do que aprendi muito de história religiosa e dogmas bastante obscuros que de bom grado trocaria por matérias que me tivessem preparado para ser outra coisa que não enfermeira ou freira. No fim, quando a atmosfera se tornou abafada demais para meu espírito, pedi para ser tirada de lá e minha tia salvou-me gostosamente dos "papistas". Foi decidido que, aos dezesseis anos de idade, eu deveria ir para a Inglaterra completar minha educação. Isso provocou um grande barulho local. Não só porque as Ursulines são o centro da tradição católica em Quebec - o Convento orgulha-se de possuir o crânio de Montcalm e durante dois séculos nunca houve menos de nove irmãs ajoelhadas e rezando, noite e dia, diante do altar da capela - mas também porque minha família pertencia à cidadela mais central do franco-canadianismo e o fato de sua filha desprezar de um só golpe ambas as preciosas tradições foi motivo de grande espanto - e escândalo.
Os verdadeiros filhos e filhas de Quebec formam uma sociedade, quase uma sociedade secreta, que deve ser tão poderosa quanto a camarilha calvinista de Genebra, e os iniciados referem-se orgulhosamente a si próprios, sejam homens ou mulheres, como "Canadiennes". Mais abaixo, muito mais abaixo, na escala ficam os "Canadiens" - canadenses protestantes. Depois "Les Anglais", o que abrange todos os imigrantes chegados da Grã-Bretanha mais ou menos recentemente e, por último, "Les Américains", uma expressão pejorativa. Os "Canadiennes" orgulham-se do francês que falam, embora seja um patoá bastardo cheio de palavras velhas de duzentos anos que os próprios franceses não compreendem e que é entremeado de vocábulos ingleses afrancesados - mais ou menos, acho eu, como o idioma dos Afrikaans em relação à língua da Holanda. O esnobismo e o exclusivismo dessa camarilha de Quebec estendem-se até mesmo aos franceses que vivem na França. Esse povo de que descendem os "Canadiennes" é mencionado simplesmente como "Etrangers"! Contei tudo isso mais ou menos extensamente para explicar que o abandono da Fé por um Michel de Sainte Famille era um crime quase tão hediondo, se isso fosse possível, quanto o abandono da Máfia na Sicília. Tornaram-me perfeitamente claro que, ao deixar as Ursulines e Quebec, eu queimara todas as pontes de retirada no que se referia às minhas guardiãs espirituais e à minha cidade natal.
Minha tia sensatamente ridicularizou meu nervosismo pelo ostracismo social que se seguiu - a maioria de meus amigos foi proibida de ter qualquer relação comigo - mas o fato é que cheguei à Inglaterra carregada com um sentimento de culpa e de "diferença" que, aliado ao meu "colonialismo", era um terrível peso psicológico com que enfrentar a elegante escola de aperfeiçoamento para moças.
A "Astor House" da Srta. Threadgold ficava, como a maioria desses estabelecimentos muito ingleses, na área de Sunningdale. Era um grande edifício vitoriano de aparência solene, cujos andares superiores haviam sido divididos com tabiques para servir de dormitórios a vinte e cinco pares de moças. Sendo "estrangeira", fui posta com outra estrangeira, uma milionária libanesa morena com enormes tufos de cabelos cor de rato embaixo das axilas e paixão igualmente enorme por bombons de chocolate e por um astro cinematográfico egípcio chamado Ben Said, cuja lustrosa fotografia - dentes, bigode, olhos e cabelos cintilantes - logo foi rasgada e jogada na privada pelas três moças mais velhas do Dormitório Rosa, do qual nós duas fazíamos parte. Na realidade, fui salva pela libanesa. Ela era tão desagradável, petulante, mal cheirosa e obcecada por seu dinheiro que a maioria das moças da escola ficou com pena de mim e fazia tudo para ser bondosa comigo. Mas havia muitas outras que não agiam assim e que me fizeram sofrer horrores devido a meu sotaque, minhas maneiras à mesa, que eram consideradas grosseiras, minha absoluta falta de savoir faire e, em geral, por ser canadense. Vejo agora que eu era também muito sensível e exaltada. Não tolerava que me maltratassem e caçoassem de mim e, depois de ter brigado com duas ou três de minhas torturadoras, outras se reuniram a elas e, certa noite, caíram sobre mim na cama, socaram-me, beliscaram-me e ensoparam-me de água até eu romper em lágrimas e prometer que eu não "lutaria mais como um alce". Depois disso, gradualmente me acomodei, fiz um armistício com o lugar e pus-me taciturnamente a aprender a ser uma "dama".
Eram os feriados que compensavam tudo. Fiz amizade com uma moça escocesa, Susan Duff, que gostava dos mesmos divertimentos ao ar livre que eu. Ela também era filha única e seus pais ficaram contentes em ter-me para fazer-lhe companhia. Assim passava o verão na Escócia e esquiava no inverno e na primavera - em toda a Europa, na Suíça, na Áustria, na Itália. Ficamos juntas durante todo o tempo em que estivemos na escola de aperfeiçoamento e finalmente nos "formamos" juntas. Minha tia Florence ofereceu quinhentas libras como minha contribuição para um baile idiota no "Hyde Park Hotel" e fiz a ronda dos bailes igualmente idiotas em que os moços me pareciam rudes, melindrosos e absolutamente nada masculinos em comparação com os jovens canadenses que eu havia conhecido. (Mas talvez eu estivesse errada, porque um dos mais melindrosos deles correu no Grand National daquele ano e chegou ao fim da corrida!)
Depois conheci Derek.
Estava então com dezessete anos e meio. Morava com Susan em um minúsculo apartamento de três aposentos na Old Church Street, pertinho de King's Road. Estávamos no fim de junho, faltava ainda muita coisa para encerrar nossa famosa "temporada" e decidimos dar uma festa para as poucas pessoas que havíamos conhecido e realmente apreciado. A família que morava em nossa frente, no mesmo andar, ia passar as férias no estrangeiro e disse que poderíamos usar seu apartamento em troca de vigiá-lo enquanto ela estivesse fora. Nós duas estávamos quase quebradas com as despesas para acompanhar os outros em todos aqueles bailes. Cabografei à tia Florence e consegui dela cem libras. Susan arranjou cinqüenta e resolvemos fazer as coisas realmente bem feitas. Íamos convidar umas trinta pessoas e calculávamos que só aparecessem umas vinte. Compramos dezoito garrafas de champanha - róseo, porque parecia mais excitante - uma lata de cinco quilos de caviar, duas latas bem baratas de fois gras que parecia bom quando cortado e montes de coisas bem temperadas de Soho. Fizemos uma porção de sanduíches de pão preto com manteiga, agrião e salmão defumado, e juntamos algumas coisas típicas de Natal, como ameixas Elvas e chocolates - idéia estúpida, pois ninguém comeu. Quando pusemos tudo em cima de uma porta tirada de suas dobradiças e coberta com uma brilhante toalha de mesa para dar a impressão de bufê, parecia uma verdadeira festa de adultos. A festa foi um grande sucesso, quase sucesso demais. Todos os trinta convidados apareceram e alguns deles trouxeram outros. Foi um verdadeiro ajuntamento, com pessoas sentadas nas escadas e até mesmo um homem com uma moça no colo. O barulho e o calor foram terríveis. Afinal de contas, talvez não fôssemos tão quadradas como pensávamos ou talvez as pessoas gostem realmente de gente quadrada, desde que seja sinceramente quadrada e não tente fingir. Naturalmente, acabou acontecendo o pior e ficamos sem bebida! Eu estava ao lado da mesa quando um gaiato esgotou a última garrafa de champanha e gritou com voz estrangulada: "Água! Água! Senão jamais tornaremos a ver a Inglaterra." Fiquei atrapalhada e disse estüpidamente: "Bem, não há mais." Foi então que um moço alto, que estava de pé, encostado à parede, disse: "Claro que há. Você se esqueceu da adega." Segurando-me pelo cotovelo, empurrou-me para fora da sala e pela escada abaixo."Vamos", disse firmemente."Não se pode estragar uma boa festa. Arranjaremos mais um pouco no bar."
Bem, fomos ao bar e conseguimos duas garrafas de gim e uma braçada de limões amargos. Ele insistiu em pagar o gim e eu paguei os limões. Ele estava bem "alto", de uma maneira agradável. Explicou que estivera em outra festa antes da nossa e que fora levado por um jovem casal chamado Norman, amigo de Susan. Disse que seu nome era Derek Mallaby, mas não prestei muita atenção pois estava ansiosa por levar a bebida à festa. Houve aplausos quando voltamos pela escada, mas na verdade a festa já havia passado seu ponto alto e daí por diante os convidados foram-se dispersando até não restar senão o habitual núcleo de amigos particulares e figurinhas que não tinham onde ir jantar. Depois esses também se foram retirando vagarosamente, inclusive os Normans, que pareciam muito boa gente e disseram a Derek Mallaby que encontraria a chave embaixo do capacho. Susan estava sugerindo que fôssemos ao "Popotte", um lugar que não me interessava, quando Derek Mallaby se aproximou, afastou os cabelos que cobriam minha orelha e segredou com voz rouca se eu não queria ir dar uma volta com ele. Disse que sim, principalmente, penso eu, porque ele era alto e porque havia assumido o controle quando eu estava atrapalhada.
Assim, saímos para a rua na noite quente, deixando para trás o pavoroso campo de batalha da festa. Susan e seus amigos foram para outro lado e nós tomamos um táxi na King's Road. Derek levou-me ao outro lado de Londres, a uma casa de espaguete chamada "The Bamboo", perto de Tottenham Court Road. Pedimos espaguete à bolonhesa e uma garrafa de "Beaujolais", solúvel, como ele dizia. Bebeu a maior parte do "Beaujolais" e me contou que vivia não muito longe de Windsor, tinha quase dezoito anos, esse era seu último ano na escola, fazia parte do time de cricket e tivera uma licença de vinte e quatro horas para ir a Londres consultar advogados pois sua tia morrera e lhe deixara algum dinheiro. Seus pais tinham passado o dia com ele e depois voltado para Windsor, deixando-o com os Normans. Deveria ter ido assistir a uma peça e depois voltar para casa dormir, mas houvera aquela outra festa, depois a minha e se fôssemos agora ao "400?"
Naturalmente, fiquei entusiasmada. O "400" é o melhor night-club de Londres e eu nunca subira além dos buracos instalados em porões em Chelsea. Falei-lhe um pouco a meu respeito e fiz "Astor House" parecer engraçada. Era muito fácil conversar com ele.
Quando veio a conta, sabia exatamente quanto dar de gorjeta e pareceu-me que já estava muito adulto para ainda freqüentar a escola, mas dizem que essas escolas públicas inglesas deixam a pessoa adulta muito depressa e ensinam-na a comportar-se. Ele segurou minha mão no táxi e isso parecia estar direito. No "400" pareciam conhecê-lo. Estava deliciosamente escuro e ele pediu gim e tônica. Puseram sobre a mesa meia garrafa de gim, que aparentemente era dele, da última vez em que lá estivera. A banda de Maurice Smart era macia como creme e, quando dançamos, nos ajustamos imediatamente, pois seu ritmo era quase igual ao meu. Eu estava realmente me divertindo. Comecei a observar a maneira como seus cabelos cresciam nas têmporas. Notei que tinha boas mãos e que sorria não só para o rosto da gente, mas também para os olhos da gente. Ficamos lá até quatro da madrugada e o gim acabou. Quando saímos para a calçada, precisei apoiar-me nele. Tomamos um táxi e pareceu natural quando me tomou nos braços. Quando me beijou correspondi ao beijo. Depois de ter tirado suas mãos duas vezes de meu seio, pareceu-me afetação não as deixar lá da terceira vez, mas quando desceu a mão e tentou enfiá-la por baixo de minha saia, não deixei; quando segurou minha mão e tentou encostar nele também não deixei, embora todo meu corpo estivesse quente de desejo por essas coisas. Mas, graças a Deus, já estávamos diante do apartamento e descemos. Levou-me até a porta e dissemos que nos veríamos de novo e que ele me escreveria. Quando nos despedimos com um beijo, desceu a mão por minhas costas e me apertou bem por trás. Quando o táxi desapareceu na esquina, eu ainda sentia sua mão lá. Deitei-me na cama e olhei para o espelho por cima da bacia de lavar o rosto. Meus olhos e meu rosto estavam radiantes como se fossem iluminados por dentro e, embora provavelmente a maior parte da iluminação proviesse do gim, pensei: "Oh, céus! Estou amando!"


3 - Despertar da primavera

DEMORA muito tempo para escrever estas coisas, mas apenas minutos para lembrá-las. Quando saí de meu devaneio na poltrona do motel, a WOKO ainda estava tocando "Música Para Ser Beijada" e era alguém que talvez fosse Don Shirley improvisando em torno de "Ain't She Sweet?" O gelo de minha bebida derretera-se. Levantei-me, tirei um pouco mais da geladeira, voltei, aconcheguei-me na poltrona, bebi um cuidadoso gole do uísque para fazê-lo durar, acendi outro cigarro e imediatamente voltei àquele verão interminável.
O último período letivo de Derek chegou ao fim e nós já havíamos trocado quatro cartas de cada lado. Sua primeira carta começou com "Queridíssima" e acabou com amor e beijos. Eu correspondi com "Querido" e "amor". Suas cartas eram principalmente sobre seus feitos esportivos e as minhas eram sobre os bailes a que fora e os filmes e peças a que assistira Ele ia passar o verão em casa e estava muito entusiasmado com um "MG" usado que seus pais iam dar-lhe. Eu sairia com ele no carro? Susan ficou surpreendida quando lhe disse que não iria à Escócia e que desejava ficar no apartamento pelo menos no momento. Não lhe contara a verdade sobre Derek e, como sempre era eu quem levantava mais cedo, ela não sabia das cartas dele. Eu não costumava guardar segredos, mas acarinhava tanto meu "romance de amor", como o descrevia para mim mesma, e ele parecia tão frágil e provavelmente cheio de decepções que até mesmo falar sobre ele poderia dar-lhe azar. Pelo que sabia, eu poderia ser apenas uma namorada de uma fileira inteira de namoradas de Derek. Ele era tão atraente e tão formidável, pelo menos na escola, que eu imaginava uma longa fila de irmãs de "Mayfair", todas de organdi e todas com títulos, à sua disposição. Por isso, disse simplesmente que queria procurar emprego e que talvez fosse mais tarde. No devido tempo, Susan foi para o norte e chegou uma quinta carta de Derek, perguntando se eu queria no próximo sábado tomar o trem do meio-dia em Paddington que ele me esperaria com o carro na estação de Windsor.
E assim começou nossa regular e deliciosa rotina. No primeiro dia, ele me esperou na plataforma. Estávamos bastante acanhados, mas ele se sentia tão entusiasmado com seu carro que me levou depressa para vê-lo. Era maravilhoso - preto com estofamento de couro vermelho, rodas vermelhas de arame e toda espécie de bugigangas de corrida, com uma I tira ao redor da tampa do motor, uma tampa muito grande no tanque de gasolina e o distintivo do B. R. D. C. Subimos no carro e eu amarrei o lenço de seda colorida de Derek em volta de meus cabelos. O escapamento fez um maravilhoso barulho sensual quando aceleramos através das luzes de High Street e viramos para subir ao longo do rio. Naquele dia ele me levou até Bray, para exibir o carro, e disparamos pelas pistas com Derek fazendo mudanças de marcha absolutamente desnecessárias nas curvas mais abertas. Sentada tão perto do chão, mesmo a oitenta quilômetros a gente sentia como se estivesse pelo menos a cento e cinqüenta. No começo agarrei-me à alça de segurança no painel e rezei para que nada acontecesse. Mas Derek era bom motorista. Logo adquiri confiança nele e controlei meus tremores. Levou-me a um lugar terrivelmente fino, o Hotel de Paris, onde comemos sal-mão defumado que custa caro, frango assado e sorvete. Depois ele alugou uma canoa elétrica na casa de barcos próxima e nós subimos serenamente o rio, passamos por baixo da Ponte de Maidenhead e encontramos um pequeno remanso, logo deste lado da Cookham Lock, onde Derek conduziu a canoa até bem embaixo dos ramos das árvores. Ele tinha levado um gramofone portátil e eu me arrastei para seu lado da canoa. Sentamo-nos e depois nos deitamos lado a lado, ouvindo os discos e observando um pequeno pássaro que saltava na rede de ramos sobre nossas cabeças. Era uma bela e sonolenta tarde. Beijamo-nos, mas não fomos além disso e senti-me tranqüilizada pela idéia de que Derek afinal de contas não pensava que eu fosse "fácil". Mais tarde chegaram os mosquitos e quase viramos a canoa ao tentar sair do remanso em marcha-a-ré, mas depois descemos o rio velozmente ajudados pela correnteza. Havia muitos outros barcos com casais e famílias, mas eu estava absolutamente certa de que parecíamos o mais alegre e bonito de todos. Voltamos e fomos até Eton, onde comemos ovos mexidos e tomamos café em um lugar chamado "The Thatchet House", que Derek conhecia. Depois ele sugeriu que fôssemos ao cinema.
O "Royalty Kinema" ficava em Farquhar Street, uma das pequenas ruas que levam do Castelo à estrada de Ascot. Era um cinema de aparência modesta, exibindo dois "westerns", um desenho e um suposto "jornal", que consistia no que a Rainha havia feito um mês antes. Percebi por que Derek o havia escolhido quando ele pagou doze xelins por um camarote. Havia um camarote de cada lado da cabina de projeção, com um metro e oitenta de lado mais ou menos, escuro e com duas cadeiras. Logo que entramos, Derek puxou sua cadeira para perto de mim e começou a beijar-me e tatear-me. A princípio, pensei: "Oh, meu Deus! É aqui que ele as traz?" Mas um pouquinho depois eu me senti derretendo. Suas mãos exploravam-me vagarosamente. Eram delicadas e pareciam saber. Depois chegaram lá. Escondi meu rosto em seu ombro e mordi os lábios com o esquisito formigamento. Em seguida, estava tudo acabado e fiquei inundada de calor. As lágrimas escorreram sozinhas de meus olhos e molharam o colarinho de sua camisa.
Ele me beijou delicadamente, segredou que me amava e que eu era a garota mais maravilhosa do mundo. Mas eu me endireitei na cadeira, afastei-me dele, esfreguei os olhos, tentei assistir ao filme e refleti que havia perdido minha virgindade, ou alguma espécie de virgindade, e que agora ele nunca mais me respeitaria. Mas depois chegou o intervalo, ele me comprou um sorvete, descansou o braço no encosto de minha cadeira, segredou que esse era o dia mais maravilhoso de sua vida e que deveríamos repetir esse dia muitas e muitas vezes. E eu disse a mim mesma que não fosse tola. Aquilo era apenas bolinagem. Toda gente fazia isso e, afinal de contas, fora maravilhoso e não era o mesmo que se eu fosse ter um filho ou coisa semelhante. Além disso, os rapazes gostam de bolinar e, se eu não fizesse isso com ele, encontraria outra moça que o faria. Por isso, quando as luzes se apagaram de novo e suas mãos voltaram, pareceu natural que procurassem meus seios e que isso me excitasse. Quando ele sussurrou que agora eu devia fazer para ele, deixei que tomasse minha mão e pusesse nele. Mas eu não sabia como era, estava desajeitada e envergonhada, e ele precisou ajudar. Mas depois sua respiração tornou-se ofegante sobre meu pescoço e ele disse: "Oh, querida!" em um suspiro demorado. Senti uma pontada de excitação por ter-lhe dado o mesmo prazer que me dera. Agora que ambos havíamos sentido aquilo, era como se tivesse caído uma barreira entre nós. Senti-me maternal em relação a ele e beijei-o. A partir desse momento, éramos amigos de uma espécie diferente.
Ele me levou de volta à estação apanhar o último trem para Londres. Combinamos encontrarmo-nos à mesma hora no sábado seguinte. Ele ficou em pé na plataforma, acenando-me enquanto pude vê-lo sob as luzes amarelas daquela estação querida. Assim começou nosso verdadeiro caso de amor. Era sempre igual, com lugares às vezes diferentes para almoço e chá, o rio, o gramofone, o pequeno camarote no cinema, mas agora havia também a excitação adicional do aspecto físico e sempre, no barco, no carro, no cinema, as mãos de cada um de nós estavam no corpo do outro, mais demoradas, mais peritas, à medida que o interminável verão entrava em setembro.
Na minha lembrança daqueles dias o sol está sempre brilhando e os salgueiros mergulham em água tão límpida e clara quanto o céu. Cisnes nadavam à sombra dos choupos e andorinhas mergulhavam e raspavam a água, enquanto o Tâmisa descia correndo de Queens Eyot, passava por Boveney Lock e Coocoo Weir, onde costumávamos tomar banho, e continuava descendo pelo longo trecho que atravessa as campinas de Brocas em direção à ponte de Windsor. Certamente deve ter chovido, deve ter havido barulhentos veranistas congestionando nosso rio, deve ter havido nuvens em nosso céu particular, mas se houve, não me lembro. As semanas corriam como o rio, cintilantes, luminosas, cheias de encanto.
Depois chegou o último sábado de setembro. Embora até então tivéssemos ignorado o fato, um novo capítulo precisava ser iniciado. Susan ia voltar ao apartamento na segunda-feira, eu tinha uma oportunidade de emprego e Derek precisava ir para Oxford. Fingíamos que tudo continuaria a mesma coisa. Eu explicaria a Susan e haveria fins de semana em que poderia ir a Oxford ou Derek vir a Londres. Não discutíamos nosso caso. Era evidente que ia continuar. Derek havia falado vagamente em apresentar-me a seus pais, mas nunca insistira nisso e em nossos sábados juntos havia sempre tantas coisas a fazer! Talvez eu achasse um pouco estranho que Derek parecesse não ter tempo para mim durante a semana, mas ele jogava muito cricket e tênis, e tinha uma legião de amigos, todos muito chatos, segundo dizia. Eu não queria misturar-me com esse lado de sua vida, pelo menos no momento. Sentia-me feliz em tê-lo inteiramente para mim em nosso único dia de cada semana. Não desejava partilhá-lo com uma multidão de outras pessoas, que de qualquer maneira iam deixar-me acanhada. Assim, as coisas foram deixadas muito no ar e eu não olhava para além do sábado seguinte.
Naquele dia Derek estava particularmente afetuoso e à tarde levou-me ao Bridge Hotel, onde tomamos três rodadas de gim com tônica, embora geralmente não bebêssemos. Depois insistiu em pedir champanha no jantar e quando chegamos ao nosso cineminha ambos já estávamos bem "altos". Eu estava alegre, porque isso me fazia esquecer que no dia seguinte seria virada uma nova página e interrompidas todas as nossas queridas rotinas. Mas quando entramos em nosso pequeno camarote, Derek estava taciturno. Não me tomou nos braços como de hábito, mas sentou-se um pouco distante de mim, fumou e assistiu ao filme. Aproximei-me dele e segurei-lhe a mão, mas se limitou a ficar sentado olhando bem para a frente. Perguntei-lhe o que havia. Depois de um momento, ele disse obstinadamente: "Desejo dormir com você. Direito, quero dizer."
Fiquei chocada. Foi o tom áspero de sua voz. Naturalmente já havíamos falado no assunto, mas sempre concordávamos, mais ou menos, em que isso viria "mais tarde". Usei então os mesmos argumentos antigos, mas estava nervosa e contrariada. Por que queria ele estragar nossa última noite? Respondeu furiosamente aos meus argumentos. Eu era uma virgem renitente. Isso era ruim para ele. Afinal de contas, éramos amantes. Então, por que não agíamos como amantes? Eu disse que sentia medo de ter um bebê. Respondeu-me que isso era fácil. Havia coisas que podíamos usar. Mas por que agora? argumentei. Não podíamos fazer aquilo ali. Oh, sim, podíamos. Havia bastante espaço. E ele queria fazer antes de ir para Oxford. Seria como... como se nos casássemos.
Tremulamente considerei essa idéia. Talvez tivesse alguma coisa de certo. Seria uma espécie de selo de nosso amor. Mas eu estava com medo. Hesitantemente, perguntei se ele tinha alguma daquelas "coisas". Respondeu que não, mas que havia uma farmácia aberta a noite inteira e poderia ir comprar uma. Beijou-me, levantou-se apressadamente e saiu do camarote.
Fiquei sentada olhando estupidamente a tela. Agora não podia recusar! Ele ia voltar e seria complicado e horrível naquele sujo camarote daquele pequeno e sujo cinema. Ia doer e depois ele me desprezaria por ter cedido. Tive o instinto de levantar-me, correr até a estação e tomar o último trem de volta para Londres. Mas isso o deixaria furioso. Feriria sua vaidade. Eu não estaria sendo boa companheira e o ritmo de nossa amizade, baseado principalmente na idéia de ambos "nos divertirmos", seria destruído. E, afinal de contas, seria justo para com ele negar-lhe isso? Talvez fosse realmente ruim para ele não poder fazer aquilo direito. E, afinal de contas, teria de acontecer algum dia. Não se podia escolher o momento perfeito para aquilo. Parece que nenhuma moça sentia prazer na primeira vez. Talvez fosse melhor acabar logo com aquilo. Qualquer coisa, contanto que ele não ficasse zangado! Qualquer coisa seria melhor que o perigo de destruir nosso amor!
A porta abriu-se e uma breve réstia de luz veio do saguão. Depois, ele estava ao meu lado, sem fôlego e excitado."Arranjei", segredou-me."Foi terrivelmente embaraçoso. Havia uma moça por trás do balcão. Eu não sabia o que pedir. Finalmente disse: "Uma daquelas coisas para não ter filhos. Você sabe." Ela nem piscou. Perguntou-me de que qualidade. Respondi que da melhor, naturalmente. Cheguei quase a pensar que ela ia perguntar: "De que tamanho?" Ele riu e me apertou bem. Correspondi com uma risadinha fraca. Era melhor ser boa companheira. Era melhor não fazer um drama daquilo! Ninguém o faz, hoje em dia. Tornaria tudo muito embaraçoso, particularmente para ele.
Suas carícias preliminares foram tão superficiais que quase me fizeram chorar. Depois ele empurrou sua cadeira para o fundo do camarote, tirou o paletó e estendeu-o no chão de madeira. Quando me disse para deitar sobre o paletó, deitei-me. Ele se ajoelhou ao meu lado e tirou minha calça. Disse para eu pôr os pés contra a parte da frente do camarote e eu obedeci. Sentia-me tão apertada e inconfortável que disse: "Não, Derek! Por favor! Aqui não!" Mas não sei como ele já estava em cima de mim em um abraço terrivelmente desajeitado e todo meu instinto foi no sentido de ajudá-lo para que pelo menos sentisse prazer e não ficasse zangado comigo depois.
E então caiu o mundo!
Houve de repente um grande jato de luz amarela e uma voz furiosa disse atrás e em cima de mim: "Que diabo vocês pensam que estão fazendo em meu cinema? Levante-se daí, "sua" porquinha suja!"
Não sei como não desmaiei. Derek estava em pé, com o rosto branco como cal, abotoando desajeitadamente as calças. Levantei-me cambaleante, batendo contra a parede do camarote. Fiquei imóvel, em pé, esperando ser morta, esperando ser fuzilada.
A silhueta preta na porta apontou para minha sacola no chão com a calcinha branca ao lado. "Pegue aquilo". Curvei-me rapidamente como se me tivessem batido, agarrei a calça e fiz com ela uma bola na mão, tentando escondê-la. "Agora, saiam daqui!" Ficou em pé, parado, quase obstruindo a entrada, enquanto passamos por ele, cambaleantes, arrasados.
O gerente fechou com uma batida a porta do camarote e passou à nossa frente, pensando, creio eu, que poderíamos sair correndo. Duas ou três pessoas das últimas fileiras saíram para o saguão. (A platéia inteira devia ter ouvido a voz do gerente. As pessoas sentadas nas poltronas embaixo de nós não teriam ouvido tudo, a discussão, a pausa e depois as instruções de Derek sobre o que eu devia fazer? Estremeci. ) A bilheteira saiu de seu cubículo e um ou dois transeuntes, que estavam examinando os cartazes, embaixo das miseráveis luzes coloridas sobre a porta, olharam para dentro.
O gerente era um homem gordo e moreno, com um terno justo e uma flor na botoeira. Seu rosto estava vermelho de raiva, enquanto nos olhava de alto a baixo. "Molequinhos indecentes!" Virou-se para mim. "Eu já vi vocês aqui antes. Você não é muito melhor que uma prostituta comum. Estou com muita vontade de chamar a polícia. Exibição indecente. Perturbando a ordem." As palavras duras saíam facilmente de sua boca. Devia tê-las usado muitas vezes antes em sua miserável casinha de escuridão privada. "Os nomes, por favor." Tirou uma caderneta do bolso e lambeu um toco de lápis. Estava olhando para Derek. Derek gaguejou: "Ham... James Grant (o astro do filme era Cary Grant). Ham... Acácia Road, 24, Nettlebed." O gerente ergueu os olhos. "Não há rua com esse nome em Nettlebed." Derek respondeu obstinadamente: "Há, sim. No fundo." E acrescentou com voz fraca: "Uma espécie de travessa." "E você?", perguntou o gerente, voltando-se para mim, desconfiado. Minha boca estava seca. Engoli em seco. "Srta. Thompson, Audrey Thompson, Thomas Road (quase disse Thompson, como Derek!) 24 (percebi que era o mesmo número escolhido por Derek, mas não consegui pensar em outro), Londres." "Distrito?" Não entendi o que ele queria dizer. Fiquei olhando-o boquiaberta e desesperada. "Distrito postal?" disse ele impacientemente. Lembrei-me de Chelsea. "S. W. 6", falei com voz fraca. O gerente fechou violentamente a caderneta. "Está bem. Saiam daqui vocês dois." Apontou para a rua. Passamos nervosamente ao seu lado e ele nos seguiu, ainda apontando para a rua. "E nunca mais voltem ao meu estabelecimento! Eu conheço vocês dois! Se aparecerem aqui de novo, tocarei a polícia em cima de vocês."
A pequena legião de olhos zombeteiros e acusadores acompanhou-nos. Tomei o braço de Derek (por que não teria ele tomado o meu?) e saímos, passando por baixo das odiosas luzes brilhantes. Viramos por instinto para a direita e descemos o monte para podermos andar mais depressa. Não paramos até chegar a uma travessa. Entramos nela e vagarosamente começamos a voltar para onde o "MG" estava estacionado no monte acima do cinema.
Derek não disse uma palavra até chegarmos perto do carro. Então falou, com naturalidade: "Não podemos deixar que anotem o número. Eu vou buscá-lo e depois a apanho diante da Fuller, no Windsor Hill. Daqui a uns dez minutos." Soltou-se de meu braço e subiu a rua.
Fiquei olhando a alta e elegante figura, que estava novamente orgulhosa e ereta. Depois, virei-me e voltei até uma avenida que corria paralela à Farquhar Street em direção ao Castelo.
Vi que ainda estava com minha calça apertada na mão. Coloquei-a na sacola. A sacola aberta fez-me pensar em minha aparência. Parei embaixo de um poste e tirei meu espelho. Estava com uma aparência horrível. Meu rosto estava tão branco que era quase verde e meus olhos pareciam os de um animal perseguido. Meus cabelos estavam erguidos atrás, onde rasparam no soalho, e minha boca estava lambuzada pelos beijos de Derek. Estremeci."Porquinha suja!" Como ele tinha razão! Senti-me inteira suja, aviltada, pecaminosa. Que iria acontecer-nos? O homem iria conferir os endereços e pôr a polícia atrás de nós? Alguém certamente se lembraria de nos ter visto naquele dia ou em outros sábados. Alguém se lembraria do número do carro de Derek, algum menino que colecionasse números de automóveis. Sempre havia algum intrometido no local de um crime. Crime? Sim, claro que era, um dos piores na puritana Inglaterra: sexo, nudez, exibição indecente. Imaginei o que o gerente devia ter visto quando Derek se levantou de cima de mim. Ufa! Estremeci de nojo. Mas agora Derek estaria me esperando. Minhas mãos haviam estado automaticamente arrumando o rosto. Dei um último olhar a ele. Era o melhor que podia fazer. Subi correndo a rua e virei para descer o Windsor Hill, encostada à parede, esperando que as pessoas se voltassem e apontassem para mim. "Lá vai ela! É aquela! Porquinha suja!"


4 - "Querida Viv"

AINDA NÃO acabara tudo quanto aquela noite de verão reservava para mim. Diante da Fullers, um policial estava em pé ao lado do carro de Derek, discutindo com ele. Derek virou-se e avistou-me."Aí está ela, "seu" guarda. Eu disse que seria só um minuto. Ela precisava... hum... empoar o nariz. Não é, querida?"
Mais encrencas! Mais mentiras! Eu disse que sim, ofegante, e subi para o banco ao lado de Derek. O policial sorriu maliciosamente para mim e disse a Derek: "Está bem, cavalheiro. Mas da próxima vez lembre-se de que não é permitido estacionar no Hill. Nem mesmo para um caso de emergência como esse." Passou os dedos pelo bigode. Derek engatou o carro, agradeceu ao policial e deu-lhe uma piscadela como se ambos partilhassem de uma piada suja. Finalmente, partimos.
Derek nada disse até virarmos para a direita no farol embaixo. Pensei que ia deixar-me na estação, mas continuou pela Datchet Road."Ufa!" Soltou o ar dos pulmões com alívio."Escapamos por pouco! Pensei que estivéssemos perdidos. Seria bonito meus pais lerem no jornal amanhã. E Oxford!Eu estaria liquidado."
"Foi horrível."
Havia tanto sentimento em minha voz que ele me olhou de lado."Oh, bem. O caminho do verdadeiro amor e tudo o mais." Sua voz era ligeira e fácil. Havia-se refeito. Quando eu me refaria? "É uma pena realmente", prosseguiu ele em tom casual. "Exatamente quando tínhamos tudo preparado." Pôs entusiasmo em sua voz para convencer-me."Vou dizer-lhe uma coisa. Falta uma hora para o trem. Vamos subir pela margem do rio? É um lugar preferido pelos casais de Windsor. Absolutamente sossegado. É uma pena perdermos tudo, tempo etcetera, agora que já nos decidimos."
O "etcetera", pensei eu, era "a coisa" que ele havia comprado. Fiquei horrorizada. Disse urgentemente: "Oh, mas eu não posso, Derek! Simplesmente não posso! Você não faz idéia de como me sinto mal depois do que aconteceu."
Olhou-me rapidamente. "Que quer dizer com mal? Está se sentindo doente ou alguma coisa?"
"Oh, não é isso. É que tudo foi tão horrível. Tão vergonhoso."
"Oh, aquilo?", sua voz era desdenhosa."Nós escapamos, não escapamos? Vamos. Seja uma boa companheira!"
Aquilo de novo! Mas eu queria ser confortada, sentir seu braço enlaçando-me, ter certeza de que ainda me amava, embora tudo tivesse corrido tão mal para ele. Mas minhas pernas começaram a tremer quando pensei em passar novamente por tudo aquilo. Segurei os joelhos com as mãos para controlá-los. E disse com voz fraca: "Oh, bem..."
"Agora você está sendo boazinha!"
Atravessamos a ponte e Derek encostou o carro de um lado. Ajudou-me a atravessar uma cerca para entrar em um campo, pôs o braço em minha cintura e guiou-me pela pequena trilha que passava ao lado de alguns barcos ancorados embaixo dos salgueiros. "Seria bom se tivéssemos um desses", disse ele."Que tal entrarmos em um deles? Adorável cama de casal. Provavelmente há algumas bebidas nos armários."
"Oh, não, Derek! Pelo amor de Deus! Já houve bastante encrenca." Eu já imaginava a voz alta dizendo: "Que está acontecendo aí dentro? Vocês são os donos deste barco? Saiam e deixem que eu dê uma olhada em vocês."
Derek riu. "Talvez você tenha razão. Afinal de contas, a grama é igualmente macia. Você não está excitada? Você vai ver. É maravilhoso. Depois, seremos realmente amantes."
"Oh, sim, Derek. Mas você vai ser delicado, não vai? Eu não vou saber fazer da primeira vez."
Derek apertou-me excitadamente. "Não se preocupe. Eu lhe mostrarei como é."
Estava-me sentindo melhor, mais forte. Era adorável caminhar com ele sob o luar. Mas havia um grupo de árvores à frente e eu olhei para elas atemorizada. Sabia que era ali que ia acontecer. Eu precisava tornar as coisas fáceis e boas para ele!Não devia ser tola!Não devia chorar!
A trilha atravessava o grupo de árvores. Derek olhou em roda. "Lá", disse ele. "Eu vou primeiro. Conserve a cabeça abaixada."
Rastejamos entre os ramos. Havia mesmo uma pequena clareira. Outras pessoas já tinham estado lá. Havia um maço de cigarros e uma garrafa de "Coca-Cola". O musgo e as folhas tinham sido amassados. Tive a impressão de que era uma cama de bordel onde centenas, talvez milhares, de amantes se haviam apertado e lutado. Mas agora não era possível voltar atrás. Pelo menos devia ser um bom lugar para aquilo, uma vez que tantos outros já o haviam usado.
Derek estava ansioso, impaciente. Pôs o paletó no chão para eu deitar-me em cima e começou imediatamente, quase febrilmente, com suas mãos me devorando. Tentei amolecer, mas meu corpo ainda estava tolhido pelos nervos e meus membros pareciam de madeira. Desejei que ele dissesse alguma coisa, mas estava concentrado e preocupado, lidando comigo quase brutalmente, tratando-me como se eu fosse uma grande e desajeitada boneca."Only a Papel Doll, for Me to Call My Own" - os Ink Spots de novo! Eu podia ouvir o baixo profundo de "Hoppy" Jones e o suave contraponto de soprano de Bill Kenny, tão pungentemente suave que fazia vibrar as cordas do coração. E por baixo o fundo pulsar do violão de Charlie Fuqua. Correram lágrimas de meus olhos. Oh, meu Deus, que estava acontecendo comigo? E depois a dor aguda e o rápido grito que abafei depressa. Ele estava deitado em cima de mim, com seu peito pesando e seu coração batendo fortemente contra meus seios. Abracei-o e senti sua camisa úmida sob minhas mãos.
Ficamos assim longos minutos. Observei o luar filtrando-se através dos ramos e tentei conter minhas lágrimas. Então era isso! O grande momento. Um momento que eu nunca mais voltaria a ter. Agora era uma mulher e a mocinha desaparecera! E não sentira o menor prazer, só dor, como todos diziam. Mas restava alguma coisa. Este homem nos meus braços. Apertei-o bem contra mim. Eu era sua agora, inteiramente sua, e ele era meu. Ele cuidaria de mim. Pertencíamos um ao outro. Agora eu nunca mais ficaria sozinha. Agora nós éramos dois.
Derek beijou meu rosto úmido e levantou-se cambaleante. Estendeu as mãos e, depois de eu ter puxado minha saia para baixo, ajudou-me a levantar. Olhou para meu rosto e havia embaraço em seu meio sorriso. "Espero que não tenha doído muito."
"Não. Mas foi bom para você?"
"Oh, sim, muito."
Ele se curvou e apanhou seu paletó. Olhou para o relógio. "Puxa! Faltam só quinze minutos para a hora do trem! É melhor irmos andando."
Rastejamos de volta à trilha e, enquanto andávamos, passei um pente por meus cabelos e limpei minha saia. Derek caminhava em silêncio ao meu lado. Seu rosto sob o luar estava agora fechado e, quando enfiei meu braço no seu, não houve pressão correspondente. Desejava que ele fosse afetuoso, que falasse sobre nosso próximo encontro, mas pude sentir que ficara repentinamente reservado, frio. Eu não estava acostumada com a fisionomia dos homens depois que fazem aquilo. Culpei a mim mesma. Não fora suficientemente boa. E tinha chorado. Estragara tudo para ele.
Chegamos ao carro e ele guiou silenciosamente até a estação. Detive-o na entrada. Sob a luz amarela seu rosto estava contraído e tenso. Seus olhos quase não procuravam os meus. "Não precisa ir até o trem, querido", disse eu."Eu posso ir sozinha. E no próximo sábado? Eu poderia ir a Oxford. Ou você prefere esperar até estar instalado?"
Ele disse defensivamente: "O caso é, Viv, que as coisas vão ser diferentes em Oxford. Preciso ver. Eu lhe escreverei."
Tentei ler em seu rosto. Isto era tão diferente de nossas despedidas habituais. Talvez ele estivesse cansado. Deus sabia como eu estava cansada! "Sim, naturalmente", disse eu."Mas escreva logo, querido. Gostaria de saber como você vai indo." Ergui o rosto e beijei-o nos lábios. Seus lábios mal retribuíram.
Ele acenou com a cabeça. "Bem, até logo, Viv", disse e, com uma espécie de sorriso amarelo, virou-se e partiu, dando a volta à esquina para chegar a seu carro.

*

Foi duas semanas depois que recebi a carta. Escrevera duas vezes, mas não recebera resposta. Desesperada, chegara a telefonar, mas o homem que atendeu deixou o telefone e depois voltou para dizer que o Sr. Mallaby não estava em casa.
A carta começava assim: "Querida Viv, esta vai ser uma carta difícil de escrever." Depois de ter lido isso, fui para meu quarto, fechei a porta com chave, sentei-me na cama e reuni coragem. A carta prosseguia dizendo que fora um verão maravilhoso e que ele jamais me esqueceria. Mas agora sua vida mudara, ia ter muito trabalho a fazer e não haveria muito tempo para "garotas". Falara a meu respeito com seus pais, mas eles haviam desaprovado nosso "caso". Tinham dito que não era direito um rapaz andar com uma moça se não ia casar-se com ela."Eles são terrivelmente insulares, acho eu, e tem idéias ridículas a respeito de "estrangeiros", embora Deus saiba que eu considero você exatamente igual a qualquer outra moça inglesa e você saiba que eu adoro seu sotaque."Eles estavam decididos a casá-lo com a filha de um vizinho no campo."Nunca lhe falei sobre isso e acho que foi muita maldade minha, mas na verdade estamos mais ou menos noivos. Nós passamos um tempo tão maravilhoso, juntos e você foi tão boa companheira que eu não quis estragar tudo." Depois disse que esperava muito que nos encontrássemos de novo um dia e, entrementes, pedira à Fortnum's que me mandasse uma dúzia de garrafas de champanha róseo, "da melhor", para lembrar-me da primeira vez em que nos encontráramos."E espero que esta carta não a aflija muito, Viv, pois realmente acho que você é a garota mais maravilhosa, boa demais para alguém como eu. Com muito amor e felizes lembranças, Derek."
Bem, demorou apenas dez minutos para dilacerar meu coração e mais uns seis meses para remendá-lo. Relatos das dores e sofrimentos alheios são desinteressantes porque se assemelham aos de todos os outros, por isso não entrarei em detalhes. Nem contei a Susan. Do meu ponto de vista, eu me portara como uma prostituta, desde a primeira noite, e fora tratada como uma prostituta. Naquele mundozinho fechado da Inglaterra, eu era uma canadense e portanto uma estrangeira, uma intrusa - caça lícita. O fato de não ter visto que isso ia acontecer-me fora tolice minha. Nascida ontem! É melhor ficar esperta senão sairá machucada! Mas por baixo dessa racionalização de olhos abertos e cabeça erguida, a mocinha que havia dentro de mim choramingava e encolhia-se. Chorei à noite durante algum tempo e fui ajoelhar-me diante da Santa Madre que eu havia abandonado e rezei para que Ela me devolvesse Derek. Mas naturalmente Ela não devolveu e meu orgulho proibia-me de implorar a ele ou dar prosseguimento ao curto bilhete com que acusei o recebimento de sua carta e à devolução do champanha à Fortnum's. O interminável verão havia terminado. Tudo quanto restava eram algumas pungentes lembranças dos Ink Spot e a marca do pesadelo no cinema em Windsor, marca que eu sabia ter de carregar durante toda minha vida.
Tive sorte. O emprego que eu vinha tentando arranjar apareceu. Foi através do costumeiro amigo de um amigo e foi no "Chelsea Clarion", um elogiado jornal de paróquia que se dedicava a pequenos anúncios e se firmara como uma espécie de mercado para pessoas que procuravam apartamentos, quartos e empregadas na parte sudoeste de Londres. Incluía algumas páginas de redação que só tratavam de problemas locais - os novos e hediondos postes de iluminação, os raros ônibus da Linha 11, o furto de garrafas de leite - coisas que realmente afetavam as donas de casa locais. Publicava também uma página inteira de mexericos locais, principalmente de "Chelsea", que "todos" acabavam lendo e que não sei como conseguia fugir a processos por difamação. Incluía ainda um veemente editorial em linhas de "Lealdade ao Império", que convinha exatamente à política do bairro e, para seguir a boa norma, era elegantemente paginado cada semana (era semanário) por um homem chamado Harling, um crânio para obter o máximo dos antiquados tipos que era tudo quanto tinham nossos impressores da era do vapor em Pimlico. De fato, era um jornalzinho muito bom. O pessoal gostava tanto dele que trabalhava por uma miséria e até mesmo por nada quando os anúncios não apareciam em épocas como agosto ou depois das festas. Eu ganhava cinco libras por semana (não éramos sindicalizados, pois não éramos suficientemente importantes para isso), mais comissão em todo anúncio que conseguisse arranjar.
Assim, guardei silenciosamente os fragmentos de meu coração em um lugar qualquer embaixo das costelas e decidi passar sem coração no futuro. Contava com o cérebro, coragem e sola de sapato para mostrar àqueles malditos esnobes ingleses que, se não podia conseguir outra coisa com eles, pelo menos podia tirar deles meu sustento. Por isso, pus-me a trabalhar de dia e chorar de noite, tornando-me o principal camelo do jornal. Fazia chá para o pessoal, ia aos enterros e anotava certo os nomes dos acompanhantes, escrevia tópicos apimentados para a página de mexericos, dirigia a coluna de concursos e até mesmo conferia as chaves das palavras cruzadas antes de serem compostas. E, nos intervalos, corria a vizinhança, arrancando anúncios das mais duras lojas, hotéis e restaurantes, amontoando meus vinte por cento com a velha e teimosa escocesa que cuidava da contabilidade. Em pouco tempo estava ganhando bom dinheiro - de doze a vinte libras por semana - e o editor achou que faria economia estabilizando-me com o salário de quinze libras. Por isso, instalou-me em um cubículo ao lado do seu e eu me tornei sua assistente editorial, o que aparentemente incluía o privilégio de dormir com ele. Mas na primeira vez em que beliscou meu traseiro, disse-lhe que era noiva de um homem no Canadá e, ao dizer-lhe isso, olhei-o tão furiosamente nos olhos que ele entendeu a mensagem e me deixou em paz. Gostei dele e desde então nos demos maravilhosamente bem. Era um ex-repórter de Beaverbrook chamado Len Holbrook, que herdara um pouco de dinheiro e decidira entrar no negócio por conta própria. Era galense e, como todos os galenses, tinha algo de idealista. Decidira que, se não podia mudar o mundo, podia pelo menos fazer um começo em Chelsea. Comprou o arruinado "Clarion" e começou a desferir golpes a torto e a direito. Tinha um informante no Conselho e outro na organização local do Partido Trabalhista. Teve um belo começo quando revelou que um construtor ordinário obtivera contrato para a construção de um novo conjunto de apartamentos do Conselho e estava construindo sem atender às especificações - deixando de pôr aço suficiente no concreto ou coisa semelhante. Os jornais de circulação nacional encamparam a história, com muito cuidado porque cheirava a difamação. Por sorte começaram a aparecer rachas nas paredes e foram tiradas fotografias. Houve um inquérito; o construtor perdeu seu contrato e sua licença, e o "Clarion" pôs sobre seu título um São Jorge com o Dragão em vermelho. Houve outras campanhas, como as que mencionei antes, e de repente o povo começou a ler o jornalzinho, que aumentou o número de páginas e logo estava com uma tiragem de uns quarenta mil exemplares. Os jornais de circulação nacional roubavam regularmente suas matérias e em troca citavam-no às vezes como fonte da informação.
Bem, eu me instalei em meu novo emprego de "Assistente do Editor" e passei a escrever mais e andar menos. No devido tempo, depois de lá ter ficado um ano, comecei a assinar."Vivienne Michel" tornou-se então uma personalidade pública e meu salário subiu para vinte guinéus. Len gostou da maneira como eu lidava com as coisas e como não tinha medo de gentes Ensinou-me muita coisa sobre como escrevei - truques como prender o leitor com o período de abertura usar frases curtas, evitar inglês "bom" e, acima de tudo, escrever sobre gente. Isso ele havia aprendido no "Express" e estava sempre martelando em minha cabeça. Por exemplo, tinha uma fobia pelas linhas de ônibus 11 e 22, que estava sempre perseguindo. Comecei uma de minhas numerosas matérias sobre essas linhas assim: "Os motoristas da Linha 11 queixam-se de que precisam trabalhar em horário muito apertado nas horas de grande movimento." Len riscou tudo com seu lápis. "Gente, gente, gente!", exclamou ele. "É assim que deve ser: "Frank Donaldson, um esperto jovem de vinte e sete anos, tem uma esposa, Gracie, e dois filhos, Bill, de seis anos, e Emily, de cinco anos. E tem uma queixa. "Não vejo meu filhos à noite desde as férias do verão", contou-me ele na bem arrumada salinha de sua casa em Bolton Lane, 36. "Quando chego em casa, eles estão sempre dormindo. Como sabe, sou motorista, da Linha 11, e temos trabalhado uma hora além do normal desde quando entraram em vigor os novos horários." Len interrompeu-se."Entendeu o que eu quero dizer? Há gente guiando esse ônibus. E gente é mais interessante que os ônibus. Agora, vá descobrir um Frank Donaldson e faça essa sua história parecer viva." Coisa ordinária, acho eu, ângulos surrados, mas isso é jornalismo. Eu estava no ofício, fiz o que ele me mandava e minha matéria começou a atrair cartas - dos Donaldsons do bairro, de suas esposas, de seus colegas. E os editores parecem adorar cartas. Cartas fazem um jornal parecer movimentado e lido.
Fiquei no "Clarion" mais dois anos, até estar com pouco mais de vinte e um anos. Então já estava recebendo propostas dos jornais de circulação nacional, do "Express" e do "Mail". Pareceu-me que era tempo de deixar o S. W. 3 e cair no mundo. Ainda estava morando com Susan. Ela arranjara um emprego no Ministério do Exterior, em algo chamado "Comunicações", sobre o qual se mostrava muito sigilosa. Tinha um namorado no mesmo departamento e eu sabia que não demoraria muito para ficarem noivos e para ela querer o apartamento inteiro. Minha vida privada era um vácuo - um negócio de vagas amizades e semiflertes, dos quais eu sempre recuava. Estava em perigo de tornar-me uma moça de vida profissional, insensível, embora bem sucedida, fumando cigarros demais, bebendo vodca com tônica demais e comendo sozinha alimentos enlatados. Meus deuses ou, melhor, deusas (Katharine Whitehorn e Penelope Gilliatt estavam fora de minha órbita) eram Drusilla Beyfus, Verônica Papworth, Jean Campbell, Shirley Lord, Barbara Griggs e Anne Sharpley - as grandes jornalistas - e eu só desejava ser tão boa quanto qualquer delas e nada mais no mundo.
Foi então que, em uma festa da imprensa em benefício de um Festival Barroco em Munique, conheci Kurt Rainer, da V. W. Z.


5 - Um pássaro de asa caída

A CHUVA ainda caía forte, sem mudança em sua violência. O jornal das oito horas continuava sua conversa de devastações e desastres - um acidente múltiplo na Rota 9, linhas férreas inundadas em Schenectady, tráfego paralisado em Troy, probabilidade de chuva forte ainda por várias horas. A vida americana é completamente desorganizada por tempestades, neve e furacões. Quando os automóveis americanos não podem mover-se, a vida paralisa-se e, quando seus famosos horários não podem ser obedecidos, os americanos entram em pânico e caem em uma espécie de paroxismo de frustração, cercando estações ferroviárias, congestionando as linhas telefônicas interurbanas, conservando seus rádios permanentemente ligados para obter alguma migalha de conforto. Eu podia imaginar o caos nas estradas e nas cidades, e abraçava-me à minha confortável solidão.
Minha bebida estava quase no fim. Conservei-a viva com mais alguns cubos de gelo, acendi outro cigarro e acomodei-me de novo em minha poltrona, enquanto um "disc jockey" anunciava meia hora de jazz de Dixieland.
Kurt não gostava de jazz. Considerava-o decadente. Fez também com que eu parasse de fumar, de beber, e de usar batom. A vida tornou-se um sério negócio de galerias de arte, e salões de concerto e conferências. Em contraste com minha vida sem sentido e bastante vazia, foi uma mudança agradável e atrevo-me a dizer que a dieta do teutonismo atraiu a forte seriedade que há no fundo do caráter canadense.
V. W. Z., "Verband Westdeutscher Zeitung", era uma agência noticiosa independente financiada por uma cooperativa de jornais da Alemanha Ocidental, mais ou menos nas linhas da "Reuters". Kurt Rainer era seu primeiro representante em Londres e quando o conheci estava procurando um auxiliar inglês para ler os diários semanários, e procurar assuntos de interesse para os alemães, enquanto ele cuidava da matéria diplomática de alto nível e cobria os acontecimentos externos. Levou-me jantar naquela noite, no "Schmidts" em Charlotte Street, e mostrou-se encantadoramente sério quanto à importância de seu trabalho e a significação que poderia ter para as relações anglo-alemãs. Era um tipo de homem robusto e rústico, cujos brilhantes cabelos louros e ingênuos olhos azuis faziam com que não parecesse ter seus trinta anos. Disse-me que provinha de Augsburg, perto de Munique, que era filho único, que seu pai e sua mãe eram médicos, tendo sido ambos salvos de um campo de concentração pelos americanos. Haviam sido delatados e presos por ouvir a rádio aliada e por impedir que o pequeno Kurt entrasse no Movimento da Juventude Hitlerista. Fora educado na Escola Secundária e na Universidade de Munique. Depois ingressara no jornalismo, formando-se no "Die Welt", o maior jornal alemão, onde fora escolhido para esse emprego em Londres por falar bem inglês. Perguntou-me o que eu fazia e no dia seguinte fui a seu escritório de duas salas na Chancery Lane e mostrei-lhe alguns de meus trabalhos. Com típica meticulosidade já se informara a meu respeito por intermédio de amigos do Clube de Imprensa e uma semana depois eu estava instalada na sala vizinha à sua com os receptores telegráficos da "P. A./Reuter" e "Exchange Telegraph" martelando ao lado de minha mesa. Meu salário era maravilhoso - trinta libras por semana - e logo comecei a gostar do trabalho, particularmente de operar o telex com nosso Zentrale em Hamburg e da corrida duas vezes por dia para apanhar o fechamento dos jornais alemães matutinos e vespertinos. Meu desconhecimento do alemão era apenas ligeira desvantagem, pois, afora os artigos de Kurt que ele transmitia pelo telefone, toda minha matéria ia pelo telex em inglês e era traduzida do outro lado. Os operadores de telex em Hamburgo conheciam inglês suficiente para tagarelar comigo através da máquina. Era um trabalho bastante mecânico, mas a gente precisava ser rápida e precisa. Era divertido julgar o sucesso ou fracasso do que eu mandava pelos recortes alemães que vinham alguns dias depois. Em pouco tempo Kurt adquiriu confiança suficiente para me deixar sozinha tomando conta do escritório e havia pequenas e excitantes emergências que eu tinha de enfrentar sozinha com a emoção de saber que vinte editores na Alemanha dependiam de minha rapidez e correção. Tudo parecia muito mais importante e responsável que as trivialidades medíocres do "Clarion" e eu gostava da autoridade das instruções e decisões de Kurt, combinadas com o constante ar de urgência do trabalho em agência noticiosa.
No devido tempo, Susan casou-se e eu me mudei para quartos mobiliados na Bloomsbury Square, no mesmo prédio que Kurt. Fiquei em dúvida se essa era uma boa idéia, mas ele era tão korrekt e nossa relação era tão kameradschaftlich - palavras que ele empregava constantemente ao referir-se a situações sociais - que pensei estar sendo pelo menos razoavelmente sensata. Foi muita tolice minha. Além de Kurt provavelmente interpretar mal a facilidade com que aceitei sua sugestão para arranjar um lugar no mesmo prédio seu, tornou-se natural que voltássemos para casa juntos ao sair do escritório, que ficava perto. Os jantares juntos passaram a ser,mais freqüentes. Depois, para fazer economia, ele levava seu gramofone para minha sala de estar e eu cozinhava alguma coisa para nós dois. Naturalmente, vi o perigo e inventei vários amigos com quem encontrar-me à noite. Mas isso significava ficar sentada sozinha em algum cinema depois de uma refeição solitária com todo o aborrecimento de homens tentando apanhar-me. Kurt continuava tão korrekt e nossas relações continuavam em nível tão direito e digno que minhas apreensões chegavam a parecer idiotas e cada vez mais eu aceitava um modo de vida de camaradagem que parecia não só "absolutamente respeitável, mas também adulto à maneira moderna. Sentia-me ainda mais confiante porque, depois de três meses dessa existência pacífica, Kurt, ao voltar de uma visita à Alemanha, contou-me que havia ficado noivo. A noiva era uma amiga de infância chamada Trude e, pelo que me contou, os dois combinavam idealmente. Ela era filha de um professor de filosofia de Heidelberg, e os olhos plácidos que fitavam para fora dos instantâneos que ele me mostrou, as lustrosas trancas de cabelos e o vestido bem arrumado eram um anúncio de "Kinder, Kirche, Küche".
Kurt envolveu-me estreitamente em toda a história, traduzindo as cartas de Trude para mim, discutindo o número de filhos que teriam e pedindo-me conselhos sobre a decoração do apartamento que planejavam comprar em Hamburgo quando tivessem terminado seus três anos de serviço em Londres e economizado dinheiro suficiente para o casamento. Tornei-me uma espécie de Tia Universal dos dois e teria achado o papel ridículo se tudo não parecesse tão natural e divertido - como ter duas grandes bonecas com que brincar de "Casamento". Kurt planejara minuciosamente até mesmo sua vida conjugai e os detalhes que, quase perversamente, ele insistia em partilhar comigo eram a princípio embaraçosos e depois, por ele tratar tão clinicamente de toda a questão, altamente educativos. Na lua-de-mel em Veneza (todos os alemães vão passar a lua-de-mel na Itália) fariam naturalmente o negócio toda noite porque, dizia Kurt, era muito importante que "o ato" fosse tecnicamente perfeito e, para conseguir isso, tornava-se necessária muita prática. Com esse propósito, tomariam um jantar leve, porque não era conveniente estar com o estômago cheio, e se retirariam nunca depois das onze horas porque era importante dormir pelo menos oito horas para "recarregar as baterias". Trude, disse ele, ainda não despertara e tendia a ser sexualmente kühl, enquanto ele tinha temperamento apaixonado. Por isso, precisaria haver muitas carícias preliminares para elevar a curva da paixão dela ao nível da sua. Isso exigiria dele muito controle e nessa questão teria de ser firme consigo mesmo, pois, como me disse, era essencial a um casamento feliz que os dois chegassem simultaneamente ao clímax. Só assim os emocionantes cumes do Ekstase poderiam tornar-se propriedade igual de ambos. Depois- da lua-de-mel, dormiriam juntos nas quartas-feiras e sábados. Fazer isso com mais freqüência enfraqueceria suas "baterias" e poderia reduzir sua eficiência no Büro. Tudo isso Kurt ilustrava com uma riqueza de palavras científicas das mais explícitas e até mesmo com diagramas, e desenhos feitos sobre a toalha da mesa com um garfo.
As preleções, pois eram preleções, convenceram-me de que Kurt era um amante de excepcional finura. Tive de admitir que estava fascinada e quase com inveja das delícias bem regulares e absolutamente higiênicas que eram preparadas para Trude. Havia noites em que eu almejava que essas experiências fossem minhas e que alguém tocasse em mim, conforme dizia Kurt, como "um grande violinista tocando em seu instrumento". Acho que era inevitável que em meus sonhos fosse Kurt que vinha a mim nesse papel - tão seguro, tão delicado, tão profundamente compreensivo no que se referia às necessidades físicas de uma mulher.
Os meses passaram e gradualmente o tom e a freqüência das cartas de Trude começaram a mudar. Fui eu que notei primeiro, mas nada disse. Havia queixas mais freqüentes e acerbas pelo comprimento do período de espera, as passagens ternas tornaram-se mais superficiais e os prazeres de umas férias de verão no Tegernsee, onde Trude conhecera um "grupo alegre", depois da primeira e entusiástica descrição, não foram mais mencionadas, fato significativo em meu entender. Depois, após três semanas de silêncio de Trude, Kurt apareceu uma noite em meus aposentos, com o rosto pálido e úmido de lágrimas. Eu estava deitada no sofá, lendo, e ele caiu de joelhos ao meu lado e enterrou a cabeça em meu peito. Estava tudo acabado, disse-me entre soluços. Ela conhecera outro homem, no Tegernsee naturalmente, um médico de Munique, viúvo. Ele a pedira em casamento e ela aceitara. Fora amor à primeira vista. Kurt devia compreender que essas coisas só acontecem uma vez na vida de uma moça. Devia perdoá-la e esquecê-la. Ela não o merecia. (Ah! Essa esfarrapada frase de novo!) Deviam continuar sendo amigos dignos. O casamento seria no mês seguinte. Kurt devia tentar desejar-lhe felicidades. Adeus, abjeta Trude.
Os braços de Kurt enlaçavam-me e ele me segurava desesperadamente. "Agora só tenho você", disse entre soluços. "Você precisa ser boa. Precisa consolar-me."
Alisei seus cabelos o mais naturalmente que pude, imaginando como escapar de seu abraço, mas ao mesmo tempo amolecendo diante do desespero desse homem forte e de sua dependência em relação a mim. Tentei dar um tom natural à minha voz. "Bem, para dizer a verdade, você teve sorte de escapar. Uma moça tão volúvel assim não teria sido boa esposa para você. Há muitas outras moças melhores na Alemanha." "Vamos, Kurt", disse eu, esforçando-me por sentar. "Vamos jantar e ir ao cinema. Isso fará você esquecer. Não adianta lastimar-se pelo que já foi. Vamos!" Soltei-me quase sem fôlego e ambos nos levantamos.
Kurt baixou a cabeça. "Ah, você é muito boa para mim, Viv. É uma verdadeira amiga na necessidade - eine echte Kameradin. E tem razão. Não devo portar-me como um molóide. Você teria vergonha de mim. E eu não poderia suportar isso." Deu-me um olhar torturado, encaminhou-se para a porta e saiu.
Duas semanas depois éramos amantes. Era coisa inevitável. Eu quase sabia que seria assim e nada fiz para fugir ao meu destino. Não estava apaixonada por ele, mas havíamos ficado tão íntimos em outros sentidos que o passo seguinte de dormir juntos deveria seguir-se inexoravelmente. Os detalhes foram realmente bastante insípidos. O ocasional beijo amistoso na face, como em uma irmã, aproximou-se gradualmente da boca e um dia estava sobre ela. Houve uma pausa na campanha, enquanto eu me acostumava a essa espécie de beijo, depois veio o suave assalto aos meus seios e em seguida ao meu corpo, tudo tão agradável, tão calmo, tão desprovido de drama. Depois, certa noite em minha sala de estar, o lento despir de meu corpo "porque preciso ver como você é bela", os protestos fracos, quase lânguidos, e em seguida a operação científica que fora preparada para Trude. E como foi deliciosa, na maravilhosa intimidade de meu próprio quarto! Como foram seguras, sem pressa, tranqüilizadoras as precauções! E como Kurt foi forte e gentil, divinamente delicado em todas as coisas ligadas ao ato de amor! Uma única flor depois de cada vez, o quarto arrumado após o êxtase apaixonado, meticulosa correção no escritório e diante de outras pessoas, nunca uma palavra áspera ou mesmo suja - era como que uma série de esquisitas operações feitas por um cirurgião com a maior delicadeza do mundo. Naturalmente, era tudo quase impessoal. Mas eu gostava disso. Era sexo sem envolvimento ou perigo, uma deliciosa intensificação da rotina do dia que toda vez me deixava mole e excitada como uma gata mimada.
Eu podia ter percebido ou adivinhado que, pelo menos entre mulheres amadoras em contraposição a prostitutas, não há amor físico sem envolvimento emocional - depois de um longo período, quero dizer. A intimidade física é meio caminho para o amor e a escravização é grande parte da outra metade. Evidentemente, meu espírito e muito de meus instintos não entravam em nossas relações. Permaneciam latentes, venturosamente latentes. Mas meus dias e minhas noites estavam tão cheios desse homem, eu dependia dele para tanta coisa durante as vinte e quatro horas, que teria sido quase desumano não adquirir alguma espécie de amor por ele. Repetia a mim mesma que ele não tinha humor, que era impessoal, que não achava graça no amor, que parecia de madeira e, finalmente, que era excessivamente alemão, mas isso não alterava o fato de eu ouvir seus passos na escada, adorar o calor e a autoridade de seu corpo e ser sempre feliz em cozinhar, remendar e trabalhar para ele. Admitia para mim mesma que me estava tornando um vegetal, uma dócil Hausfrau, andando, imaginàriamente, seis passos atrás dele na rua como um carregador nativo, mas tinha também de admitir que era feliz, contente e despreocupada, que realmente não desejava outra espécie de vida. Havia momentos em que eu desejava fugir do doce e ordenado ciclo dos dias, gritar, cantar e de maneira geral provocar um inferno, mas dizia a mim mesma qua esses impulsos eram basicamente anti-sociais, nada femininos, caóticos e psicologicamente desequilibrados. Kurt fizera-me compreender essas coisas. Para ele, a simetria, o ritmo uniforme, a coisa certa no lugar certo, a voz calma, a opinião medida, amor nas quartas-feiras e sábados (depois de um jantar leve!) eram o caminho da felicidade, que se afastava daquilo que ele descrevia como "O Síndroma Anárquico" - isto é, fumar e beber, fenobarbital, jazz, promiscuidade na cama, carros velozes, emagrecimento, negros e suas novas repúblicas, homossexualismo, a abolição da pena de morte e uma legião de outros desvios que ele descrevia como Naturmenschlichkeit, ou em palavras mais numerosas mas menores, um modo de vida mais semelhante ao das formigas e abelhas. Bem, para mim isso estava tudo muito certo. Eu fora criada na vida simples e me sentia feliz em voltar a ela depois de ter saboreado rapidamente a barulhenta ronda dos bares de Chelsea e o jornalismo escandaloso, para não mencionar meu dramático caso com Derek. Adquiri assim serenamente certa espécie de amor por Kurt.
Depois, inevitavelmente, aconteceu.
Logo após termos começado a fazer amor regularmente, Kurt levara-me a uma médica de confiança, que me dera uma lição simples sobre anticoncepcionais e me preparara. Advertiu-me, porém, que mesmo essas precauções podiam dar errado. E deram. A princípio, esperando pelo melhor, nada disse a Kurt, mas depois, por muitos motivos - o desejo de não carregar sozinha o segredo, a fraca esperança de que ele ficasse satisfeito e me pedisse em casamento, e um genuíno medo de meu estado - contei a ele. Não tinha a menor idéia de como poderia ser sua reação, mas naturalmente esperava ternura, simpatia e pelo menos uma demonstração de amor. Estávamos em pé na porta do meu quarto, preparando-nos para a despedida. Eu tinha pouca coisa sobre o corpo, enquanto ele estava completamente vestido. Quando terminei de contar-lhe, ele tirou calmamente meus braços de seu pescoço, olhou meu corpo de alto a baixo, com o que eu só pude considerar uma mistura de cólera e desprezo, e estendeu a mão para o trinco da porta. Fitou-me friamente nos olhos, disse muito baixinho "Então é isso", saiu do quarto e fechou a porta silenciosamente depois de passar.
Sentei-me na beirada da cama e fiquei olhando para a parede. Que havia eu feito? Que dissera de errado? Que significava o comportamento de Kurt? Depois, enfraquecida pelos pressentimentos, caí na cama e chorei até dormir.
Eu tinha razão de chorar. Na manhã seguinte, quando o procurei embaixo para nossa habitual caminhada até o escritório, ele já saíra. Quando cheguei ao escritório, a porta de comunicação com minha sala estava fechada e quando, depois de um quarto de hora mais ou menos, ele abriu a porta e disse que precisávamos ter uma conversa, seu rosto estava frio como gelo. Entrei em sua sala e sentei-me deixando a mesa entre nós: uma empregada sendo entrevistada pelo patrão - sendo despedida, como vi depois.
A essência de seu discurso, proferido em tom indiferente e impessoal, foi esta. Em uma ligação de camaradagem, como a que tivéramos e que fora realmente muito agradável era essencial que as coisas corressem direito, de maneira ordenada. Tínhamos sido (sim, "tínhamos sido") bons amigos, mas eu devia concordar em que ele nunca falara em casamento, em algo mais permanente que um entendimento satisfatório entre camaradas (essa palavra de novo!). Fora de fato uma relação muito agradável, mas agora, por culpa de uma das partes (acho que eu sozinha!), acontecera aquilo e era preciso encontrar uma solução radical para um problema que continha elementos de embaraço e mesmo de perigo no caminho de nossas vidas. O casamento - infelizmente, pois tinha excelente opinião sobre minhas qualidades e acima de tudo minha beleza física - estava fora de cogitação. Além de outras considerações, ele herdara vigorosas opiniões sobre mistura de sangue (Heil Hitler!) e, quando se casasse, seria na raça teutônica. Em conseqüência, e com sincero pesar, chegara a certas decisões. A mais importante era que eu devia submeter-me a uma operação imediata. Três meses já era uma demora perigosa. Seria coisa simples. Eu voaria para Zurique em um dos hotéis perto da Hauptbahnhof. Qualquer motorista de táxi me levaria do aeroporto até lá. Pediria ao porteiro o nome do médico do hotel - havia médicos excelentes em Zurique - e o consultaria. Ele compreenderia a situação. Todos os médicos suíços compreendiam. Sugeriria que minha pressão arterial era muito alta ou muito baixa, ou que meus nervos não estavam em condições de suportar o esforço do parto. O médico falaria com um ginecologista - havia magníficos ginecologistas em Zurique - e eu visitaria esse homem, que confirmaria o que o médico dissera e assinaria um documento nesse sentido. O ginecologista reservaria um lugar em um hospital e toda a questão estaria resolvida em uma semana. Haveria absoluta discrição. O processo, era perfeitamente legal na Suíça e eu não precisaria sequer mostrar meu passaporte. Poderia dar o nome que quisesse - um nome de casada, naturalmente. O preço, porém, seria elevado. Talvez até cem ou mesmo cento e cinqüenta libras. Isso também fora previsto. Kurt enfiou a mão em sua gaveta, tirou um envelope e estendeu-o através da mesa. Depois de quase dois anos de excelentes serviços, era razoável que eu recebesse um mês de salário em lugar de aviso prévio. Eram cento e vinte libras. De seu bolso, tomara a liberdade de juntar mais cinqüenta libras, para cobrir a passagem de avião, classe de turismo, e sobrar alguma coisa para emergências. Toda a importância estava em Reichsmarks para evitar problemas de câmbio.
Kurt sorriu hesitantemente, esperando meus agradecimentos e congratulações pela sua eficiência e generosidade. Deve ter ficado embaraçado pela expressão de absoluto horror em meu rosto, pois continuou a falar apressadamente. Acima de tudo, eu não devia preocupar-me. Essas coisas infelizes aconteciam na vida. Eram dolorosas e desagradáveis. Ele próprio estava muito consternado por uma relação tão feliz, uma das mais felizes que experimentara, chegar ao fim. Como infelizmente tinha de chegar. Acrescentou finalmente que esperava que eu compreendesse.
Concordei com um aceno de cabeça e levantei-me. Peguei o envelope, dei um último olhar a seus cabelos dourados, à boca que eu amara, aos ombros fortes e, sentindo as lágrimas chegarem, saí rapidamente da sala e fechei devagar a porta depois de passar.
Antes de conhecer Kurt, eu era um pássaro de asa caída. Agora, fora atingida na outra asa.


6 - Vá para oeste, mocinha

No FIM DE AGOSTO, quando isso tudo aconteceu, Zurique estava tão alegre quanto pode ser essa soturna cidade. A água clara e gelada do lago estava cheia de barcos a vela e esquiadores aquáticos, as praias públicas estavam apinhadas de banhistas dourados, a Bahnhofplatz e a Bahnhofstrasse, que era o orgulho da cidade, exibiam a barulhenta Jugend de mochila que tinha negócios a tratar com as montanhas. A sadia e ordeira atmosfera de festa irritava meus nervos sensíveis e enchia meu coração doente de confusa angústia. Este era o modo de Kurt encarar a vida: Naturfreude, a existência simples de animais simples. Ele e eu havíamos partilhado dessa vida e, superficialmente, fora bom. Mas cabelos louros, olhos azuis e pele bronzeada não são mais grossos que a pintura no rosto de uma mulher. São apenas outra espécie de verniz. Reflexão banal, naturalmente, mas eu já fora decepcionada tanto pelo mundanismo de Derek como pela simplicidade de Kurt e estava preparada para perder a confiança em todo homem. Não que eu esperasse que Kurt ou Derek se casasse comigo. Esperava apenas que fossem bondosos e se portassem de acordo com aquela palavra idiota, "cavalheiros" - que fossem delicados comigo, como eu, segundo pensava, fora delicada com eles. Esse, naturalmente, fora o mal. Eu fora excessivamente delicada, excessivamente acomodatícia. Tivera o desejo de dar prazer (e de tirar prazer, mas isso fora secundário) e isso me marcara como carne fácil, desfrutável. Bem, isso havia acabado! De agora em diante eu tomaria e não daria. O mundo me mostrara os dentes. Eu lhe mostraria os meus. Eu fora inexperiente. Não era mais. Esticara meu queixo para fora como uma boa canadensezinha (bem, uma canadensezinha bem boa!) e tendo aprendido a apanhar, decidira revidar só pelo gosto da mudança.
O negócio de meu aborto, para não poupar palavras, foi um bom exercício para meu novo papel. O porteiro de meu hotel encarou-me com aqueles olhos cansados do mundo que têm todos os porteiros e disse que o médico do hotel estava de férias, mas havia outro igualmente competente. (Saberia ele? Adivinharia ele?) O Dr. Süsskind examinou-me e perguntou-me se eu tinha dinheiro suficiente. Quando respondi que tinha, pareceu desapontado. O ginecologista foi mais explícito. Parece que ele tinha um chalé. Hotéis em Zurique eram tão caros! Será que eu não gostaria de ter um período de repouso antes da operação? Fitei-o com olhos frios e disse que o cônsul britânico, que era meu tio, me convidara para refazer-me com sua família e eu ficaria satisfeita se pudesse entrar no hospital sem demora. Fora ele quem me recomendara o Dr. Süsskind. Herr Doktor Braunschweig certamente conhecia o cônsul, não?
Minha conversa foi suficientemente boa. Apresentei-a com minha nova maneira decisiva e a jogada havia sido preparada antecipadamente. Os óculos bifocais registraram o choque. Houve explicações friamente fervorosas e um apressado telefonema para o hospital. Sim, não havia dúvida. No dia seguinte, à tarde. Bastava levar coisas para passar a noite.
Foi tão mentalmente penoso, mas tão fisicamente indolor como eu havia esperado e três dias depois estava de volta ao meu hotel. Minha decisão estava tomada. Voltei para a Inglaterra, hospedei-me no novo e circular "Ariel Hotel", perto do aeroporto de Londres, até livrar-me de meus poucos e pequenos pertences, paguei minhas contas, depois marquei um encontro com o mais próximo vendedor de "Vespa", em Hammersmith, e fui vê-lo.
Meu plano era sair por minha própria conta, pelo menos durante um ano, e ver a outra metade do mundo. Já recebera o que tinha de receber de Londres. Ali a vida me atingira com uma dura esquerda e direita, e eu estava tonta sobre meus pés. Decidi que simplesmente não pertencia àquele lugar. Não compreendia o mundo sofisticado de Derek e não sabia como lidar com o "amor" clínico, frio e moderno que Kurt me oferecera. Disse comigo mesma que era porque eu tinha muito "coração". Nenhum daqueles homens quisera meu coração. Queriam apenas meu corpo. O fato de eu ter caído nessa velha queixa da mulher desprezada para explicar meu malogro em segurar qualquer daqueles homens era, como achei mais tarde, indício mais importante de meu fracasso do que esse negócio de "coração". A verdade é que eu era simples demais para sobreviver na selva da cidade grande. Era presa fácil dos predadores. Era "canadiana" demais para competir com a Europa. Que fosse assim! Eu era simples e por isso ia voltar para as terras simples. Mas não para ficar sentada, embolorar e vegetar. Iria lá para explorar, para aventurar. Desceria diretamente através da América acompanhando o outono e trabalharia no caminho como garçonete, pajem de crianças ou recepcionista, até chegar à Flórida. Lá arranjaria emprego em um jornal e me sentaria ao sol até a primavera. Depois pensaria de novo.
Depois de ter decidido, os pormenores de meu plano absorveram-me, espantando minha miséria ou, pelo menos, conservando-a imobilizada, e anestesiando meu sentimento de pecado, de vergonha e de fracasso. Fui à Associação Automobilística Americana em Pall Mall, ingressei nela, obtive os mapas de que precisava e conversei com eles sobre transporte. Os preços de automóveis usados na América eram muito altos, o mesmo acontecendo com as despesas de manutenção, e eu de repente me apaixonei pela idéia de uma motoneta. A princípio parecia ridículo pensar em sair pelas grandes rodovias transcontinentais com máquina tão minúscula, mas a idéia de estar ao ar livre, fazendo mais de quarenta quilômetros com um litro de gasolina, não tendo de preocupar-me com garagens, viajando leve e, vamos admitir, causando um pouco de sensação onde quer que fosse decidiu-me e o vendedor de Hammersmith fez o resto.
Eu entendia um pouco de mecânica - toda criança norte-americana é criada com automóveis - e pesei as atrações do pequeno modelo de 125-c. c. e do Grand Sport de 150-c. c, mais forte e mais veloz. Naturalmente, entusiasmei-me pelo tipo esporte com sua maravilhosa aceleração e velocidade máxima de quase cem quilômetros. Faria apenas uns trinta e pouco quilômetros por litro, em comparação com os quarenta da menor, mas pensei comigo mesma que a gasolina era barata na América e que eu precisava de velocidade senão levaria meses para chegar ao sul. O vendedor mostrou-se entusiasmado. Acentuou que, com mau tempo ou se eu ficasse cansada, poderia simplesmente embarcar a máquina em um trem por certo trecho. Podia descontar umas trinta libras de imposto de venda do preço de cento e noventa libras, entregando-a no navio que a levaria ao Canadá em dez dias. Isso me deixaria mais dinheiro para gastar em sobressalentes e acessórios de luxo. Não foi preciso que fizessem pressão sobre mim. Demos uma ou duas corridas para cima e para baixo na viela, com o vendedor sentado atrás. A "Vespa" disparava como um pássaro e era fácil de guiar como uma bicicleta. Por isso assinei os papéis, comprei uma capa de pele de leopardo para o assento e para o estepe, calotas de luxo, um espelho retrovisor, um porta-bagagem, mochilas que combinavam maravilhosamente com o acabamento verde da lataria, um pára-brisa esporte de Perspex e um capacete branco que me deixava parecida com Pat Moss. O vendedor deu-me algumas boas idéias sobre roupas e eu fui a uma loja, onde comprei um macacão branco com muitos zíperes, óculos de corrida com pele macia nas beiradas e um elegante par de luvas de motociclista de pele de cabrito preta. Depois disso, sentei-me no hotel com os mapas e planejei minha rota para a primeira etapa depois de sair de Quebec. Em seguida, reservei lugar no vôo mais barato da "Trans-Canada" para Montreal, cabografei à tia Florence e, numa bela manhã de primeiro de setembro, parti.
Foi estranho e adorável estar de volta depois de quase seis anos. Minha tia disse que quase não me reconheceu e eu certamente surpreendi Quebec. Quando a deixara, a fortaleza parecia vasta e majestosa. Agora parecia um grande edifício de brinquedo saído da Disneylândia. Onde ela parecera amedrontadora, achei, irreverentemente, que parecia feita de papier-mâché. E as gigantescas batalhas entre as Crenças, nas quais eu outrora pensara estar a ponto de ser esmagada, e os profundos cismas entre os "Canadiennes" e o resto estavam agora, com minha nova perspectiva, reduzidos a briguinhas de paróquia. Meio envergonhada, surpreendi-me desdenhosa do gritante provincianismo da cidade, dos mal vestidos camponeses que nela viviam e da neblina de esnobismo e pequena burguesia que penetrava em tudo. Não era de admirar que, filha disso tudo, eu tivesse sido mal equipada para o grande mundo lá de fora! A maravilha era eu ter sobrevivido.
Tive o cuidado de esconder esses pensamentos de minha tia, embora suspeitasse que ela também estava espantada e talvez escandalizada com o verniz que meu "aperfeiçoamento" na Europa conseguira. Deve ter-me achado muito semelhante ao rato da cidade, por mais desataviada e simples que eu me sentisse por dentro, e crivou-me de perguntas para descobrir até que profundidade ia o verniz, até que ponto eu me sujara na vida extravagante que devia ter levado. Teria desmaiado se conhecesse a verdade e eu tive o cuidado de dizer que, embora tivesse tido namoros, regressara das cidades perdidas do outro lado do oceano, ilesa e com o coração livre. Não, não havia sequer um compromisso temporário. Não, nem mesmo um plebeu, podia eu dizer sem fugir à verdade, me propusera casamento e eu não deixara namorado para trás. Acho que ela não acreditou nisso. Elogiou minha aparência. Eu me tornara "une belle fille". Parecia ter adquirido "beaucoup de tempérament" - eufemismo francês para dizer "sex appeal" - ou pelo menos aparência disso e parecia-lhe incrível que aos vinte e três anos de idade não houvesse um homem em minha vida. Ficou horrorizada com meus planos e pintou-me um quadro pavoroso dos perigos que me aguardavam na estrada. A América estava cheia de gangsters. Eu seria atacada na estrada e "ravagée". De qualquer maneira, não era coisa para uma dama viajar em motoneta. Esperava que eu tivesse o cuidado de andar com as duas pernas de um lado só. Expliquei que minha "Vespa" era uma máquina muito respeitável e, quando fui a Montreal, gozando a emoção de cada quilômetro, a trouxe de volta para casa, com meus trajes completos, ela amoleceu um pouco, embora comentasse hesitante-mente que eu iria "faire sensation".
Depois, em quinze de setembro, saquei de minha pequena conta bancária mil dólares em traveler cheques do "American Express", arrumei cientificamente minhas mochilas com o que julgava ser um guarda-roupa mínimo, despedi-me de tia Florence com um beijo e desci ao longo do St. Lawrence pela Rota 2.
A Rota 2 de Quebec para o sul até Montreal poderia ser uma das mais belas rodovias do mundo, se não fosse o amontoado de vilas e cabinas de banho que proliferaram ao longo dela desde a guerra. Acompanha exatamente o grande rio, seguindo pela margem norte, e eu a conhecia muito bem dos piqueniques que fazia quando criança. Todavia, de lá para cá fora aberto o Canal de St. Lawrence e o firme fluxo de grandes navios com seus motores trepidantes, suas sereias e apitos insistentes era uma nova emoção.
A "Vespa" zumbia alegremente a uns sessenta e cinco quilômetros por hora. Eu decidira fazer uma média de duzentos e cinqüenta a trezentos quilômetros, ou sejam, umas seis horas efetivamente na direção, embora não tivesse intenção de ficar presa a um horário. Desejava ver tudo. Se houvesse uma estrada secundária curiosa, eu subiria por ela e, se chegasse a um lugar bonito ou interessante, pararia para olhá-lo.
Uma boa invenção no Canadá e no norte dos Estados Unidos é a "área de piquenique" - clareiras abertas na floresta ou à margem de um lago ou rio com abundância de bancos e mesas isolados, toscamente talhados e instalados entre as árvores. Pretendia aproveitá-los para almoçar diariamente quando não estivesse chovendo. Em lugar de comprar alimentos caros em lojas, faria sanduíches de ovo e toucinho em torradas antes de deixar o motel onde passasse cada noite. Esses sanduíches, com uma fruta e o café guardado em uma garrafa térmica, seriam minha refeição do meio-dia e eu compensaria toda noite com um bom jantar. Orcei em quinze dólares minha despesa diária. A maioria dos motéis cobra oito dólares de solteiros, mas é preciso acrescentar os impostos, de modo que calculei nove, incluindo café e um pão para o desjejum. A gasolina não seria mais de um dólar por dia. Restavam-me assim cinco dólares para almoço e jantar, uma bebida ocasional e os raros cigarros que eu fumava. Desejava tentar manter-me dentro desse orçamento. O mapa e roteiro ' da "Esso" que eu tinha e a literatura da "A. A. A." mencionavam inúmeros lugares interessantes para ver depois que eu atravessasse a fronteira. Eu atravessaria a terra dos peles-vermelhas de Fenimore Cooper e depois passaria por alguns dos grandes campos de batalha da Revolução Americana, por exemplo - e muitos deles cobravam cerca de um dólar de taxa de ingresso. Mas eu achava que conseguiria gastar só aquilo e, se não o conseguisse em alguns dias, comeria menos em outros.
A "Vespa" era muito mais estável do que esperara e maravilhosamente fácil de guiar. Quando aprendi a lidar melhor com as marchas, comecei realmente a dirigir a maquinazinha ao invés de simplesmente ficar montada sobre ela. A aceleração - até oitenta em vinte segundos - era suficientemente boa para dar ao sedan americano comum um bom choque e eu subia montes como um pássaro com o escapamento roncando suavemente atrás de mim. Naturalmente, tinha de agüentar muito assobio dos moços e sorrisos e acenos de mão dos velhos, mas acho que gostei um pouco de ser a espécie de sensação que minha tia previra e sorria com variável doçura para todos. As margens da maioria das rodovias da América do Norte são ruins. Por isso temia que os outros fechassem minha minúscula máquina e eu tivesse constante dificuldade com buracos, mas acho que eu parecia uma coisinha tão frágil que os outros motoristas me deixavam amplo espaço, ficando geralmente toda a pista interna da rodovia só para mim.
As coisas correram tão bem naquele primeiro dia que, antes do cair da noite, consegui atravessar Montreal e avançar 30 quilômetros pela Rota 9, que me levaria através da fronteira até o Estado de Nova York na manhã seguinte. Parei em um lugar chamado "The Southern Trail Motel", onde fui tratada como se fosse Amélia Earhart ou Amy Mollison - rotina bastante agradável a que logo me acostumei. Depois de tomar uma boa refeição no bar e aceitar timidamente uma bebida com o proprietário, retirei-me para a cama sentindo-me excitada e feliz. Fora um dia comprido e maravilhoso. A "Vespa" era um sonho e todo meu plano estava saindo muito bem.
Levara um dia para fazer os primeiros trezentos quilômetros. Levei quase duas semanas para percorrer os quatrocentos quilômetros seguintes. Não houve mistério nisso. Depois de atravessar a fronteira americana, comecei a vaguear pelos Adirondacks como se estivesse em férias no fim do verão. Não entrarei em detalhes, pois isto não é uma história de viagem, mas foram raros os velhos fortes, museus, cataratas, cavernas ou altas montanhas que eu não visitasse - para não mencionar as pavorosas "Terras de Histórias", "Cidades da Aventura" e falsas "Reservas de Índios" que levaram meu dólar. Simplesmente me entreguei a uma espécie de orgia de turismo que era em parte genuína curiosidade, mas principalmente desejo de odiar o dia em que teria de deixar aqueles lagos, rios e florestas, e correr para o sul rumo ao rude "El-dollarado" das super-rodovias, das barracas de cachorros-quentes e das luminosas fitas de néon.
Foi no fim dessas duas semanas que me encontrei em Lake George, o pavoroso centro de turismo nos Adirondacks, que não sei como conseguiu transformar a história, as florestas e a fauna selvagem em botequim. Afora o imponente forte cercado de estacada e os inofensivos vapores que sobem até Fort Ticonderoga e voltam, o resto é um vistoso e barato pesadelo de gnomos de concreto, de veados e cogumelos de Bambi, vulgares barracas de comida vendendo "Big Chief Hamburgers" e "Minnehaha Candy Floss", e "Atrações" como a "Terra dos Animais" ("Os visitantes podem segurar e fotografar chimpanzés vestidos"), a "Aldeia do Lampião de Gás" ("Genuína iluminação a gás de 1890") e a "Cidade das Histórias, EUA", um terrível pesadelo infantil que não precisarei descrever. Foi ali que fugi da horrível artéria em que se transformara a Rota 9 e tomei a poeirenta estrada secundária que através da floresta, me levaria ao "Dreamy Pines Motor Court" e à poltrona onde estive sentada exatamente relembrando como cheguei até aqui.









SEGUNDA PARTE - ELES


7 "Entre em minha sala"

A CHUVA continuava caindo forte, com seu rugido constante fazendo fundo para as gorgolejantes torrentes que desciam em jorros pelas calhas nos quatro cantos do edifício. Eu esperava com ansiedade o momento de ir para a cama. Como dormiria pesado entre os lençóis na imaculada casinha - aqueles lençóis de percal que constavam dos anúncios do motel! Como eram luxuosas as camas "Elliot Frey", os tapetes "Magee" desenhados sob encomenda, televisor e aparelho de ar condicionado "Philco", máquina de fazer gelo "Icemagic", cobertores "Acrilan" e móveis "Simmons Vivant" ("Nossas tampas e gavetas de laminado fenólico são imunes a queimaduras de cigarros e manchas de álcool") - enfim todos aqueles refinamentos do luxo do motel moderno, até o box do chuveiro de acrilite, as tampas do vaso sanitário de olsonite perolado e o "tecido de banheiro" "Delsey", aliás papel higiênico ("em cores modernas para harmonizar-se com a decoração contemporânea") que seriam meus e só meus naquela noite!
Apesar de todos esses graciosos ornamentos, além do belo local, "The Dreamy Pines" parecia estar em má situação. Quando eu lá chegara, duas semanas antes, só havia em todo o estabelecimento dois hóspedes para pernoite e nenhuma única reserva para a última quinzena da temporada.
A Sra. Phancey, mulher de cabelos grisalhos com olhos rancorosos e desconfiados, e uma boca fina e cruel, estava na portaria quando cheguei naquela tarde. Olhou penetrantemente para mim, uma moça sozinha, e para minhas modestas mochilas. Quando levei a "Vespa" para o Número 9, seguiu-me com meu cartão na mão para verificar se eu não registrara uma licença falsa do veículo. Seu marido, Jed, era mais jovial, mas logo compreendi por que, quando as costas de sua mão roçaram meus seios ao servir-me o café mais tarde, no bar. Aparentemente ele se revezava como conserta-tudo e cozinheiro improvisado. Enquanto seus olhos castanhos pálidos rastejavam sobre mim como lesmas, ele se queixava chorosamente da trabalheira que estava tendo a fim de deixar o estabelecimento pronto para a data de fechamento e de ser constantemente chamado quando estava fazendo algum serviço para fritar ovos para grupos de fregueses de passagem. Os dois pareciam ser os administradores do proprietário. Este vivia em Troy. Um tal Sr. Sanguinetti. "Sujeito importante. Tem muitas propriedades na estrada de Cohoes. Propriedades à margem do rio. E a "Trojan House" - roadhouse na Rota 9, perto de Albany. Eu não conhecia o local?" Quando disse que não, o Sr. Phancey assumiu uma expressão astuciosa."Se um dia quiser divertir-se, vá à "Horse". Mas é melhor não ir sozinha. Uma garota bonita como você poderia ser assaltada. Depois do dia 15, quando eu sair daqui, pode telefonar-me. O nome é Phancey. Está na lista telefônica. Terei prazer em sair com você, mostrar-lhe o que é bom." Agradeci, mas disse que estava apenas de passagem no distrito, em viagem para o sul. Poderia servir-me dois ovos fritos, tostados por cima, e toucinho defumado?
O Sr. Phancey, porém, não me deixou em paz. Enquanto eu comia, veio sentar-se à minha mesinha e contou-me alguma coisa de sua monótona vida. Entre os episódios, encaixava perguntas sobre mim e meus planos - que faziam meus pais, se eu não me importava de estar tão longe de casa, se tinha amigos nos Estados Unidos e assim por diante - perguntas inócuas, fruto de curiosidade natural, segundo me parecia. Afinal de contas, ele era homem de uns quarenta e cinco anos, suficientemente velho para ser meu pai, e embora fosse evidentemente um velho sujo, era comum encontrar tipos assim. De qualquer maneira, a Sra. Phancey estava-nos olhando de sua mesa no outro lado da sala.
Finalmente, o Sr. Phancey me deixou e foi juntar-se à sua esposa. Enquanto eu fumava um cigarro e terminava minha segunda xícara de café ("Não é nada, senhorita. Cortesia de "The Dreamy Pines"), ouvi-os conversar em voz baixa sobre alguma coisa que, tendo em vista as ocasionais risadinhas, parecia dar-lhes satisfação. Finalmente, a Sra. Phancey aproximou-se, cacarejando em tom maternal sobre meus aventurosos planos ("Ai, ai, ai! Que não são capazes de fazer as moças modernas!"), sentou-se e, mostrando-se o mais cativante possível, perguntou por que eu não ficava ali por uns dias, descansando e ganhando um punhado de dólares em troca. Parece que seu recepcionista havia abandonado o serviço vinte e quatro horas antes e, com o trabalho de limpeza e arrumação para fechamento do estabelecimento no fim da temporada, não teriam tempo de arranjar um substituto. Não me interessaria o emprego de recepcionista para as duas últimas semanas - cama, comida e trinta dólares por semana?
Acontece que vinham mesmo a calhar aqueles sessenta dólares, com cama e comida gratuitas. Eu gastara no mínimo cinqüenta dólares a mais do que devia em minha orgia de turismo e aquele dinheiro viria equilibrar meu orçamento. Não me agradavam muito os Phanceys, mas disse comigo mesma. que eles não eram piores do que a gente que eu esperava encontrar em minhas viagens. Além disso, era o primeiro emprego que me ofereciam e sentia-me curiosa por ver como me sairia. Talvez me dessem também uma referência ao término de meu tempo de serviço, o que poderia ajudar-me a arranjar outros empregos em motéis durante minha viagem para o sul. Por isso, depois de uma delicada sondagem, disse que a idéia era ótima. Os Phanceys pareceram muito contentes e Millicent, como passou então a chamar-se, mostrou-me o sistema de registro, recomendou-me que suspeitasse de pessoas com pouca bagagem e peruas grandes, e levou-me em rápida inspeção pelo estabelecimento.
O negócio das peruas abriu meus olhos para o lado feio das atividades de motel. Segundo parece, havia pessoas, particularmente jovens recém-casados e em fase de instalação de casa, que se hospedavam em algum motel solitário levando pelo menos uma mala, como "passaporte" mínimo. Essa mala na realidade não continha senão um jogo completo de ferramentas de precisão, juntamente com chapas frias para sua espaçosa perua, que seria estacionada no abrigo diante da porta da casinha. Depois de se fecharem na casinha e esperarem que se apagassem as luzes no escritório, o casal punha-se a trabalhar em coisas que não chamavam atenção, como desapertar os parafusos das peças do banheiro, experimentar os prendedores do televisor e assim por diante. Depois que o pessoal da administração ia para a cama, os jovens punham realmente mãos à obra, fazendo cuidadosas pilhas de roupas de cama, toalhas e cortinas do box, desmontando as peças de iluminação, as armações das camas, os assentos da privada e até mesmo a própria privada, quando tinham conhecimentos de encanador. Trabalhavam no escuro, naturalmente, com pequenas lanternas. Quando tudo estava pronto, digamos aí pelas duas horas da madrugada, carregavam os objetos silenciosamente pela porta, até o abrigo, e punham na perua. O último trabalho seria tirar os tapetes e usá-los, com o avesso para cima, como encerados para cobrir o conteúdo da perua. Depois, trocavam as chapas e iam silenciosamente embora, com seu novo dormitório pronto para ser colocado em seu apartamento não mobiliado em outro Estado a muitos quilômetros de distância!
Com dois ou três golpes como esse arranjavam também a sala de estar e o dormitório para visitas, ficando arrumados para o resto da vida. Se tinham quintal ou um pequeno jardim na frente da casa, algumas incursões pelas ricas residências "com piscina" fora da cidade lhes forneciam móveis para o ar livre, brinquedos grandes para crianças, talvez até mesmo cortador de grama e esguichos.
A Sra. Phancey disse que os motéis não tinham defesa contra essa espécie de ataque. Parafusavam tudo quanto podia ser parafusado e marcavam em tudo o nome do motel. A única esperança era sentir o cheiro dos ladrões quando se registravam e recusá-los ou ficar a noite inteira acordados com uma espingarda na mão. Nas cidades, os motéis tinham outros problemas - prostitutas que exerciam seu comércio, assassinos que deixavam cadáveres no box do chuveiro e ocasionais assaltos pelo dinheiro da caixa registradora. Mas não havia motivo para preocupações. Se eu previsse encrenca, bastava chamar Jed. Ele era capaz de agir com verdadeira energia e tinha um revólver. Com esse fraco consolo, a Sra. Phancey deixou-me matutando sobre o lado pior da indústria de motéis.
Naturalmente, tudo correu perfeitamente bem e o serviço não foi problema. Com efeito, havia tão pouca coisa a fazer que fiquei pensando por que os Phanceys se deram ao trabalho de contratar-me. Mas eram preguiçosos e o dinheiro com que me pagavam não lhes pertencia. Imaginei que uma parte da razão era o fato de Jed pensar que havia encontrado uma mulher fácil. Mas isso também não foi problema. Bastava-me desviar suas mãos e repeli-lo friamente uma vez por dia em média, assim como encostar uma cadeira embaixo do trinco de minha porta quando ia dormir para anular o efeito da chave-mestra que experimentou em minha segunda noite no motel.
Tivemos poucos hóspedes de pernoite na primeira semana e descobri que devia também ajudar um pouco no serviço doméstico, mas isso não me aborreceu. De qualquer maneira, os fregueses diminuíram até que, depois de 10 de outubro, não apareceu mais nenhum.
Quinze de outubro parece ser uma data mágica nesse mundo das férias. Tudo se fecha naquele dia, exceto à margem das rodovias principais. Suponho que seja o começo do inverno. Começa então a temporada de caça, mas os caçadores ricos têm seus próprios clubes e campos de caça nas montanhas, e os pobres levam seus carros a alguma das áreas de piquenique e sobem pelas florestas antes do amanhecer para caçar seus veados. Seja como for, aí por 15 de outubro os turistas desaparecem da cena e não há mais dinheiro fácil a ganhar nos Adirondacks.
Quando se aproximou o dia do fechamento, houve muitas conversas telefônicas entre os Phanceys e o Sr. Sanguinetti, em Troy. No dia 11, a Sra. Phancey disse-me casualmente que ela e Jed partiriam para Troy no dia 13 e perguntou-me se eu podia ficar tomando conta do estabelecimento naquela noite, para entregar as chaves ao Sr. Sanguinetti, que viria finalmente fechar o estabelecimento mais ou menos ao meio-dia do dia 14.
Pareceu-me imprudência deixar uma moça desconhecida tomando conta de propriedade tão valiosa, mas os Phanceys explicaram que iam levar o dinheiro, o registro e o estoque de comidas e bebidas. O que eu teria a fazer era apenas desligar as luzes e fechar tudo antes de ir para a cama. O Sr. Sanguinetti viria com caminhões para levar o resto dos móveis na manhã seguinte. Depois, eu poderia ir embora. Por isso, respondi que sim, que estava tudo certo. A Sra. Phancey ficou muito contente e disse que eu era uma menina muito boa. Contudo, quando perguntei se não me daria uma carta de referência, ela se mostrou cautelosa e disse que isso só poderia ser feito pelo Sr. Sanguinetti. Prometeu-me, porém, que faria questão de dizer a ele como eu havia ajudado.
Assim, o último dia foi gasto em pôr coisas em sua perua, até os depósitos e o bar ficarem vazios de tudo, exceto bastante toucinho defumado, ovos, café e pão para mim e para os motoristas de caminhão quando chegassem.
Eu esperava que naquele último dia os Phanceys fossem atenciosos comigo. Afinal de contas, nós nos déramos muito bem e eu saíra de meu caminho para ajudar em tudo. Mas, por estranho que pareça, aconteceu exatamente o contrário. A Sra. Phancey dava-me ordens como se eu fosse uma escrava e Jed tornou-se rude e sórdido em sua libidinagem, usando palavras sujas mesmo quando a esposa podia ouvir e tocando abertamente meu corpo sempre que tinha oportunidade. Eu não podia entender a mudança. Era como se eles tivessem conseguido de mim o que queriam e agora pudessem tratar-me com desprezo - e mesmo, como me pareceu, com repugnância. Fiquei tão furiosa que finalmente cheguei à Sra. Phancey e disse que ia embora e queria meu dinheiro. Mas ela se limitou a rir e disse: Oh, não. O Sr. Sanguinetti me daria o dinheiro. Não podiam arriscar-se a ter talheres a menos quando ele viesse contá-los. Depois disso, preferindo não encontrá-los no jantar, preparei alguns sanduíches de geléia, fechei-me em minha casinha e rezei para que chegasse logo a manhã, quando eles iriam embora. E, como já contei, finalmente chegaram as seis horas e eu vi os monstros pela última vez.
Agora, aquela era minha última noite em "The Dreamy Pines". No dia seguinte, eu também iria embora. Fora um pedaço de vida, não inteiramente desagradável apesar dos Phanceys, e eu aprendera os rudimentos de um serviço que me poderiam ser de grande utilidade. Olhei meu relógio. Eram nove horas e ali estava a agourenta WOKO de Albany com seu boletim sobre tempestade. O tempo estaria limpo nos Adirondacks até a meia-noite. Assim, com um pouco de sorte, eu teria estradas secas de manhã. Entrei atrás do balcão do bar, liguei o fogareiro elétrico e pus para fritar três ovos e seis fatias de toucinho defumado. Estava com fome.
Então houve um forte martelar na porta.


8 - Dinamite da terra do pesadelo

MEU CORAÇÃO veio parar na boca. Quem poderia ser? Depois me lembrei. O anúncio de "Há Vagas"! Eu havia ligado a chave quando caiu o raio e me esquecera de desligar o maldito negócio. Que idiota! As batidas começaram de novo. Bem, eu teria de enfrentar a situação, pedir desculpas e mandar as pessoas para Lake George. Caminhei nervosamente até a porta, virei a chave e deixei a porta presa com a corrente.
Não havia alpendre. O anúncio de "Há Vagas" em néon fazia um halo vermelho no lençol de chuva e refletia-se vermelhamente nos lustrosos impermeáveis e capuzes pretos dos dois homens. Atrás deles havia um sedan preto. O homem da frente disse cortesmente: "Senhorita Michel?"
"Sim, sou eu. Mas acho que o anúncio de "Há Vagas" está ligado por engano. O motel está fechado."
"Sei, sei. Viemos da parte do Sr. Sanguinetti. De sua companhia de seguros. Viemos fazer um rápido inventário antes que as coisas sejam levadas embora amanhã. Podemos entrar para fugir da chuva, senhorita? Mostraremos nossas credenciais aí dentro. Está uma noite terrível."
Eu olhava hesitantemente de um para outro, mas pouco podia ver dos rostos por baixo dos capuzes de oleado. Tudo parecia muito direito, mas eu não estava gostando. Disse nervosamente: "Mas os Phanceys, os administradores, nada disseram sobre a vinda dos senhores."
"Bem, deviam ter dito, senhorita. Terei de comunicar isso ao Sr. Sanguinetti." Voltou-se para o homem que estava atrás e acrescentou: "Não é isso, Sr. Jones?"
O outro homem abafou uma risadinha. Por que estaria rindo? "Claro, é isso mesmo, Sr. Thomson." Deu outra risadinha.
"Muito bem, senhorita. Por favor, podemos entrar? Está úmido como o diabo aqui fora."
"Bem, não sei. Disseram-me para não deixar entrar ninguém. Mas se é da parte do Sr. Sanguinetti..."
Nervosamente soltei a corrente e abri a porta.
Os dois entraram, empurrando-me rudemente, e ficaram em pé lado a lado, olhando para o grande salão. O homem que fora chamado de "Sr. Thomson" fungou. Olhos pretos fitaram-me de um rosto frio e cinzento.
"Você fuma?"
"Sim, um pouco. Por quê?"
"Pensei que tivesse companhia."
Tirou o trinco da minha mão, bateu a porta, fechou-a com chave e passou a corrente. Os dois homens despiram seus impermeáveis gotejantes e jogaram-nos de qualquer jeito no chão. Agora que podia ver os dois, senti-me em extremo perigo.
O "Sr. Thomson", evidentemente o chefe, era alto e magro, quase esquelético, e sua pele tinha aquela aparência cinzenta de afogado, como se vivesse sempre fechado dentro de casa. Os olhos pretos moviam-se devagar, sem curiosidade, e os lábios eram finos e vermelhos como um corte não suturado. Quando falou, houve um brilho de metal prateado cinzento em seus dentes da frente e eu supus que tivessem sido revestidos de aço barato, como ouvira dizer que se fazia na Rússia e no Japão. As orelhas eram muito achatadas e próximas da cabeça ossuda. Os cabelos grisalhos e duros eram cortados tão curto que a pele do crânio aparecia esbranquiçada através deles. Usava um paletó preto de aparência áspera com enchimento quadrado nos ombros, calças tão estreitas que os ossos dos joelhos saltavam através do tecido e uma camisa cinzenta abotoada até o pescoço, sem gravata. Seu sapatos eram pontudos em estilo italiano e de camurça cinzenta. Os sapatos e as roupas pareciam novos. Era um homem assustador como um lagarto e minha pele arrepiava de medo dele.
Se esse homem era mortífero, o outro era simplesmente desagradável - um jovem baixo de cara de lua, com olhos azuis úmidos e muito pálidos, e lábios úmidos e gordos. Sua pele era muito branca e ele tinha aquela horrível doença de ausência de pelos - nada de sobrancelhas, nada de cílios e nada de cabelos em uma cabeça lustrosa como bola de bilhar. Eu poderia ter sentido pena dele, se não estivesse tão amedrontada, particularmente porque parecia estar muito resfriado e começou a assoar o nariz assim que tirou o impermeável. Por baixo do impermeável tinha um blusão de couro preto, calças encardidas e aquelas botas mexicanas de couro cru com tiras que usam no Texas. Parecia um jovem monstro, da espécie que arranca asas de mosquitos. Desejei desesperada-mente estar vestida com roupas que não me fizessem parecer tão terrivelmente nua.
Ele acabou de assoar o nariz e pareceu perceber-me pela primeira vez. Olhou-me de alto a baixo, sorrindo encantado. Depois, deu uma volta inteira ao meu redor, voltou para onde estava antes e soltou um assobio longo e baixo.
"Você viu, Horror?", perguntou, piscando para o outro homem."Isto é que é piva! Dê uma olhada naqueles pára-choques! E o traseiro também está à altura!Oba, que uva!"
"Agora, não, Sluggsy. Mais tarde. Vá andando e dê uma olhada naquelas casinhas. Enquanto isso, a moça vai preparar algum grude. Como quer seus ovos?"
O homem chamado Sluggsy sorriu para mim."Mexa-os bem, menina. Gostosos e úmidos. Como mamãe faz. Senão papai bate. Bem nesse seu gostoso biscoitinho. Oba, oba!" Dançou um pouco, dando passos de boxer em minha direção, eu recuei para a porta. Fingi estar ainda mais assustada do que estava e, quando ele chegou a meu alcance, dei-lhe o tapa mais forte que pude no rosto e, antes que se recuperasse de sua surpresa, saltei de lado para trás de uma mesa, apanhei uma das pequenas cadeiras de metal e ergui-a com os pés apontando para ele.
O homem magro deu uma risada curta como um latido.
"Nada disso, Sluggsy. Eu disse mais tarde. Deixa estar a estúpida vadia. Temos a noite inteira para isso. Vá andando como eu disse."
Os olhos no pálido rosto de lua estava agora vermelhos de excitação. O homem esfregou a face. Os lábios úmidos abriram-se em um lento sorriso.
"Sabe de uma coisa, menina? Você acaba de ganhar uma noite enorme. Vai ser comprida, devagar, e de novo e de novo. Entendeu?"
Olhei para os dois por trás da cadeira erguida. Por dentro eu estava choramingando. Esses homens eram dinamites da terra do pesadelo. Não sei como, conservei firme a voz.
"Quem são vocês? Que quer dizer isto tudo? Vamos ver aquelas credenciais. Quando passar um carro, eu quebro a janela e chamo socorro. Eu sou do Canadá. Se fizerem alguma coisa comigo, ficarão em maus lençóis amanhã.
Sluggsy riu.
"Amanhã é amanhã. Você precisa preocupar-se é com hoje à noite, menina." Virou-se para o homem magro."Talvez seja melhor você explicar a ela, Horror. Quem sabe assim teremos um pouco de cooperação."
Horror olhou para mim. Sua expressão era fria e desinteressada. "Você não devia ter batido em Sluggsy, moça. O rapaz é bravo. Não gosta de moças que não lhe dão confiança. Ele pensa que pode ser por causa de sua cara. Ficou assim desde, que passou uma temporada na solitária em San Q. Doença nervosa. Como é que os médicos chamam isso, Sluggsy?"
Sluggsy parecia orgulhoso. Pronunciou as palavras latinas cuidadosamente."Alopecia totalis. Isso quer dizer que não há cabelos, viu?Nenhum." Apontou para seu corpo. "Nem aqui, nem aqui, nem aqui. Que me diz disso, hem piva?"
Horror prosseguiu: "Por isso Sluggsy fica facilmente furioso. Pensa que não foi tratado com justiça pela sociedade. Se tivesse esse negócio que ele tem, talvez você pensasse o mesmo. Por isso ele é o que em Troy chamamos de executor. Uns caras contratam-no para obrigar outros caras a fazerem o que eles querem, se é que me entende. Ele está a serviço do Sr. Sanguinetti e o Sr. Sanguinetti achou melhor ele e eu virmos aqui para ficar de olho neste negócio até que cheguem os caminhões. O Sr. Sanguinetti não achou bom deixar uma mocinha como você aqui sozinha à noite. Por isso, mandou-nos fazer companhia. Não é isso, Sluggsy?"
"Isso mesmo. Exatamente", disse ele, dando uma risadinha. "Apenas para fazer-lhe companhia. Para espantar os lobos... Com um material como o seu, deve haver ocasiões em que precisa muito de proteção. Não é?"
Abaixei a cadeira e pousei-a sobre a mesa. "Bem, como é que vocês se chamam? E aquelas credenciais, onde estão?"
Havia uma única lata de café "Maxwell House" na prateleira acima do balcão do bar. Sluggsy virou-se de repente e sua mão direita - eu nem o vira puxar uma arma - cuspiu fogo. Houve o estampido do disparo. A lata saltou de lado e depois caiu. No ar, Sluggsy atingiu-a de novo e houve Uma explosão marrom de café. Depois um silêncio ensurdecedor no qual a última cápsula vazia tiniu ao cair no chão. Sluggsy voltou-se de novo para mim. Suas mãos estavam vazias. A arma desaparecera. O prazer causado pela exibição de pontaria pusera uma expressão sonhadora em seus olhos. Disse suavemente: "Que acha disso como credenciais, menina?"
A pequena nuvem de fumaça azul chegou até onde eu estava e senti o cheiro de cordite. Minhas pernas estavam tremendo. Eu disse, penso que desdenhosamente: "Foi muito café perdido. Agora, vão dizer-me seus nomes?"
O homem magro falou: "A moça tem razão. Você não devia ter estragado esse café, Sluggsy. Mas, você sabe, moça, é por isso que o chamam de Sluggsy, por causa de sua habilidade com a ferragem. Sluggsy Morant. Eu sou Sol Horowitz. Chamam-me de "Horror". Não sei por quê. Você sabe, Sluggsy?"
Sluggsy deu uma risadinha.
"Talvez seja porque certa vez você deu um susto em um cara, Horror. Talvez em uma porção de caras. Pelo menos foi o que me disseram.
Horror não fez comentários. Disse calmamente: Okay. Vamos! Sluggsy, vá ver aquelas casinhas como já lhe disse. Moça, você vai fazer um pouco de grude. Conserve o nariz limpo e coopere, que não ficará machucada. Okay?"
Sluggsy olhou-me cobiçosamente."Não muito, hem? Não é, piva?", disse ele, caminhando em direção ao cabide de chaves atrás da mesa. Tirou todas as chaves e saiu pela porta do fundo. Eu pus a cadeira no chão e, o mais friamente que pude, mas dolorosamente cônscia de minha calça de toureador, atravessei a sala e entrei atrás do balcão.
O homem chamado Horror caminhou vagarosamente até a mesa do bar mais distante de mim. Puxou uma cadeira para longe da mesa, virou-a com a mão e enfiou-a entre as pernas. Sentou-se e colocou os braços cruzados sobre o encosto, descansou o queixo sobre eles e ficou-me observando com olhos descuidados e indiferentes. Disse baixinho, tão baixinho que mal pude ouvi-lo: "Eu também quero mexidos, moça. Com bastante toucinho frito. Torrada com manteiga. E o café?"
"Vou ver o que sobrou." Abaixei-me sobre as mãos e os joelhos por trás do balcão. A lata tinha dois furos de cada lado. Dentro dela ainda restava um pouco de café e havia bastante espalhado pelo chão. Pus a lata de lado e raspei o que pude do chão para um prato, sem me importar muito com a poeira que ia junto. O resto da lata, que não estava sujo, guardei para mim.
Fiquei ali embaixo uns cinco minutos, ganhando tempo, tentando desesperadamente pensar, planejar. Aqueles homens eram gangsters. Trabalhavam para aquele Sr. Sanguinetti. Isso parecia certo pois haviam obtido meu nome dele ou dos Phanceys. O resto da história que contaram era mentira. Tinham sido mandados ao estabelecimento, sob a tempestade, por algum motivo. Qual seria? Sabiam que eu era canadense, estrangeira, e que poderia facilmente procurar a polícia no dia seguinte e arranjar encrenca para eles. O homem chamado Sluggsy estivera em San Quentin. E o outro? Claro! E por isso que parecia cinzento e com ar de cadáver! Provavelmente acabara de sair da prisão. Pelo menos, dava essa impressão. Assim, eu poderia deixá-los em situação verdadeiramente difícil, contar à polícia que era jornalista e que ia escrever sobre o que acontecia a moças sozinhas nos Estados Unidos. Mas será que acreditariam em mim? Aquele anúncio de "Há Vagas"! Eu estava sozinha no motel, mas deixara o anúncio ligado. Não era porque desejava companhia? Por que me vestira daquele jeito, se esperava ficar sozinha? Procurei desviar-me dessa linha de idéias. Mas voltava a ela. Que estavam querendo aqueles dois homens? Tinham um carro comum. Se quisessem limpar o negócio, teriam trazido um caminhão. Talvez tivessem sido realmente mandados para guardar o lugar e me tratado daquele jeito porque essa era a maneira de agir dos gangsters. Mas até que ponto piorariam? Que ia acontecer-me naquela noite?
Levantei-me e comecei a ocupar-me com a comida. Era melhor dar-lhes o que queriam. Assim não haveria desculpa para me maltratarem.
O avental de Jed estava enrolado e jogado em um canto. Apanhei-o e coloquei-o na cintura. Uma arma? Na gaveta de talheres, havia um furador de gelo e uma faca comprida e muito afiada. Tirei o furador de gelo e enfiei-o com o cabo para baixo na frente de minha calça, por baixo do avental. A faca escondi embaixo de um pano de prato ao lado da pia. Deixei a gaveta de talheres aberta e enfileirei ao lado dela uma porção de copos e xícaras para arremessar. Infantil? Era tudo quanto eu tinha.
De vez em quando, olhava através da sala. Os olhos do homem magro estavam sempre voltados para mim, experimentados no crime e suas contramedidas, sabendo o que eu pensava, que defesas estava preparando. Eu sentia isso, mas continuei meus pequenos preparativos, pensando, como fazia na escola inglesa: "Quando me ferirem, e sei que pretendem ferir-me, preciso feri-los também de alguma maneira. Quando me agarrarem, me violentarem, me matarem, não o farão com facilidade."
Violentar? Matar? Que pensava eu que ia acontecer-me? Eu não sabia. Só sabia que estava em situação desesperada. Os rostos dos homens diziam isso - o rosto indiferente e o rosto cobiçoso. Ambos queriam pegar-me. Por quê? Eu não sabia. Mas tinha absoluta certeza disso.
Quebrei oito ovos em uma tigela e bati-os delicadamente com um garfo. O enorme pedaço de manteiga derretera-se na caçarola. Ao lado dela, na frigideira, o toucinho estava começando a chiar. Joguei os ovos na caçarola e comecei a mexer. Enquanto minhas mãos se concentravam, meu espírito pensava em meios de fugir. Tudo dependia de o homem chamado Sluggsy, quando voltasse de sua inspeção, lembrar-se de fechar a porta do fundo. Se não fechasse, eu poderia correr para ela. Não podia pensar em usar a "Vespa". Não andara com ela durante uma semana. Injetar gasolina no carburador e dar as três pedaladas que seriam talvez necessárias para fazê-la pegar no frio levaria muito tempo. Teria de deixar meus pertences, todo meu precioso dinheiro, e correr como uma lebre para a direita ou para a esquerda, dar a volta pelo fundo das casinhas e enfiar-me entre as árvores. Refleti que naturalmente não correria para a direita. O lago por trás das casinhas reduziria minha rota de fuga. Correria para a esquerda. Desse lado, não havia senão quilômetros de árvores. A alguns metros da porta eu já estaria ensopada até a pele e tremeria de frio no resto da noite. Meus pés, naquelas estúpidas sandaliazinhas, seriam cortados em tiras. Eu poderia facilmente perder-me. Mas esses eram problemas que teria de enfrentar. O principal era fugir daqueles homens. Nada mais importava.
Os ovos estavam prontos e eu os passei, ainda muito moles, para uma travessa, colocando depois toucinho em roda. Pus a pilha de torradas do "Tostmaster" em outro prato, junto com um pedaço de manteiga ainda em seu papel, e coloquei tudo sobre uma bandeja. Fiquei satisfeita ao ver que subiu muita poeira quando derramei água fervendo sobre o café e desejei que isso os sufocasse. Depois tirei a bandeja de trás do balcão e, sentindo-me mais respeitável em meu avental, levei-a até onde o homem magro estava sentado.
Quando punha a bandeja sobre a mesa, ouvi a porta do fundo abrir-se e depois fechar-se com uma batida. Não houve barulho de chave. Virei-me rapidamente para olhar. As mãos de Sluggsy estavam vazias. Meu coração começou a bater furiosamente. Sluggsy aproximou-se da mesa. Eu estava tirando as coisas da bandeja. Ele olhou para a comida, pôs-se rapidamente atrás de mim e segurou-me pela cintura, esfregando seu rosto horrível em meu pescoço. "Exatamente como mamãe fazia, menina. Que tal você e eu darmos umas sacudidas juntos? Se for capaz de.... como cozinha, você é a mina de meus sonhos. Que me diz, piva?Está feito?"
Eu estava com a mão na cafeteira e ia jogar para trás o conteúdo fervente. Horror percebeu minha intenção. Disse asperamente: "Largue-a, Sluggsy. Eu já disse: mais tarde." As palavras saíram como um chicote e imediatamente Sluggsy me largou. O homem magro disse: "Você quase ficou com os olhos cozidos. Precisa ter cuidado com essa moça. Deixe de brincadeiras e sente-se. Estamos em serviço."
A fisionomia de Sluggsy demonstrava fanfarronice, mas também obediência."Tenha coração, companheiro! Eu quero um pedaço desta mina. Mas já!" Todavia, puxou uma cadeira e sentou-se, enquanto eu me afastava rapidamente.
O grande aparelho de rádio e televisão estava sobre um pedestal perto da porta do fundo. Estivera tocando baixinho todo esse tempo, embora eu nem percebesse. Fui até o aparelho e mexi nos botões, aumentando o volume. Os dois homens conversavam sossegadamente e havia o barulho dos talheres. Agora ou nunca! Medi a distância que me separava do trinco da porta e mergulhei para a esquerda.


9 - Depois comecei a gritar

Ouvi UMA ÚNICA bala bater contra a armação de metal da porta. Depois, com a mão segurando o furador de gelo para que não me ferisse, corri como louca sobre a grama úmida. Felizmente a chuva havia passado, mas a grama estava ensopada e lisa sob as solas chatas de minhas sandálias. Eu sabia que não estava correndo com rapidez suficiente. Ouvi uma porta abrir atrás de mim e a voz de Sluggsy gritou: "Pare ou estará liquidada!" Comecei a ziguezaguear, mas então começaram os tiros, cuidadosamente, espaçados mesmo. Abelhas passaram zumbindo ao meu lado e bateram na grama. Mais dez metros e eu estaria no canto das casinhas, fora da luz. Desviei-me e ziguezagueei, com minha pele tremendo como se esperasse uma bala. O vidro de uma janela na última casinha tilintou ao quebrar-se e eu dei a volta no canto. Quando mergulhei para dentro do mato molhado, ouvi a partida de um automóvel. Para que seria?
O caminho era terrível. Os pinheiros gotejantes cresciam muito juntos, seus ramos entrelaçavam-se e rasgavam meus braços cruzados sobre o rosto. Estava escuro como breu e eu não via um metro à frente. Depois, de repente, percebi soluçando para que era o carro, pois seus faróis resplandecentes iluminaram-me da beirada do mato. Quando tentei fugir dos penetrantes olhos, ouvi o motor acelerar para mudar a posição do carro e imediatamente me apanharam de novo. Não havia espaço para manobra e eu tinha simplesmente de avançar na direção que as árvores permitissem. Quando começariam de novo os tiros? Eu estava apenas a uns trinta metros do começo da floresta. Agora seria a qualquer minuto! Minha respiração saía soluçando da garganta. Minhas roupas começaram a rasgar-se e eu sentia as escoriações crescendo em meus pés. Sabia que não poderia resistir por mais muito tempo. Precisava encontrar a árvore mais grossa, tentar escapar das luzes por um minuto, rastejar para debaixo da árvore e esconder-me. Mas por que não vinham balas? Avancei cambaleante para a direita, encontrei uma breve escuridão e mergulhei de joelhos entre as folhas ensopadas de pinheiro. Era uma árvore como qualquer outra, com seus ramos varrendo o chão, e eu rastejei para debaixo deles, levantei-me de novo encostada ao tronco e esperei que o ruído de minha respiração aquietasse.
Então ouvi alguém vindo atrás de mim, não silenciosamente porque era impossível, mas firmemente e parando de vez em quando para ouvir. Agora, o homem, fosse quem fosse, devia ter percebido pelo silêncio que eu me escondera. Se entendesse alguma coisa de perseguição, logo descobriria onde acabavam os ramos quebrados e a terra pisada. Depois, seria apenas uma questão de tempo. Silenciosamente dei a volta à árvore, raspando-me em seu tronco e ficando do lado oposto ao dele, e observei as luzes do carro iluminando firmemente os brilhantes ramos úmidos acima de minha cabeça.
O barulho dos pés e dos galhos quebrados aproximava-se. Agora eu podia ouvir a respiração pesada. A voz de Sluggsy, muito próxima, disse baixinho: "Saia daí, boneca. Senão papai bate de verdade. O brinquedo de esconde-esconde está acabado. É hora de voltar para casa com papai."
O pequeno olho da lanterna começou a procurar embaixo das árvores, cuidadosamente, árvore por árvore. Ele sabia que eu estava apenas a alguns metros. Depois a luz parou e iluminou embaixo de minha árvore. Sluggsy disse maciamente, satisfeito: "Uu... uu, boneca! Papai achou!"
Teria achado mesmo?Fiquei quieta, mal respirando.
Houve o estampido e a chama de um único tiro. A bala penetrou na casca da árvore atrás da minha cabeça: "Isso é apenas um aviso, boneca. Da próxima vez, arrancará seus pezinhos."
Então era isso que estava aparecendo! Cansada de sentir medo, disse: "Está bem. Vou sair. Mas não atire." E saí rastejando de quatro, pensando histèricamente: "Esta é uma bela maneira de caminhar para sua execução, Viv!"
O homem estava ali em pé, com sua cabeça pálida ornada de luz amarela e sombras pretas. Sua arma apontava para meu estômago. Sacudiu-a para o lado. "Okay. Vá andando na minha frente. E se não continuar em movimento, receberá um caroço nesse seu lindo buraquinho."
Cambaleei ignominiosamente entre as árvores em direção aos distantes e resplandecentes olhos do carro. Angustiavam-me a desesperança e a piedade por mim mesma. Que fizera eu para merecer isso? Por que Deus me escolhera para vítima desses dois homens desconhecidos? Agora eles estariam realmente zangados. Machucar-me-iam e mais tarde quase certamente me matariam. Mas a polícia extrairia as balas de meu corpo! Em que perverso crime estavam empenhados que se mostravam indiferentes à prova de meu cadáver? Fosse qual fosse o crime, deviam estar absolutamente confiantes em que não haveria prova. Porque não haveria eu! Eles me enterrariam, me jogariam no lago com uma pedra amarrada no pescoço.
Saí da floresta. O homem magro debruçou-se para fora do carro e falou com Sluggsy. "Okay. Leve-a de volta. Não a trate mal. Deixe isso para mim." Engatou o carro em marcha-à-ré.
Sluggsy chegou ao meu lado e com sua mão livre acariciou-me lascivamente. Eu só disse: "Não faça isso." Não me restava vontade para resistir.
Ele disse baixinho: "Você está encrencada, piva. Horror é um cara perverso. Vai machucá-la muito. Agora, diga "Sim" para mim esta noite e prometa ser boazinha, que talvez eu consiga quebrar o galho. Que me diz, boneca?"
Reuni uma última gota de combatividade."Prefiro morrer a deixar que você me toque."
"Okay, beleza. Se você não me dá, eu tomo. Acho que você merece uma noite dura. Entendeu?" Beliscou-me cruelmente, fazendo-me gritar. Sluggsy riu encantado. "Isso mesmo. Cante, boneca!É bom mesmo ir praticando."
Empurrou-me pela porta aberta do fundo do prédio do saguão e fechou-a com chave depois de passar. A sala parecia exatamente igual - as luzes brilhando, o rádio martelando uma alegre música de dança, tudo cintilante, reluzente e polido sob a luz. Pensei como fora feliz naquela sala apenas algumas horas antes, pensei nas lembranças que tivera naquela poltrona, algumas agradáveis, outras tristes. Como pareciam pequenas agora minhas preocupações infantis! Como era ridículo falar em corações despedaçados e mocidade perdida quando, em uma esquina de minha vida, esses homens estavam saindo do escuro em minha direção. O cinema em Windsor? Era um pequeno ato em uma peça, quase uma farsa. Zurique? Era o paraíso. A verdadeira selva do mundo, com seus monstros verdadeiros, só raramente se mostra na vida de um homem, ou de uma moça, na rua. Mas está sempre lá. Você dá um passo errado, joga a carta errada no jogo do Destino e está perdido - perdido em um mundo que nunca imaginou, contra o qual não tem conhecimento, nem armas. Nem bússola.
O homem chamado Horror ficou em pé no meio da sala, parado, relaxado, com as mãos caídas dos lados. Observou-me com aqueles olhos sem curiosidade. Depois ergueu a mão direita e fez sinal com um dedo. Meus pés frios e machucados caminharam em direção a ele. Quando estava a apenas alguns passos dele, saí do transe. Lembrei-me de repente e minha mão subiu até o ensopado cós de minha calça. Senti a ponta do furador de gelo embaixo do avental. Ia ser difícil tirá-lo, alcançar o cabo. Parei diante dele. Ainda fitando meus olhos, sua mão direita saltou para cima como uma serpente atacando e esbofeteou-me, pife-pafe, à direita e à esquerda de meu rosto. As lágrimas correram de meus olhos, mas eu me lembrei e agachei-me, como para escapar a outro golpe. Ao mesmo tempo, oculta pelo movimento, enfiei a mão direita dentro da cintura de minha calça. Quando me levantei, lancei-me contra ele, investindo selvagemente em direção à sua cabeça. O furador de gelo acertou, mas foi apenas um golpe de raspão, e de repente meus braços foram agarrados por trás e eu fui puxada para trás.
Escorria sangue de um corte acima da têmpora do rosto cinzento. Enquanto eu olhava, o sangue correu para o queixo. Mas o rosto estava impassível. Não demonstrava dor, mas apenas uma aterrorizadora intensidade de propósito e havia uma mancha vermelha bem no fundo dos olhos pretos.
O homem magro chegou-se a mim. Minha mão abriu-se e o furador de gelo caiu no chão com uma batida. Foi uma ação reflexa - a criança deixando cair a arma. Eu me entrego! Eu me rendo!Paz!
Depois, vagarosamente, quase cariciosamente, ele começou a bater-me, ora com a mão aberta, ora com o punho, escolhendo seus alvos com refinada e erótica crueldade. A princípio, torci-me, curvei-me e esperneei. Depois comecei a gritar, enquanto o rosto cinzento com o filete de sangue e os buracos pretos no lugar dos olhos observava e as mãos batiam e batiam.

*

Voltei a mim no chuveiro de minha casinha. Estava deitada nua sobre os ladrilhos, com os rasgados e sujos restos de minhas roupas ao meu lado. Sluggsy mascando um palito de dentes, estava encostado à parede com a mão sobre a. torneira de água fria. Seus olhos eram duas fendas brilhantes. Abriu a água e eu me ajoelhei, não sei como. Sabia que ia enjoar. Não me importei. Eu era um animal domesticado e choroso pronto para morrer. Senti ânsia de vômito.
Sluggsy riu. Curvou-se e bateu no meu traseiro."Vamos, boneca. Depois de um espancamento, a primeira coisa que todos fazem é vomitar. Depois, você se limpa bem, põe uma bela roupa nova e vai cuidar das coisas. Os ovos ficaram estragados com você fugindo daquele jeito. Nada de truques! Embora eu ache que você não tem estômago para mais nada. Estarei vigiando a casinha da porta do fundo. Agora, não se aflija, boneca. Não há sangue. Quase nenhum machucado. Horror sabe lidar com as moças. Você teve muita sorte. Ele é um cara bravo. Se tivesse ficado realmente furioso, estaríamos agora abrindo uma cova para você. Agradeça aos céus, boneca. Até já."
Ouvi a porta da casinha fechar-se com uma batida e depois meu corpo tomou conta.
Levei meia hora para refazer-me um pouco. Repetidas vezes, desejei apenas jogar-me na cama e deixar as lágrimas correrem até que os homens chegassem com suas armas para liquidar-me. Mas a vontade de viver voltou-me com os movimentos familiares de arrumar o cabelo e obrigar meu corpo, cansado, dolorido e enfraquecido pela lembrança de dor muito maior, a fazer o que eu queria. Vagarosamente surgiu no fundo de meu espírito a possibilidade de já ter passado pelo pior. Senão, por que ainda estava viva? Por alguma razão, aqueles homens queriam-me ali e não fora do caminho. Sluggsy era tão bom com sua pistola que poderia ter-me matado na certa quando tentei fugir. Suas balas haviam passado perto, mas não teriam sido apenas para assustar-me, para fazer-me parar?
Vesti meu macacão branco, que era bastante impessoal,e pus meu dinheiro em um dos bolsos - por precaução. Precaução para quê? Não haveria mais fugas. Depois, sentindo-me dolorida e fraca como uma gatinha, arrastei-me para o saguão.
Eram onze horas. A chuva ainda estava parada e a lua em quarto crescente atravessava nuvens velozes e leves, lançando sua intermitente luz branca sobre a floresta. Sluggsy estava enquadrado na abertura amarela, encostado à porta, mascando seu palito de dentes. Quando me aproximei, deu-me passagem."Assim é que deve ser. Nova como uma pintura. Um machucadinho aqui e outro acolá, talvez. Vai ter de dormir de costas mais tarde, hem? Mas isso é exatamente o que nos convém, não é, doçura?"
Quando não respondi, ele estendeu a mão e agarrou meu braço."Eh, eh! Que maneiras são essas, piva? Será que você está querendo também um tratamento do outro lado? podemos arranjar isso." Fez um gesto ameaçador com sua mão livre.
"Desculpe. Não tive a intenção."
"Okay, okay", disse ele, largando-me."Agora volte para lá e cuide das panelas e caçarolas. E não pense mais em atacar-me. Ou a meu amigo Horror. Veja o que você fez naquela bonita cara dele."
O homem magro estava sentado diante de sua velha mesa. O estojo de pronto-socorro da mesa de recepção estava aberto à sua frente e sobre sua têmpora direita havia um grande quadrado de esparadrapo. Dei-lhe um olhar rápido e assustado, e fui para trás do balcão. Sluggsy foi até onde ele estava e sentou-se. Os dois começaram a conversar em voz baixa, olhando para mim de vez em quando.
Preparar os ovos e o café fez com que eu sentisse fome. Não podia compreender isso. Desde que os dois homens haviam entrado por aquela porta, eu estivera tão tensa e assustada que não pudera engolir sequer uma xícara de café. Naturalmente, eu estava vazia por ter vomitado, mas de maneira curiosa e, segundo achei, bastante vergonhosa, a surra que levara relaxara-me misteriosamente. A dor, sendo muito maior que a tensão de esperar por ela, acalmara meus nervos e havia em meu corpo um curioso centro de calor e paz. Eu ainda estava assustada, naturalmente - aterrorizada, mas de maneira dócil e fatalística. Ao mesmo tempo, meu corpo dizia que estava com fome, que desejava readquirir suas forças, que desejava viver.
Assim, preparei ovos mexidos, café e torradas quentes para mim também e, depois de ter levado os deles, sentei-me fora de suas vistas por trás do balcão e comi os meus. Depois, quase calmamente, acendi um cigarro. No momento em que o acendi, compreendi que estava fazendo uma tolice. Chamava a atenção para mim. Pior ainda, mostrava que me refizera, que estava em condições de tentar novamente alguma coisa. Mas a comida e o simples negócio de comer - de pôr sal e manteiga sobre os ovos, açúcar no café - foram quase embriagadores. Eram parte da velha vida, de há mil anos, antes da chegada dos dois homens. Cada bocado - a garfada de ovo, a fatia de toucinho, o pedaço de torrada com manteiga - era uma coisa esquisita que ocupava todos os meus sentidos. Agora eu sabia o que era ter comida contrabandeada na prisão, ser prisioneiro de guerra e receber um pacote de casa, encontrar água no deserto, tomar uma bebida quente depois de ser salva de afogamento. O simples ato de viver, como era precioso! Se eu escapasse daquilo, saberia dessas coisas para sempre. Seria grata pelo ar que respirasse, por toda refeição que tomasse, por toda noite em que sentisse o beijo frio dos lençóis, a paz de uma cama por trás de uma porta fechada a chave. Por que nunca antes conhecera isso? Por que meus pais, minha religião perdida, nunca me ensinaram isso? De qualquer maneira, agora eu sabia. Tinha descoberto por mim mesma. O amor à vida nasce da consciência da morte, do medo da morte. Nada faz a gente ficar realmente grata pela vida, senão as asas negras do perigo.
Esses pensamentos febris nasciam da embriaguez da comida e de comê-la sozinha por trás da barricada do balcão. Por alguns momentos, voltei à vida antiga. Assim, despreocupada e para aproveitar o momento, acendi o cigarro.
Talvez um minuto depois, o murmúrio das vozes cessou. Por trás dos "Contos dos Bosques de Viena" que vinha baixinho do rádio, ouvi uma cadeira sendo arrastada-. Agora eu sentia pânico. Apaguei o cigarro no resto de meu café, levantei-me e comecei rapidamente a abrir torneiras e bater os pratos na pia de metal. Não voltei os olhos, mas pude ver Sluggsy atravessando a sala. Chegou até o balcão e debruçou-se sobre ele. Ergui os olhos como se estivesse surpreendida. Ele ainda mastigava o palito, passando-o de um lado para outro de sua boca oval de lábios grossos. Tinha uma caixa de "Kleenex" que colocou sobre o balcão. Puxou um punhado de papéis, assoou o nariz e jogou os papéis no chão. Disse com voz amável: "Você me fez apanhar um resfriado, piva. Toda aquela perseguição no mato. É esta doença minha, este negócio de alopecia que mata os cabelos. Sabe o que acontece? Mata os cabelos dentro do nariz também. Junto com o resto. E sabe o que acontece? Faz o nariz escorrer muito quando se apanha um resfriado. Você me fez apanhar um resfriado, piva. Isso significa uma caixa de papel cada vinte e quatro horas. Talvez mais. Já pensou nisso? Já pensou alguma vez nas pessoas que não têm cabelos dentro do nariz? Diabo!" Os olhos sem cílios ficaram de repente duros de raiva."Vocês, vadias, são sempre iguais. Só pensam em si. Os caras que têm encrencas que vão para o inferno! Vocês só querem saber dos boas-vidas."
Fazendo-me ouvir acima do barulho do rádio, disse em voz baixa: "Eu lamento suas encrencas. Por que vocês não lamentam as minhas?" Falei rapidamente, veementemente."Por que vocês dois vieram aqui e me bateram? Que fiz eu para vocês? Por que não me deixam ir embora? Se deixarem, prometo não dizer uma palavra a ninguém. Tenho um pouco de dinheiro. Poderia dar-lhes um pouco dele. Digamos, uns duzentos dólares. Não posso dar mais. Preciso do resto para ir até a Flórida. Por favor, não quer deixar-me ir embora?
Sluggsy deu uma grande gargalhada. Virou-se e falou para o homem magro."Eh, traga-me uma toalha para eu enxugar as lágrimas, Horror. Esta vadia diz que entrará com duzentos dólares se a deixarmos dar o fora." O homem magro encolheu ligeiramente os ombros, mas não fez comentários. Sluggsy virou-se de novo para mim. Seus olhos estavam duros e sem piedade. Disse: "Seja esperta, piva. Você faz parte do número e tem um papel de estrela a desempenhar. Devia estar encantada por despertar tanto interesse em caras ocupados e importantes como Horror e eu, e em um figurão como o Sr. Sanguinetti."
"Qual é o número? Que querem vocês de mim?"
Sluggsy disse em tom indiferente: "Você ficará sabendo de manhã. Enquanto isso, que tal fechar essa estúpida boquinha? Essa conversa toda está torcendo minha orelha. Quero um pouco de ação. É bonito isso que estão tocando. Que tal você e eu dançarmos juntos? Fazer uma pequena exibição para Horror. Depois, iremos até o monte de feno e juntaremos os corpos. Vamos, franguinha." Estendeu os braços, estalando os dedos ao ritmo da música e dando alguns passos rápidos.
"Sinto muito. Estou cansada."
Sluggsy aproximou-se novamente do balcão. Disse raivosamente: "Você está sendo muito atrevida em responder-me assim. Vadia barata! Vou mostrar-lhe uma coisa que a fará ficar cansada de verdade."
De repente apareceu em sua mão um pequeno e obsceno bastão de couro preto. Deixou-o cair com uma batida surda sobre o balcão. Ficou uma marca funda na fórmica. Ele começou a mover-se devagarinho em volta da ponta do balcão, cantarolando, com os olhos fitos nos meus. Recuei para o canto mais distante. Esse ia ser meu último gesto. Por alguma razão, eu precisava feri-lo antes de tombar. Minha mão tateou a gaveta aberta de talheres. De repente apanhei um punhado e joguei, com um só movimento. Seu mergulho não foi suficientemente rápido e a chuva prateada de facas e garfos estourou em roda de sua cabeça. Ele pôs uma mão sobre o rosto e recuou, praguejando. Arremessei mais e depois ainda mais, mas os talheres passaram inofensivamente em roda de sua cabeça curvada. Agora o homem magro estava se movendo rápido através da sala. Agarrei a faca comprida e fiz uma investida na direção de Sluggsy, mas ele me viu aproximar-se e escondeu-se atrás de uma mesa. Sem pressa, Horror tirou o paletó e embrulhou-o no braço esquerdo. Depois os dois apanharam cadeiras e, segurando-as com as pernas para a frente como chifres de touro, avançaram sobre mim por ambos os lados. Dei uma facada inútil na direção de um braço e depois a faca foi arrancada de minha mão. Não pude fazer outra coisa senão voltar para trás do balcão.
Ainda segurando a cadeira, Sluggsy veio atrás de mim e, enquanto eu o enfrentava, com um prato em cada mão, o homem magro debruçou-se rapidamente sobre o balcão e agarrou-me pelos cabelos. Joguei os pratos de lado, mas eles foram quebrar-se no chão. Minha cabeça estava sendo curvada sobre o balcão e Sluggsy estava em cima de mim.
"Okay, Horror. Solte-a. Isto é para mim."
Senti seus braços poderosos ao meu redor, esmagando-me, e seu rosto estava encostado ao meu, beijando-me brutalmente, enquanto sua mão subiu até o zíper em meu pescoço e abriu-o de alto a baixo até a cintura.
Houve então o som agudo da campainha na porta da frente e todos nós ficamos imóveis.













TERCEIRA PARTE - ELE


10 - Que é isso?

"CRISTO, que é isso? "Sluggsy recuara e sua mão estava dentro do blusão de couro.
Horror refez-se primeiro. Havia uma fria expressão de ódio em seu rosto. "Fique atrás da porta, Sluggsy. Não atire enquanto eu não disser. Você, disse, cuspindo as palavras em minha direção, se arrume um pouco. Vai servir de fachada para nós. Se não o fizer bem feito, está morta. Entendeu? Será costurada. Agora vá até a porta e veja quem é. Entendeu? E tire essa expressão idiota do rosto. Ninguém vai machucá-la se fizer o que eu digo. Feche esse zíper, diabo!" Eu estava lutando com o negócio. Estava emperrado. "Bem, segure o negócio fechado no peito e vá andando. Eu estarei bem atrás de você. E não se esqueça, uma palavra errada e será costurada pelas costas. E o cara também. Agora, corra para lá."
Meu coração batia furiosamente. De qualquer maneira acontecesse o que acontecesse, eu ia salvar-me!
Houve uma batida forte na porta. Avancei vagarosamente, segurando a parte superior de meu macacão. Sabia o que tinha de fazer primeiro!
Quando cheguei à porta, Sluggsy inclinou-se de lado e virou a chave. Agora tudo dependia da rapidez de minhas mãos. Peguei o trinco da porta com a mão esquerda e, enquanto o virava, minha mão direita largou o macacão, avançou sobre a corrente e soltou-a. Alguém praguejou baixinho atrás de mim e eu senti uma arma cutucar-me nas costas, mas então já havia aberto a porta de par em par, esmagando Sluggsy contra a parede atrás dela. Havia-me arriscado, sem saber se era talvez a polícia ou uma patrulha rodoviária, na esperança de que eles não atirassem. Não atiraram. Tudo agora dependia do homem solitário que estava em pé diante da porta.
À primeira vista, soltei um gemido por dentro. Santo Deus, era outro deles! Estava ali em pé, muito quieto e controlado, sob certo aspecto com a mesma qualidade de implacabilidade dos outros. E vestia aquele uniforme que, devido aos filmes, a gente associa a gangsters - um impermeável azul-escuro cinturado e um chapéu de feltro preto bem puxado para baixo. Tinha boa aparência, embora de maneira sombria, quase cruel, e havia uma cicatriz esbranquiçada em sua face esquerda. Ergui rapidamente a mão para esconder minha nudez. Então ele sorriu e de repente pensei que talvez tudo estivesse bem.
Quando falou, meu coração saltou. Era inglês!
"Desculpe. Estou com um pneu furado. E vi o anúncio de "Há Vagas". Poderia arranjar-me um quarto para passar a noite?" Agora ele me olhava com curiosidade, percebendo que havia algo de errado.
Aquilo ia ser arriscado! Nós dois poderíamos facilmente ser mortos."Sinto muito", disse eu, "mas o motel está fechado. O anúncio de "Há Vagas" está ligado por engano." Enquanto dizia isso, fiz sinal com o dedo indicador sobre o peito, convidando-o a entrar. Ele pareceu intrigado. Eu tinha de fazer-lhe uma insinuação.
"O pneu está tão ruim que não dá para ir até Lake George?"
"Creio que não. Já andei um quilômetro sobre o aro. Já deve estar na lona."
Imperceptivelmente sacudi a cabeça para trás, sugerindo-lhe que entrasse."Bem, os homens do seguro estão aqui, mandados pelo proprietário. Tenho de perguntar a eles. Espere aí." Novamente fiz sinal com o dedo. Depois me virei e dei dois passos para dentro, ficando perto da porta para que nenhum deles pudesse batê-la. Mas os dois estavam para trás, com as mãos nos bolsos, olhando para mim de maneiras diferentes, mas ambos furiosos. O homem de impermeável aceitara minha sugestão e agora já estava bem dentro da sala. Quando viu os outros dois homens, seu rosto assumiu uma expressão vigilante, mas ele disse em tom casual: "Creio que ouviram tudo. Há alguma objeção a que eu passe a noite aqui?"
Sluggsy disse desdenhosamente: "Cristo! Um gringo! Que é isto?Nações Unidas?"
O homem magro disse laconicamente: "Nada feito, amigo. Você ouviu o que a moça disse. O motel está fechado. Vamos dar-lhe uma mão para trocar o pneu e depois poderá ir embora."
O inglês disse calmamente: "Já é um pouco tarde da noite para isso. Vou para o sul e duvido que haja alguma coisa nesta estrada antes de Glens Falls. Penso que prefiro ficar aqui. Afinal de contas, o anúncio de "Há Vagas" está ligado.
"Ouviu o que eu disse, cavalheiro." A voz de Horror agora estava áspera. Virou-se para Sluggsy. "Vamos. Vamos dar uma mão ao cara naquele pneu." Ambos deram um passo em direção à porta. Mas o inglês, que Deus o abençoe, fincou pé no terreno.
"Acontece que tenho amigos em Albany, amigos muito importantes. Vocês não querem perder a licença do motel, querem? O anúncio de "Há Vagas" está ligado e o estabelecimento está iluminado. Eu exijo um quarto." Virou-se para mim. "Será muito trabalho para você?"
Respondi de um jorro: "Oh, não! Absolutamente nenhum. Não demorarei mais de um minuto para arrumar um quarto. Tenho certeza que o Sr. Sanguinetti não gostaria de perder sua licença."
Voltei-me com inocentes olhos arregalados para os dois gangsters. Eles pareciam estar a ponto de sacar de suas armas, mas o homem magro afastou-se e Sluggsy seguiu-o. Ficaram por um momento falando em sussurros. Aproveitei a oportunidade para acenar com a cabeça urgente e implorativamente para o inglês, que me deu outro daqueles sorrisos tranqüilizadores.
O homem magro virou-se e disse: "Okay, gringo. Pode ocupar o quarto. Mas não tente fazer-nos de bobos com essa conversa de Albany. O Sr. Sanguinetti também tem amigos na capital. Talvez você tenha razão quanto àquele anúncio de "Há Vagas". Mas não abuse de sua sorte. Estamos tomando conta disto aqui e o que dissermos vale. Está certo?"
"Para mim, está muito certo. E obrigado. Vou buscar minha mala."
Virou-se para sair. Eu disse rapidamente: "Vou ajudá-lo." Corri à frente dele, puxando furiosamente meu zíper, sentindo-me envergonhada de minha aparência. Felizmente, o zíper cedeu de repente e puxei-o até o pescoço.
Ele me alcançou. Pelo canto da boca, eu disse urgentemente, pois tinha certeza que um dos dois homens viera até a porta e nos estava observando: "Obrigada! E graças a Deus você apareceu! Eles iam matar-me. Mas tenha cuidado, pelo amor de Deus. São gangsters. Não sei o que querem. Deve ser alguma coisa má. Atiraram em mim quando tentei fugir."
Chegamos ao carro. Era um "Thunderbird" de dois lugares, cinza escuro, com capota de lona creme. Um belo carro. Foi o que eu disse. Ele respondeu laconicamente que era alugado. "Vamos para o outro lado", disse ele."Finja que está admirando o carro." Debruçou-se e abriu a porta baixa e ficou mexendo dentro. Disse: "Os dois estão armados?"
"Estão."
"Quantas armas cada um?"
"Não sei. O menor é craque na pontaria. A cinqüenta metros mais ou menos. Sobre o outro não sei."
Ele tirou uma pequena mala preta, colocou-a no chão e abriu-a. Apanhou algo debaixo das roupas e enfiou em um bolso de dentro. Rebuscou em um dos lados da mala, tirou alguns objetos pretos e finos que me pareceram pentes de balas e guardou-os. Depois, tornou a fechar a mala e disse."É melhor ter bastante munição." Bateu a porta do carro com ostentação e endireitou o corpo. Nós dois fomos até atrás do carro e nos ajoelhamos para examinar o pneu murcho. Ele disse:"E o telefone?"
"Está cortado."
"Dê-me a casinha ao lado da sua."
"Naturalmente."
"Muito bem. Vamos. E fique perto de mim, seja o que for que eles façam ou digam."
"Sim e obrigada." Ele se levantou e sorriu."Espere até sairmos desta."
Voltamos juntos. Sluggsy, que estava em pé na porta, fechou-a depois de passarmos e virou a chave. Como se tivesse pensado melhor, estendeu a mão e desligou o anúncio de "Há vagas". Depois disse: "Aqui está sua chave, gringo", e jogou a chave sobre a mesa.
Apanhei-a e olhei o número. Quarenta, a última à esquerda. Disse firmemente: "O cavalheiro vai para o número 10, perto da minha."Caminhei em direção à mesa, esquecendo-me de que Sluggsy tinha todas as outras chaves.
Sluggsy seguiu-me. Riu ao dizer: "Nada feito, boneca. Nada sabemos a respeito desse cara. Por isso, Horror e eu vamos dormir dos dois lados de você. Só para que você não seja incomodada. O resto das chaves está guardado, pronto para a mudança. Há só esse número 40 e mais nada." Voltou-se para o inglês."Eh, gringo. Como é seu nome?"
"Bond. James Bond."
"É um nome meio besta. Da Inglaterra, não?"
"Isso mesmo. Onde está o registro? Eu soletro para você."
"Engraçadinho, eh? Em que é que você trabalha?"
"Polícia."
A boca de Sluggsy abriu-se. Correu a língua pelos lábios. Virou-se e falou com Horror, que estava sentado à sua velha mesa: "Eh, Horror. Sabe o que mais? Este cara é um tira gringo! Sabia disso? Um tira!"
Horror acenou com a cabeça. "Acho que eu já tinha cheirado isso. Que tem? Não estamos fazendo nada de mal."
"Sim", disse Sluggsy ansiosamente, "é isso mesmo." Virou-se para o tal Sr. Bond. "Agora, não vá ficar ouvindo a conversa dessa vadia. Somos do seguro, sabe? Uma espécie de avaliadores. Trabalhamos para o Sr. Sanguinetti. Ele é um figurão em Troy. É dono deste negócio. Bem, os administradores queixaram-se de que estava faltando dinheiro. Outras coisas também. Por isso viemos realizar uma espécie de investigação e quando começamos a fazer perguntas a esta vadia ela meteu um furador de gelo no meu amigo, bem na caixa do crânio. Pode ver." Fez um gesto em direção a Horror."Que acha? Por isso, estávamos apenas, segurando-a, mais ou menos, quando você chegou." Virou-se para o outro."Não é isso, Horror?"
"É a verdade. Foi assim mesmo."
Eu disse furiosa: "Vocês sabe que isso tudo é mentira." Fui até a porta do fundo e apontei para a armação entortada e a marca do chumbo. "Como é que esse buraco de bala veio parar aqui?"
Sluggsy riu calorosamente, ao dizer: "Pode revistar-me, irmã." Voltou-se para Horror."Você viu alguma bala voando por aí?"
"Não, não vi", a voz de Horror tinha uma expressão de enfado. Fez um gesto lânguido com a mão em direção ao chão perto do balcão. "Mas vi a moça jogar um monte de ferragem em meu companheiro." Seus olhos desviaram-se vagarosamente para mim. "Não foi isso, moça? E há uma faca comprida aí em algum lugar. Boa idéia apresentar queixa de agressão contra você amanhã cedo."
"Experimente fazer isso!", disse eu exaltadamente. "Verá onde você vai parar! Sabe perfeitamente que eu estava tentando defender-me. E quanto a essa história do dinheiro, é a primeira vez que ouço falar nisso. E você sabe disso."
O inglês interveio calmamente. "Bem, parece que cheguei no momento exato para restabelecer a paz. Agora, onde está aquele registro para eu assinar?"
Sluggsy disse bruscamente: "O registro está com o patrão. Não adianta você assinar nada. Você não vai pagar. A casa está fechada. Sua cama pode ser por conta da casa."
"Bem, obrigado. É muita bondade sua", disse James Bond, virando-se depois para mim. "Seria possível arranjar-me alguns ovos, toucinho e café? Essa conversa toda me deixou com fome. Eu mesmo posso preparar se houver o material."
"Oh, não!" exclamei, quase correndo para trás do balcão."Eu gosto de fazer isso."
"Muito obrigado."
Voltou as costas para Sluggsy, caminhou vagarosamente até o balcão e sentou-se em uma banqueta, colocando sua mala na outra.
Pelo canto dos olhos, observei Sluggsy virar nos calcanhares, andar rapidamente até onde estava o homem magro, sentar-se e começar a falar com urgência.
James Bond olhou para eles sobre os ombros, desceu da banqueta, tirou o impermeável e o chapéu, colocou-os em cima da mala e voltou a sentar-se. Ficou observando silenciosamente os dois homens no comprido espelho atrás do balcão, enquanto eu me ocupava em cozinhar as coisas, medindo-o com rápidos olhares.
Tinha mais ou menos um metro e oitenta, magro e forte. Os olhos no rosto magro e ligeiramente bronzeado eram de um azul-cinza muito claro e, enquanto observavam os homens, eram frios e vigilantes. Os olhos apertados e vigilantes davam-lhe aquela aparência perigosa, quase cruel, que me assustara quando o vira pela primeira vez, mas agora, depois de ter visto como era capaz de sorrir, achei seu rosto apenas excitante, de uma maneira como nenhum rosto de homem já me excitara antes. Usava uma camisa de seda branca de aparência macia com uma gravata de malha preta, que caía solta sem alfinete. Seu terno, de paletó simples, era feito de um tecido azul-escuro leve, que talvez fosse alpaca. As mãos fortes pousavam quietas sobre seus braços cruzados em cima do balcão. Ele baixou a mão para o bolso de trás da calça, tirou uma cigarreira cinzento escura, larga e fina, e abriu-a.
"Quer um? "Sênior Service." Acho que daqui por diante terei de fumar "Chesterfield".
Sua boca virou-se ligeiramente para baixo quando sorriu.
"Não, obrigada. Agora não. Depois de ter feito a comida."
"A propósito, como é seu nome? Você é canadense, não é?"
"Sim, de Quebec. Mas passei na Inglaterra os últimos cinco anos, mais ou menos. Chamo-me Vivienne Michel. Meus amigos chamam-me de Viv."
"Como é que você se meteu nesta encrenca? Aqueles são dois dos mais perigosos bandidos que tenho visto nos últimos anos. E Troy é uma cidade ruim... uma espécie de subúrbio do crime de Albany. O magro acaba de cumprir uma longa pena de prisão. Como meu chapéu, se não for verdade. O outro parece da pior espécie de tarado. Como aconteceu isso?"
Contei-lhe, em rápidos jorros enquanto preparava a comida, cortando tudo menos o essencial. Ouviu-me em silêncio e sem comentários. Ainda vinha música do rádio, mas os dois gangsters estavam sentados em silêncio observando-nos, por isso conservei minha voz baixa. Quando concluí, perguntei: "Mas é verdade que você é da polícia?"
"Não é bem isso. Mas trabalho em negócio dessa espécie."
"Quer dizer, detetive?"
"Bem, mais ou menos."
"Eu sabia!"
Ele riu e perguntou: "Como?"
"Oh, não sei. Mas você parece... parece perigoso. E aquilo que tirou da mala era uma arma e munição. Você é... - eu me sentia embaraçada, mas precisava saber - você é... oficial?Quero dizer, do governo?"
Ele sorriu tranqüilizadoramente. "Oh, sim. Não se preocupe com isso. E em Washington me conhecem. Se sairmos bem disto, irei atrás daqueles dois." Seus olhos estavam frios de novo."Vou fazer com que sejam fritos pelo que fizeram com você,"
"Acredita em mim?"
"Naturalmente. Em tudo quanto disse. Mas o que não consigo descobrir é o que pretendem fazer. Parecem ter, agido como se soubessem que podiam fazer o que quisessem com você sem o menor risco. E agora parecem absolutamente calmos quanto à minha entrada no negócio. Não estou gostando disso. Eles beberam alguma coisa? Fumam?"
"Não. Nenhum dos dois."
"Não estou gostando disso também. Só profissionais agem assim."
Acabei de preparar seu jantar e pus em cima do balcão. Ele comeu como se realmente estivesse com fome. Perguntei-lhe se estava bom. Disse que estava maravilhoso, o que me fez sentir um calor por dentro. Que sorte fantástica esse homem, e exatamente esse homem, ter saído assim màgicamente do céu! Eu me sentia humilde. Era um milagre tão grande! Jurei a mim mesma rezar minhas orações naquela noite, pela primeira vez depois de anos. Fiquei rodeando-o servilmente, oferecendo-lhe mais café e um pouco de geléia para passar no resto de sua torrada. Por fim, ele riu ternamente para mim, dizendo: "Você está me estragando de mimos. Desculpe, havia-me esquecido. É hora do seu cigarro. Você merece o maço inteiro." Acendeu-o com um "Ronson", cinzento-escuro como a cigarreira. Minha mão tocou a sua e eu senti um pequeno choque descer pelo meu corpo. De repente, percebi que estava tremendo. Tirei os pratos rapidamente e comecei a lavá-los. Disse: "Não mereço nada. É tão maravilhoso você estar aqui! É um verdadeiro milagre." Minha voz estrangulou-se e senti estúpidas lágrimas virem-me aos olhos. Esfreguei os olhos com as costas da mão. Ele deve ter visto, mas fingiu que não viu.
Ao invés disso, falou jovialmente: "Sim. Foi muita sorte. Pelo menos, espero que tenha sido. Ainda não podemos contar com os resultados. Vou dizer-lhe o que precisamos fazer. Vamos ficar sentados até aqueles dois bandidos cansarem-se. Esperar que eles se movam, que vão dormir ou qualquer outra coisa. Você gostaria de saber como é que apareci esta noite? Os jornais vão publicar dentro de um ou dois dias. A história. Só que eu não serei mencionado. Por isso, precisa prometer que se esquecerá de minha participação no caso. Na realidade, é uma tolice. Esses regulamentos... Mas eu tenho de trabalhar de acordo com eles. Está bem? Talvez faça você esquecer-se de suas preocupações. Que parecem ser bem grandes."
Eu disse agradecida: "Sim, por favor, conte-me. Eu prometo. Juro."


11 - História para fazer dormir

SENTEI-ME na pedra da pia bem ao lado dele para que pudesse falar-me em voz baixa - e também para poder ficar perto dele. Recusei outro cigarro. Ele acendeu um cigarro e olhou por um longo minuto para o espelho, observando os dois gangsters. Eu também olhei. Os dois homens limitaram-se a responder ao olhar com uma hostilidade passiva e indiferente que escorria grossa através da sala como gás venenoso. Eu não estava gostando muito de sua indiferença e sua vigilância. Pareciam tão poderosos, tão implacáveis, como se toda a vantagem estivesse de seu lado e eles tivessem todo o tempo do mundo. Mas esse James Bond parecia não preocupar-se. Apenas parecia estar avaliando-os, como um jogador de xadrez. Havia em seus olhos uma certeza de poder, de superioridade, que me preocupava. Ele não vira aqueles homens em ação. Não podia saber do que eles eram capazes, que a qualquer momento poderiam disparar suas armas, fazendo nossas cabeças estourarem como cocos em uma barraca de tiro ao alvo, e depois jogar nossos corpos no lago com pedras para conservá-los no fundo. Mas então James Bond começou a falar e eu esqueci meus pesadelos. Fiquei apenas olhando seu rosto e ouvindo.
"Na Inglaterra", disse ele, "quando um homem, ou ocasionalmente, uma mulher vem do outro lado, do lado russo, com informações importantes, há uma rotina fixa. Veja Berlim, por exemplo, que é a rota de chegada mais comum. Para começar, eles são levados ao quartel-general do serviço secreto e tratados inicialmente com extraordinária suspeita. Isso é para tentar eliminar os agentes duplos - pessoas que fingem aderir e, depois de terem sido consideradas seguras, começam a espionar-nos por dentro, por assim dizer, e mandam suas informações aos russos. Há também os agentes triplos - pessoas que fazem o que os agentes duplos fizeram, mas mudam de idéia e, sob nosso controle, passam informações falsas aos russos. Está compreendendo? Na realidade, tudo não passa de um jogo complicado. Mas o mesmo se pode dizer da política internacional, da diplomacia - todas as complicações do nacionalismo e do complexo de poder que há entre os países. Ninguém pára de fazer o jogo. É como o instinto de caçar."
"Sim, compreendo. Para minha geração, isso tudo parece idiota. Na verdade, é como o velho jogo de "Attaque". Precisamos de mais Jack Kennedys. É tudo por causa dessa gente velha que anda por aí. Deviam entregar o mundo a gente mais moça que não tivesse a idéia de guerra gravada no subconsciente. Como se fosse a única solução. Como bater em crianças. É mais ou menos a mesma coisa. Tudo isso é antiquado - coisa da Idade da Pedra."
Ele sorriu.
"Na verdade, eu concordo, mas não espalhe muito suas idéias senão ficará sem emprego. Seja como for, depois de ter passado pelo filtro em Berlim, a pessoa que veio para o nosso lado é levada em avião para a Inglaterra, onde é feito o negócio: você nos conta tudo quanto sabe sobre as bases russas de foguetes e em troca nós lhe damos um novo nome, um passaporte britânico e um esconderijo onde os russos nunca o encontrarão. É disso naturalmente que eles mais têm medo de ser perseguidos e mortos pelos russos. E, se fizerem nosso jogo, poderão escolher entre o Canadá, Austrália, Nova Zelândia ou África. Assim, depois de nos contarem tudo quanto sabem, são levados em avião para o país que escolheram, onde uma comissão de recepção organizada pela polícia local, negócio muito secreto, naturalmente, toma conta deles. Gradualmente se acomodam em um emprego e em uma comunidade, como se fossem imigrantes comuns. Quase sempre dá certo. No começo ficam com saudade de sua terra e têm dificuldade em ajustar-se, mas há sempre por perto algum membro da comissão de recepção para dar-lhes o auxílio de que precisam."
James Bond acendeu outro cigarro.
"Não estou contando coisa alguma que os russos não saibam. O único aspecto secreto do negócio é o endereço dessas pessoas. Há um homem que chamarei de Bóris. Está no Canadá, em Toronto. Era uma jóia... de vinte e quatro quilates. Era categorizado construtor naval em Cronstadt, com elevada posição na equipe de submarinos nucleares dos russos. Fugiu para a Finlândia e depois para Estocolmo. Nós o apanhamos e o levamos para a Inglaterra. No mais das vezes, os russos nada dizem a respeito de seus desertores - limitam-se a praguejar e deixar que eles se arrumem. Quando são importantes, prendem suas famílias e mandam-nas para a Sibéria - a fim de assustar outras pessoas vacilantes: Mas no caso de Bóris foi diferente. Emitiram uma ordem geral a seus serviços secretos para eliminá-lo. Por acaso, uma organização chamada ESPECTRO ouviu a ordem."
James Bond olhou firme para os dois homens do outro lado da sala. Eles não se tinham movido. Estavam sentados, vigiando e esperando. Esperando o quê? James Bond virou-se novamente para mim.
"Não a estou aborrecendo?"
"Oh, não. Claro que não. É emocionante. Essa gente da ESPECTRO. Eu não li alguma coisa sobre ela? Nos jornais?"
"Acho que sim. Há menos de um ano houve aquele negócio das bombas atômicas roubadas. Foi a chamada Operação "Thunderball". Lembra-se?" Seus olhos tornaram-se distantes."Foi nas Bahamas".
"Oh, sim. Claro que me lembro. Estava tudo nos jornais. Quase não pude acreditar. Parecia coisa saída de um romance de aventuras. Por quê? Você esteve envolvido naquilo?"
James Bond sorriu.
"Marginalmente. Mas a verdade é que nunca liquidamos a ESPECTRO. Era uma espécie de rede independente de espionagem - "Executivo Especial de Contra-espionagem, Terrorismo, Vingança e Extorsão", era como eles se chamavam. Bem, eles se organizaram de novo e, como lhe disse, ficaram sabendo por acaso que os russos queriam matar Bóris. De algum modo, descobriram onde ele estava. Não me pergunte como. Essa gente é terrivelmente bem informada. Então, entraram em contato com o homem da K. G. B. em Paris, o chefe local do Serviço Secreto Russo, e comunicaram-lhe que fariam o trabalho por cem mil libras. Presumivelmente Moscou concordou, porque logo depois Ottawa - a famosa Polícia Montada - procurou-nos. Eles têm um Setor Especial com o qual trabalhamos em estreita cooperação nessa espécie de coisa. Informaram-nos que havia um ex-elemento da Gestapo em Toronto, um sujeito chamado Horst Uhlmann, estabelecendo contato com os gangsters de lá. Perguntaram-nos se sabíamos alguma coisa a respeito dele. Ele parecia desejar que um estrangeiro não identificado fosse eliminado e estava disposto a pagar cinqüenta mil dólares pelo serviço. Bem, juntaram-se dois e dois, e algum cara brilhante de nosso lado teve o palpite de que isso poderia ser uma tentativa dos russos contra Bóris. "Assim", continuou James Bond, cuja boca se curvou para baixo, "mandaram-me examinar o negócio."
Ele sorriu para mim.
"Você não preferiria ligar a televisão?"
"Oh, não. Continue, por favor."
"Bem, você sabe que tem havido muita encrenca em Toronto. É mesmo uma cidade turbulenta, mas agora estourou uma guerra em grande escala entre quadrilhas e você provavelmente leu que a Polícia Montada chegou a pedir dois categorizados detetives do c. i. D. da Scotland Yard para ajudada. Um desses sujeitos do c. i. D. conseguiu infiltrar um jovem e esperto canadense entre os "Mecânicos". Esse é o nome da mais perigosa quadrilha de Toronto, com ramificações através da fronteira, em Chicago e Detroit. Foi esse jovem que ouviu falar em Uhlmann e no que ele pretendia fazer. Bem, eu e meus companheiros da Polícia Montada pusemos mãos à obra e, resumindo a comprida história, descobrimos que Bóris era realmente o alvo e que os "Mecânicos" haviam concordado em executar o serviço na última quinta-feira -. isto é, há cerca de uma semana. Uhlmann sumira e não conseguimos descobrir o rastro dele. Só pudemos descobrir por intermédio de nosso homem entre os "Mecânicos" que ele concordara em chefiar o grupo assassino, que seria formado por três pistoleiros de alta posição na quadrilha. Seria um ataque frontal ao apartamento onde vivia Bóris. Não haveria figuração alguma. Iam simplesmente entrar pela porta da frente com metralhadoras portáteis, costurá-lo a tiros e dar o fora. Ia ser à noite, pouco antes da meia-noite, e os "Mecânicos" manteriam vigilância permanente no prédio de apartamentos para saber se Bóris voltava do emprego para casa e não saía mais.
"Bem, além de proteger Bóris, minha tarefa principal era agarrar esse Horst Uhlmann, porque já tínhamos o máximo possível de certeza de que ele era um elemento da ESPECTRO e uma de minhas funções é perseguir essa gente onde quer que apareça. Naturalmente, não poderíamos deixar Bóris correr perigo, mas se o levássemos para lugar seguro não haveria atentado contra sua vida e Uhlmann não apareceria. Por isso, tive de fazer uma sugestão bem desagradável."
James Bond sorriu sinistramente antes de prosseguir.
"Desagradável para mim, quero dizer. Pelas fotografias de Bóris, observei que havia entre ele e eu uma semelhança superficial - era mais ou menos da minha idade, alto, moreno e barbeado. Por isso, certo dia dei uma olhada nele, de dentro de um carro de chapa fria - isto é, uma viatura policial disfarçada - e observei como ele andava e que roupas vestia. Sugeri então que Bóris fosse afastado do caminho no dia marcado para o assassínio e que eu tomasse seu lugar na última etapa de sua viagem de volta ao apartamento."
Não pude deixar de dizer ansiosamente: "Oh, mas você não devia ter-se arriscado. E se eles modificassem o plano? Se decidissem atacar quando você estivesse descendo a rua, com uma bomba de retardamento ou coisa semelhante?"
James Bond encolheu os ombros.
"Pensamos em tudo isso. Era um risco calculado e é para isso que sou pago."
Sorrindo, continuou:
"Seja como for aqui estou. Mas não foi agradável descer aquela rua e fiquei muito contente quando me vi dentro do apartamento. A Polícia Montada ocupara o apartamento em frente ao de Bóris e eu sabia que tudo corria bem, que me cabia apenas fazer o papel do bode amarrado como isca enquanto os caçadores alvejavam a caça. Poderia ter ficado fora do apartamento, escondido em algum lugar do prédio até estar tudo acabado, mas tinha o palpite de que o bode precisava ser genuíno. Estava certo, pois às onze horas o telefone tocou e uma voz de homem disse: "É o Sr. Bóris?", chamando-o pelo nome que adotara. Respondi: "Sim. Quem está falando?" procurando dar à voz um sotaque estrangeiro. O homem explicou: "Obrigado. Aqui é da Lista Telefônica. Estamos apenas conferindo os assinantes de seu distrito. Boa noite. " Disse boa noite e agradeci à minha boa estrela ter estado lá para atender ao telefonema falso, cujo objetivo era verificar se Bóris estava em casa.
"A última hora foi um trabalho nervoso. Ia haver muito tiroteio e provavelmente muita morte. Ninguém aprecia essa perspectiva, mesmo que não espere ser atingido. Eu tinha duas armas, pesadas e feitas para machucar realmente. Quando faltavam dez para a meia-noite, assumi minha posição à direita da porta em um ângulo de sólida parede e preparei-me para o caso de Uhlmann ou um dos pistoleiros conseguir atravessar o corredor diante do pessoal da Polícia Montada. Para dizer-lhe a verdade, enquanto os minutos passavam e eu imaginava o carro dos assassinos descendo a rua, os homens desembarcando e correndo silenciosamente escada acima, desejei ter aceito a proposta da Polícia Montada para que um de seus homens partilhasse comigo da vigília, como eles diziam. Mas seriam cinco horas de tête-à-tête e, além de não saber sobre o que poderíamos conversar durante todo esse tempo, eu sempre preferi trabalhar sozinho. Eu sou assim. Bem, os minutos ê os segundos passaram-se. Depois, bem na hora, quando faltavam cinco minutos para meia-noite, ouvi o barulho de solas de borracha na escada e então o diabo ficou solto."
James Bond fez uma pausa. Passou a mão pelo rosto. Era um gesto que se destinava a limpar os olhos da mente ou tentar apagar dela alguma lembrança. Depois acendeu outro cigarro e continuou:
"Ouvi o tenente que comandava o grupo da Polícia Montada gritar: "É a lei! Mãos ao alto!" Depois, houve uma mistura de disparos isolados e rajadas da matraca..." - sorriu ao explicar, "desculpe, metralhadora" - e alguém gritou. Então o tenente berrou: "Agarrem aquele homem!" Um momento depois, a fechadura da porta saltou ao meu lado e o homem entrou correndo. Tinha uma metralhadora fumegante encostada aos quadris, que é a maneira de usá-la, e correu de um lado para outro no pequeno apartamento procurando Bóris. Eu sabia que era Uhlmann, o ex-elemento da Gestapo. Em meu serviço, a gente precisa conhecer o cheiro de alemão, e também de russo. Eu o tinha na minha mira. Atirei contra sua arma, que lhe saltou das mãos. Mas ele foi rápido. Pulou para trás da porta aberta. A porta era apenas uma fina tábua de madeira. Não podia sujeitar-me ao risco de ele ter outra arma e disparar primeiro, por isso tracei um largo "Z" com balas através da madeira, curvando mais meus joelhos ao fazê-lo. Foi uma sorte ter feito isso, porque ele disparou uma rápida série de tiros que quase fizeram uma risca em meus cabelos, quando eu estava meio ajoelhado. Mas ele fora atingido por dois de meus tiros, no ombro esquerdo e no quadril direito, como fiquei sabendo depois. Caiu atrás da porta e ficou quieto.
"O resto dos participantes da batalha do lado de fora desaparecera escada abaixo atrás dos pistoleiros, mas um dos homens da Polícia Montada apareceu de repente na entrada do apartamento, rastejando, sobre as mãos e os joelhos, para ajudar-me."Precisa de ajuda, companheiro?", disse ele. Uhlmann disparou através da porta ao ouvir a voz e... bem, matou o homem. Mas isso me permitiu saber a altura da arma de Uhlmann e disparei quase ao mesmo tempo que ele. Depois corri para o centro da sala para dar-lhe mais alguns se fosse preciso. Mas não foi. Ele ainda estava vivo e quando os outros homens da Polícia Montada subiram de novo a escada, levamo-lo para uma ambulância e tentamos fazê-lo falar no hospital. Mas não falou - uma mistura de Gestapo e ESPECTRO é coisa dura - e morreu na manhã seguinte."
Bond olhou-me nos olhos, mas parecia não ver-me. Disse: "Perdemos dois do nosso lado, além de outro ferido. Eles perderam o alemão e um dos seus, enquanto os outros dois não vão durar muito. Mas o campo de batalha oferecia um espetáculo horrível e, bem", - seu rosto pareceu de repente contorcido e cansado - "eu já vi bastante coisa dessa espécie. Depois de terminadas as diversas autópsias, eu quis ir embora. Meus chefes, que a Polícia Montada apoiou, quiseram que eu fosse a Washington para relatar todo o caso a nossas congêneres de lá, a fim de obter seu auxílio na eliminação da parte americana da quadrilha dos "Mecânicos". Os "Mecânicos" haviam sofrido rude golpe e o Setor Especial da Polícia Montada achou que seria boa idéia atacá-los de novo enquanto estavam estonteados. Concordei, mas disse que iria de automóvel e não correndo de avião ou trem. Deram-me permissão para isso, desde que não me demorasse mais de três dias na viagem. Assim, aluguei esse carro e parti hoje de madrugada. Eu ia indo muito bem, bastante depressa, quando encontrei uma tempestade diabólica, resto da sua, suponho eu. Cheguei até Lake George e pretendia passar a noite lá, mas me pareceu um lugar tão infernal que, quando vi em uma estrada secundária uma tabuleta anunciando este motel, decidi arriscar-me."
Sorriu para mim. Agora, parecia novamente bastante alegre.
"Talvez algo me tenha dito que você estava no fim da estrada e que se encontrava em dificuldade. Seja como for, um pneu furou a um quilômetro daqui e aqui estou eu."
Sorriu de novo e estendeu a mão, colocando-a sobre a minha em cima do balcão.
"É engraçado como as coisas acontecem!"
"Mas você deve estar absolutamente esgotado, depois de guiar tanto."
"Tenho uma coisa boa para isso. Seja boazinha e dê-me outra xícara de café."
Enquanto eu me ocupava com a cafeteira, abriu sua mala e apanhou um pequeno vidro de pílulas brancas. Tirou duas e, quando lhe dei o café, engoliu-as.
"Benzedrina. Isso me deixará acordado a noite inteira. Darei um jeito de dormir um pouco amanhã."
Seus olhos voltaram-se para o espelho.
"Oba! Aí vêm eles."
Deu-me um sorriso de encorajamento, enquanto acrescentava: "Agora, não se preocupe. Procure dormir um pouco. Eu estarei por perto para que não haja encrenca."
A música do rádio cessou e os carrilhões musicais anunciaram meia-noite.



12 - Dormir... talvez morrer!

ENQUANTO Sluggsy caminhava para a porta do fundo e saía para a noite, o homem magro aproximou-se vagarosamente de nós. Debruçou-se na ponta do balcão. "Okay, pessoal. Vamos acabar com isso. É meia-noite. Vamos desligar a eletricidade. Meu amigo foi buscar lampiões de emergência no depósito. Não convém gastar energia. São ordens do Sr. Sanguinetti."
As palavras eram amistosas e razoáveis. Teriam eles decidido abandonar seus planos, fossem quais fossem, por causa desse James Bond? Eu duvidava. Os pensamentos que a história de James Bond expulsara para longe voltaram em torrentes. Eu ia precisar dormir com aqueles dois homens dos dois lados, nas casinhas vizinhas. Precisava tornar meu quarto impenetrável. Mas eles tinham a chave-mestra! Precisava fazer com que Bond me ajudasse.
James Bond soltou um enorme bocejo.
"Bem, ficarei satisfeito em dormir um pouco. Viajei muito hoje e tenho muito mais para percorrer amanhã. Vocês também devem estar ansiosos por uma cama, com todas as suas preocupações."
"Como disse, cavalheiro?"
Os olhos do homem magro avivaram-se.
"É um trabalho de grande responsabilidade esse de vocês."
"Que trabalho?"
"Ora, ser avaliador de seguro. Em uma propriedade valiosa como esta. Acho que deve valer meio milhão de dólares. A propósito, vocês têm fiança?"
"Não, não temos. O Sr. Sanguinetti não precisa exigir fiança de quem trabalha para ele."
"Isso é um grande elogio a quem trabalha para ele. Ele deve ter gente boa. Faz muito bem em depositar confiança nela. A propósito, qual é o nome de sua companhia de seguros?"
"Metro, Acidentes e Residências."
O homem magro ainda se debruçava relaxado sobre o balcão, mas o rosto cinzento agora estava tenso.
"Por quê? Que tem com isso, cavalheiro? Seria bom parar com essas insinuações e dizer logo o que está pensando."
Bond disse descuidadamente: "Aqui a Srta. Michel estava-me contando que o motel não vai indo muito bem. Eu soube que o estabelecimento não foi aceito como membro das "Quality Courts", "Holiday Inns" ou "Congress". É difícil fazer muito negócio sem ser filiado a uma dessas organizações. E todo esse trabalho de mandar vocês contar as colheres, desligar a luz e outras coisas..."
James Bond parecia demonstrar simpatia.
"Apenas pensei que o negócio talvez estivesse afundando. Se for assim, é uma pena. Bela instalação esta aqui e ótimo local."
A mancha vermelha que eu vira uma vez, terrivelmente, aparecia agora de novo nos olhos do homem magro. Ele disse: "É melhor calar a boca, cavalheiro. Não vou agüentar mais piadinhas de gringo, entendeu? Está sugerindo que isto não é legal? Talvez pense que armamos alguma coisa, não?"
"Não se ofenda, Sr. Horowitz. Não há necessidade de se arrepiar", disse Bond, sorrindo largamente. "Como vê, eu também conheço a língua." Seu sorriso desapareceu de repente."E também sei de onde ela vem. Agora, você me entendeu?"
Suponho que ele queria dizer que isso era gíria de criminosos, de sentenciados. O homem magro sem dúvida pensou isso. Pareceu espantado, mas já havia dominado sua raiva e limitou-se a dizer: "Okay, espertinho. Já manjei tudo. Vocês, tiras, são todos iguais, sempre procurando sujeira onde não existe. Agora, onde diabo está aquele meu chapa? Vamos. Vamos berçar."
Quando saímos pela porta do fundo, as luzes apagaram-se. James Bond e eu paramos, mas o homem continuou andando pelo passeio coberto como se enxergasse no escuro. Sluggsy apareceu no canto do edifício carregando dois lampiões. Entregou um a cada um de nós. Seu rosto glabro, amarelo sob a luz, abriu-se em um arremedo de sorriso: "Sonhem com os anjos!"
James Bond seguiu-me até minha casinha e entrou. Fechou a porta.
"Macacos me mordam se sei o que estão tramando, mas a primeira coisa a fazer é verificar se você ficará convenientemente fechada durante a noite. Então, vamos ver."
Rondou pelo quarto, examinando os fechos das janelas, olhando as dobradiças da porta, calculando o tamanho das persianas do ventilador. Pareceu satisfeito. Disse: "Só há a porta. Você disse que eles têm a chave-mestra? Poremos cunha na porta e, depois que eu sair, você encosta a mesa como uma barricada adicional."
Foi ao banheiro, rasgou tiras de papel higiênico, molhou-as e fez com elas firmes cunhas. Enfiou várias embaixo da porta, virou o trinco e puxou. Resistiram, mas podiam soltar-se se alguém forçasse. Tirou as cunhas de novo e entregou-as a mim. Em seguida, pôs a mão dentro do cós das calças e tirou um revólver curto e grosso.
"Já atirou com um negócio destes?"
Contei que, quando mocinha, havia atirado em coelhos com uma pistola 22 de tiro ao alvo, cano longo.
"Bem, este é um revólver de polícia "Smith and Wesson". Uma arma de verdade. Lembre-se de mirar baixo. Fique com o braço estendido assim." Mostrou-me. "E procure apertar o gatilho e não segurá-lo. Mas isso realmente não tem importância. Eu ouvirei o barulho e virei correndo. Agora lembre-se. Você tem absoluta proteção. As janelas são de material bom e sólido. Não há meio de passar entre os painéis de vidro, a não ser quebrando-os." Sorriu."Pode confiar nesses projetistas de motel. Sabem tudo quanto se pode saber sobre assaltos. Esses bandidos não atirarão em você através dos vidros no escuro, mas, apenas por precaução, deixe a cama onde está e arrume uma cama de campanha com algumas almofadas e roupas naquele canto do soalho. Ponha o revólver embaixo do travesseiro. Empurre a mesa diante da porta e equilibre o televisor na beirada, para cair se alguém sacudir a porta. Isso a acordará e então você disparará um tiro através da porta, perto do trinco, onde o homem estará em pé, e ouvirá o grito. Entendeu?"
Eu disse que sim, o mais alegre que pude, desejando que ele ficasse no quarto comigo. Mas não tive coragem de pedir-lhe isso e, de qualquer modo, ele parecia ter seus planos.
Chegou-se a mim e beijou-me delicadamente nos lábios. Fiquei tão surpreendida que nem me mexi. Ele disse ternamente: "Sinto muito, Viv, mas você é uma garota bonita. Com esse macacão é a mais bonita empregada de garagem que já vi. Agora, não se preocupe. Durma um pouco. Eu vigiarei você."
Joguei meus braços em volta de seu pescoço e retribuí ao beijo - com um beijo firme, nos lábios.
"Você é o homem mais maravilhoso que já encontrei na vida", disse eu. "Obrigada por estar aqui. E, por favor, James. Tenha cuidado! Você não os viu de perto, como eu. Eles são realmente duros. Por favor, não se machuque."
Beijou-me de novo, mas só levemente, e soltou-se. Disse: "Não se preocupe. Eu já vi desses tipos antes. Agora faça tudo quanto lhe disse e durma. Boa noite, Viv."
Depois saiu.
Fiquei parada por um momento, olhando para a porta fechada. Em seguida, fui escovar os dentes e preparar-me para deitar. Olhei-me no espelho. Estava horrível - abatida, sem maquiagem, com fundos círculos em roda dos olhos. Que dia! E agora isto! Precisava não perdê-lo! Precisava não deixá-lo ir! Mas no fundo do coração, sabia que ele tinha de ir. Iria sozinho e eu também teria de ir. Nenhuma mulher conseguira prendê-lo. Nenhuma o prenderia. Era um homem solitário, que andava sozinho e guardava seu coração só para si próprio. Odiava complicações. Suspirei. Muito bem. Eu faria o jogo assim. Deixaria que ele fosse. Não choraria quando ele fosse. Nem mesmo depois. Eu não era a garota que decidira agir sem coração?
Estúpida idiota! Tola estúpida e pretensiosa! Essa era uma boa ocasião para estar devaneando como uma mocinha de revista feminina! Sacudi a cabeça raivosamente, entrei no dormitório e pus-me a fazer o que tinha a fazer.
Ainda estava ventando forte e os pinheiros farfalhavam ferozmente diante da minha janela do fundo. O luar, filtrando-se através de nuvens leves e altas, iluminou os dois quadrados de vidro em cada lado do quarto e brilhou fantasticamente através das finas cortinas de padrão vermelho. Quando a lua se escondeu por trás das nuvens, os blocos de luz vermelha ficaram escuros e só restou o magro foco amarelo do lampião. Sem a luz da eletricidade, havia uma desagradável impressão de estúdio cinematográfico no quarto oblongo. Os cantos eram escuros e o quarto parecia estar esperando por um diretor que chamasse o pessoal para fora das sombras e lhes dissesse o que devia fazer.
Procurei não ficar nervosa. Encostei as orelhas nas paredes da esquerda e da direita, mas através do espaço dos abrigos para automóveis nada podia ouvir. Antes de armar minha barricada, eu abrira silenciosamente a porta e saíra para dar uma olhada. Havia luz bruxuleante nos Números 8 e 10, e também no Número 40, onde se encontrava James Bond, bem lá para a esquerda. Tudo estava em paz, tudo estava quieto. Agora, fiquei parada no meio do quarto e olhei pela última vez em roda. Fizera tudo quanto ele dissera para fazer. Lembrei-me das orações que ia rezar. Ajoelhei-me ali e depois sobre o tapete, e rezei-as. Em seguida, tomei duas aspirinas, abaixei a luz e soprei na chaminé de vidro para apagá-la. Fui então deitar-me em minha cama no chão, no canto do quarto. Depois de abrir o zíper na frente de meu macacão é desamarrar os sapatos, mas sem tirá-los, enrolei-me nos cobertores.
Nunca antes tomara aspirina ou outros comprimidos. Depois de ler cuidadosamente as instruções, tomara esse dois que tirara do pequeno estojo de pronto-socorro que minha mentalidade prática me dissera para incluir em minha pequena bagagem. Além disso, estava exausta e os comprimidos, para mim fortes como morfina, logo me puseram em um estado de meio sono no qual não havia perigo, mas apenas o rosto moreno e excitante, e o conhecimento recém-adquirido de que existiam realmente homens assim. Com sentimentalismo ainda maior, lembrei-me do primeiro contato de sua mão segurando o isqueiro e pensei cuidadosamente em cada beijo separado. Em seguida, mas só depois de lembrar-me vagamente do revólver e enfiar a mão embaixo do travesseiro para certificar-me de que se encontrava lá, dormi cheia de felicidade.

*

O que percebi em seguida foi que estava completamente acordada. Fiquei um momento imóvel lembrando-me de onde estava. O vento cessara e tudo estava muito quieto. Vi que estava deitada de costas. Fora isso que me acordara! Fiquei por um momento olhando através do quarto para o quadrado vermelho bem no alto da parede oposta. A lua aparecera de novo. Como estava terrivelmente quieto! O silêncio era quente e envolvente depois de horas de tempestade. Comecei a sentir-me sonolenta e virei-me de lado, de modo a ficar voltada para o quarto. Fechei os olhos. Mas, quando o sono estendia novamente suas mãos sobre mim, algo ficou martelando em minha mente. Meus olhos, antes de se fecharem, haviam notado algo estranho no quarto. Contra a vontade, abri-os de novo. Levei dois minutos para reconhecer outra vez o que tinha visto. Réstias de luz fraquíssima brilhavam entre as folhas da porta do armário de roupas encostado à parede do outro lado.
Que estúpida! Eu não fechara direito a porta e a luz automática "de cortesia" dentro do armário não se apagara. Relutantemente, levantei-me da cama. Que aborrecimento! Em seguida, após ter dado apenas dois passos através do quarto, lembrei-me de repente. Não podia haver luz dentro do armário!A eletricidade estava desligada!
Fiquei parada por um momento, com a mão na boca. Depois, quando me virei para mergulhar em busca do revólver, a porta do armário abriu-se violentamente e a figura agachada de Sluggsy saltou para fora. Com uma lanterna na mão e algo balançando na outra mão, ele já estava em cima de mim.
Soltei um grito agudo, mas talvez apenas por dentro.
Um segundo depois, algo explodiu contra o lado de minha cabeça e eu senti que caía no chão. Depois tudo ficou escuro.

*

Minha primeira sensação ao voltar a mim foi de terrível calor e de estar sendo arrastada pelo chão. Depois senti o cheiro de queimado e vi as chamas. Tentei gritar. Percebi que de minha boca não saía outra coisa senão um gemido de animal e comecei a bater os pés. Mas as mãos seguravam firmemente meus tornozelos e depois, de repente, com dolorosas batidas que aumentavam a horrível dor em minha cabeça, percebi que estava sendo arrastada para grama úmida e galhos de árvore. De repente meus pés foram soltos sobre o chão. Havia um homem ajoelhado ao meu lado e sua mão tapava firmemente minha boca. Uma voz perto de meu ouvido, a voz de James Bond, sussurrou urgentemente: "Não faça barulho! Fique quieta! Tudo está bem! Sou eu."
Estendi a mão para ele e toquei seu ombro. Estava nu. Apertei a mão para tranqüilizá-lo e sua mão deixou minha boca. Ele segredou: "Espere aqui. Não se mova! Voltarei dentro de um segundo. "Depois se afastou silenciosamente.
Silenciosamente? Pouco importava o barulho que fizesse. Havia um tremendo rugir e crepitar de chamas atrás de mim e uma luz vermelha brilhava entre as árvores. Ajoelhei-me cuidadosamente e virei doloridamente a cabeça. Uma grande parede de chamas estendia-se à minha direita ao longo de toda a fileira de casinhas. Santo Deus, do que ele me salvara! Tateei meu corpo e pus as mãos sobre os cabelos. Estava ilesa. Havia apenas o latejante ferimento na nuca. Vi que podia ficar em pé, levantei-me e tentei imaginar o que acontecera. Mas não me lembrava de coisa alguma depois de ser atingida. Deviam ter posto fogo no estabelecimento e James, não sei como, me encontrara em tempo, puxando-me então para entre as árvores no fundo!
Houve um ruído entre as árvores e ele chegou ao meu lado. Não vestia paletó nem camisa, mas havia uma espécie de talabarte através do peito queimado de sol e suado que brilhava à luz das chamas e uma automática de aparência pesada, com a coronha para baixo, estava pendurada sob sua axila esquerda. Seus olhos brilhavam de tensão e excitação. Seu rosto manchado pela fumaça e seus cabelos desgrenhados davam-lhe uma aparência de pirata, quase assustadora.
Sorriu sinistramente. Acenou em direção às chamas e disse: "Esse era o jogo. Queimar o estabelecimento para receber o seguro. Agora estão orientando as chamas para que cheguem ao edifício do saguão, espalhando pó de termite ao longo do passeio coberto. Pouco me importa isso. Se os atacasse agora, eu apenas estaria salvando a propriedade do Sr. Sanguinetti. Conosco como testemunhas, ele não sentirá sequer o cheiro do seguro. E irá para a cadeia. Por isso, vamos esperar um pouco e deixar que seu prejuízo seja total.
De repente, pensei em meus preciosos pertences. Disse humildemente: "Não poderia salvar a "Vespa"?
"Está tudo bem. Você só perdeu aquelas roupas de domingo - se as deixou no banheiro. Apanhei o revólver quando a tirei de lá e trouxe para fora as mochilas. Agora estava salvando a "Vespa". Parece em bom estado. Escondi tudo entre as árvores. Aqueles abrigos de automóveis serão as últimas coisas a queimar. Têm tijolos dos dois lados. Eles usaram bombas de termite em cada uma das casinhas. É melhor que petróleo. Menos volumoso e não deixa indícios para os detetives da companhia de seguros."
"Mas você poderia ter-se queimado!"
Seu sorriso cintilou branco entre as sombras.
"Foi por isso que tirei o paletó. Preciso apresentar-me respeitável em Washington."
Não me pareceu engraçado.
"Mas que aconteceu com sua camisa?"
Houve um estrondo e uma grande chuva de faíscas no fim da fileira de casinhas. James Bond disse: "Lá se vai minha camisa. O telhado está caindo em cima dela."
Fez uma pausa e esfregou a mão no rosto sujo e suado, de modo que as manchas pretas ficaram ainda pior.
"Eu tinha a impressão de que ia acontecer uma coisa assim. Talvez devesse ter-me preparado melhor. Poderia ter ido trocar o pneu de meu carro, por exemplo. Se o tivesse feito, poderíamos dar o fora agora. Poderíamos dar a volta pela extremidade das casinhas e correr em direção a ele. Chegaríamos a Lake George ou Glens Falls e mandaríamos a polícia para cá. Mas pensei que, se arrumasse o carro, nossos amigos teriam uma desculpa para mandar-me embora. Eu poderia ter recusado, naturalmente, ou dito que não iria sem você, mas pensei que isso poderia provocar tiroteio. Precisaria ter muita sorte para vencer aqueles dois, a menos que atirasse primeiro. E comigo fora da cena, você voltaria ao ponto onde começamos. Isso seria muito mau. Você era parte importante do plano deles."
"Tive essa impressão desde o começo. Não sei por quê. Pela maneira como me tratavam, percebi que eu não tinha importância, que podia ser sacrificada. Que pretendiam fazer comigo?"
"Você ia ser a causa do incêndio. As testemunhas de Sanguinetti seriam os administradores, aquele casal Phancey, e naturalmente eles estavam enterrados até o pescoço." Lembrei-me de como sua atitude em relação a mim mudara no último dia; da maneira como me trataram com desprezo, como lixo, como algo que devesse ser jogado fora. "Eles afirmariam que haviam mandado você desligar a eletricidade - coisa perfeitamente razoável, pois o estabelecimento estava sendo fechado - e usar um lampião na última noite. Os restos do lampião seriam encontrados. Você teria dormido com a luz acesa e, por alguma razão, o lampião teria caído. Pegaria fogo em tudo e estava acabado. Nos edifícios havia muita madeira e o vento faria o resto. Meu aparecimento foi uma maçada, mas nada mais que isso. O que restasse de mim também seria encontrado - ou pelo menos meu carro, meu relógio de pulso e o metal de minha mala. Não sei o que fariam com minha arma e com o revólver que estava embaixo de seu travesseiro. Isso poderia criar-lhes dificuldades. A polícia conferiria a licença do carro no Canadá e os números das armas na Inglaterra. Com isso, me identificaria. Então, por que meu outro revólver estava embaixo de seu travesseiro? Isso poderia despertar suspeitas na polícia. Se fôssemos bem, uma espécie de amantes, por que estava eu dormindo tão longe de você? Talvez nós dois fôssemos muito decorosos e tivéssemos dormido o mais separados possível, tendo eu insistido em dar-lhe uma de minhas armas para proteger urna moça sozinha à noite. Não sei como eles teriam resolvido isso. Meu palpite, porém, é que nossos amigos, uma vez que lhes contei que era policial, poderiam ter pensado em armas e outras ferragens incriminatórias que não seriam destruídas pelo fogo e esperado algumas horas, para depois ir rebuscar nas cinzas a fim de eliminar essa espécie de complicação. Naturalmente seriam cuidadosos ao rebuscar, para não deixar pegadas nas cinzas. Mas, afinal de contas, essa gente é profissional." Sua boca arqueou-se para baixo. "Pelos padrões deles, quero dizer."
"Mas por que não o mataram?"
"Mataram ou pelo menos pensaram ter matado. Quando a deixei e fui para minha cabina, imaginei que, se ia acontecer alguma coisa a você, eles tentariam livrar-se de mim primeiro. Por isso, preparei um boneco em minha cama. Um bom boneco. Já fiz isso antes e conheço o truque. Não basta a gente deixar na cama algo que se pareça com um corpo. Isso se pode fazer com travesseiros, toalhas e roupas de cama. É preciso também pôr alguma coisa que pareça cabelos sobre o travesseiro. Fiz isso com punhados de folhas de pinheiro, apenas o suficiente para deixar uma touceira escura sobre o travesseiro com os lençóis puxados até ela. Muito artístico. Depois pendurei minha camisa no encosto de uma cadeira ao lado da cama. Outro truque útil, para dar a idéia de que o dono da camisa está deitado na cama. Deixei o lampião queimando baixo, bem perto da cama, para ajudar a pontaria deles. Introduzi cunhas de amador embaixo da porta e encostei uma cadeira embaixo do trinco para demonstrar um senso natural de precaução. Depois, levei minha mala para o fundo e esperei entre as árvores".
Bond deu uma risada áspera.
"Eles me deram uma hora e depois chegaram tão silenciosamente que eu nada ouvi. Houve o barulho da porta sendo forçada e uma série de rápidos estampidos surdos - usavam um silenciador - e depois todo o interior da cabina iluminou-se com a termite. Pensei que estava sendo muito esperto, mas quase não fui suficientemente esperto. Levei quase cinco minutos para abrir caminho até sua casinha através das árvores. Estava preocupado. Pensei que eles iam demorar mais tempo para entrar em sua casinha e estava pronto para investir às claras se ouvisse seu revólver. Mas esta tarde, provavelmente quando estava fazendo a inspeção nas casinhas, de que você me falou, Sluggsy abriu um buraco na parede atrás de seu armário de roupas, deixando apenas o forro de papelão para ser cortado com uma faca afiada. Talvez tenha arrumado mais ou menos as pedras no fundo. Não sei se arrumou. De qualquer maneira, não precisava fazer isso. Não havia oportunidade, nem razão, para qualquer de nós ir ao abrigo do Número 8. Se você estivesse aqui sozinha, eles dariam um jeito de conservá-la afastada de lá. Seja como for, só percebi isso tudo quando vi a luz da termite em sua casinha. Então corri como louco, ziguezagueando pelo espaço aberto atrás dos abrigos de automóveis, enquanto ouvia o barulho que eles faziam voltando ao longo da fileira de casinhas, abrindo as portas e jogando bombas dentro e depois fechando cuidadosamente as portas para dar a impressão de que estava tudo em ordem."
Durante todo esse tempo, James Bond estivera olhando de vez em quando para o telhado do edifício da saguão, que podíamos ver por cima das casinhas em chamas. Depois, disse em tom casual: "Já começaram. Tenho de ir atrás deles. Como se está sentindo, Viv? Ainda tem forças? Como está a cabeça?"
Respondi impacientemente: "Oh, eu estou muito bem. Mas, James, precisa mesmo ir atrás deles? Deixe que eles fujam. Que importância tem? Você poderia ficar ferido."
"Não, querida", disse ele com firmeza. "Eles quase mataram nós dois. Agora, a qualquer momento, podem voltar e descobrir que a "Vespa" desapareceu. Então perderemos o fator surpresa. E eu não posso deixar que eles escapem. São assassinos. Amanhã estarão matando outra pessoa."
Sorriu jovialmente e acrescentou: "Além disso, estragaram minha camisa!"
"Bem, então precisa deixar que eu ajude", disse eu, estendendo a mão para ele."E vai tomar cuidado, não vai? Não posso ficar sem você. Não quero ficar sozinha de novo."
Ele ignorou minha mão. Disse, quase friamente. "Agora não me segure pelo braço da arma. Seja boazinha. Está é uma coisa que eu tenho de fazer. É simplesmente um serviço. Agora, prosseguiu, entregando-me o "Smith and Wesson", suba silenciosamente entre as árvores até o abrigo do Número 3. Está no escuro e o vento sopra o fogo para o outro lado. De lá poderá observar sem ser vista. Se eu precisar de auxílio, sei onde encontrá-la. Por isso, não se mexa. Se eu chamar, venha correndo. Se alguma coisa me acontecer, siga pela margem do lago, indo o mais longe que puder. Depois deste incêndio, haverá muitos policiais por aqui amanhã e você poderá voltar e estabelecer contato com um deles. Acreditarão em você. Se discutirem, diga-lhes para telefonar à C. I. A., em Washington, a Agência Central de Informações, e verá muito movimento. Diga simplesmente quem era eu. Tenho um número em minha organização - uma espécie de número de identificação. É 007. Procure não esquecer-se."


13 - O pipocar das armas

"Eu ERA." "Diga quem era eu..." Por que tinha ele de dizer uma coisa dessas, pôr a idéia na cabeça de Deus, do Destino ou de quem quer que estivesse controlando essa noite? Nunca se deve emitir pensamentos maus. Eles continuam vivendo, como ondas de som, e penetram na corrente de consciência em que todos nós nadamos. Se Deus, ou o Destino, por acaso estivesse ouvindo, naquele momento, naquele determinado comprimento de onda, o pensamento poderia fazer com que acontecesse. A insinuação de um pensamento de morte poderia ser mal interpretada. Poderia ser entendida como um pedido!
Por isso, eu também não devia ter esses pensamentos, senão juntaria meu peso às ondas sombrias do destino! Que tolice! Aprendera essas coisas com Kurt. Ele estava sempre cheio de "reações cósmicas em cadeia", "criptogramas da força vital" e outras confusas expressões mágicas alemãs que eu absorvia avidamente como se, de acordo com o que ele insinuava às vezes, ele próprio fosse a "Dinâmica Central" que controlava todas as coisas, ou pelo menos parte dela.
Naturalmente James Bond dissera isso por petulância, torcendo para acontecer o contrário, como os esquiadores que eu conhecera na Europa e que diziam "Has und Beinbruch!" a seus amigos antes que estes se lançassem pela pista em ziguezague ou encosta abaixo. Desejar-lhes "Fratura do Pescoço ou da Perna" antes da partida era para evitar acidentes, para invocar o oposto do mau olhado. James Bond estava apenas sendo "britânico" - usando uma frase bombástica para animar-me. Mas eu desejava que não a tivesse usado. O pipocar das armas, gangsters, tentativas de homicídio faziam parte de seu serviço, de sua vida. Mas não faziam parte da minha e eu o culpava por não ser mais sensível, mais humano.
Onde estaria ele agora? Abrindo caminho através das sombras, usando a luz das chamas como proteção, apurando seus sentidos de perigo? E que estaria o inimigo fazendo? Aqueles dois gangsters profissionais que ele desprezara tão facilmente? Estariam lhe preparando uma emboscada? As armas começariam de repente a pipocar? Depois haveria gritos?
Cheguei ao abrigo da casinha Número 3 e, esfregando-me ao longo da rústica parede de pedra, caminhei tateando na escuridão. Avancei devagar e cautelosamente os últimos passos e olhei pelo canto em direção às chamas e sombras que dançavam sobre as outras casinhas e o edifício do saguão.
Não vi ninguém, nenhum movimento, exceto as chamas que o vento empurrava intermitentemente para manter viva a fogueira. Agora, algumas das árvores atrás das casinhas estavam quase pegando fogo e faíscas voavam de seus galhos secos para a escuridão. Se não fosse a tempestade, certamente se iniciaria um incêndio florestal e então a moça desmaiada a paulada com seu lampião quebrado deixaria realmente sua marca dos Estados Unidos da América! Até onde iria o fogo ajudado pelo vento? Vinte quilômetros? Trinta? Quantas árvores, pássaros e outros animais teria destruído a mocinha morta de Quebec?
O teto de outra casinha caiu e houve a mesma grande chuva de faíscas amarelas. E agora o vistoso telhado de madeira do edifício do saguão estava ruindo. Curvou-se vagarosamente para dentro e depois afundou como um soufflé mal cozido. Outros jorros de faíscas subiram alegremente e se queimaram enquanto eram arrastados pelo vento. As chamas avivadas mostraram os dois carros ao lado da estrada, o "Thunderbird" cinzento e o brilhante sedan preto. Mas ainda não havia sinal dos gangsters, nem de James Bond.
De repente percebi que me esquecera completamente do tempo. Olhei para meu relógio. Eram duas horas. Então isso tudo começara apenas cinco horas antes? Parecia ter sido semanas antes. Minha vida anterior parecia quase anos distante. Mesmo a noite anterior, quando eu me sentara e pensara na vida, era difícil de lembrar. Tudo fora repentinamente apagado. Medo, dor e perigo haviam predominado. Era como estar em um naufrágio, um desastre de avião ou de trem, um terremoto ou um furacão. Quando essas coisas acontecem à gente, deve ser exatamente assim. As asas negras da emergência escondem o céu e não há mais passado, nem futuro. A gente vive cada minuto, sobrevive cada segundo, como se fosse o último. Não há outro tempo, nem outro lugar, mas apenas agora e aqui.
E então eu vi os homens! Estavam-se aproximando de mim pela grama e cada um deles tinha uma grande caixa nas mãos. Eram aparelhos de televisão. Deviam tê-los salvado para vender, e ganhar um dinheiro adicional. Caminhavam lado a lado, o homem magro e o atarracado, e a luz das casinhas em chamas refletia-se em seus rostos suados. Quando chegaram aos arcos carbonizados do passeio coberto que levava ao edifício do saguão, atravessaram-no rapidamente, depois de olhar para cima a fim de ver se o teto ainda ardendo não cairia sobre eles. Onde estaria James Bond? Esse era o momento ideal para apanhá-los, com as mãos ocupadas!
Agora estavam apenas a vinte metros de mim, virando para a direita em direção ao seu carro. Recuei para a caverna escura do abrigo. Mas onde estaria James? Deveria eu sair correndo e enfrentá-los sozinha? Não seja idiota! Se errasse, e certamente erraria, seria o meu fim. Mas, se eles se virassem, não moveriam? Meu macacão branco não apareceria no escuro? Afundei-me mais. Agora eles estavam enquadrados na abertura retangular de meu abrigo, caminhando sobre a grama a poucos metros da parede norte do edifício do saguão, que ainda se encontrava em pé, pois o vento até então conservara a maioria das chamas longe dela. Logo desapareceriam na esquina e uma oportunidade maravilhosa estaria perdida!
Depois, pararam, estáticos, e James estava diante deles, com sua arma mortalmente voltada para um ponto entre os dois corpos! Sua voz soou como um chicote através do gramado.
"Muito bem! É isso! Virem-se! O primeiro que deixar cair o televisor, recebe bala."
Viraram-se vagarosamente de modo a voltar-se para meu esconderijo. James falou comigo: "Venha, Viv! Preciso de auxílio."
Tirei o pesado revólver da cinta do macacão e corri rapidamente através da grama. Quando estava a uns dez metros dos homens, James disse: "Pare aí, Viv, e eu lhe direi o que deve fazer."
Parei. As duas perversas fisionomias fitaram-me. Os dentes do homem magro estavam descobertos, em uma espécie de careta fixa de surpresa e tensão. Sluggsy soltou uma torrente de pragas. Apontei meu revólver para o televisor que cobria seu estômago e disse: "Cale a boca, senão eu o mato com um tiro."
Sluggsy escarneceu de mim. "Você e quem mais? Você ficaria assustada só com o barulho."
James disse: "Cale a boca ou ficará com um buraco nessa cabeça feia. Agora, escute, Viv, precisamos tirar as armas desses dois homens. Dê a volta por trás do chamado Horror. Encoste sua arma na espinha dele e, com a mão livre, examine embaixo de suas axilas. Não é um trabalho agradável, mas não pode ser evitado. Fale-me se sentir um revólver e eu lhe direi o que deverá fazer então. Vamos fazer isso devagarinho. Eu cubro o outro e, se esse Horror se mexer, atire nele."
Fiz o que me disse. Dei a volta por trás do homem magro e apertei o revólver contra suas costas. Depois estendi a mão esquerda e tateei embaixo de seu braço direito. Uma" espécie de cheiro desagradável e mortífero saía de seu corpo e de repente senti-me enojada de estar tão perto dele e tocando-o tão intimamente.
Sei que minha mão tremeu e deve ter sido isso que o fez arriscar-se, pois, de repente, em um movimento rápido, deixou cair o televisor, virou-se como uma serpente, fez o revólver saltar de minha mão com um tapa e agarrou-se a mim.
A arma de James Bond detonou e eu senti o vento de uma bala. Depois, comecei a lutar como um demônio, dando pontapés, mordendo e unhando. Mas era o mesmo que estar lutando com uma estátua de pedra. Ele apenas me apertava mais agonizantemente e ouvi sua voz seca dizer: "Okay, gringo. E agora? Quer que a dama se mate?"
Pude sentir uma de suas mãos soltando-se de mim para apanhar a arma e comecei a lutar de novo.
James Bond disse asperamente: "Viv. Abra as pernas!"
Automaticamente fiz o que me mandava e novamente sua arma roncou. O homem gritou uma praga e soltou-me, mas ao mesmo tempo houve atrás de mim um barulho de coisa estilhaçando-se e em me virei rapidamente. No mesmo instante em que James Bond disparou, Sluggsy jogou o televisor contra ele, que bateu em seu rosto, fazendo-o perder o equilíbrio.
Quando Sluggsy gritou: "Corra, Horror!" mergulhei para pegar meu revólver e, deitada na grama, disparei desajeitadamente contra ele. Provavelmente teria errado de qualquer jeito, mas ele já estava correndo, ziguezagueando através do gramado em direção às casinhas como um jogador de rugby, com o homem magro cambaleando desesperadamente atrás. Disparei de novo, mas o revólver deu um coice alto. Depois, ambos já estavam fora de alcance e Sluggsy desapareceu na casinha Número 1 bem à direita.
Levantei-me e corri para James Bond. Estava-se ajoelhando na grama com uma mão na cabeça. Quando me aproximei, tirou a mão, olhou-a e praguejou. Havia um grande corte logo abaixo dos cabelos. Eu nada disse, mas corri para a janela mais próxima do edifício do saguão e quebrei-a com a coronha do revólver. Um sopro de calor saiu em minha direção, mas não houve chamas. Pouco abaixo, quase ao alcance da mão, estava a mesa que os gangsters haviam ocupado e, em cima dela, entre restos fumegantes do telhado,o estojo de pronto-socorro. James Bond gritou alguma coisa, mas eu já estava sobre o peitoril. Contive a respiração contra a fumaça, agarrei o estojo e pulei para fora de novo, com os olhos ardendo da fumaça.
Limpei o ferimento o melhor que pude e tirei do estojo mertiolato e um grande bandaide. O corte não era fundo, mas logo se tornaria um ferimento feio.
"Sinto muito, Viv. Estraguei esse assalto."
Eu também pensava assim. Disse: "Por que não atirou neles? Eram alvos imóveis com aqueles aparelhos nas mãos."
Respondeu bruscamente: "Nunca fui capaz de fazer isso a sangue frio. Mas pelo menos deveria ter sido capaz de arrancar o pé daquele homem. Devo tê-lo ferido apenas de raspão e agora ele ainda está no jogo."
Eu disse severamente: "Parece que você também tem muita sorte de ainda estar no jogo. Por que Sluggsy não o matou?"
"Sei tanto quanto você. Parece que ele tinha uma espécie de quartel-general no Número 1. Talvez tenha deixado seu armamento lá enquanto faziam o serviço no saguão. Talvez não gostasse de carregar balas tão perto das chamas. Seja como for, agora a guerra está declarada e vamos ter muito trabalho. O principal é ficar de olho no carro deles. Estão desesperados para dar o fora. Mas primeiro precisam matar-nos de qualquer jeito. Estão em uma embrulhada dos diabos e lutarão como gatos."
Acabei de tratar do corte. James Bond estava observando a casinha Número 1. Então disse: "É melhor abrigar-nos. Talvez tenham alguma coisa pesada lá e já devem ter terminado de tratar do pé de Horror."
Levantou-se. De repente, segurou meu braço e disse: "Depressa!"
Ao mesmo tempo ouvi o tinir de vidros bem à direita e um matraquear ensurdecedor que supus ser de alguma espécie de metralhadora. A nossos pés, balas penetraram zunindo na parede do edifício do saguão.
James Bond sorriu e disse: "Desculpe-me de novo, Viv! Minhas reações parecem não estar muito boas esta noite. Costumo fazer melhor que isso." Fez uma pausa e acrescentou: "Agora, vamos pensar um minuto."
Foi um longo minuto e eu suava devido ao calor do saguão que se queimava. Agora só havia a parede do norte e o pedaço por trás do qual estávamos abrigados, até a porta da frente. O resto era uma massa de chamas. Mas o vento continuava soprando o fogo para o sul e pareceu-me que esse último pedaço de parede ainda poderia resistir bastante tempo. A maioria das casinhas já estava quase queimada e, daquele lado da clareira, houve uma diminuição do clarão e de faíscas. Passou-me pela idéia que o clarão devia ser visível a quilômetros de distância, talvez até mesmo em Lake George ou Glens Fali, mas ninguém aparecera com socorro. Provavelmente as patrulhas rodoviárias e os corpos de bombeiros já tinham muito que fazer com a devastação causada pela tempestade. E, quanto às suas queridas florestas, estariam seguros de que nenhum incêndio poderia propagar-se a elas nessa paisagem encharcada.
James Bond disse: "O que vamos fazer é isto. Antes de tudo, quero que fique onde possa ajudar, mas onde eu não precise preocupar-me com você. Caso contrário, se eu conheço esses homens, eles se concentrarão em você, achando que eu farei tudo, até mesmo deixá-los fugir, para que não seja ferida."
"E isso é verdade?"
"Não seja tola. Por isso, você vai atravessar a estrada sob a proteção deste pedaço de parede e depois voltar, conservando-se bem fora das vistas, até estar exatamente do lado oposto ao carro deles. Fique quieta e, mesmo que um deles ou ambos cheguem ao carro, não atire enquanto eu não lhe disser para atirar. Está entendido?"
"Mas, e você, onde ficará?"
"Temos o que chamam de linhas interiores de defesa - se considerarmos os carros como objetivo. Vou ficar por aqui e deixar que eles avancem contra mim. São eles que querem pegar-nos e depois fugir. Deixe que eles tentem. O tempo está contra eles."
Olhou para seu relógio e disse: "São quase três. Quanto tempo ainda demora para clarear aqui?"
"Umas duas horas. Lá pelas cinco. Mas eles são dois a você é só um! Farão uma espécie do que chamam de "movimento de pinças."
"Um dos caranguejos perdeu uma garra. Seja como for, isso é o melhor que posso fazer como plano de campanha. Agora, atravesse a estrada antes que eles comecem alguma coisa. Eu os conservarei ocupados."
Foi até o canto do prédio, inclinou-se para fora e deu dois tiros rápidos contra a casinha da direita. Houve um barulho distante de vidro quebrando-se e depois o terrível matraquear da metralhadora portátil. Balas penetraram na parede e atravessaram zunindo a estrada em direção às árvores. James Bond recuou. Sorriu encorajadoramente, dizendo: "Agora!"
Corri para a direita e atravessei a estrada, conservando o edifício do saguão entre mim e a casinha da ponta. Avancei cambaleando entre as árvores. Novamente os galhos rasparam por mim, mas agora eu tinha sapatos apropriados e o tecido do macacão era resistente. Penetrei bem na mata e depois comecei a abrir caminho para a esquerda. Quando achei que já tinha ido suficientemente longe, voltei em direção à luz das chamas. Cheguei exatamente onde desejava, um pouco para dentro da primeira linha de árvores com o sedan preto a uns vinte metros de distância, do outro lado da estrada, e com uma vista bem clara do faiscante campo de batalha.
Durante todo esse tempo, a lua aparecera e desaparecera por trás das nuvens leves - iluminando tudo brilhantemente, depois se escondendo e deixando apenas o clarão tremulante que vinha principalmente da metade esquerda ardente do edifício do saguão. Agora, a lua apareceu inteira e mostrou-me algo que quase me fez gritar. O homem magro, rastejando sobre o estômago, estava avançando vagarosamente para o lado norte do edifício do saguão e o luar refletia na arma que havia em sua mão.
James Bond estava onde eu o deixara e, para conservá-lo lá, Sluggsy mantinha agora um firme fluxo de tiros isolados que batiam de segundos em segundos no ângulo da parede em cuja direção rastejava o homem magro. Talvez James Bond adivinhasse a significação desse fogo constante. Talvez soubesse que era para mantê-lo no lugar, porque começou a mover-se para a esquerda, em direção à metade ardente do edifício. E agora estava correndo, curvado, através da grama marrom e das ondas de fumaça e faíscas, em direção às ruínas carbonizadas e bruxuleantes das casinhas do lado esquerdo. Vi-o de relance mergulhando em um dos abrigos mais ou menos no Número 15 e depois ele desapareceu, presumivelmente para penetrar entre as árvores no fundo e ir surpreender Sluggsy pelas costas.
Observei o homem magro. Estava chegando ao canto do edifício. Agora já estava lá. Os tiros isolados cessaram. Sem mirar e segurando-a com a mão esquerda, o homem magro colocou sua arma do outro lado da parede e disparou todo um pente, às cegas, ao longo da parede da frente, onde James e eu havíamos estado.
Quando ninguém respondeu ao fogo, avançou a cabeça no canto e recuou, como uma serpente. Depois, levantou-se e fez um gesto largo com a mão para mostrar que havíamos desaparecido.
Ouvi dois tiros rápidos vindos da direção da cabina Número 1, seguidos por um grito pavoroso que fez parar meu coração, e Sluggsy veio recuando para o gramado, disparando do quadril com a mão direita, enquanto a esquerda pendia do lado. Continuou correndo de costas, gritando de dor, mas ainda disparando sua metralhadora em curtas rajadas. Então eu vi um fugidio movimento em um dos abrigos e de lá veio em resposta o estrondo profundo da automática pesada. Mas Sluggsy mudou sua mira e as armas de James Bond silenciaram. Depois, começaram de novo de outro lugar e um dos tiros deve ter atingido a metralhadora, pois Sluggsy de repente a deixou cair e começou a correr em direção ao sedan preto, onde o homem magro estava ajoelhado, dando fogo de cobertura à distância com dois revólveres. O impacto da bala de James Bond na metralhadora portátil deve ter desarranjado o mecanismo, pois ela continuou disparando, saltando em círculos na grama como uma roda de fogo e espalhando balas para todos os lados. Vi então que o homem magro estava no banco do motorista e ouvi o motor pegar. Um jato de fumaça saiu do cano do escapamento. O homem abriu a porta do outro lado e Sluggsy pulou para dentro. A porta fechou-se sobre ele com o salto que o carro deu para frente.
Não esperei por James. Corri para a estrada e comecei a disparar contra a traseira do carro. Ouvi algumas de minhas balas baterem no metal. Depois o cão do revólver bateu em nada e eu fiquei praguejando ao pensar que eles estavam fugindo. Mas então veio o firme estampido da arma de James do outro lado do gramado, enquanto saía fogo da janela dianteira do carro. Até que de repente o sedan preto pareceu ter ficado maluco. Fez uma curva larga e deu a impressão de avançar através do gramado diretamente para onde estava James. Por um momento, ele foi apanhado pelas fortes luzes enquanto estava lá parado, com o suor brilhando em seu peito nu. Disparou, na pose clássica do duelista, como se fosse contra um animal investindo. Pensei que ia ser esmagado e comecei a correr sobre a grama em sua direção, mas então o carro virou e, com o motor roncando em primeira, avançou diretamente para o lago.
Fiquei observando fascinada. Ali o gramado acabava na beira de um rochedo baixo, de uns seis metros de altura, sob o qual havia um tanque para pesca. Havia alguns bancos e mesas rústicos para piquenique. O carro continuou correndo e agora, batesse ou não em um banco, sua velocidade certamente o levaria até o lago. Mas desviou de todos os bancos e, enquanto eu punha a mão sobre a boca com horrorizada excitação, chegou até a beirada do rochedo e foi cair de cheio sobre a água, com uma gigantesca pancada e um barulho de metal e vidros quebrando-se. Depois, devagarinho, afundou, com o motor para baixo, em um torvelinho de gás de escapa-mento e bolhas, até nada restar além do porta-malas, uma parte da capota e a janela traseira curvando-se para cima em direção ao céu.
James Bond ainda estava parado, olhando para o lago, quando corri até ele e abracei-o.
"Você está bem? Não está ferido?"
Voltou-se aturdido para mim. Rodeou minha cintura com o braço e apertou-a. Disse vagamente: "Não. Estou bem."
Voltou a olhar para o lago.
"Devo ter atingido o motorista, o homem magro. Matei-o e seu corpo ficou apertando o acelerador."
Pareceu voltar a si. Sorriu tensamente.
"Bem, isso sem dúvida resolve a situação. Não há restos a limpar. Mortos e enterrados de uma só vez. Não posso dizer que lamento. Eram dois verdadeiros criminosos."
Soltou-me e enfiou sua arma no coldre. Cheirava a cordite e suor. Era delicioso. Ergui-me e beijei-o.
Viramo-nos e caminhamos vagarosamente através do gramado. O fogo lavrava agora apenas intermitentemente e o campo de batalha estava quase escuro. Meu relógio marcava três e meia. De repente me senti completamente, absolutamente esgotada.
Como que ecoando meus pensamentos, James disse: "Isso acabou com a benzedrina. Que tal dormir um pouco? Ainda há quatro ou cinco casinhas em bom estado. Que tal a 2 ou a 3? São apartamentos agradáveis?"
Senti-me corar. Disse teimosamente: "Não me importa o que você pense, James, mas não vou largá-lo esta noite. Você pode escolher a 2 ou a 3. Eu dormirei no chão."
Ele riu e, inclinando-se, me abraçou.
"Se você dormir no chão, eu também dormirei no chão. Mas parece desperdício de uma bela cama de casal. Digamos que seja a Número 3."
Parou e olhou-me, fingindo cortesia.
"Ou você prefere a Número 2?"
"Não. A Número 3 será adorável."


14 - Piva

A CASINHA número 3 não tinha ventilação e era abafada. Enquanto James Bond ia buscar nossa "bagagem" entre as árvores, abri os painéis de vidro das janelas e virei os lençóis da cama de casal. Devia sentir-me embaraçada, mas não me sentia. Causava-me apenas prazer cuidar da casa para ele ao luar. Depois, experimentei o chuveiro e descobri que milagrosamente ainda estava com plena pressão, embora no encanamento embaixo muitos trechos de cano provavelmente estivessem derretidos. As casinhas de cima ficavam mais perto do cano principal. Tirei toda minha roupa e fiz com ela uma pilha bem arrumada. Entrei no box e abri um novo pedaço de "Camay" ("Deleite seus Hóspedes com "Camay" Rosado - Com odor semelhante a caro perfume francês... misturado com fino creme para a pele", lembrei-me de que isso estava escrito no pacote, porque parecia muito suculento) e comecei a ensaboar-me inteira, delicadamente, devido às escoriações.
Com o barulho do chuveiro, não ouvi quando ele entrou no banheiro. Mas, de repente, havia mais duas mãos me lavando e um corpo nu estava encostado ao meu. Senti o cheiro de suor e pólvora. Virei-me e ri em sua cara suja. Depois me vi em seus braços e nossas bocas encontraram-se em um beijo que parecia nunca acabar, enquanto a água caía fazendo-nos fechar os olhos.
Quando eu já estava quase sem fôlego, ele me puxou para fora do chuveiro e me beijou de novo, enquanto suas mãos passeavam por meu corpo e o desejo vinha em ondas de vertigem. Eu simplesmente não podia suportar aquilo. Disse: "Por favor, James! Por favor, não faça isso! Senão eu vou cair. E seja delicado. Está-me machucando."
Na penumbra que o luar criava no banheiro, seus olhos eram apenas duas fendas ardentes. Depois, se relaxaram em ternura e riso. "Desculpe, Viv. Não é culpa minha. São minhas mãos. Elas não querem afastar-se de você. E eu devia estar-me lavando. Estou sujo. Você terá de lavar-me. Elas não querem obedecer-me."
Ri para ele e empurrei-o para debaixo do chuveiro. "Está bem. Mas não vou ser delicada. A última vez que lavei alguém foi um pônei, quando eu tinha uns doze anos! Além disso, mal posso ver onde está cada parte de você!"
Apanhei o sabão e acrescentei: "Abaixe a cabeça. Vou tentar não pôr muito sabão em seus olhos."
"Se puser algum, eu..."
Minhas mãos interromperam o resto da frase e eu me pus a esfregar seu rosto e seus cabelos. Depois desci pelos braços e pelo peito, enquanto ele permanecia curvado, segurando com ambas as mãos o cano de água.
Parei.
"O resto, você terá de fazer."
"Claro que não. E faça direito. A gente nunca sabe o que vai acontecer. Poderá haver uma guerra mundial e você precisar ser enfermeira. Seria bom aprender agora a lavar um homem. Seja como for, onde diabo está esse sabão? Eu estou cheirando como Cleópatra."
"É muito bom. Contém caro perfume francês. É o que diz no pacote. E você está com um cheiro delicioso. Muito melhor que seu cheiro de pólvora."
Ele riu.
"Bem, vamos. E depressa."
Assim, curvei-me, e comecei e, naturalmente, um minuto depois estávamos abraçados de novo embaixo do chuveiro. Nossos corpos estavam lisos de água e sabão. Ele fechou o chuveiro, ergueu-me para fora do box e começou a enxugar-me devagarinho com a toalha de banho, enquanto eu me reclinava para trás dentro de seu braço livre e me limitava a deixar que tudo acontecesse. Depois, apanhei a toalha e enxuguei-o. Seria tolice esperar mais tempo. Tomou-me nos braços, carregou-me para o quarto e deitou-me na cama. Com os cílios semicerrados fiquei observando seu corpo pálido, enquanto ele fechava as cortinas e passava a chave na porta.
Logo depois estava deitado ao meu lado.
Suas mãos e sua boca eram vagarosas e elétricas. Seu corpo em meus braços era ternamente impetuoso.
Depois ele me contou que quando chegou o momento eu gritei. Eu não sabia. Só sabia que um abismo de penetrante doçura abriu-se de repente e engoliu-me, e que cravei minhas unhas em seus quadris para ter certeza de segurá-lo comigo. Depois, ele disse sonolentamente algumas coisas suaves e beijou-me mais uma vez. Em seguida seu corpo escorregou para o lado e permaneceu imóvel. Fiquei deitada de costas, fitando a escuridão vermelha e ouvindo sua respiração.

*

Eu nunca antes praticara o ato de amor assim completo, com o coração tanto quanto com o corpo. Fora agradável com Derek, frio e satisfatório com Kurt. Mas isto era algo diferente. E finalmente percebi o que aquilo podia ser na vida da gente.
Penso que sei por que me entreguei tão completamente a esse homem, como fui capaz de fazer isso com alguém que conhecera apenas seis horas antes. Além da excitação que sua aparência, sua autoridade e sua virilidade causavam, ele viera de lugar nenhum, como o príncipe nas histórias de fadas, e me salvara do dragão. Se não fosse ele, eu agora estaria morta, depois de ter sofrido só Deus sabe o quê. Ele poderia ter trocado o pneu de seu carro e ido embora ou, quando surgiu o perigo, poderia ter salvo sua própria pele. Mas lutou por minha vida, tanto quanto pela sua. E depois, morto o dragão, tomara-me como sua recompensa. Eu sabia que dentro de poucas horas ele partiria - sem protestos de amor, sem explicações ou desculpas. E isso seria o fim de tudo - acabado, liquidado.
Todas as mulheres desejam ser meio violentadas. Gostam de ser possuídas. Foi sua suave brutalidade contra meu corpo escoriado que tornou seu ato de amor tão penetrantemente maravilhoso. Isso e a coincidência dos nervos completamente relaxados depois de eliminada a tensão e o perigo, o calor da gratidão e o sentimento natural da mulher por seu herói. Não tive arrependimento, nem vergonha. Poderia ter havido conseqüências para mim - das quais não seria a menor o fato de talvez daí por diante não me sentir satisfeita com outros homens. Mas fossem quais fossem minhas complicações, ele nunca ouviria falar nelas. Eu não o perseguiria para tentar repetir o que acontecera entre nós. Ficaria longe dele e o deixaria seguir seu caminho, ao longo do qual haveria outras mulheres, inúmeras outras mulheres, que provavelmente lhe dariam tanto prazer físico quanto eu lhe dera. Não me importaria ou pelo menos disse a mim mesma que não me importaria, porque nenhuma delas o possuiria - nenhuma delas possuiria pedaço dele maior do que eu possuía então. E, durante toda minha vida, seria agradecida a ele, por tudo. E lembrar-me-ia dele para sempre como minha imagem de um homem.
Até que ponto se podia ser tola? Que havia para dramatizar nessa pessoa nua do sexo masculino que estava deitada ao meu lado? Ele era apenas um agente profissional que executara seu trabalho. Fora treinado a disparar armas, a matar gente. Que havia de tão maravilhoso nisso? Corajoso, forte, implacável com as mulheres - essas eram as qualidades que sua missão exigiam - eram o que pagavam para ele ser. Era apenas uma espécie de espião, um espião que me amara. Nem mesmo me amara. Dormira comigo. Por que devia eu fazer dele meu herói, jurar que nunca o esqueceria? De repente, tive ímpetos de acordá-lo e perguntar-lhe: "Não é capaz de ser amável? Não é capaz de ser bom?"
Virei-me para seu lado. Ele estava adormecido, respirando serenamente, com a cabeça repousando sobre o antebraço esquerdo estendido e o braço direito enfiado embaixo do travesseiro. A lua brilhava de novo. Luz vermelha filtrava-se através das cortinas, misturando as sombras negras de seu corpo com cintilantes clarões rubros. Curvei-me bem sobre ele, aspirando sua masculinidade, ansiando por tocá-lo, por correr minha mão pelas suas costas até onde o marrom se tornava bruscamente branco no lugar onde estivera seu calção de banho do verão.
Depois de olhá-lo, deitei-me de costas. Não, ele era como eu pensava que fosse. Sim, esse era um homem que merecia ser amado.

*

As cortinas vermelhas do outro lado do quarto estavam-se mexendo. Através dos olhos semi-sonolentos fiquei pensando por quê. Fora, o vento amainara e não havia som. Preguiçosamente, ergui os olhos para ver acima de mim. As cortinas deste lado do quarto, por cima de nossa cama, estavam imóveis. Uma pequena brisa devia estar soprando do lago. Vamos! Pelo amor de Deus, durma!
Então, com u:n repentino som raspante no alto da parede oposta, as partes da cortina abriram-se. E uma grande e luzente cara de nabo, pálida cara de nabo, pálida e brilhante sob o luar, olhou através dos painéis de vidro.
Eu não sabia que cabelos podiam ficar em pé. Pensava que isso era invenção de escritores. Mas ouvi o barulho de algo raspando no travesseiro em volta de minhas orelhas e senti o ar fresco da noite em meu couro cabeludo. Quis gritar, mas não pude. Meus membros ficaram gelados. Não era capaz de mover os pés, nem as mãos. Eu pensava que isso tudo também era ficção. Não era. Simplesmente fiquei deitada e olhando, observando minhas sensações físicas - até mesmo o sintoma de meus olhos estarem tão abertos que doíam. Mas não pude mover um dedo. Estava - outra frase dos livros - morta de medo, dura como uma pedra.
O rosto por trás dos painéis de vidro da janela mostrava os dentes. Talvez os dentes estivessem aparecendo, como os de um animal, devido ao esforço. O luar refletia-se nos dentes, nos olhos e no alto da cabeça calva, formando uma espécie de desenho infantil de rosto.
O rosto fantástico correu vagarosamente pelo quarto, olhando. Viu a cama branca com as duas manchas de cabeças sobre o travesseiro. Parou de olhar vagarosamente, penosamente, uma mão, tendo nela metal brilhante, subiu ao lado da cabeça e depois desceu desajeitadamente sobre os painéis de vidro, quebrando-os.
O barulho foi o de um gatilho que descarregou. Gritei e bati de lado com a mão. Provavelmente isso não ajudou. O barulho do vidro já o acordara. Eu poderia mesmo ter atrapalhado sua pontaria. Mas então houve o duplo troar de armas, a sólida batida de balas na parede acima de minha cabeça, outro grande barulho de vidro quebrado e a cara de nabo desapareceu.
"Você está bem, Viv?"
Sua voz era urgente, desesperada.
Viu que eu estava bem e não esperou pela resposta. Ergueu-se da cama e de repente o luar lançou um grande bloco de luz através da porta. Ele corria tão silenciosamente que não ouvi seus pés sobre o piso de concreto do abrigo, mas pude vislumbrá-lo encostando-se à parede e rodeando o canto. Fiquei deitada e olhei aterrada - outra palavra literária, mas bem precisa - para os restos denteados da janela e lembrei-me da luzente e horrível cabeça de nabo que devia ser um fantasma.
James Bond voltou. Não disse uma palavra. A primeira coisa que fez foi dar-me um copo de água. A ação prosaica, a primeira coisa que um pai faz quando a criança tem pesadelo, trouxe-me de volta para o quarto e suas formas familiares, tirando-me da caverna preta e vermelha dos fantasmas e das armas de fogo. Depois ele foi buscar uma toalha de banho, pôs uma cadeira embaixo da janela quebrada, subiu nela e estendeu a toalha sobre a janela.
De repente percebi os músculos que se distendiam e relaxavam em seu corpo nu e divertiu-me ver como um homem parece estranho sem roupas quando não está amando, mas apenas andando por um quarto e fazendo uma espécie de serviço doméstico. Pensei que talvez devêssemos ser nudistas. Mas talvez só antes dos quarenta anos. Disse: "James, nunca fique gordo."
Ele arrumou a toalha como uma cortina. Desceu da cadeira e disse distraído: "Não. É isso mesmo. A gente não deve ficar gorda."
Tornou a pôr a cadeira ao lado da mesa onde estava antes e apanhou sua arma, que havia deixado sobre a mesa. Examinou a arma. Foi até sua pequena pilha de roupas, tirou um novo pente, substituiu o velho, veio até a cama e enfiou a arma embaixo de seu travesseiro.
Agora eu percebia por que ficara deitado daquele jeito, com a mão direita dobrada embaixo do travesseiro. Imaginei que sempre dormia assim. Pensei que sua vida devia ser como a de um bombeiro, sempre esperando um chamado. Pensei como devia ser extraordinário ter o perigo como seu negócio.
Ele veio sentar-se na beirada da cama do meu lado. Nas réstias de luz que se filtravam para dentro do quarto, seu rosto parecia contorcido e queimado, como por um choque. Tentou sorrir, mas os músculos tensos não deixaram e foi apenas um esboço deformado de um sorriso. Disse: "Quase deixei de novo que nos matassem. Sinto muito, Viv. Devo estar perdendo meu jeito. Se continuar assim, vou ter encrenca. Quando o carro caiu no lago, lembra-se que um pedaço da capota e a janela traseira ficaram para fora da água? Bem, naquele canto evidentemente havia bastante ar preso. Foi uma maldita tolice minha não ter percebido isso. Aquele sujeito, Sluggsy, não precisava senão quebrar a janela traseira e nadar para terra. Havia sido atingido várias vezes. Deve ter sido muito difícil para ele. Mas chegou até nossa casinha. Poderíamos agora ser patos mortos. Não vá lá atrás de manhã. Ele não está bonito de ver." Olhou-me para tranqüilizar-se."Seja como for, sinto muito, Viv. Isso não devia ter acontecido."
Desci cambaleando da cama e fui abraçá-lo. Seu corpo estava frio. Apertei-o contra mim e beijei-o.
"Não seja bobo, James! Se não fosse por mim, você não teria entrado em toda esta bagunça. E onde estaria eu se não fosse você? Eu não seria apenas uma pata morta, mas também assada, há muitas horas. O mal é que você não dormiu o suficiente. E está frio. Venha para a cama comigo. Eu o conservarei quente."
Levantei-me e puxei-o, fazendo-o ficar em pé.
Puxou-me para junto dele. Abaixou as duas mãos e apertou meu corpo contra o seu. Segurou-me assim durante algum tempo, completamente imóvel, e sentiu como seu corpo estava adquirindo calor do meu. Depois, ergueu-me e deitou-me suavemente de costas na cama. Possuiu-me ferozmente, quase cruelmente, e houve de novo o pequeno grito de alguém que não era mais eu. Depois ficamos deitados lado a lado e seu coração batia selvagemente contra meu peito. Vi que minha mão direita estava apertando seus cabelos.
Relaxei meus dedos contraídos e abaixei a mão para encontrar a sua.
"James, que é piva?", perguntei.
"Por quê?"
"Eu lhe contarei depois que me disser."
Ele riu sonolentamente.
"É gíria de gangsters para dizer prostituta."
"Imaginei que era alguma coisa assim. Eles só me chamavam disso. Acho que deve realmente ser verdade."
"Você não se enquadra nisso."
"Prometa não pensar que sou uma piva?"
"Prometo. Você é apenas uma querida gatinha. Estou gamado por você."
"Que quer dizer isso?"
"Quer dizer louco por uma garota. Agora chega de perguntas. Durma."
Beijou-me delicadamente e virou-se para seu lado.
Curvei-me contra ele, encostando-me bem em suas costas e coxas.
"Esta é uma bela maneira de dormir... como colheres. Boa noite, James"
"Boa noite, querida Viv."



15 - Escrito no meu coração

ESSAS FORAM as últimas palavras que ele me disse. Quando acordei na manhã seguinte, havia partido. Só restava o lugar amassado da cama onde estivera deitado e seu cheiro no travesseiro. Para ter certeza, saltei da cama e corri ver se o carro cinzento ainda estava lá. Não estava.
Era um belo dia e havia muito orvalho no chão. Na terra úmida pude ver suas pegadas estendendo-se até onde estivera o carro. Uma triste-pia voou gritando através da clareira e de algum lugar entre as árvores veio o chamado agonizante de um pombo selvagem.
As ruínas do motel estavam pretas e horríveis. Dos restos do edifício do saguão subia para o ar parado uma fantástica nuvem de fumaça. Voltei para a casinha, tomei um banho de chuveiro e comecei rapidamente a arrumar minhas coisas nas duas mochilas. Então vi a carta em cima da penteadeira. Sentei-me na cama para lê-la.
Estava escrita em papel do motel tirado da mesa de escrever. A letra era muito clara e uniforme. Ele usara uma caneta verdadeira, não uma esferográfica.

Querida Viv.
Você talvez precise mostrar isto à polícia. Portanto serei muito comercial. Estou a caminho de Glens Falls, onde farei um relatório completo para a polícia depois de dizer à Patrulha Rodoviária para ir procurá-la imediatamente. Entrarei também em contato com Washington, de onde certamente farão com que Albany tome conta do caso. Recorrerei a todos os meios para que você não seja muito incomodada e para que a deixem seguir seu caminho depois de prestar depoimento. Glens Falls terá minha rota e o número do registro do carro. Poderão localizar-me onde quer que eu esteja se você precisar de auxílio ou se eles quiserem saber mais alguma coisa de mim. Você não terá nada para o desjejum, por isso pedirei â Patrulha que lhe leve uma garrafa térmica com café e sanduíches para conservá-la viva. Eu gostaria muito de ficar com você, ainda que fosse só para ver o Sr. Sanguinetti! Mas duvido muito que ele apareça esta manhã. Tenho o palpite de que, não recebendo notícias de seus dois violentos rapazes, ele irá correndo como o diabo para Albany e tomará o primeiro avião para o sul a caminho do México. Transmitirei a Washington esse meu palpite e conseguirão apanhá-lo se se mexerem. Ele pegará por isto prisão perpétua, o que chamam de "daqui por diante" ou "O Rosário", na linguagem que estivemos aprendendo. Agora, escute. Você, e até certo ponto eu, salvamos para a companhia de seguros pelo menos meio milhão de dólares e haverá uma grande recompensa. As regras de meu serviço não me permitem aceitar recompensas, de maneira que não há discussão sobre isso. Mesmo que não fosse assim, a verdade é que foi você quem suportou o peso principal disto tudo e é você a heroína. Assim, vou fazer realmente questão disso e providenciar para que a companhia de seguros aja direito. Mais uma coisa. Eu não ficaria surpreendido se um daqueles bandidos ou ambos estivessem sendo procurado pela polícia e houvesse uma recompensa por sua cabeça. Verei isso também. Quanto ao futuro, guie com muito cuidado no resto do caminho. E não tenha pesadelos. Coisas dessa espécie não acontecem com freqüência. Encare tudo isso como se fosse apenas um feio desastre de motocicleta do qual você tivesse tido a sorte de escapar. E continue sendo tão maravilhosa como é. Se um dia quiser encontrar-me ou precisar de auxílio, onde quer que esteja, pode comunicar-se comigo por carta ou cabograma, mas não por telefone, aos cuidados do Ministério da Defesa, Storey's Gate, Londres, S. W. I.

Sempre seu,
J. B.

PS. Seus pneus estão com muita pressão para o Sul. Lembre-se de diminuí-la.

P. PS. Experimente "Fleurs des Alpes" de Guerlain em lugar de "Camay!"

*

Ouvi o ronco das motocicletas subindo a estrada. Quando pararam, houve o curto gemido de uma sereia para anunciar quem eram. Pus a carta dentro da parte superior de meu macacão, fechei o zíper e fui encontrar-me com a Lei.

*

Eram dois milicianos estaduais, elegantes, jovens e muito distintos. Eu já quase me esquecera de que existia gente assim. Fizeram-me continência como se eu fosse uma rainha.
"Srta. Vivienne Michel?"
Foi o superior, um tenente, quem falou, enquanto seu Número Dois resmungava baixinho no rádio anunciando sua chegada.
"Sim".
"Sou o tenente Morrow. Soubemos que teve algumas complicações ontem à noite."
Fez um gesto com a mão enluvada na direção das ruínas e acrescentou:
"Parece que as informações eram certas."
"Oh, isso não é nada", disse eu desdenhosamente. "Há um carro no lago com um cadáver dentro e outro cadáver atrás da casinha Número 3."
"Sim, senhorita."
Havia na voz uma insinuação de desaprovação à minha leviandade. Virou-se para seu companheiro que já guardara de novo o microfone no aparelho atrás de seu selim.
"O'Donnell, dê uma olhada por aí, sim?"
"Okay, tenente."
O'Donnell afastou-se através do gramado.
"Bem, vamos sentar em algum lugar, Srta. Michel."
O tenente curvou-se sobre uma das mochilas na garupa de sua motocicleta e tirou um pacote cuidadosamente embrulhado.
"Trouxe alguma coisa para o desjejum. Acho que é só café e bolos. Isso lhe serve?"
Estendeu-me o pacote.
Dei-lhe um sorriso de plena luminosidade.
"É enorme bondade sua. Eu estava morta de fome. Há alguns bancos acima do lago. Podemos escolher um de onde não se veja o carro afundado."
Segui na frente através da grama e nos sentamos. O tenente tirou o boné e puxou um caderno de anotações e lápis. Fingiu que fazia suas anotações a fim de dar-me tempo de começar um bolinho.
Ergueu os olhos e deu seu primeiro sorriso.
"Não se preocupe com isto, senhorita", disse ele."Não estou tomando depoimento. O capitão virá pessoalmente fazer isso. Deve chegar a qualquer momento. Quando recebi o chamado de emergência, tomei conhecimento dos fatos essenciais. O que me preocupa é o rádio não ter-me deixado em paz desde então. Precisei reduzir a velocidade no caminho inteiro, da Rota 9 até aqui, para ficar ouvindo as instruções da estação - que Albany estava interessada no caso, que até mesmo os figurões de Washington nos estavam observando. Nunca antes ouvira tanta carga vindo pelo ar. Agora, senhorita, poderia dizer-me como é que Washington está envolvida nisto e apenas umas duas horas após Glens Falls ter recebido o primeiro relatório?"
Não pude deixar de sorrir de sua seriedade. Quase podia ouvi-lo dizendo a O'Donnell enquanto rodavam pela estrada: "A qualquer momento veremos Jack Kennedy correndo atrás de nós!"
"Bem", comecei, "há um homem chamado James Bond, que está envolvido no caso. Salvou-me e liquidou esses dois gangsters. É uma espécie de agente inglês, do serviço secreto ou coisa semelhante. Vinha de automóvel de Toronto para Washington, a fim de apresentar relatório sobre um caso, mas um de seus pneus furou e ele acabou no motel. Se não tivesse aparecido lá, agora eu estaria morta. Seja como for, acho que deve ser muito importante. Disse-me que pretendia impedir que esse Sr. Sanguinetti fugisse para o México ou algum outro lugar. Mas isso é mais ou menos tudo quanto sei a seu respeito, exceto que... exceto que parecia um sujeito maravilhoso.
O tenente assumiu uma expressão de simpatia.
"Deve ser, senhorita. Se a salvou dessa encrenca. Mas ele certamente tem influência no F. B. I. Eles não se intrometem com muita freqüência em casos locais como este. A menos que sejam chamados ou que o caso tenha algum aspecto federal."
O fino gemido de sereias soou lá embaixo, na estrada. O tenente Morrow levantou-se e pôs o boné, dizendo: "Bem, obrigado, senhorita. Eu estava apenas satisfazendo minha curiosidade. O capitão cuidará de tudo daqui por diante. Não se preocupe. Ele é um ótimo sujeito."
O'Donnell aproximou-se.
"Se me dá licença, senhorita", disse o tenente, afastando-se depois com O'Donnell e ouvindo seu relatório. Terminei o café e segui-os vagarosamente, pensando no "Thunderbird" cinzento, que estaria agora engolindo quilômetros na direção sul, e nas mãos queimadas de sol sobre a direção.

*

Era um verdadeiro cortejo que vinha subindo a estrada entre os pinheiros - um carro de rádio-patrulha com batedores, uma ambulância, duas outras viaturas policiais e um guincho, que se aproximou de mim pelo gramado e desceu em direção ao lago. Todos pareciam ter ordens a cumprir e pouco depois a área inteira estava coberta de figuras em movimento, vestidas de verde-oliva ou azul-marinho.
O homem de compleição robusta que logo avançou para encontrar-se comigo, seguido por um oficial inferior que depois eu soube ser o estenógrafo, parecia exatamente o capitão-detetive dos filmes cinematográficos - vagaroso, de rosto bondoso, decidido. Estendeu-me a mão.
"Senhorita Michel? Eu sou o capitão Stonor, de Glens Falls. Vamos para algum lugar onde possamos conversar, sim? Vamos para uma das casinhas ou ficamos ao ar livre?"
"Eu já tive o suficiente daquelas casinhas, se não faz questão. Por que não aqui mesmo - em minha mesa de desjejum? E, a propósito, muito obrigado por sua consideração. Eu estava morta de fome."
"Não precisa agradecer-me, Srta. Michel", disse o capitão, cujos olhos piscaram friamente. "Foi seu amigo inglês, o comandante Bond, quem sugeriu isso" - fez uma pausa e acrescentou - "além de outras coisas."
Então ele era comandante. Era o único posto de cujo nome eu gostava. Naturalmente, tinha de deixar o capitão irritado - um inglês com toda aquela autoridade. E com a C. I. A. e o F. B. I. , ainda por cima! Nada poderia irritar mais o policial comum. Decidi ser extremamente diplomática.
Sentamo-nos e, depois dos habituais preliminares policiais, ele me pediu que contasse a história.
Levei duas horas - com todas as perguntas do capitão Stonor e outros homens aproximando-se de tempos a tempos para sussurrar-lhe roucamente nos ouvidos - e no fim estava exausta. Trouxeram café e cigarros para mim ("Quando estou em serviço, não, muito obrigado, Srta. Michel") e depois nós todos nos relaxamos, tendo o estenógrafo sido mandado embora. O capitão Stonor mandou chamar o tenente Morrow e afastou-se um pouco com ele a fim de transmitir pelo rádio um relatório preliminar para a central. Observei os restos do sedan preto, que havia sido puxado para o alto do rochedo, serem rebocados sobre o gramado até a estrada. Lá, a ambulância encostou-se a seu lado e eu desviei os olhos quando um fardo molhado foi cuidadosamente erguido e colocado sobre a grama. Horror! Lembrei-me novamente daqueles olhos frios, manchados de vermelho. Senti suas mãos sobre mim. Poderia aquilo ter acontecido?
Ouvi o capitão dizer: "E cópias para Albany e Washington. Entendido?"
Depois, veio sentar-se de novo diante de mim. Olhou-me bondosamente e disse algumas coisas elogiosas. Mostrei-me agradecida e disse: "Não, não." Depois perguntei quando achava que eu poderia partir.
O capitão Stonor não respondeu imediatamente. Ergueu vagarosamente a mão, tirou o boné e colocou-o sobre a mesa. O gesto de armistício, cópia do que fizera o tenente, fez-me sorrir por dentro. Depois, rebuscou nos bolsos e tirou cigarros e um isqueiro. Ofereceu-me um e acendeu o seu. Sorriu para mim, seu primeiro sorriso não oficial.
"Agora estou fora de serviço, Srta. Michel", disse.
Acomodou-se confortavelmente e cruzou as pernas, repousando o tornozelo esquerdo sobre o joelho direito e ficou segurando-o. De repente ficou parecendo um homem de meia-idade com família, descansando. Deu sua primeira e longa tragada no cigarro e ficou observando a fumaça desvanecer-se.
"Pode ir quando quiser, Srta. Michel", disse ele."Seu amigo, o comandante Bond, estava ansioso para que a senhorita tivesse o mínimo de incômodo possível. Tenho o maior prazer em atender a ele - e à senhorita também. E - sorriu com inesperado humor e ironia - não preciso que Washington acrescente seus desejos nesta questão. A senhorita foi uma moça corajosa. Viu-se envolvida em um feio crime e portou-se como eu gostaria que qualquer filho meu se portasse. Aqueles dois criminosos eram procurados pela polícia. Vou indicar seu nome para as recompensas. Há também a companhia de seguros, que certamente será generosa. Indiciamos aqueles Phanceys sob uma acusação preliminar de tentativa de fraude. O Sr. Sanguinetti já está em fuga, como o comandante sugeriu esta manhã. Entramos em comunicação com Troy, como teríamos feito de qualquer modo, e o mecanismo normal da polícia está em ação para apanhá-lo. Haverá uma acusação grave contra o Sr. Sanguinetti, quando nós o apanharmos, se o apanharmos, e talvez então a senhorita precise ser ouvida como testemunha. O Estado pagará todas as despesas para que a senhorita seja trazida de onde estiver, hospedada aqui e levada de volta. Tudo isso - o capitão Stonor fez um gesto de indiferença com seu cigarro - é rotina policial normal e se resolverá sozinho."
Os astutos olhos azuis fitaram-se cuidadosamente nos meus e depois se velaram.
"Mas isso não encerra completamente o caso para mim", acrescentou sorrindo."Isto é, agora que estou fora de serviço, por assim dizer, e que nós dois estamos sozinhos."
Procurei parecer interessada e despreocupada, mas fiquei imaginando o que viria em seguida.
"Esse comandante Bond não lhe deixou algumas instruções, alguma carta? Ele me disse que a deixara dormindo hoje de manhã. Que saíra mais ou menos às seis horas e não quisera acordá-la. Muito direito, naturalmente, mas - o capitão Stonor examinou a ponta de seu cigarro - seu depoimento e o do comandante mostram que vocês dormiram na mesma casinha. Perfeitamente natural em tais circunstâncias. A senhorita naturalmente não desejava mais ficar sozinha na noite passada. Mas pareceu-me muito abrupta a despedida, depois de uma noite excitante como essa. Acho que não houve dificuldades com ele. Não tentou... hum... não tentou mostrar-se atrevido com a senhorita, se é que me entende?"
Os olhos pareciam pedir desculpas, mas sondavam os meus.
Corei furiosamente. Respondi em tom áspero: "Claro que não, capitão. Sim, ele me deixou uma carta. Uma carta perfeitamente correta. Não a mencionei antes porque nada acrescenta ao que já lhe disse."
Abri o zíper do macacão e tirei a carta de dentro, corando ainda mais. Maldito homem!
Ele pegou a carta e a leu cuidadosamente. Depois, devolveu-a dizendo: "Uma carta muito amável. Muito... hum... comercial. Não entendi aquele pedaço do sabão."
Respondi laconicamente: "Oh, foi apenas uma piada sobre o sabão do motel. Ele disse que tinha cheiro muito forte."
"Compreendo. Sim, claro. Está tudo muito bem, senhorita Michel."
Os olhos adquiriram novamente uma expressão bondosa, quando prosseguiu: "Bem, agora... Não se incomodaria se eu lhe dissesse algo pessoal? Se eu falasse consigo por um minuto como se fosse minha filha? Poderia ser, sabe? Quase minha neta, se eu tivesse começado bastante cedo."
Riu baixinho.
"Não. Pode dizer o que quiser."
O capitão Stonor tirou outro cigarro e acendeu-o.
"Bem, senhorita Michel, o que o comandante diz está certo. A senhorita esteve no equivalente de um desastre de motocicleta e não precisa ter mais pesadelos sobre isso. Há mais, porém. A senhorita foi introduzida repentinamente, sem nada saber, por assim dizer, e violentamente na guerra subterrânea ao crime, a guerra que prossegue o tempo todo e a cujo respeito já leu nos jornais e já viu em filmes de cinema. E, como no cinema, o policial salvou a mocinha dos bandidos."
Debruçou-se sobre a mesa e fixou firmemente seus olhos nos meus, enquanto continuava: "Agora, não me interprete mal, senhorita Michel, e se estiver falando o que não devo, esqueça-se do que eu disser. Mas não seria razoável da sua parte fazer um herói do policial que a salvou, pôr em sua cabeça a idéia de que essa é a espécie de homem que deve procurar, com quem talvez deseje casar-se."
O capitão voltou a encostar-se para trás. Sorriu como quem pede desculpas.
"Se estou dizendo isto tudo é porque emergências violentas como aquela por que passou deixam cicatrizes. Representam um choque terrível para qualquer pessoa - para qualquer mulher. Agora, creia-me (os bondosos olhos tornaram-se menos bondosos), pelos relatórios de meus oficiais, tenho boas razões para acreditar que manteve relações íntimas com o comandante Bond na noite passada. Acho que um dos nossos deveres menos atraentes é ler esses indícios."
O capitão Stonor levantou a mão.
"Agora, não estou mais me intrometendo nessas coisas particulares, que não são negócio meu, mas seria perfeitamente natural, quase inevitável, que a senhorita tivesse entregue seu coração, ou pelo menos parte dele, a esse simpático e jovem inglês que acabara de salvar sua vida."
A simpatia nos olhos paternais misturava-se com ironia.
"Afinal de contas, isso é o que acontece nos livros e no cinema, não é? Por que não aconteceria na vida real?"
Mexi-me impacientemente, desejando que acabasse essa estúpida preleção, desejando ir embora.
"Agora vou chegar ao fim bem depressa, Srta. Michel, e sei que está pensando que sou muito impertinente, mas desde que passei da meia-idade na polícia, fiquei interessado pelo que chamo de assistência pós-natal depois de um caso como este. Particularmente quando o sobrevivente é jovem e poderia ser prejudicado pelas coisas que lhe aconteceram. Por isso, desejo deixar-lhe uma idéia, se puder, e depois desejar-lhe o máximo de sorte e uma feliz viagem naquela sua maluca motonetazinha. É só isso, Srta. Michel."
Os olhos do capitão Stonor continuaram olhando dentro dos meus, mas haviam perdido sua vivacidade. Eu sabia que ia ouvir algo saído do coração. Isso é uma coisa rara entre duas gerações - entre adultos e crianças. Parei de pensar em ir embora e prestei atenção.
"Esta guerra subterrânea de que eu estava falando, esta batalha do crime que sempre prossegue... seja ela travada entre polícias e ladrões ou entre espiões e contra-espiões... É uma batalha privada entre dois exércitos treinados, um lutando ao lado da lei e daquilo que seu país considera justo, e outro pertencente aos inimigos dessas coisas."
O capitão Stonor agora estava falando para si mesmo. Imaginei que estava recitando algo - algo que feria fundo seus sentimentos - que talvez tivesse dito em discursos ou em artigo publicado em alguma revista policial.
"Mas nos escalões superiores dessas forças, entre os mais duros profissionais, há nas pessoas envolvidas uma qualidade mortífera que é comum a ambos - a amigos e a inimigos."
O punho fechado do capitão desceu suavemente sobre a mesa de madeira para dar ênfase às suas palavras e em seus olhos, que olhavam para dentro, ardia uma cólera devotada e pessoal.
"Os gangsters de categoria, os agentes de categoria do F. B. I., os espiões de categoria e os contra-espiões de categoria são assassinos de coração frio e sangue frio, impiedosos, duros, senhorita Michel. Sim, mesmo os "amigos" considerados em oposição aos "inimigos". Eles precisam ser assim. Não sobreviveriam se não o fossem. Entendeu-me?"
Os olhos do capitão Stonor readquiriram sua vivacidade. Agora fitavam-se nos meus com uma urgência amiga que tocou meus sentimentos - mas, tenho vergonha de dizer, não meu coração.
"Por isso, a mensagem que desejo deixar consigo, minha querida - posso dizer-lhe que falei com Washington e fiquei sabendo alguma coisa sobre os. extraordinários feitos desse comandante Bond em seu setor de atividades - é esta. Fuja de todos esses homens. Eles não são para você, quer se chamem James Bond ou Sluggsy Morant. Esses dois homens, e outros como eles, pertencem a uma selva particular na qual você se perdeu por algumas horas e da qual conseguiu escapar. Por isso, não tenha sonhos agradáveis com um e pesadelos com o outro. Eles simplesmente são pessoas diferentes de gente como você - uma espécie diferente."
O capitão Stonor sorriu ao acrescentar: "Como gaviões e pombos, se me perdoa a comparação. Entendeu?"
Minha expressão não podia ter sido receptiva. A voz tornou-se brusca:"Okay, então vamos."
O capitão Stonor levantou-se e eu fiz o mesmo. Eu não sabia o que dizer. Lembrei-me de minha reação imediata quando James Bond apareceu na porta do motel: "Santo Deus, é outro deles." Mas me lembrei também de seu sorriso, de seus beijos e de seus braços em volta de mim. Caminhei humildemente ao lado desse homem grande e confortador que tivera pensamentos tão bem intencionados e a única coisa em que pude pensar era que desejava um grande almoço e depois um prolongado sono pelos menos a cem quilômetros do "Dreamy Pines Motor Court".

*

Era meio-dia quando parti. O capitão Stonor disse que eu ia ter muita amolação com a imprensa, mas que afastaria os jornalistas até onde fosse possível. Eu poderia contar tudo quanto quisesse a respeito de James Bond, exceto qual era sua profissão e onde ele podia ser encontrado. Era apenas um homem que aparecera no momento exato e depois seguira seu caminho.
Arrumei minhas mochilas e o jovem miliciano estadual, tenente Morrow, prendeu-as para mim na "Vespa", que depois levou para a estrada. Quando atravessávamos o gramado, ele disse: "Cuidado com os buracos daqui a Glens Falls, senhorita. Alguns são tão fundos que o melhor é tocar a buzina antes de passar por eles. Poderia haver no fundo outras pessoas com maquinazinhas como esta."
Ri. Ele era limpo, alegre e jovem, mas bravo e aventuroso, tanto em sua aparência quanto em seu serviço. Talvez esse fosse mais o tipo de homem em torno do qual eu devia construir sonhos!
Disse adeus ao capitão Stonor e agradeci-lhe. Depois, com um pouco de medo de fazer-me de boba, pus meu capacete, baixei meus ousados óculos forrados de pele, subi na máquina e pisei no pedal da partida. Graças aos céus a maquinazinha pegou na hora! Agora ia mostrar para eles! De propósito, a roda traseira ainda estava sobre seu suporte. Embreei depressa e dei um empurrão rápido. A roda traseira girando entrou em contato com a superfície solta da estrada. Voaram pedregulhos e poeira. Eu parti como um foguete e, dez segundos depois, estava a quarenta. A estrada parecia bem boa à frente, por isso me arrisquei a olhar para trás e erguer atrevidamente a mão em sinal de despedida. O pequeno grupo de policiais diante do fumegante edifício do saguão respondeu ao aceno. E então eu me vi correndo pela longa estrada reta entre as duas fileiras de sentinelas que eram os pinheiros e pensei que as árvores pareciam tristes por ter-me deixado escapar ilesa.
Ilesa? Que dissera o capitão dos detetives a respeito de "cicatrizes"? Eu simplesmente não acreditava nele. As cicatrizes de meu terror haviam sido curadas, eliminadas, por aquele estranho que dormia com uma arma embaixo do travesseiro, aquele agente secreto que só era conhecido por um número. Agente secreto? Não me importava o que ele fazia. Um número? Eu já me esquecera dele. Sabia exatamente quem ele era e o que ele era. E tudo, ate os menores detalhes, ficaria escrito para sempre no meu coração.

 

 

                                                                                                    Ian Fleming

 

 

 

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