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ESPIRAIS / Roderick Gordon & Brian Williams
ESPIRAIS / Roderick Gordon & Brian Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Além do barulho e do medo agonizante de se machucar fisicamente, o que há de mais apavorante numa explosão é o milissegundo em que todo o mundo se rompe. É como se o próprio tecido do tempo e do espaço se desfizesse, e caíssemos por ele sem termos ideia do que está do outro lado.
Quando o coronel Bismarck voltou a si, estava esparramado em um piso de mármore. Por um momento foi incapaz de se mexer, como se seu corpo o impedisse. Como se ele soubesse que não devia fazer isso.
Embora houvesse um completo silêncio, o coronel não levantou nenhuma suspeita. Não sentiu alarme, nem urgência. Olhou o teto espatifado, onde pedaços de reboco brancos como a neve balançavam suavemente. Ficou cativado com esse movimento – de um lado a outro, de um lado a outro –, como se fossem apanhados numa brisa. Ficou ainda mais enfeitiçado com o espetáculo de alguns pedaços que se soltavam, caindo em câmera lenta no chão a sua volta.
Sua audição começou a voltar.
Ele distinguiu um som que o lembrou de um pica-pau.
– Vater – disse ele, recordando-se das viagens de caça que fazia com o pai nas selvas da Nova Germânia. Às vezes eles chegavam a ficar uma semana fora, dormindo numa barraca e disputando tiros.
Era uma lembrança reconfortante. Deitado em meio aos destroços da explosão, o coronel suspirou, como se não desse a mínima para o mundo. Ouviu de novo o matraquear, ainda muito distante. Não o associou com o disparo rápido de armas automáticas.

 


 


Depois, o prédio do Royal Mint foi abalado por uma segunda explosão. O coronel fechou os olhos com o clarão ofuscante, em cada detalhe tão brilhante quanto o sol em seu mundo no centro da Terra.

A onda percussiva passou brutalmente sobre ele, arrancando-lhe o ar dos pulmões.

– Was ist...? – O coronel ofegou, ainda de costas, enquanto cacos de vidro voavam pela sala feito granizo e tiniam no mármore polido em volta dele.

Então, soube que havia alguma coisa errada. Não só tudo se tornava rapidamente enevoado pela fumaça preta e sufocante, mas também sua mente parecia estar tomada por ela.

– Wie komme ich hierher? – disse ele, tentando compreender.

Ele não fazia a menor ideia de como chegara ali. A última lembrança que parecia substancial o suficiente para ser confiável era de sofrer uma emboscada na Nova Germânia. Ele se lembrou de ser capturado pelos Styx, mas depois – e achava isso estranho – só conseguia se lembrar de uma luz roxa. Não, luzes roxas, muitas, ardendo com tal intensidade que suas lembranças eram comparativamente opacas.

Ele se recordou vagamente da longa jornada à crosta externa e pouca coisa depois disso, até que se viu em um caminhão com um esquadrão de seus soldados neogermanos. Foram levados a um prédio grande – uma fábrica. E, relacionado com essa fábrica, e ainda à frente de seu pensamento, havia algo que ele precisava fazer. Uma tarefa tão fundamentalmente importante que sobrepujava todas as outras considerações, até sua própria sobrevivência.

Mas nesse momento não conseguia situar que tarefa teria sido. E não tinha tempo para refletir melhor. De repente uma rajada de balas vinda de perto o estimulou a agir. Sentou-se, estremecendo da dor aguda no lado da cabeça que tinha batido no chão. Tossindo e engasgado, a fumaça acre prendendo-se na garganta, ele entendeu que sua prioridade máxima era procurar proteção.

Ele se arrastou por uma porta, onde a fumaça era menos densa e descobriu que estava num escritório, de teto alto e uma mesa com um vaso de flores. Fechando a porta com um pontapé, encostou-se nela enquanto analisava seu próprio estado. O cabelo se encontrava encharcado devido a um corte na nuca, mas ele não tinha como saber de sua gravidade – a pele em volta dele estava entorpecida e ele sabia, por experiência própria, que os ferimentos na cabeça sangravam profusamente. Passou as mãos pelo resto do corpo, sem descobrir outros ferimentos. Não estava fardado, vestia um casaco e roupas civis, sem reconhecer nenhuma delas. Mas pelo menos tinha o cinto militar e sua pistola ainda estava no coldre. Ele a pegou, tranquilizando-se com o peso na mão. Algo que conhecia. Esperou, procurando ruídos do outro lado da porta.

Não teve de esperar muito. Depois de uma breve trégua, ele captou vozes em inglês e o barulho de botas pisando nos escombros do corredor onde estivera. Alguém forçou a porta da sala com o ombro, abrindo-a, e entrou de rompante. O homem estava vestido de preto, trazendo POLÍCIA no peito. Usava uma máscara de gás e capacete e estava com uma arma automática que o coronel Bismarck nunca viu na vida.

Pegando o policial de surpresa, o coronel passou o braço por seu pescoço e o deixou inconsciente. Enquanto o rádio do homem zumbia, o coronel rapidamente tirou seu uniforme e o vestiu. Ao colocar a máscara de gás, percebeu que saíra ainda mais sangue do corte na cabeça, mas não podia se preocupar com isso agora.

Ele se familiarizou com o fuzil de assalto, que achou muito simples. Depois saiu da sala e deu alguns passos para dentro da fumaça negra, ficando cara a cara com outro policial com idênticos trajes de cerco. Quando os olhares se encontraram pelas lentes das máscaras, o homem fez um gesto, mas o coronel não sabia como responder. Uma pergunta se formou nos olhos do homem. Julgando que seu disfarce fora descoberto, o coronel começou a erguer o fuzil de assalto H&K que tinha nas mãos.

Foi salvo por outra explosão, que rasgou o corredor e o arrancou do chão. Tonto, o coronel se levantou e cambaleou pela entrada principal, onde as portas estavam tortas e penduradas em dobradiças quebradas. Quase perdendo o equilíbrio ao errar um degrau, ele se viu vacilante na calçada da frente do prédio.

Ele ficou petrificado.

Confrontava-o um cordão de homens armados – homens demais para ele dar conta sozinho. Todos estavam atrás de veículos descartados ou escudos de tropa de choque, com as miras a laser apontadas para ele.

O coronel não estava preparado para o que aconteceu em seguida. Com a cabeça ainda girando e os sentidos entorpecidos, ele não reagiu quando o fuzil foi arrancado de sua mão. Ao mesmo tempo, ele foi erguido do chão por dois policiais e carregado a passos rápidos.

– Está tudo bem, meu chapa, não se preocupe. Vamos conseguir ajuda para você – disse o homem a sua esquerda, solidário. O segundo policial falou alguma coisa, mas o coronel não entendeu.

Sua escolta retirou o capacete e a máscara de gás dele.

– Você não é um dos nossos – disse o policial, ao ver a cara ensanguentada do coronel.

– Deve ser da Equipe E... Um sujeito do interior – disse o outro. Mas o coronel não ouvia. A menos de seis metros, um corpo se estendia na sarjeta. Em volta dele, uma roda de policiais ria e fazia piada enquanto um deles o cutucava com o bico da bota. O coronel reconheceu o morto de imediato. Era um neogermano de seu próprio regimento. Ele conhecia bem o soldado e sua esposa – recentemente, tiveram uma filha. O coronel tentou empurrar os dois policiais que o escoravam, mas seu gesto foi interpretado como uma demonstração de fúria.

– É... O resto deles vai ser ensacado e etiquetado dentro de uma hora – prometeu o maior dos dois policiais num rosnado. – Não sei quem são esses filhos da puta, mas nós já empacotamos quatro deles.

O coronel ainda tentava se libertar e o outro policial falou, num ritmo pausado, como se estivesse prestes a explodir de raiva:

– Calma, policial. Deixe que a gente termine o trabalho.

O coronel grunhiu um “sim”, percebendo que precisava cooperar se não quisesse ser identificado como um dos protagonistas. Deixou que os dois policiais o ajudassem até o fim da Threadneedle Street, entrando depois numa rua secundária, onde havia ambulâncias à espera.

– Cuide dele, sim? Foi apanhado na última explosão – ordenou um dos policiais a um paramédico. Deixaram-no ali e voltaram correndo ao Banco da Inglaterra.

Na ambulância, o paramédico começou a examinar o coronel.

– Mas esse é um belo bigode! – exclamou. Pelo tremor em suas mãos, o jovem paramédico claramente nunca tivera uma experiência dessas na vida. Ele limpou o ferimento na cabeça do coronel e dava os últimos retoques em um curativo quando vieram gritos do início da rua. Novas vítimas eram carregadas em macas. O paramédico foi em seu socorro, dando ao coronel a oportunidade que procurava. Embora ainda estivesse meio grogue, conseguiu descer da traseira da ambulância e fugir.

Com tanta gente uniformizada inundando a área – tanto da polícia como de um número cada vez maior de militares –, ninguém deu pela presença do coronel. Mantendo-se nas ruas secundárias, ele só parou ao perceber a entrada nos fundos de um dos grandes prédios comerciais. Para além de suas portas abertas, ele viu uma rampa que descia ao estacionamento subterrâneo. O coronel desceu, experimentando os veículos e tentando encontrar algum que estivesse destrancado, quando apareceu um homem de terno risca de giz. O homem foi direto a um quatro por quatro grande e, justo quando estava colocando duas pastas executivas no porta-malas, o coronel o nocauteou. Trocando o paletó da polícia pela roupa do homem inconsciente, o coronel o colocou ao lado das pastas e fechou com força o porta-malas.

Embora só tivesse dirigido carros que circulavam em mão esquerda, o coronel não teve dificuldade para manobrar o veículo rampa acima e andar pelas ruas. Ao se juntar a uma fila de trânsito que esperava para sair do caos no centro, ele vasculhou os bolsos do paletó do homem. Encontrou uma carteira, da qual retirou os cartões de crédito, jogando-os no banco do carona depois de examiná-los. Enfim, encontrou uma carteira de habilitação com o que só podia ser o endereço da casa do homem, e começou a olhar as placas na rua por onde passava. Não sabia se ia encontrar o caminho até a casa, mas agora estava fora de perigo imediato e podia tomar seu tempo.

Ele tocou um controle no console ao lado de seu banco e o emblema azul e branco da BMW acendeu numa pequena tela no painel. O coronel sorriu. Com alguns cliques, ele navegou pelo sistema GPS de bordo. De imediato digitou o código postal da carteira de habilitação. Enquanto uma voz feminina e autoritária lhe dava a direção, o coronel assentiu, permitindo-se abrir um sorriso ainda maior.

– Bayerische Motoren Werke. – Ele suspirou, passando as mãos com prazer pela borda de couro luxuosa do volante. – Ausgezeichnet. – O coronel conhecia muito bem essa marca porque seu pai tinha voado numa aeronave fabricada por eles na Grande Guerra.

Certos aspectos do mundo exterior em que o coronel agora se via eram tão familiares que quase fingiu que ainda estava na Nova Germânia. Mas ele teria de se acostumar com outros aspectos. Para começar, a gravidade era tão forte ali, que cada movimento dele era um esforço, como se seus braços e pernas pesassem como chumbo.

E o sol...

Olhou pelo para-brisa escurecido, admirando-se com um globo feroz que pendia nos céus, menor e mais fraco do que aquele onipresente e sempre ardendo que ele conheceu a vida toda. Mesmo agora não estava diretamente a pino, e para ele foi uma revelação que pudesse cair bem abaixo do horizonte com o início da noite, o início da escuridão.

E as pessoas nas ruas. Gente de todas as raças. Ele viu um negro idoso tropeçar e sofrer uma queda feia. Logo uma mulher branca se aproximou para ajudar.

Não por opção, mas devido a suas origens, a Nova Germânia era monorracial e o coronel Bismarck sabia muito bem que atrocidades foram cometidas na Alemanha durante a guerra. Enquanto observava a mescla de pessoas que faziam o êxodo do centro, ele sorriu. Estava verdadeiramente em uma civilização esclarecida.

Continue por trezentos metros até a rotatória da Old Street, depois pegue a segunda saída, ditava mecanicamente o GPS.

O coronel pode ter sido arrancado de sua terra natal pelos Styx e atirado nesse ambiente novo e estranho, mas não ia jogar a toalha. Era um homem engenhoso, um sobrevivente.

E, além de tudo, tinha contas a acertar.


Capítulo Dois


– Droga! – Uma voz baixa penetrou pela escuridão melosa do pequeno chalé de arrendatário na propriedade de Parry. Se alguém estivesse ali para testemunhar a velocidade com que o homem correu para a janela tomada de teias de aranha, teria duvidado de seus olhos. Ao puxar de lado uma cortina esfarrapada, a luz filtrada pela chuva caiu em seu rosto – o rosto de um homem em seus sessenta anos.

Mas não era um rosto qualquer, normal; em um leve relevo, a pele tinha uma série de círculos concêntricos que se irradiavam de cada olho. E havia uma grade de linhas pela testa que se estendia das têmporas, descendo sob as orelhas. Era como se vermes tivessem traçado sua carne e deixado rastros.

– Quem diabos é esse? – disse o homem, fazendo careta e apertando as abas do gorro com força nos ouvidos, estalando o forro de alumínio. Repetindo a pergunta, ele recuou lentamente da janela.

– Pare! – gritou Chester com estridência, enquanto Will corria para o portão do outro lado da trilha diante deles.

Will parou e olhou o relógio digital, sem saber do desconforto que o inócuo dispositivo eletrônico causava ao homem no escuro.

– Por quê? Só estamos correndo há uns trinta minutos – disse ele a Chester. Foi só então que viu através das árvores o telhado coberto de musgo do chalé de arrendatário, mas não fez nenhum comentário com o amigo.

– Meia hora? – Chester bufava, piscando com o chuvisco que caía em seus olhos.

– É. Por que não vemos aonde isso leva? – disse Will, olhando a trilha. – Ou será que você está cansado? Podemos encerrar o dia e voltar para casa – ofereceu ele.

– De jeito nenhum. Não eu. – Chester estava indignado. Apontou para uma placa no portão. – Mas isso aqui diz Perigo – Mantenha Distância.

– Perigo? Quando foi que isso nos deteve? – Will de imediato trepou no portão. Chester o seguiu com relutância.

– Só preciso recuperar o fôlego. – Ele mentiu.

– Tudo bem, então, vamos apostar corrida até aquele bosque – Will o desafiou, disparando a correr enquanto a chuva ficava mais forte.

Chester se esforçou para acompanhar o amigo debaixo do aguaceiro.

– Pensei que nós íamos apostar corrida – resmungou ele.

Drake já estava fora havia quase um mês e em sua ausência Parry colocava os meninos à prova, mandando os dois correrem e ensinando a usar os pesos em sua antiquada academia no porão. A ideia que Parry fazia de condicionamento físico remontava a seus tempos no exército e ele exigia muito dos dois, mas não reclamavam porque não se atreveriam a dizer não ao velho e porque isso ocupava as horas enquanto estavam escondidos dos Styx. Com os pés escorregando na lama, eles continuaram pela trilha até que Chester disse, ofegante:

– Tempo. Corrida encerrada pelo temporal!

Eles se refugiaram debaixo de um velho olmo, seus galhos dando-lhes alguma proteção da chuva.

– Parecemos uma dupla de presidiários foragidos. – Will deu uma risada ao examinar o agasalho cinza e grosso que Parry dera a eles.

– É mesmo – concordou Chester. – E esses tênis parecem ter saído da Idade da Pedra. – Ele bateu os pés para tentar retirar a lama de seus calçados esporte pretos e pesados, depois olhou as folhas nas árvores, que começavam a manifestar os primeiros sinais do outono. – Que gozado... O tempo todo no subterrâneo eu não tinha a mais remota ideia de onde estava. Mas agora que estou na Crosta de novo, continuo no escuro.

– Bom... – começou Will, pensativamente –, a precipitação de água parece acima da média aqui... Talvez porque o vento sopre sobre a água, ou sobre o mar. – Ele enxugou o rosto com a manga. – Sim, acho que a gente pode estar perto do litoral. Pode ser o País de Gales ou a Escócia.

Chester ficou impressionado.

– É mesmo? Dá para você saber disso?

Will riu.

– Não – confessou.

– Seu idiota – disse Chester.

– Talvez, mas sou um idiota mais rápido do que você – respondeu Will, desatando a correr novamente.

– É o que vamos ver! – gritou Chester às costas de Will. Ele estava bem nos calcanhares do amigo quando fizeram uma curva na trilha lamacenta, ficando cara a cara com um homem que segurava uma espingarda.

– Boa tarde – disse o homem enquanto Will parava numa derrapada súbita, Chester esbarrando nele. A espingarda estava dobrada no braço do homem – o jeito correto de carregar a arma quando não estava em uso –, então os meninos não sentiram nenhum perigo em particular. A seus olhos, o homem parecia velho, a pele enrugada queimada num castanho escuro pelo sol e o pouco cabelo quase tão branco quanto o de Will.

– Vocês devem ser os hóspedes do comandante, não? – disse o homem. Ele se referia ao pai de Drake e Will percebeu de pronto que esse devia ser o Velho Wilkie, capataz empregado na propriedade.

Will assentiu devagar, sem saber como responder.

– E o senhor deve ser... er... o sr. Wilkie?

– Eu mesmo, mas, por favor, me chame de Velho Wilkie. É como todo mundo me chama – disse o homem. – E esta é minha neta, Stephanie.

– Steph. – Uma voz de menina o corrigiu ao se fazer presente. Tinha uns quinze ou dezesseis anos, cabelo ruivo impressionante e a pele clara pontilhada de sardas. Olhou os dois meninos de cima a baixo com certo desdém, mas não disse mais nada, ajeitando o fardo de faisões mortos pendurados no braço como se fosse mais interessante para ela.

O Velho Wilkie olhava a menina com orgulho.

– Stephanie veio passar o fim de semana aqui. Ela estuda em Benenden. O comandante é um verdadeiro cavalheiro... Ele sempre paga as mensalidades escolares dela...

– Vovô! – disse Stephanie incisivamente, girando com as pernas esguias e partindo na direção contrária.

O Velho Wilkie se curvou para os meninos, conspiratório.

– Agora que ela é adolescente, diz que a vida no campo é chata e só quer ficar em Londres, fazendo compras e vendo as amigas. Nem sempre ela foi assim... Antigamente adorava isso aqui, quando era pequena. De qualquer modo, pelo que dizem, Londres e o Sul estão em tal confusão que é melhor que ela fique por aqui até que tudo se acalme...

Fora de vista, Stephanie gritou:

– Vovô, você vem ou não?

O Velho Wilkie se endireitou.

– Vocês e o resto do pessoal vão ficar na casa do comandante por muito tempo?

Will e Chester se olharam. Drake os avisara especificamente para não dar nenhuma informação deles ao homem.

– Ainda não sabemos – respondeu Will.

– Bem, se estão levando o treinamento a sério... No estilo soldado... Talvez estejam interessados na Trilha das Árvores – disse o Velho Wilkie.

– O que é isso? – perguntou Will.

– Começa ali. – O Velho Wilkie apontou para uma escada em uma estrutura de metal montada no tronco de um enorme pinheiro, depois levantou o dedo até os galhos no alto, onde os meninos viram alguma coisa por entre as árvores.

– É um curso de assalto que construí para o comandante muito tempo atrás – disse o Velho Wilkie. – O Grupamento 10 de Paraquedistas em Aldershot copiou minha ideia, mas o meu é maior e melhor. Mantive em ordem, mesmo sem ser usado pelo comandante por anos. – O Velho Wilkie sorriu para os meninos. – Stephanie passa por ele rápida como um raio. Vocês deviam disputar... Ver se conseguem bater o tempo dela.

– Parece divertido – disse Will.

– Sim, vamos fazer isso – exclamou Chester, pouco convincente, enquanto seus olhos acompanhavam a trilha de metal que ziguezagueava pelas copas das árvores.

– Bem, cavalheiros, é melhor eu ir andando. Espero que nos encontremos novamente – disse o Velho Wilkie. Ele assoviou consigo mesmo ao partir atrás de Stephanie.

– Você não vai me fazer subir ali – disse Chester, depois sorriu. – A não ser que Steph queira apostar corrida. Ela é mesmo bonita, não é? – Ele franziu os lábios ao pensar numa coisa. – Preciso dizer que não fiquei muito chegado em ruivas depois do que Martha fez comigo, mas estou disposto a abrir uma exceção. – Ele tinha um olhar sonhador.

– Então você gosta mais dela do que de Elliott? – implicou Will com ele.

– Eu... Er... – Chester empacou, constrangido.

Will olhou o amigo com surpresa. Não pretendia que o comentário fosse levado a sério.

– Mas até parece que vemos muito a Elliott ultimamente, não é? – soltou Chester. – Ela sempre fica no quarto, tomando banhos intermináveis, fazendo as unhas e todas aquelas coisas de mulher.

Will concordou com a cabeça.

– Ela me disse que suas costas a estavam matando... Que os ombros doíam o tempo todo.

– Talvez seja isso, então, e ela só esteja passando mal – supôs Chester. – Mas ela não é a mesma de antigamente. É como se tivesse ficado mole ou coisa assim.

– É verdade – concordou Will. – Desde que chegamos aqui, ela mudou muito. Estou muito preocupado.

Com a chuva que continuava a martelar, eles correram o último quilômetro até a casa e receberam a companhia de Bartleby e Colly, os dois imensos Caçadores.

– Temos nossa própria escolta felina. – Chester riu quando os animais se posicionavam de cada lado dele e de Will. De cabeça bem erguida, os Caçadores saltitavam a passos firmes e tranquilos, como se mostrassem que o ritmo não era nada para eles. Em resposta a isso, Will e Chester aceleraram o passo, mas os Caçadores os imitaram.

– Nunca vamos derrotar os dois. – Will riu, sem fôlego, quando os quatro chegavam à casa. Subiram ruidosamente a escada da entrada principal e abriram num rompante a porta para o hall. Parry apareceu quase de imediato.

– Tirem os sapatos, meninos, hein...? – ralhou ele, vendo que os dois fizeram uma trilha de lama pelo piso de mármore preto e branco. – E veja só o estado desses dois animais sarnentos. – Ele olhou feio para os gatos, com sua pele careca raiada de terra. – Eles estão devorando todos os tetrazes daqui. Logo não vai sobrar uma única bendita ave – acrescentou Parry com ressentimento. O velho durão, com seu cabelo rebelde e a barba desgrenhada, vestia um avental de cozinha por cima da calça de tweed e tinha na mão um maço de papéis – era algum impresso de computador. – Os dois devem ter ido mais longe do que eu esperava – observou ele, olhando o relógio de pêndulo.

Os meninos ficaram ali, mudos, perguntando-se se deviam dizer alguma coisa sobre o encontro com o Velho Wilkie e sua neta. Mas ficaram calados, e Parry voltou a falar:

– Ora, ainda bem que estão levando seu treinamento a sério. Imagino que queiram comer alguma coisa agora, não?

Will e Chester assentiram, ansiosamente.

– Foi o que pensei. Deixei alguma sopa na bancada do fogão e tem pão fresco para acompanhar. Desculpem por não haver mais nada, mas estou muito ocupado no momento. Está acontecendo alguma coisa.

Abrindo a porta de seu escritório, Parry entrou às pressas. Mas, antes que a porta se fechasse, os meninos tiveram o primeiro vislumbre de seu interior.

– Não era seu pai ali? – perguntou Will. Antes que a porta se fechasse, os garotos viram o sr. Rawls junto do que parecia uma velha impressora, pelo barulho que fazia.

– Sim, eu o vi também. Pensei que o escritório fosse proibido a todos nós – respondeu Chester. Ele deu de ombros, depois se ajoelhou para tirar os calçados. – Pensando bem, não tenho visto muito meu pai ultimamente... Será que estava ali o tempo todo?

– E do que será que Parry estava falando? Acha que você-sabe-quem está aprontando alguma de novo? – refletia Will. Já fazia vários meses desde o ataque ao distrito financeiro do centro de Londres e as explosões no West End, mas parecia que os Styx não deram continuidade a sua ofensiva contra o povo da Crosta.

– Se tem alguma coisa acontecendo, estará no noticiário. Vamos pegar nossa comida e comer na frente da TV – sugeriu Chester.

– Me parece um bom plano – disse Will.


Devido a precauções de segurança, havia longas filas para entrar na apresentação especial de La Bohème no Palais Garnier do nono distrito de Paris. As precauções adicionais foram tomadas porque o presidente francês e sua esposa estariam presentes naquela noite.

Enquanto o gendarme usava detectores portáteis para examinar cada membro da plateia antes que entrasse no saguão, uma mulher esperava pacientemente na fila.

– Bonsoir, madame – disse o gendarme quando ela se aproximou, e ela lhe entregou a bolsa para que ele examinasse.

– Bonsoir – respondeu ela, enquanto seu parceiro fazia uma varredura do detector por toda extensão do seu corpo, pela frente e atrás.

– Anglaise – observou despreocupadamente o gendarme ao verificar se o ingresso era válido. – Espero que goste da apresentação.

– Obrigada – respondeu Jenny, e o gendarme gesticulou para que ela passasse. Procurando por seu lugar, ela andava como alguém que atravessava uma neblina densa e não conseguia enxergar o chão diante de si. Por fim, encontrou sua poltrona e se sentou em silêncio, esperando que as cortinas subissem.

A mulher, Jenny Grainger, não tinha suscitado nenhum alerta ao passar pelo detector e pelas verificações de segurança no St. Pancras International antes de embarcar no Eurostar para Paris. Nem levantou nenhuma suspeita durante o restante da viagem, embora seu rosto estivesse abatido e talvez um tanto enfermo, e na maior parte do tempo ela desse a impressão de fixar os olhos vidrados à frente. Mas se alguém tivesse prestado alguma atenção, mais provavelmente teria suposto que ela sofria de cansaço.

Mas agora, no Palais Garnier, enquanto todos se levantavam com a chegada do presidente francês e sua atraente esposa a seus lugares, Jenny começou a mexer na bolsa. As luzes baixaram e a cortina subiu.

Ao lado, o vizinho começou a se irritar com a inquietação de Jenny, que cochichava freneticamente consigo mesma. Quando o homem olhou mais atentamente, viu que ela parecia passar por alguma dificuldade. Tinha a mão na barriga e apertava com força. Como ele era médico, era natural que perguntasse se ela precisava de ajuda. Mas quando lhe falou, ela não respondeu, seus resmungos só ficaram mais altos.

De repente, Jenny se levantou. Perturbando a todos na fila, foi apressadamente para o corredor central. Porém, em vez de virar à direita e pegar a saída, ela deixou a bolsa cair e correu para o palco. Para o presidente francês.

Não chegou a alcançá-lo, mas a explosão matou vinte integrantes da plateia.

Várias testemunhas declararam que num segundo ela estava ali e, no outro, houve um clarão ofuscante e uma forte explosão. Mas embora alguns pensassem que ela tivesse tropeçado no carpete, outros juraram que alguém da segurança do presidente a havia interceptado. Isso não pôde ser confirmado porque o homem morreu instantaneamente. O que quer que a tivesse detido, Jenny não chegou a seu alvo, e o presidente e a primeira-dama foram retirados às pressas do teatro por seus agentes de segurança.

Embora a ficha de Jenny mostrasse que ela não tinha afiliações terroristas ou interesses políticos conhecidos, além de antigamente ter sido membro da Juventude Conservadora, imaginou-se que ela de algum modo conseguira contrabandear um dispositivo para dentro do teatro. Mas isso entrava em conflito com todas as imagens do circuito interno e as provas periciais, que apontavam para alguma coisa extremamente bizarra.

Parecia que a explosão tinha vindo de dentro dela e o trabalho analítico detalhado apoiava essa ideia porque grande parte de sua massa corporal desapareceu na cena da explosão.

Surgiu rapidamente a teoria de que os órgãos internos de Jenny tinham sido removidos para dar espaço a um explosivo de dois componentes que, quando misturados, transformavam-se numa potente arma.

Essa típica dona de casa de Londres, que muito provavelmente morreria dias depois em decorrência da terrível mutilação de seu corpo, era uma bomba ambulante.


A caminho de casa depois do trabalho, o homem saiu da estação do metrô e entrou à direita na Camden High Street. Com os óculos e a aparência elegantes, ele tinha um ar atento ao olhar os grupos díspares de pessoas na área.

Na última década, o mercado de Camden Lock tornara-se o destino popular de adolescentes vestidos de preto que zanzavam pelas várias lojas e galerias. Mas, misturados a eles, mesmo a essa hora da noite, ainda havia alguns turistas que esperavam pegar o último barco de excursão a Little Venice, ou ver a sequência de eclusas do próprio canal.

Com seu terno sóbrio, o homem destoava dos manequins espalhafatosos nas vitrines, com suas botas de cores vivas e cintos de couro com grandes fivelas de bronze ostentando crânios arreganhados ou projéteis cruzados.

Ele parou de repente, pouco antes da ponte sobre o canal, depois recuou da calçada para deixar passar uma falange de turistas australianos. Pegando o celular no paletó, o homem pareceu falar nele, aos risos:

– Chama isso de disfarce? – disse ele. – Você está velho demais para enganar alguém com esse visual gótico.

A vários passos dali, em um recesso escuro entre dois prédios, Drake riu.

– Talvez, mas você sabe que hoje em dia eles se chamam emos. De qualquer modo, ainda sou um grande fã do The Cure.

Drake recuou ainda mais nas sombras, espremendo-se contra a esburacada parede de tijolos vitoriana. Metido em calça e casaco de combate pretos e largos, ele usava Doc Martens. Mas não era isso que o homem achava tão engraçado; Drake raspara completamente a cabeça e exibia um bigode e um cavanhaque. Completou esse visual com óculos escuros pequenos e redondos de lentes espelhadas.

– Achei que você podia entrar em contato – disse o homem, enquanto sua expressão ficava séria. – Examinei aqueles três espécimes de Dominion que guardamos...

– Mas eles desapareceram dos bancos de patógenos – interrompeu Drake. – E não vai haver mais nenhum vestígio deles no banco de dados principal.

– Como...? – exclamou o homem. – Como você sabe disso? – Ele começou a se virar para Drake.

– Não! – Drake o alertou. – Podem estar vigiando.

O homem se virou de novo para a rua, assentindo como se concordasse com a pessoa na outra ponta de sua conversa telefônica.

– E é por isso que preciso tanto de sua ajuda – continuou Drake. – Preciso que você, Charlie, meu imunologista preferido, me prepare um pouco mais da vacina contra o Dominion, depois pensarei num jeito de distribuí-la. E há outras coisas que quero que você veja para mim.

– Seu imunologista preferido? – repetiu Charlie com falsa indignação. – Aposto que sou o único imunologista a quem você pode apelar e certamente o único burro o bastante para arriscar a vida por você. – Respirando fundo, ele perguntou: – E então, como vamos fazer desta vez?

– Quando você chegar em casa, vai encontrar um pacote escondido atrás de sua lixeira... Deixei mais amostras de sangue ali e também alguns espécimes virais que peguei na Colônia. – Drake parou quando uma mulher passou por Charlie na calçada, depois voltou a falar: – Tem uma cepa muito virulenta ali... Uma assassina... Então, cuidado quando manipular.

– Tratamos cada patógeno como se fosse a Peste Negra – disse Charlie.

– E isso está sinistramente perto da verdade – cochichou Drake, com uma voz amarga. – Agora é melhor você não ficar aqui por muito tempo. Passarei na sua casa daqui a alguns dias.

– Tudo bem. – Charlie fingiu apertar o botão para encerrar a chamada inexistente antes de continuar em seu caminho. Depois de um momento, Drake saiu, seguindo atrás de dois roqueiros envelhecidos, que se arrastavam com seus sapatos de camurça e a cabeleira tingida num preto inacreditavelmente escuro. Manteve-se assim enquanto eles iam para a estação do metrô de Camden, onde vários furgões da polícia pararam de repente.

Os funcionários do transporte de Londres conduziam as pessoas para fora da estação e colocavam grades nas entradas. Mais de uma dezena de policiais com o aparato completo da tropa de choque desembarcaram de seus veículos com certa urgência, ficando por ali e aparentando confusão sobre o que vieram fazer. Um deles batia o cassetete no escudo enquanto uma voz no sistema de som do metrô anunciava que a estação ficaria fechada para a investigação de um pacote suspeito.

Drake se misturou à multidão que se reunia na frente da estação e ouviu os comentários ressentidos dos passageiros. Esse tipo de ocorrência era cada vez mais comum em Londres depois da primeira onda de ataques dos Styx ou, mais precisamente, dos neogermanos alterados pela Luz Negra.

Nos meses que se seguiram aos ataques a bomba no centro e no West End, o país – já numa situação financeira instável – ficou à beira de uma recessão sombria e crescente. O assassinato do diretor do Banco da Inglaterra abalou muito as pessoas. E, embora essa onda de terrorismo por criminosos não identificados parecesse ter se esgotado, continuava a inquietação geral. A população apelava por uma mudança de governo e marcou-se uma eleição antecipada. A resultante suspensão do parlamento levou a um acordo de divisão do poder e um clima de indecisão e confusão em que predominou a ação industrial.

Condições ideais para os Styx, que seguiram em frente com seus planos. Como Drake sabia muito bem.

– Andando, gente. – Um policial orientava o público. – A estação está fechada. Terão de usar formas alternativas de transporte.

– Que papo é esse? – perguntou um dos roqueiros. – Tá falando de ônibus? Esqueceu que tá tudo de greve esta semana?

Enquanto as pessoas começavam a gritar, apoiando e avançando, Drake decidiu que era melhor sair dali antes que a coisa se descontrolasse. Afastou-se despreocupadamente. Depois dos ataques no centro, ele era um homem procurado – os Styx se certificaram disso. Embora estivesse confiante de que seu disfarce o ajudaria a evitar um exame mais profundo, a polícia podia começar a fazer prisões arbitrárias para dispersar as aglomerações, e ele não queria dar sopa. Não enquanto tivesse tanto a fazer.


Chester acordou mais cedo do que o normal na manhã seguinte, atormentado por uma câimbra na perna.

– Eu exagerei – gemeu ele consigo mesmo, massageando a panturrilha e lembrando-se até onde ele e Will correram no dia anterior. De repente ele parou de massagear o músculo travado e olhou à meia distância. – Dores crescentes – disse ele, lembrando-se do que sua mãe dizia quando as pernas doloridas o faziam gritar de dor no meio da noite. A sra. Rawls costumava correr até seu quarto e se sentar ao lado dele na cama, conversando com ele com a voz tranquilizadora até que as dores diminuíssem. Elas nunca pareciam tão ruins na presença dela e agora ele não sabia onde ela se encontrava, nem mesmo se ainda estava viva. Ele tentou não pensar no que os Styx podem ter feito com ela, porque isso parecia pior do que qualquer dor física. Ele ainda abrigava a esperança de que ela estivesse segura e escondida em algum lugar.

Depois de se vestir, Chester saiu do quarto e andou pelo corredor, dando passos largos numa tentativa de soltar as pernas. Bateu duas vezes na porta de Will ao passar, para avisar ao amigo que estava acordado, mas não esperou por uma resposta. No térreo, não havia sinal de que ninguém mais tivesse se levantado e, como sempre, a porta do escritório de Parry estava firmemente fechada. Chester se demorou na frente dela por um momento; pela primeira vez, a impressora estava silenciosa e ele não conseguia ouvir ruído nenhum vindo de dentro. Ele abriu a porta da sala de estar e entrou.

O ar quente era mantido pelo fogo na lareira, na frente da qual, sentada de pernas cruzadas em uma manta de lã xadrez, estava a sra. Burrows.

Seus olhos estavam fechados, o rosto era inexpressivo e, embora ela devesse ter ouvido a entrada de Chester, não disse nada. O menino não sabia o que fazer; deveria se anunciar e se arriscar a perturbá-la, ou simplesmente sairia da sala e a deixaria em paz?

Um baque atrás dele o assustou. Will pulava os últimos degraus da escada.

– Você acordou cedo – anunciou ele a Chester em voz alta. – Aposto que está...

Ele se interrompeu quando Chester colocou o dedo nos lábios e apontou para a sra. Burrows.

– Está tudo bem – disse Will –, ela só está meditando. Faz isso toda manhã.

– Ela pode nos ouvir? – perguntou Chester, ainda falando baixo.

Will deu de ombros.

– Acho que sim, mas acho que ela pode escolher ficar em transe, se quiser.

Embora os olhos da sra. Burrows continuassem fechados e ela estivesse tão parada que nem mesmo parecia respirar, seu queixo de repente se abriu. O que se assemelhava a um ar gélido escapou de sua boca. A condensação demorou no ar diante de seu rosto inexpressivo por um instante, apesar da temperatura elevada na sala.

– Como pode fazer isso? – cochichou Chester.

– Sei lá. – Will estava distraído, mais preocupado com os roncos que vinham de seu estômago. Olhou o corredor por sobre o ombro. – Não estou sentindo cheiro de nada sendo preparado na cozinha. Estou morto de fome. Eu bem que queria comer aquelas frituras de Parry.

Chester balançou a cabeça com amargura.

– Acho que nessa estamos sem sorte. Ele está ocupado demais para cozinhar. Tem alguma coisa acontecendo.

– Não segundo os noticiários – disse Will. Eles procuraram pelos canais na noite anterior e não deram em nada. Ele gesticulou para o quadro-negro no canto da sala. – E talvez a gente não tenha nenhum treinamento militar hoje também.

Além de estimular os meninos a entrarem em forma, Parry também fazia o possível para manter suas mentes em atividade, dando-lhes aulas toda manhã. Para tanto, ele se inspirava no que sabia melhor e assim, estranhamente, recebiam aulas sobre leitura de mapas, táticas militares e combate ao ar livre.

– Gargalos e integração de alcance de artilharia – disse Chester, lembrando-se do que Parry lhes falou sobre a teoria de emboscada.

– Minha preferida era a aula de técnicas de direção de combate. – Will sorriu. – É o tipo de coisa que não ensinam em nossa escola em Highfield.

Chester ficou pensativo por um momento.

– Só de pensar em quantas aulas perdemos no ano passado. Tudo parece que foi em outra vida. Nem consigo me lembrar de nada... A não ser de colocar aquele medíocre do Speed no lugar dele.

– Ainda estou admirado de que Parry tenha confiado seu amado Land Rover a nós – continuou Will, sem ouvir realmente o amigo. – Pensei que ele ia capotar quando desci aquelas ladeiras a toda.

Chester voltou ao presente, rindo.

– É. Ele não ficou muito feliz quando arranquei o retrovisor lateral numa árvore, não foi?

– Não particularmente – declarou Parry da porta. Chester olhou constrangido enquanto o homem continuava a falar: – Creio que vocês terão de cuidar de si mesmos esta manhã, amigos. Fiquei acordado a noite toda, monitorando a situação.

– Então são os Styx? – perguntou Will.

– Tudo isso tem a marca registrada deles. Se eu tiver razão, eles acabaram de entrar na segunda fase de sua iniciativa. – Parry franziu o cenho. – Ainda não consigo entender bem por que houve um hiato de dois meses depois que eles agitaram as coisas no centro com aqueles ataques diretos.

– Mas essa coisa recente é séria? – perguntou Will.

Parry assentiu.

– E danada de inteligente.

Os meninos trocaram um olhar, esperando que Parry explicasse, mas ele fitava distraidamente o fogo. Parecia exausto, apoiando-se com as duas mãos na bengala.

– Drake está cuidando disso? – disse Will finalmente, na esperança de que despertasse mais informações.

– Não, ele desapareceu.

– Desapareceu? – perguntou Will.

– Está operando sozinho, provavelmente em Londres. Deixei recados para ele voltar aqui, se ele se dignar a ouvi-los – respondeu Parry, começando a se afastar da porta.

– E meu pai... Ele agora está ajudando você? – perguntou Chester, hesitante.

– Darei instruções mais tarde... Quando souber mais – murmurou Parry ao atravessar o corredor até seu escritório.


Capítulo Três


– Alguém realmente mora num buraco desses? – Depois que o carro saiu da via expressa, Rebecca Um se esticou no banco e percebeu a sucessão de áreas comerciais que se esparramavam por onde passavam de carro a certa velocidade. – Até o nome do lugar é feio. Slough. Sluff. Sloff. Quem pensou nisso? – Ela foi jogada de lado quando o carro fez uma curva. – Ah, olha, outra rotatória. Que chatice.

Rebecca Dois não respondeu. Olhava pelo vidro escurecido ao lado dela, perdida em pensamentos, enquanto as luzes da rua piscavam rapidamente em seu rosto.

Irritada por não obter resposta da irmã, Rebecca Um soltou um pequeno arquejo. Começou a raspar as unhas curtas e afiadas na parte do banco entre as duas, marcando o couro luxuoso.

– Essa sua paixonite está ficando escancarada demais. Não pode achar que passa despercebida – anunciou ela. Agora teve uma reação da irmã, que girou imediatamente em sua direção.

– Do que está falando? – perguntou Rebecca Dois.

– Dessa coisa que você tem por seu soldadinho de brinquedo – respondeu Rebecca Um com desprezo, apontando com a cabeça para o homem ao volante da Mercedes. Era o capitão Franz, o jovem oficial neogermano por quem Rebecca Dois desenvolveu um apego quando elas estavam no mundo interior. – Devíamos ter um dos nossos dirigindo, e não o seu garoto de olhos azuis todo metido num uniforme fresco de motorista. Você nem mesmo mandou que ele usasse quepe, porque assim não conseguiria ver seus lindos cachos louros.

Os olhos da Rebecca Um arderam ao mirar a linda nuca do capitão Franz, que continuava a dirigir, aparentemente sem saber do diálogo atrás dele.

– Você fala besteira demais! – Rebecca Dois fumegava. – Não é nada disso.

– Ah, sei. Eu sou sua irmã... Não pode me enganar – retorquiu Rebecca Um, meneando a cabeça. – E eu não entendo.

Rebecca Dois percebeu o olhar da irmã gêmea – ela estava genuinamente perturbada.

– Não entende o quê? – perguntou.

– Bom, para começar, o que tem de tão especial nele? É só outro humano, como qualquer um desses vermes indignos da Crosta aqui em cima. Mas, pior do que isso, ele levou tanta Luz Negra que virou um zumbi. – Com a língua pendendo da boca, e Rebecca Um ficou vesga para destacar seu argumento. – Parece um boneco quebrado e oco que você arrasta por aí de brincadeira e isso não é saudável.

O capitão Franz parou a Mercedes na frente de dois portões de fábrica. Rebecca Um terminou sua investida ao ver onde estavam.

– É imenso – disse ela, vendo os prédios do tamanho de um hangar.

– Sim – concordou Rebecca Dois, aliviada ao ver que a irmã tinha agora outras coisas em mente.

Dois Limitadores com roupas da Crosta abriram os portões. Depois de verificar quem estava no carro, acenaram para o capitão Franz passar.

Rebecca Um se curvou para a frente e cutucou rudemente o ombro do neogermano.

– Ei, cachorrinho, vamos pelo lado. Quero ver os depósitos primeiro.

O capitão Franz imediatamente fez o que ela mandou, conduzindo o carro pelo pequeno prédio comercial, mas depois reduziu a velocidade.

– Continue, seu burro! Leve-nos para aquela abertura! – gritou Rebecca Um, depois lhe deu um tapa na cabeça com tanta força que provocou uma guinada no carro. – E cuidado com o volante!

Rebecca Dois cerrou os dentes, mas não disse nada enquanto a Mercedes entrava no depósito.

– Pare aqui – disse Rebecca Um bruscamente. O capitão Franz pisou no freio e os pneus guincharam no piso de concreto pintado. Enquanto as gêmeas Rebecca saíam do carro, o Velho Styx e seu assistente, com os colarinhos brancos e engomados visíveis por baixo dos casacos pretos e compridos, já corriam na direção delas.

– Que lugar! – Rebecca Dois cumprimentou o Velho Styx ao dar uma olhada em volta.

– Um total de três mil e setecentos metros quadrados divididos por três depósitos. Por ali – ele apontou para um jogo de portas no canto mais distante do prédio espaçoso – fica o hospital de campanha, onde aplicamos a Luz Negra em massa e realizamos os procedimentos de implantação de bombas – disse ele. – Como muitas outras atividades por aqui, esta fábrica faliu, então adquirimos as instalações por uma pechincha. É ideal para o que queremos, e quem pensaria em procurar por nós aqui?

– E o grau de segurança? – perguntou Rebecca Um.

– A partir de ontem, dobramos o efetivo em todos os pontos de entrada. Temos tanto nossos homens como os neogermanos de sentinela vinte e quatro horas por podia – respondeu o Velho Styx. – Também colocamos bloqueios em todas as vias que levam à propriedade.

Rebecca Um assentiu.

– Então, quando tudo estará pronto para nossos convidados?

O Velho Styx sorriu, seus olhos negros faiscando de empolgação.

– O primeiro depósito estará inteiramente preparado ao cair da noite. – Ele se calou enquanto ele e as gêmeas viram uma procissão de soldados neogermanos empurrarem leitos hospitalares pelo chão, arrumando-os em filas. – Com o fechamento dos hospitais do serviço nacional de saúde, não tivemos problemas para obter os leitos que precisávamos – disse o Velho Styx. – Podemos colocar confortavelmente cerca de cento e cinquenta deles nesta área e pelo menos o mesmo número nos depósitos adjacentes. Depois traremos os umidificadores e ajustaremos a atmosfera. Queremos que tudo fique perfeito. – Jogando a cabeça para trás, ele farejou o ar e bateu palmas com as mãos enluvadas. – Nossa hora se aproxima rapidamente. Finalmente está chegando.

– Ai, posso sentir, posso sentir – sussurrou Rebecca Um. Enquanto o Velho Styx falava, ela desceu os dedos pela nuca e massageou as costas entre as omoplatas. Ao retirar a mão, Rebecca Dois viu que havia dois pontos de sangue nela.

E ela mesma estava consciente demais da dor surda no alto da coluna e da pressão irresistível da natureza.

A natureza Styx.

Embora ela e a irmã ainda não tivessem passado pela puberdade e não pudessem participar do que estava para acontecer aqui, a expectativa era intensa. E inebriante. Era como se uma estranha eletricidade percorresse seu corpo, crepitando em suas veias. A força ancestral a chamava, obrigava-a a participar de um ciclo que levava centenas, senão milhares de anos para se manifestar.

Rebecca Dois enxugou o suor da testa. Percebeu, assustada, que tentava reprimir o impulso. Ficou alarmada com isso, porque, que motivo tinha para resistir?

Isso não era natural.

Ela se afastou da irmã e do Velho Styx para que eles não percebessem de algum modo seus conflitos íntimos.


Ouviu-se um guincho e os canos chocalharam, depois chegou uma mensagem com uma última pancada. Trôpego e com a mão apertando a barriga, o Primeiro Oficial saiu de sua sala com a maior rapidez que pôde. Localizou o cano correto e abriu nele uma portinhola, através da qual pegou um receptáculo no formato de um projétil, com o tamanho de um rolo de massa pequeno.

– O que é, senhor? – perguntou o Segundo Oficial ao sair do cárcere e entrar na área de recepção.

– Me dê uma chance – respondeu o Primeiro Oficial agressivamente. – Você me viu lendo? – Com os recentes tumultos na Colônia, nenhum dos dois tinha uma noite de sono decente havia semanas e os nervos estavam seriamente em frangalhos.

– Eu só estava perguntando – murmurou o Segundo Oficial.

O Primeiro Oficial abriu a tampa na extremidade do cilindro e pegou o rolo pequeno em seu interior. Devido ao cansaço, ele o deixou cair e se curvou para pegar no chão com alguns bons palavrões. Ao se levantar, reclamou “Aaaai, minhas tripas”, e ficou parado por um momento, a mão apertando a barriga e a cara meio esverdeada.

– Ainda está mal? – perguntou o Segundo Oficial.

Como achava a pergunta inteiramente desnecessária, o Primeiro Oficial lhe lançou um olhar azedo. Finalmente esticou a tira de papel e estendeu à distância de um braço para focalizar as letras minúsculas.

– Problemas no Norte... Conflitos... Os Styx pedem o comparecimento de todos os agentes disponíveis.

O Segundo Oficial não respondeu de imediato, mas não era surpresa nenhuma que havia agitações na Caverna Norte. Estavam acontecendo numerosos incidentes de violência entre os colonistas, e ele não os culpava por isso. Muitos foram retirados de suas casas, requisitadas como alojamento para o influxo maciço de soldados neogermanos. E só o que os Styx ofereciam a esses pobres despejados eram acomodações temporárias nos campos de cogumelos, onde foi erguida na terra úmida uma favela de barracos construídos às pressas.

Depois veio o severo racionamento; uma enorme proporção da comida da Colônia era desviada para os soldados que passavam pelo treinamento dos Styx.

E para completar essa mistura já explosiva, ocorreram surtos de uma doença que provocava diarreia grave, mais provavelmente como resultado da superlotação crônica atual nas Cavernas. O Primeiro Oficial ainda sofria seus efeitos.

Então, não, o Segundo Oficial não ficou surpreso de haver mais problemas, nem que os Styx estivessem convocando a polícia da Colônia para resolvê-los.

O Primeiro Oficial o encarava, tamborilando os dedos no balcão.

– Posso cuidar disso, se quiser – disse o Segundo Oficial.

– Eu quero que você cuide – respondeu o Primeiro Oficial rispidamente.

– Agora mesmo. Se você puder cuidar do forte.

Apesar do fato de as celas estarem explodindo de colonistas descontentes, o Primeiro Oficial bufou com a sugestão de que não seria capaz de cuidar de tudo sozinho. Enquanto amassava a mensagem dos Styx, ouviu-se um barulho indescritível em sua barriga.

– Preciso ir – ele gemeu, correndo para sua sala e batendo a porta.

– Aguente-se na calça, sim? – resmungou o Segundo Oficial. – Ou talvez esta não seja lá uma boa ideia – disse ele, permitindo-se uma risadinha. Sua alegria evaporou quando, balançando a cabeça, ele estendeu a mão sobre o balcão para pegar o capacete pendurado num gancho. Colocou-o, depois estendeu a mão sobre o balcão uma segunda vez, procurando o cassetete. Podia precisar dele no lugar aonde ia – os tumultos eram cada vez mais violentos.

Balançando o cassetete, ele abriu as portas e saiu da central, parando por um momento no alto da escada e avaliando as casas do outro lado. Sob a luz contínua dos globos luminosos nos postes, ele viu movimento numa das janelas mais altas, como se alguém estivesse vigiando a central. Provavelmente não era nada, mas o Segundo Oficial ficou nervoso. Nunca tinha visto tal clima de rebelião na Colônia, nem uma antipatia tão forte para com os Styx, a classe governante. Mas os Styx pareciam tão concentrados em sua operação na Crosta que não se importavam mais com o que pensavam os colonistas, nem com o que eles faziam – sua única prioridade era dar continuidade a seus planos sem qualquer impedimento.

O Segundo Oficial desceu sem pressa nenhuma a escada e, ao chegar ao fim, ouviu um gemido. Ainda abrigava uma vaga esperança de que sua Caçadora, Colly, um dia voltasse para ele. Ela fugiu depois da explosão nos laboratórios, um incidente pelo qual o Segundo Oficial recebeu uma comenda em razão da valente perseguição aos atacantes. Pelo menos foi o que ele disse aos Styx, e parecia que eles aceitaram sua versão dos acontecimentos.

Mas quando o Segundo Oficial baixou a cabeça, não viu seu felino, mas um cachorro pequeno e albino. Era um jovem greyhound com uma pelagem do mais puro branco. O cachorro estava parado ali, o rabo tremendo entre as pernas e olhando o homem grandalhão com seus olhos cor-de-rosa. Evidentemente estava com fome, mas o que inquietou o Segundo Oficial mais do que qualquer coisa era que só as famílias abastadas da Colônia tinham raças puras como esse. Alguém deve ter ficado tão desesperado por comida que simplesmente o abandonou.

– Coitadinho – disse o Segundo Oficial, estendendo ao cachorro a mão com as dimensões de um cacho de bananas. Ele ganiu e farejou seus dedos, depois chegou mais perto para que ele fizesse carinho em sua cabeça.

E, quando começou a andar pela rua, o cachorro o seguiu, ao lado dele.

Logo o Segundo Oficial chegava ao Portão da Caveira. Um Styx, usando a camuflagem verde-acinzentada característica de um soldado da Divisão, imediatamente saiu da guarita. O Segundo Oficial usava essa rota para entrar e sair da Colônia várias vezes ao dia, não só para ir e voltar do trabalho, mas também em missões oficiais. Todavia, o soldado Styx examinou sua credencial, de vez em quando olhando desconfiado para o greyhound, como se o Segundo Oficial estivesse tentando passar contrabando por ele.

Finalmente o soldado devolveu a credencial e ergueu a lanterna sinalizando para que o portão fosse aberto. O portão rolou dentro da enorme caveira entalhada na pedra acima como se a monstruosa aparição estivesse arreganhando os dentes. O Segundo Oficial continuou em seu caminho, entrando na boca da caveira. Ao começar a descer a passagem escura que era a via principal entre o Quartel e a Colônia, ele agradeceu a companhia do cachorrinho trotando a seu lado.

Um zumbido constante enchia seus ouvidos enquanto ele fazia a última curva da passagem e a Colônia se abria diante dele. Daquele ponto elevado, ele podia ver a Caverna Sul, com suas intermináveis filas de casas, todas cobertas de uma névoa fina de ar quente e fumaça.

– Como andam as coisas? – gritou alguém.

O Segundo Oficial seguiu com os olhos os vários degraus da escada de ferro batido que subia pelo paredão de pedra e localizou o Quarto Oficial bem no alto. O homem estava de serviço na entrada para a sala de controle das Estações de Ventilação, de onde emanava o zumbido baixo. Como muitos da força policial da Colônia, o Quarto Oficial era um homem atarracado e tinha cabelo branco espetado. Estava baseado ali porque a segurança fora reforçada desde que Drake e Chester usaram o sistema de ar para espalhar um reagente nervoso brando pela Colônia.

– Como andam as coisas? – repetiu o Quarto Oficial, desta vez mais alto, para o caso de os ventiladores terem abafado sua voz.

– O de sempre! – gritou o Segundo Oficial. – Um rebuliço no Norte.

O Quarto Oficial assentiu, depois viu o greyhound.

– Vejo que você fez um amigo.

O Segundo Oficial olhou seu novo companheiro e respondeu com um dar de ombros antes de descer o restante do declive.

Assim que chegou ao chão, ele ouviu muitos pés batendo em uníssono nos paralelepípedos. Um grupo de neogermanos – cerca de cinquenta deles – corria em formação, com um soldado da Divisão mantendo o ritmo a cavalo.

O greyhound se escondeu atrás das pernas do Segundo Oficial enquanto o grupo passava ruidosamente. Os homens pareciam autômatos, encarando bem à frente e se deslocando numa sincronia perfeita. Ele sabia por que a expressão deles era tão vazia – todos foram fortemente submetidos à Luz Negra.

Manobras como essa eram uma visão comum na Colônia ultimamente – e igualmente comum era a visão desses homens desmaiando de exaustão durante seu treinamento, alguns até morrendo de colapso cardíaco. O Segundo Oficial ouviu o boato de que os Styx pressionavam muito os soldados porque queriam aclimatá-los a níveis de gravidade mais altos do que eles estavam acostumados em seu próprio mundo.

– Vamos lá, garoto. Não tem motivo para temer – garantiu o Segundo Oficial ao cão enquanto os soldados desapareciam na distância. Ele entrou em uma das ruas afastadas da Colônia. Mas em vez de ir diretamente para a Caverna Norte, fez um desvio até sua casa.

Ao entrar, Eliza veio da sala de estar.

– O que está fazendo aqui tão cedo? – perguntou ao irmão. – Você se... – Ela começou, mas seus olhos caíram no pequeno greyhound. – Ah, não! Você não fez isso! – exclamou.

– Eu não podia deixar esse companheiro no frio – disse o Segundo Oficial. Ele se ajoelhou, estalando as articulações dos joelhos como tiros de rifle, e acariciou o cão. Os olhos nervosos do greyhound encontraram os dele brevemente.

– Estão me esperando no Norte agora, mas, quando voltar, vou descobrir onde ele mora.

Eliza cruzou os braços, censurando-o.

– O santo padroeiro dos abandonados, dos extraviados e do povo da Crosta – esbravejou ela. – Pensei que a essa altura você teria aprendido sua lição.

O Segundo Oficial resmungou e endireitou o corpo.

– Onde está nossa mãe? – perguntou ele.

– Está lá em cima, descans... – começou Eliza, depois se interrompeu ao se lembrar do que queria dizer ao irmão. – Não vai adivinhar o que aconteceu hoje. Os Smith se mudaram.

O Segundo Oficial assentiu. Os Smith eram vizinhos duas portas adiante e moravam ali pelo tempo que qualquer um podia se lembrar – certamente várias décadas antes de ele ter nascido.

– A mãe ficou muito abalada com isso. Agora sobraram muito poucos de nós nesta rua. – Eliza franziu a testa. – Estão nos expulsando por causa de todos esses soldados neogermanos, e eles nunca respondem muita coisa se você falar com eles. Agem como se você não existisse. Não é certo o que está acontecendo. – Sua voz tremia de aflição, mas agora ela baixou o tom, com medo de que alguém a estivesse entreouvindo. – Eu nem mesmo sei se nosso povo está realmente sendo levado para o Norte... Ouvi boatos no mercado de que famílias inteiras estão desaparecendo, inteirinhas. – Ela pôs a mão no braço do irmão. – Não pode fazer alguma coisa? Não pode falar com os Styx?

– Está brincando? Eu? – perguntou o Segundo Oficial.

– Sim, você. O único motivo para que nós ainda não tenhamos sido expulsos é que os Styx acreditam que você é um herói, enfrentando toda aquela gente da Crosta completamente sozinho quando eles foram resgatar sua amada. – O Segundo Oficial não conseguia suportar o olhar seco que ela lhe lançava. Ele pode ter sido capaz de enganar os Styx, com seu velho amigo, o vigia dos Laboratórios, corroborando a história, mas a irmã o conhecia bem demais. – E se eles acham que você é essa merda tão maravilhosa, talvez ouçam o que você tem a dizer.

O Segundo Oficial não sabia se estava mais chocado com o palavrão da irmã ou com a sugestão bizarra de que ele conseguiria influenciar o que os Styx faziam na Colônia.

Ele meneou a cabeça ao passar para porta da frente, com o cuidado de fechá-la, porque não queria que o cachorro o seguisse. Deixou o calor sufocante da casa com enorme relutância, nervoso com o que esperavam que ele fizesse na Caverna Norte e infeliz com sua vida.


Parry esperou até que todos estivessem reunidos no hall. Elliott foi a última a chegar e descia levemente a escada, com um vestido vermelho e o cabelo preto e sedoso puxado para cima em um coque. Havia crescido consideravelmente desde que chegou à crosta, aumentando vários centímetros de altura e até ganhando algum peso em sua figura de menino. Esse pode ter sido o resultado das porções exageradamente generosas de Parry nas refeições e de sua insistência para que todos comessem bem, ou talvez devido a sua idade. Qualquer que fosse o motivo, para Will e Chester ela nunca pareceu tão feminina, e eles agora faziam o máximo para não ficar boquiabertos na frente dela. Ela, por sua vez, não olhava para ninguém em particular e menos ainda para os dois meninos.

– Muito bem. Venham comigo – anunciou Parry, abrindo a pesada porta de carvalho de seu escritório. Eles entraram sem dizer nada, olhando o cômodo cujo acesso lhes foi proibido até agora. Era maior do que esperavam, com uma fila de cofres ao longo de paredes apaineladas – um deles estava aberto e Will podia ver pastas empilhadas em seu interior.

– Oi, pai – disse Chester e o sr. Rawls, de roupas amarrotadas e uma barba de um dia crescendo no queixo, levantou-se de uma cadeira ao lado de uma impressora antiga. Ela ainda matraqueava, acompanhada por um rangido enquanto um rolo de papel de bordas perfuradas alimentava seu apetite aparentemente insaciável.

Will viu algumas telas de computador numa bancada ao lado da impressora, mas estavam todas desligadas. Havia outra tela em uma mesa na frente da parede mais distante, mas apontava para outra direção e Will não sabia se estava ligada ou não. E na parede em si havia um mapa grande da Escócia, com as áreas de planalto e planície retratadas em tons pastel. Com exceção da sra. Burrows, os olhos de todos tinham caído nele.

– Sim, vocês estão na Escócia – disse Parry, elevando a voz para ser ouvido com o barulho da impressora. – Cerca de cem quilômetros ao norte de Glasgow, para ser mais exato. – Ele apontou a bengala para um local no mapa. – Por aqui. – Os pelos da nuca de Will se eriçaram; evidentemente não importava mais que eles pudessem identificar o local em que estavam e isso era meio agourento. Parry abriu a boca para falar, mas soltou um resmungo. Virou-se para o sr. Rawls. – Pode pausar esta maldita coisa, por favor? Não consigo nem ouvir a mim mesmo.

O sr. Rawls apertou um botão na impressora enquanto Parry se empoleirava na beira da mesa e continuava:

– Sem dúvida vocês estão se perguntando por que Jeff e eu nos entocamos aqui pelas últimas vinte e quatro horas. – Ele olhou para o sr. Rawls, que assentiu levemente, depois bateu a bengala no chão duas vezes. – Pedi a ele para me ajudar porque precisava de alguém para cuidar do telex. Ainda estou na lista de distribuição dos boletins do COBRA. – Parry sorriu, mas não por diversão. – Os poderosos dali não se esqueceram de mim. Em meu antigo ramo de trabalho, nunca nos aposentamos realmente.

O sr. Rawls viu o filho franzindo a testa.

– COBRA é um comitê governamental que se reúne sempre que há um risco de segurança para o país – explicou.

– Não seria mais rápido conseguir informações na internet? – perguntou Will, olhando da impressora velha ao lado do sr. Rawls para a tela do computador.

– A internet nunca é segura – disse Parry. – A única maneira de interceptar esse telex seria cavar os quilômetros dos cabos que fazem a conexão. – Ele respirou fundo. – Então, por onde começo...? Meu filho... Que vocês conhecem pelo codinome ridículo de Drake... Sempre se recusou terminantemente a me deixar participar de sua luta contra os Styx. Ele até andou por aí dizendo a todos que eu bati as botas, só para me proteger. – Parry ergueu as sobrancelhas. – Mas minha segurança não está mais em questão, porque o jogo mudou. Pode falar a eles dos últimos boletins do COBRA? – disse ele ao sr. Rawls.

– Claro. Há pouco mais de um dia começaram a aparecer relatos de incidentes por toda a Europa... Tentativas múltiplas de assassinato de chefes de Estado e figuras importantes da política. Na França, o presidente e sua mulher escaparam da morte por um triz, mas outros dois ataques nos parlamentos da Espanha e da Itália mataram dezenas de políticos. E em Bruxelas destruíram uma sala cheia de membros do Parlamento Europeu.

– Mas nada disso apareceu na TV ontem à noite – disse Will.

– E nem pudemos ver os noticiários desta manhã... A maioria dos canais estava fora do ar – acrescentou Chester.

– Isso não me surpreende – disse Parry. – Mas voltemos ao começo. Continue, por favor, Jeff.

– Claro – disse o sr. Rawls. – A notícia das tentativas de assassinato foi abafada devido a uma característica delicada... Todas se originaram daqui.

– Da Grã-Bretanha – esclareceu Parry. – Ingleses comuns promovendo ataques suicidas... Foram convertidos em bombas ambulantes. A natureza dos explosivos dentro deles... sem componentes ferrosos... anula a função do equipamento de detecção convencional.

– Bombas ambulantes? Como isso funciona? – perguntou a sra. Burrows, de cenho franzido.

– Uma tentativa frustrada no Parlamento alemão em Berlim resultou na captura de uma mulher-bomba viva – disse o sr. Rawls. – Descobriu-se que a mulher teve os principais órgãos do corpo removidos de seu tórax e da cavidade abdominal.

Parry pegou do lado de sua mesa um impresso do telex, depois colocou os óculos para ler.

– Lobectomia do pulmão direito. – Ele levantou a cabeça ao explicar. – O exame médico revelou que um pulmão inteiro foi removido cirurgicamente da mulher. – Parry consultou novamente o impresso. – E uma cistectomia, esplenectomia, colecistectomia... Respectivamente a remoção da bexiga, do baço e da vesícula biliar. Por fim, e esta é a parte realmente horrenda, faltava quase todo seu cólon superior e inferior, substituído por um canal improvisado. Seus intestinos foram retirados.

Will percebeu que Chester contraíra o rosto e estava meio pálido.

– Ela teria morrido de qualquer forma? – perguntou a sra. Burrows.

– Sim, em questão de dias – respondeu o sr. Rawls. – Ainda era capaz de ingerir líquidos, mas não podia mais digerir sólidos. Mas, mesmo antes que a desnutrição desse cabo dela, sem cuidados médicos especiais a infecção ou o trauma maciço que sofreu provavelmente a teriam matado.

– Como um peixe que foi limpo, ela foi eviscerada... esvaziada... – disse Parry, tirando os óculos e esfregando a testa. – Em vez disso, dentro dela havia dois recipientes plásticos cheios de substâncias químicas. Quando misturadas por meio de uma alavanca mecânica na cintura, as substâncias eram detonadas com uma potência considerável. E a mistura de explosivos era revestida de uma chapa de cerâmica para ampliar o raio de destruição.

A sra. Burrows balançava a cabeça.

– Então os Styx fizeram isso... Eles submeteram pessoas inocentes à Luz Negra, depois as retalharam para transformá-las em bombas. Mas por quê?

– Por quê? – Parry trovejou com tal ferocidade que espantou a todos na sala. – Assim o governo britânico não pode dar ao mundo nenhuma explicação de por que esses cidadãos aparentemente comuns e pacatos estão se envolvendo em atos perversos de terrorismo – grunhiu ele. – Graças a nossa antiga política frouxa nas fronteiras, os Estados Unidos e muitas outras nações sempre consideraram nosso país um laboratório de grupos dissidentes. Os Styx só estão realizando uma profecia.

Ele recuperou a compostura ao continuar:

– De acordo com isso, todas as fronteiras do Reino Unido serão fechadas a uma da tarde de hoje... E todos os voos foram suspensos. É muito provável que o país seja colocado sob lei marcial.

Ouviu-se um tinido e Parry tirou alguma coisa do bolso. Tinha o tamanho de um baralho, parecendo mais um pager do que um celular. Parry olhava seu pequeno visor de LED.

– Com licença por um momento – disse ele, enquanto se curvava na mesa para olhar o monitor do computador.

Chester aproveitou a oportunidade para falar:

– Mas o que isso tudo quer dizer?

– Quer dizer que vão fechar as portas de nossa pequena ilha e ficaremos completamente isolados do resto do mundo... E sob controle militar – disse Parry, recolocando o aparelho no bolso. – O exército tomará as ruas.

– Então os Styx poderão agir – disse Elliott em voz baixa. Era a primeira vez que ela dizia uma palavra e teve toda a atenção. – Sei como pensam os Pescoços Brancos. Eles vão invadir seu país usando todos os neogermanos que trouxeram. E seus próprios soldados também, depois de aplicar neles a Luz Negra.

– Mas mesmo que controlem uma força terrestre significativa, seria muito difícil para eles. – Parry parecia perplexo. – Não, não pode ser tão simples assim. Deve haver outro ingrediente em seu plano que estou deixando passar. E está me enlouquecendo tentar entender o que é. – Parry desceu da mesa e se colocou de pé diante deles. Parecia extremamente cansado, e não o bastião da força que Will conhecera até então.

– Seja o que for que estejam aprontando, eles não podem escapar – disse a sra. Burrows.

– Exatamente – respondeu o velho. – E se não formos nós, quem os deterá? – Ele girou para a porta aberta do escritório. – Apareceu em boa hora.

Uma figura de preto entrou, e Will e Chester pensaram o pior – que fosse um Styx –, reagindo. Mas a sra. Burrows segurou o braço do filho para aquietá-lo.

– Caramba! – Chester soltou o ar enquanto ele e Will reconheciam o homem completamente careca e de cavanhaque.

– Quem os deterá? – disse Drake, repetindo as palavras do pai. – Nós vamos.

Elliott avançou e lançou os braços nele, depois recuou, com um sorriso imenso. Este era um lampejo da velha Elliott – a Elliott que fazia tanta falta a Will e Chester.

– Você agora parece um verdadeiro renegado. – Ela riu. – Um renegado mau e sujo.

– Rá! Mas veja só você – respondeu ele, admirando seu vestido e o penteado. – Está uma jovem dama. – Drake andou pela sala, cumprimentando os meninos, a sra. Burrows e o sr. Rawls, depois assumiu seu lugar ao lado de Parry.

– Então vocês tiveram permissão de entrar no santuário. – Drake passou os olhos pela sala antes de se dirigir a eles novamente: – Uma notícia de última hora para vocês. Pouco antes do amanhecer, houve ataques simultâneos a centros de transmissão de TV, provedores de internet e às principais empresas de telefonia.

– Por isso não conseguimos ver nada na TV – percebeu Chester.

– Isso mesmo... É negação de serviço... Os Styx estão atacando nossas comunicações e eixos de informações. E posso dizer que está muito ruim em Londres. As pessoas estão ficando com medo... Há uma corrida apavorada às lojas, que não são reabastecidas. E os serviços públicos são erráticos, para dizer o mínimo... As ruas têm pilhas altas de lixo, as escolas foram fechadas e os hospitais são operados por equipes mínimas. E houve até alguns apagões... Áreas inteiras de Londres tiveram o fornecimento de eletricidade interrompido na última semana. Sim, está bem ruim por lá. E também ouvi um boato ou outro de que vários ministros de gabinete desapareceram.

– Decapitação. Uma manobra básica – acrescentou Parry. Will e Chester se olharam enquanto ambos se perguntavam se ele estava se referindo a seu livro preferido sobre insurgência, de Frank Kitson. Parry passou a mão pelo pescoço. – Você retira a cabeça, aqueles que estão no topo, e o resto do país, o corpo, não sabe se organizar.

– Só que com toda probabilidade a cabeça será colocada de volta – disse Drake –, mas vai ser uma cabeça de Styx.

– Não entendo. Com o que está acontecendo, não podemos procurar as autoridades e contar quem está por trás disso? – sugeriu Chester.

– Seria uma maneira muito rápida de conseguir que todos nós fôssemos mortos – respondeu Drake. – O problema é que não dá para saber quem já foi apanhado. Você não sabe em quem pode confiar.

Parry bateu palmas.

– Eu sei. Está na hora de acordar alguns velhos fantasmas.

Drake olhou nos olhos do pai como se soubesse do que ele falava, depois ergueu o dedo ao se lembrar de uma coisa.

– E, por falar em velhos fantasmas, estou me esquecendo de minhas boas maneiras – disse ele, voltando à porta. Sumiu por um segundo e reapareceu com um homem que tinha a cabeça coberta por um capuz. Todos na sala sabiam como era isso – Drake insistira que eles próprios o usassem quando foram levados para a casa de campo do pai.

As mãos do homem estavam amarradas com uma fita plástica, que Drake cortou com a faca. Em seguida, com um floreio teatral, ele tirou o capuz.

Ouviu-se a inspiração profunda de Will e Elliott.

– Coronel! – exclamou a menina, reconhecendo imediatamente quem era, embora ele estivesse com um terno caro e travestido de executivo que lhe caía muito mal.

– Ele é o neogermano que ajudou vocês? – disse Chester a Will, que não respondeu e olhava o homem com desconfiança. Embora o coronel Bismarck tenha livrado Will e Elliott das garras dos Styx em um de seus helicópteros, ele sabia que o único provável motivo para ele estar na Crosta era sua participação nos ataques ao centro financeiro.

O coronel piscou, estranhando a luz, enquanto entrava plenamente na sala. Com uma mesura formal e batendo os calcanhares, ele pegou a mão de Elliott.

– É uma honra vê-la novamente – disse ele.

Depois reconheceu Will, que não fez menção de trocar cumprimentos, encarando o homem com indisfarçada suspeita.

– Pode ser armação... Uma armadilha dos Styx – disse Will. – Não devia ter trazido esse homem aqui. Ele passou pela Luz Negra.

Drake, ao contrário, parecia completamente relaxado com a presença dele.

– Sim, embora ele possa ter sido fortemente programado, parece que um golpe na cabeça o trouxe de volta. Ele viu o que os Styx faziam com seus homens... Usando-os para seu trabalho sujo... E por isso quer vingança.

O coronel Bismarck assentiu, e Drake continuou:

– E sim, você tem razão, Will. O coronel está bem ciente de que pode ser um risco para nós. Ele concordou que ficará trancado à chave aqui, durante sua permanência. – Drake olhou o mapa na parede. – Particularmente agora que ele tem uma boa ideia de onde estamos.

Parry olhava o coronel com interesse.

– Willkommen – disse ele. Era evidente que ele reconhecia um semelhante no outro militar.

– Danke – respondeu o coronel Bismarck.

– E como você encontrou o coronel? – perguntou Parry ao filho.

– Alguém aqui usou com certa liberdade o número de emergência de meu servidor secreto. – Drake sorriu. – Por sorte, o coronel o tinha numa folha de papel metida no kit do cinto e os Styx não encontraram.

– Vai torcendo por isso – disse Will à meia-voz.

Drake ignorou o comentário.

– E o coronel deixou um recado para uma certa pessoa nesta sala.

Todos se olharam confusos, até que Elliott falou. Na extremidade receptora de um olhar afiado de Will, ela falou em voz baixa:

– Eu tinha esperanças de que ele nunca ia precisar usá-lo. Mas tive o pressentimento de que ele e seus homens apareceriam aqui na superfície muito em breve.

Will estava prestes a dizer alguma coisa, mas Drake falou primeiro:

– Ora, ainda bem que você fez isso, Elliott. O coronel nos dá outra carta para nossa luta iminente com os Styx. E no momento nossa mão no jogo está muito ruim.


A um quilômetro e meio dali, Bartleby escalava um carvalho antigo, as garras compridas cravando-se na casca enquanto ele subia cada vez mais. Finalmente chegou a uma forquilha no tronco e miou para Colly, abaixo, que miou também e imediatamente subiu atrás dele. Quando ela também chegou à forquilha, Bartleby esgueirou-se por um galho acima do muro do perímetro da propriedade de Parry. Os humanos podiam compreender que era importante que eles não vagassem para tão longe, mas isso não tinha significado nenhum para os Caçadores, com seu apetite voraz por novas presas.

Em grande parte do tempo sozinhos, uma vez que ficaram soltos pelo terreno, eles tinham todo o tempo do mundo para devorar as tetrazes de Parry, que ele criava especialmente para a temporada de caça. Na realidade, as aves estúpidas tinham muito pouca ideia do que as atingia enquanto os dois felinos as perseguiam e devoravam quase toda a população. E, agora que havia poucos tetrazes no terreno, era instinto natural dos Caçadores procurar ainda mais além.

Acima do muro, Bartleby continuou um pouco mais adiante, curvando um galho sob seu peso e de Colly combinados. Ele mexeu rapidamente a cabeça larga, indicando a Colly que ela devia pular primeiro. Ela teria sorrido se fosse capaz. Bartleby era um parceiro atencioso – ele não queria que ela se machucasse, pulando de um galho alto demais, particularmente não em seu estado.

Ela pousou com segurança, mas sua partida levou o galho a subir feito uma bala. Apanhado no salto, Bartleby foi obrigado a pular antes de estar preparado. Seu rabo girava loucamente para tentar controlar a queda e ele tocou o chão com um baque desajeitado. Colly prontamente se aproximou para roçar a cara na dele afetuosamente.

Bartleby soltou um leve ganido e, como qualquer macho, explorou toda a solidariedade que podia ter de sua parceira. Lambeu ostensivamente a almofada da pata dianteira que fora machucada por uma pedra afiada. Depois de alguns segundos assim, Colly se cansou e bateu com delicadeza em sua cabeça.

E funcionou. – Bartleby se concentrou no que tinha a fazer. Primeiro, o mais importante; escolheu um local adequado para levantar a perna e borrifou uma quantidade copiosa de urina. Quando o novo território estava bem marcado, ele avançou com o focinho no chão enquanto confiava em seu olfato altamente desenvolvido para localizar a refeição seguinte.

Mas não era fácil – eles estavam na beira de uma densa floresta de pinheiros que se estendia morro acima na frente deles, e o forte aroma emanado pelas folhas em decomposição no chão tornava difícil seguir um rastro. Mas isso não o desanimou nem um pouco. Embora os Caçadores só tenham apanhado um único cervo, que cometeu o erro fatal de tomar um atalho pela propriedade de Parry, eles tiveram um vislumbre de um rebanho pastando na floresta. A saliva pendia em colares da boca dos Caçadores com a perspectiva de mais uma deliciosa carne de caça. Mas, para Bartleby, o prêmio definitivo seria o macho que ele ouviu ao anoitecer soltando seu relincho distinto para manter reunido o harém de fêmeas.

Bartleby subiu o morro, atravessando o terreno de um lado a outro, tentando pegar o rastro. Colly o seguia, mas se certificava de manter um espaço de seis metros entre ela e Bartleby. De vez em quando, paravam para procurar um ao outro em meio aos troncos dos pinheiros.

Parry e Drake teriam ficado orgulhosos de suas habilidades táticas; os felinos trabalhavam de modo a realizar um movimento de pinça sobre a presa incauta, cercando por trás e pela frente. Um dos Caçadores atacaria, a presa entraria em pânico e correria diretamente para a boca aberta do outro Caçador.

Em algum lugar uma ave grasnou e o som de suas asas batendo contra os galhos altos fez com que os dois Caçadores olhassem para cima. Nessa hora, enquanto uma brisa se infiltrava pelas árvores, Bartleby fixou seus olhos no aclive à frente. Abaixou-se bem, o focinho se contorcendo e avaliando o terreno. Um bater das orelhas disse a Colly tudo que ela precisava saber.

Ele tinha visto alguma coisa.

As omoplatas de Bartleby subiam e desciam enquanto ele avançava, posicionando cuidadosamente cada pata ao prosseguir.

Colly logo o perdeu de vista nas árvores. Ainda assim, ela esperou – caçar era ter paciência e senso de oportunidade. Depois, quando decidiu que ele devia estar posicionado, ela começou a avançar, sem nenhum ruído além do farfalhar dos galhos ao vento.

Ela ficou paralisada ao ouvir um pequeno baque. Uma pinha caíra no chão. Não era motivo de preocupação, então voltou a se colocar em movimento.

Infelizmente as árvores mais acima do morro não eram tão numerosas e não lhes davam muita cobertura. Assim, ela não teve pressa. Não queria assustar a presa cedo demais – se ela não voltasse correndo de onde Bartleby esperava, se fosse mais para a esquerda ou para a direita, o jogo estava encerrado. A presa dos dois não cairia na rede. Mas então ela viu uma árvore caída no chão mais à frente. Ajustou o rumo, para que a presa do outro lado não a visse.

Seu peito roçava no chão da floresta, de tão abaixada que Colly estava.

O estranho era que ela não conseguia ter uma perspectiva clara da presa pelo cheiro. Ela e Bartleby estavam familiarizados com o cheiro da urina e das fezes de cervo, e, embora houvesse um leve vestígio dele, não era tão forte como Colly teria esperado.

Mas talvez fosse um cervo isolado, e não um rebanho inteiro. Ela não se importava; um único animal lhes daria muita carne para passar a noite.

Quando julgou que deve ter ido longe demais, ela cravou os pés no chão, de prontidão. E então, sibilando, rosnando e fazendo o maior barulho que podia, ela investiu a toda velocidade.

Limitadores não eram como os soldados da Crosta.

Em qualquer ambiente em que operavam, eles viviam inteiramente dele – usando, comendo, tornando-se o que os cercava. Os dois Limitadores tinham o cheiro da floresta de pinheiros porque estavam escondidos ali havia semanas. Para se sustentar, comiam não só coelhos e quaisquer aves que pudessem pegar, mas também fungos e outros exemplares da flora abundante. Em comparação com as Profundezas, era uma verdadeira lanchonete de fast-food. E, por uma ou duas vezes, jantaram a carne crua de um cervo, e Bartleby havia detectado um leve vestígio dela.

Colly tinha deixado o chão com ímpeto suficiente para pular a árvore caída quando viu que alguma coisa não estava muito certa.

O brilho do vidro de um telescópio. Estava armado em um tripé.

E atrás do telescópio aparecia a cara de caveira do Limitador.

Meio segundo depois, ela viu o clarão de sua foice.

Com miados de alerta, ela arqueou as costas e debateu as pernas numa tentativa desesperada de alterar sua trajetória.

O tronco caído estava diante dela. Se conseguisse descer o suficiente para pousar nele – em vez de ultrapassá-lo –, ela podia usá-lo para se desviar.

O Limitador tinha a foice erguida e preparada.

Enquanto ele começava a descer o braço para atirar nela, Colly ouviu o rosnado áspero de Bartleby. Para salvar a parceira, ele atacou. Em um borrão de pele cinza e músculos inchados, ele disparou feito um canhão para as costas do Limitador, com as garras penetrando fundo no pescoço do homem.

Mas a foice já estava no ar.

Com uma única rotação, a lâmina reluzente riscou o flanco de Colly. Soltando-se dela, continuou por alguns metros, até se enterrar numa árvore.

Era um ferimento superficial, mas ainda assim ela uivou de choque.

Ao ouvir isso, Bartleby transformou-se num tornado de pernas. Agarrou-se à cabeça do Limitador, raspando a cara do soldado com as pernas traseiras. O Limitador usava uma espécie de gorro de lã e Bartleby estava prestes a mordê-lo quando um segundo Limitador jogou sua foice no pescoço do Caçador, na base do crânio. Foi um golpe habilidoso e certeiro, a lâmina cortando sua medula espinhal.

Bartleby soltou um gemido agudo que terminou quase no momento em que começou.

Terminou com um espasmo.

O felino grande estava morto antes de cair no chão.

Colly sabia o que aquele espasmo significava.

Ela correu sem parar, encontrando a árvore que eles usaram para ultrapassar o muro.

Ela correu sem parar de volta à casa.

Parry estava sentado à mesa da cozinha, lendo com os óculos um livro de culinária de capa manchada e puída.

– Regue a posta de carne a cada... – Ele lia, mas parou quando Colly disparou pela porta, batendo em suas pernas ao se esconder embaixo da mesa. – Maldição! Essas porcarias de gatos estão atrás de nossa comida de novo! – gritou ele, levantando-se de um salto.

A sra. Burrows inclinou a cabeça, respirando fundo pelo nariz.

– Não, não é isso – disse ela rapidamente. De imediato se virou na direção oposta à bancada, espalhando farinha das mãos. – Não é nada disso – acrescentou ela, abaixando-se ao lado da Caçadora. – Ela está muito assustada.

Limpando as mãos no avental, ela tocou gentilmente em Colly, cuja pele escorria suor.

– Qual é o problema, garota? – Ela sentiu o cheiro de sangue na Caçadora. – Pegue um pano de prato limpo para mim no armário, sim? – Ela se dirigia a Parry, que ergueu as sobrancelhas, depois se afastou para atender a seu pedido.

– O que aconteceu? – perguntou a sra. Burrows à felina, que baixou a cabeça entre as patas. Ainda ofegava do esforço de correr até a casa.

– Aqui está – disse Parry, passando a toalha à sra. Burrows, que enxugou o suor e o sangue da gata.

– Sem dúvida alguma coisa está errada – disse a sra. Burrows, enquanto Colly rolava de lado com um ganido.

Parry franziu o cenho.

– Por que diz isso?

– Eu simplesmente sei. Ela está muito assustada e foi ferida.

– Muito? – perguntou Parry, ajoelhando-se. – Deixe-me ver.

– Não é grave... Só uns arranhões e um pequeno corte ao lado do corpo – disse a sra. Burrows. – Mas tem alguma coisa errada com ela. Posso sentir.

– Como o quê? – disse Parry ao vê-la ainda limpando o animal.

– Bem, onde está Bartleby? Eles são inseparáveis desde o dia em que se conheceram. Quando foi que você não viu os dois juntos?

Parry deu de ombros.

– Esses animais malditos entram e saem como bem entendem. Talvez o outro tenha ficado preso em algum lugar, ou sofreu um acidente. – Ele resmungou ao se colocar de pé. – Vou pedir aos meninos para procurar por ele. – Ele estava na metade do cômodo quando parou ao sair. – Talvez o Wilkie o tenha visto.

A sra. Burrows colocou a palma da mão na barriga um tanto distendida de Colly, depois a retirou, deixando uma impressão em farinha de trigo de sua mão na pele lisa da felina.

Compreensão surgiu em seus olhos cegos e ela franziu o cenho.

– Espero que não tenha acontecido nada com ele – disse a sra. Burrows. – Não agora.


Capítulo Quatro


The Buttock & File, um dos mais populares bares da Colônia, ficava no cruzamento de duas ruas principais. Ao passar por ali, o Segundo Oficial viu que estava completamente deserto. Antigamente era uma taberna animada – um ponto de encontro para os colonistas depois da labuta do dia –, mas agora as portas estavam trancadas e o lugar, silencioso.

Várias ruas depois, ele virou a esquina e parou de pronto. A área era uma das mais pobres, não era bem-iluminada e, embora as portas de todas as casas estivessem escancaradas, seu interior estava completamente às escuras. Mas não foi isso que fez o Segundo Oficial parar. Ao lado da rua havia um esquadrão de cinquenta neogermanos uniformizados. Como manequins de loja, eles esperavam em fila única, de olhos arregalados e fixos voltados para a frente.

Não parecia haver um Styx presente, mas ao longe o Segundo Oficial via o prédio da Guarnição dentro do complexo Styx. Das janelas da construção baixa vinham faíscas mínimas de luz arroxeada, estrelas distantes cintilando numa constelação desconhecida. O Segundo Oficial meneou a cabeça – nunca tinha visto a Luz Negra ser usada nessa escala.

Pouco depois, ele passou pelo curto túnel de acesso que levava à Caverna Norte. O agrupamento de barracos era visível ao longe, cercado por vários globos luminosos em suportes armados pelo perímetro da favela. A Caverna Norte era uma área agrícola onde grande parte da produção da Colônia era cultivada e, até recentemente, a região menos povoada de todas as suas cavernas. Ao se aproximar, ele viu que eram construídas outras dessas habitações básicas, totalizando pelo menos várias centenas. Mas, apesar do tamanho da nova cidade, havia muito poucos colonistas do lado de fora.

O Segundo Oficial tinha o sexto sentido que se desenvolve na força policial. Se houve algum problema ali, agora estava encerrado. Um silêncio esmagador e denso pairava sobre o lugar. Ao prosseguir pela rua, viu em uma clareira, entre um acréscimo desordenado de barracos, o Terceiro Oficial arriado no chão. Tinha as mãos na cabeça.

– Você está bem? – disse o Segundo Oficial, aproximando-se imediatamente do homem.

– Levei alguns murros – respondeu o Terceiro Oficial, trêmulo. – Não é nada sério.

O homem levantou a cabeça e o Segundo Oficial percebeu o sangue em seu rosto.

– Quem fez isso com você?

O Terceiro Oficial apontou a área ao lado de um dos barracos.

– Eles – respondeu.

Localizando os cadáveres, o Segundo Oficial desprendeu a lanterna policial do cinto e foi investigar.

Eram três, esparramados em meio a cogumelos porcini apodrecidos e pisoteados numa massa cinzenta. Não muito longe dos corpos, uma mesa dobrável estava caída de lado, as cartas espalhadas na lama.

– Cresswell – disse o Segundo Oficial em voz baixa, rolando de costas o corpo mais próximo. – O ferreiro. Ele levou um tiro na nuca.

O Terceiro Oficial murmurou alguma coisa. Apesar de estar ferido, o Segundo Oficial o ignorou. Não tinha tempo para o homem – o Terceiro Oficial era um idiota, não era inteiramente apto para o trabalho policial. Um tio no Conselho de Governadores facilitara sua ascensão pelas fileiras e por isso ele era universalmente antipatizado por seus colegas policiais.

O Segundo Oficial era o primeiro a admitir que não era o cérebro mais brilhante da Colônia, mas tinha o que sua irmã chamava de “esperteza” – ele era safo e sagaz o suficiente para se virar. E foi promovido a sua patente atual com base em sua determinação e nos anos de trabalho árduo.

O Terceiro Oficial murmurava novamente.

– Cale-se por um minuto. – O Segundo Oficial o silenciou, aproximando-se do cadáver seguinte. – Grayson... Um pedreiro – disse ele. Ao rolar o corpo para examinar o ferimento de tiro, um ás de copas escorregou de seu esconderijo na manga do homem.

Com a mão na testa, o Terceiro Oficial colocou-se de pé, cambaleando, e apontou o último dos corpos.

– E o primo de Cresswell, Walsh.

– Sim, estou vendo. Outro tiro preciso na nuca – observou o Segundo Oficial. Era realmente Heraldo Walsh, um homem muito musculoso e atarracado com o cachecol vermelho característico amarrado no pescoço. O Segundo Oficial coçou o queixo ao apreender a cena. – Então Cresswell e Grayson estavam jogando cartas... apostando esses pacotes de tabaco – disse ele, inclinando a cabeça para os pacotes de estanho jogados entre as cartas espalhadas. – Eles brigaram, provavelmente porque Grayson tentava enganá-los, depois Walsh veio ajudar o primo.

– Quando interferi para interromper a briga, os três partiram para cima de mim – disse o Terceiro Oficial. – E se formou uma revolta... Achei que iam me linchar.

O Segundo Oficial soprou pelos lábios.

– Hoje em dia as pessoas não têm respeito pela lei – disse ele, sabendo que ainda faltava uma peça fundamental do quebra-cabeça. Ele pensou saber a resposta, mas precisava fazer a pergunta: – E quem disparou...? – Ele se retraiu de pronto ao tomar consciência do Limitador. O soldado tinha se materializado atrás dele feito um fantasma, de rifle no ombro. Essa não era uma grande surpresa; era de conhecimento geral que os Limitadores foram convocados para dar um fim aos furtos nos campos de porcini, mais para o fundo da caverna.

E a presença do Limitador explicava como os homens foram mortos com precisão tão extrema, mas o Segundo Oficial ainda estava muito confuso com uma das mortes. Sabia-se de modo geral que Heraldo Walsh estava na folha de pagamento dos Styx, xeretando colonistas para eles e de vez em quando agitando as coisas quando era do agrado de seus chefes. Não era exatamente um cidadão-modelo, mas Walsh teve uma vida de sorte até esse momento, safando-se muito mais do que a maioria dos colonistas graças à liberdade que os Styx lhe davam.

– Você demorou para chegar aqui – rosnou o Limitador em voz baixa. O Segundo Oficial estava a ponto de explicar que teve de percorrer o longo caminho desde o Quartel quando o Limitador chutou a cabeça de Heraldo Walsh.

O Segundo Oficial não tinha muitos motivos para lidar com Limitadores, e, para falar com fraqueza, eles o matavam de medo. Ele se preparou para dizer alguma coisa, porque precisava saber de todos os fatos para seu relatório do incidente.

– Embora tenham atacado o policial, não vejo nenhuma arma com esses homens. Era necessário atirar neles?

O Limitador virou a cabeça repentinamente para o Segundo Oficial, colocando nele toda a força de seus olhos. Eram como dois pontos de fogo cravados fundo na cara marcada e cinzenta do homem. O Segundo Oficial era um policial experiente e já vira algumas coisas verdadeiramente horríveis na vida, mas agora estremeceu. Era como se estivesse olhando para o próprio inferno por duas janelas.

– Cuide de sua própria vida – grunhiu o Limitador. – Você não estava aqui.

O Segundo Oficial engoliu um “sim”, depois virou a cara do soldado. Sabia que devia continuar em silêncio, mas prosseguiu, nervoso:

– Vamos precisar fazer um inquérito. Vamos transferir os cadáveres para o...

– Nada de inquéritos – disse o Limitador numa voz que parecia um trovão distante, segurando o rifle longo como se pensasse em usar novamente, mas desta vez no Segundo Oficial. – E você deixará os cadáveres onde estão. Como um exemplo aos outros. – Num piscar de olhos ele se foi, voltando a deslizar para as sombras.

– Nada de inquéritos – murmurou o Segundo Oficial. Então agora os Styx estavam aplicando sumariamente a pena de morte, sem nenhum processo judicial. Ele e o Terceiro Oficial se olharam, mas nada disseram um ao outro, porque não cabia a eles questionar os Styx.

– Que horror. – O Segundo Oficial suspirou ao andar lentamente entre os corpos em suas posturas da morte. As crianças acordariam na manhã seguinte e os veriam cobertos de lesmas – isso se nenhum Caçador perdido comesse pedaços deles durante a noite.

O Segundo Oficial mandou que o Terceiro Oficial se recuperasse em casa, depois passou várias horas fazendo a ronda entre os barracos. Todos ficaram fora de vista depois do incidente, mas por trás de portas fechadas ele ouvia mulheres chorando e o ronco de vozes coléricas e divergentes. Em alguns barracos, onde as portas ficaram abertas, faiscavam olhos ressentidos para ele junto do brilho dos fornilhos acesos dos cachimbos.

O Segundo Oficial foi enfim rendido por um dos colegas e, com os pés doendo de toda a patrulha, voltou para casa. Andando em silêncio para não acordar ninguém tão tarde, ele ouviu barulho vindo da cozinha.

– Olá, mãe! – disse ele ao entrar no cômodo tomado de vapor, surpreso por vê-la acordada.

A velha se assustou, virando-se na direção oposta ao fogo.

– Ah, olá, filho – disse ela. – Você deve tá acabado. Vai colocar o pé perto do fogo. Eu e Eliza fizemos nossa janta, mas guardei a tua nos cano. Pode comer no teu joelho.

Na sala de estar, o Segundo Oficial arriou agradecido em sua poltrona. Olhou cautelosamente a pá de Will, deixada numa posição de destaque em cima do aparador. Depois que eles a encontraram na sala, a mãe e a irmã deixaram ali intencionalmente como um lembrete, quase um aviso a ele, depois do episódio com a sra. Burrows. Mas tinha o efeito contrário – ele ficava reconfortado ao vê-la ali. Lembrava-o de Celia.

– Tá aqui, querido – disse a mãe, baixando a bandeja, com uma enorme tigela, no colo do Segundo Oficial. Ele estava faminto, agarrou ansiosamente a colher, e começou a devorar a comida com muito ruído – as horríveis maneiras à mesa habituais encontradas por toda a Colônia.

A mãe desatou a falar enquanto ele comia:

– Nem acreditei quando os Styx invadiram o número 23 e tiraram os Smith de lá. Foi triste de se ver. A sra. S tava com os vestido debaixo do braço, até uns que eu costurei pra ela. A filha dela fez uma cena. Ficou gritando e se rasgando de chorar e tudo isso... Tu devia ter ouvido. Mas o sr. S foi direitinho para onde eles levaram, de cabeça baixa, como se tivesse indo para a forca. Foi de partir o coração ver isso. Aposto que tava horrível também no Norte. – Ela ergueu a mão como se não suportasse ouvir nada sobre o assunto, depois esperou, ansiosa, que o filho lhe contasse.

Como ele não contou, ela continuou:

– Tu sabe que eu não te culparia se tu fosse pra cima da grama com aquela mulher da Crosta. Eles não dão a menor bola pra nós hoje em dia, os Styx. Este não é um lugar para um jovem viver, mas você e Eliza já não são mais uns frangotes.

O Segundo Oficial parou de mastigar, com a colher parada diante da boca. Não era assim que a velha falava da Colônia ou dos Styx. Uma das integrantes mais respeitáveis de sua sociedade, normalmente ela nunca admitiria ouvir uma palavra que fosse contra nenhuma autoridade.

– Mãe! – exclamou o Segundo Oficial. – Você não quis dizer isso!

Ela baixou a cabeça. Não tinha penteado o cabelo cinzento e fino depois de seu cochilo e estava desgrenhada como um ninho de passarinho sacudido pelo vento.

– Eu quero, preciso dizer – murmurou ela de um jeito melancólico. – Eu quero. Acho que agora acabou tudo pra nós.

– Você não acredita realmente nisso. – Havia certa reprimenda na voz do Segundo Oficial, embora ele estivesse falando de boca cheia. Percebendo que o caldo pingava da colher em seu colete azul, ele se sentou mais reto para que qualquer coisa que derramasse fosse apanhada pela bandeja. Ao fazer isso, ele farejou, pegando o cheiro que vinha do cozido. – Isto está gostoso – elogiou ele, numa tentativa de animá-la. – Você realmente se superou. – Ele franziu a testa. – Mas normalmente não comemos ratos nos dias de semana, comemos?

Ele mexeu o caldo aguado na tigela. Ao fazer isso, algo flutuou do fundo para a superfície.

Embora o calor tenha transformado a maior parte dele em um cinza opaco, em certo ponto o globo ocular mínimo do greyhound ainda tinha um tom rosado.

Ele deixou a colher cair na tigela.

– Você não fez isso!

A mãe estava de pé, fora da cadeira, e disparou rapidamente para a porta.

– São tempos duros. Não tem comida suficiente para...

– Sua bruxa velha e monstruosa! – gritou o Segundo Oficial, atirando a bandeja pela sala. – Você fez! Você cozinhou a merda do meu cachorro!


– Soube que meu pai colocou você ao volante, então por que não faz as honras? – Drake jogou a chave do carro para Will. – E vá devagar, porque quero passar algumas informações aos dois no caminho – disse ele, apontando para a trilha que levava ao bosque.

Ele continuava a falar enquanto se sacudiam no carro:

– Vou lhes apresentar uns velhos amigos meus. Eles não estão exatamente acostumados a ter gente por perto, então precisam agir com cuidado na presença deles.

– Por quê? Quem são eles? – perguntou Chester do banco traseiro.

– Estão aqui porque não têm mais para onde ir. Todos trabalharam com Parry no passado... Bem antigamente, em suas viagens à Malásia. Muitos estão, como posso dizer...? – Drake passou a mão na careca raspada enquanto escolhia as palavras certas: – Cansados de batalha. E alguns acabaram se tornando um fardo para serem aceitos na população geral. Então Parry assumiu com as autoridades a responsabilidade de dar um lar a eles aqui.

Os meninos absorveram isso, depois Will se arriscou:

– Então eles são perigosos?

– Podem ser. São homens que serviram a seu país de uma forma que você nem pode imaginar. Estiveram no lado negro... O lugar de onde ninguém volta incólume.

Will reconheceu o portão com a placa de perigo e Drake disse a ele para parar. Ele reduziu o Land Rover, parando num solavanco, e desligou a ignição. Drake não se prontificou a sair, então os meninos continuaram onde estavam.

– Mas até que ponto você conhece essas pessoas? – perguntou Will.

– Eles já estavam aqui quando eu era garoto. Minha mãe morreu nova e eles ajudaram Parry a cuidar de mim, em particular enquanto ele viajava muito ao exterior. São uma extensão da minha família. – Drake sorriu consigo mesmo. – Um bando de tios muito esquisitos, mas incrivelmente interessantes.

– Mas por que nós vamos conhecê-los? – perguntou Chester. – Por que não meu pai e a sra. Burrows?

Drake girou no banco para falar com Will e Chester ao mesmo tempo.

– Você não tem ideia do quanto vocês dois mudaram, não?

– O que quer dizer com isso? – Will trocou um olhar com Chester.

– Quando os coloquei debaixo da minha asa nas Profundezas, vocês eram dois garotinhos, sem a menor ideia do que faziam. Mas agora vocês sabem. – Drake deixou que suas palavras fossem absorvidas antes de continuar: – Sei que não tem sido fácil para vocês, com os Styx na sua cola.

– Pode apostar – murmurou Chester.

– E é o que parece – disse Drake. – Esses homens reconheceriam isso em vocês. Eles também passaram pelo mesmo na vida. E preciso que eles percebam que a ameaça é verdadeira e convencê-los a entrar no barco... Preciso deles conosco para termos uma chance de derrotar os Styx.

Assim que eles saíram do carro, Drake se virou para os dois.

– Vejam se não carregam nada elétrico junto do corpo. Qualquer coisa com corrente elétrica. Uma lanterna, por exemplo.

Will e Chester procuraram nos bolsos, depois Will se lembrou do relógio digital.

– Só isso, mas é só uma pequena bat...

– Não importa. Tire – interrompeu-o Drake. – Se ele não estiver esperando, você não pode levar nada assim para perto dele.

– Quem não está esperando? – perguntou Chester, bastante nervoso.

– Primeiro vamos nos encontrar com o capitão Sweeney. Ele é conhecido como Sparks, mas vocês não devem chamá-lo assim... Pelo menos por enquanto.

Will abriu o fecho do relógio e o deixou no carro. Depois Drake abriu o portão e andou pelo caminho, aquele mesmo que Chester e Will tinham percorrido dias antes para chegar à floresta.

– Por aqui. – Drake os orientou enquanto Will localizava o telhado coberto de musgo que tinha visto antes. Drake deixou a trilha e desceu um barranco. Empurrou o que parecia um emaranhado impenetrável de samambaias, mas no meio dele havia uma trilha estreita que os levava ao chalé de arrendatário no fundo de um pequeno vale.

Era difícil acreditar que alguém morava nessa construção em completa ruína. Embora as janelas da frente estivessem intactas, eram praticamente opacas das algas que brotaram no vidro.

– Fiquem atrás de mim e é melhor que vocês não falem nada. Se ele perguntar alguma coisa, respondam em voz baixa... E eu quero dizer realmente baixa – disse Drake. Ele bateu uma vez na porta – com tanta gentileza que mal fez ruído – e a empurrou nas dobradiças enferrujadas.

Drake penetrou na escuridão com Will e Chester se arrastando às cegas atrás dele e se perguntando no que tinham se metido. O único barulho no ambiente vinha de suas botas pisando a terra solta do piso de pedra nua e o ar tinha um cheiro bolorento e úmido. Incapazes de enxergar alguma coisa, os garotos ficaram próximos de Drake, até que Will sentiu a pressão da mão de Drake em seu braço, que ele tomou como um sinal para parar.

– Olá, Sparks – disse Drake baixinho. – Espero que tenhamos vindo numa hora conveniente.

– Certamente, eu esperava por vocês. Seu pai disse que passariam por aqui – respondeu uma voz rouca de um canto distante. Will e Chester ouviram quando Drake avançou para a voz, mas, por mais que se esforçassem, seus olhos eram incapazes de distinguir quem estava no escuro. Um fósforo foi riscado e o lampião a óleo começou a brilhar levemente através de um quebra-luz sujo de carvão.

Para além da silhueta de Drake, havia mais alguém visível. Embora ainda fosse difícil discernir muito com a luz do lampião barulhento, o homem era uns bons quinze centímetros mais alto do que Drake e tinha o corpo de um urso.

– Já faz muito tempo – acrescentou o homem num rumor, embora houvesse um afeto evidente em sua voz.

– Sim, faz – disse Drake.

– Você trouxe os dois. Imagino que queira que eu saia para que eles possam me conhecer adequadamente.

Com Drake servindo de guia, Will e Chester voltaram sobre seus passos pela porta da frente. Como um espectro que se mostrava com relutância, o homem foi para a luz do dia. Embora seu rosto estivesse bem sujo, os meninos viram que em volta de cada olho havia uma série de círculos concêntricos, sugerindo algo sob a pele. As linhas eram quase pretas e o efeito era neutralizador – evocava uma cara decorada para algum ritual tribal.

Olhando atentamente o homem, Will não pôde deixar de pensar no tio Tam, que era igualmente forte. Porém, Sweeney parecia poder dar uma surra no tio Tam. Tinha ombros imensos e os pulsos, onde saíam de seu casaco de lã do exército, eram grossos e musculosos.

Ele também vestia calça de camuflagem suja e larga e na cabeça havia um gorro militar com abas cobrindo as orelhas. Enquanto ele o tirava da cabeça, o forro refletiu a luz como se fosse revestido de alumínio.

– Isso ajuda? – perguntou Drake.

– Não muito – grunhiu Sweeney em resposta.

Agora que o homem estava sem o protetor na cabeça, Will podia ver que sua testa também era cruzada por uma malha intrincada de linhas em relevo. Will teve dificuldade para saber a idade de Sweeney devido a seu rosto estranho, mas estimou que devia ter pelo menos sessenta anos, a julgar pelo cabelo grisalho e ralo.

Semicerrando os olhos estranhos, Sweeney examinou Will e Chester.

– Ele falou a vocês sobre mim, não falou? – perguntou, apontando o polegar para Drake.

Os garotos balançaram a cabeça, mudos.

– Eu pensei que não. – Ele deu um pigarro. – Quarenta anos atrás, eu era dos fuzileiros navais, das Forças Especiais, para ser mais exato. Mas havia um histórico de miopia progressiva na família e minha visão se deteriorava. Assim, ou eu teria dispensa médica, ou passaria o resto de minha carreira remexendo papelada atrás de uma mesa, quando apareceu no quartel um cientista de um programa de pesquisas do exército perguntando por mim. Era como se estivessem me oferecendo um milagre; ele prometeu que corrigiria meus olhos e eu voltaria ao serviço ativo. O exército era a minha vida e eu não conseguia imaginar fazer outra coisa, então aproveitei a oportunidade. Mas é como dizem...

– Nunca seja voluntário para nada – intrometeu-se Drake com um sorriso.

– Merda, é verdade. De qualquer forma, tinha a ver com o aperfeiçoamento da percepção para aplicações em combate. – Com dois dedos, Sweeney descreveu o número oito em volta dos olhos, como se estivesse dando bênção a si mesmo. – Veja só, pela implantação cirúrgica de uns dispositivos em minhas retinas e nos ouvidos, depois estimulando a condutividade nervosa e as sinapses nos meus miolos, minha visão e minha audição foram refinadas para bem além dos limites humanos. O efeito colateral é que meu tempo de reação também é muito curto. – Ele deu um pigarro, incomodado. – Eu fui o terceiro soldado em que os cirurgiões meteram as luvas, e quando foi a minha vez de ser aberto e reprogramado, graças a Deus eles já eram mais eficazes. Mais ou menos. As outras cobaias não tiveram tanta sorte... Um pobre-coitado morreu na mesa e outro ficou paralisado do pescoço para baixo.

Como Drake os havia orientado, Will e Chester continuaram em silêncio. Cheios de assombro, simplesmente olhavam o homem, que continuava a falar:

– Então... Eu sou rápido e posso enxergar e ouvir coisas que vocês não podem – disse Sweeney, depois olhou o gorro nas mãos.

– O que foi de enorme utilidade em operações noturnas e incursões na selva – explicou Drake.

– Sim, foi como eles me posicionaram... Três décadas à espreita no escuro – disse Sweeney, assentindo e levantando cabeça. – Tudo é amplificado... sobrecarregado... Se não estou preparado, os ruídos altos podem ser torturantes. – Ele franziu o cenho, a grade em sua testa formando uma sucessão de Vs. – Mas, no fim, o que te pega é que não tem botão de desligar. O que eles não previram foi a sobrecarga sensorial contínua e ininterrupta. Isso pode enlouquecer um sujeito.

Ele apontou frouxamente para o bosque e tombou a cabeça de lado.

– Agora mesmo posso ouvir insetos escavando por baixo da casca daquelas árvores. Eles parecem britadeiras. – Ele se voltou na direção tomada antes por Drake e os meninos. – E o veículo que vocês deixaram perto do portão... Ouço o bloco do motor esfriando. Parecem icebergs explodindo aqui. – Sweeney levou as mãos às têmporas, mas não as tocou. – E não há jeito de fazer isso parar.

– Você pode ouvir tudo isso? – perguntou Will em voz baixa.

– Claro. E quanto a meus olhos, posso suportar a luz do sol, mas só por períodos de tempo limitados.

– Eu também – murmurou Will.

Sweeney o olhou sem compreender antes de continuar:

– O pior, porém, é que qualquer coisa com corrente elétrica pode destruir os circuitos em meu cérebro. Então, não tenho alternativa senão viver completamente sem eletricidade aqui em meu chalé. Eu queimo óleo para ter a pouca luz de que preciso e cozinho no fogo a lenha. Às vezes parece que estou de volta à merda da Idade Média.

– E não brinquem de pique-esconde com Sparks... Ele dará uma sova nos dois – aconselhou Drake com um sorriso, tentando deixar o clima mais leve. – Ele pode localizar vocês só por sua respiração.

– O que é isso, eu deixava você vencer de vez em quando. – Sweeney soltou um riso baixo e grave, depois girou o imenso braço pelos ombros de Drake e apertou com tanta força que seus pés se ergueram do chão. Soltando Drake, Sweeney se curvou para ele. – Você e eu precisamos conversar – disse ele, voltando os olhos estranhos para Will e Chester. – Foi um prazer conhecer vocês, amigos.

– Vejo os dois no carro – disse Drake, e os meninos subiram o aclive, deixando-o a sós com Sweeney.

Depois que Drake se reuniu a eles, foi a vez de Chester assumir o volante. Quando percebeu que eles tinham dirigido para longe o suficiente e Sweeney não podia mais ouvir, Will perguntou:

– Essa coisa toda na cabeça dele pode ser retirada, para ele ficar normal de novo?

– Talvez, mas ele não quer ninguém mexendo em seu cérebro pela segunda vez. Arrancar os fios depois de tanto tempo pode provocar todo tipo de problema – respondeu Drake, olhando para Will por sobre o ombro. – Sparks é extremamente sensível e às vezes pode ser meio excêntrico. Mas ele nos será muito útil, se conseguirmos convencê-lo a voltar a entrar em operação.

Will fez uma careta.

– Desde que ele fique do nosso lado.

Drake assentiu.

– Entendo o que quer dizer. De certo modo, ele é parecido com a sua mãe... Com os dois na equipe, teremos o mais avançado radar para os Styx. Tudo isso é muito conveniente, considerando quem veremos agora.

– E quem é? – perguntou Will.

– O professor Danforth – respondeu Drake. – Ele trabalhou em eletrônica de defesa, em áreas como radar de baixa altitude e mecanismos de alerta para armamento nuclear. Agora ele só faz cerâmica em casa... Bom, mais ou menos. O professor é o homem mais inteligente que já conheci... Um gênio completo. – Drake gesticulou para a última construção na fila. – Pare ali.

O Land Rover parou e Will olhou o chalé jeitoso como suas jardineiras de prímulas vermelhas e amarelas penduradas ao lado da porta e das janelas.

– Alguma coisa que precisamos saber – perguntou Chester enquanto eles saíam e andavam até o chalé –, antes de o conhecermos?

– Não particularmente... Ele é bem inofensivo, mas não gosta de ser tocado. Acha que pode pegar alguma coisa – disse Drake, indo à porta da frente e colocando a palma no que parecia um painel de vidro instalado em sua superfície. Com uma série de estalos sólidos, as trancas se retraíram na estrutura e a porta se abriu.

Ao entrarem no interior fortemente iluminado, os meninos ficaram impressionados com o contraste que fazia com o chalé de Sweeney. O interior era quente e seco, as paredes eram de um amarelo escuro e nelas estavam penduradas pequenas cenas rurais de aquarela. Outras pinturas estavam arrumadas sobre o console da lareira, e a mobília georgiana na sala era bem encerada e brilhava.

Um homem se levantou de uma poltrona. Exibindo óculos grossos, estava elegantemente vestido de colete marrom-avermelhado e calça castanho-claro. Estivera trabalhando em alguma coisa perto da luz da janela e a colocou na mesa, ao lado de sua cadeira, antes de se aproximar. Era delicado em seus movimentos e nos ombros arriados. Parecia um tio idoso.

Drake assomava sobre o homem diminuto enquanto os dois se olhavam.

– Depois de todos esses anos, seu scanner de mão ainda funciona como num sonho – disse Drake, erguendo a mão e abrindo os dedos como se fosse uma saudação especial entre eles. – E você deixou minha impressão no sistema.

– É claro... Ao contrário de seu pai, jamais acreditei que lhe aconteceria alguma adversidade. Eu sabia que um dia você voltaria para nós – disse Danforth, acrescentando, aos risos: – O diabo cuida dos seus. – Ele se afastou de Drake. – E estes são os garotos que ele mencionou... Quero dizer Parry, não o diabo... Embora às vezes eu me pergunte se os dois não seriam o mesmo sujeito.

Ele focalizou Will com seus óculos de fundo de garrafa.

– Albinismo... Então você deve ser Will Burrows... Sim... – O olhar do professor ficou distante enquanto ele recitava: – Sua cabeça e os cabelos eram brancos como lã, brancos como a neve; e seus olhos eram como chama de fogo.

E então toda a força do escrutínio de Danforth estava de volta a Will.

– Albinismo... Vulgo acromia, acromasia ou acromatose. Ocorrência em cerca de um em dezessete mil, uma condição genética recessiva herdada. – Suas palavras eram despejadas numa rajada ininterrupta.

– Er... Olá... – murmurou Will quando o professor finalmente se calou, aturdido com a atenção que recebia. Will automaticamente estendeu a mão ao homem, mas Danforth de imediato recuou um passo, resmungando o que parecia “Ovos... Quebrando meus ovos”. Ele pigarreou alto e voltou sua atenção a Chester.

– E você deve ser Rawls. Bom, muito bom.

Irritado consigo mesmo por ter se esquecido dos conselhos de Drake sobre o desgosto do professor por contatos físicos, Will examinava o que o homem estivera trabalhando quando eles entraram. Disposto em uma pequena almofada de cerca de meio metro quadrado, havia um pedaço de renda, com muitos bilros pendurados dos lados. Estava inacabado, mas nas áreas concluídas Danforth tinha feito os desenhos geométricos mais complexos.

– Um anacronismo, eu sei, mas ajuda em meus processos mentais – explicou o professor, percebendo o interesse de Will. – Acredito que grande parte da meditação é uma atividade pré-consciente.

Enquanto Will assentia novamente para ele, Danforth voltou seus olhos para Drake.

– Ensinei a este pretensioso tudo o que ele sabe. Dei-lhe aulas de eletrônica básica quando ele ainda nem conseguia amarrar os próprios sapatos. Eu o tomei como meu aprendiz.

– O aprendiz de Merlin – disse Drake, com um sorriso carinhoso. – Como poderia esquecer? Começamos com um rádio bigode de gato quando eu tinha três ou quatro anos, depois progredimos rapidamente para a robótica e drones explosivos.

– Drones explosivos? – perguntou Chester.

– Aeroplanos com controle remoto para fins militares, que carregavam nossos explosivos caseiros – respondeu Drake. – Parry acabou com nossos voos de teste na propriedade quando um deles caiu na estufa e quase explodiu a cabeça do Velho Wilkie.

O professor se contorceu impacientemente como se tudo isso tivesse começado a entediá-lo.

– Sim, bem, recebi seu pacote com os componentes e os desenhos. Coisa fascinante, devo dizer. – Ele retirou os óculos e começou a limpar as lentes com uma dedicação obsessiva. Os maneirismos eram tão familiares a Will que ele quase arquejou; ocorreu que havia muito em Danforth que o lembrava do dr. Burrows, seu falecido pai. E a semelhança não passou despercebida a Chester, que pareceu pegá-la ao mesmo tempo. Olhando nos olhos de Will, assentiu levemente.

Danforth agora estava a toda, como se tivesse começado uma palestra.

– Os Styx... Ao seguirem um curso evolutivo paralelo ao nosso com seu desenvolvimento científico... Deram com uma tecnologia verdadeiramente inovadora. Suas realizações na subsônica e no controle mental são algo que os militares americanos tentaram desenvolver freneticamente nos anos 60. E posso dizer que os americanos pagariam um bom dinheiro para colocar suas...

– Mas você chegou a algum lugar com a Luz Negra? – interrompeu Drake.

– Se cheguei a algum lugar? – O professor reagiu como se a pergunta de Drake fosse uma afronta. – O que você acha? Venha até aqui. – Com seu andar estranho, ele saltitou até a parede do fundo da sala, onde havia uma estante, e – como Drake fizera quando colocou a mão no scanner do lado de fora – Danforth agora apertava a palma no que parecia um espelho comum. A parte do meio da estante estalou e se abriu, girando, revelando uma sala secreta.

– Eu juro que é o laboratório de Dexter – cochichou Chester com irreverência a Will enquanto todos seguiam Danforth para dentro da sala que, do chão ao teto, era repleta de equipamento eletrônico. Um leque impressionante de luzes piscava em diferentes sequências nas várias unidades.

Mas eles claramente não parariam ali, porque o professor foi a uma escada estreita de madeira no canto, no alto da qual Will e Chester se viram em um sótão comprido. Com mais de trinta metros de uma extremidade à outra, evidentemente corria por toda a extensão da fila de chalés e também era cheio de equipamento, embora a maior parte dele estivesse coberta por lençóis empoeirados. Depois das bancadas de teste, bem no meio do sótão, havia uma cadeira de metal rebitada no chão. Ao se aproximar dela, Danforth colocou um carrinho à vista, em que havia muitos aparelhos eletrônicos.

O professor virou um comutador e uma luz verde sacudiu num pequeno visor circular, estabilizando-se em uma senoide ondulante. Depois ele ergueu o que evidentemente era um arnês para a cabeça, com duas almofadas para cobrir os olhos e numerosos fios conectados ao equipamento no carrinho.

– Se eu cheguei a algum lugar? – disse mais uma vez Danforth, indignado, agitando o dispositivo na frente de Drake. – É claro que cheguei. Aqui está o que você pediu... Um antídoto para a Luz Negra. – Ele apertou um comutador atrás do arnês e, com um zumbido, as almofadas oculares emitiram um intenso brilho roxo. Enquanto Danforth se virava com o arnês ainda na mão, Will olhou a luz roxa. Sentiu uma ardência por trás dos olhos, depois uma rápida onda de pressão, como se alguma coisa – um feixe de tração – estivesse tentando arrancar seus globos oculares das órbitas.

Ele soltou um suspiro involuntário e cambaleou para trás. Só apanhou o mais breve vislumbre da luz, mas foi como se a bola espigada de energia tivesse aberto caminho à força para dentro de seu crânio novamente.

– Não – grunhiu ele, dominado por um turbilhão de recordações indesejadas das medonhas sessões de luz a que os Styx o submeteram quando ele e Chester ficaram presos no Cárcere.

Depois de se recuperar, ele descobriu que Drake o observava.

– Está afetando você também? – perguntou Drake.

Enquanto Will respondia com um “sim” sufocado, Danforth soltava um trinado.

– Bom, muito bom. É muito mais potente do que os esforços dos Styx – disse ele, parecendo deliciado.

Mantendo os olhos protegidos das almofadas brilhantes do dispositivo, Drake se virou para Danforth.

– Então está dizendo que esse aparelho descontaminará qualquer um que foi submetido à Luz Negra?

– Teoricamente, sim – respondeu Danforth ao desligar novamente o dispositivo de cabeça. – Os sensores auxiliares fazem uma leitura da atividade encefálica alfa normalizada do objeto – disse ele, olhando a onda verde que fluía pela tela pequena. – Em seguida emprego um ciclo de feedback para apagar qualquer coisa extrínseca... Qualquer coisa a mais que possa ter sido implantada pelos Styx.

– E tem certeza de que funciona? – perguntou Drake. – Sem nenhum efeito colateral indesejado? Nenhuma perda de memória nem deterioração mental?

O professor soltou um suspiro impaciente.

– Sim, de acordo com meus cálculos, vai funcionar. E quando foi que eu errei?

– Creio que só há uma maneira de descobrir – decidiu Drake no ato. Tirando o casaco e o largando no chão, ele imediatamente subiu na cadeira. – Vamos lá.

Will e Chester ficaram embasbacados.

– Drake, acha realmente que é uma boa...? – começou Chester.

Drake o interrompeu:

– E de que outra maneira vamos saber se funciona? Não podemos testar em um coelho, podemos?

– Mas podemos experimentar primeiro em Bartleby – sugeriu Will. – Ele também recebeu a Luz Negra.

Danforth não tinha tempo para esses protestos. Estendendo cautelosamente o arnês a Chester porque não queria que o menino ficasse perto demais, ele inclinou a cabeça para Drake.

– Coloque isto nele. Certifique-se de que os censores estão firmemente fixados nas têmporas, ou as leituras não serão confiáveis – ordenou o homem.

– Tudo bem – concordou Chester com relutância. Ele acomodou o arnês na cabeça careca de Drake enquanto Danforth fazia ajustes nos controles dos aparelhos eletrônicos.

– Pode ajudar? – vociferou o professor para Will. – Prenda-o. E que ele esteja bem afivelado.

Will olhou para Chester com uma expressão vaga, depois obedeceu, verificando se os braços e as pernas de Drake estavam bem presos na cadeira por vários tiras.

Houve um instante de silêncio enquanto o professor fazia os últimos ajustes. Novamente ocorreu a Will como o cientista era parecido com seu falecido pai – não parecia importar nada para ele que houvesse uma pessoa na cadeira que poderia se machucar se o processo saísse pela culatra. E, mais do que isso, Danforth conhecia Drake desde criança e evidentemente tinha muita influência sobre ele. A especialização de Drake em optoeletrônica e o tempo que ele passou estudando na universidade devem ter se originado da influência de Danforth e ainda assim o professor só estava interessado em descobrir se seu aparelho funcionava. O dr. Burrows era igual, sacrificando tudo e todos a sua volta, se fosse necessário em sua busca de conhecimento e descoberta.

– Todos os sistemas prontos – anunciou Danforth, ligando um comutador. Por vários segundos, nada aconteceu. Drake continuou imóvel na cadeira, com os olhos cobertos pelas almofadas.

A raiva e o ressentimento de Will cresceram a um ponto que ele teve vontade de esmurrar Danforth. Ele queria interromper o procedimento e soltar Drake da cadeira, mas o homem diminuto falou:

– Tenho as leituras normalizadas – anunciou. – Agora, à descontaminação. – Ele apertou um botão.

Drake se contorceu várias vezes. Depois gritou a plenos pulmões, seu corpo se arqueava na cadeira e os músculos entravam em contrações tão fortes que Will pensou que ele podia romper as amarras nos pulsos e nos tornozelos.

O zumbido nos aparelhos parecia ressoar por todo o sótão. Uma pequena quantidade de luz roxa vazava pelas bordas das almofadas oculares e graças a isso Will tinha dificuldade de olhar diretamente a cara de Drake.

– Ai, não – murmurou Chester, ao ver o suor escorrendo pelo rosto de Drake e ensopando sua camisa.

– Pode-se ver que ele tem um bom grau de condicionamento – observou Danforth secamente, como se comentasse o clima. – Aumentarei agora a amplitude, para completar a descontaminação. – Ele girou um sintonizador.

A boca de Drake estava aberta, mas dela não saía mais nenhum som, nem um grito. Os tendões do pescoço e dos pulsos estavam tão esticados que davam a impressão de que podiam estourar, atravessando sua pele. Depois ele começou a balbuciar.

– Meu Deus, escutem... Isso é Styx! – exclamou Chester. – Ele está falando em Styx!

Will escutou assombrado enquanto os lábios de Drake moviam-se e sons bizarros saíam do fundo de sua garganta em explosões rápidas, como quem rasga papel seco. Era tão estranho ouvir um não Styx falando a língua deles.

– A gente devia gravar iss...

– Estamos gravando – interrompeu Danforth, apontando para o teto bem acima da cadeira, onde havia um domo espelhado instalado.

– Elliott pode nos dizer o que está falando – sugeriu Chester enquanto o professor gesticulava, num floreio.

– Que assim seja – anunciou ele.

Ele mexeu num comutador. O zumbido foi reduzido e a luz roxa nas almofadas oculares diminuiu, ao mesmo tempo que Drake arriava frouxamente para a frente.

– Tire tudo isso dele agora – ordenou Danforth a Chester, que rapidamente obedeceu, retirando o arnês e os censores da pele molhada de Drake.

Will soltou as amarras que o prendiam à cadeira, depois endireitou o corpo.

– Drake? Oi? – disse ele, num tom preocupado, pegando o braço do homem e o sacudindo. – Você está bem?

Drake permaneceu inerte, sua cabeça tombada no peito. Parecia estar apagado.

– E agora o que vamos fazer? – perguntou Will, recuando um passo.

– Dê um tapa nele – disse o professor, apertando a mão na outra como se a ideia de ele mesmo fazer fosse abominável.

– Fala sério? – perguntou Chester a ele.

– Sim – confirmou Danforth. – Dê um tapa nele.

– Tudo bem, então. – Chester levantou a cabeça de Drake, golpeando-o em seguida.

Danforth sibilou:

– Mais força nisso, garoto. Bata nele mais forte do que isso.

Mas Chester foi poupado da tarefa porque a cabeça de Drake se levantou de repente.

– Ele está acordado – disse Chester, agradecido.

– Diga quantos – perguntou o professor ao meter três dedos na cara de Drake. – Quantos você vê?

– Quatro e vinte melros – respondeu Drake, parecendo embriagado, semicerrando os olhos de pálpebras pesadas.

– Dê outro tapa nele – disse Danforth.

Chester engoliu em seco e ia obedecer, mas Drake segurou sua mão antes que fizesse contato com seu rosto.

– Eu estava brincando, pelo amor de Deus! – exclamou Drake ao se aprumar na cadeira e enxugar o suor da testa. – Eu estou perfeitamente bem.

Will olhava Drake com reprovação.

– Eu sei, eu sei – disse Drake, depois respirou fundo. – Em circunstâncias normais, eu não teria assumido esse risco. Mas, diante do que estamos enfrentando, preciso fazer o que puder para aumentar nossas chances.

– Tem certeza de que não está sentindo nada diferente? – perguntou Will, examinando-o atentamente. – Sua voz está estranha.

– Não, estou bem. É sério. Eu mordi a língua... É só isso. – Drake estava um tanto estranho, talvez por causa do alívio de ter passado por isso incólume, mas Will e Chester não conseguiram evitar – os dois riram descontroladamente. – Muito obrigado, vocês dois – disse Drake, sentindo a ponta da língua. Ele sorriu, mas sua expressão ficou séria de novo. – Acho que só vamos saber até que ponto isso funciona bem quando encontrarmos novamente os Styx.

– Homem de pouca fé – disse Danforth com irritação.

Drake gemeu ao se levantar da cadeira. Precisou de alguns segundos para encontrar as pernas, depois se virou para examinar os aparelhos eletrônicos no carrinho.

– Pode reduzir o tamanho deste kit? Precisamos que seja portátil, para que possamos desprogramar agentes em campo.

– Já comecei a fazer uma versão portátil – respondeu o professor. – Agora, quem será o próximo? – perguntou ele, olhando para Will com um frio distanciamento.

– Bom... Eu... Eu acho. – Will engoliu em seco.

– Não é tão ruim. – Drake tentou tranquilizar o menino, que tirava o casaco e se sentava na cadeira. – Lembre-se, nós já anulamos o desejo de morrer que eles plantaram em você.

– Sim, é verdade, Will – concordou Chester, tentando ao máximo demonstrar ânimo. – Você não quer mais se atirar do alto de um prédio, quer? – Ele colocava o arnês na cabeça do amigo e se certificava de que os sensores estavam em contato com as têmporas.

– Até agora, não – disse Will em voz baixa.

Drake terminou de afivelar as amarras nos braços e nas pernas de Will, depois enrolou um lenço e o colocou na boca do garoto.

– Tome... Morda bem isso – aconselhou. – Não quero que você perca a ponta da língua.

– Obrigado – disse Will através do lenço. Ele ouvia o professor mexendo nos comutadores, mas não conseguia enxergar nada com as almofadas oculares no lugar. – Eu simplesmente sei que isto vai ser horrível – tentou dizer.

– Fique calado e quieto – repreendeu-o Danforth. – Assim que eu tiver o padrão de onda normalizado... E agora eu...

Quando ele ligou o comutador principal, a escuridão se transformou em um roxo intenso, jorrando na cabeça de Will. Depois houve uma forte dor, mas em nenhuma parte específica de seu corpo – na realidade, ele nem estava consciente do próprio corpo enquanto mergulhava num espaço imenso, onde viu explosões de luz branca, exatamente como se estourassem flashes de câmera. Os clarões assumiam uma frequência cada vez maior e entre eles Will teve vislumbres fugazes de figuras escuras. Percebeu que via os dois Styx das sessões de Luz Negra a que foi submetido todos aqueles meses atrás, depois de ter ficado cativo no Quartel. O mais estranho, porém, era que tudo parecia acontecer ao contrário.

Ele sentiu mais dor, como se sua cabeça estivesse prestes a explodir. Muito de repente parou e descobriu Drake e Chester recurvados sobre ele.

– Tudo bem? – perguntou Drake.

– Claro – disse Will, embora sua boca parecesse um osso seco e seus braços doessem.

– Pensei que você fosse explodir meus tímpanos com toda aquela gritaria – disse Chester em voz baixa. – Você cuspiu o lenço e quase arrancou o teto. Graças a Deus você está bem!

Will percebeu como o amigo estava pálido.

– Por quê? O que aconteceu? E onde está o professor?

– Você ficou apagado por quase dez minutos – disse-lhe Drake. O professor apareceu; evidentemente estivera no andar de baixo.

– Ah, ele voltou. Então não vamos precisar dos sais aromáticos ou do kit de primeiros socorros – disse ele, de mau humor.

– Você nos deixou preocupados – disse Drake. – Os Styx devem ter colocado muito mais programação em você do que eu tinha previsto. Provavelmente nunca vamos saber o que é, agora que foi extirpada.

Chester torceu o lábio como se sentisse um gosto desagradável.

– Você estava falando em Styx... Foi de arrepiar.

– O quê? Eu também? – disse Will. – Que estranho, não me lembro de nada.

Então foi a vez de Chester ser tratado com o Descontaminador de Danforth, como passaram a se referir ao aparelho. No início ele mal derramou uma gota de suor, mas depois seu rosto escorria e ele também gritou, tagarelando no que parecia Styx. E Chester mal estava consciente no final do tratamento.

– Acho que isso quer dizer que eles também colocaram alguma coisa na minha cabeça quando nos prenderam no Cárcere – disse ele, depois de beber um pouco de água e ter a chance de se recuperar.

– Creio que sim. Eles não perdem uma oportunidade, não é? – disse Drake. – O único consolo é que sua reação foi menos severa do que a minha e a de Will, então acho que você recebeu menos do que nós.

– Desligando a força – anunciou Danforth ao desativar o último aparelho do carrinho e o zumbido desaparecer. – Um resultado muito satisfatório, eu diria.

Enquanto os três saíam da casa do professor, Drake se virou para o homenzinho peculiar.

– E quanto ao Jiggs... Ele está por aqui?

– Não estamos nos falando no momento – respondeu Danforth. – Ele deve estar nos observando daquelas árvores ali. Agora passa a noite toda nelas, sabe, como um babuíno. Ele ainda não tolera ser confinado depois do período que passou na Wormwood Scrubs.

– Está bem – disse Drake, como se nada disso o surpreendesse. – Dê lembranças minhas a ele, se por acaso o encontrar.

– Não é provável – respondeu o professor, fechando a porta.

Enquanto seguiam Drake de volta ao Land Rover, Will e Chester olharam a área do bosque e se perguntaram por que Jiggs esteve na prisão e que tipo de homem dormia numa árvore.

– Não vão conseguir vê-lo. Nem mesmo se ele estiver a três metros de nós – disse Drake, sem olhar os meninos, que andavam até o carro. – É isso que Jiggs faz. Ele se esconde. E é muito bom nisso.


Capítulo Cinco


Bartleby não voltou por dois dias inteiros, e Will e Chester saíram para procurar por ele novamente, desta vez acompanhados da sra. Burrows.

– Ele pode estar em qualquer lugar – disse Chester, andando no caminho lamacento ao lado dos juncos da beira do lago. Ele parou para olhar a água. – E se ele caiu aqui e se afogou, nunca vamos encontrá-lo. Ele pode ter ido atrás de algum peixe.

– Ele não é tão descuidado... E de qualquer modo sabe nadar. Tenho certeza de que está bem, onde quer que esteja – disse Will sem sinceridade. Ele tentava ao máximo manter o otimismo, mas Chester não estava convencido.

– Se é o que você diz – resmungou ele.

Will assentia lentamente consigo mesmo.

– Aposto que ele vai aparecer em casa de novo, como se nada tivesse acontecido.

– Não – disse abruptamente a sra. Burrows.

Os garotos a olharam como se ela estivesse prestes a dar más notícias, mas se referia a seu novo sentido, que ela estivera usando numa tentativa de lançar alguma luz sobre o paradeiro do Caçador.

– Talvez alguns ecos de onde ele já esteve, onde ele marcou seu território, mas não estou pegando nada fresco.

Virando-se para o leste, a sra. Burrows ficou de cabeça erguida e a mexeu lentamente até que seus olhos cegos ficaram vidrados para algo no meio do lago. Ela estava com um vestido comprido de algodão branco que Parry encontrara em um baú de roupas num dos quartos de hóspedes. A brisa o apanhava e soprava seu cabelo, e havia algo de santificado nela, parada ali na margem.

– Então não acha que Bartleby simplesmente abandonou Colly e correu para os morros? – refletiu Chester. – Afinal, ele é um felino, e os felinos não são muito confiáveis.

– Como os maridos – respondeu a sra. Burrows, distante, e de repente virou a cabeça para o oeste, como se tivesse ouvido alguma coisa.

Os meninos esperaram, torcendo para ela ter apanhado o cheiro do Caçador, mas ela continuava em silêncio.

– Mãe, é ele? – perguntou Will, por fim.

– É outra coisa... Bem longe... Não sei dizer... Talvez um cervo – disse ela em voz baixa.

Chester segurou um dos juncos e o quebrou.

– Parry disse que o Velho Wilkie também não encontrou nada quando fez a ronda. – Chester ficou pensativo por um segundo enquanto batia na mão aberta a cápsula de sementes marrom. – Digamos... Você não acha que ele pode ter alguma coisa ver com isso, acha?

– Pode haver insetos nisso aí – disse Will maliciosamente, sabendo do medo quase fóbico do amigo de qualquer coisa que se arrastasse. – E o que você quer dizer? Por que o Velho Wilkie faria algum mal a Bart?

Chester de imediato largou o junco e esfregou as mãos, depois as examinou com atenção.

– Bom... Parry disse que o spaniel do Velho Wilkie desapareceu, e você sabe quem foi o culpado por isso?

Will descartou a ideia.

– Acha que ele ia mentir para Parry? O Velho Wilkie trabalha para ele há anos. Isso não é provável.

A sra. Burrows ainda olhava na mesma direção, para o oeste, onde a floresta de pinheiros cobria uma pequena montanha como um manto verde. Onde os Limitadores tinham seu posto de observação.

– Sim... Cervo... Deve ser um cervo – concluiu. – Agora vou voltar – anunciou a sra. Burrows, virando-se para casa e começando a subir a ladeira.

– Tudo bem, mãe – disse Will. – Vamos tentar mais alguns lugares.

Chester esperou para falar até que a sra. Burrows estivesse mais afastada.

– Você sabe que isso é uma completa perda de tempo, Will. Não vamos encontrá-lo. Por que não o atraímos com um coelho ou um frango? Ou podemos amarrar uma cabra viva na frente da casa e esperar que ele venha farejar. Isso o traria para casa rapidinho.

– Tenho um mau pressentimento com tudo isso – respondeu Will, sem dar crédito nenhum às sugestões do amigo. – Vamos dar uma olhada rápida ali em cima do morro. – Ele partiu pela margem do lago, até onde a terra se elevava agudamente.


A cara de Chester se contorcia no monitor. Enquanto o menino gritava tão forte que o sistema de som estalava, Elliott se remexia na cadeira. Ela cruzou os braços e se abraçou, massageando um ombro com a ponta dos dedos.

– É difícil para você assistir? – perguntou Drake, parando o filme.

– Não, não é isso – respondeu Elliott. – Minhas costas estão meio desconfortáveis ultimamente.

Elliott tinha sido a última a ser tratada com o Descontaminador de Danforth, embora não tenha tido reação nenhuma, demonstrando que os Styx nunca usaram seu controle mental nela. Todos os outros na propriedade foram descontaminados, com três exceções. Drake teve medo de que fosse traumático demais para a sra. Burrows depois da excessiva Luz Negra que ela recebeu na Colônia, então a dispensou. E nada no mundo persuadiria Parry a passar por isso – ele disse a Drake que nunca deixaria que ninguém chegasse perto de seu cérebro, nem mesmo Danforth, em quem ele confiava inquestionavelmente. E Jiggs, porque ninguém sabia onde estava.

Drake trouxe cópias da gravação feita no sótão do professor e ele e Elliott agora assistiam a elas em um monitor que ele instalou na sala de bilhar. Danforth fez duas versões de cada filmagem; uma era uma gravação direta, enquanto outra tocava ao contrário, porque as vítimas que sofreram mais intensamente a Luz Negra, inclusive Drake e Will, pareciam estar falando do fim para o início.

– É tão estranho ouvir Styx saindo de Chester e de vocês todos – disse ela.

Eles já haviam assistido ao filme das sessões de Drake, Will e do coronel Bismarck com o Descontaminador, mas Elliott não conseguiu colher muito mais do que algumas frases muito deturpadas e sem sentido nenhum. Certamente nada que desse uma pista da natureza de sua programação.

– Tudo bem se continuarmos? – perguntou Drake.

Elliott assentiu.

Drake apertou o controle remoto e eles ouviram as ásperas palavras Styx emanando de Chester.

– É tudo bobagem. – Elliott deu de ombros levemente. – A maior parte é de palavras avulsas e, mesmo quando aparecem mais, não fazem sentido nenhum – disse ela, ouvindo com atenção. – É como alguém que fala dormindo.

Drake respirou fundo. Ele se resignara ao fato de que as gravações não iam revelar nada de significativo.

– Vamos até o fim da seção de Chester de qualq...

– Espere! – exclamou Elliott, sentando-se ereta de repente. – Volte isso!


Will e Chester tinham subido bastante o morro para conseguirem ver a casa, embora ela ficasse muito longe.

– Bart! Você está aí, Bart? – chamava Will enquanto Chester se arrastava atrás dele.

Eles ouviram um guincho e alguém saiu de trás de um grande carvalho.

– Stephanie! – soltou Chester.

Ela segurava um celular e usava macacão azul-escuro de gola virada para cima. Amarrara o cabelo ruivo e sedoso com uma fita para evitar que o vento o soprasse. Will percebeu que ela usava sapatos de salto alto pretos, o que parecia muito incongruente, uma vez que eles estavam no meio do nada.

– Oh, oi – disse ela de má vontade, tentando esconder o celular nas costas. – O que estão fazendo aqui em cima? – Ela assentiu. – Espere... Eu sei... Vocês estão procurando aquela coisa-cachorro perdida de Parry. O vovô também esteve procurando por ele.

– Estamos – respondeu Will. – A coisa-cachorro desapareceu.

– Bom, eu não vi – disse Stephanie com indiferença. Ela olhou de lado os garotos com uma leve sugestão de desprezo, depois virou a cabeça como se eles não tivessem o direito de estar ali.

– E o que você está fazendo aqui? – Chester tentava ser simpático.

Ela não respondeu, olhando-o feio, como se fosse impertinente da parte dele perguntar.

– Você estava usando seu telefone, não estava? – disse Will num tom acusador.

Percebendo que fora apanhada, as maneiras de Stephanie se abrandaram.

– Estou tentando conseguir sinal pra essa coisa idiota – confessou, tirando o celular das costas. – O vovô é tipo totalmente irracional... Ele diz que Parry tem uns inimigos e que os telefones são totalmente proibidos na propriedade dele. – Ela deu de ombros. – E eu, tipo assim, quem é que eu conheço que vai se importar? – Ela lançou um olhar tímido a Will e Chester. – Vocês não vão contar ao vovô, né? Ou a Parry? – acrescentou ela, como se já estivesse convencida de que seu segredo estava seguro.

– É claro que não – concordou Chester prontamente.

– E para quem você estava ligando? – disse Will, com os olhos se estreitando de suspeita.

– Estou tentando receber torpedos de minhas amigas, mas o sinal é fraco demais. Tem tipo uma baita festa em Londres hoje à noite... Todo mundo vai e eu tipo vou ficar presa aqui nessa... – Ela se interrompeu, como se fosse desnecessário dizer o que pensava da casa de campo.

– Uma festa? – disse Chester.

– É. Vai um pessoal legal que eu conheço de Eton. E também alguns da Harrow. Nem acredito que eu não vou. – O desespero em sua voz a elevou em uma oitava. – De onde vocês são? – perguntou ela rapidamente.

– A escola? – Chester tinha os olhos arregalados ao falar com ela, achando muito difícil unir mais do que algumas palavras.

– Highfield – disse Will.

Ela franziu a testa, movendo a mão como se descrevesse a área num mapa.

– Isso é tipo no norte... Norte de Londres, não é? – Ela mordeu o lábio inferior como se tivesse pena dos dois meninos.

– Não, lá não. – Will riu. – Na verdade se pronuncia Highfeld. Fica na Suíça.

Ela ficou confusa.

– Na Suíça? Nunca ouvi falar...

– Não, não deve ter ouvido – interrompeu Will, estufando o peito. – É meio tipo exclusiva. E meio tipo cara. É um lugar totalmente descolado... A gente tem que esquiar toda manhã antes das aulas.

– Sério? Meus pais nunca me levaram para esquiar – admitiu ela com uma expressão triste. – Queria muito ir.

Sem que fosse visto por Stephanie, Chester balançava freneticamente a cabeça e murmurava não! para Will. Mas Will não seria reprimido.

– E meu amigo aqui é tipo o astro das pistas. Nosso professor diz que acha ele tão incrível no salto de slalon que é certo que ele vai entrar para a próxima equipe olímpica. – Will soltou um silvo e moveu os braços como tinha visto os esquiadores fazerem na TV.

– Sério? – Ela deu um gritinho, girando para Chester com tanta rapidez que quase o pegou gesticulando para Will. – Salto slalon! Isso é tipo demais! – Ela bateu as pestanas para o garoto perplexo. – Agora posso dizer que conheci um esquiador olímpico.

– Humm, não sou tão bom assim – murmurou Chester. – E agora a gente precisa mesmo ir. – Ele pegou Will pelo braço e puxou o amigo morro abaixo. – Por que você disse essas coisas? Por que mentiu para ela?

– Ela é tão metidinha. Eton. Harrow. Ela pensa que somos uns boçais só porque não estudamos nesses lugares. A verdade é que não vamos a escola nenhuma, porque um exército de malucos homicidas que tipo moram no subterrâneo querem arrancar a nossa cabeça. Preferia ter dito isso a ela? – argumentou Will. – Acha que assim seria tipo melhor?

– Pare de dizer “tipo” o tempo todo, tá? – disse Chester numa voz sofrida. – Achei-a legal.

Will olhou por sobre o ombro e viu que Stephanie ainda olhava para eles. Ele acenou, e ela retribuiu o aceno com entusiasmo. Will dobrou os joelhos e se balançou de um lado a outro, como se estivesse de esquis, soltando mais chiados. Stephanie soltou um riso estridente, mas não de todo desagradável.

– E pare com isso também! – bufou Chester, descendo o morro a passos duros.


Depois de assistir aos últimos dois filmes para Drake, Elliott voltou a seu quarto. Enquanto se sentava na penteadeira com tampo de vidro, ela passou os olhos pelos produtos que a sra. Burrows convenceu Parry a comprar para ela. Havia algo de muito recompensador nos vidrinhos de esmalte, que ela agora arrumava ao lado do delineador, da base e dos batons. E havia o vidro do perfume pessoal da sra. Burrows que ela deu a Elliott.

Elliott segurou o vidro moldado para que pegasse a luz, depois o cheirou. De todos os produtos na penteadeira, o perfume era o mais significativo. Evocava lembranças de sua mãe, que sempre fazia um esforço enorme com os aromas nada sofisticados vendidos na perfumaria da Caverna Sul. Ela sorriu, lembrando-se de que tinha sentimentos confusos a respeito dos perfumes da Colônia depois de saber, pelo filho do perfumista, um garoto de sua idade, que eram preparados pela mistura do suco fermentado de fungo com urina de Caçador. Até hoje não sabia se ele estava dizendo a verdade.

Baixando o vidro de perfume, ela bocejou e se espreguiçou. O tempo que passou nas Profundezas já parecia fazer um século, e depois de sua recente estada na casa de Parry, ela se sentia uma pessoa inteiramente diferente. Teve uma trégua em sua luta de vida ou morte que fora sua existência por tanto tempo, de não saber o que havia pela frente, ser uma renegada hostil, uma Styx, ou uma predadora vagando em busca de sua próxima refeição. O povo da Crosta tinha tudo de mão beijada, levando a vida em ambiente tão benevolente, com toda a comida que podiam consumir.

Mas, acima de todo o resto, os meses na casa de Parry deram a Elliott a oportunidade de ficar limpa. Depois de todos os anos de roupas imundas e sujeira, ela até podia exagerar em seus longos banhos, que às vezes tomava duas ou três vezes por dia, mas era um luxo que nunca teve na vida.

E bem no fundo ela sempre soube que isso não ia durar.

Que um dia apareceria algo para perturbar tudo. E que esse algo avançava inexoravelmente para ela, Will, Chester e cada um deles agora, e ela não tinha alternativa, a não ser voltar a sua antiga personalidade. Para seu próprio bem e pelo bem daqueles que ela amava.

Com um suspiro, seu olhar vagou até o longo rifle ao lado da mesa de cabeceira. Ela estendeu a mão para pegá-lo, mexendo na culatra para saber se o tambor estava vazio. Pela janela do quarto, Elliott tinha a vista de uma das estátuas de Parry no gramado dos fundos da casa, uma reprodução de São Jorge em sua luta mortal contra o dragão. Ela pôs o olho na mira, ajustando para compensar o alcance, depois fixou a retícula na cabeça do dragão. Ouviu o estalo ao disparar o rifle sem munição.

– Isso é tudo que eu sei – disse ela, baixando a arma no colo. Passou o dedo pelo cano amassado e nas várias marcas na madeira da coronha. Muitas denotavam momentos de perigo, desafios que ela conseguiu superar.

Até agora.

Ela se virou na cadeira para ver Elliott no espelho da penteadeira, aquela de cabelo arrumado e pele imaculada, vestida num suéter angorá vermelho e uma saia na altura dos joelhos. Vendo seu reflexo, parecia que havia outra pessoa ali. Alguém que não era ela.

A sensação foi tão intensa que, quando Elliott sacudiu a cabeça, quase esperava que seu reflexo continuasse parado e possivelmente até falasse com ela.

– E eu não conheço você. – Como se o olhar da estranha a inquietasse, Elliott virou a cara rapidamente do espelho. Levantando-se, colocou o rifle na penteadeira. Enquanto os vidros e produtos de maquiagem eram empurrados de lado e alguns caíam no chão, ela foi pegar suas antigas roupas.

No momento em que entraram na casa e viram Elliott ao pé da escada, Will e Chester entenderam que havia alguma coisa errada. Não só ela estava com o rifle, mas as roupas femininas tinham sumido e ela havia cortado o cabelo bem curto de novo. A Elliott em que eles confiaram por tantos meses enquanto estavam nos subterrâneos lhes fora restaurada.

– Xiii. – Will soltou o ar. – Parece que temos problemas.

Chester estava prestes a perguntar a Elliott o que estava havendo quando ela ordenou:

– Ali – e apontou a sala de visitas.

Os meninos descobriram que todos os outros já estavam reunidos nas cadeiras em volta da lareira, como exceção de Parry.

Indagativo, Will olhou para Drake.

– Esperando por meu pai – disse ele.

E então Parry entrou num rompante e, sem perder nem um minuto, começou a falar:

– Cada ligação feita do telefone do escritório é registrada. – Ele brandiu várias folhas de papel. – Como podem imaginar, a linha telefônica não está ali para nada sigiloso. É para coisas diárias, de rotina... Encomendar óleo para o aquecimento central e coisas assim.

Ele pôs os óculos de leitura para examinar a primeira página.

– Um número apareceu no registro não muito tempo depois de vocês chegarem. Não pensei muito nisso na época, mas dei outra olhada com atenção e descobri mais duas chamadas para o mesmo número. A duração de cada uma delas foi de cerca de um minuto. E elas não têm nada a ver comigo.

– Mas nenhum de nós teve permissão de entrar no escritório até recentemente – disse a sra. Burrows, virando-se para Drake. – Tem certeza de que não foi você?

– Eu nem estava aqui quando foram feitas a segunda e a terceira ligações – respondeu ele. – A única explicação é que alguém entrou escondido e deu esses telefonemas em segredo.

Todos se olharam.

– Mas por que algum de nós faria isso? E para quem eram os telefonemas? – perguntou a sra. Burrows.

– Londres. E o número agora está indisponível – disse Parry.

Drake se levantou.

– Acho que sei quem foi, mas não quero acusá-lo. Não é uma coisa que ele tenha feito conscientemente.

– Você disse “ele”? – soltou Will.

Drake assentiu.

– E os telefonemas pararam logo depois que ele foi descontaminado por Danforth.

Enquanto se perguntava se seria ele próprio, Will se remexeu inquieto de pé.

– Então os Styx programaram a mim... ou alguém... para fazer...

Drake gesticulou para ele se calar.

– Elliott e eu vimos todas as gravações das sessões de descontaminação. Lamento dizer – ele girou para Chester –, a conclusão é que você falou alguns números de telefone, junto com umas palavras em Styx que Elliott conseguiu traduzir.

– O que... Não! – exclamou Chester, empalidecendo. – Eu?

– Sim, você. Muito provavelmente os Styx o condicionaram a telefonar e contar nossa localização. Você pode até ter dado alguns telefonemas a eles sem saber, muito antes de chegarmos aqui – disse Drake, sem censura nenhuma na voz. – Então, é provável que eles tenham uma boa ideia de onde estamos agora mesmo.

– Mas... Eu não faria isso! – Chester cambaleou um passo para trás.

Elliott se aproximou dele, pegando sua mão.

– Você não deve se culpar. Não podia evitar.

– Não, não fui eu – disse Chester, com a voz trêmula. – Eu me lembraria de alguma coisa.

– Não, não se lembraria – disse Drake com gentileza.

Chester se limitou a fitá-lo com os olhos se enchendo de lágrimas enquanto tentava falar, dizer alguma coisa em defesa própria.

– Ai, meu Deus, me desculpem – soltou ele, e saiu correndo da sala. O sr. Rawls foi atrás dele.

– Isso correu bem – disse Parry, sem nenhuma sugestão de humor, depois se dirigiu a todos os outros: – Então agora estamos em alerta máximo e não podemos ficar muito mais tempo aqui. Nossa localização foi descoberta.

– Mas se são os Styx, por que ainda não atacaram? – perguntou Will.

– Não sei. Talvez não estejamos em sua lista de afazeres e eles pretendam aparecer quando tiverem um momento de folga – respondeu Parry com certo sarcasmo. Era evidente que ele não estava levando essa novidade muito bem. – Já avisei a Wilkie e aos outros, e Danforth está analisando os sistemas do circuito interno de TV e dos sensores térmicos pela propriedade para ter certeza de que são plenamente operacionais.

Drake então falou:

– O certo é que devemos ser um alvo prioritário para os Styx. Eles não querem que a gente apareça numa hora inoportuna e entre de penetra em sua festa. Quando... e não se... eles aparecerem aqui, teremos de partir às pressas. Assim, todos devem arrumar suas coisas. E todos devem pegar uma arma no arsenal do porão.

Parry fez uma careta.

– Que chateação. – Ele começou a resmungar consigo mesmo. – Mas somos muitos. Vamos precisar de mais água e comida para nos manter no local alternativo e não posso fazer isso batendo uma varinha mágica. – Socando a bengala no chão, ele saiu às pressas da sala, ainda resmungando.


Capítulo Seis


Will aninhou a Sten no colo.

– Eu me sinto melhor agora, com minha velha amiga de volta. – Ele olhou para Chester. – Mas você acredita naquela história da Luz Negra?

Chester deu de ombros levemente.

– O que me deixa maluco é que não consigo lembrar nadinha de ter dado telefonema nenhum. Nada mesmo. – Ele franziu a testa. – Até naquela vez no chalé em Norfolk, com a maluca da Martha... Tinha um telefone ali... Talvez eu tenha ligado de lá para os Styx. Não posso ter contado muita coisa a eles, porque não sabia onde estava. Quando ela bateu na minha cabeça, pensei que eu estava tentando ligar para meus pais. Mas talvez não estivesse e talvez ela tivesse razão em...

– Não – disse Will. – Você vai acabar louco se não se esquecer disso. Agora não importa. Terminou. E lembre-se do que eles meteram na minha cabeça. Isso foi pior.

– Tem razão – concordou Chester. – Anda, é sua vez. – Eles estavam na sala de estar, na segunda partida de xadrez, enquanto uma acha de lenha crepitava reconfortante na lareira. Drake lhes pedira para ficar acordados até a madrugada, para o caso de alguma visita indesejada decidir aparecer na casa.

A mão de Will pairava em direção a sua rainha, mas ele voltou atrás, e seu foco passou às chamas que dançavam.

– E por falar em Martha, lembra todas aquelas vezes em que jogamos xadrez na cabana dela? – perguntou ele.

Chester assentiu.

O olhar de Will ainda estava perdido no fogo.

– A gente realmente pensou que Elliott ia morrer – disse ele.

– Você gosta muito dela, não gosta? – perguntou Chester despreocupadamente, avaliando sua situação no tabuleiro.

Will não respondeu de pronto.

– Sim, acho que sim. Mas você também, não é?

– Hummmm... Acho que Elliott gosta mais de você do que de mim. – Chester ainda analisava suas peças.

– Não tenho muita certeza disso – murmurou Will, e se concentrou novamente no jogo, resmungando –, não ia muito longe desse jeito.

– Você devia dizer alguma coisa a ela – sugeriu Chester.

Will finalmente moveu a rainha, depois falou com sinceridade porque sentia que podia confiar no amigo:

– Não, não com tudo isso acontecendo. Só deixaria as coisas... complicadas demais. – Will olhou para ele enquanto lhe ocorria que Chester podia ter abordado o assunto porque ele mesmo tinha fortes sentimentos por Elliott, e seu amigo queria sua bênção. Mas, quando Chester continuou em silêncio, Will supôs que não era essa a motivação dele. – Vou te contar, não sei se sirvo para todo esse negócio de relacionamento – confessou. – Não depois do que aconteceu com meus pais.

Will esteve pensando no doutor e na sra. Burrows. Presos em seu casamento letárgico e sem amor, eles tiveram vidas separadas durante anos. Ele não conseguia se esquecer do ressentimento entre os dois quando ele o dr. Burrows voltaram a Highfield. A sra. Burrows deixara muito claro que não estava preparada para aceitar o marido de volta.

– Qual deles? – perguntou Chester.

– Hein?

– Que pais? Quer dizer os verdadeiros?

Isso levou Will a pensar em seus pais biológicos e no que Cal lhe disse; que a lealdade do sr. Jerome não foi para com a esposa quando o filho bebê estava morrendo de febre crônica, mas para com as leis da Colônia. Enlouquecida de tristeza, Sarah Jerome abandonou o marido quando fez o impensável e fugiu para a Crosta.

Embora parecesse irreverência fazer isso, Will soltou uma gargalhada.

Chester o olhou com surpresa.

– Pode escolher – disse Will. – Todos se saíram muito mal juntos.

Eles ouviram passos apressados no corredor e Parry apareceu na porta.

– Sinais múltiplos! – berrou para os meninos, com seu pager bipando com tal rapidez que quase assumia um único tom. Ele foi ao gongo na mesa do corredor e bateu, enchendo a casa com o tom urgente. Depois partiu para seu escritório com os meninos em seus calcanhares. O sr. Rawls, ainda cuidando do telex, já estava de pé. Parry foi diretamente ao monitor na mesa. Martelou o teclado, percorrendo várias câmeras diferentes. – Ali! Peguei um no infravermelho! – gritou. – Eles passaram do muro.

Will via com clareza uma forma escura passando rapidamente debaixo de uma árvore. Ele respirou fundo ao ver, apanhado por outra câmera, um homem plenamente visível com os portões principais da propriedade a suas costas.

– Olhe a arma – disse Will, imediatamente reconhecendo o rifle de cano longo com sua mira noturna bulbosa que os Limitadores usavam. – São eles!

– Ai, meu Deus – ofegou Chester. – São mesmo!

– Bem, certamente não é o vigário fazendo suas visitas. E tem outra equipe. – Parry apontou a câmera que mostrava pelo menos quatro homens esgueirando-se ao abrigo de uma parede. – Temos várias brechas no perímetro... Todas ao sul. – Parry olhou para Drake, que entrava com o coronel Bismarck. – Pegou isso? – perguntou ao filho. – Eles estão aqui.

Drake assentiu uma vez.

– Hora de dar o fora.

Saindo de trás da mesa, Parry olhou o relógio.

– Os Styx estão a pé, então vão levar pelo menos oito ou nove minutos para chegar aqui. Atenha-se ao procedimento de evacuação que discutimos – disse ele a Drake. – Leve-os para o leste, enquanto nós pegamos a tubulação de esgoto até o Bedford. E se Sparks não estiver esperando por você, vá sem ele. Ele pode cuidar de si mesmo.

– Jiggs e Danf...? – começou Drake.

– Jiggs gosta de cuidar de sua própria vida, e Danforth já partiu – interrompeu Parry, erguendo o pager. Depois gesticulou para todos no escritório. – Agora, saiam... Saiam... SAIAM DAQUI! – ordenou. Ele se ajoelhou ao lado da mesa e abriu um painel embutido no chão. Dentro de um pequeno recesso havia uma chave em uma abertura, que ele girou. – Ativei as cargas. Eles não vão conseguir nada desta sala.

Drake, Will, Chester e o sr. Rawls encontraram-se com Elliott e a sra. Burrows ao pé da escada.

– Senti que vinha alguma coisa para nós pouco antes de ouvir o gongo. Eu disse a Elliott para se vestir – disse a sra. Burrows. – Pelo visto, estamos indo embora.

– Sim – confirmou Drake. – Todos vocês, peguem seus kits. – Ele olhou as Bergens e as armas enfileiradas no final do corredor. – Meu pai levará vocês ao Bedford. – Ele lançou um olhar ao coronel Bismarck, prestes a dizer alguma coisa, mas pareceu mudar de ideia e se voltou para Will. – Está com sua lente à mão? – perguntou ao menino.

Will apontou o alto da Bergen.

– Ótimo – disse Drake. – Não vamos usar luz nenhuma na maior parte do caminho e eu posso precisar de um copiloto. Está preparado para isso?

– Claro... Sim – respondeu Will, lisonjeado por ter sido escolhido no lugar do coronel.

Depois de pegar a Bergen e alguns sacos de equipamento para Drake, Will não teve tempo de se despedir direito. Abraçando rapidamente a mãe, ele se virou para Elliott, mas ela estava ocupada demais com os preparativos para dar pela presença dele. Em seguida, ele e Drake dispararam do corredor até a cozinha. Para surpresa de Will, Drake deixou as luzes acesas na sala ao chegar à porta dos fundos e até acendeu a lâmpada externa.

– Você vai sacudir isto assim que estivermos em movimento – disse Drake, entregando-lhe um potente refletor. – Queremos que eles nos vejam.

– Queremos? – perguntou Will.

– Não falei que nós éramos o chamariz? – Drake riu. – Vamos atrair os Styx e dar a Parry uma chance de escapar tranquilamente no Bedford.

Eles foram para os fundos da casa, onde havia um galpão que Will nunca se incomodou em investigar. Enquanto Drake abria as portas, Will sentiu cheiro de gasolina e na fraca luz da lua conseguiu distinguir um veículo anguloso. Tinha para-brisa, mas não teto.

– Meu antigo jipe – disse Drake, jogando o equipamento na traseira. – É meu desde que eu era garoto.

– Caramba! – Will se retraiu enquanto uma cara bizarra assomou para ele, saindo da escuridão.

– Fica frio, camaradinha – grunhiu Sweeney. Ele se virou para Drake, que já estava ao volante. – Ouvi nossos convidados pegando a entrada da casa. Peguei trechos de alguma coisa que não reconheci... Podia ser um palavreado, mas era feio pra cacete.

– Eles estão falando em Styx – disse Will. – A língua deles é assim.

– Ah. – Sweeney soltou uma gargalhada de trovão. – Então os Stickies falam de um jeito engraçado.

– Vocês dois, tratem de andar. Entrem! – ordenou Drake. Ele estava dando a partida na ignição quando hesitou.

– Pode ir – suspirou Sweeney, puxando o gorro para baixo, cobrindo as orelhas. – A eletricidade dos carros não é dolorosa demais para mim, embora a corrente no alternador me dê nos nervos.

– Não, não estava pensando nisso – disse Drake. – Por que os Limitadores falariam durante a operação? Eles são bons demais para isso. – Ele deu de ombros e ligou o jipe, acendendo os faróis alto. – Hora de acender aquele refletor – disse ele a Will.

Girando o motor para fazer o maior barulho possível, Drake deu a ré no jipe e saiu do galpão, disparando para a frente da casa e pegando a entrada. As rodas cuspiam cascalho enquanto Will apontava o forte facho do refletor para o morro onde os Styx estariam avançando.

– Isto deve bastar, Will. De jeito nenhum eles vão deixar passar essa! – gritou Drake sobre o ronco do motor. Ele jogou o jipe para o outro lado da casa, pisando fundo no acelerador para garantir que passasse por uma vala de drenagem. Caindo com estrondo do outro lado, atravessaram vários campos, até que Will viu uma cerca à frente. Mas Drake não parou, avançando diretamente por ela e descendo um declive. – Este é o novo portão norte. – Ele riu. – Agora apague o refletor, Will. Hora de ficarmos no escuro. – Ele baixou a lente ao mesmo tempo que apagava os faróis do jipe. – A partir de agora, silêncio, amigos.


Todos se enfileiraram atrás de Parry, que descia uma escada ao porão. Ele disparou pelo corredor mal iluminado e empoeirado, fazendo-os passar pela academia, a adega e finalmente o arsenal. Ao se aproximar de uma porta de chapa de metal reforçado no final do corredor, ele parou para ver se todos o acompanhavam.

– Por que isso não me surpreende? – perguntou ele, vendo Colly mostrar a cabeça atrás da sra. Burrows.

Sem esperar por uma resposta, ele se virou para a porta e levantou uma barra de ferro atravessada, coberta de teias de aranha.

– Talvez eu precise de alguma ajuda aqui – disse ele a Chester, indicando as maçanetas ao lado da porta. Os dois puxaram, mas ela não cedeu. E então, numa segunda tentativa, as portas se abriram de repente, espalhando ferrugem e poeira. Chester foi recebido por uma lufada de ar úmido e distinguiu uma espécie de passagem de tijolos à luz da lanterna de Parry, que cortava a escuridão.

– Esta rampa desce ao esgoto principal. Mas se preparem... É meio escorregadia na maior parte do tempo – aconselhou Parry a Chester, depois lhe deu uma ajuda pela abertura. – Passe o corpo para baixo, firme e com calma – acrescentou Parry ao garoto.

Chester se viu num ângulo escorregadio de cerca de quarenta e cinco graus. Com a volumosa Bergen nas costas e a Sten pendurada no ombro, ele acendeu a lanterna na escuridão de breu abaixo e desceu. Não tinha chegado muito longe quando a ladeira ficou tão molhada e escorregadia que ele não conseguiu controlar a descida. Ele tentou se inclinar para trás e travar os calcanhares para reduzir o passo, mas foi em vão. Derrapou ladeira abaixo, aumentando a velocidade, até que, com um forte espadanar, seus pés bateram em vários centímetros de água.

– Ah, que ótimo. – Chester enxugou a água fedorenta da cara. Endireitando a Bergen no ombro, a luz da lanterna caiu numa ratazana marrom. Com o grito de alarme de Chester, o rato tomou um susto e correu dali. Parry ouviu o grito e chamou por Chester.

– Você está bem? – gritou ele pela rampa.

– Por que eu sempre, sempre acabo voltando a lugares como este? – perguntou Chester a si mesmo com um estremecimento. Ele jogou o facho da lanterna para Parry, gritando: – Sim, estou bem!

Depois, enquanto os outros desciam a rampa, ele ajudou, certificando-se de que não se machucassem ao cair. Isso não pareceu representar nenhum problema para a sra. Burrows, que usava seu novo supersentido. Parry veio por último, falando com eles assim que desceu:

– Este é o principal duto de esgoto que liga o lago ao rio... Um bom exemplo da engenharia hidráulica eduardiana. Mas agora precisamos meter sebo nas canelas. – De imediato ele partiu pela água lamacenta.

Todos o seguiram, com as luzes ricocheteando pelas laterais do túnel construído de tijolos antigos. Como mancava, ficou claro que exigia demais de Parry andar a essa velocidade. Mas o sr. Rawls foi igualmente lento, perdendo o equilíbrio várias vezes e caindo na água. Chester sempre estava ali para ajudá-lo a se levantar.

Em menos de dez minutos, chegaram ao final. O vento os enregelava nas roupas molhadas e eles saíram em uma galeria, suas laterais quase verticais tomadas de samambaias e outra vegetação. A cerca de seis metros, enquanto a galeria se alargava, Chester viu o contorno escuro de um caminhão. Segurando a espingarda, o Velho Wilkie apareceu do outro lado do veículo e ele e Parry imediatamente começaram a conversar aos sussurros.

Os outros se aproximavam da lona que cobria a traseira do Bedford quando Stephanie de repente colocou a cabeça por baixo dela. Todos estavam ensopados e salpicados de lama e, por um momento, ela os olhou, perturbada. Mas viu Chester.

– Oi, é você! O vovô não me disse que você também viria.

– Er... É – respondeu Chester.

– Isso é tããããão excitante! Nunca acontece nada legal nessa lixeira e eu tipo adoro essa história de espionagem, armas e viagens ultrassecretas à noite. Parece que estou num filme!

– Não vai me apresentar a sua amiga? – perguntou Elliott.

Chester estava no meio de algumas apresentações aos murmúrios quando Stephanie percebeu Colly e soltou um gritinho.

– Vocês encontraram a coisa-cachorro!

– Façam silêncio aí – grunhiu Parry.

– Ooooh, desculpe – respondeu Stephanie, com igual estridência, cobrindo a boca com a mão ao fazer cara de pateta. – Eu sempre me encrenco com minha voz alta.

– Não é aquela coisa-cachorro – disse-lhe Chester. – Esta é... er... a outra coisa-cachorro. Eram duas.

Stephanie assentiu, ciente de que Elliott a encarava de cima.

– Mas então quero que você venha se sentar do meu lado. Quero meu esquiador perto de mim – disse Stephanie. – Uuuuosh, Uuuuosh! – acrescentou ela, mexendo os quadris e rindo animadamente.

– Uuuosh? – repetiu Elliott, de testa franzida.

– Esquiador? – perguntou o sr. Rawls.

Chester olhou para eles, impotente, depois balançou a Bergen para dentro do Bedford e subiu.

– Eu não vou tipo me sentar perto daqueles porcos e vacas mortos – disse Stephanie, determinada. Agora que estava debaixo do toldo, Chester viu, encostada no fundo da carroceria, mais ou menos uma dezena de engradados e tambores de plástico azul, todos empilhados. E acima deles foram penduradas carcaças de animais embrulhadas em algum tecido. – Eeeeca! Está vendo o que quero dizer – exclamou Stephanie ao apontar as carcaças que balançavam de leve. – Elas podem pingar alguma coisa totalmente nojenta no meu casaco.

– Não... Sim, podem – concordou Chester, perguntando-se exatamente o quanto disseram a ela sobre a situação em que se encontravam.

– Vamos embora agora? – perguntou o coronel Bismarck a Parry quando ele se aproximou.

– Sim, todos precisam entrar no Bedford. Depois de uns duzentos metros, a galeria deságua no rio, que está cheio nessa época do ano. Então vamos todos ficar molhados – disse-lhes Parry. Ele se dirigiu ao coronel: – E gostaria que você ficasse de guarda.

– Ja. É claro – respondeu o coronel, dando um tapinha em seu fuzil de assalto.

Depois que todos embarcaram seu kit no caminhão e a traseira foi fechada, eles se arranjaram pelos bancos dos dois lados. Juntando-se ao Velho Wilkie na cabine, Parry ligou o motor e eles desceram a encosta até saírem inteiramente da galeria. Parry reduziu uma marcha e todos foram jogados de um lado a outro pelo caminho que descia um barranco e entrava no rio. Embora fosse difícil enxergar alguma coisa no escuro debaixo da lona, eles ouviam a água correndo pelo fundo, batendo em seus pés.

– Ooooh! – Stephanie arquejava dramaticamente, levantando as botas e agarrando o braço de Chester.


Drake saiu da trilha com o jipe e entrou por uma curta distância no bosque, depois usou um facão para cortar alguns galhos, que Will ajudou a colocar sobre o veículo, para escondê-lo.

Os dois voltaram pela trilha onde Sweeney esperava. As abas de seu gorro militar estavam erguidas e a cabeça era virada de lado enquanto ele olhava o caminho que haviam tomado.

– Nada ainda – disse a Drake, abrindo a mochila. – Trouxe alguns presentes de boas-vindas para os seus Stickies. – Ele pegou uma imensa faca de combate de trinta centímetros, prendendo-a entre os dentes como um pirata e vasculhando o fundo da mochila.

– Você não tem uma arma de fogo – observou Will.

– Nunca fui bom com elas. – O sorriso de Sweeney era visível atrás da faca na boca. Ele estendeu uma de suas mãos imensas e a fechou como se agarrasse um pescoço, os nós dos dedos estalando feito rolhas de champanhe. – Prefiro trabalhar com isto. Posso ser mais criativo com elas. – Depois ele encontrou o que procurava na mochila. – Ah, aqui está. – Ergueu duas granadas. – Abacaxis fresquinhos.

– Obrigado – disse Drake, pegando uma com a despreocupação de quem aceitava uma barra de chocolate. Ele e Will se posicionaram de um lado da trilha, Sweeney do outro, e ficaram à espera. Drake dissera a Will que ele devia se concentrar na área ao lado da trilha, porque qualquer Limitador digno de seu nome nunca se aproximaria diretamente por ela. Assim, com a Sten firme nas mãos, Will olhava atentamente. Os troncos de árvore e os arbustos tinham um tom alaranjado através da lente que cobria o olho direito, que lhe permitia enxergar as cercanias com a nitidez que tinham à luz do dia. Ele se perguntou como parecia a Sweeney, com sua visão aprimorada.

Depois de uma hora escutando a batida da chuva, a empolgação de Will arrefeceu. No início, seu coração martelava com a expectativa de pegar os Limitadores no flagra, mas a umidade penetrava em sua roupa e o deixava muito desconfortável. Will sofreu mais duas horas dessa agonia, até que Drake finalmente os levou de volta à trilha.

– Nada ainda? – perguntou Drake enquanto Sweeney aparecia.

O homem imenso balançou a cabeça.

– Nem um sinal. – Ele olhou rapidamente para Will. – Exceto pelo camaradinha aqui, bocejando e rebolando como se estivesse sentado num formigueiro.

– Desculpe – murmurou Will.

– Eles tiveram muito tempo para nos seguir – pensou Drake em voz alta, olhando a trilha. – De jeito nenhum podem ter deixado escapar nossa partida, então certamente sabem que direção tomamos.

– Talvez estejam entrincheirados em volta da casa, torcendo para sermos idiotas o bastante para voltar – sugeriu Sweeney.

Drake olhou a granada que Sweeney lhe dera.

– Talvez – disse ele.

Depois de dar a ré no jipe, Drake esperou Will e Sweeney subirem no carro e acelerou novamente, ainda se afastando da propriedade de Parry.

– Árvores... – murmurou Will consigo mesmo enquanto quilômetro após quilômetro da floresta passava voando por eles. Não havia muito que olhar e o tempo todo Sweeney estava na traseira, com seus estranhos olhos circulados bem fechados e a mochila nos joelhos.

De repente Will percebeu o frio que sentia e enrolou o cachecol no rosto, mas não adiantou muito. Dizendo a si mesmo que devia relaxar porque os Limitadores não podiam conhecer aquele terreno tão bem quanto Drake, Will cedeu ao cansaço e adormeceu.

Drake levava o jipe por uma curva com tal velocidade que ele ficou apenas sobre duas rodas e Will acordou assustado, agarrando-se para não cair. Os primeiros sinais do amanhecer se aproximavam, um azul-cobalto se infiltrando no céu. Eles derraparam por outra curva e partiram por um declive em disparada. No fim da ladeira, Will localizou um vau atravessando a trilha, mas foi distraído por um grito de Sweeney. Ele se virou, mas o homem e sua mochila não estavam à vista.

Drake pisou no freio e o veículo reduziu até parar.

– O que é isso? – sussurrou Will.

A cerca de dez metros deles, uma mulher estava parada no meio do vau. Fazia sinais com uma lanterna.

Will ouviu Drake dizer “sra. Rawls” enquanto dava a ré e acelerava o motor.

Will não entendia por que Drake não estava dando a ré no jipe com a velocidade que deveria.

– O que está esperando? – perguntou ele com urgência. – Isso deve ser uma armadilha.

– Tarde demais. Já caímos nela – respondeu Drake em voz baixa. Ele deixou o motor ligado, mas deslizou para fora do banco, mantendo-se abaixado. Will fez o mesmo, com a Sten preparada.

A sra. Rawls chamou por Drake várias vezes, mas ele não respondeu, percorrendo as árvores com sua Beretta enquanto avançava cautelosamente para o vau.

– E agora? – perguntou Will.

– Improvisamos – cochichou Drake. Usando os dentes, ele tirou o pino da granada para armá-la. Mas segurava a granada com firmeza enquanto cuspia o pino, depois olhou nos olhos de Will. – Me dê cobertura – disse ele.

Will não precisava ouvir isso ao apontar a arma para a trilha atrás deles.

– Drake, está tudo bem! – gritou a sra. Rawls, ainda agitando a lanterna.

Além da mãe de Chester, não havia sinal de vida em lugar nenhum. E não havia também sinal de Sweeney, mas Will não esperava que houvesse. O velho soldado estava fazendo o que foi treinado para fazer.

– Está tudo bem! – gritou a sra. Rawls, baixando a lanterna. – É sério, Drake... Está tudo bem!

– Emily – respondeu Drake, ainda olhando as árvores –, quem está com você?

– Olá, Drake – disse Eddie ao sair de trás de uma árvore do outro lado do vau. Ele começou a se dirigir para a sra. Rawls.

– Pare bem aí! – ordenou Drake, apontando a arma para a cabeça do Styx. – Achei mesmo que seria você.

Eddie levantou lentamente as mãos, abrindo-as para mostrar que estavam vazias.

– Estou desarmado. Só quero falar com você.

Embora devesse estar vigiando a traseira, Will nunca tinha visto o ex-Limitador e não resistiu a dar uma espiada nele. O homem era muito magro, como todos os Styx. Vestia um casaco marrom-escuro três-quartos e botas Wellington, e na cabeça tinha uma boina. Se não fosse por suas faces encovadas e os olhos muito pretos, podia passar por um fazendeiro dando uma caminhada.

– E isto não é uma emboscada... Se fosse, eu não estaria de pé aqui, falando com você agora – disse Eddie, baixando os braços. – É essencial que eu fale com você. É mais importante do que qualquer rancor que você e eu ainda alimentemos um pelo outro.

Drake se posicionou de um lado do vau, com Eddie do outro e a sra. Rawls entre eles, a água correndo por seus tornozelos.

– Como soube que eu viria por aqui? – exigiu saber Drake.

– Uma conjectura tática – respondeu Eddie. – Eu estava observando a casa e naturalmente fiz um reconhecimento nas cercanias.

– Naturalmente – disse Drake com sarcasmo.

– E esta não é uma rota de fuga óbvia, então calculei que seria a de sua opção. – Eddie olhou para a sra. Rawls. – Sabe de uma coisa, eles tentaram ativar Emily para a ofensiva no centro, mas eu interferi. Ela foi bem cuidada.

– É verdade? – perguntou Drake. – Ele salvou sua vida?

– Sim – confirmou a sra. Rawls com um sorriso e um gesto de cabeça. Ela certamente não parecia estar sob efeito de drogas nem sofrer coação nenhuma.

– E eu a trouxe de volta para você – disse Eddie. – Uma oferta de paz.

A sra. Rawls avançou na direção de Drake.

– Desculpe, Emily, já é perto o bastante. Você pode ter passado pela Luz Negra – disse ele. – Will, aponte sua arma para ela.

– Oi, sra. Rawls – murmurou Will sem jeito enquanto virava a Sten para ela. – Como vai?

– Muito bem, obrigada, Will.

– Não usaram a Luz Negra nela. Pelo menos eu não usei – falou Eddie.

Eles ficaram ali, ouvindo apenas o gorgolejar do riacho e um ou outro canto de passarinho ao longe.

– Tudo bem, onde estão os outros? – perguntou Drake. – Você não passou pela vigilância da casa nem fez um reconhecimento completo dos arredores sem efetivo nenhum.

– Está inteiramente correto – respondeu Eddie, levantando um pouco a mão. – Se me permite...

– À vontade – disse Drake.

Eddie estalou os dedos.

Houve um ronco de motores ganhando vida à frente e atrás da trilha.

Com os estalos da terra sendo esmagada, dois grandes veículos militares americanos entraram no campo de visão.

– Humvees? – Drake olhou, alarmado.

Eles pararam, bloqueando as duas extremidades da trilha. Eram pintados de verde fosco e as janelas, escurecidas.


Todos os motores silenciaram e as portas se abriram.

Saíram Styx dos veículos. Outros saíram de entre as árvores. Will contou oito no total.

– Limitadores? – perguntou Drake, ainda mais alarmado.

– Sim, são – respondeu Eddie.

Nenhum dos soldados Styx estava com sua farda de combate parda, usando em vez disso um sortimento de roupas da Crosta: jaquetas Barbour, parcas e botas de caminhada. Um deles até estava de jeans. Mas com suas caras angulosas e os olhos fundos, a elite de soldados era inconfundível ao se aproximar. Nenhum deles portava armas, mas isso não os tornava menos ameaçadores a Will. Seu estômago revirou de medo. Da última vez que os encontrou em tal número, o pai foi brutalmente baleado por uma das gêmeas Rebecca.

– Onde você nos quer? – perguntou Eddie.

Drake inclinou a cabeça na direção de Eddie.

– Do seu lado, onde eu possa ficar de olho em todo mundo.

Os Limitadores marcharam obedientemente à margem e formaram uma linha atrás de Eddie. Will percebeu que um dos Limitadores tinha ataduras na maior parte do rosto e o olho esquerdo parecia costurado. Isso lhe dava uma aparência ainda mais medonha.

– Estão todos aí? – Drake tinha a arma apontada para o grupo.

Eddie pareceu hesitar enquanto inspecionava os homens atrás dele. Estava prestes a falar quando Drake o interrompeu:

– Sparks... Pode sair agora. – Ele mal elevou a voz.

– Ai, agora que eu estou pegando o ritmo – veio a resposta, e um riso baixo ecoou pelas árvores. Sweeney andou pela trilha. Tinha dois Limitadores com ele, um em cada ombro. – Peguei dois Stickies. São meio lerdinhos, não? – Ele os carregava como se não pesassem nada.

Eddie jogou a cabeça na direção do homem corpulento.

– Você não os machucou? – perguntou Drake.

Sweeney sorriu.

– Não, eles não estavam armados, então achei que não devia fazer isso. Estão dormindo o sono das fadas. – Ele considerou os dois Limitadores inconscientes em seus ombros, um de cada vez. – Umas fadas feias feito porcos. – Depois olhou para Drake. – E então, onde eu os coloco? Ao lado do chefão Sticky?

– Não, largue por aí mesmo – disse Drake, sorrindo para Eddie, que olhava com interesse para Sweeney. – Cumprimente Sparks, um velho amigo meu. Tenho outros amigos parecidos com ele.

Eddie ergueu as sobrancelhas, claramente assombrado que os soldados Styx tenham sido pegos desprevenidos.

– Falta um – disse ele.

– Jiggs – disse Sweeney.

– Jiggs está aqui? – perguntou Drake, surpreso.

– Claro. Ele derrubou outro desses palhaços.

– Bom sujeito – disse Drake. Ele soltou um riso seco enquanto olhava todos os Limitadores esperando pacientemente em fila. – Por que toda essa gente, Eddie? Um passeio pela natureza? – perguntou ele com frieza. – Posso saber o que todos esses Limitadores vieram fazer com você? E como você sabe que pode confiar neles?

– Eles são leais a mim – confirmou Eddie, sem o menor traço de dúvida. – Lembre-se, eu lhe falei que existiam outros que partilhavam meus sentimentos. Esses homens desertaram por mim devido a suas convicções. Acreditam que a escalada atual não é correta e precisa ser impedida.

O olhar de Drake passou por Will e ele percebeu que a cara do menino estava tensa.

– Você está bem, Will? – perguntou.

Will não estava. Perguntava-se se alguns destes Limitadores estiveram no alto da pirâmide, olhando enquanto o dr. Burrows era assassinado. Ele foi muito crítico com Chester sobre a breve aliança de Drake com Eddie quando eles armaram uma operação na Cidade Eterna, embora não tenha dito nada diretamente a Drake. Achava impossível acreditar que existisse algo como um Styx bom.

– Will? – repetiu Drake.

– Sim... Tudo bem – mentiu Will pelos dentes cerrados.

– Então você é Will Burrows – disse Eddie com gentileza. – Ouvi falar muito de você.

– É mesmo? – grunhiu Will, nervoso com a atenção do Styx.

– E em sua família: Tam, sua mãe, Sarah... E Cal, seu irmão. E é com relação a ele que lhe devo um pedido de desculpas.

– Cal? – Foi só o que Will conseguiu dizer.

– Sim, trata-se do Caçador dele. Creio que o nome do animal era Bartleby.

– Era? – exclamou Drake, mas Eddie continuou:

– Houve um lapso grave e indesculpável no protocolo em um dos postos de observação que estabeleci nas colinas que cercam a propriedade, e seu Caçador levou a melhor sobre a equipe que guarnecia o posto – disse Eddie. – O Limitador de serviço permitiu que o animal se aproximasse e o atacasse.

– Do que você está falando? – perguntou Will.

– Infelizmente, Bartleby foi morto. – Eddie apontou o dedo em garra para o Humvee estacionado mais além na trilha, atrás de Will. Este se virou e andou mecanicamente para o veículo. Não queria ver o que esperava por ele, mais se sentia compelido a olhar.

Havia um volume no capô. Will levantou a lente sobre o olho – com a chegada do amanhecer, ela se tornava desnecessária.

Ao se aproximar do veículo, ele viu que o volume era Bartleby. As pernas traseiras e dianteiras estavam amarradas com uma corda, sua carcaça estendida pela frente do veículo como se o grande felino fosse um troféu de uma excursão de caça.

Com a mesma cor que permeava o céu do amanhecer, Will via com clareza a rede de veias cobalto sob a pele ardósia de Bartleby, que parecia ter clareado na morte. E os olhos âmbar de Bartleby tinham perdido toda sua intensidade e agora eram brancos como leite azedo, os cristalinos opalescentes encarando o vazio.

Mas, acima de tudo, era impossível para Will aceitar que o felino estivesse imóvel. Ele sempre foi tão cheio de vida, sempre correndo para todo lado em sua busca permanente por algo para comer, sempre aprontando como uma criança levada.

– Bart – sussurrou Will. Parte dele quase esperava que o gato despertasse, como fez tantas vezes quando Will o incomodava durante um de seus cochilos. Mas ele sabia que isso não ia acontecer. Estendendo a mão, coçou uma das grossas patas do Caçador. – Coitado do Bartleby – disse ele, a garganta apertada de emoção. – Coitadinho.

Ele murmurava as mesmas palavras e balançava a cabeça ao voltar ao vau do rio. Arrastava os pés, com o corpo pesado de tristeza e frustração.

Todos olhavam, mas ninguém disse nada, até que Eddie rompeu o silêncio:

– Eu lamento muito por esse acidente.

– Você lamenta, é? – rosnou Will.

Ele podia ouvir a voz do irmão morto gritando em seus ouvidos, a voz de Cal, ávido por vingança, dizendo: “Mate os canalhas dos Pescoços Brancos! Ande, Will, derrame o sangue deles!”

Will notou que não havia nada que o impedisse. Ele podia atirar em Eddie e nesses soldados, e não haveria represálias. Ele não estava infringindo a lei. Drake e Sweeney podiam enterrar os cadáveres na floresta, assim como o de Bartleby provavelmente também seria enterrado.

– Você lamenta? – disse Will de novo, desafiando o homem a responder. – O quanto você lamenta essa merda? – Ele apontou a Sten ameaçadoramente para Eddie.

Ele estava a um milímetro de puxar o gatilho.

Agora tinha lágrimas nos olhos.

– Seu povo tirou tudo de mim. Sem parar. Só o que fazem é matar. Eu...

Ele retesou o dedo.

– Will! – exclamou Drake.

– Calma... Não faça nada de que possa se arrepender, meu amigo – disse Sweeney ao se aproximar rapidamente e pegar o cano da Sten de Will, voltando-o para o chão. Will não ofereceu resistência enquanto Sweeney gentilmente puxava a arma de suas mãos. – Nunca tome nenhuma atitude por raiva.

– Quero compensar a perda – continuou Eddie.

Drake ficou confuso.

– O quê?

Eddie andou pelo vau na direção dele.

– Deixe que eu descarte isso para você – ofereceu ele, indicando a granada ainda em sua mão. – Não precisa dela agora.

Drake olhou inexpressivamente para Eddie.

– Não vou usar em nós – garantiu Eddie. – Não sou suicida.

Drake franziu o cenho, mas depois, para completo assombro de Will, permitiu que o Styx tirasse a granada dele. A coisa mais estranha era que Will não detectava animosidade entre Drake e Eddie, mas algo inteiramente diferente. Camaradagem. Amizade até. Isso o magoou.

Eddie voltou à fila de Limitadores e estendeu a granada ao Styx com ataduras na cara. E ele aceitou, sem nada dizer.

– Este soldado quer expressar seu arrependimento – anunciou Eddie, e o Limitador subiu um pouco a trilha e entrou na floresta.

– Não! – gritou Drake ao perceber o que estava prestes a acontecer. Ele girou para Sweeney. – Sparks! Seus ouvidos! – gritou ele.

Assim que a última palavra deixou sua boca, o Limitador se jogou em cima da granada. Houve uma explosão abafada. Will viu um clarão enquanto o corpo do Limitador era erguido do chão. Todos foram banhados por uma chuva de terra e lascas de madeira. Enquanto uma árvore gemia e virava, a sra. Rawls gritou.

– Au! – reclamou Sweeney, com as mãos em concha sobre os ouvidos. – Isso foi alto.

– Era desnecessário – disse Drake a Eddie com raiva.

A cara de Eddie, como dos outros Limitadores, trazia uma expressão normal e inescrutável.

– Não, este era o preço por fugir do dever – explicou Eddie. – E também acabo de responder a sua pergunta, Drake. Cada um desses homens me mostrará obediência absoluta e inquestionável. São inteiramente leais a mim. Por isso estão aqui. Farão qualquer coisa que eu mandar.

Eddie então se voltou a um Will de olhos arregalados, que ainda estava meio agachado da explosão.

– Como eu disse, lamentamos profundamente pela morte do Caçador. Agora que o responsável foi punido, espero que isso sirva de compensação. – Eddie se virou para Drake. – E agora podemos conversar, por favor?

– Desde que você não faça mais nenhuma gracinha como essa – disse Drake.

A Sten parecia um brinquedo nas mãos imensas de Sweeney enquanto Will e Drake o deixaram para vigiar a sra. Rawls e os Limitadores. Eddie fez a sugestão educada de que eles conversassem no Humvee do outro lado do vau, o que poupava Will de ver o corpo de Bartleby uma segunda vez.

Will subiu no banco do carona. Nunca esteve num Humvee e olhava o interior espaçoso.

– Você está bem? – disse Drake enquanto se acomodava num dos bancos traseiros.

Will assentiu e se virou, mas Drake já estava de costas, examinando o suporte de armas instalado na traseira do veículo. Abrigava quase uma dezena de rifles Styx e armas de última geração da Crosta. E ao lado delas havia um equipamento de comunicação que parecia caro.

– Aposto que você teve de passar alguns diamantes para pagar por isso – disse Drake enquanto Eddie subia no banco ao lado dele.

– Tenho mais alguns destes veículos em Londres – respondeu Eddie. – E alguns blindad...

Will foi pego de surpresa quando Drake atacou, dando um soco em cheio na cara do Styx.

– Isso foi por me submeter à Luz Negra – disse Drake, esfregando os nós dos dedos.

Os olhos de Eddie lacrimejaram enquanto ele procurava alguma coisa no bolso. Ele pegou um lenço, usando-o para limpar o nariz. Will viu uma mancha de sangue em seu lábio superior.

– Acho que eu merec... – Eddie começou a dizer.

Drake o atacou novamente, desta vez batendo ainda mais forte. Seu lenço saiu voando e o sangue agora escorria livremente do nariz.

– E isto? – perguntou Eddie, ainda mais nasalado do que nunca.

– Isso é pelo Chester – grunhiu Drake. – Foi um truque sujo e baixo colocar o garoto na Luz Negra também.

– O quê? – exclamou Will. – Então não foi o verdadeiro Styx?

– Não, não foi, não é verdade, Eddie? – Drake acusou o homem.

O Styx concordou com a cabeça.

– Devo merecer isso também – disse ele. Com a voz impassível, ele não demonstrava nenhum ressentimento para o modo como Drake o havia tratado. – Foi desleal de minha parte, mas eu precisava de meios para saber de seu paradeiro. E assim, quando você deixou Chester sozinho em meu apartamento, eu lhe fiz um condicionamento muito leve. Não foi nada drástico.

– Você fez com que parecesse que tinha dado a ele algum produto para o cabelo – comentou Drake secamente, depois balançou a cabeça. – Então fugimos da casa do meu pai sem motivo nenhum. Por que, em nome de Deus, você simplesmente não apareceu no portão?

Eddie fungou, tentando tirar o sangue das narinas.

– Eu precisava ter toda a sua atenção. Se eu simplesmente aparecesse, você não teria me levado a sério. E você parece estar deixando passar o favor que eu lhe fiz. Depois que você jogou Emily Rawls no reservatório, eu entrei para salvá-la e agora a estou devolvendo inteira.

– No reservatório? O que ele quer dizer? – perguntou Will a Drake.

– Foi opção dela – defendeu-se Drake, mas Will podia ver que Eddie o pegara de guarda baixa. – Emily estava decidida a ajudar e eu precisava de um jeito de observar de perto o que os Styx planejavam fazer.

– Então você está dizendo que o que fiz com Chester foi pior do que deixar a mãe dele com os lobos. – Eddie foi franco com Drake e respirou fundo. – Mas, veja bem, isto não está nos levando a lugar nenhum e preciso informar você de um problema qu...

Drake claramente ficou furioso com a acusação de Eddie e agora o interrompeu com beligerância:

– O que pode ser tão importante para você ter todo esse trabalho só para falar comigo? Se tem alguma coisa a ver com sua filha, não desperdice seu tempo. Ela não quer saber.

– Sim... E não – respondeu o Styx de um jeito calculado. – Não, eu não vim pela Elliott, mas você tem observado alguma coisa diferente nela? Alguma mudança?

Drake franziu a testa, sem entender por que Eddie fez a pergunta.

– Bom, ela está crescendo rápido – respondeu ele. – Como qualquer menina normal na adolescência.

– Menina normal – repetiu Eddie no que mal passou de um sussurro, abrindo e fechando a mão rigidamente. Era um sinal de ansiedade leve, mas pouco característico e um sinal que Will e Drake imediatamente pegaram. O Styx olhou fixamente nos olhos de Drake. – Vou lhe contar uma coisa que nenhum humano jamais ouviu. Explicará por que meu povo apressou suas operações aqui, na superfície.

– Continue – insistiu Drake, cruzando os braços e se recostando. – Sou todo ouvidos.

– Preciso lhe falar sobre... – Eddie se interrompeu por um momento, como se seus lábios se recusassem a obedecer. – ... Sobre a Fase.


Operado por dois neogermanos, os portões da fábrica se abriram e o capitão Franz conduziu a Mercedes para uma área do asfalto designada de Estacionamento de Visitantes, onde parou. Num átimo, deixou seu banco e estava na traseira do carro para que as gêmeas Rebecca saíssem. Depois correu à frente para fazer o mesmo, abrindo a porta do prédio de escritórios. Mas por um momento as Rebeccas ficaram na área de estacionamento, admirando as filas de carros caros.

– É de dar orgulho – disse Rebecca Um ao ver um Bugatti Veyron ao lado de uma Ferrari Enzo.

A irmã cantarolou concordando, depois elas continuaram até o prédio onde o capitão Franz ainda mantinha a porta aberta.

– Muita gentileza sua. Obrigada – disse Rebecca Dois ao passar por ele.

– Muita gentileza sua. Obrigada – repetiu Rebecca Um num tom efusivo de Marylin Monroe ao passar pelo capitão, completando a imitação com uma pequena mesura.

Rebecca Dois ignorou a implicância da irmã enquanto um Limitador com traje de combate completo avançou para recebê-las.

– Pelos carros, vi que estão todas aqui – disse-lhe ela. – Leve-as à sala do conselho.

Afastando-se rapidamente da área de recepção, as gêmeas passaram pelo corredor e por uma porta aberta. Era uma sala considerável, dominada por uma mesa de cerca de seis metros de extensão, com cadeiras arrumadas a sua volta. As gêmeas Rebecca foram diretamente para a cabeceira da mesa e se sentaram. O capitão Franz se colocou atrás delas em posição de sentido, com as mãos às costas.

Em menos de um minuto, uma procissão de mulheres Styx, todas adultas, entrava na sala. Vinham de todos os setores da vida na Crosta e suas aparências diferiam de acordo com isso. Algumas tinham o cabelo preto, mas o de outras era descolorido ou tingido, e suas roupas eram igualmente variadas. Longe de se esconder nas sombras como suas contrapartes masculinas, muitas dessas mulheres se insinuaram em áreas importantes do comércio e nos escalões superiores do governo da Crosta, e eram constantemente o centro das atenções. Eram membros importantes e valiosos da sociedade inglesa e muitas tomavam decisões fundamentais em suas respectivas áreas.

Eram quarenta mulheres no total. E embora a aparência fosse diversa, a única coisa que tinham em comum era sua beleza excepcional. Com as maçãs do rosto pronunciadas e os olhos penetrantes, todas eram incrivelmente altas e magras. Em termos da Crosta, cada uma delas era deslumbrante.

Uma mulher de cabelo curto e preto andou afetadamente até uma cadeira na extremidade oposta da mesa e se sentou, cruzando as pernas com elegância.

– Hermione – cumprimentou-a Rebecca Um.

Hermione sorriu.

– Li a matéria que fizeram sobre você na Hello! – continuou Rebecca Um. – Você ficou simplesmente fantástica nas fotos.

– Sim, fiquei satisfeita com a repercussão dessas fotos – respondeu Hermione. Com casas em Londres, Paris e Nova York, ela dirigia uma das mais importantes empresas de relações públicas do mundo.

Outra mulher, de cabelo louro na altura dos ombros e um terninho preto Vivienne Westwood, assumiu o lugar ao lado de Hermione. Movimentando-se com a elegância de um gato, ela deslizou para a cadeira, colocando um pé calçando Jimmy Choo na beira da mesa.

– E, oi, Vane – disse-lhe Rebecca Dois. – Já faz muito tempo.

– É verdade – respondeu ela.

Embora fosse difícil descobrir à primeira vista, Hermione e Vane eram gêmeas, como as duas Rebeccas, e sempre foram um exemplo para as meninas mais novas.

– Vimos que você esteve ocupada com seu último programa – disse Rebecca Dois a Vane.

A mulher abriu um leve sorriso. Era a principal apresentadora de um reality show na TV que tinha muita audiência.

– Não é preciso muito para divertir essa gente medíocre da Crosta – disse ela, com a voz cheia de desdém.

Hermione esfregou um ombro por baixo do paletó, lançando um olhar pela sala do conselho.

– Que espelunca este lugar. Inteiramente desinteressante.

Rebecca Dois assentiu, concordando:

– Sim, é perfeito, não? E lá fora – disse ela, tombando a cabeça para a direita – tem quase meio hectare de ambiente controlado.

Rebecca Um assumiu, dirigindo-se a todas as mulheres.

– E nesse meio hectare já preparamos trezentos espécimes para vocês.

Todas as mulheres reagiram imediatamente, ronronando sua aprovação. E todas elas, sem exceção, tinham a respiração mais pesada enquanto seus rostos se ruborizavam. Várias massageavam os ombros.

Mas uma mulher de pé no meio do grupo, atrás de Vane e Hermione, parecia pouco impressionada.

– Só isso? – disse ela rispidamente. Sua aparência era desalinhada em comparação com a das outras mulheres; ela não usava maquiagem e, quando tirou o quepe, seu cabelo era de um castanho cor de rato. Vestindo uma farda cáqui, ela era uma das mulheres de mais alta patente no exército britânico. – Porque sei onde podemos obter muitos candidatos a mais do que isso – disse ela, referindo-se aos soldados sob seu comando. – E todos estão em ótimas condições físicas.

Rebecca Um respondeu rapidamente:

– Eles não são necessários. O mesmo número será processado novamente e estará pronto para vocês em breve. Isso deve ser adequado até para seu apetite voraz, major.

Uma mulher de terninho azul-escuro deu um passo à frente. Tinha vindo diretamente da clínica oftalmológica da Harley Street, onde administrava sessões regulares de Luz Negra a vários políticos e empresários importantes.

– Posso começar por ele? – perguntou ela, arregalando os olhos escuros e ávidos para o capitão Franz. – Ele é um bom aperitivo.

– Eu o vi primeiro. – Hermione riu, descruzando as pernas e passando a língua pelos dentes perfeitos.

– As duas estão enganadas. Acho que vão descobrir que ele é meu – disse Vane.

– Não – respondeu Rebecca Dois com certa rispidez excessiva. – Ele é útil para nós.

– É mesmo? – Hermione tinha os olhos faiscando ao perceber como a gêmea Rebecca ficou na defensiva. – E de que maneira esse homem da Crosta pode ser considerado “útil”?

Para acalmar a situação, Rebecca Um bateu palmas e se levantou.

– Se estiverem todas prontas – anunciou –, por favor, acompanhem-nos.

As meninas foram na frente, seguidas pelas mulheres Styx. Os saltos dos sapatos estalavam no piso enquanto elas deixavam a área acarpetada e andavam pelo corredor que levava ao primeiro dos depósitos. Dois Limitadores, os destemidos soldados do regimento de elite Styx, estavam estacionados na entrada da antiga fábrica. Mas agora não pareciam tão destemidos, encolhendo-se e recuando o máximo que podiam da horda de mulheres. Enquanto passava, Hermione se curvou para um deles e rosnou. O Limitador quase morreu de susto.

– Os homens são uns frouxos. – Ela soltou um riso gutural.

Mas as outras mulheres não pronunciaram nem uma palavra ao entrarem na oficina. As unidades de umidificação industrial chocalhavam sozinhas e o ar era denso e quente. Grande parte do interior, iluminada apenas pelo ocasional globo luminoso armado num tripé, estava escura.

E pela oficina havia trezentos leitos hospitalares organizados em uma grade, cada leito com uma pessoa deitada, inconsciente. A cena se assemelhava a um dormitório em massa de humanos adormecidos, consistindo em colonistas e homens da Crosta, e até alguns neogermanos que foram trazidos para completar o número.

Rebecca Um se colocou diante do grupo de mulheres.

– Este é... – Ela começou a falar, mas percebeu que a maioria das mulheres Styx não prestava nenhuma atenção. Levadas pelo impulso primal irresistível presente em cada uma delas, muitas já avançavam para os leitos. Rebecca Um levantou as mãos e se dirigiu às mulheres a plenos pulmões: – Este é um dos maiores momentos de nossa longa história e estamos orgulhosas de podermos... – Ela se interrompeu ao perceber que era inútil; o grupo reunido mal lhe dava ouvidos enquanto seus olhos disparavam para as camas.

– Depois que terminarem aqui, podem passar aos outros dois depósitos, onde os demais candidatos estarão esperando por vocês – acrescentou Rebecca Dois. – Não se preocupem se não conseguirem dar conta de todos, porque outras de nossas irmãs se juntarão a nós depois.

– Vamos tentar deixar algumas migalhas para elas – disse Hermione. Uma onda de risos abafados percorreu o grupo, mas a maioria estava tomada de expectativa demais para acompanhá-la.

– Então, que tenha início a Fase! – proclamou Rebecca Um com um grito.

As mulheres se espalharam pela oficina, algumas correndo para tomar posse de humanos nos cantos mais distantes.

– Foi um longo caminho desde a Romênia – disse Rebecca Um. – É muito mais fácil agora que temos a tecnologia para limpar sua mente – disse ela, referindo-se ao tratamento intensivo com Luz Negra que as pessoas nas camas tinham recebido.

– Sim, é muito menos problemático do que imobilizá-los à força. Mesmo com os tornozelos quebrados, eles ainda podem tentar resistir – disse Rebecca Dois sem fôlego, vendo Hermione se aproximar de uma das camas mais próximas.

A mulher Styx se aproximou do humano desacordado e tirou o casaco, depois a blusa. Montando no corpo, Hermione arqueou o tronco e jogou a cabeça no ar, soltando um grito primordial e penetrante que se elevou ao teto corrugado e pareceu cair novamente na oficina.

Havia sangue em suas costas. Mas, ao começar a gritar, duas fendas se abriram pelas bordas superiores das omoplatas, rasgando a carne.

Dessas fendas saíram pernas articuladas de insetos. Contorciam-se como se tivessem acabado de nascer e respirassem pela primeira vez, depois se abriram em toda sua extensão.

Um par de pernas insetoides, pretas e brilhantes e luzindo de sangue e plasma, cobertas de pequenas cerdas.

Hermione ainda gritava, mas o som era tragado pelas outras mulheres que, montadas nas vítimas, começaram a gritar também. Elas berraram, até que o volume combinado ficou insuportável nos confins da fábrica, ressoando por suas paredes.

E então, enquanto Hermione lançava os braços para um humano apático, as pernas de inseto também se agitaram sobre os ombros. Com suas pinças, seguraram cada têmpora do homem, mantendo-o parado para o que vinha a seguir.

Hermione tinha a respiração entrecortada ao baixar a cabeça para mais perto do homem e meter os polegares na boca, escancarando-a. De repente um tubo explodiu de sua língua. Com mais de cinquenta centímetros de extensão, imediatamente encontrou a boca aberta do homem.

– É uma coisa maravilhosa de se ver – disse Rebecca Um com a voz arrastada, inebriada com o espetáculo diante dela. – Temos muita sorte de presenciar isso.

O tubo carnudo era semelhante ao ovipositor encontrado na extremidade do abdome de muitos insetos para a postura de ovos, só que muito maior. E o de Hermione pulsava enquanto alguma coisa era espremida para baixo pelo movimento peristáltico dos músculos.

Era uma bolsa do tamanho de uma caixa de fósforos. Uma cápsula de ovos.

Enquanto o tubo avançava pela boca do homem e forçava seu caminho pela garganta, um ato reflexo o fez tossir e ele tentou mexer a cabeça. Mas, com um ruído de deglutição definitivo, a cápsula de ovos foi depositada bem no fundo e ele voltou a ficar imóvel.

As pernas de inseto de Hermione desprenderam-se das têmporas do homem. Ela levantou os braços e os esticou elegantemente, depois saiu de cima dele. Imediatamente passou ao leito seguinte, onde se deitava uma mulher.

– Lá se foi um, faltam quinhentos e noventa e nove – disse a Rebecca Dois.


Capítulo Sete


– E de cada um desses sacos de ovos ou bolsas – continuou Eddie –, mais de trinta Styx são desovados. Passam por um estágio de larva, consumindo a carne viva do hospedeiro humano. E quando esgotam a carcaça arruinada do hospedeiro, explodem para fora e...

– Explodem para fora? – perguntou Will, bastante nauseado.

– Sim, eles rompem a pele e se arrastam para fora em busca de mais alimento. Nos dias que se seguem, precisam de um amplo suprimento de carne fresca para seu pleno desenvolvimento. Depois de terem absorvido proteína suficiente, eles formam casulos, para o estágio de pupa. Em uma ou duas semanas eclodem e um novo exército está pronto para tomar o ambiente.

Drake tinha a testa franzida.

– Você disse que são produzidos “Styx”. O que quer dizer exatamente? – perguntou.

– Styx como eu, como os Limitadores – respondeu Eddie.

O vinco na testa de Drake se aprofundou.

– Depois de apenas duas semanas? Como pode um adulto plenamente formado ser produzido em questão de semanas? Como pode ser?

– Eles possuem a inteligência de um Styx macho plenamente desenvolvido, mas não têm faculdades emocionais. Não precisam delas. Foram trazidos a este mundo com um só propósito: matar. E são incrivelmente eficientes nisso, porque não hesitam com a morte. Nós os chamamos de Classe Guerreira. Percorrem a população da Crosta, usando as armas que estiverem disponíveis, chacinando ao prosseguirem, até que recebem a ordem de parar. Ou até que não reste mais ninguém para matar.

Houve um silêncio de choque no Humvee, até que Will falou:

– Parece a vespa macrurus – sussurrou ele, apavorado. Se fosse possível com sua pele sem pigmento, seu rosto teria ficado mais branco do que o normal. – Uma vez vi um programa de TV sobre elas. Elas põem ovos em um animal vivo, os ovos eclodem e c...

– É mais do que isso – interrompeu Drake, virando-se para Will. – Lembra a última vez em que estivemos em Highfield com seu pai? Quando ele queria dar uma olhada em Celia do telhado?

– Claro que me lembro – disse Will. – Na Martineau Square.

– Bom, na época eu tagarelei sobre uma comparação que fiz entre os Styx e os vírus. Não tinha a menor ideia do quanto tinha chegado perto. – Drake virou-se para Eddie. – Se posso dar um palpite, quando a cria cresce no hospedeiro, assimila não só suas proteínas, mas também parte do DNA do hospedeiro em seu genoma, não é? E não é esse o motivo para que a fisiologia Styx atual espelhe a nossa?

Eddie assentiu.

– Nossos estudiosos acreditam que existiu uma Fase em tempos pré-históricos que provocou a extinção dos dinossauros. E certamente não éramos humanoides naquela época. Os estudiosos nos dizem que a semelhança humana veio mais tarde, depois de uma segunda Fase, durante a época neandertal.

Will soltou uma exclamação que mal era audível.

– Nossa.

– Espere aí... Tudo isso está ficando meio fantástico demais. – Drake ergueu as mãos. – Onde está a prova de tudo isso, Eddie? Como vou saber que o que você está nos contando é verdade? – Ele o desafiou, embora sem agressividade, enquanto tentava lidar com o que acabara de saber. – Só temos a sua palavra d...

Eddie fez um gesto de quem ia colocar a mão por dentro da jaqueta. Num segundo, Drake sacou a arma e a apontou para o Styx.

– Você sabe que não estou armado – disse Eddie, inteiramente imóvel. – Só quero mostrar uma coisa.

– Mostre. – Drake ainda apontava a arma para o Styx.

Do bolso interno, Eddie lentamente pegou um livro de capa vincada e gasta.

– O Livro das Catástrofes? – perguntou Will, vendo o volume surrado nas mãos de Eddie, encapado numa espécie de pergaminho marfim.

– Não, este é muito anterior – respondeu Eddie. – Sobreviveram apenas alguns exemplares deste livro do século XV. Nenhum colonista jamais pôs os olhos nele e é improvável que exista outro acima da grama. Contrabandeei este exemplar da Cidadela para mim.

Baixando a arma, Drake deu de ombros.

– Então, o que é?

– Bem... – Eddie pensou por um segundo. – O título Styx para ele significa “de um virão muitos”. Não há correspondência exata na sua língua, mas suponho que a melhor palavra para isso seja “Propagação”, ou melhor, talvez, “Proliferação”. – Com um dedo, ele acompanhou os três lados do triângulo invertido talhado em sua capa. – Sim, o Livro da Proliferação – decidiu Eddie, depois estendeu para Will e Drake. – Isto não é couro. A capa é de pele, pele humana.

– Tu-do bem. – Drake suspirou. – Imagino que isso dê o tom dele.

Eddie abriu o livro e virou cuidadosamente as páginas, que farfalhavam como folhas velhas.

– Ah, aqui está. – Ele virou o livro para que Will e Drake vissem a ilustração, uma xilogravura rudimentar.

Retratava um homem deitado no chão, seu corpo inchado e desfigurado, enquanto o rosto fino de uma mulher pendia sobre ele. O resto do corpo da mulher estava parcialmente oculto pelas sombras e era difícil de distinguir.

Will semicerrava os olhos para a imagem.

– Parece que ela está criando asas nas costas... Mas isso devem ser as pernas de insetos de que você falou.

– Exatamente. – Eddie girou o livro novamente e olhou a página de texto meticulosamente escrito. – Este é um registro de nossa última Fase. Documenta o que aconteceu em meados do século XV na Romênia – disse ele a Will e Drake. – Foi durante o reinado do príncipe da Valáquia, que alcançou a notoriedade pelo massacre indiscriminado de p...

Will não conseguiu deixar de se intrometer:

– Vlad... Meu pai me falou sobre ele. Está falando de Vlad, o Empalador, não é?

– Sim. E o folclore que o cerca deu origem às improváveis histórias e filmes de vampiros que parecem tão na moda atualmente. Mas a realidade é um tanto diferente... A realidade é que nossa Fase iniciou o mito. Veja bem, o príncipe nos ofereceu proteção, compreendendo que em troca eliminaríamos os boiardos, seus arqui-inimigos. A parte dele no trato foi fornecer um local seguro para que ocorresse a Fase... E um amplo suprimento de corpos humanos.

– Posso apostar que ele deu mesmo. Meu pai disse que ele matou milhares, depois os assava, esfolava e decepava braços e pernas – lembrou-se Will. – E ele gostava de prender as cabeças em estacas.

– Isso era apenas fachada para desviar a atenção do que estávamos fazendo – disse Eddie. – O príncipe na realidade era um homem muito culto e nobre.

Drake franzia a testa.

– Deixa eu entender isso direito. Se houve uma Fase no século XV... então... o que aconteceu? Não estamos todos mortos nem escravizados. Então, o que deu errado?

– O príncipe nos renegou – disse Eddie. – Foi convencido por seus bispos de que éramos ímpios e que tínhamos de ser detidos. Assim, ordenou que seus cavaleiros invadissem as catacumbas do palácio, onde a Fase ocorria. Nossa Classe Guerreira recém-desovada ainda estava ou no estágio de larva ou de pupa, e assim os cavaleiros não encontraram resistência, cortando-os em pedaços e queimando os restos. Na realidade, a única resistência foi de nossas mulheres, mas os cavaleiros por fim as encurralaram em uma extremidade das catacumbas, onde as mataram. – Eddie quase sorriu ao acrescentar: – Assim, em vez de retratá-lo como um déspota cruel, a história deveria reconhecer Vlad... o chamado Empalador... como um de seus maiores salvadores. A ironia é que ele salvou toda a humanidade.

Drake estalava os dedos ao absorver isso.

– Então, o que você está dizendo é que forças convencionais... apenas com armas rudimentares... impediram a Fase? Quer dizer, com equipamento moderno, não deve ser problema.

– Se... e somente se... você descobrir onde está ocorrendo a nova Fase e destruir a Classe Guerreira antes que ela se espalhe. Antes ou durante o estágio de pupa.

– Por quê? – interrompeu-o Drake.

– Porque a Classe Guerreira também pode se reproduzir. Quando eles saem, assumem números...

– Exponenciais – interveio Drake. – Então eles são machos e ainda assim podem se reproduzir. – De repente lhe ocorreu uma pergunta: – Mas por que esta nova Fase está acontecendo justo agora?

– Como eu disse, alguns fatores devem estar presentes antes que a Fase seja incitada e nem nossos estudiosos sabem exatamente quais são. Talvez um dos fatores seja simplesmente nosso relógio biológico. O momento era... – Eddie se interrompeu, corrigindo-se: – é o certo. E sei disso porque posso sentir, como podem todos aqueles Limitadores que me procuraram.


Capítulo Oito


Com o capitão Franz parado atrás delas feito um manequim, as gêmeas Rebecca olhavam um monitor de segurança enquanto Hermione e as outras mulheres Styx prosseguiam pelos humanos, impregnando-os com bolsas de ovos.

Rebecca Dois viu atividade nos portões da fábrica em outro monitor.

– Chegou a entrega de comida – observou.

– Já não era sem tempo. Aposto que as irmãs estão famintas. Veremos se podemos ativar essa coisa – disse Rebecca Um, apertando as teclas de função no teclado até encontrar a imagem que procurava. – Aqui está. – O caminhão articulado dava a ré na baia de descarga. Assim que parou, a carreta foi aberta e um esquadrão de neogermanos retirou apressadamente seu conteúdo e colocou numa série de carrinhos de mão. – Comida sobre rodas – brincou a gêmea. – You are my Sunshine. – Ela começou a cantar em voz baixa enquanto retornava para a câmera no espaço vaporoso do interior da fábrica. Usando o joystick no painel de controle, ela deu um zoom nas portas de comunicação da área de descarga. Em menos de um minuto, as portas se abriram e entraram dois neogermanos com carrinhos de mão cheios. Atrás deles, um Limitador montava guarda na entrada.

Sentindo o cheiro da comida, uma horda de mulheres Styx espreitava junto às portas.

Rebecca Um riu com malícia.

– Isso deve ser bom.

Vane precipitou-se sobre um dos neogermanos, agarrando-o no chão com uma velocidade espantosa. O resto das mulheres imediatamente se jogou em cima dele e do outro soldado, dilacerando seus corpos. Eles foram submetidos a tanta Luz Negra que nada fizeram para revidar.

– Creio que prometemos carne fresca a nossas irmãs. – Rebecca Dois refletiu enquanto olhava a carnificina. – Não pode ser mais fresca do que isso.

Nem o Limitador escapou da atenção das mulheres.

– Que louco! – exclamou Rebecca Dois.

Como uma aranha atacando, Vane se deslocou com uma velocidade tão fenomenal que o rastro que deixou no monitor de segurança não passava de um borrão.

Em um único salto, alcançou o Limitador antes que ele entendesse o que estava acontecendo, açoitando seus olhos com as pernas insetoides. Cambaleando às cegas, ele tentou usar o fuzil para rechaçá-la, mas Hermione já estava em suas costas, cravando os dentes no pescoço.

– A fêmea da espécie é sempre a mais mortal – disse Rebecca Um em voz baixa.

– Ha! Aquelas duas! – Rebecca Dois assistia e gargalhava. Vane e Hermione retalhavam o soldado Styx, membro por membro, enquanto outro Limitador em pânico rapidamente trancou as portas para a oficina atrás delas. – Tão seletivas com o que comem.


Enquanto o Bedford vagueava pelo rio, o nível da água foi diminuindo, até que enfim seus pés não estavam mais imersos. Depois os pneus do caminhão rodaram ao subirem a margem e eles estavam de volta a uma espécie de trilha.

Passado um tempo, Chester sentiu uma pressão no braço. Stephanie tinha cochilado, encostando a cabeça nele. Com o cuidado de não perturbá-la, ele pegou sua lanterna, cobrindo a luz com a mão para ver a hora em seu relógio. Antes de apagar a lanterna, seu facho bruxuleou sobre Elliott, sentada de frente para ele. Ela estava bem desperta e olhava para ele e Stephanie. Podia ser uma criação do ângulo do facho de luz, mas sua expressão era amarga e grave.

Apesar de estar protegido pela escuridão, Chester se sentiu ruborizar, como se tivesse sido apanhado fazendo algo que não devia.

Era verdade que ele não sabia como reagir ao interesse de Stephanie por ele, em particular porque supunha que se devia principalmente à falsa imagem que Will pintou de seus feitos como campeão de esqui.

E Chester estava sem jeito com o ritmo com que tudo avançava, como se fosse levado por um rio de verdade. A questão é que ele não sabia o que Elliott realmente sentia por ele, ou o que ele realmente sentia por ela. Havia ocasiões em que eles pareciam íntimos, porém, mais recentemente, durante sua estada na casa de Parry, ela se distanciou dele e de todos os outros.

Chester estava simplesmente confuso.

E ele ficou muito aliviado quando o Bedford enfim parou num rangido, o que acordou Stephanie.

– Onde estamos? – Ela bocejou, endireitando-se.

– Não sei – grunhiu Chester, ciente de que ainda devia estar sob o olhar atento de Elliott.

Com um estrondo, Parry abriu a traseira.

– Todos para fora – disse ele.

Seguindo o coronel Bismarck, Chester pulou do caminhão e descobriu que estavam sob um abrigo feito de folhas corrugadas e enferrujadas. Ele vagou alguns passos para a área aberta, semicerrando os olhos para o céu, onde a luz do amanhecer começava a lançar seus raios por entre as nuvens.

– Que surpresa... Está chovendo – reclamou, piscando para o chuvisco que caía nos olhos.

– Este é um Morris Minor! – anunciou o sr. Rawls, e Chester virou-se para ver o carro antigo escondido atrás do caminhão. Parecia uma uva muito grande e madura demais, não só devido a seu formato globular, mas pela oxidação opaca na pintura.

– É de Danforth – informou-lhes Parry. – Pelo menos ele chegou sem contratempos.

Depois que pegaram o equipamento, todos seguiram Parry por um caminho cercado dos dois lados por uma mata densa. Chester percebeu que Elliott tinha parado e fazia uma careta enquanto esfregava o ombro sob a alça da Bergen. Preocupado, ele voltou até onde ela estava.

– Está tudo bem? – Ele colocou a mão em seu braço.

Ela deu um salto, afastando-se dele, depois o olhou nos olhos.

– A Stephanie é muito bonita. Você nunca me disse que tinha conhecido alguém na casa de campo.

– Eu... Er... Achei que isso não importava – gaguejou Chester. – E na verdade eu não a conheço.

– Eu, sim – respondeu Elliott. – Ela é tudo o que eu queria ser. E tudo que odeio em mim mesma.

Chester não sabia como responder a isso, mas Parry tinha visto que os dois não os estavam acompanhando.

– Rápido, vocês dois! – chamou Parry, continuando a andar pela trilha.

Alguns minutos depois, Chester viu um terreno aberto diante deles.

– Temos de apressar o passo por aqui – insistiu Parry.

Eles saíram em uma ravina ao pé de uma montanha, que em grande parte era coberta de relva e vegetação de pasto de ovelhas. Porém, mais para o alto, a terra sofrera a ação do clima e grandes lajes de pedra estriada projetavam-se altivas como os restos de fortificações antigas. Chester viu que a ravina os levava a uma fila de torres de eletricidade.

Parry reuniu todos em volta dele ao lado da ravina.

– Depois que chegarmos ao topo, ficaremos expostos. É muito improvável que tenha alguém no vale abaixo, mas, só por precaução, Wilkie vai mandar vocês atravessarem um de cada vez. Entenderam?


Todos assentiram e Parry sumiu de vista, subindo. Quando foi a vez de Chester, Wilkie lhe deu um tapa nas costas e o menino trepou pela lateral. Com o vento e a chuva no rosto, ele correu levemente os doze metros até Parry, agachado ao lado de duas estruturas na base da torre mais próxima. À medida que se aproximava, Chester percebeu que havia dois transformadores atarracados e pintados de cinza, de aproximadamente dois metros quadrados, cobertos de dissipadores. Acima, havia o que pareciam ser traves de gol alongadas, das quais se estendiam cabos até a torre no alto.

Os dois transformadores ficavam no interior de uma cerca de tela encimada por arame farpado. Parry conduziu Chester por um portão na cerca para que ele se juntasse ao pai e a uma Stephanie muito de saco cheio.

– Isso não está mais legal – disse ela, com a água pingando da ponta do nariz.

Por fim, enquanto o Velho Wilkie se juntava a eles por dentro da cerca, Parry avançou ao mais próximo dos transformadores, que emitia um zumbido constante. No transformador, uma placa alertava: Risco de vida. Mantenha distância. Alta voltagem mortal, com raios de cada lado de uma caveira vermelha e ossos cruzados.

– É mesmo perigoso – disse Parry, colocando a mão na estrutura. Houve uma chicotada da descarga de eletricidade. O cabelo de Parry ficou eriçado, apesar de estar molhado. Sua aparência teria sido cômica se todos não pensassem que ele estava sendo eletrocutado.

Mas ele não sofria mal nenhum.

– Não há nada com que se preocupar – Ele riu. – Uma descarga eletrostática para afastar os curiosos. – Ele selecionou um dos dissipadores na lateral do transformador e acionou uma chave, abrindo uma escotilha deslizante.

Todos passaram abaixados pela escotilha, entrando numa câmara claustrofóbica. Parry usou a lanterna para enxergar enquanto apertava uma série de dígitos em um teclado pequeno. No momento em que terminou, piscou uma luz vermelha no alto de uma grade, ao lado do teclado. Dela veio uma voz de homem com o comando: “A sequência principal.”

– Você sabe muito bem quem eu sou. Temos mesmo de passar sempre por essa farsa? – respondeu Parry, irritado.

– Claro que temos – rebateu a grade, acrescentando “senhor”, como se pensasse melhor.

Parry bufou e recitou:

– Dorme a besta no fundo da montanha até o chamado do reino, e erguer-se-á ela a mando do rei.

– Confirmado – disse o painel. – Agora a sequência catorze, por gentileza, senhor.

Parry pensou por um instante.

– Há um prazer nas florestas desconhecidas, um entusiasmo na costa solitária, uma sociedade onde ninguém penetra...

– E a sequência 8, por favor – interrompeu a grade.

– Estamos todos congelados até a medula, famintos e exaustos. Se você não abrir, Finch, vou entrar no Complexo à força – ameaçou Parry.

Houve uma pausa, depois algo estalou ao lado do painel e apareceu um fio de luz.

– Enfim! – exclamou Parry, empurrando a porta e a abrindo para que eles pudessem descer uma rampa de corrimão enferrujado. Eles foram a uma sala de teto baixo.

– Esta é a única entrada e saída do Complexo – disse Parry, apontando com a cabeça uma porta de aparência sólida que aparecia à luz da lanterna. – Ela é blindada – disse ele. – É preciso uma tonelada de explosivos para fazer até uma marca nesta porta. – Depois ele apontou para fendas do tamanho de pistolas em painéis de metal cinza instalados nas paredes de concreto que flanqueavam a porta. – E atrás destes ficam as duas salas da guarda, onde os sentinelas ficariam estacionados – continuou ele.

– O que exatamente é este lugar? – arriscou-se o sr. Rawls.

– O Complexo foi a base da Operação Guardião – respondeu Parry. – É tão secreto que eles lá em cima devem ter se esquecido do que pretendiam e até de sua existência.

– Então é como o abrigo nuclear que Will encontrou? – perguntou Chester.

– Não, é mais do que isso. Nos anos anteriores à Primeira Guerra, os aristocratas que mandavam no país concluíram que precisavam de um lugar seguro. Um lugar onde colocar suas famílias e bens valiosos e portáteis, na eventualidade de uma invasão. Assim, construíram o Complexo com seu próprio dinheiro... Suponho que você pode considerá-lo um castelo subterrâneo para os muito ricos. Mais tarde, quando as coisas ficaram complicadas para nós na Segunda Guerra Mundial, o Gabinete de Guerra o tomou, e expandiu seu papel para incluir um centro de comando para a Resistência.

– A Operação Guardião? – adivinhou o sr. Rawls.

– Exatamente. Cada cidade no sudeste e em toda região metropolitana, de todas as Ilhas Britânicas, tinham suas próprias equipes de Resistência pré-recrutadas esperando sua oportunidade. Os historiadores lhe dirão que no momento em que os alemães atravessassem o canal, cada equipe abriria suas ordens lacradas e as seguiriam ao pé da letra.

Parry lançou um olhar ao coronel Bismarck, que meramente assentiu.

– Mas o que os historiadores não sabem é que essas equipes não eram inteiramente autônomas. As principais iniciativas seriam orquestradas da sala de operações táticas bem aqui no Complexo, conhecida como o “Centro”. Ainda existe e ainda a chamamos assim.

– E para que o Complexo é usado agora? – perguntou o sr. Rawls.

– É mantido em bom funcionamento para alguma necessidade em algum momento do futuro – respondeu Parry. – E imagino que essa hora chegou.

Ele parou de falar enquanto todos ouviam um tinido. Parecia vir de trás da porta blindada, embora fosse difícil saber, porque era distante demais. O som voltou, só que desta vez mais alto, depois se repetiu mais algumas vezes.

E então a porta grande diante deles se abriu lentamente. Chester e o coronel Bismarck acenderam as lanternas para a passagem quadrada, de paredes pintadas de creme e o piso de um verde ceroso. Mas os fachos de luz não penetravam muito além e havia ali uma escuridão agourenta e ininterrupta.

Então eles viram luzes se acenderem ao longe.

– Que tamanho tem isso? – perguntou Chester, semicerrando os olhos para as luzes.

Parry não respondeu e outras lâmpadas acenderam, aproximando-se cada vez mais.

Eles ouviram um zumbido de algum lugar na parte não iluminada da passagem.

– O que é isso? – perguntou o sr. Rawls, recuando, preocupado.

– O último sobrevivente da Cavalaria de Proteção. – Parry riu.

As luzes fluorescentes aproximavam-se da sala onde todos estavam à espera.

No mesmo instante, um idoso em uma scooter elétrica entrou diante deles, parando com um guincho de derrapada no piso de linóleo.

Stephanie riu.

Atrás dele, mais de uma dezena de gatos, de cores e idades diferentes, andavam pela passagem, correndo para acompanhá-lo.

– Sargento Finch – disse Parry, aproximando-se para dar um aperto de mãos caloroso no velho. Como se de algum modo tivesse encolhido, a boina marrom-clara do sargento Finch parecia ser bem maior do que sua cabeça, caindo sobre as sobrancelhas brancas e bastas. Ele vestia um cardigã cáqui e havia um par de muletas metido em uma alça na traseira da scooter.

– Comandante, é muito bom revê-lo, senhor. – O sargento Finch sorriu. – Peço desculpas por não me levantar, mas minhas pernas não são mais as mesmas.

– As suas e as minhas – disse Parry, erguendo a bengala.

O sargento Finch olhou para um gato que tinha se colocado à vontade entre seus pés na scooter.

– E peço desculpas pelas formalidades na entrada. Sabe que devo seguir o protocolo.

– Claro que deve – garantiu-lhe Parry.

O sargento Finch passou a vista por todos. Mas seu olhar caiu em Colly, que deu vários passos inseguros de trás da sra. Burrows para farejar um dos gatos mais corajosos.

– E isso não é um cachorro, é, comandante? Não posso ter um cachorro solto por aqui. Não com meus g...

– Não se preocupe... Ela também é um gato. Só que dos grandes – falou a sra. Burrows.

Era estranho ver Colly assomando sobre os outros gatos, que, sentindo o cheiro de um deles, rapidamente venceram o medo. Começaram a andar em volta da felina, esfregando-se nela e miando.

– Mas o que vão inventar agora? – exclamou o sargento Finch. – Não fazia ideia de que criavam gatos assim no mundo! – Balançando a cabeça, ele se curvou para a frente em seu assento para pegar pranchetas e um lote de esferográficas baratas no cesto preso ao guidom. – Vamos começar pelo começo. Preciso que cada um de vocês assine este formulário em três vias antes que eu dê permissão para prosseguirem.

Parry fez uma careta.

– Ah, sim, esqueci de toda a papelada.

– E o que é isso? – perguntou o sr. Rawls enquanto pegava uma prancheta e passava os olhos pelo formulário.

O sargento Finch sacudiu o dedo para ele.

– Não, não, senhor... Não pode ler. Não tem permissão para ler. É a LESO... Lei Especial de Segredos Oficiais – explicou ele.

– O quê? – explodiu o sr. Rawls. – Se não posso ler, como vou saber com o que estou concordando?

– Não saberá – disse Parry, sorrindo. – É tão confidencial que você só tem permissão de ler depois de ter assinado.

– Que coisa esquisita – murmurou o sr. Rawls, pondo sua assinatura e virando para as vias seguintes na prancheta.

Depois que todos completaram os formulários obrigatórios, para satisfação do sargento Finch – inclusive a sra. Burrows, que precisou de ajuda para saber onde assinar –, todos os seguiram pela passagem. Tinha várias centenas de metros de extensão e pelas laterais havia prateleiras de capacetes de metal amassados, máscaras de gás, bicicletas que pareciam datar dos anos 1940 e rádios igualmente antiquados em mochilas de lona.

Ao prosseguir, o sargento Finch usava um controle no guidom de sua scooter para ativar as portas da seção na passagem atrás deles. Apertando cada botão vermelho numerado, outra placa pesada de metal correu, com o tinido que eles ouviram antes, lacrando a saída.

– E então, Danforth já está aqui? – perguntou Parry.

– Sim, o professor está no Centro, senhor – respondeu o sargento Finch. – Conectando suas novas engenhocas.

Parry assentiu.

– É melhor vermos o que ele está fazendo.

– Sim, senhor – reconheceu o sargento Finch, as rodas da scooter guinchando no piso de linóleo enquanto ele ganhava velocidade pelo leve declive. Colly trotou rapidamente para a frente do contingente humano, com todos os gatos reunidos atrás dela como uma manada. A Caçadora parecia estar mais animada do que se via há muito tempo, mais provavelmente devido a um gatinho brincalhão que tentava pular nela, estendendo as garras mínimas.

Danforth mal levantou a cabeça quando eles entraram no Centro, hipnotizado pela tela de seu laptop.

– Precisa ver isso – disse ele. – É o principal assunto em todos os canais americanos.

O Centro era um grande espaço circular e no meio havia cinco séries de mesas compridas, em que se viam antigos telefones e pranchas de carvalho pontilhadas de mostradores deselegantes. Em todo um lado do Centro havia telas de Perspex que se estendiam do chão ao teto, em que vários mapas das Ilhas Britânicas foram pintados com contornos pretos e sólidos. Chester andou para uma delas, que mostrava o Sul da Inglaterra e o outro lado do canal, o litoral francês.

Danforth estava no ponto mais distante da sala. De um painel na parede ao lado dele derramava-se um espaguete emaranhado de cabos, que contorciam enquanto ele mexia em alguma coisa atrás do laptop.

– Se eu conseguir que este lixo inútil funcione – murmurou ele, gesticulando para um telão no alto da parede –, poderemos ver em glorioso tecnicolor.

A tela de repente foi tomada de linhas irregulares que se moviam rapidamente.

– Quase lá – disse Danforth enquanto a imagem de uma pessoa surgia da estática, depois desaparecia de novo. Mudando um ajuste no laptop, Danforth anunciou: – E se aplicarmos uma leve atenuação... Pronto!

– A CNN? – perguntou Parry, franzindo a testa para a imagem na tela, um apresentador atrás de uma mesa, embora ainda não houvesse som nenhum. – É isso que quer que vejamos?

– Sim – respondeu Danforth. – A matéria está passando em todos os canais de notícias por toda a América. CNN, Fox, ABC... Pode escolher.

O sargento Finch estava boquiaberto para a imagem.

– Isso é a TV? Eu nunca tive uma TV aqui embaixo.

– Toda a torre de eletricidade lá em cima foi projetada para ser uma potente antena de rádio, mas também há algumas antenas de satélite escondidas nela. Consegui me conectar em uma delas – disse Danforth. – E... com um pouco da engenhosidade de Heath Robinson... enfim... teremos som. – Ouviu-se um guincho de furar os tímpanos vindo dos alto-falantes nas paredes enquanto ele fazia outro ajuste no laptop.

Todos se reuniram diante do telão, exceto pela sra. Burrows, que, ajoelhada ao lado de Colly, mantinha longe dela o gatinho muito entusiasmado.

O âncora tinha uma expressão severa. Só agora o Departamento de Segurança Nacional liberou os detalhes da explosão que matou três integrantes do Senado e outras quatro pessoas na frente de um prédio do governo no Capitólio ontem à noite. Circularam relatos errôneos de que um carro-bomba foi responsável pela explosão.

Apareceram imagens de militares americanos tripulando uma barricada pela rua. Em seguida, a câmera deu um zoom, passando por eles e fechando um close em vários carros incendiados, em torno dos quais se reuniam peritos com traje forense.

Mas agora se sabe que não foi assim. Imagens de câmeras de segurança revelaram que o dispositivo explosivo foi carregado por um homem de meia-idade, que parece ter agido sem cúmplices. O âncora voltou à tela. Algumas horas atrás, em um comunicado à imprensa, a Segurança Nacional liberou esse pronunciamento.

Uma mulher numa plataforma, com um mar de repórteres na sala comprida diante dela. O suposto homem-bomba foi identificado como um cidadão americano. Uma onda ruidosa de surpresa percorreu os repórteres enquanto eles levantavam as mãos. Por favor... Permitirei as perguntas daqui a pouco, disse a porta-voz, esperando que os repórteres voltassem a se aquietar. Obrigada, continuou a mulher, enquanto o clamor diminuía. Identificado como cidadão americano, residente no Reino Unido nos últimos cinco anos, onde trabalhava em documentários para a TV.

A sra. Burrows ficou de pé.

Foi divulgada uma fotografia recente do suposto homem-bomba, continuou a porta-voz, e uma imagem apareceu na tela.

– Conseguem vê-lo? Podem descrevê-lo? Por favor! – pediu a sra. Burrows, ansiosa.

Todos no Centro a olharam, exceto Parry.

– Final dos trinta anos, uns oitenta quilos, cabelo cacheado meio comprido, barba... – começou Parry.

– Ben. – A sra. Burrows ofegou, percebendo que tinha que ser o produtor de TV americano com quem ela fez amizade em Highfield.

Parry não precisou completar a descrição porque a porta-voz continuou: De acordo com os registros de passageiros do aeroporto JFK, Benjamin Wilbrahams chegou em um voo de Londres nas primeiras horas da manhã de ontem, em seguida pegou um táxi do aeroporto até Washington, D.C. Embora todos os voos comerciais de partida e chegada ao Reino Unido estivessem suspensos na última quinzena, Wilbrahams estava em um dos aviões de repatriação especiais da força aérea americana. Foi submetido a uma verificação de segurança completa antes de subir a bordo. Embora não fosse detectado um dispositivo em sua bagagem nem em sua pessoa, acredita-se que ele pode tê-lo escondido dentro do corpo, da mesma forma que os casos de bombas-humanas despachadas da Inglaterra para outros países europeus, numerosos demais nas últimas semanas.

Os repórteres da coletiva na sala comprida agora estavam em completo silêncio.

O apresentador do estúdio reapareceu na tela. Depois do desastre com um vazamento de petróleo na Costa Leste, a hostilidade para com os britânicos nunca foi mais aguda do que no último ano. E esse incidente, em que um de nossos próprios cidadãos de algum modo foi coagido a perpetrar um ato horrendo de terrorismo em solo americano, levou o sentimento antibritânico a uma nova alta. Houve manifestações na frente da embaixada britânica em Nova York e em vários consulados britânicos pelo país.

A imagem trocou para uma multidão agitada, erguendo placas.

Nossos filhos americanos deram a vida para ajudar a Inglaterra a conquistar a Alemanha na última guerra. E isto... É assim que eles retribuem!, um homem estava furioso, brandindo o punho para a câmera.

Vejam só todas as facções terroristas que eles deixaram entrar em seu país. Isso tinha de acontecer... Era só uma questão de tempo, disse outro homem.

E então uma mulher começou a entoar: Bomba nos ingleses! Bomba nos ingleses!

– Muito inteligente. Os Styx estão cuidando para que não haja ajuda nenhuma de nossos primos do outro lado do Atlântico – disse Danforth.

– Já basta – decidiu Parry. – Desligue.

A tela escureceu e todos se viraram para a sra. Burrows.

– Eles usaram o Ben. Ele deve ter sido submetido à Luz Negra até o esquecimento – disse ela em voz baixa, de cabeça tombada. – Ele não merecia morrer desse jeito.

Parry deu um pigarro, pouco à vontade. Trocando um olhar com o Velho Wilkie, ele foi até Stephanie.

– Acho que é hora de você e eu termos uma boa conversa.

Stephanie não respondeu com sua exuberância estridente habitual, em vez disso assentindo mansamente. Chester teve uma onda de solidariedade pela menina – era evidente que ninguém ainda lhe falara da gravidade da situação.

– E vocês acompanhem o sargento Finch até seus aposentos – disse Parry. – Pelo menos ficarão confortáveis aqui... A ala dos alojamentos no nível inferior não é muito diferente de um hotel cinco estrelas.


Capítulo Nove


Will nunca viu Drake tão preocupado, enquanto ele desviava os olhos para a cara de Eddie e falava.

– Me diga uma coisa. Como você tem certeza de que essa tal Fase está realmente acontecendo? Algum de seus homens viu com os próprios olhos? E onde está acontecendo? – Ele fez uma pergunta rapidamente depois de outra.

– Oh, certamente está acontecendo, mas não sabemos onde – respondeu Eddie. – Se você é um Styx, é a força mais poderosa que já encontrou... Pode sentir com cada célula de seu corpo. Todos os meus homens sentem. Há algum tempo já sabíamos que estava a caminho. E as mulheres Styx, onde quer que estejam, terão sentido muito antes de nós. O impulso é muito mais poderoso nelas. É um chamado irresistível e dominador para a reprodução. É... – Eddie se interrompeu ao escolher o jeito certo de se expressar – ... É como se um toque de clarim fosse transmitido pelo ar... Um gatilho químico.

– Feromônios – sugeriu Drake, puxando o ar.

Eddie estava tão imerso em pensamentos que nem ouviu.

– O gatilho instiga... coordena... a Fase, quer a pessoa queira, quer não. Nossas mulheres se transformam em algo diferente, algo apavorante. E o que elas desencadeiam... a Classe Guerreira... zera qualquer espécie que não considerem estoque de comida. Abaixo o velho.

– Inclusive nós? – disse Drake.

– Sim, será erradicada qualquer forma de vida que represente até a ameaça mais remota ao domínio Styx. E isso significa que está aberta a temporada de caça a todos os humanos. – Pegando um movimento do lado de fora do Humvee, Eddie notou um esquilo vermelho que disparava por um tronco de árvore. Ele apontou. – Da mesma forma que essa espécie uma vez foi dominante, antes que a variedade cinzenta a expulsasse.

– Mas essa Classe Guerreira de que está falando... Eles ainda são apenas de carne e osso. Mesmo que seja uma espécie de megalimitadores, o povo da Crosta, bem armado, pode impedi-los, não pode? – perguntou Drake. – Em particular se nós nos organizarmos.

– Esse é um se monumental. Eles prosperam no caos. Eles são o caos. E se você lutar com eles e de algum modo conseguir uma vantagem, existe a possibilidade de um segundo estágio.

– Acho que não quero ouvir isso. – Drake gemeu enquanto Eddie procurava por uma página no Livro da Proliferação, estendendo-o para ele.

– Mas o que é isso? – perguntou Will.

A xilogravura ocupava uma página inteira, mas era dividida em três quadrados, que mostravam o céu, a terra e, no canto inferior direito, uma área de água coberta de espuma e ondas, que provavelmente pretendia sugerir o mar. E em cada um dos quadrados havia criaturas inexplicáveis. Além dos dentes e das garras mortais, o único aspecto que as criaturas tinham em comum era que o artista tentou mostrar que seriam transparentes ou quase transparentes. Tirando isso, cada criatura parecia estar adaptada para seu ambiente; a superior com duas séries de asas como de morcegos, a do meio com três pares de pernas e a aquática com nadadeiras.

– Se tudo o mais falhar, o sucesso da Fase é garantido por isso – disse Eddie. – Este é o apoio... Este é o Armagi.

– O Armagi? – repetiu cautelosamente Drake.

– É a raiz da palavra Armagedon, que não tem nada a ver com um lugar onde acontecerá uma última batalha mítica, como professam muitos credos entre vocês. Mas é uma espécie de fim... O fim da época humana na Terra – disse Eddie.

– Uma espécie de fim? – repetiu Will, quase querendo rir, porque não conseguia lidar com o que ouvia.

– Segundo nossas lendas, o Armagi está continuamente adaptando organismos, capaz de regenerar todo um novo corpo a partir do menor fragmento de tecido. Você pode pegar um e dará origem a uma legião. Em termos científicos, pode descrevê-los como agregados inteiros de neoblastos, com a capacidade de se diferenciar em qualquer configuração de máquinas genocidas necessárias em determinada época. – Eddie fechou o livro com certa força. – Assim, mesmo que você consiga dar fim ao primeiro ato... à Classe Guerreira... o segundo ato levará a casa abaixo. Sem saber, os cavaleiros de Vlad, o Empalador, evitaram o Armagi porque cremaram cada célula viva quando incendiaram as catacumbas.

– Então temos de alcançar a Classe Guerreira antes que ela seja capaz de se dispersar. E também usaremos o fogo – raciocinou Drake. – Cremaríamos tudo... Os Guerreiros e as mulheres Styx.

– Sei que você pode não ver importância em nada disso, mas posso fazer uma pergunta? – manifestou-se Will.

Eddie assentiu para ele.

– É por isso que as Rebeccas têm tanto poder sobre os Styx?

– Todas as nossas mulheres têm ascendência sobre os Styx homens, mas as gêmeas Rebecca são de nossa família governante.

– Tudo bem... E... humm... – começou Will, mas pareceu pouco à vontade com o que queria dizer.

– Fale – encorajou Drake.

– Bom... Onde tudo isso deixa a Elliott? – perguntou o menino.

Eddie o olhou inexpressivamente.

– Onde a deixa? Sinceramente, não sei. É claro que ela é o que os colonistas chamam sem nenhuma generosidade de “bebê do ralo”, porque é um híbrido, parte humana, parte Styx. Mas qual genótipo é dominante, não sei dizer. Só o que posso afirmar é que ela deve ser mantida em isolamento, se a Fase a estiver afetando de alguma maneira. Ela será um perigo para qualquer um perto dela.

Will engoliu em seco, nervoso.

– Tudo bem. – Ele preferia não ter perguntado nada.

Sweeney ainda vigiava os Limitadores quando Will voltou ao vau. Os soldados estavam de pé precisamente no mesmo lugar e somente a sra. Rawls tinha se mexido. Estava sentada na margem, com as pernas esticadas.

– Então, acabou a conferência. Qual é a fofoca? – perguntou Sweeney.

– Você nem acreditaria se eu contasse – respondeu Will.

Sweeney tocou as linhas junto de sua orelha.

– Na verdade, peguei a maior parte. Que doido.

– Pegou? – Will olhou por sobre o ombro enquanto estimava a distância do Humvee. – Mas deve ter... o que... uns trinta metros?

– Moleza. – Sweeney sorriu.

Ao se virar, Will de repente teve consciência de oito pares de olhos de Limitadores nele. Agora sabia o que eles sabiam. Ele tossiu, pouco à vontade.

– Então você ouviu que Drake quer partir agora mesmo... E ele vai levar Eddie conosco em um de seus Humvees – disse a Sweeney.

Sweeney projetou o queixo para a fila de Limitadores.

– Claro, mas o que vamos fazer com esse bando patético?

– Deixar eles irem.

– E então agora eles são nossos camaradas? – O grandalhão sorriu.

– Acho que sim – respondeu Will, virando-se para os Limitadores. – Eddie quer vocês em Londres, esperando lá pelas ordens dele. Disse que vocês devem pegar um jipe e os outros Humv... – Ao olhar a trilha para o segundo veículo, ele distinguiu o corpo do Caçador no capô. Sua mente de repente ficou vazia.

– Você estava dizendo o que mesmo? – incitou-o Sweeney delicadamente.

– Bartleby. – Foi só o que o menino conseguiu pronunciar enquanto lançava um olhar indefeso a Sweeney.

Sweeney assentiu, depois se voltou aos Limitadores.

– Escutem, todos vocês, zumbis nojentos. Vão fazer o que é decente e dar ao gato desse camarada um enterro digno, quero uma cova bem cavada... No capricho. Vocês lhe devem essa. – Sweeney pegou o olhar de Will. – Tudo bem?

Will assentiu, agradecido.

Sweeney apontou para a sra. Rawls com o polegar.

– E a potranca ali?

A sra. Rawls abriu a boca para protestar por ele ter se referido a ela desse jeito. Evidentemente ela pensou melhor e preferiu lançar a Sweeney um olhar homicida.

– A sra. Rawls virá conosco – disse Will, depois foi pegar sua Bergen no jipe, bem como duas bolsas de viagem que Drake deixara para trás.

Depois que ele voltou, Sweeney estendeu o braço.

– Me deixa pegar esse peso – disse ele, enganchando a Bergen e as bolsas nos dedos e retirando de Will como se não contivessem nada além de plumas. – E você talvez queira de volta sua espingarda de chumbinho – acrescentou ele, passando-lhe a arma. Embora Sweeney não tivesse mais uma arma apontada para a sra. Rawls, Will percebeu que ele teve o cuidado de ficar perto dela enquanto eles andavam.

– Will – disse a sra. Rawls –, agora que acabou a pose de machão, quero saber de minha família. Ninguém me disse nada sobre Jeff e Chester, mas imagino que os dois estejam num lugar seguro. É isso mesmo?

– Eles certamente estão – garantiu-lhe Will. – E nós vamos nos juntar a eles em breve.

– Obrigada – disse a sra. Rawls, parecendo aliviada.

Mas no momento em que eles chegaram ao Humvee, Drake pegou uma das bolsas de Sweeney e se aproximou da sra. Rawls.

– Emily, ou continuarei a tratá-la como potencialmente hostil e a manterei amarrada, ou posso fazer um check-up para me certificar de que você não foi submetida à Luz Negra. Você escolhe.

A sra. Rawls tombou a cabeça para Will e lhe abriu um sorriso.

– Eu estava enganada sobre a pose de machão. Lá vem ela de novo. – Depois se virou para Drake. – Não quero estar amarrada quando encontrar minha família. Faça o que precisa fazer.

Drake tirou de dentro da bolsa um pequeno dispositivo. Parecia um par de óculos conectados por cabo a um cilindro pequeno.

– Danforth fez isso? – perguntou Will.

– Sim, o novo Descontaminador de Bolso aperfeiçoado – respondeu Drake. – Sei que já disse isso mil vezes, mas o homem é um gênio.

– Certamente é – disse Sweeney. – Ele se ofereceu para fazer uma revisão geral na minha caixola, como se eu fosse seu maldito Moggy Minor.

– Bom, sem dúvida ele miniaturizou o descontaminador original – observou Will.

Drake assentiu.

– Will, preciso de você primeiro. – Ele estendeu o cilindro na frente do rosto do garoto.

– Eu? Para quê? – perguntou Will, cauteloso.

– Fique de olhos abertos e olhe o passarinho. – Drake apertou um botão no cilindro e um feixe de luz de um roxo intenso brilhou nas pupilas de Will.

De imediato ele reconheceu a cor; era idêntica à da Luz Negra, embora desta vez não tivesse efeito nenhum sobre ele. Ele semicerrou os olhos, mas apenas devido ao brilho da luz.

– E agora? – disse ele.

– Alguma coisa? – perguntou Drake. – Não sente nenhuma náusea, nem desconforto?

– Nada.

– Que bom – disse Drake, enquanto soltava o botão e a luz apagava. – Está vendo, você tem o controle. Não esperava nenhuma reação, o que prova que você está limpinho. Agora você, Emily. – Drake segurou o cilindro bem na frente dela e apertou o botão novamente.

Soltando um suspiro agudo, como se tivesse recebido um soco, seu corpo ficou rígido feito uma tábua. Sweeney usou suas reações rápidas como um raio para pegá-la antes que ela caísse.

Eddie observava os procedimentos atentamente.

– Tecnologia fascinante. Suponho que vocês desenvolveram com base em seu trabalho com minha Luz Negra. Mas eu lhe garanto, Drake... Eu não programei a Emily de maneira nenhuma.

– Não, talvez não você – disse Drake. – Mas tem alguma coisa rondando em sua cabeça. Não sei o que é e não posso correr o risco. Coloque-a no banco de trás, Sparks – disse ele a Sweeney. – Segure-a bem... Não quero que fique se debatendo e se machuque.

A sra. Rawls estava bastante desorientada quando Sweeney a levou para dentro do Humvee. Deslizando para o lado dela, ele passou o braço gigantesco por seus ombros.

– Firminha – confirmou ele.

Drake se curvou pela porta aberta do Humvee, com os óculos conectados ao dispositivo de Danforth em sua mão.

– É isto aqui que faz o truque – disse ele, verificando que os óculos estivessem bem encaixados sobre os olhos da sra. Rawls. – Eu quase esqueci... Não quero que ela morda a língua. Alguém tem um lenço?

– Tome – ofereceu Sweeney, tirando um trapo muito sujo de sua jaqueta de combate, que Drake dobrou várias vezes.

– Abra bem – instruiu ele à sra. Rawls. Ainda grogue, ela obedeceu a sua ordem, permitindo que Drake o colocasse na boca. – Agora procure relaxar. Isso não demorará muito. – Ele mexeu em outro comutador no cilindro e a luz roxa vazou pelas laterais dos óculos.

Will estremeceu com o grito gutural da sra. Rawls reverberando pela floresta.


O Segundo Oficial afivelava seu cinto Sam Browne enquanto se arrastava pelo corredor. Em vez de ir para casa, passou a segunda noite consecutiva em uma das celas da ala de interrogatório da central de polícia, dormindo em uma pilha de cobertores da prisão, amontoados nas lajotas frias. Ainda não perdoara a mãe e a irmã. Não depois de elas terem matado seu cachorrinho e servido a ele como cozido. Ao chegar ao final do corredor caiado e entrar na área de recepção, ele balançava os braços numa tentativa de se livrar da cãibra nos músculos.

– Olá – chamou, ao chegar e encontrar tudo deserto. – Senhor? Olá? Alguém?

Não houve resposta, então o Segundo Oficial ergueu a aba do balcão e foi até a porta da sala do Primeiro Oficial.

– Oh, o senhor está aqui – disse ele ao superior, que estava recurvado sobre a mesa, com a cabeça entre as mãos. – São as tripas, senhor? – perguntou o Segundo Oficial solidariamente.

– Não – respondeu o Primeiro Oficial depois de um instante, em seguida endireitando o corpo.

O Segundo Oficial se retraiu ao ver o rosto espancado do homem, um olho tão inchado que quase se fechava.

– O que houve? Quem lhe fez isso? Quantos eram?

– Foi no Cárcere. – O Primeiro Oficial suspirou. – Eu estava ajeitando os prisioneiros para a noite quando a porcaria da Mulligan partiu para cima de mim.

– Mulligan? – perguntou o Segundo Oficial. – Bill Mulligan... O fabricante de armários?

O Primeiro Oficial baixou a cabeça timidamente.

– Não, a mãe dele.

– Não pode ter sido a Banguela Mulligan – soltou o Segundo Oficial. – Mas ela tem, no mínimo, noventa anos! Como é possível que...?

– Eu sei – grunhiu o Primeiro Oficial, rolando a cabeça como se não conseguisse se livrar do vexame. – Ela estava resmungando sobre os Styx e... de repente... voou para cima de mim. Tem um gancho de direita tremendo também.

– A Banguela Mulligan – repetiu o Segundo Oficial. Ele ficou tão perplexo que arriou na cadeira diante da mesa do Primeiro Oficial. Não fora convidado a se sentar e, quando percebeu o que fizera, descobriu o superior semicerrando o olho bom para ele. – Ah, desculpe, senhor, eu não pretendia...

– Fique exatamente onde está – disse o Primeiro Oficial. – Sabe, Patrick, acho que chegamos a um ponto em que podemos abolir a etiqueta habitual.

O Segundo Oficial ficou assombrado pela segunda vez. Seu oficial superior nunca – nunca – se dirigiu a ele por seu nome de batismo. Até a família do Segundo Oficial o tratava como “Segundo Oficial”, em vez de usar seu nome – exigências das leis da Colônia.

– Eu... Eu... – gaguejou o Segundo Oficial.

– Isso não é hora de ser besta, Patrick – disse o Primeiro Oficial, pegando um cachimbo numa gaveta da mesa e abrindo a bolsa de tabaco. Também era terminantemente proibido fumar na central. – Vamos encarar a realidade. Metade da Colônia está morrendo de fome aos poucos em suas casas, enquanto a outra metade está desaparecida, Deus sabe onde – continuou o Primeiro Oficial, enchendo de tabaco o fornilho do cachimbo. – E a metade que morre de fome provavelmente acabará se matando na luta por qualquer migalha que conseguirem saquear das lojas de comida e...

O Primeiro Oficial usou o isqueiro de pederneira para acender o tabaco antes de continuar.

– ... E você e eu seremos apanhados bem no meio disso tudo. Uma bruxa desdentada... como a Mulligan... vai nos matar de cacetada com sua bolsa, e tudo por um bocado de carne de sapo salgada. – Ele tirou várias baforadas. – A piada, Patrick, é que nós é que ficamos para trás. Uma barreira se colocando numa onda de absoluta anarquia. Fomos apanhados entre a cruz e a caldeira. – Ele balançou a cabeça estoicamente. – Não, a perspectiva não é boa para nós, velho amigo. Não é nada boa.

O Segundo Oficial estivera entreouvindo enquanto se esforçava para se lembrar do nome de seu superior, mas não lhe vinha nada. Então percebeu algo, que disse o Primeiro Oficial:

– Senhor, o que disse sobre gente desaparecida? Houve algum incidente?

Como todos os outros, o Segundo Oficial ouviu boatos, mas tendia a acreditar que não passavam de mexericos e que as pessoas estavam em algum lugar nos cortiços que se esparramavam pela Caverna Norte.

O Primeiro Oficial piscou quando a fumaça vagou para seu olho bom, depois localizou um rolo de mensagem junto de seu cotovelo e empurrou pela mesa.

– O Quinto Oficial apresentou um relatório quando você estava descansando. Você e eu recebemos algumas queixas sem fundamento sobre cidadãos desaparecidos, mas isto é diferente. Trata-se de um dos nossos. Ninguém vê nem um fio de cabelo do Terceiro Oficial há vinte e quatro horas.

– Mas ele estava fazendo ronda no Norte – disse o Segundo Oficial, referindo-se à caverna rural. – Eu o vi não faz muito tempo. Ele não está lá agora n...?

– Ele não se apresentou para o serviço esta manhã – interrompeu o Primeiro Oficial. – E não esteve em casa. Dizem que aconteceu alguma coisa no Norte durante a noite e, o que quer que tenha sido, imagino que ele foi apanhado. Veja este decreto dos Styx. – Ele apontou para o rolo com a haste do cachimbo. – Estão nos negando acesso.

– Ao Norte? Somos proibidos de ir lá? Por quê? Somos oficiais da polícia.

O Primeiro Oficial assentiu.

– Muito irregular, não acha?

O Segundo Oficial leu a mensagem.

– Mas por que diabos os Styx imporiam uma ordem de restrição completa? – Ele se levantou com um bufo repentino de indignação. – Vou descer lá para ver com meus próprios olhos – decidiu ele por impulso.

– É mesmo? – disse o Primeiro Oficial, as sobrancelhas se arqueando em uma diversão desligada enquanto o tabaco forte começava a ter efeito em seus nervos tensos. – Então você é um homem mais corajoso do que eu, Patrick.

Ninguém apareceu para verificar as credenciais do Segundo Oficial enquanto ele se aproximava do Portão da Caveira, mas isso não significava necessariamente que ele não era observado por um Styx. Vinte minutos depois de passar por ali, ele chegou ao final do declive para a Caverna Sul, onde podia ver as ruas e as casas. O zumbido das estações de ventilação ressoava em seus ouvidos e parecia ser mais alto do que o de costume, como se fosse o único ruído em toda a cidade.

Mesmo quando ele entrou na área urbanizada, teve a sensação de que era a última pessoa na Colônia. Normalmente haveria alguém a essa hora da manhã na rua, a caminho de seu local de trabalho ou abrindo as lojas, preparando-se para o dia, mas agora as ruas estavam completamente desertas.

Apesar de não estar se entendendo bem com a mãe e a irmã, o Segundo Oficial ficou tão preocupado que passou em casa primeiro. Encontrando a porta da frente trancada, ele deixou cair a chave com estrondo no primeiro degrau ao tentar abri-la. Ao se curvar para pegar a chave e depois se levantar, novamente teve consciência de uma calma sinistra em volta dele.

De cortinas fechadas, a janela da casa do outro lado da rua era escura e hostil, como se muitos olhos negros o fuzilassem. Por um tempo, a rua fora lotada de neogermanos, mas os Styx desde então os levaram para a Crosta. Com o passar das semanas, ele soube que os soldados neogermanos foram mobilizados na madrugada, seus pés tamborilando em perfeito uníssono no calçamento. Mas embora agora eles tivessem partido, muito poucas famílias de colonistas tiveram permissão para voltar a suas casas. Ele começava a se perguntar se um dia voltariam e se essa rua um dia seria a mesma. Em particular se alguma coisa desagradável estivesse acontecendo na Caverna Norte.

Por fim, ele se permitiu entrar na casa. Sua primeira escala foi a cozinha e, sem encontrar a mãe ou a irmã, tentou a sala de estar, em seguida os quartos nos altos. As camas estavam desfeitas, com as cobertas puxadas.

É claro que Eliza pode ter levado a mãe a algum lugar, mas o Segundo Oficial não imaginava aonde elas iriam a essa hora da manhã. Ao descer a escada, ele tentava não pensar no pior – que os Styx lhes fizeram uma visita. Parando no corredor, ele ouviu um barulho que parecia vir da cozinha vazia e imediatamente se abaixou na sala para pegar a pá de Will no aparador. Se havia ladrões na casa, ele lhes daria uma boa sova.

O Segundo Oficial esgueirou-se para a cozinha e escutou. Ouviu outro barulho. Foi à extremidade da cozinha e abriu lentamente a porta para o pequeno vestíbulo. Foi na ponta dos pés até uma segunda porta, que levava ao depósito de carvão. Ao colar a orelha na porta, teve certeza de ouvir um arranhar. Talvez um rato, pensou ele.

Mas então ele teve certeza de ouvir sussurros.

Ratos de duas pernas, disse ele a si mesmo.

Depois de contar silenciosamente até três, ele escancarou a porta e investiu com um rugido.

Alguém se mexeu nas sombras. Ele viu o branco de seus olhos.

Ele ergueu a pá, pronto para golpear.

– AIIIII, MEU DEUS! – gritou a mãe, de mãos erguidas para proteger o rosto.

Eliza berrou.

– O quê...? – exclamou o Segundo Oficial, sem acreditar em seus olhos.

De camisola, a mãe e a irmã estavam pretas de pó de carvão ao se agacharem no canto mais distante.

– O que, pelo amor de Deus, estão fazendo aqui? – exigiu saber o Segundo Oficial, com a adrenalina ainda bombeando por seu corpo.

A mãe começou a chorar.

– Pensamos que era um Styx na porta... vindo nos pegar – conseguiu dizer Eliza.

A irmã e a velha ainda tremiam quando o Segundo Oficial as levou de volta à cozinha e as fez se sentar. Ele as olhou, tão apavoradas, seus rostos e as roupas grossas de poeira, depois olhou o chão da cozinha e a trilha que seus pés descalços deixaram nos ladrilhos. Os ladrilhos em que a velha labutava dia após dia para manter tão imaculadamente limpo que se podia comer neles.

E ele não conseguiu mais ter raiva das duas pelo cãozinho. Mas ele estava com raiva; queria que alguém pagasse pelo que acontecia na Colônia. Tudo desmoronava. E este colonista antes leal, este sustentáculo da ordem, sabia exatamente quem era o responsável.

– Isso precisa parar – murmurou ele. – Os Styx têm de ser detidos.

Ele cuidou para que a mãe e a irmã estivessem bem acomodadas na cama e partiu para a Caverna Norte. Passou por ruas ainda mais desertas, sem ver uma alma viva, nem mesmo neogermanos que sofreram a Luz Negra. Algumas ruas por onde andava fediam fortemente a esgoto sem tratamento. Agora que os destacamentos regulares de trabalho foram suspensos, ninguém descia à cidade para saber se as calhas fluíam livremente. Devia haver obstruções nos principais escoadouros e assim todo o sistema estava refluindo.

– A que ponto chegamos? – murmurou o Segundo Oficial sozinho, e de repente parou. Como era de esperar, na boca da passagem para a Caverna Norte havia uma única corda grossa atravessada na entrada, com uma placa oficial proibindo o acesso. A brisa a balançava suavemente. Ele considerou a placa de alerta de bordas pretas, aproximou-se da corda e entrou.

Ao entrar na caverna, não havia mais nenhum globo luminoso nos suportes – todos foram retirados, assim ele usou sua lanterna policial para iluminar o caminho. Dos dois lados da via principal havia apenas campos vazios. Nenhum cortiço, nenhuma prova de que alguém um dia esteve ali.

O Segundo Oficial pensou ter visto alguma coisa. Um movimento. Ele se retesou, temendo o pior, com medo de ter esbarrado diretamente num Limitador. Depois de alguns instantes, quando ninguém apareceu, ele prosseguiu.

Um pouco mais além, ele parou novamente e lançou o facho da lanterna à frente.

– Oh, meu D...! – Ele ofegou.

Uma forma, preta e amorfa, surgiu do chão. O Segundo Oficial ficou inteiramente convencido de que sua sorte lhe fugia e que desta vez a coisa não seria nada menos do que um Limitador.

As asas que bateram imediatamente lhe disseram que ele estava enganado. Ele perturbou um pequeno bando de aves mineradoras que ciscavam no chão. Eram carniceiras feias, com penas pretas esfarrapadas e corpos espigados, muito parecidas com pardais adoentados. Sem nenhum ruído além do bater das asas, elas alçaram voo, voltando a seus ninhos no alto do dossel.

Com a mão no peito e ofegante, o Segundo Oficial precisou de um momento para se recompor, depois começou uma investigação completa da área onde ficava a cidade. Era estranho pensar que, da última vez que esteve ali, examinava os três corpos enquanto o Terceiro Oficial observava. Mas agora a história era diferente; ele não encontrava nenhuma pista que o ajudasse.

– Inútil – queixou-se ele, chutando a terra empapada por pura frustração. E então ficou petrificado. Como se o solo tivesse sido arado, pouco abaixo da superfície havia depósitos incomuns. Um material mais escuro, quase preto, parecia estar misturado com a terra. E não tinha nada a ver com as aves mineradoras ou o cultivo de cogumelos porcini. Ele se ajoelhou para pegar uma pitada do material entre os dedos, depois levou ao nariz.

– Cinzas – disse ele, cheirando. – Madeira queimada.

Quem limpou a área, destruiu totalmente o povoado. Fizeram o serviço completo. Como só os Styx fariam.

Ele se levantou, orientando a lanterna a sua volta.

– Mas o que aconteceu com as pessoas?

De certo modo, ele ainda esperava ouvir o disparo de um rifle e sentir a dor aguda no pescoço enquanto um Limitador o executava por infringir um decreto dos Styx. Mas também não parecia haver nenhum dos repulsivos soldados na caverna.

Ele continuou a passar o pente-fino na área, examinando o chão centímetro por centímetro. Deu com cacos de barro e de vidro, depois encontrou um cartucho usado de fuzil. Tinha cheiro de cordite. Foi disparado recentemente. Mas as pessoas no cortiço não podem ter sido queimadas junto com seus barracos. Ele não acreditava nisso. E, se elas foram levadas pelos Styx, para onde foram?

Ele viu algo cintilar quando o facho da lanterna passou por certo ponto. Quase soube o que era o objeto antes mesmo de se abaixar para pegar. Era um botão de bronze, fundido com o molde da espada cruzada com a picareta. O brasão de trezentos anos dos Pais Fundadores da Colônia. E esse botão só pode ter vindo de um lugar.

Da túnica de um policial.

Da túnica do Terceiro Oficial, para ser mais preciso.

Agarrado ao botão, ele voltou à trilha principal. Andou cada vez mais rápido à medida que para ele ficava claro o que precisava fazer. Atravessou a Caverna Sul, voltando ao aclive que percorrera só duas horas antes. Continuou, passando pela Estação de Ventilação, em seguida parando abruptamente.

Certificando-se de não ter sido seguido e de que não havia ninguém no túnel à frente, ele se abaixou em uma passagem lateral escura. Depois de uns dez metros, a passagem se abria para uma pequena câmara. Em seu centro, havia um cercado, com palha espalhada pelo chão de pedras nuas. Embora o Segundo Oficial ainda pudesse detectar o cheiro de porcos, há muito tempo perdera seus ocupantes, abatidos para alimentar o exército de neogermanos.

Mas o Segundo Oficial não foi até ali procurando pelos porcos.

Na extremidade da câmara, encontrou o lugar em que certa vez Drake e Chester arrombaram uma porta. Desde então ali era bloqueado por imensos pedregulhos, e muito provavelmente o túnel de labirinto do outro lado também teve um desmoronamento, de modo que ninguém pudesse usá-lo novamente para entrar na Colônia.

O Segundo Oficial contou os passos ao seguir pela parede da câmara a sua esquerda, depois parou para examinar o chão com a lanterna. Encontrou a depressão, cheia de pedras, e começou a escavar, tentando fazer o menor ruído possível.

E então ele viu o que procurava. Era uma caixa preta, do tamanho de um baralho, com um fio de antena saindo dela.

“Use como último recurso”, dissera Drake. “Se um dia precisar de ajuda, por qualquer motivo, farei o possível para vir.”

Na época, o Segundo Oficial não pensou muito nisso. Depois que metade dos Laboratórios foi demolida pela explosão que eles criaram, era essencial que Drake e Chester escapassem da Colônia com a sra. Burrows o mais rápido possível. E o Segundo Oficial mesmo também ficou bastante preocupado, sem saber como ia convencer os Styx de sua inocência.

Ele sabia que devia ter denunciado o dispositivo e o retirado, mas não seria fácil explicar como teve conhecimento do aparelho. E então, no fim, ele preferiu simplesmente esquecer-se de sua existência.

Até agora.

Ele examinou o envoltório preto e brilhante do dispositivo. Sua aparência era semelhante aos radiofaróis que Drake dera a Will para marcar o caminho pelo mundo interior, mas esse era diferente. Também emitia um sinal de rádio que era detectado através da Crosta, mas em comprimentos de onda inteiramente diversos.

Com os dedos desajeitados, o Segundo Oficial localizou o microcomutador na lateral da caixa e deslizou para a posição Ligado. Depois o colocou cuidadosamente na depressão e se certificou de que fosse bem enterrado novamente.

Ele não sabia exatamente quando – nem mesmo se – Drake receberia o sinal, mas também não sabia mais o que fazer para pedir ajuda. Considerava o radiofarol uma mensagem na garrafa, que tinha acabado de jogar no mar na esperança de ser encontrada e de que ele seria resgatado.

Que toda a Colônia seria resgatada.


Capítulo Dez


A sra. Burrows entrava em seus aposentos quando o interfone ao lado da porta tocou. Ela arrancou o fone do gancho.

– Sim, está feito – disse. – Não foi fácil... Reduzi a respiração a quase nada e fui mais lenta do que uma lesma para que ela não me ouvisse. Ela não ouviu, e isso foi ótimo, porque eu teria muita dificuldade de explicar o que fazia ali.

Ela escutou o interlocutor por vários segundos.

– Irei – confirmou, movendo-se para o gancho como se pensasse que a conversa tinha chegado ao fim.

– Bartleby? – Ela ofegou, virando-se na direção da mesa de carvalho no pequeno escritório no final da sala. Entre os dois pedestais de gavetas que formavam sua base, Colly estava sentada como uma esfinge, seus grandes olhos cor de âmbar fixos na sra. Burrows. – Sim, é terrível, mas creio que ele só estava fazendo o que fazia um animal selvagem... seguindo seus instintos.

A sra. Burrows torceu o fio do fone no dedo e ouviu o interlocutor.

– Não se preocupe, estaremos lá quando você chegar – disse ela, depois desligou.

Com um suspiro muito humano, a Caçadora baixou o focinho nas patas dianteiras.

– Eu sei – disse a sra. Burrows. – Mas você tem muito o que ansiar.

– Elliott – disse a sra. Burrows, falando baixo no escuro.

A menina acordou imediatamente, rolando da cama com o rifle longo nas mãos.

– Que foi? – perguntou ela com urgência. – Qual é o problema?

– Nada, não há nada com que se preocupar – garantiu-lhe a sra. Burrows. – É só que Will e Drake chegaram e pensei que você quisesse vê-los. Eles subiram ao Centro. – A sra. Burrows não deu a Elliott a oportunidade de decidir se queria ou não ir com ela enquanto acendia as luzes do quarto.

Parry não os havia enganado quando disse que as acomodações eram confortáveis. Os quartos de Elliott e da sra. Burrows eram vizinhos, as portas com placas de Gov 1 e Gov 2. Os aposentos evidentemente serviriam para ministros de gabinete, seu interior se assemelhando a algo que podia ser encontrado em um cruzeiro de luxo, com móveis de mogno e ferragens de bronze, mas sem as escotilhas.

A sala principal de cada aposento tinha três metros quadrados, com seu próprio banheiro na suíte e um pequeno escritório adjacente de tamanho suficiente para uma escrivaninha e duas cadeiras. Tudo ali – os armários, tapetes, roupa de cama – era da melhor qualidade que a Grã-Bretanha do século XX podia oferecer. O único acréscimo moderno aos quartos era o feio conduíte de plástico que corria pelo alto do rodapé e pelas laterais das portas, onde foram instalados interfones com uma incongruente face de alumínio, para que cada quarto tivesse um link de comunicação com o Centro.

– Preciso me vestir? – perguntou Elliott. Ela estava com uma camiseta branca e larga que encontrara no guarda-roupa, junto com um short azul grande demais para ela.

– Talvez um roupão – sugeriu a sra. Burrows, abraçando-se dentro do dela, de tecido grosso feito um cobertor. Longe de ser mal ventilado, na melhor das hipóteses os aposentos eram gelados pelo ar fresco bombeado por dutos de ventilação no teto.

Quando Elliott estava pronta, a sra. Burrows falou:

– Tudo pronto? – E elas saíram juntas do quarto.

– Chester! – exclamou Elliott, surpresa ao vê-lo arriado contra a parede do corredor. A voz de Elliott despertou o menino e, grunhindo muito, ele se colocou de pé. Bocejou tão fortemente que parecia capaz de deslocar o maxilar.

– Ah, oi... Desculpe... Eu estava dormindo tão bem quando a sra. Burrows foi me buscar – disse ele, esfregando os olhos. – Só tive algumas horas.

Eles andaram pelo corredor, depois entraram em um saguão onde se localizavam os elevadores.

– Nível Dois. – Chester leu com outro bocejo. Ele semicerrava os olhos para a planta do andar na parede. O sargento Finch, com sua comitiva de gatos a reboque, acompanhara-os na descida de elevador para mostrar seus aposentos e disse que o Complexo tinha no total seis níveis. Também disse que toda a energia vinha das linhas de eletricidade próximas do lado de fora, a coisa mais inteligente a ser feita porque era retirada diretamente da malha elétrica e ninguém podia saber que a corrente era desviada para a instalação secreta.

– Que elevador ele disse para nós não pegarmos? – perguntou a sra. Burrows, colocando-se no meio do saguão. O sargento Finch avisou que um dos elevadores tendia a dar defeito, mas ela não conseguia saber a qual deles ele se referira.

– Aqui – respondeu Elliott, levando a sra. Burrows pela mão até as portas fechadas. – Lembre-se de não pegar o primeiro deste lado.

– Obrigada – disse a sra. Burrows.

Chester chamou o elevador e chegou um deles quase imediatamente.

– Subindo – murmurou ele, e deu um passo de lado para permitir que Elliott e a sra. Burrows entrassem, depois as seguiu com relutância.

O elevador ganhou velocidade ao subir, mas, abruptamente, parou num solavanco. A luz principal acima deles apagou e outra acendeu, banhando-os num brilho amarelo fraco. Uma voz de homem pré-gravada anunciou calmamente: “Iluminação de emergência.”

– Ah, mas que ótimo – reclamou Chester enquanto apertava repetidamente o botão do C, tentando recolocá-lo em movimento. – Preferia ter usado a escada... Não uso mais elevadores confiáveis desde aquela geringonça instável debaixo da casa do Will.

Mas, no momento em que ele terminou de falar, o elevador voltou à vida e continuou a subir.

– Então, Drake e Will... Eles estão bem? Não aconteceu nada lá fora? – perguntou Elliott à sra. Burrows. A menina esfregava o ombro, como se sentisse dor.

Não houve tempo para uma resposta porque a campainha tocou e as portas se abriram. Os três saíram, passando por vários corredores para chegar ao Centro. A iluminação no caminho era parecida com as luzes de emergência do elevador.

– Por que será que está tão escuro? – perguntou Chester enquanto eles entravam no Centro.

A primeira pessoa que viram foi Danforth, iluminado pelo brilho não só de seu laptop original, mas de outros cinco arrumados em mesas de armar em volta dele. Evidentemente ele ainda trabalhava no que quer que estivesse fazendo, abrindo muitos outros painéis na parede por onde um número espantoso de cabos se derramava e caía pelas pernas das mesas. Notando que Chester, Elliott e a sra. Burrows tinham entrado no Centro, ele levantou a cabeça rapidamente.

– A força principal foi desligada por um tempo – disse ele, sem dar nenhuma outra explicação.

– Will! Drake! – gritou Elliott, ao ver os dois do outro lado do Centro, correndo para eles.

– Não acredito! – exclamou Chester ao ver quem estava nos braços do pai. O sr. e a sra. Rawls estavam parados na boca do túnel de entrada.

– Chester! – gritou a sra. Rawls, abrindo ainda mais os braços para incluí-lo enquanto ele corria para ela. Chester se agarrou à mãe, sentindo seu rosto molhado de lágrimas de felicidade e alívio.

– Você a encontrou! Obrigado! – disse Chester a Drake. – Muito obrigado!

Drake assentiu, depois se virou para Elliott.

– Precisamos conversar – começou ele, com a voz grave.

Elliott percebeu que Will se aproximou um pouco mais dela e também o olhar nervoso em suas costas – para o rifle longo pendurado em seu ombro, supôs ela.

– O que foi? – perguntou ela, sabendo de imediato que havia alguma coisa errada. Ela se afastou alguns passos de Will e Drake. – Por que você não me diz?

Depois, por acaso, ela baixou os olhos para o longo túnel de entrada. Duas figuras vinham na direção do Centro. A maior delas – a forma volumosa – era inconfundível mesmo de longe.

– Sweeney – disse Elliott, mas não reconheceu a segunda, uma figura menor. – Quem está com ele?

– Elliott... – disse Will, aproximando-se mais um pouco dela. – Nós temos de...

– Jiggs... Esse é o Jiggs? – perguntou Elliott, semicerrando os olhos para o túnel. Embora falassem nele uma vez ou outra, ninguém jamais havia colocado os olhos em Jiggs, mas todos supunham que logo o fariam.

Elliott meneou a cabeça lentamente.

– Não – disse ela.

Ela disparou um olhar para Drake.

– Não! Ele não!

Will observou como Elliott cerrou o queixo e viu a intenção homicida em seus olhos.

– Elliott, me dê o rifle – pediu Drake, tentando apanhá-la, mas ela foi rápida demais.

Ela correu para a figura.

Para o pai.


PARTE DOIS

Turbilhão


Capítulo Onze


Vane se desgrudou do colonista que acabara de impregnar. Com uma precisão lenta e reptiliana, ela estendeu a perna ao chão, onde plantou um pé do lado da cama. O ovipositor em formato de tubo se retraiu para sua boca enquanto ela passava a outra perna pelo corpo flácido, levantando-se em seguida.

A colonista na cama era uma mulher de meia-idade, que recentemente fora trazida da cidade subterrânea. Era uma das habitantes azaradas do cortiço da Caverna Norte, retirada dali sob a mira de uma arma pelos Limitadores e submetida à Luz Negra até que não restasse nada dos centros conscientes de sua mente.

E embora efetivamente estivesse em morte cerebral, o peito da colonista agora começava a subir e descer enquanto ela se contorcia silenciosamente com a bolsa de ovos induzindo espasmos involuntários em seu trato respiratório. Em alguns casos, os hospedeiros humanos inoportunos realmente vomitavam a bolsa de ovos, e isso significava começar todo o processo outra vez. Vane observou a mulher, até que ficou satisfeita e viu que a implantação fora bem-sucedida, depois olhou de uma extremidade do depósito a outra. As mulheres Styx tinham sistematicamente tomado os humanos e talvez cerca de uma centena deles já tenha sido impregnada.

Os membros de inseto de Vane se torceram, depois se uniram acima de sua cabeça. Oscilaram um contra o outro, numa velocidade cada vez maior, até que produziram um som ininterrupto semelhante ao de um grilo. Vane silenciou os membros, virando a cabeça enquanto escutava. Pouco menos de um segundo depois, um matraquear oco vagou de algum lugar no chão enquanto Hermione respondia da mesma forma.

Vane e Hermione continuaram a se comunicar, uma orientando a outra ao seguirem para as camas na entrada do depósito.

Pelo vapor e a luz reduzida, elas se localizaram. Encontraram-se em volta da cama de um jovem, o primeiro humano a ser impregnado.

Embora Vane e Hermione tivessem se alimentado de carne crua e bebido regularmente dos tonéis de solução de açúcar viscoso providenciados em vários pontos do depósito, a Fase alterou drasticamente sua aparência. A produção incansável de bolsas de ovos levou suas taxas metabólicas às alturas, tanto que praticamente cada grama de gordura corporal fora queimado.

Elas guardavam muito pouca semelhança com as mulheres incrivelmente lindas que eram antes de iniciada a Fase. Por baixo de suas roupas rasgadas e sujas de sangue, os corpos foram desbastados a não muito mais do que músculos e ossos. Seus rostos eram estranhamente angulosos, como se um artista tivesse tentado recriá-los usando um sortimento de chapas retas.

– Hora de ver nossos meninos – anunciou Hermione na língua áspera dos Styx. Se Will e Chester estivessem ali para ver sua aparência enquanto ela falava, entenderiam por que a língua Styx sempre lhes pareceu tão inumana. Ela é inumana, e as duas eram inumanas.

– Sim, já deve ser hora – respondeu Vane, esfregando ansiosamente as mãos ossudas. Ao fazer isso, a musculatura e os ligamentos dos braços deslizaram uns contra os outros como um modelo mecânico sob sua pele esticada.

Hermione aproximou-se mais do jovem e se curvou sobre ele. Parou para limpar o queixo. As glândulas na garganta ainda não tinham parado de produzir os fluidos lubrificantes necessários para as múltiplas impregnações. E agora transbordavam da boca e pendiam dos lábios rachados em colares viscosos.

Abrindo o primeiro botão da camisa do homem, ela passou a mão por dentro.

– Sim – suspirou ela.

Muito gentilmente, pegou uma larva pulsante cor de marfim, com cerca de dez centímetros de comprimento. Era parecida com uma larva de moscas gigante, embora bem mais troncuda. Segurando a larva de Guerreiro Styx nas duas mãos, ela a ergueu ao rosto para examinar uma extremidade.

– Quem é essa coisinha linda? Quem é tão perfeita? – arrulhou ela.

Os olhos ainda não tinham se desenvolvido, mas uma pequena boca se abriu e se fechou. Ao fazer isso, algo foi apanhado na iluminação de uma das lâmpadas próximas do teto. As presas da larva de Guerreiro brilharam com uma brancura perolada, como os dentes de leite de um bebê. Batiam enquanto ela abraçava a larva no peito, olhando-a amorosamente.

Vane também colocara a mão por baixo da camisa do homem e em sua cavidade pleural, que fora exposta enquanto as larvas saíam de seu corpo. Pegou não uma, mas duas larvas, aninhando-as nos braços enquanto elas se retorciam contra seu corpo, como filhotinhos animados.

– Sim, eles são perfeitos – disse Vane, com os olhos enchendo-se de lágrimas de felicidade e satisfação. Uma das larvas começou a soltar um lamento agudo. Quase imediatamente a outra larva nos braços de Hermione se juntou a ela.

O corpo do homem na cama começou a se mexer como se tivesse ressuscitado por milagre. Mas ele estava de fato morto. O movimento era de outras larvas que tentavam abrir caminho a dentadas por seu jeans e arrastavam-se pelas mangas da camisa.

– Os pequeninos são vorazes – disse Hermione. – São nossos primogênitos. Eles são especiais. Acho que devíamos mimá-los.

Vane assentiu, concordando.

– Eles merecem tratamento especial. – Ela colocou suas larvas de volta à cama e foi até o canto do depósito. Ali, nas sombras, viu o grupo de colonistas e neogermanos. A maioria deles estava simplesmente estendida no chão, mas alguns se sentavam. E embora tivessem a mente apagada pela Luz Negra, os Limitadores tomaram a precaução de erguer um cercado em volta deles, para o caso de qualquer um ainda ter a capacidade de andar, como gado desnorteado.

Vane abriu o portão do curral e colocou de pé um homem atarracado.

– Será você – disse ela.

Era o Terceiro Oficial, ainda no uniforme da polícia.

– Ótimo. Você é um bom pedaço de carne – disse Vane, puxando-o para ela. Ele mal conseguia andar, seus pés batendo nas laterais ou se chocando um no outro, desajeitados. Mas Vane o arrastou e o carregou até a cama. Hermione tinha rasgado as roupas do cadáver para que as outras larvas – cerca de trinta – não tivessem mais de abrir caminho à força.

Vane empurrou o Terceiro Oficial para o colchão. Os dentes das larvas estalavam como muitos pares de castanholas enquanto elas se retorciam para os tecidos vivos. As duas mulheres Styx observavam, com o coração explodindo de orgulho de seus bebês, que começavam a se empanturrar.


Eddie e Sweeney pararam na longa passagem de entrada, mas Elliott estava em pleno movimento. Andava diretamente para o pai e se aproximava com rapidez.

Todos no Centro mal iluminado tinham os olhos nela – Parry, Danforth e, embora tivessem seu próprio reencontro emocionado, Chester e os pais.

Will não conseguia ver a expressão de Elliott, mas, pelo modo como falou sobre Eddie no passado, ele sabia que havia poucas chances de ser uma reconciliação feliz entre pai e filha. Na realidade, bem ao contrário – Elliott assumira o lado de sua mãe colonista e até matou Limitadores nas Profundezas. Will não queria pensar em como Elliott reagiria, agora que finalmente ficava mais uma vez cara a cara com seu pai.

– Ela está armada. – Will indicou a Drake com certa urgência.

Chester rapidamente se aproximou e Will deu uma espiada para ver se ele estava igualmente perturbado.

– Sabe, ela pode usar aquele rifle nele – disse-lhe Will. Mas o amigo não respondeu. Parecia estar inteiramente absorvido no progresso de Elliott pela passagem.

– Bem, será que alguém vai fazer alguma coisa? – exigiu Will freneticamente, voltando a pergunta para Drake. – Só por precaução?

– Calma – murmurou Drake. – Deixe que ela fique com o rifle.

Ao ver o grandalhão ao lado de Eddie se virar um pouco, Will percebeu que Drake falava com ele. Embora estivesse a doze metros de distância, Sweeney ouviu a orientação com sua audição incrivelmente apurada. Will observou enquanto Sweeney dava de ombros muito levemente.

– Vou repetir... calma – sussurrou Drake. – Mas aja se vir uma lâmina.

Will pensou ter enxergado Sweeney responder com uma piscadela, mas não podia ter certeza. De qualquer modo, ele estava atento demais à Elliott – se havia a possibilidade de um incidente, seria agora.

Cerca de três metros distante do pai, Elliott tirou o rifle do ombro, mirando diretamente para ele.

Eddie ficou firme, sem se mexer nem um centímetro.

– Drake... – disse Will, o pânico esgueirando-se para sua voz.

Talvez ela esperasse a intervenção de Sweeney, com suas reações rápidas como um raio, porque pareceu titubear um pouco enquanto lançava um rápido olhar a ele. Sweeney, porém, não dava sinais de que ia fazer alguma coisa.

Ao se aproximar ainda mais de Eddie, Elliott baixou o rifle, mas fez como se fosse bater a coronha nele.

Por acaso não bateu, jogando a arma para Sweeney, que a apanhou com facilidade nas mãos enormes.

Ela parou na frente de Eddie. Balançou a cabeça, depois lhe deu um tapa na cara com tanta força que o barulho ressoou até o Centro.

– Ai, essa deve ter doído! – disse Chester, encolhendo-se um pouco.

Elliott bateu no pai novamente, na outra face, com igual veemência.

– O Eddie tem apanhado muito assim ultimamente – disse Will. Isso despertou um olhar de banda de Drake, antes de ele sussurrar outra orientação a Sweeney:

– Acho que estamos fora de perigo – disse ele. – Pode dar algum espaço a eles agora.

Sweeney entrou na passagem que seguia para o Centro. Para grande espanto de Will, Elliott e o pai começaram a conversar, embora a menina estivesse gritando.

Pensando no que tinha acontecido, Will ficou confuso.

– Como você podia ter certeza de que ela não ia dar um tiro nele? – perguntou a Drake.

A sra. Burrows abriu a mão, revelando o conteúdo ao filho.

– Seria difícil... sem isto.

– Balas? – disse Will, depois percebeu por que a mãe estava com elas. Ele olhou a arma de cano longo que Sweeney segurava ao entrar no Centro. – Então o rifle de Elliott nem estava carregado?

Drake assentiu.

– Agora Eddie é fundamental para nós... Não posso deixar que aconteça alguma coisa com ele. Então, telefonei antes e pedi a sua mãe para deixar o rifle seguro. Ela era praticamente a única pessoa que conheço com a capacidade de entrar de mansinho e fazer isso sem despertar Elliott. – Drake olhou diretamente para Will. – Não acha que eu deixaria uma coisa dessas acontecer, acha?

– Obrigado por me contar – grunhiu Will, irritado por ter sido deixado no escuro. – E é melhor você ter certeza de que as balas estejam de volta ao rifle antes que ela descubra. Caso contrário, ela nunca mais vai confiar em você.

Parry se aproximou.

– Então agora vamos deixar que o inimigo entre em nossa base – disse ele com reprovação ao filho. – Está distribuindo ingressos? Isso aqui está ficando parecido com a Picadilly Circus.

– Eddie não é nosso inimigo, e o que Will e eu soubemos dele esta manhã explica exatamente o que os Styx estão aprontando – disse Drake com firmeza. – E é pior do que qualquer coisa que qualquer um de nós poderia imaginar. – Ele pegou o Livro da Proliferação em um bolso interno do casaco e o entregou a Will. – Quero que você junte todos em uma das salas de reuniões e informe tudo. E isso inclui o Velho Wilkie e sua neta, o coronel e o sargento Finch... Todos eles também precisam ouvir.

– Eu? Você quer que eu faça isso? – repetiu Will, espantado. Ele ainda não tinha certeza se estava inteiramente convencido do que Eddie lhes contara e também sentia que não tinha a autoridade de Drake para fazer uma revelação tão arrebatadora.

Drake assentiu.

– Então eu conto tudo a eles? – perguntou Will.

– Tudo.

Will não podia se sentir mais desconfortável com a resposta de Drake, porque contar a todos sobre a Fase também envolveria Elliott. O fato de que a Fase podia transformá-la em alguma coisa estranha e hostil não saía de seus pensamentos desde que Eddie fez essa revelação no Humvee naquela manhã. Ela era amiga de Will e ele fazia o máximo possível para não vê-la de forma diferente. E se era ele quem daria a notícia sobre Elliott a todos, isso o fazia se sentir muito desleal para com ela.

– Você realmente quer dizer tudo? – perguntou Will novamente.

– Sim, em detalhes – respondeu Drake com certa irritação.

– Por que você está jogando isso nas costas do garoto? O que é tão importante que você e esse seu amigo Eddie não possam nos dar o relatório vocês mesmos? – exigiu Parry saber do filho.

– Porque tem uma coisa que preciso ver agora mesmo – disse Drake, tombando a cabeça para o túnel de entrada, onde Elliott e Eddie estavam envolvidos numa conversa. A voz de Elliott não era mais elevada e, pelo modo como ela e o pai agiam, certamente parecia que não havia mais problemas entre eles. Entretanto, Drake não estava nada relaxado. Isso ficou ainda mais evidente quando ele sacou a Beretta do coldre e verificou se estava carregada antes de recolocá-la ali.

Parry pareceu perceber que o filho tinha outras prioridades e não o pressionou. Drake deu um passo para o túnel de entrada, mas parou e girou o corpo para o pai.

– Me diga... A ala médica deste lugar tem aparelho de raios X?

– Veja com o Finch, mas tenho certeza de que tem. A ala foi inteiramente reequipada nos anos 70 – respondeu Parry. – Mesmo que a máquina precise de um empurrãozinho para funcionar, o Danforth está aqui. Ele poderá fazer isso.

Parry ficou para trás, para chamar Stephanie e os outros de seus quartos usando o interfone, enquanto Will e Chester partiram para uma das salas de reunião pouco além do Centro. Will levava o Livro da Proliferação com muito cuidado – não gostava muito da ideia de tocar a pele humana da capa.

– E então, o que significa tudo isso, Will? – perguntou Chester, virando a cabeça como quem conspira para o amigo. – E por que Drake sacou a pistola? Ele não confia em Eddie?

– A arma não é para Eddie. É para Elliott – respondeu Will.

Chester parou de repente, enquanto Will continuou para a sala de reunião.

A meia-luz fraca da sala parecia muito adequada a Will ao contar o que Eddie dissera a ele e a Drake. Quando terminou, olhou as faces sombrias em volta da mesa. Ninguém disse nada – havia apenas o som do fluxo constante de ar pelos dutos de ventilação.

Parry era o único que não olhava para ele. Com uma lanterna pequena, examinava o Livro da Proliferação, semicerrando os olhos para as páginas através de seus óculos de leitura. Depois ergueu a cabeça para Will.

– Nunca vi esse Eddie nem pintado, mas se isso for apenas um conto de fadas, é muito complexo. E explica por que os Styx ficaram tão ativos; eles não têm nenhuma alternativa nessa questão.

Um dos muitos gatos do sargento Finch pulou na mesa. Seu rabo se torcia de um lado a outro enquanto ele andava regiamente para o velho em sua scooter elétrica. Ao ver o animal, Will se lembrou de que tinha algo a acrescentar.

– Não sei como me esqueci – disse ele com tristeza –, mas há mais uma coisa que preciso lhes dizer. Bartleby morreu.

Depois das revelações sobre a Fase, não houve reação imediata de ninguém na sala, até que a sra. Burrows falou:

– Bartleby nunca teria largado Colly, não voluntariamente.

– Eddie nos disse que foi tudo um acidente – disse Will. – Bart surpreendeu um dos Limitadores, que reagiu por instinto. O homem foi castigado.

Curvado para a frente, Chester bateu os cotovelos na mesa.

– Espero que tenha sido mesmo – disse ele com raiva.

Will assentiu.

– Na verdade, o Limitador se matou. Bem na nossa frente, ele se explodiu com uma das granadas de Sweeney.

– Foi mesmo medonho – murmurou a sra. Rawls.

Stephanie soltou um “erm”, levantando a mão como se estivesse numa sala de aula. O Velho Wilkie estava prestes a dizer para ela ficar quieta quando Parry interferiu:

– Deixe a menina falar o que quiser. Estamos todos juntos nessa.

Stephanie respirou fundo.

– Will, o que você contou pra gente parece ter saído de um filme de terror. Aceito totalmente que os Styx são reais e tudo, especialmente porque você trouxe um deles. Mas esse negócio de ovos e reprodução e esses monstros matando seres humanos... Como sabe que é verdade? Parece... tipo... é tão alienígena – disse ela, erguendo as mãos e mexendo os dedos num terror fingido. – Tirando o que falou o Eddie Styx, e esse Livro Esquisito dos Monstros que está com ele – ela gesticulou para Parry –, você não tem certeza de nada. Não tem nenhuma outra prova, tem?

Will estava prestes a dizer alguma coisa, mas fechou a boca.

– E aí? – pressionou-o Stephanie.

Will sabia que não podia evitar a revelação sobre Elliott. Enquanto informava a todos, ele procurou evitar ao máximo contato visual com Chester, na esperança de que o amigo não deduzisse as consequências para ela antes que Will tivesse falado com ele em particular.

Will engoliu em seco.

– Elliott – disse ele em voz baixa. – Ela pode ser a prova.

Chester murmurou alguma coisa, mas Stephanie foi rápida:

– Por que Elliott? – perguntou.

– Ela é meio Styx, não é? Ela pode ter idade suficiente para que a Fase a altere. – Will se obrigou a olhar para Chester. A cara do amigo caiu ao perceber que significado a origem mista de Elliott podia ter para ela.

Stephanie levantou a mão novamente.

– Mas ela parece normal... Ela pode ter bebês como... como as pessoas normais, não pode?

– Sim – respondeu Will.

Stephanie balançava a cabeça.

– Então você está dizendo que a Elliott ainda pode mudar... Mas ela não sabe que isso pode acontecer? Quer dizer, ela deve saber tudo sobre essa coisa de Fase, né?

– Elliott não foi criada pelos Styx, então... Não... Ela não sabe. É um segredo que eles guardaram inteiramente. E os colonistas não sabem nada sobre isso – respondeu ele. – Eddie nos disse que as mulheres Styx podem dar à luz como pessoas normais, mas a Fase é algo inteiramente diferente. É uma força muito poderosa... um instinto... que afeta a raça Styx. E a Fase só se revela quando assume o controle de suas mu...

– Então, não é perigoso ela ficar por aqui? – interrompeu Stephanie.

– Eu... ainda não sei – respondeu Will. – Mas imagino que é o que Drake está tentando descobrir agora, fazendo uns raios X nela.

– Quer dizer que ele está descobrindo se Elliott vai virar besouro ou não? – perguntou Stephanie, tremendo genuinamente.

Will assentiu. Não podia ficar irritado com Stephanie por ser tão franca. Era apenas o que todos os outros na sala pensavam, mesmo que não dissessem nada.

– Coitadinha – disse Stephanie solidariamente. – Espero que ela não seja.

Guiando-se pela planta do andar na parede do saguão do nível quatro, Will e Chester encontraram o caminho para a ala médica. Nenhum dos dois nem sonhava em entrar enquanto o exame de Elliott ainda estivesse em andamento, assim se instalaram num banco no corredor do lado de fora.

Danforth por fim saiu, mas não houve oportunidade de lhe perguntar alguma coisa porque ele disparou para os elevadores. Logo estava de volta com uma pasta grande que Will reconheceu – era cheia de ferramentas e equipamento eletrônico de teste. E enquanto Danforth voltava às pressas para a ala médica, pela porta aberta Will teve um vislumbre de Elliott sendo levada por seu pai. Embora todos os outros lugares do Complexo ainda estivessem com iluminação de emergência, a ala médica não parecia ter sido afetada em nada, o interior brilhante e bem iluminado. Assim, antes que a porta batesse, Will conseguiu ver que Elliott andava descalça, vestindo apenas uma espécie de roupa de hospital frouxa, que a fazia parecer muito pequena e vulnerável. E também parecia estar incrivelmente agitada. Will não sabia se Chester havia visto também, mas não fez nenhuma observação.

Enquanto o exame de Elliott prosseguia, os meninos ouviam o murmúrio baixo de vozes, sem conseguir distinguir as palavras, mas imaginando o pior.

O murmúrio de vozes masculinas continuou, mas então se ouviu um grito. Era Elliott. O grito não foi particularmente alto, mas Will e Chester deram um salto.

– Bartleby – soltou abruptamente Chester, fingindo coçar um calo na palma da mão. – É estranho agora ele ter partido para sempre, não é? Sinto falta de não tê-lo por perto.

A morte infeliz do Caçador certamente não era o que preocupava Chester ou Will naquele momento, mas era menos doloroso falar disso do que da situação de Elliott.

– Bartleby. Sim – respondeu Will, sem realmente saber o que dizia. – Também sinto falta dele. Acho que ele fazia parte da equipe.

Houve outro grito mais baixo.

Will não queria imaginar o que estavam fazendo com ela. Seus sentimentos oscilavam da raiva pelo que ela tinha de suportar à impotência por não poder fazer nada para impedir.

– A Colly anda muito quieta ultimamente – disse Chester, dando uma olhada de lado na porta da ala médica.

– Ela adora a mamãe – disse Will, endireitando-se no banco. – Sabe, ela anda reclamando muito das costas ultimamente.

– Hein? – perguntou Chester, virando-se para o amigo.

– A Elliott – disse Will, com os olhos colados num cartaz desbotado num quadro de avisos perto da entrada da ala médica. Tinha uma enfermeira bonita e sorridente e um homem com chapéu de feltro, também sorrindo, enquanto proclamava Doe Sangue. Salve Vidas em caracteres vermelhos e fortes. – Só espero que o problema nas costas não seja pela Fase. – Will não tirava da cabeça a imagem do Livro da Proliferação, da mulher com as duas pernas de inseto.

– Eu também – respondeu Chester com tristeza.

Sweeney abriu repentinamente a porta da ala médica e saiu, ainda segurando o rifle de Elliott, e se sentou entre os meninos no banco, que rangeu sob seu peso. Will e Chester o olharam, ansiosos por alguma notícia.

– Sua garotinha passou na primeira parte do exame físico – disse Sweeney, com um sorriso enrugando seu rosto singular. – Foi um sucesso. Não há nada fora do comum ali.

– Graças a Deus. – Chester suspirou.

– E o que vem agora... Os raios X? – perguntou Will.

Sweeney assentiu.

– Precisei sair... Ele cria muita confusão com os circuitos da minha caixola.

Os três ouviram um zumbido agudo durante a ativação da máquina, seguido por um baque abafado da radiografia sendo tirada. Isso aconteceu mais uma vez, depois Danforth saiu explosivamente da ala médica.

– Tenho de revelar isto aqui. Você precisa voltar para dentro agora – disse ele a Sweeney.

– Sim, senhor, claro, senhor – murmurou Sweeney com sarcasmo, enquanto olhava o professor andar pelo corredor para outra sala. Era quase impossível interpretar a expressão de Sweeney, mas parecia não haver amor entre ele e Danforth.

– Vou deixar isto com você – disse ele, entregando o rifle a Will e entrando na ala.

Danforth reapareceu no que pareceram séculos depois, agitando duas chapas de raios X diante dele para secá-las. Ignorou inteiramente os meninos ao voltar para a ala.

– Não suporto mais isso – disse Chester. Levantando-se, começou a andar de um lado a outro. – Até tem cheiro de hospital aqui.

Will se lembrou de que a irmã mais nova de Chester morreu no hospital depois de um acidente de carro e o quanto isso o revoltava até hoje.

– Se não quiser esperar aqui, eu fico e te busco quando tiver terminado – propôs Will.

– Sim, acho que vou subir para pegar uma água. – Chester se encostou na parede. – Estou com uma sede danada.

Will notou que o amigo transpirava profusamente e parecia nitidamente debilitado.

– Na verdade, Will, acho que vou vomitar. – Com essa, Chester disparou para o saguão, deixando Will olhando o corredor vazio, onde ele estivera.

Dez minutos depois, a porta da ala médica se abriu e lá estava Elliott, com Drake a seu lado. Ela ainda estava de camisolão de hospital e tinha as roupas numa trouxa debaixo do braço.

– Ah, Will – disse ela, largando as roupas enquanto corria para ele e o abraçava apertado.

– Acho que estamos livres – disse Drake.

Enquanto Elliott ainda se agarrava a Will, escondendo o rosto em seu peito, ele sentiu alguma coisa pelos ombros dela. Era um pedaço grande de gaze, preso ali com esparadrapo, e o sangue o ensopava. Will olhou chocado para Drake.

– Sim, experimentamos uma exploração cirúrgica limitada – disse Danforth, com as chapas de raios X enroladas na mão feito um bastão, chegando ao corredor com Eddie. O tom de Danforth era tão desapaixonado que podia estar discutindo uma de suas engenhocas. – Encontramos provas de características que são claramente relacionadas com a Fase, mas apenas vestigiais. Dado que ela é um cruzamento de humana com Styx, pode ser que esteja carregando um gene ou genes recessivos da Fase, mas a característica nunca se revelará em nada mais do que uma manifestação parcial.

Danforth ergueu as chapas enroladas de raios X.

– Contudo, tendo em mente sua idade e o fato de que ela ainda está na efervescência da adolescência, é algo que precisaremos vigiar atentamente no futuro.

– Mas ela está bem? Está bem de verdade? – perguntou Will a Drake, ignorando Danforth.

– Sim, está. – Drake suspirou.

Talvez se devesse ao estresse intenso que ele tinha suportado, mas Will começou a rir.

– Então minha melhor amiga, afinal, não é um inseto?

Isso surpreendeu Drake, mas Elliott voltou a cabeça para olhar Will com os olhos cheios de lágrimas.

– Seu babaca. – Ela riu, depois lhe deu um beijo no rosto.


– Seu filho da puta! – O grito áspero reverberou pela central de polícia silenciosa.

– Banguela Mulligan? – perguntou o Segundo Oficial.

– Banguela Mulligan – confirmou o Primeiro Oficial. – Isso foi para mim. Ela está me dizendo que eu devia libertá-la... E o resto dos prisioneiros, enquanto posso. – Coçando vigorosamente o peito sem a camisa, desabotoada no pescoço, ele olhou para o Cárcere. – Eu devo ter deixado a porta do corredor aberta. Preciso ir lá para fechar.

– Não se incomode. Deixe que eles tenham um pouco de ar por ali – disse o Segundo Oficial. Ele examinava a mão enquanto os dois homens jogavam pôquer numa mesa na sala principal.

O Primeiro Oficial terminou de coçar o peito, mas olhava atentamente alguma coisa entre o polegar e o indicador. Os piolhos era um problema permanente na Colônia. Com uma careta, porque não tinha certeza se o apanhara ou não, ele apertou os dedos e os limpou na perna.

– Sabe de uma coisa, não temos muita comida no depósito, e eu não sei quanto a você, mas estou meio cansado de bancar o criado dos prisioneiros, agora que todo mundo se recusa a trabalhar aqui.

O Segundo Oficial estava concentrado nas cartas, mas agora levantou a cabeça incisivamente.

– Fumaça! Sinto cheiro de fumaça! – gritou.

Os dois se levantaram de um salto e começaram a farejar. De todas as coisas que um colonista mais temia, incêndios estavam no topo da lista. Por toda a história de trezentos anos da sociedade subterrânea, eles tiveram de suportar várias deflagrações, e as mortes que se seguiram nem foram do incêndio em si, mas da inalação de fumaça nas cavernas e túneis fechados.

– Tem razão! – gritou o Primeiro Oficial.

Os dois dispararam pela abertura no balcão.

Na entrada da central – a única forma de entrar ou sair –, chamas imensas lambiam as portas de vaivém.

– Meu Deus! – gritou o Primeiro Oficial, correndo para o armário, onde baldes de água pintados de vermelho eram guardados para essa mesma eventualidade. – Patrick... Solte os prisioneiros! Vamos precisar de ajuda para apagar isso!

Uma fumaça densa já entrava no Cárcere quando o Segundo Oficial rapidamente percorreu a fila de celas e as destrancou. Os ocupantes – inclusive a Banguela Mulligan – não precisavam ouvir o que fazer. Formaram sozinhos uma corrente que se estendia entre a entrada e a salinha na central com uma torneira de água fresca. Então passaram os baldes cheios ao Primeiro Oficial, que jogava água no fogo. Ele tinha vestido sua túnica e cobriu o nariz e a boca com um tecido enquanto continuava a combater as chamas. Todos os prisioneiros tossiam e seus olhos lacrimejaram ao trabalhar incansavelmente, passando adiante os baldes cheios de água.

Depois de vários minutos, eles conseguiram apagar as portas de vaivém o suficiente para abri-las, mas ainda não tinham apagado o fogo. A água provocava um chiado ao cair na pilha grande de madeira do lado de fora, no alto da escada.

Por fim, o fogo foi extinto. O Primeiro Oficial, com a camisa e a calça do uniforme ensopados, encostava-se no balcão enquanto tinha uma crise furiosa de tosse. Todos os prisioneiros tossiam e tentavam também recuperar o fôlego, e o Segundo Oficial começava a examinar os danos. Agradecido pela brisa fresca que soprava do lado de fora da central, ele examinou a pilha calcinada de madeira. Pelo cheiro, havia pouca dúvida de que usaram um catalisador para começar o fogo. Depois o Segundo Oficial localizou uma lata velha que fora descartada ao lado da escada e a carregou de volta para a central.

– Petróleo – anunciou ele, colocando a lata no balcão perto de seu oficial superior. – Não estavam de brincadeira quando tentaram nos queimar, mas não há nenhuma pista de quem foi.

– Não diga – respondeu o Primeiro Oficial, rindo e tossindo. – Era de esperar que pintassem o nome, no mínimo – continuou ele sarcasticamente, depois se virou para a horda de prisioneiros. – Escutem, vocês todos, podem ir embora – declarou. – Estão livres.

O Segundo Oficial se curvou para ele.

– Senhor, não acha que é meio precipitado? Quero dizer...

– Dê-me uma folga, Patrick. Está com medo de que os Styx venham para cima de nós por libertarmos um bando variado de fracassados, cujos crimes não passam de afanar uma ou outra galinha para alimentar suas famílias? – perguntou o Primeiro Oficial, depois se virou para todos os prisioneiros. – Sem querer ofender – acrescentou ele rapidamente. – Estou muito agradecido por todos terem ajudado com o fogo.

A Banguela Mulligan sorriu, mas um homem musculoso de olhos fixos e loucos não parecia tão feliz. Era conhecido simplesmente como “Machadinha”, tendo o nome de um implemento de escavação usado por toda parte na Colônia.

– Fracassados? – disse ele, indignado. – Vou te mostrar que num roubei galinha nenhuma. Tô aqui por disorde e por ataque sem motivo cum machado.

O Primeiro Oficial deu uma gargalhada.

– E isso é uma confissão de culpa, Machadinha?

No início, o Machadinha ficou confuso, mas rapidamente entendeu.

– Não, senhor, de jeito nenhum eu fiz o que disseram que fiz. Não, senhor. Sou inocente como um filhotinho de peixe.

Um ladrão insignificante com feições de rato, sentado em um balde virado na ponta da área de recepção, achou isso engraçado. Gargalhou alto, até que o Machadinha o olhou feio.

O Segundo Oficial ainda não estava à vontade com o pronunciamento de seu oficial superior.

– Fala mesmo sério de que vai libertá-los? – perguntou ele em voz baixa para os prisioneiros não ouvirem. – Todos têm de responder a acusações.

O Primeiro Oficial não teve escrúpulos em deixar que os prisioneiros soubessem o que estava pensando.

– Patrick, não ouvimos um pio dos Styx há três dias – disse ele em voz alta, gesticulando com a mão suja para os tubos de bronze de mensagem do outro lado da sala. – E ninguém vê nenhum deles nas ruas há muitos dias. Pelo que sabemos, eles se foram... Fugiram da Colônia.

Os prisioneiros ofegaram.

– E você parece ter se esquecido do fogo... Acabaram de atentar contra nossa vida... Alguém de seu próprio povo. Isso mostra a que ponto chegaram as coisas. – Por um momento ele fitou pensativamente os olhos do Segundo Oficial. – Onde estão suas credenciais, Patrick? Pegue para mim.

O Segundo Oficial obedeceu, indo até sua túnica, que havia deixado nas costas de uma cadeira, e pegando nela as credenciais. Ao entregá-las ao Primeiro Oficial, o homem mergulhou uma pena no pote do balcão. O Segundo Oficial e os prisioneiros ouviram o arranhar da pena, depois o Primeiro Oficial as devolveu.

– Meus parabéns – disse ele.

O Segundo Oficial leu o que estava escrito nas credenciais.

– Não! – exclamou.

– Sim, estou entregando os pontos. Já tive tudo que posso suportar. Estou me demitindo e vou para casa cuidar de minha família – disse o Primeiro Oficial. – Então, agora quem está no comando é você.

O Segundo Oficial titubeou.

– Pegue isso, Squeaky – disse o Primeiro Oficial, desprendendo do cinto um grande molho de chaves e jogando para o homem com cara de rato. – Na sala de provas, na prateleira de baixo, vai encontrar uma caixa de uísque Somers Town. Traga aqui, sim? Vamos brindar com estilo à promoção do novo Primeiro Oficial.


Capítulo Doze


Parry parecia em cada detalhe o líder militar ao andar de um lado a outro diante do mapa exibido no telão do Centro.

Agora ele se virava para todos.

– Muito bem... A Fase está ocorrendo neste exato momento, então as horas passam rápido. Precisamos de alguma ação positiva para descobri-la e acabar com ela. Precisamos agir rapidamente!

– Precisamos mesmo – concordou Drake.

– Então vamos analisar o que sabemos – disse Parry. – A Fase está acontecendo na superfície, porque é uma de suas precondições. E está em algum lugar... – Ele se virou para um mapa do Reino Unido na tela – ... Em algum lugar por aqui, provavelmente em um só local.

– Sim, isso mesmo – confirmou Eddie.

Parry cofiou pensativamente a barba ao se aproximar um pouco mais da tela e apontar com a bengala.

– Mas podemos supor de forma racional que está na área de Londres? Pode estar nos Home Counties, ou em qualquer lugar do país? Será que os Styx se dariam ao trabalho de se arriscar além de cento e cinquenta quilômetros de distância de Londres?

– Londres e seus arredores fazem mais sentido – disse Eddie. – A não ser que eles tenham escolhido um lugar distante, por ser mais seguro.

– Isso não nos ajuda em nada. É como procurar uma agulha envenenada num palheiro – resmungou Parry consigo mesmo, cofiando a barba ainda mais intensamente. – Mas sabemos que os Styx precisam de um estoque de corpos humanos para o processo de procriação. A não ser que estejam raptando à força o povo da Crosta, quer dizer, colonistas e talvez neogermanos usados como hospedeiros. O que sugeriria algum lugar perto de Londres, porque eles não vão querer que sua cadeia de suprimentos se estenda para longe demais.

– Em particular com a interrupção na rede de transporte que eles provocaram no sudeste – observou Drake. – Não é tão fácil se deslocar como antes.

Parry respirou fundo.

– Todos devem ajudar a pensar. Como exatamente encontraremos o local da Fase? – perguntou ele, depois girou o corpo para Eddie. – Não podemos pegar um Styx das ruas de Londres e interrogá-lo?

– Mesmo que você conseguisse encontrar um, não arrancaria nada dele – respondeu Eddie.

Parry não se deixou abater.

– Muito bem, então... E se um de seus homens voltasse à Colônia? Ele podia conseguir a informação que precisamos lá embaixo.

– Não, eu já falei... Meus homens cortaram todos os laços com nosso povo e encobriram seus rastros – disse Eddie categoricamente. – Não podem simplesmente mostrar a cara, como se nada tivesse acontecido. Eles seriam executados no minuto em que pusessem os olhos neles. Isso não nos levaria a lugar nenhum e de imediato faria com que eles notassem que há um grupo dissidente de Limitadores descontentes.

Parry continuou a cofiar a barba, até que seus dedos se afastaram com um tufo de pelos.

– Mas o que os Styx estão fazendo no local da Fase que produza um sinal de fumaça que possamos localizar? – Ele olhou incisivamente para o filho, depois para Danforth, que copiava página por página do Livro da Proliferação num scanner, para traduzi-lo com a ajuda de Eddie. – Vamos, vocês dois... São especialistas em tecnologia. Alguma ideia brilhante?

Danforth levantou a cabeça do scanner, mas não respondeu, e Drake meneava lentamente a cabeça.

– As Luzes Negras – sugeriu Eddie. – Graças a Drake, podemos localizá-las. E meu povo, onde quer que esteja, talvez as está usando intensivamente.

Drake foi rápido na resposta:

– Mas já consideramos isso. Sim, podemos detectar atividade de Luz Negra usando uma série de transmissores, mas só funciona em áreas relativamente pequenas. Para aumentar o raio de busca, eu precisaria de uma antena de micro-ondas instalada em algum lugar alto, para que houvesse uma linha de visão ininterrupta por todo o interior do país.

– Quer dizer todo um monte de malditas antenas parabólicas potentes, e além disso direcionais – acrescentou Danforth num tom condescendente.

Drake assentiu para ele, cansado; embora o professor fosse indiscutivelmente uma das mentes mais brilhantes do planeta, às vezes era difícil engolir sua arrogância.

– Então, pelo menos em teoria podíamos identificar quaisquer grandes concentrações de Luz Negra a trezentos, quinhentos quilômetros ou até mais do centro de Londres – disse Drake.

– Bom, isso já é um começo – disse Parry com otimismo.

– Também precisaríamos despachar equipes itinerantes com detectores móveis a bateria para nos ajudar a localizar as coordenadas exatas de qualquer concentração de luz. – Drake se interrompeu ao franzir os lábios num momento de reflexão. – Sim, a gente pode ganhar na loteria, mas é um tiro muito no escuro.

– Um tiro muito no escuro. – Danforth lhe fez eco, enquanto passava a uma nova página do Livro da Proliferação e a colocava virada para baixo no scanner.

– Um monte de antenas parabólicas de alta potência – resumiu Parry. – Agora estamos chegando a algum lugar. Mas onde encontraríamos um equipamento desses com tal rapidez? No Centro? Em Canary Wharf?

O sargento Finch murmurou alguma coisa.

– O quê? – explodiu Parry, virando-se para ele. – O que acabou de dizer?

O sargento Finch ficou espantado com a reação de Parry.

– É que o que você acabou de dizer... Me fez pensar no Tronco – sugeriu ele timidamente.

– O que é o Tronco? – perguntou Drake, rápido.

– É uma rede de torres de concreto especialmente erguida no país pela Otan para preservar as comunicações depois de um ataque nuclear – disse Parry. – A torre mais próxima de nós fica em Kirk O’Shotts, e depois tem uma em Sutton Common e outra em...

Parry e o sargento Finch se olharam, falando ao mesmo tempo:

– A Torre dos Correios – disseram em coro.

Parry foi até o sargento Finch e colocou a mão em seu ombro.

– Você um gênio!

– Está falando da Torre BT em Londres? – perguntou Drake.

Parry agitava a bengala com impaciência.

– Mas que despropósito! Eles trocam o nome de tudo! Sim... A Torre BT... E podemos entrar nela usando os antigos protocolos de emergência, não podemos, Finch?

O sargento Finch sorria.

– Certamente podemos, senhor... Tenho um primo que trabalhava lá, nos bons velhos tempos c...

– Acorde-o agora mesmo por um dos telefones de satélite de Danforth. Arranque-o da cama, se necessário – ordenou Parry. – E vocês dois – disse, deitando o olhar em Drake, depois em Danforth –, quantos detectores móveis podem preparar para mim no menor tempo possível?

Danforth gemeu; não parecia particularmente entusiasmado com a ideia de fazer trabalho nenhum.

– Quantos você quer? – perguntou ele de mau humor.

– Quantos pode me dar? – disse Parry.

– Mas como podemos produzi-los em massa aqui? – intrometeu-se Drake.

– É muito simples... Se alguém conseguir pegar todos os contadores Geiger deste lugar – respondeu Danforth –, posso adaptá-los com componentes dos depósitos do Nível 4. Será tremendamente tedioso, para dizer o mínimo, mas você pode ajudar, Drake.

Drake ergueu as sobrancelhas.

– Pode fazer isso? Com componentes que estão aqui no Complexo?

– Até dormindo – respondeu Danforth resignadamente.

– E depois que os detectores móveis estiverem prontos, vamos despachá-los para o sul e mandar as patrulhas. Seus homens podiam dar uma mão – disse Parry a Eddie –, mas eles não são o suficiente. Parece que terei de convocar a Velha Guarda. Vamos precisar de alguns homens para cobrir o interior.

– E precisamos chegar nós mesmos a Londres – disse Drake –, na Torre BT.


Houve gritos na frente da central de polícia e alguém subiu a escada de três em três degraus. O homem estendeu a mão para o balcão assim que entrou, apoiando-se nele ao tentar recuperar o fôlego.

– Vocês precisam vir... Houve um acidente – ofegou. Era um dos colonistas do Quartel, um lojista chamado Maynard. Ele olhou com incredulidade a cena que o recebeu... O antigo Primeiro Oficial, com a camisa manchada de suor e os suspensórios pendurados na cintura, bajulado pelos prisioneiros que tragavam suas canecas de uísque Somers Town. Maynard olhou nos olhos do Machadinha, mas, quando o semblante grisalho sorriu para ele, revelando os cotos escurecidos de dentes, ele rapidamente virou a cara.

– Mas por que toda essa algazarra? – disse o ex-Primeiro Oficial numa voz arrastada, tentando se endireitar na cadeira.

Maynard franziu o cenho.

– É meu filho... Uma magia o pegou. Preciso de sua ajuda.

– Eu não trabalho mais aqui – disse o ex-Primeiro Oficial, empurrando a caneca para o novo Primeiro Oficial e conseguindo derramar a bebida em si mesmo, o que provocou risos de Squeaky. – Peça ao Patrick.

– Patrick? – perguntou Maynard. – Mas quem diabos é Patrick? E o que está havendo aqui?

– Está tudo bem, Maynard – disse o novo Primeiro Oficial ao sair do que agora era sua sala. Ele tentou novamente se lembrar do nome do ex-Primeiro Oficial, mas nada lhe veio, então observou: – Ele está tirando uma folga, assim eu ficarei um tempo no comando.

– Que toupeira! – exclamou o ex-Primeiro Oficial, com a expressão aflita. Machadinha e Squeaky se desmancharam em gargalhadas ao ouvi-lo xingar. Até a Banguela Mulligan, que todos supunham que tivesse desmaiado da bebida, porque estava deitada embaixo da mesa, começou a gargalhar. – Não, eu nunca mais vou voltar – insistiu o ex-Primeiro Oficial. – Nunca, nunca, nunca.

– Nunca – acrescentou Squeaky em seu guincho nasalado, rindo.

– Eu ouvi você dizer “magia”? – perguntou o novo Primeiro Oficial. – O que quer dizer com isso?

– Icho num ejiste – comentou um dos outros prisioneiros, e foi calado imediatamente pelo Machadinha:

– Escuta o homem – instigou ele em sua voz de barítono.

– Meu menino, eu e alguns outros pretendíamos passar por um portal e subir à Crosta para pegar um pouco de comida para todos. Temos ainda algum dinheiro da Crosta e imaginamos que podíamos usar para comprar gêneros básicos: pão, leite, coisas assim. Não sobrou quase nada na minha despensa, sabe – disse ele.

O novo Primeiro Oficial assentiu com solidariedade.

– Sei como é. Precisamos fazer alguma coisa, mas, antes, temos de nos organizar. Mas o que quer dizer com “magia”? O que houve?

– Estou lhe falando... É magia Styx – insistiu Maynard.

– É melhor você me mostrar – disse o novo Primeiro Oficial, pegando o cassetete no gancho da parede e passando pelo balcão aberto.

– Tenho de ver essa magia com meus próprios olhos – balbuciou o ex-Primeiro Oficial. De algum modo ele conseguiu se colocar de pé e todos os prisioneiros se levantaram com ele – até a Banguela Mulligan, embora estivesse vacilando imprevisivelmente e cantasse baixinho consigo mesma.


Danforth restaurou a energia dos circuitos principais para que o Complexo não fosse mais iluminado pelas luzes de emergência. Depois dos exames, Elliott foi diretamente a seus aposentos e se recusou a sair, apesar dos esforços de Will e Chester. Assim, eles se revezaram para levar comida e bebida à amiga.

Em certa ocasião, quando Will apareceu com uma caneca de chá, encontrou-a diante do espelho de corpo inteiro da porta do guarda-roupa, simplesmente se balançando e se olhando.

– Você está bem? – perguntou ele, enquanto ela continuava a olhar o próprio reflexo.

– Não sei mais quem eu sou. Pensei que soubesse, mas não sei.

Antes que Will tivesse tempo de perguntar o que ela queria dizer, Elliott fixou os olhos escuros e penetrantes nele.

– Acha que tem alguma coisa diferente em mim? – Ela estendeu o braço no alto da cabeça num movimento de balé. Depois deixou que ele caísse, flexionando o cotovelo, para que as pontas dos dedos tocassem o curativo nas costas.

– Claro que não – respondeu ele sem hesitar.

– Mas Danforth encontrou os primeiros sinais da Fase em mim e isso faz eu me sintir um monstro. Faz de mim uma coisa feia.

– Besteira... – começou Will.

– Mas você agora não olha para mim do mesmo jeito. – Ela o interrompeu. – Quando você me abraçou mais cedo, eu senti isso.

– Está falando um monte de bobagem. – Ele bufou, indignado. – E você sabe que é. Só está meio confusa. – Ele lembrou por que veio procurá-la, estendendo a caneca. – Devia beber isto. Drake disse para colocar mais açúcar... Disse que vai te ajudar a superar o choque. – Ela pegou a caneca, mas quando Will tentou tocar seu braço num gesto tranquilizador, ela o afastou, derramando o chá.

Ele olhou o chá que ensopava o carpete.

– Você é minha amiga – disse ele. – Isso nunca vai mudar. Você é Elliott. E é só isso que importa para mim. – Sem saber mais o que dizer, ele saiu do quarto.


O grupo estranho seguia Maynard pela rede de túneis, até que chegaram no portal. Quando abria caminho entre a multidão reunida ali, o novo Primeiro Oficial viu o filho de Maynard no chão, a cerca de três metros da porta de aço rebitado da câmara pressurizada. Era uma infelicidade, porque o menino era muito gorducho e tinha caído de cara no chão, com a bunda bem acolchoada apontada para cima.

– Não chegue mais perto – avisou Maynard, pegando o novo Primeiro Oficial pelo braço. – É enfeitiçado.

O novo Primeiro Oficial aceitou o conselho.

– E o que aconteceu? Conte exatamente como foi – pediu ele, ao ver a picareta no chão ao lado do menino roliço.

– Pensávamos que os Styx tivessem soldado o portal, então estávamos nos preparando para forçar passagem – respondeu Maynard. – O meu menino, Gregory, foi o primeiro a chegar à porta. Ele anda com muita fome ultimamente e em casa está meio complicado. Então, ele correu para a porta e simplesmente caiu... Como se a magia o tivesse derrubado.

– Magia Styx. Eles colocaram uma maldição no portal – intrometeu-se um homem na multidão.

– Estamos todos condenados – gemeu uma mulher, o que provocou uma onda de inquietação em todos reunidos ali.

– Conversa-fiada! Os Styx não têm magia nenhuma – balbuciou o ex-Primeiro Oficial. – O gorducho desmaiou de fome. – Enquanto ele oscilava, desequilibrado, seus olhos caíram no prisioneiro mais próximo. – Machadinha, mostre a eles – disse.

– Machadinha, mostre a eles! Machadinha, mostre a eles! – começaram a entoar Squeaky e os outros prisioneiros.

Deliciado por ser o centro das atenções, o Machadinha andou até o portal em passos desajeitados e confiantes. Ao olhar por sobre o ombro para os outros prisioneiros, todos entoaram ainda mais alto, incitando-o:

– Machadinha, mostre a eles!

– Cachacinha, bosta neles! – gritou a Banguela Mulligan.

O Machadinha claramente desfrutava do momento, com um sorriso grande colado na cara. Ele acelerou o passo, bombeando as pernas grossas ao correr. Mas ao se aproximar de onde jazia o gorducho, ele também se amarfanhou no chão, como se tivesse levado uma machadada.

Como se tivesse esbarrado numa barreira invisível.

Todos os prisioneiros soltaram um oooooh de decepção, morrendo imediatamente a torcida.

– É a magia, estou dizendo. Eu tentei avisá-lo. Os Styx não querem que ninguém fuja – disse Maynard. – E agora? Tenho de pegar meu menino e ver se ele está bem.

– A partir de agora ninguém chega perto de nenhum portal – ordenou o novo Primeiro Oficial ao grupo reunido. – Entenderam?

A multidão murmurou sua concordância.

Virando-se para o portal novamente, o novo Primeiro Oficial tirou o capacete e coçou a cabeça por um momento, pensando.

– Muito bem... Vou precisar de um arpéu para arrastar esses dois para fora. E alguém mais procure um médico, se ainda sobrou algum na Colônia. – Ele olhou o corpo imenso do Machadinha, que encolhia até o garoto muito gordo arriado ao lado dele. – E é melhor que vocês façam um arpéu de bom tamanho – acrescentou.


Elliott tinha desmontado o rifle para dar uma boa limpeza. Estava remontando a arma quando Stephanie passou empinada pela porta aberta de seu quarto.

– Ah, oiê – disse a menina. – Não sabia que este quarto era seu. – Ela estava com uma camiseta branca idêntica àquela que Elliott vestia, mas Stephanie tinha amarrado a bainha num nó para que ficasse mais estilosa.

– Que bom que você está bem – disse Stephanie vagamente, olhando o curativo grosso nas costas de Elliott, que era difícil deixar de ver. Ela ia continuar a falar “e que não é um...”, mas decidiu que era melhor calar a boca. Pela primeira vez na vida.

Elliott não fez esforço nenhum para responder enquanto encaixava o ferrolho no rifle e depois o testava várias vezes.

Pouco à vontade com o silêncio entre as duas, Stephanie anunciou:

– Também sei atirar.

– Sabe? – respondeu Elliott em voz baixa. – Não com uma coisa dessas.

– Ooooh, posso ver? – perguntou Stephanie ansiosamente, entrando no quarto em passinhos miúdos, de mãos estendidas.

Elliott suspirou:

– Acho que sim. Mas tenha cuidado... É pesada.

Stephanie pegou a arma e, sem hesitar, colocou no ombro.

– É mesmo pesada – concordou ela. – Na escola, eu uso principalmente uma vinte e dois para a prática de tiro ao alvo. Que calibre tem essa? – Ela puxou o ferrolho. Elliott se levantou para impedi-la, mas não era necessário. – Stephanie parecia saber o que fazia. – Acho que é tipo uma trezentos e três ou coisa assim – continuou a menina, olhando dentro da câmara.

Elliott assentiu.

– Chegou perto. É uma trinta e cinco e usa cartucho especial com cápsula longa, assim pode levar uma carga extra.

– É mesmo – disse Stephanie, voltando a atenção para a mira bulbosa instalada no alto da arma.

– É uma mira noturna de captação da luz; o único lugar onde vai encontrar coisa parecida é lá embaixo, na Colônia, onde elas são feitas à mão para os Styx. Esse é um rifle de Limitador e eu atirei e matei pelo menos dez deles com essa arma. Talvez mais, mas não me aproximei o bastante para saber se acertei o alvo – disse ela. Como Stephanie não reagiu a isso, Elliott franziu o cenho. – Estou curiosa... Posso te perguntar uma coisa...? – começou.

– Claro – respondeu Stephanie toda animada, baixando a arma ao quadril e girando de um lado a outro, como se estivesse detonando um inimigo invisível com uma submetralhadora. Para piorar ainda mais, ela soprou pelos lábios, imitando um disparo rápido.

– Rá! – Elliott engoliu em seco, resistindo à tentação de esmurrar a menina.

– O que você ia me perguntar? – disse Stephanie, sem perceber a expressão de desprezo em Elliott.

– Will informou a você da situação, então você sabe da Fase e como as coisas estão sérias. E como você está conosco, foi marcada pelos Styx. De maneira nenhuma pode ir para casa agora – disse Elliott com uma franqueza brutal.

Stephanie a olhou inquisitivamente.

Elliott continuou:

– Não tem nenhum problema para você? Ficar entocada neste lugar até que tudo acabe? Ou, se nós não conseguirmos cuidar da Fase e derrotar os Styx, passar o resto de sua vida... embora possa ser curta... vivendo com um medo constante. Fugindo o tempo todo.

Stephanie respirou fundo e devolveu o rifle a Elliott.

– Você não podia deixar mais evidente que não gosta de mim – disse ela, tirando o cabelo bem cuidado do rosto com um peteleco. – Mas eu não sou tipo uma fresca que grita e desmaia ao primeiro sinal de problemas. Sou durona, sabia?

Elliott soltou uma gargalhada áspera.

– É mesmo? Não me parece nada disso.

Stephanie sustentou o olhar pétreo da menina.

– Ué... Se você acha que sou um desperdício de espaço, por que não parte pra cima de mim? – Afastando-se bem para dar espaço a Elliott, ela tirou os sapatos. – Experimenta.

Elliott riu de novo, depois se deteve.

– Está falando sério?

– Tipo totalmente sério – respondeu Stephanie.

Ela baixou o rifle.

– Bom, se você insiste, mas Drake não vai ficar satisfeito se eu te machucar ou coisa parecida.

– Eu também não quero te machucar – contra-atacou Stephanie. – Suas costas melhoraram? Não quero piorar nada.

– Não se preocupe comigo. Tenho sangue Styx. Eu me curo rápido. – Ela se endireitou diante de Stephanie, que parecia inteiramente relaxada. Depois Elliott se lançou e pegou a menina pelo pescoço com as duas mãos.

Stephanie reagiu com absoluta precisão, erguendo os braços para se livrar do aperto de Elliott, depois enganchando sua perna. Elliott rodou feito um pião e caiu de cara no carpete.

Stephanie recuou, deixando que a outra menina se recuperasse.

– Mas onde foi que aprendeu isso? – perguntou Elliott, semicerrando os olhos.

– Bom, o Parry foi tipo uma influência enorme sobre meu pai quando ele foi criado na casa de campo, e ele o colocou na inteligência militar – explicou Stephanie.

– Outro espião? – disse Elliott.

– Coisa parecida. Papai ficou estacionado em um monte de lugares barra-pesada pelo mundo, e minha mãe, meus irmãos e eu fomos com ele para a maioria dos lugares. Não tive exatamente uma vida protegida. – Ela abriu um sorrisinho a Elliott. – Pode experimentar de novo, mas desta vez é melhor dar tudo. O Chester não é o único campeão olímpico por aqui.

– Ele não é? – respondeu ela, sua confusão evidente.

– Não, e se tivessem judô ou aikidô no Britain’s Got Talent, eu ganharia com as mãos nas costas. Anda logo, irritadinha... Tenta me bater – insistiu Stephanie. Ela mexeu os dedos, chamando Elliott para ela. – E desta vez dê o pior de si.

Elliott atacou a sério. Seu soco com carga máxima apontava diretamente para o queixo de Stephanie. Mas Stephanie se desviou do golpe, pegou Elliott pelo pulso e a jogou de costas num único movimento. E não terminou ali... Enquanto caía no chão ao lado de Elliott, Stephanie a pegou numa chave de braço. Elliott ficou presa no chão e completamente à mercê da outra menina.

– Te peguei! – disse Stephanie.

– Não! – exclamou Chester da porta.

O aparecimento repentino do menino distraiu Stephanie o suficiente para que Elliott conseguisse se libertar. Ela lançou as pernas para cima e pegou Stephanie pelo pescoço numa tesoura. Depois Elliott a derrubou no chão, onde a menina tentou o que pôde para se soltar. Mas agora Elliott era que a prendia com uma chave.

Chester tentava separá-las:

– Parem! Parem com isso agora!

Elliott relaxou o braço e as duas se sentaram.

– Bom movimento... Eu não esperava por essa. – Stephanie elogiou Elliott.

– O que vocês duas pensam que estão fazendo? – perguntou Chester, bufando de preocupação enquanto as meninas olhavam.

– Você parece meu pai. – Stephanie riu.

– Não foi pra valer – disse Elliott.

– Parecia pra valer para mim – rebateu Chester. – Além disso, você precisa cuidar das suas costas – disse ele a Elliott.

– Minhas costas estão completamente... – respondeu ela, mas parou porque Stephanie não conseguiu reprimir outro riso.

– O que há de tão engraçado? – exigiu saber Chester, agora se enfurecendo.

– Você não acha que a gente estava brigando por sua causa, né? – disse Stephanie.

Ruborizando, Chester deu meia-volta e fugiu do quarto. Resmungando consigo mesmo, arriou os ombros e andou pelo corredor.

Ao se aproximar da área dos elevadores, Will apareceu no canto com uma folha de papel na mão.

– Eu estava mesmo procurando você – disse Will. – Subi ao Centro e estão todos ocupados com sei lá o que, mas falei com o sargento Finch e ele... – Claramente animado com o que havia na folha de papel, Will estava prestes a mostrá-la ao amigo quando sentiu que nem tudo estava bem com ele. – Você não parece muito feliz. Está tudo bem?

– Ótimo... Tudo ótimo – cuspiu Chester, com a cara rígida de raiva.

Will pegou as vozes animadas de Elliott e Stephanie, depois a gargalhada estridente de Stephanie.

– Minha nossa! Estou mesmo ouvindo isso? Nunca pensei que essas duas um dia iam se entender. Do que elas estão rindo?

Chester fez uma careta.

– Não tenho a mais remota ideia... Elas são meninas, não são? O que você queria de mim? – perguntou ele rispidamente.

– Isto – disse Will, mostrando ao amigo a folha de papel. – O sargento Finch me disse que tem umas salas interessantes no Nível 3. Precisamos ir lá dar uma olhada.

Por insistência de Chester, eles pegaram a escada, em vez de o elevador. Ao entrarem no novo andar, imediatamente perceberam uma diferença. Ainda podia haver o linóleo no piso, mas era de um azul intenso e as paredes do corredor eram cobertas de papel de parede requintado com padrões dourados e verdes.

– Mas o que é isso? – Chester olhava em volta. – Pensei que estávamos no andar de luxo.

– Espere só – respondeu Will, consultando a folha de papel ao seguir à frente de Chester, verificando o que estava nas portas. – Ah, chegamos – anunciou, abrindo uma delas e acendendo a luz.

Era um apartamento de quatro cômodos com portas de comunicação e dois deles com camas de baldaquino, seu dossel envolto em veludo vermelho, e nas paredes tapeçarias retratando cenas de caça. A mobília antiga era incrivelmente decorada e parecia cara – era inteiramente diferente de qualquer coisa nos aposentos dos dois.

– Isto era para alguém importante? – Chester correu os olhos pelas cadeiras douradas e por um grande divã.

– Está esquentando. Era para alguém muito importante. Anda logo... Tenta adivinhar. – Will desafiou o amigo, enquanto eles passavam para um pequeno quarto anexo, que era bem básico e utilitário, se comparado ao quarto de dormir. Com uma pia de cuba quadrada no canto, tinha vários cercados pequenos ao longo da parede mais extensa.

– Alguma ideia? – perguntou Will.

– Nenhuma – disse Chester, esgotando sua paciência. – Vamos lá, Will, chega de embromação. Para quem eram esses quartos? E por que estamos parados na cozinha?

– Não é uma cozinha. Se eu te disser que esses cercados foram armados especialmente para corgis, isso ajudaria? – Will entrou em um deles.

– Corgis? – repetiu Chester, e então a ficha caiu. – Tá brincando! Era da rainha!

– Isso mesmo! E não é só isso! – exclamou Will, levando-o de volta pelos quartos e saindo novamente no corredor. Ele procurou uma chave no bolso, que colocou na fechadura de uma porta de aparência robusta nos aposentos ao lado. Ela se abriu em suas dobradiças imensas e os meninos entraram. Will acendeu a luz, e os dois foram recebidos pela visão de todo um cômodo com caixas de vidro montadas sobre pedestais. As caixas estavam vazias, mas, pelos suportes forrados de cetim na base de cada uma delas, estava claro que foram armadas para abrigar alguma coisa específica.

– Seria para cá que trariam as joias da coroa se sofrêssemos uma invasão – informou formou Will ao amigo.

Chester sorria e balançava a cabeça.

– Que doido. O que mais tem neste andar?

– O sargento Finch disse que todos esses quartos eram para os Vips – disse Will. – E você precisa ver o seguinte.

Mais além no corredor, havia uma porta com os dizeres PM. Chester não ficou impressionado, porque o quarto em si era muito apertado e não tinha nada de extraordinário quando andou por ele. Na mesa, havia um papel mata-borrão onde alguém começara a desenhar uma parede, tijolo por tijolo, embaixo da qual estava escrita a frase: Onde estás, sra. Everest, quando mais preciso de ti? Quando examinou rapidamente as gavetas, Chester nada encontrou, então deu mais uma olhada pelo quarto, chegando ao ponto de investigar o banheiro. Saiu brandindo um jornal – um exemplar antigo e amarelado do Times.

– Isto é velho... É de 15 de agosto de 1952 – disse ele, depois o jogou na cama, onde Will estava sentado. – Desisto... De quem era isso? – perguntou ele.

O plástico que cobria a cama estalou quando Will se curvou para a frente e abriu a gaveta da mesa de cabeceira. Ele pegou uma garrafa com um rótulo que dizia Hine e uma caixa que proclamava Aroma de Cuba.

– Conhaque e charutos – disse ele, erguendo os dois objetos.

Chester viu que a garrafa não estava cheia e o lacre na caixa de charutos tinha sido rompido.

– Isso não ajuda em nada... Vai ter de me dizer.

– Winston Churchill foi a última pessoa a dormir nesta cama – anunciou Will.

Chester riu.

– Bom, tomara que tenham trocado os lençóis!

Will olhava com interesse a caixa de charutos e o conhaque.

– O sargento Finch me disse que isto está aqui desde que ele foi primeiro-ministro. Ele queria passar uma noite no Complexo para saber como era. E ele sempre tomava uma dose de conhaque assim que acordava, para depois fumar o primeiro charuto – disse Will, quicando várias vezes no colchão. Depois ergueu a garrafa de conhaque para examinar o rótulo. – Por que não bebemos isso?

– Por quê? – perguntou Chester, confuso.

– Porque eu nunca fiquei bêbado de verdade. Quer dizer, tomei aquela cerveja que Tam me deu na Colônia, mas o gosto era horrível. – Agora Will rodava a garrafa e olhava o líquido marrom e grosso. – Talvez seja uma coisa que a gente deva fazer. Para o caso de...

– Para o caso de quê? – Chester sentou-se na cama ao lado do amigo. – Caso a gente não sobreviva a tudo isso?

Will assentiu sombriamente.

– Essa é uma ideia muito animadora – cochichou Chester. Ele tirou a caixa de charutos das mãos de Will e abriu a tampa, cheirando seu interior. – Essas coisas devem estar aqui há anos. Elas não estragam? – Ele pegou um dos charutos gorduchos e o rolou entre os dedos.

Will deu de ombros.

– Quem se importa... Ainda são charutos e eu nunca fumei nenhum. Nunca fumei nada. – Ele vasculhou a gaveta da mesa de cabeceira até encontrar uma caixa de fósforos. – Whitehall – leu o que estava impresso ali. – Tinha de ser.

– Uma vez, de férias com meus pais, tomei algumas cervejas com limonada, mas só isso – admitiu Chester. – Eu também nunca fumei.

– Lembra dos Grey? – Will olhava fixamente à meia distância, pensando na gangue que aterrorizava as crianças menores na Highfield High School. – Speed e Bloggsy bebiam cidra e fumavam cigarros o tempo todo. Tomavam todas, né, e isso já tem mais de um ano!

– Eles também tinham namorada – disse Chester, melancólico.

Will ainda tinha uma expressão distante.

– Se você pensar bem, Churchill liderou o país na Segunda Guerra Mundial e agora mesmo você e eu estamos no meio dessa guerra contra os Styx. Também somos muito importantes. Quem sabe... Sem a gente, o país talvez não tenha chance de vencer. Então, você não acha que temos o direito de fazer o que quisermos? Não devemos nós mesmos detonar o que sobrou do conhaque dele?

Mas Chester largou o charuto na caixa e fechou a tampa.

– Vou lhe dizer uma coisa, Will: quando vencermos, vamos voltar direto para cá e fumar até estourar e tomar um porre daqueles! – Ele estendeu a mão. – Fechado?

– Fechado – concordou Will, apertando a mão do amigo, depois guardando o conhaque e os charutos.

Eles foram interrompidos pelo sistema de interfone emitindo um tom claro no quarto e no corredor:

“Todos devem se dirigir ao Centro imediatamente. Repito... Todos devem se dirigir ao Centro imediatamente”, ordenou.

– Esse é o Danforth, não é? – disse Chester enquanto tombava a cabeça para ouvir a voz.

Will assentiu.

– Se Elliott aparecer, espero que ela o tenha perdoado. Ela está com um humor estranho e ele exagerou um pouco no bisturi quando a estava investigando... – Ao voltarem para a escada, Will acrescentou: – Na verdade, não gosto de pensar no que teria acontecido se ninguém mais estivesse ali para impedi-lo.

– É – concordou Chester. – É muito estranho, porque, embora ele não pareça, quando a gente o conhece melhor vê que na verdade é um sujeitinho bem assustador.

Drake dispunha uma variedade de objetos nas mesas enquanto todos convergiam para o Centro.

Will e Chester chegaram primeiro e viram entrar a sra. Burrows, o sr. e a sra. Rawls, o coronel Bismarck, depois Elliott e Stephanie. As duas meninas conversavam entusiasmadamente, como se fossem amigas há muito separadas.

– Olha elas aí – murmurou Chester a Will ao se desviar de Elliott e Stephanie. – Parece que elas ficaram amiguinhas de verdade.

– E Danforth está longe – observou Will, vendo o professor, que tinha os olhos grudados na tela de um de seus laptops. – Vou te contar, eu não me surpreenderia nem um pouco se Elliott desse um tiro quando tivesse uma oportunidade. – Will voltou sua atenção para Parry e o sargento Finch, ambos ocupados em telefones por satélite.

– Formem uma fila, por favor – disse Drake. – Quanto mais rápido acabarem aqui, mais rápido poderemos agir.

– Para onde vamos? – perguntou Chester, enquanto ele e Will se viam na frente da fila.

– Londres – respondeu Drake, preocupado ao colocar um pequeno cilindro de vidro em um dispositivo de aço inox, depois arregaçando a manga. – Para que ninguém tenha dúvidas sobre a injeção que vou dar em todos vocês, eu vou tomar primeiro. – Armando um mecanismo, ele o colocou contra o braço e, quando puxou o gatilho, soltou um leve clique. – Não doeu nada. – Ele sorriu.

– Mas todos nós já tomamos a vacina contra o Dominion – observou Chester. – Para que isso?

Drake limpou a ponta do dispositivo com álcool e o armou novamente.

– Ainda não vimos nenhum avanço do vírus Dominion, mas os Styx têm outras coisinhas perigosas que podem soltar na população – respondeu ele.

– E como sabe disso? – disse Will.

– Porque eu roubei uma carga de espécimes antes de Chester e eu acabarmos com os Laboratórios na Colônia. Alguns estavam trancados numa câmara especial; então, naturalmente, eu precisava tê-los. E pedi a um contato para analisar os diferentes patógenos que trouxe de lá. Além de suas descobertas, ele produziu um coquetel de vacinas contra todos eles.

Will desabotoou o punho e arregaçou a manga da camisa.

– Então, vamos lá. Melhor prevenir do que remediar – disse ele.

Drake não mentiu – a vacina não foi dolorosa e, logo depois de administrá-la, ele levou Will à mesa seguinte.

– Rádio das forças especiais com laringofone – disse ele ao menino, entregando uma das unidades. – Chester já usou um modelo parecido, então pode te mostrar como funciona. – Drake baixou a mão até um recipiente de plástico e pegou o que parecia ser um par de pequenos protetores de ouvido, que entregou a Will.

Will os examinou, com um olhar indagativo para Drake.

– Uma precaução a mais – disse Drake. – Celia e eu fomos nocauteados por uma bomba subaural Styx no Highfield Common. Eu perdi o Homem de Couro e muitos outros naquele dia. Não vou deixar que isso aconteça de novo. – Drake baixou a cabeça por um momento. – Chegaram alguns relatos de que os Styx estão usando dispositivos similares em Londres.

Ele pegou um segundo par de protetores em outro recipiente e os inseriu nas orelhas.

– Então, estes são uma coisinha que eu bolei quando estava no apartamento de Eddie. Não vão interferir com as frequências normais, mas no momento que detectam uma bomba subaural, ficam ativos. Replicam os comprimentos de onda, mas defasados. E assim vão contra-atacar qualquer ataque sônico a você.

– Vão nos proteger? – perguntou Will.

– Bom, você ainda vai saber que foi atacado... Talvez sinta alguma vertigem e sua visão pode ficar meio estranha... Mas, no fim das contas, não vai apagar. Esses plugues o protegerão por tempo suficiente para dar no pé ou neutralizar a fonte... A bomba em si.

– Legal. – Will os colocou no bolso.

– Não, precisa se acostumar com seu uso. Coloque-os – disse Drake rapidamente. – E agora que acabamos com você, pode dar uma ajuda a Danforth e encaixotar os detectores móveis ali. Precisamos deles lá fora, preparados para coleta por nosso transporte.

Will estava prestes a perguntar que transporte era quando Drake se voltou para a fila que o aguardava. Dando de ombros, Will foi até Danforth. Reduziu o passo quando passou por Parry, que estava no telefone por satélite. Parecia estar empregando uma sequência de senhas parecidas com a que o sargento Finch usou quando eles chegaram à entrada principal do Complexo – Parry citava versos do que parecia poesia sobre dragões adormecidos que despertavam, depois esperava por respostas de seu interlocutor.

– Drake disse que eu devia te ajudar – começou Will, anunciando-se a Danforth. O professor estava tão concentrado nos símbolos que rolavam pela tela que levou alguns minutos para levantar a cabeça.

– Este é um programa confidencial do governo que usei para traduzir o Livro da Proliferação. E, pelo que li até agora, é bem revelador – disse ele, tombando a cabeça para a tela. – O documento nos dá um insight sobre uma das espécies mais antigas, mais resistentes e sem nenhuma dúvida mais evoluídas que o mundo já conheceu.

– Sério? – disse Will com indiferença. Ele queria passar o menor tempo possível na companhia de Danforth. Chester tinha razão – havia algo de incrivelmente enervante naquele homem.

E Will ficou surpreso quando Danforth saiu de trás da mesa e se aproximou dele, embora cuidasse para não chegar perto demais, devido a sua fobia de contato humano.

– Então vocês vão a Londres numa brincadeira desvairada de caça a sinais de Luz Negra – disse Danforth, mantendo a voz baixa. – Como se sente com isso?

– Ainda não sei nada desse assunto... Drake não me informou – admitiu Will.

– Não há nenhuma questão, só há que agir e morrer – disse Danforth, citando erroneamente o poema de Tennyson. – É admirável que você esteja disposto a abrir mão de sua vida pela causa.

– Bom... Não... Temos de fazer o possível para impedir a Fase, não é? – Will olhou as pupilas intensas do professor através de seus óculos, mas o homem não respondeu.

Por um momento, o professor e o menino se encararam, como se tentassem mergulhar mais fundo, entender um ao outro. Em Danforth, Will de novo sentiu algo semelhante à dedicação obsessiva do dr. Burrows na busca de novo conhecimento. Um tremor gelado correu por sua espinha; ele quase podia imaginar que estava de volta com seu pai morto. Mas havia uma diferença gritante. Os olhos do professor eram inteiramente desprovidos de calor humano ou compaixão – ninguém tinha importância para ele. Absolutamente ninguém. Isso apavorava Will.

Danforth começou a sorrir, mas não era um sorriso agradável.

– Por que... Qual é o problema do plano? – perguntou Will, na esperança de descobrir mais sobre ele.

– Ora, promete ser interessante – disse Danforth, seu sorriso assumindo o escárnio. – Veja o que temos aqui. – Ele indicou a todos no Centro com um gesto largo. – Um remanescente do Terceiro Reich, um vira-casaca dos Styx, um homem com um forno de micro-ondas na cabeça e um bando de adolescentes como você, que atiram primeiro e perguntam depois. E, para completar, um comandante com idade para pegar ônibus de graça. Como é possível que isso dê errado?

De repente, a voz angustiada da sra. Rawls despertou a atenção de todos. Drake tinha terminado com Chester e estava prestes a aplicar a vacina nos pais dele.

– Não! Não vou deixar que meu marido e meu filho participem disso! – explodiu ela. Chester e o sr. Rawls estavam de cada lado dela enquanto ela protestava contra Drake. – Minha família já não fez o bastante por você?

– Dissidência nas fileiras – comentou Danforth. – Também não é bom presságio.

Orientado por Danforth, Will começou a cortar em tiras um rolo de tecido cáqui, que enrolava em cada um dos contadores Geiger antes de empilhá-los num engradado. Os contadores pareciam iguais àqueles que Will vira em vários pontos do Complexo – muito amassados, com o envoltório de esmalte cinza lascado. A única diferença que ele podia localizar naqueles que embalava era uma espécie de antena curta que fora acrescentada e os mostradores analógicos substituídos por modernos displays de LED. Mas Will não ficava nada à vontade falando com o professor para descobrir qual seria a finalidade deles.

A discussão acalorada com Drake chegou ao fim, com o sr. Rawls e a mulher saindo do Centro. Will viu Chester indo na direção dele.

– Isso foi constrangedor – disse o amigo.

– Qual é o problema? – perguntou Will.

– Mamãe não quer que meu pai e eu fiquemos em perigo de novo. Ela está meio deprimida com tudo isso agora – respondeu Chester. – Então papai e eu ainda iremos, mas Drake prometeu que só estaremos lá num papel de apoio. Nada de linha de frente. E minha mãe vai ficar aqui com... – Ele não chegou ao ponto de mencionar o nome de Danforth, mas o professor de qualquer modo estava envolvido demais em seu laptop para escutar.

– Oh – disse Will. Ele contava com o amigo junto dele quando enfrentassem o que esperava por eles em Londres.

Chester se curvou para Will e cochichou em seu ouvido:

– Mas não se preocupe, Will. Eu não vou amolecer depois de tudo por que passamos juntos.


Capítulo Treze


Todos receberam a ordem de seguir com suas armas e equipamento para a área perto das duas salas de guarda no final do túnel de entrada.

Então chegou. O momento em que todos partiriam.

Drake dera a todos parcas brancas com capuz forrado de peles e calças grossas da mesma cor. Embora as roupas fossem meio volumosas e dificultassem a locomoção, ele disse que ficariam gratos pelo isolamento que proporcionava quando estivessem no exterior.

Ao olhar para todos em trajes brancos de combate, Will viu suas expressões vazias e como eles estavam nervosos. Ele sabia precisamente o que sentiam. Tentavam esconder seu medo.

Na relativa segurança do Complexo subterrâneo, a ameaça representada pela Fase Styx parecia muito distante. Como um pesadelo que podia desbotar da memória quando se parava de pensar nele.

Por que nós? Por que outras pessoas não podem cuidar disso?, perguntou-se Will. Devia haver mais alguém que soubesse o que estava acontecendo, alguém melhor situado para o combate.

Se pudesse, Will sabia que simplesmente daria meia-volta e retornaria pelo longo túnel. O Complexo podia ser muito distante do mundo real, mas era a coisa mais próxima de um lar que ele conhecia há muito tempo.

Mas então ele olhou novamente e percebeu o que estava por trás da expressão de Drake e Eddie. Seus olhos falavam de dever e de uma determinação tranquila de fazer o que devia ser feito. Will disse a si mesmo que tentaria imitar esses homens, retiraria força deles. Estava tão imerso em pensamentos que nem ouviu Drake falando com ele.

– Você colocou os protetores de ouvido? – perguntou Drake pela segunda vez.

Will assentiu.

De sua scooter elétrica, o sargento Finch ajudava Drake a fazer uma verificação detalhada no equipamento de cada um deles antes que tivessem permissão de subir o aclive e chegar à escuridão da câmara de entrada. Will esvaziara sua Bergen e arrumara o conteúdo no chão ao lado do cinto que vinha com um kit e da submetralhadora Sten. Drake agora o elogiava.

– Equipamento perfeito – disse ele. – Ainda vamos fazer de você um soldado.

– Uma última coisa... Verificação das comunicações – lembrou o sargento Finch a Drake, enquanto semicerrava os olhos para a lista em sua amada prancheta e um gato dormia em seu colo.

Drake pôs a mão no headset.

– Testando... Um... Dois... Três – cochichou.

– Peguei, em alto e bom som – confirmou Will.

– Bom garoto, mas agora desligue para conservar a carga. E acabamos com você. – Drake se virou para Chester e recomeçou o processo com ele. Will arrumou as coisas na Bergen, mas esperou pelo amigo, que claramente estava constrangido porque a mãe parecia relutante em largá-lo.

O coração de Will se solidarizou com ela, ali agarrada ao filho, falando baixinho com ele. Contra qualquer probabilidade, a família Rawls fora reunida e era estranho que Chester e o pai estivessem prestes a ser separados de novo da sra. Rawls.

Will lançou um olhar à própria mãe, parada sem olhar para ninguém, numa espécie de desligamento etéreo. Will e a sra. Burrows não constituíam uma família havia muito tempo. Eles mais pareciam companheiros de combate.

E então Chester veio na direção dele.

– Coitada da mamãe. Ela realmente não quer que a gente vá – confidenciou o amigo em voz baixa. Os meninos entraram juntos na câmara, descobrindo que Parry já estava posicionado ao lado do painel deslizante de saída.

– O Sweeney vem com a gente, não vem? – disse Will a Parry, percebendo que não o vira na sala da guarda.

– Ele está vigiando os engradados lá fora – respondeu Parry. – E antes que você me pergunte, o Wilkie também não faz parte do destacamento. Ele... – Parry simplesmente se interrompeu ao olhar o mostrador de seu relógio luminoso.

Logo todos estavam agrupados na câmara. Ombro a ombro, no espaço fechado e lotado com suas armas e Bergens pesadas, eles sentiam um calor cada vez maior em seus uniformes para clima polar.

O rádio de Parry de repente ganhou vida. “Cinco quilômetros numa linha de voo norte-noroeste”, anunciou. “Confirme. Câmbio.”

Linha de voo, pensou Will, desejando poder olhar nos olhos de Chester, mas era impossível no escuro. Ninguém disse como eles fariam a viagem a Londres. Drake dissera que eles só saberiam do necessário.

– Confirmado – respondeu Parry pelo rádio. – Zona de pouso será pintada. Câmbio e desligo. – Enquanto enganchava o rádio novamente no cinto entrelaçado, ele sentiu que os dois meninos estavam loucos para saber o que significava esse diálogo. – Ultimamente não usamos a luz visível para marcar as zonas de pouso, mas lanternas de infravermelho – explicou ele. – O piloto pode ver a um quilômetro e meio antes da descida.

– Sei – respondeu Will, como se compreendesse exatamente o que dizia Parry, o que não era verdade. Mas pelo menos ele sabia que eles iriam para o sul pelo ar.

– Está na hora – disse Parry a todos. – Sei que todos vocês carregam muito peso com o equipamento, mas devem acompanhar o coronel, que liderará até a zona de pouso. Nossa janela é muito estreita e não podemos nos atrasar.

Parry abriu a portinhola e os meninos deram um passo de lado, permitindo que o coronel passasse e saísse. Depois todos o seguiram para o turbilhão de neve.

– Meu Deus, está congelando! – exclamou Chester quando o ar frio encheu seus pulmões.

Eles avançavam rapidamente, um atrás do outro, pelo portão da cerca de tela, depois descendo o morro, as botas batendo no chão congelado ao correr.

À frente de Will estavam Chester e o coronel. Bem atrás dele vinha Parry, depois ele distinguiu as formas vagas do resto do grupo: o sr. Rawls, Eddie e Elliott, Stephanie, a sra. Burrows e, o último, Drake.

Um vento soprava da encosta e assoviava pelos cabos de eletricidade enquanto eles passavam por baixo. Não havia luar devido à grossa camada de nuvens, então Will achou impossível distinguir qualquer coisa muito à frente. Ele via que o sr. Rawls se esforçava para acompanhá-los e começou a se perguntar até onde eles ainda teriam de andar. Estariam eles indo para o vale em si? Mas cerca de vinte minutos depois o chão se nivelou e o coronel reduziu o passo. Will viu que Sweeney estava agachado ao lado de vários engradados que continham os detectores móveis que ele ajudou a guardar.

– Fiquem aqui – ordenou Parry. Depois ele e Drake se afastaram. Colocando-se a mais de doze metros um do outro, eles ergueram dispositivos que pareciam lanternas, embora não emitissem nenhuma luz discernível.

Todos olharam para cima quando ouviram o barulho, como se o céu desabasse. Era tão tumultuoso e inesperado que foi impossível não se abaixar.

O helicóptero voava tão baixo que de repente parecia estar diretamente acima deles. Enquanto a imensa incidência negativa de seus poderosos rotores espanava a neve de lado feito confetes, a imensa máquina de guerra pairando a menos de dez metros de suas cabeças era apavorante.


Enquanto ele taxiava, posicionando-se entre Parry e Drake e iniciando a descida, seu nariz se ergueu. Manteve-se num ângulo de quarenta e cinco graus e no momento em que as rodas na traseira da fuselagem tocaram o chão uma rampa se abriu entre elas. Mais alto do que o barulho do motor do helicóptero, Parry e Drake gritavam para que todos subissem a bordo. Havia luzes vermelhas fracas marcando as bordas da rampa para guiá-los, e enquanto Will subia, teve um vislumbre do emblema do exército na fuselagem. Drake, Sweeney e o coronel carregaram os engradados rampa acima, depois fecharam-na com um baque. Todos estavam a bordo.

Will assumiu um lugar ao lado de Chester e afivelou o cinto. Com assentos dos dois lados, o interior tinha tranquilamente duas vezes o tamanho de um vagão de trem, mas não havia sinal de tripulação nenhuma. Will e Chester viram Parry passar à frente do helicóptero. Os meninos tiveram um vislumbre momentâneo de dois pilotos banhados na luz verde de seu painel de instrumentos antes de a porta do cabine se fechar novamente.

Vendo seu interesse, Drake se aproximou e se curvou entre eles, falando alto para que pudessem ouvi-lo:

– E o que acham de nossa carona?

– Que doido! – respondeu Chester.

– De que tipo é? – gritou Will.

– É um Chinnok do esquadrão 27 voltando para Hampshire. Meu pai cobrou alguns favores e nos conseguiu uma carona. É claro que nossa presença é inteiramente extraoficial e não haverá registro nenhum no diário de bordo.

Will e Chester assentiram.

Drake gesticulou para a janela atrás dos meninos e os dois se viraram para olhar. Havia um ou dois pontinhos mínimos de luz brilhando feito estrelas ao longe, mas, tirando isso, apenas redemoinhos de neve torcendo-se na escuridão.

– Mantenham o cinto afivelado porque teremos um voo turbulento. Estamos voando junto das árvores para evitar o radar o máximo que pudermos – disse-lhes Drake.

– Tá, estamos mesmo dando um rasante – disse Will, animado, enquanto eles zuniam sobre uma estrada iluminada.

Mas, quando Drake voltou a seu lugar, o entusiasmo inicial de Will rapidamente havia evaporado. A batida dos motores e a mudança repentina na altitude trouxeram de volta lembranças do último voo de helicóptero em que ele estivera.

Embora fosse difícil saber naquela luz fraca, Will tinha certeza de ter apanhado Elliott e o coronel Bismarck olhando para ele. Ele se perguntou se eles também pensavam na viagem que fizeram juntos no mundo interior. Foi logo depois de o dr. Burrows ter sido baleado por uma das Rebeccas e Will ficou tão fora de si de raiva e tristeza que teve de ser arrastado para dentro da aeronave por dois soldados neogermanos.

E então, para piorar as coisas, Will passou a culpar Elliott pela morte do pai. Ele via o brilho em seus olhos, sentada na frente dele no helicóptero, e sentiu muita vergonha por seu comportamento. Mais do que isso, porém, ele não conseguia parar de pensar no fim violento do pai na pirâmide ensolarada.

Ele ainda estava perdido nesses pensamentos quando Chester o cutucou nas costelas, com um sorriso grande na cara, mostrando o polegar para cima. Will só conseguiu abrir um sorriso amarelo em resposta. Mas pelo menos alguém estava curtindo o voo.

Will não tinha certeza se cochilara, mas parecia que de repente os motores mudaram de passo. Ele então viu muito mais luzes pela janela à medida que a altitude era reduzida. Antes que se desse conta, houve um solavanco e o helicóptero tocou o chão.

Parry e Drake estavam ali, dizendo para todos desembarcarem, gritando mais alto do que os rotores, que ainda giravam. Os engradados foram rapidamente descarregados e em menos de um minuto o helicóptero levantou voo de novo.

Os ouvidos de Will tiniam no silêncio. Eles foram deixados em um campo onde a neve caía ainda mais pesada do que antes e nada em volta deles era visível.

Então, de um canto distante, um único par de faróis brilhou por um segundo. Parry sinalizou com a lanterna e de repente várias luzes cortavam o campo.

Os veículos se aproximavam, um de cada vez. O primeiro era um furgão, seguido por um Land Rover, depois uma perua Volvo e toda uma sucessão de carros indefinidos. Parry falou com cada motorista enquanto Drake e Sweeney colocavam uma caixa na traseira. Em seguida, os veículos prosseguiram, suas rodas revirando a neve.

Enquanto o último deles desaparecia na noite, Parry falou com Eddie, que esperava ao lado da única caixa restante de detectores.

– É aqui que nos separamos. Boa caçada.

Eddie assentiu em resposta, depois olhou para Elliott.

– Quer vir comigo?

Elliott parou, lançando um olhar rápido a Will em meio à cascata constante de flocos de neve.

– Tudo bem – respondeu ela despreocupadamente.

Will ficou de queixo caído; não esperava nem por um segundo que ela aceitasse o convite. Ele se sentiu traído e abandonado por Elliott e, embora nunca admitisse isso para si mesmo, teve certo ciúme de sua relação recém-estabelecida com o pai. E ele percebeu o quanto dependia dela a seu lado, assim como dependia de Chester.

Parry partiu para a beira do campo, mas Will não se mexeu. Drake o cutucou amistosamente com o braço.

– Está tudo bem, meu velho. Antes que você se dê conta, ela estará de volta a nós – garantiu-lhe.

– Humm, tudo bem... Sim – murmurou Will, percebendo que seus sentimentos deviam ser visíveis. Ele se curvou para a frente, fingindo tossir, arrumando uma desculpa para não falar com Drake enquanto partia ao lado dele.

Enfrentando a nevasca, todos seguiram Parry por vários campos, até que deram em uma área cercada. Ali, ele abriu um portão. Do outro lado havia uma colina elevada coberta de neve do tamanho de várias quadras de tênis. Will tentou distinguir onde estavam, mas não houve tempo, porque Parry os levou rapidamente pela beira do monte, depois desceu uma escada com crostas de gelo, passando por uma porta.

Eles ficaram agradecidos por se distanciarem do vento e da neve congelantes e seguiram em fila atrás de Parry, descendo vários lances de uma escada de concreto. E então depararam com uma porta de metal amassada com uma placa que proclamava Sala da Bomba.

Chester passou antes de Will.

– Olha só isso! – cochichou ele ao amigo.

Eles estavam numa plataforma, completa, com uma composição do metrô esperando no túnel. A plataforma não era diferente daquelas antiquadas que ainda estavam em operação no metrô londrino; as paredes eram ladrilhadas, embora fosse impossível ver sua cor devido à grossa camada de poeira e incrustações nelas. E a plataforma estava tomada de imensos tambores de cabos blindados e caixas de madeira apodrecida cheias de componentes de engenharia que eram mais ferrugem do que metal.

Will localizou uma placa com status de alerta visível no alto, abaixo da qual havia dois ganchos, embora não houvesse nada para suspender. Ele passou os olhos mais além na plataforma e não conseguiu ver nada que indicasse o nome da estação.

– Estamos perto de Londres? – perguntou ele a Parry.

– Não, a uns bons cinquenta quilômetros. Estamos em Essex. – Parry gesticulou para o teto. – Estamos bem abaixo da represa de Keveldon e você não encontrará nada sobre este lugar em nenhum livro de história – disse ele. – Era conhecido como o “Primeiro Círculo” da infraestrutura de defesa, assim o governo podia fugir da capital, se as coisas ficassem perigosas. Quando foi construída, esta conexão ferroviária originalmente corria até Westminster.

– É para lá que nós vamos? – disse Will.

Parry balançou a cabeça.

– O último quilômetro está fora de serviço há anos... Devido a inundações.

Will voltou sua atenção para o trem. Uma luz vinha do interior de dois vagões bem à frente deles, embora as janelas fossem quase opacas de poeira.

– Foi conservado por uns camaradas da Velha Guarda, mais como um passatempo do que qualquer outra coisa – disse Parry, depois girou o corpo enquanto um apito soava da extremidade da plataforma e as portas do trem se abriram num guincho. – Lá estão eles. – Um homem estava distante demais para que Will o enxergasse com clareza e Parry acenou para ele e gritou: – Todos para dentro!

O interior do vagão consistia em um piso de chapas de madeira, onde havia algumas pilhas de lona esfarrapada.

– Temos de manter a velocidade baixa devido ao estado dos trilhos, então a viagem levará cerca de uma hora. Vocês devem tentar dormir um pouco – aconselhou Parry, enquanto todos tiravam as Bergens dos ombros e escolhiam onde se sentar.

Drake assumiu:

– A regra de ouro é tirar um cochilo sempre que houver oportunidade. Nunca se sabe quando vocês terão outra chance.

– Então pegamos um helicóptero e agora um trem – disse Chester a Will. – E depois?

– Talvez um barco – sugeriu Will, deitando-se com a cabeça na Bergen e tentando se colocar à vontade. Enquanto as portas se fechavam, ele abriu um grande bocejo. – Sim, um barco. Não subimos em nenhum desde as Profundezas.

– De jeito nenhum. Detesto barcos – disse Chester num tom descontente. – Barcos, elevadores e descidas ao subterrâneo. – Ele enxugou a umidade do rosto e reprimiu um espirro. – E ficar com frio e molhado. Também detesto isso.

– E os insetos – acrescentou Will. – Não se esqueça dos insetos.


– Estamos chegando à estação! – gritou Drake.

Os olhos de Will se abriram, mas ele precisou de um instante para entender onde estava ao ver a cara preguiçosa de Chester a menos de um metro dele.

– Ei, feioso! Acorda! – disse Will, cutucando o amigo. – Chegamos!

Chester olhou, atordoado, o piso sujo.

– Mas que droga. Eu estava sonhando que estava de férias – queixou-se ele. – De novo no Center Parcs, com mamãe e papai.

– Desculpe decepcioná-lo – disse Will.

Eles desembarcaram do trem e se viram em uma plataforma parecida com aquela de onde partiram. Andando em grupo por ela, deram com uma figura esperando por eles na saída. Apesar de seu rosto estar coberto por uma máscara de esqui e ele ter uma arma no cinto, não intimidava nem um pouco. Fumando seu cachimbo, dava a impressão de que era ainda mais velho do que Parry.

– Obrigado, Albert – disse Parry, dando um tapa no ombro do homem enquanto eles passavam pelo que Will sabia, pela espessura, que devia ser uma porta à prova de explosões, depois subiam uma escada circular. A escada continuou para sempre, numa espiral eterna, até que eles chegaram a uma porta no topo, levando a um corredor escuro. Havia ladrilhos atapetados, muitos deles soltos, e móveis de escritório empilhavam-se pela lateral. No final do corredor havia um pequeno elevador de serviço, que Parry chamou. Não tinha tamanho suficiente para acomodar a todos, então Parry levou Will, o coronel e Stephanie.

– Onde exatamente estamos agora? – perguntou Will durante a subida.

– Você verá – respondeu Parry. As portas se abriram com estrondo e Will semicerrou os olhos para a luz ao seguir Parry para fora do elevador. – É um crime que este lugar não seja usado para nada ultimamente – disse Parry. – Antigamente havia um restaurante alguns andares abaixo, com um piso giratório.

– Estamos na Torre BT. – Will ofegou.

– Estamos em Londres! – guinchou Stephanie com alegria.

A luz do dia entrava pelas janelas ao longo daquele andar, que, exceto pela área central que abrigava os elevadores, estava completamente vazio.

E pelas janelas havia uma vista de tirar o fôlego – a paisagem de Londres. Will se curvou e olhou para baixo, vendo os telhados cobertos de neve e as pessoas nas ruas. Ao andar lentamente pelas janelas, ele localizou um grupo de caminhões do exército na Charlotte Street, mas, tirando isso, não parecia haver nada fora do comum. Até que chegou onde Parry havia parado.

– Meu Deus. Quem pensaria que um dia testemunharíamos isso? – O velho suspirou, petrificado pela vista da janela.

A uns cinco quilômetros de distância, em um trecho de Westminster à City, várias colunas grossas de fumaça preta se erguiam no céu. Will viu a legião de helicópteros que pairavam sobre as áreas afetadas e teve consciência do uivo constante de sirenes ao fundo.

– Lá fora está uma anarquia – disse Parry. – Os Styx conseguiram o que nunca pensei que fosse possível. Estamos em guerra com nós mesmos.

Drake e o resto do grupo chegaram de elevador. Ao se juntarem ao velho em seu ponto de observação, também olharam fixamente pelas janelas. Houve um choque de silêncio.

– Você está bem, mãe? – perguntou Will, ao ver a mãe cambalear para trás.

Seus punhos se cerravam e ela estava muito pálida.

– Gente demais – sussurrou. – Posso sentir seu ódio e seu medo. É pior do que da última vez em que estivemos aqui. – Ela voltava para o meio do andar. – É demais... E um homem acabou de subir no elevador.

Alguém deu um pigarro e todos se viravam, encontrando um idoso de bigode de pontas recurvadas, vestido de macacão azul, parado ali. Ele começou a ler um cartão:

– Dorme o dragão...

– Ah, não se incomode com essa asneira – disse Parry, aproximando-se e pegando firmemente a mão do homem. – O primo do sargento Finch, imagino.

O velho assentiu, e um ruído agudo ecoou. Ele deu um tapinha na orelha e o barulho parou.

– O aparelho auditivo está com defeito – explicou. – Meu nome é Terrence. Terry Finch.

– Olhe aqui por um momento, por favor – disse Drake, segurando o Descontaminador de Danforth na cara do homem. A explosão de luz roxa se refletiu em seus olhos reumosos, mas não houve reação da parte dele.

– Tirou uma foto minha? – perguntou Terry.

– Ele está limpo – disse Drake, afastando o Descontaminador. – Não sofreu a Luz Negra.

– Só estamos nos certificando de que você é um de nós – disse Parry.

Terry claramente não ouviu Parry ao colocar a mão em concha no ouvido.

– Basta uma? – perguntou.

Parry falou mais alto do que o habitual:

– A requisição serviu para a equipe de segurança lá embaixo? Não queremos ser perturbados aqui.

– Como? – disse Terry.

Com um suspiro, Drake se curvou para o velho.

– Terry, me leve à sala de transmissão! – gritou. – Preciso preparar as coisas.


Em outra parte de Londres, Harry descia a escada, sua cabeça inclinada estranhamente à frente dos ombros enquanto percorria os degraus. Nesse dia, porém, sua postura não era nada incomum. Ele estava assim há cerca de vinte anos, depois de um salto HALO malfeito, de altitude elevada em que o paraquedas é aberto próximo ao solo, deixando-o com uma coluna cuja parte superior era principalmente de titânio.

– Janey, estou saindo. E vou pegar o carro – disse ele. – Tudo bem?

– Claro, pai – respondeu a filha, tirando os olhos do livro que lia para dar uma olhada em seu pai de 65 anos que girava o corpo todo para localizar as chaves – ele não tinha alternativa, com a articulação limitada do pescoço.

Ele apareceu na porta da sala de estar.

– Não se lembra de onde coloquei aqueles pentes a mais da Hi-Power, lembra?

– Sim, no consolo da lareira – respondeu ela. – No Mr. Clowny.

– Obrigado – disse o pai, e ela o viu andar até o palhaço de cerâmica de cores berrantes e levantar sua cabeça com chapéu-coco. Enfiando a mão, ele pegou dois pentes para sua pistola. Parou antes de recolocar a tampa e também pegou uma adaga comprida que escondia no palhaço.

– A Sykes-Fairbairn também? Vai tomar cuidado lá fora, não vai, papai? – disse Janey, com preocupação no rosto.

– Não vou deixar que meu dia seja estragado por idiotas chutando vitrines de lojas – respondeu Harry em desafio.

– O que está havendo é um pouco mais sério do que isso – respondeu ela. – De qualquer modo, eu não estava falando dos tumultos... Quis dizer o clima. Deve estar vários graus abaixo de zero lá fora.

Com um gorro e cachecol de lã e um grosso casaco verde, ele estava vestido no que normalmente usaria quando saía para pescar. Mas não parecia estar com vara de pesca nem o equipamento. De qualquer modo, certamente não era época do ano para a pesca, então ela supôs que devia ser outra atividade com que ele ocupava seus dias.

– Vai à horta? – perguntou ela ao pensar melhor, enquanto ele saía da sala. A única resposta foi a batida da porta da frente.

Baixando o livro, Janey se levantou da cadeira e foi à janela, onde puxou a cortina de lado. Houve uma recente queda de neve, ao amanhecer, e tudo lá fora era branco e imaculado de frio.

– Ele não pode estar trabalhando na horta. Com esse tempo? – perguntou-se ela em voz alta.

Janey ainda observava enquanto o ex-tenente Harry “Hoss” Handscombe limpava vigorosamente a neve e o gelo do para-brisa do carro com um raspador.

– Então, aonde esse velho bobo está indo? – perguntou-se Janey carinhosamente. Ela deu de ombros, depois se virou para a TV, experimentando alguns canais. Todos ainda estavam fora do ar, então ela voltou a se sentar na poltrona, de novo envolvendo-se em seu livro.

Harry dirigiu por dez minutos, entrando no estacionamento de um supermercado e dando uma volta, mexendo todo o corpo da cintura para cima ao olhar pelo para-brisa. Como a maioria das lojas em Londres, os tumultos recentes provocaram uma corrida por comida que deixou muito pouco para comprar. Consequentemente, o estacionamento não estava cheio e ele não demorou muito para encontrar o que procurava.

Ele estacionou o carro, mas não perto demais do Land Rover amassado num canto. Harry olhava a imagem de um dragão verde colada no alto do para-brisa ao se aproximar do veículo com seu peculiar andar de costas rígidas. A porta do motorista se abriu no momento em que ele chegou e uma mulher mais ou menos de sua idade colocou a cabeça para fora.

– É bom te ver de novo, Hoss. – Ela não sorriu, mas seus olhos cinza e intensos eram simpáticos.

– Você também, Anne – respondeu ele enquanto trocavam um aperto de mãos. – Sabe de uma coisa, eu penso muito no Ian. Sinto falta dele.

Ela assentiu.

– Ele também gostava muito de você. Depois que você sofreu seu acidente, ele costumava brincar que você estava tentando ao máximo poupar sua família da despesa de um funeral, batendo no chão com tanta força que se enterraria sozinho.

– Uma coisa que não me faz falta no velho camarada é seu senso de humor. – Harry riu, depois ficou sério. – Como ele estava no fim?

– Ele acabou se entendendo com a doença. Me disse que fez as pazes com ela porque conseguiu o que queria... Morrer em casa, e não em uma selva no fim do mundo, como tantos de vocês três décadas atrás. Mas chega dessa pieguice... Como está a artrite? – perguntou ela, mudando de assunto.

– Nada mal, apesar de tudo. Eu levo um tempo cada vez maior para me levantar de man...

Ele se calou ao passarem duas viaturas policiais em disparada pelo estacionamento. Harry pôs a mão no bolso do casaco, fechando-a na Browning High-Power. Mas, enquanto ele e Anne observavam, os carros pararam ao lado do supermercado. Saltaram policiais, que correram para dentro do prédio.

– Deve ser mais uma briga nos balcões – murmurou Anne. Ela olhava fixamente as viaturas. – Mas não se sabe em quem confiar hoje em dia, não é? A não ser por nós, os aposentados, porque todo mundo já nos deu por perdidos. Somos invisíveis. – Ela riu ao baixar a espingarda de cano serrado nos pés.

– Vivemos tempos de incerteza – concordou Harry. – Ainda acho ridículo que tenham chamado o exército para patrulhar as ruas. – Enquanto ele falava, Anne pegou um objeto enrolado em tecido cáqui no banco traseiro. – Isto é para mim, imagino.

– Sim, com lembranças do comandante – respondeu ela. – Parry lhe falou da manobra?

– Sim, ele me informou – confirmou Harry.

Ela lhe entregou o contador Geiger convertido.

– Boa caçada, Hoss. – Antes que ela fechasse a porta, ele teve um vislumbre de vários outros embrulhos cáqui empilhados na traseira do Land Rover.

De volta a seu carro, Harry colocou cuidadosamente o detector móvel no banco do carona, ao lado de seu GPS e da Browning High-Power, cobrindo tudo com um jornal.

– Será um longo dia – disse consigo mesmo. Ele verificou o mostrador de combustível ao arrancar. Precisava encontrar um posto de gasolina que realmente tivesse estoque para abastecer o carro. Ainda teria muito chão pela frente antes de chegar à via expressa que o tiraria de Londres e o levaria ao quadrante que lhe fora atribuído por Parry.

– Um longo dia para a Velha Guarda – disse Harry.


No Centro, Danforth coordenava as operações, enquanto Drake controlava as antenas parabólicas na Torre BT usando seu laptop. Drake tinha um mapa em sua tela e sempre que um relatório de atividade de Luz Negra chegava de qualquer um dos homens da Velha Guarda ou de Eddie com seus detectores móveis era retransmitido a ele por Danforth. E então Drake se concentraria na área usando as antenas instaladas na torre e a localização exata seria triangulada.

A operação não avançava porque havia vários cortes de energia que desligavam as antenas de Drake. E, a cada vez, ele tinha de esperar que a eletricidade fosse restaurada, além de dar um tempo para a reinicialização do sistema antes de poder recomeçar.

Várias horas depois, ele chamou Parry.

– Acho que conseguimos alguma coisa aqui – disse ele, tombando a cabeça para um mapa na tela. – Encontramos sinais em toda parte, mas o nível está muito além da escala em um local a oeste. Pegamos uma grande concentração de Luz Negra ali.

– Perto de Slough – observou Parry, vendo o aglomerado de pontos vermelhos que pulsavam no mapa. – Devemos nos mobilizar e ir para lá?

Drake meneou a cabeça.

– Ainda não. Não queremos desperdiçar nosso tempo se não tiver nada ver com a Fase. Danforth mandou algumas equipes para um reconhecimento.


Depois de sair da via expressa, Harry passou por duas rotatórias e estava a caminho da zona industrial quando localizou um bloqueio do exército na estrada à frente. Rapidamente, olhou em volta; havia acostamento de relva dos dois lados e nem um prédio à vista. Era tarde demais para pensar em fazer a volta, então ele se certificou de que o detector móvel estivesse desligado e fora de vista ao se aproximar da barreira.

Um veículo blindado estava estacionado no acostamento, que ele reconheceu como um Viking, e nele um soldado manejava uma metralhadora calibre .50. Estava apontada diretamente para Harry, que logo entendeu que havia alguma coisa errada. Mesmo com os níveis atuais de inquietação civil e a segurança maior, isso era um tanto excessivo para um velho em seu carro.

O soldado na barreira gesticulou para ele encostar.

– Posso perguntar o que está fazendo, senhor? – exigiu ele bruscamente.

– Vou pegar minha neta numa festa – mentiu Harry.

– Sua neta. Sei. Pode sair de seu carro, senhor, e mantenha as mãos onde eu possa ver – ordenou o soldado.

– Tem algum problema mais para a frente? – perguntou Harry, tentando enxergar a estrada para além da barreira.

A voz do soldado ficou áspera de impaciência:

– Saia do carro. – Ele apontou o fuzil de assalto para Harry. – Agora!

Harry saiu, mantendo as mãos diante do corpo.

– Encoste no veículo – disse o soldado, girando o dedo para indicar que Harry devia se virar para o outro lado. – E abra as pernas.

Harry obedeceu enquanto outro soldado se juntava ao primeiro e ele fazia uma revista completa.

– Vejo que você é do regimento de paraquedistas – disse Harry. – Não está muito longe do quartel?

O soldado que o revistava tinha acabado de verificar suas pernas, descendo até as botas, e agora se endireitava rapidamente. Pegou Harry pelo ombro e o girou.

– E o que sabe sobre isso, vovô?

Harry não se deixou abalar.

– Porque eu também era paraquedista. Servi de 1951 a...

– Mostre uma identificação – rebateu o soldado.

Harry lentamente pegou a carteira e a estendeu. O soldado encontrou sua habilitação e examinou.

– Harold James Handscombe – leu ele. Ele pingava desprezo e virava a cara logo depois de falar para mostrar o pouco significado que Harry tinha para ele.

Mas as palavras que chegaram então a Harry foram apavorantes:

– Fique aqui – disse o soldado com o fuzil de assalto. – Vamos ter que dar uma busca em todo o veículo.

Sinos de alarme soavam loucamente na cabeça de Harry e suas terminações nervosas formigaram como se passassem eletricidade por seu corpo.

– Claro – disse ele, ao olhar o banco do motorista, calculando quanto tempo levaria para pegar a Browning High-Power embaixo dele. Teria muito pouco tempo e, mesmo que conseguisse pegar a arma, as chances não estavam a seu favor; ele teria primeiro de incapacitar o soldado mais próximo, depois cuidar dos outros dois.

Já fazia muito tempo que não atirava em alguém, mas os antigos instintos nunca desapareciam. De uma coisa ele tinha certeza – a situação ficaria bem desagradável. Para Harry, isso era mais do que apenas um pressentimento – ele estava agindo segundo todos os anos que passou correndo riscos.

Os olhos do soldado estavam meio vidrados; se Parry não o tivesse informado sobre os Styx e suas técnicas de controle mental, Harry teria imaginado que os homens estavam drogados. E o comportamento dos soldados era completamente inaceitável.

O soldado avançava para a frente do carro.

– A mala está destrancada? – perguntou.

– Está – disse Harry. Mas, antes que o soldado conseguisse alcançar a mala, Harry sabia que certamente ele descobriria o detector móvel, o GPS e por fim a pistola debaixo do banco do motorista.

O soldado chegara à porta do carona e a abria.

Ele se abaixou para olhar embaixo do jornal no piso.

Enquanto registrava o contador Geiger modificado, ele abriu a boca para gritar um alerta ao outro soldado.

Harry sabia que o jogo tinha acabado.

Ele se movimentou com a maior rapidez que seu corpo muito pouco ágil lhe permitia.

Enquanto girava nos calcanhares e estendia a mão para o banco do motorista, viu uma coisa curiosa pelo canto dos olhos.

O soldado com o fuzil de assalto simplesmente vergou no chão. E ao se abaixar para ver o outro homem através do carro, Harry notou que ele estava esparramado na estrada.

Harry se levantou. Até o soldado no Viking estava arriado por cima da pesada metralhadora.

Eddie e outros três de seus homens, com rifles de tranquilizador, apareceram no acostamento coberto de neve, na direção de um Harry tremendamente confuso.

– O professor Danforth achou que talvez você precisasse de uma ajuda – disse Eddie.


Meia hora depois, chegou a chamada. Era Eddie. Parry colocou-se ao lado de Drake, que falava no telefone por satélite. Quando o telefonema acabou, Drake inteirou o pai:

– Conseguimos alguma coisa. Eddie encontrou Limitadores e equipes de soldados comprometidos em postos de controle nas estradas da zona industrial. A área estava completamente cercada, mas ele e seus homens abriram uma passagem.

– Parece promissor – disse Parry.

– Fica ainda melhor. Eddie está na região com alguém da Velha Guarda. Vigiam uma fábrica de bom tamanho, tomada de Limitadores, e também com um alto grau de atividade de veículos. Eles viram pelo menos dois caminhões refrigerados fazendo entregas do que pode ter sido carne... O último acaba de chegar. Então deve ser comida para as larvas de Guerreiro. Imagino que talvez tenhamos encontrado o filão principal.

– O que Danforth acha disso? – perguntou Parry.

– Ele concorda que o uso da Luz Negra é excepcionalmente concentrado neste local. Ele pensa que é o ponto. Está mandando a Eddie as plantas da fábrica agora mesmo.

Parry levou um segundo para se decidir.

– Todos vocês! – gritou ele pelo andar. – Estamos em ação.


PARTE TRÊS

Ataque


Capítulo Catorze


– Isso é bom. Eu podia me acostumar com a vida corporativa – brincou Rebecca Um, bebendo sua Diet Coke por um canudinho.

– Mas é claro – concordou Rebecca Dois.

As gêmeas Styx estavam na sala do conselho, recostadas em suas cadeiras estofadas, com os pés em cima da mesa.

Rebecca Um passou os olhos pelos pratos de sanduíches que ela e a irmã mal tinham tocado.

– Já tive tudo o que queria desses.

– Eu também. Pode, por favor, tirar a mesa e nos trazer dois sorvetes, Johan? – pediu Rebecca Dois. Ela observou o capitão Franz recolher os pratos, depois ir para a cozinha.

Rebecca Um bateu a lata de Diet Coke na mesa.

– Não vai parar de tratá-lo com luvas de pelica? Você não deve pedir a ele para fazer as coisas... tem que mandar. E ele é da Crosta... Não use seu nome de batismo – disse ela. – Estou preocupada com você, sabia? Tem agido de um jeito esquisito.

Bebendo o refrigerante, Rebecca Dois não respondeu.

Com um golpe para trás, Rebecca Um fez a lata de Diet Coke voar pela sala.

– Não importa mesmo. Provavelmente teremos de dispensá-lo mais cedo do que pensamos.

Rebecca Dois evitou o olhar fixo da irmã.

O capitão Franz voltou com dois potes de sorvete. Rebecca Um pegou o dela, mas o jogou direto na cara dele. Ele mal piscou ao ser atingido.

– Este é de baunilha. Eu quero de chocolate. Traga um de chocolate já!

– Você não disse o que queria – apontou Rebecca Dois, enquanto o capitão Franz corria dali.

– Mas o que você prefere? – disse Rebecca Um. – Cabe a nós mostrar ao bárbaro quem é que manda. – Ela balançava a cabeça, exasperada, quando seu celular tocou de repente. Tirando os pés da mesa, ela alcançou o casaco para pegá-lo.

– Não conheço esse número – disse, ao examinar o visor. – E quem estaria me telefonando agora, aliás? – Depois de refletir por um momento, ela atendeu ao telefone. – Como foi que você conseguiu m...? – vociferou ela, depois ficou em silêncio.

– E então, quem é? – Rebecca Dois tentou perguntar, enquanto a irmã ainda ouvia o interlocutor sem dizer uma palavra.

O capitão Franz voltou com um pote de sorvete de chocolate, mas Rebecca Um gesticulou para que ele saísse. Estava de cenho franzido.

– Como posso saber que você é confiável? – perguntou ela. Alguns instantes depois, pareceu ficar satisfeita com a resposta. Ainda ouvindo seu interlocutor, cobriu o bocal do telefone com a mão. – Pegue seu casaco – cochichou à irmã.

– Para quê? – quis saber Rebecca Dois, mas a irmã a ignorou, já se encaminhando para a porta.

No corredor, Rebecca Um novamente cobriu o bocal do telefone e falou rapidamente com a irmã:

– Diga a Franz para levar a Mercedes para os fundos. Diga a ele para deixar o motor ligado.

Rebecca Dois quase explodiu de tão curiosa.

– Por quê? O que está havendo? – sussurrou.

Mas a irmã andava pelo corredor velozmente enquanto vestia o casaco.

– Diga o que você quer com isso – disse ela ao telefone, ao virar num canto. Elas ficaram cara a cara com o Limitador que guardava as portas do depósito.

Rebecca Um gesticulou para ele com a mão livre.

– Sua pistola... Rápido – ordenou, com aquela urgência silenciosa que as pessoas usam quando estão no meio de uma conversa telefônica.

O Limitador abriu obedientemente a aba do coldre e lhe entregou a arma.

– Silenciador. Isso é bom – disse ela, com um olhar para o supressor no cano. – Não, desculpe... Nada – respondeu ela rapidamente a seu interlocutor no telefone. – Só estou cuidando de umas coisinhas por aqui. – Sua voz ficou dura de autoridade: – Muito bem, estou convencida, você conseguiu o acordo. Tem a minha palavra... Palavra de escoteiro, essas coisas. Nos veremos em breve.

Ela encerrou a chamada. Sem pestanejar, levou a arma ao peito do Limitador e a descarregou à queima-roupa.

– Mas o quê...? – Rebecca Dois deu um salto para trás enquanto, bem diante dela, o Limitador arriava no chão. – Por que você fez isso?

Rebecca Um mal respirava ao responder:

– Decisão executiva... Agora não há tempo para explicar – disse ela.

Passando por cima do corpo do Limitador, ela escancarou as portas. Enquanto a umidade e o fedor de carne crua do depósito as envolviam, Rebecca Um já corria para dentro.

– Encontre Hermione e Vane! – gritou para irmã. – E rápido!


Parry levou o primeiro grupo para baixo pelo elevador. Disse a todos para tirarem as parcas para clima polar e vestir uma variedade de roupas mais discreta que lhes foram providenciadas no Complexo. Mas ao entrarem na área de recepção da Torre BT, com seus casacos Sherpa e calças de veludo grosso, eles pareciam um grupo vitoriano de alpinistas prestes a partir em uma expedição.

Terry Finch estava ao lado da porta giratória, olhando atentamente a Mortimer Street.

– Então, cuidou da equipe? – perguntou Parry, falando alto para que o velho ouvisse enquanto passava os olhos pela área insípida e a mesa de recepção desocupada. – A Ordem de Emergência evidentemente fez o truque.

– Bem... Eles foram tomar um café na esquina até que eu dissesse que podiam voltar – respondeu Terry.

Parry franziu a testa.

– Você não me parece muito seguro... Houve algum problema? – Ele pressionou o velho, impaciente.

– Um dos cavalheiros da segurança queria verificar com a sede, então eu meti o documento oficial na cara dele.

– E deu certo? – perguntou Parry.

– Não, ele não engoliu, então apontei minha Webley para ele – disse Terry com um sorriso malicioso, tirando um revólver do coldre na base das costas. – Funcionou como mágica.

– Tu-do bem. – Parry suspirou, com o franzido na testa ainda mais pronunciado. Ele olhou de Will para Drake. – Cuidem para que suas pistolas com tranquilizador estejam preparadas – disse ele, antes de se dirigir à sra. Burrows: – Celia, dê uma farejada e veja se tem algum problema a nossa frente? Preciso saber o que espera por nós aqui perto – disse ele.

– Um restaurante italiano muito bom a cerca de trezentos metros à esquerda. O calzone está me deixando faminta – disse ela, sorrindo.

– Por que ninguém nunca me dá uma resposta direta? – resmungou Parry, enquanto dois micro-ônibus paravam junto da linha amarela na frente deles. O restante do grupo desceu nos elevadores e, um de cada vez, foram para a rua e colocaram seu equipamento na traseira dos veículos.

Os motoristas de cada micro-ônibus não falaram nada ao seguirem por Londres. Will viu pela primeira vez a que ponto as coisas chegaram na capital. Além dos grupos de soldados e policiais estacionados pelo lugar, a Euston Road parecia estar bastante normal e o trânsito era relativamente pesado. Mas ao olhar para as transversais, a história era outra. Ele viu um ou outro carro incendiado e imensas pilhas de lixo doméstico que não era recolhido há semanas. Ao passarem pela entrada do Regent’s Park, carros de bombeiro bloqueavam os portões enquanto toda uma fila de prédios brancos e grandes ardia em chamas.

Eles entraram à direita na Marylebone Road e dispararam por várias ruas secundárias porque o motorista do primeiro micro-ônibus tinha visto problemas à frente. Saíram no início do Marylebone Flyover e aceleraram pela ladeira.

Todos tinham ligado os rádios, para ouvir as orientações de Parry, que falava em seu laringofone do primeiro micro-ônibus que também levava Stephanie, Sweeney e o coronel.

– Recebi um relatório de que há perturbação em Shepherd’s Bush e o exército está por lá. Assim, vamos sair de Londres pela M3, depois atravessar o campo para a M4. Vamos manter o rádio em silêncio por ora, a não ser que haja um contratempo.

– Contratempo? – perguntou a sra. Burrows quando, com um estalo, seus fones ficaram sinistramente quietos.

Drake girou o corpo no banco ao lado do motorista para responder a ela, olhando para Will, depois para Chester e o sr. Rawls.

– Meu velho quer dizer que, se tiverem algum problema, vão abrir fogo e aguentar a barra para que possamos escapar. Um dos veículos precisa passar.

– Meu Deus! Ainda bem que vim com você – disse Chester num tom estridente.


Uma das primeiras a nascer, a larva de Guerreiro Styx mal podia ser reconhecida como o vermezinho roliço que Vane acalentara nos braços dias antes.

Depois de ter brotado dois pares de pernas e uma cauda musculosa, sua aparência tinha uma semelhança passageira com um girino que fazia a transição para sapo. Só que nenhuma folha de lótus podia sustentar o peso desse bruto; medindo mais de um metro da cabeça à cauda, equivalia mais a um monstro-de-Gila gigante.

A larva de Guerreiro em desenvolvimento, acumulando reservas de proteína para a fase de pupa iminente, só pensava em comida. Dormia apenas esporadicamente, passando praticamente cada minuto do dia tentando satisfazer seu apetite insaciável.

Assim, quando a larva de Guerreiro deu por acaso com uma poça de sangue quente que tinha vazado por baixo das portas do depósito, começou a lamber vigorosamente, disparando sua língua cinzenta. As entregas regulares de carne eram suficientes, mas não tinham um toque de vida nem eram de caça recém-abatida. Tendo limpado o chão de concreto a lambidas, ela começou a investigar a origem do sangue.

Como um cachorro solto numa despensa, ela corria de um lado a outro e sondava o espaço por baixo das portas com a língua. À medida que os receptores olfativos da larva pegavam vestígios do corpo do outro lado, uma baba salpicada de sangue vazava de sua mandíbula. Ela bufou de frustração. Não sabia como alcançar a refeição suculenta e começou a disparar de um lado a outro, até esbarrar em uma das portas. Ela observou que a porta destrancada se abriu uma fração.

A larva de Guerreiro parou por um momento, suas pupilas pretas em fenda considerando a barreira a sua frente. Em seguida, começou a bater a cabeça na porta. A larva batia cada vez mais forte, até que finalmente havia espaço suficiente para se espremer por ali. E ela nem acreditava na sorte que tinha ao avaliar o Limitador morto e estendido no chão. A porta se fechou novamente atrás dela, mas a larva de Guerreiro não se importou – não pretendia comunicar sua descoberta às irmãs. Ter o corpo todo só para si era tentador demais.

Ela começou a devorar o cadáver delicioso. Estava distraída de suas cercanias enquanto arrancava tiras de carne da cara do Limitador com seus dentes de agulha e as engolia.

Os micro-ônibus estacionaram nos fundos do prédio de dois andares e todos saíram, seguindo Parry para dentro. Eddie e um de seus homens esperavam por eles em uma sala cheia de caixas de papelão. Will procurou por Elliott, mas não havia sinal dela.

– Sua Velha Guarda cercou a fábrica. Não vimos nada que sugerisse que alguém aqui dentro estivesse ciente de nossa presença. – reportou Eddie a Parry. – E estamos pronto para restringir toda a propriedade.

– Perfeito – disse Parry. – Continue e lacre o lugar. A partir de agora, nada entra, nem sai.

Eddie falou com seu homem em Styx. Depois de ele se afastar às pressas, dirigiu-se a Drake e ao restante do grupo.

– O andar de baixo é um meio-porão usado como depósito. Determinei como um dos quatro Pontos de Reagrupamento da Velha Guarda. Você pode ver o alvo dali, mas não se arrisque perto demais das janelas. – Ele se virou para Parry. – E minha equipe de vigilância espera por você no telhado, comandante.

– Excelente... Irei dar uma espiada. Mas primeiro quero saber de Celia – disse Parry, virando-se para a sra. Burrows. – Esta coisa que você faz... Pode fazer daqui? Porque preciso que me diga o que tem do outro lado da estrada.

A sra. Burrows assentiu, virando a cabeça para trás. Will ouviu Stephanie puxar o ar, e os olhos de sua mãe rolaram para cima, de modo que só o branco aparecia.

– Gente... Humanos... Talvez quinhentos e cinquenta... Não, mais, creio. Talvez seiscentos... Não sei dizer com precisão – disse a sra. Burrows.

– E Styx? – perguntou Parry.

– Sim... Mas não muitos. Não sei... Trinta ou mais, talvez.

– Seria útil saber o número exato – pressionou-a Parry.

Uma gota de suor apareceu na linha dos cabelos da sra. Burrows e escorreu pelo meio da testa.

– Isso não é bom... Estou recebendo sinais confusos – sussurrou ela. Depois um estremecimento tomou seu corpo, enquanto os olhos de repente se endireitavam. Por um momento ela pareceu estar em transe, depois se virou para Parry. – É estranho... É como se eu não conseguisse sintonizar.

Parry cofiou a barba pensativamente.

– Não se preocupe... Você me deu confirmação suficiente. Todas essas pessoas devem ter sido trazidas para o programa de procriação. O que mais estariam fazendo lá? – Ele se voltou para Eddie. – Mesmo que haja um regimento inteiro de Limitadores lá dentro, precisamos completar o trabalho.

– Não, espere! – disse incisivamente a sra. Burrows. – Você não entende... Tem alguma coisa ali que não quer que eu descubra. Algo mais do que Styx. Algo sombrio.

Parry se limitou a concordar com a cabeça.

– Tudo bem, todos desçam comigo – disse Drake a Will e aos outros.

Eddie ergueu a mão.

– Antes de vocês irem... Elliott está no telhado, no posto de observação, e, se não tiver problema para vocês, ela tem um pedido.

– O que é? – disse Drake, enquanto Will e Chester trocavam um olhar. Os dois se aproximavam de Eddie, acreditando que Elliott queria que eles o acompanhassem.

– Ela pediu que Stephanie fique com ela lá em cima – disse Eddie.

Will ficou petrificado enquanto ouvia Chester sussurrar “Mas o q...?”.

Depois de chegar ao telhado plano, Stephanie e Parry mantiveram-se abaixados ao se aproximarem do parapeito com Eddie. Os ex-Limitadores estavam ali em grande número e tinham estendido uma rede de camuflagem azul-clara a pouca distância acima do parapeito para que suas silhuetas não aparecessem contra o céu.

– Comandante – disse Harry Handscombe, enquanto Parry se abaixava sob a rede e eles trocavam um vigoroso aperto de mãos. – Mas que sorte, não foi? Eu localizando o alvo tão cedo na missão?

– Certamente foi – disse Parry, sorrindo para o velho amigo. – Mas não tanta sorte assim, porque você quase foi empacotado por aqueles soldados cheios de Luz Negra. Eu nunca lhe pedi para arriscar tanto o pescoço, sabe disso.

Harry menearia a cabeça, se fosse capaz, mas em vez disso abriu um sorriso irônico a Parry.

– Chega de piadas com pescoço, seu velho depravado!

Parry foi à beira do telhado, com um binóculo na mão. Verificou a posição do sol pálido para ter certeza de que não houvesse um reflexo revelador na lente antes de começar o exame da fábrica do outro lado.

– Ah, sim, lá estão – disse ele em voz baixa, ao localizar os Limitadores e os guardas neogermanos patrulhando a área do estacionamento.

Stephanie estava de pé, afastada do parapeito, sem saber o que fazer, quando Elliott acenou para ela se aproximar. Ao se esgueirar para o lado de Elliott, Stephanie olhou os ex-Limitadores com certa preocupação.

– Não ligue para eles. Eles podem parecer bem fantasmagóricos, mas estão do nosso lado – confidenciou Elliott a ela.

– Tá legal. – Stephanie engoliu em seco, depois franziu a testa para Elliott. – Mas por que você me quer aqui? Seus dois namorados estão tipo sufocando para ficar com você.

– No Complexo, você me disse que podia lidar com qualquer coisa. Então aqui está sua chance de provar. – Elliott não a estava confrontando, e Stephanie reconheceu isso enquanto a menina ainda falava. – Daqui a pouco, vamos neutralizar cada ser vivo do lado de fora daquele prédio.

– Neutralizar?

Elliott tombou a cabeça de lado.

– Vamos atirar em todos aqueles homens com a maior rapidez e a maior discrição possível. Pode ajudar?

– É tipo um lance de irmãs?

– Se quiser chamar assim. – Elliott deu de ombros. – Nunca tive uma irmã.

– Quer que eu atire nas pessoas também? – perguntou Stephanie, olhando o rifle longo de Elliott, que ela camuflara de branco e agora tinha um silenciador volumoso instalado na ponta do cano.

– Não, quero que você os localize para mim. – Elliott indicou a mira ao lado dela. – Preciso que você fixe a posição dos guardas, porque, quando abrirmos fogo daqui, não vamos poder cometer nenhum deslize. Se um deles der o alarme, perdemos o elemento surpresa.

– Tudo bem, acho que posso fazer isso – disse Stephanie, indo até a mira.

Will ficou surpreso com o número de integrantes da Velha Guarda presentes no porão mal iluminado. Embora seus rostos estivessem cobertos por máscaras de esqui, ele sentiu a expectativa nervosa que pendia sobre eles ao conversarem em voz baixa.

– Escopetas? – perguntou ele ao perceber o que alguns portavam.

– Não sabemos o que espera por nós do outro lado da estrada – explicou Drake. – Para combates de perto, uma semiautomática calibre doze tem muito mais precisão.

– E o que são aqueles tanques que estão com eles? – perguntou Chester, ao ver que vários homens tinham dois cilindros idênticos nas costas.

– Lança-chamas, para a última fase da ofensiva – respondeu Drake. – Veja só, simplesmente destruir o prédio-alvo não vai dar conta do recado. As coisas dão um jeito de sobreviver em bolsões de ar embaixo do entulho. Não queremos que nenhum dos vermes Guerreiros... se realmente estiverem lá... saiam se esgueirando depois que deixemos a cena. Se um só deles escapar, pode encontrar mais humanos e se dar bem, e assim vamos acabar voltando ao ponto de partida.

– Entendi – disse Chester, enquanto Will e os outros escutavam.

– Não temos alternativa senão entrar e fazer o trabalho de perto e pessoalmente. Precisamos ter certeza de que nada fique vivo – continuou Drake.

– Quer dizer matar todo mundo? – interveio a sra. Burrows. – E os humanos que estão ali... Podem ser inocentes colonistas ou gente da Crosta que não têm culpa nenhuma de terem sido apanhados nisso. Não podemos descondicioná-los com o Descontaminador de Danforth, depois pegar os...?

– Isso não vai acontecer – interrompeu-a Drake, com uma expressão severa. – Não temos esse luxo. Nessa operação, é tudo ou nada... Precisamos acabar com a Fase na raiz, custe o que custar.

A sra. Burrows ia protestar, mas Drake se afastou para falar com Parry numa frequência exclusiva em seu rádio. Depois que a conversa terminou, ele voltou.

– Todos em posição em volta do prédio-alvo e vamos para a contagem regressiva final. – Ele tirou a Bergen das costas. – Quero que todos se livrem do kit tático... Só armas e munição. Guardem todo o resto por aqui. Depois podem assistir à primeira fase das janelas.

Armados com suas Stens, Will e Chester foram para a frente do porão e ficaram na ponta dos pés para olhar pelas janelas empoeiradas.

– Malditos Limitadores – grunhiu Will ao ver dois deles nos portões. – Até parece que são donos do lugar.

– Aqueles outros homens... Acha que são neogermanos? – disse Chester.

Will lançou um olhar ao coronel Bismarck enquanto o homem observava de outra janela. Alguns soldados na estrada eram de suas tropas do mundo interior e ele se perguntou o que o coronel pensava do plano de Drake de não fazer prisioneiros. E Will também sabia que, se a programação de Luz Negra do coronel não tivesse sido abalada pela explosão no Centro, agora mesmo podia estar junto dos soldados que sofreram lavagem cerebral e patrulhavam o perímetro da fábrica.

Seus pensamentos foram interrompidos pela voz de Parry nos headsets:

– Alfa, repito, Alfa – enunciou ele com clareza, iniciando a primeira fase da operação. – Eliminar os alvos designados na contagem. – Ele parou por um segundo e começou uma contagem regressiva: – Cinco... Quatro... Três... Dois... Um... Fogo!

Não se ouviu nem um som, mas os homens que Will podia ver no estacionamento simplesmente sumiram de vista.

No telhado, Stephanie girava a mira.

– Próximo alvo em movimento... Está se virando... Está indo para a entrada – disse ela, sua voz ficando estridente de urgência.

– Já vi – respondeu Elliott calmamente, depois apertou o gatilho. O rifle com silenciador deu um coice em suas mãos, mas o único som foi uma leve rajada de ar. Enquanto o tiro encontrava o alvo, o Limitador se jogou para a frente, com a cabeça explodindo em escarlate sobre a neve branca.

– Ooooooh. – Stephanie colocou a mão na boca. – Esse foi totalmente na mosca.

– Bravo – anunciou a voz de Parry. – Repito... Bravo. Eliminamos as sentinelas.

– Muito bem, todos vocês, para fora – ordenou Drake.

Depois de arrancar o tampo da cabeça do Limitador como se fosse um ovo cozido, a larva de Guerreiro cavoucava o que restava do cérebro do homem com sua língua preênsil. Seus olhos piscavam de êxtase com a massa cinzenta deliciosa, enquanto o sistema digestivo eficiente da larva absorvia as proteínas com a mesma rapidez com que ela as devorava.

Will e Chester atravessaram a estrada com Drake e Sweeney de cada lado, e o coronel Bismarck, o sr. Rawls e a sra. Burrows atrás deles.

– Olha só isso. – Will se referia ao que devia ser uns cem homens da Velha Guarda de Parry avançando em fila. E aqueles eram apenas os que ele conseguia enxergar; ele sabia que devia haver pelo menos o mesmo número em cada um dos outros lados da fábrica. – Não tinha percebido que eles eram tantos assim.

Drake o entreouviu.

– Sim, o perímetro está cercado. Meu velho está cuidando do show como reza o manual – disse ele, com os olhos cheios de admiração ao observar o pai se juntar à fila da Velha Guarda mais além na estrada. – Ele até mandou duas unidades para os esgotos, no caso de alguma coisa tentar usar o sistema de escoamento para fugir.

A neve que cobria o asfalto ajudava a amortecer qualquer som da Velha Guarda que se aproximava. Só o que se podia ouvir era uma rajada ou outra do vento enquanto eles alcançavam a cerca que limitava o local.

Mas então houve atividade e as portas principais do prédio comercial se abriram. Saiu um Limitador, claramente com pressa. Alguma coisa o abalara. Mas ele deu apenas alguns passos antes de ser atingido no pescoço por um disparo de besta. Enquanto ele caía ao chão, só o que fez a Velha Guarda foi prender a respiração, mas ninguém mais veio atrás dele pelas portas.

– Charlie. – A voz de Parry estalou pelo rádio. – Repito, Charlie. Antes que percamos a vantagem da surpresa.

Drake sinalizou para Will e os outros irem com ele pelos portões e entrarem no estacionamento. A Velha Guarda estava em volta deles, correndo aos variados pontos de entrada da fábrica que Parry lhes atribuíra.

– Fiquem bem atrás – ordenou Drake, enquanto ele e Sweeney avançavam para a entrada principal do prédio, um dando cobertura ao outro. Não havia ninguém na recepção, então Drake imediatamente avançou pelo corredor que saía dali, com Sweeney verificando as salas de cada lado ao prosseguirem.

– A sala do conselho – murmurou Drake no laringofone enquanto Sweeney passava pela última das portas. – Eu vi na planta deste andar.

Com as Stens preparadas, os meninos mantiveram distância, obedecendo a Drake, com a sra. Burrows, o coronel e o sr. Rawls na retaguarda. Dois integrantes da Velha Guarda também entraram na recepção, mas continuaram junto da porta.

Sweeney saía da sala do conselho, e ele e Drake se aproximaram pouco a pouco pelo corredor. Pararam quando uma pequena explosão abalou toda a fábrica, seguida pela rajada de armas automáticas.

– Delta, Delta, Delta! – A voz urgente de Parry apareceu no rádio. – Conflito à frente!

Tirando o silenciador de sua Beretta, Drake se virou para todos os outros.

– Agora os Styx sabem que estamos aqui, mas ainda precisamos agir com cautela.

Ele e Sweeney continuaram pelo corredor até que chegaram numa quina. Sweeney avançou, de costas para a parede, enquanto Drake deslizava pelo lado oposto.

De repente, Sweeney ergueu o punho e Drake parou. O grandalhão apontou a orelha, depois mais à frente. Ele ouviu alguma coisa.

A larva de Guerreiro podia ter pulverizado o que restava do crânio do Limitador com seus potentes molares, mas outras partes mais macias e mais suculentas do cadáver eram demasiado convidativas. Ela se movia para as pernas do Limitador quando ouviu a explosão e o tiroteio que se seguiu.

Ela parou por um momento, mas então o cheiro de sangue dos dois buracos de bala que Rebecca Um deixou no peito do homem foi demais para a larva. Ela se virou novamente para o corpo do Limitador e começou a lamber ali, depois mordiscou a carne das costelas do homem.

– O que é isso? – cochichou Sweeney a Drake.

Manchada de sangue, a cauda cor de marfim abanava de um lado a outro e era visível para os dois. Então, enquanto a criatura abria caminho a dentadas pelo cadáver do Limitador, a cauda desapareceu de vista.

E quer a larva tivesse ouvido ou sentido o cheiro dos dois humanos que se aproximavam pelo corredor, agora parou relutantemente de se alimentar e baixou o corpo, de prontidão.

Sweeney apurava a audição para o que estava ali. Mas era impossível com todo o barulho que vinha de outras partes do prédio.

– Cuidado – sussurrou Drake, avançando a passos miúdos.

Não havia medo na mente da larva – ela não era capaz disso. Só o que sentia era empolgação, porque mais comida, com corações batendo, vinha na sua direção. De repente ela saiu de sua proteção e disparou pelo corredor.

– Meu Deus! Contato! – gritou Drake, enquanto a larva de Guerreiro disparava por ele feito um lagarto, com as pernas opositoras agarrando o carpete.

A velocidade com que a criatura se deslocava era fenomenal, mas assim também era o tempo de reação de Sweeney. Ele conseguiu dar um tiro, cortando sua cauda. E embora num piscar de olhos Sweeney estivesse de volta ao canto do corredor, com o quarto traseiro da larva bem a sua vista, ele foi incapaz de dar um segundo tiro. Will estava bem na linha de fogo, se a bala por acaso errasse o alvo.

O tiro podia ter reduzido seu ritmo, mas a larva de Guerreiro ainda investia diretamente pelo meio do corredor.

– Parem essa coisa! – gritou Drake.

Mais tarde, ele se perguntou se o motivo para não ter disparado não era tanto pela velocidade da criatura, mas por causa do que ele vira. Era verdade que a larva de Guerreiro se movimentava a uma velocidade espantosa, mas sua aparência talvez também tivesse peso.

A visão de sua cabeça foi o suficiente para fazer seu coração parar por vários segundos.

Will e Chester ficaram de queixo caído, reagindo da mesma maneira.

Embora seu tronco fosse de aparência anfíbia, a cabeça era algo inteiramente diferente.

Algo chocante.

A cabeça da larva era de uma criança humana – com feições humanas nítidas. Coberta de escamas quase brancas, os olhos, o nariz e as orelhas estavam perfeitamente formados, apesar de a boca ser cheia de dentes em espículas brancas e reluzentes e a língua ter pelo menos trinta centímetros de extensão quando esticada.

Pior ainda, quando Sweeney a atacara, o gemido que emitira podia ter saído de um bebê humano.

Enquanto a larva de Guerreiro disparava para as portas principais, um integrante da Velha Guarda que ouvira o alerta de Drake se movimentava rapidamente para interceptá-la. Ele levantou a escopeta, mas a larva simplesmente disparou diretamente sobre sua cabeça.

– Droga! – gritou ele. Mas o velho soldado ainda tinha seus instintos e tentou dar um tiro enquanto caía de costas. Errou inteiramente a criatura, explodindo a lâmpada do teto do corredor em mil pedaços, que choveram sobre ele e os meninos.

– Parem essa coisa! – gritou Drake novamente.

E então o sr. Rawls era o único obstáculo em seu caminho para a liberdade pelas portas principais.

Novamente a larva de Guerreiro investiu.

O segundo membro da Velha Guarda tentou baleá-la em pleno ar, mas errou; o tiro espatifou um vaso na mesa da recepção.

O sr. Rawls deu um passo para trás. A larva de Guerreiro tentou alterar sua trajetória rotacionando a cauda, mas não foi o suficiente. Ela se chocou contra o sr. Rawls, pegando seu peito com as garras.

– Coronel! Atire! – gritou Drake, percebendo que a larva estava perigosamente perto de escapar.

Mas o neogermano não abriu fogo por medo de machucar o pai de Chester.

Apesar do peso da larva de Guerreiro em cima dele, o sr. Rawls conseguiu continuar de pé. Cambaleava para trás como se estivesse dançando um limbo bizarro.

– Socorro! Socorro! Socorro! – Ele esmurrava a larva, que mordia seu ombro. O sr. Rawls gritava de choque e dor.

– Sai de cima dele! – gritou Chester, mirando a Sten, mas sabendo que de maneira nenhuma poderia atirar.

Algo faiscou no ar.

A larva de Guerreiro escorregou do sr. Rawls com uma faca enterrada na base do pescoço. A criatura caiu no chão com os membros ainda em movimento, mas apenas em um fraco ato reflexo.

– Coisinha maligna – murmurou alguém da Velha Guarda.

– Belo arremesso, coronel – disse Sweeney. – Pensei que o bicho Sticky fosse escapar.

O coronel Bismarck se curvou sobre a larva de Guerreiro. Colocando um pé no dorso da criatura, puxou sua faca.

– Ich was es nicht. – Ele recolocou a faca na bainha do cinto, depois olhou para a sra. Burrows. – Foi Celia. Ela pegou a minha faca.

– Mãe! – exclamou Will. – Como fez isso? Você nem enxerga!

A sra. Burrows deu de ombros enquanto Drake examinava a criatura, que ainda se contorcia.

– É melhor ter certeza de estar morta. Quem sabe do que essas coisas são capazes?

Para assombro de todos, o coronel simplesmente levantou a bota e a desceu na larva. Houve um estalo horripilante de ossos enquanto sua cabeça de bebê rachava.

Will e Chester viraram a cara.

Drake abriu um canal para Parry no rádio.

– Diga a todos que as larvas de Guerreiro maduras são rápidas e altamente móveis. E também podem ter uma boa altura.

Parry respondeu aos gritos:

– Já sabemos disso! – Ouviram-se gritos e o som de disparos ao fundo antes de Drake encerrar a conexão.

E então Drake se virou para a sra. Burrows.

– Pode levar Jeff para o outro lado da estrada e cuidar dessa mordida?

Enquanto ela o levava, Will e Chester seguiram Drake e Sweeney para o final do corredor, onde procuraram não olhar o Limitador morto no chão, sem o cérebro. Os meninos ouviam a Velha Guarda do outro lado das portas, começando a abrir caminho pelo depósito. Matavam tudo que se mexia, os gritos terríveis vinham rápidos e tensos.

– Fiquem aqui e cuidem para que nada saia – ordenou Drake aos meninos, enquanto ele e Sweeney se preparavam para entrar.

– Não quer a nossa ajuda? – ofereceu-se Chester.

– Não, a limpeza aí dentro não vai ser nada bonita. Eu mesmo não queria entrar... – Drake se interrompeu quando o rádio bipou. – Parry de novo – murmurou ele, abrindo a frequência exclusiva.

– Quando Jiggs estava com vocês, ele notou uma coisa! – gritou Parry.

– Jiggs? Conosco? – respondeu Drake, franzindo a testa para Sweeney, que balançou a cabeça. – Nenhum de nós o viu.

– Bom, ele localizou uma câmera de circuito interno no corredor onde você está – continuou Parry. – Disse que tem uma sala de segurança no segundo andar. Verifique, sim?

O diálogo chegava ao fim e Drake se voltou para Sweeney.

– Mantenha posição aqui, Sparks. Preciso investigar isso.

Drake partiu de volta pelo corredor, com os meninos o seguindo para ver o que ele ia fazer. Drake parou na frente da sala do conselho, onde viu uma câmera no alto, instalada pouco abaixo do teto.

– Sim, está aqui. – Ele se virou para a recepção e o coronel Bismarck.

– Jiggs localizou a sala de segurança no andar de cima – disse ele. – Se o sistema deste lugar ainda estiver funcionando, as gravações podem ser muito úteis para nós.

Drake imediatamente subiu com o coronel para investigar, deixando Will e Chester para render Sweeney perto das portas do depósito.

– Posso voltar por aqui. Não estourem minha cabeça – disse Sweeney com um sorriso, depois entrou abaixado no depósito.

Agora sozinhos, os meninos montaram guarda com suas Stens, ouvindo a trilha sonora do mais sombrio pesadelo. Escutavam gritos penetrantes. Sem parar. Como se bebês e crianças pequenas estivessem sendo assassinados aos milhares.

– Sei que eles não são humanos... Mas ainda bem que não estou lá dentro – cochichou Chester.

Will se limitou a concordar com a cabeça.

O ar estava denso de vapor e o único alívio na escuridão turva era o ocasional clarão na boca das armas disparadas.

O esquadrão abria caminho a partir do canto, os homens com óculos infravermelhos olhando embaixo das camas de cada resto humano dissecado que jazia nos colchões sujos de sangue. O equipamento de detecção de calor que os homens usavam era essencial. As larvas mais novas podiam ser facilmente perdidas no momento que deslizavam por baixo de carcaças animais ou se refugiavam em qualquer nicho ou fresta em que pudessem se meter.

Mas o verdadeiro problema eram as larvas maduras.

– No alto! – gritou alguém do esquadrão, ao pegar vestígios de calor nas vigas de metal cruzadas que corriam pouco abaixo do telhado.

Enquanto as luzes varriam onde elas estavam escondidas, várias larvas de Guerreiro correram. Usaram seus membros quase desenvolvidos a toda, disparando pelos fachos com os tiros de arma automática pontilhando o espaço do teto.

Uma das larvas foi atingida, caindo no chão, onde se contorcia e gritava num volume de estourar os tímpanos, até que foi aliviada de sua infelicidade.

Foi quando o esquadrão encontrou sua primeira mulher Styx.

– Tem leituras fortes aqui – avisou um dos homens, aproximando-se de uma pilha de camas amontoadas tão alto que quase tocavam o teto. – Pode ser um ninho.

O esquadrão avançou e uma larva de Guerreiro jovem botou o focinho para fora da base da pilha. Foi despachada com um único tiro de uma escopeta, explodindo com um borrifo de fluido lácteo.

Uma segunda larva foi localizada não muito longe da primeira.

Um membro da Velha Guarda apontou a arma para ela.

Ele não deu o tiro porque alguém gritou: “Meu Deus... Cuidado!”.

Ela estava posicionada no alto da montanha de camas, seus membros de inseto vibrando juntos em um zumbido baixo. A mulher Styx saiu de mansinho, como uma aranha aparece quando a presa cai em sua teia. Sua cintura inchada e os braços e pernas finos e musculosos só contribuíam para essa imagem.

– Afastem-se de meus filhos! – ordenou a mulher Styx, olhando enviesado o esquadrão com um fluido pingando de sua boca.

De sobrancelhas arqueadas e coléricas e os lábios inchados e pretos, suas feições femininas exageradas pareciam uma máscara burlesca.

– Caramba, eu juro que é minha ex-mulher! – gracejou alguém da Velha Guarda, mas ninguém tinha vontade de rir.

– Baixem as armas, homens. Repito... Baixem as armas – ordenou a mulher Styx ao esquadrão da Velha Guarda. Havia tal autoridade em sua voz que, antes que se dessem conta, vários soldados veteranos realmente começaram a obedecer, reagindo ao treinamento arraigado neles durante suas longas carreiras militares.

– Não! Resistam! – gritou alguém e, por vários segundos, nenhum dos dois lados fez qualquer movimento.

A mulher Styx e o esquadrão da Velha Guarda ficaram paralisados no momento.

E então, enquanto a jovem larva Guerreira começava a deslizar para baixo de seu esconderijo, um integrante da Velha Guarda ajustou a mira nela.

Com um uivo de banshee, a mulher Styx voou para ele. Em menos do que um piscar de olhos, caiu diante do homem. Usando os braços e os membros de inseto, ela arrebanhou seu fuzil de assalto.

Ela conhecia suas armas. Num borrão, virou a H&K MP53 e estava apontando diretamente para o peito dele.

Ela começou a apertar o gatilho.

Mas outro homem agiu com igual velocidade.

Sweeney chutou o fuzil de assalto, desviando o disparo do peito do homem. Os tiros atingiram o teto, abrindo buracos no concreto.

A mulher Styx xingou enquanto golpeava a cara de Sweeney com seus membros de inseto, mas ele se abaixou bem, esquivando-se. E, quando subiu novamente, estava com a MP53 nas mãos.

A mulher Styx não esperava por isso.

Agora desarmada, só havia uma coisa a fazer. Ela se apoderou do homem que estivera prestes a matar a larva de Guerreiro, passando os braços e os membros de inseto por seu corpo. Apertou com força, estalando várias costelas com certo volume. Os pés dele foram erguidos do chão enquanto ela o balançava, protegendo-se do restante do esquadrão que vinha em resgate.

Eram muitos para ela.

Em toda a escuridão e confusão, atirar nela não era uma alternativa – eles podiam atingir o homem que a mulher agarrava. Com Sweeney gritando orientações, foram necessários dez integrantes do esquadrão para soltá-la.

Ela se debatia, gritava e sibilava para eles, mas conseguiram segurá-la.

– Três... Dois... Um! – Sweeney fez a contagem regressiva, e eles a jogaram de costas no monte de camas. Depois todo o esquadrão abriu fogo nela, espatifando seu corpo com disparos rápidos.

Ao morrer, a ex-major do exército britânico soltou seu derradeiro grito.

Quando o barulho do tiroteio finalmente esmoreceu, Parry proclamou “Eco” pelo rádio. Todos se retiraram das instalações da fábrica e formaram um cordão novamente na estrada.

Havia um ronco baixo, como se alguma coisa imensa fosse arrastada pelo chão. O fogo começou a lamber o interior das janelas e a explodir dos dutos de ventilação no telhado como lanças vermelhas.

– Bombas incendiárias – disse Drake, enquanto enrolava com cuidado num blusão um disco rígido de computador que ele e o coronel pegaram na sala de segurança. – Nada vai sobreviver numa temperatura dessas. O que faz parte do nosso plano.

Ouviram-se assovios.

– Reagrupar! – gritaram homens, e todos se deslocaram em massa para a extremidade do estacionamento, do outro lado da estrada.

Eles se reuniram em volta de Parry, que estava de pé numa caixa de armas, segurando uma espécie de dispositivo. Além dos homens de Eddie, que se mantinham reservados num pequeno grupo, devia haver pelo menos trezentos da Velha Guarda ali. Ainda com suas máscaras de esqui, eles estavam em silêncio.

– Sei que esta deve ter sido uma das missões mais estranhas que passei para vocês... E provavelmente uma das mais angustiantes – disse Parry, lançando um olhar pela estrada. – Mas quero agradecer a todos pelo profissionalismo. Foi uma operação impecavelmente execut...

Alguém gritou: “Elogio em causa própria de novo, comandante?” Ouviu-se um uivo de gargalhadas e todo o humor do grupo reunido se transformou. Alguns homens acendiam charutos, enquanto outros pegavam cantis e passavam adiante.

Parry tentou restaurar a ordem, embora estivesse sorrindo:

– Uma operação impecavelmente executada, como aquelas que costumávamos armar no nosso tempo. Alguns de vocês tiveram sua justa parcela de alvos, mas é uma satisfação dizer que não houve uma única baixa do nosso lado.

Todos olharam para um Land Rover de portas traseiras abertas. Embora houvesse dois homens nas macas ali dentro, havia outros dez do lado de fora em processo de tratamento, a maioria recebendo curativos em ferimentos menores.

– Meu pai está ali. É melhor ver como ele está – disse Chester, vendo o pai no grupo atrás do Land Rover. Ele correu, deixando Will sozinho.

Parry continuava:

– E chamo isso de sucesso retumbante!

A multidão fez eco a suas palavras.

– Embora o trabalho esteja longe de sua conclusão e ainda tenhamos de desencavar os Styx na superfície, hoje... – disse ele, respirando fundo – Hoje evitamos uma catástrofe de proporções globais.

– Acabou. Nós realmente impedimos a Fase – murmurou Will consigo mesmo. Com tudo o que aconteceu na última hora, ele preferia perder de vista o que acabaram de realizar. – Nós é que fizemos isso.

Parry ainda falava:

– E não acho que eu seja o homem para fazer isso – disse ele, erguendo o dispositivo na mão.

Ouviram-se gritos de “Vai, comandante!”, mas ele meneou a cabeça.

– Não, prefiro que meu velho amigo, que hoje arriscou o pescoço por nós...

Houve um rumor na multidão.

– Faça as honras – continuou Parry. – Apareça, Hoss!

Um sujeito alto fingiu se esconder na multidão.

– Venha cá... Não é de seu feitio ser tímido – brincou Parry.

Will viu o homem andando pesadamente pelas fileiras, notando que ele precisava virar o corpo para olhar seus companheiros enquanto seguia até Parry.

O homem pegou o dispositivo de Parry e o ergueu bem alto.

– Isto é por todos nós. E depois de cuidarmos daquelas aberrações lá dentro, nunca mais vou reclamar das pragas na minha horta!

A multidão rugiu.

– Só uma palavrinha de alerta – disse Parry, conseguindo se fazer ouvir ao passar os olhos pela multidão e encontrar Will. – Aqueles de vocês que não estão acostumados com todo esse alvoroço, não olhem para cima quando estiverem muito perto de uma grande detonação. Agora, vá em frente, Hoss.

Harry apertou um botão e houve uma forte explosão. Parte do telhado do depósito principal voou, liberando fogo pela abertura. Engolfado pelas chamas, o resto do telhado desabou sobre si mesmo, seguido pelas paredes, até que muito pouco da estrutura ainda estava de pé.

Will descobriu por que Parry achou necessário alertá-lo. Depois de alguns segundos, pedaços de destroços em chamas começaram a cair não muito longe do estacionamento, batendo no terreno coberto de neve com um chiado. Mas a Velha Guarda não se importou, gritando e pulando de lado para evitá-los.

Alguém cutucava suas costas e Will girou o corpo, encontrando Elliott atrás dele.

– Oi, e aí – disse ele, feliz por vê-la.

– Oi. – Mas ela parecia preocupada e não retribuiu o seu sorriso. Por um momento o olhar de Elliott foi até o horizonte, na direção contrária à das ruínas em chamas da fábrica.

– Por que quis a Stephanie com você? – perguntou Will, tentando não demonstrar que se importava.

– Porque agora ela é uma de nós. Alguém tem de mostrar as manhas a ela – respondeu Elliott com um ar distante. – E porque eu tenho uma sensação... – Ela esfregava a nuca.

Antes que Will tivesse a oportunidade de perguntar o que ela queria dizer, ela anunciou:

– Ah, lá vem eles.

Eddie e Stephanie corriam, e parte de Will ficou triste. Era diferente, agora que todos os outros estavam envolvidos. Não eram apenas ele, Elliott e Chester contra os Styx, com Drake na liderança.

Parte da Velha Guarda, incitada pelo que estava em seus cantis, falava e brincava ruidosamente. Outros, com os braços nos ombros dos companheiros, cantavam o que parecia um hino de vitória:

Enfrentaram o aço do tirano,

A juba do leão;

Algo ocorreu a Will. Como se o último ano fosse repassado, ele percebeu que sem as gêmeas Rebecca, os Styx e o perigo constante ele nunca teria os amigos que tinha – grandes amigos –, amigos com quem podia contar em qualquer situação horrenda.

E se os Styx fossem derrotados e a ameaça eliminada, tudo mudaria.

Baixaram a cabeça para a morte sentir;

Quem os seguirá?

Talvez todos tomassem rumos diferentes, levando uma vida completamente separada dos outros. Elliott agora tinha o pai de volta e Chester, seus pais. Quanto a Drake, ele provavelmente partiria e encontraria outra causa para defender.

E que tipo de vida Will levaria depois que tudo isso acabasse? Onde exatamente ele terminaria? De volta a Highfield, com a mãe e seu nariz turbinado? Ele não via como isso poderia dar certo. Pior ainda, teria de começar a escola de novo.

A perspectiva de voltar a uma vida normal o encheu de um pavor sombrio.

– Meu pai vai dar uma carona nos Humvees por parte do caminho – disse Elliott, bocejando. – Só quero voltar para o Complexo.

– Sim, voltar para casa – disse Will.


Capítulo Quinze


O Bugatti Veyron disparava pelos campos verdes do Windsor Park, errando por pouco um grupo de árvores.

– Está rápido demais – disse Rebecca Um enquanto o carro se atirava do alto de um aclive e batia no chão, sacudindo-a com Vane.

– Reduza. Acho que já cheg...

Com um rosnado, Vane girou o volante e pisou no freio. O carro deu um giro de trezentos e sessenta graus, seus pneus cuspindo a neve.

Mal o motor parou, Vane saiu de rompante do carro, cortando o ar com os membros de inseto.

Rebecca Um também desceu e Vane imediatamente se acercou dela.

– O que você fez? – gritou a mulher Styx.

Vane começou a tossir e se recurvou. Com um jato de fluido amarelo, ela vomitou alguma coisa.

Era uma bolsa de ovos.

Ela caiu de joelhos, pegando a bolsa entre as mãos e segurando diante de si como se estivesse rezando.

– Que desperdício terrível, terrível – disse ela com a voz rouca. – Meus bebês precisam de um hospedeiro. Eles vão morrer.

Dirigido pelo capitão Franz, a Mercedes acelerou pela relva e parou ao lado do Veyron. Hermione também estava péssima, cambaleando do veículo enquanto Rebecca Dois abria a porta para ela. E a mulher Styx precisou ser amparada pela curta distância até a irmã.

Ao se verem, Hermione e Vane não disseram nada, mas seus membros de inseto estalavam numa comunicação. Ainda de joelhos, Vane estendeu a bolsa de ovos para a irmã. Hermione meneou a cabeça, sua expressão era do mais profundo desespero.

Vane se ergueu, desequilibrada, depois a dupla de gêmeas adultas se virou para as mais novas.

– Por que vocês fizeram isso? Estragaram tudo para nós. – Hermione acusou Rebecca Dois.

– Eu não sancionei nada. Nem sei por que estamos aqui – respondeu a menina, virando-se para a irmã.

Vane partiu para Rebecca Um como se pretendesse lhe fazer algum mal.

– Por que você nos obrigou a abandonar nossos bebês e todos aqueles corpos quentes?

Rebecca Um não se deixou abalar.

– É por isso – disse ela, girando nos calcanhares.

Ao longe, uma fumaça subia ao céu.

Vane e Hermione tentaram absorver o que viam. Ainda sob domínio da Fase, seus rostos estavam abatidos, a pele quase transparente, muito esticada no crânio, e as duas tinham olheiras roxas.

– Tentei dizer no carro, mas você não me ouvia – disse Rebecca Um mansamente.

Houve um clarão distante, depois o barulho de uma explosão rolou até elas.

– Era a nossa fábrica? – perguntou Vane.

Rebecca Um soltou um suspiro estremecido.

– Sim, tudo acabou. Todos os nossos depósitos foram destruídos, e todos dentro deles.

– NÃO! NÃO! NÃO! – Hermione gritou a plenos pulmões.

– Mas como sabia que isso ia acontecer? Foi aquela ligação para seu celular? – perguntou Rebecca Dois.

A irmã assentiu.

– Sim. Foi um aviso – disse ela, com a voz entrecortada. – Aquele cretininho do Will Burrows, junto com Drake e a mestiça Elliott, e todos os outros que devíamos ter enterrado meses atrás... Eles estão por trás disto. A culpa é deles. – Ela reprimia as lágrimas e precisou de um momento para continuar. – Eu sabia que a força numérica contra nós era grande demais. Não poderíamos ter feito nada.

– Se podemos ser apanhadas desse jeito, não estamos seguras em lugar nenhum – disse Hermione.

– Será a Romênia de novo – acrescentou Vane, com a voz oca. – Agora não há o suficiente de nós para passar pela Fase. Acabou. – Ela abriu a mão e deixou que a bolsa de ovos caísse na neve.

– Não, não acabou – disse Rebecca Um, com firmeza. – Eu queria ter conseguido salvar mais de nossas irmãs, mas pelo menos peguei vocês duas. – Ela se aproximou de Vane e Hermione e pousou as mãos em seus braços. – E vamos separar vocês para aumentar nossas chances.

– Por quê? Para fazer o quê? – perguntou Rebecca Dois.

Rebecca Um não olhou a irmã, fitando entre Vane e Hermione.

– Talvez ainda haja tempo de fazer alguma coisa na Crosta. Não sei se dará certo, mas podemos tentar induzir algumas das irmãs mais novas. Depois podemos ter o suficiente de vocês para retomar a Fase.

– Mas o principal... – disse ela, soltando Hermione, mas ainda deixando a mão em Vane, – É que você e eu vamos a um lugar onde essa gente cruel da Crosta não poderá nos tocar. Um lugar onde teremos todo o tempo do mundo. Um lugar onde as condições para a Fase devem ser perfeitas... Simplesmente perfeitas.


Capítulo Dezesseis


Drake tinha conectado a um laptop o disco rígido do sistema de segurança da fábrica. Depois digitou como louco por vários minutos antes de se recostar e esticar os braços.

– Eu podia ter alguns pares de olhos a mais por aqui – disse ele.

Will, Elliott, Parry e Sweeney se reuniram em volta de Drake.

– Quebrei a criptografia... Não era nada de especial. Este disco contém as últimas doze horas de gravação do circuito interno no local. – Ele se curvou para a frente e digitou vários comandos. – E agora vou correr o resultado em um mosaico no monitor principal e cada um de vocês escolherá algumas câmeras para olhar. Vou passar bem mais rápido do que na taxa de visão normal, então, no momento em que qualquer um localizar alguma coisa interessante, simplesmente grite.

Will e os outros se enfileiraram diante das telas e esperaram, prendendo a respiração.

– Luzes! Ação! – disse Drake, apertando uma tecla. Uma grade de dez imagens monocromáticas diferentes apareceu na tela e começou a correr aos trancos.

Will examinava suas duas cenas e pensava reconhecer ambas. A de cima parecia ser a área de recepção da fábrica e a segunda mostrava o trecho do corredor que saía dela. A câmera da recepção estava voltada de modo que ele tinha visão pelas portas de vidro da entrada, onde evidentemente ainda era noite.

Os outros dividiram o resto das cenas, mas Parry não parecia satisfeito com sua escolha. Ao observar o que capturaram as duas câmeras dentro do depósito principal, ele se aproximou um pouco mais da tela para examinar um dos corpos nas camas, que parecia estar se mexendo. O sargento Finch tinha rolado sua cadeira de rodas para o lado de Parry e também olhava atentamente, com um gato ronronando em seu colo enquanto ele o afagava, distraído.

Parry e o sargento Finch ainda olhavam o corpo quando ele começou a se retorcer violentamente. Do pescoço à virilha, ele se rompeu e saiu uma larva de Guerreiro Styx, contorcendo-se. Nada poderia agravar essa cena, mas o fato de que era exibido em velocidade acelerada não ajudava.

Parry se retraiu quando o sargento Finch gritou “Pelas barbas do profeta!”, tão alto que o gato em seu colo se assustou e fugiu.

– Parece uma porcaria de salsicha que se abre no meio quando a gente cozinha demais – acrescentou ele.

– É uma abominação – resmungou Parry. – O que vi na fábrica já foi bem ruim, mas isto desafia qualquer descrição.

– Foco, pai, foco – insistiu Drake com ele. – Precisamos confirmar se terminamos o trabalho.

Isso provocou em Parry uma saraivada de resmungos, dos quais os outros só conseguiram pegar “Ensinando o padre a rezar missa, hein?”, antes de endireitar os ombros e voltar a se concentrar. Na semiescuridão, as imagens bruxuleantes das mulheres Styx de repente entraram na tela, correndo feito insetos, procurando mais humanos para impregnar ou se alimentando de carne fresca.

– Tem um Limitador no meu, mas ele não está fardado – anunciou Elliott, enquanto sua câmera revelava um dos soldados Styx que guardavam o portão principal. – Dois Limitadores – corrigiu-se ela, quando apareceu um segundo soldado. Elliott via um número cada vez maior deles, e Eddie se aproximou para olhar, mas não fez nenhum comentário.

Chester estava na pequena cantina perto do Centro, onde preparava chá para todos, enquanto a mãe fazia uns sanduíches.

– Está muito quieto lá fora – observou ele, olhando um pouco pela porta aberta. Depois voltou para completar a última das canecas com água da chaleira.

– Que bom que você voltou em segurança – respondeu a sra. Rawls.

– Peguei um carro entrando pela frente. Hora, nove e quinze – contou Elliott enquanto um veículo que parecia caro aparecia nos portões principais e tinha permissão para entrar.

Drake assentiu.

– O número da placa pode ser útil, mas não vou parar de toc...

– Mais carros – interrompeu-o Elliott.

Chester tirou com uma colher os saquinhos de chá de cada uma das canecas e acrescentou o leite.

– Vou levar este chá para eles. Como está indo por aí?

A sra. Rawls, de costas para Chester, não respondeu. Ela ainda preparava os sanduíches.

Chester se aproximou um pouco mais dela.

– Ainda está na manteiga? – perguntou ele com surpresa. Não entendia por que ela demorava tanto.

– Que bom que você voltou em segurança – disse ela de novo.

Chester balançou a cabeça.

– Mãe, você está bem?

Ela não respondeu, passando meticulosamente a manteiga numa fatia de pão que já estava muito amanteigada.

– Peguei as duas Rebeccas no corredor – anunciou Will com um arrepio. – Acho que uma delas está falando no celular. – Depois as gêmeas Rebeccas desapareceram de cena.

– Vou reduzir um pouco a velocidade do filme – disse Drake, digitando no laptop.

– Tarde demais, elas já saíram de vista... Mas tenho certeza absoluta de que uma delas falava no celular – disse Will.

– Peguei as duas no depósito principal. Continue a tocar nessa velocidade – disse Parry. – Isso é interessante. Elas estão com pressa... Mas o que estão aprontando? Olha só... Estão levando duas mulheres Styx! – Ele bateu a bengala no chão. – Estão tirando as duas do depósito!

– Agora tenho uma Rebecca com uma mulher Styx indo para a entrada da frente – disse Will.

Elliott assumiu:

– E peguei uma das Rebeccas pelos fundos. Também tem uma mulher Styx.

Drake semicerrou os olhos para o telão.

– Mulheres Styx? Tem certeza disso?

A voz de Elliott era estranhamente apática quando ela respondeu:

– Sim. Estou vendo muito bem os seus membros de inseto.

Will localizou mais atividade em uma das telas.

– Eu também.

Drake meneou a cabeça.

– Isso não é bom. Fiquem de olhos bem abertos... Precisamos saber o que mais aconteceu antes de atacarmos.

– Mãe? Qual é o problema? Está aborrecida porque o papai se machucou?

Chester colocou a mão no ombro da mãe, mas ela se mexeu de lado pela bancada até a fatia de pão com manteiga seguinte. Começou a passar mais manteiga ainda nela.

– Não está exagerando um pouco? – disse Chester com gentileza.

Ela ainda ficou em silêncio.

– Porque, se você estiver chateada por ele ter se machucado, não foi culpa de Drake... Ele fez o máximo para que não corrêssemos nenhum perigo.

Chester esticou o pescoço, tentando ver seu rosto. Ela não parecia estar ansiosa.

– Por que não vai ficar com papai? A sra. Burrows está fazendo um curativo novo e tenho certeza de que ele vai gostar se você estiver lá – disse ele com brandura.

– Voltou... Voltou... Voltou – murmurava a sra. Burrows, como um disco arranhado.

– O quê? – Chester não conseguia entender.

Ele pensou por um segundo.

– Estão prevendo uma chuva de sapos de chocolate para amanhã – declarou ele com confiança. – A gente devia pegar alguns e comer. O que acha disso? Sapos de chocolate?

A sra. Rawls parecia bem normal ao responder – só que Chester já ouvira aquela frase muitas vezes:

– Que bom que você voltou em segurança.

Vários monitores monocromáticos apagaram enquanto outros se encheram de uma paisagem marinha de interferência ondulante.

– Foi aqui que entramos – disse Drake. – Os sensores da câmera estão no limite com o clarão das explosões.

Parry virou-se para ele.

– Então temos certeza absoluta de que as gêmeas bateram as asas. – Ele meneou a cabeça como se estivesse chocado. – Elas retiraram duas mulheres Styx. – Ele olhou para Drake. – O timing foi muito conveniente. Está pensando o mesmo que eu?

Drake ergueu as sobrancelhas.

Parry continuou:

– A ligação para o celular deve ter avisado as duas de que estávamos prestes a entrar em cena.

– Então temos um espião na Velha Guarda? – pensou Will em voz alta. – Ou um dos Limitadores de Eddie é um traidor?

– Isso não é possível – disse Eddie.

Enquanto todos discutiam, Chester tinha saído da cozinha e estava parado ao lado de Drake.

– Preciso falar com você – disse ele com uma expressão preocupada.

– Espere um minuto, Chester. – Drake rebobinou para o momento em que Will vira a gêmea Rebecca entrar no corredor, congelando depois a imagem. – Você tem razão... Sem dúvida nenhuma ela está ao telefone. Se o relógio do circuito interno estava ajustado na hora certa, poderemos saber aproximadamente quando aconteceu a ligação. Danforth pode tentar rastrear o número pelo transmissor mais próximo.

– Drake. – A voz de Chester tremia de desespero.

– Aliás, onde está o professor? – perguntou Drake, voltando a digitar no computador.

Chester fechou a tela do laptop, quase prendendo os dedos de Drake.

– Por que você não me escuta? Tem alguma coisa errada com a minha mãe.

– O que quer dizer? – Só agora Drake via como o menino estava perturbado.

– Ela está esquisita e fica dizendo a mesma coisa sem parar quando eu falo com... – tagarelava Chester, mas se interrompeu enquanto Drake e Elliott trocaram um olhar urgente. Os dois pegaram as armas e se deslocaram com rapidez.

Tentando dar uma olhada na sra. Rawls na cantina, Will tinha se aproximado do meio do Centro. Mas, em vez da mãe de Chester, ele viu outra coisa muito incongruente.

– Lá está Danforth. – Ele apontou para o túnel de entrada. Todas as portas da seção estavam abertas e o homenzinho estava de pé a certa distância no túnel.

Nesse momento, o Centro perdeu completamente a energia elétrica e todos mergulharam na mais completa escuridão.

– São os Styx? – disse a sra. Burrows, sentindo que havia alguma coisa errada. Will não a vira entrar no Centro e é claro que a escuridão não fazia diferença para ela.

– Não, não sabemos disso. Fiquem todos onde estão – ordenou Parry, tentando manter a calma do grupo.

– De onde a Emily saiu? – perguntou a sra. Burrows.

As luzes de emergência piscaram. E visivelmente, no brilho amarelo que se derramava na passagem, a sra. Rawls andava decidida até o professor.

– Mãe! – gritou Chester para ela.

Ela não havia alcançado Danforth quando parou abruptamente e girou nos calcanhares.

– Que roupa é essa que ela está usando? – Chester tinha a voz sufocada ao ver a mãe vestida com uma espécie de colete volumoso.

Elliott tinha o rifle apontado para o corredor.

– Talvez eu consiga pegar o braço dele – sussurrou ela suficientemente alto para Drake ouvir.

Drake balançou muito levemente a cabeça, depois chamou Danforth.

– Mas o que é isso? O que está havendo? – perguntou.

– Plano B. – O professor riu. – Não pensei que ficariam na minha cola tão cedo. – Ele segurava alguma coisa. Não era uma arma.

– Como assim, na sua cola? – Drake exigiu saber ao partir para ele.

– Posso sugerir que você fique aí atrás? – Ameaçou-o o professor, brandindo o controle que tinha na mão. – Submeti a sra. Rawls à Luz Negra quando o sargento Finch estava tirando um cochilo. Pode ter sido meio apressado e não tão perfeito, como o ideal, mas a tarefa que programei nela é bem simples. Ela tem explosivos suficientes no colete para fazer o teto desabar, se eu disser a ela para detoná-los. E se alguém disparar um tiro que seja em mim, ou se aproximar demais, ela também sabe o que fazer. Hora do bum.

– DANFORTH! – berrou Parry. – Mas que brincadeira é essa?

– Não grite comigo, comandante, meu chapa. Eu anulei todos os sistemas do Complexo, então, por favor, seja civilizado comigo. Não há nada que você possa fazer. – Danforth tocou o controle na mão e a porta da seção entre ele e a sra. Rawls começou a se fechar no corredor. A sra. Rawls não se mexeu, imóvel feito uma estátua. Danforth tocou o dispositivo novamente e a porta de imediato mudou de direção, retornando à parede. O sargento Finch experimentava os botões no guidom de sua scooter elétrica, mas não surtiam mais nenhum efeito.

– Explique-se, Danforth! – gritou Parry, sua voz parecendo um trovão.

– Você não pode vencer – proclamou o professor. – Os Styx lideram um novo amanhecer. Você sabe que terminei de traduzir o Livro da Proliferação enquanto vocês estavam em Londres. É um plano para o que virá... Depois da raça humana. E o que descobri quando examinei Elliott... Bem... Abriu meus olhos. Não é nada pessoal, Parry... É a evolução e quero fazer parte da equipe vencedora.

– Então está abandonando o barco e se juntando ao outro lado? É isso? – gritou Parry. – Para mim, é muito pessoal, seu idiota desgraçado!

– Por que eu faria o contrário? – respondeu Danforth. – Já estou farto de minha própria espécie... Ela se beneficiou do trabalho de minha vida e só me agradeceram com uma aposentadoria forçada e a prisão domiciliar num fim de mundo da Escócia. Isso não está certo, mas eu não esperava que você compreendesse, Parry.

– Não, maldição, eu não entendo – rugiu o velho. – Fizemos o que nosso país pediu de nós e ninguém esperava receber medalhas.

Pela primeira vez, Danforth perdeu sua fria compostura, a voz subindo uma oitava enquanto ele se balançava de um pé a outro.

– Eu não esperava uma maldita medalha. Esperava gratidão. – Ele respirou fundo, acalmando-se. – Só o que queria era que alguém dissesse “Bom trabalho, professor Danforth... Você fez do mundo um lugar melhor com sua engenhosidade”. Mas em vez disso recebi uma ordem de cala-boca num envelope pardo e uma carona sem volta numa viatura policial até sua casa de campo velha e mofada, Parry.

– E então, como um fedelho chorão, você decidiu nos trair – disse Parry.

– Foi uma simples questão de rastrear o celular das Rebeccas. Era tarde demais para salvar sua operação na fábrica, mas fiz a elas uma proposta que não poderiam recusar. E elas não recusaram. Depois que a nova ordem estiver estabelecida, elas querem que eu assuma o desenvolvimento de sua tecnologia. É o emprego perfeito!

– Você está se iludindo – disse Eddie. – Elas não precisam de você.

A confiança de Danforth não foi abalada.

– Longe disso, garantiram a mim um lugar com os novos reis do castelo.

A voz de Eddie tinha sua monotonia normal, mas Will podia jurar que se infiltrava nela um tom vingativo quando ele respondeu:

– Quando você aparecer, elas simplesmente o executarão. Você é da Crosta.

Danforth soltou um riso seco.

– Ao contrário, estou na lista protegida, enquanto o resto de vocês... inclusive quaisquer vira-casacas como você, Eddie, meu velho... são a espécie mais ameaçada, junto com os pobrezinhos dos pandas.

– Então você contou aos Styx onde nos encontrar? Estão vindo para cá? – perguntou Drake.

Danforth balançou a cabeça.

– Não. Pode me chamar de sentimental, mas não quero o seu sangue nas minhas mãos. Elas não perguntaram onde vocês estavam... Provavelmente porque o jogo continua e todos vocês estarão mortos em questão de meses. – Ele sorriu consigo mesmo. – Acho que a sua palhaçada na fábrica não fez a mínima diferença. Você não pode impedir o inevitável, a Fase vai acontecer. É o progresso.

Ele se ergueu em toda sua altura, com um sorriso arrogante brincando nos lábios.

– Os Styx precisam de mim. Meu exame detalhado do Livro da Proliferação mostrou-lhes como podiam ter feito as coisas diferente... Podiam ter feito melhor.

– Do que está falando? – disse Drake.

– Bem, onde mais existem condições idênticas à superfície, com farto suprimento de hospedeiros humanos, onde não haveria nenhuma interferência do povo neandertal da Crosta, como vocês?

Houve um instante de silêncio, depois o professor coçou a testa com o indicador.

– Vocês nunca conseguem pensar em tudo, não é? A conselho meu, as Rebeccas estão transferindo a Fase para onde devia ter sido encenada antes de tudo... Para o mundo interior do coronel Bismarck. Será possível que nenhum de vocês, débeis mentais, previu isso? As condições lá embaixo não podiam ser mais ideais.

Danforth olhou o relógio.

– De qualquer modo, está na hora e quero encontrar meus novos amigos. – Dando um passo para trás, ele gesticulou com o controle. – Nenhum de vocês vai me seguir porque vou trancar este lugar por tempo suficiente para ter uma boa vantagem. E minha talentosa assistente aqui, a agradável Emily Rawls, é minha garantia de que vocês não tentarão sair à força.

Na escuridão da beira do Centro, Will teve consciência de uma presença se movendo lentamente. Estava prestes a alertar Drake quando o sr. Rawls saiu das sombras, entrando na luz amarela e suave do corredor. Claramente ele estivera se vestindo, porque sua camisa ainda estava desabotoada.

– Emily! Sou eu, meu amor. É o Jeff. – Acelerando o passo, o sr. Rawls estendeu os braços para a esposa.

– Não, pai! – gritou Chester.

– Estou avisando! Tirem esse idiota daí! – disse Danforth, recuando ainda mais no corredor.

Mas o sr. Rawls não parou.

– Emily... Sou eu... Jeff. Não dê ouvidos a esse homem – suplicava ele à esposa.

– Jeff, volte! É uma ordem! – gritou Drake.

– Isso não vai dar certo – murmurou Parry.

Will viu Danforth operar o controle. Ele balançava a cabeça enquanto a porta da seção deslizava no corredor diante dele.

O sr. Rawls ainda se aproximava da mulher, mas reduziu o passo a um arrastar ao se dirigir a ela gentilmente, numa voz calma e tranquilizadora.

Quando a alcançou, a sra. Rawls se virou para o marido.

Sua expressão era vazia.

– Mãe! Pare! – gritou Chester, desesperado, e desatou a correr para eles.

– Procurem abrigo! – gritou Parry. Ele segurou os punhos da scooter elétrica do sargento Finch e a acelerou para a área do elevador.

Houve um clarão ofuscante e uma explosão de sacudir os ossos.

Will foi atirado no ar, batendo em uma das mesas e perdendo a consciência.

Depois houve apenas escuridão e poeira no Centro.

E o ronco de toneladas de terra e pedra em movimento, enquanto a montanha reclamava a entrada do túnel.

A única forma de entrar ou sair do Complexo estava lacrada.


Capítulo Dezessete


Will recuperou a consciência no chão. Estava deitado em várias mantas e coberto de uma fina poeira. Foi obrigado a tirá-la dos olhos antes de abri-los direito, mas não adiantou muito, porque não havia luz nenhuma no ambiente. Em uma mesa próxima, alguém tinha conectado a lâmpada de um suporte portátil ao que parecia uma bateria de carro e a luz bruxuleava, muito fraca.

Ao se sentar, a cabeça de Will latejou cruelmente e ele teve uma crise de tosse. Depois que passou, ele teve consciência de vozes baixas e sombrias. Uma delas era de Elliott.

– Você deve ficar deitado por um tempo – aconselhou o coronel Bismarck ao entrar no campo de visão de Will. O neogermano tinha um saco pendurado no ombro com uma grande cruz vermelha.

– Como foi que cheguei aqui? – Will ainda estava confuso.

– Você está numa das salas de reuniões. Levou uma pancada feia – disse o coronel, indicando a testa de Will. – Estanquei o sangramento e fiz um curativo, mas você precisa descansar.

Will tateou o curativo enquanto tentava se lembrar do que tinha acontecido.

– A explosão – murmurou ele, sua memória começando a voltar.

Apesar dos protestos do coronel Bismarck, Will decidira se levantar. Na penumbra lançada pela luz fraca da lâmpada, ele viu Chester e Elliott sentados em cadeiras do outro lado da sala.

– Ei! – exclamou Will, tomado de alegria ao ver que os amigos estavam sãos e salvos.

E então uma lembrança – a fração de segundo antes da explosão – encaixou-se como a última peça de um quebra-cabeça. Ele se lembrou dos pais de Chester no túnel de entrada. Eles estavam juntos. O sr. Rawls abraçava a esposa, mas a lembrança não levava a lugar nenhum, dissolvendo-se em espirais de fogo, escuridão e nada.

Como se uma rajada forte de vento o impelisse para a frente, Will procurou a beira da mesa para se apoiar.

– Ei – repetiu, só que desta vez mais parecia um arquejar.

– Oi, Will – respondeu Chester, inexpressivo. – Como está se sentindo?

– Dor de cabeça... Meio tonto. E tem um tinido nos ouvidos – respondeu Will.

– Nos meus também – disse Chester. – Tenho uma queimadura no braço, mas não está tão ruim. Eu tive sorte.

Will se deslocou pela lateral da mesa, encontrando os olhos de Elliott, que levantava a cabeça. Ele viu que ela esteve chorando, as lágrimas deixando riscos na sujeira de seu rosto.

Chester estava sentado com as costas retas e se agarrava aos braços da cadeira como se estivesse numa montanha-russa.

Will pigarreou.

– Chester... Eu... Não sei o que dizer. Eu... estou... – Ele deu outro passo, estendendo a mão para o amigo, embora não tocasse nele.

Chester esteve encarando a lâmpada que bruxuleava, mas agora se concentrou na mão de Will. Seu queixo começou a tremer como se estivesse prestes a dar vazão a sua tristeza. Mas então ele ergueu repentinamente a cabeça, inexpressivo e encarando a lâmpada novamente.

Will continuou atrás dele, ainda de mão estendida, com os dedos um tanto abertos. Sabia muito bem como se sentiu quando seu pai foi baleado a sangue-frio pela gêmea Rebecca, mas naquela fração de segundo a explosão no túnel de entrada tinha arrebanhado os dois pais de Chester.

Will queria dizer alguma coisa para preencher o silêncio.

– Todos os outros estão bem? – perguntou ele, arrependendo-se das palavras que escolheu logo que as pronunciou: Todos os outros estão bem? Mas por que estou incomodando meu amigo com isso justo agora?

– Sim, acho que estão – confirmou Chester. Ele olhou brevemente para Elliott, que assentiu, depois voltou seu olhar à lâmpada. – Mas o sargento Finch perdeu alguns gatos. Foi triste.

Se Will poderia se sentir pior, foi com essa resposta. O amigo estava expressando solidariedade pelos gatos quando sofreu a pior perda concebível. Chester sempre foi próximo dos pais, em particular depois da morte prematura da irmã. E o casal Rawls se dedicou a seu único filho sobrevivente, só para vê-lo tirado deles quando Will o levou para a Colônia.

E embora não fosse culpa de Chester, os pais foram atraídos para todo o pesadelo dos Styx e agora pagaram o preço definitivo por seu envolvimento involuntário. Will sentiu um peso tão esmagador da responsabilidade que queria se lançar aos pés de Chester. Queria implorar pelo perdão do amigo.

Mas não foi o que ele fez.

Em vez disso, ele estendeu o braço novamente para a mão de Chester, desta vez realmente fazendo contato. Chester não se mexeu enquanto os dedos de Will roçaram seu punho cerrado no braço da cadeira.

Era um gesto desajeitado e Will não sabia aonde ir a partir dali. Ele não era Elliott – não podia abraçar o amigo. Murmurando um pedido de desculpas, ele retirou a mão e deixou a sala, trôpego. Precisava sair, tinha de escapar.

Na escuridão de breu da passagem, ele parou.

– Ah, meu Deus... Por que isso tinha de acontecer? – Sua voz era rouca, a garganta se apertava de remorsos e autocensura. – Por que eles tiveram que morrer? Por que eles e não eu?

Ele recuou lentamente até encontrar a parede – a parede além da qual seu pobre amigo tentava lidar com a perda.

O que dava um nó em Will era que, por mais que desejasse, não podia endireitar as coisas para Chester. Ele não podia trazer os pais do amigo de volta. Parecia exatamente a Will que ele era torturado num dos pesadelos mais febris de que sofria no início da infância, quando acordava com a sensação inabalável de ter feito algo tremendamente errado. Embora nunca soubesse quais foram seus crimes, a culpa era tão intensa que parecia uma faca se torcendo em suas entranhas.

A testa de Will ainda doía muito, mas ele girou o corpo e a apertou com força na parede. Depois começou a golpear repetidamente a superfície inflexível, grato pelo alívio aguilhoante da dor.

– Não, não, não, não.

Will parou quando sangue escorreu para os olhos, fazendo-o piscar. Nesse momento, ouviu uma gritaria do Centro, depois um estrondo. Drake gritava uma coisa. A ideia de que alguém precisava de ajuda fez Will se recompor e ele tateou o caminho pelo corredor, entrando no Centro.

Embora algumas nuvens de fumaça ainda pendessem no ar, as luzes de emergência tinham sido posicionadas pela área, e assim Will de imediato pôde ver a extensão dos danos. Uma película fina de sedimento cinza cobria tudo que estava à vista e muitas mesas tinham sido dinamitadas – aquelas mais próximas da boca do túnel de entrada estavam enegrecidas pelas chamas.

Pisando nos destroços espalhados pelo chão, Will foi para o túnel. A cerca de seis metros, estava inteiramente obstruído por imensas lajes de pedra que caíram do teto de concreto reforçado. As pontas irregulares dos dutos de ar-condicionado e conduítes de eletricidade pendiam frouxos do teto e das paredes como artérias cortadas. E a parte do túnel que resistiu estava pontilhada de trechos carbonizados, onde o fogo evidentemente foi apagado.

– Tivemos sorte de sobreviver – disse Parry, aparecendo ao lado de Will e avaliando os danos com ele.

– Os pais de Chester... Existe alguma possibilidade de eles terem escapado? – perguntou Will, olhando as pedras.

Parry meneou a cabeça.

– Danforth provavelmente escapou porque estava do lado certo da porta antiexplosão, mas eles não.

Will ficou em silêncio por um momento.

– Podemos escavar uma saída por isto aqui? – disse ele por fim.

– Imagino que seria necessária uma equipe com equipamento específico de escavação por duas ou três semanas para limpar tudo. – Mal parando para respirar, Parry perguntou: – Como acha que Chester está?

– Sinceramente, não sei – respondeu Will, virando-se para Parry. – Acho que ele ainda está em choque.

Parry examinou o rosto de Will.

– Você está coberto de sangue. O coronel me disse que ele o limpou – disse ele com surpresa.

– Não é nada – murmurou Will.

Ele não ia admitir que tinha agravado o ferimento, batendo a cabeça na parede da passagem. Virou-se para o outro lado do Centro, onde antes Danforth estivera trabalhando e agora Drake se encontrava, com cabos elétricos até os tornozelos. Quando Drake berrou algo para Sweeney, que estava em outro painel, Will parecia em pânico.

– Estamos com problemas, não é? – disse Will a Parry.

– Além do fato de que devíamos estar caçando aquelas gêmeas Styx e suas mulheres, sim, estamos com sérios problemas aqui embaixo. Danforth fez um tremendo estrago em todos os sistemas do Centro. Tudo se desligou. – A voz de Parry era tão baixa e severa que Will teve dificuldade para ouvir.

– Tudo?

Parry suspirou.

– Só o que temos são alguns telefones por satélite sem meios de conseguir sinal, algumas baterias industriais e um único laptop que ainda funciona. – Parry puxou o ar e o soltou lentamente. – Talvez eu esteja dando crédito demais a Danforth... E quando o encontrar novamente, pode ter certeza de que vou estrangular aquele cretino... Mas não acredito que ele nos quisesse mortos. Não acredito que ele sequer tenha imaginado que chegaria ao ponto de detonar o colete com explosivos da sra. Rawls.

– Não acredita?

– Não, ele só queria nos reter por tempo suficiente para se safar. Mas Danforth sempre pensa em tudo; ele distribuiu as cargas para detonar até o último dos geradores de reserva. Todos foram arruinados.

– Então não temos nenhuma energia? Por que ele fez isso?

– Para o caso de tentarmos redirecionar a corrente para as portas antiexplosão aqui embaixo, imagino. – Parry gesticulava com a bengala para o que ainda existia da entrada do túnel. – Nós verificamos duas vezes... Todos os geradores estão avariados e não têm conserto. O que teve o efeito secundário de não deixar energia para o sistema de circulação de ar. E, de qualquer forma, o fogo devorou grande parte do oxigênio disponível. Num cálculo aproximado do que restou, eu diria que temos, no máximo, uns quinze dias. Talvez menos, porque nós somos muitos.

– Vamos ficar sem ar – sussurrou Will, tentando lidar com essa notícia.

Parry partia lentamente na direção de Drake e Will o acompanhou.

– E a tubulação por onde entra o ar? Não podemos abri-la manualmente? – sugeriu Will, acrescentando outra ideia que lhe ocorreu: – E não poderíamos sair por ela?

– Essa seria uma ótima ideia... – começou Parry, cutucando alguma coisa no chão com a bengala, depois parando para pegar. Era uma caneca e, enquanto Parry a rodava, Will percebeu que ainda tinha algum chá no fundo. – Só que não há nenhuma tubulação. O Complexo foi construído segundo o princípio de que pode ser inteiramente encerrado do ambiente externo. É hermeticamente lacrado... Nem uma molécula entra ou sai.

– Então, de onde vem o ar?

– Quando se entra em alerta, o túnel de entrada é fechado e o ar é fornecido dos reservatórios, os tanques pressurizados em cada andar.

Will demonstrou esperanças:

– Então estamos bem, porque...

– Os tanques estão vazios – interrompeu-o Parry.

– Isso não vai melhorar, não é? – murmurou Will enquanto eles encontraram o sargento Finch em sua scooter elétrica. Ele estava de cabeça baixa, acariciando uma trouxa de tecido no colo. Era um dos gatos mortos e era filhote, a julgar pela aparência.

Stephanie estava ajoelhada ao lado do sargento Finch. Estava bem diferente da Stephanie de sempre, com o cabelo jogado para todo lado e a cara suja de terra. Ela olhou brevemente nos olhos de Will, depois voltou ao que estava fazendo. Ele viu que ela cobria o corpo de outro gato. Havia pelo menos seis corpos pequenos e peludos, cada um deles enrolado em toalhas de chá. Aqueles pequenos cadáveres deploráveis evocavam noticiários de TV que Will via depois de acidentes pavorosos ou ataques terroristas. Apesar de serem gatos, e não gente, a visão ainda assim era nauseante, porque o sangue molhava o algodão branco das toalhas de chá.

Will falava baixo enquanto ele e Parry prosseguiram até Drake:

– Alguém falou com o sargento Finch? Lembro-me de você ter dito alguma coisa sobre reabastecimento de comida – disse ele.

Parry balançou a cabeça.

– Sim, há uma rota bimensal em que um integrante da Velha Guarda deixa suprimentos em um tugúrio na montanha daqui.

Will franziu a testa para a palavra desconhecida.

– Tugúrio?

Parry deu de ombros levemente.

– É uma cabana de pedra abandonada. A Velha Guarda não sabe para que servem os suprimentos, por restrições de segurança, então a comida ficará lá até apodrecer. E devido aos cortes de orçamento, o obscuro departamento de engenharia dentro do MI5 que serve a este Complexo só despacha uma equipe para cá uma vez por ano. E a próxima visita só está programada para daqui a sete meses. Lamento dizer, Will, estamos por conta própria.

Will teve outra ideia enquanto ouvia um gato uivar e olhava por sobre o ombro para Stephanie.

– E o Velho Wilkie? Ele não estaria começando a se perguntar o que teria acontecido com a gente?

– Talvez, mas ele não sabe nossa localização. Mais uma vez, devido a restrições de segurança, coloquei uma venda nele quando o deixei a cerca de cem quilômetros daqui. E também ordenei que ele mantivesse o rádio silencioso.

Isso levou Will a pensar em mais uma coisa.

– Jiggs! E o J...

– Ele está aqui conosco – respondeu Parry, afastando-se. Will olhou atentamente as sombras do Centro, perguntando-se onde estaria agora aquele homem esquivo.

Com o transcorrer dos dias, Chester parecia passar cada hora de vigília simplesmente encarando o vazio. E nas raras ocasiões em que adormecia, ele acordava aos gritos, chamando pela mãe e pelo pai. Embora às vezes a sra. Burrows se sentasse com ele, Elliott tomou para si a tarefa de cuidar para que ele nunca ficasse sozinho. No começo, ela tentou desviar a mente de Chester de seu pesar falando com ele, mas como ele ainda não mostrava interesse nenhum ela simplesmente ficava sentada em silêncio a seu lado.

Assim, Will se viu sozinho. Vagava pela escuridão do Complexo, sentindo-se inútil, porque não havia nada que pudesse fazer para ajudar a ninguém.

E Chester não estava sozinho em sua vigília; Drake e Parry não dormiam quase nada, tentando pensar numa saída do Complexo, ou num meio de pedir ajuda. A sra. Burrows colocou comida enlatada na cozinha para que todos se servissem, e quando Will se arriscava por lá, em geral parava para ouvir as longas discussões entre Drake e Parry. Às vezes também estavam presentes o coronel Bismarck, Eddie ou o sargento Finch, mas pai e filho falavam na maior parte do tempo.

A primeira iniciativa que Will entreouviu foi a proposta de Parry de explodir as portas para um dos outros andares, liberando mais ar. Quando tentou explorar, Will descobriu sozinho que os andares terceiro, quarto e quinto tinham sido lacrados por suas próprias portas automáticas depois da explosão no Centro. Quando Will perguntou o motivo a Parry, ele disse que era uma medida para proteger qualquer pessoa ali dentro, se a integridade do Complexo fosse comprometida.

Drake imediatamente se colocou contra a ideia de Parry, argumentando que não lhes daria uma quantidade apreciável de ar extra. E, depois de muitos cálculos, concluiu-se que usar explosivos no ventre do Complexo seria arriscado demais e provavelmente consumiria grande parte do ar durante as explosões.

Depois de outras discussões infrutíferas, Drake e Eddie pensaram numa segunda iniciativa. Com a ajuda do sargento Finch, localizaram as microfichas com as plantas do Complexo. Will não sabia o que era uma microficha, então observou com interesse enquanto Drake colocava o scanner de documentos de Danforth para funcionar em uma série de baterias industriais. Depois de Drake ter digitalizado as microfichas – pelo que Will descobriu, eram transparências do tamanho de um cartão-postal com fotos em miniatura de vários documentos –, ele conseguiu ampliar o suficiente para ler na tela do laptop.

Drake e Eddie se revezaram para examinar essa documentação – principalmente desenhos arquitetônicos da estrutura do Complexo e esquemas de fiação, nos mínimos detalhes. Nenhum deles disse o que procurava, mas ainda assim passaram horas debruçados sobre os documentos.

Outra iniciativa foi usar a antena de rádio escondida na torre de eletricidade na montanha, do lado de fora, para enviar um sinal de Mayday. Porém, depois de ligar um dos transmissores de rádio do Centro, ficou claro que Danforth também previra isso. Apesar de tentar tudo em que podia pensar, Drake não chegava a lugar nenhum. Danforth usou disjuntores, ou plantou mais explosivos para desligar a antena.

Tudo parecia desanimador e as discussões entre Drake e Parry ficavam cada vez mais medíocres com o esgotamento das ideias.

Mas depois de ouvir Parry se referir a um arsenal no Nível 6 – o andar mais baixo do Complexo –, Will decidiu descer lá e dar uma boa olhada. Além disso, ele estava certo de que já começava a ficar difícil respirar no Centro. Podia ser coisa de sua cabeça, mas começava a lhe parecer meio claustrofóbico.

Ele passou em seus aposentos para pegar um globo luminoso e estava a caminho da escada quando encontrou Stephanie. Ela voltara a ser a Stephanie de sempre; tinha lavado o cabelo e seu cheiro era renovado. Will percebeu que estava até maquiada. Na sujeira e no escuro do Complexo, ela brilhava com um esplendor que fez o coração de Will parar.

– Você está demais – viu-se dizendo ele.

– Obrigada, Will. – Ela lhe abriu um leve sorriso. – Acho que já fiz minha parte pelo sargento Finch. – Will sabia que ela passou dias fazendo companhia ao velho porque ele ficou perturbado demais com a morte dos gatos. – Ele é um amor, mas... – Inclinando-se para Will como quem conspira, ela continuou: – Ele é meio fedido. Então achei que merecia uma pausa total. Um tempo só para mim.

Ela perguntou a Will aonde ia e insistiu em acompanhá-lo. Will percebeu o quanto ficou agradecido por ter companhia.

– Isto aqui é bem sinistro, né? – disse Stephanie com um falso ruído de tremor enquanto eles chegavam ao fim da escada e não podiam mais descer.

O início do Nível 6 fazia um forte contraste com o plano dos outros andares, porque não havia corredor principal – apenas um espaço aberto em que o piso, as paredes e colunas a intervalos regulares eram de concreto, em certos lugares manchado por riscos de água enferrujada. O globo luminoso de Will criava sombras vacilantes enquanto passavam entre as colunas.

– Parece o quarto de um gótico ou coisa assim. – Stephanie riu ao ver um grande crânio de dentes arreganhados numa placa de alerta cheia de teias de aranha.

– É – disse Will, indeciso, perguntando-se por que Stephanie sentia-se compelida a preencher o silêncio entre eles. – Mas você não acha mais fácil respirar aqui embaixo? – Ele parou de andar.

Ela puxou ruidosamente o ar pela boca.

– Pode ser.

– Drake disse que o dióxido de carbono é mais leve do que o oxigênio. Então talvez tenha mesmo mais oxigênio neste andar, né? – pensava Will em voz alta, tentando se lembrar do resultado do debate entre Drake e Parry.

Stephanie soltou um murmúrio contemplativo do tipo “Hummmm” enquanto eles chegavam a umas estruturas escuras que se estendiam quase até o teto.

– Estes são os tanques de água – disse Will, jogando a luz do globo luminoso nos tonéis de armazenamento dos dois lados daquele andar. – São descomunais, não? – Ele se aproximou do mais próximo deles e bateu a mão aberta em sua lateral. O tonel reverberou como um sino sepulcral. – Parece que está cheio.

– Então, de sede, pelo menos, não vamos morrer – disse Stephanie.

Will investigava com sua luz as áreas entre os tonéis, e Stephanie ficou em silêncio por um momento, o que lhe era pouco característico.

Ao entrarem ainda mais fundo naquele andar, passando entre os geradores de apoio que Danforth estragara, ela pegou a mão de Will. Ele deve ter se assustado um pouco, porque ela soltou uma risadinha.

– Humm – disse ele sem jeito, com o cuidado de não dirigir o globo para ela, porque não queria que Stephanie visse como ele estava inquieto.

– Gosto de verdade de você, Will – disse ela com brandura. – Sabe disso, não sabe?

Will avançava pelo corredor, mas não ia rápido porque Stephanie ainda se agarrava a ele. Ele demorou um pouco a responder:

– Eu... gosto de você também.

– Você só está dizendo isso para ser legal comigo. Mas está tudo bem. – Ela começou a dar um trote curto ao lado dele, com as botas de couro de salto alto estalando no concreto, como se estivesse prestes a desatar a correr na frente dele. Sentindo isso, Will também acelerou o passo.

– Eu queria muito ficar mais tempo com você, Will – murmurou Stephanie. – Não é como se Elliott estivesse muito presente, né? Ela não precisa saber de nada.

Como Will não respondeu, Stephanie baixou ainda mais o tom, quase parecendo chorosa:

– E se tudo der errado pra gente e ninguém escapar deste lugar, o que importará mais? Além do tempo que nos resta?

Eles chegaram a uma série de portas fechadas e Stephanie apertou a mão de Will várias vezes, claramente sem intenção de soltá-la. Embora fingisse estar envolvido na exploração daquele andar, a mente de Will disparava. Ele não conseguia deixar de lembrar como Stephanie estava bonita na escada.

Will pigarreou.

– Este é o arsenal. Estava trancado da última vez que vim aqui – disse ele quando a luz do globo caiu em uma porta aberta. – Vamos dar uma olhada aí dentro.

– Claro, vamos. – Stephanie se animou. Sua outra mão agora estava no braço de Will.

Will imaginava seus olhos azuis-claros e como sua boca ao sorrir fazia covinhas nos cantos. Sua pulsação acelerou-se. Talvez ela tivesse razão – isso agora não importava. Will sabia o quanto Chester gostava dela, mas agora o amigo não tinha condições psicológicas de se incomodar com isso e provavelmente ficaria assim por um bom tempo. E Elliott claramente estava mais interessada em cuidar de Chester do que ficar com ele. Se eles ficassem sem ar em mais ou menos uma semana, então tudo seria diferente e Stephanie tinha razão. Nada mais importava.

A não ser pelo tempo que lhes restava...

Antes que se desse conta de seus atos, Will tinha apertado mais a mão de Stephanie e a puxava para dentro da sala.

Depois de entrar, eles pararam. Will baixou o globo luminoso a seu lado e Stephanie, diante dele, não passava de uma sombra cinzenta. Ela correu a mão por seu braço.

– Sabia que você é muito especial? – disse ela.

– Facha quaeshqué coicha, mash não achenda fóshforo aqui – aconselhou uma voz baixa e arrastada. – É um erro muitcho feio.

Stephanie gritou.

Will virou-se em direção à voz, pegando o globo para ver quem estava ali. A sala era grande, tinha uma fila de estantes depois de outra, abrigando todas as armas e explosivos do Complexo.

– Quem está aí? – perguntou Will, tentando aparentar a maior confiança possível. – Quem é?

– É chó eu – trovejou a voz, ainda balbuciando. – Che vochê achender um fóshforo, vamos todos explodir. Por cauja da munichão.

Will avançou alguns passos para a origem da voz, com Stephanie agora agarrada a ele porque estava apavorada.

A luz do globo caiu em um homem arriado e meio torto em alguns sacos.

– Sparks! – exclamou Will. – Mas o que está fazendo aqui?

– O meshmo que vochê – respondeu ele com a voz arrastada. – Eu chó queria ficar choginho um pouquinho.

Will e Stephanie o olhavam, assombrados. A camisa de Sweeney estava desabotoada até a barriga. O que pareciam pequenos terminais de metal brotavam de seu osso esterno e eram conectados por fios a uma bateria industrial a seu lado, que ele abraçava. Sweeney acompanhou o olhar dos dois a ela.

– Shim... Não prechijo me recarregar deche jeito – disse ele, com os olhos piscando lentamente. – Mash penchei que eu podia completar as velhas chélulas de rejerva. Chó por precauchão.

– Sparks, você está muito estranho. – Will se arriscou. – Não andou bebendo, né?

– Não, chenhor! Eu nunca toco necha coija! É a carga extra... Às vejes tem um efeito ruim. Me deixa meio tonto – respondeu Sweeney. Ele tentou se sentar, mas não foi muito longe. – Eu chei... Ouvi tudo que vochês estavam dijendo.

– Tudo? – disse Will, lançando um rápido olhar a Stephanie.

Com a mão livre, Sweeney tentou apontar para eles, seu braço balançando loucamente.

– Shim... ouvi... She acontecher o pior... E a chente empacotar... – Com uma careta, ele balançou a cabeça com uma gravidade cômica. – Então todos temos de nos atirar naqueles tanques de água. Afunda quaje como um shubmarino. Não é um cheito ruim de partir. Melhor do que a asfixchia.

– Mas, Sparks, vamos sair deste lugar. Ainda não acabou! – disse Will, chocado ao ouvir o velho soldado falando daquele jeito. – Tem certeza de que você está bem?

– Cherteja abcholuta. Agora relaxa, amigo. Fica aqui comigo um pouquinho. Diga a cheus amigos para che chuntarem a nós também.

– Mas somos só nós dois... – começou Stephanie, calando a boca quando Will a olhou.

– É claro que vamos ficar com você – disse Will. Ele puxou um dos sacos vazios para perto e assim ele e Stephanie puderam se sentar. Embora houvesse muito espaço nos sacos para os dois, a perna de Stephanie tocou a de Will enquanto ela se ajeitava. Ela deixou ali e Will tentou ao máximo conversar com Sweeney, que não dizia coisa com coisa.


– Posso perguntar em que nome está sua reserva? – indagou a recepcionista animadamente com seu terninho rosa.

Ela pegou um lápis do cabelo crespo, permitindo-se um olhar de curiosidade à jovem confiante diante da mesa, ao lado do motorista bonito que parecia dopado.

E então, girando o lápis entre o polegar e o indicador como se fosse um pequeno bastão, a mulher usou o mouse para rolar por uma página na tela do computador.

– Imagino que seja parente seu? Sua mãe ou seu pai, talvez? – A recepcionista viu a Mercedes último tipo estacionada do lado de fora, seguida por um ônibus, então claramente era alguém importante. E como eles não aceitavam crianças, a reserva não podia ser para a garotinha diante dela. – Se puder pedir a eles que venham aqui, vamos cuidar para que seus quartos estejam preparados.

– Legal – disse Rebecca Dois, olhando o truque com o lápis, que rodava sem parar feito um helicóptero na mão da recepcionista.

– Ah, obrigada. É algo que aprendi com um ex-namorado – disse a recepcionista com um ar distante. Ela estava intrigada para descobrir quem estava prestes a agraciar seu estabelecimento caríssimo, mas, ao chegar ao final da lista de reservas no computador e ver que só havia alguns clientes costumeiros ainda por chegar, ela franziu a testa. – No momento estamos lotados. Qual é o nome na reserva?

– Reserva? – repetiu Rebecca Dois enquanto o Velho Styx entrava na recepção, olhando em seguida as fotografias das várias atividades oferecidas no exclusivo spa nas profundezas do interior de Kentish. As fotos eram de gente nadando na piscina olímpica, recebendo massagens e limpeza de pele, e correndo em grupo pelo extenso terreno que cercava a imponente casa convertida.

– Sim, a reserva. Imagino que seja para o senhor? – perguntou a recepcionista, dirigindo a pergunta ao Velho Styx. Ele andou até as vidraças no fundo da recepção, com vista para a piscina, e olhava a aula de hidroginástica matinal que estava a todo vapor.

– Senhor? Olá? – disse a recepcionista, porque o homem grisalho não se incomodava em responder. Ela mordeu a língua. Embora estivesse ficando exasperada com aqueles dois esquisitos, ela precisava ter cuidado porque era provável que o homem fosse um cliente novo e importante.

Ela examinava o perfil do homem enquanto ele se virava para um quadro de avisos onde foram colocadas todas as atividades do dia. Com o cabelo penteado para trás, o idoso vestia um casaco de couro preto até os tornozelos. Isso fez a recepcionista pensar que ele podia ser um famoso diretor de cinema – ou, olhando com atenção ainda maior, talvez um músico. Ela tentou se lembrar dos nomes dos integrantes dos Rolling Stones – todos eram tão magros e repuxados quanto ele. Sim, talvez esse homem fosse um deles. Mas não o cantor com a boca e os quadris sensuais – ela saberia.

O ônibus lá fora podia ser de turnê e talvez sua reserva tenha sido feita sob pseudônimo. Isso não era incomum com celebridades que vinham ao spa para escapar dos holofotes e se colocar em forma novamente.

Então a recepcionista esperou pacientemente, rodando o lápis e cantarolando em voz baixa T-i-m-e is on my side. A última coisa que queria era ofender o fulano, se pudesse evitar.

Uma turma de mulheres tagarelas escolheu este exato momento para passar pela recepção a caminho da seção de Pilates.

– Quantas pessoas estão hospedadas aqui? – exigiu saber o Velho Styx quando elas se foram.

A recepcionista estava desprevenida para a severidade de seus olhos frios e mortais. Pequenos buracos negros que lhe davam vontade de virar a cara. Davam vontade de fugir.

– Cento e vinte hóspedes em plena capacidade, mas também temos um número substancial de pessoas com passes diários chegando para as aulas e a academia.

O Velho Styx assentiu.

– E todos os seus hóspedes são cronicamente obesos, como aquelas mulheres que acabamos de ver?

A recepcionista ficou aturdida com a pergunta, o que não era de surpreender.

– Não creio que seja...

– Há muita carne humana para nossos propósitos. – O Velho Styx a interrompeu ao falar com Rebecca Dois.

– O quê? – Agora a recepcionista o olhava com incompreensão.

O Velho Styx tinha sacado um walkie-talkie do casaco e falava numa língua estranha que a recepcionista nunca ouviu.

– Desculpe. Hoje não é o seu dia – disse Rebecca Dois, sem emoção alguma.

Houve um estrondo ao abrirem-se as portas.

O lápis da recepcionista saiu girando pela sala enquanto algo que babava aparecia atrás da Rebecca Dois e do capitão Franz.

Com um rugido áspero, Hermione disparou feito uma bala para a mesa, derrubando-a. A recepcionista foi jogada de costas. Quando bateu atordoada no chão, Hermione pulou em cima dela.

Hermione soltou um gemido de alívio ao agarrar as faces da jovem e seu ovipositor se meteu para dentro dela, entrando fundo na traqueia, onde a bolsa de ovos se espremeu para fora.

A cabeça de Hermione se ergueu em segundo, uma saliva pegajosa se derramando em volta do ovipositor.

– Preciso de outra... Rápido – disse ela com a voz estridente. – Tenho muitos bebês em mim.

Olhando temeroso para Hermione, o Velho Styx saiu do caminho. Foi para as portas principais, onde um esquadrão de Limitadores tinha aparecido para receber suas ordens.

– Creio que devemos tentar por aqui primeiro – disse Rebecca Dois a Hermione, indo para a porta que as mulheres do Pilates tinham tomado.


– Talvez tenhamos chegado a alguma coisa – declarou Drake, com todos reunidos em volta do laptop. Com exceção de Chester, que ninguém conseguiu convencer a deixar a sala de reuniões, e de Elliott, que pensava que ele não devia ficar sozinho, todos estavam presentes.

Passaram-se quase duas semanas e não havia mais dúvida nenhuma – o ar estava mais rarefeito e era cada vez mais difícil respirar.

Will olhou para todos. Seus olhos refletiam o brilho da tela de computador e a expectativa que irradiava deles era tangível. Pelo menos aqui havia alguma esperança. Nenhuma das outras ideias deu em alguma coisa e Will começara a pensar que só um milagre podia salvá-los.

– Eddie e eu passamos um pente-fino pelas plantas de construção original do Complexo – disse Drake. Ele rolou uma sucessão de páginas na tela. – Aqui estão alguns cortes transversais da montanha, mostrando como a instalação fica dentro dela. – Ele parou numa ilustração e bateu o dedo na tela. – Vocês podem ver que há uma margem substancial de rochas em volta do Complexo, para protegê-lo.

– Essa era a ideia básica – murmurou Parry.

Eddie assumiu o lugar de Drake.

– No início, nada saltou a nossos olhos, mas cruzamos as referências dessas plantas de construção com o levantamento geológico realizado nos anos 50.

Drake abriu outra janela na tela, mostrando mais sessões transversais da montanha, mas sem sinal do Complexo.

– Este relatório se referia a várias áreas do relevo intermediário da montanha, onde a erosão foi particularmente acentuada. – Drake indicou um dos desenhos. – E percebemos que na face norte da montanha... Bem acima do pequeno ressalto que vocês podem ver ali... A erosão foi considerável. Mais sessenta anos da ação da água e do gelo, e uma parte ainda maior da rocha terá se desgastado.

– O ciclo de congelamento e degelo – intrometeu-se Will, depois desejou não ter feito isso ao receber um olhar incisivo de Parry.

– E como tudo isso nos ajuda? – perguntou o velho.

– A erosão pelo tempo e pela água não espera por homem nenhum. – Drake sorriu ao voltar à primeira janela e arrastou dali uma imagem. – Isso nos ajuda porque, se você sobrepuser o relatório geológico com as plantas de construção, a área de erosão acelerada fica... – ele apontou para planta – bem ao lado da parede externa, na extremidade do Nível 2.

– Então este é o ponto mais vulnerável do Complexo – disse Eddie. – E se plantarmos cada explosivo que temos nesta parede, há uma pequena chance de conseguirmos sair depois da explosão.

Parry assoviou.

– É um risco muito grande. – Parry se recostou numa mesa ao lado, cofiou a barba e pensou, e Will percebeu que os olhos de todos estavam nele. Stephanie até estava de boca aberta e formava palavras como se quisesse que ele decidisse que o esquema era viável.

Parry balançava a cabeça quando por fim voltou a falar.

– Entendo o que está dizendo, mas o volume de material explosivo no arsenal será um fator limitante. Mesmo que continuemos com esse plano nos menores detalhes, se falhar, todo o oxigênio que resta no Complexo terá sido usado. Estaríamos adiantando o fim de tudo. – Com uma fungadela, ele cruzou os braços. – Além disso, o que resta do Complexo pode desabar sobre nossas cabeças.

– Er... Comandante – começou o sargento Finch. – Não está se esquecendo de uma coi...

– Não, Finch, não estou! – vociferou Parry com selvageria para ele.

Drake olhava do pai ao sargento Finch e voltou ao pai enquanto tentava entender do que se tratava aquele diálogo.

– Se tem alguma coisa que os dois não estão nos contando, acho que temos o direito de saber.

Parry ficou de pé num instante.

– Não! – gritou ele. – Algumas coisas ninguém tem o direito de saber. E o Finch aqui foi muito imprudente, já que ele não sabe da história toda.

A voz da sra. Burrows era baixa e controlada quando se juntou à conversa!

– Parry, somos as únicas pessoas no mundo que sabem que a Fase talvez ainda esteja em operação. E somos os únicos que podem fazer alguma coisa para impedir. Então, o que pode ser tão importante que você se disponha a deixar que todos nós morramos neste lugar?

Parry olhava o chão e retesava uma perna como se estivesse tomando uma decisão. De repente, ergueu a cabeça para o filho.

– Tem certeza de que temos uma chance com essa sua ideia ridícula? Tem certeza absoluta?

– Considerando a margem de tolerância dos desenhos que vimos e com base no pressuposto de que aconteceu mais erosão... Sim – respondeu Drake. – O único ponto negativo é que precisamos de duas ou três vezes a quantidade de explosivos para atravessar a parede reforçada do Complexo e a encosta da montanha.

– Vocês, rapazes, gostam de usar a força bruta, não? – disse Parry, depois pensou por um momento. – Tudo bem, é melhor que todos vocês me sigam – decidiu ele, assentindo para o sargento Finch.

Por orientação de Parry, eles pegaram marretas, cinzéis e martelos pelo caminho. Os elevadores não funcionavam, então o coronel carregou o sargento Finch nas costas, enquanto Drake e Sweeney levavam sua scooter pela escada.

Depois que todos chegaram ao Nível 6, Parry os levou ao arsenal no final do andar, depois dos tanques de água. Ele passou por um dos corredores entre as estantes até chegar a um grande armário de metal encostado na parede.

– Vários de vocês precisam trabalhar e remover quaisquer explosivos e bombas incendiárias num raio de seis metros daqui. A última coisa que queremos é acender tudo com alguma faísca perdida. – Parry fez um gesto para as prateleiras. Depois supervisionou o filho e Sweeney, que tiravam do caminho o armário de metal. A parede atrás dele não parecia ser diferente dos outros lugares, mas Parry pegou um cinzel e um martelo e começou a bater ali.

Logo ficou evidente que não era apenas uma laje sólida de concreto reforçado. Ele localizou uma área na base da parede que emitiu um som diferente quando era lascada. Parry subiu verticalmente pela parede, parou e se voltou para Will.

– Você é bom nesse tipo de coisa, meu amigo. Sirva-se de algumas ferramentas e encontre o outro lado da porta. – Ele apontou pela base da parede, mais ou menos a um metro e vinte.

Will descobriu que havia madeira bem enterrada sob a superfície do concreto e não foi preciso muito esforço para fazê-la aparecer. Enquanto os dois homens trabalhavam, revelava-se um retângulo do tamanho de portas duplas. Quando terminaram, os dois recuaram um passo.

– Abre-te, Sésamo – disse Parry a Will. – Esta é nossa entrada.

Depois de verificar se as prateleiras em volta estavam vazias, Parry se virou para todos.

– Agora derrubamos o concreto no vão da porta.

– O que tem ali? – disse Drake. – Um esconderijo de explosivos?

Ignorando a pergunta, Parry bateu com uma marreta no canto inferior do retângulo.

O sargento Finch não foi tão reticente:

– Sim, aí nós escondemos um depósito secundário. Um depósito ultrassecreto.

– E o resto – murmurou Parry, marretando. Sweeney e o coronel se juntaram a ele. O concreto aos poucos cedia, mas não com a rapidez que Will esperava.

– Posso tentar? – perguntou alguém enquanto eles avançavam pelo arsenal.

– Chester! – exclamou Will com um grande sorriso na cara. Elliott estava vários passos atrás dele, com uma expressão preocupada.

– Já era hora de fazer alguma coisa – disse Chester ao mesmo tempo que o coronel passava sua marreta e o menino começava a trabalhar.

Sweeney foi o primeiro a transpassar o concreto e parou para dar uma olhada.

– Não, continue – disse Parry. – É melhor limparmos completamente.

Cerca de vinte minutos depois, o coronel atacava o último pedaço de concreto no alto da abertura. Enquanto ele o arrancava e deixava cair no chão, Parry usou a lanterna para iluminar o caminho e todos formaram uma fila atrás dele.

– Há mais do que o suficiente aqui para o que precisamos – disse Drake, apreendendo o mero número de engradados de madeira sob a luz da lanterna de Parry. – Mas isso não é nada impressionante... É só seu estoque básico de explosivos pós-guerra. Então, por que todo aquele melodrama?

– A melhor maneira de esconder uma coisa é esconder dentro de algo que já está escondido – anunciou Parry enquanto girava e ficava de frente para todos. – Em nenhuma circunstância vocês podem soltar uma palavra do que estão prestes a saber... A ninguém. – Ele se ergueu em toda sua altura. – Agora pedirei a cada um de vocês que dê seu consentimento, segundo a Lei de Defesa do Reino de 1973, revisada em 1975 e 1976, de que vocês, irrevogavelmente e sem reservas, obedecerão aos poderes contidos na lei. – Parry então falou um nome de cada vez:

– Drake?

– O que quer que isto signifique, sim – disse Drake.

– Finch?

– Sim, comandante.

– Coronel Bismarck... A partir de agora o senhor tem plena nacionalidade britânica. Preciso de sua resposta.

– Parry pode fazer isso? – cochichou Will a Chester enquanto o coronel indicava que concordava.

– E, da mesma forma, Eddie, o Styx, a partir de agora tem plena cidadania deste país. Concorda?

– Sim, senhor – respondeu Eddie.

– Sra. Burrows?

– Sim, Parry – disse ela com gentileza. – Por que não?

– Elliott... Desculpe, esqueci que você também precisa receber a nacionalidade britânica. Responda, por favor.

– Sim – disse ela.

– Sweeney?

– Sim, chefe.

Parry então se voltou para Will e Chester, que confirmaram sua concordância.

– Stephanie? – disse Parry.

– É, tá – respondeu ela.

– Muito bem – disse Parry. – Vocês devem ter ciência de que qualquer informação que fizerem relacionada a essa questão, segundo a Lei de Defesa do Reino, será passível de execução automática e sumária, sem julgamento ou qualquer forma de recurso judicial.

– Execução? – disse a sra. Burrows.

– Tenho total autorização para matar vocês – respondeu Parry categoricamente. E, pelo tom de sua voz, todos sabiam que ele falava sério. – Com a ameaça do tratado de desarmamento nuclear de 1972, um subcomitê secreto no Ministério da Defesa concluiu que estávamos ficando em grave desvantagem, assim...

Parry jogou o facho da lanterna para o canto da sala.

Havia ali dez recipientes de metal, emitindo um brilho fraco.

– Hein? – disse Stephanie, sem se impressionar nem um pouco depois de todas aquelas preliminares.

– Enfiamos alguns DTNs ali – disse Parry –, para um dia de necessidade.

– DTNs? – perguntou Will.

– Dispositivos termonucleares – explicou Parry.

– Arma nuclear... Ele está falando de arma nuclear! – disse Drake, olhando os recipientes. – Ele só pode estar brincando!

Parry e o sargento Finch, armado com a eterna prancheta, andavam pelo arsenal e pelo esconderijo secundário, fazendo cruzes de giz nos engradados que continham os explosivos mais potentes. Pouco a pouco, estes foram carregados em um carrinho, que foi empurrado para a escada. Will e Chester assumiram a partir dali, descobrindo que tinham a tarefa nada invejável de carregar cada engradado pelos oito lances de escada até o Nível 2, onde outro carrinho esperava por eles.

Era difícil porque os engradados de madeira eram pesados e os meninos sofriam da carência de ar. Enquanto labutavam escada cima com o enésimo engradado entre eles, Chester parecia ignorar as alças de corda que cortavam suas mãos. Finalmente eles percorreram a escada com o engradado e o colocaram com cuidado no carrinho, junto de todos os outros.

Encostando-se na parede e respirando com dificuldade, Will olhou o amigo nos olhos. Chester lhe abriu um sorriso largo, como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo.

– Você está bem? – perguntou-lhe Will.

– Só estou contente de fazer alguma coisa – respondeu Chester. Apesar do modo como ele parecia lidar com tudo, Will estava preocupado com ele, mas agora não havia muito que pudesse fazer.

Chester enxugou a testa.

– Onde Drake se meteu? Acho que devemos levar esta carga para ele nós mesmos.

– Claro – concordou Will.

Com Will puxando e Chester empurrando, eles rodaram o pesado carrinho carregado pelo corredor. Uma das rodas começou a guinchar seus lamentos.

– Isso me lembra de quando estávamos esvaziando o carrinho de mão no Highfield Common – observou Chester.

Eles chegaram à ponta do corredor, empurraram o carrinho por uma porta e entraram numa sala de serviço que Drake tinha identificado. Ele disse que era a melhor aposta para abrir uma passagem pela encosta da montanha.

Já havia na sala uma pilha alta de engradados e Drake encaixava detonadores do tamanho de lápis em cada um deles, conectados por uma meada de cabos.

– Beleza – disse Drake, olhando o carrinho. – Vou descarregar eu mesmo, se quiserem continuar.

– De quantos mais você precisa? – perguntou Chester, olhando as pilhas de engradados ao lado de Drake.

– O suficiente para encher esta sala e depois a outra do lado. Imagino que mais umas vinte viagens com o carrinho.

– Vinte! – exclamou Chester, rindo de um jeito exagerado. – Legal... Vamos continuar trazendo – acrescentou ele ao sair da sala. Eles ainda ouviam seu riso quando ele andou pelo corredor, batendo na parede e dizendo “Mais, mais, mais!”.

– Ele não está muito bem – declarou Drake em voz baixa, de cenho franzido.

– E algum de nós está? – rebateu Will.

– Mas fique de olho nele, sim, Will?

Preparar as duas salas consumiu a maior parte do dia. Por fim, Drake percorreu a distância pela escada e pelo interior do Centro com um rolo girando nas mãos ao estender o cabo atrás dele.

Parry estivera preocupado que a explosão, se abrisse uma passagem, também trouxesse abaixo o teto do Nível 2, lacrando sua saída e anulando todo o esforço. Não havia como fechar as portas antiexplosão para aquele andar, mas, por orientação de Parry, todos empilharam sacos de areia em volta das duas salas, tentando conter parte da força da explosão para dentro do prédio. Parry ainda não ficou satisfeito que eles fizessem todo o possível nessa frente, então supervisionou a construção de outra barreira de sacos de areia no meio do corredor.

O tempo se esgotava. Todos esperavam do lado de fora da pequena cantina do Centro, onde Chester tinha notado pela primeira vez que a mãe apresentava um comportamento estranho. Drake e Eddie escolheram a cantina porque acreditavam que seria um bom lugar para todos se protegerem da explosão.

– Todos os sistemas ativos – disse Parry, todos se reuniram na cantina e a porta se fechou. Eles observaram Drake distorcer os dois fios de cobre na extremidade do cabo e depois os conectar aos terminais de um detonador.

Ninguém falava nada. Enquanto a sra. Burrows acariciava Colly, havia um coro de miados ansiosos da fila de cestos de vime no alto da bancada. Stephanie e Elliott tiveram um trabalho danado catando os gatos do sargento Finch de seus variados esconderijos no Complexo, mas era o mínimo que podiam fazer pelo velho.

Drake disse a todos para encostarem as Bergens num canto e que mantivessem o kit por perto. E além dos muitos extintores de incêndio que tinham trazido para a sala, Parry garantira que houvesse comida e água suficientes para durar alguns dias.

Drake puxou os fios para saber se estavam firmes nos terminais, depois assentiu para o pai.

Parry respirou fundo e sua voz era gentil, para variar:

– Acho que não há muito que dizer, a não ser boa sorte a cada um de nós. Sinceramente, espero que Deus esteja sorrindo para nós hoje.

– Amém – disse Sweeney.

Parry bateu a bengala duas vezes no chão.

– Agora podemos todos assumir posições de segurança, por favor?

O sargento Finch foi auxiliado a sair de sua scooter elétrica e todos obedeceram, encontrando um lugar no chão. Baixaram a cabeça, com as mãos entrelaçadas na nuca.

Will observou Drake torcer o punho do detonador para criar uma carga elétrica. À medida que ele ia cada vez mais rápido, o zumbido do dínamo enchia a sala.

– Isto deve bastar – concluiu ele, recolocando a trava de segurança em volta da coluna do punho.

– Tudo bem? – perguntou ele.

– Tudo bem – respondeu Parry.

– Vejo vocês do outro lado – disse Drake.

Ele acionou o detonador.


Capítulo Dezoito


O elevador subiu pelos andares da Chancelaria, o imenso prédio do governo bem no centro da Nova Germânia. Ao chegar à cobertura, as portas se abriram e dois Limitadores Styx saíram. Batendo suas botas em sincronia perfeita, eles marchavam pelo piso de mármore muito encerado.

A secretária do chanceler estava em sua área, uma mesa barroca e dourada com um telefone e um vaso de flores murchas. Escovava o cabelo e observava os dois soldados se aproximando. Em outra época, teria ficado petrificada de medo ao ver esses homens aterrorizantes, com suas caras de esqueleto e olhos negros. Homens que cheiravam a morte e destruição.

Mas agora ela os olhou com um desligamento sonolento enquanto eles paravam diante de sua mesa.

– Ele está? – perguntou um deles com um rosnado.

Ela assentiu com aquele olhar de cordeirinho que indicava sessões intensivas de Luz Negra – junto com quase todos os outros habitantes da Nova Germânia, ela foi submetida a uma quantidade excessiva do tratamento e isso praticamente fritou seu cérebro.

E sua aparência mudou consideravelmente desde que, vários meses antes, Rebecca Dois e o General Limitador fizeram sua primeira visita à Chancelaria. Ela ainda usava seu eficiente terninho azul, mas as raízes escuras do cabelo platinado apareciam e a maquiagem era mal aplicada.

Ela viu um dos Limitadores escancarar com o pé as grandes portas de madeira do gabinete do chanceler e os dois entrarem num rompante.

Ainda escovando o cabelo, ela ouviu a comoção dentro da sala. Depois surgiram os Limitadores, arrastando o corpulento chanceler, Herr Friedrich, entre eles. Devem tê-lo apanhado durante um de seus almoços tipicamente pródigos, porque ele ainda tinha um guardanapo metido na camisa.

– Vou dar uma saída, Frau Long – conseguiu dizer antes de ser carregado pelo corredor.

Com dois batedores abrindo caminho, a limusine oficial roncava pela Berliner Strasse, uma das maiores e em geral mais movimentadas ruas da Nova Germânia. Mas além desse único veículo, com seu aerofólio antiquado e pintura prata reluzente, agora não havia trânsito nenhum.

Enquanto o veículo parava perto da delegação que estava à espera, a porta se abriu. Colocando uma elegante bota de combate na rua cor de giz, Rebecca Um saiu sem pressa nenhuma do carro. E, com igual demora, dirigiu-se à delegação, inclinando a cabeça para ouvir o zumbido perdido de sirenes soando pela cidade.

Depois se virou para avaliar o lado oposto da larga avenida, o canteiro central com palmeiras, onde uma multidão de gente estava parada em várias filas. Havia tantos neogermanos ali que as filas davam voltas pela superfície escaldante da avenida. E nenhuma das pessoas falava nem emitia som algum, simplesmente avançava, as filas se movendo a um ritmo interminável e lento.

Rebecca Um soltou um assovio.

– Água... Alguém me traga uma água. – Ela abriu o casaco preto e comprido para que o ar circulasse pelo corpo.

Um soldado Limitador da delegação imediatamente retirou o cantil do cinto e o entregou. Ela tomou vários goles longos antes de devolver o cantil.

– Este clima... é demais. – Ela semicerrou os olhos para o sol que sempre ardia a pino no céu. Baixou os olhos para o General Limitador que esperava por suas ordens. Franziu ligeiramente a testa ao examinar as fardas cor de areia que ele e os outros Limitadores usavam.

– Eu o deixo no comando e é isso que acontece. Sei que o calor é o motivo para você ter abandonado os uniformes, mas não sei se aprovo a substituição. Não é nosso jeito, não é? É meio festinha na praia demais para meu gosto.

Não houve mudança na expressão impassível do Limitador, mas ele claramente ficou perturbado com a crítica ao baixar os olhos para a jaqueta de combate e a calça frouxa.

– São material das Forças Especiais neogermanas – explicou ele.

– Não se preocupe com isso agora – disse ela. – Mas se você é da Raça Superior, precisa corresponder ao papel. Não é verdade, chanceler? Não é o que seu maravilhoso Terceiro Reich acreditava... – Ela se calou ao procurar Herr Friedrich, no meio da delegação. Ele estava a quilômetros dali, com a cabeça virada para trás, vendo um pterodátilo solitário cavalgar uma corrente térmica no céu. – Ei, porquinho... Estou falando com você! – gritou ela.

O chanceler, ex-líder supremo da nação da Nova Germânia, deu um soluço de surpresa. Também recebeu sua justa parcela de Luz Negra, com todos os efeitos indesejáveis esperados.

– Olá? – disse ele, franzindo a testa para Rebecca Um.

– Ah, esqueça – cortou ela. Depois se virou para o General Limitador. – Atualize-me. Como Vane está se saindo?

O General Limitador meneou a cabeça.

– Ela supera todas as expectativas. – Ele apontou para um dos prédios institucionais que ladeavam a rua, um imenso edifício de dez andares e granito claro. – Como sabe, abastecemos o Instituto de Geologia com gado humano. – Ele gesticulou com o dedo para os outros prédios igualmente imponentes na fila, aproximando-se de onde ele e Rebecca Um estavam parados. – Depois fizemos o mesmo com o hospital e as universidades de estudos antigos e pré-históricos. Ela tomou cada hospedeiro humano em todos eles. São trezentos e cinquenta corpos para impregnação e quase o dobro disso para o sustento...

– Espere! – interrompeu Rebecca Um. – Está me dizendo que ela já impregnou isso tudo? Mas que mulher. Como é possível?

– Posso sugerir que veja com os seus próprios olhos? – respondeu o General Limitador. Ele e o restante da delegação se colocaram atrás da Rebecca Um, que foi ao canteiro central e atravessou as filas. As pessoas saíam de seu caminho num torpor. Uma delas, um idoso, com a cara vermelha e brilhando da exposição ao sol inclemente, de repente desmaiou. Rebecca Um nem se incomodou em olhar para ele, que ficou onde caiu.

– Sim, por aqui – disse o General Limitador enquanto ela chegava ao prédio mais próximo.

Era uma imensa estufa botânica, sua fachada tinha quase trezentos metros de extensão.

– Kew Gardens – disse Rebecca Um a meia-voz quando notou a semelhança com o Jardim Botânico Real, por onde passou de carro com Vane há pouco mais de duas semanas.

O General Limitador abriu a porta da estufa para ela, indicando a escada em seu interior. Ela subiu os degraus de ferro batido, depois passou por outra porta e saiu em uma passarela que percorria toda a extensão do prédio. Pela abundância de diferentes árvores, arbustos e flores que Rebecca Um podia ver abaixo, os botânicos da Nova Germânia evidentemente estiveram coletando espécimes da selva e propagando-os aqui.

O General Limitador e os soldados Styx, dois deles segurando o chanceler entre seus corpos, ficaram para trás enquanto ela passou ao meio da passarela. Ali ela olhou para baixo, de um lado a outro. Pela folhagem, via os numerosos corpos humanos jazendo na terra, já monstruosamente inchados pelas larvas de Guerreiro que cresciam dentro deles.

– Impressionante – disse Rebecca Um. – Mas como ela está conseguindo impregnar tantos... – Ela se interrompeu ao notar que um dos corpos já se rompia e larvas jovens se arrastavam na turfa fértil de um canteiro de plantio. – Não acredito! Levou quase uma semana para elas eclodirem na Crosta. Mas isso está levando... o quê?

– Vinte e quatro horas – respondeu o General Limitador.

Rebecca Um ficou em silêncio por um momento.

– Mas como o ciclo de vida pode ter se acelerado a esse ponto?

– Só podemos pensar que a declaração de Danforth sobre as condições aqui embaixo estava correta. Talvez o ambiente... a proximidade do sol e os níveis de ultravioleta... ajam como estímulo ao processo – disse o General Limitador.

– Mesmo assim... Como pode uma só mulher ser fisicamente capaz de fazer isso? – perguntou Rebecca Um. – Extrapola qualquer padrão.

O chanceler também olhava pelas laterais da passarela. A parte de sua mente que tinha sobrevivido à Luz Negra registrava a carnificina abaixo – sabia que seu povo morria da forma mais horrenda. Ele começou a chorar.

– Ah, pare com isso! – Rebecca Um o repreendeu. Ela voltou sua atenção para a cena abaixo. – Onde ela está? – perguntou-se Rebecca Um. Depois gritou: – Vane! Você está aí?

Com isso, o General Limitador e seus homens recuaram. A última coisa que queriam era atrair a atenção da mulher Styx. Eles já testemunharam as mortes infelizes de seus camaradas enquanto ela era transportada de um prédio a outro.

Houve um farfalhar e uma cabeça apareceu entre duas tamareiras. O cabelo louro de Vane estava emaranhado com sangue seco, suor e o fluido que se derramava de sua boca. Nenhuma novidade. Mas o aspecto que fez os olhos de Rebecca Um se arregalarem foi que, em vez de um único ovipositor, Vane agora tinha mais dois deles pendurados da boca. E seu abdome estava muito expandido enquanto o sistema reprodutor continuava a operar em sobremarcha para produzir novas bolsas de ovos.

Entusiasmada, Vane mostrou o polegar para cima para Rebecca Um e esfregou a barriga com orgulho.

– Vai nessa, irmã! Está quebrando todos os recordes! – Rebecca Um parabenizou-a.

O chanceler ainda chorava, mais alto do que nunca.

– Ah, meu Deus, seu bebezão – grunhiu Rebecca Um. – Joguem esse homem ali, sim? – ordenou ela aos Limitadores. – Saindo um prato gordo e suculento! – gritou ela para Vane.

Vane de novo mostrou o polegar, depois se ouviu uma agitação nas plantas enquanto ela se deslocava a grande velocidade.

Os Limitadores jogaram o homem sobre a balaustrada da passarela, seus braços e pernas se debatendo pela curta distância até embaixo. Sua queda foi amortecida pela terra do canteiro, então ele não estava muito ferido ao bater no chão, mas se sentou e olhou em volta, perplexo.

– Dê uma olhada! – gritou Rebecca Um a Vane. – Bom apetite!


A explosão foi tão alta que vários deles gritaram. E o tremor tão potente que seus dentes bateram e a visão se turvou.

E então a onda de choque varreu o Centro. Os ouvidos de Will estalaram. Houve um estrondo repentino, como se algo grande tivesse batido na porta pelo lado de fora.

Panelas chocalharam nas prateleiras do alto. Uma rachadura se abriu no teto, borrifando poeira em suas cabeças, e os miados nos cestos de vime atingiam um tom febril.

Stephanie começou a chorar baixinho e o sargento Finch recitava o pai-nosso em frases entrecortadas. Will não pôde deixar de notar que Chester, de cabeça ainda baixa, tremia violentamente – era evidente que a explosão lhe trazia lembranças indesejadas da morte dos pais. Elliott também percebeu e abraçava Chester com força.

O estouro diminuía e ouviu-se um rangido baixo.

– Espero que não seja o teto do Nível 2 – sussurrou Parry.

E então, a não ser pelos miados confusos dos gatos do sargento Finch, tudo ficou em silêncio.

Drake se levantou, espanando a poeira da cabeça.

– Tragam luzes e extintores de incêndio – disse ele.

O coronel pegou o sargento Finch e Drake abriu a porta. O Centro não parecia diferente em nada, mas, ao descerem a escada para o Nível 2, não restava muita coisa de pé – quase todas as paredes do interior perto da escada tinham desabado.

Drake e Parry verificavam o teto logo acima deles e avançaram cada vez mais pelo andar, mas a densa poeira e a fumaça impediam que enxergassem muito à frente. Todos cobriram o nariz e a boca com cachecóis e prosseguiram, passando pelo entulho espalhado pelo chão. Eddie e Sweeney apagavam com os extintores os pequenos focos de incêndio pelo caminho.

Enquanto contornavam uma banheira virada de lado, a fumaça clareou um pouco e Will viu uma cadeira. Ainda estava direita, mas cada parte dela ardia.

Erguendo o punho fechado, Drake fez uma pausa. Ele desenrolou o cachecol.

– Sentem isso? – gritou ele.

Todos concordaram.

O ar em suas peles ensopadas de suor parecia frio. Vinha uma brisa de algum lugar.

Cheios de esperança, eles se arriscaram mais pelo andar, onde antes existia um corredor. Em certo ponto, o caminho estava bloqueado por destroços, mas Drake e Sweeney jogaram de lado uma divisória, permitindo que continuassem.

Os focos de incêndio eram mais numerosos ao se aproximarem do final do andar. Eles usavam os extintores e chutavam do caminho pedaços de madeira em chamas, quando Drake gritou um alerta e todos recuaram apressadamente.

Houve um estrondo quando toda uma seção do teto a menos de três metros deles simplesmente desabou no chão.

Eles esperaram, mas como o resto do teto parecia estar firme, Drake gesticulou para que recomeçassem a andar.

Chegaram onde antes ficavam as salas cheias de explosivos. Havia um grande buraco no piso de concreto que tiveram de contornar. Através dele podia-se ver o andar de baixo, e estavam todos preocupados demais para notar o que havia à frente.

Mas Drake acelerou o passo. Como líder do grupo, ele foi o primeiro a localizar a brecha irregular na parede externa do Complexo.

E então todos viram e escalaram atrás dele.

Soltaram gritos de alegria quando, a curta distância, seus pés não pisaram em concreto, mas na saliência rochosa que viram nas plantas transversais no laptop de Drake. Eles estavam no alto da encosta da montanha, vivendo algo que não experimentavam a semanas.

Havia um imenso espaço aberto diante deles.

O céu noturno.

– Estrelas! – gritou Will. – Nós conseguimos, caramba!

O coronel pulava com o sargento Finch ainda em suas costas e os dois gritavam:

– Ah, sim! Ar fresco! – gritou Stephanie. E neve! – acrescentou ela ao estender a mão para os flocos.

Todos se abraçaram. Will pegou a mãe e apertou-a com força. Havia muito tempo que ele não fazia isso e foi meio estranho. Mas ele estava totalmente despreparado para o que aconteceu em seguida, quando Stephanie de repente apareceu diante dele e lhe deu um beijo na boca.

– Ei! – Will riu.

Colly andava loucamente em volta, e Will viu que Drake e Parry já estavam na beira da rocha, onde apontavam os pontinhos mínimos de luz de um vilarejo distante.

Chester não se afastou muito da abertura acidentada na montanha. Tentou dizer alguma coisa a Will, mas uma rajada súbita de vento levou suas palavras.

– Que foi? – gritou Will, mas Chester evitou seu rosto enquanto uma rajada de neve caía em seus olhos. Ele nesse momento tremia incontrolavelmente, embora não de frio. Agora que escaparam de sua tumba sem ar na montanha e estavam fora de perigo imediato, enfim ele apreendia a realidade brutal da morte dos pais.

Ele tagarelava consigo mesmo enquanto suas pernas vergavam. Elliott já partia para ele e conseguiu pegá-lo antes que caísse no chão. A sra. Burrows também estava ao lado do garoto, ajudando-o a escorá-lo.

Parry observava Chester quando ele desmaiou.

– Aquela víbora do Danforth vai pagar muito caro por seus atos – prometeu ele num rosnado.

– Vamos começar pelas prioridades. Precisamos de um transporte – disse Drake. – Se for verdade que ainda não neutralizamos a Fase, perdemos um tempo valioso. A chave agora é cobrirmos todas as bases.

Parry olhava o filho, esperando que ele continuasse.

– Vamos nos dividir em dois grupos: um para dar uma busca aqui, na superfície – sugeriu Drake.

– Eu coordenarei esse – disse Parry. – Vou chamar a Velha Guarda novamente.

– E eu liderarei o segundo grupo no mundo interior. Não podemos correr o risco de acreditar que Danforth mentiu sobre a Fase ser retomada lá. – Drake de repente virou-se para o pai ao lhe ocorrer uma coisa. – Aqueles DTNs – disse ele. – Quantos você disse que eram?

– Não disse – respondeu Parry. – São vinte no total, a começar por dois de no máximo um quiloton, conhecido nos círculos da inteligência como Estraga-festas... E um único dispositivo de cinquenta megatons.

– Isso é demais... Dois de um quiloton serão suficientes para o que tenho em mente. Mas preciso de um jeito rápido de levá-los para a Colônia. Dali posso levar para o seu mundo, coronel.

O coronel Bismarck tinha se aproximado para ouvir e sua angústia era evidente ao quase deixar o sargento Finch escorregar de suas costas.

– Você pretende destruí-lo? – perguntou ele.

– Nada assim tão radical – disse-lhe Drake. – Só quero lacrar as duas entradas que conhecemos.

– Gott sei Dank! – exclamou o coronel, olhando o chão.

– Se eu não tiver alternativa – disse Drake, o que fez a cabeça do coronel se erguer de repente. – Mas o tempo é curto e preciso de uma rota para baixo que seja muito rápida – continuou Drake, voltando o pedido a Eddie.

O ex-Limitador deu de ombros.

– Há várias passagens para a Colônia. Pode escolher.

– Temos todo o efetivo de que precisamos – disse Drake, olhando brevemente para Sweeney antes de se voltar de novo para Eddie. – Mas não me agrada carregar duas bombinhas nucleares por suas rotas enroladas de costume. E é claro que o caminho pelo rio de Norfolk está fora de cogitação... Nós somos muitos, com equipamento demais, para nos arriscar nas corredeiras. Não, um elevador seria perfeito – brincou ele.

As orelhas de Will reagiram.

– Acho que nessa eu posso ajudar – disse ele.


PARTE QUATRO

Nuclear


Capítulo Dezenove


– Olá – disse a jovem ao atender a porta.

– Bom dia – respondeu Drake. Ele tirou um cartão laminado do bolso do macacão azul e entregou a ela. – Parece que tem um forte vazamento de gás em sua casa. Somos a equipe de emergência enviada para localizá-lo.

– Um vazamento de gás... Não reclamei de nada disso – disse ela, meneando a cabeça. Devolveu o cartão laminado a Drake. – Não tem vazamento aqui, posso lhe garantir. Estou surpresa que vocês ainda estejam trabalhando... Todo mundo parece estar em greve ultimamente. – Sua testa de repente se vincou de irritação. – Olha, esta não é uma boa hora para mim... Tenho que sair daqui a pouco para pegar meu filho na casa da minha mãe. Pode voltar em outra ho...

– Senhora, não quero ser grosseiro, mas nossos sensores apontaram este problema durante a noite. E raras vezes eles erram com essas coisas. – Drake plantou a caixa de ferramentas no chão a seus pés como se não tivesse a menor intenção de ir embora. – Se não nos deixar entrar para fazer nosso relatório, vamos ter de cortar o fornecimento de toda a rua e de várias outras na mesma grade. Depois voltarei daqui a uma hora com uma ordem judicial que a obrigue a nos dar acesso. – Ele se abraçou, tremendo um pouco. – Não vai ficar popular com os vizinhos se não houver gás para o aquecimento central deles, em particular com o frio que está fazendo.

A mulher de imediato deu um passo para trás, como se decidisse deixar Drake entrar, depois olhou com curiosidade para a sra. Burrows ao lado dele, que farejava o ar.

– Os dois precisam entrar? Eu não estou à vontade com...

– Precisamos sim – respondeu Drake. – Tenho meu farejador eletrônico aqui – disse ele, cutucando a caixa de ferramentas –, mas não há nada como o toque humano. Minha assistente, Celia, é o que no setor de gás chamamos de “Nariz”. Ela é um detector treinado.

– Sério? – A jovem tombou a cabeça de lado como se estivesse prestes a questionar, depois pareceu aceitar o fato ao abrir inteiramente a porta.

– Tudo bem, Celia, me diga o que estamos vendo aqui – disse Drake, enquanto eles entravam no hall.

Celia apontou o nariz no ar.

– A cozinha fica para lá. – Ela se virou para a porta fechada à esquerda. – Mas está limpa.

– Limpa? – A jovem pareceu um tanto ofendida.

– O que Celia quer dizer é que o aquecedor está funcionando corretamente e que o problema não está ali – explicou Drake.

– A sala de estar fica à direita – continuou Celia. – Tem uma lareira a gás, mas não é usada há pelo menos um ano. É um dos modelos mais antigos, com radiador de cerâmica e painéis de madeira falsa em cada extremidade.

– É isso mesmo! – exclamou a jovem. – Meu marido diz que sai caro demais usar e temos de trocar. Mas como sabe de que jeito ela é?

– Ela é um dos melhores Narizes do país – disse Drake. – Está vendo... Ela só está esquentando.

Celia voltou os olhos inquietos para o alto da escada.

– O armário de roupas de cama no fundo do patamar, com um cilindro vencido – continuou. – Três quartos... O principal com dois radiadores e dois quartos menores, cada um com um radiador.

– Está certa de novo. – A jovem ofegou.

– E... – começou Celia, depois parou. Drake deu um passo de lado para que ela chegasse a um móvel estreito com gavetas encostado na parede, sobre o qual havia vários pares de luvas e um chapéu de criança. Celia se abaixou num joelho e tateou por baixo. Tirou alguma coisa, mal olhando ao passá-la à jovem, que a pegou cautelosamente. – Os restos de uma rosca – concluiu a sra. Burrows. – Não é motivo de preocupação... Secou há muito tempo, quando seu filho jogou ali, mas sinto cheiro de camundongo. Veio um do jardim e deu umas mordidinhas, e a senhora não vai querer estimular isso.

– Não, não quero – disse a mulher enfaticamente, enquanto segurava o pedaço duro feito pedra entre o polegar e o indicador para examiná-lo. – Sim, tem toda razão. Tem umas mordidinhas aqui na ponta. – Ela olhou para a sra. Burrows com um fascínio renovado. – Você parece de circo! – A jovem logo percebeu que isso pode ter sido uma ofensa à sra. Burrows e começou a se desculpar.

Drake ergueu a mão.

– Não se preocupe... Isso acontece o tempo todo. Muita gente reage exatamente como a senhora. – Ele lhe garantiu.

A testa da sra. Burrows formou um V fundo.

– O verdadeiro problema é no porão – disse ela, apontando a porta. – E é de Categoria Um. É crítico.

– O que é Categoria Um? – perguntou a jovem.

– Não é boa notícia – disse Drake. – Uma fratura importante na linha de abastecimento... Provavelmente devido ao solo congelado. É provável que esteja vazando gás lá embaixo já há algum tempo e para dentro de... – Drake engoliu em seco como se nem suportasse pronunciar as palavras seguintes: – De um espaço fechado.

– Sim, eu diria que a falha esteve ativa por trinta... não... trinta e cinco horas – informou a sra. Burrows a Drake, farejando ao acaso.

Drake assoviou.

– Nossa Senhora! Tanto tempo assim? – Ele girou para a mulher. – Olha, dona, precisa sair desta casa agora mesmo. Nosso seguro não dá cobertura para fatalidades com clientes. Por favor, pegue seu casaco e o que precisar, e saia daqui... Agora mesmo. E não ligue nenhum aparelho elétrico... Até um celular pode detonar o gás lá embaixo e explodir todos nós em pedacinhos. – Ele olhou para a sra. Burrows. – Teremos de fazer uma área de contenção no porão e drenar tudo antes de começarmos a procurar o defeito. – Depois se voltou mais uma vez para a jovem. – Preciso de um jogo de chaves da casa e um número que possa usar para falar com a senhora. Eu informarei quando for seguro voltar.

– Claro. O que quiser – respondeu a mulher. – Ficarei na casa de minha mãe. E obrigada por vir com tanta rapidez.

Enquanto Will e Elliott olhavam o processo todo pelo vidro traseiro do furgão, a mulher saiu de casa apressadamente, parando apenas para escrever um número de telefone a Drake. Depois disparou pela rua, lançando um ou outro olhar por sobre o ombro, como se pudesse ser a última vez que via aquele lugar.

A respiração de Will deixava condensação no vidro e ele a limpou com a manga para ver sua antiga casa com mais clareza.

– Broadlands Avenue, número 16. Eu morava aqui – disse ele com um ar distante, como se tentasse se convencer. Ele apertou o dedo no vidro e apontou, voltando a atenção de Elliott para o segundo andar. – Que esquisito... Aquele era o quarto das Rebeccas. As cobrinhas dormiam ali, debaixo do mesmo teto que eu – disse ele. Depois girou e arriou contra a porta. – Este lugar foi tudo o que conheci por muito tempo... E agora mal consigo me lembrar dele.

Elliott murmurou, mas não disse nada.

– Não vou perguntar o que estão aprontando aí. – O careca ao volante de repente se manifestou. Era o mecânico de Drake, da oficina de West London, que foi trazido para fornecer o furgão falso da British Gas, os macacões que Drake e a sra. Burrows vestiam e também os cartões de identidade falsos. Aparentemente, um dos muitos serviços que sua “clientela” esperava dele, além de carros sem placa.

O mecânico os encontrara em um estacionamento de lojas de autopeças onde Will, Elliott, a sra. Burrows e Drake trocaram o Bedford pelo furgão para a última parte da viagem a Highfield.

– Mas essa malandragem não é estritamente legítima, é? – acrescentava agora o mecânico careca.

– Quer mesmo saber? – desafiou-o Will.

O mecânico esfregou o queixo, mas não respondeu.

– Se eu disser que estamos tentando salvar a raça humana, você acreditaria? E, se não conseguirmos, cada pessoa na superfície da Terra vai morrer – disse Will, completamente impassível.

Elliott soltou um suspiro de surpresa.

O mecânico sorriu duro, mostrando o dente de ouro.

– Tá certo, parceiro, eu não devia meter meu nariz na sua vida. Quanto menos eu souber, melhor. – Ele deu um tapinha no bolso do peito, depois riu. – De qualquer forma, os brilhantes que o sr. Jones me deu são toda a resposta que eu preciso.

– Sr. Smith – corrigiu-o Will, sorrindo. – O sr. Smith lhe deu os diamantes.

Neste momento, o sr. Smith, que na verdade era Drake, bateu na traseira do furgão e abriu a porta alguns centímetros.

– A dona da casa saiu. Chamei Sparks e os outros... Estarão aqui quando tivermos preparado o lugar. Nesse meio-tempo, devíamos... – Notando que o mecânico ouvia, ele se corrigiu: – levar os enfeites de Natal para dentro.

Os enfeites de Natal eram na realidade explosivos suficientes para estourar muitos metros de rocha. Enquanto entrava na casa, carregando duas pesadas bolsas cheias deles, Will ficou petrificado. Olhou para a sra. Burrows.

– Está tudo diferente, mãe – disse ele, ofegante. – O papel de parede é novo. – Ele raspou a bota no chão – não era mais coberto com o carpete manchado que ele conheceu a vida toda. – E isto também. Reformaram completamente o lugar.

Drake apareceu atrás dele.

– Precisamos levar o equipamento para baixo, Will. Tudo bem?

– Claro – respondeu Will, indo para a porta do porão. – Era aqui que meu pai desaparecia toda noite – disse ele a Elliott, que seguia atrás dele com uma bolsa cheia de ferramentas. – Até ele sumir de vez, entrando na Colônia.

O porão também estava muito diferente – muito arrumado e organizado – com ganchos nas paredes sustentando ferramentas elétricas cuidadosamente arrumadas. E uma moto Triumph meio desmontada estava em um oleado no meio do cômodo.

– Linda. – Drake passou o dedo pelo cromo reluzente do guidom. – Mas precisamos tirar isso do caminho, para chegarmos ali. – Ele olhou as prateleiras, em que havia potes de tinta e material de decoração.

Will e Drake trabalharam rapidamente, enquanto a sra. Burrows e Elliott arrastavam um colchão de um dos quartos no alto. Este foi colocado contra a porta do porão que levava ao quintal, para amortecer qualquer barulho que eles fizessem durante o trabalho.

Pegando uma picareta numa das bolsas, Drake a usou para arrancar os suportes das prateleiras da parede. Ele retirava uma unidade, quando os outros se reuniram em volta dele para ver. Atrás dela havia o que parecia um pedaço de parede perfeitamente comum, pintada de branco.

– Bem aqui – disse Will, aproximando-se e dando um tapinha onde lembrava que ficava a boca do túnel. – Era bem aqui.

Drake assentiu.

– Vamos começar do jeito difícil, usando o bom e velho muque para abrir um buraco. Vai fazer menos barulho. Todo mundo para trás – alertou ele, depois girou a picareta. Em questão de minutos, ele soltou tijolos em número suficiente para que um pedaço da parede caísse no piso do porão. Um monte de concreto e cascalho deslizou da pequena abertura.

– Muito inteligente – disse Drake. – Exatamente o que se espera encontrar. – Ele continuou até aumentar o tamanho da abertura. – Isso basta. Agora é com você, Will. – Respirando com dificuldade, Drake se virou para o garoto. – Precisamos limpar o entulho para vermos o que temos aí. E você costumava gostar de uma escavação, não?

Will sorriu.

– Claro, mas isso vai levar séculos, né? – Ele se lembrava de quantos dias ele e Chester labutaram para reescavar o túnel naquela primeira vez.

– Não se eu puder ajudar – disse Drake. – Faça sua parte, Will.

– Tudo bem. – Ele escolheu uma pá na bolsa e habilidosamente testou seu peso nas mãos. Depois cuspiu nas palmas. – Cuidado! Eu voltei! – anunciou ele, e começou a cavar.

Ele trabalhava feito um furacão, parando apenas para colocar de lado os pedaços maiores de entulho que encontrava. Elliott, Drake e a sra. Burrows formaram uma corrente e passavam os baldes cheios até a extremidade do porão, onde os esvaziavam.

Com um clangor estridente, Will xingou e endireitou o corpo.

– Más notícias... Bati em rocha sólida. É um pedaço monstruoso. – Ele enxugou o suor da testa. – Não tinha nada disso quando eu cavei o túnel.

Drake não pareceu desanimar com essa notícia, mas, antes que pudesse responder a Will, seu walkie-talkie estalou. “Seus perus de Natal chegaram voando”!, anunciou a voz do mecânico, usando o código de Drake. Alguns instantes depois, ouviram-se passos na escada de madeira e Eddie desceu ao porão.

– Onde estão Sweeney e o coronel? – perguntou a sra. Burrows. – E Colly?

– Ficaram no caminhão até precisarmos deles – respondeu Eddie.

– Espero que fiquem de olhos bem abertos – disse Drake. – Com esse carregamento, não podemos nos arriscar... Qualquer terrorista ou país hostil daria um braço por material fissionável configurado como arma. Além disso, Parry ficaria uma onça comigo se eu o perdesse! – Ele sorriu. – E como sou o homem dos explosivos – ele foi até uma das bolsas que Will tinha carregado para dentro da casa e abriu o zíper –, é hora de usar as cargas. Vamos explodir até passarmos.

– Já atingiu a primeira barreira? – perguntou Eddie.

– Quer dizer isto? – Will se virou para bater na parede de pedra irregular.

– Sim. Terá aproximadamente um metro e meio de largura, seguido por mais material frouxo, depois a mesma espessura de pedra de novo – declarou Eddie.

– Você parece ter muita certeza disso – comentou Drake, enquanto pegava dois blocos de explosivos na bolsa.

Eddie assentiu.

– O normal seria o túnel desmoronar por toda sua extensão, sem dar a oportunidade de alguém voltar a usá-lo. Em particular depois que você e Chester desceram – disse ele, olhando para Will. – Mas não há nada de normal neste túnel. Imaginamos que precisaríamos recolocá-lo em operação novamente.

Embora Will ainda contemplasse a laje de pedra que bloqueava o caminho, sua curiosidade foi acendida:

– Por quê? O que tem de tão especial nele?

– É conhecido como túnel de Jerome – disse-lhe Eddie.

Will virou a cabeça rapidamente para o Limitador.

– O quê? – perguntou.

– Foi batizado com o nome de sua mãe biológica... Sarah Jerome.

Will franziu o cenho.

– Acha que é por simples acaso que um túnel siga diretamente à sua casa? – disse-lhe Eddie.

– Não sei... Nunca pensei bem nisso – admitiu Will.

– Foi escavado especificamente para você, Will, ou, mais especificamente, para que houvesse um meio rápido de chegar a você, se Sarah aparecesse. A Panóplia Styx determinou que era prioridade capturá-la, devido a sua crescente influência como anti-heroína para os elementos mais rebeldes de nossa cidade.

– Quer dizer nos Cortiços – interrompeu Will.

– Não, não apenas lá, mas em todo o resto da Colônia também. Queríamos atraí-la e fazer dela um exemplo. É claro que quando finalmente capturamos Sarah, as gêmeas Rebecca tinham outros planos para ela.

– Sim, elas tentaram obrigá-la a me matar – disse Will em voz baixa, enquanto Eddie olhava as sombras atrás dele.

– E este túnel também nos permitiu manter contato com as mulheres Styx que vocês chamam de gêmeas Rebecca – disse Eddie. – Em particular quando elas foram incorporadas a sua família quando bebês. Isso nos permitiu alternar entre as duas como e quando quiséssemos.

– Então vocês entravam de mansinho na nossa casa e não sabíamos de nada – disse Will, aproximando-se mais da sra. Burrows.

– Principalmente à noite, para dar uma olhada em você enquanto dormia. – Com a bota, Eddie rolou um pedaço de tijolo pelo chão. – Mais tarde, quando o dr. Burrows começou a cavar buracos em nosso alçapão, fomos obrigados a reerguer a parede do porão.

– Eu estava lá! – exclamou Will, meneando a cabeça. – Eu o ajudei a fazer as perfurações, depois ele pôde instalar as prateleiras!

– Durante suas sessões de Luz Negra, o dr. Burrows recebeu instruções sobre a existência do túnel – disse Eddie. – Pretendíamos que ele descobrisse e depois fosse atraído à Colônia. Sabíamos que era quase certo que você o seguiria até lá, Will.

– Está dizendo que Roger foi condicionado a fazer isso? – perguntou a sra. Burrows. – Não foi uma coisa que ele fez por iniciativa própria?

– De maneira nenhuma. Além da existência e da localização do túnel, instalamos nele o desejo de viajar e um anseio dominador pela exploração. Por vários anos, isso foi introduzido na forma de compulsões no fundo de seu subconsciente, preparando-o para que nós ativássemos quando decidíssemos que era hora de ele se colocar a caminho – respondeu Eddie categoricamente. – Ele foi altamente receptivo a nosso condicionamento. Embora eu não estivesse presente para testemunhar, imagino que foram essas mesmas compulsões que mais tarde o levaram a sair da Colônia, entrar nas Profundezas e continuar até chegar ao mundo interior. Esses atos não se originaram de vontade própria e não eram algo que pensaria fazer um homem em seu juízo perfeito.

Will soltou um suspiro trêmulo.

– Então... Então papai não era realmente um grande explorador... E todas as coisas que ele estava tão louco para descobrir... para registar em seu diário... partiram de vocês. – Os olhos do menino estavam arregalados de incredulidade ao tentar articular a miríade de pensamentos que disparavam por sua cabeça. – E então, o que eu pensei que papai fosse... não era realmente ele. Vocês o tornaram assim. Os Styx fizeram dele algo que não era?

– Sim. Como a maioria do povo da Crosta, o dr. Burrows decididamente não era motivado antes de receber a Luz Negra – disse Eddie, enquanto olhava muito de leve a sra. Burrows. – E é claro que fizemos exatamente o contrário com você, Celia. Instalamos em você a completa e absoluta apatia, porque não havia um papel para você nisto. Era adequado a nós que você não fizesse nada... Além de ver TV.

Por um momento, ninguém no porão falou nada.

– E eu pensando que quem tinha dinamite aqui era eu – murmurou Drake, recolocando os blocos de explosivos na bolsa.

Como se estivesse prestes a desmaiar, a sra. Burrows vacilava.

– Eu sabia – resmungou ela várias vezes.

– Mãe? – Will pegou seu braço para segurá-la.

– Todos esses anos... Parecia que eu lutava com alguma coisa que não era minha. Parecia que eu estava perdendo o juízo... Que não controlava minha vida. E não era eu, porque vocês, Styx, ditavam quem eu era. Era tudo uma invenção... Um constructo! Esses pensamentos... Meus pensamentos nunca eram meus!

Pretendendo ou não, a resposta de Eddie foi inteiramente desprovida de remorsos:

– Sim. Pensei que você já teria deduzido isso sozinha. Afinal, você conseguiu vencer a programação quando voc...

– Vocês sequestraram nossa vida – grunhiu a sra. Burrows num tom acusativo. – Vocês estragaram tudo com seus joguinhos e só porque queriam Sarah Jerome.

– Ora, não foi bem assim – disse Eddie. – Também foi uma oportunidade de as gêmeas Rebecca adquirirem experiência de vida entre os Infiéis.

Ninguém tinha notado que a sra. Burrows colocara a mão na pá de Will.

Com um repentino passo para a frente, ela a girou para Eddie. Bateu em sua cabeça com tanta força que ele foi jogado para cima da filha.

– Ei! Não! – gritou Drake, arrancando a pá das mãos da sra. Burrows. Mas isso não a deteve. Ela ainda tentava esmurrar o Styx, sendo segurada por Drake.

– Afaste-a daqui! – gritou Elliott, escorando o pai atordoado. – Ela enlouqueceu.

– Minha mãe não é louca! – gritou Will para Elliott. – Esses cretinos é que são. Eles ferraram a nossa vida! Estragaram tudo! – Ele estava tão furioso que cuspia ao gritar.

A raiva parecia ter se esvaído da sra. Burrows, mas Drake agora era obrigado a se colocar entre Will e Elliott, mantendo-os separados com as mãos estendidas.

– Calma, todos vocês. Não temos tempo para rixas de família. Não agora. – Ele se virou um pouco para a sra. Burrows. – Celia, quero que respire fundo algumas vezes, depois suba com Elliott e prepare chá para todos. E vocês dois – disse ele, olhando para Will e Eddie, que sangrava profusamente na têmpora –, vamos fazer um curativo na cabeça de Eddie, depois plantar os explosivos. Podem acertar suas diferenças depois, mas agora nosso tempo está se esgotando. E então, todos vão se comportar como adultos?

Elliott hesitou, prestes a dizer alguma coisa.

– Pensei ter dito a você para levar Celia para cima – disse Drake com firmeza.

Foi o bastante para Elliott – ela assentiu, concordando. E a sra. Burrows parecia ter recuperado todo o controle de si enquanto se arrastava, passando por Eddie.

– Desculpe – murmurou ela. – Foi o choque... Eu não tinha consciência de nada disso. Foi o choque...

Eddie limpou o sangue dos olhos.

– Está tudo bem – respondeu ele, e prontamente desmaiou.

Eddie foi levado do porão e deitado no sofá da sala de estar. Enquanto todos se agitavam em volta dele, Will escapuliu da sala. Demorou-se ao pé da escada por um momento. O corrimão tinha a pintura nova e era tão branco, limpo e perfeito que ele sentia que tinha que tocá-lo com seus dedos com crostas de terra.

Ele foi ao primeiro andar. Subiu e desceu aquela escada tantas vezes na vida que, a cada passo, voltavam-lhe diferentes lembranças da infância. Almoços de sábado, quando uma das gêmeas Rebecca estaria ali para preparar uma imensa fritada para a família – ovos, salsichas, cogumelos, bacon e waffles –, tudo pingando da prejudicial gordura. Will sorriu; era estranho que a gêmea Rebecca nunca parecesse partilhar ela mesma da comida. Quem sabe se nessa época ela já não estaria tentando matar a todos?

E Will se lembrou das longas conversas telefônicas da mãe com a tia Jean. Ele, às vezes, se sentava no último degrau da escada e ouvia as duas irmãs reclamarem dos últimos acontecimentos em alguma novela de TV. Mas quando a tia Jean começava a monopolizar a conversa com suas longas listas do que comeu naquele dia e como seu sistema digestivo imprevisível lidava com isso, ou o que tinha aprontado sua preciosa poodle, Sophie, só o que Will ouvia da mãe era “Sei... sei... sei”, numa voz entediada. Em algumas ocasiões, a sra. Burrows até assentia para a irmã, que ainda falava.

Mas ao chegar ao andar, Will percebeu que o que ele aceitara como uma vida familiar normal estava muito longe disso e suas recordações podiam muito bem pertencer a uma peça teatral. Como se não bastasse que o papel de sua irmã fosse dividido entre duas meninas – se meninas fosse a palavra certa, porque elas nem mesmo eram humanas –, os Styx estiveram dirigindo e manipulando tudo na casa com suas sessões de Luz Negra durante anos.

– Nada aqui foi real – sussurrou Will.

E até o palco em que essa farsa foi encenada não estava mais ali. Ao examinar o espaço diante dele, viu que tudo era diferente. A estante embutida tinha sumido, a luminária de papel fora substituída e o carpete novo em folha não tinha aqueles trechos onde a trama ficara completamente puída.

Com a sensação de que estava sonhando, Will atravessou para o quarto na frente da casa. Sempre foi estritamente proibido de entrar, porque era o quarto da “Rebecca”, mas agora era usado como escritório. Will lançou os olhos pela mesa e o computador caro, seu olhar se acomodando no quadro de cortiça na parede atrás da mesa. Nas muitas fotos presas ali, ele reconheceu a mulher que agora morava na casa. As fotos foram tiradas em locais variados e na maioria delas a mulher estava acompanhada de um homem, que devia ser o marido.

Will se recostou e tirou uma delas do quadro, deixando cair na mesa o alfinete que a segurava. Na fotografia, a mulher e o marido brindavam com cocos cortados, que tinham guarda-chuvas de coquetel e canudinhos listrados, e uma praia à luz de fogueira era visível atrás de seus rostos relaxados e bronzeados.

E tinha também todas as fotos de bebê, assim Will sabia o que provavelmente ia encontrar quando entrou em seu antigo quarto. De fato, havia um berço, brinquedos macios por todo lado e as paredes eram de um azul clarinho com adesivos de nuvens fofas. Não restara nem o mais leve vestígio do período de Will no quarto. Nem as prateleiras onde ele guardava sua coleção de descobertas, nem os pôsteres que ele prendera no teto, do centurião romano e do incêndio de Londres. Ele foi até a janela, onde um móbile de lagartas e borboletas de cores vivas se balançava suavemente na corrente de ar.

Ele colocou um dedo na cara de uma das lagartas de aparência presunçosa.

– Não me morda! Não me morda! – disse ele numa voz esquisita.

– Sou uma larva de Guerreiro Styx e eu vou te morder – respondeu ele a si mesmo, fingindo uma voz grosseira de monstro.

– Não! Ai! Ai! Ai! – Will ria consigo mesmo enquanto socava a lagarta e ela quicava pela extensão do cordão. Depois ele se distraiu ao ver o jardim abaixo. O gramado estava debaixo de neve, mas ele sabia que não crescia descontrolado, como em sua época. E havia alguns recentes acréscimos ao jardim: uma área pavimentada, um canteiro circular e, na frente da cerca na extremidade, um balanço e uma caixa de areia para crianças.

Meneando a cabeça, Will soltou o ar pelo canto da boca. Não era mais o jardim dele. Parecia-se com mil outros.

Talvez fosse melhor que ele simplesmente se livrasse do passado e tocasse a vida.

Pelo menos o que ele vivia agora era autêntico, e não um constructo Styx.

Ele ouviu Drake chamar.

– Engole essa, bicho feio! – Ele socou a lagarta com tanta força que todo o móbile girou loucamente enquanto ele saía do quarto.

Houve um estrondo quando a primeira detonação abalou a construção e a rua em volta dela. Todos, exceto Drake, tinham saído da casa, e Will e Sweeney olhavam da traseira do falso furgão do gás.

– Parece um terremoto – disse Will, com o furgão balançando-se de leve em sua suspensão. Os únicos outros sinais eram algum deslizamento de neve do telhado e uns alarmes de carro que dispararam pela rua.

Depois de um momento, Drake abriu a porta da frente, envolto numa nuvem de poeira. Acenou para o furgão.

– Vamos entrar de novo – disse Sweeney a Will. – Não, espere... Tem um vizinho metendo o bedelho.

Um homem andava pela calçada e espiava a casa. Drake foi falar com ele, mostrando suas falsas credenciais.

O mecânico na frente do furgão estivera recostado para ver os acontecimentos pelo espelho lateral.

– Se ele criar problema, eu cuido dele – disse, enquanto o vizinho curioso saía correndo. – Ou então vou ficar por aqui até que você ou o sr. Smith precisem de alguma coisa. E se vocês chegarem na Austrália, me falem. Nunca estive lá.

Will e Sweeney saltaram, mas Will fez um breve desvio à traseira do Bedford, subindo na carroceria para espiar pela lona. Elliott estava sentada ali com Eddie, que claramente ainda não se recuperara do golpe com a pá. Parecia dormir, de olhos fechados.

– Como ele está? – perguntou Will.

– Com uma leve concussão, mas vai ficar bem – respondeu Elliott. – Os Styx têm a cabeça muito dura.

– Humm... Sim... Isso é bom. – Will não sabia se Elliott falava sério ou não. Ainda estava profundamente envergonhado pelo modo como explodiu com ela depois do ataque da mãe.

E a sra. Burrows também parecia estar arrependida de seus atos, sentada docilmente no canto com Colly. O coronel tinha uma pistola preparada, montando guarda do equipamento, que estava coberto por uma lona e preso por uma corda. Will olhou rapidamente as formas sob a lona, pensando que era estranho ficar tão perto de armas atômicas.

Ao entrar na casa, encontrou Sweeney esperando por ele no hall.

– Pronto para a segunda rodada? – perguntou o homem.

– Tô – disse Will, afastando com a mão o ar empoeirado. Ele notou que um quadro tinha caído no chão e várias rachaduras se abriram nas paredes. – Vamos acabar com esta casa. É uma pena, depois de todo o trabalho que tiveram nela – acrescentou.

A poeira era ainda mais densa no porão, onde Drake já retirava os destroços do túnel com a pá. Will e Sweeney atiraram-se ao trabalho de pronto, ajudando-o a limpar o entulho para que pudessem examinar o progresso que fizeram.

– Ganhamos cerca de mais um metro e vinte – disse Drake. – Mais algumas explosões e vamos conseguir passar.

– Se o teto aguentar – disse Will, inspecionando-o em busca de algum sinal de fraqueza. – Não está tão ruim – concluiu ele, passando a mão numa pequena fissura na pedra.

– Sim, estou colocando as cargas para que toda sua força seja dirigida para a própria face. Se Eddie tiver razão e os Styx não derrubaram o teto, vamos ficar bem – disse Drake. – Mas não importa se ceder depois de passarmos.

– Coitada da casa – disse Will.

Como foi combinado, alguns ex-Limitadores de Eddie apareceram para ajudar no trabalho do túnel. Era estranho vê-los trabalhando em silêncio, mas Will ficou agradecido pela mão de obra a mais.

Precisaram de mais algumas rodadas com explosivos para abrir uma passagem pelo tampão de rocha do túnel. E, no fim do processo, tinham gerado tanto entulho que em certos pontos chegava ao teto do porão. Até a moto que Drake admirou tanto ficou completamente sepultada. A única área relativamente limpa era um corredor do pé da escada à entrada do túnel.

– Vamos dar uma olhada? – Drake empurrou de lado os destroços para que ele e Will entrassem mais fundo no túnel, depois do bloqueio que existia antes.

– Isso me traz algumas lembranças – murmurou Will, enquanto eles seguiam a passagem por um canto. E ali estava – a câmara em crescente lunar com paredes de pedra leitosa que Will descobriu com Chester.

Will e Drake espiavam em volta, os fachos de suas lanternas de mineração parecendo penetrar a própria pedra transparente e fazê-la brilhar. Grande parte do piso da gruta estava submerso em água cor de ferrugem. Will patinhava rapidamente por ela em sua pressa de chegar à porta que ele sabia que ficava na extremidade da gruta quando se virou para Drake.

– Sabe de uma coisa, pensei que este lugar fosse a melhor coisa que eu imagi...

– PARE! – gritou Drake, com a voz trovejando nos confins da câmara.

Will quase perdeu o equilíbrio ao se lançar para o lado contrário.

Num piscar de olhos, Drake estava ao lado dele.

– Fique... totalmente... parado – disse ele num tom decidido que dizia a Will que era fundamental fazer precisamente o que lhe mandava. – Nem um centímetro para trás... nem para a frente – acrescentou Drake. – Você está enganchado.

– Como assim? – perguntou Will. Mantendo a cabeça imóvel, ele girou os olhos o máximo que pôde. A mão de Drake estava estendida em um fio esticado horizontalmente pela caverna, bem no caminho deles.

– Meu Deus. Estou tocando esse troço – sussurrou Will ao perceber que o fio na verdade estava pousado em seu peito. Era tão fino que quase não podia ser visto. Só o que entregava sua existência eram as gotas cintilantes de umidade por sua extensão sob a luz do capacete de Drake, que passava por elas.

– Muito bem disfarçado – disse Drake. Ele acompanhou o fio, que corria para o meio da gruta, culminando entre os restos de uma máquina que jazia na água funda. Onde a máquina estivera antes, agora havia uma massa de engrenagens de ferro corroído numa estrutura torcida.

– Então a armadilha está presa aqui... – sussurrou Drake, depois passou às costas de Will para localizar a rota do fio na direção contrária. – Fique sempre atento para os secundários. – Ele tomou um cuidado a mais com onde pisava na água rasa. Chegou à parede da gruta e retirou vários objetos de uma bolsa no cinto.

Will não via o que ele fazia.

– O que tem aí? Posso me mexer agora? – perguntou, mal se atrevendo a respirar.

– Numexe... neum... múscuo – respondeu Drake, com uma chave de fenda presa entre os dentes. Ele a trocou pelo canivete que usara e se passou mais um minuto antes de finalmente anunciar: – Tudo bem. Acabei.

A armadilha de repente zuniu da máquina arruinada e Will enfim soltou o ar.

– Toma! – Drake jogou algo para Will. Com um grito de alarme, ele o pegou. Muitas esferas opacas do tamanho de bolas de gude se derramaram de uma latinha, caindo aos pés de Will com pequenos borrifos. Drake tinha retirado uma placa da lata e algumas esferas restantes chocalharam por ela, contra uma vareta do que parecia massa de modelar.

– Dispositivo de explosão antipessoal Styx marco 3. Garantimos para acabar com seu dia, ou seu dinheiro de volta – disse Drake. – No futuro, Sweeney ou eu estaremos na dianteira.

– Pode apostar – concordou Will, virando o que restava das esferas da lata.

Como não havia espaço suficiente no porão, todo o equipamento do grupo foi levado para a sala de estar e arrumado para que Drake pudesse dar uma última olhada. Will e Elliott olhavam Sweeney e o coronel Bismarck carregarem a segunda das duas armas nucleares para o hall. A sra. Burrows fechou a porta imediatamente depois de eles entrarem.

– Parecem pesadas – observou Will. A caixa de aço inox tinha apenas cerca de um metro e vinte por um e meio, mas os dois homens grunhiam com o esforço de carregá-la usando as alças em cada ponta.

– Tudo bem. Todos comigo – chamou Drake da sala de estar.

– Onde quer o segundo DTN, chefe? – perguntou Sweeney enquanto ele e o coronel entravam, desviando-se de uma mesa de centro.

– Coloque por ali... Ao lado do primeiro – respondeu Drake.

Will estava à porta, olhando a quantidade impressionante de kit dentro da sala.

– Se aquela mulher visse o que está acontecendo em sua casa agora!

Sweeney sorriu.

– É, acho que ela pode ficar meio chateada com a visão da TV bloqueada por duas bombas atômicas.

– Principalmente se estiver passando Countdown – acrescentou a sra. Burrows enquanto Sweeney e o coronel baixavam o dispositivo ao lado do segundo, depois endireitavam o corpo, esfregando as mãos.

Drake estivera agachado ao lado de um equipamento curioso colocado na mesa de centro.

– Entre e feche a porta, Will – disse ele, como se nem agora confiasse inteiramente nos homens de Eddie, que ainda estavam na casa.

– Muito bem, antes de partirmos, tem umas coisas que preciso dizer. – Ele indicou os dispositivos na frente da TV. – Levar as armas nucleares será um trabalho muito pesado até que a gente chegue ao ambiente de gravidade mais baixa perto do centro da Terra. As bombas em si não são tão pesadas, mas, como seu projeto é antigo, tem muito chumbo na cápsula.

– Então, não podemos simplesmente deixar as cápsulas para trás? – propôs Elliott.

– O plutônio físsil nas bombas emite radiação demais... Vamos brilhar feito placas de néon antes de chegarmos a algum lugar. Mas talvez a gente chegue a esse ponto – disse Drake, com uma expressão severa. – Esta missão não será um passeio no parque. – Ele passou os olhos pela sra. Burrows, que tinha Colly ao lado, o coronel, depois Will, Elliott e Sweeney. – E desta vez Eddie não estará conosco.

– Por causa da cabeça dele? – perguntou Will, sem olhar para Elliott.

Drake assentiu.

– Ele precisa de tempo para se recuperar, mas não é por isso. Não sei qual é a atual situação na Colônia, mas se os Styx ainda estiverem lá em grande número, é melhor que ele fique fora de vista. De qualquer modo, ele tem mais utilidade aqui na superfície, onde ele e seus homens podem trabalhar com Parry e a Velha Guarda na localização das mulheres Styx.

– A não ser que todas já tenham ido para o subterrâneo – disse o coronel Bismarck.

– É verdade – concordou Drake. – O que Danforth nos disse sobre a retomada da Fase no mundo interior pode não passar de uma manobra para nos tirar do rastro. Mas precisamos descobrir isso nós mesmos. – Ele respirou fundo. – Muito bem, se ninguém tiver pergunta nenhuma, vamos pegar a estrada – disse ele.

– Eu tenho – disse Will. – O que é isso? Uma arma? – Ele olhava o dispositivo na mesa de centro. Três tanques finos de metal, cada um com um metro de extensão, estavam soldados, com um gatilho tipo pistola no meio e uma espécie de funil ou bocal instalado na ponta.

– Uma coisinha que meu amigo mecânico lá do furgão arrumou para mim – respondeu Drake. – Na verdade, ele me fez várias versões dela.

Will se aproximou um pouco mais da mesa para examinar o dispositivo. Na base do bocal, os tubos dos três tanques estavam interligados num nó górdio, em que havia vários calombos.

Drake pegou o dispositivo e, segurando pelo suporte, deslizou uma lingueta e apertou o gatilho. Uma chama azul ofuscante saiu do bocal num rugido.

Will deu um pulo para trás, surpreso, erguendo um braço para proteger a cara do calor.

– É um lança-chamas!

– Não, isto não é uma arma. Não vou incomodá-lo com os princípios – disse Drake, a chama definhando à medida que ele soltava o gatilho –, mas dois propelentes de alta octanagem misturam-se com oxigênio e criam um potente dispositivo de propulsão... Um jato. Assim, não dependeremos de uma Sten para produzir um empuxo que nos leve pelo cinturão de gravidade zero, como fizeram você e seu pai.

– Que legal – disse Will. – Nem acredito que você sabe fazer isso. Parece muito complicado.

– Que isso... Não é ciência de foguetes nem nada – disse Drake com desdém, depois franziu o cenho. – Não, acho que é um foguete – corrigiu-se.

Depois de pegar o equipamento, Will e Elliott foram para o porão. Os homens de Eddie esperavam ali – Drake disse que eles iam desmoronar a boca do túnel para as autoridades da Crosta não o encontrarem.

Elliott falou com vários deles na língua Styx, depois ela e Will entraram no túnel, rapidamente avançando à extremidade da gruta em crescente lunar. Will lhe mostrou a porta de ferro com as três maçanetas de um lado que ele e Chester descobriram juntos.

– Foi aqui que tudo começou – disse-lhe ele, batendo na superfície amassada com os nós dos dedos. Ressoou num tom grave, até que ele a tocou de novo, acompanhando com a mão uma área de tinta preta e brilhante com a ponta do dedo, recordando-se. – Não tinha volta depois de achar essa porta... Bom, eu não tinha. Não acho que Chester tenha ficado feliz com isso na época, mas ainda assim ele me acompanhou.

– Coitado do Chester... Ele é assim. É um amigo leal seu – disse Elliott.

E olha onde isso o levou, pensava Will quando Drake apareceu.

– Pode abrir. Já procurei minas antipessoais Styx – disse Drake.

Will de imediato girou as três maçanetas na lateral da porta, depois recuou.

– Primeiro as damas – disse ele a Elliott.

Ela se apoiou na porta, que gemeu nas dobradiças. Elliott então pisou na aba de metal na base do batente e entrou na câmara cilíndrica. Depois que percorreram a curta distância até o outro lado, Drake se juntou a eles e Will girou as três maçanetas da segunda porta, idêntica à primeira.

E então, sem nem mesmo se dar ao trabalho de olhar pela vigia embaçada, ele a abriu. Houve um silvo; era a pressão do ar se ajustando..

– Pelo menos isso significa que as Estações de Ventilação ainda estão em funcionamento, não é? Então a Colônia está recebendo ar – disse Will a Drake.

– Espero que sim – respondeu Drake evasivamente.

Will e Elliott passaram pela antecâmara, o facho da lanterna de mineração de Will cortando o ar carregado de umidade. As paredes em si eram uma colcha de retalhos de placas de metal enferrujadas pregadas com rebites.

Will prendeu a respiração ao distinguir o elevador à frente. Ali, esperando por eles, estava o próprio elevador, pronto para levá-los para baixo.

Will ia abrir a porta pantográfica do elevador, mas olhou para Drake para saber se devia continuar.

Drake assentiu, com a lanterna do capacete quicando, depois Will deslizou a porta para trás e entrou.

– Seguro como uma casa – sussurrou ele consigo mesmo, mas desta vez não estava animado.

O equipamento e as armas nucleares foram transportados em várias viagens porque Drake não queria sobrecarregar o antigo elevador. Quando tudo foi transferido e todos também tinham descido, Will partiu para a porta da segunda câmara de metal.

– Espere – disse Drake. – Preciso investigar primeiro essa câmara de compressão. Ainda não me arriscaria a abrir, pode ter alarme. – Ele se virou para todos. – Armas a postos. E vocês também devem ter suas armas tranquilizadoras à mão, caso topemos com algum colonista. – Ele parou por um momento. – Tem uma coisa de que precisam saber. Quando estivemos em Londres, peguei um sinal de pedido de socorro da Colônia.

– O que quer dizer? – perguntou a sra. Burrows.

– Eu deixei um radiofarol com seu amigo, o Segundo Oficial. Estava sintonizado em uma frequência específica e eu disse a ele para usar se as coisas ficassem complicadas na Colônia e ele precisasse de ajuda. Bom, ele usou.

A sra. Burrows ficou perturbada.

– Por que não falou nisso antes de n...

– Porque tínhamos um problema maior para resolver – interrompeu Drake. – Então não tenho a menor ideia do que vamos encontrar quando passarmos por essa câmara.

A sra. Burrows meneava a cabeça ao colocar a mão protetora na cabeça da Caçadora a seu lado, que de imediato começou a ronronar alto.

– Eu trouxe Colly porque queria levá-la para casa. Se soubesse o que acaba de me dizer, teria feito outros planos... Eu a teria deixado com o sargento Finch.

– Ela vai ficar bem. Pode vir conosco nessa jornada... Ela parece bem saudável.

– Sim, ela é bem saudável – disse a sra. Burrows com certa aspereza. – Mas espera realmente que ela tenha sua ninhada de improviso?

Todos se viraram para a Caçadora, que, ciente do súbito interesse por ela, parou de ronronar.

– Ninhada? – disse Will.

– Sim, a prole de Bartleby – respondeu a sra. Burrows. – Por que acha que ela engordou tanto?

Drake suspirou.

– Olha, vamos ver qual é a situação na Colônia, depois pensaremos no que fazer. Tudo bem?

– Sim, acho que sim – concordou a sra. Burrows.

Todos esperaram enquanto Sweeney e Drake procuravam armadilhas explosivas na porta da câmara de compressão, depois a abriram.

Como se não pudesse esperar para descobrir em que estado se encontrava a Colônia, a sra. Burrows se colocou bem atrás dos dois homens.

Sweeney estava a meio caminho pelo chão corrugado quando de repente pisou em falso e cambaleou. Tateava a lateral da câmara de compressão como se suas pernas não o sustentassem. Drake chegou imediatamente, puxando de volta o grandalhão.

– Não! Colly! – gritou a sra. Burrows. A Caçadora tinha caído ao lado dela. Estava inconsciente.

– Levem a gata para fora! – gritou Drake ao coronel e a Will.

Sweeney pareceu se recuperar assim que foi auxiliado até o elevador. Colly, porém, continuava inteiramente inconsciente.

– O que foi? – disse a sra. Burrows. – Não podemos deixar que isso aconteça... Ela está grávida!

Drake apontou para a orelha.

– É um campo subaural. Instalaram um deles perto da porta para impedir que alguém use. Sweeney estava com os protetores, mas é hipersensível à maioria das frequências. E, claro, a Colly não tinha proteção nenhuma.

– Mas ela vai ficar bem? – perguntou Elliott, passando a mão na barriga roliça da felina.

– Acho que sim – respondeu Drake. – Agora, vocês todos devem recuar o máximo possível, porque... em homenagem aos velhos tempos... o coronel e eu vamos estourar o caminho.


Capítulo Vinte


Na Praça do Mercado, uma grande área pavimentada no centro da Caverna Sul, as pessoas se reuniam para ouvir o que o Conselho de Governadores tinha a dizer. A notícia da reunião iminente se espalhara e estava presente a maioria, se não todos os moradores restantes da cidade subterrânea.

Os Governadores não andavam muito em evidência ultimamente. Mas desde que os Styx desapareceram abruptamente, eles saíram de fininho de suas tocas, claramente com a intenção de reafirmar sua autoridade sobre a Colônia.

Antes dos distúrbios recentes, a praça pululava com o povo nos dias de mercado, que comprava artigos das numerosas filas de carroças. Mas essas carroças foram colocadas de lado para abrir espaço, embora alguns estivessem em cima delas para ver melhor os Governadores.

E quase todos os Governadores estavam presentes em um palanque erguido apressadamente. Deveriam ser doze, mas um deles não estava bem; o sr. Cruickshank sofria muito de gota e não conseguira deixar a cama. O restante, todos ataviados com suas cartolas, seus casacos formais pretos e as calças risca de giz cinza, sentavam-se rigidamente atrás de uma mesa comprida no palanque. Quando chegou a hora de a reunião começar, os onze homens retiraram as cartolas e as colocaram na mesa diante deles. Em seguida, o sr. Pearson, o governador mais velho, colocou-se de pé.

Com sua expressão lúgubre e o jeito aflitivamente lento de falar, ele começou a discursar ao povo sobre a “manutenção da ordem” e que era “dever de um colonista para com seu próximo obedecer às leis dos Antigos”. O nome de Sir Gabriel Martineau aparecia de vez em quando na arenga do sr. Pearson; evidentemente ele acreditava que as referências frequentes ao fundador da Colônia ressoariam na plateia e a deixaria mais dócil.

Mas a multidão, embora o escutasse, não ficou satisfeita com o que ouvia. Os Governadores eram marionetes dos Styx, meramente colocando em vigor o que ordenava a verdadeira classe governante. E com os Styx fora do quadro, era inevitável que não houvesse o mesmo grau de respeito por essas autoridades.

– Temos vivido... – proclamou o sr. Pearson, com a mão metida no colete enquanto agitava um dedo para o dossel de pedra muito acima – tempos difíceis nos últimos meses. Todos fomos separados dos familiares e vizinhos, embora ainda não saibamos o motivo. E não sabemos para onde eles foram levados, ou quando voltarão a nós.

– Nunca – murmurou uma mulher na multidão.

– E, quando nossos senhores voltarem, podem ter certeza de que nós, do Conselho, faremos a eles essas mesmas perguntas – disse o sr. Pearson em resposta à mulher.

Com essa referência aos Styx, uma onda de reprovação se espalhou pela multidão.

– E até que o status quo seja restaurado, garantiremos que nossa rotina diária volte ao normal e que não nos perturbemos com os surtos de contravenções de um pequeno punhado de descontentes em nossa sociedade – disse o sr. Pearson. – A partir daqui, só temos uns aos outros. Somos uma grande sociedade, e cuidamos dos nossos.

Com muita cerimônia, ele se virou para os Governadores a sua esquerda, depois àqueles à direita. Todas as dez autoridades diziam “apoiado, apoiado” com grande ênfase, assentindo como uma fila de macacos embriagados para mostrar seu consentimento.

O sr. Pearson se voltou novamente para a multidão.

– Todos estamos no mesmo barco. Nos últimos meses, todos conhecemos águas turbulentas... Ficamos famintos, confusos e assustados com as mudanças inexplicáveis que acontecem em nossa vida. Mas não temam jamais, o Conselho está aqui para restaurar a lei e a ordem. – Ele parou como se esperasse um grito animado da multidão, mas a única reação foi um silêncio de pedra.

Ele pigarreou e prosseguiu:

– Nossa primeira medida será encontrar um portal aberto para que as entregas de gêneros alimentícios da Crosta possam voltar imediatamente. Mas, igualmente importante, a produção de nossos alimentos, daqueles de que mais dependemos, também será restaurada. A criação de animais e a coleta de roedores são uma prioridade e, neste momento em que vos falo, os campos de porcini no Norte estão sendo preparados para esporulação e...

– Ainda não te vi cavando nada – disse um colonista em voz alta.

– É, arregace as mangas você mesmo, Pearson – acrescentou um segundo.

O sr. Pearson passou o dedo por dentro da gola engomada e ignorou a interferência, tentando continuar. Mas, no fundo da multidão, um colonista tossiu com certo volume. Só que não era uma tosse de verdade.

O homem baixou a cabeça e gritou a palavra “Mátula”.

A turba deu uma gargalhada.

Todos, com exceção de uns poucos cidadãos da Colônia, tinham abandonado a prática arcaica de usar a mátula, ou urinol – o recipiente de porcelana mantido embaixo da cama em que eles podiam se aliviar durante a noite, se precisassem. Em vez disso, faziam o esforço de descer à casinha, em geral localizada nos fundos da residência.

Mas não o sr. Pearson.

E, sendo da classe privilegiada, o sr. Pearson também despejava arrogantemente sua urina pela manhã. Devido a sua alta posição, ele sempre tinha um criado – em geral alguém capturado na Crosta ou, se não houvesse nenhum deles disponível, um colonista de classe baixa que era pressionado a trabalhar em sua casa – e seria seu infeliz quinhão realizar essa horrível tarefa. E em alguns dias sabia-se que a mátula era esvaziada bem tarde e assim seus odores circulavam para baixo e permeavam o resto de sua casa. Não era agradável.

Outro piadista na plateia aproveitou a deixa do primeiro. Fingiu espirrar alto, embora na verdade gritasse a palavra “Penico” para que todos ouvissem.

Os corajosos membros da multidão explodiram em risos.

Alguém tinha se atrevido a pronunciar o apelido do Governador mais velho – ele era conhecido por todos na Colônia como Pearson Penico. Ou – em certas ocasiões – algo bem menos educado do que isso.

Era uma demonstração cabal de falta de respeito.

A cara do sr. Pearson assumiu um roxo escuro e ele cerrou os punhos. Parecia uma caldeira com carvão demais e quase se podia imaginar que o vapor saía das orelhas.

– Não tolerarei essa grosseria! – berrou ele. – Primeiro Oficial! Prenda essas pessoas! – O sr. Pearson ficou ainda mais vermelho. – Onde está, Primeiro Oficial? Reporte-se a mim já! Quero os responsáveis presos no Cárcere!

O novo Primeiro Oficial apareceu ao lado do palanque, depois subiu nele. As tábuas do palco improvisado rangeram e se sacudiram sob seu volumoso corpo e vários Governadores se agarraram à mesa como se pensassem que a qualquer momento podiam mergulhar na ralé diante deles.

Nessa hora, Will, Drake e a sra. Burrows tinham chegado à Praça do Mercado e andavam lentamente para a margem da multidão. Recebiam olhares curiosos das pessoas nas carroças, mas, no geral, os colonistas estavam envolvidos demais com a exibição pública de insolência que se desenrolava diante deles para perceber. De qualquer modo, com todos aqueles soldados neogermanos alojados na Colônia nos últimos meses, eles estavam muito mais acostumados a ver forasteiros em seu meio.

– Faça seu trabalho! Prenda-os! – insistiu o sr. Pearson, batendo o pé, o que provocou um novo abalo na palanque.

O Primeiro Oficial olhou os rostos na multidão, percebendo o Machadinha e Squeaky na frente. Ainda não tinha informado aos Governadores que seu predecessor libertara todos os prisioneiros do Cárcere. E não estava ansioso para contar a eles.

O Machadinha sorriu, mostrando os dentes que faltavam, e Squeaky começou a pular.

Outro Governador se levantou.

– Faça o que mandaram, homem! Prenda esses dissidentes! – gritou.

– Mas... Prender exatamente quem? – perguntou o Primeiro Oficial. – Qual deles?

– Eu conheço essa voz – disse Drake ao ajudar a sra. Burrows a entrar numa carroça desocupada, coberta de algumas folhas de repolho ressecadas. Depois subiu ao lado dela. Will já estava na carroça, olhando o palco atentamente e meneando a cabeça.

O Governador descontrolado se virou para o Primeiro Oficial, que o olhava, confuso.

– Obedeça às ordens que recebeu, seu idiota inútil! – rosnou ele.

– Aquele velho idiota, imbecil! – exclamou Will em voz alta, sem nenhum esforço de baixar o tom. Os colonistas perto da carroça se torceram para olhar para ele.

– Fale baixo, Will – avisou Drake, mas ele ficou intrigado com a veemência inesperada do garoto. – Mas por que disse isso?

– Porque aquele mala imbecil é meu pai.

– Seu o quê? – disse Drake.

– É o sr. Jerome – murmurou Will. – Meu pai verdadeiro.

O sr. Jerome estava andando pelo palco na direção do Primeiro Oficial. Ao alcançá-lo, começou a meter o dedo no peito do homem mais alto e muito mais corpulento.

– Se não fizer o que lhe mandaram, vamos colocá-lo a ferros também – prometeu.

O Primeiro Oficial não se deixou intimidar, só ficou perplexo.

– Mas se eu não sei quem chamou o sr. Xixi de Penico, como posso prender alguém? – perguntou ele com inocência.

Em vez de vivas para a frase fantasticamente confusa do Primeiro Oficial, um silêncio mortal caiu no lugar.

– Seu idiota incorrigível! – vociferou o sr. Jerome, recuando a mão como se estivesse prestes a esbofetear o policial.

De súbito, houve uma comoção na frente da turba. O Machadinha avançava, pressionando para chegar ao palanque.

Sua voz transmitia a violência de que ele era capaz:

– Não mete o dedo nele! Ele é meu amigo! – trovejou o Machadinha, depois socou o palco com um de seus punhos de marreta. – Ou eu vou aí em cima e resolvo com tu e o sr. Xixi.

– Sr. Penico. – Squeaky corrigiu o Machadinha, pulando ao tentar ver por cima de seu ombro.

O sr. Jerome ainda não tinha se afastado do Primeiro Oficial, com a mão ainda no ar.

– Tô avisando – disse o Machadinha, louco por uma briga.

Um uivo penetrante de lobo veio do lado de Will e Drake, assustando-os.

Cada pessoa na Praça do Mercado, colonista e Governador, procurou o responsável por isso, enquanto a sra. Burrows tirava os dedos da boca.

Drake baixou a cabeça.

– Meu Deus, e eu que disse que devíamos ser discretos – murmurou.

– Não está na hora de começar de novo? – proclamou a sra. Burrows num grito. – Os Styx foram embora e vocês não os terão de volta. Pela primeira vez em trezentos anos, vocês têm a chance de mandar na própria vida.

Todos pensaram nisso, depois surgiram murmúrios de “Sim” e “Ela está certa”.

– Celia – disse o Primeiro Oficial, olhando-a radiante por cima das cabeças da multidão. Ele teve de respirar fundo antes de continuar, porque ainda não conseguia acreditar no que via. – Diga o que fazer. Nos diga como cuidar disso.

A sra. Burrows pensou por um momento.

– Bem, para começar... Podem mandar esses Governadores às favas – disse ela. – Eles não têm os melhores interesses de vocês no coração.

O sr. Jerome esticava o pescoço e semicerrava os olhos para quem estava na carroça.

– Ora essa, vejam só o que temos aqui. Um bando de abomináveis da Crosta metendo o nariz em nossas vidas – disse ele.

– Ah, fecha a matraca, seu velho chato! – soltou Will, sem conseguir se conter.

Houve uma pausa, depois o sr. Jerome franziu o cenho.

– Seth? Meu filho, Seth?

Will torceu o lábio com insolência.

– Não sou filho seu.

Claramente com certo choque por rever Will, o sr. Jerome levou um momento para se recompor.

– Então... Então meu filho foragido voltou para casa e seus amigos estão nos dizendo o que fazer. – Ele soltou um riso seco, depois se voltou para o Primeiro Oficial. – Bem, pode prender esses também.

O Primeiro Oficial já estava farto.

– Não, não vou prender – disse ele simplesmente.

O sr. Pearson voltou à refrega. Pegando a cartola na mesa, ele a brandiu ameaçador na cara do Primeiro Oficial.

– Está vendo isto? Somos a única autoridade aqui! É melhor fazer o que o sr. Jerome ordenou.

– Eu lhe disse pra deixar meu amigo em paz – explodiu o Machadinha. – Eu já lhe disse! Por que não cala essa boca desgraçada e deixa ele falar o que quer? – rugiu o Machadinha, curvando-se para o palanque e investindo para os tornozelos do sr. Pearson e do sr. Jerome como um urso furioso.

Enquanto os dois Governadores pulavam apressadamente para fora do alcance do Machadinha, o Primeiro Oficial virou-se para a multidão.

– Se algum de vocês acha que essas pessoas na carroça são só gente da Crosta, pensem bem. A mulher que falou tem toda a razão – disse ele, apontando a sra. Burrows, com os olhos brilhando. – Ela foi submetida ao pior interrogatório de Luz Negra que já vi em toda minha vida como policial e voltou de lá. Ela não cedeu... Não disse aos Styx o que eles queriam saber.

A multidão murmurou.

– E aquele homem ali... – apontou para Drake – destruiu os Laboratórios para nós. Ele deu um fim a todos os horrendos experimentos dos Styx. Sei disso porque eu estava lá. Eu o ajudei.

O murmúrio ficou mais alto.

– E o garoto com eles – declarou o Primeiro Oficial, enquanto apontava diretamente para Will – é sobrinho de Tam Macaulay e...

Houve um arquejar coletivo na turba – eles sabiam o que viria agora.

– E filho de Sarah Jerome.

Agora o povo gritava.

– Sarah Jerome, uma mulher corajosa que foi fiel a suas crenças e resistiu aos Styx por tanto tempo... Por muitos anos. Não pudemos fazer nada para ajudá-la quando ela foi trazida de volta à Colônia, mas agora podemos honrar seu espírito. Podemos fazer as coisas do jeito dela e nunca mais deixar que os Pescoços Brancos mandem na nossa vida.

A multidão enlouqueceu. Cheio de orgulho, Will não ficou nada constrangido com a atenção que recebia.

O Primeiro Oficial ergueu os braços e a turba se aquietou.

– E então, sra. Burrows, o que devemos fazer agora?

– Podem nomear um comitê para supervisionar a Colônia... Um comitê temporário – aconselhou a sra. Burrows. – Podem fazer eleições depois, mas agora precisam de gente que realize as coisas. Seu próprio povo... Pessoas em quem vocês confiam.

– Que asneira! Eles não têm a mais remota ideia de como governar as coisas! – gritou o sr. Pearson. – Isso é pura loucura! Essa mulher é da Crosta. Não deem ouvidos ao que ela diz!

– Primeiro Oficial, quero que você nos lidere! – gritou um homem de repente.

– Eu? – O Primeiro Oficial titubeou.

A sugestão angariava apoio e o Primeiro Oficial acenou para a multidão se acalmar.

– Mas... Não posso fazer isso sozinho. Não seria direito.

– Pega o Machadinha também! – gritou a Banguela Mulligan. Agitando uma garrafa, ela estava empoleirada em uma tina na extremidade da praça e por muito pouco não caía.

A multidão parecia apoiar inteiramente essa sugestão e empurrou o Machadinha até que ele subiu no palanque.

Foi quando toda a estrutura virou de lado, a mesa, as cadeiras e os Governadores escorregando para fora. Enquanto seus pés alcançavam o chão, todos os Governadores, sem exceção, voaram.

Os aplausos da turba chocalharam cada janela na cidade. O Machadinha e Squeaky aproveitaram a oportunidade para se servir de duas cartolas abandonadas pelos Governadores e as exibiram com orgulho.

– Gostaria que todo golpe ocorresse nessa mesma paz – sussurrou Drake. E ele – como todos os outros na Praça do Mercado – estava cheio de otimismo pelo futuro da Colônia. Sem nenhum Styx para aterrorizar a população e com a oportunidade de governar a si mesmos, seria um lugar muito diferente para se viver.


A um quilômetro e meio dali, nos arredores da cidade, Elliott ouviu o eco dos gritos da multidão, mas não sabia o motivo. Depois que Sweeney e o coronel Bismarck tentaram inutilmente convencê-la a não sair sozinha, ela correu para a Caverna Sul, sem encontrar um só colonista ou, aliás, Styx.

E agora, ao entrar em seu antigo bairro, ela reduziu o passo no ambiente que lhe era tão familiar.

A Colônia era parecida com uma máquina antiga, mas muito confiável que funcionava dia e noite, porque seus habitantes mantinham tudo correndo tranquilamente. De modo geral, cada colonista sabia seu lugar na hierarquia e, como engrenagens na máquina, todos faziam o que se esperava deles.

Mas essa máquina evidentemente estava com defeito. O que Elliott via ao redor era um caos sem precedentes: ruas tomadas de lixo fedorento, pilhas de móveis destruídos e amontoados na frente das casas, até pertences pessoais espalhados pelas sarjetas. Havia sinais de negligência e tumulto em toda parte para onde ela olhava.

Por fim Elliott deu com a casa em que foi criada. Esta era a casa da qual ela saiu na manhã em que fugiu para as Profundezas, deixando para trás tudo o que conhecia.

Quando criança, aprendeu a viver com a mentira de que a tia era sua mãe, mas o risco de ser revelada como um Bebê do Ralo crescia junto com ela. E embora decidir ir para as Profundezas equivalesse a cometer suicídio, a alternativa teria sido pior. Não só Elliott e sua mãe verdadeira teriam sido imediatamente sentenciadas à morte pelos Styx por ligações ilícitas, como o restante da família muito provavelmente teria sido linchado por participar desse disfarce.

Já haviam começado a circular pelo bairro os boatos sobre os olhos escuros e o corpo de Styx de Elliott e um homem tentara extorquir dinheiro da tia em troca de seu silêncio. Elliott decidiu que precisava desaparecer da Colônia, eliminando assim qualquer oportunidade para chantagem ou exposição.

Andando lentamente pela calçada, seu olhar vagou para os campos de liquens pretos dos dois lados, onde ela brincava quando criança. Pelo estado em que se encontravam, era evidente que ninguém cuidava deles há algum tempo. Mas ao contrário de muitas outras na rua, a casa em si parecia habitada. Elliott ficou animada com isso.

Ela se aproximou e empurrou a porta de entrada. Não estava trancada e abriu alguns centímetros.

– Olá.

Por um momento, ela ficou distraída com o imenso rugido da multidão em algum lugar da cidade.

– Olá – repetiu Elliott, embora sentisse que a casa estava vazia. Ela ergueu o pé para passar da soleira, mas se deteve. Ali dentro deveria haver sinais que confirmassem que a mãe ainda morava lá. Mas Elliott sabia que seu reaparecimento e sua aparência atual só reacenderiam velhas suspeitas e o segredo da mãe seria conhecido. Elliott não tinha dúvida de que persistiam os velhos preconceitos contra as inter-relações Styx-colonistas.

E parte dela também relutava em descobrir sobre a mãe. A missão ao centro da Terra era repleta de perigos e Elliott tinha plena consciência de que talvez não voltasse dela viva. Talvez fosse melhor embarcar na missão acreditando que a mãe ainda estava viva e passava bem.

– Voltarei outro dia – disse Elliott em voz alta, fechando a porta. Metendo a mão dentro do casaco, ela pegou o frasco de perfume que a sra. Burrows lhe dera e colocou com cuidado na soleira. – Isto é para você, mãe – sussurrou, dando as costas para a casa.


Capítulo Vinte e Um


– É isso que quero que vocês vejam – disse o Primeiro Oficial a Drake, Will e a sra. Burrows. Drake queria deixar a Colônia e continuar sua jornada, mas também sabia que era importante ajudar o Primeiro Oficial do jeito que pudesse, agora que a cidade declarou sua independência.

E, ao virarem uma esquina, lá estava a Cidadela Styx.

Com sua severa fachada de granito rudemente cortado, era construída na própria parede da caverna, estendendo-se até o dossel muito no alto, onde desaparecia nas eternas nuvens que rodopiavam e batiam ali. E nunca se soube de nenhum colonista que tivesse posto os pés dentro da construção proibida.

– Isto é o mais perto que eu já cheguei – sussurrou Will, enquanto as janelas de cristal preto que marcavam os andares superiores da Cidadela o fitavam como os olhos impiedosos dos Styx.

O Primeiro Oficial parou no portão aberto na grade de ferro e um homem corpulento, segurando uma picareta, saiu da guarita de vigia para recebê-los.

– Este é Joseph – disse o Primeiro Oficial. – Ele e outro cidadão estão guardando o Complexo vinte e quatro horas por dia, para o caso de os Pescoços Brancos decidirem voltar.

Drake assentiu para Joseph, que tinha o peito fundo e era atarracado, típico daqueles de raça pura, como eram conhecidos – descendentes do exército original de trabalhadores que ajudaram Martineau a construir a cidade subterrânea cerca de trezentos anos atrás, povoando-a depois. Joseph olhava fixamente para Will e o menino começou a achar tudo muito inquietante.

– Muito sensato – disse Drake. Ele indicou a picareta do homem. – Mas vai precisar de mais poder de fogo do que isso. – Por um momento ele olhou a Guarnição, um prédio baixo de dois andares ao lado da Cidadela, deixando seu olhar se demorar na entrada. Mas depois ele partiu para a Cidadela em si. Quando estava a uns dez metros de distância, ele se abaixou para pegar uma pedra, que atirou em suas portas. A pedra bateu e depois desceu com barulho a escada da frente. Como nada aconteceu, Drake se aproximou do prédio.

– Pare! – gritou o Primeiro Oficial. – Vai derrubar você!

Não eram só os portais que os Styx estavam protegendo com os campos subaurais. O Primeiro Oficial já fora chamado em resgate de vários colonistas inconscientes que foram incapacitados por alguma coisa em volta do prédio.

Drake não deu atenção a ele, subindo os degraus da entrada.

– Como ele consegue fazer isso? – perguntou o Primeiro Oficial, porque Drake parecia não ser afetado em nada pelo campo. Ele olhou toda a entrada, empurrando a imensa laje de pedra onde antes ficava a porta. Depois foi aos fundos do prédio, examinando as janelas que começavam pelos andares superiores.

Enquanto reunia todo mundo, Drake bocejava e mexia o maxilar como se tivesse uma dor de ouvido crônica.

– Tem um campo imensamente forte ali em volta – disse ele a Will e a sra. Burrows, voltando-se depois ao Primeiro Oficial. – Os Styx criaram barreiras de proteção dentro do prédio e o lacraram completamente, então não tenho como dizer se ficou alguma coisa ali dentro.

O Primeiro Oficial ficou extremante desconfortável com isso.

– Sabe que há boatos de que várias rotas para a Crosta descem ao prédio, então... – Ele se virou para olhar a Cidadela – então pode ser que voltem por aqui para retomar o controle.

– Eles podem tentar – disse Drake.

– Mas vocês estarão preparados para eles – intrometeu-se a sra. Burrows.

– Vamos investigar o prédio da Guarnição – sugeriu Drake a Will.

– Humm – começou Joseph. Ele ainda não conseguia tirar os olhos de Will.

– O que foi? – disse o Primeiro Oficial.

– Posso acompanhar vocês? – perguntou Joseph a Drake. – Sabe, eu antigamente trabalhava ali.

O Primeiro Oficial estava prestes a protestar contra esta solicitação quando Drake tirou de uma bolsa no cinto um par sobressalente de protetores auriculares.

– Coloque isto – disse ele a Joseph.

Enquanto Drake partia para a Guarnição, Will e Joseph seguiam a uma curta distância atrás dele.

– Seth? – começou Joseph, nervoso.

Will virou-se para ele.

– Na verdade é Will. Não sou mais chamado assim.

– Desculpe – sussurrou o homem, passando a mão no cabelo branco e espigado. Depois falou com mais confiança: – Eu conheci Sarah, sua mãe.

– Conheceu?

– Fomos amigos quando éramos jovens. – Joseph franziu o cenho e parecia ter dificuldade de continuar. – Da última vez em que ela esteve aqui... quando os Pescoços Brancos a prenderam e a trouxeram de volta, nós nos vimos novamente. Cuidei dela naquelas semanas em que ela ficou na Guarnição.

Embora Joseph tivesse baixado a cabeça, Will via que sua expressão era incrivelmente triste. E, quando o homem olhou fugazmente para Will, seus olhos azul-claros – com coloração idêntica aos olhos do próprio Will – pareciam refletir a luz como se estivessem transbordando de lágrimas.

– Acho que ela sabia o que ia acontecer – murmurou Joseph. – Sabia que não terminaria bem para ela.

Will de repente sentiu uma forte afinidade por esse homem corpulento e brevemente colocou o braço em volta dele enquanto continuavam a andar. Como Joseph, Will também estava dominado pela tristeza, mas neste momento eles tinham chegado à entrada. Will sentia o zumbido no crânio – havia um campo em volta das portas de aço, mas, surpreendentemente, elas estavam destrancadas.

Eles entraram no prédio e Will, junto do amigo de sua mãe verdadeira, andou pelo piso de pedra polida que ela antes percorrera.

– Acho que, na verdade, ela não acreditava em nada que os Pescoços Brancos tentavam lhe meter na cabeça sobre você – disse Joseph em voz baixa. – Ela continuou com eles porque queria encontrá-lo.

– Obrigado por me contar isso – disse o menino.

– Vocês dois estão bem? – perguntou Drake, olhando-os com curiosidade ao perceber que os dois pareciam muito extenuados.

– Estamos ótimos – respondeu Will.

– Que bom, então vamos acabar com o campo subaural deste prédio. Sei que tem um arsenal por aqui, então, se nos mostrar onde fica, Joseph, vamos invadir e ver o que os Styx deixaram para trás – disse Drake. – Se eles voltarem a dar as caras por aqui, vocês vão querer algo mais prático do que uma picareta.


Will, Drake e a sra. Burrows voltavam ao Quartel quando Elliott apareceu do nada.

– Pensei ter dito para você manter posição – disse Drake, claramente irritado.

Elliott não respondeu e Will notou que ela evitava seu olhar de propósito. Talvez nem tudo estivesse bem entre os dois, depois que a sra. Burrows atacou o pai dela e da discussão furiosa que se seguiu. E Elliott não falou com ele quando tiveram de se reunir a Sweeney e ao coronel Bismarck, que estiveram protegendo as armas nucleares e o restante do equipamento.

Embora tivesse de tratar de outras questões e ainda não estivesse com eles, o Primeiro Oficial sugeriu que esperassem na central de polícia. Assim, essa foi sua próxima parada e, depois que transferiram todo o equipamento para lá, eles se sentaram na sala principal, comendo suas provisões. As armas nucleares estavam em segurança, trancadas a chave em uma das celas do Cárcere, um lugar que só trazia más recordações a Will. Tão ruins que ele se viu incapaz de entrar mais uma vez no lugar úmido e funesto.

Quando o Primeiro Oficial finalmente reapareceu, andando animadamente pelas portas de vaivém, tinha dado apenas alguns passos quando se ouviu um barulho frenético de patas raspando a pedra do lado da sra. Burrows. Se Colly não estivesse carregando tanto peso a mais, teria sem dúvida pulado por cima do balcão. Em vez disso, disparou diretamente pela abertura nele.

– Minha garota! – berrou o Primeiro Oficial para a Caçadora, que se erguia nas pernas traseiras e colocava as patas nos ombros dele, lambendo-lhe a cara. – Pensei que tivesse perdido você para sempre. – Ronronando num volume ensurdecedor, Colly rolou de costas, convidando-o a afagar sua barriga. – Quem é a menina do papai, hein? Quem é a menina do papai? – Ele arrulhava para o animal, falando como um bebê.

O Primeiro Oficial levantou a cabeça quando a sra. Burrows aproximou-se do balcão.

– Minha Caçadora estava com você o tempo todo! Obrigado! E ela parece tão bem... Está bem rechonchuda.

– É um pouco mais do que isso – disse a sra. Burrows.

– Filhotinhos! Não? – perguntou ele, ao examinar a felina.

– Sim – disse a sra. Burrows.

Um grande sorriso idiota vincou a cara do Primeiro Oficial. Ainda sorridente, ele se levantou. Ergueu um dedo quando lhe ocorreu algo.

– E eu tenho uma surpresinha para seu filho. – Ele passou pelo balcão e entrou em sua sala. Reaparecendo com algo escondido às costas, ele se aproximou de Will.

– Tome – disse ele, revelando o que era.

– Demais! – exclamou Will. Era sua pá de estimação – sua posse preferida dos tempos de Highfield. Ele estendeu a mão para ela.

– Não tenha tanta pressa – disse o Primeiro Oficial, tirando-a do alcance, implicando com Will. – É sua com uma condição: quero que prometa que nunca mais vai me bater com ela!

– Combinado! – Will pegou a pá e examinou a lâmina muito polida.

Colly não saía do lado do Primeiro Oficial e agora se esfregava afetuosamente em suas pernas.

– Senti falta dela – murmurou ele.

– Ela vai ficar aqui com você quando partirmos – disse a sra. Burrows. – Não seria justo levá-la conosco.

– Claro. – O Primeiro Oficial concordou prontamente, acariciando a cabeça larga do animal e fazendo-a ronronar num volume ainda maior.

– Humm, tenho uma proposta a fazer, Celia – começou Drake, colocando de lado o sanduíche e erguendo-se da cadeira. – Estive conversando sobre isso com Will... E nós pensamos que você devia ficar na Colônia também.

– Tu-do bem – respondeu lentamente a sra. Burrows.

– Tenho todo o efetivo de que preciso para a missão – continuou Drake. – E você já nos deu uma ideia de como pode ser útil aos colonistas, agora que os Styx foram embora. No mínimo, com seus supersentidos, você seria inestimável como um sistema de alerta antecipado se os Styx tentarem retomar de onde pararam. Será capaz de sentir o cheiro deles se aproximando.

A sra. Burrows refletiu por um momento.

– Entendo a lógica disso – disse ela. – Sim, ficarei com eles.

Will se surpreendeu por ela ter tomado uma decisão tão rápida, mas o Primeiro Oficial ficou em júbilo.

– Excelente – repetia ele, batendo palmas com as mãos carnudas.

Enquanto todos pensavam em voltar a seus sanduíches, Drake continuou de pé.

– Tem mais uma coisa que preciso dizer a vocês. E isso envolve você também – disse ele, virando-se para o Primeiro Oficial.

Drake pegou uma pequena pasta executiva em sua Bergen e a levou ao balcão, onde a colocou sobre a superfície de carvalho gasta.

– Como sabem, nosso objetivo é lacrar o mundo interior com armas nucleares. Assim, a Fase... se tiver sido retomada ali... ficará plenamente contida.

Drake abriu os fechos da pasta. Dentro dela havia um cilindro de metal aninhado em um leito de espuma, que ele retirou.

– No ano que passei como prisioneiro nos Laboratórios, soube que os cientistas discutiam um vírus – disse Drake, depois sorriu. – Os acadêmicos gostam de se gabar uns com os outros.

– Não era o Dominion? – perguntou Elliott.

– Não, não era o Dominion. – Drake abriu a tampa do cilindro e com muito cuidado retirou um pequeno tubo de ensaio. – Os cientistas sabiam exatamente o que tinham desenterrado na Cidade Eterna. Fizeram estudos com uma série de cobaias e ficaram assombrados com os resultados. – Drake ergueu o tubo de ensaio. – Este sujeitinho é muito mais poderoso e mais indiscriminado do que o Dominion. Não só os humanos, mas também os Styx e muitas formas de vida mais desenvolvidas são suscetíveis a ele. É letal com L maiúsculo.

– E você o pegou nos Laboratórios? – disse Will.

– Sim. Quando Chester e eu invadimos o local e por acaso resgatamos Celia ao mesmo tempo, tive a oportunidade de pegar isto na câmara de segurança no laboratório secundário. Por isso me atrasei na cena e Eddie levou a melhor sobre mim. – Drake pensou numa coisa. – Aliás, nenhum de vocês precisa se preocupar... Todos foram vacinados contra o vírus quando eu lhes dei a injeção no Complexo. E quando eu estava em Londres, pedi que meu amigo Charlie transformasse isto numa arma... Então agora não é só transmitido por contato direto, mas também por gotículas aéreas.

– E isso significa que...? – interferiu a sra. Burrows.

Os olhos de Drake estavam um tanto desfocados enquanto ele olhava o fluido claro no tubo de ensaio.

– Pode se espalhar pelo ar... No vento. E duvido que haja alguma coisa tão letal ou tão tóxica em qualquer lugar de todo este planeta, dentro ou fora dele.

– Mas você a tornou pior quando virou uma arma... É sensato? – perguntou a sra. Burrows.

– Talvez não, mas, quando estivermos no mundo do coronel, se todo o resto falhar, posso precisar de um trunfo. Os Styx sabem o que este vírus representa. Eles sabem que trará o que a comunidade científica chama de Evento de Extinção... E isso quer dizer o fim da raça deles também.

Ele se virou para o Primeiro Oficial.

– O motivo para eu estar lhe contando isso é que tenho vacina suficiente para todo o seu povo. Há uma possibilidade... pequena... de que, se for liberado no mundo interior, possa um dia subir para a superfície. E vocês podem ser apanhados no caminho, se isso acontecer.

– E o povo da Crosta? – perguntou o Primeiro Oficial.

– Parry também tem a vacina – respondeu Drake enquanto recolocava o tubo de ensaio no cilindro de metal.

A sra. Burrows franziu a testa, cética.

– O suficiente para todos?

Drake fechou a pasta.

– Não, e não haveria tempo de vacinar a todos mesmo. Não tenho a mais leve intenção de soltar isto, mas faça uma pergunta a si mesma... – Ele recolocou a pasta na Bergen, depois se virou para todos, olhando cada um deles: Sweeney, o coronel Bismarck, Elliott, Will, o Primeiro Oficial e por fim a sra. Burrows. – O que é pior, este patógeno letal ou a Fase? Porque não acho que faça muita diferença.


Capítulo Vinte e Dois


O Trem dos Mineradores saiu da estação na Colônia e eles partiram para a primeira parte da jornada que os levaria pelo fundo das entranhas da Terra. Ao contrário da última vez, quando Will entrou clandestinamente em um dos vagões abertos, ele agora estava no vagão da guarda na ponta do trem. E embora as pranchas de madeira tortas que formavam as laterais e o teto do vagão tivessem numerosas frestas, pelo menos proporcionava certa proteção da fumaça e da fuligem expelidas pela locomotiva mais à frente, que começava a formar uma coluna de vapor.

Acima do ronco do motor, Will ouvia dois garanhões brancos e puros que relinchavam no vagão seguinte. O Primeiro Oficial os requisitou da residência de um dos Governadores – a autoridade os escondeu em seu estábulo pessoal durante os tumultos, sabendo que as massas famintas os devorariam na primeira oportunidade. O governador ficou fora de si de fúria quando o Machadinha apareceu com uma carta oficial do recém-formado Comitê dos Colonistas, embora não tivesse alternativa, a não ser deixar que os levassem. Os cavalos seriam de grande vantagem nas Profundezas; Drake queria cobrir a distância pela Grande Planície com a maior rapidez possível e os ferroviários lhe garantiram que devia haver uma carroça em algum lugar na Estação dos Mineradores para pegá-los.

O vagão da guarda era mal iluminado por um único globo com anteparo suspenso em sua traseira. Por algum tempo, Will olhou uma ou outra faísca que escapava pelo vagão, depois traçava um curto risco no ar, até se esgotar na invisibilidade. Vendo a vida breve dessas faíscas, Will se viu pensando no momento em que se separou de sua mãe. Não sabia bem o que mudou entre os dois, mas ela não lhe dera a despedida que ele teve em outras ocasiões. A sra. Burrows estava consciente dos riscos que o filho enfrentaria, entretanto simplesmente o abraçou mecanicamente e lhe desejou boa sorte.

E Will tinha de admitir que desta vez ele mesmo se sentia diferente por deixá-la.

Talvez os dois tenham mudado depois de tudo por que passaram. Ou, perguntou ele a si mesmo, seria porque estava amadurecendo e não precisava da mãe da mesma forma que antigamente? Ele ainda ruminava isso com o balançar do trem quando suas pálpebras ficaram cada vez mais pesadas e ele acabou adormecendo.

E à medida que a variação de temperatura aumentava com a maior penetração do trem na crosta terrestre, nenhum deles fez muito mais do que dormir e comer pelas vinte e quatro horas seguintes. Sua jornada foi interrompida várias vezes para que os cavalos fossem alimentados e bebessem água e para que imensos portões antitempestade ao longo dos trilhos fossem abertos, permitindo a passagem do trem.

Quando finalmente entraram na Estação dos Mineradores, Will viu que ela permanecia da mesma forma que em suas lembranças – uma fila em ruína de choças nada impressionantes. Ele saltou do vagão da guarda, com as botas esmagando a camada de minério de ferro, coque e resíduos de fornalha que cobria o chão. Respirando longamente pelo nariz, o ar árido evocava a época em que ele, Chester e Cal tinham entrado furtivamente nesta mesma caverna. E Bartleby. Todos morreram ou foram tocados pela morte, e por isso nenhum deles estava com Will naquele momento.

Ele ainda remoía a questão quando partiu para as choças da estação, mas teve de parar abruptamente. O antigo Will teria aproveitado a oportunidade para explorar as choças, mas ele descobriu que não desejava investigá-las. Simplesmente não parecia mais importante. Em vez disso, ele ajudou Sweeney e o coronel a descarregar o equipamento enquanto Drake procurava uma carroça com o maquinista da Colônia e seu assistente. Rapidamente localizaram uma e, depois que os cavalos foram atrelados e o equipamento posto em seu lugar, Elliott e Drake tomaram a dianteira, saindo da caverna e o coronel conduziu a carroça.

Will tinha mostrado ao coronel como usar um dos dispositivos de visão noturna de Drake, ajustando a lente sobre o olho para que ele enxergasse com clareza sem precisar de luz nenhuma. Depois Will encontrou um lugar para se sentar na traseira da carroça, atrás do equipamento, e pôs seu próprio dispositivo. Agora de volta àquele mundo familiar de luz alaranjada e vacilante, ele se encontrava bem satisfeito vendo as laterais do túnel passarem enquanto Sweeney corria atrás da carroça.

Aproveitando-se de seus sentidos aprimorados, Sweeney examinava o túnel a suas costas e verificava as passagens laterais, procurando por qualquer Limitador à espreita, quando seu olhar caiu em Will.

– Ei, preguiçoso – provocou-o o homem imenso. – Não se canse demais. – Will preparava uma resposta adequadamente indignada quando Sweeney continuou: – Sabe de uma coisa, eu simplesmente adoro este lugar.

– O que quer dizer? – Will se remexeu pouco à vontade com o suor que escorria por suas costas. – É quente e empoeirado... e fedorento.

– Claro – respondeu Sweeney. – Mas pela primeira vez em muito tempo, não recebo nenhuma interferência de rádio. – Ele tocou uma têmpora. – Você não faz ideia de como é ter um babaca de um DJ falando na sua cabeça dia e noite. Em algumas semanas não é tão ruim, mas de repente aumenta muito e eu tenho de ouvir o desgraçado do Chris Evans tagarelar sobre o que quero ou não. – Ele torceu o lábio, enojado. – Mas neste lugar não tem nem um sussurro... Não tem nada. Só a paz e o silêncio gloriosos.

Will assentiu para mostrar que compreendia.

– Sim, senhor, eu me vejo muito bem instalado aqui um dia desses – disse Sweeney.

Eles não encontraram vivalma – fosse humana, Styx ou Coprólita – ao darem na vasta caverna onde o chão era pontilhado de rochedos grandes em forma de lágrima.

Will tinha aproveitado a vantagem do declive para esticar as pernas e corria atrás da carroça junto com Sweeney.

– Ah, meu Deus! – soltou de repente o menino.

– Que foi? – perguntou Sweeney, olhando em volta. – Pegou uma coisa?

– Não, não é isso. Sei onde estamos... Eu esperava nunca mais vir a este lugar. Meu irmão morreu perto daqui. E minha mãe verdadeira também.

Sweeney ficou em silêncio por várias passadas.

– Que dureza, Will. Eu lamento.

Eles atravessaram um trecho de pavimento de pedra gasta e uma hora depois a imensa abertura no terreno entrou em seu campo de visão.

– Lá está... O Poro – disse Will melancolicamente a Sweeney.

Drake e Elliott tinham parado e esperavam que todos os alcançassem.

– Vimos uma coisa nova – informou Drake a todos. – Parece haver algumas cabanas junto do Poro.

Elliott tinha os olhos colados na mira noturna do rifle.

– Três... Três cabanas – confirmou ela.

– Conhecemos bem essa área e elas não estavam aqui antes – disse Drake. Ele passou anos nesta terra da noite eterna, os últimos junto de Elliott, e, observando-os agora, Will percebeu que estavam de volta a seu elemento. – Vamos investigar – disse Drake, e ele e Elliott avançaram novamente. O coronel Bismarck os seguia a certa distância, mantendo os cavalos num trote constante, enquanto Will e Sweeney continuavam procurando por qualquer Limitador.

Quando finalmente chegaram ao Poro, o dilúvio contínuo que caía do alto bateu na cabeça e nos ombros de todos, ajudando a refrescá-los. O chão perto das cabanas rudimentares era polvilhado de balões de ar quente murchos e ao lado deles uma plataforma de madeira se estendia por quase doze metros para o imenso vazio. Will, o coronel e Sweeney contornaram os balões arriados ao se aproximarem da ponta.

Sweeney assoviou ao tentar enxergar do outro lado do vazio titânico e, sem encontrar nada, olhou para baixo.

– Este... é... dos grandes. Você se jogou aí embaixo, não foi, Will? – perguntou ele.

– Na hora eu não tinha muitas opções – murmurou Will. Ocorreu a ele que estavam aqui para fazer precisamente o mesmo. A não ser que Drake tivesse uma ideia melhor, como usar um dos balões para levá-los à prateleira de fungos bem mais abaixo.

Enquanto refazia seus passos pela plataforma, Will repetia consigo mesmo “Eu não quero fazer isso”. E de fato não queria – a perspectiva de dar um passo pela beira e de novo cair de cabeça naquele vazio escuro o enchia de um pavor incessante. Ele procurou por Drake, vendo que estava envolvido numa conversa com Elliott. Os dois se calaram quando Will se aproximou.

– E agora, qual é o plano? – perguntou Will. – Vamos mesmo saltar no Poro? E como vamos saber se caímos o bastante para encontrar a passagem? – Ele estava furioso porque os dois pareciam tê-lo deixado no escuro, como sempre faziam antigamente, quando resgataram Will, Chester e Cal na Grande Planície. Depois de tudo por que ele passou, será que não tinha o direito de saber o que eles pretendiam fazer?

Drake sentiu a tensão na voz do menino.

– Por falta de qualquer alternativa, essa era a minha ideia original – respondeu ele. – Concordo que nossas chances de bater na prateleira de fungos correta, na profundidade exata, são no mínimo fracas. Principalmente porque não temos radiofarol para nos guiar.

Drake pegou um rastreador numa bolsa do cinto. Parecia uma pistola de aparência estranha, com um mostrador na ponta e um pequeno disco onde deveria estar o cano. O rastreador podia detectar sinais de VLF, ou frequência muito baixa, emitido pelos radiofaróis. Will tinha plantado esses faróis em vários pontos pela rota que tomou com o dr. Burrows e Elliott na primeira vez que encontraram de algum modo um caminho para o mundo interior.

– Já tem algum tempo que não vejo um desses – disse Will, enquanto Drake o apontava para o Poro e apertava o gatilho. Ele emitiu um único estalo, depois continuou em silêncio. Will franziu a testa. – Que estranho. Está funcionando direito?

– Deveria estar. Não se esqueça de que o radiofarol que você deixou no ponto de salto do segundo poro está a uma boa distância de nós – lembrou-lhe Drake.

– Sim, perto da Jean Fumarenta – disse Will, lembrando-se do nome que deu ao poro.

Drake assentiu.

– E também concordo com você que será meio na sorte fazermos um mergulho a esmo com as armas nucleares presas em nossos tornozelos.

Will estava de cara amarrada.

– Você não tem plano nenhum, tem? – Ele acusou Drake. – Só está improvisando durante a viagem!

– É assim que funciona – respondeu Drake.

Will balançava a cabeça com raiva.

– Puxa vida, que ótimo. Então você realmente não tem a menor ideia do que vamos fazer.

– Will – interferiu Elliott, estendendo a mão como se quisesse tocar seu ombro, mas baixando-a para apontar o chão. – Olha esses rastros onde você está. – Estava claro que alguma coisa pesada tinha passado por ali, porque as pedras foram pulverizadas. – Passou um monte de máquinas dos Coprólitos por aqui. – Ela ergueu o rifle para olhar pela mira. – E estou vendo uma delas ali... Perto da beira do Poro. Drake e eu achamos melhor fazer um reconhecimento.

Drake indicou os balões perto das cabanas.

– Os Styx deviam estar usando isso para subir e descer, mas, pelo estado em que se encontram, obviamente trocaram por outro método algum tempo atrás. E eu me pergunto como pode ser... Será que eles descobriram ou mesmo criaram uma rota alternativa? Acho que devemos a nós mesmos descobrir isso, não concorda? – Ele deu um soco de leve no braço de Will. – Satisfeito agora? – perguntou, sorrindo para o menino.

– Muito – respondeu Will, sorrindo também.

Com Will ao lado dele na carroça, o coronel Bismarck conduziu os cavalos pelas trilhas junto à beira do Poro. Will logo pôde distinguir a escavadeira dos Coprólitos. O corpo cilíndrico de aço amassado brilhava como mercúrio para o olho semicerrado por trás da lente.

Quando se aproximaram e o coronel reduziu o ritmo dos cavalos, não havia sinal nem de Elliott, nem de Drake perto da máquina.

– Onde eles estão? – perguntou Will, enquanto Sweeney alcançava a carroça. – E por que eles não mantêm contato pelo rádio?

– Espere aqui – respondeu Sweeney, partindo para descobrir.

Will o viu chegar à escavadeira e também desaparecer de vista. Passaram-se uns bons vinte minutos antes que os cavalos começassem a pisotear o chão e ficar agitados. E então Will ouviu o que pensou ser o ronco distante de um veículo. E parecia pesado.

– O que é isso? – perguntou ele, virando a cabeça e olhando em volta. – E de onde vem?

– Dali! – disse o coronel, apontando.

Onde Will tinha visto Sweeney pela última vez, apareceu uma escavadeira de Coprólitos. Vinha a toda velocidade para eles e o coronel teve dificuldade para controlar os cavalos. Ela parou, girando cento e oitenta graus, as pedras estalando embaixo das imensas esteiras que a movimentavam.

A porta traseira se abriu e Elliott e Sweeney saltaram na nuvem de fumaça emitida pelo escapamento da máquina.

– Conseguimos uma carona! – gritou Sweeney para Will.

Por acaso Drake tinha encontrado a escavadeira coprólita com combustível e pronta para uso. Will não questionou – ficou aliviado por ver uma alternativa a saltar no Poro.

Depois que todo o equipamento estava a bordo e bem amarrado, o coronel soltou os cavalos, vendo-os galopar para longe.

– Só espero que consigam voltar à estação – disse ele com pesar.

E então todos embarcaram na escavadeira. O interior do veículo era fabricado de metal batido – a maior parte dele estava suja, exceto por várias áreas em que brilhavam de seu uso constante. Will assumiu o lugar na tela da estação de navegação e um brilho vermelho era emitido de uma portinhola de inspeção na caldeira.

E então Drake, sentado na frente do veículo, empurrou e torceu uma alavanca para engrenar o motor e pisou no pedal. A escavadeira arremeteu e ele a conduziu para tomar a direção contrária. Will se juntou a Elliott e Sweeney para ver pela escotilha traseira do veículo enquanto o nariz da escavadeira descia um declive.

– Um túnel! – gritou Will acima do forte barulho do veículo.

Tinha aproximadamente doze metros até o teto e era igualmente largo.

– Os Styx reuniram alguns Coprólitos e os obrigaram a cavar isto aqui com suas megamáquinas! – gritou Elliott para eles. – Mas olha só o que vem por aí!

Eles passaram trovejando por várias escavadeiras estacionadas na lateral do imenso túnel. E então apareceram o que tinham de ser retroescavadeiras, pelas conchas instaladas na frente, e longas filas de reboques atrás delas. Will nunca tinha visto este segundo tipo de veículo, mas se lembrou de Drake dizendo que a raça de mestres da mineração tinha o cuidado de preencher as frestas e falhas abertas com o entulho à medida que escavava a rocha. Eles consideravam a terra uma entidade viva, tratando-a com respeito, sem querer causar danos excessivos com suas escavações.

Sweeney apontou.

– Ali!

Coprólitos – um grupo de cerca de trinta – estavam reunidos. Embora seus trajes cor de cogumelo e bulbosos fossem quase indistinguíveis da pedra que os cercava, uma luz era emitida pelos globos luminosos instalados nas aberturas dos olhos dos trajes.

– E alguns ex-Stickies – acrescentou Sweeney.

Will localizou os corpos de Limitadores esparramados no chão e olhou para Elliott, que assentiu. Estava claro que uma equipe de quatro homens tinha supervisionado os Coprólitos. Will se perguntava se Drake ou Elliott, ou os dois, tinha despachado os soldados Styx, quando Drake gritou da frente:

– Tudo bem! Preparem-se e apertem os cintos! – E então, quando todos estavam sentados e afivelados, ele pisou no acelerador.

A escavadeira era capaz de uma velocidade impressionante. Sweeney, Will e o coronel mantiveram a caldeira bem abastecida enquanto prosseguiam, sempre descendo por esse novo túnel.

Eles passaram pelo que devia ser um posto de controle de Limitadores. Só sabiam disso porque podiam ouvir as balas batendo no para-brisa grosso de cristal, dos soldados Styx que tentavam parar a escavadeira. Mas seus esforços foram completamente infrutíferos e todos no veículo riram e trocaram um sinal de positivo.

Elliott estava no banco do copiloto, ao lado de Drake, olhando continuamente o rastreador. Quando Drake soltou o acelerador para que Sweeney cuidasse da caldeira, Will aproveitou a oportunidade para abrir o cinto de segurança e ir até a frente.

– Pegamos um bom sinal! – gritou Elliott, mostrando a Will o ponteiro agitado no alto do detector.

Drake se curvou do banco do piloto.

– Se este túnel completa toda a descida, vamos chegar à Jean Fumarenta em tempo recorde! – disse ele. – Talvez em algumas horas!

Will franziu a testa.

– Mas a viagem da cabana de Martha até o submarino na Jean Fumarenta levou uma semana! – observou ele.

– Você estava seguindo as linhas de falha naturais e foi a pé o tempo todo. Isto é como uma toca de toupeira – disse Drake. – Vai direto.

Apesar das sacudidas de um lado a outro do veículo, Will cochilou em seu assento. Não tinha ideia de quanto tempo se passou quando foi bruscamente despertado por gritos. Logo percebeu que eles não percorriam mais um declive, estavam numa planície. E então ele viu uma área bem iluminada pelo para-brisa.

– Iiirraaa! – gritou Drake ao dirigir na direção de vários Limitadores em frente a uma espécie de cabana. Eles pularam para fora do caminho do veículo enquanto a escavadeira destruía a estrutura.

– Bem à frente! – gritou Elliott, olhando o rastreador.

Vários tiros atingiram todo o casco da escavadeira, depois uma explosão a ergueu no ar.

Ao pousar, Drake gritava e ria, mantendo o pé firme até o chão. Havia afloramentos rochosos pelo caminho, mas ele simplesmente os esmagava.

Os olhos de Will avistaram algo familiar. Embora ele não conseguisse ouvir o que ela estava dizendo a Drake, Elliott apontava para lá. Era o rochedo alto com o entalhe onde Will tinha escondido um dos radiofaróis e de onde seu pai tinha saltado na Jean Fumarenta.

Mas, por mais que se esforçasse, Will não conseguia imaginar o que Drake pretendia fazer agora. Os tiros continuavam a chover neles de trás, então de maneira nenhuma eles podiam parar ou voltar.

Eles estavam quase no vazio e Drake ainda mantinha o veículo a toda velocidade.

– Drake... O que você...? DRAKE! – gritou Will a plenos pulmões enquanto eles disparavam pelo rochedo alto onde estava escondido o farol. Will sabia que tinha razão, porque acabara de distinguir a série de estalos do detector na mão de Elliott.

Ouviu-se um estrondo no instante que o teto da escavadeira se prendeu na abertura lateral da Jean Fumarenta. Mas a escavadeira simplesmente esmagou a rocha.

E então eles não estavam mais em terreno firme.

Viravam para o vazio.

Caindo.

Drake desligou o motor e os deixou virando suavemente ao som apenas da corrente de ar.

– Continuem afivelados... Pode ser que a gente bata em alguma coisa – aconselhou Drake.

Algumas pedras soltas flutuaram pela cabine – mesmo agora a gravidade ficava menos intensa.

E, pelo para-brisa da frente, Will tinha o vislumbre de um brilho vermelho de veios de lava nas laterais do vazio.

– Seu doido desgraçado! – disse Will. – Nem acredito que você fez isso! – Mas ele ria.


Capítulo Vinte e Três


Ao mergulhar ainda mais, a escavadeira coprólita pegou a ponta de uma prateleira de fungos que se projetava da lateral da Jean Fumarenta, atravessando-a diretamente. A obstrução levou o veículo a virar de ponta a ponta. Todos se seguravam firmemente, mas o movimento os fazia se sentirem muito desorientados e cada vez mais enjoados.

Parecia que o pior estava reservado para eles.

A escavadeira girava inexoravelmente para a lateral do Poro. Prendendo o fôlego, eles observavam a paisagem sem fim pelo para-brisa, mas a colisão com a parede de pedra que todos temiam nunca veio. Em vez disso, a temperatura dentro da cabine foi às alturas devido à proximidade da rocha derretida. Will se perguntava seriamente se todos virariam churrasco ali mesmo onde estavam sentados quando, por sorte, a escavadeira vagou para longe dos veios de lava e voltou ao centro do Poro. E ao continuar, aproximando-se cada vez mais do fundo da Jean Fumarenta, o veículo se acomodou e agora mal rodava.

Em várias ocasiões, eles passaram por faixas de pedras suspensas e marteladas ecoaram pelo casco, como uma espaçonave atingindo cinturões de asteroides.

E então, com um último solavanco de impacto, a escavadeira parou. Um rangido crescente reverberava pelo veículo, mas pelo menos eles não estavam mais em movimento.

Drake abriu o cinto de segurança e flutuou para a porta traseira.

– Estão todos bem? – perguntou ele, olhando em volta. – Alguém acorde o Sparks!

Soltando o próprio cinto, Will se aproximou e cutucou o grandalhão.

– Já chegamos lá? – perguntou Sweeney, bocejando.

– Você é inacreditável – murmurou Will. Depois ele foi para perto da porta com Drake, que girou a maçaneta e empurrou. O gemido agora era ensurdecedor e enchia o interior do veículo. Enquanto Elliott, Sweeney e o coronel se juntavam aos dois, todos puderam ver que havia rochedos redondos subindo e descendo feito maçãs num barril de água.

Drake fechou a porta para que fosse mais fácil ouvi-lo.

– Muito bem. Vamos nos amarrar com uma corda, depois podemos partir por este seu cinturão de gravidade zero, Will.

– Humm, tem duas coisinhas que preciso dizer – começou o menino, nervoso. – Primeiro que isto é descomunal e é o que meu pai chamou de Cinturão de Cristal. Não sei realmente se vou conseguir encontrar o caminho.

Drake tinha o rastreador na mão. Ele o soltou, deixando que fizesse várias revoluções lentas no ar antes de pegá-lo novamente.

– Muito doido – disse Sweeney. – Nunca estive no espaço.

Drake moveu o rastreador, até que ele soltou uma série de estalos e o ponteiro se mexeu com um forte sinal. Apontava para o chão da escavadeira.

– Isso é do radiofarol que você deixou perto do submarino russo – disse ele.

– Nós pousamos de cabeça para baixo! – observou Elliott. Mas isso não fazia diferença para eles, já que a não havia gravidade alguma onde estavam.

Então Drake apontou para o lado contrário – para o teto do veículo. Embora a reação fosse muito mais fraca, o rastreador novamente registrou um sinal.

– E esse deve ser o radiofarol que você plantou na abertura do outro lado do cinturão, nosso caminho para o mundo interior do coronel. O que pode ser mais simples?

– Acho que sim – suspirou Will, ainda sem se convencer.

– E qual era a segunda coisa que você precisava dizer? – perguntou Drake.

– Não podemos atravessar dentro desta máquina coprólita? – propôs Will. – Seria mais seguro.

– Ela é pesada e quero conservar os propelentes nos jatos – respondeu Drake. – É melhor se tivermos pouca bagagem.

Com isso, todos se prepararam para a travessia. Como sobreviventes de um naufrágio, eles foram atados por cordas a uma jangada improvisada, que compreendia dois dispositivos nucleares e o resto do equipamento, tudo amarrado.

Quando saíram da escavadeira, Drake e Will tinham os jatos preparados. Como não havia jeito de eles se ouvirem com o barulho do Cinturão de Cristal, Drake apontou para Will, que virou seu jato e apertou um pouquinho o gatilho.

A chama azul disparou do funil e eles partiram, mas na direção inteiramente errada. Depois de várias outras tentativas, Will se sentia mais proficiente no uso do jato e os conduziu pelo agregado frouxo de rochedos onde a escavadeira tinha parado. Eles estavam saindo da Jean Fumarenta e disparando para o imenso vazio, com o bruxulear distante das luzes do Cinturão de Cristal a uma distância inimaginável à frente.

Will e Drake se revezavam nos jatos, com Elliott continuamente verificando a direção no rastreador.

Will passou bem ao largo do Cinturão de Cristal, intencionalmente, como ele e o dr. Burrows fizeram quando realizaram a mesma jornada. Os jatos eram muito mais eficazes do que o coice de um tiro da Sten. Will não sabia a que velocidade se deslocavam, mas o vento em seu rosto era tão forte que arrancava seu fôlego.

À medida que as horas se passavam e eles contornavam as luzes etéreas do Cinturão de Cristal, Will finalmente localizou a coluna de luz solar ao longe. Entendeu então que tinham conseguido chegar ao mundo interior.


Capítulo Vinte e Quatro


Quando eles saíram do cinturão de gravidade zero e entraram na abertura cônica, os raios do segundo sol faziam a tudo brilhar como se eles estivessem dentro da água. Will ainda disparava um pouco o jato para manter a velocidade enquanto Elliott fazia a leitura no rastreador. Não havia como Elliott ouvir os estalos do aparelho, porque o estrondo do cinturão de gravidade zero continuava a tragar tudo.

Meia hora depois, Drake sinalizou que deviam ir para a lateral do vazio. Assim que aterrissaram, ele e Sweeney se soltaram da jangada de armas nucleares e equipamento. Depois posicionaram uma das bombas atrás de uma pedra grande, prendendo-a com uma corda. Drake imediatamente abriu uma portinhola em sua lateral e a preparou para a detonação.

– Conseguimos. – Elliott suspirou, cansada, deitando-se na base rochosa.

– É. Nunca pensei que voltaríamos aqui. – Will arriou ao lado dela. Eles dividiram uma barra de chocolate e beberam água do cantil. Ouviu-se um gorgolejo alto e Will virou a cara, sem graça.

– Oooooohhhh – gemeu ele. – Está mexendo com meu estômago de novo.

– Com o meu também. – Elliott riu. – É a gravidade baixa, não?

Will não respondeu ao olhar em volta, tentando encontrar um aspecto na paisagem que reconhecesse da última vez em que estiveram ali. Ele pensou na prateleira onde ele, Elliott e o dr. Burrows pousaram, todos caindo imediatamente em sono profundo porque estavam completamente exaustos.

Will olhou as pequenas plantas alpinas à volta – elas se agarravam à base da escarpa com sistemas de raízes rastejantes parecidos com algodão desfiado e havia também várias árvores anãs com troncos torturados. Pela abundância da vegetação, ele sabia que deviam ter passado há muito da prateleira que procuravam. Percebendo que era inútil tentar encontrar alguma coisa conhecida – a vasta escala do lugar tornava isso muito improvável –, Will fechou os olhos.

– Está pensando no doutor? – perguntou Elliott com gentileza.

– O doutor? – Will piscou os olhos, abrindo-os novamente. Precisou de um momento para entender a quem Elliott se referia. Ela usava o apelido que ela e Drake deram a seu padrasto, o dr. Burrows.

– Acho que isso significa que você não estava – concluiu Elliott pelo silêncio dele.

– Não, não estava, e, sabe de uma coisa... Eu não penso muito mais nele – admitiu Will. – É estranho... Mas agora você tem seu pai de volta e para mim parece que o meu foi embora. Se todos aqueles anos de Luz Negra o deixaram do jeito que ficou, então tudo o que ele fez e disse não era realmente dele... E ele não parece mais tão... – Will franziu a testa, tentando se lembrar da palavra certa. – Importante... Tão importante mais para mim – disse ele por fim.

– Ele ainda era seu pai – lembrou-o Elliott.

Drake finalmente fechou o painel na cápsula da arma nuclear, recolocando os parafusos, e se juntou a todos. Sweeney e o coronel prenderam um arnês em volta da bomba restante para que fosse mais fácil carregá-la.

– Tá legal. – Drake soltou do cinto o detonador pelo rádio e apertou uma sequência de botões. Sweeney tinha um detonador idêntico na mão. – Tudo OK? – perguntou Drake.

– OK – confirmou Sweeney.

– Que bom... Temos uma bomba pronta para botar pra quebrar – anunciou Drake.

– Was ist das botar pra quebrar? – perguntou o coronel.

– Ah, desculpe, eu quis dizer que foi ativada – explicou Drake. – Também tomei a precaução de instalar um fusível de segurança no painel de inspeção e um vibrador. Assim, na improvável eventualidade de os Styx descerem até aqui e toparem com nossa surpresinha, ela vai explodir caso tentem abrir ou deslocá-la... E o trabalho estará concluído. Esta abertura vai virar uma massa imensa de sílica fundida e nada voltará a passar por aqui. – Ele se virou para olhar a escuridão do cinturão de gravidade zero. – De qualquer modo, esta não é uma rota viável à superfície para eles.

– E a segunda bomba? – perguntou Elliott.

– Você e o coronel Bismarck conhecem o terreno, então quero que me ajudem a localizar a passagem dos Antigos – respondeu Drake. Ele semicerrou os olhos para o sol. – Se usarmos os dois jatos a toda, podemos levar a bomba o mais longe possível ao topo. Depois vamos carregar o dispositivo pelo resto do caminho. E ainda bem que temos baixa gravidade.

Os jatos ajudaram, mas quando suas explosões frequentes não foram suficientes para contra-atacar a pressão crescente da gravidade, todos tiveram de colocar a mão na massa. Aos pares, eles se revezavam para carregar a arma nuclear pela subida de quarenta e cinco graus, e se passaram bem umas doze horas até que chegassem à imensa cratera que marcava o topo do vazio.

– Chegamos – disse Drake, colocando óculos escuros. – Espero que todos se lembrem de ter trazido filtro solar.

Eles estavam cobertos de terra vermelha e tão exaustos e doloridos da subida que mal conseguiam ficar de pé.

Sweeney esticou as costas com um gemido. Ao retirar o chapéu para limpar a testa, foi atingido por toda a força do globo celeste.

– Caramba! – Ele ofegou. – Como é forte. É pior do que a porcaria dos trópicos.

– Bem-vindo ao Jardim do Segundo Sol – disse Will. – Ou, segundo o que pensava meu pai, o Éden.

– É muito diferente do que eu penso do Éden – reclamou Sweeney, ao recolocar o chapéu e olhar as encostas que o cercavam, cobertas de uma mata irregular.

– Experimentem pular – sugeriu o coronel a Drake e Sweeney.

Os dois homens o olharam por um momento, depois Sweeney se agachou e saltou no ar. Atingiu três ou quatro vezes a altura que seria capaz de fazer na Crosta. Eles o ouviram gargalhar ao voltar à terra. De imediato ele pulou de novo, usando suas potentes pernas para se impelir ainda mais alto. Quando pousou, tinha uma alegria juvenil no rosto.

– No fim das contas, talvez este lugar não seja tão ruim. – Ele sorriu.

Drake, Elliott e o coronel Bismarck partiram com o dispositivo nuclear, enquanto Sweeney procurava um lugar onde ele e Will pudessem esperar. Ele escolheu uma depressão do lado da encosta mais próxima. Não havia exatamente muita proteção do sol, mas pelo menos eles não ficavam à plena vista, se algum Styx resolvesse aparecer.

Elliott não demorou muito para localizar o regato que os levaria à queda-d’água e à entrada da passagem dos Antigos. Mas, ao saírem da selva, o que os três viram os fez parar de imediato.

A cascata que protegia a entrada fora obstruída e não havia sinal do poço idílico com as libélulas iridescentes onde originalmente a água caía.

Mas não foi isso que os fez parar.

Até onde a vista alcançava, as árvores tinham sido derrubadas e a selva transformada em campos de lama endurecida pelo sol. E nesses campos fora reunido um número inacreditável de tanques, transportadores de tropas, armas de grande calibre e aeronaves militares, todos cuidadosamente arrumados em filas, como se estivessem prontos para entrar no túnel a qualquer momento.

– Meu exército. – Foi só o que o coronel Bismarck conseguiu murmurar enquanto balançava a cabeça com incredulidade.

– Não conseguimos chegar aqui a tempo – disse Drake. – Quando os Styx terminassem de alargar a passagem, este pessoal teria ido para a Crosta... Como brinquedos para a Classe Guerreira Styx. – Drake já passava os olhos pelas filas de equipamento. – E deve haver sentinelas espalhados por aqui... Precisamos entrar e sair com a maior rapidez possível.

Com Elliott de vigia, Drake e o coronel levaram a bomba para a passagem. Depois de Elliott se juntar a eles, Drake novamente usou o detonador por rádio para ativá-la, apertando a sequência de botões.

– Botar pra quebrar? – perguntou o coronel Bismarck.

Drake assentiu.

– Tudo pronto. Vamos voltar a Will e Sparks no ponto de encontro, depois todos podemos voltar para casa – disse ele.

– Eu estou em casa – observou o coronel Bismarck.

Will e Sweeney tinham ouvido o barulho de um trovão distante, mas então houve um forte estrondo, acompanhado um instante depois pelo clarão azul e intenso de um raio. Foi visível mesmo com a luz solar ofuscante.

– Caramba! Que zumbido! – Sweeney bateu a mão na lateral da cabeça. – Deu uma sacudida nos velhos capacitores.

– Então os raios também afetam você? – perguntou Will.

– Só se for uma baita tempestade elétrica – respondeu Sweeney.

– Bom, vai ter muitas destas neste lugar – disse Will. – Você vai ficar todo...

– Espere aí – interrompeu-o Sweeney enquanto pegava o walkie-talkie no bolso e lia a pequena tela de LCD. – É Drake. Eles não estão longe. Está quase na hora do show.

– E acabamos de chegar aqui. – Embora estivesse cansado, Will estava felicíssimo por sua missão estar quase encerrada e porque eles logo sairiam do mundo interior.

Ele e Sweeney colocaram suas Bergens. Quando partiram para a cratera, o vento aumentou e o sol ficou encoberto por nuvens negras e furiosas.

Sweeney localizou Drake e os outros saindo da linha das árvores ao longe. E enquanto os dois grupos se reuniam na beira da cratera, eles se viram no meio de um temporal.

– Que clima maravilhoso. – Drake brincou assim que se aproximou o suficiente deles. Tirando os óculos, ele piscou para a chuva nos olhos.

– Nenhum problema com os locais? – perguntou Sweeney.

Drake rapidamente contou a ele e a Will sobre a imensa quantidade de veículos de guerra neogermanos que eles viram esperando para ser transportados para a superfície.

– O fechamento da rota de passagem deve atrapalhar os planos dos Styx de uma vez por todas – disse ele. – E eles vão levar algumas décadas para conseguir escavar a passagem dos Antigos, porque a pedra será radiativa demais.

A água se acumulava em volta deles, já formando grandes poças no chão. A pouco mais de algumas dezenas de metros, um ferrão ofuscante de eletricidade bateu na terra com tanta potência que deixou uma pequena cratera fervilhante.

– Meu Deus! – gritou Sweeney, batendo na testa.

– Vamos descer, então? – propôs Drake, olhando a cratera por sobre o ombro, depois com preocupação para Sweeney.

– Eu não vou – anunciou o coronel abruptamente. Ele gritava para se fazer ouvir com o barulho do vento e da chuva torrencial. – Este é meu país. Quero tentar salvar o que puder.

– Mas como vai fazer isso, coronel? – perguntou Drake. – Inteiramente sozinho?

O coronel Bismarck indicou a sua Bergen.

– Tenho aqui um Descontaminador. Talvez eu possa desprogramar um número suficiente de meus homens para vencer os Styx.

Drake se aproximou dele e apertou sua mão.

– Boa sorte.

– E boa sorte para vocês – respondeu o coronel Bismarck, olhando para cada um deles.

– Deve ficar uma radiação mínima aqui das armas nucleares – disse Drake ao coronel Bismarck. – Fique o mais longe que puder, só por precaução. Você tem tempo, porque elas só serão detonadas quando estivermos no cinturão de gravidade zero. Eu vou...

Ele ia terminar a frase quando soou um tiro. O coronel Bismarck olhou o próprio peito, onde em um buraco o sangue se misturava com a água da chuva. Foi um tiro preciso no coração e não havia dúvida de que ele fora mortalmente ferido.

Enquanto ele caía no chão, todos se viraram para ver quem estava atrás.

– Ninguém vai detonar coisa nenhuma – disse Rebecca Um.

– Não! – Will arquejou.

Como se não bastasse que a gêmea Styx estivesse parada ali, ao lado dela estava Vane. Era a primeira vez que Will e Elliott viam uma mulher Styx. Seus olhos se arregalaram ao ver o rosto da mulher, estufado pelos três tubos de ovos que se contorciam em sua boca feito serpentes, e seus membros consistindo em não muito mais do que músculos e ossos, enquanto o abdome era enormemente distendido.

Ela e Rebecca Um eram flanqueadas dos dois lados por uma dupla de Limitadores, com as armas apontadas para Will e os outros.

– Vocês nem viram que nós chegamos de mansinho, não? – disse Rebecca Um num tom enjoativo. – Mas que negligência de sua parte, Drake.

Will notou que elas devem ter se aproximado pela aba interna da cratera. Devia haver um dos estranhos helicópteros de dois rotores Drache Achgelis escondidos na selva não muito longe de onde eles estavam.

– É um prazer enfim conhecê-la pessoalmente – disse Drake com severidade. Ele tinha o fuzil de assalto pendurado no ombro e as mãos nos bolsos. Will nem acreditava que ele aparentava tanta tranquilidade, em vista das circunstâncias. – Como vocês sabiam que estávamos aqui? Pegaram os sinais de rádio? – perguntou Drake.

Rebecca Um meneou a cabeça.

– Fui eu – disse Vane, com o fluido espirrando dos lábios pretos e rachados. – Senti o cheiro de outra vaca. – Ela encarava Elliott. – Por que não se juntou a nós na Fase?

– Eu? – murmurou Elliott, sem saber o que dizer.

– Meu Deus, a gárgula também fala! – interrompeu Sweeney, sorrindo para Vane.

A cara de Vane se vincou de fúria e ela se ergueu na direção dele, com três pares de membros de insetos se debatendo e saindo de seus ombros.

– Essa é nova – cochichou Will enquanto Elliott olhava rapidamente para ele.

– Eu... quero... ele – grunhiu Vane para Sweeney, com um dos tubos de ovos se projetando da boca. – Quero colocar meus bebês nele.

Sweeney riu com ironia.

– Essa é uma oferta que não posso recusar.

Os membros de inseto de Vane bateram furiosamente com essa impertinência.

Rebecca Um colocou a mão no braço da mulher Styx.

– Tudo tem sua hora, Vane. Primeiro, somos todos profissionais, então não creio que vocês ficarão muito surpresos se eu quiser que baixem as armas. Meus homens têm vocês na mira, então não banquem os engraçadinhos.

Pensando que estava tudo acabado, Will e Elliott iam obedecer, quando Drake falou. Tinha tirado as mãos dos bolsos.

– Não – disse ele.

– Ai, francamente. – Rebecca Um soltou um forte suspiro. – Não vamos prolongar isso. Vocês não podem escapar... E eu tenho outro destacamento pelo caminho. Olhem vocês mesmos, se não acreditam em mim.

Will e os outros se viraram para averiguar. Pela lateral da cratera, devia haver uns quarenta soldados neogermanos correndo em formação, sob a liderança de um Limitador. Estavam a minutos de distância.

A chuva continuava a cair e Drake ergueu lentamente os braços.

– Não, não vou fazer o que você quer. Nesta mão tenho um detonador – disse ele com frieza. – Um apertinho de nada, as bombas explodirão e vocês serão varridos deste mundo para sempre. E se acha que é capaz de me impedir com um tiro, dê uma olhada no que o Sparks está segurando.

Sweeney ergueu o detonador idêntico.

– Se não for o suficiente, tenho algo muito especial de seus Laboratórios na outra mão – disse Drake. Enquanto o revelava com um floreio, o clarão azul de um raio se refletiu no pequeno tubo de ensaio.

Ele agora tinha a atenção da Rebecca Um.

– O que é isso? – perguntou ela.

– Peguei das câmaras em seus Laboratórios antes de destruir o prédio. Ouvi boatos dos cientistas de que vocês tinham algo assim. Você sabe como os acadêmicos gostam de se exibir. – Drake sacudiu o tubo de ensaio, girando o fluido dentro dele. – Meu amigo imunologista me disse que é o patógeno mais virulento que ele já viu. Disse ainda que a perspectiva de ver essa coisa à solta o fazia tremer, porque é capaz de matar cada forma de vida complexa do planeta. Foi por isso que os cientistas nunca o soltaram, por ser tão indiscriminado? Porque mata também os Styx? – Drake sorriu. – E isso lembra alguma coisa a você, Becky, benzinho?

– Não me chame assim. – Ela estava enfurecida, mas sua petulância tinha se esgotado.

– E meu amigo Charlie deu uma mexida nele. Com um pouquinho de manipulação genética, agora não é propagado unicamente pela água, mas também pelo ar. Então pode se espalhar pelo vento e matar em questão de horas. Uma coisa muito desagradável. – Drake ergueu as sobrancelhas. – E vocês têm vacina contra isso? Não? Foi o que pensei. Que pena... Todos nós temos.

– Você está blefando – disse Rebecca Um. Ela se virou para Vane. – Ele está blefando. Ele não usaria o vírus porque pode subir à superfície. Ele não correria esse risco. – Ela se virou para Drake. – Não importa o que você diga, porque de maneira nenhuma vou voltar atrás. Então vamos ficar num impasse completo aqui.

De repente, uma linha no chão pareceu se abrir atrás de uma das duplas de Limitadores. Will teve o mais breve vislumbre de um homem extremamente magro com uma barba desgrenhada e a cara mais branca do mundo. O homem pegou completamente desprevenido o primeiro dos dois Limitadores, cortando a garganta do soldado Styx.

– Jiggs! – exclamou Drake.

O segundo Limitador teve mais tempo para resistir; enquanto lutavam, ele e Jiggs se viraram para dentro da cratera e sumiram de vista.

Sweeney tirou proveito da distração, cobrindo o terreno a uma velocidade sobre-humana. Num borrão, desarmou os outros dois Limitadores e literalmente arrancou do tronco a cabeça de um dos soldados usando só as mãos.

Embora tudo tivesse acontecido em pouco mais do que um piscar de olhos, Will se permitiu pensar que talvez eles estivessem livres.

Até que a gêmea Styx gritou para ele:

– Você não vai se safar dessa, Will! – gritou Rebecca Um. – Não desta vez!

Ela havia sacado a arma e apontava diretamente para ele.

Will ficou petrificado.

O dedo de Rebecca Um apertou o gatilho.

Num segundo, Drake agiu.

– Sparks! – gritou, jogando o tubo de ensaio para ele enquanto se colocava no caminho da bala destinada a Will. Ela pegou o ombro de Drake, mas seu impulso foi suficiente para empurrá-lo para a frente. Enquanto Rebecca Um se preparava para um segundo tiro, Drake a jogou junto dele para dentro da cratera.

Vane tinha se unido à briga, os olhos postos em Elliott. A mulher Styx investiu para a menina, derrubando-a no chão. Os tubos de ovos estavam fora e tentavam se inserir na boca de Elliott.

Will tinha a Sten preparada e tentava obter um alvo claro da mulher Styx. Mas Vane sabia disso e não parava de rolar, levando Elliott consigo. Will baixou a Sten, tentando, em vez disso, arrancar a mulher com as mãos.

Mas, como se tivessem vontade própria, os pares de membros de inseto o atacavam como arame farpado animado. Enquanto ele se aproximava de Vane, um dos membros bateu em seu rosto, abrindo um corte na bochecha.

Um tubo de ovo entrou pela boca de Elliott. A menina gritou alarmada, mas o grito saiu distorcido.

Will via uma bolsa se espremendo tubo abaixo.

– Vem cá, lourinha – grunhiu Sweeney. Ele arrancou Vane de Elliott, os membros de inseto da mulher unidos em uma de suas mãos imensas. A mulher Styx não pôde fazer nada ao ser erguida do chão, com as pernas se debatendo inutilmente.

Sweeney se virou para o Limitador Styx e os soldados neogermanos que se aproximavam, com Vane suspensa no ar. Ela gritava feito um demônio, espirrando líquido para todo lado.

– Parem agora mesmo, ou vou esmagar a feiosa aqui com meu pé! – gritou ele.

O Limitador hesitou.

– Se manda, Sticky! – gritou Sweeney. – Não me obrigue a repetir!

O Limitador não sabia muito bem o que tinha acabado de acontecer, mas na ausência de qualquer outra ordem não podia colocar em risco a vida de Vane. Então ele e o esquadrão neogermano voltaram ao local de onde vieram.

– Drake! – Elliott ofegava ao se levantar. Ela e Will partiram para a beira da cratera e olharam. Embora tivessem caído uma boa distância, eles podiam ver que Drake e Rebecca Um ainda estavam embolados numa briga.

Eles caíam, cada vez mais, girando vertiginosamente. O braço de Drake estava quebrado na altura do ombro e ele não conseguia mexê-lo. E embora sua mão estivesse dormente e os dedos não respondessem, ele não soltava o detonador. Com o outro braço, tentava impedir Rebecca Um de lhe dar um tiro.

Mas ele perdia sangue e se sentia sucumbir ao choque. Invocando suas últimas reservas de energia, ele conseguiu arrancar a pistola da mão da Rebecca. A arma saiu girando, mas agora Rebecca tentou arranhar seu rosto e os olhos com as unhas.

Ele teve um vislumbre da lateral do vazio, um borrão vermelho que parecia passar por ele num clarão. Drake percebeu o quanto os dois tinham caído.

Ele sabia que não devia estar muito longe do dispositivo nuclear que tinha plantado.

Mas não sabia se Sweeney o detonaria quando ele estava diretamente no raio da explosão.

Drake não podia correr esse risco.

Neste momento, Drake entendeu que provavelmente perderia a própria vida.

Rebecca Um o impedia de alcançar o detonador com a mão saudável. Mas ele precisava pegá-lo de algum jeito.

Foi quando ele se lembrou do jato preso na lateral da Bergen. Ele parou de proteger o rosto do ataque cruel da gêmea, depois conseguiu soltar o jato e fazê-lo disparar. A mistura de propelentes ainda estava ajustada no máximo, de quando ele a usou pela última vez.

Ele e a gêmea Rebecca desceram acelerado pelo resto do vazio, atingindo rapidamente uma velocidade arriscada.

Drake virou o jato para que eles passassem a rodar. Seu braço flácido entrou em seu campo de visão e ele o alcançou.

Eles ainda se deslocavam numa velocidade inacreditável quando ele desligou o jato e tirou o detonador dos dedos entorpecidos.

Ele e Rebecca Um quase tinham chegado ao cinturão de gravidade zero. Drake sabia que ainda estava muito perto do dispositivo nuclear.

Mas isso agora não importava.

Ele apertou o botão para armar a bomba.

O detonador na mão de Sweeney bipou ao pegar o sinal.

Ele olhou.

– BOMBA! – gritou Sweeney para Will e Elliott. – SAIAM DAQUI AGORA!

Eles não iam discutir com Sweeney.

Dispararam da beira da cratera, e a baixa gravidade ajudou-os a fugir.

– Foi bom conhecer você, Becky – disse Drake à gêmea Styx quando eles deixavam o vazio e entravam no cinturão de gravidade zero, ainda a uma velocidade fenomenal.

Ela notou que ele sorria.

Depois ela viu que seu dedo estava posicionado no botão do detonador.

Seus lábios começaram a formar a palavra “não”, mas ela não conseguiu pronunciá-la quando Drake apertou o botão.

Houve um clarão ofuscante, como o brilho de mil sóis.

Sweeney rodou para a frente dele a mulher Styx que se debatia.

– Não dá tempo de eu sair.

Ele aproximou Vane de si.

– O campo magnético vai fritar meus circuitos.

Ele contemplou os tubos de ovos retorcidos da mulher Styx que gotejavam fluido. Sabia que devia matá-la, mas nesse momento a vida se tornara sagrada para ele. Toda a vida.

– Dá aqui um último beijo, queri... – sussurrou ele a Vane.

O dispositivo nuclear explodiu no vazio e o pulso eletromagnético o tomou.

As grades na cara de Sweeney imediatamente adquiriram um calor branco, queimando a pele em volta delas, e duas colunas de fumaça saíam de suas orelhas.

Depois, enquanto os circuitos chegavam a um ponto crítico, a cabeça simplesmente explodiu. Como uma imensa árvore derrubada, ele tombou, levando a mulher Styx.

A terra se sacudiu e uma torrente de poeira e destroços disparou da cratera. Mas isso durou menos de um segundo, o tempo para o fundo do vazio se fechar em si mesmo.

Vane tentava se soltar do homem imenso e ria consigo mesma. Tirando algumas costelas quebradas, ela acreditava ter escapado.

Mas no abalo secundário da bomba, ela não ouviu o tinido mínimo de vidro no instante em que Sweeney caiu no chão, quebrando o tubo de ensaio no bolso da calça.

Quando o General Limitador chegou à cena meia hora depois, Vane tinha lesões na pele e tossia sangue. Ele tentou descobrir dela o que tinha acontecido, mas ela estava febril demais e não dizia coisa com coisa.

Naturalmente ele pensou que fosse doença da radiação, até que o Limitador Styx e a guarnição de neogermanos, que estavam na cratera, começaram a mostrar sintomas idênticos. Mas, em tese, eles não estavam perto o suficiente da explosão para que fossem tão afetados.

Em doze horas, Vane e cada um dos soldados morreram da febre.

O próprio General Limitador, tendo voltado à cidade da Nova Germânia, desmaiou e morreu pouco depois.

E, soprado pelos ventos secos, o patógeno se espalhou.

E se espalhou.


Capítulo Vinte e Cinco


À mesa da cozinha, Stephanie folheava uma revista que leu mais vezes do que conseguia se lembrar. Quando o avô entrou, ela levantou a cabeça, com expectativa.

– Alguma notícia? – perguntou.

– Falei com Parry, mas acho que ele ainda não sabe de nada – disse o Velho Wilkie, colocando o telefone por satélite no armário de louça.

– Nada? Então ainda não sabemos se Will está bem.

O avô balançou a cabeça. Abriu o saco e pegou dois coelhos que tinha acabado de caçar e os colocou na mesa. Stephanie torceu o nariz, enojada.

– Como está indo o Chester? – perguntou o Velho Wilkie.

– Na mesma, na mesma. Só fica sentado lá, como sempre.

O Velho Wilkie assentiu.

– E aqueles livros que eu trouxe para ele? Parry disse que ele gosta de ler.

– Ele está tipo tanto faz. Mas eu posso entender. Comecei a ler um deles, chamado... – Ela tentou se lembrar do título – A toupeira das Highlands ou coisa assim. – Ela revirou os olhos enquanto botava a língua para fora. – É tipo totalmente irreal. – Balançando a cabeça, ela baixou os olhos para o artigo da revista que lia pela enésima vez, cismando com o título X Factor: O futuro do talento britânico.

– Ele gosta desse tipo de livro – argumentou o Velho Wilkie. – Vá ficar um pouco com ele, sim? Veja se consegue que ele fale.

Soltando um suspiro, Stephanie fechou a revista com um baque e se levantou da mesa. Ao chegar à porta, abriu uma fração para espiar a sala ao lado. Chester simplesmente olhava pela janela, para o céu acima do mar.

Enquanto Stephanie entrava, ele rapidamente ergueu o livro no colo. Não a olhou, fingindo estar envolvido na história.

Stephanie o observou por um momento. Ele perdeu muito peso nos meses em que estavam no chalé. E embora houvesse uma vista espetacular dos penhascos ali em Pembrokeshire, ele nunca se arriscou a sair. O velho Chester teria gostado de lá, provavelmente daria longas caminhadas pelas trilhas costeiras.

Mas não agora. Ele não queria falar com ela, nem com ninguém. Não tinha mais nenhum interesse por nada. Só queria ficar sozinho com sua tristeza.

Stephanie se virou e voltou para a cozinha, onde o avô estripava o primeiro dos dois coelhos.


Bem no alto da pirâmide, no fundo da selva, Will estava de frente para onde sabia que ficava a cidade da Nova Germânia.

– Não quero voltar lá. Nunca mais – disse ele. – Foi horrível.

Elliott se colocou ao lado dele.

– Não diga isso... Talvez a gente precise pegar mais suprimentos.

Mas ela também não parecia muito satisfeita com a perspectiva de uma segunda expedição para pegar comida enlatada e roupas das lojas silenciosas. Juntos, eles andaram pelas ruas desertas e infestadas de moscas, com o fedor da morte nas narinas aonde quer que fossem.

– Temos tudo o que precisamos bem aqui – insistiu Will, baixando o olhar para a antiga base na árvore gigantesca, onde eles voltaram a morar.

Um bando de papagaios azuis se reunira nos galhos baixos ao lado. Vinham todo dia, na esperança de pegar restos de comida. Ou talvez fosse porque não só todos os humanos e os Styx foram eliminados pelo vírus, mas também a maioria das espécies mamíferas do mundo interior e elas simplesmente procurassem a companhia de outros seres vivos.

Um dos papagaios grasnou alto, como se reclamasse de ter de esperar por alguns restos.

– Vi um dos bosquímanos hoje de manhã – disse Will.

Elliott o olhou. Com todos os outros predadores eliminados no mundo interior, a estranha raça de humanoides, com sua pele amadeirada, era a única coisa que representava uma ameaça para eles.

– Não estava longe da fonte. Eu tinha pisado no que pensei que fosse um tronco no chão, quando vi que tinha olhos. Então parece que eles estão todos mortos também. – Will suspirou. – Só sobraram nós, as aves e os peixes.

Ela assentiu.

– E por falar em peixe, adivinha o que temos para o almoço.

– Humm... Peixe? – disse Will, entrando na dela.

– Não. Manga – respondeu Elliott, rindo e fazendo uma careta. Ela ficou em silêncio por um momento. – Você não estava procurando o doutor de novo, estava?

Will acreditava que os Limitadores tinham largado o corpo do pai na selva, em algum lugar perto dali, e estava decidido a encontrá-lo. Ele e Elliott tinham enterrado o coronel Bismarck e o que restou do corpo de Sweeney junto da fonte.

Sem ter consciência do que fazia, Will se virou para o lugar no alto da pirâmide onde o pai foi baleado pela Rebecca Dois.

– Sim, estava – confessou ele. – Mesmo que papai não fosse quem eu pensei que era, ele tem o direito a um enterro decente. Eu devo isso a ele.

– E você? – perguntou Elliott da repente. – E se os Styx, todos aqueles anos atrás em Highfield, tivessem usado a Luz Negra em você e o transformado em outra pessoa... Em alguém por quem eu me apaixonasse?

– O quê? – disse Will rapidamente, virando-se para ela.

– Você ouviu bem – disse ela baixinho, passando os braços por ele.

E ele fez o mesmo, abraçando-a com força.


Epílogo

– Emma, lamento se não deu certo para você – disse Rebecca Dois, enquanto mantinha a porta aberta para a menina de pernas compridas e cabelos fulvos.

– Eu também lamento – respondeu Emma, com o pesar evidente nos olhos.

Uma hora antes, ela estava na sauna com Hermione, aumentando o calor enquanto uma humana transformada pela Luz Negra estava jogada a seus pés. Tinha sido a massagista que trabalhava no spa, uma espécime escolhida por seu corpo musculoso.

Mas, apesar da proximidade com Hermione, Emma não mudou. Ela experimentou as pontadas de dor nos ombros e a sensação de vômito na garganta, onde se aninhava seu tubo de ovos ainda não desenvolvido, mas não passou disso.

Ela ainda não foi induzida simplesmente porque não estava pronta para a Fase.

– Não desapareça – disse Rebecca Dois enquanto Emma ia para o carro que a aguardava. A menina estava desapontada e não respondeu ao entrar no veículo. Ia voltar à escola de elite para meninas como se nada tivesse acontecido, e nem a família da Crosta tinha a menor ideia de onde ela passou o sábado.

Rebecca Dois, ainda do lado de fora no frio do final da tarde, viu o pires cinzento do sol que baixava lentamente no horizonte. De repente, lágrimas começaram a se acumular em seus olhos.

Ao voltarem à Crosta, confirmou-se por uma patrulha de Limitadores que a passagem para o mundo interior era intransponível, lacrada pelo que eles pensavam ser uma explosão nuclear. Uma segunda patrulha de Limitadores teve a tarefa de realizar a jornada imprevisível pelo cinturão de gravidade zero, mas ainda não deu notícias. Isso podia se dever ao fato de terem perecido na tentativa, mas Rebecca Dois, de qualquer maneira, não esperava boas notícias.

Ela estava com essa sensação havia semanas. Era como se parte dela de repente tivesse sido removida e, em seu lugar, houvesse uma sombra escura. Algo saiu terrivelmente mal e a irmã gêmea estava em dificuldades. Ou morta.

Ela simplesmente sabia.

Enquanto Rebecca Dois fungava e enxugava os olhos, o Velho Styx apareceu a seu lado. Olhou-a demoradamente. Não era típico dos Styx demonstrar uma emoção dessas e ele podia tê-la repreendido se não tivesse questões mais prementes a tratar.

– Você precisa ver isso.

Ele a levou para dentro do prédio, subindo a escada para a área de observação na extremidade da piscina.

Rebecca Dois olhou para baixo e viu que a água era de um marrom turvo do sangue e da decomposição de muitos cadáveres nas passarelas em volta da piscina. Larvas de Guerreiro roliças deslizavam pelos ladrilhos, e outras já entravam na fase de pupa, suas crisálidas penduradas nas paredes.

– E então? O que estou olhando? – perguntou ela rispidamente.

– Ali – disse o Velho Styx.

Ela acompanhou seu olhar a um canto distante da piscina. A água entrou em ebulição e depois, com muitos respingos, algo explodiu da superfície e caiu ao lado.

Enquanto escorria água suja, ela pôde ver uma forma do tamanho de um homem, mas era quase transparente, como um camarão. Fluidos claros eram bombeados em volta de seu corpo enquanto as guelras se abriam em leque e ele soltou um uivo que Rebecca Dois nunca ouviu na vida.

– Então não é só um mito – sussurrou ela, assombrada. – É o Armagi.

 

 

                                                   Roderick Gordon & Brian Williams         

 

 

 

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