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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESPIRAL DOURADA / Nuno Crato
ESPIRAL DOURADA / Nuno Crato

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Os professores também se enganam. Mesmo nos romances. Ou talvez sobretudo nos romances. Assim acontece com Robert Langdon, personagem vertiginosa do vertiginoso livro de Dan Brown. Em múltiplas cenas d'O Código Da Vinci, o professor de simbologia de Harvard aventura-se em longas explicações matemáticas e astronómicas. Desfia temas fascinantes, mas comete algumas imprecisões e erros.

Milhões de pessoas leram o romance de Dan Brown. Milhões discutiram as suas pouco ortodoxas teses sobre a vida de Jesus e as origens da Igreja. A polémica gerada por esses temas, fascinando a imaginação de uns e ferindo as susceptibilidades de outros, constitui certamente um dos segredos do sucesso da obra. Pouca gente, no entanto, discutiu as múltiplas referências científicas do livro. Com excepção de um curto artigo do matemático Keith Devlin na revista Discovery, em Junho de 2004, de nada se falou.

Não se esclareceu a verdade sobre o meridiano de Paris, nem sobre o gnómon de St. Sulpice. Não se explicaram as fascinantes propriedades da sucessão de Fibonacci e do número de ouro. Não se separou a verdade da ficção sobre a estrela de cinco pontas que Vénus desenha no céu.

É pena que esses temas não tenham sido discutidos e clarificados. Como se espera tornar claro neste livro, muitas das referências de Dan Brown são precisas e correctas. É mesmo surpreendente que num romance de aventuras se fale com tanta seriedade sobre a meridiana da igreja parisiense e sobre os números da natureza.

No entanto, outras referências são vagas ou mesmo erróneas. Nestes casos, a realidade consegue ser mais fascinante do que as fantasias de Dan Brown. Imagina-se o que autor d'O Código Da Vinci não teria escrito se soubesse a verdadeira conspiração que levou à arquitectura da meridiana de St. Sulpice ou se percebesse que o número de ouro é uma quantidade que jamais alguém será capaz de escrever com absoluta precisão. O romance nada teria perdido. E teria ganho muito.

O leitor tem também a ganhar em conhecer a verdade sobre os números de Fibonacci, a verdadeira história do meridiano de Paris e outros temas matemáticos e científicos que fascinaram tantos leitores e que levaram à redacção deste pequeno livro.

Tal como acontece com o mítico pentáculo, este livro tem cinco pontas. No primeiro capítulo, explica-se o que são meridianos e a razão por que o meridiano de Paris foi muito importante para os franceses. No chão da cidade, essa mesma linha foi recentemente marcada com medalhões que celebram um famoso astrónomo parisiense. Um seu antecessor à frente do Observatório de Paris foi um italiano que deu origem à mais longa dinastia conhecida de astrónomos. E foi ele que em Bolonha planificou uma meridiana célebre, antecessora da que viria a ser construída na Igreja de St. Sulpice.

O segundo capítulo leva-nos ao fundo do mistério, a uma estranha aliança entre astrónomos partidários de Copérnico e padres esclarecidos. A verdade está estendida numa linha que atravessa a segunda maior igreja de Paris e num obelisco que se eleva numa das suas extremidades. Mostra-se como essa linha servia para medir as oscilações do eixo da Terra e como a fúria destruidora da Revolução Francesa delapidou informação contida nesse obelisco. A verdade histórica é de novo mais fascinante que a ficção.

No terceiro capítulo fala-se do movimento aparente de Vénus e dos cinco deuses maias que correspondem a cada uma das figuras desenhadas pelo planeta. Explica-se o que é o período sinódico e a possível ressonância de Vénus com a Terra. Ajuda-se a contar o número de vezes que o ponteiro dos minutos alcança o das horas. Depois de ler este capítulo perceber-se-á a relação que existe entre todos estes fenómenos.

O quarto capítulo explica quem foi Fibonacci e como esse homem de ciência italiano nos ensinou a contar. Fala de coelhos viciados em sexo e da forma como esses animais andaram a gerar números que aparecem nos ramos das árvores e nos teclados dos pianos. Explica o que é uma sucessão e que tem a sucessão de Fibonacci a ver com os ananases.

A dar a volta à estrela de cinco pontas, o capítulo final fala de um número misterioso que alguns já viram na arquitectura grega e que muitos acreditam ter inspirado os desenhos de Leonardo da Vinci. Esse número teve vários nomes divinos e dourados. Os matemáticos representam-no com uma letra grega que muitos não sabem escrever', mas que todos podem ver nas conchas de uns animais aquáticos que inspiraram a invenção dos submarinos.

Como esperamos ter mostrado, alguns dos fascinantes temas referidos por Dan Brown fornecem uma excelente oportunidade para discutir tópicos sérios de ciência e de matemática.

 

 

 

 

                   A linha da rosa

 

O que é a rosa-dos-ventos?

“Durante séculos, o símbolo da rosa estivera associado aos mapas e à função de guiar as almas na direcção correcta.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Nos mapas marítimos antigos instituiu-se pouco a pouco o hábito de traçar os rumos cardeais para facilitar a navegação. Além de linhas verticais e horizontais, que mostravam as direcções norte-sul e este-oeste, começaram a traçar-se outros rumos, representando direcções

intermédias.

Nas bússolas — que, ao que parece, foram inventadas na China e introduzidas na Europa por via dos árabes —, os europeus introduziram uma inovação prática, que foi o desenho desses rumos. Por cima do que a princípio era apenas uma agulha magnética rodando sobre um pedaço de bambu ou cortiça, colou-se um papel ou cartolina com as direcções cardeais desenhadas. Dessa forma, era mais fácil aos pilotos orientarem-se. Possivelmente por aos rumos corresponderem ventos — vento norte, vento sul... — as duas palavras começaram a ser usadas como sinónimos. Rumos, ventos e direcções cardeais são apenas formas diferentes de falar da mesma realidade.

 

Figura 1.1 — Rosa-dos-ventos ao largo da foz do Tejo. Pormenor do mapa de Lucas Janzoon Waghenaer, datado de 1583 (1586, no actual calendário)

 

Tanto nos mapas como nas bússolas, começou a tornar-se hábito desenhar os rumos de forma artística. Nasceu a rosa-dos-ventos, na realidade apenas uma representação das direcções principais. Na Grécia Antiga, essas representações usavam dois, quatro, oito ou doze rumos ou ventos. Mais tarde, já no século XIV, começaram a usar-se 16; depois, 32. Na sua forma definitiva, que perdura nas bússolas e nos mapas modernos, a rosa-dos-ventos passou a ter 32 rumos.

Para destacar o Norte, ele passou a ser adornado com uma flor-de-lis. Os napolitanos, que reclamam ter sido um amalfitano, Flávio Gioia, quem pela primeira vez, cerca de 1302, modificou uma bússola de forma a poder usá-la com facilidade num navio, dizem que essa flor-de-lis foi inspirada no brasão da cidade.

Há muitas formas de desenhar a rosa-dos-ventos. No Museu de Marinha, em Lisboa, podem ver-se várias composições artísticas e na loja do Museu compram-se postais que reproduzem alguns dos desenhos mais famosos.

O nome rosa-dos-ventos deriva pois de uma semelhança desse símbolo ornamentado com uma flor. Cada rumo é uma pétala na flor dos rumos possíveis. Não existem registos históricos que indiquem alguma relação entre o símbolo cartográfico e marítimo e os rosacrucianos. Mesmo que, para alguns, tal relação exista, o uso da rosa-dos-ventos não está em geral conotado com nenhum grupo ou seita.

 

Existe alguma linha da rosa?

“Havia, evidentemente, um número infinito de linhas-da-rosa, uma vez que qualquer ponto do globo podia ser atravessado por uma longitude ligando os pólos Norte e Sul.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Chamar linha da rosa a um meridiano é uma liberdade poética que não encontra fundamento em nenhuma prática de navegação nem em nenhum hábito cartográfico nem, ao que sabemos, em nenhum uso cabalístico. É uma ideia que pode funcionar no romance de Dan Brown, mas a que é difícil associar algo de esotérico.

Se traçarmos no chão uma linha orientada na direcção norte-sul, teremos representado um troço de meridiano, o que não é esotérico nem nos une através de todo o globo com outras pessoas que tenham desenhado riscos semelhantes no chão...

Um meridiano, uma daquelas linhas que se vêem desenhadas nos globos passando pelos pólos, é um exemplo de círculo máximo traçado sobre uma esfera. Diz-se máximo, porque se desenharmos circunferências na superfície de uma esfera, podemos fazê-las tão pequenas quanto o queiramos; mas se quisermos desenhar circunferências maiores e maiores, encontramos uma dimensão limite. Essa dimensão limite, que corresponde aos ditos círculos máximos, atinge-se quando o centro da circunferência corresponde ao centro da esfera. Uma maneira sugestiva de visualizar o problema consiste em imaginar uma esfera feita de um material rígido, mas fácil de cortar com uma faca. Se cortarmos a bola em duas, a secção de corte, que é a face aberta pela faca, pode ser muito pequena — tanto mais pequena quanto mais desigual for o tamanho das duas porções resultantes do corte. Para obter uma secção de corte com diâmetro máximo, o corte tem de passar pelo centro do globo.

Nem todos os círculos máximos, contudo, são meridianos. Para o serem, têm de passar pelos pólos. Basta pensar um pouco para ver que uma definição alternativa de meridiano será: a linha circular imaginária traçada sobre a superfície terrestre, assumida para o efeito como uma esfera perfeita, que passa pelos dois pólos.

 

O que é o meridiano de Paris?

“A longitude zero atravessara Paris.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Cada lugar tem o seu meridiano. Se o leitor neste momento traçar no chão uma linha orientada na direcção norte-sul, estará a representar o meridiano do lugar em que está. Prolongando imaginariamente essa linha nos dois sentidos, ela irá passar pelo Pólo Norte e pelo Pólo Sul, os dois extremos irão encontrar-se e a linha dará uma volta à Terra. Não há nada de extraordinário nisto. Basta ter imaginação.

 

Figura 1.2 — Primeiras observações dos planetas realizadas no

Observatório de Paris, no reinado de Luís XIV. Reproduzido de

Flammarion, As Terras do Céu.

 

Os meridianos do lugar são conceitos muito úteis. Desde a época das Descobertas, que alargaram o mundo e obrigaram a navegação e a cartografia a serem feitas em bases rigorosas, que os marinheiros necessitam de meridianos de referência para medirem a longitude, orientarem-se nos mapas e fazerem outros cálculos de viagem. Durante muito tempo, cada país manteve o seu meridiano de referência — por vezes, vários meridianos de referência. Havia o meridiano de Paris, tal como havia o meridiano de Londres (Greenwich), o de Madrid e o de Lisboa. Os mapas que os navegadores de cada país usavam, durante muito tempo mantidos secretos e ignorados pelos outros países, eram baseados num meridiano de um porto usual de partida, de uma cidade principal, ou de outro local de referência.

A longitude media-se em relação a esse meridiano. Na realidade, qualquer meridiano servia, não havendo na Terra um meridiano privilegiado. Neste aspecto, a longitude difere da outra coordenada de referência cartográfica, a latitude, pois esta última tem como referência natural o equador, que é traçado pelo único círculo máximo que é perpendicular ao eixo da Terra. Assim, a latitude é sempre medida em graus a norte ou a sul do equador, enquanto a longitude era medida a este ou oeste de um meridiano que variava com a nacionalidade do piloto, a origem do mapa ou o porto de partida.

A medida da longitude no mar era feita inicialmente de forma pouco sistemática e por métodos muito aproximados. A partir de meados do século XVIII, com a invenção do cronometro marítimo pelo inglês John Harrison (1693-1776), passou a ser possível medir a longitude com precisão. Os pilotos levavam consigo um cronometro que conservava o tempo do local de partida. Mediam a diferença de longitude medindo a diferença de tempo solar.

Imaginemos duas cidades separadas por 90 graus de longitude, como é o caso, aproximado, de Lisboa e da Cidade do México. E suponhamos que em Lisboa acertamos um relógio pelo Sol, marcando nele meio-dia exactamente quando o Sol culmina no céu, ou seja, quando alcança a sua altura máxima. É fácil de perceber que isso acontece quando o Sol passa por cima do meridiano do lugar, ou, como também se diz, passa pelo meridiano celeste do lugar. Viajemos agora até à cidade mexicana com o nosso relógio, sem mudar a hora que ele marca. Quando chegamos a essa capital norte-americana registamos o momento em que o Sol culmina e olhamos para o nosso relógio. Ele marca seis da tarde, pois quando é meio-dia na capital do México são seis da tarde em Lisboa. Medindo o tempo solar local, através de um quadrante ou de outro instrumento que funcione como relógio de sol, os marinheiros podiam estimar a diferença de longitude em relação ao local de partida.

Como o Sol demora 24 horas entre duas passagens meridianas — isto é, entre dois meios-dias solares —, numa hora percorre 1/24 desse arco, ou seja, 15°. E em quatro minutos percorre um grau. Falar em diferença de longitude equivale pois a falar em diferenças horárias medidas pelo Sol. Notemos que, por comodidade, falamos de movimentos do Sol, que são aparentes, em vez de falar de movimentos da Terra. Mas esse é hábito comum em navegação e mesmo na astronomia observacional. É um hábito que não acarreta nenhuma ambiguidade, pois sabe-se bem que se fala apenas em movimentos aparentes.

À medida que a precisão da cartografia e da navegação aumentou, tornou-se necessário que os meridianos de referência fossem marcados com exactidão. Já não bastava falar do meridiano de Paris, do de Lisboa ou do de Roma. Os meridianos passaram a ser traçados ao milímetro. Em Paris, adoptou-se o meridiano marcado pelo observatório da cidade. Foi um hábito seguido em muitas capitais.

Quem vá a Paris num dos dias em que o velho Observatório está aberto ao público pode ver a marca do meridiano no chão do salão principal, também dito salão da meridiana ou de Cassini. É uma tira de latão estendida que divide o edifício do observatório em duas partes quase iguais. Trata-se de uma representação da linha originalmente traçada no solo do futuro observatório pela equipa de académicos que, em 1667, estabeleceu o plano do edifício que seria erguido no local. Em 1672 o edifício estava essencialmente construído, embora as obras continuassem até 1683 e muitas ampliações e remodelações tenham sido feitas ao longo dos séculos seguintes.

 

Onde está o meridiano de Lisboa?

“A questão para os primeiros navegadores era saber qual destas linhas devia ser considerada a Linha da Rosa ou longitude zero.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Lisboa, como todas as capitais de nações marítimas, teve o seu próprio meridiano. A referência foi mudando através dos tempos, pois os observatórios também mudaram, até que se fundou o actual Observatório Astronómico de Lisboa, na Tapada da Ajuda.

O local foi cedido pelo rei D. Pedro V, que igualmente contribuiu para custear as obras. O edifício foi construído entre 1861 e 1867 e passou a marcar a posição de referência cartográfica nacional. No entanto, o meridiano de Lisboa referido a este observatório apenas funcionou durante algumas décadas, pois entretanto os meridianos nacionais caíram em desuso. E o que os tornou obsoletos foi um novo meio de transporte. Enquanto os navios e a navegação incentivaram os meridianos nacionais, as linhas de caminhos-de-ferro e os comboios tornaram necessária a unificação das referências cartográficas.

Os marinheiros estavam interessados em orientar-se e os passageiros confiavam nos pilotos. Não havia horários a cumprir, pois os navios defrontam condições tão variáveis que é impensável falar de horários rigorosos. Mas de repente tudo mudou. Em meados do século XIX, as linhas de caminhos-de-ferro começaram a estender-se pelos continentes. Os passageiros começaram a saltar de comboio em comboio para fazer longas viagens. Iam numa linha de Bruxelas a Paris, onde saltavam para um comboio que os levasse ao Canal. Os horários começaram a ser estabelecidos para facilitar as ligações entre os comboios. Um problema subsistia, contudo. Os passageiros levavam o seu relógio, mas ao passarem de um país para outro, e mesmo de uma cidade para outra, precisavam de voltar a acertá-lo, pois as horas locais mudavam de cidade para cidade. E mudavam de forma difícil de compreender. O tempo que seguiam era o tempo solar local, que muda quatro minutos por cada grau de longitude, como já vimos. Significava isso que ao passarem da cidade A para a B, passavam a ter de ler horários que podiam diferir de 13 minutos, ou de uma hora e sete minutos, por exemplo. Todas essas mudanças temporais tinham de ser tidas em conta ao ler os horários. Nunca se sabia bem se os horários de um comboio estavam referidos à estação de partida ou à de chegada. Os passageiros confundiam-se frequentemente, e chegavam a perder comboios de ligação.

 

Figura 1.4 — Sandford Fleming, inventor do tempo universal

 

Conta-se que um desses viajantes, Sandford Fleming (1827-1915), um engenheiro canadense de origem escocesa, teve várias vicissitudes na sua vida por se confundir com os horários dos comboios. Mas Fleming trabalhava nos caminhos-de-ferro e era um homem com espírito inventivo, pelo que não se limitou a lamentar as confusões. Teve a ideia de organizar o tempo de forma normalizada, dividindo o globo terrestre em 24 regiões, delimitadas por meridianos a que seriam atribuídos tempos uniformes. Cada um desses gomos da superfície terrestre diferiria dos contíguos por uma hora exacta, de forma que seria fácil converter os tempos de cidade para cidade e comparar os horários de linha para linha. Era uma proposta revolucionária. Pela primeira vez na história da humanidade, o tempo deixaria de ser regulado directamente pelo Sol para passar a ser fixado por convenções humanas. Os comboios necessitavam dessa mudança e o recentemente inventado telégrafo comercial (Morse, 1835) possibilitava-a, pois permitia a sincronização dos relógios. A proposta de Fleming foi apresentada publicamente em 1878. A ideia do tempo normalizado (standard time) tinha nascido.

 

Para que serve o meridiano de Greenwich?

“Actualmente, essa linha passava por Greenwich, em Inglaterra.

Mas nem sempre assim fora.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Para que o tempo normalizado vingasse internacionalmente seria necessário que as nações se entendessem, de forma a definir um fuso horário de referência, centrado num meridiano de referência. O momento chegou em 1884 — e não em 1888, como por lapso diz Dan Brown. Nessa data, reunidos em Washington, os países mais influentes da altura decidiram adoptar Greenwich como meridiano zero e definir o fuso zero como aquele que seria bissectado por esse meridiano. Nem todos os presentes na convenção terão ficado contentes com essa escolha. Os franceses gostariam que fosse escolhido o meridiano de Paris, tal como os espanhóis prefeririam o de Madrid.

Mas a Inglaterra era de longe a maior potência naval e em extensão pelo globo. Várias nações, entre as quais a norte-americana, anfitriã do encontro, sublinharam que o Observatório de Greenwich era um dos mais bem equipados e preparados para servir de referência internacional. O meridiano do observatório londrino deixou de ser um entre os demais, para se tornar na linha de referência para o tempo universal. O fuso zero foi definido como o gomo terrestre de 15° de largura em longitude centrado em Greenwich. O tempo universal passou a ser referido ao tempo solar médio desse local.

Greenwich, que tinha sido fundado por decisão real de 1675, tinha sido a casa de alguns dos maiores astrónomos de sempre. O fundador, John Flamsteed (1646-1719) tinha construído a mais completa carta celeste da época. O astrónomo real que lhe sucedeu, Edmond Halley (1656-1742), tinha pela primeira vez mostrado o carácter periódico de certos cometas, entre os quais o que tomou o seu nome, e tinha contribuído para a medida mais rigorosa das distâncias interplanetárias e para muitos outros sucessos da astronomia. Os astrónomos que se seguiram à frente do observatório, nomes tais como Bradley, que forneceu a primeira prova directa do movimento de rotação da Terra, Maskelyne e outros, tornaram Greenwich numa espécie de capital mundial da astronomia. Não foram só razões políticas que levaram à adopção do observatório londrino como centro do meridiano de referência. Foi também o reconhecimento do seu extraordinário mérito científico.

 

Figura 1.5 — Meridiano de referência marcado no chão do Observatório de Greenwich

 

Em 1 de Janeiro de 1885, entrou em vigor o novo tempo normalizado. Algumas nações adoptaram-no imediatamente, não sem alguma oposição interna. Portugal só em Maio de 1911, após a implantação da República, consagrou legalmente a Convenção de Washington. Dia 1 de Janeiro de 1912, os relógios do Continente, que se acertavam pelo meridiano do Observatório da Ajuda, adiantaram-se 36 minutos e 44,68 segundos, que é a diferença horária exacta entre o meridiano de Lisboa e o de Greenwich.

 

O que é a meridiana de St. Sulpice?

“A longitude zero atravessara Paris, e mais exactamente a igreja de Saint-Sulpice. A tira de latão de Saint-Sulpice era um memorial ao primeiro meridiano principal do mundo.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

No livro de Dan Brown uma das cenas mais electrificantes tem lugar na Igreja de St. Sulpice, em Paris. Aí se descreve uma fita de latão existente no chão dessa igreja que seria parte da «linha da rosa» que uniria os rosacrucianos deste planeta... Falámos já da inexistência de conexão entre uma linha norte-sul e qualquer seita esotérica. A igreja, contudo, é real. A linha de latão no chão da igreja também. Mas Dan Brown engana-se quando diz que essa linha marca o meridiano de Paris. Na realidade, está cerca de 110 metros a oeste do meridiano de Paris, como se pode verificar observando um mapa dessa cidade.

 

Figura 1.6 — Um dos 135 medalhões Arago colocados nas ruas de Paris ao longo do antigo meridiano de referência francês. Estes discos de bronze, que medem 12 cm de diâmetro, constituem uma homenagem ao astrónomo François Arago (1786-1853), antigo director do Observatório de Paris e uma das personagens centrais no esforço de medida do comprimento do meridiano terrestre

 

o erro de Dan Brown é um erro menor. Numa cidade como Paris, cem metros de diferença pouco representam. E o alinhamento norte-sul das ruas que medeiam entre o observatório e a igreja levam a crer estarem os dois edifícios no mesmo meridiano. Mas o autor d'O Código Da Vinci não precisava de ter inventado esse alinhamento geográfico para tornar interessante a linha de latão no solo de St. Sulpice. A realidade, como veremos no capítulo seguinte, é ainda mais fascinante que a ficção.

 

               A meridiana de St. Sulpice

 

A meridiana é a esposa do meridiano?

“A tira de latão fora em tempos conhecida como Linha da Rosa.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

A linha metálica do chão da Igreja de St. Sulpice por estar traçada na direcção norte-sul é uma linha meridiana. Esta última palavra aparece aqui como adjectivo, mas muitas vezes autonomiza-se e diz-se simplesmente meridiana, que surge então como nome. A palavra usa-se também quando se fala de lunetas de trânsito, que são telescópios refractores, alinhados de forma a registar o momento exacto da passagem (aparente) de astros pelo meridiano celeste do lugar. Essas lunetas são chamadas meridianas.

Já vimos que a linha de St. Sulpice não representa o meridiano de Paris. Ela foi ali colocada para outro efeito. Destinava-se a marcar a passagem meridiana do Sol.

Trata-se de parte de um aparelho semelhante a um outro, construído em Bolonha em 1655 sob orientação de Jean-Dominique Cassini (1625-1712), um astrónomo italiano que foi professor em Bolonha e se destacou como observador celeste. Colbert, ministro de Luís XV, convenceu-o a vir para Paris ajudar a construção e montagem do observatório desta cidade. Cassini tornou-se o primeiro director do Observatório. O seu filho, depois o seu neto, depois o seu bisneto, sucederam-lhe sucessivamente à frente da instituição. Tratou-se de uma autêntica dinastia e os historiadores, para não se enganarem nos nomes próprios, preferem tratá-los por Cassini I, II, III e IV. Pois Cassini I, que tinha construído na Igreja de S. Petrónio, em Bolonha, uma linha meridiana que usou como instrumento astronómico, levou a ideia para Paris.

Na altura existiam já relógios mecânicos que mantinham a hora com razoável precisão. Mas era preciso acertá-los regularmente. Para isso, as igrejas e casas senhoriais tinham relógios solares que marcavam apenas um momento: o meio-dia solar. Essa hora bastava, pois servia apenas para referência e um acerto diário era mais que suficiente. Por volta do meio-dia, os responsáveis pelos relógios dirigiam-se para o instrumento e esperavam que o Sol marcasse o momento exacto. Acertavam então os relógios mecânicos. No Palácio de Queluz existe ainda, num dos muros do passeio do jardim, uma meridiana solar que servia esse objectivo. No Palácio da Pena,

 

Figura 2.1 —Jean-Dominique Cassini foi o projectista da meridiana de S. Petrónio, em Bolonha, e o primeiro director do Observatório de Paris. Entre as suas contribuições para o conhecimento astronómico contam-se o estudo de Júpiter e Saturno — neste último descobriu uma divisão nos anéis (quadro do Observatório de Paris)

 

em Sintra, existe outra meridiana, que tem a particularidade de permitir disparar um pequeno canhão quando o Sol atinge a posição do meio-dia. Noutros locais existem restos de instrumentos semelhantes.

O que Cassini construiu em Bolonha e que veio a ser replicado na Igreja de St. Sulpice foi uma gigantesca meridiana solar. Um instrumento tão preciso que permitia medir o meio-dia com incerteza inferior a meio segundo ou talvez mesmo, segundo alguns documentos da época, com incerteza inferior a um quarto de segundo. Era uma precisão inacreditável. Tratava-se de um extraordinário gnómon.

 

O que é um gnómon?

“Era um gnómon, tinham-lhe dito, um instrumento astronómico pagão, como um relógio de sol.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

O nome deriva do grego gnómon («o que indica» ou «que dá a saber») e habitualmente designa o ponteiro de um relógio solar, peça que pode ter diversas formas. Nos relógios de sol verticais são habituais os ponteiros em forma de estaca colocada obliquamente à parede. Nos relógios de sol horizontais, é vulgar ver cunhas triangulares sobre os mostradores. Noutros tipos de relógios aparecem outras peças com a mesma função: projectar uma sombra ou uma marca no mostrador, de forma a se poderem ler as horas.

 

(Figuras 2.2 e 2.3 — Relógio de sol horizontal construído no século XIX para a latitude de Braga (à esquerda). Relógio de sol vertical, declinante sul-leste (à direita), na parede frontal da Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso em Cacilhas, Almada. Neste último, a hora é lida pela sombra projectada pela aresta superior do gnómon metálico, chamada estilo; marca as 12.30)

 

Os ponteiros dos relógios de sol são mais propriamente chamados estilos. E percebe-se que o nome gnómon, na acepção de «o que indica», seja apropriado para ponteiro. No entanto, por metonímia, gnómon designa por vezes o próprio relógio de Sol, meridiana ou outro aparelho de observação solar. Fala-se em gnomónica para a arte e ciência dos relógios de sol, mas estes termos podem aparecer noutras acepções. Em cartografia há a chamada projecção gnomónica. Em geometria, o gnómon de uma figura dada é uma segunda figura que, adicionada ou subtraída à primeira, gera ou revela uma terceira figura semelhante à original.

Dan Brown fala de um gnómon para designar a linha no chão de St. Sulpice. E não está longe da verdade. De facto, essa linha meridiana tinha, entre outras funções, a medida do meio-dia solar. Como era isso possível?

 

O que é o meio-dia solar verdadeiro?

“A luz do Sol, atravessando o óculo da parede sul, ia avançando.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

O Sol parece descrever diariamente no céu um longo arco de leste para oeste. No nosso hemisfério esse arco é observado sobre o horizonte sul. Sabemos que, na realidade, é a Terra que se move; para efeitos práticos, contudo, podemos falar em movimento do Sol. Esse movimento é paralelo ao equador e descreve pois um arco num plano perpendicular ao eixo da Terra. O Sol atinge a altura máxima acima do horizonte quando passa por cima do meridiano do lugar. É o momento de trânsito, de culminação ou de passagem meridiana, como se diz.

O momento em que o Sol culmina é o chamado meio-dia solar verdadeiro. Nas nossas latitudes, esse momento regista-se quando o Sol aparece por cima do ponto sul do horizonte. Nessa altura, uma estaca espetada verticalmente no solo projecta uma sombra que aponta exactamente para norte. Se olharmos para um relógio de sol e repararmos na marca de meio-dia, veremos que ela está alinhada com precisão segundo o eixo norte-sul.

Os relógios de sol foram durante muitos séculos o meio quase exclusivo de medida do tempo. Davam o chamado tempo solar verdadeiro, de que o meio-dia solar verdadeiro constitui o momento de referência.

Os relógios mecânicos, que surgiram pela Europa nos séculos XIII e XIV, passaram a ser usados nas igrejas e casas senhoriais para dar o tempo, tendo a vantagem de dar as horas nocturnas e em dias sem sol. Os relógios solares perderam pouco a pouco a sua importância, mas continuaram a ser necessários para acertar os relógios mecânicos. Com efeito, estes últimos, além de pouco precisos, tinham necessariamente derivas e era necessário um meio de os acertar periodicamente. Para isso, recorria-se aos relógios solares.

Para fornecer uma hora de referência, bastava aos relógios solares marcarem a hora uma vez por dia, naturalmente ao meio-dia. Por isso, os relógios de sol passaram a especializar-se em marcar com precisão a passagem meridiana do Sol. Daí que esses instrumentos se chamassem meridianas.

 

Há um meio-dia solar falso?

Entre duas passagens meridianas do Sol decorre um período de 24 horas. Mas os antigos notaram, através de estudos astronómicos, e os modernos verificaram, através de relógios mecânicos aperfeiçoados, que esse intervalo de tempo nem sempre mede exactamente 24 horas. Umas vezes o dia é ligeiramente mais curto, outras vezes ligeiramente mais longo. A sua duração varia de segundos, mas esses segundos acumulam-se. Um relógio mecânico perfeito que se acertasse a dada altura pelo meio-dia solar verdadeiro podia diferir de um outro relógio mecânico perfeito atingindo um desfasamento máximo de 30 minutos. Por essa razão, e para evitar que se estivessem sempre a acertar os relógios mecânicos, decidiu-se marcar o tempo oficial por um Sol imaginário que demorasse sempre exactamente 24 horas entre duas passagens meridianas. Daí resulta o chamado tempo solar médio.

A diferença entre o tempo solar verdadeiro e o tempo solar médio concretiza-se na chamada Equação do Tempo, que umas vezes se apresenta em tabelas, outras graficamente. Quando o acerto dos relógios mecânicos pelo tempo solar se queria mais preciso, era pelo tempo solar médio que se orientavam os relógios mecânicos. Nessas alturas registava-se o meio-dia solar verdadeiro, que se convertia imediatamente em tempo solar médio através da chamada Equação do Tempo.

Numa época em que o tempo solar marcava o tempo oficial, todas estas medidas eram importantes. Em cada cidade, havia um relógio de referência, regulado pelo tempo solar da localidade.

Em 1884, como já se referiu, instituiu-se um tempo baseado no tempo universal, tomando Greenwich como meridiano de referência. A partir desse momento, o tempo oficial afastou-se do tempo solar, sendo mais difícil converter um no outro.

A conversão continua a poder fazer-se. Mas segue várias etapas. Em primeiro lugar, é necessário saber a longitude do lugar. Depois, é preciso conhecer a equação do tempo. Finalmente, pode ser necessário fazer o ajuste para a hora de Verão.

Imaginemo-nos num dia de meados de Novembro, na Ponta de Sagres, e suponhamos que o relógio de sol instalado na entrada da fortificação assinala as 14 horas. Sabemos que o relógio está colocado num local com 9° de longitude oeste (portanto a essa distância angular do meridiano de Greenwich). Sabemos também que a cada grau de longitude oeste corresponde um atraso de 4 minutos no movimento aparente do Sol (1 hora por 15°). Devemos pois somar à hora marcada pela sombra o correspondente atraso que, feitas as contas, é de 36 minutos. Ficamos com 14 horas e 36 minutos. Depois, é necessário fazer a correcção pela equação do tempo, uma vez que o relógio marca a hora solar verdadeira e a hora legal refere-se ao tempo solar médio. Estando a fazer a leitura em meados de Novembro, a dita equação mostra que há que subtrair 16 minutos. Estamos pois pelas 14 horas e 20 minutos da hora legal do Continente. Se estivéssemos num dia abrangido pelo horário de Verão (entre o último domingo de Março e o último de Outubro), teríamos de adicionar ainda uma hora.

 

Para que serve a linha de latão no chão da igreja?

“O Professor falara-lhe rapidamente da famosa bizarria arquitectural de Saint-Sulpice: uma tira de metal que atravessava o santuário segundo um eixo exacto norte-sul.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci

 

Nos séculos XVII e XVIII, era comum as igrejas terem meridianas solares para acertarem os seus relógios mecânicos e fornecerem a hora solar local às populações. Esses gnómones atingiram uma grande sofisticação, e passaram a ter usos vários. Além de marcarem o meio-dia solar verdadeiro, marcavam também a altura do Sol por ocasião da sua passagem meridiana, o que permitia detectar os solstícios e equinócios e assim conhecer o dia do ano, o que era essencial para as datas litúrgicas.

Durante a Idade Média, as populações estavam afastadas e as comunicações eram muito difíceis. Um objectivo central da Igreja, que por isso estava muito preocupada com o calendário, era fazer com que os fiéis em todo o mundo pudessem celebrar a Páscoa no mesmo dia. Para isso, todos teriam de ter meios de cálculo dessa data, ou seja, todos teriam de saber calcular esse dia do ano. Os relógios de sol mais sofisticados eram essenciais para o efeito, pois medindo a altura meridiana do astro-rei permitiam o reconhecimento das datas dos solstícios e dos equinócios.

Pouco a pouco, esses relógios solares meridianos foram ganhando em precisão e sofisticação. No século XVII, começaram a aproveitar-se alguns grandes edifícios para construir meridianas solares de grandes dimensões. A meridiana de St. Sulpice é um belo exemplo de um desses instrumentos.

Construída depois da de S. Petrónio, em Bolonha, a meridiana da igreja parisiense apresentava algumas inovações técnicas que lhe permitiam uma grande precisão de medida. Tal como a sua congénere italiana,

 

(Figura 2.5—Projecção dos raios solares, na igreja parisiense de St. Sulpice, nos solstícios de Inverno (linha à esquerda), de Verão (linha à direita) e nos equinócios da Primavera e do Outono (linha central). Gravura da obra Saint-Sulpice, de Lemesle (1931)).

 

é constituída por uma linha traçada no chão da igreja segundo a orientação exacta norte-sul. Por cima dessa linha, encontram-se na janela sul do transepto dois orifícios munidos de lentes: os chamados óculos. Estando a janela tapada, com excepção de um dos orifícios — escolhido conforme a época do ano para minorar as distorções derivadas da diferente inclinação dos raios solares —, a luz do Sol atravessava a lente e ia projectar no solo da igreja uma imagem do astro. Quando o Sol passava pelo meridiano do lugar, a imagem atravessava a linha de latão, permitindo medir o meio-dia solar. O rigor de medida era grande, pois a janela está muito elevada e isso permitia colocar os óculos a grande altura (25,987 metros para o óculo que se usava no Outono e Inverno e 24,363 metros para o óculo que se usava na Primavera e Verão). Dessa forma, a velocidade de deslocação da imagem do Sol no solo era grande e as medidas dos tempos e dos ângulos tornavam-se muito rigorosas.

 

Como se mede a obliquidade da eclíptica?

“A linha apresentava marcas graduadas, como uma régua.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Ao longo do ano, a passagem a sul do astro-rei também se vai alterando, atingindo os pontos extremos nos solstícios de Verão e de Inverno.

As meridianas permitiam registar as posições extremas do Sol nos solstícios, que correspondiam precisamente à maior e menor inclinação dos raios solares relativamente ao chão da igreja. A obliquidade da eclíptica — a inclinação do eixo de rotação da Terra em relação ao plano da sua órbita, cerca de 23,4° — não é mais, nas meridianas, que metade do ângulo formado pelos raios solares nas duas posições extremas, solsticiais. Por isso podia ser medida, e assim foi de facto medida. Contudo, a orientação do eixo da Terra no espaço também parecia sofrer alterações ao longo dos séculos. Essa era, aliás, uma questão em plena investigação no tempo de Pierre-Charles Lemonnier (1715-1799), o académico parisiense que dirigiu a construção da meridiana de St. Sulpice. A princípio o astrónomo não acreditava que a obliquidade da eclíptica tivesse uma variação secular. Mas, como qualquer cientista sério, aceitaria corajosamente os factos, fossem eles quais fossem. Por essa razão observou regularmente os solstícios em St. Sulpice, de 1743 a 1791. Os seus registos revelaram uma oscilação, com um período de 18,6 anos, um movimento que tinha sido descoberto em 1727 pelo astrónomo inglês James Bradley (1692-1762), chamado nutação. Os dados acabaram também por convencê-lo de uma lenta diminuição, cujo valor Lemonnier estimou em 0,0092° por século (o valor actualmente aceite é de 0,0131° por século), em concordância com outros astrónomos franceses, e em particular concordando com o jesuíta Leonardo Ximenes (1716-1786), que realizava os seus estudos na meridiana de Santa Maria dei Fiore, em Florença.

 

Quando foi construído o obelisco?

“Um colossal obelisco egípcio. Ali, a refulgente Linha da Rosa fazia um ângulo de noventa graus para cima e trepava pela face do obelisco, subindo dez metros até à ponta do ápice piramidal, onde finalmente terminava.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

O obelisco de St. Sulpice não remonta à antiguidade egípcia, como sustenta o romance de Dan Brown, mas à data da construção da meridiana, ou seja, ao século XVIII. Qualquer visitante o poderá confirmar lendo apenas o que está inscrito na base, em numeração romana: 1743. Isto apesar de haver um outro obelisco que foi usado na Antiguidade como gnómon de um relógio de Sol. Trata-se do obelisco subtraído aos egípcios pelo imperador romano Augusto e que ainda hoje pode ser admirado na capital italiana, na Praça de Montecitorio. Contudo, desviado da sua posição original, o obelisco foi tudo o que restou do complexo relógio solar de Augusto.

A linha meridiana divide o obelisco de St. Sulpice ao meio e as duas inscrições da base. Nestas encontram-se, à esquerda, o programa pré-académico do cura que propôs e acarinhou a ideia, Jean-Baptiste-Joseph Languet de Gergy, de «Um gnómon astronómico para o estudo certo do equinócio pascal». Punha em prática a intenção da Igreja, tomada no Concílio de Niceia, de determinar rigorosamente a data da Páscoa. À direita, por seu turno,

 

O texto refere a Academia das Ciências de Paris e Lemonnier. Num espaço agora em branco estavam os nomes de Luís XV

 

(Figura 2.6 — Inscrições na base do obelisco da meridiana

de St. Sulpice. Note-se, à direita, por baixo do cordeiro de

Deus, o texto destruído durante a Revolução Francesa).

 

e de dois dos seus administradores, responsáveis pelos edifícios públicos: o conde de Maurepas e Philibert Orry. Foram purgados durante a Revolução Francesa numa acção deliberada para apagar os vestígios do velho regime.

Lemonnier alinhou a linha meridiana de latão com o obelisco, para que a imagem do Sol projectada de Inverno pudesse ser menos distorcida. A imagem do Sol passa em locais diferentes da linha meridiana ao longo do ano. De Verão, quando o Sol está mais alto, a imagem projecta-se no soalho mais perto do orifício do tecto. De Inverno, quando o Sol está mais baixo, a imagem projecta-se mais longe e é por isso mais alongada e distorcida. Colocando o obelisco no enfiamento da meridiana, Lemonnier conseguiu reduzir essa distorção, fazendo com que o ângulo do Sol com o plano onde estava a meridiana diminuísse. Nos extremos da linha de latão, colocou ainda as marcas dos solstícios — no obelisco, o de Inverno; na outra extremidade, o de Verão. E no ponto intermédio apropriado, as marcas dos equinócios de Primavera e de Outono.

 

O que faz o zodíaco na Igreja?

“A luz do Sol, atravessando o óculo da parede sul, ia avançando ao longo da linha dia-a-dia, indicando a passagem do tempo, de solstício a solstício.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

O zodíaco, ou «círculo de figuras animais», foi adoptado pelos estudiosos do céu como uma faixa onde se desenrolam os movimentos aparentes do Sol, da Lua e dos planetas. Compreende doze regiões de 30° de extensão cada, onde os antigos imaginaram doze figuras míticas desenhadas pelas estrelas. Esta banda tem cerca de 14° de largura e está centrada na trajectória aparente seguida pelo Sol ao longo do ano — a eclíptica. Pensa-se que as constelações do zodíaco tiveram origem entre os povos do rio Eufrates, na Antiguidade. Terão surgido em primeiro lugar seis signos alternados: Touro, Caranguejo, Virgem, Escorpião, Capricórnio e Peixes(1). Mais tarde estas figuras inscritas no céu foram alargadas para doze, de modo a corresponderem às doze lunações que ocorrem anualmente.

As marcas do zodíaco nestes observatórios solares instalados em igrejas, serviam para marcar no chão as épocas do ano em que o Sol era observado a entrar na região dos respectivos signos. Como vimos, a posição aparente do Sol vai-se alterando ao longo do ano assim como a sua luz projectada sobre a meridiana. Claro que a posição do Sol era inferida por métodos indirectos. Só a ocorrência de um fenómeno raro, um eclipse solar total, permitia a observação directa contra o fundo das estrelas. Uma das mais impressionantes meridianas é a da Duomo de Palermo, em Itália. Aí a representação artística dos signos zodiacais surge em todo o seu esplendor, nuns curiosos embutidos de pedra.

 

*1. Allen, 1963.

 

(Figura 2.7 — Sarcófago egípcio onde surgem representados

as doze constelações do zodíaco (reproduzido de Flammarion, As Terras do Céu)).

 

No capítulo 3, Dan Brown põe na boca do simbologista de Harvard as seguintes palavras: «O meu francês é uma porcaria, pensou Langdon, mas a minha iconografia zodiacal é bastante boa, muito obrigado. Taurus era sempre o touro. A astrologia era uma constante simbólica em todo o mundo.» A afirmação parece bastante convincente, mas acontece que não corresponde à verdade.

Na China o zodíaco teve um desenvolvimento independente, sofrendo influências de nações vizinhas. Terá surgido entre os séculos XVII e XII antes da nossa era. Os seus signos são o Tigre (Sagitário); a Lebre (Escorpião); o Dragão (Balança); a Serpente (Virgem); o Cavalo (Leão); o Carneiro (Caranguejo); o Macaco (Gémeos); o Galo (Touro); o Cão (Carneiro); o Javah (Peixes); o Rato (Aquário) e o Boi (Capricórnio). Só após a chegada dos jesuítas ao Império do Meio, em finais do século XVI, o zodíaco ocidental seria aí adoptado.

Mas, mesmo no Ocidente, o conteúdo simbólico do zodíaco está longe de ser uma constante. Na Lituânia foi descoberta na cave de uma igreja, durante a Segunda Guerra Mundial, uma taça, datada do século XV, onde surgem doze ícones zodiacais(1). Alguns podem ser identificados com os signos da tradição babilónica (Sagitário, Capricórnio e Gémeos) mas outros diferem claramente (um galo, dois veados, um guerreiro). Mais uma vez, Taurus não é o Touro mas, neste caso, um cavaleiro. Um outro exemplo é o pórtico da Igreja de Santo Isidoro de Leon,

 

*1. Vaiskunas, 2000.

 

em Espanha, que está decorado com os doze símbolos do zodíaco(1). Contudo, na posição do Capricórnio os construtores cristãos colocaram Mitra, uma divindade pagã, romana, matando um touro. É uma representação do solstício de Inverno, data do nascimento de Mitra.

 

 

Como pode uma linha no chão separar Copérnico de Ptolomeu?

“Embebida no granito cinzento do chão, brilhava uma fina e polida tira de latão... uma linha dourada que atravessava em diagonal o piso da igreja.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

A meridiana de St. Sulpice era um aparelho tão preciso que Lemonnier dizia conseguir calcular o meio-dia solar com a precisão de um quarto de segundo. Mas os objectivos do matemático eram ainda mais ambiciosos. Ele queria estudar a mudança de direcção dos raios solares causada pela atmosfera — a chamada refracção — e os momentos em que a órbita da Terra a levava mais perto e mais longe do Sol, os chamados periélio e afélio, respectivamente. Ao fazê-lo, Lemonnier inscrevia-se numa linha de investigação levada a cabo em várias igrejas europeias e que ajudou a decidir a escolha entre o modelo

 

*1. Belmonte, 2003.

 

heliocêntrico de Copérnico, na sua versão de Kepler, e o antigo modelo geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu. Com efeito, as aproximações e afastamentos entre a Terra e o Sol ao longo do ano são diferentes nos dois modelos. No de Kepler, resulta da forma elíptica das órbitas dos planetas. No de Ptolomeu, resulta da posição excêntrica da circunferência em que o Sol se moveria. A diferença de previsões dos dois modelos não é muito pronunciada, mas pode teoricamente ser revelada relacionando a maneira como o Sol muda de altura meridiana ao longo do ano e o seu diâmetro aparente. Durante muitos anos, os astrónomos tentaram medir esses parâmetros, mas sem resultados conclusivos. Foram necessários instrumentos solares gigantescos, com dimensões que apenas as grandes igrejas

 

(Figura 2.8a e 2.8b — Modelos cosmológicos, ou sistemas do mundo, como eram chamados, de Ptolomeu (à esquerda) e Copérnico (à direita). Reproduzido de Derham, 1750).

 

da altura alcançavam. Como veremos a seguir, nos séculos XCII e XVIII, a verdade foi revelada nas meridianas dos soalhos das igrejas.

 

Qual era a verdadeira conspiração de St. Sulpice?

“A Chave de Abóbada está escondida debaixo da Linha da Rosa. Na base do obelisco de Sulpice. Todos os irmãos tinham dito o mesmo.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci

 

A verdadeira conspiração de St. Sulpice não esteve ligada à Opus Dei, nem sequer escondida na meridiana. Os verdadeiros «conspiradores» foram astrónomos escrupulosos, como Lemonnier, que pretendiam verificar nestes dispositivos, construídos com a anuência da Igreja, se a teoria geocêntrica estava certa ou errada e testar o modelo que melhor concordava com as suas observações. Os céus manifestaram-se. Dentro das paredes dos templos cristãos foram-se reunindo provas contra a cosmologia ptolomaica, defendida oficialmente pela Igreja Romana. No entanto, ao contrário do que tem sido escrito, até por historiadores modernos, depois do julgamento de Galileu e de, em 1633, este ter sido obrigado a abjurar o modelo heliocêntrico, a Igreja não tornou «a astronomia coperniciana um tópico proibido entre os fiéis católicos por... dois séculos(1). O jesuíta italiano Francesco Bianchini (1662-1729), por exemplo, publicaria em 1728 uma defesa do sistema de Tycho Brahe — um modelo misto, a meio caminho entre o de Ptolomeu e o de Copérnico. Bianchini chegou mesmo a encomendar uma esfera armilar heliocêntrica, com mecanismo de relojoaria, para um seu patrono: o monarca português D. João V. Aliás, muitos clérigos não viam na astronomia e na matemática uma ameaça. Basta verificar que estas foram as áreas de eleição dos sábios jesuítas, e de outras ordens, nos trabalhos que publicaram nas memórias da Academia das Ciências de Paris, até 1720. Acresce que as edições de 1543 e 1566 de As Revoluções dos Orbes Celestes, de Nicolau Copérnico, não foram, na sua esmagadora maioria, censuradas como decretou o Santo Ofício em 1620. Muitos destes livros encontravam-se em bibliotecas conventuais e de outras casas religiosas. Quem o mostrou de forma inequívoca foi o historiador de ciência Owen Gingerich. Ao fazer um censo de todos os exemplares existentes do livro de Copérnico, Gingerich teve que decifrar numerosas anotações marginais, que revelaram, para além de outras informações, a quem pertenceram as obras*. Entre outras descobertas fascinantes identificou os exemplares que passaram pelas mãos de Galileu, Kepler e Tycho. Tal como Robert Langdon, também Owen Gingerich é professor em Harvard. Mas não de simbologia. Gingerich dedica-se à história da nossa compreensão do mundo. Mas pelos olhos dos cientistas.

 

*1. Robert S. Westfall em Essays (1989), citado por Heilbron, 1999.

  1. Veja-se a este respeito Gingerich, 2002 e 2004.

 

(Figura 2.9 — Frontispício das Tabelas Rudolfinas, de Johannes Kepler (fotografado do exemplar existente na Biblioteca do Convento de Strahove, em Praga). Representa o clímax da obra científica de Kepler, pois permitiu calcular as posições dos planetas com um rigor sem precedentes. À direita, pormenor onde se vê um quadrante de Tycho Brahe munido das escalas do nónio, que foi uma invenção do matemático e cosmógrafo português Pedro Nunes (1502-1578)).

 

       A estrela de cinco pontas e os códigos de Vénus

 

Vénus é a «estrela da manhã» ou a «estrela da tarde»?

“Langdon decidiu não lhe revelar a mais surpreendente propriedade do pentáculo: a origem gráfica da sua ligação a Vénus.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Os babilónios diziam que os planetas eram ovelhas perdidas, borregas tresmalhadas do grande rebanho das estrelas do céu. Os gregos chamavam-lhes «vagabundos», palavra que nos chegou pelo latim no vocábulo «planeta». Habituados a observar diariamente o céu, a orientar-se pelos astros e a ler no firmamento o grande ciclo das estações, os antigos cedo perceberam que alguns daqueles pontos brilhantes deambulavam entre as estrelas. Enquanto estas se deslocam em uníssono no seu movimento nocturno e anual, os planetas movem-se de noite para noite contra o fundo estelar, descrevendo um movimento aparente muito complexo.

Dois dos planetas observáveis a olho nu — Mercúrio e Vénus — descrevem um movimento peculiar. Estes planetas aparecem por vezes como «estrelas da manhã», antecipando o nascimento do Sol, outras vezes como «estrelas da tarde», mergulhando no horizonte a seguir ao astro-rei. Outras, ainda, desaparecem ofuscados pelo Sol e passam dias sem serem observados.

Nunca estão muito longe do Sol. Aparecem geralmente ao crepúsculo. Sabemos hoje a razão por que isso acontece: Mercúrio e Vénus são planetas inferiores, a sua órbita é interior à da Terra, e nunca se podem afastar visualmente muito da nossa estrela. Em contraste, os restantes planetas são chamados superiores, pois a sua órbita é exterior à do nosso planeta, pelo que podem aparecer em oposição ao Sol — isto é, numa posição diametralmente oposta à do astro-rei — e ser visíveis a meio da noite.

Mercúrio é um planeta fugidio. Está muito perto do Sol, é difícil de observar e nunca é visível por muito tempo. Vénus aparece durante mais tempo acima do horizonte. É muito mais brilhante e esteve sempre no centro das atenções dos astrónomos da Antiguidade. Serviu até para estabelecer calendários.

 

(Figura 3.1 — Fases de Vénus, como são observadas da Terra. Reproduzido de Flammarion, As Terras do Céu).

 

Porque tinham os maias cinco figuras para representar Vénus?

“Tão espantados tinham os antigos ficado ao observar o fenómeno, que Vénus e o seu pentáculo se tornaram símbolos de perfeição, beleza e das qualidades cíclicas do amor sexual.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Quem já tenha observado Vénus ao longo de várias semanas, olhando para o planeta dia após dia ao crepúsculo, terá notado que este, por vezes, surge cada dia mais alto nos céus e que, ao mesmo tempo, parece deslocar-se lentamente para a esquerda ou para a direita. O planeta prepara-se assim para alcançar a altura máxima, começando depois uma lenta descida. A dado momento já é difícil observá-lo, pois mergulha no horizonte logo a seguir ao ocaso. Vénus descreve nos céus do crepúsculo um «V» ou «U» invertidos muito largos, figuras típicas bem conhecidas dos antigos.

Se, oito anos depois, olharmos para Vénus pela mesma altura, veremos que este se encontrará no mesmo lugar e que dançará a mesmíssima dança nos céus do crepúsculo. Vénus desenha uma das suas cinco danças características, que se repetem, invariavelmente, todos os oito anos.

Os astrónomos da civilização maia, que floresceu na América Central entre os séculos IV e X, estavam deslumbrados com as danças de Vénus. As suas observações, naturalmente acumuladas ao longo de séculos, permitiram-lhes notar esta estranha periodicidade do planeta e as figuras peculiares que este descreve nos céus. Os maias tinham um nome para cada uma dessas danças e associaram uma lenda a cada uma delas. Vénus aparecia-lhes como o deus Kukulcan, que descia a Xibalba, o mundo escuro e subterrâneo, para combater os demoníacos deuses das trevas.

Quando Vénus desaparecia engolido pelo brilho do crepúsculo, cumpria-se mais um dos ciclos da lenda maia. Mas o planeta do deus Kukulcan reaparecia sempre. Para os maias, esses renascimentos representavam a vitória de Kukulcan sobre os demónios de Xibalba. Fazia-se de novo luz, sinal que os sacerdotes faziam pagar com sacrifícios humanos.

 

(Figura 3.2 — As cinco danças de Vénus, no início da noite, ao longo de um período de 8 anos. As cinco trajectórias aparentes traçadas por Vénus no final da noite, que ocorrem em alternância, são aproximadamente imagens no espelho destas. Adaptado de Grinspoon, 1997).

 

Se a crueldade desses sacrifícios hoje nos choca, vale a pena relembrar também a sanha sanguinária de Cortês e seus conquistadores, ibéricos e europeus, que destruíram a ferro e fogo as civilizações da América Central, com tanto desprezo pela vida como pela cultura.

Em 1555, na cidade de Maní, os conquistadores procederam a uma grande queima final de livros. José de Acosta, numa obra mas tarde impressa em Salamanca, relata terem «encontrado um grande número desses livros com esses caracteres [hieróglifos maias] e, como eles não contivessem mais do que superstições e mentiras do demónio, queimámo-los todos, o que eles muito surpreendentemente lamentaram muitíssimo». Os maias destacavam-se entre os povos da América Central por terem desenvolvido uma escrita ideográfica (com hieróglifos) e por preservarem o seu conhecimento em obras escritas, a que os ocidentais chamaram códices. Os conquistadores estranhavam o amor que os maias tinham pelas suas obras, mas foram impiedosos nas destruições de livros. Depois das queimas, apenas quatro dos livros nos chegaram. É pouco, mas é o bastante para perceber como essa civilização estava muito adiantada na observação dos planetas.

Os maias repararam que as figuras que Vénus desenhava no céu eram cinco, e que de oito em oito anos se fechava um ciclo, em consonância com os ciclos das estações, pelo que basearam o seu calendário no ciclo de Vénus.

 

O que é o período sinódico de um planeta?

“Num tributo à magia de Vénus, os Gregos usavam o seu ciclo de oito anos para organizar os Jogos olímpicos. Actualmente poucas pessoas sabem que o calendário quadrienal das Olimpíadas modernas continua a seguir os meios-ciclos de Vénus.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Ao descobrirem a variação cíclica do movimento aparente de Vénus os maias notaram o resultado de uma notável consonância entre a órbita da Terra e a do nosso vizinho planeta. Vénus demora 224 dias a descrever uma órbita em torno do Sol. Como a Terra se move no mesmo sentido, Vénus volta a aparecer-nos na mesma posição relativa ao Sol só 584 dias depois. É o chamado período sinódico. Multiplicando 584 por 5 e dividindo por 8, encontram-se 365 dias, um ano terrestre. Quer dizer, de oito em oito anos, Vénus aparece na mesma posição relativa ao Sol e também relativa ao fundo estelar. As cinco danças de Vénus repetem-se num ciclo de oito anos. Os maias basearam a medida do seu tempo nesta consonância de ritmos, conseguindo uma precisão notável. O seu calendário tinha um erro inferior a um dia por cada quinhentos anos, numa altura em que os europeus utilizavam o calendário juliano e estavam ainda a séculos de conseguirem uma reforma aceitável do seu calendário.

Os astrónomos não sabem ainda se a quase proporcionalidade de cinco para oito entre os períodos orbitais da Terra e de Vénus é uma pura coincidência ou se é o fruto da atracção gravitacional mútua entre os dois planetas. Muitos dizem que se trata de um acaso e apontam para a imperfeição dessa consonância. Na realidade, as órbitas não coincidem exactamente de oito em oito anos, mas estão desfasadas de dois dias em cada um desses períodos. Outros, como o norte-americano David Grinspoon (1977), suspeitam que esta consonância tenha sido criada, de forma imperfeita, na altura da formação do sistema solar, quando os planetas se estavam a criar pelo agrupamento violento da nuvem protoplanetária.

A verdade é que o sistema solar está repleto de ressonâncias orbitais. Neptuno e Plutão, por exemplo, dançam ao ritmo de três para dois. Enquanto o primeiro descreve três órbitas, o segundo descreve duas. Muitas das luas de Júpiter e de Saturno estão prisioneiras de ressonâncias semelhantes.

Seja a regularidade de Vénus fruto do acaso, ou seja ela o resultado da atracção do nosso planeta, o certo é que as cinco danças de Kukulcan continuam a repetir-se com a precisão que fascinou os antigos.

 

Quantas vezes por dia está o ponteiro dos minutos em cima do ponteiro das horas?

Para perceber melhor o que é o período sinódico imaginemos agora que Vénus e a Terra são os ponteiros dos minutos e das horas de um relógio analógico.

Às 12 horas sabemos que os ponteiros se sobrepõem. Também sabemos que voltam a sobrepor-se um pouco depois da uma hora. Mas quantas vezes, no decorrer de um dia, isso acontece? Para atacarmos correctamente o problema temos que pensar na velocidade de cada um dos ponteiros. Se assim fizermos, o problema torna-se simples. O ponteiro maior (o dos minutos) dá uma volta completa numa hora. Por isso sabemos que a sua velocidade é de uma rotação por hora. Por sua vez o ponteiro menor (o das horas) dá uma volta completa em 12 horas. Ou seja, a sua velocidade de rotação é de 1/12 por hora. O ponteiro maior ultrapassa o menor com uma velocidade relativa de 1 -(1/12), isto é, 11/12 rotações por hora.

Para que os dois ponteiros se voltem a encontrar, o maior tem que estar à frente do menor exactamente uma rotação. Chamemos T ao tempo em que o ponteiro dos minutos ganha uma rotação ao das horas — o período sinódico dos ponteiros, digamos. Recordando a equação elementar do movimento uniforme:

distância = velocidade x tempo

temos:

1 = (11/12)xT

onde 1, do lado esquerdo da equação, significa uma rotação. Agora, dividindo ambos os membros por 11/12 (que é o mesmo que multiplicar por 12/11), vem:

T= 12/11 horas

Isso significa que o intervalo T entre duas sobreposições consecutivas dos ponteiros é 12/11, ou seja, cerca de uma hora e cinco minutos e meio. Então, dividindo 24 horas por esse valor T obtemos a solução procurada: o ponteiro maior passa por cima do menor 22 vezes por dia.

 

Pode-se ver no céu o pentagrama de Vénus?

“Ainda jovem estudante de Astronomia, ficara estupefacto ao saber que o planeta Vénus traçava, de oito em oito anos, um pentáculo perfeito no céu eclíptico.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Como é fácil verificar, as figuras desenhadas no céu pelo movimento aparente de Vénus não podem corresponder à hipótese do Professor Langdon n'O Código Da Vinci. De facto, Vénus obedece a uma periodicidade de oito anos, que se manifesta na repetição de movimentos aparentes no céu do crepúsculo. Mas estas danças cíclicas não produzem um pentagrama. A ideia de pentáculo — a versão ocultista do pentagrama — perfeito corresponderá à verdade?

Há várias explicações possíveis para a afirmação de Dan Brown. Uma é que o maior afastamento aparente do planeta em relação ao Sol (por exemplo, ao início da noite), a chamada elongação, ao longo de oito anos, produz cinco posições que formam um pentagrama.

Ou então fixando a posição de Vénus no céu crepuscular a intervalos de 584 dias, o período sinódico entre as órbitas de Vénus e da Terra, por um ciclo de oito anos, também se obtém um pentagrama. É uma hipótese assaz rebuscada e, tanto quanto sabemos, desconhecida dos povos da Antiguidade. Acresce que o pentagrama resultante não é perfeito, ou regular, como lhe chamam os matemáticos. Alonga-se à medida que o observador se encontra mais para norte.

Embora seja interessante a tese de que Vénus desenha no céu esta figura geométrica ela não passa de uma estimulante proposta ficcional.

 

(Figura 3. 3 - Pentagrama formado pelas cinco posições de Vénus, num período de oito anos, ao crepúsculo, nas cinco datas de elongação máxima, ou seja, de máximo afastamento do Sol).

 

Como poderiam os habitantes da polar ver a estrela de cinco pontas de Vénus?

“A religião antiga baseava-se na ordem divina da Natureza. A deusa Vénus e o planeta Vénus eram uma e a mesma coisa. A deusa tinha o seu lugar no céu nocturno e era conhecida por muitos nomes: Vénus, Estrela do Oriente, Ishtar, Astarte...”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Outra ideia corrente entre os ocultistas ocidentais é a de um pentagrama formado pelas cinco conjunções inferiores de Vénus - quando este se encontra entre a Terra e o Sol - num ciclo de oito anos. O mesmo pentagrama também resulta das cinco conjunções superiores, que ocorrem no mesmo período - agora com os três corpos a ficarem aproximadamente alinhados no espaço, mas com o Sol na posição central. Supostamente, o significado esotérico deste pentáculo decorre da observação do fenómeno, o que qualquer astrónomo sabe ser falso, uma vez que Vénus não é observável nas conjunções inferiores - a menos que ocorra um raríssimo trânsito (a passagem do planeta em frente do disco solar). A proximidade do brilho ofuscante do Sol inviabiliza a observação.

Outra possível explicação exige que o observador esteja algures no espaço, fora da órbita da Terra. Aqui a figura geométrica que se obtém também não é perfeita, não se fechando num dos seus vértices. Além disso quando Brown escreve que «[...] Vénus traçava, de oito em oito anos, um pentáculo perfeito no céu [...]» está implícito que o observador se encontra no nosso planeta. O que é apoiado mais à frente quando se refere que os antigos ficaram espantados ao observar o fenómeno.

 

(Figura 3. 4 - Anagrama formado pelas conjunções inferiores de Vénus com a Terra, num período de oito anos, para um observador colocado fora da órbita terrestre).

 

O que dizia o anagrama de Galileu sobre Vénus?

“Os reis franceses da Renascença estavam tão convencidos do poder mágico dos anagramas que nomeavam anagramistas reais para os ajudarem a tomar as melhores decisões analisando as palavras dos documentos. Os Romanos iam ao ponto de referir-se ao estudo dos anagramas como ars magna - «a grande arte».”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Observando Vénus com um pequeno telescópio ou com uns bons binóculos solidamente apoiados, o espectáculo é surpreendente. O «ponto» luminoso é, por vezes, um crescente lunar, com um bordo luminoso muito estreito e pronunciado, como o da Lua perto de lua nova. A essa fase da Lua - e de Vénus - costuma chamar-se falcada, designação que deriva do latim, de falcata, ou seja, em forma de foice.

O astrónomo que descobriu este aspecto surpreendente de Vénus foi Galileu, o homem que pela primeira vez apontou um telescópio para os céus. Estava-se em finais de 1610 e o cientista italiano ficou tão surpreendido com o que viu como o fica hoje uma criança. Galileu tomou notas cuidadosas e reparou que a aparência do planeta mudava, passava por fases, e que o seu diâmetro aparente mudava também. Quanto mais estreito era o bordo iluminado de Vénus, maior era o seu diâmetro aparente. Quanto mais Vénus se aproximava de um disco, mais pequeno aparecia.

Galileu sabia que tinha feito uma descoberta extraordinária. Tão extraordinária que decidiu revelá-la a Kepler. Mas, tal como o conservador do Louvre Jacques Saunière, n'O Código Da Vinci, fê-lo através de um anagrama: «Haec immatura, a me, iam frustra, leguntur -o.y.», escreveu Galileu. A frase não parece fazer sentido, mesmo traduzida: «Estas coisas imaturas são lidas por mim - y.o.» Que quereria Galileu dizer?

Os anagramas eram artifícios usados pelos cientistas da época para assegurar prioridade sobre as suas descobertas, evitando torná-las públicas. Se alguém viesse a revelar as fases de Vénus antes de Galileu ter divulgado

 

(Figura 3. 5 - Galileu Galilei (1564-1642) apresentando a primeira luneta astronómica ao Doge de Veneza. Reproduzido de Flammarion, As Terras do Céu).

 

as suas observações, o astrónomo italiano poderia sempre desvendar o seu anagrama. Reordenando as letras e adicionando um «y» e um «o», que não tinha conseguido incluir na frase e que por isso acrescentou no fim, Galileu poderia revelar a sua descoberta: «Cynthiae figuras aemulatur Mater Amorum», isto é, «A Mãe do Amor (Vénus) emula as fases de Cíntia (Diana, a Lua)».

Mas, por que razão se deu Galileu a todo este trabalho? Porque tinha ele receio de anunciar a sua descoberta?

Estava-se então nos fins de 1610 e a polémica entre os partidários do sistema de Ptolomeu e os partidários de Copérnico tinha-se reacendido. A teoria geocêntrica, que punha a Terra, imóvel, no centro do Universo, era a teoria oficial da Igreja Católica. A teoria heliocêntrica de Copérnico, que punha o Sol no centro, com a Terra e os outros planetas a orbitá-lo, tinha começado a ser divulgada e estava a ganhar adeptos. A Inquisição estava vigilante na defesa da teoria oficial.

Nos princípios de 1610, Galileu fez duas importantes descobertas ao apontar pela primeira vez um telescópio para os céus. Descobriu que a Lua tem montanhas e vales, tal como o nosso planeta. Essa descoberta destruiu a crença na perfeição e imutabilidade dos céus. Descobriu ainda que Júpiter tem luas que orbitam o planeta, e essa descoberta destruiu a crença na existência de um centro único do Universo.

Galileu também sabia que a revelação das fases de Vénus seria uma significativa ajuda em defesa de Copérnico. Se o planeta tinha fases não poderia ser verdade que Vénus e o Sol se movessem em esferas cristalinas concêntricas, orbitando o nosso planeta, como o supunha a teoria de Aristóteles.

Se o diâmetro aparente de Vénus mudava, isso queria dizer que a sua distância à Terra também mudava. Se o diâmetro aparente aumentava quando o planeta se reduzia a um bordo luminoso, e se esse diâmetro aparente diminuía quando o planeta revelava um disco quase todo iluminado, isso queria dizer que umas vezes Vénus se encontrava entre nós e o Sol, outras vezes era o Sol que se interpunha entre nós e o planeta. Uma teoria capaz de explicar esses factos era a teoria de Copérnico, que via os planetas em órbita em torno do Sol.

Por isso Galileu receava revelar a sua descoberta, por isso a escreveu num anagrama. O seu julgamento, 23 anos mais tarde, sob a acusação de defender a teoria herética de Copérnico, veio a provar que os seus temores eram fundados.

 

O que é a cifra de César?

“Ao longo dos séculos, foram muitas as grandes figuras que inventaram soluções criptológicas para o problema da protecção de dados: Júlio César imaginou um esquema de escrita em código conhecido como a Caixa de César; Maria, rainha da Escócia, criou uma cifra de substituição graças à qual enviava mensagens secretas da prisão, e o brilhante cientista árabe Abu Yusuf Ismail al-Kindi protegia os seus segredos com uma engenhosa cifra de substituição polialfabética.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

A necessidade constante de decifrar mensagens codificadas está presente em toda a obra de Dan Brown. No entanto, não é só nesta obra que tal se verifica, sempre esteve presente ao longo da história. Se juntarmos os factos de ser difícil para um ser humano guardar segredos, de os mensageiros poderem ser comprados e de as mensagens poderem ser roubadas por terceiros, é fácil compreender por que isso acontece. Desde cedo que a criptografia(1) começou a ser desenvolvida, sendo hoje uma elaboradíssima ciência.

Júlio César utilizava uma técnica de encriptação para comunicar com os seus generais que ficou conhecida por cifra de César. Esta técnica baseava-se na substituição de uma letra de texto por outra desfasada dela no alfabeto um número fixo de vezes: por exemplo, A substituído por D, B por E e C por F.

 

*1. A criptografia (do grego kryptós, «escondido», e gráphein, «escrever») consiste no estudo das técnicas pelas quais a informação se pode representar de forma ilegível, para que apenas o receptor a compreenda. A criptografia moderna está intimamente ligada à matemática e à teoria da computação.

 

De forma mais geral, as técnicas em que cada letra da mensagem é substituída por outra de forma constante (ainda que não tenha de obedecer a uma mera translação do alfabeto) são designadas por cifras de substituição monoalfabética. Contra estas técnicas existe uma óptima e eficaz arma: a estatística. Se se conhecerem as distribuições de frequências das letras no idioma da mensagem, o trabalho de decifração fica muitíssimo facilitado. Por exemplo, se estivermos perante uma mensagem grande em português cifrada por um sistema de substituição monoalfabético, o símbolo mais usado será, tendencialmente, o para a letra A. Na tabela que aqui apresentamos vê-se que a distribuição das ocorrências das letras varia muito e que há algumas que ocorrem tão frequentemente que são relativamente fáceis de detectar. Estando algumas letras identificadas num texto cifrado, torna-se mais fácil descobrir a chave das outras.

 

Letras e Percentagens da sua ocorrência.

Dados Estatísticos:     

 

A    14,63        

B    1,04          

C   3,88          

D   4,99          

E    12,57        

F    1,02          

G   1,30          

H   1,28          

I     6,18                

J    0,40    

K    0,02

L    2,78

M   4,74

N   5,05

O   10,73

P    2,52

Q   1,20

R   6,53

S 7,81

T    4,34

U   4,63

V    1,67

w   0,01

X 0,21

Y    0,01

Z    0,47

 

Comprimento médio das palavras: 4,53

 

Anagramas fornecem outra forma elementar de esconder o conteúdo de uma mensagem. Um anagrama, como já vimos, consiste numa palavra obtida por transposição das letras. A nova palavra tem exactamente as mesmas letras que a original.

Exemplo: MISSA - ASSIM

Também os anagramas não escapam à análise estatística, desta vez estudando o tamanho das palavras. Além disso, dada uma palavra numa certa língua é relativamente fácil saber-se quantas palavras com o mesmo tamanho e mesmas letras existem. O estudo estatístico tornou obsoletos os códigos mais simples.

Abu Yusuf Ismail al-Kindi (século VIII d. C), conhecido como o filósofo dos árabes, foi o primeiro a utilizar métodos estatísticos para a decifração de mensagens. Foi autor do tratado Um Manuscrito sobre Decifração de Mensagens Criptográficas.

Para fazer face à análise estatística das cifras de substituição monoalfabética, surgiram métodos de substituição polialfabética em que o alfabeto a usar ia mudando ao longo da mensagem. No entanto, embora eficazes, todos estes sistemas foram derrotados.

 

Como cifrava Leonardo as suas mensagens?

“Langdon estivera tão ansioso por conhecer algumas das ideias do grande pensador que esquecera que entre os inúmeros talentos artísticos de Leonardo se contava o de utilizar uma escrita invertida que era praticamente ilegível para qualquer outra pessoa. Os historiadores ainda continuavam a debater se da Vinci escrevia assim para se divertir ou para impedir alguém de espreitar-lhe por cima do ombro e roubar-lhe as ideias, mas a questão era estéril. Da Vinci fazia pura e simplesmente o que lhe apetecia.

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Ao longo dos tempos foram sendo desenvolvidos outros métodos de cifrar mensagens. Um dos mais interessantes, embora de fácil decifração, era utilizado por Leonardo da Vinci. Usava-o para escrever os seus célebres cadernos, em que nos deixou um incrível conjunto de ideias e projectos(1). Os seus escritos, brilhantemente ilustrados, trataram, entre outros temas, o voo dos pássaros, as máquinas voadoras, os submarinos, a culinária e a astronomia. Como se não fossem já suficientemente mágicos, eram escritos de forma pouco habitual, eram invertidos.

 

*1. Ver no Istituto e Museo di Storia delia Scienza.

 

Leonardo escrevia os seus textos de forma reflectida em relação a um eixo perpendicular à base da folha. Por exemplo, se tivesse de escrever em português a linha de texto:

“A Matemática além de ser útil é bela”

o que aparecia no papel seria:

“aleb é litú res ed méla acitámetaM A”

 

É claro que esta maneira de escrever dificulta muito a leitura directa, mas pode sempre utilizar-se um espelho como objecto de decifração. Num espelho comum, vemos a nossa imagem com a mesma forma e tamanho. Essa imagem parece vir de uma pessoa igual a nós que esteja atrás do espelho a uma distância igual à que nos encontramos dele. Os raios luminosos que partem de nós reflectem-se no espelho e voltam a atingir os nossos olhos. Pode-se explicar facilmente o que sucede através de um esquema.

 

Sendo assim, é agora fácil compreender o que se passou na aventura de Dan Brown:

“Experimente com aquilo - murmurara-lhe a professora da universidade presente junto do expositor, indicando um espelho preso por uma corrente ao rebordo da caixa. Langdon pegara no espelho e examinara o texto reflectido na sua superfície.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Embora o esquema de Leonardo crie dificuldades na leitura dos seus textos, não se pode considerar um método robusto de codificação. Aliás, é mesmo bastante fácil decifrar os seus textos. O esquema de Leonardo não chega a levantar um problema, uma vez que à partida já nasce resolvido... pela simetria.

 

Foi Leonardo quem inventou o criptex?

“Sim. Chama-se um criptex. Segundo o meu avô, os planos para a sua construção faziam parte de um dos diários secretos de da Vinci.”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Segundo Dan Brown, outra contribuição de Leonardo para a transmissão secreta de mensagens é a invenção do criptex(1), um objecto que se autodestrói perante a tentativa de violação. Tem toda a lógica criar uma forma física de proteger mensagens de hipotéticos piratas. Reivindica-se no livro de Dan Brown que a ideia original para um objecto deste tipo aparece nos cadernos de Leonardo da Vinci,

 

*1. http://www.leonardo3.net/leonardo/home.htm

 

mas esta afirmação não se encontra bem fundamentada. O criptex é descrito por Dan Brown como sendo um cilindro de pedra composto por cinco anéis. Colocados em certa posição permitem retirar com toda a comodidade um papiro do seu interior. Mas forçando-se a abertura sem alinhar correctamente os cinco anéis, quebra-se um vidro que liberta vinagre que dissolve o papiro.

A afirmação de que o criptex tem origem em Leonardo da Vinci baseia-se num conhecido desenho do seu manuscrito B. No entanto, esse desenho diz respeito a outros assuntos, tais como meios de elevação e eixos de canhão (1).

Também não é claro que a solução do vinagre seja eficaz: o líquido pode danificar papiros antigos, mas não é certo que os torne de imediato ilegíveis. Hoje a ideia poderia ser aproveitada, uma vez que é possível fazer papel preparado para se dissolver imediatamente em vinagre(2). Mas toda a bela tem senão: podemos hoje recorrer aos raios X de forma a descobrir o alinhamento dos anéis que permita a abertura de um criptex. Uma outra possibilidade, interessante num romance, consistiria em congelar o vinagre no interior daquele mecanismo engenhoso(3) e abri-lo com o vinagre congelado e, portanto, ineficaz.

A ideia de criar um dispositivo físico com anéis para cifrar (e decifrar) mensagens foi melhorada numa fase muito posterior a Leonardo e deu origem a uma página importantíssima na história. Foi criada na Europa a partir da década de 20 do século passado, uma máquina com rotores, utilizada tanto para cifrar como para decifrar mensagens secretas.

 

*1.http://www.leonardo3.net/leonardo/brown_criptex_eng.htm

*2. Por exemplo, fibras de papel adicionadas a uma solução de bicarbonato poderão dar origem a um tipo de papel que se dissolva quase imediatamente no contacto com vinagre (vinagre reage quimicamente com o bicarbonato).

*3. A temperatura necessária depende do tipo de vinagre, mas na maioria dos casos corresponde a aproximadamente -2°C.

 

Esta máquina, denominada Enigma, é célebre por ter sido utilizada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Era portátil, prática e rápida. Durante muito tempo, acreditou-se que era invulnerável.

Com a máquina Enigma, a mesma letra é cifrada de forma diferente ao longo do mesmo texto. O mecanismo envolve um teclado e um conjunto de rotores rotativos dispostos em fila. Quando uma tecla da máquina é premida, o rotor mais à direita avança uma posição e, depois de avançar um número dado de posições, faz avançar os restantes rotores seguinte(1). Este movimento muda constantemente a forma de encriptar o texto e faz com que só ao fim de muito tempo todos os rotores tenham rodado e se repita a chave de encriptação. A maravilha do sistema (e simultaneamente um dos seus calcanhares de Aquiles) está em que, se o receptor conhecer a posição inicial dos rotores, bastará colocar a máquina nessa posição e escrever a mensagem cifrada: como resultado obterá a mensagem decifrada.

A quebra da eficácia da máquina Enigma teve uma grande relevância na história da Segunda Guerra Mundial. Matemáticos como o polaco Marian Rejewski (1905-1980) e o inglês Alan Turing (1912-1954) foram decisivos no ataque ao problema. O primeiro utilizou conhecimentos matemáticos relativos às permutações(2), explorando a

 

*1. Dispositivo parecido com um conta-quilómetros.

*2. Permutações são alterações de ordem. Por exemplo, XYZ resulta de XZY por uma permutação. O número de permutações possíveis de n elementos é dado por n vezes(n-1)Vezes(n-2)vezes ... vezes 2 vezes 1, que se designa habitualmente por n facturial.

 

reciprocidade da máquina(1). Alan Turing também trabalhou com uma vasta equipa no problema. Este importante cientista ficou ainda mais conhecido por ter usado o que seriam os princípios teóricos do computador moderno para criar a Máquina de Turing(2). Os historiadores, em geral, acreditam que o sucesso do trabalho científico efectuado sobre a máquina Enigma serviu para encurtar de forma significativa a guerra.

 

*1. Numa dada posição de rotores a máquina Enigma respeita a reciprocidade, isto é, se por exemplo para essa dada posição a letra A for transformada na letra F, então, para a mesma posição, a letra F é transformada na letra A.

*2. Modelo matemático muito simples, mas que concebe a realização de inúmeras tarefas. Mesmo hoje, na teoria da computação, os problemas são muitas vezes pensados na Máquina de Turing, uma vez que os computadores modernos não são, no essencial, diferentes desta máquina.

 

                  Os números de Fibonacci

 

Quem foi Fibonacci?

“1-1-2-3-5-8-13-21

- Capitão - disse Sophie, num tom perigosamente desafiador -, a sequência de números que tem na mão é uma das mais famosas progressões matemáticas da História.

Fache não imaginava que existisse sequer uma progressão matemática que merecesse o epíteto de famosa, e com toda a certeza não gostou do tom deslocado de Sophie.

- É a sequência Fibonacci - continuou ela, apontando para o pedaço de papel que Fache continuava a segurar. - Uma progressão em que cada termo é igual à soma dos dois que o antecedem.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Fibonacci (1170-1240), filho de Bonacci, foi um importante matemático da Idade Média, tendo dado contribuições nas áreas da aritmética, da álgebra e da geometria.

O seu nome de baptismo era Leonardo de Pisa e era filho de um mercador italiano colocado no Norte de África. A profissão do pai proporcionou-lhe viagens ao Médio Oriente nas quais se familiarizou com o sistema decimal hindu-árabe, o actual sistema de escrita de números que, ao contrário do romano, é um sistema posicional, de base dez, que usa o zero. Em 1202, publicou um livro intitulado Liber Abaci, que significa «Livre do ábaco» e não, como muitas vezes se diz, «Livro do ábaco». Tratava-se de um manual completo que mostrava a utilidade prática do sistema de numeração hindu-árabe no comércio, na conversão de pesos e medidas, nos cálculos de câmbios e noutras áreas aplicadas. Este livro foi aceite pela Europa culta e obviamente teve efeito no seu pensamento. Foi muitas vezes copiado, servindo de modelo a praticamente todas as aritméticas comerciais da época medieval e renascentista.

 

Liber Abaci está dividido em 15 capítulos(1), sendo o décimo segundo dedicado à resolução de diversos problemas. Aí aparece uma questão célebre que deu origem à ainda mais célebre sucessão de Fibonacci.

Como se comportavam os coelhos de Fibonacci?

 

“Langdon sorriu. - Já alguma vez estudou a relação entre machos e fêmeas numa comunidade de abelhas?”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Uma sucessão numérica é um objecto matemático muito comum. Define-se como uma função de variável natural e pode ser pensada simplesmente como um conjunto de números devidamente ordenado, de forma que cada elemento fique indexado a um número natural ({1, 2, 3, ...}). É pois uma apresentação sequencial de números. Por exemplo, 2, 4, 6, ... é uma sucessão (a sucessão de números pares), e 1/2, 1/3, 1/4, ... é outra sucessão (neste caso uma sucessão de números cada vez mais pequenos, que converge para zero)(2).

 

*1.http://www.malhatlantica.pt/mathis/Europa/Medieval/fibocacci/ Liberabaci.htm.

 

*2. Em Portugal usa-se a palavra «sucessão», ao contrário do que acontece no Brasil, em que se usa a palavra «sequência» por influência do inglês «sequence». Outra palavra, «progressão», é também usada em Portugal para referir as progressões aritméticas (sucessões em que qualquer termo, à excepção do primeiro, é igual ao anterior adicionado de uma constante) e as progressões geométricas (sucessões em que qualquer termo, à excepção do primeiro, é igual ao anterior multiplicado por uma constante, chamada razão).

 

Entre as sucessões mais famosas, conta-se a dita sucessão de Fibonacci, que apareceu no Liber Abaci sob a forma de um problema obscuro:

Um homem colocou um par de coelhos num local cercado por todos os lados por uma parede. Quantos pares de coelhos podem ser gerados a partir desse par ao fim de um ano, sabendo que, por mês, cada par gera um novo par, que se torna produtivo no segundo mês de vida?

Admitindo que não há mortes, trata-se de um problema relativamente simples. No primeiro mês, existia apenas o par inicial. No segundo mês, este atingiu a idade reprodutiva. No terceiro mês, esse par teve já outro par. No quarto mês, o par inicial teve outro par, enquanto os seus primeiros filhos cresciam. No quinto mês, tanto o par inicial como os seus primeiros filhos, entretanto já maduros, tiveram descendentes. E por aí adiante. O leitor está certamente a ver o número total de pares mês após mês: 1, 1, 2, 3, 5, 8, ... E está pois a ver o padrão: obtém-se cada termo somando os dois anteriores - é a célebre sucessão de Fibonacci(1). Afinal, esta sucessão

 

*1.http://www.mcs.surrey.ac.Uk/Personal/R.Knott/Fibonacci/ fib.html.

 

sublime foi encontrada a partir de um problema aparentemente tão simples como o do incesto de coelhos.

Tendo em conta que, por mês, cada par de coelhos adultos gera um novo par que se torna reprodutivo no segundo mês de vida, quantos pares de coelhos podem ser gerados a partir de um único par de crias ao fim de um ano?

 

Figura 4.2 - Crescimento populacional dos coelhos segundo a regra de Fibonacci

 

1º mês 1 par de crias

2º mês 1 par de adultos

3° mês 1 par de adultos e 1 par de crias

4° mês 2 par de adultos e 1 par de crias

5º mês 3 par de adultos e 2 par de crias

6° mês 5 par de adultos e 3 par de crias

7° mês ...                                           

8º mês ...                                           

9° mês ...                                           

10° mês ...                                         

11º mês ...                                         

12º mês ...

 

Solução: Ao fim de um ano teriam sido gerados 143 pares de coelhos (88 pares adultos e 55 pares de crias). Com o par inicial existiriam 144 pares.                                              

 

Esta curiosa sucessão aparece também nas árvores genealógicas de abelhas (questão mencionada no livro de Dan Brown). Há mais do que 30 000 espécies das abelhas, no entanto algumas das espécies domésticas têm uma árvore genealógica que segue as seguintes regras de crescimento:

1) há uma fêmea especial chamada rainha;

2) há muitas fêmeas operárias que, ao contrário da rainha, não produzem ovos;

3) os zangões provêm de ovos não fertilizados. Os zangões têm portanto mãe, mas não têm pai;

4) todas as fêmeas são produzidas a partir de ovos fertilizados, portanto têm mãe e pai;

5) a generalidade das fêmeas são operárias, mas algumas são alimentadas com uma substância especial chamada geleia real e transformam-se em rainhas.

Com base nestas regras, pensemos na resposta à seguinte questão: «Quantos tetravôs tem um zangão?» Repare-se no seguinte:

1) o zangão teve uma mãe, uma fêmea;

2) teve dois avós, uma vez que a sua mãe teve dois pais, um macho e uma fêmea;

3) teve três bisavós: a sua avó teve dois pais, mas o seu avô teve somente uma mãe;

4) teve cinco trisavôs: dois pais de cada uma das suas bisavós e a mãe do seu bisavô;

5) finalmente, e pelo mesmo raciocínio, teve oito tetravôs: seis pais de cada uma das suas três trisavôs mais as duas mães dos seus trisavôs.

A chave está novamente na sucessão de Fibonacci.

Mas não é só no crescimento populacional que esta sucessão aparece na vida das abelhas. A própria deslocação de uma abelha na sua colmeia pode estar relacionada com a dita sucessão. No caso mais simples, assumindo que os favos hexagonais se estendem tão longe quanto se queira para o lado direito e que uma abelha se desloca para um favo adjacente tomando uma de duas possibilidades, podemos pensar num problema de contagem de caminhos.

Repare-se que a forma de contar o número de caminhos possíveis, C(n) para o favo n: C(n)= C(n - 1) + C(n - 2). A razão de ser desta recorrência consiste no seguinte facto: uma abelha para poder alcançar o favo n, só podia estar em duas posições distintas no momento imediatamente anterior: ou no favo n-1, ou no favo n-2. Aparecem mais uma vez os números de Fibonacci.

 

Há números de Fibonacci nas plantas?(1)

“Passou para o diapositivo seguinte: um grande plano da cabeça de uma semente de girassol.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

*1.http://britton.disted.camosun.bc.ca/fibslide/jbfibslide.htm.

 

Por incrível que pareça, os números de Fibonacci podem ser vistos na organização das sementes na coroa das flores. Podemos marcar o centro de um girassol com um ponto a negro e, em seguida, ver que as sementes parecem formar duas espirais, uma no sentido directo e outra no sentido retrógrado. Se contarmos as sementes dessas duas espirais veremos que, quase por magia, os números serão «irmãos de Fibonacci», isto é, termos consecutivos da respectiva sucessão.

Nos girassóis mais comuns, é normal encontrar 34 sementes num sentido e 55 no outro, mas, conforme o tamanho da flor, é possível encontrar os pares 89-55, 144-89 e até 233-144, como foi apresentado em 1995 na revista Scientific American. Fenómenos do mesmo tipo acontecem com pinhas e ananases. No caso de certo tipo de pinhas, o número de espirais num sentido é «irmão de Fibonacci» do número de espirais no sentido inverso.

A sucessão de Fibonacci aparece ainda no crescimento dos galhos de certas plantas. Suponhamos que cada ramo dá origem a outro ao fim de dois meses, quando se encontra já suficientemente forte para o suportar (um exemplo deste tipo é a planta Achillea ptarmica). Nesse caso o número de galhos por mês vai seguir a mesma lógica que os coelhos do Liber Abaci.

A sucessão de Fibonacci aparece também no arranjo das folhas no caule de uma planta - filotaxia. O nascimento das folhas de inúmeros tipos de plantas parece dar origem a uma hélice. Existe portanto um movimento aparente vertical e um movimento aparente de rotação (que poderá ser considerado no sentido horário ou no sentido anti-horário). Sendo assim, considerando o ângulo de amplitude 0 graus o que está associado à primeira folha, podemos deixar nascer novas folhas ao longo do caule até que nasça a próxima associada novamente ao ângulo de 0°. Tendo em conta essas duas folhas de referência, podemos contar quantas voltas no sentido horário e anti-horário foram necessárias até ao nascimento da nova folha na mesma posição angular. O que é extraordinário é que numa grande quantidade de plantas o número de voltas no sentido horário, o número de voltas no sentido anti-horário e o número de folhas nascidas (sem contar com a original) são três termos consecutivos da sucessão de Fibonacci.

Não será por acaso que as folhas de algumas plantas nascem de acordo com esta regra. Desta forma proporciona-se um equilíbrio no desenvolvimento da planta, facilitando a recepção de luz pelas folhas. Mas haverá outras explicações que ainda se desconhecem.

 

O que tem a ver a sucessão de Fibonacci com as escalas musicais?

“Da Vinci... os números Fibonacci... o pentáculo. Incrivelmente, todas aquelas coisas estavam ligadas por um único conceito tão fundamental para a História da Arte que Langdon dedicava com frequência várias aulas ao tema.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Como vimos na secção anterior, a sucessão de Fibonacci aparece na natureza das mais surpreendentes formas, que despertam um sentimento de harmonia e de perfeição. Talvez por esse motivo, o padrão de Fibonacci aparece em diversas expressões artísticas e das mais variadas maneiras.

Comecemos por abordar uma fascinante aparição da sucessão de Fibonacci na música. Para se entender a utilização da sucessão temos de perceber o conceito de escala musical. Começa-se por definir a frequência do lá fundamental em 440 Hz (lá(3)). É o lá que se escreve no segundo espaço da clave de sol. Um intervalo corresponderá à ideia intuitiva de «distância entre as notas». Fisicamente, o intervalo é definido da seguinte forma: se a frequência de uma nota é x, e a de outra nota é y, o intervalo entre elas será a razão x/y (admitindo x > y). Se a razão for igual a 2 o intervalo é denominado de oitava. Assim, por exemplo, um lá uma oitava acima do lá fundamental terá uma frequência de 880 Fiz e um lá uma oitava abaixo do lá fundamental terá 220 Hz. Na nomenclatura de quem sabe ler e escrever música, um intervalo pode ser uma segunda, uma terça, uma quarta, etc. (por exemplo: de dó a ré é uma segunda). As frequências ou notas usadas podem ser visualizadas nas teclas de um piano. No teclado, uma oitava é composta de 8 teclas brancas e de 5 teclas pretas (sustenidos ou bemóis da escala de dó maior). As teclas pretas estão posicionadas em grupos de 2 e 3. O conjunto total de 13 notas constitui a escala cromática, que é a escala a mais completa na música ocidental. Repare-se: 2, 3, 5, 8, 13. Tudo números de Fibonacci!

 

Bela Bartók (1881-1945) utilizou a famosa sucessão na sua obra musical, nomeadamente em Música para Cordas, Percussão e Celesta. Erno Lendvai, no seu livro Bela Bartók: Uma análise da sua música, fornece algumas informações úteis sobre o método original de composição de Bartók. Nota o fascínio do compositor com alguns fenómenos naturais envolvendo a sucessão de Fibonacci. Bartók era coleccionador de plantas, de insectos e de minerais.

 

Talvez tenha sido através dessa actividade coleccionadora que tenha contactado pela primeira vez com o padrão de Fibonacci. Certo trecho fundamental da música para cordas, percussão e celesta tem as seguintes características de Fibonacci: é constituído por 88 medidas longas mais uma extremidade silenciosa (um total de 89 medidas), o clímax ocorre após a 55.a medida. Mais, após iniciar as 34 medidas finais, a divisão da composição com e sem cordas é separada através de um intervalo de 21 medidas. Construções semelhantes podem ser encontradas na técnica de montagem do clássico filme O Couraçado Potemkine: a bandeira vermelha no mastro do couraçado em rebelião (o apogeu do filme) é içada num instante escolhido criteriosamente a contar do final do filme. Também George Eckel Duckworth, professor de literaturas clássicas de Princeton defende a tese de que Virgílio utilizou processos semelhantes na sua magna Eneida (Structural Patterns and Proportions in Vergil’s Aeneid).

 

Qual será a melhor forma de somar termos da sucessão de Fibonacci?

“Tenho estado toda a noite a pensar nos números. Somas, quocientes, produtos. Não vejo nada. Matematicamente estão dispostos de uma forma aleatória. Algaraviada criptográfica. - E no entanto, fazem todos parte da sequência Fibonacci. Não pode ser coincidência.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

No ensino pré-universitário, os estudantes tomam contacto com sucessões especiais em que é muito fácil somar termos consecutivos. Casos desse tipo são as sucessões em que todos os termos (excluindo o primeiro) podem ser obtidos do anterior somando-lhe uma razão fixa (progressões aritméticas). Por exemplo, 1, 5, 9, 13, 17, ... é uma progressão aritmética de razão igual a 4. Conta-se que o famosíssimo matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855) deu sinais de grande genialidade ainda em tenra idade quando o seu professor o castigou, pedindo-lhe para somar os números naturais de 1 a 100. De facto, Gauss começou por pensar que a soma simples 1 + 100 = 101 tem o mesmo resultado que 2 + 99 = 101 (o que se acrescenta ao 1 retira-se ao 100) e que 3 + 98 = 101, etc. Sendo assim, teve apenas de verificar que existem 50 pares de elementos no conjunto {1,...,100} e portanto o cálculo pretendido corresponde a 50 x 101 = = 5050. Esta ideia simples está na base da fórmula para a soma dos n primeiros termos de uma progressão aritmética:

 

1+2+3+4+ ... +97+98+99+100

 

1+100=101

2+99=101

3+98=101

4+97=101

 

(Figura 4.8 - Carl Friedrich Gauss, quando jovem, foi castigado com a soma dos 100 primeiros números naturais, tarefa que conseguiu resolver rapidamente agrupando os números em pares com somas idênticas)

 

Nota de abreviaturas:

(ind. inf.) - Indíce Inferior

S(ind. Inf. n) =(U (ind. Inf. 1)+U (ind. Inf. n))x(n/2). Por exemplo, se quisermos somar os quatro primeiros termos da sucessão 1, 5, 9, 13, 17,..., basta efectuar o cálculo S(ind. Inf. 4)=(1 + 13)x(4/2)=28. Na sucessão de Fibonacci também se pode fazer um raciocínio interessante para as somas de termos consecutivos. Basta reparar que

U(ind. Inf. n+2)=U(ind. Inf. n+1)+U(ind. Inf. n) e, consequentemente,   U(ind. Inf. n)=U(ind. Inf. n+2)-U(ind. Inf. n+1). Pensemos então na soma dos n primeiros termos da sucessão de Fibonacci:

S(ind. Inf. n)=U(ind. Inf. 1)+ (ind. Inf. 2)+ ... + U(ind. Inf. n-1)+ U(ind. Inf. n)

Pelo que acabámos de verificar, essa soma pode ser reescrita da seguinte forma:

S(ind. Inf. n)=(U(ind. Inf. 3)-U(ind. Inf. 2))+(U(ind. Inf. 4)-U(ind. Inf. 3))+ ... +(U(ind. Inf. N+1)-U(ind. Inf. n))+(U(ind. Inf. n+2)-U(ind. Inf. n+1)).

que é o mesmo que ter:

S(ind. Inf. n)=U(ind. Inf. n+2)-1

 

Consideremos novamente a sucessão de Fibonacci 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, ... Por exemplo, para somarmos os seis primeiros termos, basta tomar o oitavo termo que é o número 21 e subtrair-lhe 1 para obter a soma desses seis primeiros termos: 1 + 1+2 + 3 + 5 + 8 = 20. O leitor poderá pertinentemente pensar que apesar de o processo de soma ser simples, a dificuldade em encontrar os termos da sucessão subsiste, ou seja, se alguém quiser somar 30 termos, a tarefa de encontrar o trigésimo termo continua a exigir algum trabalho. No entanto, como veremos no próximo capítulo, é possível encontrar uma fórmula para a determinação do n-ésimo termo de Fibonacci.

A sucessão de Fibonacci fornece ainda um processo de obter todos os números naturais. Relembremos que os números primos fornecem também uma forma de o fazer. Sabe-se que qualquer número natural maior do que 1 é primo ou pode escrever-se de forma única como um produto de factores primos. Isso quer dizer que todo o natural tem uma espécie de impressão digital que é a sua decomposição associada. Por exemplo, 10 = 2x5, 12 = 2x2x3, etc. Esta é uma das razões da importância dos números primos, uma vez que se podem usar as decomposições dos números naturais para várias tarefas matemáticas. O que é muito curioso é que se pode demonstrar uma propriedade aditiva do mesmo tipo utilizando os números de Fibonacci, ou seja, podemos pensar noutro tipo de impressão digital para os números naturais baseada na sucessão de Fibonacci. A propriedade é a seguinte:

Todo o natural pode ser escrito como uma soma única finita de números de Fibonacci distintos e não consecutivos. Exemplifique-se com os primeiros nove naturais:

1 = 1

2 = 2   

3 = 3   

4 = 1 + 3

5 = 5   

6 = 1 + 5

7 = 2 + 5

8 = 8   

9 = 1 + 8

(...)

 Para terminar este resumo de algumas propriedades aritméticas da sucessão de Fibonacci, é fundamental referir a sua famosa relação com o triângulo de Pascal(1). O triângulo de Pascal é construído com os coeficientes que aparecem associados ao desenvolvimento de um binómio do tipo (x + y)elevado a n — binómio de Newton.

É interessantíssimo verificar que a sucessão de Fibonacci surge, mais uma vez, na soma das diagonais no triângulo de Pascal...

 

*1. Blaise Pascal (1623-1662) foi um famoso matemático francês. Homem de saúde débil e fortes crenças religiosas, notabilizou-se entre outras coisas por grandes trabalhos na área da geometria (escreveu aos dezasseis anos um célebre tratado sobre cónicas) e pela invenção de uma das primeiras máquinas de calcular.

 

Será possível quadrados nascerem de geração espontânea?

Terminamos este capítulo relacionado com a sucessão de Fibonacci com uma interessante curiosidade aritmética. Um excelente exercício que um professor de matemática pode desenvolver quando ensina aos seus alunos o conceito de declive é o seguinte: tome-se um quadrado de 8x8, recortem-se quatro polígonos como se mostra na figura 4.11 e reagrupem-se os quatro polígonos numa forma rectangular.

Tomando os quadradinhos pequenos para unidade, a área do quadrado será igual a 8x8 = 64 e a do rectângulo a 5 X 13 = 65. Como é isso possível? Onde está o quadrado a mais?

Este é um conhecido paradoxo que Lewis Carroll, o autor de Alice no País das Maravilhas, gostava de colocar

 

(Figura 4.11 — Situação paradoxal: peças iguais e áreas diferentes?)

 

aos seus amigos. A questão pode ser resolvida observando a diagonal do rectângulo. Se se pensar bem, o segmento da diagonal relativo ao polígono 1 tem declive igual a 5/2. Por outro lado, o segmento da diagonal relativo ao polígono 4 tem declive igual a 8/3. Uma vez que 5/2 é diferente de 8/3 algo de errado se passa com a diagonal. De facto, as peças não se ajustam bem e a diagonal deixa um espaço vazio com área igual a 1 não facilmente perceptível a olho nu. Era impossível ter nascido um quadrado... Uma tarefa matemática igualmente interessante consiste em pensar na construção do puzzle. Repare-se que os números relacionados com as dimensões das figuras são 3, 5, 8 e 13—números da sucessão de Fibonacci. Este puzzle foi construído tendo em conta uma interessante propriedade dos termos da sucessão de Fibonacci: LP , = U X [7 , ± 1 (neste caso utilizou-se o facto de 8 = 5 X 13 - 1). Dito por outras palavras, pode provar-se que o produto de dois termos de Fibonacci alternados difere de uma unidade do quadrado do termo que está entre si. Usando esta propriedade podem elaborar-se exercícios parecidos com este, mas com quadrados maiores(1).

 

*1.<http://www.cut-the-knot.org/Curriculum/Fallacies/Fibonacci Cheat.shtml>

 

                   O número de ouro

 

Existe alguma proporção divina?

“— o seu avô falou-lhe a respeito do número PHI?

— Claro. A Proporção Divina. — Fez um ar ligeiramente embaraçado. — Até costumava dizer, na brincadeira, que eu era meio divina... por causa das letras do meu nome, está a ver? Langdon pensou por um instante, e resmungou para si mesmo. S-o-PHI-e.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

O rácio dourado, número de ouro ou proporção divina constituiu objecto de grande interesse ao longo da história. A primeira definição que se conhece apareceu na obra mais famosa da história da matemática, os Elementos de Euclides (século III a.C). O conhecido matemático grego chama-lhe a «divisão em extremo» e «rácio médio»(1), pois trata-se da divisão de um segmento em duas partes desiguais com uma propriedade peculiar: a razão entre o segmento inteiro e a parte maior é igual à razão entre as partes maior e menor. Dimensões de acordo com o rácio dourado têm sido por vezes consideradas as mais belas e sugerindo a maior sensação de harmonia(2).

Repare-se na figura 5.1. Se tomarmos a igualdade (a + b)/a = a/b e multiplicarmos ambos os seus membros por a/b, vamos obter a nova igualdade (a/b) + 1 = (a/b) ao quadrado. Sendo assim, para obter o valor numérico da razão a/b basta resolver a equação de segundo grau x + 1 = x ao quadrado.

A solução admissível dessa equação é o chamado número de ouro, que hoje se representa pela letra grega (Fi) e que

 

*1. Os termos «divina proporção» e «secção dourada» são posteriores. Leonardo da Vinci (1452-1519) providenciou ilustrações para uma obra publicada em 1509 por Luca Pacioli (1445-1517) denominada De Divina Proportione, que constitui talvez a primeira aparição desta designação. Há uma certa confusão quanto à origem da expressão «secção dourada», no entanto encontra-se o seguinte entre os escritos de Kepler (1571-1630): «A Geometria tem dois grandes tesouros: um é o Teorema de Pitágoras; o outro, a divisão de um segmento através do rácio de extremo e médio. O primeiro podemos comparar com o valor do ouro; o segundo com uma jóia preciosa.»

*2. Há quem defenda a sua aparição na construção das pirâmides egípcias (altura de um triângulo lateral e metade da sua base), na arquitectura grega e em inúmeras obras de arte. Para mais informação pode procurar-se o site Museum of Harmony (http:// www.goldenmuseum.com/index_engl.html). Há também quem defenda que algumas destas teses não têm base credível: por exemplo, o matemático George Markovsky da Universidade do Maine (http:// www.umcs.maine.edu/~markov/).

 

(Figura 5.1 — Rácio dourado: o comprimento total, a + b, está para o segmento maior, a, tal como este está para o menor, b.)

 

é igual a (1 + Raíz quadrada de 5)/2 = 1,61803398... Este símbolo(Fi) apareceu apenas no início do século XX, por sugestão do matemático norte-americano Mark Barr, que foi quem primeiro o começou a usar para representar o número de ouro.

A escolha da letra Fi deve-se ao facto de ser a primeira letra do nome grego do célebre escultor Fídias (500-432 a. C), que poderá ter usado a divina proporção nas suas obras. Por coincidência (e provavelmente não mais do que isso), Fi é também a 21ª letra do alfabeto grego e 21 é um dos termos da sucessão de Fibonacci. Na tradução portuguesa da obra de Dan Brown, Fi é referido por Phi, o que não parece lógico, uma vez que não é essa a grafia portuguesa — note-se que se escreve Fídias e não Phídias. Alguns matemáticos também representam o número de ouro pela letra grega (tau), que é a primeira letra da palavra grega para secção. Não se confunda Fi com Pi, constante de proporcionalidade entre o perímetro e o diâmetro de uma circunferência.

Chamamos a atenção do leitor para esta ideia importante em matemática: os números só têm importância se se souber de onde aparecem. O número 1,61803398... não parece ter nada de especial à primeira vista. Só passa a ter importância depois da compreensão de certas construções geométricas e da sua surpreendente aparição em situações quotidianas. Merece então que se lhe reserve um símbolo. O mesmo se pode dizer quanto à importante constante de proporcionalidade entre o diâmetro e o perímetro de uma circunferência (pi = 3,141592...). Por exemplo, uma resposta não muito satisfatória que se pode dar à pergunta «o que tem a dizer sobre o número pi?» é algo como «é igual a 3,14», uma vez que nessa resposta não está absolutamente nada incluído sobre a natureza do número. Melhor resposta, apesar de parecer mais ingénua, seria, por exemplo, «o número de diâmetros que cabem numa circunferência, que é três e um bocadito...»

 

Há rectângulos dourados?

Os matemáticos gregos legaram-nos várias construções geométricas que usam apenas régua não graduada e compasso. Entre essas construções, há várias que usam o número de ouro. Comecemos pelo rectângulo dourado, de que se mostra um processo de construção na figura 5.2.

A partir de um quadrado encontra-se o ponto médio de um dos lados. Com centro nesse ponto, D, traça-se um arco de circunferência que passa pelo vértice C e define o vértice B do rectângulo.

Se tomarmos para unidade a medida do segmento [AE], podemos obter as medidas descritas na figura 5.3.

Note-se que tanto o rectângulo original como o rectângulo interior são rectângulos dourados.

Para os gregos, a noção de gnómon era fundamental no estudo da geometria. Um gnómon geométrico — a não confundir com o instrumento solar — é uma figura que, acrescentada (ou retirada) à anterior, faz nascer uma outra semelhante à original. Sendo assim, o gnómon é «o que mostra», «o que indica» — ideia que também está patente no ponteiro de um relógio de sol, daí o uso da mesma palavra para os dois conceitos.

Tendo em conta as construções que acabámos de mostrar, o quadrado é o gnómon do rectângulo de ouro. Realmente, quando se junta um quadrado a esse rectângulo de forma a que o seu lado maior seja o lado do quadrado, surge um novo rectângulo de ouro. Da mesma forma, quando se retira a um rectângulo de ouro um quadrado interno de lado comum com o lado menor do rectângulo, surge um novo rectângulo de ouro.

 

Já viu um pentagrama ao entrar no edifício da Gulbenkian?

“— É um pentáculo — disse Langdon, com uma voz que soou cava naquele espaço enorme.

— Um dos símbolos mais antigos do mundo. Já era usado quatro mil anos antes de Cristo.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

O pentagrama, ou estrela regular de cinco pontas, pode desenhar-se usando as diagonais de um pentágono regular. Dos símbolos inventados pelo homem, talvez seja dos que tenham dado origem a mais interpretações.

O número de pontas da estrela, 5, exprime a união dos desiguais: 2 e 3. No Egipto, era o símbolo do útero da terra. De acordo com várias tradições ocultistas posteriores, simboliza o andrógino, a união do masculino com o feminino. Para os hebreus, era um símbolo da Verdade, em menção do Pentateuco, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento. Para os agnósticos, representava a Estrela Ardente, um símbolo relacionado com a magia e com os mistérios do céu nocturno. Os primeiros cristãos associavam-no às cinco chagas de Cristo. Para os druidas, era um símbolo divino. Aparece no Renascimento associado à chamada geometria sagrada ou hermética.

É ainda hoje muito usado como símbolo da figura humana.

Quando o pentagrama se inverte, de forma a apresentar uma ponta para baixo recebe o nome cabalístico de pentáculo e é frequentemente utilizado para simbolizar o Diabo.

Quem conhece o edifício da Gulbenkian, em Lisboa, poderá ter reparado num magnífico trabalho de Almada Negreiros (1893-1970) que se encontra na entrada. É um painel onde surgem vários símbolos geométricos, entre eles o pentagrama. É curioso observar que o artista, que estava fascinado com a numerologia e a tradição ocultista da geometria sagrada, esboça uma rotação do pentagrama, que ameaça transformar-se num pentáculo.

Curiosamente, o número de ouro está fortemente relacionado com a construção do pentágono regular.

A razão entre a medida da diagonal maior de um pentágono regular e a medida dos seus lados é a razão de ouro.

Uma vez que os ângulos internos de um pentágono regular têm amplitude igual a 108 graus, ou seja, 3pi/5 radianos, com um pouco de esforço geométrico chegamos à conclusão de que cosseno(pi/5) = fi/2. Ou seja, tendo por base o número de ouro, podemos exprimir várias razões trigonométricas exactas, além das habituais que se aprendem no ensino secundário (pi/6; pi/4; pi/3).

 

(Figura 5.6 — Triângulos dourados e pentagramas) o TRIÂNGULO DOURADO...

 

1). A proporção entre o lado maior e o menor de um triângulo dourado é o número dourado: pi=1,6180339...

2). Dividindo um triângulo dourado encontra-se outro triângulo dourado.

3). E a divisão pode prosseguir indefinidamente.

 

..E O PENTAGRAMA

1). O triângulo dourado pode construir um pentagrama.

2). Na estrela aparecem dois pentágonos...

3). ...e uma sucessão infinita de estrelas e pentágonos encaixados com os rácios sempre iguais ao número de ouro: a/b=b/c=c/d= ...=Fi.

 

Além do rectângulo de ouro, existe também o triângulo dourado, que é um triângulo isósceles (dois lados de medida igual) no qual a proporção entre um qualquer lado maior e o menor é o número de ouro. Como se vê na figura 5.6, o pentagrama pode ser construído sobrepondo triângulos dourados, tal como estes triângulos podem ser construídos a partir de um pentágono regular ou de um pentagrama.

 

O que são números irracionais?

“Subitamente, viu-se de novo em Harvard [...], a escrever o seu número preferido. 1,618.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

No tempo de Pitágoras (nascido por volta de 513 a. C), o sistema numérico permitia a utilização de números inteiros e suas razões (números racionais). Utilizando a notação actual, os números 2,, 0, 27, -3, por exemplo, são inteiros. Os números 2/7, 3/8, 27,3, por exemplo, são fraccionários. Os números 1,25 ou -0,333..., para dar outros exemplos, são também fraccionários, pois podem-se escrever 5/4 e -1/3, respectivamente. Todos estes números são da forma p/q em que p e q são inteiros. Os próprios inteiros podem ser escritos nessa forma. Por exemplo, 27 é 27/1 ou 54/2. Todos eles são racionais.

Os gregos sabiam que os números aparecem em geometria de forma natural, associados às medidas de segmentos. Uma vez que o seu domínio das construções com régua e compasso lhes permitia dividir segmentos, as fracções também surgiam naturalmente. Sendo assim, escolhido um segmento de referência para definir a unidade, era possível construir todas as fracções com régua e compasso. Todos os racionais apareciam dessa forma.

No entanto, depois de uma fantástica descoberta por parte dos pitagóricos, o sistema numérico mostrou-se insuficiente. Encontraram-se construções geométricas que davam origem a segmentos cuja medida não se podia exprimir através de uma fracção, eram os hoje chamados números irracionais. Uma dessas construções foi precisamente o pentagrama, de onde surge o número de ouro, que se demonstrou não ser possível exprimir na forma p/q, com p e q inteiros. Mas pensa-se que o primeiro número para o qual os matemáticos se chocaram com a irracionalidade foi a raiz quadrada de 2, que aparece naturalmente como o comprimento da hipotenusa de um triângulo rectângulo com catetos iguais e medindo a unidade. Pelo conhecido teorema de Pitágoras, vê-se que o comprimento da hipotenusa terá de ser Raíz quadrada de 2, mas os matemáticos gregos verificaram ser impossível exprimir esse valor como um rácio p/q. Ao que se diz, perante a existência de uma coisa impossível de exprimir como rácio de inteiros, os pitagóricos ficaram tão perturbados que chegaram a esconder esta descoberta.

Na notação decimal, os irracionais correspondem às chamadas dízimas infinitas não periódicas, enquanto os números racionais correspondem a dízimas finitas ou a dízimas infinitas periódicas. Assim, por exemplo, os racionais 3/4 e 12/11 escrevem-se 0,75 e 1,090909... respectivamente, enquanto Raíz quadrada de 2 se escreve 1,41421356237... Na primeira expressão aparece uma dízima finita; na segunda, uma dízima infinita periódica; na terceira, uma dízima infinita não periódica.

Através de argumentos geométricos, é possível chegar-se à conclusão de que o número de ouro (Fi) é irracional, ou seja, para o representar na notação decimal é necessário apresentar alguns dígitos à direita da vírgula, conforme o rigor pretendido, e acrescentar reticências. De acordo com a notação usual, as reticências são indispensáveis para indicar que o número continua. Sendo assim, quando Dan Brown nos diz, através do professor Langdon, que (Fi) = 1,618, não está a ser rigoroso. Está mesmo a cometer um erro grave.

Terá Dan Brown cometido conscientemente este erro, de forma a simplificar a escrita? É possível. Mas a realidade, mais uma vez, é ainda mais interessante que a ficção. Se o quisesse, o autor d'O Código Da Vinci poderia ter brincado com a irracionalidade de (Fi) e ter dito que (Fi) é um número perfeitamente definido, mas um número que ninguém jamais conhecerá completamente. É a pura verdade. É possível escrever uma após a outra as casas decimais de (Fi), mas nunca é possível escrevê-las todas. É um número que não pára nunca e nunca pára de nos surpreender!

 

Que tem Fi a ver com Fibonacci?

“Enquanto carregava o projector de diapositivos, Langdon explicava que o número PHI derivava da sequência Fibonacci, uma sequência famosa não só por a soma de dois termos adjacentes ser igual ao termo seguinte, mas também por os quocientes de dois termos adjacentes terem a surpreendente propriedade de se aproximarem de 1.618: Phi!”

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

A razão de ouro, como já foi observado, satisfaz a igualdade (Fi)ao quadrado = (Fi) + 1. Multiplicando esta igualdade por (Fi), obtemos (Fi) elevado a 3 =(Fi)ao quadrado + (Fi). Substituindo agora (Fi)ao quadrado =(Fi)+1, obtém-se (Fi)elevado a 3 = 2(Fi)+1. Repare-se que este processo pode ser repetido indefinidamente, obtendo

(Fi)elevado a 4 = 3(Fi)+2

(Fi)elevado a 5 = 5(Fi)+3

(Fi)elevado a 6 = 8(Fi)+5

( ... )

 

O leitor, que já deverá estar convencido que a sucessão de Fibonacci aparece associada a muitos fenómenos, pode observar que os coeficientes de Fibonacci 1, 2, 3, 5, 8... estão a aparecer novamente. De facto,

(Fi)elevedo a n = F(n)(Fi)+F(n-l)

(F(n) sucessão de Fibonacci)

 

Pode mostrar-se ainda que é possível encontrar uma forma explícita para a sucessão de Fibonacci envolvendo o número de ouro. Essa fórmula, denominada fórmula de Binet (1776-1856) é a seguinte:

F(n)=(Fi)elevedo a n – (1-(Fi))elevedo a n sobre Raíz quadrada de 5.

Aplicando esta fórmula, não precisamos calcular todas as somas para encontrar um termo qualquer da sucessão de Fibonacci. Assim, por exemplo, se quisermos conhecer o vigésimo termo de Fibonacci basta substituir n por 20 na equação. Também se observa através da fórmula de Binet que o crescimento de Fibonacci é exponencial.

Quem estiver habituado a estudar a convergência de sucessões verifica imediatamente, aplicando a fórmula de Binet, que os quocientes de dois termos consecutivos de Fibonacci se aproximam do número de ouro, tal como afirma Langdon no romance de Dan Brown.

Essa convergência é bastante rápida, como se pode visualizar no seguinte quadro, relativo aos primeiros 13 termos da sucessão de Fibonacci, que se pode obter facilmente numa folha de cálculo.

 

Há espirais douradas no fundo do mar?

 

“A jovem pareceu insegura, examinando os arcos concêntricos da concha náutilo.”

 

- Dan Brown, O Código Da Vinci.

 

Podemos usar a noção de gnómon para pensar numa simples construção geométrica associada à famosa concha do náutilo, um molusco que vive a várias centenas de metros de profundidade e que aguenta muito bem as pressões. Quando um náutilo cresce, é necessário que a concha onde vive também cresça (para acomodar o tamanho do seu corpo maior). O interessante é que, embora o tamanho aumente, a sua maneira de crescer permite a manutenção da forma. As medidas dos segmentos que unem o centro do náutilo aos pontos da concha aumentam, mas as amplitudes dos ângulos formados por esses segmentos e as tangentes à concha mantêm-se as mesmas.

 

Matematicamente tudo é explicado com a chamada espiral equiangular ou logarítmica. Dado um ponto O, a espiral equiangular é uma curva tal que a amplitude do ângulo formado pela tangente em qualquer dos seus pontos P com a recta OP é constante.

 

Com o advento do cálculo diferencial foi possível encontrar uma expressão analítica para a espiral equiangular. Essa expressão é dada por:

r = R exp{theta cot alpha} em que alpha é a amplitude constante e R é o raio associado a theta = 0. Sendo assim, esta expressão dá a distância à origem de um ponto da equiangular em função de theta. Jacob Bernoulli (1654-1705) chamou a esta curva a Spira mirabilis (espiral maravilhosa). O nome de espiral logarítmica tem a sua origem na apresentação da fórmula anterior na forma log(r/R) = theta cot(alpha). Repare-se que, se a amplitude a for 90 graus, a espiral equiangular corresponde à circunferência.

O náutilo não ficaria muito satisfeito com uma concha circular, uma vez que essa forma não permitiria o crescimento do seu corpo. O ângulo a que corresponde ao alargamento da sua concha não é um ângulo recto e isso permite que a espiral cresça. Trata-se de um crescimento que se pode chamar gnomónico, uma vez que mantém a mesma forma.

Há várias maneiras de obter espirais análogas. Muitas obras referem a construção ad infinitum de rectângulos dourados como forma de obter uma espiral quase equiangular. A ideia parte da construção de sucessivos rectângulos de ouro a partir de um rectângulo de ouro original. Traçam-se arcos de circunferência centrados em vértices sucessivos dos rectângulos que vão aparecendo (ver figura 5.8). Por construção, as diagonais dos sucessivos rectângulos dourados encaixados são segmentos contidos nas diagonais dos dois rectângulos de ouro exteriores. O ponto de intersecção dessas duas diagonais será o centro de crescimento. Em cada passo da construção, dois dos vértices dos sucessivos quadrados pertencem à equiangular, no entanto os restantes pontos dos arcos de circunferência não pertencem. Esta espiral é por vezes chamada espiral de Durer (1471-1528), por este a ter apresentado no livro I da sua obra Underweysung der messung (Sobre a medida), de 1512.

É ainda conhecida a denominada espiral de Fibonacci. Se começarmos por anexar dois quadrados com lados de medida unitária, teremos um rectângulo 2 x 1. Se anexarmos em seguida outro quadrado com medida do lado igual a 2 (o maior lado do rectângulo 2x1) vamos obter um rectângulo 3x2. Se repetirmos o processo, a sucessão das medidas dos lados dos quadrados envolvidos é 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13..., que é a sucessão de Fibonacci. Em seguida basta traçar arcos de circunferência tal como se fez na espiral de Durer (figura 5.9). Uma vez que já vimos que os quocientes sucessivos desta sucessão se aproximam do número de ouro, é de esperar que a espiral de Fibonacci também se aproxime da espiral equiangular. O padrão relativo à mirabilis é tão comum que há quem lhe chame «lei da natureza». As garras, a maioria dos cornos dos animais, os caracóis, o ADN, os tornados também são, basicamente, espirais equiangulares. As próprias galáxias têm braços de estrelas que se estendem em gigantescas espirais desse tipo.

 

Que relação pode ter o número de ouro com o preço certo?

Para apresentar outra característica matemática interessante da secção dourada, convidamos o leitor a relembrar um conhecido concurso de televisão onde os participantes têm de acertar no preço de alguns artigos. Uma das atitudes que usualmente se observa em quem não faz a mínima ideia sobre o preço desconhecido espelha-se no seguinte diálogo:

Participante: Uhmmm... O produto custa 100.

Apresentador: É mais barato.

Participante: Custa 99.

Apresentador: É mais barato.

Participante: Custa 98.

Apresentador: É mais barato.

(...)

 

O que acabámos de mostrar corresponde a uma má estratégia de procura — o concorrente demorará bastante tempo a encontrar o preço de um produto que, por exemplo, custe 80.

Imaginemos que o participante desconfia de que o preço está entre 60 e 100. Uma estratégia de procura mais eficaz recorre ao chamado método de bissecção sucessiva — vai-se partindo o intervalo de incerteza ao meio e escolhendo dos dois intervalos resultantes aquele onde se passa a saber que está o valor pretendido. Repare-se numa sua aplicação numa situação de jogo:

Participante: O produto custa 80.

Apresentador: É mais barato.

Participante: Custa 70.

Apresentador: É mais caro.

Participante: Custa 75.

Apresentador: Certo, acabou de ganhar um balde de plástico!

 

Há ainda outros métodos de procura, e alguns bem mais eficazes. Para perceber melhor o problema imagine-se que se pretende descobrir um valor mínimo de uma função real de variável real cujo gráfico apresenta o seguinte aspecto:

Tal como no caso do concurso, em que partíamos de um intervalo inicial, vamos supor que se começa com o intervalo [O; 1] e que se procura um valor de pesquisa b intermédio, verificando-se que f(0)>f(b) e f(l)>f(b).

 

Um método de busca possível consiste em começar por escolher um ponto x pertencente ao intervalo de maior amplitude entre [O; b] e [b; 1] e, em seguida, para se continuar o processo, escolher de entre [O; b] e [x; 1] aquele que se tem a certeza de incluir o mínimo. Para efectuar esta escolha basta ver se f(0)>f(x) e f(x)<f(b) ou se f(x)>f(b) e f(b)<f(1).

Querendo obrigar a que qualquer dos casos dê origem a intervalos com a mesma amplitude, basta fazer x=l-b. A questão que se coloca é a de saber como posicionar b. Pretendendo-se, tal como na estratégia de bissecção utilizada no concurso da TV, fazer com que o intervalo de incerteza tenha amplitude proporcional à amplitude do intervalo anterior é necessário fazer com que b/l=(1-b)/b o que implica, depois de se resolver a equação, que b=(Fi)-1. Temos pois mais uma aparição do número de ouro.

 

Se se definir à partida o número de iterações n que se vai efectuar, demonstra-se (Knuth, 1998) que é possível encontrar um método ainda mais eficiente de escolha das posições sucessivas de b. Esse método baseia-se nos rácios de Fibonacci F(n - 1)/F(n), F(n - 2)/F(n - 1), ..., F(2)/F(3). No limite, uma vez que estes rácios tendem para (Fi), este método converge para o método do número de ouro. Se um número reduzido de iterações bastar para obter a precisão desejada, valerá a pena usar o método de Fibonacci. Se se pretender reduzir muito o intervalo de incerteza e portanto for necessário um número de iterações elevado, será mais simples e quase igualmente eficaz usar o número de ouro.

Fibonacci e Fi têm aplicações muito variadas em matemática. Mas valerá a pena passar a outros domínios da actividade humana.

 

Onde está o número de ouro na arte?

“Durante a meia hora seguinte, mostrou-lhes diapositivos de obras de Miguel Angelo, Albrecht Dúrer, da Vinci e muitos outros, demonstrando a obediência intencional e rigorosa de todos estes artistas à Proporção Divina na disposição das respectivas composições. Mostrou a presença do número PHI no Parténon de Atenas, nas pirâmides do Egipto e até no edifício das Nações Unidas em Nova Iorque. O número PHI aparecia na estrutura organizacional das sonatas de Mozart, na 5." Sinfonia de Beethoven, nas obras de Bartók, Debussy e Schubert. O número PHI, disse Langdon aos seus alunos, fora inclusivamente usado por Stradivarius para calcular a localização exacta dos espalhos dos seus famosos violinos.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Chegando a este ponto, depois de ver tantas aplicações da sucessão de Fibonacci e do número de ouro, o leitor poderá pensar que esses temas matemáticos aparecem também na arte. Muitos estudos existem sobre o tema, e não só sobre artes plásticas.

Vasco Graça Moura, na sua obra Camões e a Divina Proporção (1994), investigou o possível uso da proporção dourada por Luís de Camões. O estudo das possíveis preocupações numerológicas do poeta tinha já sido iniciado por Jorge de Sena. Na obra citada.

Graça Moura faz uma análise sistemática da organização de Os Lusíadas e das redondilhas Sobre os rios que vão. Argumenta persuasivamente a favor do conhecimento e do uso por Luís de Camões da proporção divina.

Ainda na arte portuguesa, vale a pena notar o uso consciente do número de ouro por Almada Negreiros (1893-1970) e outros pintores. Veja-se o minucioso estudo de Lima de Freitas, Almada e o Número (1977). No entanto, muitos dos estudos que revelam a existência da proporção divina na arte são pouco fundamentados e, por vezes, forçados. Esse facto não é de espantar. Quando as pessoas têm desejo de encontrar fenómenos interessantes e padrões inesperados, conseguem quase sempre fazê-lo. A experiência mostra-nos que ocorrem muitas coincidências ao longo da nossa vida. No entanto, se pensarmos bem, o que seria inesperado seria que elas não acontecessem, uma vez que há milhões de tipos diferentes de coincidências. Quando uma ocorre, a tendência é esquecer os outros milhões que não ocorreram, como o descreve magnificamente Martin Gardner em algumas das suas obras (v.g., Gardner, 1993). Sendo assim, a coincidência só é estranha quando é definida a priori. Para dar um exemplo, não será estranho que o leitor encontre hoje na rua um carro com matrícula curiosa. O estranho será se definir à partida como curiosa uma matrícula com quatro zeros e se depois se cruzar com um carro com tal matrícula. Assim se passa com o rácio dourado na arte. Por cada proporção que parece baseada nesse rácio, existem muitas outras relações que realmente e comprovadamente dele se afastam.

 

Comecemos por apresentar um exemplo relativo a um auto-retrato de Rembrandt (1606-1669).

 

É possível observar na pintura de Rembrandt um triângulo «fundamental» com a altura e a base na proporção dourada. A questão é a seguinte: não será qualquer pessoa capaz de encontrar rectângulos e triângulos «fundamentais» em qualquer pintura? Terá sido o triângulo em causa considerado a priori «fundamental» por Rembrandt?

Se quisermos discutir a real aparição do número de ouro na arte, devemos pois começar por ter algum cepticismo.

Em primeiro lugar, se um tema do quadro é a própria secção dourada, parece mais lógico considerar que esse exemplo constitui um tributo ao dito tema matemático e não uma aparição da secção dourada ao serviço da técnica artística.

Em segundo lugar, não parece razoável esperar que todas as obras que se referenciam ligadas ao número de ouro tenham sido trabalhadas previamente com régua e compasso pelo autor de forma a obter a requerida proporção. Sendo assim, na falha de documentos escritos que mostrem essa intencionalidade, é discutível o tipo de aproximação ao número de ouro que se deve aceitar para poder concluir, com alguma segurança, ter havido uma preocupação do autor com este tema geométrico. Parece-nos que se deve exigir uma boa aproximação, caso contrário estamos a contribuir para a criação de um mito. Por exemplo, um mito que circulou bastante por esse mundo fora é o seguinte: as dimensões dos grandes quadros da história obedecem à divina proporção.

A verdade é que se estudou sistematicamente o assunto, concluindo-se que a verdadeira razão média dos lados dos quadros ronda o número 1,34, pelo que, manifestamente, os quadros não são rectângulos dourados...

Em terceiro lugar, é preciso ter em conta a definição de aspectos fundamentais das pinturas. Pensamos que só poderão ser consideradas válidas as definições que se basearem em aspectos técnicos aceites por todos (por exemplo, o ponto de fuga). Se um suposto aspecto fundamental tiver alguma carga subjectiva, a aparição de secções douradas provavelmente estará apenas a ser forçada pelo crítico.

Com estas precauções, vejamos mais alguns exemplos célebres. Um deles corresponde à Mona Lisa de Leonardo da Vinci, peça central na obra de Dan Brown. Se procurarmos na Internet, encontramos inúmeras referências a rectângulos de ouro supostamente associados a este quadro. No entanto, se olharmos bem para os locais onde os rectângulos de ouro pretensamente se colocam, verificamos que há uma grande incerteza sobre essas figuras geométricas. No quadro não há pontos definidos que possam ser aceites como referência desses rectângulos, o que significa que outros rectângulos, com outras proporções, seriam igualmente defensáveis.

 

Por isso, há quem defenda com argumentos muito sólidos que este caso corresponde a uma visão forçada de aparição da secção dourada.

Analisemos outra obra de da Vinci, a pintura São Jerónimo, que muitos dizem conter em em si um rectângulo dourado fundamental. Por vezes os rectângulos são apresentados como na figura, o que não é perfeitamente convincente. Mas subsiste ainda o problema da espessura da linha. É um problema importante uma vez que, como aponta Martin Gardner (1957), pequenos erros de medições provocam grandes erros nas razões. Por exemplo, 0,99/1,01 é aproximadamente igual a 0,99, enquanto 1,01/0,99 é aproximadamente igual a 1,02.

Esta suposta aparição da secção dourada na arte é pois muito discutível. O mesmo se pode dizer da sua manifestação na arquitectura antiga. Talvez o exemplo mais famoso seja o do Pártenon, em Atenas.

O matemático Markowsky aponta uma falácia: o Pártenon não está intacto e, consequentemente, o suposto rectângulo dourado que nele frequentemente se inscreve tem por base dimensões estimadas, portanto incertas. Bastaria que o telhado não fosse exactamente triangular ou que se considerassem outros degraus nas escadas para obter outros rectângulos.

Todas estas supostas aparições do número de ouro na arte se baseiam na ideia de que esse número proporciona as proporções de maior beleza. É muito difundida, em especial, a ideia de que o rectângulo dourado é o que causa a maior sensação de harmonia. Na esteira do estudo de Markowsky, em vez de debater esse assunto convidamos o leitor a escolher dos rectângulos representados na figura o que lhe parece ser o mais belo. Provavelmente não irá acertar no rectângulo dourado, e há estudos que concluem que este não é o rectângulo mais escolhido. Mas verifique o leitor por si mesmo: qual dos rectângulos é o mais belo? E meça-o, mas só depois.

 

É verdade que O Homem de Vitrúvio esconde o número de ouro?

“Projectou um novo diapositivo, um pergaminho amarelado no qual estava representado o famoso nu de Leonardo da Vinci. o Homem de Vitrúvio, assim chamado em honra de Marcus Vitruvius, o brilhante arquitecto romano que exaltou a Proporção Divina no seu texto De Arquitectura. — Ninguém compreendeu melhor do que da Vinci a estrutura divina do corpo humano. Da Vinci chegava ao ponto de exumar cadáveres para poder estudar as proporções da estrutura óssea do ser humano. Foi o primeiro a mostrar que o nosso corpo é literalmente formado por blocos constitutivos cuja razão proporcional é sempre igual a PHI.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Um dos temas mais abordados por escultores e pintores é, sem dúvida, a forma do corpo humano. Grandes criações de escultores gregos como Fídias, Policleto e outros têm o corpo como tema central. As proporções que usaram tinham subjacente um ideal estético determinado, mas nem sempre explícito.

Quem explicitou proporções humanas foi o arquitecto romano Marcus Lucius Vitruvius Pollio (90-c. 20 a. C), conhecido como Vitrúvio. Na sua obra Os Dez Livros de Arquitectura descreve as proporções ideais entre as diversas partes do corpo humano. «O pé é a sexta parte da altura do corpo», afirma por exemplo, «e o cotovelo a quarta parte». Defende que a construção dos edifícios deve também seguir proporções bem definidas, partindo de «um número perfeito». Em seguida, debate se esse número é dez, «como o estimou Platão», ou seis, «como os matemáticos querem, pois os divisores deste número somados igualam o próprio número» (1+2+3=6). Não fala pois do número de ouro ou do rácio em extremo e médio, como na altura se referia esta proporção.

Durante o Renascimento, que foi uma época de redescoberta dos textos clássicos, uma série de artistas e cientistas estudaram novamente os textos vitruvianos. Um desses casos famosos, e peça central na obra de Dan Brown, é um desenho que acompanhava os cadernos de Leonardo da Vinci: O Homem, de Vitrúvio. Feito cerca de 1490, o desenho mostra uma figura humana inscrita num círculo e num quadrado em duas posições sobrepostas. Por vezes é denominado Cânone das Proporções. Encontra-se actualmente na Gallerie dell'Accademia em Veneza.

Muito se escreveu sobre a relação entre o número de ouro e este lindíssimo desenho. Inúmeras fontes associam-no de várias formas ao número de ouro e ao pentáculo. Uma das ideias largamente difundidas é a seguinte: o rácio entre a medida da planta dos pés ao umbigo e a medida do umbigo à parte superior do crânio é o número de ouro.

Sabemos que o centro da circunferência do desenho de da Vinci é o umbigo e o seu raio é a medida do umbigo à planta dos pés. Sendo assim, a ideia exposta dá um critério possível para a construção do quadrado da figura. Repare-se o que acontece quando se sobrepõe com o desenho de Leonardo, uma circunferência e respectivo quadrado, construídos com base nesse critério.

Há claramente um desfasamento na sobreposição. O leitor pode argumentar que o desfasamento é irrisório e, consequentemente, pode ser desprezado. No entanto, como já foi dito anteriormente, este tipo de desfasamento tem importância relevante nos quocientes. É possível que Leonardo se tivesse inspirado na proporção dourada para o seu desenho, mas se quisesse usar rigorosamente essa proporção é pouco natural que tivesse cometido um erro tão grosseiro.

Outro exemplo muito citado diz o seguinte: o ombro divide a distância entre as extremidades dos dedos das mãos em dois segmentos que estão na razão de ouro.

Esta afirmação é por vezes apresentada com um pentáculo associado a O Homem de Vitrúvio, tal como se desenha na figura.

 

(Figura 5.21 — Sobreposição do quadrado e da circunferência construídos de acordo com a suposta proporção divina. Nota-se um desfasamento com o desenho original.)

 

Neste caso, sabe-se que o quociente entre a medida do segmento [A' E] e a do segmento [A' C] é igual ao número de ouro. No entanto, a medida do segmento [EC] não corresponde à medida da distância entre as extremidades dos dedos das mãos. Parece que a aparição do número de ouro está novamente a ser um pouco forçada.

Leonardo queria realmente realçar alguns factores que lhe pareciam verdadeiros. Por exemplo, no desenho a altura do homem é semelhante à medida da distância entre as extremidades dos dedos das mãos.

Aliás, tanto Vitrúvio como Leonardo apresentavam pequenos textos explicativos das suas ideias. Veja-se o que escreve Vitrúvio.

Um palmo é a largura de quatro dedos; um pé é a largura de quatro palmos; um antebraço é a largura de seis palmos; um passo é quatro antebraços (24 palmos); o comprimento dos braços estendidos de um homem é igual à altura dele; a distância entre o nascimento do cabelo e o queixo é um décimo da altura de um homem; a distância do topo da cabeça para o fundo do queixo é um oitavo da altura de um homem; a distância do nascimento do cabelo para o topo do peito é um sétimo da altura de um homem; a distância do topo da cabeça para os mamilos é um quarto da altura de um homem; a largura máxima dos ombros é um quarto da altura de um homem; a distância do cotovelo para o fim da mão é um quinto da altura de um homem; a distância do cotovelo para a axila é um oitavo da altura de um homem; o comprimento da mão é um décimo da altura de um homem; a distância do fundo do queixo para o nariz é um terço da longitude da face; a distância do nascimento do cabelo para as sobrancelhas é um terço da longitude da face; a altura da orelha é um terço da longitude da face.

O texto com que Leonardo acompanha a gravura segue em traços gerais as mesmas ideias. Repare-se que todas as relações tratadas correspondem a razões entre números inteiros, portanto a números racionais. Em Vitrúvio não se vislumbram vestígios do número de ouro, que é um número irracional. Contrariamente a uma ideia muito difundida, também o desenho de Leonardo não reproduz o número de ouro, mas sim razões inteiras que se aproximam dessa mítica quantidade.

A confusão terá surgido, ao que parece, do facto de Leonardo da Vinci ter ilustrado com desenhos de sólidos regulares a obra A Divina Proporção de Fra Luca Pacioli em que este matemático desenvolve o tema da proporção dourada (ver Neveux, 1995). Este trabalho, contudo, foi escrito em 1498 e publicado em 1509, enquanto o desenho d'O Homem de Vitrúvio foi concluído ainda antes de Leonardo se ter encontrado com Pacioli, em 1492. É portanto duvidosa a intenção do artista de imitar essa proporção discutida pelo matemático e na obra deste pela primeira vez qualificada como divina.

A confusão também pode ter surgido do facto de Leonardo, no seu Tratado da Pintura, falar repetidamente de uma «proporção divina». Essa proporção, no entanto, não é nessa obra um rácio numérico particular, mas apenas uma qualificação genérica da procura da harmonia. O número de ouro não aparece nos escritos de Leonardo da Vinci.

 

Há algo mais irrefutável que as medidas?

“Todos vocês. Rapazes e raparigas. Experimentem. Meçam a distância do topo da vossa cabeça até ao chão. Então dividam esse valor pelo da distância do vosso umbigo até ao chão. Adivinhem lá o que vão obter.”

- Dan Brown, o Código Da Vinci.

 

Durante muitas décadas, enquanto começaram a ser exploradas as possíveis manifestações da sucessão de Fibonacci e do número de ouro na natureza e na arte, surgiram dados que pareciam confirmar repetidamente a ubiquidade dessas entidades matemáticas. Uma obra e um homem, em particular, terão contribuído para essa convicção. Referimo-nos ao livro The Geometry of Art and Life, editado em 1946 e reeditado em 1977, e ao seu autor, o romeno Matila Ghyka (1881-1965), um diplomata e professor que viveu os restos dos seus dias nos Estados Unidos, ensinando estética e escrevendo as suas descobertas e teorias sobre as relações entre a matemática e a criação artística. Ghyka (1977) revelou muitos temas geométricos subjacentes a obras artísticas, mas pode ter sido levado a exagerar as relações encontradas. Trabalhos mais recentes, como os da francesa Marguerite Neveux (1995) e do norte-americano Mário Livio (2002) relativizam a importância dos números de Fibonacci e do número de ouro na natureza e na arte.

As dúvidas subsistem e algumas jamais serão esclarecidas. Mas há outras que podem ser completamente resolvidas. Quando lhe dizem, leitor, que o número de ouro existe no seu corpo, não precisa de estudar tratados de anatomia nem obras raras de pintura para se esclarecer. Para tirar as dúvidas, basta-lhe usar um instrumento simples: a fita métrica. Na vida, tal como na ciência, o cepticismo e a medida são armas poderosas. 

 

                                                                                Nuno Crato 

 

 

                      

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