Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Esqueça a Minha Vingança / Corin Tellado
Esqueça a Minha Vingança / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Esqueça a Minha Vingança

 

— Você podia ser testemunha, Laura.

— Testemunha a favor, Jack?

— Claro. Contra não me interessa. Sou amigo íntimo dos Mundson e tenho o dever moral de livrar seu filho do cárcere.

— Mas ele não passa de um indesejável.

Jack Mell não alterou suas feições.

Por cima da mesa estendeu a mão e apertou os dedos de sua esposa. Naquele gesto, ele punha todo o amor que sentia por ela.

Mas Laura se manteve indiferente, distante.

— Não vou discutir o mau caráter de Rick, querida — replicou pausadamente o famoso advogado. — Nunca me dediquei a defender um caso semelhante, mas Greg Mundson é meu amigo, e não tem culpa de ter um filho como Rick.

— Eu acho que quem faz deve pagar. E você não devia defender um homem que você sabe, de antemão, que é culpado pelos crimes de que o acusam.

— Nós, advogados, defendemos até homicidas convictos, quanto mais a um simples larápio.

Laura puxou a mão e ficou de pé.

Por algum momento, seu marido ficou imóvel, mas depois Jack, com sua figura esguia e elegante, se pôs atrás de Laura.

— Durante o julgamento a vida de Rick será posta a público, Laura — disse baixo. — Todas as suas sujeiras, e não são poucas. Em certa ocasião, há coisa de dois anos, comprou uma casa de modas por sete mil dólares, pagou com um cheque sem fundos e deixou Boston aquela mesma noite com sua amante... após vesti-la como a uma rainha em uma casa de modas da qual você era a desenhista... lembra-se?

Laura se virou bruscamente.

— Suponho que não estará pensando que o Sr. Creek omitirá o ocorrido. Quando for chamado para depor, contará tudo o que sabe.

— Engana-se. Se naquela ocasião aceitou o cheque de Rick Mundson, foi por acreditar que Rick tinha firma reconhecida no Banco. Por algum tempo, Rick a teve, mas em vista do ocorrido, já não a tinha muito antes. Gregory Mundson a retirou, coisa que o diretor da casa de modas ignorava.

— Os fatos continuam sendo contundentes, e o Sr. Creek é um homem honrado, e não mentirá, quando o chamar.

— Não o chamarei, Laura — disse com certa dureza o marido.

Era um homem alto e magro. Moreno, olhos escuros de expressão um tanto enigmático. Cabelos negros, penteados com simplicidade e um leve sorriso nos lábios sensuais.

Levantou-se de novo e com as mãos nos bolsos da calça, se aproximou de sua mulher.

— Repito que a Sra. Mundson é uma cliente das melhores. Talvez você o saiba.

— Eu era desenhista de modas antes de casar-me com você — cortou ela, secamente. — Não pisava os salões e nem tinha nada a ver com a contabilidade.

— Essa é, justamente, a testemunha que nos interessa. Uma pessoa alheia à contabilidade e ao serviço de vendas. Uma pessoa que nos possa explicar, em poucas palavras, o ocorrido naquela época. Sei que não vou conseguir grande coisa com essa explicação, mas poderei demonstrar que naquela ocasião Rick não teve intenção de roubar a firma Creek.

— Mas você sabe que a teve. Que antes, já havia passado outros cheques sem fundo e que continuou passando-os. O Sr. Mundson o sabe e abusa de sua amizade para pedir-lhe que defenda um caso tão sujo.

Jack não se irritou.

— Não é bem um caso sujo, Laura — murmurou, sentando-se na mureta, frente a sua mulher. — Tentei explicar-lhe por todos os meios este assunto. Não tento evitar as conseqüências. Tento apenas que os prejudicados admitam os pagamentos que fará o Sr. Mundson e assim livrar Rick de dez ou doze anos de cadeia.

— E quer que eu...

— Pouca coisa — atalhou Jack sempre sereno. — Que diga apenas o ocorrido naquela ocasião em casa de Creek. Este sabe que você servirá de testemunha. Ontem estive com ele em Boston e me afirmou que nada dirá do assunto e que, se mesmo assim for chamado a depor, dirá o mesmo que você disser.

— E o que vou dizer, Jack? — perguntou com sarcasmo. — Que há coisa de dois anos, Rick Mundson apareceu na casa de modas com uma mulher bonitona, comprou todo um enxoval para a primavera e pagou com um cheque sem fundos. Que o Sr. Creek ficou furioso fez a denúncia e não recuperou o dinheiro. Mas a policia pegou Rick Mundson em Kansas City e o Sr. Mundson, para evitar que a vergonha recaísse sobre seus outros filhos e sobre si mesmo, pagou as dívidas de seu filho...

— Basta, Laura.

Laura pensou naquele instante em algo terrível.

Pelo visto, era muito importante para Jack livrar Rick Mundson da prisão, mesmo que fosse à custa de mentiras.

Bem, por que não? Era uma boa ocasião para devolver dente por dente. Sabia o que representava para Jack um fracasso daquele tipo.

— Então, Laura, vai depor a favor de Rick?

— E o que devo dizer a seu favor, querido Jack?

— Pouca coisa. Que naquela ocasião, de fato, Rick pagou com um cheque sem fundos, mas que uma semana depois se apresentou na contabilidade e pagou a dívida, desculpando-se, por seu descuido.

— Isso é falso.

— Em advocacia, muitas coisas o são.

— Vou pensar, Jack, e amanhã lhe dou uma resposta.

Jack se inclinou para ela. Procurou-lhe os olhos.

— Quisera conhecê-la um pouco, Laura...

Ia beijá-la, mas a jovem se virou e, uma vez mais, Jack ficou desconcertado ante a atitude de sua mulher.

 

  — Você é médico, Spencer. Sabe que nunca o incomodei para nada.

O médico se acomodou melhor na cadeira e olhou firme para Jack.

— Fale sem rodeios, Jack. Sabe? Desde que voltou de sua viagem de núpcias, está diferente. Aonde foram?

— Às Bahamas.

— Bonito lugar. Mas, deve lhe ter feito mal. Desde que voltou de lá, está diferente.

— Vim falar-lhe sobre isto, Spencer. Após muita reflexão, resolvi procurá-lo. Trata-se de Laura.

— Ah...

— Suspeitava-o?

— Não! Claro que não. Mas, podia ter imaginado. Ela não quer filhos, Jack? É isso?

Jack esmagou o cigarro no cinzeiro de bronze.

— Nunca me disse nada a respeito — replicou um tanto rapidamente. —Aliás, estou aqui justamente por isso.

— Por quê?

— Porque Laura nunca diz nada.

Spencer tomou um gole de seu uísque, enquanto continuou olhando interrogativamente para o amigo.

— Jack, você está muito preocupado, eu vejo... E sei que é um homem de espírito forte. Criado na riqueza, sempre teve tudo, e nunca aceitou favores de ninguém.

— Não vim falar de mim, Spencer.

— Bem, fale-me de Laura, então.

— Você a conhece.

— Pouco. Casaram-se depressa demais. O que era ela? A que família pertence? Há muitos Smith em Massachusetts, e mesmo em Worcester, há milhares. Era desenhista de modas. Um dia, você foi a Boston e a conheceu, três meses depois casou-se com ela.

— Não tinha família — completou Jack com sua voz pausada. — Nos conhecemos e nos amamos. Precisa-se de mais para ser feliz?

— Não, claro que não.

— Laura é uma mulher super educada.

— Foi o que me pareceu.

— Refinada, distinta.

— Concordo. Agora pergunto, o que lhe falta e o que lhe sobra?

— Falta-lhe paixão.

Spencer se agitou na cadeira. Perguntou apenas:

— Notou isso antes?

— Quando um homem se enamora assim... como eu me enamorei, o resto não conta. Vive-se, e o egoísmo faz com que não se preocupe com os outros, com o que sentem e pensam.

— Bem, e Laura tem outro defeito?

— Não. Apenas esse, mas que é muito importante para mim e meu modo de ser.

Jack se pôs em pé.

Olhou fixamente para seu amigo.

 

— Que faria se encontrasse uma esposa totalmente passiva?

Spencer passou os dedos pela testa. Ficou absorto.

— Totalmente?

— Totalmente — exclamou Jack, perdendo o controle. — Casei-me com uma pedra. Vive como se pendesse de uma lembrança ou um pesar, ou simplesmente de uma obsessão.

— Sempre?

— Sempre — respondeu categórico.

— É grave.

— Para ela ou para mim?

— Para ambos. Eu o conheço e sei que não poderá viver assim. É um grande advogado, que fez fama a sua própria custa e sacrifícios. Podia ter ficado em Boston, onde tudo lhe seria mais fácil, mas veio tentar vencer em Worcester, e já sofreu muito.

— Esqueça de mim, falemos de Laura.

— Quero analisar sua personalidade para ver se tem culpa do que ocorre com Laura, ou saber se ela está doente.

— A mulher que se casa apaixonada e não corresponde à paixão de seu marido é uma doente.

Spencer acrescentou em voz baixa, pensativo:

— Se você conseguiu chegar aonde está à custa de trabalhar e lutar, é uma pessoa sensacional. Ama com a mesma força. Diga-me, Jack. Não a amará demais?

— Amar demais?

— É tão perigoso como não amar e suportá-la por dever e educação.

— Isso é absurdo. Ou se ama uma mulher e se a deseja, ou não se ama e não se deseja.

— E você sente as duas coisas por sua mulher.

 — Intensamente. Até me sentir quase doente. Não se pode viver assim. Dando tanto e recebendo tão pouco.

— Talvez ela tenha um temperamento frio.

— Isso é o que temo.

— Nunca lhe disse nada a respeito?

— Você acha prudente?

— Adequado à situação, sim. Necessário, também.

— Pode me levar a mal.

— Por quê? É seu marido, tem direito a uma correspondência a seu amor. E depois, tanto a mulher como o homem têm o dever de conter suas inclinações quando estas podem prejudicar a um dos dois.

— Mas, se for inato...

— Se for, Jack, você está perdido. Não haverá nada nem ninguém que impeça o desenlace.

Jack ficou nervoso, começou a andar.

— Não posso viver sem ela. Amo-a de tal modo que... — passou os dedos pela testa. — Spencer... que posso fazer?

— Calma. Falemos mais claro os dois.

— Mais ainda? Não me compreendeu? Estou sozinho em meu suntuoso lar. Montei-o peça por peça, com amor e sacrifício, e na hora da verdade... cometo um tremendo erro. Casar-me com uma mulher bonita, educada, mas que não se ajusta ao meu temperamento emocional.

— Em primeiro lugar, Jack, deve perguntar a ela o por quê. Talvez exista uma razão. Escute, estão juntos há seis meses, comem à mesma mesa, dormem na mesma cama. Não observou nela nem um segundo de arrebatamento?

— Nunca.

— Nem quando se casaram.

— Nem nesse instante.

— O caso me parece grave, Jack. Escute, você confia muito em mim, e talvez mais ainda em Martine... Vamos falar com ela?

Jack se agitou ainda mais.

— Não — gritou, após refletir um pouco. — Não.

— Então...

— Não o compreende? Eu me sentiria envergonhado se ela soubesse que me queixo com você e com Martine de sua indiferença.

— Então, terá que se arranjar sozinho.

— Agora, até minha carreira está nos separando. Já sabe que defendo o filho de Gregory. Sempre fomos amigos, apesar da diferença de idades. Pois bem, necessito de uma testemunha que diga que Rick devolveu o dinheiro à casa de modas. Lembra-se daquele incidente?

— Claro.

— Pode ser Laura.

— E por que ela?

— Porque todos na casa de modas se negaram a acudir voluntariamente. Só virão depor, se forem obrigados.

— E quer que sua mulher...

— Por que não? Preciso salvar Rick da prisão. Não por ele, mas por seu pai.

— Isso já é problema seu, Jack. Não posso opinar quanto a isso.

— Pedi uma ajuda a minha mulher.

— E ela se nega?

— Ao menos não deu uma resposta afirmativa. Eu faria tudo por ela. Você sabe o quanto me domino e o muito que sofro em silêncio. Mas ela, dada a sua frieza, não pode saber o que isso representa para um homem.

Ficou em pé.

— Já estou indo, Spencer. Pense um pouco em nosso problema, sim? Daqui a uns dias, diga-me o que concluiu.

— Já lhe disse que pouco conheço sua mulher — sem transição: — E se for deliberada, sua indiferença?

Jack ficou tenso.

— Por que haveria de sê-lo?

— Não sei.

— Não o é. Se o fosse, jamais a perdoaria.

 

A criada veio avisar.

— O patrão acaba de ligar, e quer saber se pode passar em seu escritório às quatro.

Não respondeu. Afirmou apenas com a cabeça.

Depois, girou e em vez de entrar em casa, dirigiu-se ao terraço.

Fumando depressa, deixou-se cair numa cadeira.

Consultou o relógio.

—Três horas — disse em voz alta. — Tenho tempo de sobra para vestir-me.

Que podia desejar Jack?

O assunto Rick Mundson.

Aquilo seria a sua chance de devolver dente por dente... A lei de Talião.

Deu de ombros.

— Não se preocupe, Britt — sussurrou. — A ocasião chegou. O outro parece não ligar. É tão egoísta... como todos. Não se preocupe, Britt.

Isso era bem coisa sua.

Utilizava-o com freqüência. Sempre que estava só e, podia evadir-se de tantas inquietudes.

A mansão de Jack Mell!

Muito divertido.

E ela ocupava aquela mansão, com o homem que todos admiravam em Worcester. Deixariam de admirá-lo. Claro que sim. Bastava dizer a verdade no julgamento dali a uma semana. Por que não?

Não havia esperado a ocasião propícia?

Ali estava. Não havia sacrificado sua juventude para vingar Britt? Pois ali estava a ocasião, e não ia desperdiçá-la.

Entrando em seu carro, Laura cruzou o portão sem ao menos dirigir um olhar para Tom, o jardineiro.

Dirigia-se ao centro, que ficava a uns três quilômetros, mais ou menos. Percorreu toda a avenida, à beira da qual se alinhavam várias mansões parecidas com a sua. Os ricos de Worcester viviam ali. Também os Mundson, com seu filho marginal, que agora apodreceria numa prisão, como qualquer delinqüente vulgar.

Por que não?

Pois continuaria ali. Quisesse Jack ou não, continuaria ali. Não acreditava que Jack o livrasse da cadeia, não depois do que ela dissesse no tribunal.

"Vou vingá-lo, Britt... Deus sabe o quanto esperei por isso. Agora, finalmente chegou a oportunidade..." Chegou ao centro, parou o carro perto do prédio onde ficava o escritório de advocacia de seu marido. Cruzou o umbral do edifício e entrou no elevador.

Todos a conheciam.

Porque a imprensa divulgou seu casamento, e porque pertenciam à sociedade, freqüentando-a normalmente.

E porque a viram entrar uma vez ou outra naqueles escritórios enormes.

Chegou à sala de espera, onde havia diversas pessoas esperando para falar com o famoso advogado.

Ali havia uma mesa, atrás da qual ficava uma secretária. Muito bonita, por sinal, muito moderna e elegante.

Ao ver a recém-chegada, a jovem ficou respeitosamente de pé.

— Sra. Mell! — murmurou. — Por aqui, por favor.

Laura seguiu-a com um gesto altivo e indiferente, guardando uma distância que à secretária parecia exagerada, já que ambas eram jovens.

"Deve ser insuportável — pensou. — Para um homem tão bacana, não combina uma mulher tão altiva".

Laura passou pelo umbral da saleta e ouviu a voz respeitosa da garota bonita.

— Avisarei o Sr. Mell, senhora.

Nem sequer agradeceu.

Quase em seguida e antes que tivesse tempo para sentar-se, abriu-se a porta.

— Olá, querida — saudou Jack. E foi diretamente para ela.

Laura sabia o que ia fazer. Estava habituada. Era algo... ela o adivinhava, que Jack não podia evitar. Tomá-la em seus braços e beijá-la demoradamente na boca; às vezes, parecia a ela que aquilo durava uma eternidade, mas nunca abriu a boca para dizê-lo.

Aconteceu tal e qual ela pensou.

Tomou-a em seus braços sem dizer nada. Apertou-a neles quase até sufocá-la, e com sua boca procurou a dela.

Beijou-a longamente. Agitou-se em seus lábios e o sentiu palpitar em seu próprio corpo, mas ela nada fez para evitar o contato. Manteve os lábios impassíveis, apesar de Jack penetrar neles com ansiedade.

Depois, tal como havia imaginado, soltou-a e se separou, ficando de costas.

— Você mandou me chamar, Jack. Aqui estou.

Dir-se-ia que o homem iria virar-se e dizer-lhe um mundo de coisas, com raiva. Mas tal não se deu.

— É sobre os Mundson — falou ele com calma.

— Ah!

— Tenho a sala cheia de clientes que devo atender esta tarde, mas, se não se importa, podemos nos sentar e conversar um pouco.

— Como queira.

O que fizera ele àquela mulher?

Nada, estava seguro. E se ela era assim... por que o era? Que vida o esperava?

Ele, justamente, que sempre sonhou em ter uma mulher só para ele, ser-lhe fiel e viver o matrimônio com todos os gozos inerentes a ele.

Quase todos os dias recordava quando a conheceu, só com o afã de achar um porquê. Jamais o encontrava.

Foi em um desfile de modas.

Ela estava ali. Laura, com sua personalidade marcante, sua beleza provocante, a imensa luz de seus olhos, que mudavam de cor.

A encarregada da sala apresentou-a a ele. E a atitude passiva, indiferente da desenhista de modas mudou totalmente ao ouvir seu nome.

"É o senhor o famoso advogado Jack Mell? Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Mell. Ouvi falar muito bem do senhor".

Não era diferente, então? Não foi bem expressiva, justamente?

"Estou aqui — explicou depois — porque me parece que alguns modelos desenhados por mim carecem de uma total elegância, e vim tentar sanar os erros".

Foi explícita até para isso. Que importava a ele, no fim das contas, o que ela fazia ali?

Ele estava com uma amiga. Uma dessas amigas que se tem às vezes e que se acompanha enquanto dura o interesse. Uma amiga que tem a esperança de caçar um dia o homem que a acompanha e casar-se com ele.

Mas ele se casou foi com Laura Smith, três meses depois...

 

Pensava falar muito, com a intenção de persuadi-la a falar do caso Rick Mundson. Mas contava com sua resistência e, por isso, se admirou quando a ouviu dizer:

— Se me chamou aqui para falar-me de novo do caso Mundson, saiba que me decidi a depor.

— Oh, Laura — exclamou sem poder conter-se. — Não sabe o quanto lhe agradeço. Temos que confirmar que Rick não teve intenção de prejudicar ninguém. Foi como que um descuido... que custou milhares de dólares a seu pai, mas nada mais que um descuido. Rick é um garoto, e para ele isso é um brinquedo.

— Mas você sabe que não foi assim.

— Claro.

— É uma mentira.

— Não se procura um advogado para que diga a verdade, e sim para que a disfarce ao gosto dos clientes. Se não fosse assim, a palavra advogado não teria razão de ser no dicionário.

Laura ficou de pé.

— Já vai? — perguntou ele assombrado.

— Está com a sala cheia de clientes.

Não pôde evitá-lo. Disse-o como o sentiu.

— Mas você é minha mulher e está acima de todos.

Nem sequer lhe agradeceu. Sorriu daquele modo nela peculiar, e agitou a mão.

— Vejo-o mais tarde em casa — disse.

— Espere.

Mais beijos?

Aqueles beijos que lastimavam e acariciavam ao mesmo tempo, que eram como fogo em sua boca cerrada?

— Vou lanchar com Martine Gielgud — disse com volubilidade. — Combinamos nos encontrar no Kail. Depois iremos a um cinema. Voltarei às dez.

Não podia impedi-lo. Não seria justo se o fizesse, e ele era justo.

— Estarei em casa a essa hora — disse amavelmente. — Você está linda, querida.

E seus dedos, ao procurá-la, tinham como que uma ânsia eletrizante.

Apoiou a cabeça em sua garganta.

— Laura — disse ardentemente. — Laura...

— Está... fazendo peso... Jack.

Tinha que soltá-la. Empurrá-la, fugir dela, que tanto o atraía sem o querer. Mas não pôde.

Porque a amava e a desejava mais do que quando se casaram.

Ignorou sua frieza e como um louco, como um faminto a beijou intensamente. Como se disso dependesse toda sua vida, mas Laura se manteve rígida, indiferente a suas carícias.

Quando ele a soltou e ficou quase ofegante, apoiado contra a parede, longe dela, fechou os olhos.

"Sou um fraco", pensou. "Um fraco infeliz, que não pode passar sem ela."

Laura exultou. Afinal estava devolvendo, dente por dente.

— Até à noite, Jack— disse com naturalidade.

Jack não fez nada para retê-la, desta vez.

Por quê? — se perguntou, apertando a cabeça com as mãos crispadas. — Por que é assim? Será que ignora os deveres de uma esposa? Por que se casou, se não sabe ser mulher? Por quê?

O cliente lhe apresentava um caso comum. A mulher o enganava e ele queria divorciar-se.

— Estou certo de que me engana. Como pegá-la em flagrante? Teria tudo a meu favor. Mas, como poderia?

O que dizia o cliente?

Ah, sim, que sua mulher o enganava.

E a sua?

Não. Laura, não. Laura era assim porque o era. Porque assim nasceu, para desgraça sua e dele.

O que ocorreu depois daquele dia na casa de modas? Laura falou pelos cotovelos. Talvez mais do que naqueles seis meses de casados.

Ele a beijou ao despedirem-se. Ela lhe disse que era o primeiro homem a beijá-la.

— Seria muito grande a pensão que teria que pagar-lhe? Claro, se conseguir o divórcio.

— Como? Ah, sim... depende do que ganha.

— Não é muito. Sou roteirista de televisão.

Podia dizer-lhe que aquela profissão rendia bem, mas não o fez.

Pensava em Laura.

Seu namoro e noivado foram bonitos. Um tanto estranhos, talvez. Julgou que se tratasse de pudor, reserva feminina. Continuava cheia de pudor. Por que não? Podia tê-lo, mas... até um certo limite. O cliente continuava, dizendo:

— Nem sempre aceitam o que escrevemos. Nosso salário não é fixo. Um mês ganhamos muito, e às vezes ficamos seis meses sem ganhar nada.

O que dizia? Ah, sim! Laura.

Casou-se com ela e Laura continuou sendo com era. Nem mais nem menos. Ausente, distante, como se vivesse pendente de uma lembrança ou de uma saudade. Outro homem? Outro amor?

Não, isso não. Carecia de experiência. Soube-o logo. Mas, pode uma mulher, depois de seis meses de casada com um homem impetuoso e ardente como ele, continuar na ignorância de seus deveres de esposa?

— Talvez se me orientasse...

— Orientá-lo?

— Sim. É uma pessoa acostumada a ouvir estes casos. Quase todos se parecem. Eu, na verdade, amo minha mulher, mas não posso continuar assim, e ao mesmo tempo não queria perdê-la.

Que caso era o daquele homem? Acendeu um cigarro para ganhar tempo.

Casou-se com Laura. Aquele dia do seu casamento... Aonde foi? Ah, sim... em um motel.

Era como se lhe jogassem um balde de água fria no rosto. Laura era... o que era. Uma figura decorativa. Só isso. Nem sabia sorrir desculpando sua passividade, não sabia sequer corresponder a seus beijos.

— Eu acho — continuou o cliente — que se chamasse aqui para uma entrevista... Se lhe falasse...

— Ahn? Ah, sim. Por que não?

— Eu preferiria entrar num acordo — dizia o homem.

Jack meteu o dedo entre o pescoço e a gola da camisa, como se esta o sufocasse.

— Essas coisas sempre se arranjam com os próprios interessados conversando. Mas, se preferir, mande-a aqui.

— Bem, então mando-a amanhã mesmo.

Despediu-se.

Com voz monótona, Jack pediu a sua secretária que mandasse entrar outro.

Ele também tinha seu caso.

Talvez mais agudo que o de qualquer um.

Às nove deixou o escritório. Entrou no carro. Passou pelo clube e tomou um drinque com Spencer.

— Sua mulher saiu com a minha — riu Spencer — Contei algo a Martine. Veremos no que dá... Ela será discreta, eu lhe pedi que o fosse.

Jack deixou-se cair numa cadeira frente a ele.

— Bah — exclamou. — Bah.

 

Martine a fitava fixamente.

Queria dissimular sua curiosidade, mas não podia. Ela jamais pensou que Laura fosse como Spencer a retratou.

Assim que conheceu Laura, estimou-a como a uma irmã. Apesar do que lhe considerava Laura uma mulher humana. E no entanto... era uma boneca sem vida.

Imaginou o que seria para um homem apaixonado como Jack Mell.

Conhecia-o por Spencer.

Sempre foram amigos, desde estudantes. Estimou-o assim que o conheceu e soube, só em observar suas reações, além do que Spencer lhe contou sobre ele, o quanto era apaixonado aquele homem.

O garçom se aproximou de ambas. Apesar de ser uma cidade grande, as duas eram conhecidas nos lugares mais elegantes, porque Laura era de uma família muito conhecida no estado de Massachusetts, e eram esposas de homens importantes.

— O que desejam as senhoras?

— O de sempre — disse Laura. — E você, Martine?

— Também.

— Dois chás — pediu o garçom em voz alta.

Pouco depois, as duas eram servidas.

Habitualmente, a conversa entre as duas era fluida e animada. Aquela tarde, o assunto não aparecia. Martine queria sondar a outra, mas não sabia como fazê-lo sem feri-la.

Seria Laura realmente uma mulher passiva?

Uma mulher fria? Uma mulher indiferente?

— A que horas ficou de chegar em casa? — perguntou Martine com uma volubilidade que assombrou Laura.

— Às dez.

— Não os abandonamos um pouco?

Laura riu. Tinha um riso adorável.

Mostrava todos os dentes. Estes eram brancos e iguais.

Por outro lado, Martine não era tola, e adivinhava nela uma vida interior intensa, como se pretendesse sair e uma mão férrea a contivesse.

Por que pensava tudo aquilo de repente? Jamais se lhe ocorreu pensar no modo de ser de Laura, em seu temperamento, em sua paixão...

— Não se preocupe — disse Laura, como se estivesse alheia (não o estava; era mais inteligente que sua amiga) à observação de que era alvo. — Estou certa de que terão se reunido no clube, depois de terminar suas consultas.

— De qualquer jeito — disse Martine — as horas em que estou longe de Spencer me parecem séculos. Apesar da ótima companhia que você é.

— Obrigada.

— Não lhe ocorre o mesmo?

— Em que sentido?

— Refiro-me ao marido. Quando se ama tanto... a gente perde até o controle — riu nervosamente. — Nunca falamos de nossa respectiva felicidade. Sou tão feliz.

Laura não contestou. Fumou depressa. Levou a xícara aos lábios e tomou um pouco do chá.

Martine se inclinou para a frente por cima da mesa.

— Sabe? Sempre vivi em Worcester e sei o que muitas mulheres tinham olho em Jack Mell. Era um partido — tornou a rir como se fosse tola, e Laura sabia que ela não era — que todas desejavam. E você ficou com ele. Nunca me contou como foi.

— Conquistando-o.

— Já reparou, Laura, nos mulheres somos um tanto pretensiosas, não? Sempre achamos que nós é que conquistamos nunca somos conquistadas.

— E não é assim?

— Depende. Eles também nos conquistam. De outro modo, seria apenas um negócio sentimental pela metade.

— Um sistema recíproco — comentou Laura suavemente. — A mulher conquista ou se deixa conquistar. E o homem usa os mesmos ou parecidos métodos, e só há casamento quando a conquista é por ambas as partes — consultou o relógio. — Vamos perder o cinema.

Martine não queria ir. Preferia continuar conversando.

— Interessa-lhe muito ir?

— Não — respondeu sorrindo daquele modo levemente sarcástico. — Estou bem aqui.

— Você não é feliz, Laura?

A pergunta nada tinha de diplomática.

Laura pensou que Martine era menos esperta que seu marido. E pensou ao mesmo tempo que Jack não devia queixar-se a Spencer de seu modo de ser. Por que não perguntava a ela? Teria sido lógico, correto, humano.

Mas o preferia assim. A distinção e a educação de Jack Mell se manifestavam até em seu silêncio.

— Feliz? — sorriu mansamente. — Por que não o seria? Ninguém me forçou a casar com Jack. Casei porque quis.

— Há formas de casar-se.

— O que diz?

— Oh, nada. Eu pensava que ninguém tem o temperamento igual ao de ninguém. Pode-se fracassar no casamento. Sabe? — riu infantilmente, e Laura pensou que lhe ficava bem aquele riso em sua beleza suave e tranqüila. — Eu sou tremendamente apaixonada. Você também o é?

— Eu me contenho.

— A gente deve se expandir, sabe? Quando se casa... passa-se a fazer parte do temperamento do marido.

"Jack se queixou", pensou. "E a pobre Martine quer me pôr de sobreaviso". Martine, sem diplomacia, continuou:

— Não acha que deve ser assim?

— Eu penso que a mulher não deve perder a personalidade, em situação alguma.

— Quando ama...

— Nem mesmo assim.

— Mas se perder a felicidade por conservar a personalidade?

— São coisas compatíveis.

Mas não disse se ela era apaixonada ou não. Era-o. Muito.

Mas não pensava dizê-lo a ninguém. Porque se dissesse, teria que acrescentar que estava se subjugando havia muito tempo.

— Os homens — insistiu Martine dentro de sua ingenuidade — gostam de mulheres ardentes.

— Claro.

Martine a fitou assombradíssima. Laura compreendeu seu olhar e não teve dúvida alguma a respeito do que Jack dissera a seu grande amigo, Spencer Gielgud.

— Você o é?

— Muito. Por que o pergunta?

Martine corou.

— Bem... — tomou um gole do chá, já frio. — Bem... por nada.

Não pôde continuar a conversa. E aquela noite, ao estar com seu marido, exclamou:

— Jack o enganou, ou não compreende sua mulher.

Spencer inclinou-se para sua mulher, fitando-a com adoração.

— Você sondou-a — sussurrou, acariciando-lhe o rosto.

Martine confirmou, corando.

— Minha querida... você não é nada diplomática, nem sabe nada da vida. Eu a adoro por isso. Porque é assim.

— Quer dizer que Laura...?

— Laura notou sua ânsia de saber, de ajudá-la, e rechaçou sua ajuda, tapando-lhe a boca.

— Eu lhe garanto, Spencer...

— Conheço pouco Laura — disse este baixo, pensativo. — Devo reconhecer que, fisicamente, agrada a todo mundo. É de uma educação finíssima. De uma elegância a toda prova e de uma distinção digna de uma princesa. Se ela não fosse assim... Jack não se teria apaixonado e casado com ela.

— Então...

— Mas há algo mais. E se não conheço Laura, em compensação conheço Jack.

— E acha...

— Não acho, querida. Eu sei. Jack é o tipo do homem que dá o nome certo a cada coisa. Não sei como reagiria Laura a respeito de seu afã em ajudá-la.

— Percebi que é muito apaixonada.

Spencer acariciou o rosto de sua mulher.

— Para responder-lhe isso, gostaria de conhecê-la melhor. Por ora, creio em Jack e sei que jamais se equivoca ao julgar uma coisa, um objeto ou um ser humano.

— E pensa que Laura me enganou.

— Não. Limitou-se a evadir suas perguntas e suas próprias respostas. É uma mulher inteligente.

— Spencer, Laura é uma ótima pessoa.

— Acredito, meu amor. Mas o que você me conta me faz pensar que realmente há um motivo, um porquê.

— Mas... por quê?

— Ah! — riu o marido. — Se soubéssemos o porquê, não haveria mais dúvidas. É claro que Jack não mente e eu, como médico e como homem estou para afirmar que também você tem razão. Por que você me diz? Não, Martine. Perdoe minha sinceridade. Você é uma garota ingênua. Que me ama muito e é correspondida por mim. Somos dois seres felizes, sem complicações, e você é uma pessoa simples e inocente. Laura, não.

— Não pode afirmá-lo.

— Estou quase afirmando que se fosse eu o marido de Laura, em vez de Jack, teria feito saltar feito chispas a fortaleza moral de minha mulher.

— Como?

— Há mil maneiras. Escute, Martine. Não se meta mais neste assunto. Nem eu penso fazê-lo. Eles são crescidinhos. Jack adora sua mulher e não pode viver sem ela. Laura oculta algo. Estive pensando nisso hoje. E vi coisas.

— Que coisas?

— O temperamento de Laura: esse que ela se esforça em ocultar. E uma prova é o fato de ter lhe mentido. Por quê? Porque existe uma causa e não quer que ninguém descubra.

— Vai fazê-lo você?

— Não. Não enquanto não for absolutamente preciso.

 

Eram dez e meia quando chegou em casa. A criada que a recebeu, disse suavemente:

— O patrão já chegou.

Já sabia.

Vira seu carro na garagem. Isso queria dizer que Jack estava em casa e não pretendia sair.

Aliás, quase nunca saía, exceto com ela. Às vezes iam a um teatro com os Gielgud e outras, davam um passeio.

Quando Jack a convidava para sair, jamais recusava seu convite. Indiferente e fria, o seguia docemente.

No "living" encontrou Jack de robe e chinelos. Tinha um cigarro entre os lábios, estava à meia luz e com um jornal nas mãos.

A televisão funcionava, mas só com a imagem.

— Boa noite. Sinto ter me atrasado.

Jack se pôs em pé rapidamente.

Conservava sua cortesia de sempre para com ela. Para ele, Laura continuava sendo uma dama, e não por sua forma de ser, mas porque era um homem extremamente educado.

Laura tirou o casaco e deixou-o na cadeira com sua bolsa.

— Está quente. Nota-se que é verão — e em seguida, vendo-o sentar-se de novo.

— Mês que vem, abrirei a piscina de novo.

Jack não contestou. Continuou ali sentado, algo tenso.

— Comemos? — perguntou ela.

— Sim, claro.

Ambos ficaram de pé. Jack era mais alto. Muito mais. Subitamente, Jack segurou-a e atraiu-a para si.

Procurou seus olhos. Não os encontrou.

Naquele momento, sentiu raiva. Daria meia vida para compreendê-la. Para chegar ao fundo de seu ser e saber o que pensava do amor, das ansiedades, do desejo físico.

Não era fácil.

Aquele rosto maravilhoso era uma máscara.

— Quero beijá-la — disse, num ímpeto. — Beijá-la muito, Laura.

Sem esperar resposta, beijou-a. Com ansiedade, com ternura e depois com uma paixão desesperada, sem que Laura vibrasse em seus braços ou o rechaçasse.

Soltou-a.

Apertou os punhos, fitou-a de modo estranho, mas depois, recuperando-se, saiu na frente dela, pela primeira vez incorreta.

Jantaram em silêncio.

Como se um muro invisível, mas tangível, os separasse. E aquele muro parecia a Jack que cada dia se tornava mais espesso.

Quando passaram ao "living", ela disse sem sentar-se:

— Se não se importa, vou me retirar mais cedo.

Jack esteve a ponto de gritar, de gritar como um louco, como se seus nervos não suportassem mais aquela tensão.

"Não se vá ainda. Sente-se em meu colo. Passe-me os braços pelo pescoço e conte-me coisas. Suas coisas. Tem que ter coisas para contar. Muitas coisas".

Mas não abriu os lábios, nem Laura esperou que o fizesse. Simplesmente, retirou-se.

Ele a imaginou.

Com o olhar cinzento perdido no vazio.

Subitamente, não pôde mais ficar parado frente aquele aparelho de televisão. Tinha que seguir aquela forca que era maior do que ele.

Subiu as escadas e entrou no quarto de casal.

Estava ali. Sentada ante o toucador, escovando seu lindo cabelo.

— Também decidi me retirar — disse Jack.

Que pensaria Laura dele? De sua atitude? De suas vacilações?

Jamais foi indeciso nem vacilante, e junto a ela até o som de sua voz era diferente.

Laura o fitou através do espelho.

— Ah! — murmurou.

Só isso. Continuou escovando o cabelo. Jack estendeu a mão. Seus dedos se relaxaram no ar, para crispar-se logo e ficar, imediatamente depois, mergulhados naquele cabelo vermelho e sedoso.

 — É suave — sussurrou. — Muito suave.

"Britt... Britt... eu queria que alguém, você, mamãe, tia Blanche, me livrassem desta agonia".

Mas não era possível. Ela o sabia, como sabia, de repente, que aquele homem despertava nela algo profundo. Algo terrível que não estava disposta a admitir.

Jack continuava adorando-a e Laura não sabia como dominar sua bárbara ansiedade!

Mas a dominou, e Jack Mell continuou sem conhecer sua mulher.

Foi uma luta titânica, silenciosa, durante vários dias.

Em meados da semana seguinte, houve o julgamento.

Martine estava ali, na mansão dos Mell, esperando por Laura. Pensava acompanhá-la até o tribunal.

Sorriu, quando a viu aparecer, vestida com um modelo de primavera de cor creme e abrigo de anta cor de fogo, com um gorrinho na cabeça, ocultando a cascata de cabelo, dando a seu impenetrável semblante maior gravidade.

— Vim buscá-la — disse Martine suavemente.

— A mando de Jack?

— Oh, não!

— Não o verá até chegar à Audiência?

— Não, por quê?

— Vou declarar a verdade.

Assim. Como se sua voz não lhe pertencesse.

Martine deu um passo atrás. Seu semblante demonstrava seu espanto total.

— Tem certeza... do que disse?

Laura colocava as luvas. Em seus movimentos se percebia um leve tremor.

Afirmou com a cabeça.

Martine respirou fundo.

— Não pode... — sussurrou sufocada. — Não pode fazer isso.

— Quem irá impedi-lo? Você não poderá ver Jack até o fim do julgamento. Spencer está no consultório.

— Laura... ficou louca? O que há com você? Leio em seus olhos um tal desejo de vingança... É possível, Será que não ama Jack? Não o respeita?

Não respondeu. Caminhava já para o carro.

— Laura, Laura, espere — dizia Martine, seguindo-a. — Por favor, Laura... Lembre-se que isto...

Laura já subia no carro. Martine a seguiu, mas não fechou a porta. Parecia presa de súbito desespero.

— Não sabe o que diz. Está arriscando o prestígio de seu marido como advogado. Todo mundo sabe que Rick não presta, mas os Mundson são queridos. Eles não têm culpa de que Rick seja como é...

— Fecha a porta, ou desce?

Como Martine continuasse fitando-a assombrada, Laura passou-lhe o braço pela frente e puxou a porta, fechando-a com um golpe seco. Depois soltou o freio.

— Laura... você está em seu juízo perfeito? Por quê? Fique em casa, se não está disposta a ajudar seu marido.

— Devo mentir?

— Ou calar-se — gritou Martine com agitação. — Ou calar-se. Isso é o certo, o prudente. Ou já não ama Jack?

Não o amava.

Tinha que vingar Britt. Depois descansaria.

Seria o mesmo que caminhar por um lugar cheio de espinhos, sem comer nem beber, a pé, machucando-se, sangrando e suportando o calor, e de repente, achar-se em um oásis, com água, pão, uma cama para descansar finalmente.

Isso seria, sim, vingar Britt.

E ninguém ia evitá-lo. Ninguém poderia fazê-lo, a menos que alguém a matasse.

— Laura.

Fitou-a um segundo. Naquele instante nem se lembrava de Martine.

— Sim.

— Por quê?

Dizê-lo? Desabafar? Não seria aliviar um pouco sua intensa dor?

— Você ama Jack — sussurrou Martine, obrigando-a a refletir. — Não é possível viver junto a um homem como Jack, sem amá-lo. Eu sei que o ama.

Amava-o realmente?

Não queria perguntar a si mesma. Já não podia. Sua idéia obsessiva era mais forte, ou tanto quanto seu amor, supondo-se que o sentisse por Jack.

Odiava-o. Se o amava, odiava aquele amor. Não podia amar um homem que fez aquilo com Britt.

No entanto... Cerrou os olhos.

— Laura — sussurrou Martine. — Você o ama.

— Cale-se.

Foi como um grito agônico.

Martine levou a mão à boca. 

Houve um silêncio.

Dir-se-ia que interminável, infinito, levando em cada segundo ou fração deste uma agonia.

— Laura... querida Laura... Vai destruir sua felicidade. Pensou nisso?

Felicidade? A que chamava Martine felicidade?

Suportar um homem, sentir seus beijos de fogo, suas carícias como pecados, imperdoáveis, seus silêncios como reprovações?

— Jack nunca o perdoará.

Jack?

Tampouco ela podia perdoar Jack Mell que matasse assim sua irmã. Nunca. Jamais poderia perdoá-lo.

— Laura, escute-me. Reflita um segundo. Dessa declaração dependem muitas coisas.

Sim. A primeira e principal, a morte de Britt.

Ninguém poderia evitar aquele desenlace.

Era como se visse Britt a sua frente, fria, com as pernas encolhidas...

"Jack Mell. De Boston".

Era ele.

Nunca o viu até aquele instante, e não se espantou que Britt perdesse a cabeça. Britt era tão fraca! Sempre o foi, sempre!

— Laura, estamos chegando. Quando a convidarem a prestar declaração...

— Direi a verdade.

— Está louca.

— Estou certa — com o semblante cerrado.

— Oh, Deus, tenho que dizer a Mell.

Não poderia. Já ninguém mais poderia evitar que ela depusesse contra Rick Mundson.

Deteve o carro. Uma fileira deles estava parada junto ao prédio da Audiência.

— Laura, por favor, reflita. Não conhece Jack.

Conhecia-o. Não era capaz de passar sem ela.

Nem sua frieza era uma barreira. Nem seu desdém silencioso, nem sua indiferença, nem sua rebeldia.

— Nunca a perdoará.

— Ninguém me fará mudar de idéia, Martine.

A esposa de Spencer a fitou como, que alucinada.

— E por quê? Tem que haver um motivo.

Disse-o. Não o motivo. A confirmação de que aquele existia.

— Eu nunca faço nada sem um motivo.

E lhe teria explicado naquele instante aquele motivo, e tudo teria sido diferente. Mas ela não pensava dizer a ninguém o motivo. Existia. Mas isso só o saberia Jack Mell a seu tempo.

E acima de seu amor por Mell, se é que existia, e tinha pavor que existisse, por isso fugia de uma análise pessoal de seus sentimentos, cumpriria com seu dever, e depois gozaria, dominando seus sentimentos, se estes eram evidentes, em jogar-lhe no rosto seu desprezo.

Depois se iria.

Voltaria à casa de modas, a seus desenhos, a suas solidões.

— Laura, está em tempo: Pense bem.

Laura já descia.

Majestosa, firme, pessoal.

Martine quis segurá-la pelo braço, mas Laura girou e a muda mensagem de seus olhos teve um significado.

Martine soube que nada e ninguém a dissuadiriam. Era como uma obsessão, e Martine se deu conta de que dela dependia toda à vida de Laura.

Baixou a cabeça.

Caminhou a seu lado como um autômato.

— Passem, passem — disse um senhor, desconhecido para ambas. — O julgamento começou. Já desfilaram várias testemunhas. A senhora está sendo chamada, Sra. Mell.

— Laura.

Laura não contestou. Seguiu aquele homem e entrou suavemente na sela, sem altivez nem arrogância.

Houve um murmúrio.

Jack, sentado junto a Rick Mundson, enviou-lhe uma mensagem de boas-vindas. Ela não correspondeu. Desviou os olhos e pensou apenas:

"Por favor, dê-me ânimo, Britt... Ajude-me".

Entretanto, Martine, como louca, telefonava para seu marido.

Mas Laura, naquele instante, já estava depondo.

 

"...Há dois anos, no dia nove de março, exatamente, Rick Mundson cometeu uma fraude na casa de modas Claire, de Boston. Fez uma compra para sua amante, no valor de sete mil dólares, pagou com um cheque sem fundos e só há três meses essa fatura foi abonada pelo Sr. Mundson, quando o Sr. Rick foi detido em Filadélfia..."

Seguiu-se um murmúrio.

Jack Mell foi se levantando pouco a pouco. O júri se olhou longamente, para depois fixar a figura feminina. O juiz pigarreou e tocou a campainha, impondo silêncio.

O Sr. Mundson ficou também de pé.

Jack estava quieto, firme, de pé.

O juiz murmurou roucamente:

— Sua vez, Sr. Mell.

A voz de Jack soou estranha.

— Não há perguntas.

E caiu sentado como se um peso o esmagasse.

— Pode retirar-se — disse o juiz.

A figura feminina foi retrocedendo. Todos os assistentes, incluindo o jurado e o juiz, a fitavam com estupor.

Ela passou.

Já vingara Britt. À custa de sua própria vida, vingara sua irmã mais nova.

Que ninguém lhe perguntasse nada. Que ninguém a reprovasse, porque ia gritar como uma louca.

Aliviada, já?

Não.

Jamais se sentira tão agitada. Aquilo parecia um pesadelo. Mas, em momento algum pensou em voltar atrás.

Não ficou ali. Viu Martine a poucos passos, ainda com as mãos apertadas, os ombros metidos no peito. Absorta, estupefata.

— Laura... você o fez. Você matou seu marido.

Também ela estava morta. Também Britt, e Blanche.

— Vou para casa — disse em tom abafado.

— Não espera o resultado? O júri se retirou para deliberar.

Não lhe interessava.

Nem lhe interessava Rick Mundson. Vingara sua irmã, o resto pouco importava agora!

Seguida pelos olhos de Martine, cheios de lagrimas, a esbelta e muda figura feminina, que alguns curiosos saíram para ver, subia no carro, que estava estacionado ali e partia.

— Já aconteceu? — perguntou Spencer, agitado, segurando com força os dedos de sua mulher: — Jack saiu? Onde está Laura?

— Condenaram-no a seis anos de cadeia, Spencer — sussurrou Martine, desconcertada e confusa. — Jack não saiu. Ela acabou com seu prestígio. Quanto a Laura... foi para casa, depois de dizer a verdade.

— Meu Deus! Partiu e destruiu seu marido. Por quê, Martine? Por quê?

— Não sei, Spencer. Não sei. Estou tão aturdida quanto você.

— Vamos embora logo. Se os jornalistas nos abordarem, diremos que não sabemos de nada. Veja-os, estão, vindo! O filho do poderoso Mundson condenado a seis anos de cadeia — murmurou com amargura. — E a esposa do defensor depondo contra o cliente de seu marido. Deus... Isto é mais grave do que eu pensava. Mas... por quê? Por quê? Espere, Martine. Não se mova. Vou ao encontro de Jack.

Este saía naquele instante, envolto por uma avalancha de jornalistas.

Perguntas e mais perguntas.

Respostas inconcretas, secas, como se saíssem da boca de um moribundo.

— Minha mulher disse a verdade.

Era uma voz rouca, amarga.

— Conhecia essa verdade, Sr. Mell?

— Sua esposa depôs contra seu cliente. Sabia que o faria?

— Por favor — gritou Spencer, metendo-se entre eles. — Por favor. — Segurou o braço de Jack. — Por aqui, Jack. Venha. Meu carro está logo aqui.

Os jornalistas não desistiam. O drama íntimo de Jack Mell? Pouco lhes importava. O essencial era saber. Os porquês de tudo. As causas que levaram Laura Smith a declarar contra o cliente de seu marido.

— Sr. Mell — gritou um. — Uma só pergunta. O senhor se dá bem com sua mulher?

Spencer fez menção de agredir o jornalista, mas Jack o impediu.

— Sim — respondeu com firmeza. — Nos damos maravilhosamente bem.

— Como qualifica o incidente?

— Não foi incidente — gritou. — Eu sabia o que ia ocorrer. Minha mulher ia declarar a verdade. Eu desconhecia a verdade.

— E como sua esposa não lhe contou?

— Não responda, Jack — aconselhou Spencer, empurrando o atrevido jornalista.

Naquele momento passava o Sr. Mundson pai e os jornalistas o seguiram até o carro, momento que Spencer aproveitou para empurrar Jack para dentro do carro.

Em seguida, o pôs em marcha. Seguiu-se um longo silêncio, pesado, carregado.

— Para onde, Jack...? — perguntou depois Spencer.

— Para qualquer lugar. Menos para casa. Continue dirigindo, até terminar a gasolina.

— Respire forte, Jack — sussurrou Spencer, baixo. — Bem forte. E depois inspire pelo nariz, com a boca apertada. Tira todo o veneno.

Jack não fez o que lhe mandavam.

Tirou um cigarro do bolso e tentou acendê-lo. Mas os dedos lhe tremiam de tal modo que Martine precisou ajudá-lo.

— Por quê, Jack?

Era a pergunta esperada. A que ele se fazia. A que martelava seu cérebro continuamente.

— À última hora mudou de idéia. Acabou comigo — acrescentou. — Para sempre.

— Não, isso não. Você trabalhou muito bem. O caso era difícil e você o conduzia bem. Não tem culpa de que sua mulher...

— Não está vendo o que me acontece? Ela me destruiu. A mim! Ao advogado, mais exatamente. E a mim, homem. E o que acha que pesa mais na balança de minha vida? Minha carreira ou minha dignidade de homem? Minha sensibilidade? Meu amor por ela? — E de repente: — Por que você veio? Não disse que ia dar consulta hoje?

— Martine me chamou.

— Chamou-o? Quando?

— Quando sua mulher entrou para depor. Acabara de dizer a Martine que diria a verdade.

Jack se virou. Olhou fixo para a esposa do amigo.

— Não lhe disse por quê? — perguntou.

— Não.

— O que você viu? O que sentiu nela?

— Algo muito profundo, doloroso. Algo que a induzia a isso. Como se... como se...

— Fale, Martine. Não estamos conspirando contra Laura — sussurrou seu marido, diminuindo a marcha do carro. — Estamos tentando achar uma desculpa para ela.

— Vi ódio em seus olhos.

— Ódio? Mas, por quê?

— Pergunte você a ela, Jack.

— Sim... agora mesmo. Leve-me para casa, Spencer. Tenho que saber o porquê. Se houve uma causa, não tem perdão. Se agiu num impulso, poderia desculpá-la.

— Jack, você não deve... não deve ser duro com ela. Pareceu-me que Laura sofria.

— Ela destruiu algo muito bonito, Martine. Algo que podia ter sido mais bonito ainda...

 

— Jack, por favor... não se pode julgar uma pessoa sem antes ouvi-la.

A voz de Spencer tinha um tom ansioso. Jack o fitou. Estavam parados, dentro do carro, em frente à casa do advogado.

— Talvez Laura tenha uma justificativa para sua atitude — exclamou Martine.

— Tomara que tenha, tomara — murmurou Jack.

Martine se inclinou para a frente.

— Por quê? Você a faz feliz? Tem certeza de que a faz feliz, Jack?

Houve um silêncio.

Jack disse apenas, depois:

— Gostaria de saber se você, mesmo que Spencer não a fizesse feliz, o venderia na primeira esquina. Não se trata da causa, Martine. Não compreende? Trata-se do fato. Foi imperdoável. Uma vergonhosa traição.

— Deixe-me entrar com você, Jack — interveio Spencer. — Talvez nós dois juntos...

Jack negou com a cabeça várias vezes.

Evidentemente, aquele homem não se parecia em nada ao que dias antes procurara Spencer para falar de sua esposa misteriosa.

— Se há algo que dizer ou averiguar, o farei eu, sozinho. Vão vocês, Spencer. Até outro dia e obrigado.

— Posso ajudá-lo...

— A quê?

— Jack...

— A destruir-me mais? Quando se amava assim, como eu amava, não se pensa na carreira destruída. Saberei impor-me de novo. Quanto a isso, não duvido. Mas ela... ela...

Desceu.

Spencer, vendo que nada podia fazer, partiu de novo em companhia de sua esposa.

— Spencer, tenho medo por Laura. Jack não parecia o homem humano de outras vezes.

— Se você me fizesse algo parecido — disse Spencer, segurando-a pelo braço, e entrando em casa — jamais a perdoaria.

— O que pode ocorrer?

— Não sei. Ficaremos sabendo amanhã, ou talvez esta noite. Ligarei para Jack a umas duas horas.

Jack entrou e ficou parado, olhando para um e outro lado. Por fim, caminhou para o "living".

Esperava encontrá-la ali.

Não estava. Nem seu abrigo, como outras vezes, nas costas de uma cadeira, nem a bolsa.

Sem largar a pasta que trazia, subiu as escadas de dois em dois degraus, até parar diante do quarto de casal.

Empurrou a porta sem bater e, silenciosamente, uma vez dentro, fechou-a. Não foi preciso procurar Laura com os olhos.

Estava ali mesmo.

Ainda usava o traje com que comparecera ao tribunal, calçando os mesmos sapatos altos e tendo o gorrinho na cabeça. O abrigo e a bolsa estavam sobre uma cadeira.

Sobre a cama estava sua maleta.

Jack caminhou e se deteve diante de Laura. Esta levantou a cabeça.

Uma grande palidez cobria seu semblante, mas seus lábios tinham a marca de um infinito desprezo.

— E então, Laura?

Nem raiva, nem ódio. Nem sequer dor no tom daquela voz. Havia algo pior. Um incrível comedimento.

— Você viu. É preciso falar disso?

— Eu penso que sim — e indicando a maleta. — Vai partir?

— Sim.

— Lamento dizer-lhe que não será assim, Laura, a menos que peça o divórcio, e terá que achar motivos muito poderosos... que não existem. Talvez não tivesse forças para enfrentá-la na audiência. Mas a terei para retê-la. E não esqueça que sou advogado.

— Reter-me? Por quê? Não o amo.

Jack não se alterou. Se sentia algo — e o sentia como uma chicotada em pleno rosto — não o manifestou.

— Esta manhã a julguei como uma pobre ressentida. As causas? Ignoro-as. Espero que me diga quais são. Agora, está me parecendo uma estúpida. Sabe? O homem pode amar muito, mas... também se decepciona...

— Você nunca amou, Jack Mell. A quem? A mim? A Britt, por acaso?

Jack se manteve firme.

— A você eu amei. Quanto a essa outra mulher que menciona, não a recordo. A você, sim — subitamente a segurou pelo braço e a sacudiu com força. — A você eu amava. Ninguém pode imaginar quanto. E você destruiu tudo o que eu sentia de belo por você.

— Solte-me.

Soltou-a.

— Tenho nojo até de tocá-la, mas... — e desta vez ficou rígido ante a mulher — não a deixarei ir. Sofrerá aqui a humilhação de meu desprezo. Ou, se quiser ainda consertar tudo isto, coisa que acho difícil, terá que me explicar o motivo de sua atitude no julgamento. Se foi um ato impulsivo, ainda tem desculpa.

— Foi premeditado — gritou ela. — E saiba que não sou a mulher fria que pensa. Sei ser mulher, muito mulher. Essa mulher que você não conheceu, apesar de todo o esforço que fez para consegui-lo.

— Você é... baixa. Gostaria — disse com os dentes apertados — de saber as causas.

— Não pretendo sair daqui sem dizê-las — e com súbita precipitação, meteu a mão na maleta e tirou uma fotografia que pôs diante dos olhos de Jack. — Conhece-a? Não lhe recorda nada? Claro que sim. Abandonou-a sem piedade. Zombou dela. Conquistou-a, para logo deixá-la. Já a esqueceu?

Jack nem sequer deteve os olhos na foto. Fitou-a um segundo e foi como se uma nuvem negra surgisse entre seus olhos e aquela mulher.

 

— Era minha irmã — gritou Laura, perdendo aquela pose de indiferença e demonstrando todo o seu gênio forte. — Eu trabalhava para ela. Estive em Nova Iorque trabalhando como modelo durante muito tempo para curá-la. Aí apareceu você. Deu-lhe uma ilusão. Melhorou. Até o dinheiro não era tão necessário. Tia Blanche também trabalhava. Nós duas cuidávamos dela, como se fosse nossa única razão de viver. Era fraca e nada bonita. Mas eu pensei que ainda existissem ilusões sem beleza. Por que não? Britt tinha um espírito lindo. Acreditou em você.

Respirou fundo.

Jack a escutava como se estivesse muito longe.

O que dizia aquela louca? De quê o acusava?

Mas Laura estava disparada. Todo o fel que acumulara dentro de si saía por sua boca aos borbotões.

— Abandonou-a. Escreveu-lhe uma carta. Odiosa carta! Ainda a conservo — procurava na maleta, enquanto continuava a falar. — Eu era como mãe dela. Uma mãe dedicada e amorosa. Nem pensava em homens, nem em divertir-me, e tinha pouca idade. Aprendi cedo a cuidar de Britt. Era tão fraca! Depois, ao amá-lo, foi forte. Eu me senti quase liberada, Britt conheceria o amor. Preferia que o conhecesse ela a conhecê-lo eu. Assim a amava. Como se fosse minha filhinha querida e infeliz.

Tornou à respirar fundo, como se lhe faltasse o fôlego. Jack não dizia nada.

Que terrível confusão era aquela? O que estava Laura dizendo? E por isso... para vingar sua irmã, casou-se com ele?

A voz de Laura, que mais parecia um gemido, continuou dizendo:

— Você zombou dela, e dois meses depois... Britt faleceu de dor. Vi-a encolhida, ali, em seu leito. E depois, jurei ali mesmo... ali, sim, sobre seu cadáver, apertada com ele, sentindo o frio de seu rosto no meu, que um dia, quando o destino quisesse, a vingaria. E apareceu você. Justamente quando minha dor era maior. Tia Blanche, o único que me restava, também morre de dor em nossa pobre casa de Boston. Era só o que eu tinha. Aquela casa, minha irmã é tia Blanche. Nunca pude esquecer seu nome. E resolvi conquistá-lo. E por isso odiei a carícia de suas mãos e odiei cada beijo que me dava. E por isso você encontrou uma mulher de pedra. Ninguém pode saber o que vibrei esta manhã. Desmascarando publicamente o homem a quem odeio. Agora, posso ir embora satisfeita.

E fechou a maleta.

Mas, algo a fez estacar. A voz de Jack disse baixo, sem raiva, com extrema frieza:

— Você... procurava um homem chamado Jack Mell, que é advogado, não e isso? — não esperou resposta. — Se tiver um pouco de paciência, poderei apresentá-lo.

Laura ficou lívida, apontou-lhe o dedo trêmulo.

— É... é você...

— Lamento que tenha vivido para vingar sua irmã e que tenha sido eu a vitima de sua vingança... Algo bonito foi destruído. Não percebe? Não sou esse homem. Nunca seduzi jovens fracas. Nem jamais, em toda minha vida tive namorada fixa, exceto Laura Smith. Mas os fatos são os mesmos. Existiu seu desejo de vingança. Viveu para maltratar o mais belo de minha vida. Que importa que não seja eu esse homem?

— É você — gritou ela, quase desfalecendo.

Jack tirou um cartão do bolso. Não havia ira em seu gesto, sim uma grande indiferença.

Parecia que toda a dor e a raiva, e até o despeito de haver sido vítima de uma vulgar vingança, dissipavam a raiva que pudesse sentir.

— Olhe. Pode pegar com suas mãos. Ele mesmo lhe pôs diante dos olhos.

Laura leu: "Jack Mell. Advogado. Boston".

— É meu primo — disse Jack, como se lhe desse asco falar nisso. — Meu primo Jack, filho de um irmão de meu pai. Usamos o nome de nosso avô. O natural — disse, guardando de novo o cartão — era você se certificar bem, antes de fazer o que fez. Pode encontrá-lo quando quiser, em Boston, bem perto da casa de modas Claire — girou, ficando de costas para ela. — É lamentável seu engano... mas o resultado é quase o mesmo.

— Escute-me — gemeu Laura. — Escute-me...

— Para quê? Jack Mell tem fama disso, de conquistador. Eu nunca tive intenção de me aproveitar de ninguém. Não faz o meu gênero.

— Oh, meu Deus...!

— Quer conhecê-lo? — riu desdenhoso. — Posso chamá-lo aqui. Ele se casou. Aliás, estava casado, quando seduziu sua irmã. Ele é assim.

Laura deu um salto, plantou-se diante dele.

— Você... não?

— Eu, não — replicou Jack secamente. — Minha única noiva foi você.

— Oh, Deus — juntou as mãos. — Não é você... Eu me casei pensando que...

Ocultou o rosto entre as mãos. Houve um tremor convulso em seus ombros.

Jack Mell não se indignou.

Mas sentiu como se tudo morresse definitivamente naquele instante.

— Jack... você jamais me perdoará — gemeu a voz feminina.

A voz de Jack soou lenta e vazia:

— Nunca. Nunca...

E se afastou, como se seus pés lhe pesassem.

Laura correu atrás dele.

— Não foi você — gritou como que alucinada. — Não foi você...

— Perdeu seu tempo, Laura. Não é lamentável?

— E hoje... hoje lhe fiz isso...

Caiu pesadamente no sofá. Jack não procurou consolá-la. Sentia-se tão longe dela!

— Jack..., Jack...

— Não procure ir embora — disse ele friamente. — Não lhe vou permitir. Casou-se comigo para vingar sua irmã... Bem. Deixou-me no ridículo hoje. Os jornais nos porão no ridículo. Vamos continuar a comédia, e não esqueça que esta... você a começou, não eu.

— Eu o confundi... o confundi...

— Sim, Laura. Já sei. Mas não sinto ódio, não sinto raiva de você. Acho que só sinto piedade.

— Piedade!

— É isso, dado o seu orgulho, não aceitará. Mas vai ter que viver nesta casa, Laura. Você não me conhece. Conhecia o homem enamorado, paciente, que jamais a reprovou. Como pôde acreditar que eu era o tipo do homem capaz de se aproveitar de uma pobre moça doente?

Sim. Tinha razão. Como pôde equivocar-se assim? Como pôde ser tão absurda, tão impulsiva... tão odiosa?

— Tenho que seguir minha vida — disse ele, a mão no trinco da porta. — Enfrentar os comentários. Mas não estou disposto a deixar que invadam minha privacidade. Espero que o compreenda e aja de acordo.

— Jack...

— Seu castigo será o de viver aqui.

— Jamais me perdoará?

— Jamais.

E saiu.

Laura se pôs em pé e se atirou de bruços no leito, junto à maleta.

Ela, que o amava e dominava seu amor como um pecado imperdoável...

Ela, que chorou antes de ir ao julgamento e que lhe custou lágrimas depois de haver deposto assim.

E tudo, para quê?

Para destruir-se mais. Para odiar-se mais.

Como pôde ser tão cega?

Ele tinha razão.

Um homem que ama com tanto ardor, que tem tanta paciência... não podia nunca ser um calhorda.

— Oh, meu Deus, meu Deus...!

 

Encolhida ali, no meio do leito, com o rosto entre as mãos, esperou seu regresso, transcorreu a noite lentamente, com uma  lentidão de agonia.

Aquela era a pior noite de sua vida.

A morte de Britt foi horrível, dolorosa para ela. Era só o que tinha na vida. Mas aquilo, aquela ausência, aquele vazio, aquela tensão contendo-se tanto tempo, aquele fracasso...

Tudo... para quê?

Levantou-se do leito e vagou pela casa vazia como um fantasma. Jack não estava. Talvez nem voltasse.

Mas, não.

Era fiel a um dever. Deveres para com ela? Não tinha nenhum. Moralmente, ao menos, não tinha nenhum.

— Deve ser muito tarde.

Olhou para o relógio que havia na mesinha ao lado da cama de Jack. Quatro da madrugada.

"Não voltará".

Mas, ele voltaria. Aquela hora estaria com Spencer e Martine. E se ela ligasse para Martine e lhe dissesse? O que podia dizer-lhe?

Que defesa tinha?

"Casei-me com um homem sem amá-lo. Estive auto-defendendo-me de sua atração. Dominando-me até me causar uma dor insuportável. Estive fugindo da análise, temendo achar a verdade. A verdade de meus sentimentos. Tinha medo desses sentimentos. Só pensava vingar minha irmã. Você não sabe, Martine, o que sua morte significou para mim".

Não. Não podia dizer aquilo para Martine. Talvez Martine já soubesse a verdade e a desprezasse por isso.

Retrocedeu e voltou a deitar-se no leito, a vista fixa no teto. Em dado momento, seus olhos deslizaram até às maletas já feitas.

Um sorriso sarcástico sacudiu-a.

As maletas. Sua solidão. O que podia fazer?

Fez o que considerou um dever, o que necessitava fazer mesmo por cima de tudo, do próprio dever.

Levantou-se do leito e, com uma calma doentia, começou a desfazer as malas, pendurando de novo suas roupas.

Tornou a guardar as malas no lugar habitual e esperou o dia nascer.

Brilhava o sol. Um lindo sol de princípios de abril. Feriu-a sua claridade, a alegria do dia, tão diferente de seu estado de ânimo, o que fazer?

E se Jack não voltasse? E se a deixasse sozinha naquela casa?

Desceu para o café às dez em ponto. Estava pálida, com profundas olheiras.

Quinze minutos depois, a criada lhe anunciava a visita da Sra. Gielgud.

Martine! Para desprezá-la!

— Mande-a entrar — disse com uma voz diferente a que os criados conheciam.

Depois se dirigiu ao "living". Vestia uma saia leve, justa na cintura, uma blusa preta de golinha, metida dentro da saia. Os sapatos eram de salto alto. O cabelo estava preso num coque no alto da cabeça. 

Recebeu a amiga com uma serenidade que não podia estar sentindo.

— Laura...

— Sente-se, Martine.

Esta a fitava. Fixamente. Com uma expressão que era quase uma carícia materna.

Foi até ela. Segurou-a pelo braço e com um suave impulso a sentou e se sentou a seu lado. Depois disse com ternura:

— Está diferente, Laura.

— Como se o mundo me caísse em cima.

— Leu o jornal?

Negou uma e outra vez.

— Não o leia, por favor... não o leia. Vai se aborrecer. Felizmente não acusam seu marido. Quanto a você...

— Contanto que não culpem Jack.

Martine se agitou.

— O que há? Arrependeu-se do que declarou?

Laura ficou sem saber o que dizer.

Não parecia a mesma Laura. Aquela Laura altiva e fria, que parecia tão segura de si.

— O que há com você, Laura? — perguntou Martine. — Está tão diferente da mulher que ontem dirigia aquele carro, dizendo que declararia a verdade. Uma verdade que destruiria para sempre a tese de seu marido.

Laura não a fitou. Tinha os olhos fixos no chão e em seu semblante transparecia uma grande dor.

— Não viu Jack desde ontem? — dis- se sem perguntar.

— Não. Claro que não.

Martine, assustada, olhou em volta.

— Não voltou?

— Não.

— Mas nós o deixamos na porta de casa.

— Entrou... Saiu de novo depois de falar comigo. É uma longa história, Martine — disse com angústia. — Muito longa, mas que eu posso condensar em duas palavras. Casei-me com Jack confundindo-o com outra pessoa. Não sou fria nem indiferente. Nem mesmo passiva. Oh, não! Pelo contrário.

— Ele não pensava isso.

— Era o papel que me dispus a fazer. Tinha uma irmã, para a qual vivia. Trabalhava para ela. Um dia, Britt, chamava-se assim, me escreveu uma carta. Pedia-me que fosse vê-la. Então, eu trabalhava numa casa de modas em Nova Iorque. Fui a Boston, e Britt, com o rosto radiante, me contou sua felicidade. Estava apaixonada. Tia Blanche, a mulher que nos criou, pensava, como Britt, que aquilo era a maior ventura do mundo. Britt era fraca, doentia, mas tinha qualidades. Muitas. Nem eu nem tia Blanche duvidamos que um homem, ao conhecê-las, poderia se apaixonar por ela.

Fez uma pausa. Vagou com os olhos pela sala, como que à procura de algo. Martine, que leu em seu olhar, levantou-se e ofereceu-lhe cigarros.

— Continue, Laura. Parece-me que está sofrendo como se Britt ainda estivesse presente.

— Mais. Pensei que não se poderia sofrer mais do que sofri então, mas agora, para meu assombro, sei que isto é muito mais doloroso e insuportável. Bem, sabendo da novidade, regressei a Nova Iorque. Mais tarde fui chamada de novo a Boston. Fiquei sabendo que o tal noivo de Britt havia viajado. Nunca o conheci. Sabia seu nome e conhecia seu prestígio como advogado. Britt fazia seu enxoval cheia de ilusões. Mas um dia, ela recebeu uma carta. Tia Blanche me chamou a toda pressa. Encontrei Britt feito um trapo. Naquela carta, Jack Mell lhe dizia que não poderia casar-se com uma enferma, que se conformasse com as horas que passou com ele.

— Jack Mell?

— Sim. O primo de meu marido, mas eu pensei... que era meu próprio marido.

— Oh, meu Deus!

— O resto, você sabe. Um dia conheci Jack. Eu vivia com aquela ânsia de vingança. Não me deteria ante nada nem ninguém. Já não seria possível. Consegui conquistar Jack. Casei-me com ele e esperei com ansiedade o momento de cravar-lhe o punhal, o mesmo que matou minha irmã.

— Morreu...

— Sim. Seis meses depois. Desde aquele momento, não se levantou mais da cama. Sobre seu cadáver, eu jurei... e o cumpri; só que me enganei de homem.

— Jack Mell, o primo de seu marido — disse Martine baixinho. — Há muito tempo que se casou.

— Sim.

— Disse tudo isto a Jack?

— Tudo — e contou em seguida sua conversa com Jack.

— E ele não voltou?

— Pensei que estava em sua casa.

— Não apareceu ali. E agora, Laura?

— Agora, o quê? O que quer que ocorra? Estou aqui esperando minha sentença... Posso evitá-la? Rebelar-me contra ela? Tenho algum direito de rebelar-me? Jack jamais me perdoará. Ponto por ponto recordará o dia... hora e hora, esmiuçando-o, condenando os dias de nosso casamento. Fui... cruel.

— Vingava sua irmã.

— Sim, Martine. Você gosta muito de mim. Por isso me desculpa.

— Não, não — agitou-se a esposa de Spencer com calor. — Não a desculpo. Isso, não. Mas se reconhece sua falta e tenta consertá-la com sua atitude atual de submissão...

— Não sei como reagirá Jack. Não sei ainda o que me falta sofrer. De qualquer modo... farei o que ele disser. É triste chegar a esta situação.

— Você o ama. E ele a amou muito. Deve amá-la ainda.

— Amo-o... Quando o soube? Acho que sempre o soube. Mas era mais forte minha ânsia de vingança. Não foi uma vingança privada, entre os dois, Martine. Foi algo público, que não se pode perdoar facilmente.

 

Achava-se no quarto quando o viu chegar. Eram sete da tarde do dia seguinte.

Vestia-se de cinza. Como no dia anterior... A calça estava algo amassada e carregava sob o braço a pasta.

Da janela viu quando descia do carro junto à garagem e caminhava a pé, o andar firme, um pouco inclinada a cabeça para um lado, gesto típico nele.

Esperou-o no meio do aposento. Supunha que ele subiria a seu quarto. Que falaria da sua situação, concretizando-a.

Mas, foi apenas meia hora depois que ouviu seus passos. Depois, umas batidas na porta. Nunca pediu licença para entrar. Entrava, fitava-a e a tomava nos braços.

Naquele instante, não.

— Entre — disse em voz baixa. — Entre.

Jack entrou.

Semblante cerrado. Mas, quase sereno.

— Entre, Jack — sussurrou ela. — Estava... esperando-o. Já sei... o que dizem os jornais.

Ele agitou a mão. Agitou-a de tal modo, que indicava bem claro que a publicidade era algo sensacionalista.

Deixou-se cair numa cadeira e cruzou as pernas.

— Jack — sussurrou ela aproximando-se. — Sei que não pode me perdoar. Mas eu... reconheço meus erros e estou disposta... disposta a tudo, só para merecer o seu perdão.

Que mulher diferente! Quem iria dizê-lo!

Mas ele não podia admiti-la. Era um homem honesto, e a desonestidade de Laura... acabou com suas ilusões.

— Estive pensando em meu escritório — começou ele a dizer, com uma voz rouca e arrastada. — Nossa intimidade... terminou. Pensar o contrário, seria pensar que sou um animal.

— Eu agi como um, Jack, mas...

— Não fale, por favor — cortou ele secamente. — A sua submissão me machucaria mais. Pode parecer-lhe estranho mas é isso aí.

Laura não se atreveu a dizer nada. Esperava o que ele ia dizer ainda, com a alma em pedaços.

— Pode ir embora — disse ele, como se seguisse um pensamento. — O escândalo está feito e não se pode evitar que os jornais comentem, e as pessoas também. De que serve uma comédia dentro de casa, se na rua estão sabendo de tudo?

— De tudo?

— Dos motivos, não, mas sim dos fatos. Um escândalo desses é perigoso para um advogado, mas não definitivo. Tenho dinheiro de reserva, o suficiente para viver o tempo que meus clientes me abandonem. Mas voltarão para mim. Isso é normal. Não sou o primeiro nem serei o último a sofrer um baque. Passará. Tudo passa na vida.

— E... quanto a nós?

Jack agitou a mão no ar.

Não parecia nem de longe o homem apaixonado e ardente de antes. E aquela sua calma gelada era terrível.

— Não me irei — quase gritou, mostrando a mulher que Jack desconhecia. Mas Jack não parecia impressionado. — Ficarei aqui. Suportarei tudo. Seu desprezo, seu desdém, sua... frieza.

— Não será possível consertar o que se destruiu estupidamente, Laura. Não percebe?

— Trata-me como se fosse uma infeliz doente mental.

— É o que me parece — disse Jack com naturalidade.

— Não tornará a me amar...

— Como a amava? Não, não creio. Poderia ocorrer, mas não o desejo nem o creio.

Laura foi até ele. Tinha um nó na garganta e a ansiedade refletida em seus olhos.

Como acreditar que fosse a mesma mulher que ele conheceu naqueles seis meses de casados, sendo tão fria e tão passiva, e parecendo agora tão vibrante, tão cheia de vida e sentimentos?

— Jack... eu o amo.

— Por favor — gritou, e agora parecia alterado. — Não manche uma palavra tão bela. A palavra mais bonita que uma mulher pode dizer, quando é sincera. E a mais pecadora e ruim quando é mentira.

— Mas é verdade, Jack.

E se atirou a seus pés, ficando toda encolhida no tapete.

— Lamento, Laura — disse a voz mansa de Jack — Lamento muito. Mesmo sendo verdade... agora é tarde!

— Podemos começar tudo de novo.

— Com um peso semelhante? Não seria possível. Não a culpo apenas por haver dito a verdade no tribunal, quando eu, realmente e sinceramente, pensava que ia me ajudar. Já não se trata disso — ficou em pé. Olhou-a com pena. — É tudo. Condensando todo este tempo em um só instante, imagine um homem que está cego e se empenhe em ver, e vê. E vê coisas belas, belíssimas; que vive com a esperança de ver melhor ainda, e de repente... sabe que tudo foi ilusão de seus sentidos enfermos. Isso me ocorreu quanto a você. Cada instante de nossa vida íntima, cada segundo ou fração de segundo, passa agora aos meus olhos como um filme mudo, mas expressivo.

— Jack, eu, eu... — ocultou o rosto entre as mãos. — Não poderei deixar esta casa. Deixe-me ficar. Sei que meu papel é odiosamente deplorável, mas...

— Fique — disse ele, girando totalmente. — Se o deseja, fique.

— E você?

— Eu?

— Sim, a meu respeito.

— Não sei guardar ódio em meu coração. Se ficar... já conhece seu papel. Terei uma vida à parte. A comédia social. Quanto a você... — chegava à porta. — Você... pode fazer a sua. Não me oporei.

— Jack — gritou, a voz dilacerante. — Eu o amo.

Jack se virou do umbral.

— Não o repita mais — pediu rouca-mente. — Isso me ofenderia... E ofenderia a si mesma, mesmo sendo verdade. Não se humilhe. Admirava sua altivez. Sim, creio que a admirava tanto como agora desdenho sua humilhação.

E saiu sem esperar resposta.

 

— Pare de caminhar às tontas, Jack. Não há muito tempo, você veio aqui me falar da frieza de sua mulher. Agora, afirma que...

— Não o repita.

Spencer acendeu um cigarro e ofereceu-o a Jack.

— Não me diga que não a ama.

— Não sei. A verdade é que, no momento, não consigo ver em Laura a mulher que desejo e preciso. Ela me arrasou — deixou-se cair sentado numa cadeira.

— Há uma semana a vejo em minha casa, dócil, em seu papel de esposa ansiosa e apaixonada. É, pergunte a Martine. Ela continua sua amiga. Claro, não foi tão humilhada quanto eu fui.

— Você tentou ser compreensivo?

Um sorriso sarcástico da parte de Jack.

— O que mais queria que eu fizesse? Outro a teria posto fora de casa. No entanto, não o fiz. E ela está agindo como autêntica dona de casa. Organiza tudo, dirige, manda, orienta. E os criados, que antes a temiam, agora se desdobram para atendê-la, na maior boa vontade. Ela chega a se humilhar, quando me vê. Beija-me no rosto, e tenta resvalar os lábios até os meus, mas eu não permito. Não poderia sentir o seu contato — fez uma pausa que Spencer não interrompeu. — Na verdade, nem sei como beijam os seus lábios. Sempre os encontrei cerrados, frios. Inumanos...

— Não é suficiente sua submissão?

— Não! Não posso esquecer os meses em que me desprezou. Não seria mais honesto se me tivesse advertido, antes do julgamento? Desprezar-me no dia em que se casou comigo? E em troca, dormiu em minha cama, suportou o meu ardor, a minha paixão, e depois... ficou bem tranqüila.

— Tudo isto... ela está amargurando.

— Azar o dela. Que se dane, que me deixe em paz. Já me prejudicou bastante. Agora, recomeço a trabalhar. Mas terei que ter muita força de vontade para me impor de novo.

— Não acredito que tenha deixado de amar tão depressa a mulher que adorava, que desejava com todo o seu ser. Por que não a perdoa, Jack?

Jack se ergueu bruscamente.

— E não a perdoei? Eu penso que sim. Mas os sentimentos são diferentes de um perdão dado por caridade.

— Pois permita-me dizer-lhe que está perdido.

Já o sabia.

Chegou em casa às nove da noite. Avistou-a diante da televisão.

Teve que admirar, contra sua vontade, a beleza e perfeição de suas linhas. Vestia calça comprida e uma blusa de xadrez miúdo. Com qualquer traje que estivesse, parecia uma princesa.

— Olá — saudou, deixando a pasta na mesinha de entrada do "living".

Ela se levantou, largando o bordado que fazia.

Jamais a vira fazendo um trabalho manual.

— Chegou mais cedo hoje — sussurrou ela com sua voz algo infantil.

Jack se jogou no sofá. Sentia-se cansado, não sabia bem por quê.

— Está cansado — disse ela baixo, sem perguntar.

E como não pudesse resistir, ajoelhou-se no tapete e ficou juntinho a ele, encostando seu rosto em seu ombro.

Tinha-a ali a sua mercê. A mulher que tanto desejou e amou, e pela qual teria dado a vida. Estava como a idealizara. E no entanto... não queria possui-la.

Os dedos de Laura acariciaram o rosto masculino, com uma suavidade enternecedora.

— Trabalhou muito, eu sei.

Não queria responder. Tampouco Laura esperou resposta. Com a mesma suavidade, tirou-lhe a gravata do pescoço.

Era uma mulher sedutora. Uma mulher de verdade, mas ele... não sentia desejo de tomá-la nos braços, de fazê-la sua, de procurar sua boca.

Poderia feri-la.

E não podia feri-la. Era honrado demais para isso.

— Começa a trabalhar já? — perguntou Laura, inclinando-se para ele.

Continuou calado, sem fitá-la.

— Sinto o ocorrido, Jack — murmurou Laura sobre seus lábios.

Jack apertou mais os olhos, fechando-os bem.

Não tinha forças para afastá-la de si, e como um autêntico egoísta, deixou-se acariciar por ela.

Ocorreu algo inesperado. Laura o beijou na face, mas de repente, seus lábios caíram nos dele. Como jamais sonhou. Um beijo demorado, perturbador.

Meio alucinado, levantou-se bruscamente.

— Não se esforce — disse ele roucamente — Não se esforce, Laura.

Fitou-o suplicante.

— Não gosto de vê-la humilhar-se — continuou Jack. — Não gosto. E me transtorna. Porque deve restar algo daquele fogo destruído. As cinzas ainda quentes. As de meu desejo. E isso lhe basta?

Juntou as mãos. Apertou-as com intensidade.

— Não, Jack... Por favor..., não.

Jack saiu sem responder. Pisava forte.

Ela continuou ali, encolhida, torcendo as mãos.

 

Ela continuou no mesmo lugar, parecendo um objeto inanimado. Não ouviu seus passos, abafados pelo tapete.

Sentiu o calor de sua mão em seu cabelo.

Não se moveu. Tinha os olhos cheios de lágrimas e não queria que ele a visse assim.

— Levante-se, Laura. Vamos comer algo.

Era o mais duro para ela; suportar aquela voz suave, mas carregada de indiferença.

— A mesa está posta, Laura.

Ele mesmo ajudou-a a levantar-se. Não deixou que Jack visse a desolação de seu semblante. Por isso evitou olhá-lo.

— Esqueça o que aconteceu conosco — disse ele. — Não podemos ser amigos dentro de casa?

— Podemos? — perguntou Laura com voz amarga. — Podemos? Nós nos amamos. 

— Cale-se.

— Eu o amo. Não tenho por que ocultá-lo. Cometi uma falta imperdoável, mas... mas... — agitou-se, de costas para ele — mas bem caro está me custando.

— Esqueça os sentimentos. Só podemos ser amigos.

— E seu ódio?

— Não existe.

— Seu desprezo.

— Não existe.

— Sua caridade.

Ele não respondeu.

Laura se virou para ele, os olhos faiscantes.

— Não quero sua caridade. É o que sente por mim, verdade? É só o que pode me dar.

— E você nada pode exigir, Laura. Não o compreende? Você me feriu. Não queria mencionar de novo este assunto, mas você o faz presente todos os dias, e todas as horas.

— E transformo seu lar em um pesadelo — disse ela com amargura.

Jack negou com a cabeça, e depois disse:

— Por incrível que lhe pareça, gosto da ternura de meu lar. Egoísmo masculino? Nunca fui egoísta... Agora, me parece que o sou.

— Deve me julgar uma mulher sensual, voltada para o sexo — replicou Laura com desespero.

— Oxalá o fosse — murmurou Jack secamente.

E, ante o olhar interrogante dela, Jack explicou:

— Nem mesmo em seus atos atuais, tão femininos, parece sexual. E isso... põe em perigo minha fortaleza.

— Pareço-lhe desprezível pelos beijos que lhe dou sem ser correspondida.

— Meço-os através dos que lhe dei em iguais circunstâncias.

Laura baixou a cabeça.

— E não os quer...

Após o jantar, Laura lhe perguntou:

— Vai... sair?

— Não. Vou dormir.

Um silêncio. Custava dizer aquilo. Custava tanto como custou representar o papel de passiva, quando sentia a paixão de seu marido e queria correspondê-la.

— Em seu quarto de solteiro.

Os dois se encararam fixamente.

— Sozinho.

— Sua frieza... é pior que mil censuras.

— S eu fosse dormir com você, amanhã nos odiaríamos por ter sido fracos ante uma vulgar atração física. Não sou homem que se deixe dominar por paixões vulgares. Domino-as, contenho-as. E não magôo a quem me inspira.

— Se esquecesse essa vingança...

— Já a esqueci. O que quer? Que a ofenda, levando-a comigo para a cama? Seria, já o disse, enganar-nos mutuamente, cimentar uma vida sobre barro. Tem que se sentir paixão, ternura, e então, não é pecado manifestá-la. Mas assim seria tudo vulgarmente físico.

— De minha parte, não — sussurrou ela.

— Mas da minha, sim. Perdoe minha sinceridade.

Fechou-se em seu quarto. Assim se passou mais um mês.

 

— Vim correndo — ofegou Martine. — Chamei um táxi, como você me pediu e vim.

De repente emudeceu.

— Aonde vai? Está vestida para sair — olhou o relógio de pulso. — São quatro horas apenas. O que aconteceu?

Por toda resposta, Laura a beijou no rosto e a segurou pelo braço.

— No carro eu lhe conto.

— Laura — fitou-a espantada. — Não me diga que regressa a Boston e quer se despedir de mim.

Laura sorriu. Um sorriso pálido, estranho.

— Não poderia regressar a Boston assim... Minha vida é dura, mas sei que mereço esta lição — suspirou com amargura. — Vamos? Não queria ir sozinha... aonde devo ir.

Martine estimava e admirava a amiga. Uma ao lado da outra desceram ao jardim e se dirigiram à garagem.

— No caminho eu lhe explicarei tudo.

Subiram ambas no carro, Laura ante o volante. Ao passar por Tom, o jardineiro, deteve-se.

— Se meu marido chegar antes de mim — disse com uma doçura que contrastava com a dureza de antes — diga-lhe, Tom, que não me demoro.

— Sim, senhora.

— Até logo, Tom.

Dirigiu durante algum tempo em silêncio. Martine, um tanto curiosa, esperava, em silêncio, que Laura começasse a falar.

— Iremos ao outro lado da cidade, Martine. Todo mundo conhece Jack e eu... Os jornais falaram muito em nossos nomes. Preciso ver uma pessoa que não tenha simpatia nem interesse por jornais e revistas. Que me considere apenas uma mulher como outra qualquer.

— Não a entendo.

— Vou a um médico, em um bairro afastado da cidade.

Martine arregalou os olhos.

— Um... quê?

— Um médico. Ginecologista. Tenho que me certificar de algo.

Martine, compreendendo, emocionou-se.

— Laura... estou tão emocionada. Por que não vamos ver meu marido? Ele não dirá nada a Jack...

— Prefiro que seja um médico desconhecido, Martine. Por favor, não diga nada a Spencer, enquanto eu não falar com Jack... caso minha suspeita seja confirmada.

E ficou com o rosto tenso, os olhos fixos na rua.

Uma hora depois, estavam de volta.

— O que vai fazer, Laura?

— Primeiro, a levarei para casa. Depois... irei no escritório de Jack.

Estavam se aproximando da casa de Martine.

— Talvez essa luta termine hoje mesmo, quando lhe disser que espera um filho.

Ela o duvidava, mas não disse a Martine.

Deteve o carro. Martine virou-se para ela.

— Posso contar a Spencer?

— Se estiver sozinho..., sim.

— Laura... vai ser humilde ao contar para Jack?

Assentiu com a cabeça.

— E se apesar de tudo...?

A voz de Laura soou rouca e estranha:

— Então... irei para Boston. Viverei em minha casinha, onde morreram Britt e tia Blanche... — e depois, como se tivesse muita pressa: — Desça, por favor. Quero alcançar Jack em seu escritório, pois não teria coragem de falar-lhe na intimidade de nossa casa.

— Boa sorte, Laura. Tenha paciência com Jack. Ele é um homem maravilhoso, apenas... está ferido.

Já não havia um só empregado na firma de seu marido. Mas, ao chegar à ante-sala, avistou um abrigo feminino e uma bolsa. Ouviu vozes.

Não quis escutar o que diziam. Como a porta do escritório central de seu marido se achava entreaberta, cruzou aquele umbral.

Ficou paralisada, ante o quadro que viu.

Jack estava em mangas de camisa, com um copo na mão, fumando ao mesmo tempo. Não longe dele, sentada, sua secretária, que o olhava com admiração.

— Não a esperava — disse Jack com naturalidade.

Era cruel. Cruel, porque tinha que saber o que ela sofria naquele instante, imaginando o que talvez não existia. A situação era crítica e forçada.

— Entre, entre. Não fique aí parada.

Imediatamente, a jovem secretária se retirou.

— Sente-se — disse Jack. — Vou apanhar meu paletó e podemos ir. Já estava mesmo de saída.

Olhou abertamente para Jack.

— É ela... quem consola sua solidão?

Jack não respondeu de imediato. Depois, começou a rir. Um riso forte, forçado.

Consolo? Poderia ele tê-lo?

Bem que o tentara. Não com aquela jovem, que era honesta, mas com outras mulheres. Era como uma desforra a sua amargura. E de que serviu?

Ficar com um gosto ruim na boca. Sentir raiva por não achar o consolo esperado. Sentir um profundo asco por tudo e por todas.

Para ele só existia Laura, mais ninguém. Mas não pensava dizê-lo, é claro.

— Não se envergonha em ofender uma moça decente?

— Não sei até onde chega sua decência — replicou sem alterar-se, mas quase chorando. — São oito e meia da noite e estava com você.

Jack serviu-se de uma bebida.

— Quer? — ofereceu.

Laura perdeu um pouco o controle.

— Tenho ciúmes — disse ardentemente. — Terríveis. Como se... como se...

Apertou os lábios.

Jack contemplou-a. Estava mais linda do que nunca, com aquela expressão ardente em seus olhos.

— Se a secretária fosse como você pensa, e eu bem queria que o fosse, caso eu a amasse, não me importariam os seus ciúmes.

Era um rude golpe, mas ela o sustentou.

Jack era um homem difícil de se lidar. Como pôde pensar um dia que era fácil manobrá-lo?

— Eu devo ser muito fraca — disse Laura baixinho, num tom amargo — e tola. Ou só tento fazê-lo compreender que não me importa humilhar-me. Ofendi-o. Eu sei, mas...

— Esqueça aquilo.

— E você?

— Eu? — deu de ombros. — Não sei. Nunca penso nisso.

Fechou o bar. Deixou o copo sobre a mesa e virou-se para ela.

— Podemos ir para casa.

— Não ando vigiando-o — murmurou Laura magoada.

— Nem tem o direito. Não penso fazer nada censurável — disse Jack abrindo a porta e fazendo sinal para que ela passasse. — Mas se me ocorresse fazê-lo, não seria você quem iria me impedir.

— Quanto me despreza.

Não a desprezava. Começava a sentir por ela a mesma ansiedade. Mas tentava dominar-se.

— Esqueça isso — disse evasivo.

E depois, sem que Laura respondesse:

— Quer ir a alguma parte? Ou cinema, um teatro?

Fitou-o rapidamente. Havia uma luz nova em seus olhos claros.

— Desafiaria as críticas... por mim?

Desafiaria. Mas, afirmou o contrário.

— Por você, não. Por mim, apenas.

— Não tem remorsos de ser tão egoísta e ofensivo.

— Lamento.

Esperavam o elevador.

Laura mordia os lábios, mas a pergunta saiu, sem que a pudesse conter.

— Não... a ama?

Jack girou a cabeça.

— A quem?

— Ela... sua secretária.

— Não — respondeu seco, ausente.

O elevador chegou, vazio.

— Entre — convidou ele.

Ela passou por ele. Cruzou o abrigo no peito e ficou apoiada num canto do elevador.

Mas, houve um momento em que, não se contendo, tentou se aproximar de Jack. Estava diante dele, os olhos brilhantes e a boca entreaberta.

Era uma tentação.

— Jack...

— Diga.

— Não... não.

Agitou-se e subitamente, abraçou-se com ele. Jack apertou os lábios. Fechou os olhos. Não queria senti-la assim tão junto a si. Com toda aquela ternura, com aquela paixão.

— Jack... não me ama nem um pouquinho. Jamais me perdoará.

Sabia o quanto era duro para ela humilhar-se assim.

Por isso, como se fizesse uma concessão, e não a fazia, pois o sentia, passou-lhe a mão pelo cabelo e a deixou resvalar até as costas femininas.

Ela levantou os braços.

— O que está fazendo? — perguntou Jack sufocado.

Já respondeu em sua boca.

— Não sei — disse. — Só sei... Oh, por Deus, censure-me ou mate-me, mas não sou capaz de passar sem você.

O elevador se deteve.

Deixou de beijá-lo. Jack afastou-se e empurrou a porta, como se mil emoções juntas não lhe martelassem as têmporas e seus sentidos.

Momentos depois, juntos, silenciosos, subiam no carro de Laura.

— Eu dirijo — disse ele em tom estranho.

 

Encolheu-se no canto.

Apertou o abrigo no peito e se aconchegou nele como se fizesse um frio tremendo, e no entanto, fazia calor, muito calor, tanto que Jack, instintivamente, baixou o vidro da janela.

Seguia em silêncio.

Esse silêncio emotivo de duas pessoas que têm tantas coisas a dizer-se, que temem destruir-se uma à outra com uma frase qualquer, sendo tão pouco vulgar o que sentem.

Foi ele, roucamente, quem murmurou:

— O que prefere, passear ou ir ao cinema?

— Nada.

— Nada?

— Está pensando...

— Esqueça o que eu possa pensar, Laura.

Ela se agitou no assento. Anoitecia.

Em pleno maio, às nove da noite, já estava bem escuro. Os olhos femininos, hesitantes, procuraram onde pousar-se. Mil anúncios luminosos passavam ante suas pupilas.

— Deve me julgar...

— Já disse, esqueça isso.

— Você o esquece?

—Sim.

— Considera-me uma mulher vulgar.

— Não, não a considero vulgar.

Fitou-o ansiosa.

— Jack...

— Por favor, Laura, quer se esquecer de uma vez para sempre nossos problemas íntimos?

— Não me refiro a eles.

Ele já o sabia.

Subitamente, Laura se apoiou nele.

— Sou vulgar, Jack — disse baixíssimo. — Tenho tantas culpas sobre mim... Arrependo-me de todas e de cada uma delas, mas você nunca o compreenderá, verdade?

Queria olhá-la. Morria de vontade de fazê-lo. De procurar seus olhos e poder dizer-lhe... Dizer-lhe! O que podia dizer?

Que estava igualmente louco por ela. Que queria tê-la nos braços e senti-la de outra maneira.

Mas, não.

Era como uma maldição.

E que importava esta, quando na realidade... já não recordava nada daquele passado tenebroso?

— Jack.

Sentia seu hálito morno na face, e o contato de seus lábios junto ao canto de sua boca.

— Laura... assim vamos bater com o carro.

— Eu gostaria de morrer assim, mas antes, em sua agonia, em minha agonia, dizer-nos o muito que nos amamos.

— Sem viver essa paixão?

— Se não vou tê-lo mais, o que importa tudo? Devo ser egoísta, verdade?

Era deliciosa.

Ele não conhecia aquela mulher. Era tal e qual a imaginara. Como sempre quis que fosse...

Os dedos de Laura metiam-se em sua camisa, acariciavam seu peito.

— Pare — disse roucamente. — Pare.

— Pareço-lhe uma... uma...

— Não o diga.

— Pareço-lhe?

Não. Mil vezes, não. Parecia-lhe deliciosa. Era sua mulher, afinal. Ocorresse o que ocorresse entre os dois, eram marido e mulher, e cabe maior ventura entre um casal... ser assim?

— Jack... Fui procurá-lo para dizer-lhe algo.

Que seria? Que o deixaria?

Não poderia resisti-lo.

Enquanto Jack lutava consigo mesmo, Laura passava os lábios em seu rosto, e sua mão deslizava pelo tórax masculino.

— Como você é — disse ele, sem poder conter-se.

— Sim, quando amo, sim.

— Eu... a desconhecia — e como se lhe doesse aquela súbita fraqueza ao admitir suas carícias, perguntou roucamente: — Ia me dizer algo...?

O carro se deteve neste instante.

Houve como que um súbito sobressalto nos dois.

Foi ela, timidamente vermelha, quem se afastou primeiro.

Desceu do carro sem que ele a impedisse. Caminhou para casa sem esperá-lo. Mas quando chegou ao "living", Jack já estava ao seu lado.

— Viemos dar em casa sem nos darmos conta — comentou ele com volubilidade. — O que toma?

— Nada.

Jack ia para o bar. Laura tirou o abrigo. Usava um vestido de fina lã azul-marinho, de golinha redonda, simples e juvenil. Parecia mais frágil, mais feminina.

Foi até o aparelho de televisão e ligou-o.

— Por favor! — pediu Jack cansado — Não ligue isso. A estas horas a programação é, insuportável.

Laura desligou a televisão.

— Como queira.

— Vou telefonar para Spencer e Martine. Talvez aceitem jantar conosco.

Estava fugindo?

E Laura, que tanto queria contar-lhe a grande notícia. Mas só o faria sentada em seu colo, a cabeça apoiada em seu peito... À distância, assim, não poderia. Jack telefonou e fez o convite.

— Eles virão — disse depois de desligar. Tornou a oferecer-lhe bebida. — Quer?

— Não, obrigada.

Jack sentou-se no sofá. Laura foi se encaminhando para ele, quase sem o sentir. Tirou-lhe o copo da mão e deixou-o sobre a mesa de centro.

— O que está fazendo? — perguntou ele roucamente.

Quando Laura contestou já estava sentada em seus joelhos.

— Mas... — agitou-se ele. — Mas...

A jovem estava meio louca. Não sabia o que lhe acontecia. Era seu marido, e não queria perdê-lo. Tanto tempo dominando seus sentimentos e de repente podia, e o fazia, extravasá-lo totalmente! E era tanto o que sentia!

Levantou os braços, passou-os em seu pescoço.

— Laura...

— Por favor, deixe-me; despreze-me depois. Tenho que... tenho que...

Não podia dizê-lo. Tinha que fazê-lo, mas não ia poder. Meteu a cabeça em seu peito. O cabelo fez cócegas na boca de Jack. Ele estremeceu dos pés à cabeça.

— Jack... gosto de ficar assim.

Séculos?

Ele não queria contar. Não queria pensar.

Estava beijando Laura e esta lhe passava os braços pelo pescoço e seus dedos nervosos lhe despenteavam o cabelo.

Tudo como sempre o sonhou.

Tentou pensar no dia do julgamento. Não conseguiu. Só podia ver a sua frente uma Laura apaixonada, amorosa, terna e carinhosa.

— Estou louca por você, Jack.

— Cale-se.

— Tenho que dizer-lhe, por que não? E também há outra coisa que devo dizer-lhe...

Nisso, ouviu-se a campainha da porta.

— Martine e Spencer — sussurrou Laura tentando saltar de seus joelhos.

Contra toda razão, odiou Martine e Spencer. Quis reter a esbelta figura de novo, mas Laura já se dirigia à porta.

Tentou serenar-se. Custava. Não ia poder. Já não podia fugir dela.

Daquela ternura que nunca viveu junto a ela até que ocorreu o que tinha que ocorrer, para que ambos fossem sinceros um com o outro.

— É Martine e Spencer — sussurrou da porta.

Jack procurou seus olhos.

Não conseguiu achá-los.

Laura se obstinava em escondê-los. Estava vermelha como um pimentão. Como uma garota que o pai apanhasse nos braços do namorado.

— Laura...

Não queria responder.

Não queria recordar o ocorrido em seu colo. Suas carícias ardentes, seus beijos como fogo, suas frases incoerentes...

— Estão... aqui...

Já estavam ali. Martine entrava fazendo ruído. Spencer, com sua habitual tranqüilidade.

 

Foi um jantar animado.

Ao menos na aparência. Nem Martine nem seu marido notaram nada e, no entanto, havia muito o que se notar.

Jack procurava constantemente os olhos de sua mulher. Já não era possível passar sem ela. Laura, com seu instinto, já o sabia.

Mas lhe evitava os olhos. Pela primeira vez  na sua vida lhe dava vergonha. Era como se Jack fosse seu namorado e fosse se casar com ele no dia seguinte ou aquele mesmo dia. Sim, estava certa de que se casaria com Jack aquela mesma noite pela segunda vez.

Depois do jantar, Spencer desafiou Jack para uma partida de xadrez. Martine e Laura ficaram sozinhas, num canto do salão, na penumbra.

— Já lhe contou?

— Ainda não.

— Como?

— Não. Não tive chance. Falarei quando vocês saírem. Contou a Spencer?

— Não. Esperava que você o fizesse primeiro. Jack não a perdoaria se soubesse depois da gente.

— Pode contar a Spencer esta noite mesmo. Eu falarei com Jack logo que vocês se forem.

— Como vai... tudo?

Respirou fundo. Tinha um cigarro na mão e o levou aos lábios.

— Amanhã irei a Boston.

Disse-o com voz rouca, amarga, diferente da voz que ultimamente usava.

— Sem contar-lhe? — sussurrou Martine.

Laura assentiu com um breve movimento de cabeça.

— Não serei capaz de suportar mais humilhações — respirou fundo: — Ou esta noite ou nunca...

— Esta noite? O que aconteceu?

Contou-lhe em voz tênue, como se esta fosse lhe faltar a qualquer momento.

Martine apertou-lhe os dedos com ternura.

— Você fez mal — sussurrou. — Mas está a ponto de ser redimida. Spencer e eu falamos muito em vocês. Spencer insiste em que Jack a amou demais para esquecê-la tão depressa. Quando se ama assim... tão profundamente... não se esquecem seis meses de convivência. Iremos embora logo, quer? Assim poderão falar mais à vontade. Fale-lhe da criança.

— Não quero que se vão. Fico... com vergonha. De repente, sinto-me... como uma colegial.

— Sabe por quê? Também ainda sinto certa vergonha de ficar a sós com Spencer. Gosto, mas também sinto vergonha.

Martine calou-se, sonhadora.

— Vou dizer a Spencer — acrescentou depois, sem que Laura dissesse nada. — Direi que estou com sono.

— Espere.

— Não seja criança.

E rindo, ficou de pé. Acercou-se a seu marido pelas costas e lhe passou os braços pelo pescoço.

— Tenho sono, querido. Vamos?

Spencer riu e deixou de lado o tabuleiro.

— Sinto, Jack — disse, sem suspeitar que este só pensava em terminar a partida. — Tenho que ir.

Foram-se.

Assim que a porta se fechou as suas costas, Laura se apressou em dizer:

— Eu... eu também... me retiro.

Mas Jack a reteve pelo braço.

— Tem pressa?

— É... é... — gaguejava. — É tarde.

— Sim.

Mas não a soltava. Caminhava junto a ela. Aconteceu do modo mais simples.

No dia seguinte, a criada comentou: "A madame dormiu no quarto do patrão".

Mas naquele instante, Jack não disse palavra. Com a maior naturalidade caminhava junto a ela, levando-a pelo braço.

Parou ante seu quarto de solteiro.

— Não entra? — perguntou normalmente.

Laura estremeceu. Trêmula, deu um passo à frente e depois outro. Depois ficou paralisada no meio do umbral. A mão de Jack a empurrou suavemente.

Depois fechou a porta.

— Espere, vou acender a luz — disse, e em sua voz se denotava a emoção que sentia. — Você mal conhece este quarto.

— Conheço-o.

A voz de Jack tinha uma estranha vibração.

— Conhece-o?

— Venho aqui... quando você não está.

— Agora estou.

Sim. Sentia-o em seu corpo. Tomava-a em seus braços. Procurava sua boca, mas antes de encontrá-la, ela sussurrou:

— Vou... vou ter um filho.

Separou-a. Acendeu a luz. Laura escondeu os olhos.

— Tanta luz — sussurrou.

Jack não ligou. As suas palavras, porque a ela sim. Tornava a tomá-la em seus braços.

— Laura... é verdade?

— Ia... ia dizer-lhe antes... Mas eles chegaram...

— Cristo... como pôde não falar?

— Ia... ia...

Beijava-a. Como um louco. Como se perdesse o juízo. E o perdia. A seu lado, começava, como antes, a perdê-lo.

Laura se chegou mais para ele. Foi tão fácil encontrar sua boca.

— Ia dizer-lhe lá no escritório, mas... mas... Não brigue comigo. Vi-o com sua secretária, e pensei...

— Tolinha. Tolinha... Tenho muito o que perdoar-lhe, mas não posso agora... não posso recordar nada. Nada.

Estava inclinado sobre ela e Laura fechava os olhos.

— Não os feche — pedia ele. — Por favor, não.

— Tanta felicidade... me dá medo.

Quem reconhecia aquela garota terrivelmente apaixonada, cheia de uma deliciosa veemência?

E depois, muito tempo depois, na penumbra, entre um suspiro abafado, a voz tênue, trêmula...

— Pensei que você era Jack Mell, o outro, o que obrigou minha irmã a morrer de dor. Perdoe-me... Perdoe, meu amor. Estava louca por você, não queria reconhecê-lo. Declarei e depois chorei. E quando você chegou... Mas, não me ouve?

— Não.

— O que faz?

— Adorá-la. Adorá-la e sentir que você me adora. Percebe? Adorei-a por seis meses, achando que você era... era... uma coisa passiva.

— E agora... — estava sedutora, provocante. — Diga, e agora?

Ele não disse o que lhe parecia agora, e ela murmurou:

— Você... é um sem-vergonha, Jack, meu amor, mas eu... eu... o amo assim. Assim como é...

 

                                                                                            CorinTellado

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades