Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTE LADO DO PARAISO - P.2 / F. Scott Fitzgerald
ESTE LADO DO PARAISO - P.2 / F. Scott Fitzgerald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O argumento de Amory finalmente prevaleceu, e Alec concordou em aceitar em presença de outros o que Amory fingia ser, contanto que ele lhe concedesse alguns períodos de trégua quando estivessem a sós. E, assim, Amory executou a coisa em grande escala, convidando para jantar os tipos mais excêntricos, alunos pós-graduados de olhos esbugalhados, professores adjuntos com estranhas teorias acerca de Deus e do governo, o que causava cínico espanto nos desdenhosos membros do Cottage Club.

À medida que fevereiro, fustigado pelo sol, se encaminhava alegremente para março, Amory fez algumas visitas de fim de semana a monsenhor Darcy. Numa delas, levou Burne consigo, com grande êxito, pois experimentava igual orgulho e prazer em exibi-los um ao outro. Monsenhor Darcy levou-o várias vezes à casa de Thornton Hancock, e uma ou duas vezes à residência da Sra. Lawrence, um tipo de americana obcecada por Roma com quem Amory simpatizou imediatamente.

 

 

Um dia, chegou uma carta de monsenhor Darcy contendo um interessante P.S.:

Sabia que sua prima em terceiro grau, Clara Page, que enviuvou há seis meses e é muito pobre, está morando na Filadélfia? Não creio que a conheça, mas gostaria que fosse vê-la, como um favor para mim. Ela é, na minha opinião, uma mulher notável, mais ou menos da sua idade.

Amory suspirou e decidiu ir vê-la, como um favor...

Clara

Clara era imemorial... Ele não estava à altura dela, daquela Clara de cabelos louros ondulados, mas na verdade nenhum homem estava. Sua bondade estava acima da prosaica moral da mulher que procura marido, e nada tinha a ver com a insípida literatura da virtude feminina.

Cercava-a uma leve tristeza, e quando Amory a viu na Filadélfia, pensou que seus olhos, de um azul acerado, continham somente felicidade; um vigor latente e uma espécie de realismo pareciam ter se desenvolvido plenamente diante dos fatos que ela se vira obrigada a enfrentar. Estava só no mundo, com dois filhos pequenos, pouco dinheiro e, o que era ainda pior, cercada por uma legião de homens. Viu-a naquele inverno, na Filadélfia, numa noite em que recebeu muitos convidados masculinos, e quando ele sabia que ela não tinha criados em casa, a não ser uma menina negra que cuidava das crianças no andar superior. Viu um dos maiores libertinos da cidade, um homem que vivia habitualmente embriagado e que era conhecido tanto na cidade quanto no estrangeiro, sentado a noite toda diante dela, falando sobre internatos para meninas com uma espécie de inocente entusiasmo. Que agilidade de espírito possuía Clara! Podia tornar fascinante, quase magnífico, o mais tênue assunto, ainda que pairasse pela sala.

A ideia de que a jovem estivesse vivendo na pobreza impressionara muito Amory. Chegou na Filadélfia esperando que lhe dissessem que o nº 921 da rua Ark ficava situado numa viela de casebres. Ficou desapontado ao ver que não se tratava de nada disso. Era uma velha casa que havia muitos anos pertencia à família de seu marido. Uma tia idosa, que se opusera a que a casa fosse vendida, deixara com um advogado dinheiro suficiente para pagar os impostos por um período de dez anos, e partira para Honolulu, deixando a encargo de Clara lutar da melhor maneira que pudesse com o problema do aquecimento central. De modo que não foi uma mulher desgrenhada, com uma criança faminta no colo e ar de uma triste Amélia que o recebeu. Em vez disso, Amory bem poderia pensar, pela maneira com que Clara lhe deu as boas-vindas, que ela não tinha preocupação alguma no mundo.

A energia calma e o temperamento sonhador contrastavam com seu espírito equilibrado – e era nesse estado de espírito que ela, às vezes, penetrava, como num refúgio. Podia fazer as coisas mais prosaicas (embora fosse bastante sensata para não se embrutecer com “trabalhos domésticos” como tricô e bordados), mas logo depois tomava um livro e deixava que a imaginação divagasse, como uma nuvem sem forma levada pelo vento. O mais profundo de tudo em sua personalidade era a dourada irradiação que se espalhava em torno dela. Como uma lareira acesa numa sala na penumbra lança romance e páthos nos rostos tranquilos que se acham junto dela, também ela lançava sua luz e suas sombras nos aposentos em que se encontrava, até transformar seu corriqueiro e velho tio num homem de estranho e meditativo encanto, e o extraviado estafeta do telégrafo numa criatura de deliciosa originalidade, que lembrava Puck. A princípio, suas qualidades irritavam Amory, de certo modo. Ele considerava suficiente sua própria singularidade e sentia-se um tanto embaraçado quando ela procurava descobrir nele novos interesses, para benefício de seus outros admiradores presentes. Amory sentia-se como se um delicado mas insistente diretor de cena estivesse tentando fazer com que ele desse nova interpretação a um papel que, havia anos, sabia de cor.

Contudo, a maneira de falar de Clara, o seu modo de contar a história insignificante de um alfinete de chapéu, do homem embriagado e dela... As pessoas procuravam, depois, repetir suas anedotas, mas estas não soavam jamais como ela própria as contava. Dedicavam-lhe uma espécie de atenção inocente e os melhores sorrisos que a maioria deles tinha dado em muito tempo; quase não havia, no que contava, coisas lacrimosas, mas as pessoas sorriam-lhe com olhos marejados.

Muito raramente, Amory permanecia ainda uns momentos em sua companhia depois que o restante da corte se retirava – e costumavam tomar chá e comer pão com geleia à tarde, ou então, à noite, fazer “merendas de bordo,”** como ela as chamava.

– Oh, você é notável! – exclamou uma tarde Amory, que já se tornava banal, sentado ao centro da mesa de jantar.

– Nem um pouco – respondeu ela, enquanto apanhava os guardanapos no aparador. – Na verdade, sou inteiramente comum e prosaica. Uma dessas pessoas que não têm outro interesse senão os filhos.

– Diga isso a outro – zombou Amory. – Você sabe que é radiante. – E pediu a única coisa que, sabia, talvez a embaraçasse. Aquilo que a primeira pessoa enfadonha disse a Adão: – Fale-me de você.

E ela deu-lhe a resposta que Adão talvez tenha dado:

– Nada tenho a dizer.

Entretanto, é provável que eventualmente Adão tenha falado à pessoa enfadonha sobre os pensamentos que o assaltavam à noite, quando os gafanhotos saltitavam na relva arenosa, observando, com ar de superioridade, quão diferente ele era de Eva, esquecendo-se de quão diferente ela era dele... De qualquer modo, naquela noite Clara contou muito a Amory a respeito de si própria. Tivera uma vida tumultuada a partir dos 16 anos e sua educação se interrompera assim que terminara sua existência despreocupada. Mexendo em sua biblioteca, Amory encontrou um velho livro cinzento, do qual caiu uma folha de papel amarelecida, que ele impudentemente abriu. Era um poema que ela escrevera na escola acerca de um dia plúmbeo, do muro cinzento de um convento e de uma menina de casaco marrom sentada sobre ele, pensando no mundo multicolorido. Via de regra, tais sentimentos o enfadavam, mas aqueles versos tinham sido feitos com tanta simplicidade e atmosfera que lhe trouxeram à mente uma visão de Clara – Clara num dia assim frio e cinzento, com os penetrantes olhos azuis fitando a distância, procurando ver suas tragédias a marchar em sua direção pelos jardins exteriores. Sentiu inveja daquele poema. Como teria adorado aproximar-se e vê-la sobre o muro, e falar com ela sobre coisas tolas ou românticas enquanto ela lá permanecesse, empoleirada no ar! Começou a sentir-se tremendamente enciumado de tudo que dizia respeito a Clara: seu passado, seus filhos, os homens e as mulheres que vinham em bandos beber de sua fresca bondade e descansar nela seus espíritos fatigados, como numa absorvente peça teatral.

– Parece que ninguém a aborrece – objetou ele.

– Cerca da metade do mundo me aborrece – admitiu Clara –, mas acho que essa é uma boa média, não lhe parece?

E dizendo isso procurou em Browning uma citação que se aplicava ao caso. Clara era a única pessoa que ele conhecera que conseguia procurar trechos e citações de livros em meio a uma conversa sem levá-lo a uma irritante distração. Ela o fazia, constantemente, com tão sério entusiasmo que ele passou a gostar de ver seus cabelos dourados debruçados sobre um livro, a testa um tanto contraída, enquanto procurava uma frase.

No início de março, deu para passar os fins de semana em Filadélfia. Quase sempre lá encontrava alguma outra pessoa, e Clara não parecia ansiosa por vê-lo a sós, já que se apresentavam muitas ocasiões em que uma simples palavra por parte dela lhe teria proporcionado outra deliciosa meia hora de adoração. Ele, porém, apaixonou-se aos poucos e passou a meditar furiosamente sobre casamento. Embora esse desígnio fluísse de seu cérebro para seus lábios, percebeu mais tarde que esse desejo não estava profundamente enraizado. Certa feita, sonhou que o casamento se realizara e despertou banhado de suor, pois em seu sonho surgira uma Clara estúpida, de cabelos de um louro descorado, proferindo insípidas banalidades em tom de desafio. Mas ela era a primeira mulher fina que ele conhecera, e uma das poucas criaturas por quem se interessara. A bondade de Clara era uma vantagem a seu favor; quanto a Amory, estava convencido de que a maior parte das pessoas bondosas ou arrastava sua bondade atrás de si como uma obrigação ou, então, a deformava, convertendo-a numa genialidade artificial – isso sem se falar dos sempre presentes presumidos e fariseus... (mas Amory jamais incluía essas pessoas entre as que conseguiam a salvação).

SANTA CECÍLIA

Sobre suas cinzentas vestes de veludo,
Sob seus cabelos lisos e corridos,
Uma cor-de-rosa, alheia à aflição,
Flui e esmaece e torna-a bela;
Enche o ar entre ela e ele
De luz e langor e pequenos suspiros,
Tão sutilmente que ele mal o percebe...
Risonho lampejo cor-de-rosa.

– Você gosta de mim?

– Claro que gosto – respondeu, com seriedade, Clara.

– Por quê?

– Bem, temos algumas qualidades em comum. Coisas que são espontâneas em nós... ou que eram, antes.

– Você está querendo dizer que não procedi muito bem?

Clara hesitou.

– Bem, não posso julgar. Um homem, é claro, tem de passar por muito mais coisas, e eu tenho vivido ao abrigo delas.

– Oh, não dificulte as coisas, por favor, Clara – interrompeu-a Amory. – Fale comigo um pouco, eu lhe peço.

– É claro. Eu adoraria.

– É muita bondade sua. Primeiro, responda a algumas perguntas. Você me acha tremendamente presunçoso?

– Bem... não. Você é tremendamente vaidoso, mas isso diverte as pessoas que percebem a preponderância da vaidade em você.

– Compreendo.

– Na realidade, você no fundo é humilde. Mergulha num inferno de depressão quando julga que alguém o menosprezou. Na verdade, não possui muito respeito por si próprio.

– Atingiu duas vezes o alvo, Clara. Como consegue fazê-lo? Você nunca me deixa dizer uma palavra.

– Claro que não... Não consigo formar opinião a respeito de um homem enquanto ele está falando. Mas ainda não terminei. A verdadeira razão por que você tem tão pouca confiança em si próprio, embora viva anunciando com ar grave ao filisteu ocasional que é um gênio, é que você atribui a si próprio todo tipo de culpas atrozes e está procurando viver de acordo com a sua própria opinião. Você está sempre dizendo, por exemplo, que é um escravo do uísque.

– E sou, potencialmente.

– E você diz que tem caráter fraco, que não possui força de vontade.

– Nem um pouquinho de força de vontade... Sou escravo das minhas emoções, dos meus gestos, do meu ódio pelo tédio, da maior parte dos meus desejos...

– Não é! – exclamou ela, pousando uma das mãos sobre a outra. – Você só é escravo, escravo irremediável, de uma coisa no mundo: da sua imaginação.

– Isso certamente me interessa. Se o assunto não a aborrece, prossiga.

– Noto que quando deseja ficar um dia a mais longe da universidade, você o faz com toda a segurança. Jamais decide, a princípio, se os méritos de ir ou ficar estão bastante claros em seu espírito. Você deixa que a sua imaginação brilhe durante algumas horas a favor dos seus desejos, depois é que decide. Naturalmente, a sua imaginação, após um pouco de liberdade, arquiteta um milhão de razões segundo as quais você deveria ficar, de modo que a sua decisão, quando você a toma, não é verdadeira. É influenciada pelos seus desejos.

– Sim – objetou Amory –, mas não será falta de força de vontade deixar que a minha imaginação se incline para o lado errado?

– Meu caro rapaz, aí é que está o seu erro. Isso nada tem a ver com força de vontade... que é, de qualquer modo, uma expressão tola, inútil. A sua falta de julgamento, o julgamento para decidir imediatamente, ao perceber que a sua imaginação vai lhe pregar uma peça, constitui metade da evidência do que estou dizendo.

– Caramba! Maldição! – exclamou Amory, surpreso. – Essa era a última coisa que eu esperava!

Clara não tripudiou. Mudou de assunto imediatamente, mas fez com que ele começasse a pensar e acreditar que ela estava, em parte, certa. Sentia-se como um dono de fábrica que, após acusar um empregado de desonestidade, descobre que seu próprio filho adulterava, uma vez por semana, os livros de contabilidade. Sua pobre e maltratada vontade, que ele vinha expondo ao desprezo de si próprio e de seus amigos, aparecia inocente diante dele, enquanto seu próprio julgamento se dirigia para a prisão, tendo a seu lado o diabrete inconfinável de sua imaginação, dançando com alegria ao lado dele; o conselho de Clara fora o único que ele pedira a alguém sem que tivesse antes ele próprio ditado a resposta, exceto talvez em suas conversas com monsenhor Darcy.

Como ele adorava fazer qualquer coisa em companhia de Clara! Fazer compras com ela constituía um sonho raro, epicúreo. Em todas as lojas a que ela costumava ir, referiam-se a ela, aos sussurros, como a bela Sra. Page.

– Aposto que não vai continuar sozinha por muito tempo.

– Mas não precisa dizer isso aos berros. Ela não está pedindo conselho a ninguém.

– Oh, mas como é linda!

(Aproxima-se o gerente... Silêncio, até que ela se afasta, sorrindo.)

– Ela é da sociedade, não é?

– É, mas está pobre agora, acho... Pelo menos é o que dizem.

– Puxa! Mas ela é de tirar o fôlego, meninas!

E Clara tratava todos com seu sorriso radiante. Amory supunha que lhe davam descontos nas casas comerciais, às vezes com seu conhecimento, outras vezes sem que ela o soubesse. Sabia que ela se vestia muito bem, tinha em sua casa tudo o que havia de melhor e era, inevitavelmente, atendida pelos próprios gerentes das casas em que comprava.

Às vezes, aos domingos, iam à missa juntos, e ele, caminhando a seu lado, se regalava ao fitar-lhe as faces úmidas pelo ar matinal. Clara era muito devota, sempre fora, e só Deus sabia a que alturas chegava em suas preces e de que novas energias se revigorava ao ajoelhar-se e curvar a cabeça dourada sob a luz dos vitrais.

– Santa Cecília! – disse Amory em voz alta certa vez, de modo involuntário, fazendo com que as pessoas se voltassem para ele, o padre fizesse uma pausa em seu sermão e tanto ele quanto Clara ficassem muito vermelhos.

Esse foi o último domingo que saíram juntos, pois Amory estragou tudo naquela noite; não pôde evitar.

Caminhavam juntos em meio ao crepúsculo de março, tão cálido como se estivessem em junho, e a alegria da juventude enchia-lhe a alma, de modo que achou que devia falar.

– Acho – disse ele – que, se perdesse a fé em você, perderia a fé em Deus.

Clara olhou-o com tão grande espanto que ele perguntou o que estava acontecendo.

– Nada – respondeu ela, lentamente. – Apenas isto: cinco homens já me disseram o mesmo antes, e isso me assusta.

– Oh, Clara, então é esse o seu destino?

Ela não respondeu.

– Acho que o amor para você é... – começou ele.

Ela se voltou bruscamente:

– Jamais me apaixonei.

Continuaram andando, e ele foi lentamente compreendendo quanto Clara lhe havia revelado... Jamais se apaixonara... Subitamente, ela lhe pareceu apenas uma criatura solitária, filha da luz. Amory sentiu que seu próprio eu era excluído do plano em que ela pairava e desejava apenas tocar-lhe o vestido, quase com a percepção que José deve ter tido da importância eterna de Maria. Contudo, de modo inteiramente mecânico, viu-se dizendo:

– E eu a amo... Qualquer grandeza latente que eu possa ter... Oh, não posso falar, mas se eu voltar dentro de dois anos numa situação em que possa me casar com você...

Ela balançou a cabeça.

– Não. Jamais tornarei a me casar. Tenho os meus dois filhos e quero me guardar para eles. Gosto de você... gosto de todos os homens inteligentes, e, mais do que qualquer outro, de você... Mas você me conhece o bastante para saber que jamais me casarei com um homem inteligente...

Interrompeu-se subitamente.

– Amory...

– Diga.

– Você não está apaixonado por mim. Jamais pensou em casar-se comigo, não é?

– Foi o crepúsculo – respondeu ele, pensativo. – Não percebi que estava pensando em voz alta. Mas eu a amo... eu a adoro... eu a venero...

– Aí está você folheando todo o seu catálogo de emoções em cinco segundos.

Ele sorriu contrafeito.

– Não me transforme num inepto, Clara. Você, às vezes, é deprimente.

– Em primeiro lugar, você não é nenhum inepto – disse ela com ardor, tomando-lhe o braço e arregalando os olhos, cuja bondade ele podia ver no lusco-fusco da tarde que morria. – Um inepto é uma eterna negação.

– Sente-se tanto a primavera no ar... e há uma doçura tão preguiçosa no seu coração!

Ela largou o braço dele.

– Você está estupendo neste momento, e eu me sinto maravilhosamente bem. Dê-me um cigarro. Nunca me viu fumar, não é? Mas eu às vezes fumo, cerca de um cigarro por mês...

E, então, aquela criatura maravilhosa e Amory correram para um canto, como duas crianças entusiasmadas, enlouquecidas pelo crepúsculo azul-pálido.

– Vou passar o dia de amanhã no campo – anunciou ela ao parar arquejante e em segurança além do clarão da lâmpada da esquina. – Esses dias são esplêndidos demais para serem desperdiçados, embora talvez eu os sinta mais na cidade.

– Oh, Clara! – exclamou Amory. – Que demônio você não poderia ser se Deus houvesse inclinado um pouquinho a sua alma para outra direção!

– Talvez – respondeu ela. – Mas acho que não. Jamais me senti nem me sinto realmente impetuosa. Essa pequena explosão deveu-se unicamente à primavera.

– Você também é uma primavera!

Estavam andando lado a lado agora.

– Não... Você está enganado de novo. Como pode alguém que tem em tão alta conta o seu próprio cérebro estar tão constantemente enganado a meu respeito? Sou o oposto de tudo aquilo que a primavera representa. É lamentável que eu tenha uma aparência que teria agradado um escultor grego velho e piegas, mas asseguro-lhe que se não fosse pelo meu rosto, eu seria uma freira tranquila encerrada num convento, caso não tivesse... – Pôs-se a correr, e sua voz, agora mais alta, chegou flutuando até ele, que tentava acompanhá-la, poucos passos atrás. – ...os meus preciosos filhos, para os quais preciso voltar já.

Clara era a única moça dentre todas as que conhecia em cuja presença podia compreender que ela preferisse outro homem. Amory encontrava com frequência senhoras casadas que conhecera como debutantes e, ao fitá-las intensamente, julgava ler em seu rosto algo que lhe dizia: “Ah, se eu tivesse conseguido você!” Ah, a enorme vaidade dos homens!

Aquela noite, porém, parecia uma noite de estrelas e canções, e a cintilante alma de Clara ainda faiscava nos caminhos que haviam percorrido.

Dourado, dourado é o ar – cantava ele para as pequenas poças d’água. – Dourado é o ar, douradas as notas de áureos bandolins, douradas lamúrias de áureos violinos, belos, oh!, lassamente belos. Meadas a cair de cestos, emaranhadas, que os mortais não deslindam; oh!, que jovem e extravagante Deus saberia disso ou o exigiria? Quem poderia conceder tanto ouro...

Amory ressentido

Lenta e inevitavelmente, mas afinal com grande ímpeto, enquanto Amory falava e sonhava, a guerra chegou rapidamente àquelas plagas e, como um vagalhão, varreu as areias em que Princeton se divertia. Todas as noites ecoavam passos no ginásio de esportes, enquanto pelotões marchavam pelas quadras de basquete. Quando Amory foi para Washington, na semana seguinte, conseguiu apreender algo do espírito da crise, que se converteu em repulsa no carro Pullman em que voltava, pois as cabinas que tinha à sua frente estavam ocupadas por estrangeiros malcheirosos – gregos, supôs ele, ou russos. Quão mais fácil fora o patriotismo, refletiu, para uma raça mais homogênea! Quão mais fácil teria sido lutar como as colônias lutaram, ou como a Confederação lutara! Não dormiu naquela noite; ficou ouvindo as gargalhadas e os roncos estrangeiros que enchiam o vagão com o cheiro mais recente da América.

Em Princeton, todos gracejavam em público e diziam a si próprios, intimamente, que suas mortes pelo menos seriam heroicas. Os estudantes literatos liam, apaixonadamente, Rupert Brooke; os elegantes de salão preocupavam-se em saber se o governo permitiria que os oficiais usassem uniforme de corte inglês; uns poucos sujeitos irremediavelmente indolentes escreviam a obscuros ramos do Departamento da Guerra, à procura de uma comissão fácil e de um leito macio.

Então, decorrida uma semana, Amory viu Burne, e percebeu imediatamente que qualquer discussão seria inútil: Burne tornara-se um pacifista. As revistas socialistas, uma grande ingestão de Tolstoi, bem como seu próprio e ardente desejo de dedicar-se a uma causa que trouxesse à tona o que quer que pudesse haver nele de energia, fizeram com que se dedicasse finalmente a pregar a paz como ideal subjetivo.

– Se quando os alemães entraram na Bélgica, os habitantes tivessem tratado pacificamente de seus assuntos – começou ele –, o exército alemão teria se desorganizado em...

– Eu sei – atalhou Amory. – Já ouvi tudo isso. Mas não vou falar de propaganda com você. É provável que você tenha razão... mas, mesmo assim, estamos vivendo centenas de anos antes da época em que a não resistência pode chegar a ser para nós uma realidade.

– Amory, ouça...

– Burne, nós não faríamos senão discutir...

– Muito bem.

– Apenas uma coisa... Não peço que pense na sua família nem nos seus amigos, pois eles nada representam para você se comparados ao seu senso do dever... mas, Burne, como você sabe que as revistas que você lê, as sociedades às quais pertence e esses idealistas com quem se avista não são simplesmente alemães?

– Alguns são, é claro.

– Como você sabe que eles não são pró-Alemanha... simplesmente um bando de criaturas frouxas, com nomes judeus-alemães?

– Há possibilidade, claro, de que seja assim – respondeu lentamente Burne. – Se estou adotando essa posição, muito ou pouco, devido à propaganda que ouvi, é algo que não sei. Penso, naturalmente, que se trata da minha mais profunda convicção... um caminho que, neste momento, se estende diante de mim.

Amory sentiu o coração afundar.

– Pense na inutilidade de tudo isso... Na verdade, ninguém vai fazer de você um mártir por ser pacifista... Isso apenas o lançará entre a pior...

– Duvido.

– Bem, isso me cheira a coisa da vida boêmia de Nova York.

– Entendo o que você quer dizer, e é justamente por isso que acho que vou agitar as massas.

– Você é um homem sozinho, Burne... que vai falar para pessoas que não vão lhe dar atenção... com todos os dotes que Deus lhe concedeu.

– Isso é o que Stephen deve ter pensado há muitos anos, mas ele pregou o seu sermão e o mataram. Enquanto estava morrendo, talvez tenha pensado na inutilidade de tudo aquilo. Mas, veja você, eu sempre achei que a morte de Stephen foi como o que aconteceu a Paulo na estrada de Damasco, levando-o a pregar para o mundo a palavra de Cristo.

– Continue.

– Isso é tudo... Esse é o dever que me compete. Mesmo que eu não esteja certo, sou apenas um peão... estou me sacrificando. Santo Deus! Amory, você não pode achar que eu aprecio os alemães!

– Bem, nada mais tenho a dizer... Cheguei ao fim de toda a minha lógica sobre a não resistência, e aí, como um meio excluído, está o enorme espectro de um homem, como é e sempre será. E esse espectro coloca-se ao lado da necessidade lógica de Tolstoi e da outra necessidade lógica de Nietzsche... – Interrompeu-se subitamente e indagou: – Quando vai partir?

– Na semana que vem.

– Eu o verei, claro.

Ao afastar-se, pareceu a Amory que a expressão no rosto de Burne assemelhava-se muitíssimo à de Kerry ao despedir-se, sob o Blair Arch, dois anos antes. Amory perguntou a si mesmo, sentindo-se infeliz, por que não podia ele jamais entregar-se a coisa alguma com a honestidade primitiva revelada por aqueles dois companheiros.

– Burne é um fanático – disse a Tom –, e está completamente errado, não passa de um fantoche inconsciente nas mãos de editores anarquistas e agitadores pagos pelos alemães... Mas ele me intriga... Deixar tudo o que vale a pena...

Burne partiu, de maneira tranquilamente dramática, uma semana depois. Vendeu tudo o que possuía e foi despedir-se deles montado numa velha bicicleta, na qual pretendia ir até sua casa, na Pensilvânia.

– Pedro, o ermitão, despedindo-se do Cardeal Richelieu – disse Alec, que estava deitado no sofá junto à janela enquanto Burne e Amory trocavam um último aperto de mão.

Amory, porém, não estava em um estado de espírito que lhe permitisse apreciar essas brincadeiras, e ao ver as longas pernas de Burne impelindo sua ridícula bicicleta até perder-se de vista, além de Alexander Hall, sentiu que iria passar uma péssima semana. Não que duvidasse da guerra... A Alemanha representava tudo o que ele considerava repugnante – o materialismo e a direção de tremendas forças licenciosas; mas o que acontecia era que o rosto de Burne não lhe saía da memória, e ele já estava enojado da histeria que começava a chegar-lhe aos ouvidos.

– De que diabos adianta criticar Goethe? – disse ele a Alec e a Tom. – Por que escrever livros destinados a provar que ele começou a guerra... ou que o estúpido e superestimado Schiller é um demônio disfarçado?

– Você já leu alguma coisa deles? – perguntou astutamente Tom.

– Não – confessou Amory.

– Nem eu – disse Tom, rindo.

– O povo vai gritar – comentou tranquilamente Alec –, mas Goethe vai continuar em sua velha estante na biblioteca... pronto para aborrecer qualquer um que queira lê-lo!

Amory acalmou-se e o assunto foi deixado de lado.

– O que você vai fazer, Amory?

– Infantaria ou aviação. Ainda não consegui me decidir... Odeio mecânica, mas não há dúvida de que a aviação é o melhor para mim...

– Penso como Amory – disse Tom. – Infantaria ou aviação. Aviação soa assim como o lado romântico da guerra... como costumava ser, antigamente, a cavalaria. Mas, como Amory, não sei distinguir um cavalo-vapor de uma haste de pistão.

A insatisfação de Amory diante de sua falta de entusiasmo culminou, de certo modo, numa tentativa de jogar a culpa da guerra nos ancestrais de sua geração... em todos os que tinham aplaudido a Alemanha em 1870... todos os materialistas ferozes, todos os adoradores da ciência e da eficiência alemã. Assim, certo dia, durante uma preleção de inglês, ouviu o professor citar Locksley Hall e mergulhou no estudo, sentindo vivo desprezo por Tennyson e por tudo o que ele representava, pois o considerava um representante dos vitorianos.

Vitorianos, vitorianos, que jamais aprenderam a chorar,
Que semearam a amarga safra que seus descendentes irão

colher...

garatujou Amory em seu caderno. O professor dizia algo acerca da solidez de Tennyson e cinquenta cabeças achavam-se curvadas tomando notas. Amory virou a página do caderno e tornou a escrever:

Estremeceram ao ver o que o Sr. Darwin significava,
Estremeceram quando surgiu a valsa e Newman os

abandonou...

A valsa, porém, surgira muito antes. Riscou a frase.

– ...e intitulada A Song in the Time of Order – chegou até ele a voz monótona do professor.

“Tempo de Ordem”... Santo Deus! Tudo atulhado no caixote e os vitorianos sentados sobre a tampa, sorrindo tranquilamente... e Browning, em sua villa italiana, exclamando bravamente: “Tudo para melhor!”

Amory tornou a escrever:

Vós vos ajoelhastes no templo e ele se inclinou para ouvir-

vos rezar,

Agradecestes os “gloriosos ganhos” e o censurastes por

haver escrito “Cathay”.

Por que razão não conseguia escrever mais do que duas linhas de cada vez? Agora precisava de alguma coisa que rimasse:

Vós os manteríeis na linha com a ciência, embora Ele tivesse

errado antes...

Bem, enfim...
Encontrastes vossos filhos em vossa casa... Eu a construí!,

exclamastes.

Precisastes, para isso, de cinquenta anos de Europa e depois

virtuosamente... morrestes.

– Eis em grande parte a ideia de Tennyson – dizia o professor. – A Song in the Time of Order, de Swinburne, bem poderia ter sido o título de um poema de Tennyson. O seu ideal era o da ordem contra o caos, contra a improdutividade.

Por fim, Amory conseguiu o que desejava. Virou outra página e escreveu vigorosamente durante os vinte minutos que faltavam para terminar a preleção. Depois, dirigiu-se à mesa do professor e lá depositou a página arrancada do caderno.

– Eis uns versos para os vitorianos, professor – disse, friamente.

Curioso, o professor apanhou o papel, enquanto Amory saía rapidamente da sala.

Eis o que Amory escrevera:

Canções de tempos ordeiros
Nos destes para cantar,
Professores com “excluídos termos médios”,
Respostas rimadas para a vida,
As chaves do carcereiro
E velhos sinos para dobrar;
O tempo era o fim do enigma,
Nós éramos o fim do tempo...

Aqui jaziam oceanos domésticos
E um céu que podíamos alcançar,
Canhões e uma fronteira vigiada,
Castigos militares – mas nada de desertar.
Milhares de antigas emoções,
Cada qual mais sediciosa;
Canções de tempos ordeiros...
E línguas, para que as pudéssemos cantar.

O fim de muitas coisas

O começo de abril passou como num sonho – um sonho de longas noitadas no terraço do clube, com o gramofone tocando “Poor Butterfly”... pois “Poor Butterfly” fora a canção daquele ano. A guerra mal parecia afetá-los e aquela bem poderia ter sido uma das primaveras passadas dos que cursavam o último ano, salvo pelas instruções militares todas as tardes. Contudo, Amory percebia vivamente que aquela era a última primavera sob o velho regime.

– Esse é o grande protesto contra o super-homem – comentou Amory.

– Acho que sim – concordou Alec.

– Ele é absolutamente irreconciliável com qualquer Utopia. Enquanto ele existir, vai haver complicações, e todos os males latentes que fazem com que as multidões ouçam e oscilem enquanto ele fala.

– Não obstante tudo isso, ele é um homem bem-dotado, destituído de qualquer senso moral.

– Eis tudo. Acho que a pior coisa que se pode contemplar é isto: tudo já aconteceu antes, e quanto tempo vai se passar antes que torne a acontecer? Cinquenta anos depois de Waterloo, Napoleão era um herói tão grande para os colegiais ingleses quanto Wellington. Como vamos saber se os nossos netos não vão idolatrar, do mesmo modo, von Hindenburg?

– E o que produz isso?

– O tempo, maldição! E os historiadores. Se pudéssemos ao menos aprender a encarar o mal como mal, que se apresentasse em andrajos ou monotonia, ou em vestes magníficas...

– Santo Deus! Acaso por quatro anos não andamos revolvendo o universo em busca de minas?

Depois chegou a noite que deveria ser a última. Tom e Amory, que seguiriam pela manhã para acampamentos diferentes, palmilhavam, como sempre, os passeios umbrosos, parecendo ainda ver em torno de si os rostos dos homens que conheciam.

– Esta noite a relva está cheia de fantasmas.

– O campus todo está animado por eles.

Pararam junto a Little e ficaram vendo e admirando a lua que surgia, prateando o teto de ardósia de Dood e dando matizes azulados às árvores farfalhantes.

– Sabe de uma coisa? – sussurrou Tom. – O que sentimos agora é a sensação de toda a esplêndida juventude que causou tumulto por aqui durante duzentos anos.

Uma erupção de cantos inundou o ar, vinda de Blair Arch – vozes entrecortadas de alguma longa despedida.

– E o que deixamos aqui é mais do que esta classe; é toda a herança da juventude. Somos apenas uma geração... e estamos rompendo todos os elos que pareciam ligar-nos a altas e imprecisas gerações. Caminhamos de braços dados com Burr e com Harry Lee da Cavalaria Ligeira durante a metade dessas noites profundamente azuis.

– Eis o que elas são – divagou Tom. – Profundamente azuis... Um pouquinho mais de cor, e elas se estragariam, tornando-se exóticas. Cúspides, tendo por fundo um céu que é uma promessa de alvorada, e luzes azuis nos telhados de ardósia... Isso, de certo modo, é pungente...

– Adeus, Aaron Burr – gritou Amory em direção ao edifício deserto de Nassau Hall. – Você e eu conhecemos estranhos recantos da vida.

Sua voz ecoou no silêncio.

– As tochas estão apagadas – sussurrou Tom. – Ah, Messalina, as longas sombras constroem minaretes no estádio...

Durante um instante a voz dos calouros os envolveu, e eles se fitaram com os olhos levemente úmidos de lágrimas.

– Raios!

– Raios!

A derradeira claridade se extingue e paira sobre a terra – a baixa, extensa terra, a ensolarada terra das cúspides; os fantasmas da noite tangem de novo suas liras e perambulam, cantando, em bando lamentoso, pelos longos corredores de árvores; pálidos clarões refletem a noite de cume a cume das torres: Oh, sono que sonha, e sonho que nunca se cansa; esprema das pétalas das flores de lótus algo disso para ficar, a essência de uma hora.

Não mais a aguardar o crepúsculo e a lua neste vale recluso de estrelas e cúspides, pois uma manhã eterna de desejo passa para o tempo e para a tarde terrena. Aqui, Heráclito, encontraste no fogo e nas coisas mutáveis a profecia que lançaste através dos anos mortos; nesta meia-noite o meu desejo verá, obscurecidos pelas cinzas, envoltos em chamas, todo o esplendor e toda a tristeza do mundo.


Notas

*Famosa obra de William James. (N. do T.)

**Espécie de melado feito de açúcar obtido mediante a cristalização da seiva de bordo, árvore da família das aceráceas. (N. do T.)


Interlúdio

Maio de 1917 – Fevereiro de 1919


Uma carta datada de janeiro de 1918, escrita por monsenhor Darcy a Amory, segundo-tenente do 17º Regimento de Infantaria, Porto de Embarque, Camp Mills, Long Island.

Meu caro rapaz,

Tudo o que você precisa dizer-me a seu respeito é que ainda existe; pois o restante eu simplesmente procuro em minha lembrança inquieta, um termômetro que só marca febres, e o comparo ao que eu era na sua idade. Mas os homens continuarão a tagarelar, e você e eu ainda gritaremos um para o outro, através do palco, as nossas futilidades até que a última e estúpida cortina caia – zás! – sobre as nossas cabeças inclinadas. Você, porém, está começando o atabalhoado espetáculo de lanterna mágica da vida, com o mesmo estoque de slides com que eu também comecei, de modo que preciso escrever-lhe, quanto mais não seja, apenas para referir-me estridentemente à colossal estupidez das pessoas...

Isso é o fim de uma coisa: para o seu bem ou o seu mal, você jamais será de novo inteiramente o Amory Blaine que conheci; jamais tornaremos a nos encontrar como antes, pois a sua geração se está tornando dura, muito mais dura do que a minha jamais se tornou, alimentada como foi pelas coisas do fim do século passado.

Amory, ultimamente reli Ésquilo, e na divina ironia do Agamenon encontrei a única resposta para esta amargurada época: o mundo todo desmoronando em nossos ouvidos, e o mais próximo paralelo, em eras já extintas, reside nessa irremediável resignação. Há ocasiões em que penso nos homens que lá estão como legionários romanos, a milhas de distância de sua corrupta cidade, fazendo recuar as hordas inimigas... hordas um pouco mais ameaçadoras, em todo caso, do que a sua corrupta cidade... outro golpe cego contra a raça, violências com que passamos, em meio de ovações, muitos anos atrás, por sobre aqueles cadáveres que triunfantemente abatemos durante toda a era vitoriana...

E, depois, um mundo inteiramente materialista – e a Igreja Católica. Pergunto a mim mesmo em qual deles você se enquadra. De uma coisa estou certo: celta você viverá, e celta morrerá; de modo que, se não usar o céu como um referendum contínuo para as suas ideias, vai considerar a Terra um incessante chamado para as suas ambições.

Amory, descobri, subitamente, que sou um velho. Como todos os velhos, tenho tido, às vezes, alguns sonhos, e vou contá-los. Desfrutei da alegria de pensar que você era meu filho; que talvez, quando jovem, tivesse caído num estado de coma e gerado você – e, ao voltar a mim, não tinha lembrança disso... É o instinto paternal, Amory: o celibato penetra mais profundamente do que a carne...

Às vezes, acho que a explicação da nossa profunda semelhança reside em algum ancestral comum e descubro que o único sangue que os Darcy e os O’Hara têm em comum é o dos O’Donahue... Ele se chamava Stephen, creio eu...

Quando um raio atinge um de nós, atinge ambos: você mal havia chegado ao porto de embarque quando recebi os meus papéis para partir para Roma, e estou aguardando que me digam a qualquer momento onde tomar o navio. Mesmo antes de você receber esta carta, já estarei em alto-mar; depois, chegará a sua vez. Você foi para a guerra como competia a um cavalheiro, assim como foi para o ginásio e para a universidade; pois era o que devia fazer. É melhor que se deixe para a classe média o heroísmo trêmulo e fanfarrão; seus membros sabem fazer isso melhor do que nós.

Lembra-se daquele fim de semana no mês de março último em que você levou Burne Holiday de Princeton para me conhecer? Que rapaz magnífico! Causou-me tremenda surpresa quando você me escreveu depois, dizendo que ele me considerava uma pessoa esplêndida. Como pôde ele equivocar-se tanto? Esplêndido é algo que nem você nem eu somos. Somos muitas outras coisas: incomuns, inteligentes e, poder-se-ia dizer, creio eu, brilhantes. Podemos atrair pessoas, criar uma “atmosfera” e até mesmo quase perder as nossas almas celtas em sutilezas célticas... Podemos, ainda, quase sempre, agir à nossa própria maneira. Mas esplêndidos? Não, isso não.

Parto para Roma com um dossiê maravilhoso e cartas de apresentação que abrangem todas as capitais da Europa – e certamente a minha chegada não deixará de “causar sensação”. Como me agradaria que você fosse comigo! Este parágrafo soa um tanto cínico, e não algo que um clérigo de meia-idade deveria escrever a um jovem prestes a partir para a guerra. A única desculpa é que o clérigo de meia-idade está falando consigo mesmo. Há coisas profundas em nós, e você sabe tão bem quanto eu quais são elas. Temos grande fé, embora a sua, no momento, esteja cristalizada; possuímos uma terrível honestidade, que nenhuma das nossas sofisticações pode destruir, sobretudo uma simplicidade infantil que nos impede de ser realmente maldosos.

Escrevi para você a elegia que se segue. Lamento que o seu estado de espírito não se coadune com a minha descrição, mas você vai fumar vários cigarros e ler a noite toda...

Seja como for, ei-la:

Lamento para um filho adotivo que vai para a guerra lutar contra o Rei Estrangeiro

Ochone

Foi-se-me o filho do meu espírito

E ele está em sua juventude dourada como Angus Oge

Angus dos pássaros brilhantes

E a sua mente é forte e sutil como a mente de Cuchilin

em Muirtheme.

Awirra sthrue

Sua fronte é alva como o leite das vacas de Maeve

E suas faces assemelham-se às cerejas da árvore

E estão curvadas para Maria, que alimenta o Filho de Deus.

Aveelia Vrone

Seus cabelos são como o colar de ouro dos Reis em Tara

E seus olhos assemelham-se aos quatro mares cinzentos

de Erin.

E choram com as névoas da chuva.

Mavrone vai a Gudyo

Participará da alegre e rubra batalha

Entre os capitães – e eles estarão entregues a grandes

feitos de coragem.

Sua vida o abandonará

E as fibras da minha própria alma serão dilaceradas.

A Vich Deelish

O meu coração está no coração do meu filho

E a minha vida, certamente, está na sua vida.

Um homem só pode ser duas vezes

Na vida de seus filhos.

Jia du Vaha Alanav

Possa o filho de Deus estar acima e embaixo dele, diante

e atrás dele.

Possa o Deus dos elementos lançar a névoa nos olhos do

Rei Estrangeiro.

Possa a Rainha das Graças conduzi-lo pela mão através

da névoa de seus inimigos – e que estes não o vejam.

Possam Patrício da Escócia e Collumb das Igrejas e os

cinco mil Santos de Erin ser melhores para ele do que

uma couraça.

E ele vai para a luta.

Och Ochone.

Amory... Amory... sinto que, de certo modo, isto é tudo; um de nós... ou talvez ambos, não vai durar até o fim dessa guerra... Venho procurando dizer-lhe quanto essa reencarnação de mim mesmo em você tem significado nestes últimos anos... Somos curiosamente parecidos... curiosamente diferentes.

Adeus, meu caro rapaz, e que Deus o acompanhe.

Thayer Darcy

Embarque à noite

Amory seguiu pelo convés até encontrar um banco debaixo de uma lâmpada elétrica. Procurou no bolso seu caderno de notas e um lápis e pôs-se a escrever, lentamente, laboriosamente:

Partimos esta noite...
Silenciosos, enchemos a rua quieta, deserta,
Uma coluna vagamente cinzenta,
E fantasmas despertavam, assustados, ao som
da cadência abafada
Pelo caminho sem lua;
Nos estaleiros sombrios ecoavam os passos
Que se aproximavam noite e dia.

E assim permanecemos nos tombadilhos sem vento,
A observar a costa espectral;
Sombras de milhares de dias, pobres náufragos

enastrados de cinza...

Oh, acaso devemos deplorar
Esses anos inúteis?
Vede como o mar é branco!
As nuvens se abriram e os céus queimam
Cavernosos caminhos de saibrosa claridade;
O quebrar das ondas na popa
Converte-se em volumoso noturno...
Partimos esta noite.

Uma carta de Amory, datada de “Brest, 11 de março de 1919”, ao tenente T. P. D’ Invilliers, Acampamento Gordon, Geórgia.

Meu caro Baudelaire,

Vamos nos encontrar em Manhattan no dia 30 deste mês; procuraremos, então, alugar um elegante apartamento, você, eu e Alec, que está aqui ao meu lado enquanto escrevo. Não sei o que vou fazer, mas alimento o vago sonho de entrar para a política. Por que os mais distintos jovens ingleses de Oxford e Cambridge entram para a política, enquanto nós, nos Estados Unidos, a deixamos entregue aos grosseirões, a criaturas criadas à sombra dos chefes políticos, educadas nas Assembleias e enviadas ao Congresso Federal, sacos barrigudos de corrupção, destituídos “tanto de ideias como de ideais”, como costumavam dizer certos oradores? Ainda há quarenta anos, tínhamos bons homens na política, mas nós somos criados para amealhar um milhão “e mostrar de que fibra somos feitos”. Às vezes gostaria de ser inglês; a vida americana é terrivelmente idiota, estúpida e saudável.

Já que a pobre Beatrice morreu, provavelmente vou herdar um pouco de dinheiro – mas muito pouco, com os diabos! Posso perdoar quase tudo à minha mãe, menos o fato de que, tomada no fim de uma súbita crise de religiosidade, tenha gastado metade do que lhe sobrara em vitrais de igreja e contribuições para seminários. O Sr. Barton, meu advogado, escreve-me informando que os meus milhares de dólares estão quase todos empregados em ações de carris urbanos, e que os referidos carris estão perdendo dinheiro devido às passagens de 5 centavos. Imagine uma renda que dá apenas 350 dólares mensais a um homem que não sabe ler e escrever! Não obstante, acredito nessa renda, embora tenha visto algo que constituía antes uma fortuna considerável evaporar entre especulações, extravagâncias, administração democrática e imposto de renda... Isso deixa um cristão maluco, caramba!

Seja lá como for, disporemos de acomodações verdadeiramente de arrasar... Você poderá arranjar um emprego em alguma revista elegante, e Alec poderá entrar para a Companhia de Zinco, ou como quer que se chame aquilo que a família dele possui... Está espiando por cima de meu ombro e dizendo-me que se trata de uma companhia de produtos de bronze, mas não me parece que isso importe muito, não acha? Há, provavelmente, tanta corrupção em dinheiro ganho com zinco quanto em dinheiro ganho com bronze. Quanto ao renomado Amory, escreveria literatura imortal se estivesse convencido de que há algo a arriscar falando aos outros sobre isso. Não há dádiva mais perigosa para a posteridade do que algumas trivialidades ditas com inteligência.

Tom, por que você não se torna católico? É claro que para ser um bom católico você teria de renunciar a essas violentas intrigas que costumava contar-me, mas escreveria melhor poesia se estivesse ligado aos longos castiçais dourados e aos longos cantos gregorianos, e mesmo que os sacerdotes americanos sejam um tanto burgueses, como Beatrice costumava dizer, você precisaria apenas frequentar igrejas elegantes, e eu o apresentarei a monsenhor Darcy, que é realmente um espanto.

A morte de Kerry foi um golpe, como também o foi, até certo ponto, a de Jesse; e tenho grande curiosidade de saber que estranho recanto do mundo engoliu Burne. Você acha que ele esteja na prisão, sob um falso nome? Confesso-lhe que a guerra, em vez de tornar-me ortodoxo, que é a reação correta, fez de mim um ardente agnóstico. A Igreja Católica teve as suas asas tão frequentemente cortadas nos últimos tempos que o que restou é algo timidamente insignificante – e eles não têm mais bons escritores. Estou farto de Chesterton.

Conheço apenas um soldado que passou por essas tão anunciadas crises espirituais, como esse tal Donald Hankey, e o que conheci já estava se preparando para o ministério, de modo que estava maduro para a coisa. Penso, sinceramente, que tudo isso está bastante podre, embora pareça ter proporcionado conforto espiritual às nossas famílias; e possa fazer com que pais e mães apreciem seus filhos. Essa religião inspirada por crises é bastante sem valor e, na melhor das hipóteses, passageira. Acho que de cada quatro homens que descobriram Paris, apenas um descobriu Deus.

Mas nós – você, eu e Alec – vamos arranjar um mordomo japonês, vamos nos vestir a rigor para o jantar, tomar vinho à mesa e levar uma vida tranquila, contemplativa, até decidirmos usar metralhadoras a favor dos donos da propriedade... ou lançar bombas ao lado dos bolchevistas. Santo Deus! Espero, Tom, que algo aconteça. Estou inquieto como o diabo e tenho horror de engordar, apaixonar-me e tornar-me doméstico.

A propriedade de Lake Geneva está para alugar, mas quando eu tiver os pés em terra vou para o Oeste ver o Sr. Barton e acertar alguns pormenores. Escreva-me aos cuidados da Blackstone, Chicago.

Seu para sempre, meu caro Boswell,
Samuel Johnson


Livro II

A educação de um personagem


1
A debutante

A época é fevereiro. O lugar é um grande e elegante quarto de dormir na residência dos Connage, na rua 68, Nova York. Quarto de moça: paredes e cortinas cor-de-rosa e uma colcha cor-de-rosa estendida sobre uma cama creme. Cor-de-rosa e creme são as cores predominantes, mas o único móvel é uma luxuosa penteadeira com tampo de vidro e três espelhos. Nas paredes há uma reprodução cara de Cherry Ripe, alguns cães corteses pintados por Landseer e o King of the Black Isles, de Maxfield Parrish.

Grande desordem, consistindo dos seguintes itens: 1) sete ou oito caixas de papelão vazias, com línguas de papel de seda pendendo, arquejante das laterais; 2) diversos vestidos de passeio misturados com seus irmãos de noite, todos sobre a mesa, todos evidentemente novos; 3) um monte de tule que perdera toda a sua dignidade e se enroscava tortuosamente em torno de tudo, e 4) sobre duas pequenas cadeiras uma coleção de lingerie que excedia qualquer descrição. Dava vontade de ver a quanto montava a conta referente a toda aquela exibição de coisas finas, bem como a princesa beneficiada por... Atenção! Eis alguém! Decepção! É apenas a criada à procura de alguma coisa... Ergue um monte de uma cadeira... Não, não está ali; outro monte, a penteadeira, as gavetas do chiffonier. Ergue várias e lindas camisolas, bem como um pijama surpreendente, mas isso não a satisfaz... Sai do quarto.

Vem do aposento contíguo um murmúrio indistinto de palavras.

Agora a coisa está ficando quente. É a mãe de Alec, a Sra. Connage, grande, altiva, maquiada, tanto quanto pode estar uma viúva, e bastante abatida. Seus lábios movem-se significativamente enquanto procura a COISA. Sua busca é menos completa que a da empregada, mas há nela algo de furioso, que compensa seu caráter perfunctório. Tropeça no monte de tule, e o seu “raios!” é bem audível. Retira-se de mãos vazias.

Novo murmúrio do lado de fora, e uma voz de moça, de criatura muito mimada, diz: “De todas as criaturas estúpidas...”

Após uma pausa, entra à procura da mesma coisa uma terceira pessoa, não a da voz mimada, mas alguém mais jovem. É Cecília Connage, 16 anos, bonita, inteligente e constitucionalmente bem-humorada. Está usando um vestido cuja evidente simplicidade talvez a aborreça. Dirige-se à pilha mais próxima, escolhe uma pequena peça do vestuário cor-de-rosa e examina-a com ar de aprovação.

CECÍLIA: Cor-de-rosa?

ROSALIND (do lado de fora): Sim!

CECÍLIA: Bem moderno?

ROSALIND: Exatamente!

CECÍLIA: Achei!

(Examina-se no espelho da penteadeira e põe-se a dançar entusiasticamente).

ROSALIND (de fora) O que você está fazendo? Experimentando-o?

(CECÍLIA para de dançar e sai, carregando a peça sobre o ombro direito. Pela outra porta, entra ALEC CONNAGE. Lança um rápido olhar em torno e grita a plenos pulmões: Mamãe! Há um coro de protestos vindo do aposento contíguo e, encorajado, ALEC caminha para ele, mas é repelido por outro coro.)

ALEC: Então é aí que vocês estão! Amory Blaine está aqui.

CECÍLIA (rapidamente): Leve-o para baixo.

ALEC: Ele está lá embaixo.

SRA. CONNAGE: Bem, você pode mostrar onde é o quarto dele. Diga-lhe que sinto não poder vê-lo agora.

ALEC: Ele ouviu falar muito a seu respeito. Eu gostaria que você se apressasse. Papai está conversando com ele a respeito da guerra e ele está inquieto. É um tanto temperamental.

(Isso basta para trazer CECÍLIA ao quarto.)

CECÍLIA (sentando-se sobre a lingerie): Temperamental? O que você quer dizer? Você costumava dizer isso nas suas cartas.

ALEC: Ah, ele escreve coisas.

CECÍLIA: Ele toca piano?

ALEC: Acho que não.

CECÍLIA (especulativamente): Bebe?

ALEC: Sim... Não há nada de estranho nele.

CECÍLIA: Tem dinheiro?

ALEC: Santo Deus! Pergunte a ele. Tinha muito; agora tem uma certa renda.

(SRA. CONNAGE aparece.)

SRA. CONNAGE: Alec, é claro que temos prazer em receber qualquer amigo seu...

ALEC: Você devia ir dar as boas-vindas a Amory.

SRA. CONNAGE: É claro que quero fazê-lo, mas me parece tão infantil você abandonar uma casa perfeitamente confortável e ir morar com dois garotos em algum apartamento inacreditável. Espero que vocês não planejem beber tanto quanto desejam. (Faz uma pausa.) Ele vai ser deixado um tanto de lado esta noite. Como você sabe, esta é a semana de Rosalind. Quando uma moça vem passar as férias em casa, precisa de toda a atenção.

ROSALIND (de fora): Bem, prove isso vindo aqui me ajudar a fechar o vestido.

(A SRA. CONNAGE sai.)

ALEC: Rosalind não mudou nada.

CECÍLIA (em voz baixa): Ela é terrivelmente mimada.

ALEC: Esta noite ela vai encontrar alguém que combina com ela.

CECÍLIA: Quem? O Sr. Amory Blaine?

(ALEC faz um sinal afirmativo com a cabeça.)

CECÍLIA: Rosalind ainda está para encontrar um homem que a deixe para trás. Francamente, Alec, ela trata os homens muitíssimo mal. Maltrata-os, ofende-os, falta aos encontros marcados, boceja na cara deles... e eles ainda voltam.

ALEC: Eles adoram isso.

CECÍLIA: Eles detestam. Ela é... uma espécie de vampiro, acho. Consegue fazer com que as outras garotas façam o que ela quer, embora as odeie.

ALEC: Personalidade é um traço de nossa família.

CECÍLIA (resignadamente): Mas eu acho que se extinguiu antes de chegar a mim.

ALEC: Rosalind sabe comportar-se?

CECÍLIA: Não particularmente bem. Ela é como as outras garotas, em geral. Às vezes fuma, toma ponche, deixa-se beijar com frequência... Ah, sim... conhecimentos comuns... Um dos efeitos da guerra, como você sabe.

(Entra a SRA. CONNAGE.)

SRA. CONNAGE: Rosalind está quase pronta, de modo que posso descer para conhecer o seu amigo.

(ALEC e a mãe saem.)

ROSALIND (de fora): Oh, mamãe...

CECÍLIA: Mamãe já desceu.

(Então, ROSALIND entra). ROSALIND é... inteiramente ROSALIND. É uma dessas garotas que não precisam fazer o menor esforço para que os homens se apaixonem por elas. Dois tipos de homem raramente o fazem: os estúpidos, em geral, temem a sua inteligência, e os intelectuais receiam quase sempre a sua beleza. Todos os outros lhe pertencem por prerrogativa natural.

Se ROSALIND pudesse ser mimada, o processo a essa altura já estaria completo, e na verdade seu temperamento não é, de modo algum, o que deveria ser; quer o que quer e no momento em que o quer, e quando não consegue o que deseja, tende a tornar bastante infelizes aqueles que a cercam – mas no verdadeiro sentido não é uma menina mimada. Seu vivo entusiasmo, seu desejo de crescer e aprender, sua crença infindável na inesgotabilidade dos casos românticos, sua coragem e sua honestidade fundamental – essas coisas não estavam arruinadas.

Há longos períodos em que odeia cordialmente toda a família. É inteiramente destituída de princípios; sua filosofia é a do CARPE DIEM para si própria e a do LAISSEZ FAIRE para os outros. Adora histórias chocantes: possui para isso essa inclinação que se encontra, em geral, em naturezas que são, ao mesmo tempo, refinadas e vigorosas. Deseja que as pessoas a apreciem, mas se elas não o fazem, isso jamais a preocupa ou muda sua maneira de ser.

Não é, de modo algum, um caráter-modelo.

A educação de todas as mulheres belas depende do conhecimento dos homens.

ROSALIND decepcionara-se com homem após homem como indivíduo, mas tinha grande fé nos homens como sexo. Quanto às mulheres, detestava-as. Representavam qualidades que sentia e desprezava em si própria: mesquinhez incipiente, presunção, covardia e mesquinha desonestidade. Disse, certa vez, numa sala repleta de amigas de sua mãe, que a única desculpa para as mulheres era a necessidade de um elemento perturbador entre os homens. Dançava excepcionalmente bem, desenhava hábil mas apressadamente e tinha surpreendente facilidade com as palavras, que eram por ela empregadas em cartas de amor.

Contudo, qualquer crítica que possa fazer a ROSALIND termina onde começa a sua beleza. Havia aquele esplêndido tom de ouro em seus cabelos, o desejo de imitar que mantém a indústria das tinturas. Havia aquela eterna boca beijável, pequena, levemente sensual e extremamente perturbadora. Lá estavam os olhos cinzentos e a tez irrepreensível, com dois pontos de cores esmaecentes. Era esguia e atlética, sem nada subdesenvolvido, e era um prazer vê-la mover-se por uma sala, caminhar por uma rua, brandir um taco de golfe ou fazer uma estrela.

Uma última qualificação: sua personalidade viva, ágil, nada tinha de consciente ou teatral, como a que AMORY descobrira em ISABELLE. MONSENHOR DARCY certamente teria dificuldade para decidir se se tratava de uma “personalidade” ou de um “personagem”. Ela talvez fosse um misto delicioso, inexprimível, de ambas as coisas, o qual ocorre apenas uma vez em cada século.

Na noite de seu début, apesar de toda a sua estranha e errante experiência, estava feliz como uma menininha. A criada da mãe acabou de arrumar-lhe o cabelo, mas ela decidiu, impacientemente, que poderia fazer um trabalho melhor ela mesma. Está agora demasiado nervosa para ficar parada. A isso se deve sua presença no quarto em desordem. Ela vai falar. Os tons altos da voz de ISABELLE tinham sido como um violino, mas se o leitor pudesse ouvir ROSALIND diria que sua voz era musical como uma cascata.

ROSALIND: Francamente, só existem no mundo dois trajes que gosto de usar... (Penteando o cabelo diante do toucador.) Um é uma saia armada com pantalonas; o outro, um maiô de uma única peça. Em qualquer um deles fico encantadora.

CECÍLIA: Feliz por estar sendo apresentada à sociedade?

ROSALIND: Estou. E você?

CECÍLIA (cinicamente): Você está contente porque pode casar-se e ir morar em Long Island com os jovens casais estáveis. Você quer que a vida seja uma série de flertes, em que cada elo represente um homem.

ROSALIND: Quero que seja? Você quer dizer que a minha vida é assim!

CECÍLIA: Ah!

ROSALIND: Cecília, querida, você não sabe que provação é ser... como eu. Preciso conservar o meu rosto como uma pedra na rua para que os homens não pisquem para mim. Se rio um pouco mais alto na primeira fila de um teatro, os comediantes representam para mim durante o resto da noite. Se baixo a voz, os olhos ou deixo cair o meu lenço num baile, o meu par passa a telefonar-me todos os dias durante uma semana.

CECÍLIA: Isso deve ser um esforço terrível.

ROSALIND: O que há de desafortunado nisso tudo é que os únicos homens que me interessam são inteiramente inelegíveis. Se eu fosse pobre, entraria para o teatro.

CECÍLIA: Sem dúvida, você deveria ganhar pelos papéis que representa.

ROSALIND: Às vezes, quando me sinto particularmente radiante, pergunto a mim mesma: por que desperdiçar tudo com um único homem?

CECÍLIA: E, não raro, quando você está particularmente rabugenta, eu pergunto a mim mesma por que deveria você desperdiçar tudo isso apenas em uma família. (Levantando-se.) Acho que vou descer para conhecer o Sr. Amory Blaine. Gosto de homens temperamentais.

ROSALIND: Não existem homens temperamentais. Os homens não sabem ser realmente irascíveis ou realmente felizes... e os que sabem acabam despedaçados.

CECÍLIA: Bem, alegra-me não ter todas as suas preocupações. Estou comprometida.

ROSALIND (com um sorriso desdenhoso): Comprometida? Ora essa, sua lunática! Se mamãe ouvir você falando assim, ela a despacha para um colégio interno, que é onde você deveria estar.

CECÍLIA: Mas você não vai contar nada a ela, porque sei de coisas que eu poderia contar... E você é demasiado egoísta!

ROSALIND (um pouco aborrecida): Continue, garotinha! Com quem você está comprometida? Com o entregador de gelo? Com o homem da confeitaria?

CECÍLIA: Espírito inferior... Até mais, querida, nos vemos mais tarde.

ROSALIND: Oh, com certeza... Você me ajuda tanto!

Sai CECÍLIA.

ROSALIND termina de ajeitar os cabelos e levanta-se, cantarolando. Aproxima-se do espelho e começa a dançar diante dele, sobre o tapete macio. Observa não os pés, mas os olhos... que não são jamais despreocupados, mas sempre “intencionais”, mesmo quando ela ri. A porta se abre subitamente e fecha-se com uma batida atrás de AMORY, elegante e bonito como sempre. AMORY mostra-se instantaneamente confuso.)

ELE: Oh, desculpe-me. Pensei...

ELA (sorrindo, radiante): Você é Amory Blaine, não é?

ELE (olhando-a atentamente): E você é Rosalind?

Ela: Vou chamá-lo de Amory... Entre... não há nada de mau... Mamãe estará aqui dentro de um momento... (baixinho, para si mesma) infelizmente.

ELE (olhando em torno): Isso, para mim, é uma espécie de truque novo.

ELA: Isto é a Terra de Ninguém.

ELE: Aqui é onde você... onde você... (pausa).

ELA: Sim... todas essas coisas. (Dirige-se à penteadeira.) Veja, aqui está o meu ruge... os meus lápis para os olhos.

ELE: Eu não sabia que você era assim.

ELA: O que você esperava?

ELE: Pensei que você fosse... pouco feminina... do tipo que gosta de nadar e jogar golfe.

ELA: Eu faço tudo isso... mas não em horas de trabalho.

ELE: De trabalho?

ELA: Das seis às duas... pontualmente.

ELE: Eu gostaria de possuir algumas ações da sua companhia.

ELA: Ah, não é uma companhia... É apenas “Rosalind Ilimitada”; 51 por cento das ações, nome, boa vontade e tudo monta a 25 mil dólares por ano.

ELE (em tom de reprovação): Proposição um tanto fria.

ELA: Bem, Amory, você não se importa, não é verdade? Quando eu encontrar um homem que após duas semanas de convívio não me mate de tédio, talvez a coisa seja diferente.

ELE: É estranho, o mesmo ponto de vista que tenho acerca das mulheres você tem acerca dos homens.

ELA: Na verdade, não sou muito feminina... em meu espírito.

ELE (interessado): Continue.

ELA: Não, continue você... Você me fez falar de mim mesma. Isso é contra as regras.

ELE: Regras?

ELA: As minhas próprias regras... Mas você, ouvi dizer que você é um rapaz brilhante. A família espera muito de você.

ELE: Isso é animador!

ELA: Alec me disse que você o ensinou a raciocinar. É verdade? Não acreditava que alguém pudesse fazê-lo.

ELE: Não. Sou, na verdade, bastante obtuso.

(Evidentemente, ele não pretende que isso seja levado a sério.)

ELA: Mentiroso.

ELE: Sou... religioso... um literato. Escrevi até mesmo versos!

ELA: Versos brancos... Esplêndidos! (Declama.)

As árvores são verdes,
Os pássaros cantam nas árvores,
A garota sorve o seu veneno.
O pássaro afasta-se, a garota morre.

ELE (rindo): Não, não dessa espécie.

ELA (subitamente): Eu gosto de você.

ELE: Não goste.

ELA: É modesto também...

ELE: Tenho medo de você. Sempre tenho medo de uma garota... até beijá-la.

ELA (enfaticamente): Meu caro rapaz, a guerra já acabou.

ELE: Então, sempre terei medo de você.

ELA (um tanto triste): Acho que sim.

(Ligeira hesitação de ambas as partes.)

ELE (após meditar devidamente): Ouça. Isto é algo terrível para se pedir.

ELA (sabendo o que vinha): Depois de cinco minutos.

ELE: Mas você vai... me beijar? Ou tem medo?

ELA: Jamais tenho medo... mas as suas razões são tão insatisfatórias.

ELE: Rosalind, eu realmente quero beijá-la.

ELA: Eu também.

(Beijam-se... definitiva e completamente.)

ELE (após um ofegante segundo): Bem, satisfez a sua curiosidade?

ELA: E você?

ELE: Não. Isso serviu apenas para despertar minha curiosidade.

(O ar de Amory é de quem diz a verdade.)

ELA (sonhadoramente): Já beijei dezenas de homens. Acho que beijarei ainda algumas dezenas.

ELE (absorto): Sim, acho que você poderia... desse jeito.

ELA: Quase todos gostam da minha maneira de beijar.

ELE (lembrando-se do beijo): Deus do céu, é claro! Beije-me mais uma vez, Rosalind.

ELA: Não... A minha curiosidade em geral se satisfaz logo da primeira vez.

ELE (desanimado): E essa é uma das suas regras?

ELA: Estabeleço as minhas regras de acordo com o caso.

ELE: Você e eu somos, de certo modo, parecidos... Só que tenho alguns anos a mais de experiência.

ELA: Quantos anos você tem?

ELE: Quase 23. E você?

ELA: Dezenove... exatamente.

ELE: Imagino que você seja produto de alguma escola grã-fina.

ELA: Não... Sou matéria bastante bruta. Fui expulsa da Spence... não me lembro por quê.

ELE: Qual é a sua tendência geral?

ELA: Sou sagaz, inteiramente egoísta, emocional quando estimulada, gosto de ser admirada...

ELE (subitamente): Não quero me apaixonar por você...

ELA (levantando as sobrancelhas): Ninguém lhe pediu que o fizesse.

ELE (prosseguindo friamente): Mas é provável que eu me apaixone. Adoro a sua boca.

ELA: Silêncio! Por favor, não se apaixone pela minha boca... Pelos meus cabelos, meus olhos, meus ombros, meus sapatos, tudo bem, mas pela minha boca, não! Todo mundo se apaixona pela minha boca.

ELE: Ela é maravilhosa.

ELA: Demasiado pequena.

ELE: Não, não é... Deixe-me ver.

(Torna a beijá-la com o mesmo arrebatamento.)

ELA (um tanto perturbada): Diga-me algo doce.

ELE (assustado): Deus me ajude!

ELA (recuando): Bem, então não diga... se lhe custa tanto.

ELE: Acha que devemos fingir? Tão cedo assim?

ELA: O nosso padrão de tempo é diferente do das outras pessoas.

ELE: Então já existem... as outras pessoas.

ELA: Façamos de conta...

ELE: Não, não posso... Trata-se de algo que diz respeito ao sentimento.

ELA: E você não é sentimental?

ELE: Não. Sou romântico... Uma criatura sentimental acha que as coisas vão durar... Uma criatura romântica espera, mesmo contra toda esperança, que não durem... O sentimento é emocional.

ELA: E você não é? (Com os olhos semicerrados) Você provavelmente julga, para lisonjear a si próprio, que essa é uma atitude superior.

ELE: Bem... Rosalind, Rosalind, não argumente... Beije-me de novo.

ELA (agora completamente fria): Não... Não tenho vontade alguma de beijá-lo.

ELE (apanhado inteiramente de surpresa): Ainda há um minuto você queria beijar-me.

ELA: Mas agora não quero.

ELE: É melhor que eu me retire.

ELA: Acho que sim.

(Ele se encaminha para a porta.)

ELA: Oh!

(Ele se volta.)

ELA (rindo): Resultado... Time da casa 5 a 0.

(Ele torna a aproximar-se.)

ELA (rapidamente): Chuva... não haverá jogo.

(Ele sai.)

(Ela se dirige calmamente ao chiffonier, apanha uma cigarreira e esconde-a na gaveta da escrivaninha. A mãe entra, um caderno de notas na mão.)

SRA. CONNAGE: Bem... Estava esperando para falar-lhe antes que você desça.

ROSALIND: Santo Deus! Você me assustou!

SRA. CONNAGE: Rosalind, você tem gastado demais.

ROSALIND (resignadamente): Tenho.

SRA. CONNAGE: E sabe que já não temos o que tínhamos antes.

ROSALIND (com ar de desagrado): Ah, por favor, não fale em dinheiro.

SRA. CONNAGE: Nada se pode fazer sem ele. Este é o nosso último ano nesta casa... e a menos que as coisas mudem, Cecília não terá as mesmas vantagens que você.

ROSALIND (impaciente): Bem... do que se trata?

SRA. CONNAGE: Assim sendo, peço-lhe o favor de prestar atenção a várias coisas que anotei na minha agenda. A primeira é: não desapareça com rapazes. Talvez chegue um momento em que isso valha a pena, mas por ora quero que você fique na sala, onde eu possa encontrá-la. Há alguns homens que desejo que você conheça e não me agrada nada encontrá-la em algum canto do salão de música trocando frases tolas com qualquer um, ou ouvindo-as.

ROSALIND (sarcasticamente): Sim, ouvindo-as soa melhor.

SRA. CONNAGE: E não desperdice muito tempo com esse grupo da faculdade... rapazes de 19 e 20 anos. Não me importo que você vá a festas ou a jogos de rúgbi, mas isso de você evitar a companhia de pessoas convenientes para ir comer em pequenos cafés na cidade em companhia de Tom, Dick e Harry...

ROSALIND (apresentando seu código de conduta, que é, à sua maneira, tão elevado quanto o de sua mãe): Mamãe, esse tempo já passou... Não se pode mais viver agora como se vivia no começo do século.

SRA. CONNAGE (sem lhe dar atenção): Há vários amigos solteiros do seu pai que quero que você conheça esta noite... Homens ainda jovens.

ROSALIND (acenando a cabeça com ar experiente): Jovens de uns 45 anos?

SRA. CONNAGE (rispidamente): E por que não?

ROSALIND: Ah, que ótimo... Eles conhecem a vida e têm um ar tão admiravelmente cansado... (balança a cabeça), mas vão dançar.

SRA. CONNAGE: Ainda não estive com o Sr. Blaine, mas não creio que você se interesse por ele. Parece que não se trata de um homem de dinheiro.

ROSALIND: Eu nunca penso em dinheiro, mamãe.

SRA. CONNAGE: Você nunca conserva uma relação tempo suficiente para que possa pensar em dinheiro.

ROSALIND (suspira): Sim, acho que algum dia vou me casar com uma tonelada de dinheiro... por puro fastio.

SRA. CONNAGE (referindo-se à sua agenda): Recebi um telegrama de Hartford. Dawson Ryder vem aí. Eis um jovem que aprecio, e que nada em dinheiro. Parece-me que, já que você parece cansada de Howard Gillespie, bem poderia dar alguma esperança ao Sr. Ryder. Essa é a terceira vez que ele vem aqui este mês.

ROSALIND: Como é que você soube que eu estou cansada de Howard Gillespie?

SRA. CONNAGE: O pobre rapaz parece muito infeliz cada vez que vem aqui.

ROSALIND: Ele é um desses rapazes românticos de antes da guerra. Todos eles são errados.

SRA. CONNAGE (usando uma de suas expressões prediletas): Ao menos nos deixe orgulhosos de você esta noite.

ROSALIND: Não acha que estou bonita?

SRA. CONNAGE: Você sabe muito bem que está.

(Vindo de baixo, ouve-se o som de um violino e o rufar de uma bateria. A SRA. CONNAGE volta-se rapidamente para a filha.)

SRA. CONNAGE: Vamos!

ROSALIND: Um minuto!

(A SRA. CONNAGE retira-se. ROSALIND dirige-se ao espelho, no qual se mira com grande satisfação. Beija a própria mão e toca com ela os lábios refletidos no espelho. Depois, apaga as luzes e sai do quarto. Por um momento, faz-se silêncio. Alguns acordes de piano, um rufar discreto de bateria, o farfalhar de seda nova, tudo se mistura do lado de fora, na escada, e penetra através da porta entreaberta. Grupos de pessoas passam pelo saguão iluminado. Os risos vindos de baixo aumentam, multiplicam-se. Depois, alguém entra no quarto, fecha a porta e acende as luzes. É CECÍLIA. Aproxima-se do chiffonier, examina as gavetas, hesita... Em seguida, dirige-se à penteadeira, apanha a cigarreira e tira um cigarro. Acende-o e, depois, expelindo a fumaça, aproxima-se do espelho.)

CECÍLIA (com sotaque tremendamente sofisticado): Oh, sim, ser uma debutante é uma tremenda farsa hoje em dia. Na verdade, a gente se diverte tanto antes dos 17 anos que isso é, positivamente, um anticlímax. (Cumprimentando um nobre de meia-idade imaginário.) Sim, Alteza, creio que a minha irmã já me falou a seu respeito. Dê umas baforadas... Estes charutos são muito bons. São... são Coronas. Não fuma? Que pena! O rei não permite, imagino. Oh, sim, dançarei!

(E, assim, ela dança pelo quarto, ao som da música que vem de baixo, os braços estendidos para um par imaginário; o cigarro oscilando em sua mão.)

Várias horas depois

Um canto discreto no andar de baixo, ocupado por um sofá de couro muito confortável. Em cada um dos lados há um pequeno abajur e, no meio, acima do sofá, está dependurado um retrato a óleo de um cavalheiro muito digno, período 1860. Vindo de fora, ouve-se um foxtrote.

ROSALIND está sentada no sofá, tendo a seu lado Howard GILLESPIE, um jovem insípido de cerca de 24 anos. Ele está evidentemente muito infeliz, e ela, bastante entediada.

GILLESPIE (debilmente): O que você quer dizer ao afirmar que eu mudei? Sinto o mesmo em relação a você.

ROSALIND: Mas você não parece o mesmo para mim.

GILLESPIE: Mas há três semanas você costumava dizer que gostava de mim porque eu era tão blasé, tão indiferente... Pois ainda o sou.

ROSALIND: Mas não no que se refere a mim. Eu gostava de você porque você tinha olhos castanhos e pernas finas.

GILLESPIE (desanimado): Mas ainda tenho olhos castanhos e pernas finas. Uma vampira é o que você é!

ROSALIND: A única coisa que sei acerca de vampiros é o que se encontra na partitura para piano. O que confunde os homens é o fato de eu ser inteiramente natural. Achava que você jamais seria ciumento. Agora você não faz outra coisa senão me seguir por toda parte com o olhar.

GILLESPIE: Eu a amo.

ROSALIND (friamente): Eu sei.

GILLESPIE: E você não me beija há duas semanas. Eu achava que depois que a gente beijava uma garota ela estava... estava... conquistada.

ROSALIND: Essa época já passou. Eu tenho de ser conquistada de novo todas as vezes que você me encontra.

GILLESPIE: Está falando sério?

ROSALIND: Mais ou menos, como sempre. Antigamente, havia dois tipos de beijo: o primeiro, quando a garota era beijada e desprezada; o segundo, quando ficava noiva. Agora, há um terceiro tipo, em que o homem é beijado e deixado de lado. Antigamente, se um Sr. Jones qualquer se vangloriava de haver beijado uma moça, todos sabiam que ele não tinha mais nada com ela. Se um Sr. Jones de 1919 se vangloria da mesma coisa, todos sabem que é porque ele não pode mais beijá-la. Dispondo de um começo decente, qualquer moça pode derrotar um homem hoje em dia.

GILLESPIE: Então, por que você se diverte com os homens?

ROSALIND (inclinando-se para ele, confidencialmente): Por causa daquele primeiro momento, quando o homem está interessado. Há um momento... pouco antes do primeiro beijo, uma palavra sussurrada, algo que faz com que a coisa valha a pena.

GILLESPIE: E depois?

ROSALIND: Depois, a gente faz com que ele fale a respeito de si próprio. Não passa muito tempo e ele não pensa noutra coisa a não ser em estar a sós com a gente... Fica taciturno, não quer lutar, não quer brincar... Vitória!

(Entra DAWSON RYDER, 26 anos, bonito, rico, leal a si mesmo, talvez enfadonho, mas perseverante e seguro de seu sucesso.)

RYDER: Creio que esta é a minha dança, Rosalind.

ROSALIND: Bem, Dawson, então você me reconhece! Agora sei que não me pintei demais. Sr. Ryder, este é o Sr. Gillespie.

(Trocam um aperto de mão e GILLESPIE afasta-se, tremendamente abatido.)

RYDER: Não há dúvida, a sua festa é um sucesso!

ROSALIND: Você acha? Não tenho visto ultimamente. Estou cansada... Você se importaria se nos sentássemos?

RYDER: Se me importaria? Ficaria encantado. Você sabe que eu detesto essa correria. Ver sempre uma garota, ontem, hoje, amanhã.

ROSALIND: Dawson!

RYDER: Diga.

ROSALIND: Às vezes, pergunto a mim mesma se você sabe que me ama.

RYDER (surpreso): O quê?... Você sabe que é uma garota notável.

ROSALIND: Porque você sabe que eu sou um caso complicado. Alguém que se casasse comigo teria bastante trabalho. Eu sou cruel... muito cruel.

RYDER: Eu não diria isso.

ROSALIND: Oh, sim, sou... Principalmente com as pessoas que me são mais chegadas. (Levanta-se) Venha... vamos sair daqui. Mudei de ideia e quero dançar. Mamãe provavelmente está tendo um ataque.

(Saem. Entram ALEC E CECÍLIA.)

CECÍLIA: É sorte minha ter o meu próprio irmão como par.

ALEC (sombriamente): Se você quiser, eu dou o fora.

CECÍLIA: Santo Deus, não! Com quem eu começaria a próxima dança? (Suspira) Falta colorido aos bailes desde que os oficiais franceses foram embora.

ALEC (pensativo): Não quero que Amory se apaixone por Rosalind.

CECÍLIA: Ora essa! Achei que era justamente isso que você queria.

ALEC: Eu queria, mas depois de ver todas essas garotas, não sei... Sou tão ligado a Amory. Ele é muito sensível e não quero que sofra por causa de alguém que não se interessa por ele.

CECÍLIA: Ele é muito bonito.

ALEC (ainda pensativo): Ela não vai se casar com ele, mas uma garota não precisa casar-se com um homem para que ele sofra.

CECÍLIA: Como assim? Gostaria de saber o segredo.

ALEC: Oh, sua gatinha insensível! Alguns têm sorte por Deus ter lhe dado um narizinho arrebitado.

(Entra a SRA. CONNAGE.)

SRA. CONNAGE: Onde está Rosalind?

ALEC (brilhantemente): Você a está procurando exatamente onde devia, mamãe! Ela sem dúvida estaria em nossa companhia.

SRA. CONNAGE: O seu pai reuniu oito solteirões milionários para que a conheçam.

ALEC: Poderiam formar um pelotão e marchar pelas salas.

SRA. CONNAGE: Estou falando sério... Não me surpreenderia nada se ela, na noite de seu début, estivesse em Cocoanut Grove com um jogador de rúgbi. Vocês a procuram por este lado e eu...

ALEC (desrespeitosamente): Não seria melhor mandar o mordomo ver se ela não está na adega?

SRA. CONNAGE (com toda a seriedade): Você acha que ela poderia estar lá?

CECÍLIA: Ele está apenas brincando, mamãe.

ALEC: Mamãe tinha um retrato dela tomando uma caneca de cerveja em companhia do corredor de barreiras.

SRA. CONNAGE: Vamos procurá-la já.

(Saem. ROSALIND entra acompanhada de GILLESPIE.)

GILLESPIE: Rosalind... Pergunto mais uma vez: não gosta nem um pouquinho de mim?

(AMORY entra subitamente.)

AMORY: Esta é a minha dança.

ROSALIND: Sr. Gillespie, este é o Sr. Blaine.

GILLESPIE: Já encontrei o Sr. Blaine. É de Lake Geneva, não é?

AMORY: Exatamente.

GILLESPIE: Já estive lá. É no Meio Oeste, não é?

AMORY (em tom brejeiro): Aproximadamente. Mas sempre achei que preferia ser uma pamonha quente provinciana a ser uma sopa sem tempero.

GILLESPIE: Como?

AMORY: Sem ofensa.

(GILLESPIE inclina-se ligeiramente e retira-se.)

ROSALIND: Ele é demasiado cheio de si.

AMORY: Certa vez me apaixonei por uma criatura assim.

ROSALIND: Verdade?

AMORY: Verdade... Chamava-se Isabelle. Não possuía nada demais, exceto o que eu lhe atribuía.

ROSALIND: E o que aconteceu?

AMORY: Finalmente eu a convenci de que ela era mais esperta do que eu. E ela me deu o fora. Disse-me que eu era crítico e nada prático.

ROSALIND: Prático? O que você quer dizer com isso?

AMORY: Ah... um sujeito que dirige um automóvel mas não troca um pneu.

ROSALIND: E o que você pretende fazer?

AMORY: Não sei... Candidatar-me a presidente, escrever...

ROSALIND: Greenwich Village?

AMORY: Santo Deus, não! Eu disse “escrever”, não “beber”.

ROSALIND: Gosto de homens de negócios. Os homens inteligentes são em geral muito domésticos.

AMORY: Tenho a impressão de que já a conheço há séculos.

ROSALIND: Ah, você vai começar com a história das pirâmides?

AMORY: Não... Ia começar com a França. Eu era Luís XIV e você uma das minhas... (Mudando de tom) Suponhamos que nos apaixonássemos...

ROSALIND: Eu já sugeri que fizéssemos de conta.

AMORY: Se isso acontecesse, seria algo grande.

ROSALIND: Por quê?

AMORY: Porque as criaturas egoístas são, de certo modo, terrivelmente capazes de grandes amores.

ROSALIND (oferecendo-lhe os lábios): Façamos de conta, então.

(Beijam-se deliberadamente.)

AMORY: Não sei dizer coisas doces, mas você é linda!

ROSALIND: Ah, não!

AMORY: O quê, então?

ROSALIND (com tristeza): Ah, nada... Eu só desejo sentimento, sentimento verdadeiro, e jamais encontro.

AMORY: E eu não encontro outra coisa no mundo... E detesto isso.

ROSALIND: É tão difícil encontrar um homem que satisfaça o nosso gosto artístico...

(Alguém abriu uma porta e os acordes de uma valsa penetram na sala. ROSALIND levanta-se.)

ROSALIND: Ouça! Estão tocando “Kiss Me Again.”

(Ele a olha.)

AMORY: E então?

ROSALIND: E então?

AMORY (suavemente, perdendo a batalha): Eu a amo.

ROSALIND: Eu o amo... agora.

(Beijam-se.)

AMORY: Oh, meu Deus, o que eu fiz?

ROSALIND: Nada. Oh, não fale. Beije-me de novo.

AMORY: Eu não sei por que, nem como, mas eu a amo... desde o primeiro momento em que a vi.

ROSALIND: Eu também. Eu... eu... esta noite é esta noite.

(O irmão de ROSALIND entra, detém-se sobressaltado e diz em voz alta: “Oh, desculpem-me”, e sai.)

ROSALIND (mal movendo os lábios): Não me deixe... Pouco me importa que saibam o que estou fazendo.

AMORY: Diga de novo.

ROSALIND: Eu o amo... neste momento. (Afastam-se.) Oh, sou muito jovem, graças a Deus... e bastante bonita, graças a Deus... e feliz, graças a Deus... (Faz uma pausa e, num estranho assomo de profecia, acrescenta) Pobre Amory!

(Ele a beija novamente.)

Kismet

Passadas duas semanas, Amory e Rosalind estavam profundamente apaixonados. O espírito de crítica que lhes arruinara, tanto para um como para o outro, dezenas de romances, fora anulado pela grande onda emocional que os envolvia.

– Pode ser que seja um caso de amor insano – disse ela a sua ansiosa mãe –, mas não é vazio.

A onda levou Amory, no início de março, a uma agência de publicidade, onde ele alternava entre surpreendentes irrupções de trabalho excepcionalmente bom e sonhos malucos de se tornar subitamente rico e viajar pela Itália com Rosalind.

Viviam constantemente juntos; no almoço, no jantar e quase todas as noites – sempre numa espécie de pressa ofegante, como se temessem que a qualquer momento o feitiço pudesse desfazer-se e expulsá-los daquele paraíso de rosas e chamas. Mas o encantamento converteu-se num êxtase, parecendo aumentar a cada dia; começaram a falar em se casar em julho... em junho. Viam a vida através do prisma de seu amor; toda a experiência, todos os desejos, todas as ambições foram anulados; o senso de humor que possuíam se recolhera a um canto, a dormir; seus amores anteriores lhes pareciam ligeiramente risíveis, coisas de uma juventude que mal lamentavam.

Pela segunda vez na vida Amory passou por uma transformação completa, e começava, apressadamente, a se alinhar com sua geração.

Um pequeno interlúdio

Amory subia lentamente a avenida e pensava na noite como inevitavelmente sua – a pompa e o carnaval do rico crepúsculo e das ruas obscuras... Parecia-lhe que havia finalmente fechado o livro das harmonias evanescentes e penetrado nos caminhos vibrantes e sensuais da vida. Por toda parte, aquelas luzes incontáveis, aquela promessa de uma noite de ruas e canções... Em meio à multidão, mergulhava num leve devaneio, como se esperasse encontrar Rosalind correndo a seu encontro, com pés ligeiros, a cada esquina... Como todas as inesquecíveis faces do crepúsculo se misturariam nela – enquanto miríades de passos, mil prelúdios, se confundiriam com o ruído de seus pés, e haveria mais embriaguez que a do vinho na suavidade de seus olhos ao encontrar os dele. Até mesmo seus sonhos eram, agora, como lânguidos violinos flutuando como melodias estivais, no ar de verão.

A sala estava mergulhada em sombras, exceto pela ponta incandescente do cigarro de Tom, sentado junto à janela aberta. Quando a porta se fechou atrás dele, Amory ficou um momento parado com as costas apoiadas nela.

– Olá, Benvenuto Blaine! Como foi hoje o negócio de publicidade?

Amory estendeu-se sobre um sofá.

– Detestei-o, como sempre!

A visão momentânea da fervilhante agência foi rapidamente substituída por outra imagem.

– Meu Deus! Ela é maravilhosa!

Tom suspirou.

– Não consigo dizer – prosseguiu Amory – quanto ela é maravilhosa. Não quero que você saiba. Não quero que ninguém saiba.

Outro suspiro veio da janela, um suspiro bastante resignado.

– Ela é vida, esperança e felicidade... É todo o meu mundo agora.

Sentiu nas pálpebras o tremor de uma lágrima.

– Oh, Deus do céu, Tom!

Agridoce

– Sente-se como costumamos – sussurrou ela.

Ele se sentou na grande poltrona e estendeu os braços para que ela pudesse aninhar-se neles.

– Eu sabia que você viria esta noite – disse ela baixinho –, como o verão, justamente quando eu precisava mais de você... querido... querido...

Os lábios de Amory moveram-se preguiçosamente pelo rosto dela.

– Como é bom o seu gosto – suspirou ele.

– O que você quer dizer, meu amor?

– Que você é doce, doce... – respondeu Amory, apertando-a mais.

– Amory – murmurou ela –, quando você quiser, eu me caso com você.

– Não teremos muito, a princípio.

– Não! – exclamou ela. – Magoa-me quando você se censura pelo que não pode me dar. Tenho o seu precioso ser... e isso basta para mim.

– Diga-me...

– Você sabe, não sabe? Oh, você sabe!

– Sei, mas quero ouvir você dizer.

– Eu o amo, Amory, com todo o meu coração.

– E vai me amar para sempre?

– Toda a minha vida... Oh, Amory...

– O quê?

– Quero pertencer a você. Quero que a sua família seja a minha família. Quero ter filhos seus.

– Mas eu não tenho família.

– Não ria de mim, Amory. Apenas beije-me.

– Farei o que você quiser.

– Não. Eu é que farei o que você quiser. Nós somos você, não eu. Oh, você é uma parte tão grande, uma parte tão grande de toda a minha pessoa...

Ele fechou os olhos.

– Sinto-me tão feliz que tenho medo. Não seria medonho se isso fosse... o ponto máximo?

Ela o fitou, sonhadoramente.

– A beleza e o amor passam, eu sei... E há a tristeza, também. Acho que toda grande felicidade é um pouco triste. A beleza significa a fragrância das rosas e a morte das rosas...

– A beleza significa a agonia do sacrifício e o fim do sacrifício...

– E, Amory, nós somos belos, eu sei. Tenho certeza de que Deus nos ama...

– Ele ama você. Você é a coisa mais preciosa que eu possuo.

– Eu não sou Dele, sou sua. Amory, eu pertenço a você. Pela primeira vez, lamento todos os outros beijos; hoje sei quanto um beijo pode significar.

Depois fumavam, e ele contava a ela como fora o dia no escritório – e onde eles poderiam morar. Às vezes, quando ele se mostrava particularmente loquaz, ela adormecia em seus braços, mas ele amava aquela Rosalind – todas as Rosalinds – como jamais no mundo amara qualquer outra pessoa. Horas intangivelmente fugidias, imemoráveis.

Incidente aquático

Certo dia, Amory e Howard Gillespie, encontrando-se por acaso na cidade, almoçaram juntos, e Amory ouviu uma história que o encantou. Depois de vários coquetéis, Gillespie soltou a língua; começou por dizer a Amory que tinha certeza de que Rosalind era ligeiramente excêntrica.

Fora em companhia dela a uma festa aquática em Westchester County, e alguém disse que Annette Kellerman estivera lá certa vez e mergulhara do telhado de uma velha casa de verão de 9 metros de altura que lá havia. Imediatamente, Rosalind insistira com ele para que subissem ambos ao telhado para ver como era. Um minuto depois, enquanto ele estava sentado à beira do telhado, balançando as pernas, um vulto passou a seu lado; Rosalind, os braços estendidos num belo mergulho de cisne, voou pelo ar e mergulhou nas águas límpidas.

– Claro que depois daquilo eu precisava fazer o mesmo... e quase me matei. Achei que tinha sido um gesto de coragem da minha parte ter pelo menos tentado. Bem, depois Rosalind teve a coragem de me perguntar por que eu me encolhera ao mergulhar. “Aquilo de modo algum tornou o salto mais fácil”, disse-me ela. “Apenas tirou toda a coragem da coisa.” E agora eu lhe pergunto: o que é que se pode fazer com uma garota assim? Uma coisa desnecessária como aquela...

Gillespie não compreendeu por que Amory sorriu tão alegremente durante todo o almoço. Julgou que ele talvez fosse um daqueles otimistas vazios.

Cinco semanas depois

Novamente na biblioteca da residência dos Connage. ROSALIND está sentada sozinha no sofá, olhando de modo estranho e infeliz para o vazio. Mudou perceptivelmente... Por um lado está um pouco mais magra; a luz de seus olhos não é mais tão brilhante; parece bem um ano mais velha.

Sua mãe entra, envolta num mantô, pronta para ir à Ópera. Examina ROSALIND com um olhar nervoso.

SRA. CONNAGE: Quem vem esta noite?

(ROSALIND não a ouve ou pelo menos não lhe dá atenção.)

SRA. CONNAGE: O Alec vai me levar ao teatro para ver a peça desse tal Barrie, Et tu, Brutus. (Percebe que está falando sozinha.) Rosalind! Perguntei quem vem aqui esta noite?

ROSALIND (estremecendo): Oh... o quê?... Oh... O Amory...

SRA. CONNAGE (ironicamente): Você tem tantos admiradores ultimamente que não consegui imaginar qual deles seria. (ROSALIND não responde.) Dawson Ryder é mais paciente do que eu supunha. Você ainda não lhe concedeu uma noite esta semana.

ROSALIND (com uma expressão de esgotamento que lhe é inteiramente nova): Mamãe... por favor...

SRA. CONNAGE: Oh, eu não vou interferir. Você já desperdiçou mais de dois meses com um gênio teórico que não tem um níquel, mas continue... Desperdice a sua própria vida. Eu não vou interferir.

ROSALIND (como se repetisse uma lição cansativa): Você sabe que ele tem uma pequena renda... e que está ganhando 35 dólares por semana numa agência de publicidade...

SRA. CONNAGE: O que não bastaria para comprar os seus vestidos. (Faz uma pausa, mas ROSALIND não responde.) Tenho no meu coração os seus melhores interesses quando lhe digo para não dar um passo do qual se arrependerá para o resto dos seus dias. E quanto ao seu pai, não poderia ajudá-la. As coisas não têm corrido bem para ele ultimamente, e ele já tem idade. Você dependeria exclusivamente de um sonhador, um rapaz simpático, bem-nascido, mas que não passa de um sonhador, simplesmente inteligente. (Essas suas palavras implicam que tais qualidades, por si sós, não são lá muito boas.)

ROSALIND: Pelo amor de Deus, mamãe...

(Uma criada aparece, anunciando a chegada do Sr. Blaine, que se apresenta imediatamente. Os amigos de AMORY têm-lhe dito nos últimos dez dias que ele “parece a ira do Senhor”, e de fato é assim. Na verdade, não conseguiu comer quase nada nas últimas 36 horas.)

AMORY: Boa noite, Sra. Connage.

SRA. CONNAGE (num tom que não era indelicado): Boa noite, Amory.

(AMORY E ROSALIND trocam olhares – e ALEC entra. A atitude de ALEC tem sido inteiramente neutra. Crê, no fundo de seu coração, que o casamento tornará AMORY medíocre e ROSALIND, infeliz, mas sente grande simpatia por ambos.)

ALEC: Olá, Amory!

AMORY: Olá, Alec! Tom disse que vai encontrar você no teatro.

ALEC: Sim. Acabo de vê-lo. Como foram os anúncios hoje? Escreveu alguma coisa brilhante?

AMORY: Ah, mais ou menos a mesma coisa. Tive um aumento... (Todos o olham de maneira um tanto ansiosa) de 2 dólares por semana. (Desânimo geral)

SRA. CONNAGE: Vamos, Alec, estou ouvindo o automóvel.

(Um boa-noite, um tanto gélido em certos aspectos. Depois que a SRA. CONNAGE e ALEC saem, há uma pausa. ROSALIND ainda contempla pensativamente a lareira. AMORY aproxima-se dela e passa-lhe o braço pela cintura.)

AMORY: Garota querida.

(Beijam-se. Outra pausa e, então, ela toma a mão dele, cobre-a de beijos e leva-a ao coração.)

ROSALIND (tristemente): Mais do que qualquer outra coisa, amo as suas mãos. Vejo-as com frequência quando você está longe de mim... tão cansadas. Conheço todas as linhas delas. Mãos queridas!

(Seus olhos se encontram por um segundo e ela começa a chorar... um choro sem lágrimas.)

AMORY: Rosalind!

ROSALIND: Oh, somos tão dignos de pena!

AMORY: Rosalind!

ROSALIND: Eu quero morrer!

AMORY: Mais uma noite como esta e eu vou enlouquecer! Você já está assim há quatro dias. Precisa encorajar-me mais, do contrário, não conseguirei trabalhar, comer nem dormir. (Olha em torno atarantadamente, como se procurasse novas palavras para vestir suas frases velhas e desbotadas.) Precisamos começar. Agrada-me que comecemos juntos. (Sua esperança forçada se dissipa ao ver que ela não reage.) Qual é o problema? (Levanta-se subitamente e põe-se a andar de um lado para outro.) É Dawson Ryder, não há dúvida. Ele está mexendo com os seus nervos. Várias pessoas me disseram que têm visto vocês juntos, e eu tenho de sorrir, fazer um sinal afirmativo com a cabeça e fingir que isso não tem a menor importância para mim. E você não me diz uma palavra sobre como vão as coisas.

ROSALIND: Amory, se você não se sentar vou começar a gritar.

AMORY (sentando-se subitamente ao lado dela): Oh, Deus do céu!

ROSALIND (tomando-lhe docemente a mão): Você sabe que eu o amo, não sabe?

AMORY: Sei.

ROSALIND: Sabe que eu sempre o amarei...

AMORY: Não fale assim; você me assusta. Soa-me como se fôssemos nos separar. (Ela chora um pouco e, erguendo-se do sofá, dirige-se à poltrona.) Senti, durante toda a tarde, que as coisas estão piores. Quase fiquei maluco no escritório... Não conseguia escrever uma linha. Conte-me tudo.

ROSALIND: Nada há a contar, estou dizendo. Estou apenas nervosa.

AMORY: Rosalind, você está considerando a ideia de se casar com Dawson Ryder.

ROSALIND (após uma pausa): Ele me pediu o dia todo.

AMORY: Bem, ele tem coragem!

ROSALIND (após outra pausa): Gosto dele.

AMORY: Não me diga isso. Isso me fere.

ROSALIND: Não seja um idiota estúpido. Você sabe que é o único homem que já amei, que sempre amarei.

AMORY (rapidamente): Rosalind, vamos nos casar... na semana que vem.

ROSALIND: Não podemos.

Amory: Por que não?

ROSALIND: Oh, não podemos. Eu seria sua mulher... metida em algum lugar horrível.

AMORY: Temos, tudo contado, 275 dólares por mês.

ROSALIND: Querido, isso não daria, de modo geral, nem para cuidar dos meus cabelos.

AMORY: Eu cuidaria deles para você.

ROSALIND (entre um sorriso e um soluço): Obrigada.

AMORY: Rosalind, você não pode estar pensando em se casar com outro. Diga! Você me deixa completamente às escuras! Só vou poder ajudá-la a lutar contra isso se você me disser tudo.

ROSALIND: Trata-se apenas... de nós. Somos dignos de pena... nada mais. As próprias qualidades que eu amo em você são as que farão de você sempre um fracasso.

AMORY (severamente): Continue.

ROSALIND: Bem... Trata-se de Dawson Ryder. Ele é tão confiável... Quase chego a pensar que ele seria um grande apoio.

AMORY: Você não o ama.

ROSALIND: Eu sei, mas eu o respeito. Além disso, ele é um homem bom e forte.

AMORY (relutante): Sim... ele é.

ROSALIND: Bem... eis um pequeno fato. Na última terça-feira, à tarde, em Rye, encontramos um menininho pobre... e Dawson o pôs no colo, conversou com ele e prometeu-lhe um sári indiano... No dia seguinte, lembrou-se da promessa, comprou-o e... oh, foi tudo tão doce que não pude deixar de pensar nos nossos filhos... sendo tratados assim... sem que eu precisasse me preocupar.

AMORY (desesperado): Rosalind! Rosalind!

ROSALIND (com um pouco de maldade): Não precisa ficar com um ar assim tão sofredor!

AMORY: Que capacidade nós temos de nos ferir!

ROSALIND (começando de novo a soluçar): Tem sido tão perfeito... você e eu. Como um sonho ao qual aspirei e que jamais pensei encontrar. A primeira coisa verdadeiramente não egoísta que experimentei em toda a minha vida. E não posso vê-la dissipar-se numa atmosfera incolor!

Amory: Não vai se dissipar! Não vai se dissipar!

ROSALIND: Preferiria conservar isso como uma linda recordação... oculta no meu coração.

AMORY: Sim, as mulheres podem fazer isso... mas não os homens. Eu me lembrarei sempre não da beleza disso enquanto durou, mas da amargura, da longa amargura.

ROSALIND: Não!

AMORY: Todos os anos sem vê-la, sem beijá-la, como um portão fechado e trancado... Você não tem coragem de ser minha mulher.

ROSALIND: Não... não... Estou tomando o caminho mais difícil, o caminho mais duro. O meu casamento com você seria um fracasso, e eu jamais falho... Se você não parar de andar de um lado para outro, vou gritar!

(Novamente, AMORY afunda-se desesperadamente no sofá.)

AMORY: Venha aqui e me beije.

ROSALIND: Não.

AMORY: Você não quer me beijar?

ROSALIND: Esta noite quero que você me ame calma e friamente.

AMORY: O começo do fim.

ROSALIND (num assomo de compreensão): Amory, você é jovem. Eu sou jovem. As pessoas desculpam as nossas atitudes e vaidades... Desculpam-nos por tratar os outros como se fossem Sanchos e não sofrer as consequências. Desculpam-nos, agora. Mas muitos obstáculos o aguardam...

AMORY: E você tem medo de enfrentá-los na minha companhia.

ROSALIND: Não, não é isso. Há um poema, que li em algum lugar... Você vai dizer Ella Wheeler Wilcox e rir, mas ouça:

Pois isso é sabedoria – amar e viver,
Aceitar o que o destino ou os deuses possam dar-nos;
Não fazer perguntas, não orar,
Beijar os lábios e acariciar os cabelos,
Apressar a maré da paixão e saudar o seu fluxo,
Ter e reter e, no devido tempo, deixar ir.

AMORY: Mas nós não tivemos.

ROSALIND: Amory, eu sou sua... você sabe. Houve ocasiões, no mês passado, em que eu teria sido inteiramente sua se você me pedisse. Mas não posso me casar com você e arruinar as nossas vidas.

AMORY: Precisamos arriscar e tentar ser felizes.

ROSALIND: Dawson diz que eu aprenderei a amá-lo.

(Com a cabeça afundada entre as mãos, AMORY não responde. A vida parece tê-lo abandonado subitamente.)

ROSALIND: Meu amado! Meu amado! Não posso passar sem você; não consigo imaginar a vida sem você.

AMORY: Rosalind, estamos muito nervosos. É só que estamos muito tensos, e esta semana...

(Sua voz é curiosamente velha. Ela vai até ele, toma-lhe o rosto entre as mãos e beija-o.)

ROSALIND: Não posso, Amory. Não posso me afastar das árvores e das flores, e ficar encerrada num apartamentozinho à sua espera. Você me odiaria num ambiente apertado. Faria com que você me odiasse.

(Cegam-na de novo lágrimas incontroláveis.)

AMORY: Rosalind...

ROSALIND: Oh, querido, vá embora... Não torne as coisas mais difíceis! Não posso suportar isso...

AMORY (o rosto contraído, a voz tensa): Você sabe o que está dizendo? Quer que eu vá embora para sempre?

(Há uma certa mudança em seu sofrimento.)

ROSALIND: Você não compreende...

AMORY: Receio não poder compreender, se você me ama. Está com medo de arriscar dois anos na minha companhia.

ROSALIND: Eu não seria a Rosalind que você ama.

AMORY (um tanto histericamente): Não posso renunciar a você! Não posso, eis tudo! Preciso tê-la para mim!

ROSALIND (uma certa inflexão dura na voz): Agora, você está agindo como uma criança.

AMORY (impetuosamente): Pouco me importa! Você está arruinando as nossas vidas!

ROSALIND: Estou fazendo o que é sensato, a única coisa a fazer.

AMORY: Você vai se casar com Dawson Ryder?

ROSALIND: Oh, não me pergunte! Você sabe que, em certos sentidos, sou adulta e, noutros, apenas uma menina. Gosto do sol, das coisas belas e da alegria... e tenho horror à responsabilidade. Não quero pensar em panelas, cozinhas e vassouras. Quero pensar apenas se as minhas pernas vão ficar bronzeadas e lisas quando eu nadar no verão.

AMORY: E você me ama.

ROSALIND: É justamente por isso que tem que acabar. Viver despreocupadamente dói muito. Não podemos ter mais cenas como esta.

(Tira do dedo o anel e devolve-o a AMORY. Ambos estão novamente com os olhos cheios de lágrimas.)

AMORY (os lábios colados à face úmida de ROSALIND): Não! Guarde-o, por favor... Não me dilacere o coração!

(Ela põe delicadamente o anel na mão dele.)

ROSALIND (a voz entrecortada): É melhor você ir.

AMORY: Adeus...

(Ela fita-o mais uma vez, com infinita ânsia, infinita tristeza.)

ROSALIND: Não me esqueça jamais, Amory...

AMORY: Adeus...

(Ele se dirige à porta e procura às cegas a maçaneta... Abre-a... Ela o vê jogar a cabeça para trás e retirar-se. Tudo acabado... Ela quase se levanta, num arroubo, do sofá; mas depois afunda a cabeça nas almofadas.)

ROSALIND: Oh, meu Deus, quero morrer! (Decorrido um momento, levanta-se e encaminha-se de olhos fechados para a porta. Depois, volta-se e olha uma vez mais a sala. Era ali que eles se sentavam e sonhavam; ali estava a bandeja que ela tantas vezes enchera de fósforos para ele; ali estava a cortina que eles tantas vezes baixaram, discretamente, em longas tardes de domingo. Olhos enevoados, ela fica ali parada, recordando... E diz em voz alta) Oh, Amory, o que foi que eu lhe fiz?

(E sob a dolorida tristeza, que passará com o tempo, ROSALIND sente que perdeu alguma coisa, não sabe bem o quê, não sabe bem por quê.)


2
Experimentos em convalescença

O Knickerbocker bar, alegrado pelo jovial e colorido Old King Cole, de Maxfield Parrish, estava lotado. Amory deteve-se à entrada e consultou seu relógio de pulso; queria particularmente saber as horas, pois algo em sua mente – que catalogava e classificava as coisas – gostava de dividir tudo com clareza. Mais tarde, ficaria satisfeito de uma maneira vaga por poder pensar que “determinada coisa terminara exatamente às oito e vinte de uma manhã de quinta-feira, dia 10 de junho de 1919”. Isso incluía a caminhada que fizera desde a casa dela – uma caminhada da qual ele não teria, mais tarde, a mais leve lembrança.

Encontrava-se numa situação um tanto grotesca: dois dias de preocupação e nervosismo, de noites em claro, sem quase tocar em alimentos, tinham culminado naquela crise emocional e na decisão abrupta de Rosalind – e a tensão de tudo isso entorpecera sua mente, levando-o a um misericordioso estado de alheamento. Enquanto ele mexia desajeitadamente nas azeitonas que acompanhavam o couvert, um homem se aproximou dele e falou-lhe, fazendo com que as azeitonas caíssem de sua mão nervosa.

– E então, Amory?

Era alguém que ele conhecera em Princeton, mas não tinha a menor ideia do nome do sujeito.

– Olá, meu velho – disse automaticamente.

– O meu nome é Jim Wilson... Vejo que você esqueceu.

– Claro que não esqueci, Jim. Lembro-me bem.

– Você vai à reunião?

– Lógico!

Percebeu no mesmo instante que não ia a reunião alguma.

– Esteve no exterior?

Amory acenou afirmativamente com a cabeça, fitando o outro com ar estranho. Ao recuar para deixar alguém passar, bateu no prato de azeitonas, que se espatifou no chão.

– É pena – murmurou. – Aceita um drinque?

Wilson, diplomaticamente hábil, deu-lhe uma palmadinha nas costas.

– Você já bebeu bastante, meu velho!

Amory ficou a olhá-lo, taciturno, até que o outro se sentiu embaraçado diante de tal escrutínio.

– Bastante, uma ova! – exclamou, afinal. – Ainda não bebi nada hoje.

Wilson pareceu incrédulo.

– Aceita ou não um drinque? – indagou rudemente.

Juntos, encaminharam-se para o bar.

– Um uísque duplo!

– Vou tomar apenas um Bronx.

Wilson tomou outro; Amory, vários. Resolveram sentar-se. Às dez horas, Wilson foi substituído por Carling, da turma de 1915. Amory, a cabeça girando esplendidamente, acumulando camada após camada de suave satisfação sobre os lugares contundidos de seu espírito, discorria voluvelmente sobre a guerra.

– Um desperdício mental – insistia ele, em sua sabedoria de coruja. – Dois anos da minha vida desperdiçados em pleno vácuo... Perdido o idealismo, converti-me em um animal – continuou, agitando o dedo expressivamente na direção de Old King Cole. – É preciso ser prussiano a respeito de tudo... principalmente de mulheres... Na universidade, eu costumava ser correto com as mulheres; agora, não dou a mínima... – Exprimiu sua falta de princípios lançando um jato de água com gás no chão, num gesto largo, mas sem interromper seu discurso. – Procuremos o prazer onde pudermos encontrá-lo, pois amanhã morreremos. Eis a minha filosofia daqui para a frente.

Carling bocejou, mas Amory prosseguiu brilhantemente:

– Eu costumava refletir sobre muitas coisas... a acomodação satisfeita das pessoas diante da vida, essa atitude metade-metade. Agora não penso mais, não penso mais...

Tornou-se tão enfático em sua tentativa de fazer Carling compreender que já não pensava, que perdeu o fio do discurso e concluiu anunciando para todo o bar que era agora um animal.

– O que você está comemorando, Amory?

Amory inclinou-se para ele, em tom confidencial:

– Estou comemorando a falência da minha vida. A grande falência da minha vida. Não posso dizer mais a respeito...

Ouviu a voz de Carling, dirigindo-se ao garçom:

– Dê a ele um sal de fruta.

Amory balançou a cabeça, indignado.

– Nada disso!

– Ouça, Amory! Assim você vai passar mal. Já está branco como um fantasma.

Amory refletiu sobre o caso. Tentou ver-se no espelho, mas mesmo erguendo um olho não conseguia divisar nada além de uma fileira de garrafas atrás do bar.

– Gostaria de alguma coisa sólida. Vamos comer... uma salada.

Ajeitou o paletó, procurando adotar um ar displicente, mas o simples esforço para sair do bar era demasiado para ele – e tropeçou numa cadeira.

– Vamos ao Shanley’s – sugeriu Carling, oferecendo-lhe o braço.

Com a ajuda dele, Amory conseguiu dar às duas pernas movimento suficiente para que atravessassem a rua 42.

O restaurante estava bastante escuro. Amory percebeu que estava falando alto, de maneira sucinta e convincente, pensava ele, sobre seu desejo de esmagar com os pés as pessoas que encontrava. Devorou três sanduíches enormes, engolindo-os como se não fossem maiores do que um bombom de chocolate. Então, Rosalind começou a insinuar-se de novo em seu espírito, e sentiu que o nome dela se formava repetidamente em sua mente. Depois, sentiu-se sonolento e teve uma vaga e brumosa sensação de que pessoas vestidas a rigor, provavelmente garçons, se reuniam em torno da mesa... Estava num quarto, e Carling dizia-lhe algo acerca de um nó no cordão de seu sapato.

– Não importa – conseguiu responder, sonolento. – Dormirei com eles...

Ainda alcoólico

Despertou rindo e correu os olhos preguiçosamente pelo ambiente, com certeza um quarto e um banheiro num bom hotel. A cabeça rodava, e uma sucessão de imagens formava-se, confundia-se e dissipava-se diante de seus olhos, mas além do desejo de rir não tinha nenhuma reação inteiramente consciente. Estendeu o braço e apanhou o telefone ao lado da cama.

– Alô... que hotel é este? Knickerbocker? Muito bem. Mande-me dois uísques duplos...

Ficou um momento deitado, pensando ociosamente se mandariam uma garrafa ou apenas as duas doses. Depois, com esforço, conseguiu levantar-se e dirigir-se, cambaleante, ao banheiro.

Ao voltar, esfregando-se indolentemente com uma toalha, encontrou o rapaz do bar com as bebidas e sentiu um súbito desejo de gracejar com ele. Mas, pensando melhor, achou que isso não era digno – de modo que fez um sinal para que o rapaz se retirasse.

À medida que o álcool lhe caía de novo no estômago e o aquecia, as imagens isoladas da véspera começaram a formar-se lentamente, como num filme de cinema. Tornou a ver Rosalind encolhida entre as almofadas, a sentir-lhe as lágrimas em seu rosto. As palavras de Rosalind soavam-lhe outra vez nos ouvidos: “Jamais me esqueça Amory... jamais me esqueça...”

– Inferno! – exclamou.

E, engasgando, caiu sobre a cama num espasmo convulsivo de sofrimento. Passado um minuto, abriu os olhos e fitou o teto.

– Maldito idiota! – tornou a exclamar, enojado, e dando um imenso suspiro tornou a aproximar-se da garrafa.

Depois de outro trago, deu-se ao luxo de entregar-se às lágrimas. Evocou propositalmente os pequenos incidentes da primavera que se extinguia, usando de expressões que lhe exacerbariam ainda mais a tristeza.

– Éramos tão felizes – entonou dramaticamente. – Tão felizes!...

Sucumbiu novamente e, ajoelhando-se à beira da cama, afundou a cabeça no travesseiro:

– Minha garota... minha... Oh...

Cerrou os dentes, até que as lágrimas jorraram, em borbotões, de seus olhos.

– Oh... minha garota... tudo que eu possuía, tudo que eu desejava!... Oh, minha pequena, volte, volte! Preciso de você... preciso de você... Somos tão desgraçados... Só trouxemos infelicidade um para o outro... Afastaram-na de mim... Não posso vê-la, não posso ser seu amigo. Tinha de ser assim... tinha de ser assim...

E novamente:

– Fomos tão felizes, tão felizes...

Pôs-se de pé e jogou-se sobre a cama, numa crise de sentimentalismo. Depois lá ficou, exausto, enquanto ia percebendo lentamente que ficara muito bêbado na noite anterior e que sua cabeça voltava a girar vertiginosamente. Riu, levantou-se e dirigiu-se de novo ao Lete...

Ao meio-dia, meteu-se novamente em meio a uma multidão, no bar do Biltmore – e a dissipação recomeçou. Mais tarde, lembrou-se vagamente de que discutira poesia francesa com um oficial inglês, que lhe fora apresentado como o “Capitão Corn, da infantaria de Sua Majestade”, e de que tentara durante o almoço declamar “Clair de Lune”; depois dormira até as cinco num grande e macio sofá, onde outra multidão o encontrou e o despertou, após o que se seguiram outras rodadas de bebida, à guisa de preparativo para que suportasse a provação do jantar. No Tyson’s reservaram entradas de teatro para uma peça precedida de mais quatro rodadas de bebida – uma peça de duas vozes monótonas, cenas sombrias e confusas e efeitos de relâmpagos que Amory achou difícil acompanhar numa ocasião em que seus olhos se portavam de maneira tão surpreendente. Imaginou mais tarde que a peça apresentada talvez tivesse sido The Jest...

Depois, Cocoanut Grove, onde Amory tornou a dormir num pequeno balcão externo. No Shanley’s, em Yonkers, ficou quase lúcido, e, mediante cuidadoso controle das doses de uísque que bebeu, mostrou-se bastante consciente e loquaz. Viu que o grupo consistia de cinco homens, dois dos quais ele conhecia ligeiramente; fez absoluta questão de pagar a sua parte das despesas e insistiu, em voz alta, em arranjar as coisas ali mesmo, divertindo os que estavam nas mesas adjacentes.

– Resolvi me suicidar – anunciou subitamente.

– Quando? No ano que vem?

– Agora. Amanhã cedo. Vou tomar um quarto no Commodore, entrar num banho quente e abrir uma veia.

– Ele está ficando mórbido!

– Você precisa de outro uísque, meu velho!

– Conversaremos sobre isso amanhã.

Mas Amory não seria dissuadido, pelo menos não mediante argumentação.

– Vocês alguma vez se sentiram assim? – perguntou, confidencialmente, em seguida.

– Claro!

– Com frequência?

– É o meu estado crônico.

Isso provocou discussão. Um dos presentes disse que às vezes se sentia tão deprimido que pensava seriamente naquilo. Outro concordou que não havia nada por que valesse a pena viver. O capitão Corn, que de algum modo tornara a juntar-se ao grupo, afirmou que, em sua opinião, quando alguém se sentia assim, era quase sempre porque a saúde não estava boa. A sugestão de Amory foi de que cada qual pedisse um Bronx, misturasse nele vidro moído e o tomasse. Para seu alívio, ninguém aplaudiu a ideia, de modo que, terminando seu uísque, ele equilibrou o queixo na mão e fincou o cotovelo na mesa – numa posição de dormir bastante delicada e que quase não dava na vista, pensou –, mergulhando num profundo estupor.

Foi despertado por uma mulher que se agarrava a ele – uma bela mulher, de cabelos castanhos em desalinho e olhos azuis.

– Leve-me para casa! – exclamou ela.

– Olá! – disse Amory, pestanejando.

– Gostei de você – anunciou ternamente a mulher.

– Também gostei de você.

Percebeu que havia em segundo plano um homem barulhento, e que um dos componentes de seu grupo discutia com ele.

– O sujeito com quem eu estava é um maldito idiota – confidenciou-lhe a mulher de olhos azuis. – Eu o detesto. Quero ir para casa com você.

– Você está embriagada? – indagou, com viva sabedoria, Amory.

Ela respondeu, recatadamente, com um aceno afirmativo de cabeça.

– Vá para casa com ele – aconselhou, com ar grave. – Foi ele quem a trouxe.

A essa altura o homem, que se mantinha afastado, desvencilhou-se dos que o retinham e aproximou-se:

– Ouça! – disse, feroz. – Eu trouxe essa moça comigo, e você está se metendo onde não é chamado.

Amory olhou-o friamente, enquanto a jovem se aconchegava mais a ele.

– Largue a moça! – bradou o ruidoso homem.

Amory deu aos olhos uma expressão ameaçadora.

– Vá para o inferno! – exclamou finalmente, voltando sua atenção para a jovem.

– Amor à primeira vista – disse-lhe.

– Eu o amo – suspirou ela, aconchegando-se ainda mais.

E ela realmente tinha olhos lindos!

Alguém se aproximou e sussurrou ao ouvido de Amory:

– Essa moça é Margaret Diamond. Está bêbada, e esse sujeito a trouxe. É melhor você deixar que ela vá.

– Ele que cuide dela, então! – berrou, furioso, Amory. – Não sou nenhum missionário da Associação Cristã de Moços... Sou? Sou?

– Deixe que ela vá.

– É ela quem está se agarrando a mim, com os diabos! Deixe que se agarre!

A multidão em torno da mesa aumentou. Em segundos, um tumulto parecia iminente, mas um garçom polido conseguiu abrir os dedos de Margaret Diamond, até que ela largou Amory. Ela, então, esbofeteou o garçom e lançou os braços em torno do pescoço do esbravejante sujeito em cuja companhia estava.

– Oh, Deus do céu! – exclamou Amory.

– Vamos embora!

– Vamos, os táxis estão rareando!

– Garçom, a conta!

– Vamos, Amory. O seu romance terminou.

Amory riu.

– Você não sabe quanto tem razão. Não faz a menor ideia. E aí é que está todo o problema.

Amory e a questão trabalhista

Dois dias depois, Amory bateu à porta do presidente da agência de publicidade Bascome & Barlow.

– Entre!

Amory entrou sem firmeza.

– Bom dia, Sr. Barlow.

O Sr. Barlow pôs os óculos para examiná-lo melhor e abriu ligeiramente a boca, a fim de que pudesse ouvir melhor.

– E então, Sr. Blaine? Não o vejo há vários dias.

– É verdade – respondeu Amory. – Estou deixando a firma.

– Bem... bem... isto é...

– Isto não me agrada.

– Sinto muito. Julguei que as nossas relações eram bastante... bem... agradáveis. O senhor parecia ser bastante trabalhador... Talvez um tanto inclinado a escrever coisas um pouco extravagantes...

– Cansei-me disso – interrompeu-o rudemente Amory. – A mim pouco me importava que a farinha Harebell fosse melhor que qualquer outra. Na verdade, jamais a experimentei. De modo que me cansei de falar para os outros a respeito dela... Bem, sei que andei bebendo...

A expressão fisionômica do Sr. Barlow adquiriu uma frieza de aço.

– O senhor pediu um emprego...

Com um gesto, Amory fez com que ele se calasse.

– Acho que eu estava sendo muito mal pago. Trinta e cinco dólares por semana... É menos que um bom carpinteiro.

– O senhor estava apenas começando. Nunca trabalhou antes – disse friamente o Sr. Barlow.

– Mas foram gastos 10 mil dólares na minha educação a fim de que eu pudesse escrever essas malditas coisas para o senhor. De qualquer modo, no que se refere ao serviço, o senhor tem aqui datilógrafas com mais de cinco anos de casa que recebem 15 dólares por semana.

– Não vou discutir com o senhor – disse o Sr. Barlow, levantando-se.

– Nem eu. Queria apenas dizer-lhe que estou deixando a firma.

Ficaram um momento olhando um para o outro, impassíveis; depois Amory girou nos calcanhares e deixou o escritório.

Uma pequena trégua

Quatro dias depois, voltou finalmente ao apartamento. Tom estava escrevendo a resenha de um livro para The New Democracy, de cuja redação fazia parte. Olharam-se por um momento em silêncio.

– E então?

– E então o quê?

– Santo Deus, Amory. Você está com um olho roxo... E o queixo?

Amory riu:

– Isso não tem a mínima importância. – Tirou o paletó e mostrou os ombros: – Veja isto!

Tom deu um pequeno assobio.

– O que foi que aconteceu?

– Oh, fui agredido por uma porção de gente. Deram-me uma surra – ajuntou, recolocando lentamente a camisa no lugar. – Mais cedo ou mais tarde, isso tinha de acontecer, e eu não o perderia por nada.

– Quem fez isso?

– Bem, havia alguns garçons, dois marinheiros e alguns transeuntes extraviados, acho. É uma sensação extremamente estranha. Para experimentá-la, é preciso ser surrado de verdade. Depois de alguns momentos, você cai e todos se lançam contra você... antes que chegue ao chão. Depois, desferem pontapés.

Tom acendeu um cigarro.

– Passei um dia inteiro procurando-o pela cidade, Amory, mas você parecia estar sempre um passo adiante de mim. Você deve ter estado em alguma festa.

Amory deixou-se cair sobre uma poltrona e pediu um cigarro.

– Está sóbrio agora? – indagou, com ar zombeteiro, Tom.

– Bastante sóbrio. Por quê?

– Bem, Alec foi embora. A família dele vinha insistindo para que voltasse para casa, de modo que ele...

Amory sentiu um aperto no coração.

– É uma pena.

– É uma pena mesmo. Precisamos arranjar outra pessoa se quisermos ficar aqui. O aluguel está subindo.

– Claro. Arranje alguém. Deixo isso ao seu cuidado, Tom.

Amory entrou em seu quarto. A primeira coisa com que deparou foi uma fotografia de Rosalind, que ele pretendia mandar emoldurar, encostada no espelho da cômoda. Olhou-a sem emoção. Depois das vívidas imagens mentais de Rosalind, que habitavam agora seu espírito, o retrato parecia-lhe curiosamente irreal. Voltou ao escritório.

– Você tem uma caixa de papelão?

– Não – respondeu Tom, intrigado. – Por que deveria ter? Ah, sim... Talvez haja alguma no quarto de Alec.

Por acaso, Amory encontrou o que procurava, e voltando à cômoda abriu uma gaveta cheia de cartas, bilhetes, uma correntinha partida, dois lencinhos e alguns instantâneos. Colocou tudo cuidadosamente na caixa, e sua mente flutuou para algum lugar em uma página de um livro em que o herói, após guardar durante um ano um pedaço de sabonete de seu amor perdido, acaba por lavar as mãos com ele. Riu e pôs-se a cantarolar “After you’ve go”... Mas interrompeu-se de repente.

O barbante rebentou duas vezes. Afinal, conseguiu atar a caixa de papelão e colocou-a no fundo de sua mala; depois, fechou-a com força e voltou ao escritório.

– Vai sair? – indagou Tom, mal ocultando sua preocupação.

– Vou.

– Aonde vai?

– Não saberia dizer, meu velho.

– Vamos jantar juntos.

– Sinto muito. Mas disse a Sukey Brett que jantaria com ele.

– Oh!

– Até mais.

Amory atravessou a rua e tomou um uísque com soda. Depois, rumou para a Washington Square e encontrou um lugar no alto de um ônibus de dois andares. Desceu na rua 43 e dirigiu-se ao bar do Biltmore.

– Olá, Amory!

– O que vai tomar?

– Um uísque duplo! Garçom!

Temperatura normal

O advento da “lei seca” pôs fim à submersão no sofrimento de Amory e, uma manhã, quando, ao despertar, percebeu que seus velhos dias de perambulação de bar em bar haviam terminado, não sentiu nem remorso pelas suas últimas três semanas, nem pesar por não ser possível repeti-las. Adotara o mais violento, ainda que o mais ineficaz, de todos os métodos, a fim de proteger-se das punhaladas da recordação, e embora não fosse um método que ele teria prescrito a outros, a verdade é que verificou no fim que dera resultado: vencera a primeira crise de sofrimento.

Não interpretem mal! Amory amara Rosalind como jamais amaria outra criatura. Ela fora alvo dos primeiros ímpetos de sua juventude, trazendo à tona, das insondáveis profundezas da alma de Amory, ternuras que a ele próprio causavam surpresa, delicadezas e dedicações que jamais tivera com outra pessoa. Tivera outros casos amorosos, mas de outra espécie; nesses últimos casos, regressava ele talvez a um estado de espírito que lhe era mais típico, e nos quais a jovem se tornava um reflexo desse mesmo estado de espírito. Rosalind, porém, fizera surgir nele algo que era mais que uma simples e apaixonada admiração; sentia por ela profundo, imorredouro afeto.

Contudo, ocorrera, quase no fim, tanta tragédia dramática, culminando no fantástico pesadelo daquelas três semanas de orgia, que ele se sentia emocionalmente exausto. As pessoas e os ambientes de que se lembrava como frios ou delicadamente artificiais pareciam prometer-lhe um refúgio. Escreveu um conto cínico, no qual contava o enterro do próprio pai, e enviou-o a uma revista, recebendo em troca um cheque de 60 dólares e o pedido de outras histórias no mesmo tom. Isso lhe fez cócegas na vaidade, mas não o animou a novos esforços.

Lia muito. Sentiu-se não só intrigado como deprimido por Retrato do artista quando jovem, interessou-se vivamente por Joan and Peter e The Undying Fire (O fogo eterno); ficou um tanto surpreso por descobrir, por meio de um crítico chamado Mencken, vários e excelentes romances americanos: Vandover and the Brute (Vandover e o animal), The Damnation of Theron Ware (A condenação de Theron Ware) e Jennie Gerhardt. Mackenzie, Chesterton, Galsworthy, Bennet decaíram em sua apreciação, passando de homens sagazes e geniais, saturados de vida, a contemporâneos divertidos, simplesmente. Apenas a altiva lucidez e a brilhante coerência de Shaw, bem como os esforços gloriosamente inebriados de H. G. Wells, no sentido de introduzir a chave da simetria romântica na evasiva fechadura da verdade, conquistavam sua enlevada atenção.

Desejava ver monsenhor Darcy, a quem escrevera ao desembarcar, mas não recebera notícias dele. Além disso, sabia que uma visita ao monsenhor Darcy o levaria a contar a história de Rosalind, e a ideia de repeti-la enchia-o de gélido horror.

Em sua busca por pessoas ponderadas, lembrou-se da Sra. Lawrence, mulher muito inteligente e digna, convertida ao catolicismo e dedicada amiga de monsenhor Darcy.

Telefonou-lhe certo dia. Sim, ela se lembrava perfeitamente dele; não, monsenhor Darcy não estava na cidade, mas sim em Boston, achava ela; prometera jantar com ela quando voltasse. E ele, poderia almoçar com ela?

– Achei que seria melhor ficar em dia – disse ele, um tanto ambiguamente, ao chegar.

– Ainda na semana passada monsenhor Darcy esteve aqui – informou, pesarosa, a Sra. Lawrence. – Estava muito ansioso por vê-lo, mas havia deixado o seu endereço em casa.

– Será que ele acha que eu mergulhei no bolchevismo? – indagou, interessado, Amory.

– Oh, ele está vivendo dias terrivelmente difíceis!

– Por quê?

– Por causa da República da Irlanda. Acha que lhe falta dignidade.

– É mesmo?

– Com a chegada do presidente da Irlanda, ele foi a Boston, e ficou muitíssimo aborrecido, pois os membros do comitê de recepção, durante o desfile em automóvel, passavam o braço por cima do ombro do presidente.

– Não o censuro por isso.

– Bem, o que mais o impressionou quando esteve no exército? O senhor parece muito mais velho.

– Isso foi devido a outra batalha, mais desastrosa – respondeu Amory, sem conseguir, apesar de tudo, deixar de sorrir. – Mas, quanto ao exército... deixe-me ver... Bem, descobri que a coragem física depende, em grande parte, das condições físicas em que a gente se encontra. Descobri que eu era tão corajoso quanto qualquer um... embora antes isso me preocupasse.

– E o que mais?

– Impressionaram-me também a ideia de que um homem pode suportar o que quer que seja se se habituar à situação em que se encontra, e o fato de eu ter obtido uma nota excelente no exame psicológico.

A Sra. Lawrence riu. Amory sentia que era um grande alívio estar naquela fresca casa em Riverside Drive, longe das partes mais densas de Nova York e daquela sensação de criaturas humanas expelindo grandes quantidades de ar num espaço pequeno. A Sra. Lawrence lembrava-lhe vagamente Beatrice, não por causa do temperamento, mas de sua perfeita graça e dignidade. A casa, os móveis, a maneira de servir o jantar distanciavam-se grandemente do que ele vira nas grandes residências de Long Island, onde os criados constituíam tal estorvo que tinham verdadeiramente de ser empurrados do caminho, ou até mesmo nas casas de famílias mais conservadoras que pertenciam ao Union Club. Perguntava-se se aquele ar de simétrica contenção e aquela delicadeza que lhe parecia europeia não proviriam dos antepassados da Sra. Lawrence, que haviam aportado na Nova Inglaterra, ou se não teriam sido adquiridos em suas longas permanências na Itália e na Espanha.

Dois copos de vinho branco durante o almoço haviam soltado sua língua, e ele falou, com o que parecia ser seu antigo encanto, sobre religião, literatura e o ameaçador fenômeno da ordem social. A Sra. Lawrence mostrava-se ostensivamente satisfeita, e o interesse dela direcionava-se principalmente para sua mente – e Amory desejava que as pessoas voltassem a apreciar sua mente, lugar encantador em que ele, dentro em pouco, talvez pudesse viver.

– Monsenhor Darcy ainda acha que o senhor é a reencarnação dele, e que a sua fé eventualmente vai se iluminar.

– Talvez – assentiu Amory. – No momento, sinto-me bastante pagão. É que a religião parece não ter a menor relação com a vida na minha idade.

Ao sair da casa da Sra. Lawrence, desceu pela Riverside Drive sentindo certa satisfação. Era divertido voltar a discutir assuntos como o jovem poeta Stephen Vincent Benét ou a República da Irlanda. Em meio às acusações rançosas de Edward Carson e do juiz Cohalan, ele esgotou inteiramente a questão da Irlanda; contudo, houve um tempo em que seus traços celtas constituíram os pilares de sua filosofia pessoal.

Pareceu-lhe subitamente que ainda restava muita coisa na vida – se ao menos aquela renovação de antigos interesses não significasse que ele estava se afastando de novo dela... afastando-se da própria vida.

Inquietude

– Estou muito velho e muito entediado, Tom – disse ele certo dia, escarrapachando-se confortavelmente num sofá junto à janela.

Sempre se sentia mais natural na posição horizontal.

– Você costumava ser divertido antes de começar a escrever – continuou. – Agora, guarda todas as ideias que julga que possam ser impressas.

A existência acomodara-se a uma normalidade sem ambições. Tinham resolvido que se economizassem poderiam dar-se ao luxo de conservar o apartamento, ao qual Tom, com a domesticidade de um velho gato, se afeiçoara. Os velhos quadros ingleses de caça pendurados nas paredes eram de Tom, assim como a grande tapeçaria, uma relíquia de decadentes dias universitários, a grande profusão de castiçais desparelhados e a cadeira Luís XV na qual ninguém podia sentar-se por mais de um minuto sem que sofresse severas desordens da coluna... Tom dizia que isso acontecia porque as pessoas se sentavam sobre o fantasma de Montespan... Fosse como fosse, decidiram ficar, devido aos móveis de Tom.

Quase nunca saíam: iam apenas, ocasionalmente, ao teatro, ao Ritz ou ao Princeton Club. Com a lei seca, o grande lugar de encontros sofrera golpes mortais, já não era possível entrar no bar do Biltmore ao meio-dia ou às cinco da tarde e encontrar espíritos afins, e tanto Tom quanto Amory já haviam superado a paixão pela dança com debutantes do Meio Oeste ou de Nova Jersey, no Club-de-Vingt (apelidado “Club de Gink”) ou no Salão Cor-de-rosa do Plaza... Além disso, mesmo aquilo requeria vários coquetéis, “para descer ao nível das mulheres presentes”, como disse certa vez Amory a uma matrona escandalizada.

Nos últimos tempos, Amory recebera do Sr. Barton, seu advogado, muitas cartas alarmantes: a casa de Lake Geneva era demasiado grande para ser facilmente alugada; o mais alto aluguel que se pudesse conseguir serviria, aquele ano, para pouco mais do que pagar os impostos e fazer as reformas necessárias. Na verdade, o advogado insinuava que aquela propriedade não passava de um elefante branco nas mãos de Amory. Não obstante, embora a propriedade talvez não produzisse um único centavo nos próximos três anos, Amory resolveu, tomado de um vago sentimentalismo, que não venderia a casa.

Esse determinado dia em que anunciou seu aborrecimento a Tom fora um dia bastante típico. Levantara-se ao meio-dia, almoçara com a Sra. Lawrence e depois rumara distraidamente para casa, no topo de um de seus amados ônibus.

– Por que você não deveria estar entediado? – indagou, com um bocejo, Tom. – Por acaso não é esse o estado de espírito convencional dos jovens da sua idade e condição?

– Sim – respondeu Amory, pensativo. – Mas eu estou mais do que entediado. Estou inquieto.

– O amor e a guerra fizeram isso com você.

– Bem – considerou Amory –, não estou certo de que a guerra em si tenha exercido grande influência sobre você ou sobre mim... mas, sem dúvida, abalou os antigos alicerces, de certo modo, matou o individualismo na nossa geração.

Tom olhou-o surpreso.

– É verdade – insistiu Amory. – Talvez tenha extirpado o individualismo do mundo inteiro. Meu Deus, que prazer eu costumava experimentar ao sonhar que poderia ser um grande ditador ou escritor, um líder político ou religioso! E, agora, nem mesmo um Leonardo da Vinci ou um Lorenzo de Médici poderiam deixar de ser um verdadeiro e antiquado entrave no mundo. A vida é demasiado grande e complexa. O mundo está tão pesado que não consegue sequer erguer os próprios dedos, e eu planejava ser um desses dedos importantes...

– Não concordo com você – interrompeu-o Tom. – Nunca homem algum se viu em posição tão egoísta desde... bem, desde a Revolução Francesa.

Amory discordou violentamente.

– Você está confundindo essa época, em que cada maluco é um individualista, com um período de individualismo. Wilson só foi poderoso quando representou; depois, teve de ceder repetidamente. Assim que Trotsky e Lenin tomarem uma posição coerente, definida, se converterão simplesmente em figuras que não vão durar mais do que dois minutos, como Kerensky. Nem mesmo Foch tem sequer a metade da importância de Stonewall Jackson. Antigamente, a guerra costumava ser a busca mais individualista do homem, e, no entanto, os heróis populares da guerra não têm nem autoridade nem responsabilidade: Guynemer e o sargento York. Como um colegial poderia fazer de Pershing um herói? Um grande homem, na verdade, não tem tempo para outra coisa a não ser ficar sentado e ser grande.

– Então você acha que não vai haver mais heróis de guerra permanentes?

– Vai haver, mas na história... não na vida. Carlyle teria dificuldade em conseguir material para um novo capítulo sobre The Hero as a Big Man.

– Prossiga. Sou um bom ouvinte hoje.

– As pessoas se esforçam demais para acreditar em líderes hoje em dia... esforçam-se demais, lamentavelmente. Mas assim que surge um reformador popular, um político, um soldado, um escritor ou um filósofo, um Roosevelt, um Tolstoi, um Wood, um Shaw, um Nietzsche, as contracorrentes da crítica o repelem. Deus do céu, homem algum pode aguentar, em nosso tempo, a preeminência! É o caminho mais certo para a obscuridade. As pessoas se cansam de ouvir e repetir incessantemente o mesmo nome.

– E você culpa a imprensa por isso?

– Inteiramente. Olhe para você. Trabalha na redação do The New Democracy, considerado o semanário mais brilhante do país, lido por homens que fazem coisas e tudo mais. E qual é a sua função? Ser o mais inteligente, o mais interessante e o mais brilhantemente cínico possível, a respeito de todo homem, de toda doutrina, de todo livro, de toda concepção política de que lhe compete tratar. Quanto mais forte a luz, quanto maior o escândalo que se lança sobre o assunto, mais dinheiro lhe pagam, maior é o número de pessoas que compram o jornal. Você, Tom D’Invilliers, um Shelley gorado, mutável, vário, esperto, inescrupuloso, representa a consciência crítica da raça... Oh, não proteste! Conheço a coisa! Eu costumava fazer crítica literária na universidade; considerava extremamente divertido referir-me ao mais recente, honesto e consciencioso esforço de alguém no sentido de propor uma teoria ou um remédio como “uma contribuição bem-vinda às nossas leituras ligeiras de verão”. Vamos, admita que é assim!

Tom sorriu, e Amory continuou, triunfante:

– Queremos acreditar. Jovens estudantes procuram crer em autores mais velhos, eleitores procuram crer em seus representantes no Congresso, países procuram crer em seus estadistas... mas não podem! Há demasiadas vozes, demasiada crítica irrefletida, ilógica, dispersa. É pior ainda no caso dos jornais. Qualquer grupo rico, antigo, retrógrado, dotado dessa forma de mentalidade particularmente envolvente, aquisitiva, conhecida como gênio financeiro, pode possuir um jornal que seja o alimento intelectual de milhares de homens fatigados, apressados, demasiado envolvidos na vida moderna, e que não engolem outra coisa além de alimentos pré-digeridos. Por 2 centavos o leitor compra a sua política, os seus preconceitos, a sua filosofia. Um ano depois, há um novo tom político ou uma mudança na direção do jornal. Consequência: mais confusão, mais contradição, uma súbita irrupção de novas ideias, o seu afinamento, a sua destilação, a reação contra elas... – Fez uma pausa, apenas para tomar fôlego, e prosseguiu: – E foi por isso que eu jurei não tomar de pena e papel até que as minhas ideias se aclarem ou me abandonem inteiramente. Já tenho na minha alma pecados mais do que suficientes sem meter na cabeça dos outros epigramas perigosos, superficiais. Talvez eu pudesse fazer com que um pobre e inofensivo capitalista tivesse alguma ligação vulgar com uma bomba, ou fazer com que um bolchevistazinho inocente se visse envolvido com balas de metralhadora...

Tom estava ficando inquieto diante daquele libelo inflamado contra a ligação dele com The New Democracy.

– O que tudo isso tem a ver com o fato de você se sentir entediado?

Amory achava que tinha muito a ver.

– De que modo vou me enquadrar nisso? – indagou. – O que eu pretendo? Propagar a raça? Segundo os romances americanos, somos levados a acreditar que o “saudável rapaz americano”, dos 19 aos 25 anos, é um animal inteiramente destituído de sexo. Na realidade, quanto mais saudável ele é, menos isso é verdade. A única alternativa que temos é nos interessar por algo violento. Bem, a guerra acabou, e eu acredito demais na responsabilidade de um autor para começar já a escrever. Quanto aos negócios... bem, os negócios falam por si próprios. Não têm a mínima relação com as coisas que sempre me interessaram, a não ser uma ligeira e utilitária relação com a economia. O que eu veria do mundo dos negócios perdido numa empresa de publicidade durante os próximos e melhores dez anos da minha vida teria, para mim, o conteúdo intelectual de um filme feito com fins industriais.

– Experimente a ficção – sugeriu Tom.

– O mal é que me distraio quando me ponho a escrever contos... Fico com medo de estar escrevendo a coisa em vez de vivê-la... Fico pensando que talvez a vida esteja à minha espera nos jardins japoneses do Ritz, em Atlantic City ou em East Side... Seja como for, não sinto uma necessidade vital disso. Eu queria ser uma criatura humana comum, mas aquela garota não conseguia encarar as coisas desse modo.

– Você vai encontrar outra.

– Santo Deus! Tire essa ideia da cabeça. Por que você não me diz que “se a garota valesse a pena teria esperado por mim?”. Não, meu caro, a garota que realmente vale a pena não espera por ninguém. Se eu pensasse que haveria outra, perderia a minha fé na natureza humana. É possível que eu ainda me divirta, mas Rosalind era a única garota no mundo com quem eu poderia ter me comprometido.

– Bem – bocejou Tom –, eu fiz o papel de confidente durante uma hora a fio. Mas fico contente por ver que você começa a manifestar opiniões violentas em relação a alguma coisa.

– Começo, de fato – concordou, com relutância, Amory. – Mas quando vejo uma família feliz, sinto uma coisa no estômago...

– As famílias felizes costumam fazer com que a gente se sinta assim – comentou cinicamente Tom.

Tom, o censor

Havia dias em que Amory o escutava. Era nessas ocasiões que Tom, envolto numa nuvem de fumaça, se entregava à destruição da literatura americana. As palavras com frequência o traíam.

– Cinquenta mil dólares anuais – gritava ele. – Deus do céu! Olhe para eles, olhe para eles... Edna Ferber, Gouverneur Morris, Fanny Hurst, Mary Roberts Rinehart... que não produzem, todos reunidos, um único conto ou romance que vá durar dez anos. Esse tal Cobb não me parece nem inteligente, nem divertido... E, sabe do que mais, acho que muitas pessoas pensam assim, exceto os editores. Ele está apenas tonto diante de tanta publicidade... E... oh!... Harold Bell Wright e Zane Grey...

– Eles tentam.

– Não, eles nem sequer tentam. Alguns sabem escrever, mas não se sentam para escrever um romance honesto. Muitos deles sabem escrever, admito. Acredito que Rupert Hughes procure apresentar um quadro verdadeiro e abrangente da vida americana, mas o seu estilo e a sua perspectiva são grosseiros. Ernest Poole e Dorothy Canfield se esforçam, mas têm contra eles uma absoluta ausência de senso de humor. De qualquer modo, pelo menos concentram sua obra em vez de querer abraçar o mundo com as pernas. Todo escritor deveria escrever como se devesse ser decapitado no dia seguinte, ao terminar o seu livro.

– Isso tem duplo sentido?

– Não me interrompa! Ora, há alguns dentre eles que parecem ter certa base cultural, certa inteligência e muita habilidade literária, mas acontece que não escrevem com honestidade. Todos dizem que não há público para coisas boas. Então, porque diabos Wells, Conrad, Galsworthy, Shaw, Bennett e o restante dependem dos Estados Unidos para mais da metade de suas vendas?

– O que o pequeno Tom acha dos poetas?

Tom sentiu-se vencido. Deixou cair os braços, até que ficaram pendendo frouxamente da lateral da poltrona, e emitiu ligeiros grunhidos.

– Estou escrevendo uma sátira sobre eles, intitulada Os bardos de Boston e os críticos de Hearst.

– Vamos ouvi-la! – exclamou avidamente Amory.

– Tenho apenas os últimos versos prontos.

– Isso é muito moderno. Vamos ouvi-los, se são engraçados.

Tom tirou do bolso uma folha de papel e leu-a em voz alta, fazendo, a intervalos, pausas, para que pudessem ver que se tratava de versos livres:

E assim
Walter Arensberg,
Alfred Kreymborg,
Carl Sandburg,
Louis Untermeyer,
Eunice Tietjens,
Clara Shanafelt,
James Oppenheim,
Maxwell Bodenheim,
Richard Glaenzer,
Scharmel Iris,
Conrad Aiken,
Coloco aqui vossos nomes,
Para que possais viver
Quanto mais não seja, como nomes,
Nomes cor de malva, sinuosos,
Na Juvenália
De minhas edições completas.

Amory riu às gargalhadas.

– Você merece um prêmio! Vou lhe pagar um jantar pela arrogância dos dois últimos versos.

Amory não concordava de todo com Tom em sua violenta condenação de romancistas e poetas americanos. Apreciava tanto Vachel Lindsay quanto Booth Tarkington, e admirava a mestria conscienciosa, embora tênue, de Edgar Lee Masters.

– O que eu detesto são sandices como esta: “Sou Deus... sou um homem... cavalgo os ventos... vejo através da fumaça... Sou o sentimento da vida.”

– Isso é medonho!

– E gostaria que os romancistas americanos deixassem de fazer do mundo dos negócios algo romanticamente interessante. Ninguém quer ler a respeito disso, a menos que se trate de negócios desonestos. Se esse fosse um tema interessante, comprariam a vida de James J. Hill, não uma dessas longas tragédias de escritório que não se cansam de repisar a importância do tabaco...

– E da melancolia – ajuntou Tom. – Esse é outro tema favorito, embora eu admita que os russos tenham o monopólio disso. A nossa especialidade é a história de meninas que fraturam a espinha e são adotadas por velhos rabugentos apenas porque sabem rir. Parece que somos uma raça de aleijados joviais e que o fim comum do camponês russo era o suicídio...

– Seis horas – disse Amory, olhando para o relógio de pulso. – Vou lhe oferecer um grande jantar em homenagem à Juvenália das suas edições completas.

Recordando

Julho chegou ao fim com uma última semana de calor sufocante, e Amory, tomado de outra crise de inquietude, lembrou-se de que fazia apenas cinco meses que ele e Rosalind se haviam conhecido. Contudo, já era difícil para ele evocar o rapaz sincero que saltara do transporte militar desejando apaixonadamente toda a aventura da vida. Uma noite em que o calor, opressivo e enervante, entrava pelas janelas de seu quarto, debateu-se por várias horas, entregue ao vago esforço de imortalizar toda a pungência daquela época de sua vida.

As ruas de fevereiro, varridas pelo vento noturno, irrompem cheias de umidades estranhas e intermitentes, exibindo, nas calçadas nuas e brilhantes, a neve esmagada que cintila sob as lâmpadas, como o óleo dourado de alguma máquina divina numa hora de degelo e estrelas.

Estranhas umidades... cheias dos olhos de muitos homens, repletas de vida, nascidas ao amainar da nevasca... Oh, eu era jovem, pois podia voltar-me de novo para ti, sumamente finita e sumamente bela, e provar a essência de sonhos mal lembrados, doces e novos em sua boca.

...Havia um travo amargo no ar da noite... O silêncio estava morto e os sons jaziam ainda adormecidos... A vida estalava como gelo!... Uma nota brilhante e, radiante e pálida, lá estavas... e rompera a primavera. (Pendiam dos telhados pequenos pingentes de gelo, e a cidade abandonada desfalecia.)

Os nossos pensamentos eram gélidas névoas ao longo dos beirais; os nossos dois fantasmas se beijavam no alto, na confusão dos fios... Risos sobrenaturais abafados por aqui ecoam, deixando apenas um tolo suspiro para os desejos juvenis; o pesar seguiu atrás das coisas que ela amava, deixando esse grande vazio...

Outro fim

Em meados de agosto chegou uma carta de monsenhor Darcy, que casualmente encontrou o endereço de Amory:

Meu caro rapaz,

Sua última carta bastou para me deixar preocupado com você. Lendo nas entrelinhas, eu deveria imaginar que o seu compromisso com essa moça o está deixando bastante infeliz, pois vejo que perdeu tudo o que havia de lírico em você antes da guerra. Está cometendo um grande erro se pensa que pode ser romântico sem religião. Às vezes, acho que o segredo do sucesso, quando o encontramos, está no elemento místico que existe em nós: flui para nós algo que nos dilata a personalidade, e quando isso se vai, as nossas personalidades encolhem. Eu diria que as suas duas últimas cartas foram bastante secas. Cuidado para não se perder na personalidade de outra criatura, homem ou mulher.

Sua Eminência o cardeal O’Neill e o bispo de Boston são, no momento, meus hóspedes, de modo que é difícil encontrar um momento para escrever, mas gostaria que você desse um pulo até aqui depois, mesmo que seja apenas para passar um fim de semana. Vou esta semana para Washington.

O que vou fazer no futuro ainda está pendente na balança. Aqui entre nós, confidencialmente, não me surpreenderia nada ver o chapéu cardinalício descer, dentro de oito meses, sobre a minha indigna cabeça. De qualquer modo, gostaria de ter uma casa em Nova York, ou em Washington, onde você pudesse passar alguns fins de semana.

Alegra-me, Amory, que estejamos ambos vivos; essa guerra bem poderia ter sido o fim de uma família brilhante. Mas, com respeito ao matrimônio, você se encontra agora num momento extremamente perigoso da sua vida. Poderia casar-se às pressas e arrepender-se em um momento mais tranquilo, mas acho que você não o fará. Pelo que me escreve acerca do calamitoso estado atual das suas finanças, aquilo que você deseja é, naturalmente, impossível. Contudo, se eu o julgasse pelos meios que habitualmente adoto, poderia dizer que você vai passar por algo assim como uma crise emocional no próximo ano.

Escreva-me. Sinto-me desagradavelmente desatualizado em meus contatos com você.

Com grande afeto,
Thayer Darcy

Uma semana após receber essa carta o apartamento que ambos ocupavam foi subitamente por água abaixo. A causa imediata foi a grave e provavelmente crônica enfermidade da mãe de Tom. Guardaram os móveis num depósito, deram instruções para que o apartamento fosse sublocado e despediram-se sombriamente na Pennsylvania Station. Amory e Tom pareciam estar sempre dizendo adeus.

Sentindo-se muito só, Amory cedeu a um impulso e rumou para o sul, com a intenção de encontrar monsenhor Darcy em Washington. Desencontraram-se devido a uma diferença de apenas duas horas, de modo que Amory, decidindo passar alguns dias em companhia de um velho e lembrado tio, viajou pelas luxuriantes campinas de Maryland rumo a Ramilly County. Mas, em vez de lá permanecer apenas dois dias, sua estada estendeu-se desde meados de agosto até quase fins de setembro, pois em Maryland conheceu Eleanor.


3
Ironia juvenil

Anos depois, ao lembrar-se de Eleanor, Amory parecia ainda ouvir o vento assobiando em torno dele, provocando pequenos arrepios em certos recantos de seu coração. Aquela noite em que subiram de automóvel a montanha e ficaram a observar a lua fria flutuando entre as nuvens, ele perdeu outra parte de si próprio que nada poderia restaurar – e, ao perder essa parte, também perdeu a capacidade de lamentar. Eleanor foi, digamos assim, a última vez que o mal se aproximou, rastejante, de Amory, sob a máscara da beleza; o último e fatídico mistério que dele se apoderou com invencível fascinação, deixando sua alma em pedaços.

Junto dela, sua imaginação corria solta, e foi por isso que subiram a montanha mais alta e ficaram admirando a lua funesta vagar na amplidão, pois já sabiam, então, que podiam ver o demônio em suas próprias pessoas. Mas Eleanor... acaso Amory a fantasiara? Mais tarde, seus fantasmas se divertiram, mas tanto um quanto o outro desejavam que suas almas nunca se encontrassem. Foi por acaso a infinita tristeza dos olhos de Eleanor que o atraiu, ou o reflexo de sua própria imagem que ele encontrou na deslumbrante claridade da mente dela? Ela jamais terá outra aventura como a que viveu com Amory, e se ler estas linhas, dirá:

– E Amory jamais terá outra aventura como eu.

Nem ela nem ele suspirarão por isso.

Certa vez, Eleanor tentou descrever o que sentia:

As coisas desvanecentes que só nós sabemos
Serão esquecidas...
Deixadas de lado...
Desejos que se derreteram com a neve,
E sonhos que geraram
Este nosso presente:
As súbitas alvoradas que saudamos com risos,
Que todos podiam ver, mas que ninguém compartilhava,
Serão apenas alvoradas... e se nos encontrarmos,
Não nos importaremos.
Querido... nenhuma lágrima rolará por isso...
Dentro em pouco
Nenhum pesar
Haverá por um beijo relembrado...
Nem mesmo o silêncio,
Quando nos encontrarmos,
Dará aos velhos fantasmas um lugar para vagar,
Ou agitará a superfície do mar...
Se cinzentas formas surgirem debaixo da espuma,
Nós não as veremos.

Brigavam perigosamente, porque Amory afirmava que sea (mar) e see (ver) não podiam, de modo algum, ser usados como rima. E Eleanor tinha um trecho de outro poema para o qual não conseguia encontrar um começo:

Mas a sabedoria passa... ainda que os anos
nos deem sabedoria... As estações se repetirão...
E nós, apesar de todas as nossas lágrimas,
Não o saberemos.

Eleanor detestava violentamente Maryland. Pertencia à mais antiga das velhas famílias de Ramilly County e vivia numa casa grande e sombria em companhia do avô. Nascera e fora criada na França... Vejo que começo mal. Permita-me começar de novo.

Amory sentia-se entediado, como sempre, quando estava no campo. Fazia longos passeios a pé, sozinho, recitando “Ulalume” para os trigais e congratulando-se com Poe por ter morrido de tanto beber em meio a um ambiente de sorridente complacência. Certa tarde, já caminhara vários quilômetros por uma estrada que não conhecia, enveredando depois, a conselho de uma mulher negra, por um bosque, até que se viu, de repente, completamente perdido. Um aguaceiro passageiro decidiu desabar e, para sua grande impaciência, o céu tornou-se negro como breu, enquanto a chuva começava a cair por entre as árvores, a princípio furtivamente e logo depois com grande violência. Trovões soavam, com estrondos ameaçadores, por sobre o vale, espalhando-se pela floresta como intermitentes descargas de bateria. Ele caminhava às cegas, aos tropeções, à procura de uma saída, e finalmente, através de teias de ramos entrelaçados, divisou uma brecha na mata onde os relâmpagos incessantes lhe permitiram ver um campo aberto. Correu até a beira do bosque e hesitou, sem saber se devia ou não atravessar o campo e procurar abrigo na pequena casa assinalada por uma luz, ao longe, no fundo do vale. Eram apenas cinco e meia da tarde, mas ele não conseguia ver onde punha os pés, a não ser quando os relâmpagos tornavam tudo vívido e grotesco no amplo descampado.

Súbito, chegou-lhe aos ouvidos um estranho som. Era uma cantiga em voz profunda e rouca, voz de moça, e quem quer que cantasse estava muito perto dele. Um ano antes, talvez tivesse rido, ou tremido de medo, mas em seu estado de espírito apenas se deteve, escutando, enquanto as palavras penetravam em sua consciência:

Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon cœur
D’une langueur
Monotone.*

Os raios fendiam o céu, mas a canção prosseguia, sem o mínimo tremor. A moça estava, evidentemente, no campo, e a voz parecia vir, vagamente, de um monte de feno que se erguia vinte passos adiante.

De repente, cessou; cessou e recomeçou num canto fantástico, que se elevava, pairava no ar e tornava a cair, misturado com a chuva:

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure...**

– Quem diabos haverá em Ramilly County – murmurou Amory – capaz de recitar Verlaine, em uma canção improvisada, para um monte de feno molhado?

– Quem está aí? – gritou uma voz tranquila. – Quem é você? Manfredo, São Cristóvão ou a rainha Vitória?

– Sou Don Juan! – respondeu Amory num impulso, elevando a voz acima do ruído do vento e da chuva. Um grito de júbilo veio do monte de feno.

– Sei quem você é... Você é o rapaz louro que gosta de “Ulalume”. Reconheço sua voz.

– Como posso subir aí? – gritou ele do pé do monte de feno, do qual se aproximara, encharcado.

Uma cabeça surgiu sobre o monte, mas estava tão escuro que Amory pôde perceber apenas uma mecha de cabelos molhados e dois olhos que brilhavam como os de um gato.

– Afaste-se um pouco! – chegou até ele a voz. – Depois, dê uma corrida e pule que eu seguro a sua mão... Não, aí não... Do outro lado.

Amory seguiu as instruções, e ao escarrapachar-se de encontro ao monte, afundado até os joelhos no feno, uma mãozinha branca apareceu e agarrou a dele, ajudando-o a subir até o topo.

– Aí está você, Juan – exclamou a moça de cabelos molhados. – Você se importa se eu omitir o Don?

– O seu polegar se parece com o meu! – exclamou, por sua vez, Amory.

– E você está segurando a minha mão, o que é perigoso sem ver o meu rosto.

Amory largou rapidamente a mão dela.

Como se respondesse às suas preces, um relâmpago iluminou tudo, e ele olhou avidamente a criatura que estava a seu lado, sobre o monte de feno molhado, 3 metros acima do chão. Mas ela cobrira o rosto, e ele não viu senão uma figura esguia, cabelos escuros, encaracolados, encharcados, e mãozinhas cujos polegares se arqueavam para trás como os seus.

– Sente-se – sugeriu ela, delicadamente, quando a escuridão voltou a envolvê-los. – Se você se sentar à minha frente nessa depressão, poderá compartilhar da minha capa de chuva, que eu estava usando como uma tenda à prova d’água até que você, rudemente, me interrompeu.

– Eu fui convidado – respondeu jovialmente Amory. – Você me convidou... sabe que me convidou.

– Don Juan sempre consegue isso – respondeu ela, rindo. – Mas eu não vou chamá-lo mais assim, porque você tem cabelos ruivos. Em vez disso, pode recitar-me “Ulalume”, e eu serei Psyche, a sua alma.

Amory sentiu-se enrubescer, feliz por estar invisível, debaixo daquela cortina de vento e chuva. Estavam sentados frente a frente numa pequena depressão existente no monte de feno, a capa de chuva cobrindo-os quase por completo, enquanto a chuva fazia o resto. Amory tentava desesperadamente ver Psyche, mas os relâmpagos recusavam-se a clarear novamente o céu, e ele esperou impacientemente. Santo Deus! Suponhamos que ela não fosse bonita... Suponhamos que tivesse 40 anos e fosse pedante... Deus do céu! Suponhamos... apenas suponhamos... que ela fosse louca. Mas sabia que não era digno pensar isso dela. A Providência enviara uma jovem para distraí-lo, assim como enviara os assassinos de Benevenuto Cellini, e Amory se perguntava se ela não seria maluca... e isso justamente porque se enquadrava tão bem em seu estado de espírito.

– Não sou – disse ela.

– Não é o quê?

– Não sou maluca. E não pensei que você fosse maluco quando o vi pela primeira vez... de modo que não é justo que pense isso de mim.

– Com os diabos! Como é que você...

Enquanto se conheceram, Eleanor e Amory podiam estar “pensando num assunto” e deixar subitamente de falar sobre o que tinham em mente; no entanto, dez minutos depois, pensavam em voz alta e viam que suas mentes haviam seguido os mesmos canais, que os conduziam a uma ideia paralela, uma ideia que os outros achariam que não tinha relação alguma com a primeira.

– Diga-me – perguntou Amory, inclinando-se avidamente em direção a ela –, como foi que você soube a respeito de “Ulalume”... Como descobriu a cor dos meus cabelos? Qual é o seu nome? O que está fazendo aqui? Responda-me imediatamente!

Súbito, o clarão vivíssimo de um relâmpago iluminou a escuridão – e ele viu Eleanor fitando-o pela primeira vez nos olhos. Oh, ela era magnífica!... Tez pálida como mármore em noite estrelada, testa delicada e olhos que cintilavam, verdes como esmeraldas, sob o lampejo ofuscante. Era uma feiticeira, de talvez 19 anos, pensava ele, alerta, sonhadora, com um sinal de tagarelice que era, ao mesmo tempo, uma fraqueza e um deleite. Amory recostou-se, ofegante, na pilha de feno.

– Agora você já me viu – disse ela –, e suponho que vá dizer que os meus olhos ardem no seu cérebro como brasas.

– De que cor são os seus cabelos? – indagou ele, atento. – São cortados curtos, não são?

– Sim, são curtos. Não sei de que cor – respondeu ela, pensativa. – Muitos homens já me perguntaram isso. Castanhos, acho... Ninguém repara muito nos meus cabelos. Mas tenho belos olhos. Não importa o que você diga, a verdade é que tenho belos olhos.

– Responda a minha pergunta, Madeline.

– Não me lembro de tudo que você me perguntou... Além disso, o meu nome não é Madeline. É Eleanor.

– Eu já devia ter imaginado. Você parece Eleanor... tem esse ar de Eleanor. Sabe o que quero dizer.

Fez-se silêncio enquanto ouviam a chuva.

– A chuva está escorrendo pelo meu pescoço, colega lunático – disse ela, finalmente.

– Responda as minhas perguntas.

– Bem... chamo-me Eleanor Savage; moro num velho casarão situado a 1,5 quilômetro daqui, junto à estrada; o meu parente vivo mais próximo é o meu avô, Ramilly Savage; altura: 1,65 metro; número da caixa de meu relógio: 3077 W; nariz, delicadamente aquilino; temperamento, misterioso...

– E eu? – interrompeu-a Amory. – Quando foi que você me viu?

– Ah, você é um desses homens – respondeu ela, altivamente. – Quer introduzir-se à força na conversa. Bem, meu rapaz, eu estava atrás de uma sebe na semana passada, tomando um banho de sol, quando de repente surgiu um homem, declamando com voz agradável, presunçosa:

E, agora, quando a noite era senescente

(diz ele)

E os quadrantes indicavam a manhã

No fim de um caminho liquescente

(diz ele)

Nascia um brilho nebuloso.

“Então espiei por cima da sebe, mas você, por alguma razão desconhecida, começara a correr, de modo que vi apenas a sua bela nuca. ‘Oh!’, disse eu, ‘lá vai um homem pelo qual muitas de nós suspirariam’, e continuei, no meu melhor sotaque irlandês...”

– Está bem – interrompeu-a Amory. – Agora, torne a falar de você...

– Pois não. Sou uma dessas criaturas que passam pela vida proporcionando aos outros emoções, mas quase não as sentindo eu própria, salvo as que leio nos homens em noites como esta. Tenho a coragem social para subir no palco, mas não a energia para isso. Não tenho paciência para escrever livros e jamais encontrei um homem com quem quisesse me casar. No entanto, tenho apenas 18 anos.

O temporal aos poucos amainava; somente o vento continuava em suas arremetidas, fazendo oscilar o monte de feno. Amory estava arrebatado. Percebia que cada momento era precioso. Jamais conhecera uma garota como aquela... Ela nunca tornaria a ser a mesma. Ele não se sentia de modo algum como se fosse personagem de uma peça teatral, manifestando sentimentos adequados a uma situação nada convencional... Em vez disso, tinha a impressão de que retornara ao lar.

– Acabo de tomar uma grande decisão – disse Eleanor após outra pausa. – E essa decisão é dizer a você por que estou aqui... Com isso, respondo a uma das suas perguntas. Acabo de decidir que não acredito na imortalidade.

– Realmente? Como isso é banal!

– Espantosamente banal – respondeu ela –, mas, não obstante, deprimente. Cediça e nauseantemente deprimente. Vim para cá para ficar molhada... molhada como um pinto. Os pintos molhados têm grande clareza de espírito – concluiu.

– Continue – disse Amory delicadamente.

– Bem, não tenho medo da escuridão... de modo que vesti a minha capa de chuva, as minhas botas, e saí. Devo confessar que sempre tive medo disso antes, de dizer que não acreditava em Deus... pois um raio poderia me atingir... Mas aqui estou, e isso, é claro, não aconteceu. O ponto principal, porém, é que dessa vez não tive mais medo disso do que quando eu era uma Cientista Cristã, como fui no ano passado. De modo que agora sou materialista, e estava confraternizando com o feno quando você apareceu, morrendo de medo, vindo do bosque.

– Ora essa, sua bobinha! – exclamou indignado Amory. – Morrendo de medo de quê?

– De você! – gritou ela, pondo-se de pé de um salto, rindo e batendo palmas. – Veja... veja! Consciência... mate-a como a mim! Eleanor Savage, materialista... Nada de sobressaltos, nada de medo... Vim cedo...

– Mas eu tenho de ter uma alma – objetou ele. – Não posso ser racional... e não serei molecular.

Ela se inclinou sobre ele, sem afastar dele os olhos ardentes, e murmurou, numa espécie de decisivo romantismo:

– Era o que eu pensava, Juan... Era o que eu temia... Você é sentimental. Não é como eu. Eu sou uma pequena materialista romântica.

– Eu não sou sentimental... Sou romântico como você. A diferença, como você sabe, é que uma pessoa sentimental pensa que as coisas vão durar, ao passo que a criatura romântica espera desesperadamente que isso não aconteça.

(Essa era uma de suas grandes frases.)

– Epigramas – disse ela, friamente. – Vou para casa. Vamos sair desse monte de feno e caminhar até a encruzilhada.

Desceram, lentamente, de seu poleiro. Ela não quis que Amory a ajudasse a descer, e fazendo um sinal para que ele se afastasse, chegou num salto gracioso até à lama, onde ficou um momento sentada, rindo de si própria. Depois, pôs-se de pé de um salto, deu a mão para ele e saiu, na ponta dos pés, pelo campo, saltando de um lugar seco para outro. Uma transcendente delícia parecia cintilar em cada poça d’água, pois a lua surgira e a chuva se afastara para o oeste de Maryland. Quando o braço de Eleanor tocava o seu, Amory sentia sua mão esfriar, tomado de um receio mortal de que pudesse perder aquele leve roçar que fazia com que sua imaginação pintasse maravilhas a respeito dela. Olhava-a de soslaio, como sempre fazia quando estava com ela; Eleanor era uma festa e uma loucura, e ele desejava que seu destino tivesse sido permanecer para sempre sentado num monte de feno, vendo a vida através daqueles olhos verdes. Seu paganismo expandiu-se aquela noite, e quando ela desapareceu na estrada, como um fantasma cinzento, surgiram dos campos hinos triunfais que o acompanharam até a casa. Durante todo o restante da noite mariposas de verão adejaram para dentro e para fora da janela de Amory; durante todo o restante da noite grandes hinos de louvores se elevaram, em místicos devaneios, através dos trigais prateados – e ele permaneceu desperto na clara escuridão.

Setembro

Amory apanhou uma folha de relva e mordiscou-a filosoficamente:

– Jamais me apaixono em agosto ou setembro.

– Quando, então?

– No Natal ou na Páscoa. Sou litúrgico.

– Páscoa! – exclamou ela, torcendo o nariz. – Hum! A primavera de colete!

– A Páscoa gera a primavera, não gera? A Páscoa tem os cabelos trançados, usa tailleur.

– Calça as tuas sandálias, ó, tu, de pés ligeiros.

Sobre o esplendor e a rapidez de teus pés... – citou, baixinho, Eleanor, acrescentando: – Acho que o Halloween é um dia de outono mais belo do que o Dia de Ação de Graças.

– Muito melhor... E a véspera de Natal vai muito bem com o inverno, mas o verão...

– O verão não tem dia algum – disse ela. – Não é possível ter um amor de verão. Tanta gente já o tentou que o nome se tornou proverbial. O verão é apenas a promessa irrealizada da primavera, um charlatão em vez das cálidas e balsâmicas noites com que sonho em abril... É uma estação triste, de vida sem crescimento... Não há dia.

– O 4 de Julho! – sugeriu, zombeteiro, Amory.

– Não se faça de engraçado! – disse ela, fulminando-o com o olhar.

– Bem... o que poderia cumprir a promessa da primavera?

Eleanor refletiu um momento.

– Oh, acho que o céu poderia, se houvesse céu – respondeu finalmente. – Uma espécie de céu pagão... Você deveria ser materialista – acrescentou de forma enfática.

– Por quê?

– Porque você se parece muito com os retratos de Rupert Brooke.

Até certo ponto, Amory procurou, enquanto conviveu com Eleanor, desempenhar o papel de Rupert Brooke. O que dizia, sua atitude em relação à vida, em relação a ela e a si próprio, tudo era reflexo das atitudes literárias do falecido inglês. Ela costumava sentar-se na relva, um vento preguiçoso brincando nos cabelos curtos, a voz rouca percorrendo toda a escala, desde Grantchester até Waikiki. Havia algo extremamente apaixonante na leitura em voz alta a que Eleanor se entregava. Ambos tinham a impressão de que estavam mais perto um do outro, mental e fisicamente, quando liam – mais perto do que quando ela estava nos braços de Amory, o que acontecia com frequência, pois ambos, desde o começo, começaram a se apaixonar. Mas seria Amory capaz de amar agora? Podia, como sempre, passar, em meia hora, por todas as emoções, mas quando ambos se entregavam, deliciados, a suas fantasias, percebiam que já não podiam sentir como antes – e era por isso, talvez, que se voltavam para Brooke, Swinburne e Shelley. Era a oportunidade de tornar tudo belo, requintado, rico, imaginativo; podiam estender da imaginação dele minúsculos e dourados tentáculos que se alongaram até a imaginação dela, ocupando o lugar do grande, do profundo amor que jamais estivera tão perto e que, não obstante, jamais se assemelhara tanto a um sonho.

Liam e reliam um poema de Swinburne, “Triumph of Time”, do qual quatro versos soavam depois na memória de Amory nas noites quentes em que via os vaga-lumes adejando entre os penumbrosos troncos das árvores e ouvia o profundo coaxar de muitas rãs. E, de repente, Eleanor parecia surgir da noite e ficar a seu lado – e ele ouvia sua voz gutural, profunda, repetindo:

Vale uma lágrima, vale uma hora,
Pensar nas coisas já exauridas?
No joio inútil e na fugitiva flor,
No sonho passado e na ação já extinta?

Foram formalmente apresentados dois dias depois, e a tia de Amory contou-lhe a história de Eleanor. Eram apenas dois os Ramilly: o velho Sr. Ramilly e sua neta Eleanor. Ela vivera na França em companhia de uma mãe irrequieta, que Amory imaginava ter sido como sua própria mãe; morta a mãe, Eleanor fora mandada para a América, para viver em Maryland. Fora para Baltimore primeiro, para ficar com um tio solteirão, e, uma vez lá, aos 17 anos, insistira em ser apresentada como debutante. Teve um inverno desenfreado e chegou ao campo em março, após discutir furiosamente com todos os seus parentes de Baltimore, escandalizando-os e despertando neles ferozes protestos. Viera à tona a história de um grupo de estroinas que tomava coquetéis em limusines e conviviam de forma promíscua e condescendente com pessoas mais velhas, enquanto Eleanor, com um espírito que lembrava vivamente os boulevards, conduzia muitos inocentes, ainda rescendendo a St. Thimothy e Farmington, por caminhos de perversa boêmia. Quando tal história chegou aos ouvidos do tio, cavalheiro esquecido de uma era mais hipócrita, houve uma cena da qual Eleanor saiu subjugada, mas rebelde e indignada, procurando refúgio na casa do avô, que vivia no campo, quase à beira da senilidade. Isso até onde ia a história; o resto ela própria contou a Amory, mas isso foi mais tarde.

Nadavam juntos com frequência, e enquanto Amory boiava preguiçosamente, fechava o espírito a todos os pensamentos, exceto aos que se referiam a brumosas terras de bolhas de sabão, onde a luz do sol era filtrada através de árvores balançadas pelo vento. Como alguém poderia pensar ou preocupar-se, ou fazer qualquer outra coisa que não espirrar água, mergulhar e ficar ali indolente, à margem do tempo, enquanto passavam os meses floridos? Que transcorressem os dias... A tristeza, a lembrança e o sofrimento iam se repetir no mundo de fora, e ali, uma vez mais, antes de ir ao encontro deles, ele desejava deixar-se levar e ser jovem.

Havia dias em que Amory lamentava que sua vida tivesse mudado e que sua marcha regular por uma estrada que se estendia sempre à vista, com cenários que surgiam e se misturavam, convertendo-se numa rápida sucessão de cenas desconexas... dois anos de suor e sangue... aquele súbito e absurdo instinto de paternidade que Rosalind despertara nele, e agora o que havia de meio sensual, meio neurótico, naquele outono com Eleanor. Sentia que levaria todo o tempo, mais do que ele poderia dispor, para colar aqueles estranhos e desajeitados retratos no álbum de recortes de sua vida. Tudo aquilo era como um banquete do qual ele participasse naquela meia hora de sua juventude, procurando desfrutar de magníficas e epicúreas iguarias.

Prometeu vagamente a si mesmo que chegaria um momento em que tudo aquilo seria fundido num todo. Parecia-lhe que, havia meses, alternava-se entre flutuar numa corrente de amor ou fascinação, ou ser levado por um torvelinho, e ele não queria pensar em torvelinhos, queria ser levado ao topo de uma onda e trazido de novo à praia.

– Oh, o desesperador, agonizante outono e o nosso amor!... Quão bem eles se harmonizam! – disse um dia Eleanor, quando estavam deitados, molhados, junto à água.

– O veranico do nosso amor... – concluiu Amory.

– Diga-me uma coisa – indagou ela após uma pausa –, ela era loura ou morena?

– Loira.

– Era mais bonita do que eu?

– Não sei – respondeu, lacônico, Amory.

Certa noite, caminhavam juntos enquanto a lua surgia e derramava um grande fardo de beleza sobre o jardim, até transformá-lo numa terra encantada, com Amory e Eleanor, vagos vultos fantasmais, exprimindo a beleza eterna de um modo amoroso, curioso, élfico. De repente, afastaram-se do luar e mergulharam na escuridão de um parreiral onde havia fragrâncias tão queixosas que pareciam quase musicais.

– Acenda um fósforo – murmurou ela. – Quero vê-lo.

O riscar do fósforo! A pequena chama!

A noite e as árvores cheias de cicatrizes lembravam o cenário de uma peça teatral, e estar ali com Eleanor, vaga e irreal, parecia-lhe, de certo modo, algo estranhamente familiar. Amory perguntou-se por que só o passado parecia sempre estranho e inacreditável. O fósforo se apagou.

– Está escuro como breu.

– Somos apenas vozes – sussurrou Eleanor. – Pequenas vozes solitárias. Acenda outro.

– Era o meu último fósforo.

Subitamente, ele a tomou nos braços.

– Você é minha... sabe que é minha! – exclamou, arrebatado.

O luar contorceu-se por entre os galhos, escutando... Os vaga-lumes pairavam sobre os sussurros que trocavam, como se quisessem conquistar um olhar de Amory, desviando-o do brilho que havia nos olhos de ambos.

O fim do verão

– “Vento algum agita a relva; não sopra vento algum... As águas, nos lagos esquecidos, refletem, como espelhos, a lua cheia e, assim, o testemunho dourado penetra em suas massas veladas” – cantou Eleanor para as árvores que se erguiam como esqueletos no corpo da noite. – Não há aqui algo de fantasmagórico? Se você conseguir controlar o seu cavalo, podemos entrar pelo bosque e encontrar as lagoas esquecidas.

– Ele vai desembestar por aí e nós iremos para o diabo – objetou ele. – Ademais, não entendo bastante de cavalos para dirigi-lo nesta escuridão.

– Cale-se, seu tolo – murmurou Eleanor bruscamente e, inclinando-se, deu-lhe umas suaves pancadinhas com o relho. – Você pode deixar o seu velho pangaré no nosso estábulo, e eu mandarei que o levem amanhã à sua casa.

– Mas o meu tio tem de levar-me amanhã às sete horas à estação com este velho matungo.

– Não seja um desmancha-prazeres... Lembre-se de que você tem uma tendência para a hesitação que o impede de ser a luz completa da minha vida.

Amory impeliu sua cavalgadura para perto dela e, inclinando-se, tomou-lhe a mão.

– Diga, depressa, que eu o sou. Do contrário, puxo-a para cá e faço com que você vá na garupa.

Ela o olhou e balançou a cabeça, excitada:

– Oh, faça isso!... Ou melhor, não! Por que todas as coisas excitantes são tão incômodas, como combater, realizar explorações e esquiar no Canadá? A propósito, vamos subir a cavalo até Harper’s Hill. Penso que isso entra no nosso programa lá pelas cinco da tarde.

– Sua diabinha! – resmungou Amory. – Vai fazer com que eu passe a noite toda em claro e, depois, amanhã, durma no trem como um imigrante ao voltar para Nova York.

– Silêncio! Alguém se aproxima pela estrada... Vamos! Upa! Upa!

E com um grito que provavelmente causou arrepios ao viajante tardio, virou seu cavalo para os bosques enquanto Amory a seguia lentamente, como vinha fazendo todos os dias nas últimas três semanas.

O verão terminou, mas ele ficou lá mais três dias, como um Manfredo gracioso e dócil, observando Eleanor enquanto ela construía pirâmides intelectuais e fantasiosas, ao mesmo tempo em que se deliciava com seus artificialismos de garota temperamental... Além disso, escreviam versos à mesa do jantar.

Quando a Vaidade beijou a Vaidade, há cem junhos felizes já passados, ele ficou a meditar sobre ela, ofegante, e para que todos os homens pudessem saber, rimou seus olhos com a vida e com a morte:

“Através do tempo, salvarei o meu amor!” – disse ele, mas a Beleza se extinguiu com a sua respiração e, com seus amantes, ela morreu...

– Sempre o espírito dele e não os olhos dela, sempre a sua arte e não os cabelos dela:

“Quem aprendeu o ardil das rimas seja sensato e detenha-se diante de seus sonetos”...E, assim, todas as minhas palavras, embora verdadeiras, devem cantar-te em milhares de junhos, e ninguém jamais saberá que foste a Beleza por uma tarde.

Assim escreveu ele um dia, ao meditar sobre quão friamente se pensava na “Dark Lady of the Sonnets”, e em quão pouco se lembrava dela como o grande homem queria que ela fosse recordada, pois o que Shakespeare devia ter desejado, para ter escrito com tão divino desespero, é que a tal dama “vivesse”... E hoje ela não nos desperta nenhum interesse verdadeiro... A ironia disso tudo é que, se ele tivesse se interessado mais pelo poema do que pela dama, o soneto seria apenas óbvia e imitava retórica, e ninguém jamais o teria lido após vinte anos...

Essa foi a última noite em que Amory viu Eleanor. Ele deveria partir na manhã seguinte, e concordaram em dar um longo passeio de despedida à luz fria do luar. Ela queria conversar, disse a Amory; talvez pela última vez em sua vida pudesse ser razoável... (o que significava para ela assumir uma postura estudada confortavelmente). Haviam, pois, enveredado pelos bosques e cavalgado meia hora sem quase proferir palavra, exceto quando ela murmurou uma imprecação contra um galho incômodo – e fez isso de um modo como nenhuma outra moça jamais seria capaz. Depois, começaram a galgar Harper’s Hill, conduzindo seus animais cansados.

– Santo Deus! – sussurrou Eleanor. – Como é quieto isso aqui! Muito mais solitário do que os bosques.

– Detesto bosques – respondeu Amory, sentindo um arrepio. – Detesto toda espécie de folhagem ou vegetação à noite. Aqui é tão amplo, o espírito respira mais livremente.

– A longa encosta de um longo monte.

– E a fria lua despejando sua luz sobre ele.

– E você e eu, ainda mais importante.

A noite estava, de fato, muito quieta... O caminho pelo qual seguiam, e que terminava num precipício, raramente era trilhado. Via-se apenas, de vez em quando, uma cabana de negro, isolada, cinza-prateada pelo luar que iluminava as rochas, interrompendo a longa extensão de chão nu; além, erguia-se a longa orla dos bosques, como um glacê escuro sobre um bolo branco, e mais ao longe ainda, o nítido e amplo horizonte. Fazia muito mais frio – um frio tão intenso que os envolvia por completo e afastava do espírito de ambos todas as lembranças de noites cálidas.

– O fim do verão – comentou, baixinho, Eleanor. – Ouça o ruído dos cascos dos cavalos: “ploque, ploque, ploque, ploque”. Você alguma vez teve febre e sentiu que todos os ruídos pareciam dividir-se em “ploques-ploques-ploques”, a ponto de você ser capaz de jurar que a eternidade era divisível em outros “ploques”? É assim que eu sinto... Velhos cavalos fazendo “ploque-ploque”. Acho que essa é a única coisa que nos diferencia dos cavalos e dos relógios. As criaturas humanas não conseguem suportar esse “ploque-ploque” sem enlouquecer.

A brisa arrefeceu ainda mais, e Eleanor, arrepiada, jogou a capa sobre os ombros e tremeu.

– Está com muito frio? – perguntou Amory.

– Não. Estou pensando em mim... no meu velho e negro ego, o verdadeiro, dotado da honestidade fundamental que me impede de ser absolutamente má ao fazer com que eu tenha consciência dos meus próprios pecados.

Cavalgavam rente ao penhasco, e Amory olhou para baixo. Onde o rochedo terminava, uns 30 metros abaixo, um negro curso d’água traçava uma linha nítida, interrompida por minúsculas cintilações na corrente rápida.

– Podre... podre o velho mundo – disse subitamente Eleanor. – E a coisa mais infeliz de todas... Por que nasci mulher? Por que não nasci estúpida? Olhe para você; você é mais estúpido do que eu, não muito, mas um pouco, e pode andar por aí, ficar entediado, ir depois para algum outro lugar, divertir-se com as garotas sem se envolver em sentimentalismos, pode fazer o que quiser e ser justificado... Enquanto aqui estou eu, com inteligência para fazer tudo, mas presa, não obstante, ao navio naufragado de um futuro casamento. Se eu nascesse daqui a cem anos, tudo estaria muito bem, mas agora, que é que está reservado para mim? Tenho de casar, isso nem é preciso dizer. Mas com quem? Sou inteligente demais para a maioria dos homens; não obstante, terei de descer ao nível deles e deixar que tratem com superioridade o meu intelecto, a fim de merecer sua atenção. Cada ano que passa sem que eu me case, menor é a chance de eu encontrar um homem de alto nível. Na melhor das hipóteses, tenho de limitar minha escolha a uma ou duas cidades e, claro, terei de me casar com um homem vestido a rigor. Ouça – prosseguiu ela, inclinando-se na direção dele –, gosto de homens inteligentes e bonitos, e certamente ninguém se interessa mais do que eu por homens dotados de personalidade. Oh, apenas uma pessoa em cada cinquenta tem ideia do que é o sexo. Eu me interesso por Freud e tudo mais, mas acho medonho que todo o amor verdadeiro existente no mundo se constitua 99 por cento de paixão e apenas uma pitada de ciúme. – Terminou tão abruptamente quanto havia começado.

– Você tem razão, claro – concordou Amory. – É uma força dominante bastante desagradável que faz parte do mecanismo por trás de tudo. É como um ator que deixasse o público perceber os seus truques! Espere um momento, até que eu reflita sobre isso...

Deteve-se e procurou encontrar uma metáfora. Tinham se afastado da beira do penhasco e seguiam agora pela estrada, uns 15 metros à esquerda.

– Como você vê, todos têm de ocultar isso sob uma capa. Os intelectos medíocres, os Platões de segunda classe, empregam o que ainda resta do cavalheirismo romântico, diluído num certo sentimento vitoriano... enquanto nós, que nos consideramos intelectuais, o ocultamos, fingindo que se trata apenas de outro lado da nossa personalidade, algo que nada tem a ver com os nossos brilhantes cérebros; fingimos que o fato de o percebermos nos absolve de ser uma presa disso, mas a verdade é que o sexo está bem no meio das nossas mais puras abstrações, tão perto que nos obscurece a visão... Posso beijá-la agora, e é o que vou fazer... – Inclinou-se para ela sobre a sela, porém ela se afastou:

– Não posso... Não posso beijá-lo agora... Sou mais sensível que você.

– Então, é também mais estúpida – declarou ele, impaciente. – O intelecto não é uma proteção contra o sexo, não mais do que as convenções...

– Então, qual é essa proteção? – inflamou-se Eleanor. – A Igreja Católica ou as máximas de Confúcio?

Amory fitou-a, apanhado de surpresa.

– Essa é a sua panaceia, não é? – gritou ela. – Você também não passa de um velho hipócrita! Milhares de padres ameaçadores fazendo com que os italianos degenerados e os irlandeses analfabetos se arrependam por meio de lenga-lengas a respeito do sexto e do nono mandamentos. Isso tudo não passa de disfarces, de sentimentalismo, de máscaras espirituais e de panaceias! Eu vou lhe dizer que não existe Deus, nem mesmo uma forma clara e abstrata de bondade... e que tudo tem de ser produzido pelo indivíduo e para o indivíduo aqui em cima, em mentes claras como a minha... Mas você é demasiado presumido para aceitar esse fato.

Soltou as rédeas e ergueu o pequeno punho para as estrelas:

– Se existe Deus, que me fulmine... que me fulmine!

– Falando de Deus à maneira dos ateus – comentou Amory, ríspido.

Seu materialismo, que fora sempre uma capa tênue, fez-se em pedaços diante da blasfêmia de Eleanor... Ela sabia, e irritava-o que ela soubesse.

– E como a maioria dos intelectuais que acham que a fé não lhes convém – prosseguiu ele, friamente. – Como Napoleão, Oscar Wilde e o restante das pessoas do seu tipo, você vai pedir aos berros um sacerdote na hora de sua morte.

Eleanor deteve bruscamente o cavalo, e ele parou a seu lado.

– Então vou fazer isso, não é? – indagou ela, num tom estranho, que o amedrontou. – Então vou fazer, não é? Veja! Vou me atirar daquele precipício!

E antes que ele pudesse interferir, esporeou o animal, cavalgando a toda velocidade em direção ao fim do platô.

Amory lançou-se em seu encalço, o corpo congelado, os nervos em um grande clangor. Não havia chance de detê-la. Uma nuvem cobria a lua, e o animal despencaria cegamente. De repente, a 3 metros da beira do penhasco, Eleanor deu um grito súbito e agudo e caiu para o lado. Rolou duas vezes sobre si mesma e foi tombar num monte de arbustos, a um metro do precipício. O animal caiu no vazio, soltando um relincho frenético. Num minuto Amory estava ao lado de Eleanor, e notou que ela tinha os olhos abertos.

– Eleanor! – gritou ele.

Ela não respondeu, mas seus lábios se moveram, os olhos marejados de súbitas lágrimas.

– O meu cavalo morreu?

– Santo Deus! É claro!

– Oh! – gemeu ela. – Achei que eu também ia despencar. Não pensei...

Amory a ajudou, delicadamente, a levantar-se e subir na sela de seu animal. E assim voltaram para casa, Amory a pé e ela debruçada sobre a parte mais alta da sela, soluçando amargamente.

– Tenho uma tendência à loucura – disse, a voz entrecortada. – Duas vezes antes já fiz coisas assim. Quando eu tinha 11 anos, minha mãe... enlouqueceu... ficou completamente louca. Estávamos em Viena...

Durante todo o caminho de volta ela falou, hesitante, a respeito de si própria – e o amor de Amory desvaneceu-se lentamente com o luar. À porta da casa dela, fizeram menção, por puro hábito, de despedir-se com um beijo, mas Eleanor não conseguiu aninhar-se em seus braços, que não se estenderam para ela como na semana anterior. Durante um minuto permaneceram parados, odiando-se com amarga tristeza. Mas, assim como Amory havia amado a si próprio em Eleanor, agora também o que odiava era apenas um reflexo no espelho. As atitudes de ambos estavam espalhadas pela pálida alvorada como cacos de vidro. As estrelas já haviam desaparecido fazia muito, restando entre eles apenas as ligeiras rajadas gementes de vento e o silêncio... Mas as almas nuas são sempre pobres coisas, e logo Amory voltou para casa e deixou que novas luzes entrassem em sua vida com o sol.

POEMA QUE ELEANOR ENVIOU A AMORY ALGUNS ANOS DEPOIS

Aqui, Mortais, sobre a ondulação da água,

A murmurar a sua música e a suportar um fardo de

luz,

Recebendo o dia como uma filha radiante e alegre...

Aqui podemos sussurrar sem que nos ouçam, sem

medo da noite.

Caminhando a sós... era esplendor ou o que, aquilo a

que nos dirigíamos

Mergulhados no tempo, quando o verão soltava os

seus cabelos?

Sombras que amávamos e os desenhos que cobriam o

chão de Tapeçarias místicas, desfalecentes no ar

abafado.

Esse foi o dia... e a noite para outra história,

Pálida como um sonho e sombreada por árvores

traçadas a lápis...

Fantasmas de estrelas acercavam-se dos que haviam

buscado a glória,

E sussurrantes falavam-nos de paz na lamuriante

brisa,

E das velhas crenças mortas que o nosso tempo

destroçou,

E do jovem escrevinhador que comprava delícias

da lua;

Esse era o anseio que conhecíamos e a linguagem que

importava,

Esse era o débito que pagávamos ao usurário junho.

Eis aí o mais profundo dos sonhos, junto às águas, que

não trazem

Do passado nada que não precisemos saber.

Que importa se a claridade não é senão o sol e que os

regatinhos não cantem!

Estamos juntos, parece, e eu o amei tanto!...

O que encerrava a passada noite, já terminando o

verão,

Arrastando-nos de volta para casa pela transformada

vereda?

O que nos olhava de soslaio em meio à escuridão, por

entre os trevos fantasmais?

Ó Deus!... Até você se agitava no sono... e ficava

morto de medo...

Bem... passamos... e somos agora crônica para os

medrosos.

Curiosos metais de meteoros que desvaneceram no

céu;

Criatura da terra, a infatigável está estendida junto à

água, extenuada.

Perto dessa criança abandonada e incompreensível

que sou eu...

O medo é um eco que traçamos para a filha da Certeza;

Agora, somos rostos e vozes... e menos que isso

dentro em breve.

A sussurrar palavras de quase amor sobre a ondulação

da água...

O jovem escrevinhador que comprava delícias da

lua.

POEMA QUE AMORY ENVIOU A ELEANOR E QUE SE INTITULAVA “TEMPESTADE DE VERÃO”

Leves rajadas de vento, e uma canção a extinguir-se, e

folhas a cair;

Leves rajadas de vento e, ao longe, um riso a esvair-se...

E chuva, e pelo campo uma voz a chamar...

Nossa grande nuvem cinzenta passa apressada e avoluma-

se no alto,

Desliza sobre o sol e paira no ar,

A chamar suas irmãs. A sombra de uma pomba

Cai sobre a choupana, e as árvores enchem-se de asas;

Embaixo, no vale, por entre as árvores chorosas,

Paira o corpo mais negro da tormenta, trazendo

Consigo o hálito de mares submersos

E o ribombar fraco e distante de trovões...

Mas eu aguardo...

Aguardo as névoas e as chuvas mais negras –

Ventos mais fortes que agitem o véu do destino,

Ventos mais felizes que revolvam os cabelos dela;

Novamente

Me dilaceram, me ensinam, espalham o ar pesado

Sobre mim, esses ventos que conheço, e a tormenta.

Houve um verão em que toda a chuva era preciosa;

Houve uma estação em que todo vento era cálido.

E agora você passa por mim em meio à névoa...

os cabelos

Soprados pelo vento em torno de você, os lábios úmidos

outra vez contraídos

Naquela feroz ironia, naquele alegre desespero

Que a envelhecia quando nos encontramos

Como uma aparição, você flutuava antes da chuva

Pelos campos varridos pelo vento, com as flores sem

caule,

Com suas velhas esperanças, folhas mortas e novos

amores...

Vaga como um sonho e exangue pela fadiga das horas

passadas.

(Sussurros rastejarão pela crescente escuridão...

E o tumulto se extinguirá sobre as árvores.)

Agora, a noite

Rasga em seu seio molhado a borrifada blusa

Do dia, desliza pelas colinas sonhadoras, brilhantes

de lágrimas,

Para cobrir com seus cabelos o estranho verde...

Amor da escuridão... Amor pelo que brilha depois;

Quietas, as árvores, até os últimos ramos de suas

copas... serenas...

Leves rajadas de vento, e ao longe um riso que se

extingue...


Notas

*Os longos soluços/ Dos violinos/ Do outono/ Magoam meu coração/ Com langor/ Monótono. (N. do E.)

**Sufocando/ E pálido/ Quando a hora soa/ Recordo/ Os dias passados/ E choro. (N. do E.)


4
O sacrifício desdenhoso

Atlantic City. Amory caminhava ao entardecer pelo deck de madeira, no embalo eterno das ondas, respirando a fragrância quase melancólica do vento salgado. O mar, pensava, armazenara suas lembranças de um modo mais profundo do que a terra incrédula. Parecia ainda sussurrar recordações de galeras nórdicas sulcando as águas do mundo sob bandeiras de piratas; recordações de couraçados ingleses, baluartes cinzentos de civilização, navegando em meio à névoa, num dia escuro de julho, pelo Mar do Norte.

– Amory Blaine!

Amory olhou para a rua abaixo. Um automóvel esporte acabara de parar, e um rosto alegre e familiar apareceu atrás do volante.

– Desça daí, goopher!* – exclamou Alec.

Amory retribuiu o cumprimento e, descendo um lance de degraus de madeira, aproximou-se do carro. Ele e Alec vinham se encontrando intermitentemente, mas Rosalind se erguera para sempre entre ambos como uma barreira. Amory lamentava que isso acontecesse; detestava a ideia de perder a companhia de Alec.

– Sr. Blaine, apresento-lhe a Srta. Waterson, a Srta. Wayne e o Sr. Tully.

– Prazer em conhecê-los.

– Amory – disse com exuberância Alec –, se você entrar aqui conosco, nós o levaremos a um recanto isolado e lhe daremos uma pequena dose de Bourbon.

Amory refletiu por um segundo.

– É uma boa ideia.

– Então entre... Afaste-se um pouco, Jill, e Amory vai lhe dar o melhor dos seus sorrisos.

Amory espremeu-se no assento de trás, ao lado de uma loura afetada, de lábios muito vermelhos.

– Olá, Doug Fairbanks – disse ela, com ar petulante. – Caminhava como exercício ou estava à procura de companhia?

– Eu estava contando as ondas – respondeu, com ar grave, Amory. – Vou me dedicar à estatística.

– Não brinque comigo, Doug.

Ao chegarem a uma rua transversal pouco frequentada, Alec parou o carro em meio a profundas sombras.

– O que você está fazendo aqui nesses dias frios, Amory? – indagou enquanto procurava uma garrafa de Bourbon embaixo do tapete de pele.

Amory fugiu à pergunta. Na verdade, fora para a costa sem motivo algum.

– Você se lembra daquelas nossas festas durante o segundo ano? – perguntou, por sua vez, Amory.

– Se me lembro! Quando dormimos nos pavilhões em Asbury Park...

– Deus do céu, Alec. É difícil pensar que Jesse, Dick e Kerry estão mortos.

Alec sentiu um arrepio.

– Não fale nisso. Para que eu fique deprimido, já bastam esses horríveis dias de outono.

Jill parecia concordar.

– Seja como for, o nosso Doug aqui está um tanto melancólico – comentou ela. – Diga a ele para beber um bom trago, pois isso, hoje em dia, é coisa boa e escassa.

– O que realmente desejo perguntar, Amory, é onde você está...

– Ora essa! Em Nova York, acho...

– Refiro-me a esta noite, porque, se ainda não tomou um quarto, talvez pudesse me tirar de uma dificuldade.

– Com prazer.

– Como vê, Tully e eu temos dois quartos, com banheiro comum, no Hotel Ranier, e ele precisa voltar para Nova York. Não quero ser obrigado a me mudar. A questão é: você quer ocupar um dos quartos?

Amory respondeu que sim, se pudesse ocupá-lo imediatamente.

– Vai encontrar a chave no balcão da recepção; os quartos estão em meu nome.

Declinando da condução e do novo estímulo alcoólico, Amory deixou o automóvel e caminhou de volta, pelo deck de madeira, rumo ao hotel.

Estava de novo num torvelinho, diante de um profundo e letárgico sorvedouro, sem desejo de trabalhar, escrever, amar ou dedicar-se a dissipações. Pela primeira vez na vida quase desejava que a morte envolvesse sua geração, acabando com suas mesquinhas febres, suas lutas e suas exultações. Sua juventude jamais lhe parecera tão extinta como agora, no contraste existente entre a extrema solidão de sua visita e a ruidosa e alegre festa de quatro anos antes. Coisas que constituíram os mais simples lugares-comuns de sua vida, dormir bem, uma sensação de beleza em tudo que o cercava, todos os desejos se haviam dissipado, e as lacunas deixadas eram preenchidas apenas pela grande inquietude de sua desilusão.

“Para prender um homem, a mulher tem de apelar para o que de pior existe nele.” Essa frase era a tese de quase todas as suas noites de insônia, como, sentia, iria ser aquela. Sua mente já havia mesmo começado a explorar algumas variações do assunto. Paixão incansável, ciúme feroz, desejo de possuir e esmagar... eis o que restava de todo o seu amor por Rosalind! O que lhe restava como pagamento pela perda de sua juventude: amargo calomelano sob a tênue camada de açúcar da exaltação amorosa.

Em seu quarto, despiu-se e enrolou-se nos cobertores, a fim de expulsar o ar gelado de outubro enquanto dormitava numa poltrona diante da janela aberta.

Lembrou-se de um poema que lera meses antes:

Oh, constante e velho coração que tanto sofreste por mim,
Desperdiço a minha vida a singrar os mares...

No entanto, não tinha sensação de desperdício algum, nenhuma sensação da esperança presente que o desperdício implicava...

– Rosalind! Rosalind!

Murmurou o nome baixinho na semiobscuridade; até o quarto parecia impregnado de sua presença; a brisa marinha enchia o ar de umidade; a orla da lua queimava o céu e tornava as cortinas leves e fantasmagóricas. Amory adormeceu.

Quando despertou, era muito tarde e tudo estava em silêncio. O cobertor escorregara-lhe do ombro; ele tocou a pele e sentiu-a úmida e fria.

De repente, percebeu um murmúrio tenso, a menos de 3 metros de distância.

Ficou hirto.

– Não faça barulho! – dizia uma voz, que reconheceu como sendo a de Alec. – Jill, está me ouvindo?

– Estou... – respondeu a jovem, num sussurro muito baixo, muito assustado.

Estavam no banheiro.

Depois, ouviu sons mais fortes, vindos de alguma parte do corredor externo. Eram homens que falavam em voz baixa; ouviam-se ruídos abafados de passos. Amory jogou as cobertas para longe e aproximou-se da porta do banheiro.

– Meu Deus! – chegou até ele, de novo, a voz da moça. – Você vai ter de deixá-los entrar.

– Silêncio!

Súbito, alguém começou a bater firme e insistentemente na porta do pequeno vestíbulo que dava para o quarto de Amory, ao mesmo tempo em que Alec saía do banheiro, seguido da garota de lábios pintados. Ambos vestiam pijamas.

– Amory! – chamou-o, num sussurro, uma voz ansiosa.

– Qual é o problema?

– São os detetives do hotel. Meu Deus, Amory... eles tentando dar um flagrante...

– Bem, é melhor deixá-los entrar.

– Você não entende. Eles podem me processar baseados na Lei Mann...

A moça seguia-o lentamente, uma figura inteiramente infeliz, patética, em meio à escuridão.

Amory tentou arquitetar algum plano rapidamente.

– Faça um grande barulho e deixe-os entrar no seu quarto – sugeriu, ansioso. – Enquanto isso, vou fazer com que ela saia por essa porta.

– Eles também estão aí. Vão vigiar a sua porta.

– Você não pode dar um nome falso?

– Impossível. Eu me registrei usando o meu próprio nome. Além disso, eles vão anotar a placa do carro.

– Diga a eles que vocês são casados.

– Jill me disse que um dos detetives do hotel a conhece.

A jovem aproximara-se furtivamente da cama e caíra sobre ela – e lá ficara, com ar miserável, atenta às batidas que aumentavam gradualmente de intensidade até transformarem-se em murros. Chegou, então, até eles, uma voz masculina, irada e imperativa:

– Abram ou poremos a porta abaixo!

No silêncio depois que a voz cessou, Amory percebeu que havia outras coisas no quarto além de gente... Por cima e em torno da figura encolhida na cama, pairava uma aura, como uma teia de aranha formada de raios de luar, mas de um matiz de vinho fraco, aguado, algo horroroso já se estendia difusamente sobre eles três... e junto à janela, entre as cortinas que se moviam, havia mais, algo impreciso, indiscernível, mas, não obstante, estranhamente familiar... Simultaneamente, duas situações se apresentaram, lado a lado, diante de Amory; tudo o que se passou em sua mente, porém, não ocupou mais do que dez segundos do tempo real.

O primeiro fato que brilhou, radiante, em sua compreensão, referia-se ao caráter grandemente impessoal do sacrifício; percebeu que o que chamamos amor e ódio, recompensa e castigo tinha tanto a ver com isso quanto o dia do mês. Recapitulou rapidamente a história de um sacrifício de que ouvira falar na faculdade. Um aluno trapaceara num exame, e seu companheiro de quarto, num arroubo de sentimentalismo, assumira toda a culpa do que ocorrera... Por causa disso, todo o futuro do inocente parecia envolto num manto de pesar e malogro, ao que se acrescentava ainda a ingratidão do verdadeiro culpado. Mas ele finalmente reencontrou a própria vida, pois vieram à luz os fatos reais. Na ocasião, essa história não só intrigou como preocupou Amory. Agora ele compreendia a verdade: o sacrifício não era uma compra da liberdade. Era como um importante cargo eletivo, uma herança de poder – e para certas pessoas, em determinadas ocasiões, um luxo essencial, que implicava não uma garantia, mas uma responsabilidade, não uma segurança, mas um risco infinito. O próprio impulso momentâneo poderia levá-lo à ruína; o passar da onda emocional que tornava isso possível bem poderia colocá-lo para sempre numa árida ilha de desespero... Amory sabia que depois Alec o odiaria secretamente por haver feito tanto por ele...

Tudo isso se desenrolou em sua frente como um pergaminho, enquanto alheias a ele e espetando-o especulativamente ali estavam aquelas duas forças atentas, imóveis: a luminosa teia de aranha que envolvia a moça e aquela coisa familiar junto à janela.

O sacrifício, por sua própria natureza, era arrogante e impessoal; todo sacrifício devia ser eternamente arrogante.

Não choreis por mim, mas por vossos filhos.

Seria assim, de certo modo, pensou Amory, que Deus me falaria.

Sentiu-se tomado de súbita alegria e, de repente, como um rosto num filme, a aura sobre a cama dissipou-se; a sombra dinâmica junto à janela, tão perto dele quanto poderia estar, permaneceu ainda ali um instante, até que o vento pareceu arrancá-la subitamente do quarto. Apertou as próprias mãos em rápido arroubo... E os dez segundos passaram...

– Faça o que lhe digo, Alec... faça o que lhe digo. Está me ouvindo?

Alec fitava-o, aparvalhado, o rosto refletindo toda a angústia que o assaltava.

– Você tem família – prosseguiu lentamente Amory. – Você tem família e é importante que se livre disso. Está me ouvindo? – indagou, repetindo claramente o que já dissera. – Está me ouvindo?

– Estou... – respondeu Alec, a voz estranhamente tensa, sem despregar um segundo sequer os olhos de Amory.

– Alec, você vai se deitar aqui. Se alguém entrar, finja-se de bêbado. Faça o que lhe digo, pois, se não o fizer, eu provavelmente vou matá-lo.

Ficaram ainda um momento olhando um para o outro. Depois, Amory dirigiu-se rapidamente à escrivaninha, apanhou a carteira e fez um sinal peremptório para a jovem. Ouviu dos lábios de Alec uma palavra que lhe soou como “penitenciária”, e em seguida ele e Jill entraram no banheiro, fechando a porta atrás de si.

– Você está aqui comigo – disse-lhe, com ar severo. – Esteve toda a noite em minha companhia.

Ela fez um aceno afirmativo com a cabeça, abafando um gritinho.

Num segundo, abriu a porta do outro quarto e três homens entraram. Houve uma imediata inundação de luz elétrica, e ele permaneceu parado, piscando.

– Você se meteu numa brincadeira demasiado perigosa meu jovem!

Amory riu.

– E daí?

O chefe do trio fez um sinal autoritário para um homem corpulento, de roupa axadrezada.

– Muito bem, Olson.

– Eu bem que lhe disse, Sr. O’May – disse Olson, acenando com a cabeça.

Os dois outros lançaram um olhar curioso a suas vítimas e depois se retiraram, batendo a porta com raiva.

O homem corpulento fitou Amory com ar desdenhoso.

– Nunca ouviu falar na Lei Mann? Vir até aqui na companhia dela – e indicou a moça com o polegar –, no seu carro com placa de Nova York... Trazê-la a um hotel como este.

Balançava a cabeça, dando a entender que procurara defender Amory, mas que agora nada podia fazer.

– E então? – indagou Amory, um tanto impaciente. – O que quer que façamos?

– Vistam-se depressa... e diga à sua amiguinha para não fazer estardalhaço.

Jill soluçava ruidosamente sobre a cama, mas ao ouvir essas palavras parou de chorar e, amuada, apanhou suas coisas e retirou-se para o banheiro. Enquanto colocava as roupas de Alec, Amory achou que sua atitude diante daquela situação era agradavelmente jocosa. A virtude ofendida do homem corpulento dava-lhe vontade de rir.

– Há mais alguém aqui? – perguntou Olson, procurando parecer perspicaz e inquiridor.

– Há o sujeito que reservou os quartos – respondeu Amory displicentemente. – Mas está bêbedo como um gambá. Está dormindo desde as seis.

– Depois vou dar uma olhada.

– Como foi que o senhor descobriu? – perguntou-lhe, curioso, Amory.

– O empregado da noite o viu subir com essa mulher.

Amory moveu a cabeça com ar de quem compreendia. Nesse instante, Jill saiu do banheiro, já completamente vestida, embora revelasse um certo desalinho.

– Agora, vejamos... – começou Olson, tirando do bolso um caderno de notas. – Quero os seus nomes verdadeiros... Nada de John Smith ou Mary Brown.

– Um momento! – disse Amory, tranquilo. – Vamos parar com toda essa encenação. Fomos apenas apanhados, nada mais.

Olson dirigiu-lhe um olhar feroz.

– Nome? – indagou, ríspido.

Amory deu-lhe seu nome e endereço em Nova York.

– E a moça?

– Srta. Jill...

– Vamos deixar de lado essas rimas de jardim de infância! – exclamou, indignado, Olson. – Como é o seu nome? Sarah Murphy? Minnie Jackson?

– Oh, meu Deus! – disse a jovem, cobrindo com as mãos o rosto manchado de lágrimas. – Não quero que a minha mãe saiba. Não quero que a minha mãe saiba.

– Desembuche!

– Cale-se! – gritou Amory, voltando-se para Olson.

Breve pausa.

– Stella Robbins – disse ela finalmente. – Posta Restante, Rugway, New Hampshire.

Olson fechou bruscamente o caderno de notas e fitou-os atentamente.

– Este hotel poderia enviar as provas à polícia e você iria parar na penitenciária por ter levado uma moça de um estado a outro com propósitos imorais. – Fez uma pausa para que a majestade de suas palavras penetrasse bem no espírito de ambos. – Mas... o hotel vai deixá-los ir em paz.

– Não querem que a coisa saia nos jornais! – exclamou, feroz, Jill. – Deixar-nos ir em paz... Essa é boa!

Um grande alívio envolveu Amory. Percebeu que estava a salvo, e só então se deu conta devidamente da dimensão do problema em que poderia ter se envolvido.

– Existe, porém – continuou Olson –, uma associação de proteção mútua entre os hotéis. Houve muitos casos desses ultimamente e fizemos um acordo com os jornais, de modo que vocês vão ter um pouco de publicidade gratuita. Nada do nome do hotel, naturalmente, mas apenas algumas linhas dizendo que vocês se meteram numa pequena complicação em Atlantic City. Entendeu?

– Entendi.

– Você está se livrando muito facilmente dessa encrenca... mas...

– Vamos! – interrompeu vivamente Amory. – Vamos dar o fora daqui. Não precisamos de sermões.

Olson atravessou o banheiro e deu uma olhada apressada no vulto imóvel de Alec. Depois apagou a luz e fez um sinal para que eles o seguissem. Ao entrarem no elevador, Amory pensou numa pequena fanfarronice... e cedeu finalmente a ela.

Estendeu o braço e deu uma palmadinha no braço de Olson.

– O senhor se importaria de tirar o chapéu? Há uma dama no elevador.

A contragosto, Olson tirou o chapéu. Transcorreram uns dois minutos um tanto contrafeitos, sob as luzes do saguão, onde alguns hóspedes retardatários fitaram-nos com curiosidade. Uma jovem vestida espalhafatosamente... Um rapaz bem-apessoado, o queixo erguido com arrogância... A inferência era bastante óbvia. Depois, o frio de fora, onde o ar salgado era ainda mais fresco e vivo, nos primeiros prenúncios da manhã.

– Vocês podem tomar um daqueles táxis e dar o fora – disse Olson, apontando a sombra imprecisa de dois automóveis em cujo interior os motoristas provavelmente dormiam.

– Adeus – ajuntou Olson, procurando sugestivamente algo no bolso.

Como resposta, Amory deu apenas um riso desdenhoso e, tomando o braço da moça, afastou-se.

– Para onde você vai dizer ao chofer para nos levar? – indagou ela enquanto seguiam pela rua escura.

– Para a estação.

– Se aquele sujeito escrever para a minha mãe...

– Não vai escrever. Ninguém jamais terá conhecimento disso... exceto os nossos amigos e inimigos.

A alvorada rompia sobre o mar.

– Está ficando azul – comentou ela.

– Ainda bem – concordou Amory, em tom de crítica. Depois, pensando melhor: – Já é quase hora do café da manhã. Quer comer alguma coisa?

– Comida... – disse ela, com um riso alegre. – Foi por causa de comida que se estragou a festa. Às duas horas, pedimos que mandassem para o nosso quarto uma grande ceia. Alec não deu gorjeta para o garçom, e acho que foi por isso que o patife nos dedurou.

A depressão de Jill parecia ter-se dissipado mais depressa do que as últimas sombras da noite.

– Permita-me lhe dizer uma coisa – continuou ela enfaticamente. – Quando você quiser se entregar a essa espécie de divertimento, afaste-se das bebidas, e quando quiser embriagar-se, afaste-se dos quartos de dormir.

– Vou me lembrar disso.

Deu umas batidas no vidro e o táxi parou à porta de um restaurante que permanecia aberto a noite toda.

– Alec é muito seu amigo? – perguntou ela, quando se empoleiraram em dois bancos altos, apoiando os cotovelos no balcão encardido.

– Costumava ser. Provavelmente, não será mais, e nunca vai compreender por quê.

– Foi meio maluco isso de você arcar com toda a culpa. Ele é assim tão importante? Mais importante do que você?

Amory riu.

– Isso ainda vamos descobrir – respondeu. – Eis a questão.

O desmoronamento de vários pilares

Dois dias depois, de volta a Nova York, Amory encontrou num jornal o que vinha procurando: doze linhas que anunciavam, a quem pudesse interessar, que o Sr. Amory Blaine, que “deu o seu endereço como sendo” etc., fora convidado a retirar-se de seu hotel em Atlantic City por estar entretendo em seu quarto uma dama que não era sua esposa.

Então, teve um sobressalto e seus dedos tremeram, pois logo acima havia um longo parágrafo que começava com as seguintes palavras:

“O Sr. e Sra. Leland R. Connage anunciam o noivado de sua filha Rosalind com o Sr. J. Dawson Ryder, de Hartford, Connecticut...”

Largou o jornal e deixou-se cair sobre a cama, com uma assustadora sensação de frio na boca do estômago. Ela se fora, afinal, para sempre. Até então, alimentara inconscientemente, no fundo de seu coração, a esperança de que algum dia ela precisasse dele e o mandasse chamar, dizendo-lhe aos prantos que tudo não passara de um equívoco, que seu coração só sofria pela dor que ele lhe causara. Nunca mais poderia dar-se nem mesmo ao sombrio luxo de desejá-la... não aquela Rosalind, mais dura, mais velha, nem a mulher derrotada, acabada que sua imaginação colocava às portas dos 40 anos... Amory desejara-lhe a juventude, o fresco esplendor de sua mente e de seu corpo, aquilo que ela estava agora vendendo para sempre. No que dizia respeito a ele, Rosalind estava morta.

No dia seguinte, chegou uma carta concisa e polida de seu advogado, o Sr. Barton, de Chicago, comunicando-lhe que já que mais três companhias de bondes tinham ido parar nas mãos de depositários de massas falidas, ele não deveria esperar no momento qualquer remessa de numerário. Como se tudo isso não bastasse, numa noite de domingo recebeu, desorientado, um telegrama dando-lhe ciência da morte súbita de monsenhor Darcy, ocorrida na Filadélfia, cinco dias antes.

Compreendeu, então, o que percebera entre as cortinas do quarto em Atlantic City.


Nota

*Roedor americano da família dos Geomiídeos, semelhante a uma ratazana. (N. do T.)


5
O egocêntrico converte-se em personagem

Uma braça mergulhado no sono aqui estou

Com meus velhos desejos, antes refreados,

A erguer para a vida o meu clamor,

Enquanto negras moscas saem pela porta acinzentada;

E, assim, em busca de novas crenças,

De novo procuro assertivos dias...

Mas eis aqui a velha monotonia:

Infindáveis avenidas de chuva.

Oh, pudesse eu tornar a erguer-me! Pudesse eu

Expulsar o calor daquele velho vinho,

Ver a nova manhã encher o céu

De maravilhosas torres, uma a uma;

Encontrar em cada miragem do amplo espaço

Um símbolo, e não de novo um sonho...

Mas eis aqui a velha monotonia:

Infindáveis avenidas de chuva.

Abrigado debaixo da marquise de vidro de um cinema, Amory observava as primeiras grandes gotas de chuva tamborilarem e converterem-se em manchas escuras sobre a calçada. O ar tornou-se cinzento, opalescente; uma luz solitária recortou subitamente uma janela do outro lado da rua; depois outra se acendeu; decorrido um momento, centenas de janelas iluminadas tremeluziam diante de seus olhos. Sob seus pés, uma espessa claraboia de vidro, guarnecida de retângulos de ferro, fez-se amarela; na rua, as luzes dos táxis lançavam cintilantes feixes luminosos sobre o asfalto já negro. A indesejável chuva de novembro roubava perversamente a última hora do dia, empenhando-a a essa antiga receptadora, a noite.

O silêncio no cinema atrás dele terminou com um curioso estalido, seguido dos ruídos de uma multidão que se erguia, misturada ao burburinho de vozes. Terminara a matinê.

Ele ficou de lado, empurrado um pouco para a chuva, a fim de dar passagem à multidão. Um rapazinho saiu correndo, farejou o ar úmido e levantou a gola do paletó; saíram três ou quatro casais muito apressados; saiu uma nova leva dispersa de gente, cujos olhos fitavam, invariavelmente, primeiro, a rua molhada, depois, o ar cheio de chuva e, por último, o céu sombrio; finalmente, saiu uma densa e vagarosa massa humana, que o deprimiu com seu forte odor, constituído do cheiro de fumo dos homens e da fétida sensualidade do pó de arroz das mulheres. Depois da espessa multidão, saíram novos grupos esparsos; em seguida, uma meia dúzia de pessoas dispersas, seguidas de um homem de muletas – e, finalmente, o ruído matracolejante das cadeiras que se dobravam no interior do cinema anunciou que os lanterninhas estavam em atividade.

Nova York parecia que estava não tanto despertando, mas virando na cama. Homens pálidos passavam apressados, segurando as golas dos paletós levantadas; um grande enxame de moças cansadas, tagarelas, saiu de um grande estabelecimento comercial e passou por ele em meio a risos estridentes, três debaixo de cada guarda-chuva; um pelotão de policiais desfilou à sua frente, já miraculosamente protegidos por capas impermeáveis.

A chuva dava a Amory uma sensação de isolamento, e os numerosos e desagradáveis aspectos da vida citadina sem dinheiro ocorreram-lhe ao espírito em ameaçadora sucessão. Havia o medonho, o fedorento aperto do metrô... criaturas que se lançavam sobre as pessoas, desferindo olhares ferozes e segurando-as pelo braço como esses indivíduos monótonos e maçantes que fazem questão de nos contar a última anedota; havia as pessoas rabugentas, sempre preocupadas em evitar que os outros se encostassem nelas; um homem decidido a não ceder seu lugar a uma mulher e odiando-a por isso; a mulher odiando-o por ele não o fazer; na pior das hipóteses, uma horrível fantasmagoria de hálitos humanos, de roupas velhas sobre corpos humanos e o cheiro dos alimentos que os homens comiam, bons sujeitos, afinal de contas, sentindo muito calor ou muito frio, cansados, preocupados.

Imaginou os aposentos em que aquela gente vivia, onde os desenhos do papel de parede eram constituídos de uma pesada repetição de girassóis em fundo verde e amarelo; onde havia banheiras de zinco, sombrios saguões e pátios sem plantas, frios, no fundo dos edifícios; onde até o amor tinha forma de sedução, um sórdido assassinato atrás da esquina, maternidade ilícita no apartamento de cima. E havia sempre o abafamento econômico do inverno portas adentro, e os longos verões, pesadelos de transpiração entre paredes envolventes e pegajosas... restaurantes sujos, nos quais pessoas descuidadas, cansadas, serviam-se de açúcar com as próprias colheres usadas, deixando duras manchas marrons no açucareiro.

A coisa não era tão má onde havia apenas homens ou apenas mulheres, mas quando estavam tão odiosamente amontoados que tudo se tornava lamentável. Era uma pena que as mulheres não se importassem que os homens as vissem cansadas e pobres; era um certo desgosto o que os homens sentiam pelas mulheres cansadas e pobres. Aquilo era mais sujo do que qualquer campo de batalha que ele já vira, mais duro de contemplar que qualquer provação feita de lama, suor e perigo; era uma atmosfera na qual o nascimento, o casamento e a morte eram coisas repugnantes, secretas.

Lembrou-se do dia em que um mensageiro entrou no metrô carregando uma grande coroa mortuária de flores frescas... de como sua fragrância purificou subitamente o ar, dando aos passageiros uma momentânea animação.

“Detesto gente pobre”, pensou de repente Amory. “Detesto-as pela sua pobreza. Pode ser que a pobreza já tenha sido bela, mas hoje em dia é lamentável. É a coisa mais feia do mundo. No fundo, é mais limpo ser corrupto e rico do que inocente e pobre.” Parecia que tornava a ver a figura cuja importância certa vez o impressionara: um jovem bem-vestido olhando através da janela de um clube na Quinta Avenida, dizendo algo ao companheiro com ar de extrema aversão. Provavelmente, pensou Amory, o que ele disse foi: “Santo Deus! Como as criaturas são horríveis!”

Jamais em sua vida Amory pensara nos pobres. Refletia, cinicamente, que lhe faltava por completo qualquer sentido de compaixão humana. O. Henry encontrara nessa gente romance, páthos, amor, ódio... Amory via apenas grosseria, imundície física e estupidez. Jamais se acusou por isso; jamais se censurou por experimentar sentimentos que lhe eram naturais e sinceros. Aceitava todas as suas reações como parte dele próprio, imutável, amoral. Aquele problema da pobreza, modificado, ampliado, ligado a alguma atitude mais elevada e mais digna, talvez viesse a ser mesmo, algum dia, seu problema; no momento, porém, despertava-lhe somente profunda aversão.

Caminhou pela Quinta Avenida, desviando-se da negra e cega ameaça dos guarda-chuvas e, detendo-se diante do Delmonico’s, fez sinal para um ônibus. Abotoando bem o paletó, subiu para o teto, onde viajou, solitário, em meio à chuva fina, persistente, sendo trazido à realidade, de quando em quando, pela fria umidade em seu rosto. Em algum lugar em sua mente começou uma conversa que ocupou, de certo modo, sua atenção. Não era composta de duas vozes, mas de apenas uma, que agia como interpeladora e respondedora:

PERGUNTA: – Bem, qual é a situação?

RESPOSTA: – A de que disponho de apenas cerca de 24 dólares.

P.: – Você tem a sua propriedade de Lake Geneva.

R.: – Mas pretendo conservá-la.

P.: – E conseguirá viver?

R.: – Não consigo imaginar que isso não me seja possível. Há quem ganhe dinheiro escrevendo livros, e verifiquei que sempre posso fazer o que as pessoas fazem neles. Na verdade, são as únicas coisas que sei fazer.

P.: – Seja claro.

R.: – Não sei o que vou fazer... nem isso me desperta grande curiosidade. Amanhã, vou deixar Nova York para sempre. É uma cidade má quando a gente não está por cima.

P.: – Deseja muito dinheiro?

R.: – Não. Tenho apenas medo de ser pobre.

P.: – Muito medo?

R.: – Não. Apenas um passivo receio.

P.: – Para onde você se dirige?

R.: – Não o pergunte a mim!

P.: – Você não se importa?

R.: – Muito. Não pretendo me suicidar moralmente.

P.: – E não sobrou nada digno do seu interesse?

R.: – Nada. Não tenho mais nenhuma virtude a perder. Assim como um refrigerador dispersa calor, assim também durante a adolescência e a juventude dispersamos as calorias da virtude. Isso é o que se chama talento inventivo.

P.: – Eis aí uma ideia interessante.

R.: – É por isso que um “bom sujeito que se extravia” atrai as pessoas. Elas o cercam e literalmente se aquecem com as calorias de virtude que ele produz. Sarah faz um comentário nada sofisticado e os rostos que a cercam sorriem, afetadamente, de puro encanto... “Oh, como a pobrezinha é inocente!” Estão se aquecendo diante de sua virtude. Mas Sarah vê os sorrisos alvos e jamais torna a fazer tal comentário. Só que se sente um pouco mais fria depois disso.

P.: – Todas as suas calorias já se foram?

R.: – Todas. Estou começando a me aquecer na virtude dos outros.

P.: – Você é um sujeito corrupto?

R.: – Acho que sim. Não tenho certeza. Não tenho mais certeza alguma no que se refere ao bem e ao mal.

P.: – Isso, por si só, é um mau sinal?

R.: – Não necessariamente.

P.: – Qual seria o melhor teste de corrupção?

R.: – Tornarmo-nos realmente insinceros... Achar que não somos, afinal de contas, “sujeitos assim tão maus”, pensar que lamentamos a perda da própria juventude quando não se está fazendo outra coisa senão sentir inveja das delícias perdidas. A juventude é assim como se estivéssemos diante de um grande prato de doce. Os sentimentalistas pensam que gostariam de se encontrar no estado de pureza e simplicidade em que se encontravam antes de comer o doce. Mas estão enganados; apenas desejam o prazer de comer tudo de novo. A matrona não deseja reviver a sua juventude; deseja repetir a sua lua de mel. Eu não quero reviver a minha inocência. Quero o prazer de tornar a perdê-la.

P.: – Para onde você está se deixando levar?

Esse diálogo se misturou grotescamente com o estado de espírito que lhe era mais familiar: uma ridícula mistura de desejos, preocupações, impressões exteriores e reações físicas.

Rua 127... ou rua 137... O 20 e o 30 se parecem... Não, não se parecem tanto assim. Assento molhado... Estariam suas roupas absorvendo a umidade do assento ou o assento estava absorvendo o que havia de enxuto em suas roupas? Sentar no molhado dava apendicite, dizia a mãe de Froggy Parker. Bem, ele já tivera apendicite... “Vou mover uma ação contra a companhia de barcos a vapor, dissera Beatrice, mas o meu tio possui um quarto das ações...” Será que Beatrice fora para o céu? Provavelmente, não. Ele representava a imortalidade de Beatrice, bem como os casos de amor de numerosos homens já falecidos que certamente jamais haviam pensado nele... Se não apendicite, gripe talvez. O quê? Rua 120? Aquela devia ser a rua 112. Algo estava errado. Rosalind não era como Beatrice; Eleanor era como Beatrice, só que mais selvagem e mais cerebral. Os apartamentos ali eram caros, provavelmente 150 dólares por mês... talvez 200. Meu tio pagava apenas 100 dólares mensais por um casarão inteiro em Minneapolis. Pergunta: as escadas ficavam à esquerda ou à direita quando se entrava? De qualquer modo, lá onde eu morava, ficavam bem ao fundo e à esquerda. Que rio sujo... Preciso descer até lá e ver se é de fato sujo... Os rios franceses eram todos barrentos ou negros... assim como os rios do Sul. Vinte e quatro dólares significavam 408 doughnuts. Poderia viver de doughnuts por três meses e dormir no parque. Onde estaria Jill? Jill Bayne, Fayne, Sayne... Com os diabos! Dói-me o pescoço... Raio de banco incômodo! Nenhum desejo de dormir com Jill. O que Alec teria visto nela? Alec tinha mau gosto para mulheres; mas o seu era o que havia de mais apurado: Isabelle, Clara, Rosalind, Eleanor. Todas bem americanas. Eleanor seria, em beisebol, uma arremessadora, provavelmente canhota. Rosalind era uma jogadora de fora do quadrado, rebatedora maravilhosa... Clara ocuparia a primeira base, talvez. Como estaria agora o corpo de Humbird? Se ele, Amory, não tivesse sido um instrutor de baioneta, teria seguido para a frente de combate três meses antes – e provavelmente teria sido morto. Onde está a maldita campainha...

Os números das ruas em Riverside Drive estavam ocultos pela neblina e pelas árvores gotejantes, mas Amory conseguiu, em certo momento, ter um rápido vislumbre de um deles: rua 127. Saltou do ônibus e, sem destino certo, seguiu por uma calçada sinuosa e descendente, chegando até o rio, ou, mais particularmente, a um longo ancoradouro repleto de estaleiros de minúsculas embarcações: pequenas lanchas, canoas, botes e catraias. Dobrou para o norte, seguiu pela margem do rio, saltou uma pequena cerca de arame e encontrou-se num grande pátio em desordem, junto a um desembarcadouro. Viu-se cercado pelos cascos de muitos botes em várias fases de reparação; sentiu nas narinas o cheiro de serragem e de tinta, e o odor invariável e quase imperceptível do Hudson. Um homem aproximou-se dele, vindo da densa escuridão.

– Olá – cumprimentou-o Amory.

– Tem passe?

– Não. Isto aqui é particular?

– Este é o Hudson River Sporting and Yacht Club.

– Oh! Eu não sabia. Estou apenas descansando.

– Bem... – começou o homem, com ar de dúvida.

– Se quiser, eu vou embora.

O homem emitiu um ruído gutural neutro e seguiu seu caminho. Amory sentou-se num barco virado e inclinou-se, pensativo, para a frente, até pousar o queixo na mão.

– O infortúnio é capaz de me transformar num sujeito tremendamente mau – disse, lentamente.

Horas de depressão

Enquanto a chuva fina caía, Amory evocava inutilmente o curso de sua vida, todas as suas cintilantes e sórdidas superficialidades. Para começar, sentia-se ainda amedrontado – não mais fisicamente amedrontado, mas temeroso das pessoas e dos preconceitos, da pobreza e da monotonia. No entanto, perguntava a si mesmo, no fundo de seu amargurado coração, se afinal de contas era pior do que seus semelhantes. Sabia que poderia ser levado, por pura sofisticação, a dizer que sua própria franqueza era apenas resultado das circunstâncias e do ambiente; que, com frequência, quando se voltava furioso contra si mesmo, acusando-se de egoísmo, algo lhe sussurrava lisonjeiramente: “Não. Talento!” Aquilo era uma manifestação de medo, aquela voz que lhe murmurava que ele não podia ser, ao mesmo tempo, grande e bom, que o talento era a combinação exata daquelas ranhuras e daqueles desvios de sua mente, que qualquer disciplina dobraria seu espírito, levando-o à mediocridade. Provavelmente, mais que qualquer de seus vícios concretos ou malogros, Amory desprezava sua própria personalidade: detestava saber que no dia seguinte e nos milhares de dias subsequentes ficara pomposamente inchado diante de um elogio e amuado diante de uma palavra desfavorável como um músico de terceira classe ou um ator de primeira classe. Envergonhava-o o fato de que as pessoas muito simples e honestas, em geral, não confiavam nele; de ter sido, não raro, cruel para com os que anulavam suas personalidades diante dele – várias moças e um ou outro rapaz sobre os quais exerceu, durante os anos de faculdade, má influência; pessoas que o seguiram, aqui e acolá, em aventuras intelectuais das quais somente ele acabara por sair incólume.

Habitualmente, em noites como aquela – que ultimamente se sucediam com frequência –, ele conseguia fugir àquela devoradora introspecção, pensando em crianças e em suas infinitas possibilidades... Ficava atento e ouvia o despertar sobressaltado de um bebê na casa do outro lado da rua, emprestando um leve choramingar à quietude da noite. Rápido como um corisco, afastava-se, perguntando a si mesmo, com um leve toque de pânico, se algo de seu soturno desespero não teria levado um pouco de escuridão àquela minúscula alma. Estremecia. E se algum dia houvesse um desequilíbrio na balança e ele se tornasse algo que assustasse as crianças e penetrasse nos quartos, estabelecendo uma vaga comunhão com aqueles fantasmas que sussurravam sombrios segredos ao louco daquele negro continente existente na lua?

Amory esboçou um ligeiro sorriso.

– Você anda muito ensimesmado – ouviu alguém dizer.

E ainda:

– Mexa-se e dedique-se a algum trabalho de verdade...

– Deixe as preocupações de lado...

Imaginou um futuro e um possível comentário de sua parte:

– Sim... fui talvez um egoísta na juventude, mas logo descobri que pensar demasiado em mim mesmo me tornava mórbido.

SENTIU, DE REPENTE, um esmagador desejo de deixar-se ir para o diabo... Não violentamente, como competia a um cavalheiro, mas mergulhar segura e sensualmente na obscuridade. Imaginou-se numa casa de adobe no México, meio reclinado num divã recoberto com uma manta, os dedos esguios, artísticos, segurando um cigarro, ouvindo, dedilhados em guitarras, os melancólicos acordes de uma velha endecha de Castela, enquanto uma jovem de tez azeitonada e lábios carminados lhe acariciava os cabelos. Lá poderia viver uma estranha litania, liberto do bem e do mal e da perseguição do céu e de todos os deuses (exceto do exótico Deus mexicano, que era, ele próprio, bastante condescendente e muito inclinado a fragrâncias orientais), liberto do sucesso, da esperança e da pobreza e entregue ao abismo das longas indulgências que conduziam, no fim das contas, apenas ao lago artificial da morte.

Havia tantos lugares onde era possível apodrecer agradavelmente: Port Said, Xangai, partes do Turquestão, Constantinopla, Mares do Sul – todos, terras de músicas tristes e obsedantes, e de muitos odores, onde a luxúria podia ser um modo e uma expressão de vida, onde as sombras dos céus noturnos e dos crepúsculos pareciam refletir apenas apaixonados estados de alma: cores de lábios e de papoulas.

Ainda extirpando ervas daninhas

Em outros tempos, ele conseguia farejar miraculosamente o mal, como um cavalo que percebe, à noite, uma ponte quebrada, mas o homem que caminhava com estranhas pisadas pelo quarto de Phoebe se reduzira à aura que pairava sobre Jill. Seu instinto percebeu o fedor da pobreza, mas já não investigava os males mais profundos do orgulho e da sensualidade.

Não mais existiam homens sábios; não existiam mais heróis; Burne Holiday desaparecera como se jamais tivesse vivido; monsenhor Darcy estava morto. Amory crescera aferrado a milhares de livros, a milhares de mentiras; ouvira avidamente criaturas que fingiam saber, mas que nada sabiam. Os devaneios místicos dos santos, que antes o enchiam de respeitoso temor nas horas mortas da noite, agora lhe causavam vaga repugnância. Os Byrons e os Brookes, que do topo de montanhas haviam desafiado a vida, não eram, no fim, senão flaneurs e poseurs, e, na melhor das hipóteses, sombras enganadoras da coragem em busca da substância da sabedoria. O cerimonial de sua desilusão adquiriu a forma de um desfile, velho como o mundo, de profetas, atenienses, mártires, santos, cientistas, Don Juans, jesuítas, puritanos, Faustos, poetas, pacifistas; como colegiais em seus trajes característicos, desfilavam diante dele, enquanto seus sonhos, suas personalidades, suas crenças, iam, por sua vez, lançando luzes coloridas em sua alma; cada qual procurara exprimir a glória da vida e a tremenda importância do homem; cada qual se jactava de sincronizar em suas próprias e vacilantes generalidades o que ocorrera antes; cada qual dependia, afinal de contas, do cenário já existente e das convenções do teatro, o que significa que o homem, em sua ânsia de fé, nutre seu espírito com os alimentos mais convenientes que tem à mão.

As mulheres... de quem ele tanto esperava! As mulheres, cuja beleza ele esperava transmudar em expressões de arte, cujos insondáveis instintos, maravilhosamente incoerentes e mudos, ele pensara perpetuar em termos de experiência, se haviam convertido simplesmente em consagradoras da posteridade delas mesmas. Isabelle, Clara, Rosalind, Eleanor foram todas afastadas, por sua própria beleza – em torno da qual havia enxames de homens –, da possibilidade de contribuir para sua vida com outra coisa que não um coração enfermo e uma página de palavras confusas.

Amory baseava sua perda de fé na ajuda de outrem, em vários e lacrimosos silogismos. Reconhecendo que sua geração, embora ferida e dizimada por aquela guerra vitoriana, era a herdeira do progresso; deixando de lado mesquinhas diferenças de conclusões que, embora pudessem ocasionalmente causar a morte de vários milhões de jovens, talvez pudessem ser explicadas; supondo que, afinal de contas, Bernard Shaw e Bernhardi, Bonar Law e Bethmann-Hollweg eram herdeiros mútuos do progresso, quanto mais não fosse por se mostrarem contra a perseguição às bruxas; pondo de lado as antíteses e aproximando individualmente esses homens, que pareciam ser líderes, causavam-lhe aversão as discrepâncias e contradições existentes nesses próprios homens.

Havia, por exemplo, Thornton Hancock, respeitado por meio mundo intelectual como uma autoridade em assuntos referentes à vida; um homem que testara e acreditava no código sob o qual vivia um educador de educadores, um conselheiro de presidentes – e, no entanto, Amory sabia que esse homem havia, em seu coração, se voltado para um sacerdote de outra religião.

E monsenhor Darcy, sobre quem pairava um chapéu cardinalício, tinha momentos de estranha e horrível insegurança – algo inexplicável numa religião que explicava até as descrenças segundo sua própria fé: se duvidávamos da existência do demônio, era o próprio demônio que fazia com que duvidássemos de sua existência. Amory vira monsenhor Darcy frequentar a casa de obstinados filisteus, ler furiosamente novelas populares, saturar-se ele próprio de rotina a fim de escapar a esse horror.

E esse sacerdote, um pouco mais sábio, um pouco mais puro, não era, Amory bem o sabia, essencialmente mais velho que ele.

Amory estava só; escapara de uma pequena prisão e penetrara num grande labirinto. Encontrava-se onde estava Goethe quando começou Fausto; onde se encontrava Conrad ao escrever Almayer’s Folly (A loucura de Almayer).

Amory disse a si mesmo que havia no fundo duas espécies de pessoas que, devido a uma clareza de espírito natural ou à desilusão, deixavam a prisão e procuravam o labirinto. Havia homens, como Wells e Platão, que possuíam, meio inconscientemente, uma estranha e oculta ortodoxia, e aceitavam para si somente o que poderia ser aceito por todos os homens – românticos incuráveis que, apesar de todos os seus esforços, não conseguiam penetrar no labirinto como almas completas; havia, por outro lado, personalidades pioneiras e penetrantes como punhais, como Samuel Butler, Renan, Voltaire, que progrediam muito mais lentamente e que no fim, às vezes, chegavam muito mais longe, não na direção diretamente pessimista da filosofia especulativa, mas no que se referia à tentativa eterna de atribuir à vida um valor positivo...

Amory se deteve. Começava, pela primeira vez na vida, a desconfiar vivamente de todas as generalidades e de todos os epigramas. Estes eram demasiado fáceis, demasiado perigosos para a mente do público. No entanto, todas as ideias geralmente chegavam ao público, após trinta anos, da seguinte forma: Benson e Chesterton haviam popularizado Huysmans e Newman; Shaw açucarara Nietzsche, Ibsen e Schopenhauer. O homem da rua ouvia as conclusões dos gênios mortos por meio de hábeis paradoxos e epigramas didáticos de terceiros.

A vida era uma trapalhada dos diabos... um jogo de rúgbi com todos os jogadores off side e o juiz expulso do campo, todos gritando que o juiz estaria do seu lado...

O progresso era um labirinto... Pessoas arremetendo cegamente e depois recuando alucinadamente, bradando que haviam encontrado... o rei invisível... o élan vital... o princípio da evolução... e pondo-se a escrever um livro, a iniciar uma guerra, a fundar uma escola...

Mesmo que não tivesse sido um egoísta, Amory teria começado todas as pesquisas com ele próprio. Ele era o seu melhor exemplo – ali, sentado na chuva, uma criatura humana dotada de sexo e orgulho, privado pelo destino e por seu próprio temperamento do bálsamo do amor e dos filhos, preservado para ajudar a construir a consciência viva da raça.

Censurando-se, mergulhado na solidão e no desengano, chegou à entrada do labirinto.

Outra alvorada lançou-se sobre o rio; um táxi retardatário passou apressado pela rua, as luzes ainda brilhando como olhos ardentes num rosto lívido após uma noite de farra. Uma sirene melancólica soou, ao longe, no rio.

Monsenhor

Amory não cessava de pensar que monsenhor Darcy teria apreciado seu próprio funeral. Foi uma cerimônia magnificamente católica e litúrgica. O bispo O’Neill oficiou a solene missa cantada e o cardeal deu a absolvição final. Thornton Hancock, a Sra. Lawrence, os embaixadores inglês e italiano, o delegado papal e uma legião de amigos e sacerdotes estavam presentes... Não obstante, a foice inexorável cortara todos os fios que monsenhor Darcy reunira em suas mãos. Para Amory, era um sofrimento obsedante vê-lo ali estendido em seu ataúde, as mãos cruzadas sobre as vestes roxas. O rosto não mudara, e como ele não soubesse que estava agonizando, não revelava dor nem medo. Era o querido amigo de Amory e dos outros que ali estavam – pois a Igreja estava repleta de gente de fisionomia apalermada e atônita, pensando, talvez, que os mais exaltados eram os que, com frequência, caíam fulminados.

Como um arcanjo de pluvial e mitra, o cardeal aspergia água benta; o órgão rompeu em sons e o coro começou a cantar o Requiem Eternam.

Toda aquela gente sofria porque dependera, até certo ponto, de monsenhor Darcy. Sua dor era mais do que um simples pesar pela “dissonância em sua voz ou uma certa vacilação no andar”, para usar uma expressão de Wells. Aquela gente se apoiara na fé do monsenhor, em sua maneira de encontrar o contentamento, de fazer da religião uma coisa de luz e sombra, de transformar a luz e a sombra em simples aspectos de Deus. As pessoas sentiam-se seguras quando ele estava perto.

Da tentativa de sacrifício de Amory nascera unicamente a plena percepção de seu desengano, mas do funeral de monsenhor Darcy nascia o elfo romântico que com ele iria penetrar no labirinto. Encontrou algo que desejava, que sempre desejara e sempre haveria de desejar: não ser admirado, como temera; não ser amado, como se esforçara por acreditar que ocorria, mas ser necessário aos outros, ser indispensável. Lembrou-se da sensação de segurança que encontrara em Burne.

A vida abria-se em sua frente numa de suas surpreendentes irrupções de esplendor, e Amory, súbita e permanentemente, rejeitou um velho epigrama que lhe vinha ocorrendo apaticamente ao espírito: “Pouquíssimas coisas importam, e nada tem grande importância.”

Pelo contrário, Amory sentia imenso desejo de dar aos outros uma sensação de segurança.

O “figurão” com óculos de proteção

No dia em que Amory iniciou sua caminhada a pé rumo a Princeton, o céu era uma abóbada incolor, fria, alta, sem ameaça de chuva. Era um dia cinzento, a menos carnal de todas as condições meteorológicas; um dia de sonhos, grandes esperanças e visões nítidas. Um dia facilmente associável àquelas verdades e purezas abstratas que se dissipam ao sol ou se desfazem ao som de um riso zombeteiro à luz da lua. As árvores e as nuvens estavam esculpidas numa severidade clássica; os sons campestres haviam se harmonizado numa tautofonia, metálica como um clarim, exânime como uma urna grega.

Aquele dia pusera Amory num estado de espírito tão contemplativo que causou aborrecimentos a vários motoristas, forçados a diminuir grandemente a marcha de seus veículos para que não o atropelassem. Tão mergulhado ia em seus pensamentos que pouca surpresa lhe causou um estranho fenômeno – ocorrido a 80 quilômetros de Manhattan –, quando um automóvel que passava se deteve a seu lado e uma voz o convidou a entrar. Ergueu os olhos e viu um magnífico Locomobile, no qual estavam dois homens de meia-idade, um deles pequeno e de ar preocupado, aparentemente um apêndice artificial do outro, corpulento, de aspecto imponente e que usava óculos de proteção.

– Quer carona? – indagou o que parecia uma excrescência do outro, lançando um olhar de soslaio ao imponente companheiro de viagem, como se esperasse uma silenciosa e habitual corroboração.

– Pode acreditar! Obrigado.

O motorista abriu a porta e, entrando no carro, Amory acomodou-se entre os dois no banco de trás, examinando-os com curiosidade. A principal característica do homenzarrão parecia ser uma grande autoconfiança, que se destacava do tremendo tédio que parecia lhe provocar tudo que o cercava. A parte de seu rosto que surgia por baixo dos óculos de viagem era o que se costumava chamar “vigorosa”; dobras de gordura, que não deixavam de ter certa dignidade, tinham se formado junto do queixo; um tanto mais acima, uma boca larga, de lábios finos, e o tosco modelo de um nariz romano, e, abaixo, ombros que descaíam, sem luta, sobre um volumoso tórax e uma respeitável barriga. Trajava-se com meticuloso apuro e discrição. Amory notou que ele se inclinava para fitar fixamente a nuca do motorista, como se procurasse resolver, firme mas inutilmente, algo de difícil solução.

Quanto ao homenzinho, nada tinha de notável, exceto sua completa submersão na personalidade do outro. Pertencia a um tipo secretarial inferior que aos 40 anos manda imprimir em seus cartões comerciais: “Assistente do Presidente” e que, sem um suspiro, consagra o resto da vida a maneirismos de segunda mão.

– Vai para longe? – indagou em tom agradável e desinteressado o homenzinho.

– Ainda um bom pedaço.

– Está indo a pé para fazer exercício?

– Não – respondeu, lacônico, Amory. – Viajo a pé porque não posso pagar uma condução.

– Oh!

E após uma pausa:

– Está procurando trabalho? Há muito trabalho – prosseguiu, um pouco para pôr Amory à prova. – Não passa de baboseira toda essa conversa sobre falta de trabalho. O Ocidente necessita particularmente de mão de obra.

Referiu-se ao Ocidente com um gesto largo, lateral. Amory concordou delicadamente com um aceno de cabeça.

– O senhor tem uma profissão?

Não. Amory não tinha profissão.

– Empregado de escritório, não é?

Não. Amory não era empregado de escritório.

– Seja lá qual for o seu trabalho – disse o homenzinho, parecendo sensatamente concordar com algo que Amory dissera –, a verdade é que esta é uma época de grandes oportunidades e de novos empreendimentos.

Lançou de novo um olhar para o figurão, como um advogado que, involuntariamente, durante um júri, quer prender a atenção de uma testemunha.

Amory achou que devia dizer algo, mas só conseguiu pensar numa coisa:

– Desejo, é claro, ganhar muito dinheiro...

O homenzinho riu sem nenhuma graça, mas conscienciosamente.

– É o que todos desejam hoje em dia, mas ninguém quer trabalhar para conseguir.

– Um desejo muito natural, muito saudável. Quase todas as pessoas normais querem ser ricas sem grande esforço... A não ser os financistas nas peças teatrais de fundo social, que querem “abrir caminho à força”. O senhor não deseja dinheiro fácil?

– Claro que não! – respondeu, indignado, o secretário.

– Mas – prosseguiu Amory, sem lhe dar atenção –, como me encontro, no momento, muito pobre, estou pensando que talvez o socialismo seja o meu forte.

Ambos os homens o fitaram com curiosidade.

– Esses lançadores de bombas...

O homenzinho calou-se ao ouvir tais palavras saírem ponderosamente do peito do figurão.

– Se achasse que o senhor era um lançador de bombas, eu o levaria para a cadeia, em Newark. Eis o que penso dos socialistas.

Amory riu.

– Quem é o senhor? – indagou o homenzarrão. – Um desses bolchevistas de salão, um desses idealistas? Devo dizer-lhe que não consigo ver a diferença. Os idealistas andam por aí vagabundeando e escrevendo coisas que agitam os imigrantes pobres.

– Bem – respondeu Amory –, se ser um idealista é, ao mesmo tempo, seguro e lucrativo, eu bem poderia experimentar.

– Qual é o seu problema? Perdeu o emprego?

– Não exatamente, mas... bem, pode-se dizer que sim.

– O que você fazia?

– Escrevia anúncios para uma agência de publicidade.

– A publicidade dá muito dinheiro.

Amory sorriu discretamente.

– Admito que a publicidade, eventualmente, dê dinheiro. O talento não morre mais de fome. Até mesmo as artes conseguem o suficiente para comer hoje em dia. Os artistas traçam as capas de suas revistas, escrevem seus anúncios, compõem ragtime para seus teatros. Por meio da grande comercialização dos prelos, os senhores encontraram uma ocupação delicada, inofensiva, para todos os gênios que, de outro modo, poderiam ter talhado seus próprios nichos. Mas cuidado com aquele que, além de artista, é também um intelectual. O artista que não se adapta, um Rousseau, um Tolstoi, um Samuel Butler, um Amory Blaine...

– Quem é esse último? – indagou, desconfiado, o homenzinho.

– Bem... – respondeu Amory –, é um... é um personagem intelectual ainda não muito conhecido no momento.

O homenzinho voltou a dar, conscienciosamente, um risinho, mas deteve-se de súbito quando os olhos ardentes de Amory se voltaram para ele.

– Do que está rindo, senhor?

– Esses intelectuais...

– Sabe, por acaso, o que isso significa?

– Ora essa! Significa, em geral...

– Significa sempre inteligência e boa instrução – interrompeu-o Amory. – Significa ter um conhecimento ativo da experiência da raça. – Amory resolveu ser bastante rude. E voltou-se para o figurão: – Esse jovem – disse, indicando com o polegar o secretário e proferindo a palavra “jovem” como alguém que dissesse “mensageiro de hotel”, não com uma implicação de “juventude” – tem, como é habitual, uma ideia bastante confusa da conotação de todas as palavras populares.

– O senhor faz objeção ao fato de que o capital controle os meios editoriais? – perguntou o figurão, fitando-o através dos óculos de viagem.

– Faço... e faço objeção também ao fato de realizar o trabalho mental dessa gente. Pareceu-me que a raiz de todos os negócios que vi ao meu derredor consistia em explorar o trabalho e em pagar mal um bando de idiotas que se submetem a isso.

– Um momento! – disse o figurão. – O senhor tem de admitir que o homem trabalhador é muito bem pago... Cinco ou seis horas diárias... É ridículo! Não se pode conseguir um dia de trabalho honesto de um homem que pertença a um sindicato.

– Foram os senhores que criaram tal situação – insistiu Amory. – Jamais fizeram quaisquer concessões até que elas lhes foram arrancadas à força.

– Os senhores... quem?

– A sua classe... a classe a que eu pertencia até recentemente. Aqueles que, por meio de herança, diligência, inteligência ou desonestidade se converteram na classe endinheirada.

– Então acha que aquele homem que está consertando a estrada estaria mais disposto, se tivesse dinheiro, a abrir mão dele?

– Não, mas o que isso tem a ver com o assunto?

O figurão refletiu.

– Admito que não tem, mas soa como se tivesse.

– Na verdade – prosseguiu Amory –, ele seria pior. As classes inferiores têm espírito mais acanhado, são menos agradáveis e individualmente mais egoístas... E são mais estúpidas, sem a menor dúvida, mas tudo isso nada tem a ver com a questão.

– E qual é exatamente a questão?

A essa altura Amory teve de fazer uma pausa e considerar qual era exatamente a questão.

Amory cunha uma frase

– Quando a vida toma conta de um homem inteligente e regularmente instruído – começou lentamente Amory –, isto é, quando ele se casa, torna-se, nove vezes em dez, um conservador no que se refere às condições sociais existentes. Pode ser que ele não seja egoísta, tenha bom coração e seja até mesmo justo, à sua maneira, mas o seu principal empenho é precaver-se e agarrar-se ao que possui. A sua mulher o impele para a frente, e ele passa de 10 mil a 20 mil dólares anuais, e assim por diante, numa rotina sem fim. Está liquidado! A vida tomou conta dele! Não tem mais remédio! É um homem espiritualmente cansado.

Fez uma pausa e achou que aquela não era uma frase assim tão má.

– Alguns homens – continuou – escapam a tal sujeição. Talvez as suas mulheres não alimentem ambições sociais; talvez tenham topado, em algum “livro perigoso”, com uma ou duas frases que lhes tenha agradado; talvez tenham começado a rotina, como eu, mas tenham sido postos para fora. Seja como for, há representantes do povo insubornáveis; presidentes que não são políticos; escritores, conferencistas, cientistas, estadistas que não são apenas uma fonte de renda para meia dúzia de mulheres e filhos.

– Esse homem é por acaso o radical verdadeiro?

– Perfeitamente – respondeu Amory. – Pode variar, indo desde o crítico desiludido, como o velho Thornton Hancock, até um Tolstoi. Ora, esse homem espiritualmente solteiro não tem poder direto, pois infelizmente o homem espiritualmente casado, como subproduto da classe endinheirada, à qual pertence, atulhou os grandes jornais, as revistas populares, o semanário influente, de modo que a Sra. Jornal, a Sra. Revista, a Sra. Semanário podem ter uma limusine melhor do que aquela gente do outro lado da rua que lida com óleo, ou aqueles sujeitos depois da esquina que vendem cimento.

– E por que não?

– Isso faz dos homens ricos os mantenedores da consciência intelectual do mundo e, claro, um homem que tem dinheiro sob um determinado conjunto de instituições sociais não pode, naturalmente, arriscar a felicidade da sua família, deixando que o clamor por outra ordem de coisas apareça em seu jornal.

– Mas aparece – disse o figurão.

– Onde? Em meios desacreditados. Em semanários vagabundos, impressos em péssimo papel.

– Muito bem... Prossiga.

– Bem, o que quero dizer, antes de mais nada, é que, devido a uma mistura de condições em que a família vem em primeiro lugar, existem essas duas espécies de cérebro. Uma delas, de certo modo, aceita a natureza humana como ela é, vale-se da sua timidez, da sua fraqueza e da sua força para a realização de seus próprios fins. Por outro lado, existe o homem que, sendo espiritualmente solteiro, busca continuamente novos sistemas, que controlarão e neutralizarão certas tendências da natureza humana. Seu problema é mais árduo. Não é a vida que é complicada; é a luta para direcionar e controlar a vida. Eis a sua luta. Esse homem é parte do progresso, enquanto o homem espiritualmente casado não é.

O figurão tirou do bolso três grandes charutos e os ofereceu na imensa palma da mão. O homenzinho apanhou um; Amory balançou a cabeça e procurou um cigarro.

– Continue falando – disse o figurão. – Tenho desejado ouvir um de vocês.

Mais depressa

– A vida moderna – recomeçou Amory – já não muda de século em século, mas de ano em ano, dez vezes mais depressa do que em qualquer outra época: populações que se duplicam, civilizações ligadas mais estreitamente a outras civilizações, interdependência econômica, questões raciais... Mas estamos perdendo tempo. A minha ideia é que temos que avançar muito mais depressa.

Acentuou ligeiramente as últimas palavras, e inconscientemente o motorista aumentou a velocidade do automóvel. Amory e o figurão riram; o homenzinho também riu após uma pausa.

– Cada criança – disse Amory – deveria ter um começo igual. Se o pai pode dotá-lo de um bom físico e a mãe de algum senso comum no início da sua educação, essa deveria ser a sua herança. Se o pai não pode dar-lhe um bom físico, se a mãe desperdiçou na caça aos homens os anos durante os quais deveria ter se preparado para educar os filhos, tanto pior para ele. O filho não deveria ser artificialmente amparado com dinheiro, enviado a esses terríveis colégios internos, arrastado pela faculdade... Todo menino deveria ter um começo igual.

– Muito bem – disse o figurão, sem que seus óculos de viagem indicassem aprovação ou objeção.

– Em seguida, eu daria ao governo uma boa oportunidade de realizar uma experiência como proprietário de todas as indústrias.

– Já ficou demonstrado o fracasso disso.

– Não... isso simplesmente falhou. Se as indústrias pertencessem ao governo, teríamos no governo as melhores inteligências analíticas do mundo dos negócios, trabalhando por algo mais que apenas para si próprios. Teríamos Mackays em vez de Burlesons, teríamos Morgans no Departamento do Tesouro, teríamos Hills dirigindo o comércio interestadual. Teríamos no Senado os melhores advogados.

– Eles não dariam o melhor de si a troco de nada. McAdoo...

– Não – disse Amory, balançando a cabeça. – O dinheiro não constitui o único estímulo para trazer à tona o que de melhor existe num homem, nem mesmo na América.

– O senhor disse, ainda há pouco, que constituía.

– Constitui no momento. Mas se fosse ilegal possuir mais do que determinada soma, os melhores homens acorreriam em bandos em busca de outro galardão que atrai a humanidade: a fama.

O figurão emitiu um som que se assemelhava muito a um bu!

– Essa é a coisa mais tola que disse até agora.

– Não, não é tola. É inteiramente plausível. Se o senhor fosse a uma universidade, constataria, surpreso, que alguns estudantes trabalham duas vezes mais para obter mil e uma honrarias insignificantes do que aqueles que se esforçam para fazer por onde.

– Coisas de rapazes... criancices! – zombou seu antagonista.

– De modo algum... a menos que sejamos todos crianças. Já viu um homem adulto quando procura entrar para uma sociedade secreta... ou uma família em ascensão cujo nome é enaltecido em algum clube? Seus membros pulam de alegria ao ouvir o som dessa palavra. A ideia de que para fazer um homem trabalhar é preciso segurar um punhado de ouro diante de seus olhos é algo inventado, não um axioma. Vimos fazendo isso há tanto tempo que nos esquecemos de que há outra maneira. Construímos um mundo em que isso é necessário. Permita que lhe diga – ajuntou Amory, tornando-se enfático – que se houvesse dez homens que tivessem um seguro contra a fome ou a riqueza e lhes fosse oferecida uma fita verde em troca de cinco horas de trabalho diário e uma fita azul em troca de dez horas de trabalho por dia, nove em cada dez se esforçariam por conquistar a fita azul. O instinto competitivo deseja apenas uma condecoração. Se o tamanho de suas casas constitui essa honraria, vão trabalhar como mouros para obtê-la. Se se tratar apenas de uma fita azul, acredito, com toda a sinceridade, que trabalharão do mesmo modo para consegui-la. Já o fizeram, em outras épocas.

– Não concordo com o senhor.

– Eu sei – disse Amory, balançando tristemente a cabeça. – Mas isso já não importa. Acho que essa gente vai receber logo o que deseja.

O homenzinho deu um grande assobio.

– Metralhadoras!

– Ah, mas os senhores os ensinaram a usá-las.

O figurão balançou a cabeça:

– Neste país há proprietários suficientes para impedir que isso aconteça.

Amory gostaria de ter dados estatísticos sobre os que possuíam propriedades e os que não possuíam. Como não os tinha, mudou de assunto.

– Quando falam em “apoderar-se das coisas”, estão pisando em terreno perigoso.

– Como poderão consegui-las se não for assim? Durante anos o povo foi mantido a distância por meio de promessas. O socialismo talvez não constitua um progresso, mas a ameaça da bandeira vermelha é certamente a força inspiradora de todas as reformas. E precisa ser sensacional para conseguir atenção.

– Imagino que o seu exemplo de violência benéfica seja dado pela Rússia.

– É bem possível – admitiu Amory. – Claro que ela está se excedendo, como aconteceu com a Revolução Francesa, mas não tenho dúvida de que se trata realmente de uma grande experiência... e uma experiência que valeu a pena.

– O senhor não acredita na moderação?

– Os senhores não darão ouvidos a moderados, e já é quase tarde demais. A verdade é que o público fez uma dessas coisas surpreendentes e espantosas que só acontecem uma vez em cada século. Apreendeu uma ideia.

– Qual é ela?

– Que por mais que a inteligência e as habilidades dos homens possam diferir, seus estômagos são essencialmente iguais.

O homenzinho recebe o seu

– Se o senhor reunisse todo o dinheiro do mundo – disse, de maneira profunda, o homenzinho – e o dividisse igualmen...

– Ah, cale-se! – exclamou Amory vivamente e, sem dar atenção ao olhar enfurecido do homenzinho, prosseguiu em sua argumentação.

– O estômago humano... – recomeçou.

Mas o figurão o interrompeu de modo um tanto impaciente:

– Como veem, estou deixando que falem, mas, por favor, evite referir-se a estômagos. Senti o meu o dia todo. De qualquer modo, não concordo com uma palavra do que o senhor disse. A propriedade das indústrias pelo governo constitui a base de toda a sua argumentação... e isso, invariavelmente, é uma colmeia de corrupção. Os homens não vão trabalhar em troca de fitas azuis... Isso é uma tolice completa.

Quando ele se calou, com um movimento de cabeça o homenzinho pôs-se a falar, resoluto, como se tivesse resolvido, dessa vez, fazer-se ouvir.

– Há certas coisas que fazem parte da natureza humana – afirmou, com ar de coruja. – Sempre foi e sempre será assim. Coisas que não podem ser mudadas.

Com expressão de desânimo, Amory desviou o olhar do homenzinho e fitou o figurão.

– Vejam só! Isso é o que me faz desanimar do progresso. Ouçam isso! Eu poderia citar, logo de início, mais de uma centena de fenômenos naturais que foram modificados pela vontade do homem... uma centena de instintos humanos obliterados e dominados pela civilização. O que esse homem acaba de dizer vem sendo, há mil anos, o último refúgio dos idiotas do mundo. Nega os esforços de todos os cientistas, estadistas, moralistas, reformadores, doutores e filósofos que dedicaram a vida a servir a humanidade. É uma impugnação manifesta de tudo que é digno de apreço na natureza humana. Toda pessoa de mais de 25 anos que declara tal coisa a sangue-frio deveria ser privada dos seus direitos de cidadão.

O homenzinho recostou-se de novo no assento, o rosto rubro de cólera. Amory prosseguiu, dirigindo suas observações ao figurão:

– Esses homens que dispõem apenas de um quarto de instrução e que possuem mentes rançosas como esse seu amigo aqui, essas criaturas que pensam que pensam em todas as questões que surgem, são tipos que vivem, em geral, em tremenda confusão mental. Ora se referem à “brutalidade e desumanidade desses prussianos”, ora afirmam que “deveríamos exterminar todo o povo alemão”. Acreditam sempre que “as coisas não estão nada boas agora”, mas “não têm confiança alguma nesses idealistas”. Hoje, dizem que Wilson “não passa de um sonhador, sem espírito prático”; daqui a um ano esbravejam contra ele por converter seus sonhos em realidade. Não têm qualquer ideia clara ou lógica acerca de nenhum assunto, exceto uma atoleimada oposição a qualquer espécie de mudança. Não acham que as pessoas incultas devam receber um salário elevado, mas não percebem que se tais pessoas não recebem um bom salário, seus filhos também não poderão ser educados, e caímos assim num círculo vicioso. Eis o que é a grande classe média!

O figurão, um grande sorriso a estampar-se-lhe no rosto, inclinou-se e sorriu para o homenzinho.

– Você está recebendo grossa pancadaria, Garvin. Como se sente?

O homenzinho esforçou-se por sorrir e agir como se todo aquele assunto fosse tão ridículo que não merecesse sequer atenção. Mas Amory ainda não havia terminado.

– A teoria de que o povo tem capacidade para governar a si próprio reside nesse homem. Se se puder instruí-lo, para que pense clara, concisa e logicamente... para que possa libertar-se do seu hábito de refugiar-se em vulgaridades, preconceitos e sentimentalismos, então sou um socialista militante. Se não se puder fazê-lo, então acho que pouco importa o que venha a acontecer a esse homem ou aos seus sistemas, agora ou futuramente.

– Estou não só interessado como me divertindo muito – disse o figurão. – O senhor é muito jovem.

– O que significa apenas que não fui corrompido nem me tornei tímido diante da experiência contemporânea. Eu possuo a mais valiosa das experiências, a experiência da raça, pois apesar de ter frequentado uma universidade consegui adquirir uma boa instrução.

– Fala com desembaraço.

– Mas não digo apenas tolices – exclamou Amory apaixonadamente. – Esta é a primeira vez na vida que discuto socialismo. É a única panaceia que conheço. Sinto-me inquieto. Estou enojado com um sistema em que o sujeito mais rico consegue a garota mais bela se a desejar, em que o artista que não dispõe de renda tem de vender seu talento a um fabricante de botões. Mesmo que eu não tivesse talento, não me agradaria trabalhar dez anos, condenado ao celibato ou a prazeres furtivos, para que o filho de alguém tivesse um automóvel.

– Mas se não está tão certo...

– Isso não importa – bradou Amory. – A minha situação não poderia ser pior. Uma revolução social talvez pudesse dar-me uma boa oportunidade. Claro que sou egoísta. Parece-me que tenho sido um peixe fora d’água no meio de tantos sistemas já excessivamente gastos. Eu era, provavelmente, um dos poucos alunos da minha classe na faculdade que havia recebido uma educação decente; no entanto, eles deixavam qualquer paspalhão que tivesse instrução jogar rúgbi, enquanto eu era considerado inelegível, porque alguns velhos estúpidos achavam que todos nós lucraríamos com a aplicação das seções cônicas. Detestei o exército. Detestei o mundo dos negócios. Estou apaixonado pela transformação social, e matei a minha consciência...

– De modo que vai sair por aí dizendo que precisamos ir mais depressa.

– Isso, pelo menos, é verdade – insistiu Amory. – A reforma não vai atender às necessidades da civilização, a menos que se faça com que atenda. Uma política de laissez-faire é o mesmo que mimar uma criança dizendo-lhe que no fim ela vai se sair bem. Só vai se sair bem se procurar fazer com que isso aconteça.

– Mas o senhor não acredita em toda essa lenga-lenga socialista de que fala.

– Não sei. Até falar com o senhor, eu ainda não havia pensado seriamente a respeito. Não estava convencido nem da metade do que disse.

– O senhor me intriga – disse o figurão. – Mas os senhores todos se parecem. Dizem que Bernard Shaw, apesar de todas as suas doutrinas, é o mais rigoroso de todos os teatrólogos no que se refere aos seus direitos autorais. Exige até o último centavo.

– Bem – disse Amory –, o que afirmo é que sou o produto de um espírito versátil em meio a uma geração inquieta... e que tenho todos os motivos para colocar a minha mente e a minha pena a serviço dos radicais. Mesmo que no fundo do meu coração eu pensasse que éramos todos átomos cegos num mundo tão limitado como o oscilar de um pêndulo, eu e os sujeitos como eu lutaríamos contra a tradição. Procuraríamos, ao menos, substituir as velhas cantilenas por outras novas. Em várias ocasiões, julguei que estava certo a respeito da vida, mas a fé é algo difícil. De uma coisa estou certo: se viver não é lutar por algo que valha a pena, a vida pode tornar-se um jogo extremamente divertido.

Durante um minuto ambos permaneceram calados. Depois, o figurão perguntou:

– Qual era a sua universidade?

– Princeton.

O figurão mostrou-se subitamente interessado; a expressão de seus óculos de viagem alterou-se ligeiramente.

– Eu mandei o meu filho estudar em Princeton.

– É mesmo?

– Talvez o senhor o tenha conhecido. Chamava-se Jesse Ferrenby. Foi morto no ano passado, na França.

– Eu o conhecia muito bem. Na verdade, era um dos meus amigos mais íntimos.

– Ele era... um... um excelente rapaz. Éramos muito próximos.

Amory começou a perceber uma semelhança entre pai e filho morto, e disse para si mesmo que na verdade parecia ter havido durante todo o tempo uma sensação de familiaridade. Jesse Ferrenby, o sujeito que na universidade tomara a coroa à qual ele aspirava. Tudo aquilo já havia ficado muito para trás. Como tinham sido crianças, lutando por fitas azuis...

O automóvel deteve-se à entrada de uma grande propriedade, cercada por uma imensa sebe e por um alto portão de ferro.

– Não quer almoçar conosco?

Amory balançou a cabeça.

– Muito obrigado, Sr. Ferrenby, mas preciso continuar o meu caminho.

O figurão estendeu-lhe a mão. Amory viu que o fato de ele ter conhecido Jesse pesava mais do que qualquer desfavor que suas opiniões pudessem ter criado. Com que fantasmas as pessoas tinham de lidar! Até mesmo o homenzinho insistiu em apertar-lhe a mão.

– Adeus! – gritou o Sr. Ferrenby enquanto o carro dobrava para a direita e começava a subir a alameda. – Boa sorte para o senhor e má sorte para as suas ideias.

– O mesmo para o senhor – gritou Amory, sorrindo e acenando com a mão.

“Longe da lareira, longe da saleta”

A oito horas de distância de Princeton, Amory sentou-se à beira da estrada em Nova Jersey e pôs-se a observar os campos queimados pelo frio. A natureza, como um fenômeno um tanto grosseiro, composta em grande parte de flores que, quando examinadas atentamente, apareciam comidas por insetos e formigas que viajavam infindavelmente por folhas de relva, era sempre decepcionante; a natureza representada por céus, águas e horizontes distantes era mais simpática. A geada e a promessa de inverno de repente o emocionaram, fazendo-o pensar numa violenta competição entre St. Regis e Groton que tivera lugar havia séculos... sete anos antes, e num dia de outono na França, doze meses antes, em que ele se estendera no meio de alto relvado, com todo o seu pelotão deitado em torno dele, aguardando o momento de acionar sua metralhadora automática. Via os dois quadros juntos, experimentando, de certo modo, a mesma sensação primitiva – dois jogos de que participara, diferindo apenas na aspereza, ligados entre si de uma maneira que os diferenciava de Rosalind e da questão dos labirintos, que constituía, afinal de contas, um assunto relacionado com a vida.

“Sou um egoísta”, pensou.

“Isto não é algo que vai mudar quando eu ‘vir o sofrimento humano’, ‘perder os meus pais’ ou ‘ajudar os outros’.

“Esse egoísmo não é apenas uma parte de mim. É a parte mais viva. Somente superando de algum modo esse egoísmo, e não apenas evitando-o, é que poderei conseguir segurança e equilíbrio na vida.

“Não existe virtude de altruísmo que eu não possa empregar. Posso fazer sacrifícios, ser caridoso, dedicar-me a um amigo, sofrer por um amigo, expor a minha vida por um amigo – e tudo isso porque essas coisas talvez sejam a melhor expressão possível de mim mesmo. Contudo, não possuo sequer uma gota de bondade humana.”

O problema do mal convertera-se em Amory no problema do sexo. Começava a identificar o mal com o poderoso culto fálico existente em Brooke e no Wells dos primeiros tempos. Inseparavelmente ligada ao mal estava a beleza – a beleza, ainda um constante e crescente tumulto; suave na voz de Eleanor, numa velha canção que se ouve à noite, tumultuando delirantemente ao longo da vida como imponentes cataratas, meio ritmo, meio escuridão. Amory sabia que, cada vez que tentara aproximar-se ansiosamente dela, ela zombara dele com a fisionomia grotesca do mal. A beleza da grande arte, a beleza de todas as alegrias e, acima de tudo, a beleza das mulheres.

Afinal de contas, a beleza tinha demasiadas ligações com a licenciosidade e a devassidão. As coisas doentias tinham, às vezes, beleza, mas jamais eram boas. E naquela nova solidão que ele escolhera, tendo em vista qualquer grandeza a que pudesse chegar, a beleza devia ser relativa ou, em si própria, uma harmonia para que não houvesse nenhuma nota dissonante.

Em certo sentido, essa renúncia gradual à beleza era o segundo passo, depois que sua desilusão se tornara completa. Sentia que estava deixando para trás a oportunidade de vir a ser um certo tipo de artista. Parecia-lhe muito mais importante ser um certo tipo de homem.

De repente, seu espírito dobrou uma esquina e ele viu-se pensando na Igreja Católica. Havia nele a forte convicção de que existia uma certa falha intrínseca naqueles para quem a religião ortodoxa era uma necessidade – e religião, para Amory, significava a Igreja de Roma. Tratava-se, de forma bastante concebível, de um ritual vazio, mas era, ao que parecia, o único baluarte tradicional, assimilativo, contra a decadência da moral. Até que as grandes multidões pudessem ser educadas num sentido moral, alguém devia bradar: “Não farás!” Contudo, era-lhe impossível no momento qualquer aceitação. Ele queria dispor de tempo e da ausência de pressão ulterior. Queria conservar a árvore sem enfeites, compreender plenamente a direção e o impulso de sua nova arrancada.

A tarde passava pela purificação das três horas e penetrava na beleza dourada das quatro. Depois, ele caminhou em meio à dor vaga de um pôr de sol em que mesmo as nuvens pareciam sangrar, e chegou, já no crepúsculo, a um cemitério. Havia uma fragrância triste, melancólica, de flores, o fantasma de uma lua nova no céu e, por toda parte, sombras. Levado por um impulso, pensou em tentar abrir a porta de uma enferrujada cripta de ferro, construída na encosta de um monte – uma cripta lavada pelas águas e coberta de flores azuis, tardias e aquosas, que bem poderiam ter nascido de olhos mortos, pegajosas ao tato e com um odor enjoativo.

Amory queria sentir “William Dayfield, 1864”.

Pensou que os túmulos sempre levavam as pessoas a considerar a vida uma coisa vã. De certo modo, ele não conseguia achar nada de ruim no fato de alguém ter vivido. Todas aquelas colunas partidas, mãos dadas, pombas e anjos significavam romances. Imaginou que gostaria que dali a cem anos criaturas jovens perguntassem a si mesmas se seus olhos tinham sido castanhos ou azuis, e esperava ardentemente que sua sepultura tivesse um ar assim, de coisa construída havia muitos, muitos anos. Parecia-lhe estranho que, numa fileira de túmulos de soldados da União, dois ou três lhe fizessem pensar em amores e amantes mortos, quando eram exatamente iguais aos outros até mesmo no musgo amarelado.

MUITO DEPOIS DA MEIA-NOITE, as torres e as cúspides de Princeton tornaram-se visíveis, percebendo-se aqui e acolá uma ou outra luz ainda acesa. Como num sonho infindável, aquilo continuava, o espírito do passado meditando sobre uma nova geração, a juventude eleita de um mundo perturbado e impuro, ainda romanticamente alimentando-se dos erros e dos sonhos já quase esquecidos de estadistas e poetas mortos. Ali estava uma nova geração gritando os velhos brados, aprendendo as velhas crenças através dos devaneios de longos dias e noites – uma geração destinada, finalmente, a meter-se naquele sujo e cinzento torvelinho, impelida por amor e por orgulho; uma nova geração dedicada, mais do que a anterior, ao medo da pobreza e ao culto do êxito; uma geração criada para encontrar todos os deuses mortos, todas as guerras terminadas, toda a fé no homem abalada...

Lamentando por elas, ainda assim Amory não lamentava por si mesmo – arte, política, religião, qualquer que pudesse ser seu meio, ele sabia que estava agora em segurança, livre de toda histeria. Podia aceitar o que fosse aceitável, vagabundear, desenvolver-se, rebelar-se, dormir profundamente durante muitas noites...

Não havia Deus em seu coração, ele o sabia; suas ideias estavam ainda tumultuadas; haveria sempre a dor da recordação, o pesar da juventude perdida... Não obstante, as águas da desilusão haviam deixado sedimentos em sua alma – um senso de responsabilidade e amor pela vida, um leve agitar de antigas ambições e sonhos irrealizados. Mas... oh, Rosalind! Rosalind!...

– Na melhor das hipóteses, tudo não vai passar de um pobre substituto – disse tristemente.

E não saberia dizer por que aquela luta valia a pena, por que decidira valer-se o máximo de si mesmo e da herança que recebera das personalidades pelas quais passara...

Estendeu os braços para o céu cristalino, radiante.

– Eu me conheço – gritou –, mas isso é tudo. 

 

                                                                  F. Scott Fitzgerald

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades