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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTE MUNDO PERFEITO
ESTE MUNDO PERFEITO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin

 

 

 

 

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

3

 

Ficaram dois dias naquele lugar — dormindo, comendo, fazendo a barba, treinando luta, brincando com jogos de palavras infantis, conversando sobre governo democrático, sexo e os pigmeus das selvas equatoriais — e no terceiro dia, domingo, partiram de bicicleta rumo ao norte. Pararam nas imediações de ’00013 e subiram o declive que dominava a praça e a ponte. Esta já fora parcialmente consertada e vedada por barreiras. Filas de ciclistas cruzavam a praça nos dois sentidos. Não se viam médicos, nem controles, helicóptero ou carros. No lugar anteriormente ocupado pelo helicóptero tinha um retângulo de calçamento cor-de-rosa recente.

No começo da tarde passaram por ’001 e avistaram ao longe a cúpula branca de Uni à beira do Lago da Fraternidade Universal. Esconderam-se no parque do lado oposto da cidade.

Na noite seguinte, ao entardecer, depois de ocultar as bicicletas num buraco dissimulado por galhos e levando as sacolas no ombro, cruzaram um controle no limite extremo do parque, saindo nas encostas cobertas de relva próximas ao Monte Amor. Caminhavam a passos largos, de sapatos e túnicas verdes, com binóculos e máscaras contra gases penduradas ao pescoço. Iam de revólver em punho, mas à medida que escurecia e a encosta tomava-se mais rochosa e irregular, guardaram-no bolso. De vez em quando faziam uma pausa e Quem consultava a bússola à luz da lanterna, protegida com a mão.

Chegando à primeira das três possíveis localizações da entrada do túnel, separaram-se e procuraram por ela, usando as lanternas comedidamente. Não lograram encontrá-la.

Dirigiram-se à segunda, um quilômetro além a nordeste. Uma meia lua assomou ao rebordo da montanha, iluminando-a palidamente. Vasculharam o sopé com todo o cuidado enquanto atravessavam a encosta rochosa que ficava em frente.

A encosta ficou plana, mas somente na faixa que trilhavam — e perceberam que pisavam uma estrada, velha e semeada de moitas. As suas costas ela se embrenhava numa curva pelo parque; à sua frente conduzia a uma dobra na montanha.

Entreolharam-se e sacaram o revólver. Abandonando a estrada adiantaram-se rente à montanha, contornando-a vagarosamente em fila única — primeiro Quem, depois Dover e finalmente Karl —, segurando as sacolas para impedi-las de colidir, e sempre de arma em punho.

Chegaram à dobra e esperaram, encostados à montanha, escutando.

Não vinha nenhum ruído lá de dentro.

Esperaram e escutaram mais um pouco. Depois Quem virou- se para os outros, pôs a máscara contra gases e afivelou-a.

Os outros fizeram o mesmo.

Quem entrou na dobra de revólver em riste. Dover e Karl seguiram atrás.

No interior havia uma clareira espaçosa e lisa. E do lado oposto, no sopé do muro nu da montanha, a abertura negra, redonda e de solo plano, de um vasto túnel.

Parecia completamente desprotegido.


Tiraram as máscaras e examinaram a abertura pelos binóculos. Olharam para o alto da montanha e, avançando alguns passos, contemplaram as paredes côncavas da dobra e o céu oval que a cobria.

— Buzz deve ter-se saído muito bem — comentou Karl.

— Ou muito mal, e foi preso — retrucou Dover.

Quem assestou os binóculos de novo contra a abertura. A borda possuía um brilho transparente e por baixo corria uma vegetação verde rasteira e sem viço.

— Até parece as lanchas na praia — disse. — Tudo tão quieto, escancarado...

— Você acha que este túnel leva de volta à Liberdade? — perguntou Dover.

Karl deu uma risada.

— Pode haver cinquenta armadilhas que só veremos quando for tarde demais — retrucou Quem, tirando os binóculos.

— Talvez Ria não tenha dito nada — opinou Karl.

— Quando você é interrogado num centro médico você diz tudo — replicou Quem. — Mas mesmo que ela não tenha dito, não estaria ao menos fechado? Foi pra isso que trouxemos as ferramentas.

— Decerto ainda está em uso — sugeriu Karl.

Quem ficou olhando a abertura.

— A gente sempre pode recuar — disse Dover.


— Claro — concordou Quem. — Vamos de uma vez.

Olharam em torno, colocaram as máscaras em posição e avançaram devagar pela clareira. Não esguichou nenhum gás, não soou nenhum alarme, nenhum membro com equipamento contra a lei da gravidade apareceu no céu.

Aproximaram-se da abertura e acenderam as lanternas. A luz tremulou lá dentro, clareando a alta abóbada revestida de plástico, alcançando o fundo, onde a galeria parecia terminar. Ela, porém, dobrava, fazendo um ângulo descendente. Largos e lisos, estendiam-se dois trilhos de aço separados por uns dois metros de rocha negra não plastificada.

Voltaram-se para a clareira e ergueram o olhar para a borda da abertura. Pisaram o interior do túnel, entreolhando-se, depois tiraram as máscaras e farejaram.

— Como é? — perguntou Quem. — Prontos pra ir adiante?

Karl fez que sim e Dover, sorrindo, respondeu:

— Vamos de uma vez.

Hesitaram um pouco e finalmente se adiantaram sobre a rocha negra e uniforme no meio dos trilhos.

— Será que tem bastante ar? — lembrou Karl.

— Se não tiver, a gente recorre às máscaras — respondeu Quem. Assestou a lanterna ao relógio de pulso. — Falta um quarto pras dez. Devemos chegar lá em cima mais ou menos à uma hora.

— Uni estará acordado — disse Dover.

— Até que a gente bote ele pra dormir — retrucou Karl.

O túnel descrevia uma curva e seguia por um suave declive. Os três pararam e olharam — aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se com a mais negra escuridão.

— Cristo e Wei — exclamou Karl.

Recomeçaram a andar, com ritmo mais rápido, lado a lado entre os trilhos.

— Devíamos ter trazido as bicicletas — disse Dover. — Podia-se descer sem pedalar.

— Vamos falar o mínimo possível — pediu Quem. — E basta uma lanterna de cada vez. A sua primeiro, Karl.

Caminharam em silêncio, atrás da luz da lanterna de Karl. Tiraram os binóculos, guardando-os nas sacolas.

Quem tinha a sensação de que Uni estava escutando tudo, registrando a vibração de suas pisadas ou o calor de seus corpos. Poderiam vencer as defesas que na certa estavam-se aprontando, dominar os membros e resistir aos gases? (As máscaras adiantariam? Jack teria tombado por terra por recorrer à sua demasiado tarde ou não teria feito a menor diferença se a colocasse antes?)

Bem, não restava mais tempo para dúvidas, disse consigo mesmo. Chegara a hora de levar o plano avante. Enfrentariam tudo o que viesse pela frente, fazendo o possível para localizar as usinas de refrigeração e mandá-las pelos ares.

Quantos membros seriam obrigados a ferir, a matar? Talvez nenhum, pensou. Talvez a ameaça de seus revólveres fosse suficiente para protegê-los. (Contra membros abnegados, vendo Uni em perigo? Não, jamais.)

Bem, tinha que ser: não havia outra alternativa.

Concentrou o pensamento em Lilás — em Lilás e Jan e no quarto que ocupavam em Nova Madri.

O túnel ficou frio, mas o ar continuava perfeitamente respirável.

Avançavam cada vez mais, sob aquela abóbada de plástico que cintilava a perder de vista, fundindo-se na mais densa treva com os trilhos que se estendiam ao longe.

Já estamos aqui, pensou. Vamos conseguir.


Ao cabo de uma hora pararam a fim de descansar. Sentaram nos trilhos, dividindo um bolo entre os três e passando um recipiente de chá de mão em mão.

— Daria meu braço por um pouco de uísque — disse Karl.

— Vou comprar uma caixa inteira pra você quando voltarmos — prometeu Quem.

— Promessa é dívida — disse Karl a Dover.

Ficaram ali alguns minutos, depois levantaram e recomeçaram a caminhar. Dover equilibrava-se num trilho.

— Você parece muito confiante — disse Quem, iluminando-o com a lanterna.

— E estou mesmo — retrucou Dover. — Você não?

— Sim — disse Quem, tornando a virar a lanterna para a frente.

— Eu me sentiria melhor se fossemos seis — retrucou Karl.

— Eu também — concordou Quem.

Dover era engraçado: cobrira o rosto com os braços quando Jack tinha começado a atirar, Quem lembrava-se, e agora, quando eles estariam a qualquer momento abrindo fogo, talvez matando, parecia alegre e despreocupado. Mas talvez fosse apenas disfarce para esconder o nervosismo. Ou então era porque só tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos de idade.

Seguiram adiante, trocando as sacolas de ombro.

— Tem certeza de que este troço tem fim? — perguntou

Karl.

Quem iluminou o relógio.

— São onze e meia. Já devemos ter passado da metade. Continuaram andando sob a abóbada de plástico. Estava ficando menos frio.

Pararam de novo quando faltava um quarto para as doze. Mas sentiram-se inquietos e dentro de um minuto levantaram e prosseguiram caminho.

Houve um lampejo no meio da escuridão e Quem puxou do revólver.

— Espere — aconselhou Dover, pegando-o pelo braço, — é a minha lanterna. Veja! — apagou-a e acendeu-a várias vezes, e o lampejo na escuridão fazia o mesmo. — Chegamos ao fim. Ou então há alguma coisa nos trilhos.

Avançaram mais rápido. Karl também empunhou o revólver. O lampejo, deslocando-se de leve, para cima e para baixo, parecia guardar sempre a mesma distância, pequeno e quase imperceptível.

— Ele está-se afastando de nós — disse Karl.

Mas aí então, abruptamente, ficou mais claro e bem perto.

Os três pararam e colocaram as máscaras, afivelando-as e seguindo adiante.

Em direção a um disco de aço, a uma parede que selava o túnel até a borda.

Aproximaram-se, mas não tocaram nela. Perceberam que abria para cima: faixas de riscos verticais afiados percorriam-na de alto a baixo e a parte inferior estava modelada para encaixar nos trilhos.

Tiraram as máscaras e Quem encostou o relógio à lanterna de Dover.

— Vinte pra uma — disse. — Viemos rápido.

— A não ser que continue do outro lado — retrucou Karl.

— Só você mesmo pra pensar numa coisa dessas — disse Quem, embolsando o revólver e tirando a sacola do ombro. Colocou-a no chão, ajoelhou-se ao lado sobre uma perna e abriu o fecho,

— Chega a luz mais perto, Dover. Não toque aí, Karl.

Karl, examinando a parede, perguntou:

— Você acha que está eletrificada?

— Dover? — chamou Quem.

— Não se movam — disse Dover.

Ele tinha recuado alguns metros no interior do túnel e mantinha a lanterna em cima dos dois. A ponta do seu raio laser sobressaía na luz.

— Não precisam ter medo que ninguém vai machucar vocês — disse ele. — Esses revólveres estão descarregados. Solte o seu, Karl. Quem, me mostre as suas mãos, depois coloque-as na cabeça e levante-se.

Quem olhava fixamente acima da luz. Havia uma linha que reluzia o cabelo louro bem curto de Dover.

— Isto é brincadeira ou o quê? — perguntou Karl.

— Largue a arma, Karl — repetiu Dover. — E ponha a sacola no chão também. Quem, me mostre as mãos.

Quem exibiu as mãos vazias, colocou-as na cabeça e levantou- se. O revólver de Karl caiu com estrondo nas pedras e a sacola produziu um som cavo.

— O que vem a ser isto? — exclamou, e para Quem: — Que que ele está fazendo.

— E um espion.

— Um quê?

Lilás tinha razão. Um espion no grupo. Mas Dover! Era inconcebível. Não podia ser.

— Mãos na cabeça, Karl — ordenou Dover. — Agora virem de costas, todos os dois, de frente pra parede.

— Seu filho da luta — rosnou Karl.

Viraram as costas, enfrentando a parede de aço com as mãos na cabeça.

— Dover — disse Quem. — Por Cristo e Wei...

— Desgraçado — rosnou Karl.

— Ninguém vai machucar vocês — repetiu Dover.

A parede subiu e diante deles se abriu uma sala comprida, de muros de concreto. Os trilhos iam até a metade e depois terminavam. Havia um par de portas de aço na extremidade oposta.

— Seis passos em frente e parem — ordenou Dover. — Caminhem de uma vez. Seis passos.

Deram seis passos em frente e pararam.

Os encaixes das alças das sacolas tilintaram atrás deles.

— A arma continua apontada pra vocês — preveniu Dover.

A voz vinha mais de baixo: estava agachado. Os dois se entreolharam: Karl com uma expressão interrogativa, mas Quem sacudiu a cabeça.

— Muito bem — disse Dover, a proveniência da voz revelando que já se tinha levantado. — Avançou em linha reta.

Percorreram a sala de muros de concreto e as portas de aço ao fundo se abriram de par em par. Surgiu uma parede de azulejos brancos.

— Entrem e dobrem à direita — ordenou Dover.

Cruzaram o limiar e dobraram à direita. Um longo corredor de azulejos brancos estendia-se à sua frente, terminando numa porta simples de aço, onde havia um controle no canto. A parede à direita do corredor era toda de azulejos. A da esquerda estava entremeada de dez ou doze portas de aço, a intervalos regulares, cada uma com controle próprio a cerca de dez metros de distância entre si.

Quem e Karl percorreram lado a lado o corredor com as mãos na cabeça. Dover! pensou Quem. A primeira pessoa que se lembrara de procurar! E por que não? Ele parecia tão ferozmente anti-Uni aquele dia na lancha do S.I.! Fora Dover que tinha dito a ele e Lilás que Liberdade era uma prisão, que Uni os deixara chegar até lá!

— Dover! — exclamou. — Como é possível que você...

— Não pare — disse Dover.

— Você não está embrutecido, não está sob tratamento!

— Não.

— Então... como? Porquê?

— Daqui a pouco você vai entender.

Aproximaram-se da porta ao fundo do corredor, que subitamente se abriu. Outro corredor estendeu-se à sua frente: mais largo, menos profusamente iluminado, com paredes escuras, sem azulejos.

— Continuem caminhando — mandou Dover.

Cruzaram o limiar e pararam, de olhos esbugalhados.

— Passem de uma vez —insistiu Dover.

Foram adiante.

Que espécie de corredor era este? O soalho estava atape- tado, com um tapete dourado mais grosso e macio do que qualquer outro que Quem jamais vira ou pisara. As paredes, de madeira polida lustrosa, tinham portas numeradas (12,11) com maçanetas de ouro de ambos os lados. Pendiam quadros entre as portas, belos quadros, sem duvidada Pré-U: uma mulher sentada de mãos cruzadas, sorrindo com astúcia; uma cidade rodeada de montanhas com edifícios cheios de janelas sob um estranho céu de nuvens negras; um jardim; uma mulher reclinada; um homem de armadura. O ar estava impregnado de um aroma agradável: penetrante, seco, impossível de definir.

— Onde estamos? — perguntou Karl.

— Em Uni — respondeu Dover.

Diante deles havia uma porta aberta, dando passagem a uma sala de cortinas vermelhas.

— Não parem — disse Dover.

Cruzaram o limiar e entraram na sala de cortinas vermelhas. Ela se alargava para ambos os lados e estava cheia de membros, de pessoas sentadas, sorrindo e que começaram a rir, a se levantar, alguns até aplaudindo; gente moça, gente velha, que se erguia das poltronas e sofás, rindo e aplaudindo, sem parar — todos estavam aplaudindo! Quem sentiu um puxão no braço — era Dover, rindo — e virou-se para Karl, que olhava para ele, estupefato. E todos continuavam a aplaudir, homens e mulheres, cinquenta, sessenta pessoas, de aspeto alerta e lúcido, vestidos com túnicas de seda e não de paplão, verdes-douradas- azuis-brancas-roxas. Uma mulher alta e bonita. Um homem de tez negra. Uma mulher parecida com Lilás. Um homem de cabelo branco que devia ter mais de noventa anos. Aplaudindo, aplaudindo, rindo, aplaudindo...

Quem se virou.

— Não é sonho, não — disse Dover, com um vasto sorriso. E para Karl:

— É a pura realidade.

— Mas o que é isto? — perguntou Quem. — Que ódio é isto? Quem é esta gente?

— São os programadores, Quem — explicou Dover, rindo.

— E é isto o que vocês também vão ser! Ah, se vocês pudessem ver a cara que estão fazendo!

Quem olhou fixamente para Karl e depois para Dover outra vez.

— Cristo e Wei, o que é que você está dizendo? Os programadores já morreram! Uni... funciona sozinho, não precisa de...

Dover estava olhando por cima do seu ombro, sorrindo. Baixara um silêncio absoluto sobre a sala inteira.

Quem virou-se.

Um homem com uma máscara sorridente, parecido com Wei, (estaria sonhando?) aproximava-se num passo elástico que agitava a túnica de seda vermelha e gola alta.

— Não existe nada que funcione sozinho — declarou, numa voz esganiçada mas imperiosa, os lábios sorridentes da máscara movendo-se como se fossem de verdade. (Mas seria uma máscara mesmo... aquela pele amarela esticada sobre os angulosos ossos faciais, os brilhantes olhos amendoados, os ralos cabelos brancos na calva reluzente?) — Você deve ser Quem, o do olho verde — disse, rindo e estendendo-lhe a mão. — E preciso que me diga o que havia de errado com o nome Li que levou você a mudá-lo.

Estalaram risadas em torno deles.

A mão estendida tinha colorido normal e jovem. Quem apertou-a (estou enlouquecendo, pensou), sentindo o impacto dos dedos fortes espremendo-lhe as juntas, causando-lhe uma dor instantânea.

— E você é Karl — disse o homem, voltando-se e estendendo novamente a mão. — Se você tivesse mudado de nome eu compreenderia.

As risadas aumentaram.

— Aperte a mão — insistiu, sorridente — Não tenha medo.

Karl, de olhos arregalados, obedeceu.

— O senhor é... — gaguejou Quem.

— Wei — confirmou o homem, piscando os olhos amendoados. — Daqui pra cima, bem entendido.

Indicou a gola alta da túnica.

— Daqui pra baixo — continuou, — sou vários outros membros, principalmente Jesus RE, o vencedor do decatlo de 163. — Sorriu para os dois. — Vocês nunca bateram bola quando crianças? — perguntou. — Nunca pularam corda? “Marx, Wood, Wei e Cristo, todos mártires, Wei a exceção.” Continua sendo verdade, como vêem. “Pela própria boca dos inocentes.” Venham, sentem-se, vocês devem estar cansados. Por que não usaram os elevadores, como todo mundo faz? Dover que bom que você voltou. Você se portou muito bem, menos naquele negócio pavoroso da ponte em ’013.


Sentaram em poltronas vermelhas, fundas e confortáveis, tomaram vinho branco, de gosto ácido, em taças cintilantes, comeram cubos de carne e peixe, docemente condimentados, e sabe-lá-mais-o-quê servido em delicados pratos brancos por membros jovens que sorriam, cheios de admiração — e enquanto deixavam-se ficar sentados a beber e a comer, conversavam com Wei.

Com Wei!

Que idade poderia ter aquela cabeça amarela de pele esticada, vivendo e falando em seu ágil corpo vestido de túnica vermelha que estendia desembaraçadamente o braço para pegar um cigarro e cruzava as pernas com tanta naturalidade? O último aniversário de seu nascimento tinha sido qual... o duocentésimo sexto, o duocentésimo sétimo?

Wei morrera aos sessenta anos, vinte e cinco anos depois da Unificação. Gerações antes da construção de Uni, que fora programado por seus “herdeiros espirituais.” Que faleceram, naturalmente, aos sessenta e dois anos. Pelo menos foi o que disseram à Família.

E ali estava ele, sentado, bebendo, comendo, fumando. Homens e mulheres parados em pé escutavam ao redor do grupo de poltronas. Ele não parecia notá-los.

— As ilhas já serviram pra tudo — disse ele. — A princípio foram os baluartes dos primeiros incuráveis. Depois, como você mesmo definiu, “pavilhões de isolamento” pra onde deixávamos, mais tarde, os incuráveis “fugir”, embora não fossemos tão bondosos a ponto de fornecer lanchas naquele tempo.

Sorriu e deu uma tragada no cigarro.

— Mas finalmente servem de parques de vida selvagem, onde líderes inatos podem surgir e revelar-se, exatamente como aconteceu com vocês. Hoje fornecemos lanchas e mapas, de uma maneira um tanto tortuosa, e “pastores” que nem Dover, que acompanham os membros durante o regresso e impedem o máximo de violência possível. E impedem, naturalmente, a derradeira violência pretendida, a destruição de Uni... embora o mostruário dos visitantes seja o alvo habitual, de modo que não há realmente nenhuma espécie de perigo.

— Eu não sei onde estou — retrucou Quem.

Karl, espetando um cubo de carne com pequeno garfo de ouro, disse:

— Dormindo no parque.

Os homens e as mulheres mais próximas riram.

Wei sorriu.

— Sim, tenho certeza de que é uma descoberta desconcertante. O computador que vocês julgavam que fosse o imutável e incontrolável déspota da Família não passa, em realidade, de escravo da Família, controlado por membros iguais a vocês... empreendedores, previdentes e solícitos. Seus objetivos e modos de agir mudam continuamente, de acordo com as decisões de um Conselho Supremo e quatorze secundários. Nós gozamos de regalias, como vêem, mas temos responsabilidades que as justificam plenamente. Amanhã vocês começarão o treinamento. Mas agora — curvou-se para frente e esmagou o cigarro no cinzeiro, — já está muito tarde, graças à predileção de vocês pelos túneis. Serão conduzidos a seus aposentos. Espero que os achem dignos da longa caminhada.

Sorriu e levantou-se. Os dois fizeram o mesmo. Apertou a mão de Karl:

— Parabéns, Karl.

E a de Quem.

— E pra você também, Quem. Nós desconfiávamos que mais cedo ou mais tarde você viria. Estamos contentes por não nos ter decepcionado. Quero dizer, eu estou. É difícil não falar como se Uni também tivesse emoções.

Ele se retirou e as pessoas formaram uma aglomeração em torno de ambos, apertando-lhes a mão e dizendo:

— Parabéns, nunca pensei que vocês conseguissem chegar antes do Dia da Unificação; é horrível, não é, quando a gente entra aqui e encontra todo mundo esperando; parabéns, vocês vão-se acostumar antes que, parabéns.


O quarto era espaçoso e azul claro, com uma vasta cama macia azul clara cheia de travesseiros, um enorme quadro de nenúfares flutuantes, uma mesa com pratos e garrafas encobertos, poltronas verde-escuro, e um jarro de crisântemos brancos e amarelos em cima de uma longa cômoda baixa.

— Que beleza — comentou Quem. — Obrigado.

A moça que o trouxera, um membro de aspecto comum, que devia ter uns dezesseis anos mais ou menos, vestida de paplão branco, disse:

— Sente-se pra eu tirar os seus...

Apontou para os pés dele.

— Sapatos — explicou, sorrindo. — Não. Obrigado, irmã. Eu posso tirar sozinho.

— Filha — corrigiu ela.

— Filha?

— Os programadores são nossos Pais e Mães.

— Ah. Está certo. Obrigado, filha. Você já pode ir.

Ela pareceu surpresa e magoada.

— Eu tenho de ficar aqui pra cuidar de você — disse.

— Nós duas.

E acenou para a porta do outro lado da cama. A luz estava acesa e ouvia-se o rumor de água corrente.

Quem foi ver o que era.

Havia um banheiro azul claro, amplo e brilhante. Outro membro adolescente, de paplão branco, estava ajoelhada ao pé da banheira que se enchia de água, mexendo com a mão dentro. Ela voltou-se, sorriu e disse:

— Olá, Pai.

— Olá — disse Quem.

Ficou parado com a mão no umbral e virou-se para a primeira garota — que puxava para trás as cobertas da cama — e contemplou de novo a segunda. Ela sorriu-lhe, ajoelhada. Continuou parado com a mão no umbral.

Filha — completou.


4

 

Estava sentado na cama — acabara de tomar o café da manhã e tinha estendido a mão para apanhar um cigarro — quando bateram na porta. Uma das garotas foi atender e Dover entrou, sorridente, limpo e cheio de vitalidade em sua túnica de seda amarela.

— Que tal está achando, irmão? — perguntou.

— Bastante bom — respondeu Quem, — Bastante bom.

A outra garota acendeu-lhe o cigarro, levou a bandeja do café e perguntou se ele não queria mais.

— Não, obrigada. Você aceita uma xícara?

— Não, obrigado — disse Dover, sentando-se e reclinando- se numa das poltronas verde-escuro, com os cotovelos sobre os braços, as mãos cruzadas na barriga, as pernas espichadas. Sorriu para Quem.

— Já se refez do choque?

— Ódio, não.

— É um costume já tradicional — explicou. — Você vai-se divertir quando chegar o próximo grupo.

— Acho uma crueldade, uma autêntica crueldade.

— Espere só, você há de rir e aplaudir como todo mundo. Com que frequência chegam os grupos?

— Às vezes leva anos, às vezes é de mês em mês. A média é mais ou menos uma pessoa por ano.

— E você estava o tempo todo em contato com Uni, seu filho da luta?

Dover sacudiu a cabeça e sorriu.

— Através de um telecomputador do tamanho de uma caixa de fósforos. Pra ser franco, foi onde o guardei.

— Cretino — disse Quem.

A garota já levara a bandeja embora. A outra trocou o cinzeiro da mesa de cabeceira, apanhando a túnica que deixara sobre o encosto de uma poltrona, e foi ao banheiro. Fechou a porta.

Dover seguiu-a com os olhos, depois virou-se para Quem com ar irônico.

— Boa noite? — perguntou.

— Hum-hum. Imagino que elas não estejam sob tratamento.

— Não, em todos os sentidos, quanto a isso não há dúvida. Espero que você não fique ressentido comigo por eu não ter insinuado nada durante o caminho. As normas são estritas: ajudar apenas no que for necessário, não fazer sugestões, nem nada; conservar-se tão neutro quanto possível e procurar impedir matanças. Eu não devia ter vindo com aquela conversa na lancha... a respeito de Liberdade ser uma prisão... mas eu estava lá há dois anos e ninguém sequer pensava em tentar alguma coisa. Pode imaginar como eu já andava impaciente.

— Sim, claro que posso — disse Quem.

Bateu a ponta do cigarro no imaculado cinzeiro branco.

— Eu preferiria que você não tocasse nesse assunto com Wei — sugeriu Dover. — Você vai almoçar com ele à uma hora.

— Karl também.

— Não, só você. Acho que ele o marcou pra entrar pro Conselho Supremo. Eu virei buscá-lo dez minutos antes. Lá dentro há uma navalha... um troço semelhante a uma lanterna. De tarde nós iremos ao centro médico, pra começar a depilação geral.

— Há centro médico aqui?

— Há — respondeu Dover. — Centro médico, biblioteca, ginásio, piscina, teatro... até um jardim que você seria capaz de jurar que está lá em cima no alto. Eu lhe mostro tudo mais tarde.

— E é aqui que nós... ficamos?

— Todos, menos nós, pobres pastores. Eu terei de ir pra outra ilha, mas só daqui a seis meses, no mínimo, graças a Uni.

Quem apagou o cigarro. Esmigalhou-o por completo.

— E se eu não quiser ficar? — disse.

— Não quiser?

— Tenho mulher e filho, lembre-se.

— Ora, uma porção de gente também tem — retrucou Dover. — Você tem uma obrigação muito maior aqui, Quem. Uma obrigação para com toda a Família, inclusive os membros das ilhas.

— Bela obrigação. Túnicas de seda e duas garotas ao mesmo tempo.

— Isso foi só pra ontem à noite. Hoje você pode-se dar por feliz se conseguir uma — endireitou o corpo. — Olha, eu sei que há... atrações laterais aqui que tornam tudo meio... discutível. Mas a Família precisa de Uni. Pense um pouco como eram as coisas em Liberdade! E ela precisa de programadores isentos de tratamento pra manobrar a Uni e... ora, Wei há de explicar isso melhor do que eu. E, seja como for, a gente usa paplão um dia da semana. E come bolos.

— Um dia inteiro? Não diga!

— Está bem, O.K. — disse Dover, levantando-se.

Dirigiu-se a uma poltrona onde estava a túnica verde de

Quem, pegou-a e apalpou os bolsos.

— Tem tudo aqui? — perguntou.

— Sim — respondeu Quem. — Inclusive algumas fotos que eu gostaria de guardar.

— Desculpe-me, mas você não pode guardar nada do que trouxe. É outra norma — juntou os sapatos de Quem do soalho, ficou parado e olhou para ele. — No começo todo mundo sente uma certa insegurança. Você ficará orgulhoso de ficar aqui depois que adquirir uma perspectiva justa das coisas. É uma obrigação.

— Vou procurar lembrar-me.

Bateram na porta e a garota que levara a bandeja entrou com túnicas de seda azul e sandálias brancas. Deixou-as ao pé da cama.

— Se você quiser paplão a gente pode dar um jeito — sugeriu Dover, sorrindo.

A garota olhou para ele.

— Ódio, não — recusou Quem. — Acho que sou tão digno de usar seda como todo mundo que anda por aqui.

— Você é — concordou Dover. — Você é, Quem. Até às dez pra uma, O.K.?

Encaminhou-se à saída sobraçando a túnica verde, com os sapatos na mão. A garota apressou-se em abrir-lhe a porta.

— Que aconteceu a Buzz? — perguntou Quem.

Dover parou e voltou-se, com ar de pesar.

— Ele foi capturado em ’015.

— E submetido a tratamento?

Dover acenou afirmativamente com a cabeça.

— Outra norma — disse Quem.

Dover acenou de novo, virou as costas e foi embora.


Havia bifes bem finos, cozidos num molho escuro levemente condimentado, minúsculas cebolas tostadas, um legume amarelo em fatias que Quem não tinha visto em Liberdade — abóbora, informou Wei — e vinho rosado, menos saboroso que o branco da véspera. Comeram com facas e garfos de ouro, em pratos de largas beiras douradas.

Wei, de seda cinza, comia depressa, cortando o bife, metendo o garfo na boca de lábios enrugados e mastigando apenas o suficiente antes de engolir e levantar o garfo outra vez. De vez em quando fazia uma pausa, tomava vinho e comprimia o guardanapo amarelo aos lábios.

— Essas coisas existiram — disse. — Qual seria a vantagem de destruí-las?

A sala era ampla e ricamente decorada em estilo Pré-U: brancos, dourados, laranjas, amarelos. A um canto, dois membros de túnica branca aguardavam ao lado de uma mesa móvel de servir.

— Claro que a princípio parece errado — continuou Wei, — mas as decisões finais têm que ser tomadas por membros isentos de tratamento, que não podem, nem devem, viver à custa de bolos, televisão e Marx Escrevendo.

Sorriu.

— Nem mesmo de Wei Discursando aos Quimioterapeutas — disse, metendo uma garfada de bife na boca.

— Por que a Família não pode tomar decisões por si mesma? — perguntou Quem.

Wei mastigou e engoliu.

— Porque não tem condições — respondeu. — Quer dizer, condições racionais. Isenta de tratamento, ela fica... bem, você teve uma amostra na ilha: fica mesquinha, tola e agressiva, levada em geral mais pelo egoísmo do que por qualquer outra coisa. Egoísmo e medo.

Pôs cebolas na boca.

— Ela realizou a Unificação — disse Quem.

— Hum, sim, mas depois de quanta luta! E que estrutura precária tinha a Unificação antes de a reforçarmos com os tratamentos! Não, a Família precisa de ajuda pra alcançar a plena humanidade... hoje por meio de tratamentos, amanhã através da engenharia genética... e temos que tomar decisões por ela. Os que dispõem de recursos e inteligência têm até o dever de tomar. Eximir-se seria uma traição contra a espécie.

Meteu uma garfada de bife na boca, levantou a outra mão e acenou.

— E faz parte do dever — perguntou Quem — matar os membros aos sessenta e dois anos?

— Ah, isso — retrucou Wei, sorrindo. — Sempre uma questão fundamental, colocada nos termos mais rigorosos.

Os dois membros se aproximaram, um com a garrafa de vinho, o outro com uma travessa de ouro que segurou ao lado de Wei.

— Você está considerando a situação sob um ponto de vista único — continuou Wei, pegando o garfo e uma colher grande e levando um bife da bandeja, escorrendo molho. — O que você não leva em conta é o número incalculável de membros que morreriam antes dos sessenta e dois se faltasse a paz, estabilidade e bem-estar que nós proporcionamos. Pense um pouco na massa, não nos indivíduos que a compõem.

Colocou o bife em seu prato.

— Nós acrescentamos muito mais anos à longevidade da Família do que subtraímos. Muito, muito mais. — pegou a colher, cobriu o bife de molho e serviu-se de cebolas e abóbora.

— Quem?

— Não, obrigado.

Quem cortou um pedaço da metade do bife que ainda tinha no prato. O membro que segurava a garrafa tornou a encher-lhe o copo.

— A propósito — disse Wei, cortando o bife, — o verdadeiro tempo da morte atualmente aproxima-se mais de sessenta e três do que de sessenta e dois. E aumentará cada vez mais, à medida que a população da Terra for-se reduzindo gradativamente.

Encheu a boca de bife.

Os membros retiraram-se.

Os membros que não nascem estão incluídos em seu balanço de anos acrescentados e subtraídos?

— Não — respondeu Wei, sorrindo. — Não somos tão irrealistas assim. Se esses membros de fato nascessem, não haveria mais estabilidade, nem bem-estar e, com o correr do tempo, nem Família.

Pôs abóbora na boca, mastigou e engoliu.

— Não espero que você mude de ideias com um único almoço — disse. — Olhe por aí, fale com o pessoal, pesquise na biblioteca... principalmente nas estantes de História e Sociologia. Eu efetuo conferências sem formalismo algumas noites por semana... quem já foi professor, nunca deixa de sê-lo... das quais às vezes participo, debato, discuto.

— Eu deixei mulher e filho de colo em Liberdade — lembrou Quem.

— Donde deduzo — contrapôs Wei com um sorriso, — que não tinham tanta importância assim pra você.

— Eu contava voltar pra lá.

— Em último caso, sempre se pode tomar providências pra que não lhes falte nada. Dover me disse que você já havia tratado disso.

— Terei permissão pra voltar? — perguntou Quem.

— Você nem vai querer — respondeu Wei. — Terminará reconhecendo que nós estamos com a razão e que a sua responsabilidade é aqui. — Bebeu vinho e secou os lábios com o guardanapo.

— Se estivermos equivocados em relação a certos pormenores, um dia você pode sentar-se no Conselho Supremo e corrigi-los. Está, por acaso, interessado em arquitetura ou planejamento urbano?

Quem olhou para ele durante algum tempo.

— Já pensei uma ou duas vezes em projetar edifícios.

— Uni acha que você devia participar atualmente do Conselho de Arquitetura. Faça-lhe uma visita. Consulte Madhir, que é o diretor.

Pôs cebolas na boca.

— Eu de fato não sei nada... — disse Quem.

— Pode aprender, se estiver interessado — retrucou Wei, cortando o bife. — Há tempo de sobra.

Quem olhou para ele.

— E — concordou. — Parece que os programadores vivem sessenta e dois anos. Até mesmo mais que sessenta e três.

— Os membros excepcionais precisam ser preservados ao máximo. Para o bem da Família — encheu a boca de bife e mastigou, fitando Quem com os olhos amendoados. — Quer saber de uma coisa incrível? É quase certo que a sua geração de programadores viverá indefinidamente. Não é fantástico? Nós, os velhos, morreremos mais cedo ou mais tarde... os médicos dizem que talvez não, mas Uni afirma que sim. Vocês, os jovens, com toda a probabilidade não morrerão. Jamais.

Quem pôs um pedaço de bife na boca e mastigou-o devagar.

— Imagino que seja uma ideia perturbadora. Ela ficará mais sedutora à medida que você envelhecer.

Quem engoliu o que tinha na boca. Olhou para Wei, fitou o seu peito de seda cinza e tomou a encará-lo.

— Aquele membro — disse. — O vencedor do decatlo. Ele morreu de morte natural ou foi assassinado?

— Foi assassinado. Com sua permissão, espontânea, podia dizer até insistente.

— Evidente. Estava sob tratamento.

— Um atleta? Fazem muito pouco. Não, ele se sentiu orgulhoso em se tornar... unido a mim. Sua única preocupação era se eu iria mantê-lo em forma... bastante justificada, aliás. Você verá como as crianças, os membros comuns que vivem aqui, competem entre si pra ceder partes do próprio corpo pra transplantes. Se você quiser substituir esse olho, por exemplo, vão se meter a toda hora no seu quarto pra implorar a honra.

Pôs abóbora na boca.

Quem remexeu-se no assento.

— Meu olho não incomoda. Eu gosto dele.

— Pois não devia gostar. Se fosse um defeito irreparável, então seria normal que se conformasse com ele. Mas uma imperfeição que pode ser remediada? Isso nunca se deve aceitar — cortou o bife. — Todos nós devemos ter objetivo único... a perfeição. Ainda não chegamos lá, mas um dia chegaremos: uma Família tão geneticamente aperfeiçoada que os tratamentos se tornarão dispensáveis; um corpo de programadores eternamente vivos para que as ilhas também possam ser unificadas; perfeição na Terra, cada vez mais “para o alto, para o alto, até atingir as estrelas”.

O garfo, com um pedaço de bife, hesitou diante dos lábios. Perdeu o olhar na distância.

— Sonhei com isto quando era moço: um universo dos brandos, dos solícitos, dos amorosos, dos altruístas. Não hei de morrer sem vê-lo. Não hei de morrer sem vê-lo.


Dover conduziu Quem e Karl através do complexo nessa tarde — mostrou-lhes a biblioteca, o ginásio, a piscina e o jardim (Cristo e Wei. Esperem pra ver o Pôr-do-sol e as Estrelas); o auditório de música, o teatro, os salões; o refeitório e a cozinha (“Sei lá, de um lugar qualquer”, respondeu um membro que observava os demais a retirar montes de alface e limões de um carrinho de aço. “Tem tudo o que a gente precisa” — acrescentou, sorrindo. — “Pergunte a Uni”.) Havia quatro pavimentos, transpostos por pequenos elevadores e estreitas escadas rolantes. O centro médico era no bem de baixo. Dois médicos chamados Boro-viev e Rosen, jovens de movimentos ágeis e rosto enrugado e velho como o de Wei, deram-lhes boas-vindas, examinaram ambos e aplicaram-lhes infusões.

— Podemos substituir esse olho num instante, sabe? — disse Rosen a Quem.

— Eu sei. Obrigado, mas ele não incomoda.

Nadaram na piscina. Dover foi nadar com uma mulher bonita e alta que Quem tinha notado aplaudindo na véspera, e ele e Karl sentaram na beira da piscina, observando o casal.

— Que é que você está achando? — perguntou Quem.

— Não sei —respondeu Karl. — Estou contente, lógico, e Dover diz que é tudo necessário e que temos o dever de ajudar, mas... não sei. Ainda que eles estejam manobrando o Uni, é sempre o Uni, não é?

— É. É oque eu também acho.

— Teria havido um rebuliço danado lá em cima se tivesse saído como planejamos, mas no fim tudo ia acabar mais ou menos do mesmo jeito — sacudiu a cabeça. — Eu sinceramente não sei, Quem. Qualquer sistema que a Família inventasse por conta própria com certeza resultaria bem menos eficiente do que Uni, do que este pessoal aí. Isso você não pode negar.

— Não, realmente.

— Não é fantástica a longevidade que eles têm? Ainda não me acostumei com o fato que... olha só aqueles seios! Cristo e Wei.

Uma mulher de pele clara e seios redondos mergulhou na piscina no lado oposto.

— Depois a gente conversa mais, O.K.? — disse Karl, escorregando para dentro d’água,

— Claro, há tempo de sobra — concordou Quem.

Karl sorriu-lhe, bateu os pés e afastou-se com largas braçadas.


Na manhã seguinte Quem saiu do quarto e atravessou o corredor atapetado de verde e coberto de quadros em direção a uma porta de aço que havia no fundo. Não tinha chegado muito longe quando ouviu a voz de Dover, a seu lado.

— Oi, irmão,

— Oi.

Virou a cabeça para a frente e continuou caminhando.

— Estou sendo vigiado?

— Só quando você toma esta direção — respondeu Dover.

— Eu não poderia fazer nada de mãos vazias mesmo que quisesse.

— Eu sei. Mas o velho é cauteloso. Mentalidade Pré-U — bateu de leve na têmpora e sorriu. — E apenas por alguns dias.

Foram até o fundo e a porta de aço se abriu de par em par, revelando um longo corredor de azulejos brancos. Um membro de azul tocou no controle e cruzou o limiar.

Os dois se viraram e começaram a voltar. A porta fechou-se com um sussurro às suas costas.

— Você ainda chegará a vê-lo — prometeu Dover. — Provavelmente ele mesmo lhe mostrará. Quer ir ao ginásio?

De tarde Quem visitou os escritórios do Conselho de Arquitetura. Um velho baixote e alegre reconheceu-o e deu-lhe as boas vindas: era Madhir, o diretor. Aparentava ter mais de cem anos. As mãos também — dos pés à cabeça, pelo jeito. Apresentou Quem aos demais membros do Conselho: uma velha chamada Sylvie, um homem de cabelo cor de fogo, que devia andar mais ou menos pelos cinquenta, cujo nome Quem não entendeu, e uma mulher baixa, mais interessante, chamada Gri-gri. Quem tomou café com eles e comeu um doce recheado de creme. Mostraram- lhe uma série de projetos que estavam discutindo, plantas que Uni havia traçado para a reconstrução das “cidades G-3”. Conversaram sobre a conveniência de refazer as plantas segundo especificações diferentes, formularam perguntas a um. telecomputador e discordaram quanto ao significado das respostas obtidas. Sylvie, a velha, deu uma explicação minuciosa dos motivos por que as plantas lhe pareciam desnecessariamente monótonas. Madhir quis saber a opinião de Quem. Ele respondeu que não sabia. A mulher mais jovem, Gri-gri, sorriu-lhe, toda sedutora.

Houve uma festa no salão principal essa noite.

— Feliz ano novo!

— Feliz ano U!

E Karl gritou no ouvido de Quem:

— Quer saber de uma coisa que não me agrada neste lugar? Não tem uísque! Que espeto! Se a gente pode beber vinho, por que não uísque?

Dover estava dançando com a mulher parecida com Lilás (nem tanto, não tinha a metade da sua beleza) e havia gente que Quem conhecia de refeições, encontros no ginásio, do auditório de música, gente que conhecia de vista, de uma ou outra parte do complexo, gente que jamais vira antes; havia mais gente do que na noite em que ele e Karl tinham chegado — quase uma centena de pessoas, com membros de paplão branco passando bandejas no meio da multidão.

— Feliz ano U! — Alguém lhe disse, uma mulher de idade que estivera em sua mesa de almoço, Hera ou Hela. — Já é quase 172!

E seguiu adiante.

Wei estava na soleira da porta, de branco, cercado por uma pequena aglomeração. Apertava-lhes a mão, beijava-lhes a face, o encarquilhado rosto amarelo desmanchando-se num sorriso radiante, os olhos desfeitos em rugas. Quem afastou-se o quanto pôde, perdendo-se entre toda aquela gente. Gri-gri abanou, aos pulos, para conseguir enxergá-lo por cima das pessoas que os separavam. Ele abanou-lhe também, sorriu, mas não se deteve.

Passou o dia seguinte, Festa da Unificação, no ginásio e na biblioteca.

Compareceu a algumas das conferências noturnas de Wei. Eram efetuadas no jardim, lugar muito agradável. A relva e as árvores eram autênticas, e as estrelas e a lua constituíam reproduções perfeitas dos originais, a lua mudando de fase, mas nunca de posição. Às vezes os pássaros trinavam e soprava uma brisa suave. Em geral, quinze ou vinte programadores participavam das discussões, sentados em cadeiras ou sobre a relva. Wei, numa cadeira, era quem mais usava da palavra. Desenvolvia citações da Sabedoria Viva, passando habilmente dos pormenores às generalidades das questões. De quando em quando, acatava a opinião do diretor do Conselho de Educação, Gustafsen, ou de Boroviev, chefe do Conselho Médico, ou de qualquer outro membro do Conselho Supremo.

A princípio Quem manteve-se discretamente afastado do grupo, limitando-se a ouvir, mas depois começou a fazer perguntas: por que não se podia, ao menos em parte, colocar de novo os tratamentos numa base facultativa; por que a perfeição humana não podia incluir um certo grau de egoísmo e agressividade; e se era ou não um fato que o egoísmo desempenhava fator preponderante em sua própria aceitação dos pretensos “dever” e ‘‘responsabilidade”. Alguns programadores vizinhos mostraram-se indignados com essas perguntas, mas Wei respondeu-as paciente e exaustivamente. Dir-se-ia mesmo que as acolhia de bom grado, sempre pronto a dar-lhe prioridade, atendendo-o antes que os outros. Aos poucos Quem foi-se aproximando do centro do grupo.

Uma noite, sentou-se na cama, acendeu um cigarro e fumou no escuro.

A mulher deitada a seu lado acariciou-lhe as costas.

— Está certo, Quem — disse. — É o que convém a todos.

— Você adivinha pensamentos?

— Às vezes.

Chamava-se Deirdre e pertencia ao conselho das Colônias. Tinha trinta e oito anos, pele clara e não era especialmente bonita, mas era sensata, bem feita de corpo e boa companhia.

— Estou começando a achar que é de fato o que convém — disse Quem, — e não sei se estou me deixando levar pela lógica de Wei ou pelas lagostas, Mozart e você. Sem contar a perspectiva de vida eterna.

— Essa me assusta — retrucou Deirdre.

— A mim também.

Ela continuou a acariciar-lhe as costas.

— Eu demorei dois meses até me acostumar — disse,

— Foi assim que você encarou a coisa? Acostumar-se?

— Foi. E ficar adulta. Enfrentar a realidade.

— Então por que é que dá impressão de renúncia?

— Deite-se aqui — pediu Deirdre.

Ele apagou o cigarro, pôs o cinzeiro na mesa de cabeceira e, virando-se para ela, deitou-se. Abraçaram-se e beijaram-se.

— E, sim. No fim das contas é o que convém a todos. Aos poucos a gente vai melhorando a situação, trabalhando em nossos respetivos conselhos.

Beijaram-se e acariciaram-se. Depois empurraram longe os lençóis, ela passou a perna sobre o quadril de Quem, que, em ereção, introduziu-se nela com facilidade.

Estava sentado uma manhã na biblioteca quando alguém segurou-o pelo ombro. Virou-se, assustado, e deparou com Wei. Ele curvou-se, afastando Quem para o lado e colocou o rosto no visor do leitor.

Após um instante, comentou:

— Olhe, você procurou o homem certo.

Manteve o rosto no visor mais um pouco e por fim pôs-se em pé, largando o ombro de Quem e sorrindo-lhe.

— Leia Liebman também — disse. — E Okida e Marcuse. Vou fazer uma lista de títulos pra lhe entregar no jardim hoje à noite. Você irá?

Quem fez que sim.


Seus dias caíram numa rotina: manhãs na biblioteca, tardes no Conselho. Estudou métodos de construção e planejamento de meio-ambiente. Examinou mapas de escoamento de fábricas e formas de circulação de prédios de moradia. Madhir e Sylvie mostraram-lhe plantas em fase de construção e edifícios planejados para o futuro, de cidades já existentes e (em cobertura plástica) as modificações que poderiam sofrer algum dia. Era o oitavo membro do Conselho. Dos sete restantes três estavam inclinados a rejeitar os projetos apresentados por Uni e mudá-los, e quatro — inclusive Madhir — inclinavam-se a aceitá-los sem discussão. Efetuavam reuniões solenes nas tardes de sexta-feira. Noutras ocasiões era difícil encontrar mais do que quatro ou cinco dos membros nos escritórios, Certa vez apenas Quem e Grí-grí apareceram, e terminaram copulando no sofá de Madhir.

Depois do Conselho, Quem usava o ginásio e a piscina. Comia em companhia de Deirdre, Dover e da companheira-do-dia de Dover, e com quem se dispusesse a reunir-se ao grupo — às vezes Karl — no Conselho de Transportes, e resignava-se a beber vinho.

Um dia, em fevereiro, Quem perguntou a Dover se não seria possível entrar em contato com quem o tivesse substituído em Liberdade, apurando se Lilás e Jan se achavam bem e se Júlia estava cuidando de ambos conforme prometera.

— Lógico — respondeu Dover. — Não tem o menor problema.

— Então você quer providenciar? — pediu Quem. — Eu ficaria muito grato.

Poucos dias depois, Dover encontrou Quem na biblioteca.

— Tudo em ordem — disse. — Lilás passa os dias em casa, comprando comida e pagando o aluguel, portanto Júlia está cumprindo a promessa.

— Obrigado, Dover. Eu andava preocupado.

— O homem lá vai ficar de sobreaviso·— disse Dover.

— Se ela precisar de alguma coisa, pode-se mandar dinheiro pelo correio.

— Ótimo. Wei me falou — sorriu. — Pobre Júlia, sustentando todas aquelas famílias sem necessidade. Se ela soubesse, teria um ataque.

Dover sorriu.

— Teria mesmo. Claro, nem todos os que partem chegam até aqui. De maneira que em certos casos há necessidade.

— Tem razão — concordou Quem. — Eu não havia pensado nisso.

— Até a hora do almoço — despediu-se Dover.

— Até. Obrigado.

Dover foi embora e Quem virou-se para o visor, curvando o rosto no anteparo. Colocou o dedo no botão da página seguinte e, depois de uma pausa, apertou-o.


Começou a manifestar-se nas reuniões do Conselho e a formular menos perguntas nas conferências de Wei. Apresentaram uma petição para reduzir os dias de bolo a um por mês. Ele hesitou, mas acabou assinando. Trocou Deirdre por Blackie e esta por Nina, mas voltou a Deirdre. Escutou anedotas picantes e piadas sobre os membros do Supremo Conselho nos salões mais íntimos. Aderiu à febre de fazer aviões de papel e falar línguas da Pré-U (aprendeu que “Français” pronunciava-se “Fransais”).

Uma manhã acordou cedo e foi para o ginásio. Wei já estava lá, pulando barra e brandindo halteres, lustroso de suor, os músculos bem delineados, estreito de quadris, com suporte atlético preto e qualquer coisa branca atada no pescoço.

— Madrugando, hem? Bom dia.

E continuou a flexionar as pernas, sem parar, levantando e baixando os halteres acima da cabeça de ralos fios brancos.

— Bom dia — disse Quem.

Dirigiu-se a um canto do ginásio, tirou o roupão e pendurou-o no gancho. Outro roupão, azul, pendia a poucos passos de distância.

— Ontem você não apareceu na conferência — comentou Wei.

Quem voltou-se.

— Houve uma festa — explicou, descalçando as sandálias. — O aniversário de Patya.

— Não faz mal — disse Wei, saltando de pernas abertas e brandindo os halteres. — Falei só por falar.

Quem aproximou-se de uma esteira e começou a caminhar sem sair do mesmo lugar. A coisa branca no pescoço de Wei era uma faixa de seda, firmemente amarrada.

Wei parou de saltar, largou os halteres e apanhou a toalha de cima de uma das barras paralelas.

— Madhir está com receio de que você se transforme num radical — disse, sorrindo.

— Ele nem sabe da metade.

Wei ficou olhando-o, sempre sorridente, passando a toalha sobre os ombros; musculosos e debaixo dos braços.

— Vem praticar todas as manhãs? — perguntou Quem.

— Não, só uma ou duas vezes por semana. Não sou atlético por natureza.

Esfregou a toalha nas costas.

Quem parou de caminhar no mesmo lugar.

— Wei, eu preciso falar com você sobre um assunto.

— Sim? Qual é?

Quem deu um passo em sua direção.

— Quando cheguei aqui pela primeira vez, e nós dois almoçamos juntos...

— Que é que tem?

Quem pigarreou.

— Você falou que se eu quisesse poderia trocar o meu olho. Rosen disse a mesma coisa.

— Mas lógico. Você quer?

Quem olhou-o, hesitante.

— Não sei, parece uma vaidade tão... Mas sempre me constrangeu um pouco...

— Corrigir um defeito não é vaidade. Não corrigir é que é negligência.

— Não daria pra pôr uma lente? Uma lente castanha?

— Dá, sim, se você quiser apenas disfarçar em vez de corrigir.

Quem desviou os olhos e depois tomou a encará-lo

— Está bem — disse. — Eu gostaria de trocar, pra acabar logo com isso.

— Ótimo — concordou Wei, e sorriu. — Eu já troquei de olhos duas vezes. A gente fica com a visão nublada durante alguns dias, mais nada. Vá lá embaixo no centro médico agora de manhã mesmo. Vou pedir a Rosen pra ele se encarregar pessoalmente, assim que ele puder.

— Obrigado.

Wei enrolou a toalha na faixa branca do pescoço, virou- se para as barras paralelas e ergueu o corpo, apoiado nos braços tesos.

— Mas não conte pra ninguém — recomendou, passando entre as barras em cima das mãos, — senão as crianças vão começar a incomodar.


Tudo pronto. Olhou-se no espelho. As duas vistas estavam castanhas. Sorriu, recuou um passo, e voltou a se aproximar. Examinou-se de um lado e de outro, sorrindo.

Depois que se vestiu, foi-se admirar outra vez.

Deirdre, na sala de estar, exclamou:

— Mas que tremenda melhora! Você está maravilhoso! Karl, Gri-gri, vejam o olho de Quem!

Os membros os ajudaram a envergar os pesados casacões verdes, espessamente acolchoados e encapuzados. Fecharam os botões, calçaram as grossas luvas verdes e um membro abriu a porta. Os dois, Wei e Quem, entraram.

Caminharam lado a lado por um corredor ladeado das paredes de aço de comportas de memória, desprendendo bafo ao respirar pelas narinas. Wei explicou a temperatura interna, o peso e o número das comportas. Dobraram para um corredor mais estreito, onde as paredes de aço se estendiam à sua frente até convergirem para uma longínqua parede transversal.

— Já estive aqui quando criança — disse Quem.

— Dover me contou.

— Na época me deu medo. Mas há uma espécie de... imponência. A ordem e a precisão...

Wei sacudiu a cabeça, os olhos rútilos.

— Sim — concordou. — Vivo procurando pretextos pra vir cá.

Dobraram outro corredor transversal, cruzaram por uma coluna e foram sair noutro corredor estreito, totalmente ladeado por comportas de aço de memória.

Novamente de túnica, contemplaram um vasto poço gradeado, redondo e profundo, onde havia suportes de aço e concreto, ligados por ramificações azuis e impelindo braços mais grossos, também em sentido ascendente até tocar no teto baixo profusamente iluminado.

— Parece-me que você tinha um interesse especial pelas usinas de refrigeração — disse Wei, sorrindo.

Quem ficou contrafeito.

Havia uma coluna de aço junto ao poço. Do outro lado ficava um segundo poço gradeado, com ramificações azuis. Depois, nova coluna e novo poço. A sala era imensa, fria e silenciosa. As duas extensas paredes estavam repletas de aparelhos de transmissão e recepção, com lâmpadas de precisão cintilando vermelhas. Membros de azul tiravam e substituíam painéis verticais de duas alças, pontilhados de preto e dourado. Quatro reatores de cúpula vermelha achavam-se situados numa extremidade da sala e atrás deles, protegidos por vidraças, meia dúzia de programadores, sentados num consolo circular, liam diante de microfones, folheando páginas.

— Aí está — disse Wei.

Quem olhou ao redor daquilo tudo. Sacudiu a cabeça e soltou a respiração.

— Cristo e Wei — exclamou.

Demoraram-se um pouco, conversando, olhando, falando com alguns membros e finalmente saíram da sala, caminhando pelos corredores de azulejos brancos. Uma porta de aço abriu-se de par em par. Atravessaram-na e percorreram lado a lado o corredor atapetado que vinha a seguir.

 

 

                                                                  Ira Levin

 

 

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