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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTÓRIAS DA VELHA TOTÔNIA / José Lins do Rego
ESTÓRIAS DA VELHA TOTÔNIA / José Lins do Rego

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ainda me lembro hoje da Velha Totônia, bem velha e bem magra, andando, de engenho a engenho, contando as suas estórias de Trancoso. Não havia menino que não lhe quisesse um bem muito grande, que não esperasse, com o coração batendo de alegria a visita da boa velhinha, de voz tão mansa e de vontade tão fraca aos pedidos dos seus ouvintes.
Todas as velhas Totônias do Brasil se acabaram, se foram. E outras não vieram para o seu lugar. Este livro escrevi pensando nelas... Pensando na sua velha Totônia de Sergipe, Sílvio Romero recolheu estas mesmas estórias que eu procuro contar aos meninos do Brasil.
Quisera que todos eles me ouvissem com a ansiedade e o prazer com que eu escutava a velha Totônia do meu engenho.
Se eu tiver conseguido este milagre, não precisarei de maior alegria para a minha vida.

 


 


O MACACO MÁGICO
HAVIA um homem que era muito pobre, mas que era muito bom. Trabalhava, como o pai de Nosso Senhor, em madeira. E morava num quarto que só dava mesmo para o banco onde ele trabalhava. Todo o mundo conhecia o marceneiro Botelho. Nunca um pobre bateu em sua porta que não recebesse uma esmola. Seu Botelho era um santo.
Uma noite, chovia muito. O vento soprava com uma força danada nos pés de mangueira, querendo quebrar tudo. Fazia muito frio, a chuva roncava, de tão forte. Então seu Botelho ouviu que estavam batendo na porta.
Ô de casa, gritaram do lado de fora.
Ô de fora! Respondeu o marceneiro.
E foi abrir a porta.
Pode entrar, meu amigo, disse o dono da casa.
Era o macaco Felisberto, muito conhecido das redondezas pelas suas estripulias.
- Boa-noite, "seu" Botelho, disse o macaco. Venho de longe, de muito longe, debaixo dessa chuva que não pára mais. Que tempo medonho, seu Botelho! Bati na casa de muita gente e ninguém me quis dar uma pousada. Então me lembrei do senhor.
- Pois não, macaco Felisberto, respondeu o marceneiro. A casa é sua. Só tenho mesmo este quarto, mas você pode se aboletar por aqui, até que o tempo levante.
E conversaram até alta noite. O macaco contou a sua vida. Andava muito perseguido pelo rei dos animais, o leão, que queria que ele fosse todos os dias beijar os pés dele e fazer graças.
- Ah, "seu" Botelho, que vida triste é a minha! O leão só acha graça no que eu faço. Pedi até ao elefante para dançar na frente do rei, mas o rei nem abriu os dentes. Elefante não dá para a coisa não. Experimentei todos os bichos meus conhecidos. Mas qual! O leão só quer o macaco Felisberto. E quando está com raiva, dando urros, querendo brigar com todo o mundo, só melhora da ira quando eu chego. E não pense o senhor que ele me dê alguma coisa. Tudo é de graça. Nunca me deu uma pataca. E eu que tenho que andar por aí a fora fazendo o diabo para sustentar a minha família! Outro dia, eu estava tirando o meu nas bananeiras do padre. Estava comendo as minhas bananas e quando eu vi, foi o padre Luís, com a espingarda atrás de mim. Saltei para um pé de cajá, pulei de galho em galho, e o padre perdeu o tiro dele. O leão podia é me arranjar um emprego. Mas qual! Só quer de mim é a graça. Isto é demais.
O marceneiro contou também a sua vida:
- Passo o dia no trabalho, amigo macaco, lavrando madeira para o rei. Toda obra difícil o rei manda para mim. E o que ele me dá nem chega para eu comer bem. Isto não é nada, seu Felisberto. O dia inteiro no pesado e quando chega a noite só tenho mesmo coragem de dormir. Por aí anda gente que não faz nada e vive na fartura. Eu não me lastimo, não. Tudo é como Deus quer. Respeito as vontades de Deus. A vida é isto mesmo, seu Felisberto. Pode o senhor ficar aqui até o tempo que quiser. É uma companhia para mim.
Depois foram dormir.
O macaco, muito feliz, porque há muito tempo que não encontrava um lugar tão bom para dormir. De manhã, ele ouvia da cama os passarinhos cantando. E espichou o corpo de preguiça. E ali de cima da cama, ele se lembrou que era um mágico.
O macaco Felisberto era um mágico. E tinha uma gaita que era o mesmo que uma vara de condão. E assim ele foi pensando. Aquele marceneiro merecia que ele fizesse tudo por ele. Aquele que era um homem! Homem que não se comparava nem com o rei dos animais nem com o rei dos homens. Ele iria dar ao seu amigo tudo o que pudesse fazer com a sua força.
E assim pensando, saiu para a mata, deixando o "seu" Botelho no trabalho. E quando o Felisberto chegou ao meio da mata, tirou a sua flauta do bolso e começou a tocar. E começaram a chegar veadinhos novos para ouvir o toque do macaco. E quando já tinha cem, Felisberto reuniu todos e saiu tocando a flauta. Os bichos iam atrás de Felisberto embebidos, de ouvidos abertos para o canto. Felisberto foi andando para o Palácio do rei dos homens.
E quando o rei viu aquilo, ficou besta de ver cem veadinhos do mesmo tamanho, da mesma cor, tão mansos como carneiros ensinados.
- Saiba Vossa Majestade, disse o macaco, que é este o presente que lhe manda o meu senhor, o conhecido Dr. Botelho.
O rei não teve palavras para agradecer. Mandou chamar o seu tesoureiro e disse para o velho, que tinha muitas chaves na mão:
- Enche os alforjes do macaco Felisberto e dá para ele dez barras de ouro, para que êle ofereça ao seu senhor.
O macaco deu saltinhos de alegria.
E quando chegou a casa com as barras de ouro, o marceneiro ficou sem saber o que falar, de tão espantado. Foi o rei que tinha mandado para ele, lhe disse o macaco Felisberto. O rei estava tão contente com os trabalhos dele que mandava aquele ouro.
Botelho deu graças a Deus pela lembrança do rei e foi logo querendo dar ao companheiro uma barra.
- Para que macaco com ouro? Lhe disse Felisberto. Tendo banana para comer é o que eu quero.
No outro dia Felisberto saiu à mesma hora para a mata. E chegando lá tirou a sua flauta do bolso e começou a tocar. E veio logo chegando tudo que era pássaro para ouvir o macaco. Nunca ali naquelas matas pássaro nenhum tinha cantado. Nem o sabiá-gongá, de tardinha, cantava assim; nem o canário que fugiu da gaiola do rei, cantava daquele jeito; nem os concris, os que tocavam o que queriam, cantavam como a gaita do macaco Felisberto. As patativas olhavam uma para a outra, com vergonha de abrir o bico por aquelas matas. E Felisberto foi olhando para todos os pássaros. O rei tinha de todos, o rei tinha pássaros lindos nas suas gaiolas. Foi quando apareceu uma garça que era uma beleza, de penas mais alvas que um capulho de algodão. Era aquilo que o rei não tinha. E ele daria tudo para possuir uma beleza daquelas. E Felisberto puxou pela gaita. E começaram a chegar garças do mesmo tamanho, de pernas cinzentas, de penas branquinhas. E quando já tinha mil, ele formou todas, duas a duas, e se foi de mata a fora, puxando o cortejo com a sua gaita. Parecia um acompanhamento de casamento real. E as mil garças chegaram à porta do rei depois do almoço. Sua Majestade estava de rede, bem deitado, tomando a fresca, no alpendre do palácio. Cem escravas abanavam o rei, cem anões davam saltinhos na sua frente. Uma princesa cantava para ele dormir. Quando Felisberto foi se aproximando, parou tudo. O toque da gaita parecia uma música de anjo. O rei disse logo:
- Aquilo é o macaco Felisberto que vem chegando com outro presente do Dr. Botelho.
E era mesmo. O rei não pensava que fosse aquilo, de tão bonito que era. Mil garças, duas a duas, guiadas pelo macaco, vinham chegando. A cabeça estava no terreiro do palácio e o resto vinha quase que a uma légua de distância. O rei ficou babado de gozo. O que era aquilo que ele nunca tinha visto! As garças andavam em cima de um pé só, e todas tinham o pescoço comprido, pendendo para um lado só. Aí Felisberto parou de tocar. E falou para o rei:
Saiba Vossa Majestade que o meu senhor, o Dr. Botelho, mandou para prazer de Vossa Real Majestade estas mil garças do seu quintal.
Que homem rico é este Dr. Botelho, disse o rei, para criar no seu quintal tantas garças?
Estas são somente as crias de um mês, saiba Vossa Real Majestade, respondeu o macaco.
Então o rei mandou chamar o seu tesoureiro e disse:
- Abra os meus tesouros e tire vinte barras de ouro para dar ao macaco Felisberto.
O macaco deu três saltos de contente, encheu os seus alforjes e voltou para a casa do seu amigo. E lá chegando, foi logo dizendo a ele:
- Amigo Botelho, El-Rei nosso senhor mandou este presentinho pelos teus serviços. Ele gostou tanto da cadeira de palhinha que fizeste para ele, que quis te pagar como um verdadeiro rei deve pagar aos seus oficiais.
O marceneiro nem sabia onde botar tanto dinheiro.
- Amigo macaco, já começo a me incomodar com tanto ouro, respondeu o marceneiro. Amanhã vou dar muita esmola na feira.
E foi o que ele fez no outro dia. Todo o mundo na cidade ficou dizendo que o marceneiro Botelho tinha achado uma botija. E os pobres fizeram uma festa com as esmolas. Muitos saíram gritando pela rua, de contentes, dizendo pelas casas que o seu Botelho era melhor do que o rei, que o seu Botelho era um santo, um amigo de Deus.
Na outra semana Felisberto saiu para dar o seu passeio na mata. E chegando lá, tirou a sua flauta do bolso e começou a tocar. Veio tudo que era bicho para ouvir. Os tatus botavam a cabeça para fora dos seus buracos. As preguiças espichavam os braços. O que elas faziam numa semana, a gaita do Felisberto fazia que elas fizessem num minuto. As cobras ficavam de papo para o ar, enroscando-se de alegria. O veneno caía da boca das cobras com o canto de Felisberto. Os espinhos dos caititus ficavam macios como pena de pássaro, com o canto de Felisberto. Então, o macaco viu um coelhinho. Era mesmo coelhinho que ele queria levar para o rei. E tocou uma música que era para o coelhinho ouvir. E vieram chegando coelhinhos de todos os cantos da mata. E quando não havia mais lugar para nenhum, Felisberto escolheu dez mil, todos iguais, todos do mesmo tamanho. Os coelhinhos começaram a ouvir meio tontos a música do macaco Felisberto. Por fim, Felisberto falou:
Amigos coelhos, vamos todos para uma festa no palácio do rei.
Qual! respondeu o coelhinho mais sabido de todos. Nós não vamos não. O rei quer é comer a gente!
E começou a correr coelho de mata a dentro.
Aí o macaco Felisberto não teve dúvida, puxou outra vez da gaita e tocou. E tocou uma música tão bonita que os coelhinhos começaram a voltar outra vez, cada um para o seu lugar. O macaco ajeitou um por um. E dois a dois saíram de estrada a fora com Felisberto na frente, tocando. O rei tinha acabado de almoçar com toda a casa real. E estava muito feliz, palitando os dentes com um palito de ouro, quando ouviu a gaita que vinha de longe. E disse logo para a rainha:
- Aquilo é obra de Felisberto! Felisberto vem por aí com alguma coisa.
E era mesmo. Vinha chegando coelhinho que não acabava mais. Felisberto já estava no alpendre e ainda vinha coelhinho com mais de uma légua de distância:
- Rei meu senhor, disse Felisberto, trago para Vossa Real Majestade este presentinho que lhe manda o meu senhor.
O rei ficou num pé e noutro com o presente.
- Este teu senhor é o mais rico dos meus vassalos, disse o rei.
E chamou o tesoureiro e deu ordem para que enchesse todos os alforjes que Felisberto tinha trazido. O macaco quase que não podia andar com a carga de ouro.
O marceneiro quando viu o amigo chegando, ficou ainda mais espantado. Mas Felisberto foi-lhe dizendo que tudo aquilo era presente do rei, que cada dia que se passava o rei ficava mais contente com o marceneiro Botelho.
Naquele dia, era dia de feira na cidade. E o bom Botelho foi para lá com o seu saco de ouro para dar ao povo. Nunca se viu um rebuliço daqueles na feira. Os pobres davam graças a Deus pelas bondades do bom Botelho. Os aleijados e os cegos não pediram mais esmola. O bom Botelho tinha dado uma fortuna a todos eles.
Mas Felisberto não estava satisfeito. Ele tinha que fazer ainda muito mais coisas pelo amigo. Era nisto que êle pensava quando se espichava na cama de manhã. O rei tinha uma filha que valia mais que todos os seus tesouros. Era bela a princesa, com aqueles cabelos louros que batiam na cintura. Ela cantava para o pai dormir, com uma voz de sereia. Felisberto queria casar a filha do rei com o marceneiro.
E com essa idéia na cabeça, ele chegou ao palácio real. O rei ficou louco de alegria vendo Felisberto chegar.
- Rei meu senhor, disse Felisberto, eu queria dar um passeio a cavalo com Vossa Majestade.
- Pois não, Felisberto.
E o rei mandou selar os dois cavalos mais belos da sua estrebaria e saíram os dois para um passeio.
- Vamos dar uma voltinha, Felisberto, aí pelos arredores. Era isso mesmo que o macaco queria. E saíram os dois muito
satisfeitos. Os bichos do palácio quando viram Felisberto montado, acharam um absurdo. Como era que o rei dos homens dava confiança a um macaco daqueles? Uma onça que estava num chiqueiro fedorento nem quis olhar para aquilo. O cavalo em que montava Felisberto começou a fazer luxo, dando umas popas. Felisberto tinha esporas nos pés e o cavalo terminou andando macio, dando a sua melhor passada para o seu cavaleiro. E andaram terras e terras. O rei e Felisberto conversando.
- De quem é aquele engenho ali? Perguntava o rei.
- Aquele de bueiro grande, rei meu senhor? Ah, é o engenho do Dr. Botelho!
E foram andando. Mais adiante o rei viu um roçado com mais de mil negros trabalhando. Era gente que não acabava mais.
- De quem é este roçado tão grande, Felisberto?
- Saiba Vossa Real Majestade que é do meu senhor o Dr. Botelho. Hoje até nem tem gente, não. Só queria que Vossa Majestade visse isto aqui em dia de trabalho.
E foram andando. O rei, muito invejoso da riqueza do Dr. Botelho. Mais adiante, viram uma fazenda de gado. Ninguém nem via o verde dos altos e das várzeas, era só gado pastando, uma beleza. O rei ficou besta, olhando:
- De quem é esta fazenda, Felisberto?
- Ah, esta fazendinha, rei meu senhor? Esta é a menor de todas do meu senhor o Dr. Botelho.
E o rei ainda mais invejoso ficou, dizendo para Felisberto:
- Esse teu senhor tem mais riquezas do que o meu reino! Aí Felisberto falou, com muito jeito:
- Ah, rei meu senhor, tudo isso poderia ser de Vossa Majestade, porque poderia ser da muito bela princesa filha de Vossa Majestade.
O rei olhou para Felisberto e disse:
- Vai ao teu senhor e diz que eu quero que ele se case com a minha filha.
E voltaram os dois para casa. Felisberto, dando saltos pela estrada, e o rei com a ambição de trazer mais terras e mais ouro para o seu reino.
Quando chegou à casa do marceneiro, o macaco vinha cantando de satisfeito:
- Amigo Botelho, disse ele, o rei teu senhor mandou-te oferecer a sua filha em casamento.
O marceneiro caiu das nuvens de espanto.
O que fiz eu ao meu amigo Felisberto para merecer essa zombaria?
Zombaria o quê, amigo Botelho! O rei quer te casar com a sua filha.
Quem sou eu, pobre marceneiro, para casar com a filha do rei?
Muito boa esta, respondeu o macaco, quem é melhor no mundo do que o amigo Botelho? Quem tem mais coração do que o amigo Botelho? Pergunta aos cegos e aos aleijados da feira. Pergunta aos pobres, amigo Botelho, e deixa de bobagem. Amanhã bem cedo, veste a tua roupa melhor, sela o teu cavalo e prepara-te para ires casar com a filha do rei.
O marceneiro nem dormiu naquela noite. Pensou na forca. Quando ele chegasse à porta do rei com Felisberto, para casar com a filha do soberano, iria pagar na forca o seu atrevimento. Levantou-se de madrugada. E ouviu os passarinhos cantando no pé de cajá que ficava atrás de casa. Era a última vez que ele ouvia os seus passarinhos queridos. O amigo Felisberto ia com ele para a forca. Melhor era ser marceneiro, dormir em casa com os seus cavacos de pau, lavrar as suas tábuas, do que ser marido de princesa. Nunca mais ele ouviria os passarinhos do pé de cajá.
Estava ele com esses pensamentos, quando chegou o macaco, lhe falando:
- Em que estás pensando, amigo Felisberto? Que cara triste é essa? Não é cara de quem vai casar com a princesa mais bela da Terra. Vai-te vestir e sela o teu cavalo.
De manhãzinha, saíram os dois para o castelo real. O pobre Botelho tremendo de medo, só fazia dizer para o macaco:
- Agora me segura, amigo macaco, me segura senão eu caio!
- Não tremas, homem de Deus, que medo é esse?! Dizia Felisberto. Segura-te e deixa de tremor, amigo Botelho.
E quando foram chegando à porta do rei, o marceneiro viu que todos os pajens baixavam a cabeça até o chão quando ele passava. As cornetas do rei tocavam, as músicas do rei estrondavam os seus instrumentos. Parecia que o mundo vinha abaixo. Aquilo tudo seria para ele? Indagava o marceneiro.
Aí foi que ele viu que não era o mesmo. Os dedos das suas mãos estavam cheios dos anéis mais bonitos da terra, o veludo da sua roupa era o mais fino, os seus sapatos brilhavam como espelho no sol. Nunca ali tinha entrado um homem mais belo, nem mais bem vestido.
O rei foi logo se chegando, com muitos agrados. Dava-lhe a sua filha para casar. A princesa sorria com o tempo, de satisfeita. A rainha, para dentro e para fora, preparando a festa do casamento. Tinham matado dois mil carneiros e cem bois. E a quantidade dos perus? Isso ninguém sabia! Os escravos do rei dançavam no terreiro, sem as algemas. Os coelhinhos saltavam de um lado para outro, as garças não se mexiam, olhando para tudo aquilo. Mas o marceneiro Botelho tremia de medo. E quando tivesse de levar a noiva para casa, como seria? Botaria a noiva naquele quarto de cavacos? E aproveitando um momento, falou para Felisberto:
- Amigo Felisberto, como vai ser isso?
- Não tem nada não, respondeu o macaco. Lá fora uma carruagem te espera.
E de fato. Depois das festas do casamento o marceneiro Botelho saiu de carruagem pela estrada. O macaco Felisberto trepara-se bem junto do cocheiro. E, furando os caminhos, o Dr. Botelho tremia junto da noiva. O que não seria dele quando a princesa visse o seu quarto cheio de cavacos?
E a carruagem foi andando pela estrada que ia para a casa mais pobre que a dos escravos do rei. Era de tardinha. O sol ia-se pondo. O marceneiro Botelho fechou os olhos para não sentir a sua desgraça. E quando abriu, viu de longe uma iluminação como de igreja em dia de festa de santo. Era luz por toda parte, uma luz que subia para o céu. E a carruagem ia seguindo para lá, até que o cocheiro parou e os pajens desceram.
- É aqui o teu castelo, disse Felisberto. Pelo bem que fizeste aos pobres, aos cegos e aos aleijados, Deus do céu me mandou para te ajudar.
E, dizendo isso, o macaco Felisberto deu três saltos, três assobios e sumiu-se num redemoinho de vento, para o fim do mundo.
A COBRA QUE ERA UMA PRINCESA
Havia nos tempos antigos um reino que não era feliz porque a sua rainha nunca tivera um filho.
O rei andava triste vendo a hora que ficava velho, morria e não podia deixar uma pessoa do seu sangue no trono.
O povo fazia promessa, a rainha rezava, e nada de aparecer o herdeiro tão desejado. Um dia, no toque das ave-marias, a rainha perdeu a paciência e disse uma coisa que não devia dizer:
- Permita Deus, disse ela, que eu tenha um filho nem que seja uma cobra.
Depois de tempos pareceu que a rainha ia ter mesmo um filho. O rei mandou festejar a nova com festas que não pararam. De noite e de dia o povo dançava e cantava na frente do palácio. Ninguém pagou mais imposto, o rei andava de dentes arreganhados de contente, satisfeito, tratando seus escravos com brandura. E foi assim até que um dia de tempestade, com trovões e raios cortando as nuvens, a rainha deu à luz a uma menina, muito bonita, de olhos azuis, de cabelos loiros, uma belezinha. Mas a menina tinha nascido com uma cobrinha enrolada no pescoço. Todo o mundo na casa do rei ficou desgostoso. A rainha quando olhava para a filha, caía no pranto. E ninguém queria chegar para perto do berço com medo da cobra. Vieram os médicos dos outros reinos, doutores, rezadores, adivinhos, e quanto mais faziam para tirar a cobra do pescoço da princesinha, mais a cobra se grudava à linda menina.
E foram os anos correndo. E foram correndo os anos. E a princesa criou um bem de irmã à cobrinha, que era verde e tinha uma cabeça com olhos de gente. Horas inteiras ficava a princesa brincando com a cobra na beira do mar. E quando a cobra via as ondas do mar, gostava de sair do pescoço da princesa e passear feliz pelas ondas. Ficava de tão longe da terra que a sua amiga nem via para onde ela ia. E por isso começava a chorar com medo que a cobrinha não voltasse mais. Chorava tanto, que a cobrinha voltava outra vez para o pescoço da menina, se enrolava, se unia com a sua amiga, e as duas voltavam juntas para o palácio do rei, onde ninguém sabia destas brincadeiras na praia. Mas lá um dia, a cobra entrou de mar a dentro, foi mais longe do que das outras vezes. A princesa chorou, chorou muito, até que ela voltou para falar:
- Minha rica princesa, chegou o meu dia, vou para longe, para bem longe, para uma terra que fica mil léguas mais abaixo do que o fundo do mar. Vais ficar sozinha, mas não tem nada não, minha irmã, eu não te abandono, eu te acudo sempre que for preciso. O meu nome é Labismínia. Grita por Labismínia, e podes ficar descansada, que eu venho te valer.
E dito isto, a cobrinha correu para dentro do mar. A princesa ficou parada na beira da praia chorando. Tantas lágrimas corriam dos seus olhos, como um riacho de vertentes. Depois calou-se. Labismínia, a sua irmã, se fora. E ela estava só no mundo, sozinha.
Em casa, quando a princesa Maria chegou, sem a cobra no pescoço, foi um rebuliço. O rei dançou de contente, mandou logo preparar uma grande festa, chamou os reis dos outros reinos. O povo comeu bolo, mataram bois e carneiros para o povo. E os escravos trabalharam sem as algemas nos braços e nos pés. Mas a princesa Maria estava triste. Nem parecia que tudo aquilo era para ela.
Todas as manhãs, quando o sol nascia, ela ia para a beira do mar, para ver se Labismínia aparecia. E o sol chegava de longe, de muito longe e não trazia notícias de Labismínia.
À tarde, a princesa voltava para a praia onde brincava tanto com a sua amiga. Queria ver se a lua dizia alguma coisa. A lua podia dizer se tinha visto Labismínia, se tinha passado pela terra de sua irmã. A lua boiava tanto em cima das águas do mar! Mas nada. Nem a lua e nem o sol davam notícias de Labismínia, que estava numa terra que era mais longe mil léguas que o fundo do mar. Aí a princesa chorava. Quisera Deus que ela fosse para a terra que ficava a mil léguas mais abaixo que o fundo do mar. Ah! Se ela pudesse descer como peixe, fugir do mundo e se encontrar outra vez com Labismínia! O seu pescoço já estava acostumado com a cobra.
E foi indo assim, até que um dia todo o reino entristeceu. O rei mandou botar as algemas outra vez nos escravos, o rei obrigou o povo do seu reino a rezar. Era que a rainha tinha começado a adoecer. Não houve médico que soubesse o que era. Vieram doutores de todos os cantos da terra, feiticeiros de todos os cantos do mundo. E quando a rainha sentiu que ia morrer, chamou o rei e, na frente da corte inteira, falou para o marido:
- Quando tiveres que te casar outra vez, disse ela tirando um anel do dedo, só poderá ser com a princesa no dedo de quem couber este anel que te dou.
O rei chorou muito, mas depois de tanto pranto, começou a pensar no seu casamento. E para isto mandou mensageiros para todos os lados da terra. Primeiro para princesas de Castela. E o anel não deu no dedo de nenhuma. Depois, para as filhas dos pares da França. Nada. O rei mandou então falar com o soberano da Inglaterra. E não apareceu princesa nenhuma para o anel do rei. Na corte da Áustria foi a mesma coisa. E assim levou um tempão. O rei já estava mesmo convencido que não acharia mais moça para se casar, quando se lembrou da princesa sua filha, que era a maior beleza do mundo. Quem sabe, pensou ele, que aquela cobra no pescoço de Maria não seria um sinal de Deus para que ele se casasse com a sua própria filha? E assim pensando, mandou chamar a princesa. E o anel deu no dedo de sua filha, como se tivesse sido feito para ela.
Quando a princesa soube das intenções de seu pai, correu para a beira da praia e começou a chorar alto, a chorar tanto, derramando lágrimas como um olho de água de pé de serra.
- Labismínia, Labismínia, gritava ela, vem me acudir.
E quando ela viu, foi um barulho que vinha do fundo do mar. Uma onda grande bateu nos seus pés, e a cobrinha verde, de olhos de gente, apareceu na sua frente, por um encanto, dizendo logo para ela:
- Por que chora a linda princesa, minha irmã?
Maria contou toda a sua história. Era a mais desgraçada moça das moças da terra, pois teria que se casar com o próprio pai.
- Não tem nada não, minha irmã, lhe disse Labismínia. Eu te salvarei de tudo. Pede ao rei que para tu te casares com ele é preciso que ele te dê um vestido da cor do campo com todas as suas florzinhas.
Depois o mar fez outro barulho medonho e uma onda levou Labismínia para as profundezas.
A princesa Maria voltou para casa consolada, e disse para o pai o seu desejo. O rei ficou espantado com o pedido da filha, mas não se desenganou. Mensageiros, criados, escravos saíram pelo mundo atrás do vestido.
A princesa, no palácio, já estava descansada, quando apareceu o pai com o vestido pedido, que tinha a cor do campo com todas as suas florzinhas.
- Dou-te, disse o rei, o vestido dos teus desejos. Custou-me mais caro que o reino que ganhei na batalha com os mouros.
A princesa olhou para o vestido, que era uma beleza como ela nunca tinha visto. Mas logo que pensou no casamento, começou a chorar outra vez. E com aquela agonia no coração correu para a praia gritando pela cobra:
- Labismínia! Labismínia! Vem me salvar!
Aí o mar deu um gemido, e uma onda trouxe aos pés da princesa a cobrinha verde de olhos de gente.
Labismínia, disse a princesa, o rei meu pai mandou gente pelo oco do mundo procurando o vestido que tinha a cor do campo com todas as suas florzinhas. É uma beleza, Labismínia, mas eu não quero me casar com meu pai.
Não tem nada não, disse a cobrinha, não tem nada, não. Pede a ele outro vestido, um vestido da cor do mar com todos os peixinhos.
A princesa Maria se consolou outra vez. E uma onda grande, toda de espuma branca, levou Labismínia para o fundo do mar.
O rei quando soube do novo pedido da princesa, botou as mãos na cabeça. Onde encontrar um vestido daqueles? Mas tinha que se casar com a sua filha. E mandou outra vez os seus mensageiros pelo mundo a fora.
- Lá um dia chegou o vestido da cor do mar com todos os seus peixes, e ele deu o vestido à filha. A princesa achou uma beleza, muito mais bonito que o outro. Vestiu-se com ele, mirou-se nos espelhos do palácio, mas quando se lembrou que tinha que se casar com o pai, deu para chorar. E foi para a praia atrás de Labismínia. E a cobrinha não tardou a chegar para consolar a irmã.
- Não tem nada não, minha irmã Maria. Não precisa chorar tanto, Labismínia tem que achar um jeito. Volta e pede a teu pai um vestido da cor do céu com todas as estrelas. Não precisa chorar, minha irmã querida.
E fez tantos agrados, que a princesa voltou para casa contente da vida. Foi logo falar com o pai. Queria um vestido da cor do céu com todas as estrelas.
O rei deu o desespero. Onde encontrar um vestido daqueles? Então chamou os seus vassalos, chamou o seu tesoureiro, abriu as suas arcas e disse:
- Danem-se pelo mundo. Tragam-me este vestido, nem que custe todo o ouro que eu ganhei na guerra com os turcos.
E saíram os mensageiros pelo mundo. A princesa, de contente, cantava. Saía pelo jardim passeando, no meio das roseiras, que cheiravam tanto como se cada uma fosse um frasco de cheiro. E os passarinhos dos arvoredos cantavam. Muitos vinham brincar nos pés da princesa, que era a criatura mais alegre deste mundo. A princesa Maria brincava com os pássaros, feliz, contente, na confiança que tinha na sua irmã Labismínia.
E foram-se os tempos. Mas lá um dia chegou o rei na sua camarinha. Atrás dele vinham cem escravas que traziam nas mãos o vestido que ela tinha pedido ao pai. As estrelas do céu na seda azul brilhavam como se fosse de diamante. A cauda do vestido ia tão longe que ela nem via o fim.
- Minha filha, lhe disse o rei, eu te trago a maior riqueza de todos os reinos da terra. Por este vestido eu dei todo o ouro e todas as pedrarias que eu trouxe das guerras com os turcos. Agora, minha filha, vamos marcar o dia do nosso casamento.
A princesa nem esperou que o pai saísse do quarto. Foi logo caindo no chão, chorando. Tinha sido enganada por Labismínia! E na beira da praia foi chamar pela companheira, dando gritos de dor. Corriam lágrimas dos seus olhos como água de uma biqueira de casa-grande.
- Labismínia, Labismínia, onde está a minha cobrinha do coração?
Ouviu-se um barulho que vinha do fundo do mar. E a cobra verde de olhos de gente chegou-se para a princesa que chorava. Maria lhe contou tudo.
Não fazia mal, disse a cobrinha. - Volta para casa, arruma as tuas malas, com todos os vestidos que teu pai te deu, e volta para a beira do mar. Aqui onde estou, encontrarás um navio que te levará para um reino bonito, bem longe deste mundo onde tens sofrido tanto, minha irmãzinha do coração. Mas olha bem: quando estiveres no dia mais feliz da tua vida, grita por mim, três vezes, para que eu me desencante e volte a ser a princesa que sou.
Dito e feito. A princesa Maria fugiu com seus vestidos no navio que Labismínia mandara para ela.
O rei tinha saído para uma caçada. E a princesa encheu o navio com as suas malas.
E foi-se para o reino desconhecido.
Lá chegando, fez tudo como Labismínia lhe tinha dito. Saltou em terra, e quando reparou, não viu mais o navio, nem viu mais as malas com seus vestidos. Ela estava mudada numa criada, numa pobre moça, na mais pobre moça da terra. E chegando ao reino desconhecido, foi pedir emprego à rainha, que a vendo tão pobre, mandou que fosse tomar conta do galinheiro.
Maria dormia no meio das galinhas, suja como ela nunca tinha visto uma negra de seu pai. De noite chorava, vendo que Labismínia tinha mentido para ela. Pobre dela, que era a moça mais pobre do mundo! Mesmo assim a princesa Maria ainda dava graças a Deus. Melhor dormir com as galinhas do que se casar com seu pai. Cadê o príncipe que Labismínia lhe tinha prometido?
Passados tempos, começaram no reino a falar numa festa muito grande que iam dar na cidade perto do castelo.
E no dia da festa falada, à boquinha da noite, Maria começou a reparar nas carruagens que passavam, tilintando pela estrada. Então, depois de agasalhar as galinhas, ela ficou pensando na vida. Era a moça mais pobre deste mundo de Deus. Todos iam para a festa do castelo, os pobres e os ricos, e ela só, ficava ali, cheirando a sujice das galinhas do rei. Mas tudo isto era melhor do que se casar com seu pai.
Estava ela com este pensamento na cabeça, quando ouviu uma voz que vinha de longe:
- Toma a tua carruagem, Maria, e vai para a festa.
De repente, ela se viu com seu vestido da cor dos campos com todas as suas florzinhas, Uma carruagem de arreios de prata, com seis cavalos pretos, esperava por ela.
E foi assim que a princesa Maria foi para o baile mais falado da cidade. Quando ela entrou no salão, admirou todo o mundo. Nunca tinham visto uma princesa mais rica e mais linda. O seu vestido enchia tudo de beleza. Era como se o campo mais belo da terra tivesse entrado de sala a dentro, com todos os seus perfumes, com todas as suas cores. O rei e a rainha quiseram logo conhecer aquela princesa de tanta distinção. E quem mais reparou em Maria foi o filho do rei, um príncipe muito lindo, de olhos pretos. Mas a princesa não ficou até o fim da festa. Quando os galos começaram a cantar, ela voltou na sua carruagem para o seu canto, no castelo.
No outro dia, era no que se falava, no palácio do rei. De que reino seria aquela princesa, de trajes tão belos, de cabelos tão loiros, de olhos tão azuis? O príncipe só falava nela com sua mãe. De outra coisa ali não queria saber, a não ser daquela moça do vestido que tinha a cor do campo com todas as suas florzinhas.
Na noite seguinte havia outra dança na cidade. Pelo caminho que ia para a cidade Maria via passar gente de carruagem. Bem triste ela estava vendo tanta gente feliz, tanta moça amada, e ela ali no meio das galinhas, tão pobre e tão só.
Apesar disso, tudo lhe parecia melhor do que se casar com seu pai. Daí a pouco ela ouviu uma voz muito conhecida:
- Maria, Maria, toma a tua carruagem e vai para a festa.
Esperando por ela já estava uma bela carruagem de arreios de ouro com dois cavalos pampas. E com o seu vestido da cor do mar com todos os peixinhos a princesa desconhecida entrou no salão, assombrando. O espanto do povo ainda foi maior do que na outra noite. Aonde fora aquela moça buscar vestido tão belo? O vestido da rainha perto do de Maria parecia uma roupa de pobre. E por onde Maria passava, passava uma onda de cheiro. Os seus cabelos de ouro, os seus olhos azuis, não eram de gente, de tão formosa. O príncipe não tirava os olhos de cima dela. Corria um zunzum pela sala. Donde tinha vindo aquela moça?
E os cocheiros na porta do palácio olhavam de boca aberta para a carruagem. De arreios de ouro, toda de vidro, a carruagem de Maria deixava de longe o cabriole do rei, que parecia um carro de pobre junto do dela. Os cavalos enormes, nunca tinham visto tão grandes por aquela redondeza. E o cocheiro vestido como um grande da corte. Aquilo é que era riqueza.
E quando os galos cantaram, a princesa se retirou para o seu quarto, onde ia dormir no meio da imundície das suas galinhas.
No outro dia, na corte, só se falava na bela princesa. O príncipe não ficava parado. Espias já estavam por todos os cantos da estrada para ver donde vinha e por onde passava a mais bela princesa que já atravessara as estradas reais. No seu canto Maria nem dava sinal de orgulho. Misturada às suas galinhas, suja como a moça mais pobre do mundo e ainda dando graças a Deus. Melhor tudo aquilo do que se casar com seu pai.
E de tarde, quando ela ia tangendo as suas galinhas para o chiqueiro, viu o príncipe de olhos pretos parado na estrada.
- Donde vieste tu, criadeira de galinhas? Disse ele olhando para o rosto da moça. Ontem vi na festa da cidade uma princesa que tinha a tua cara!
Tremendo de medo, Maria respondeu:
- Quem sou eu, minha Alteza, para me parecer com a mais bela princesa da vossa festa?
Mas o príncipe saiu de cabeça baixa. Naquele dia era a última noite de festa. Maria, sentada na porta de seu quarto, olhava a Lua saindo do céu bem redonda, cobrindo tudo de prata. Vinha um ventinho de longe soprar os cabelos encantados da princesa. Pela estrada as carruagens corriam para o baile. Aí ela ouviu a voz macia de Labismínia:
- Maria, toma a tua carruagem e vai para a festa.
Uma carruagem com arreios de brilhantes, com seis cavalos brancos, esperava pela mais bela princesa da terra. Quando Maria deu fé, estava com seu vestido que tinha a cor do céu com todas as estrelas.
No salão grande da festa todo o mundo parou para olhar para ela. Pararam as danças, parou a música. A princesa entrou e só se via gente se admirando para o que ela trazia de belo. O príncipe ficou tão cheio de amor que correu para a princesa e caiu aos seus pés, beijando-lhe o vestido, com lágrimas nos olhos pretos.
- Minha bela princesa, guarda contigo esta lembrança, disse ele.
E deu a Maria uma linda jóia.
Na hora em que os galos cantaram, voltou outra vez a princesa para o seu quarto.
E o príncipe, de tanto amor que pegou por ela, caiu doente de cama. Nada existia para ele, não comia, não dormia, dando suspiros pela princesa que se fora embora. A rainha chamou todos os doutores do reino para ver o filho naquele estado. Mas ninguém sabia o que ele tinha. Coitado, nem um caldinho queria tomar. Da mão de ninguém ele aceitava comida ou bebida. A pobre mãe pedia aos outros para ver se o filho recebia de alguém o que não queria receber de suas mãos. Mas o príncipe se negava. Queria morrer, dizendo para todo o mundo que só a bela princesa da festa existia para ele. A rainha chamou, uma por uma, todas as mulheres da sua corte. Chamou as princesas, chamou as mulheres e as filhas dos seus vassalos, e o príncipe não queria olhar para nenhuma. Foi quando se lembraram da moça do galinheiro. Maria foi chamada para o paço. A rainha foi logo lhe dando ordem para ela levar ao quarto do príncipe o caldo que ele não queria tomar da mão de ninguém.
- Minha rica senhora, respondeu Maria, quem sou eu para merecer tanta honra de Vossa Majestade. Tudo o que eu posso fazer é preparar um caldo.
A rainha aceitou, de tão aflita que estava.
Maria preparou o caldo e dentro da xícara botou a jóia que o príncipe lhe tinha dado na festa.
E quando o príncipe meteu a colher na xícara e viu a jóia, levantou-se da cama, gritando para a mãe:
- Mãe, estou bom. Manda trazer aqui a criatura que preparou o caldo.
Mandaram chamar a criadeira de galinhas.
E quando os mensageiros chegaram do chiqueiro, encontraram a princesa da festa, com o seu mais belo vestido, com cem escravas para lhe servir de criada, com mil malas de rouparia, com três grandes carruagens.
E a princesa Maria se casou com o príncipe de olhos pretos Mas no dia da festa do casamento se esqueceu de chamar três vezes por Labismínia, como havia prometido.
E a pobre princesa não se desencantou. Ficou cobrinha para toda a vida, com aqueles olhinhos de gente.
E é por isto que ainda hoje o mar geme tanto, grita tanto soluça, faz tanto barulho. É a pobre Labismínia que, do fundo do mar, chama pela irmã ingrata que não se lembrou dela no dia mais feliz da sua vida.
O PRÍNCIPE PEQUENO
Era uma vez um príncipe chamado João, que gostava muito de caçar. Lá um dia, saiu ele com os companheiros atrás de um veado que corria como um desesperado. O príncipe andou atrás do bicho o dia inteiro e quando foi quase à boquinha da noite, ele se perdeu dentro de uma mata muito grande. Olhou para todos os cantos, foi de um lado para outro, e nada de encontrar uma saída. E assim andando às tontas, o príncipe João começou a tremer de medo. A mata fazia um barulho medonho. Era assobio de pássaro, urro de bicho, grito de fera. E ele, sem saber o que fazer, deu para andar à toa, até que viu um caminho e meteu-se por ele. E, assim, andou léguas e léguas, sem parar, até que quando amanheceu foi num reino cercado de muros mais altos que as torres de uma igreja. E de tão cansado que estava, o príncipe adormeceu em cima de uma pedra.
E aí ficou até que ouviu um urro mais forte do que os das feras das matas, um urro que lhe abalou os ouvidos. Então o príncipe se acordou, tomou atenção no tempo, lembrou-se da noite perdida na mata, do veado veloz, e olhou para todos os lados. Bem perto dele estava um reino estranho. Muros enormes como montanhas cercavam o palácio. A torre ia quase aos céus.
E estava o príncipe olhando essas coisas bonitas, admirado de tanta grandeza, quando um urro estrondou perto dele.
Aquilo só podia ser fala de gigante, pensou o príncipe. E aquele reino era na certa a morada dos falados gigantes, dos malvados gigantes que andavam pelo mundo matando gente.
Não havia dúvida. O príncipe João dera, sem querer, no meio deles. Melhor que tivesse ficado na mata. A noite passaria. O barulho dos bichos passaria e ele gritaria tanto pelos companheiros que alguns chegariam na certa para socorrê-lo. Agora, era o que via. Estava na terra dos gigantes!
E mal êle acabava de pensar, quando sentiu um bafo como de boca de forno. Virou-se. Um gigante estava perto dele, respirando. E o bicho falou. E a fala dele parecia um barulho de trovão:
- O que queres em nossa terra, peregrino? perguntou o bicho, abrindo a boca, que era do tamanho de uma cacimba, com dentes do tamanho dos dentes dos elefantes.
- Que queres no nosso reino, peregrino?
Aí o príncipe João, tremendo como vara verde, contou a sua história. E o gigante mandou que ele viesse atrás dele para falar com o rei. Cada passada do gigante dava por mil passadas de um homem alto. E correndo para pegar o outro, chegou o príncipe na porta do palácio. Parecia um mosquito no meio de elefantes. Quando os gigantes respiravam precisava que ele segurasse nas cadeiras, senão era chupado para dentro das ventas dos monstros.
E quando o rei começou a falar, parecia que dava estalos de tempestade. Enquanto o criado do rei contava a história, o gigante velho olhava para o príncipe João com dois olhos iguais aos de um farol. E o gigante velho deu uma gargalhada como um ribombo. O príncipe João viu, atravessados nos dentes do rei, quartos de boi como se fossem fiapos de carne.
- Vais ficar aqui como meu criado, Homem Pequeno, disse o rei. Vais ficar armado de um cutelo para matar os piolhos da minha cabeça e as pulgas da minha cama. Vai para a estrebaria dos meus cavalos! Lá dormirás.
O príncipe João saiu com mais medo do que o medo que lhe fizeram os bichos da mata. E ficou numa tristeza de cortar coração. Era tão feliz no seu palácio real! Para que diabo se lembrou de caçadas. Bem que sua mãe lhe disse: "João, para que tu te metes a matar os bichos e os passarinhos de Deus? João, que coração é o teu que não se importa com a vida dos animais?" E ele não ouviu os conselhos de sua mãe e saiu atrás daquele veado que corria mais que os cachorros de raça. E dera naquilo. Agora, era prisioneiro dos gigantes. E estava desgraçado para o resto da vida.
Da estrebaria, ele ouvia o barulho do palácio. Passava uma boiada para o almoço do rei. Os cavalos do rei eram mais altos que as casas dos homens de verdade. Cada pata parecia um lajedo. Cada cavalo tinha, para comer, capim que dava para uma manjedoura de muitos animais.
Estava o príncipe João reparando em tudo aquilo, quando veio uma mulher de cabelos loiros chegando para ele. Era uma da raça dos gigantes. Mas era bela, tão bela que o príncipe ficou tonto com a sua beleza. Nem parecia que era uma gigante. E a moça se chegou falando baixo, numa voz que parecia de gente. E foi dizendo:
- Belo príncipe, quem me dera ser do teu tamanho! Como são belos os teus dedos e lindas as tuas orelhas.
O príncipe sorriu e disse para ela umas palavras que aprendera na corte de seu pai.
- Rica princesa, quem me dera merecer as vossas graças! Quem sou eu, pobre príncipe, pobre homem pequeno, para avaliar a vossa beleza e os vossos encantos.
A moça, que se chamava Guimarra, sorriu para o príncipe. E antes de sair, lhe disse:
- Quando estiveres em perigo, lindo príncipe, me procura. Eu saberei te valer.
E saiu. E ficou na estrebaria um cheiro como se uma pessoa tivesse derramado uma lata de extrato por cima das imundícies dos cavalos do rei.
Passados tempos, estava o príncipe João muito bem tratando dos cavalos, quando veio um chamado do rei. O rei queria falar com ele a toda a pressa.
Lá chegando, viu ele o gigante velho, de cara feia, com uma tromba de raiva maior que a do costume.
Aqui estou eu para vos servir, Majestade.
Olá, Homem Pequeno, disse o rei, me disseram, homem, que tu estavas te gabando de que podias numa noite derrubar os muros do meu palácio e levantar outros muros, no mesmo instante?
Nunca que eu disse isso, Majestade! Respondeu o príncipe.
O rei deu um grito que tremeu o chão.
- Farei o que Vossa Majestade manda, disse o príncipe João, suando frio.
E voltou assim para a estrebaria. E ficou triste, pensando na morte certa, na forca, nos urubus que viriam comer a sua carne.
Estava com esses pensamentos tristes, quando sentiu um cheiro, como se todas as rosas do mundo estivessem ali pertinho dele numa touceira só.
Era a bela Guimarra que tinha chegado.
Por que estás assim tão triste, lindo príncipe? Perguntou ela.
Ah, minha bela princesa, o senhor vosso pai me deu um trabalho para fazer que nem mil homens do meu tamanho fariam num ano. Ele quer que eu derrube os muros do palácio real e levante outros no mesmo instante.
Não é motivo para estares assim tão triste, meu belo príncipe, disse a princesa. Fica na tua estrebaria e deixa o serviço por minha conta.
No outro dia o rei verificou que todos os muros do seu palácio, que iam ao fim das montanhas, estavam novinhos em folha, pintados de cal.
- Que diabo! Disse o rei para o seu tesoureiro. Este homem pequeno vale por muitos gigantes. Manda que ele venha falar comigo. Tenho para mim que a minha filha Guimarra anda protegendo esse nanico.
E quando o príncipe João chegou à sala real, o rei estava no seu trono com cara de poucos amigos. Tinha na testa uma ruga que parecia um rego de cana. E com os olhos arregalados como os dois holofotes de trem, perguntou:
Homem Pequeno, foste tu ou foi a minha filha Guimarra que fez os trabalhos ontem?
Nunca vi a vossa bela filha, rei meu senhor. Nunca os meus olhos tiveram essa alegria, rei meu senhor.
Então vai tratar dos meus cavalos, disse o rei. E se algum dos meus animais emagrecer, mando arrancar o teu fígado pelas costas.
E o pobre príncipe não parava um momento, trazendo capim para os cavalos do rei. Era um comer que não acabava. E mal botava ração para um, o outro cavalo já estava de olhos compridos pedindo capim. Então Guimarra vinha e com os seus braços encantados, enchia as manjedouras de capim.
Passaram-se os tempos. Um dia, chegou outro recado do rei. O rei queria falar com o príncipe, seu escravo. E para o palácio o príncipe João se botou.
- Olá, Homem Pequeno, me diz o meu tesoureiro que tu andas te gabando de que, numa noite, serias capaz de matar todos os bichos da minha Ilha dos Bichos Bravos. E plantar ali um jardim mais bonito do que o jardim do meu palácio. E trazer para regar as plantas água do riacho que corre lá para a banda das montanhas.
- Tudo farei para vos servir, rei meu senhor. Tudo farei para vos servir, com a ajuda de Deus.
O rei deu uma gargalhada com tanto gosto que derrubou o príncipe no chão. E o pobre voltou para a sua estrebaria se lastimando da vida. Coitado dele que ia morrerl Como poderia matar os bichos e os tigres do jardim das feras, com que força traria para aquela ilha o riacho que corria nos confins das montanhas? Não tinha mais dúvida. Ia morrer na certa. E assim ficou o príncipe contando as suas horas. Bem que sua mãe lhe disse para não matar os animais e os passarinhos de Deus.
E estava ele com esses pensamentos, quando sentiu o cheiro da princesa Guimarra.
Por que estás tão triste, belo príncipe?
Ah, minha bela princesa, o vosso pai quer me matar! Ordenou-me que matasse todos os bichos do jardim das feras e que trouxesse do fim do mundo um riacho.
Fica descansado, meu belo príncipe, que Guimarra dá conta de tudo isso. Dorme a tua noite descansado, sonha comigo que nada te acontecerá.
Dito e feito. Quando foi de manhãzinha, o rei mandou o tesoureiro olhar para o jardim das feras. E o tesoureiro voltou de boca aberta para dizer:
- Saiba Vossa Real Majestade que por lá mudou tudo como por encanto. Tudo que foi bicho feroz desapareceu.
Aquilo agora é um jardim mais belo que o de Vossa Majestade, o mais belo jardim que enfeita a ilha inteira. Rosas mais belas quais as de Vossa Majestade se espalham pelos ribeirões. O rei ficou danado e mandou chamar o Homem Pequeno.
Foste tu, ou foi a minha filha Guimarra quem fez tudo? perguntou o gigante velho.
Saiba Vossa Real Majestade, respondeu o príncipe, que os meus olhos nunca tiveram a ventura de conhecer a real princesa. Deus ainda não me deu essa grande alegria.
O rei bateu com as mãos no seu trono de diamantes com tanta força que chegou a tirar fogo, como em uma bigorna de ferreiro.
E o príncipe João foi para a sua estrebaria assustado, pensando na sua desgraça. Tudo para ele estava perdido. Com a noite, Guimarra chegou e foi logo dizendo:
- Meu belo príncipe, prepara-te, que hoje de madrugada fugiremos os dois. Prepara o cavalo preto, põe nele os mais fortes arreios e espera por mim na estrada.
De fato. Quando foi lá para as duas horas da manhã, Guimarra e o príncipe fugiram no cavalo mais bonito das estrebarias do rei.
Na hora do almoço o rei desconfiou. Deu gritos de todos os tamanhos. Mandou procurar Guimarra. E quando soube da fuga da filha, preparou o seu cavalo ruço, armou-se com as suas armas e saiu desembestado atrás dos dois.
O cavalo de Guimarra andava cem léguas em cada passada que dava. Mas o cavalo do rei andava ainda mais.
Anda, meu cavalo! Gritava Guimarra.
Anda, meu cavalo! Gritava o rei, - que eu mandarei cortar todo o capim dos meus campos para te dar!
E meteu as esporas. Corria sangue, como de uma bica, da barriga do animal.
- Anda, meu cavalo, que todo o capim do meu reino será teu!
O cavalo rompia os espaços, era o mesmo que um relâmpago.
E Guimarra quando deu fé, viu que o pai estava quase que pegando a ela e ao seu belo príncipe. Aí Guimarra, que era uma moça encantada, fez a sua reza. E de repente todos se encantaram. Guimarra era um rio, o príncipe João um negro velho, o cavalo um pé bonito de gameleira.
O rei esbarrou o seu cavalo em cima do rio. E não vendo mais sinal dos fujões, falou para o negro que tomava banho:
- Negro velho, não viste passar por aqui uma moça e um moço montados num cavalo preto?
O negro velho se fez de mouco e só fazia perguntar ao rei:
- Como é, senhor moço, este rio encheu hoje, e o meu senhor me mandou tomar banho!
E o negro velho mergulhava na água do rio.
- O meu senhor me mandou tomar banho!
E mergulhava na água do rio.
O rei dos gigantes, desesperado, voltou para casa. Vinha mesmo com o diabo no corpo.
- Onde deixaste Guimarra? perguntou a rainha.
O rei contou a história. E a rainha, que era encantada também, deu uma risada nas ventas do rei.
- Foste enganado, maluco, foste enganado! Guimarra era o rio, o príncipe era o negro, o cavalo era a gameleira! Foste enganado! Volta. Volta atrás deles e pega os fujões.
O rei preparou o seu cavalo alazão, que corria duzentas léguas, mandou afiar as esporas como navalhas, e saiu.
- Anda, anda, meu cavalo real! Anda, que eu mandarei te dar solta no melhor capinzal do meu reino!
E o cavalo corria, e o sangue espanava de sua barriga como de fonte. E nem o vento corria mais que o cavalo alazão do rei gigante. E de tanto correr, pegaram o cavalo de Guimarra.
A princesa quando viu que o pai se chegava, encantou-se outra vez. Ela ficou feito uma igreja, o príncipe João um padre, a sela um altar, o cavalo o sino. O sino tocava, chamando o povo para a missa. E o padre, todo paramentado, rezava no altar.
O gigante parou na porta da igreja. Ele era tão grande que não podia entrar. E lá de fora foi perguntando:
- Olá, padre, pára com essa missa e me responde! Não viste por aí uma moça e um homem?
E o padre nada de entender. Só fazia dizer a sua missa batendo nos peitos. O sino tocava. E a espingarda do príncipe, que era o sacristão, tocava as campainhas sem nem ouvir a gritaria do gigante. E não havia jeito de o padre falar.
E por isso o rei dos gigantes voltou para o seu palácio. E chegando lá, a rainha foi logo perguntando:
- Cadê Guimarra? O rei contou tudo.
- Marido, lhe respondeu a mulher, tu foste outra vez enganado! Aquele padre era o príncipe João, Guimarra era a igreja. Marido, tu foste um leseira! Tu só tens tamanho! Volta. E vai buscar a minha Guimarra do coração!
Então o rei mandou selar uma mula-sem-cabeça que ele tinha pegado numa noite de quaresma, e saiu como um doido pelas estradas, botando serras abaixo, derrubando os paus linheiros, fazendo mais estrago que um pé-de-vento do diabo. A burra corria mais que um trem na linha. E o gigante já estava pega não pega a filha, quando Guimarra se lembrou dos seus poderes e soltou no ar um punhado de cinza.
E o mundo todo se cobriu de uma neblina como no dia em que mataram Nosso Senhor. E o rei dos gigantes se perdeu numa nuvem de poeira. E a mula-sem-cabeça rinchava que se ouvia a cem léguas em derredor. O gigante berrava, de cego que estava. E o mundo todo era só cinza!
E assim Guimarra e o príncipe João chegaram sãos e salvos ao palácio real do rei dos homens pequenos.
Houve festa na corte. A rainha, chorou de alegria vendo o filho que voltava, o rei deu uma semana de folga aos escravos. E Guimarra se desencantou, ficando uma princesa como as outras. E casou-se com o príncipe João. E tiveram filhos. E foram os príncipes mais felizes da terra.
O SARGENTO VERDE
Um homem muito rico tinha uma filha mesmo no ponto de casar. Era uma moça muito bonita, mas muito devota, sem jeito para aparecer a rapaz. E o pai não gostava de ver a sua filha assim pelos cantos, desconfiada, sem querer ir aos grandes bailes que ele oferecia no seu palácio.
Mas lá um dia bateu na casa desse homem um senhor bem vestido, de dente de ouro na boca, montado num lindo cavalo alazão, com arreios de prata. Era um pretendente para a bonita menina.
Chamava-se ele Guilherme e possuía grande fortuna, muitos engenhos, soltas de gado, carruagens de muitos cavalos. E bonito, um homem bonito, bem falante, cheio de maneiras. O velho ficou todo cheio de alegria. Mandou chamar a filha e foi logo dizendo:
- Minha filha, este cavalheiro distinto soube da tua formosura e veio de longe para pedir a tua mão em casamento.
A moça ficou sem saber o que dizer. Mas, ali na frente do estrangeiro, não disse nada ao pai. E o velho tomou aquilo como sinal de agrado da filha. E o dia do casamento foi logo marcado.
Então Maria foi para o seu quarto pensar. Afinal de contas, ela não era tão sem jeito como pensava o pai. Estava ali um homem bonito, que viera de longe, de terras estranhas, atrás dela, à sua procura para casar. E ela rezou muito para sua madrinha, que era Nossa Senhora.
No outro dia, à tardinha, como de seu costume, saiu a moça de casa para dar um passeio pela estrada e ir ouvir os pássaros cantando por perto da fonte, pelos galhos das árvores que davam sombra à fonte que corria tão mansa, tão boazinha, dando água doce ao povo.
E quando ela foi chegando, viu uma velhinha sentada, com uma vara na mão, sem poder com um pote d'água que vinha trazendo.
Para onde queres que eu leve esse pote, minha velhinha? Perguntou a moça bonita.
Ah, minha filha, como o teu coração é grande! Por aqui passou gente de toda qualidade e ninguém se lembrou de me ajudar. Por isso eu quero te ajudar também. Eu sou a tua madrinha.
Aí a moça caiu de joelhos e beijou o vestido esfarrapado da velha. E quando ela olhou, não viu mais a velhinha. Viu foi a moça mais bela do que todas as imagens de Nossa Senhora. E o manto que trazia era mais bonito do que todos os vestidos do mundo.
- Minha filha, disse Nossa Senhora, hoje de manhã esteve em tua casa um homem bonito que pediu a tua mão em casamento. Aquele homem bonito é o Cão, minha filha. Ele saiu das profundezas para te tentar e enganar teu pai e roubar uma das minhas afilhadas no mundo. Mas eu não abandono as minhas filhas queridas. Podes ficar descansada que ele não poderá contigo. Para isso é preciso que tu me obedeças. Olha, no dia do casamento, quando tiver saído o último convidado, teu marido irá te levar para a casa dele. O Cão é bem estradeiro, cheio de muitos agrados. Ele trará uma carruagem para te levar. Tu te negues a montar em carruagem. Ele te trará o cavalo mais bonito do mundo, com arreios de rei. E tu também te negues. Então, tu pedes a teu pai o cavalo mais magro e mais feio, um cavalo que nem sirva mais para os criados. E monta nele. E deixa o resto por conta do animal.
E dito isto, a moça quando olhou não viu mais a sua madrinha. E tudo foi muito bem até o dia do casamento. O noivo chegou em trajes de veludo, enfeitado de jóias como um príncipe. Fazia gosto olhar-se para ele, de tão bonito que estava. Veio numa carruagem puxada por quatro cavalos com ferraduras de diamante. Trazia dois pajens fardados como pajens do rei.
O pai da menina ficou cheio, vendo um noivo tão rico para se casar com a filha. Gente rica era assim. Quando mais dinheiro tinha, mais queria ter.
A noiva no seu quarto se preparava para o ato. Mas houve logo uma contrariedade. O noivo disse que não era religioso e por isso não se casava com padre. Só se casaria no juiz.
Feito o casamento, veio a carruagem para a noiva tomar.
- Qual, disse ela, eu fiz uma promessa para no dia do meu casamento ir para a casa do meu marido no cavalo mais feio e mais magro das estrebarias de meu pai.
O pai e o noivo fizeram tudo para mudar o pensamento da moça. E não houve pedido. Ela só sairia de casa num cavalo velho que parecesse uma grelha, de tão magro.
E feito isto, saiu o cortejo. O noivo montado no seu corcel com arreios que tiravam raios de sol. E a noiva no seu alazão todo fouveiro, meio descadeirado. Foi uma risada dos convidados, quando viram uma moça tão bela numa montaria tão feia.
E assim foram andando. E na encruzilhada que a madrinha tinha falado, a noiva deixou que o noivo tomasse pela direita, enquanto ela seguia pela esquerda. O Cão, vendo aquilo, deu o desespero. E já ia pegando Maria para levá-la com ele para o reino das trevas, se ela não se lembrasse do rosário que trazia no pescoço e não o sacudisse para cima dele. Aí ouviu-se um estouro como de ronqueira em noite de S. João. E um cheiro de enxofre empestou todo o ar. O diabo tinha estourado com os poderes de Nossa Senhora.
E Maria ganhou pela estrada que sua madrinha tinha ensinado. E foi andando, andando até que avistou uma terra bonita, um castelo tão bonito como ela só tinha visto nos seus sonhos. E para lá ela foi andando, confiada sempre na sua madrinha. Era ali o palácio de um rei bondoso e de uma rainha que maltratava os seus vassalos.
E Maria se viu de repente transformada num soldado vestido com uma bela farda verde. O cavalo é que era mesmo, bem velho e bem magro. E a surpresa maior de Maria foi quando reparou que o seu cavalo falava como gente.
- Aqui, disse o cavalo, mora um rei muito bom, muito caridoso, amigo do seu povo, minha bela menina. Procura trabalho na corte. E não procures olhar para a rainha que é uma mulher muito intrigante.
Assim fez Maria. O rei ficou muito satisfeito com aquele belo soldado que aparecia para servir na sua guarda. A moça encantada tinha as feições de um moço lindo e forte.
O rei logo que viu um soldado daqueles chamou-o para seu ajudante de campo, dando a ele a patente de sargento. Também o Sargento Verde, como era conhecido na corte, merecia aquela distinção. Nunca o exército daquele rei teve soldado mais bonito, sabendo manobrar as tropas, mandar nas praças, tocar corneta. Quando o Sargento Verde passava pelas ruas da cidade, o povo corria para ver o seu primor, a sua maneira de marchar. As moças sacudiram rosas para ele e os rapazes invejavam aquele porte de príncipe.
O rei cada vez que se passava, mais ia gostando do seu Sargento Verde. Não havia caçada a que ele fosse, que não levasse o sargento. E passeava pelos jardins reais ao lado dele, pedindo até conselhos. E por isso o conselheiro do rei não gostava do sargento. O tesoureiro ficava com inveja daquele rapaz chegado ontem à corte e já com tanta importância. Mas o pior foi a rainha, que se enamorou do Sargento Verde.
E numa noite em que o rapaz entrava no seu quarto pensando na vida, ouviu a fala do seu cavalo velho, que dormia na estrebaria, perto:
- Vem cá, Maria, vem cá que eu tenho uma coisa para te dizer.
Maria correu para perto do seu amigo, que falava para ela com toda a franqueza:
- Abre o teu olho, Maria, já reparaste nas intenções da rainha? Ela quer te perder, toma cuidado. O rei é teu amigo. Ele te trata como nunca tratou nem ao seu secretário. A rainha é o demônio, Maria.
E depois o seu cavalo velho se calou e Maria voltou para o seu quarto.
No outro dia, quando o Sargento Verde ia passando pela porta da rainha, a malvada disse para ele:
- Belo rapaz, vai ao jardim e traz para os meus jarros as rosas mais formosas do rei. E eu fico te esperando aqui, belo soldado.
O Sargento Verde foi ao jardim, cortou as rosas mais bonitas e como se entrasse no quarto dos santos, entrou no quarto da rainha. Mas a rainha não gostou daquele ato do seu vassalo, porque ela gostava muito de ser admirada. Ela que era a mais formosa mulher do mundo, ser tratada daquele jeito por um sargento qualquer. E veio um ódio terrível no seu coração, uma vontade de cortar aos pedaços aquele rapaz que não olhava para ela. E para se vingar foi ao rei, e disse:
- Saiba o meu real marido que o Sargento Verde anda se gabando de que é capaz de ir ao fundo do mar e matar o Dragão.
O rei ficou muito espantado e mandou chamar o rapaz.
É verdade que tu andas te gabando de que poderás matar o Dragão do fundo do mar?
Rei meu senhor, respondeu o Sargento Verde, mais morto do que vivo, eu não disse tal. Mas para servir a Vossa Majestade, sou um escravo.
Dito isto, a moça encantada voltou para o seu quarto, cheia de mágoa. O que seria ela para o Dragão que morava no fundo do mar? Estava morta na certa, seria vencida na certa. Aí, ela ouviu que alguém chamava pelo seu nome.
- Vem cá, minha linda menina.
Era o cavalo magro que queria falar.
- Por que estás tão triste?
A moça contou a sua história. Tinha que ir ao fundo do mar, era ordem do rei. A rainha tinha inventado aquilo porque estava despeitada.
- Não tem nada não. Amanhã de manhã vai para a beira do mar e quando vires a gaivota grande pinicando as ondas, grita por mim. Três vezes grita por mim. Vai descansada, que tudo correrá bem.
O sargento dormiu sem medo. Quando foi de manhãzinha, saiu para a beira do mar.
E de fato. Lá estava a gaivota batendo as asas com um barulho de matraca. Maria nunca tinha visto um pássaro daquele jeito. Depois, a gaivota começou a meter o pescoço dentro d'água. Aí, o sargento deu um grito pelo seu cavalo magro. A gaivota nem ouvia. Ele deu outro grito. E nada. Mais um terceiro, e as ondas do mar pararam de bater na praia, o vento deixou de soprar. E um buraco como um caminho gigante se abriu nas águas. E mil gaivotas entraram por ele. Ouvia-se um bater de asas como de cem mil matracas na semana santa. E depois um urro veio do fundo mar. Um urro que parecia que vinha dos confins da terra, uma coisa de arrepiar os cabelos.
E quando o sargento viu, foi o Dragão estendido na praia. Mil gaivotas voavam por cima dele. Tantas gaivotas que cobriam o sol, que vinha nascendo. Fez-se um escuro na terra. A moça encantada se viu numa noite de trevas. Mas aos poucos o sol foi chegando. E quando clareou, não se via nem mais uma gaivota. E o Dragão, morto, estava estendido na praia, com as suas dez cabeças de fera e as suas cem patas de onça. Nisto apareceram dez juntas de bois encangados, arrastando um cabo de navio.
O Sargento Verde amarrou o bicho, e os bois saíram puxando o Dragão para o palácio do rei. Veio gente de todos os cantos do reino para ver o Dragão de papo para o ar, como um baiacu inchado na praia.
O rei ficou espantado. Chamou o seu Sargento Verde e disse na frente de todo o mundo:
- Meu fiel soldado, nunca vassalo meu foi mais valente. Mataste o maior inimigo dos homens, o devorador de todos os meus peixes. Por isto, serás de agora por diante o comandante da minha guarda.
Quando o sargento chegou à porta do rei, o povo deu vivas a ele.
Viva o Sargento Verde, que matou o Dragão!
Viva! Vivô!...
Uma banda de música tocava. E fizeram no reino uma festa que durou oito dias.
Agora, os pescadores podiam pescar descansados, que o Dragão não matava mais ninguém. O mar era manso como um lago, as jangadas e os navios não viravam mais. E tudo isso por causa do sargento do rei!
A rainha, por outro lado, não perdia as esperanças de perder o Sargento Verde. E lá um dia, vendo o rapaz sozinho no jardim, chegou-se para êle:
- Bom dia, meu belo sargento, está um dia lindo, não achas? Queria que tu fosses tirar para mim aquele cravo vermelho.
O sargento trouxe o cravo para a rainha. E ela sorria para ele, mostrando os seus belos dentes.
- Por que não gostas de mim, meu belo rapaz?
Aí o sargento disse que gostava muito dela, mas que gostava também do seu rei. E foi saindo de perto da rainha, que ficou danada com ele.
E tão danada ficou que foi direitinho ao rei, fazer outra intriga:
- Meu querido marido, o vosso vassalo o Sargento Verde anda falando por aí que é capaz de derrubar todo o vosso sítio de fruteiras e plantar tudo de novo. E de numa noite fazer as bananeiras, as laranjeiras, os sapotizeiros darem fruto.
O rei, ouvindo isto, mandou chamar o sargento. Que negócio era aquele que a rainha lhe tinha dito? Então ele se gabava
daquilo?
- Rei meu senhor, respondeu o sargento, nada disso saiu de minha boca, mas se Vossa Majestade quer, só há um jeito para mim: é fazer.
A moça encantada voltou para o seu cavalo magro e contou a história.
- Deixa isso comigo, menina, lhe disse o cavalo.
E no outro dia o sargento mandou cem escravos botar abaixo as fruteiras do rei. Mandou tocar fogo no mato, e quando tudo estava limpo como um terreiro, o sargento saiu semeando. E num abrir e fechar de olhos as bananeiras foram crescendo, ás laranjeiras também, os sapotizeiros e tudo mais que era fruteira aparecia como se fosse de muitos anos.
E o sargento trepou num pé de laranja e trouxe para o rei uma fruta que era uma beleza.
O povo, que estava assistindo à coisa, começou a dar vivas ao sargento.
"E o rei, sentado no seu trono, mandou chamar o seu vassalo, e disse:
- Sargento, a tua força não é deste mundo. Vejo que tens parte com os mágicos. Por isso eu te entrego a guarda do meu tesouro.
O Sargento Verde beijou a mão do rei seu senhor e saiu para o seu quarto.
Mas a rainha não se emendava. E mandou chamar o sargento para conversar.
Meu lindo rapaz, disse ela, vejo que és o homem mais poderoso deste reino, mais poderoso até do que o rei meu marido. Por que não matas o rei e não te casas comigo?
Senhora, respondeu o sargento, pensar nisto é mais do que um crime, quanto mais fazer! Amo o meu rei como a um pai.
A rainha ficou esperneando de raiva. E foi logo com outra intriga para o rei:
Saiba o meu real marido que o Sargento Verde me procurou para dizer que era capaz de ir ao fundo do mar e tomar da Mãe d'Água a princesa encantada que vive por lá amarrada de correntes.
Ele disse isso mesmo, mulher? Perguntou o rei.
Disse, que eu vos juro, respondeu ela.
E por isto o rei mandou chamar o seu vassalo.
Então, Sargento Verde, tu andas dizendo que és capaz de ir ao fundo do mar libertar a princesa encantada?
Rei meu senhor, eu não disse isso não. Mas desde que Vossa Majestade ordena, não tenho outro jeito.
E dizendo isto, saiu para conversar com seu amigo o cavalo magro.
Amigo cavalo, o negócio agora não é fácil não. A rainha me levantou outro falso.
Já sei de tudo, minha linda menina, disse o cavalo. Vai dormir descansada e sonha com os anjos do céu. Amanhã, antes do raiar da aurora, vai para a beira do mar e espera que as ondas parem. Quando o mar não soltar mais nenhum gemido, chama por mim três vezes.
E foi o que aconteceu. Antes de o sol apontar, o Sargento Verde estava na praia.
E não demorou muito que as ondas parassem de bater, e o mar ficou manso como uma lagoa. Aí o sargento deu o primeiro grito pelo cavalo magro. E uma estrada se abriu, bem a seus pés, que ia para o fundo das águas. Deu o segundo grito. E se viu vestido de uma couraça de ferro, com uma lança na mão. Deu o terceiro grito, e apareceu o cavalo para lhe dar um punhado de alfinetes e um punhado de cinza.
- Menina, lhe disse o cavalo, desce de mar a dentro e daqui
a dois dias de viagem tu encontrarás o palácio da Mãe d'Água. Luta e mata todos os bichos que aparecerem. Num subterrâneo, está a princesa encantada, encantada num peixe muito vermelho. Mata o dragão que guarda esse peixinho. Aí, tu deves tapar os teus ouvidos, porque o canto da sereia vem do fundo das águas para te encantar. Tapa os ouvidos e mete a tua espada nos bichos que aparecerem. Se tu ouvires um som da boca da sereia, estarás perdida para todos os tempos.
E dizendo isto, o cavalo magro sumiu. Aí, o Sargento Verde não perdeu tempo. Meteu-se de mar abaixo, andou léguas e léguas, até que encontrou o primeiro dragão. Lutou com o bicho e foi feliz no primeiro golpe. A cabeça do bicho rolou pelo chão. Andou mais léguas e botou tudo abaixo que aparecia na sua frente. E foi andando assim, até que chegou ao palácio da Mãe d'Água. Nunca ele tinha visto riqueza maior. As paredes do palácio eram de pérolas, as colunas de ouro, o chão de brilhantes. Aquilo chegava a ferir os olhos de um mortal. Mas o sargento não teve conversa. Foi logo arrombando portas e lutando com o dragão que guardava o peixe vermelho. E mal ele cortou o pescoço da fera, o peixinho vermelho se desencantou numa moça de cabelos loiros. Então o Sargento Verde pegou a princesa pelas mãos e veio saindo. Uma voz começou a cantar, a encher o mundo de uma música diferente de tudo. A moça era que ouvia a voz da sereia enchendo as águas de seu encanto. E não queria sair com o seu salvador. O sargento compreendeu a coisa, arrolhou os ouvidos dela com algodão que trazia no bolso, e foram saindo. A Mãe d'Água, vendo que eles fugiam, e que o seu canto não prendia os fugitivos, soltou os seus cachorros marinhos para perseguirem os dois. De espada na mão, o sargento foi matando tudo que aparecia. Mas, quanto mais ele matava, mais aparecia cachorro. Foi quando ele se lembrou do punhado de alfinetes e sacudiu em cima das feras. E nasceu uma mata fechada de espinhos. E aos bichos custou muito romper a mataria. Mas eles já iam longe, quando a cachorrada rompeu os espinhos. E todos já vinham outra vez atrás deles. O sargento largou o punhado de cinza. E um nevoeiro cobriu tudo. E os cachorros latiam desesperados, sem saber para onde ir. E a princesa e o seu salvador chegaram à praia. O rei, quando viu a princesa aos seus pés, chorou de alegria: - Minha filha, minha filha, há quantos anos estás perdida no fundo do mar!
E voltando-se para o sargento:
- Salvaste a minha filha! E ela será tua!
Mas logo depois o rei ficou muito triste, porque a moça não sabia falar, não sabia nem dizer papai, mamãe. E por isto seu pai ficou se lastimando da vida. De que serviu o sargento ter salvo a sua filha, para ela chegar como estava, sem saber dizer uma palavra?
- Ah, rei meu senhor, lhe disse a rainha, o vosso vassalo, o sargento, anda se gabando de que fará a vossa filha falar num instante.
O rei ficou muito contente, mandou chamar o sargento e falou para ele:
Sargento, tu tens sido o meu braço direito. O que tu tens feito nunca vi ninguém fazer, nunca vi um homem com o teu poder, só mesmo o Salvador quando andou pela terra. A rainha me disse agorinha mesmo que tu podias fazer minha filha princesa falar.
Eu faço, porque Vossa Majestade ordena.
E saindo do palácio, o sargento foi se encontrar com seu amigo o cavalo magro. Contou tudo a ele.
- Não tem nada não, disse o cavalo. Na hora do almoço do rei, pegue a princesa e passe-lhe as cordas. Dê-lhe com vontade, que ela falará.
E assim foi. Quando o rei estava sentado à mesa com a corte, o Sargento Verde entrou e chamou a princesa muda. E mal ela se chegou, ele passou-lhe as cordas com toda a força. A moça abriu a boca. E foi logo dizendo "Pai, papai", como menino novo.
Na outra lapada, falou outra palavra, chamando pelo nome de Maria, que era o nome do sargento. E não disse mais nada.
- Rei meu senhor, disse o sargento, na hora da janta eu voltarei.
E o rei, para a janta desse dia convidou a corte, os embaixadores da Espanha, da França e Castela e todo o mundo rico do reino.
Quando o sargento entrou na sala, bateram palmas e deram vivas. Mas nem parecia que era com o sargento tudo aquilo, porque ele foi entrando e foi logo pegando a princesa pelo braço e passando-lhe a corda no lombo. A princesa gemia e chorava. E de repente deu para falar como uma carretilha. E todo o mundo ficou de cabelo arrepiado.
- Ah, meu pai, dizia a princesa, a mulher que escolheste para rainha não seria tua se o Sargento Verde não fosse mulher como eu, se ele não fosse uma moça encantada em homem.
Ouvindo isto, a rainha saiu correndo de sala em fora, tropeçou no tapete grande e quebrou o pescoço.
O Sargento Verde se desencantou na moça mais bela que já se viu. Depois da festa, quando o banquete se acabou, Maria saiu do palacete para falar com o seu cavalo magro. E qual não foi o seu espanto, quando no lugar do cavalo encontrou o mais belo rapaz que seus olhos tinham visto. O cavalo magro estava também desencantado.
E o rei mandou fazer o casamento dos dois, com festas que duraram dias.

 

 

                                                                  José Lins do Rego

 

 

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