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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTÓRIAS E LENDAS DE ENCANTAR / David Martins
ESTÓRIAS E LENDAS DE ENCANTAR / David Martins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ESTÓRIAS E LENDAS DE ENCANTAR

 

                   O Galo de Barcelos

Eram tempos de devoção aqueles, em que os cristãos firmavam e consolidavam a sua presença no Reino de Portugal que acabava de se tornar independente do Reino de Castela para, a partir de então, seguir o seu próprio destino. Ora, isso aconteceu já lá vão quase novecentos anos. Nesses tempos remotos as pessoas não tinham uma ideia de fronteira, clara e nítida, como aquela que nós temos hoje. Esses portugueses, nossos antepassados, veneravam S. Tiago e invocavam a sua protecção, com a mesma fé com que nos nossos tempos veneram Santo António, como se o santo fosse uma espécie de avô simpático e bonacheirão de quem se lembravam nos momentos difíceis. As pessoas deslocavam-se a Compostela para pedir uma graça ao Apóstolo, tal como hoje recorrem à ajuda de um amigo influente. Para lá chegarem caminhavam léguas e léguas, dormiam ao relento, comiam por caridade, numa choupana ofereciam-lhes uma malga de sopa, mais adiante um camponês repartia com eles o seu pão escuro.

Humilde, vestido de estamenha, um peregrino seguia o seu caminho, a estrada de Santiago, apoiado no seu grosso bordão. Talvez porque não fosse tão pobre como outros, pernoitava nas estalagens.

Na noite em que este homem encontrara abrigo na pequena hospedaria de Barcelos, uma aldeia nos confins de Portugal, já muito próxima da Galiza, nessa noite, dizia eu, quis a pouca sorte que o dono do estabelecimento tivesse dado pela falta de uma bolsa com moedas de ouro que era toda a sua fortuna.

Algumas pessoas tinham passado lá o serão, comendo, bebendo, contando histórias e conversando numa grande algazarra, sentadas diante de uma grande lareira onde ardia um enorme tronco, enquanto esbracejavam com a animação e agitavam malgas de vinho por cima das cabeças. Qualquer deles poderia ter sido o larápio, mas eram todos vizinhos, conhecidos e amigos de longa data, pelo que o estalajadeiro não desconfiou dos seus clientes habituais. Esta razão foi quanto bastou para que as suspeitas recaíssem sobre o nosso peregrino, suspeitas logo seguidas da acusação:

- Ladrão! Foste tu, só podes ter sido tu, que aqui toda a gente se conhece. Não escapas, vais ver! O juiz logo te dirá! Verás o que te espera!

E assim foi. O juiz sentenciou o homem como tendo sido ele o autor do roubo, apesar de as moedas não terem sido encontradas na sua posse, e logo ali o condenou a morrer na forca.

Quando o carrasco o conduzia para o meio da praça onde ia ser executada a pena, o peregrino lembrou-se de pedir:

- Esperem! Levem-me outra vez ao juiz, que eu ainda tenho uma coisa para lhe dizer.

Após alguma hesitação, o homem foi levado à presença do juiz que estava agora sentado à mesa e se preparava para se banquetear com um belo capão assado que estava na sua frente, temperado e tostado que fazia crescer água na boca.

- Meu senhor, ouvi mais uma vez que estou inocente do crime de que me acusam. Tomo Nossa Senhora por minha testemunha e aqui mesmo lhe peço que me faça um milagre. Se aquilo que eu digo for verdade, e eu estiver inocente, esse galo que tendes na vossa frente e vos preparais para comer, agora mesmo tornará à vida, se levantará e cantará!

Naquele preciso momento, o galo deu um pulo dentro da assadeira e começou a cantar. Os presentes ficaram boquiabertos e de olhos esbugalhados. Nunca tal se vira.

O homem tinha conseguido provar a sua inocência e ao juiz apenas restou deixá-lo ir-se embora em paz.

O galo ficou imortalizado através do artesanato em barro produzido na região de Barcelos que a imaginação dos oleiros tem recriado, geração após geração, profusamente colorido.

 


                     A Sopa de Pedra

Descia o Sol no horizonte. Pela estrada, coberto de poeira, seguia Frei Bernardo, o rosário a tilintar, a barriga a dar horas.

Longa tinha sido a caminhada, isto para não mencionar a lonjura que ainda tinha de palmilhar até chegar ao mosteiro.

Se era vivo de espírito, não era menos robusto de corpo, o nosso frade. Cem léguas caminharia, tivesse ele a barriga cheia... mas, não se via nem galinha transviada, nem macieira a convidá-lo sem o dono por perto. Nada, coisa alguma que se pudesse comer.

Pouco faltava para ele maldizer a sua vida, quando avistou uma quinta no horizonte: o seu santo protector nunca se esquecia de velar por ele! Sorriu, satisfeito. Afinal, não há mal que sempre dure. Com um pouco de sorte, alguma coisa lhe dariam para comer.

Mas os tempos não iam de feição para se fazer caridade. A vida estava muito difícil, os anos de seca não deixavam os cereais germinar, os legumes definhavam nas hortas, os animais morriam de fome e de sede. Acrescentem-se os impostos que os senhores da terra nunca se esqueciam de mandar cobrar a tempo e horas, os homens que tinham partido para longe, guerrear sabe-se lá que inimigos numa terra distante. O pouco que cada um conseguia extrair da terra ressequida, em sua casa o aferrolhava, que ninguém sabia o que ainda podia estar para vir. Tudo isto o nosso bom frade bem o sabia. Mas não lhe faltava nem bonomia, nem engenho e arte para resolver qualquer problema que lhe surgisse, por mais complicado que ele fosse. Se não se podia ir pela estrada real, dava-se a volta por atalhos, e não era por isso que um homem deixava de chegar ao seu destino.

À medida que encurtava a distância que o separava da casa de paredes de pedra escura da região e telhado de colmo, uma ideia foi ganhando forma na sua mente. Apanhou uma pedra do chão e sorriu. Era uma pedra redondinha. Limpou o pó que a cobria e bateu à porta.

- Quem é? - Gritou uma voz de mulher.

- Deus te salve, boa mulher! Não terás por aí uma panela que me emprestes e um poucochinho de água que me dês? É que aqui mesmo acendo umas brasinhas e faço uma sopa de pedra.

- Essa agora! Não querem lá ver? Havia de ter graça! - exclamou a mulher, rindo, os dedos cruzados sobre o ventre empinado pelo pimpolho que em breve daria à luz. - Sopa de pedra? Nunca de tal coisa ouvi falar!

- Pois olha que é um manjar que se faz muito lá na minha aldeia, e é de muito alimento. Queres ver?

É claro que a curiosidade da mulher era mais do que muita, e ela não a escondia, observando o frade com o mesmo espanto com que olharia para uma galinha com cinco cabeças.

- Sempre estou para ver como é que vossemecê faz esse petisco - disse ela, abanando a cabeça, meio incrédula, meio divertida.

- É simples, já vais ver. Ponho esta pedra dentro da panela com água e deixo ferver - explicou ele, mostrando o seixo reluzente.

A mulher não queria acreditar, mas como a curiosidade era mais forte, lá foi buscar uma panela com água.

Frei Bernardo juntou meia dúzia de cavacas, acendeu um lume bem espevitado, meteu-lhe o tacho em cima com a pedra lá dentro, cruzando em seguida os braços como quem está à espera que qualquer coisa aconteça, e depois sentou-se tranquilamente, desfiando o seu rosário. Passados momentos, já a água fervia... com a pedra lá dentro.

A mulher, sempre desconfiada, não tirava os olhos do frade.

- Sabes que mais - disse ele - vou prová-la. - Hmm... parece que precisa de um bocadinho de sal.

E a mulher foi buscar o sal. Frei Bernardo agradeceu, e voltou às contas do seu rosário.

A mulher, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ia no entanto arranjando afazeres que a obrigassem a rondar por ali. Sempre queria ver. O frade fingia não dar pela presença dela que, a certa altura, não resistiu mais e perguntou:

- Então, e é boa... essa sopa?

- Boa? Fica sabendo que é das coisas mais saborosas que eu já comi. E então se me trouxesses uma batatinha, ou uma folhinha de couve, ainda ficava melhor.

A mulher lá foi à horta e regressou com duas batatas, uma cebola, três folhas de couve. Frei Bernardo não se fez rogado. Uma boa sopa de hortaliças já ele tinha a ferver, diante dele. No entanto, passado algum tempo, virou-se para a mulher e disse:

- Esta sopinha não está nada má, mas se lhe juntasse um dentinho de alho, um fio de azeite, duas rodelas de chouriço... ah! Então até os anjos do Céu seriam capazes de a comer.

A sopa cheirava que era um regalo, disso ninguém poderia duvidar. A mulher entrou em casa e de lá saiu trazendo o que faltava.

- Sabes o que te digo? És uma boa alma. Vai buscar duas gamelas e senta-te aqui comigo, que a sopa chega bem para os dois.

Eis como Frei Bernando se deliciou com uma bela sopa, num local onde, de outro modo, bem sabia que nada lhe teriam dado para comer.

- E a pedra? - perguntou a mulher, quando chegaram ao fundo da panela.

- A pedra? Olha, essa, levo-a comigo, que me há-de servir outras vezes.

 

                   A Teimosia do Diabo

Ia o Inverno a meio, com um mês de Fevereiro ameno e de céu azul.   As chuvas rareavam, só pela manhãzinha é que aqueles vales entre colinas ficavam mergulhados na bruma, que o calor do Sol dissipava à medida que este ia subindo no Céu.

A erva rasteira e a folhagem de algumas árvores e arbustos brilhavam sob o efeito do orvalho.

Ora, aconteceu que o Diabo resolveu ir passear para aquele lugar, certamente à procura de um bom pretexto para se divertir a pregar uma partida maldosa a algum incauto que encontrasse por ali.

Caminhou, caminhou, sem nada encontrar, nem pessoa, nem animal. A maioria das árvores apresentavam os ramos nús e ainda era cedo para os pássaros regressarem dos países quentes mais a Sul e irem construir os seus ninhos abrigados pela densa ramagem que despontava na Primavera.

Começava o Diabo a ficar enfastiado com aquele passeio quando, de súbito, viu um pouco adiante uma árvore toda branca que se destacava no meio da paisagem devido aos milhares de pequeninas flores brancas que a cobriam. Era uma amendoeira.

- Olha, que maravilha! - exclamou o Diabo batendo as palmas e pulando de contentamento. - Calha mesmo bem! Hei-de ser o primeiro a provar os teus frutos.

E, para que mais ninguém lhe tomasse a dianteira, todos os dias o Diabo ia rondar a amendoeira, sempre à espreita de ver surgirem os primeiros frutos para os colher de imediato.

A amendoeira também tinha as suas manhas e não estava com nenhuma vontade de agradar a tão feia e maldosa criatura. Por isso, lá se ia deixando estar, calmamente, sem pressa, sempre muito florida, muito bonita e branquinha, enquanto se ria consigo mesma da surpresa que o Diabo ia ter.

O mafarrico não arredava pé de junto da amendoeira, sempre à espera que aparecessem os frutos, mas nada acontecia. As outras árvores foram dando os seus frutos, perfumados e sumarentos, mas a criatura tinha embirrado que só queria os daquela árvore. Os frutos das árvores do vale amadureceram, foram debicados pela passarada, colhidos pelas pessoas que por ali passavam ou cairam no chão apodrecidos.

“Deixa estar, meu maroto”, pensou a amendoeira, “que tu hás-de esperar até eu querer. E se no fim ainda quiseres comer os meus frutos, hás-de partir os dentes todos”.

Foi assim que a amendoeira foi a última árvore do vale a dar os seus frutos e é esta a razão pela qual as amêndoas têm aquela casca tão dura.

 

                  O Bandido da Serra de Arga

A Serra de Arga ergue-se rodeada de muitas outras serranias. A Natureza encontra-se aí em estado quase selvagem, tendo sofrido pouco com a acção destruidora dos homens que tudo querem rapidamente Dominar e transformar em seu próprio proveito. Esta zona era, na época a que nos reportamos, já lá vão alguns séculos, escassamente habitada de gentes. As aldeias distavam uma lonjura umas das outras e eram precisas muitas horas a pé ou a cavalo para que alguém se deslocasse à localidade mais próxima.

Naqueles ermos vivia, solitário, talvez abrigando-se nalguma caverna, um homem enorme e possante, um homenzarrão, que se dedicava à única actividade de matar e roubar todos quantos se aventurassem a atravessar aquela região e tivessem o azar de se encontrar frente a frente com ele.

O salteador atacava as suas vítimas com um facalhão de que nunca se separava. As populações temiam-no e evitavam-no, tal como o faziam com os lobos e os ursos.

Certo dia, um fradinho ingénuo e com o coração cheio de bondade, aventurou-se por aqueles íngremes caminhos de montanha, extasiado com a magnífica paisagem a perder de vista. Ele tinha Deus no seu coração e, quando se via confrontado com a maldade humana, sempre arranjava maneira de descobrir o lado bom dos prevaricadores. Ele não acreditava que pudesse existir a maldade pura e simples.

Seguia este homem de Deus por uma vereda, enchendo os pulmões com aquele ar tão leve e ligeiramente embriagador, e sentindo o coração livre como um passarinho, tudo isto por lhe dada a ver toda aquela beleza simples e harmoniosa. Enquanto caminhava ia agradecendo ao Criador por lhe proporcionar tanta felicidade.

Ia tão absorto nos seus pensamentos que nem se assustou quando, alguns passos à sua frente surgiu, vindo não se sabe de onde, uma espécie de gigante, um maltrapilho hirsuto, empunhando um facalhão e que avançava na sua direcção:

- Quem és tu meu irmão...? - começou o frade a perguntar mas, antes de ter podido acabar a frase agonizava, caído por terra, profundamente atingido pela lâmina da enorme faca do bandido.

Antes de exalar o seu último suspiro, o frade ainda conseguiu dizer ao seu algoz, sem qualquer vestígio de rancor ou ódio no seu coração:

- Tenho muito pena de ti meu irmão... vejo que és um homem muito infeliz e solitário e que sofres com isso. É esse sofrimento que te leva a cometeres crimes de sangue... matas o teu semelhante porque não sabes amá-lo. Mas eu agradeço-te pelo mal que me fizeste porque, assim, daqui a pouco vou estar perto de Deus e pedir-lhe-ei que Ele te ajude a encontrar o bom caminho que, um dia, te conduzirá, também a ti, até ao Céu. Acredita que vou ajudar-te ...

O santo homem não teve tempo para acabar a frase. A alma abandonou o seu corpo e regressou para junto do Criador.

Estupefacto com a atitude do frade, o ladrão sentiu-se como se tivesse sido atingido por um raio e compreendeu, naquele instante, que se tornara num monstro. A partir daquele dia operou-se uma modificação total na sua maneira de agir e, em vez de assaltar e matar os viajantes, passou a ajudar todos quantos por ali passavam e precisavam da sua ajuda: Salvava crianças que se atolavam na neve, ajudava os pastores a encontrarem as ovelhas tresmalhadas, carregava às costas os velhos que queriam atravessar o ribeiro pouco profundo mas que tinha uma corrente rápida e agitada. Enfim, transformara-se num modelo de caridade cristã para com os seus semelhantes.

Mas, muito antes do assassínio do frade e da consequente modificação no seu comportamento, já a sua fama de assassino e ladrão tinha chegado a Lisboa. Os governantes ofereceram, então, uma recompensa de cem moedas de ouro a quem capturasse o homem e o entregasse às autoridades, vivo ou morto.

Um dia, um camponês que se fez àquela estrada de montanha com uma carroça carregada de cereal para vender na feira ficou, de repente, muito aflito ao verificar que uma das rodas se atolara na lama e ele sozinho não era capaz de resolver o problema. A carroça ia-se inclinando para aquele lado e o homem temia que o cereal se derramasse pela encosta abaixo.

No meio da sua aflição, o camponês não viu aproximar-se o gigante que, entretanto, passara a ser um homem de bem. Pondo um joelho em terra e curvando as suas possantes costas, o homem conseguiu equilibrar, sobre os ombros, o peso da carroça antes que o seu conteúdo se perdesse.

Sabedor da recompensa para quem capturasse o antigo salteador e vendo-o ali, desprevenido, numa postura em que não podia defender-se, o camponês agarrou com as duas mãos num machado que levava escondido debaixo do capote e, com dois ou três golpes, esmagou a cabeça de quem lhe prestara ajuda desinteressada, matando-o de imediato.

Cobriu o corpo com alguma terra, ramos e folhas secas e foi a correr avisar as autoridades que tinha capturado o bandido, pedindo-lhes que o acompanhassem depressa ao local, pois temia que os lobos entretanto comessem o cadáver.

Quando chegaram ao sítio onde o homem tinha sido abandonado, com a cabeça despedaçada, verificaram que o seu corpo se encontrava deitado sobre um tapete de flores que inexplicavelmente tinham crescido em seu redor. A cabeça não tinha sinais de ferimentos e o corpo estava intacto, parecia alguém que tivesse simplesmente adormecido tranquilamente. Junto dele tinha crescido uma árvore com densa folhagem que projectava uma sombra fresca sobre o corpo que ali jazia. Passarinhos esvoaçavam em todas as direcções enchendo o ar de música com o seu chilrear.

A notícia de tão insólito acontecimento correu célere pelas aldeias vizinhas e não tardou que houvesse quem considerasse que Deus, na sua infinita bondade, concedera a sua misericórdia àquele antigo pecador e que, por isso, ele devia ser considerado santo e digno de veneração.

O povo construiu-lhe uma pequena igreja num lugar ermo da Serra de Arga e, passados alguns séculos, ainda hoje ela lá se encontra e é muito visitada pelos devotos.

 

                   O Sacristão e o Diabo

Era uma vez um sacristão que, todas as noitas, se dirigia ao altar da sua igreja e acendia velas diante das imagens dos santos para que as trevas não invadissem o local e as santas criaturas não deixassem de proteger o povo daquela vila.

Um dia, lembrando-se de ter ouvido dizer que o Diabo está sempre atrás da porta, pensou: “Se for verdade que o Diabo está atrás das portas e que ele, quando quer, não é tão mau rapaz como dizem, então deixa-me cá pôr-lhe também uma vela, que às vezes... ainda pode ser que algum dia me ajude”.

Alumiou uma vela e foi colocá-la atrás da porta da igreja.

Findo o seu trabalho, dirigiu-se à estalagem onde jantou ovos cozidos. Quando ia pagar, pediram-lhe seis mil réis. Voltou-se, então, para o estalajadeiro e disse-lhe:

- Olhe lá, seis moedas por três ovos cozidos não é muito dinheiro?

- Não é, não! - respondeu o outro.

- Não é? Então, como é isso? - perguntou o sacristão.

- É que você não está a pagar só o preço dos ovos que comeu. Você tem também que pagar os pintos que de lá haviam de sair, haviam de crescer e tornar-se galinhas que valeriam bom dinheiro. E agora, vossemecê já está a perceber quanto valiam os ovos que comeu?

- Esta agora, não querem lá ver! Mas se eu só comi os ovos, não comi nem pintos, quanto mais galinhas... E logo seis moedas... eu tenho lá seis moedas!

- Ah, não tem? Vocemessê não quer pagar? Então amanhã vamos ao juiz, que ele logo lhe diz quem é que tem razão.

O sacristão estava estupefacto, tanto mais que o estalajadeiro era considerado um homem rico, que na igreja oferecia esmolas para os pobres com gestos largos para que todo o povo o visse. E agora, estava a exigir-lhe, a ele, um pobre sacristão, que pagasse por três ovos o preço de um lauto banquete. Como é que aquilo podia estar a acontecer-lhe?

O sacristão não tinha aquele dinheiro todo, foi-se embora muito aflito. Dirigindo-se para casa, saiu-lhe ao caminho um homem muito alto, envolto numa capa preta. O sacristão recuou, assustado, mas o outro disse-lhe:

- Nada receies, não estou aqui para te fazer mal. Sei o que se passou na estalagem e quero dizer-te que não precisas de te preocupar. Confia em mim. Eu posso muito, acredita que posso. Amanhã vou ao tribunal defender-te. Espera lá por mim, que à hora marcada eu apareço.

O pobre homem ficou todo contente por ter aparecido alguém que iria intervir a seu favor.

No dia seguinte, quando chegou ao tribunal já lá se encontravam o juiz e o estalajadeiro. Só faltava o homem que lhe tinha prometido que iria defendê-lo. Esperaram, esperaram, mas o outro continuava sem aparecer. O juiz estava a ficar muito aborrecido com aquela demora. Era quase hora da janta, e ele não conseguia pensar noutra coisa que não fosse a paparoca que o esperava lá em casa, até já lhe estava a crescer água na boca, e que aborrecimento, a defesa tardava em chegar... se é que viria! O juiz começava a ficar de muito mau-humor, que isto de uma pessoa sentir o estômago vazio era o diabo.

Eis que entra na sala o embuçado da véspera, dando grandes passadas. À luz do dia, o homem ainda parecia maior. As tábuas do chão do tribunal vibravam e rangiam sob as sua botas pesadas.

Dirigindo-lhe a palavra, o juiz perguntou:

- Olhe lá, então isto é que são horas de você aparecer? O que é que você esteve a fazer até agora para chegar tão tarde?

- Estive a cozer favas para os meus criados semearem - respondeu o homenzarrão, com a sua voz de timbre profundo.

- Ah, sim? E onde é que já se viu favas cozidas a germinarem? - perguntou o juiz.

- Então, e onde é que já se viu ovos cozidos darem pintos? - perguntou o outro à laia de resposta.

O juiz não sabia que responder. Olhou para o estalajadeiro que estava boquiaberto.

O homem da capa preta deu meia volta sobre os tacões das pesadas botas e saiu majestosamente.

Na rua, riu-se para o sacristão, deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe:

- Estás a ver? Eu quando quero também sei um rapaz simpático. E também ficaste a saber que eu há gente que, embora pareça praticar o bem e querer ajudar os seus semelhantes, não perde uma oportunidade para os enganar e roubar. Neste mundo é preciso ter sempre os olhos bem abertos!

 

                   O Suave Milagre

Conta-se que um dia, nas terras da Galileia, vivia uma mulher pobre, mais pobre do que qualquer outra mulher sobre a terra. E essa mulher tinha um filho, um menino entrevado, mais infeliz do que qualquer outro menino sobre a terra.

Viviam num casebre, das esmolas dos mendigos que por ali passavam, e se condoiam da sua sorte.

Um dia um destes mendigos bateu à porta e pediu para pernoitar.

Repartiu um pouco do seu pão com aqueles dois, ainda mais pobres do que ele, e contou que tinha chegado o Messias. Um rabi bom e doce que a todos abençoava e perdoava, que distribuia pão pelos mais pobres e de todos tinha piedade. Curava todos os doentes e prometia um reino de felicidade para todos os que ouvissem a sua palavra e seguissem os seus ensinamentos.

E onde estava esse Rabi, que se apiedava dos mais humildes?

Ninguém sabia. Obede, tão rico, tinha enviado os seus servos em busca de Jesus. Não tinham conseguido encontrá-lo. Também Septimus, tão poderoso, havia enviado os seus soldados à procura dele. Em vão.

Ouvindo estas palavras, a criança pediu:

- Mãe, eu queria tanto ver Jesus!

Nesse momento a porta abriu-se devagar e Jesus disse-lhe docemente:

- Estou aqui.

 

                   O Alcaide do Castelo de Faria

Convido-o, caro leitor, a empreender uma viagem no tempo. Assim, imagine-se transportado ao ano de 1373 da era cristã. A paisagem que o rodeia é aquela que ainda hoje é típica do Norte de Portugal, serranias atrás de serranias, ora áridas e pedregosas, ora vastidões de prados e florestas a perder de vista na lonjura do horizonte.

No cimo de um ermo monte, ergue-se uma fortaleza de grossas e altas muralhas de escuro granito encimadas de torres e ameias. Não lhe faltam alçapões, postigos, a ponte levadiça e o fosso circundante.

Você encontra-se diante do Castelo de Faria, uma construção fortificada muito antiga. Às pedras dos seus robustos muros não faltam recordações de glórias passadas.

O Reino de Portugal é governado pelo rei Dom Fernando, um homem cujo carácter não prima nem pelo cumprimento das promessas feitas nem dos compromissos assumidos. Foi, assim, que em vez de se casar com a filha do rei de Castela conforme tinha sido acordado entre os dois soberanos, Dom Fernando decidiu casar com Leonor Teles, uma mulher muito bela mas casada que se tornara sua amante.

Com o pretexto de vingar tão grave e ofensiva afronta pela quebra do contrato, o exército do rei de Castela invade o território de Portugal, atravessando a fronteira em locais distintos. Um desses batalhões castelhanos composto por muitos soldados, uns a pé, outros a cavalo, entra pela fronteira Norte. À sua passagem, os soldados vão incendiando, saqueando, violando e matando tudo e todos os que se deparam no seu caminho, deixando atrás de si um rasto de destruição e sofrimento nos aldeões e camponeses que não têm culpa das desavenças contratuais entre os dois reis vizinhos.

Os exércitos particulares comandados pelos senhores feudais daquelas terras, súbditos do rei de Portugal, não são suficientes para fazerem frente aos espanhóis, a quem nada nem ninguém consegue deter o avanço por terras de Portugal. Num destes confrontos participou o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves, que caiu prisioneiro das tropas castelhanas.

Na ausência do alcaide, o castelo é governado pelo seu filho. O pai teme que, sabendo da sua desgraça, o filho ofereça o castelo ao inimigo para resgatar a liberdade do seu progenitor. Este receio fez com que o velho alcaide se lembrasse de montar um ardil para impedir que uma tal situação viesse a acontecer: Nuno Gonçalves pede ao comandante das tropas castelhanas que o conduza até às muralhas do seu castelo para que ele fale ao filho e, assim, possa convencê-lo a entregar a fortificação sem derramamento de sangue para nenhum dos lados.

Diante dos seus olhos, caro leitor, desfila agora um numeroso grupo de homens que acompanha o velho alcaide. Chegam às cercanias do castelo e formam como que um cordão humano que rodeia completamente a construção. O exército vitorioso prepara-se para tomar posse do castelo, conforme lhe prometeu o prisioneiro.

Agora você usa as roupas de lã, iguais às de todos os habitantes da aldeia de Faria. São vestimentas grosseiras de gente que apenas vive daquilo que a terra lhes dá. De facto, neste momento, você é um deles. Vê brilhar ao longe, tal como os seus vizinhos, o metal das armaduras dos soldados inimigos, refulgentes sob a luz intensa do Sol, e as suas coloridas bandeiras que esvoaçam ao vento. Você, juntamente com todos os seus companheiros, homens, mulheres e crianças, está assustado e juntamente com eles, todos abandonam os campos e as vossas casas e correm a refugiar-se dentro das muralhas, num terreiro onde toscas choupanas de tecto de colmo se apoiam umas nas outras. Todos pensam que aí vão encontram protecção contra a violência e a brutalidade que sempre acomete os homens quando lhes põem uma arma nas mãos e lhes dão impunidade para cometerem toda a espécie de atrocidades.

Sobre as muralhas, os sitiados desenvolvem intensa actividade. Os homens que estão de atalaia nas torres vigiam atentamente os movimentos do inimigo, enquanto outros correm ao longo das ameias, colocando-se em posições estratégicas de defesa.

Um grupo de castelhanos armados aproxima-se das muralhas levando consigo o velho alcaide. Os besteiros do castelo, escondidos por detrás das ameias, retesam as bestas e apontam-nas na direcção da comitiva. Os homens que accionam as armas de arremesso e outros engenhos bélicos preparam-se para cumprir a sua tarefa.

Do grupo de combatentes castelhanos, destacou-se um arauto que se aproximou das muralhas exteriores. Nas ameias as bestas inclinaram-se para o chão e ouviu-se o ranger das máquinas de lançar projécteis. Fora isto, o silêncio é profundo. Por fim, ouve-se, ao longe, a voz grossa e altissonante do arauto que chama o filho de Nuno Gonçalves, bradando-lhe que saia do castelo e vá até junto de seu pai que quer falar-lhe.

O filho do velho alcaide, de seu nome Gonçalo Nunes, aparece no alto da muralha exterior e responde-lhe:

- Diz a meu pai que eu o espero aqui e que Nossa Senhora o proteja.

O arauto regressa para junto dos seus superiores e, após alguma agitação entre eles, o grupo aproxima-se da muralha ladeando o alcaide-mor que fala ao filho:

- Sabes tu, meu filho, de quem é este castelo?

- Sei que é de El Rei de Portugal, que o confiou à vossa guarda.

- Então se sabes, com Judas o traidor sejas tu sepultado no inferno se os castelhanos entrarem nele sem passar primeiro por cima do teu cadáver.

Compreendendo o sentido do diálogo entre os dois, logo ali o comandante castelhano ordena que matem o velho alcaide, que caiu trespassado por muitas espadas.

- Defende-te, alcaide! - tem ainda forças para gritar ao filho o pai moribundo.

O novo alcaide corre como um louco ao longo das muralhas, gritando por vingança.

Do alto das muralhas chovem flechas sobre os soldados castelhanos, que atingem mortalmente muitos deles.

O batalhão castelhano reúne todas as suas forças e ataca o castelo. As casas de colmo onde os mais desprotegidos, você e os seus vizinhos da aldeia se abrigaram, começaram a arder, resultado das flechas incendiadas desferidas do exterior do castelo. A confusão é enorme. Por todo o lado se ouvem os gritos das mulheres, o choro das crianças, as impercações dos velhos. Um homem em chamas sai a correr, desvairado, dos abrigos de colmo e rebola-se no chão a gritar por socorro. Despejam-lhe baldes de água em cima, mas tudo o que fica é um corpo enegrecido, a estrebuchar, agonizante. Os gritos de terror dos feridos elevam-se no ar juntamente com os rolos de fumo do incêndio e o forte e repugnante cheiro a carne carbonizada.

O jovem alcaide não consegue esquecer a terrível visão do seu pai, morto a golpes de sabre, nem as últimas palavras que ele lhe gritou antes de entregar a alma ao Criador: - “Defende-te, alcaide!”

O cerco dura vários dias. A carnificina de ambos os lados das muralhas foi atroz, o sofrimento é indizível. Tanta dor e destruição que razão alguma justifica. Você e todos dentro das muralhas deambulam exaustos, esfomeados e com sede, revoltados por terem sido os peões no tabuleiro de xadrês onde se jogaram questiúnculas que não vos dizem respeito. O orgulhoso comandante das tropas invasoras acaba por ver a sua soberba abater-se contra os muros do castelo de Faria, quando o desalento atinge os poucos homens que lhe restam.

Você e os seus companheiros de infortúnio regressam à aldeia de Faria onde encontram as vossas casas assaltadas, o gado tresmalhado pelos campos ou roubado para alimentar os sitiantes. O desânimo é grande, mas a vida tem que continuar e está tudo para refazer quase a partir do nada.

Passados dias, o jovem alcaide recebe um mensageiro do rei que muito o louva pela sua tenacidade e feitos guerreiros na defesa do castelo. Sensível e impressionável, ele não consegue esquecer as imagens horrorosas, dignas do Inferno, que durante dias presenciou. Troca as vestes de cavaleiro pelas de monge, troca o mundo conturbado regido pelas leis dos homens pela paz do convento e da oração.

Terminou, caro leitor, a sua viagem no tempo. Você está de regresso ao presente. Do sofrimento e da glória deste acontecimento não ficou para a posteridade uma pedra que os testemunhe, apenas sobrevivem ainda na memória dos historiadores.

 

                   Dom Fuas Roupinho

Dom Fuas Roupinho, gentil-homem, fidalgo e rico senhor, era muito considerado pelo rei devido à justeza dos conselhos que dava e às virtudes de leal vassalo de que fazia prova. As suas terras eram bem cultivadas e todos quantos dele dependiam eram bem tratados.

Valente homem de armas, bom cavaleiro e conhecedor de montadas, anfitrião nobre e generoso, cristão devoto e temente a Deus, Dom Fuas tinha uma particular veneração pela Nossa Senhora da Nazaré, padroeira das suas terras e das suas gentes.

Caçador aguerrido, como cumpria a um senhor de tão nobre linhagem, sempre que acontecia o rei atravessar as suas terras era certo e sabido que ruidosa montaria havia de se fazer aos ursos ou aos javalis, seguida de suculento banquete iluminado, se preciso fosse, por mais de mil archotes. Em tais ocasiões o vinho corria a jorros, havia escravas mouras que dançavam e músicos que tocavam até ao raiar do dia.

Se porém estava só, Dom Fuas ocupava frequentemente o seu tempo cavalgando ao sabor da inspiração do momento, sem destino certo ou fim determinado, não em perseguição de lebres ou de perdizes, caça pequena que considerava indigna de si e deixava para os seus vilãos.

Mas se fosse um belo veado que avistasse, então, a sua atitude mudava completamente, pois Dom Fuas não desdenhava uma peça de caça grossa. E como era corpulento o bicho que acabara de descortinar ao longe, naquela manhã nebulosa! Um veado robusto, de pescoço largo, bem fincado nas pernas, bem levantadas as hastes orgulhosas. Ora ali estava uma presa que por nada deste mundo deixaria escapar. Devagar, tomando as devidas precauções para que a sua presença não fosse percebida, encurtou a distância que o separava do animal, que já estava ao alcance de um tiro de besta certeiro. Mas o apurado instinto do animal alertou-o para a proximidade de um predador e o veado partiu em fuga acelerada.

Dom Fuas esporeou o cavalo e deu início à perseguição. Longo tempo cavalgou. Tão excitado estava o fidalgo como excitada estava a sua montada que bem gostava daquele exercício matinal. Alvarim, assim se chamava o cavalo, amigo e cúmplice do seu dono que com ele partilhava o prazer da perseguição e da caçada, um e outro unidos como se fossem um só, as narinas frementes a refolegarem de cansaço e de prazer.

Bela corrida. O veado dava boa luta, não abrandava, parecia trazer o demónio dentro dele.

Dom Fuas cavalgava desenfreadamente, no seu encalço, sem ver bem os sítios por onde se metia devido ao nevoeiro cerrado. Quando se apercebeu, já era tarde demais: entre a falésia a pique sobre o mar e a queda mortal entrepunha-se apenas uma pata de Alvarim fortemente fincada à beira do precipício.

- Mãe de Deus! - gritou Dom Fuas, no brevíssimo instante que estava destinado a ser o último da sua vida.

Nesse momento, tem-se contado de geração em geração, ao longo dos séculos, Dom Fuas teve uma visão. Era Nossa Senhora da Nazaré que vinha socorrê-lo, como recompensa da Fé que o cavaleiro sempre lhe devotara.

Nossa Senhora fez com que o cavalo estancasse no instante em que ia cair no abismo, salvando assim Dom Fuas de uma queda de mais de cem metros e de uma morte certa.

Para aqueles que acreditarem na lenda, lá está a capelinha que Dom Fuas mandou construir na falésia sobre a vila da Nazaré. É uma construção toda revestida a azulejos e é também a prova da gratidão de Dom Fuas.

Para quem, apesar de tudo, teimar em não querer acreditar no milagre, também lá está, no alto da falésia, um buraco redondo na rocha. É a marca deixada na pedra pela firmeza da pata de Alvarim.

 

                     Frei João Sem Cuidados

Frei João Sem Cuidados era, como pelo seu nome facilmente se depreenderá, um alegre fradinho simpático, despreocupado e um tudo-nada preguiçoso. Era anafado, tinhas as faces coradas e uns grandes olhos azuis de criança onde não havia lugar para a malícia. Quer chovesse, quer trovejasse, para Frei João todos os dias eram bons para louvar o Senhor Deus.

Um dia, o rei mandou que o trouxessem à sua presença.

- Ouvi dizer que tu és uma pessoa sem preocupações na vida - disse-lhe o rei.

- É verdade, Majestade! - respondeu o fradinho de sorriso prazenteiro, as mãos cruzadas sobre a barriga, pensando já nalguma moeda de ouro ou, melhor ainda, nalgum leitão assado com que o rei iria certamente presenteá-lo, depois de o ter feito vir até ao palácio.

- Não é justo - retorquiu o rei, decepcionado. - Tu, um simples frade, és tão feliz, e eu então, pela parte que me toca nesta vida, tenho tantas preocupações!

Enquanto o rei assim falava, o sorriso de Frei João ia esmorecendo.

- Pois, fica sabendo que amanhã terás que voltar aqui ao palácio e terás que me responder a três perguntar que te vou fazer.

- E que perguntas são essas, Majestade? - inquiriu Frei João, já apreensivo.

- A primeira pergunta é: «Quanta água tem o mar?». A segunda é: «Quanto pesa a Lua?» e a terceira: «O que é que eu estou a pensar?».

Frei João Sem Cuidados despediu-se e saiu, desta vez não fazendo juz ao nome por que era conhecido, já que o rei tinha efectivamente conseguido deixá-lo muito preocupado, pois não fazia a menor ideia das respostas que deveria dar no dia seguinte. Ele, habitualmente tão alegre e bem-disposto, estava com um semblante tão infeliz que metia dó. Pelo caminho encontrou o moleiro, seu amigo desde sempre.

- Que tens tu Frei João? Estás com uma cara que parece que te morreu alguém.

Frei João contou ao moleiro a conversa que tinha tido com o rei, as perguntas que Sua Majestade lhe fizera e a aflição em que estava por não saber o que responder.

- Ah, então, é só isso? Ora deixa cá ver o teu hábito que amanhã quem vai ao palácio sou eu, e não te preocupes, que o rei não há-de ficar sem respostas para as suas perguntas.

No dia seguinte, o moleiro apresentou-se no palácio vestido de frade, com o capuz pela cabeça. O rei nem se apercebeu da troca de personagens, e logo perguntou:

- Ah, já cá estás! Então vamos lá a saber: quanta água tem o mar?

- Saiba Vossa Majestade que será muito fácil saber-se quanta água existe no mar, mas primeiro terá Vossa Majestade que mandar tapar todos os rios que nele desaguam.

- Essa é boa! Então, e quanto é que pesa a Lua? - continuou o rei a perguntar.

- Saiba Vossa Majestade que a Lua pesa um quilo certinho, porque eu sempre ouvi dizer que ela tem quatro quartos - respondeu o moleiro.

- Está bem. Isso é verdade. E já agora, também me saberás dizer em que é que eu estou a pensar...? - voltou o rei à carga.

- Vossa Majestade pensa que está a falar com Frei João Sem Cuidados, mas está a falar com o seu moleiro - e dizendo isto despiu o hábito.

 

                   A Lenda das Amendoeiras

Como era bela a jovem mulher do sultão! Tinha vindo de muito longe, das terras dos cristãos que ficavam lá para o Norte, onde as pessoas tinham os cabelos claros da cor do trigo, linguajavam de uma maneira que ninguém os compreendia e tinham hábitos muito estranhos. Mas o povo não se importava com essas diferenças, pois bem via como o seu sultão estava feliz com a presença da sua nova esposa. As festas da boda prolongaram-se por dias e dias de banquetes, música e dança.

Terminados os festejos poderia o entusiasmo do sultão ter também esfriado. Nem tal seria de estranhar, porquanto pelo seu luxuoso e perfumado tálamo já tinham passado as mais belas mulheres de léguas e léguas em redor. Possuir uma bela mulher não era, para ele, uma situação de excepção, mas sim a realidade da sua vida.

Mas aquela jovem de fartas tranças de cabelo tão louro e olhos tão azuis alguma coisa tinha de especial que o deixava envolto numa aura de encanto que o fazia sentir-se mais feliz do que alguma vez estivera antes de a ter conhecido. E, assim, foi nascendo o amor entre o casal. Era um sentimento tão forte, que nunca antes o sultão pensara que pudesse existir uma coisa assim. Mas, para a sua mais recente esposa, as coisas não se passavam da mesma forma. O sultão era bom marido, rodeava-a de cuidados a atenções, cada dia lhe dava mais e maiores provas do seu amor. Ela teria muito boas razões para também se sentir feliz, não fora uma tristeza que se apossara dela e contra a qual não sabia o que fazer.

Muitas vezes o sultão a via à janela, pensativa, o olhar perdido na lonjura do horizonte, em direcção ao Norte.

Um dia aproximou-se dela, decidido, de uma vez por todas, a descobrir o motivo daquela tristeza que ensombrava a vida daquela mulhar que ele tanto amava. Foi com espanto que soube a verdade. A sua jovem esposa sentia a nostalgia do país onde nascera e crescera, sentia a falta das imensas planícies brancas da neve que chegava todos os Invernos para só partir com a Primavera.

O tempo passou.

Uma manhã, ao aproximar-se da janela como o fazia todos os dias, o rosto da princesa abriu-se no mais belo e radioso sorriso que o sultão jamais vira. Os campos estavam completamente brancos a perder de vista, a terra repousava sob um manto alvo como a neve do país da sua infância. O sultão tinha mandado plantar hectares e hectares de amendoeiras por todo o reino e, nesse dia de Primavera as amendoeiras tinham amanhecido cobertas de pequenas flores brancas como a neve.

 

                   A Padeira de Aljubarrota

Era aquela a batalha decisiva. Terminada que estivesse, o futuro de Portugal estaria decidido. Nação independente, ou província de Espanha.

Dom João I mal tivera tempo para se firmar no trono, mas aquele não era momento para fraquezas ou hesitações. Havia que vencer os Castelhanos de uma vez por todas.

O exército castelhano era no entanto muito superior ao português. Superior em número e em armamento.

Aos portugueses restavam outras vantagens. Contavam com o muito jovem mas já Condestável do Reino, Dom Nuno Álvares Pereira, um estratega militar de excepção. Contavam com a juventude e o entusiasmo dos elementos do seu exército, nomeadamente a Ala dos Namorados, que naquele dia tórrido de Verão, sem uma gota de água, quase mortos de sede, conseguiram vencer aquela batalha, e contavam com a vantagem de estarem combatendo na sua própria terra, conhecendo o terreno e beneficiando de algum apoio por parte da população local.

Foi o que aconteceu naquele dia 14 de Agosto de 1385. No campo de batalha os homens pelejavam. Dentro de uma pequena casa uma mulher amassava o seu pão. Brites de Almeida se chamava, aquela a quem a tradição popular viria a chamar a Padeira de Aljubarrota.

Cá fora os homens continuavam a guerrear. Só que nem todos os homens nasceram para a guerra. No seio do exército castelhano, onde certamente existiriam muitos homens de coragem, existiam também alguns cobardes, um pequeno grupo de homens, sete ao todo, sem disposição para combater. Homens sem valor, como existem em todos os tempos e em todos os lugares.

O certo é que no momento em que Brites de Almeida se preparava para cozer o seu pão, ouviu ruído dentro do forno. Primeiro pensou que se trataria talvez de algum pequeno rato do campo, um ratito de olhos pretos e vivos, em busca de algum pedaço de côdea. Pôs-se à escuta, e percebeu então que o seu forno tinha sido o refúgio que os soldados castelhanos haviam escolhido para se esconder. Eram homens que falavam lá dentro, sussurrando baixinho.

Brites de Almeida não era mulher para ter medo do que quer que fosse. Acendeu o forno, por forma a obrigá-los a fugir do calor e do fumo, e à medida que iam saindo, com a pá do forno, foi-os matando a todos, um por um.

Os portugueses vencerem aquela terrível batalha de Aljubarrota. Muitos se terão salvo, alguns terão morrido. Mas foi esta padeira que a tradição guardou, e que é talvez a heroína popular mais amada pelos portugueses.

Em memória da sede que os nossos soldados suportaram heroicamente ainda hoje o viajante que passe dispôe de uma bilha de água que é mantida sempre limpa e fresca, da qual poderá beber à vontade.

 

                   O Sapateiro Pobre

Era uma vez um sapateiro muito pobre que vivia com a mulher e os filhos numa casa tão pobre como eles.

Mas nem por isso eram menos felizes. Nunca lhes tinha faltado o pão e todo o santo dia aquele bom homem trabalhava e cantava, as crianças corriam e briancavam, a mãe olhava-os e sorria, feliz.

Defronte deles morava um homem rico que um dia se condoeu de tanta pobreza e resolveu mandar-lhes um saco de moedas de ouro.

Ficaram muito admirados, e logo nesse dia começaram as desavenças no seio daquela família. O sapateiro entendia que a melhor forma de utilizar aquela pequena fortuna seria pintar a oficina, melhorar um pouco o seu negócio caseiro. A mulher entendia que melhor seria comprarem terras de lavoura. Não se entendiam. As crianças choravam, a discussão parecia não terminar. Do outro lado da rua, o vizinho ouvia-os discutir, ouvia as crianças chorar, e não compreendia como é que um saco de moedas de ouro podia ser motivo de tanta zanga.

Por fim, ao romper do dia, o sapateiro foi bater à porta do vizinho e disse-lhe: “Olhe, vizinho, o senhor teve pena de nós, quis ajudar, e eu estou-lhe muito grato por isso, mas venho devolver o dinheiro. Preferimos continuar a ser pobres, porque sabemos que a verdadeira felicidade nesta vida consiste em viver na paz e na Graça de Deus”.

 

                   O anel da Benção

Conta-se que andava um dia D. Fernando de Lima, da nobre estirpe dos Limas do Alto Minho, por suas terras, e assistiu a uma estranha luta. Duas doninhas lutavam contra uma cobra, à porta da toca onde tinham os filhotes.

Estavam já bastante feridas, mas não abandonavam a luta.

Ao presenciar isto, o cavaleiro teve pena das doninhas que eram mais fracas mas mesmo assim não se davam por vencidas e continuavam a defender os filhos, pegou em sua espada e matou a cobra.

Pouco depois uma das doninhas veio trazer-lhe uma pedra preciosa que tinha no ninho, e a colocou aos pés do amigo que a salvara. Esta pedra existe ainda hoje na família, encastoada no chamado “anel da benção” em memória dos sentimentos de bravura e gratidão, sentimentos que alguns seres humanos não conhecem.

 

                   Os Gigantes da Montanha e os Anões da Planície

Alta era a montanha e altos eram os gigantes que lá moravam, altos como a torre de uma Igreja. Em contrapartida, cá em baixo na planície, as pessoas eram pequenas, mais pequenas do que uma flor do campo.

Um dia em que o pai gigante tinha saído e a mãe giganta andava entretida com os seus afazeres, a filha gigantinha resolveu descer à planície.

Que coisa tão engraçada! A planície estava cheia de pessoas muito pequeninas que trabalhavam nos campos com os seus bois, também muito pequeninos e as suas charruas.

A gigantinha não se conteve. Pegou naquelas coisinhas tão engraçadas, enfiou-as nas algibeiras do bibe e em três passadas regressou a casa.

- Veja, meu pai! Os brinquedos que eu encontrei lá em baixo! São os brinquedos mais bonitos que eu já vi!”

E dizendo isto pousava tudo em cima da mesa. Homens e mulheres, animais e até uma casinha com as suas telhazinhas pequeninas e tudo.

- Não, minha filha, isso não são brinquedos. São pessoas, e tu tens de ir já pô-las de volta no mesmo sítio onde as encontraste. E com muito cuidado, sem lhes fazer mal, porque essas pessoas merecem todo o nosso respeito. O que seria dos gigantes da montanha se os anões da planície deixassem de cultivar a terra.

 

                   A Maldição do Ferreiro

Esta é a curiosa história de um ferreiro que andava sempre muito aborrecido e zangado.

Quando tinha a cunha não tinha o carvão. Quando tinha o carvão não sabia da cunha. Aquilo é que era um azar que o homem tinha! Quando encontrava a cunha esquecia-se onde estava o carvão, quando se lembrava onde estava o carvão perdia a cunha. Era por isso que o ferreiro andava sempre aborrecido e mal-humorado.

Um dia, em que estava muito, muito zangado com aquela situação, teve um desabafo:

- Se o Diabo me ajudasse a ter sempre a cunha e o carvão ao mesmo tempo, eu até lhe dava a minha alma.

Dali em diante nunca mais lhe faltou nem a cunha, nem o carvão, a vida corria-lhe bem, mas antes de começar um novo dia de trabalho, nunca se esquecia de dizer: - Deus me ajude! Dera a alma ao Diabo para poder ter sempre trabalho, mas era a Deus que ele pedia que abençoasse a sua labuta diária.

Entretanto, passaram muitos anos. O ferreiro envelheceu, até que um dia se deu pela presença do Diabo que vinha buscar a sua alma. Fingindo não perceber, o ferreiro perguntou-lhe:

- O que é que você quer daqui?

- Venho buscar a tua alma - respondeu-lhe o outro. - Tu deste-me a tua alma, por isso agora é chegado o momento de vir buscar o que me pertence.

O ferreiro reuniu as forças que ainda lhe restavam, pegou num ferro em brasa, a chispar fagulhas e apontou-o na direcção do enviado de Belzebú, dizendo:

- Ah, vens buscar-me?

- Venho, pois! Então já te esqueceste que me entregaste a alma? - respondeu o outro.

Brandindo o ferro aquecido ao rubro, o velho ferreiro correu atrás do Diabo pela casa toda, até que conseguiu expulsá-lo. Ao regressar ao Inferno, perguntou-lhe Satanás:

- Então não trazes o ferreiro contigo?

- Eu não! Vá lá vossemecê buscá-lo, que o velho é maluco. Assim que deu pela minha presença, o homem pegou num ferro em brasa e não deixou que me chegasse ao pé dele. Eu ainda tentei, mas acabei por desistir, que ele parecia que estava possesso e eu ainda me arriscava a ficar todo chamuscado - respondeu, agastado, o enviado de Satanás, enquanto compunha o traje.

- Ora, esta! Então, o ferreiro deu-nos a alma para que nunca lhe faltasse nem a cunha nem o carvão... e agora, não quer cumprir a parte dele do contrato?

- Pois eu é que não vou lá buscá-lo outra vez! - disse o diabo.

O velho Satanás, que não tinha medo de nada, foi pessoalmente visitar o ferreiro, decidido a trazer de lá a sua alma para o Inferno. Chegado a casa do homem, apresentou-se:

- Eu sou Satanás e venho buscar a tua alma.

- Ah, vens buscar-me? Isso é o que tu querias - respondeu o ferreiro, brandindo no ar o ferro em brasa que estava na forja.

Não conseguindo sequer aproximar-se, Satanás partiu muito contrariado:

- Vou ficar com menos uma alma no Inferno, mas já não posso fazer mais nada. Fui bem enganado - pensou ele em voz alta.

- Ao vê-lo chegar sozinho, o ajudante inquiriu em tom chistoso:

- Oh patrão, então vossemecê não traz o homem?

- Deixa-me cá - respondeu Satanás. - Não quero mais negócios com o ferreiro, e quando ele morrer quem não o vai querer aqui sou eu. Ora esta... aldrabou-me! Quem é que ele se julga?

Entretanto, um dia, o ferreiro morreu. A sua alma abandonou o corpo e foi bater à porta do Céu. Apareceu-lhe São Pedro que lhe disse:

- Enganaste-te no caminho. Então tu vendeste a tua alma ao Diabo e agora vens bater à porta do Céu?

- Oh, meu rico São Pedro, deixe-me entrar, que eu já não quero nada com o mafarrico. Deixa-me entrar! - pediu, lamuriento, o ferreiro.

- Não pode ser. Quem faz pactos com o Diabo não tem morada aqui. Olha, dirige-te ao Purgatório que é ali mais abaixo. Talvez te deixem entrar lá ficar. - sugeriu São Pedro.

À entrada do Purgatório, disseram-lhe:

- Não, não! Não podes vir para aqui. O teu lugar é no Inferno, é para lá que deves ir.

Ao chegar ao Inferno, o acolhimento não foi melhor.

- Tu atreves-te a aparecer aqui, malvado? Apesar do nosso acordo nunca te esquecias de te encomendares a Deus antes de começares o trabalho. E agora que ninguém te quer, vens bater à porta do Inferno.

- Mas eu nunca te fiz mal nenhum - defendeu-se o ferreiro.

- Ai não? Já não te lembras? Quando eu te fui buscar, tu não vieste para mim com um ferro em brasa? Eu até podia ter ficado todo queimado... só de pensar nisso até fico arrepiado... Chô, chô, daqui para fora, não te quero cá, Deus me livre de tipos como tu. Fechem os portões, rapazes, que este aqui não entra. Ainda é pior do que eu, ainda acabava por me tirar o lugar.

Desesperada, sem saber para onde ir, a alma do ferreiro foi novamente bater ao ferrolho do Céu:

- Oh meu rico São Pedro, tenha pena de mim! Eu venho lá de baixo do inferno, e não me quiseram. Também já bati ali à porta do purgatório, mas ninguém me quer...

- Deixa lá, que para ti haverá sempre um canto aqui no Céu - respondeu o santo.

- Mas eu vendi a minha alma ao Diabo... - gaguejou o ferreiro.

- Pois vendeste, mas não é verdade que todos os dias, antes de começar a trabalhar, tu dizias “Deus me ajude”?

- Ah, isso é verdade, sim senhor, meu rico santo - respondeu o outro, um pouco bajulador mas cheio de gratidão.

- E estás arrependido?

- Estou sim, meu rico São Pedro! Juro que estou!

- Então olha, eu sei que tu estás a dizer a verdade. O pecado que tu fizeste foi um pecado muito grande, mas quando um pecador se arrepende de verdade, a misericórdia de Deus é infinita. Por isso podes entrar. Estás perdoado.

 

                   A Ilha de São Miguel

Era uma vez uma família de diabinhos muito maus que viviam dentro da terra.

Um dia o pai diabo disse para o resto da família: “Sabem uma coisa? Parece que há lá em cima pessoas”

“É verdade” - disse a mãe diaba. “E eu até já ouvi dizer que são umas pessoas muito boas.”

- “Não pode ser. Temos de ir lá acima tentá-las” Disse o pai diabo.

- “Vamos! vamos!” gritaram os diabinhos pequenos.

E assim foi. Fizeram uns buracos na terra, até que chegaram à superfície, e então é que viram que estavam numa ilha muito verde, muito bonita, mesmo no meio do Oceano. Começaram então a tentar as pessoas. Começaram a dizer-lhes ao ouvido que fizessem maldades, que dissessem mentiras, que roubassem, que batessem uns nos outros, enfim, andaram ali uns poucos de dias a tentar convencer aquelas pessoas a fazer o mal.

Mas o que os diabretes não sabiam era que naquela ilha também havia um anjo, um anjo muito bonito, cheio de luz, com umas grandes asas brancas, que protegia aquelas pessoas, e por isso, por mais que eles tentassem fazê-los maus, não conseguiram. Tentaram, tentaram, até que um dia o Arcanjo zangou-se e mandou-os embora com um grande pontapé no traseiro.

Os diabos foram-se embora, mas ficaram os buracos na terra, a deitar muito fumo, e ficou o cheiro a enxofre. E também é por isso que ainda hoje por vezes aquelas ilhas estremecem todas. São os diabretes muito zangados, lá no fundo da terra, que querem vir cá acima tentar as pessoas, mas não vêm, porque sabem que lá em cima está o arcanjo S. Miguel, protector da ilha, sempre pronto a defender aquelas boas gentes.

 

                   Deuladeu Martins

Era o fim da Idade Média. Reinava em Portugal El Rei Dom Fernando o Formoso, e os tempos eram de guerra com Castela, guerra injusta como todas as guerras, e sangrenta como todas as guerras. O motivo desta guerra, a necessidade que os homens têm de se matar uns aos outros barbaramente. O pretexto, uma questão sucessória. Qualquer outro serviria.

Estava cercada a Vila de Monção. Meses e meses resistiram os portugueses, tentando evitar a vergonha de uma rendição.

Mas o rei Dom Fernando tardava com socorros e os portugueses sitiados já não tinham que comer. Teriam morrido de fome, ou às mãos do inimigo, se não fora pela ousadia de uma mulher, uma pobre mulher de nome Deuladeu Martins.

Sendo que em tempos de tanta dificuldade cada um guarda para si e para os seus o melhor que tem, Deuladeu guardara, restava-lhe ainda, uma última pequena saca de farinha.

Alguma inteligência e coragem lhe restavam também. Amassou a farinha com água, acendeu o forno e cozeu alguns pães. Seriam os últimos, se o estratagema não tivesse resultado.

Em seguida colocou-os no regaço e foi oferecê-los aos castelhanos.

- Tomai para vós, que nós para os nossos temos de sobra, mas vós aqui não tendes nada que comer. Tomai, que não vos queremos ver mortos à fome. Sabei que enquanto houver para nós, para vós haverá também.

As hostes castelhanas, ao ver aquela mulher que ao fim de meses e meses de cerco assim surgia a oferecer pão quente de dentro do avental, levantaram o cerco e arribaram de volta à sua terra.

 

                   Nossa Senhora e o Rouxinol

As cepas começavam a acordar do longo sono que durava uma parte do Outono e todo o frio Inverno. Os velhos troncos, escuros, nodosos e retorcidos apresentavam novamente sinais de vida, pois deles despontavam um fios verdes, de tom claro, que iam crescendo a olhos vistos, encaracolando-se sobre si mesmos e agarrando-se a tudo o que estivesse próximo. Estes fios têm o nome de gavinhas e são eles que fazem com que as videiras sejam plantas trepadeiras.

Nossa Senhora desceu à Terra e passeava pelos campos naquela Primavera, velando para que as plantas e os animais crescessem fortes e saudáveis. Cuidar da Natureza é uma tarefa que Nossa Senhora desempenha com o maior carinho, mesmo que os homens não se apercebam disso. Ao passar junto de uma velha cepa de onde já brotavam folhinhas tenras e gavinhas, Nossa Senhora viu um rouxinol pousado sobre a cepa, a cabecear muito ensonado. A Mãe de Jesus tocou-lhe ao de leve e alertou-o para o perigo de se deixar adormecer no meio das vinhas.

A avezinha agradeceu muito os cuidados da Nossa Senhora e prometeu que dali em diante ia passar a ter mais cuidado.

Tempos depois, passava Nossa Senhora de novo pela vinha, quando ouviu um chilrear de aflição que mais não era do que um pedido de socorro. Correu, veloz, a Senhora na direcção de onde vinha o barulho e encontrou o mesmo rouxinol em cima de uma cepa. O passarito queria levantar voo, mas não podia porque uma gavinha tinha-se-lhe enrolado à volta do pé enquanto dormia. Ainda era pequenito e o sono tinha sido mais forte do que a prudência. Não conseguia libertar-se e estava cheio de medo de morrer ali, prisioneiro da planta.

Cheia de compaixão, Nossa Senhora aproximou-se e, delicadamente, libertou o frágil pé do rouxinol.

Foi assim que, a partir daquele dia, durante a Primavera, enquanto as vinhas estão a desabrochar e a crescer, os rouxinóis não dormem, nem de noite nem de dia, e estão sempre a cantar a sua canção que soa muito parecido com:

 

           Nossa Senhora, disse p’ra não dormir,

           p’ra não dormir, p’ra não dormir ...

 

                   O Milagre das Rosas

  1. Isabel, princesa do Reino de Aragão, viera de longe para casar com Dom Dinis, o rei de Portugal. À medida que o povo e a Corte iam tendo conhecimento da caridade que fazia por todos os sítios por onde passava, todos começaram a perceber que a beleza que iluminava o seu jovem rosto mais não era do que um reflexo da beleza da sua alma. Por todo o reino já se comentava que a rainha devia ser uma santa. Não havia pobre que lhe pedisse auxílio que se fossem embora ser ter dela recebido o que pedira, mesmo contra a vontade do rei, que não concordava com as actividades da rainha.

Não se veja nesta aversão do rei um desleixo ou desinteresse em relação ao bem-estar do seu povo. O que acontecia era que Dom Dinis entendia que as reservas de ouro do tesouro real deviam ser gastas na plantação de extensas florestas para o aproveitamento da madeira, ou em grandes sementeiras que, prudentemente, permitissem que houvesse sempre uma grande reserva de cereais. Assim, nos anos de fome, a todos poderia socorrer.

A rainha concordava plenamente com a opinião do marido, mas o seu coração tinha razões que a razão do rei não entendia. O rei já proibira a distribuição de bodo aos pobres. Dona Isabel prometera obedecer, mas sempre ia fazendo a caridade às escondidas do rei.

Uma manhã, muito cedo, ia o rei a atravessar o pátio do castelo e muito surpreendido ficou ao cruzar-se com a sua real consorte que, apressada, segurava as pontas da longa saia, com ambas as mãos, como se levasse alguma coisa escondida no regaço e quisesse passar despercebida. Com efeito, a rainha vinha da cozinha do palácio e trazia o regaço bem fornecido com uma bolsa de moedas e pães acabados de cozer para os esfomeados que a esperavam do lado de fora de uma porta de acesso ao castelo que não tinha serventia.

O rei compreendeu o que se passava e ficou branco de cólera, mas disfarçou polidamente, sorriu e perguntou:

- Que trazeis em vosso regaço, senhora minha?

- São rosas, meu senhor e meu rei, rosas acabadas de colher - respondeu Dona Isabel.

- Rosas, em Janeiro? Eis uma coisa nunca vista, senhora! - retorquiu o rei, talvez divertido com a ingenuidade da resposta da rainha.

- Não tanto como julgais, senhor -. E dizendo isto, a rainha largou as abas do vestido e ali mesmo se deu o milagre. Do seu regaço caiu uma braçada de rosas.

 

                   Pedro e Inês

Já lá vão muitos anos, mais de seiscentos, desde o trágico episódio dos amores de Dom Pedro, filho herdeiro do rei Dom Afonso IV de Portugal, e de Dona Inês de Castro, uma nobre castelhana chegada a Portugal na condição de dama de companhia de Dona Constança Manoel, filha do rei de Castela, cujo casamento com Dom Pedro fora combinado entre as duas famílias reinantes por razões de ordem política.

Assim que a viu, logo Pedro se enamorou de Inês e por esta foi correspondido. Corria o ano de 1340. Após o casamento que legimitou a sua união com a filha do rei de Castela, o sucessor ao trono de Portugal prosseguiu a sua ligação amorosa com Inês de Castro, a mulher que ele realmente amava e de quem teve três filhos. Vários anos durou este romance de verdadeiro amor e paixão, para grande irritação do velho rei de Portugal.

De sua legítima mulher, Dona Constança, teve Dom Pedro vários filhos, que morreram ainda crianças, tendo apenas sobrevivido um, Fernando, que mais tarde sucedeu a seu pai no trono. Entretanto morria Dona Constança.

Pedro e Inês viviam o seu romance conforme podiam, permanecendo algum tempo em vários dos muitos castelos reais existentes, tendo por fim fixado residência na cidade de Coimbra, no Palácio da Rainha, junto ao Mosteiro de Santa Clara, hoje chamado de Santa Clara-a-Velha.

Sabedor do paradeiro dos dois amantes, o rei envia Diogo Lopes Pacheco, homem da sua confiança, a Coimbra, com a missão de aí se encontrar com o seu filho e lhe pedir que reconsiderasse a sua atitude irresponsável e leviana e que tomasse a decisão de escolher uma princesa legítima de uma casa real e que com ela casasse, pois o seu romance com Dona Inês estava a causar escândalo entre os nobres, o clero e os bons burgueses do Reino de Portugal. Mas Dom Pedro mostrou-se desinteressado. Jamais voltaria a casar.

Enquanto os membros dos estratos sociais mais elevados do Reino e da Corte manifestavam junto do Rei a sua desaprovação pela felicidade que o infante Dom Pedro não escondia de ninguém, o povo português, aquele que trabalhava os campos, pescava, construia casas, amassava e cozia o pão, vendia e comprava nas feiras, o povo trabalhador que pagava os impostos que alimentavam o corpo e a ociosidade das classes superiores, esse povo adorava Dom Pedro, pois o futuro rei participava nas suas festas e romarias, e gostava de cantar e bailar com eles pelas ruas até de madrugada.

Dona Inês era para o rei de Portugal um problema político de difícil resolução, porque se o pequeno infante Dom Fernando, apenas com dez anos e não muito saudável, o único varão legítimo de Dom Pedro, nascido do seu casamento com Dona Constança, morresse antes de ter por sua vez um herdeiro legítimo, e Dom Pedro não tivesse outros varões legítimos, seria um dos filhos de Dona Inês, um Castro, um Grande de Espanha, a herdar o trono de Portugal.

Logradas que foram as tentativas de Dom Afonso IV para pôr fim aos amores de Pedro e Inês, o velho rei deslocou-se à cidade de Coimbra acompanhado de numeroso grupo de homens de armas, isto numa altura em que na Corte se sabia que Dom Pedro estava ausente, caçando ursos e javalis muito longe dali, mais para Norte.

Era a noite de 6 de Janeiro de 1355. Na cidade de Coimbra gerou-se um grande burburinho entre a população, que ficou temerosa do que poderia acontecer com a chegada do pai, precisamente quando o filho andava por fora. Dona Inês encontrava-se sozinha no palácio sem a protecção de Dom Pedro, o seu amado, o único capaz de fazer frente ao rei.

Nessa madrugada, sai Dom Afonso IV a cavalo acompanhado da sua comitiva e descem até à residência de Dona Inês, ao lado do Mosteiro de Santa Clara, junto ao rio. Os homens de armas forçam a entrada e todos entram de rompante no grande pátio interior. O rei manda chamar Dona Inês que surge acompanhada dos filhos. Logo o rei ordena ali aos seus homens que terminem com a vida daquela mulher, mas ela suplica ao velho rei que tenha piedade dela e das crianças, que são seus netos. Os filhos choram, assustados, agarrados às saias da mãe. As aias choram também e pedem piedade. Pedem àqueles homens de armas que deixem os da casa em paz e se vão embora. O rei acaba por se apiedar e cede. Dirige-se para a porta mas, ao passar a porta, três dos seus homens, Diogo Lopes Pacheco, Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, de novo insistem com ele para que ordene a morte de Inês, ao que o rei acaba por responder

- Fazei lá o que quiserdes.

Estes voltam para trás, gerou-se grande confusão no pátio do palácio, e os homens do rei decapitaram Inês de Castro diante dos filhos e dos criados de sua casa, que choraravam e gritavam.

Assim que um mensageiro comunicou a trágica notícia a Dom Pedro, a sua dor e fúria foram indescritíveis, mas estando vivo o rei ainda não era chegado o momento de dar livre curso à sua fome de vingança.

Algum tempo depois morreu o velho rei e Dom Pedro ocupou o seu lugar no trono de Portugal. Não perdeu tempo a sentenciar os assassinos da sua amada Dona Inês.

Junto a uma das portas da cidade havia sempre um pobre cego a quem Diogo Lopes Pacheco costumava dar esmola, e que ao sentir que este regressava a casa o avisou para que fugisse, que os soldados de Dom Pedro o estavam procurando, certamente para o prenderem, e assim Diogo Lopes Pacheco se salvou.

Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves foram menos afortunados. Trazidos à presença de Dom Pedro, este os executou por suas próprias mãos. Empunhando o seu punhal, Dom Pedro a um arrancou o coração pelo peito e au outro fez o mesmo pelas costas, mordendo-os de seguida. Era este um costume ancestral dos antigos Celtas. Morder o coração do inimigo, para se assegurar de que este está efectivamente morto.

Segurando o coração de Pero Coelho na ponta do punhal, gracejou, cheio de ódio, pedindo aos presentes que lhe trouxessem azeite e vinagre para temperar o coelho.

Vingada a morte da sua amada, o rei mandou então que procedessem à transladação dos restos mortais de Dona Inês do local onde se encontrava sepultada, em Coimbra, para um magnífico túmulo construído para o efeito no Mosteiro da Batalha, túmulo esse que ainda hoje lá se encontra e que é considerado uma obra-prima da escultura tumular medieval.

O cortejo fúnebre percorreu a pé os mais de cem quilómetros que separam Coimbra da Batalha, a urna de Dona Inês carregada em ombros por homens de armas. Ao cair da noite punham-se a caminho, alumiados por centenas de archotes empunhados por outros tantos criados e escudeiros e só paravam para descansar quando a linha do horizonte começava tenuemente a aclarar. Várias noites durou a caminhada, contornando montes, descendo vales e atravessando florestas.

Chegados a Alcobaça, Dona Inês foi sentada num trono e Dom Pedro fê-la coroar rainha. Toda a Corte ajoelhou e beijou a mão da sua rainha, Inês de Castro, um cadáver em decomposição.

Dom Pedro ainda reinou durante vários anos, amado por uns, odiado por outros. Dava largas ao seu gosto pelos festejos populares onde aparecia para alegria do povo, sempre acompanhado dos seus amados e fiéis companheiros de armas.

 

                     Brianda Pereira

Portugal estava numa encruzilhada da sua História como nação soberana, ao ver-se subitamente sem rei, pois Dom Sebastião morrera, ou desaparecera (ninguém sabia ao certo), na batalha de Alcácer-Quibir, nas desérticas e tórridas areias de Marrocos.

Com ele desaparecera toda a esperança de independência nacional já que o rei morrera sem deixar descendência, o que significava que o país iria ser anexado pelo Reino de Castela a cujo destino presidia Filipe II, tio de Dom Sebastião, o seu parente e herdeiro mais próximo, candidato ao trono de Portugal.

Houve quem aceitasse esta submissão com indiferença, houve quem o fizesse com júbilo e também houve quem se revoltasse. Estes últimos eram muito numerosos e entre eles incluiam-se todos aqueles que alguma coisa tinham a perder com a nova situação.

Nas ilhas dos Açores, perdidas no meio do Atlântico, restava um pequeno baluarte de insubmissão. O poderosíssimo Filipe II de Espanha que havia herdado Portugal, o havia comprado, subornando muitos, e que, para que não restassem dúvidas o havia também conquistado, não podia suportar que tão pequeno grupo de insurrectos o afrontasse e desafiasse a sua autoridade. Uma frota bem equipada, com homens experientes na arte da guerra e duros no combate foi enviada para lá com ordens para submeter a população a qualquer preço. Aportaram à Ilha Terceira e os soldados desembarcaram na Baía da Salga. Entre eles, conta-se, ia Dom Miguel de Cervantes cuja bravura terá certamente deixado esquecida em Espanha, a menos que a houvesse emprestado a Dom Quixote para este enfrentar os seus moinhos de vento.

Os ilhéus, apanhados de surpresa, defenderam-se como puderam e as circunstâncias permitiam. Os homens desceram à praia comandados pelos soldados da pequena guarnição local, mal treinada e pior armada, e debateram-se como loucos, mas a situação parecia não ter solução possível para o lado dos portugueses. Os espanhóis eram mais numerosos, estavam bem treinados e armados até aos dentes e mostravam-se aguerridos no combate.

A triste sorte dos portugueses parecia estar definitivamente traçada quando uma mulher, de nome Brianda Pereira, ao ver o marido e os filhos feitos prisioneiros, teve uma ideia que iria mudar o rumo da batalha.

Brianda pediu ajuda a um tal Frei Pedro e chamou as outras mulheres da ilha. Juntaram-se por momentos no meio de grande algazarra, porque a revolta era muita, e a seguir separaram-se todas, correndo cada uma para seu lado, em direcção aos pastos e, em pouco tempo, tinham reunido uma grande quantidade de cabeças de bovinos, sobretudo touros bravos, e vinham correndo atrás deles e picando-os com paus e ferros, encaminhando-os, furiosos, em direcção à praia. A confusão foi grande, pois os espanhóis dentro das suas pesadas armaduras tinham dificuldade em se movimentar e corriam para o mar, onde uns acabaram por se afundar, enquanto os restantes recolhiam, humilhados aos seus galeões, nas barcaças que estavam à beira-mar. Os homens da ilha aproveitaram a balbúrdia para fugir e colocavam-se atrás dos touros ainda os espicaçavam mais contra os invasores.

A paz regressou à ilha, mas foi sol de pouca dura. Os espanhóis regressaram passado algum tempo, desta vez com uma imensa armada para esmagar tão pequena ilha, um verdadeiro exército, e deu-se então o massacre. A população foi barbaramente chacinada, mas o nome de Brianda Pereira ficou para sempre vivo como um símbolo da coragem do povo da Ilha Terceira.

 

                   Machim

Era o ano de 1346. Reinava em Inglaterra Eduardo III, em Portugal D. Afonso IV. Os usos da época eram terríveis. A honra dos cavaleiros e decoro das damas faziam o prestígio dos reinos e a riqueza dos reis.

Ele era um rico e esforçado cavaleiro, Robert Mc Kean, ou Machim, como diriam mais tarde os portugueses. Ela tinha o nome de Anne d’Arfet. Era muito bela. E conta a lenda que se enamoraram.

Mas Anne era casada. O marido era um nobre rico e influente, que se queixou ao rei. Logo foi encontrado remédio: Anne e o marido foram para Bristol, a muitas léguas da corte.

Mas Robert não desistiu. Acompanhado por alguns amigos seguiu-os até Bristol, disfarçou-se de criado, raptou Anne, roubou um barco, fugiu com ela.

O Oceano Atlântico pode ser um bom amigo para quem o conhece bem, mas quando se enfurece tem mais força que a força de todos os homens juntos.

Robert e Anne naufragaram. Andaram à deriva, agarrados a pranchas de madeira, restos do barco destruido pelo temporal. Ao fim de treze dias avistaram terra, conseguiram nadar até à praia.

Não sabiam onde estavam, mas as plantas e as flores eram de tanta beleza que pensaram que tinham chegado ao Paraíso.

Estavam na Ilha da Madeira, que os navegadores portugueses haviam de descobrir oitenta anos mais tarde.

Conta a lenda que morreram pouco depois, mas ainda hoje, passados mais de seiscentos anos, lá está um pedaço da cruz da sua sepultura, na Capela dos Milagres, na cidade do Machico, assim chamada em memória da bravura de Mc Kean.

 

                   Dom Sebastião

Galaaz, o cavaleiro sem mácula, sempre fora o seu modelo.

Desde que nascera, Dom Sebastião fora educado para reinar em Portugal, mas a sua educação, entregue a eclesiásticos severos, ensinara-lhe hábitos espartanos e uma moralidade muito austera.

Abominava perfumes, e estranhavam os cortesãos que nunca o jovem rei permitia que o abraçassem as mais belas donzelas da corte, nem permitia que mãos de donzela lhe tocassem a ponta dos dedos enluvados se acaso um copo de água lhe traziam.

Assim era El Rei Dom Sebastião, um jovem que acima de tudo queria ser o cavaleiro de Deus, e procurava preservar-se daquilo que considerava os pecados da carne.

Sonhava, isso sim, cobrir-se de glória militar. Por isso não hesitou em embarcar numa expedição de onde pensava regressar coberto de fama e honrarias, o maior príncipe da cristandade, sem pensar em deixar ao menos um herdeiro em gestação, um herdeiro que lhe sucedesse no trono, não fosse alguma coisa correr de má feição.

E tudo correu de má feição. Dom Sebastião e os seus homens eram jovens, corajosos e aguerridos. Demasiado jovens, demasiado corajosos, demasiado aguerridos. A certeza da vitória contra os sarracenos era tão completa que nenhuma ousadia lhes parecia excessiva, nenhuma loucura lhes parecia suicida.

A areia de Marrocos escaldava. Os nobres quase morriam dentro das suas armaduras, sob o sol implacável. As provisões de água excasseavam.

Havia que encontrar depressa o inimigo.

E assim se desviaram cada vez mais para o interior do deserto, até que a frota que os seguia por mar acabou por perdê-los de vista.

Chegou por fim o dia em que os exércitos se encontraram face a face. Não existem muitos relatos fidedignos sobre a batalha de Alcácer-Quibir, mas sabe-se que os portugueses facilmente poderiam ter vencido. Sabe-se que Dom Sebastião terá hesitado no momento de mandar avançar as tropas, sabe-se que se bateram como leões, mas faltou o comando de um general competente e experiente, e o resultado foi a tragédia maior de que há memória na História de Portugal. O areal, milhares de mortos, milhares de feridos, milhares de prisioneiros, puros sangues magníficos e milhares de luxuosas peças de vestuário e adorno, sedas e veludos bordados a ouro, pérolas e pedrarias que ficaram como espólio, inúmeras famílias que por completo se arruinaram a fim de resgatar os seus sobreviventes, a soberania nacional perdida a favor de Filipe II de Espanha, sessenta anos de saque espanhol. Poucos saberão que a “invencible armada”, orgulho de Filipe II, afundada pela Inglaterra, era composta por um número incontável de portugueses, e foi paga com dinheiro arrancado a Portugal pela força.

Dom Sebastião não deixou rastro. Terá morrido batalhando, terá ficado prisioneiro, sem coragem para se dar a conhecer e regressar a Portugal. Ninguém sabe ao certo, e ainda bem, porque assim ganhámos o mais belo dos nossos mitos, o de El Rei Dom Sebastião, que não morreu, e que há-de regressar cavalgando o seu belo cavalo branco numa manhã de nevoeiro.

 

                                                                                David Martins  

 

                      

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