Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ESTRANHO CASAMENTO
Pela janela alta, em ogiva, estreita e austera, avisto a extensão imensa dos Highlands, espécie de estepe nua, acidentada, nessa altura afogada pela chuva miúda e contínua. Esbatendo-se no horizonte longínquo, perdida na bruma, desenha-se, vagamente, a linha ondulada dos cabeços, batidos pelo vento do glen deserto.
Serei eu, de facto, quem se encontra aqui, contemplando esta paisagem desolada?... Serei eu, Cristiana Chambreuil, quem está instalada neste quarto glacial, diante destas terras de spleen e nevoeiro, entre paredes hostis e pessoas desconhecidas?
Belisco-me para me convencer da realidade do pesadelo, para me persuadir de que não sonho e convencer-me de que sou bem eu quem se encontra instalada nesta moradia chamada Uam-Var - a Grande Caverna - e que estou aqui de minha livre vontade, porque ninguém me obrigou nem arrastou à força.
Por momentos, afasto-me da janela e arranco-me à contemplação da paisagem opressiva. O olhar cai sobre o espelho que se encontra em frente do vasto leito donde saltei há pouco.
Não há dúvida, sou eu. A pessoa que se reflecte no espelho, de aço manchado pela humidade, e que mal se apercebe à claridade incerta e fantasmagórica que a rodeia, é bem Cristina Chambreuil. Impossível negar!... As minhas feições apresentam-se ligeiramente deformadas pelo espelho, cuja superfície não parece completamente plana, mas, no entanto, sou eu, em toda a evidência.
E encontro-me na Alta Escócia.
O quarto que ocupo não está, como o de Paris, a duzentos metros da Praça da República e esta paisagem sombria, de urzes e rochas, em nada se assemelha à das margens do Sena. O impenetrável silêncio que me rodeia não será interrompido, de um momento para o outro, pelo riso fresco de duas irmãzitas, Madeline e Rosa Maria, ou pela voz meiga e branda da minha querida mãezinha.
Adeus, Paris!... Adeus, Madeline!... Adeus, Rosa Maria!... Adeus, Mãezinha!... Adeus, Jacques!
Desta vez, acabou-se... Impossível voltar atrás... Não sei se fiz bem ou se cometi a maior e mais irreparável tolice da minha vida!... De uma coisa, porém, estou certa: presentemente, a estrada que encetei é definitiva... não posso recuar!
Terrível calafrio me percorre a espinha e um estremecimento nervoso sacode-me dos pés à cabeça...
num esforço de vontade, afasto-me do espelho e volto a aproximar-me da janela, absorvendo-me de novo na contemplação da charneca imensa, afogada em brumas.
São sete horas da manhã. Pela claridade dúbia que banha esta desoladora terra poder-se-ia supor, da mesma forma, que fossem seis da tarde. Sente-se a impressão de nos encontrarmos nos confins do mundo, e que nunca, por nunca ser, a nota viva de uma flor, de um raio de sol ou nesga de céu azul vem quebrar a monotonia deste deserto brumoso ou alegrar a tristeza desta região perdida.
Recordo tudo quanto li sobre a Escócia. Aves enormes, voando sobre a charneca, rivalidades dos clãs, os cavaleiros de sir Walter Scott, Ivanhoe e os fantasmas dos lochs, todo esse cortejo de lendas da Idade Média e das baladas de Ossian, tudo isso forma um conjunto de presenças invisíveis, insinuantes, mas que me pesam e esmagam. Não consigo encontrar a calma habitual.
De novo percorro o quarto com a vista. Mais parece o coro de um convento do que um quarto de cama. As paredes forradas de madeira entalhada, o fogão imenso, os móveis austeros, a cama de pés altíssimos e dossel, tudo isto me dá uma sensação de grandeza glacial, que exclui toda a ideia de intimidade. E pensar que, de futuro, a minha vida terá de decorrer aqui!...
Vamos, Cristina, coragem! Vais desanimar agora? Nada de pensamentos deprimentes, minha pequena.
Não consintas que o ambiente deletério exerça sobre ti a sua maléfica influência.
Trata de reagir, de encarar a situação de frente e não te abandones ao desespero. Acaba com esse passeio de cá para lá, senta-te com sossego e vê se consegues pôr os pensamentos em ordem, acalmar esse tumultuar de sensações, a contradança dos pesadelos que te obsidiam. De uma vez para sempre, tenta ver claro em tudo isto.
Façamos o que me aconselhava o padre Guérand, meu bom amigo e conselheiro, façamos um exame de consciência.
Sou francesa, de génio alegre, sensata e razoável. Não consinto, nem por um instante, que estas qualidades vacilem. Os pardais parisienses são conhecidos por duas características que os tornam lendários em toda a parte: são optimistas e sabem enfrentar todas as dificuldades...
Admitamos que sou um pardal parisiense exilado e procedamos como eles!
Uam-Var, tal como a maior parte das residências dos planaltos escoceses, algumas das quais avisto daqui, é um edifício enorme, misto de castelo e granja. As dependências, encostadas umas às outras, dão-me a ideia de enormes rochedos, defendendo-se do frio. As janelas, altas e estreitas, raramente se abrem.
Estes castelos da Alta Escócia foram em todos os tempos testemunhas da história do país, isto é, das guerras e da pobreza.
Não se encontram por aqui tabuleiros floridos, como no Sussex, nem tão-pouco árvores frondosas. Mesmo as sebes e os arbustos são raros!... Os pátios de Uam-Var estão calcetados com enormes lajes e apertados entre construções de pedra escura, tom invariável de todas as que tenho visto por aqui.
Quando fecham o portão principal, à noite, temos a impressão de que acabam de fechar sobre nós a porta de uma prisão.
Mas, meu Deus!... Serei eu a primeira mulher que viveu neste velho solar?... Devem ter existido muitas outras, que nasceram aqui, cresceram e viveram, que até foram felizes!... Todas essas mulheres foram crianças e depois raparigas, todas elas gostaram do sol, dos primeiros sorrisos da Primavera, todas sentiram essa alegria de viver que nos enche completamente o coração.
E, no entanto... nenhuma delas teria apreciado as flores, visto não as ver em parte alguma!...
Essas mulheres nunca seriam felizes?... O pássaro azul nunca lhes teria esvoaçado por cima das cabeças... -nunca teriam aprendido a sorrir... sentir-se-iam irremediavelmente tristes?...
Formulo ainda novas suposições...
Talvez que neste cantinho árido e agreste a prudência aconselhasse a construir muralhas bem fortes e espessas, coroadas de ferro, circundadas de fossos...
talvez isso fosse mais útil do que pensar em cultivar plantas e traçar jardins para recreio...
Por muito que faça, não consigo convencer-me de que sou eu que me encontro na Escócia, país que, no mapa, não parecia tão distante, no fim de contas. Agora, que me instalei nele, afigura-se-me no fim do Mundo.
Começo a duvidar de que estivesse na posse de todo o meu bom senso, esse bom senso em que reside a força triunfante do povo francês, no dia em que aceitei este extraordinário negócio, o mais extraordinário que possa sonhar-se.
De novo, tento acalmar as apreensões, moderar o palpitar desordenado do coração, pôr um freio às ideias fantásticas que se me apossaram do cérebro. Impõe-se um pouco de reflexão, de ordem nos pensamentos e nas recordações. Antes de mais nada, tenho de cair em mim, como aconselhava o meu professor de filosofia, sempre que nos via desorientadas. Devo fazer uma análise severa, mas justa, dos acontecimentos, se não quero perder por completo o domínio próprio e dos meus reflexos.
Caso contrário, sinto que as saudades me dominarão e soçobrarei no desespero...
com toda a calma, tranquilamente, sem lágrimas e com espírito desanuviado, trata-se de recordar, sem entusiasmo, nem más vontades, tudo quanto se passou.
Nasci no Tonquim, junto à confluência de dois rios.
Uma das mais antigas lendas hindus afirma que, quando morre algum príncipe de sangue real, é forçoso enterrá-lo junto à confluência de dois rios. E, por isso, a minha velha ama anamita afirmava que a alma de um príncipe renascera no meu corpo, devido à particularidade do meu nascimento, e que, por certo, eu viria a ser rainha ou qualquer coisa parecida.
Estas afirmações faziam-me sorrir; confesso, entretanto, que, em pequena, acreditava piamente nelas. E isso talvez explique muita coisa...
Sou filha de pais franceses, é claro. Meu pai, mais tarde oficial superior, era, na altura em que vim ao mundo, simples tenente. Durante a permanência na Indochina, foi enviado, sucessivamente, para Haiphong, Hanoi e Hué; depois, ao acaso das comissões de serviço, conheceu Madagáscar, Argélia, Tunísia, Marrocos. Por fim, definitivamente, adido ao Ministério das Colónias, em Paris, instalou-se nesta cidade com a família.
Foi, talvez, por ter passado a minha infância pelos quatro cantos do Mundo que adquiri o gosto pelas viagens e a ânsia de aventuras. Contudo, não há nada, para mim, que se compare a Paris.
Paris!... Foi aí que estudei e cresci, que passei de menina a rapariga, que o meu carácter se formou e a minha índole exuberante e franca se expandiu. A Paris se ligam as minhas mais belas recordações... e também as mais dolorosas... Mas, tanto umas como outras, me são queridas.
A vida é feita de boas e más horas e todos os acontecimentos deixam vestígios na nossa alma, sejam eles favoráveis ou contrários.
Não posso mesmo afirmar que os acontecimentos agradáveis contribuam para nos tornar querida determinada cidade ou local, o que não acontece quando sofremos um desgosto.
Não estou longe de afirmar que sucede, precisamente, O caso oposto.
Sinto que, até morrer, estarei intimamente ligada a Paris, porque foi ali que me iniciei no sofrimento e que meu pai morreu, no ano passado.
Pobre paizinho!... Nos derradeiros meses de vida deu prova de grande força moral, mas a sua morte foi, na verdade, horrível. Sucumbiu devido a um cancro que lhe roeu parte do rosto... Os médicos afirmavam que trazia consigo o germe do mal adquirido na Indochina; outros, porém, atribuíam a doença aos anos de cativeiro.
Fosse como fosse, nenhum deles conseguiu salvá-lo.
Querido pai!... Para que partiu assim, deixando-nos sem apoio, sem guia, sem amparo, à minha mãe, a mim e aos meus quatro irmãos?...
Não dávamos valor à felicidade que possuíamos quando, perto ou longe, ele velava por nós. Enquanto viveu, nunca conhecemos privações ou necessidades.
Era ainda muito nova para avaliar as dificuldades financeiras daquela época, mas depois de ele morrer compreendi que, em relação à maior parte das pessoas, nos podíamos considerar como privilegiados. Devo mesmo atribuir à segurança em que sempre vivi desde criança, à despreocupação, o percalço que mais tarde me ocorreu.
Quando o paizinho voltou do cativeiro e a Guerra acabou, a vida retomou o seu curso normal e podíamos supor que assim continuasse por muito tempo, correndo límpida e feliz, sem abalos ou sobressaltos.
Prossegui os estudos, desejando especializar-me em inglês, a fim de realizar o sonho de traduzir para francês as mais belas obras anglo-saxónias, tão pouco conhecidas entre nós. Meu pai aprovava tais projectos.
Jacques, o mais velho dos meus irmãos, preparava a admissão a Saint-Cyr, para seguir a carreira militar.
Maurício, que foi sempre mais prático, desejava entrar na Escola Central e ser engenheiro.
com espantosa precocidade, Madeline, que sempre manifestara tendências altruístas, queria ser assistente social.
Quanto a Rosa Maria, a mais novinha, talvez por contraste com a atitude sensata do resto da família, declarava, num riso alegre, apesar dos seus doze anos, que pretendia ser artista de cinema, actriz ou amazona de circo.
Tudo quanto é brilhante e invulgar a atraía. Ficámos um tanto preocupados com estas tendências tão insólitas no seio de uma família formalista como
a nossa; mas talvez que, no interesse de um equilíbrio bem compreendido, esse grãozinho de loucura e uma ponta de anarquia fossem necessários como uma espécie de fermento, levedando a massa da nossa filosofia demasiado pesada.
Todavia, esperávamos que, com a idade, Rosa Maria viesse a assentar em ideias mais calmas.
Por fim, estes projectos mirabolantes ficaram por terra poucos meses após a morte do meu pai.
Como se deu a derrocada?... Como ruiu quanto constituía a nossa vida, as nossas esperanças e o nosso futuro, tal como um dique se desmorona com o ímpeto das águas, que tudo destroem na sua passagem?...
É difícil explicar o cataclismo que destroçou um lar de seis pessoas, sem confessarmos que não soubemos prever os golpes da sorte. O ciclone que varreu a casa dos Chambreuil nada deixou intacto.
Acontece sempre assim quando nos debatemos no meio do temporal. Deixamo-nos arrastar por ele e nem tempo temos para medir o desastre.
Conta-se que um dirigível, envolvido pelo ciclone, foi arrastado trezentos quilómetros, embora os seus ocupantes tivessem a ilusão da imobilidade.
A aventura em que me vejo envolvida assemelha-se um pouco a este caso; só depois de ter percorrido todo o caminho notei quanto era longo e medi o abismo em que ia lançar-me.
A mãezinha, pouco depois do meu pai morrer, adoeceu. Foi sempre fraca e o seu coração não pôde resistir à terrível separação... a separação que, dessa vez, infelizmente, era definitiva!
Os meus pais foram sempre muito unidos e viviam na melhor harmonia.
Após o funeral, teve de recolher à cama e foi a sua doença que nos levou tudo quanto nos restava.
Os médicos, chamados à pressa, foram categóricos: tornava-se imprescindível evitar à doente todas as fadigas e preocupações.
O seu estado era gravíssimo e só à força de muitos cuidados e extremas preocupações se podia esperar salvá-la.
Os médicos são extraordinários!... Quando determinam: "Deve ir passar três meses à serra" não se preocupam em indagar se temos meios para ir passar o week-end em Compienha. As decisões são irrevogáveis e não se importam com as contingências... Evitar a minha mãe todas as preocupações!... Como se isso estivesse na mão de alguém!...
Pode supor-se quanto este diagnóstico alarmou os nossos espíritos, já tão desorientados com a morte do paizinho. Não tínhamos mais ninguém no Mundo se não a nossa mãe e portanto, fosse ou não possível, fosse ou não realizável, impunha-se salvá-la custasse o que custasse, submetendo-nos aos decretos da Fatalidade.
com toda a boa vontade, conjugada com imenso afecto, iríamos tentar, por todos os meios, seguir à letra as prescrições dos especialistas consultados à custa de grande dispêndio.
Era a mais velha. Por conseguinte, nas circunstâncias difíceis que atravessávamos, assumi, praticamente, e, segundo esperava, provisoriamente, a posição de chefe de família.
De nada me serviria protestar, tinha de submeter-me. Encontrava-me numa dessas situações imperiosas em face das quais o Destino nos coloca sem podermos fugir-lhe, estejamos ou não em condições de nos desempenharmos delas.
A vida é mais exigente do que um examinador... Não nos faculta repetições. Se ficarmos reprovados em Julho não podemos fazer novo exame em Outubro. Chama-nos ao estrado e lá ficamos definitivamente.
Para começo, suspendi os estudos. Havia que governar a casa e substituir, na medida das minhas forças, a querida doente, que, de momento, se encontrava impossibilitada, mesmo parcialmente, de desempenhar qualquer tarefa.
Só hoje reconheço quanto era inexperiente e ignorante. Naquela altura, porém, envaidecia-me com uma competência que era a única a reconhecer e cheguei a admirar-me com a relativa facilidade com que assumira o encargo de dirigir a casa.
Por vezes assaltava-me o pressentimento do perigo, que deveria ter acolhido e considerado como aviso salutar. Pelo contrário, expulsava esses receios com um encolher de ombros, ocultando-os sob a capa da minha inconsciência.
A verdade, porém, era esta: não possuía a mais pequena experiência e, cinco crianças a vestir, a alimentar e educar, representavam um encargo esmagador para a rapariguita despreocupada que fora até ali.
Cinco crianças com excelente apetite que exigiam, a todas as refeições, pratos abundantes e substanciais. Havia ainda outros pontos a considerar: precisavam de ser refreados, educados e vigiados.
Germana, a cozinheira, que estava em nossa casa havia muitos anos, secundava-me o melhor que podia, mas, infelizmente, também não tinha grandes noções de economia. Quanto a mim, confesso que sofri sempre de incompetência absoluta no que diz respeito a contas e administração de dinheiros.
Minha mãe superintendia em absoluto nas despesas da casa, de forma que Germana estava habituada a cumprir ordens e, limitando-se a obedecer, perdera por completo o espírito de iniciativa.
Quanto a mim, contanto que a mesa fosse bem servida e meus irmãos não tivessem razão para se queixar, quer do ponto de vista da qualidade, quer da quantidade, não me preocupava com os gastos. Não via que o dinheiro se me escoava por entre os dedos, e Germana, com ingénua cegueira, muito concorria para que este caudal fosse incessante. Podia comparar-se, na verdade, ao tonel das Danaides.
Tinha de pagar médicos, remédios, vestir e calçar os meus irmãos, custear as despesas com a educação e, ainda por cima, as obrigações mundanas e sociais.
As notas de mil francos derretiam-se-me nas mãos e só posso comparar a rapidez com que o dinheiro deslizava à corrente impetuosa das águas quando se rompe o dique que as contém.
Como não me ocorreu que o manancial do dinheiro não seria inesgotável e, de um dia para o outro, secaria?... Nunca se viu uma cisterna conservar-se cheia quando lhe tiramos água a toda a hora e não existem nascentes que a venham alimentar.
Vivia, talvez, numa espécie de sonambulismo, numa aberração de espirito, porque, de outra forma, teria reconhecido que semelhante modo de vida não podia eternizar-se. A lógica, infalivelmente, ter-me-ia sugerido que corria para a catástrofe.
Talvez que, em todas as situações, o hábito nos impeça de as olharmos de frente e de medirmos as consequências dos nossos actos. Uma rotina, graças à qual os factos mais absurdos e mais disparatados acabam por se tornar normais.
Suponho que os indígenas de certas ilhas do Pacífico, que suportam três ou mais tremores de terra por ano, acabam por considerar como naturais as erupções vulcânicas e achar estranhos os anos em que a sua terra não é devastada pelas catástrofes.
Quando o dinheiro se acabava, preenchia um cheque e levava-o para assinar à minha mãe, que estava muito fraca para medir a situação e calcular qual a quantia levantada.
Depois ia levantá-lo ao Banco. Quando um se esgotava recomeçava a operação sem que me viesse à ideia que um dia o nosso depósito podia chegar ao fim.
Creio até que, intimamente, estava convencida de que podia continuar assim até à consumação dos séculos.
Todavia, não fazia despesas inúteis, mas gastava sem contar porque, para ser verdadeira, tenho de confessar que nunca soube calcular. Agora, esta negação para as contas afigura-se-me uma monstruosidade, como se tivesse uma verruga na ponta do nariz ou fosse corcunda. Mas sei também que não sou a única, numerosas pessoas sofrem da mesma doença e, se doença se lhe pode chamar, seria próprio classificá-la como epidemia.
Pagava sem discutir. É esta uma das facetas do meu carácter que não está, por natureza, ligado às questões de dinheiro. Pagar sem discutir não significa desdém pelo dinheiro, mas sim horror à discussão. E é essa a verdade. Sempre me horrorizou discutir. Não porque não seja combativa, cheia de iniciativa, capaz de fazer face às mais difíceis situações (como se verá na continuação desta narrativa). Não, o caso é este e mais nada: tenho horror à discussão. Considero as discussões como coisa ociosa, uma perda de tempo inútil, dispêndio de energia que poderíamos empregar para outros fins com maior eficácia.
Seja como for, o dinheiro, repito, escoava-se-me por entre os dedos como areia fina e, para minha vergonha, devo dizer que não pressenti o desastre.
Uma bela manhã - é espantoso como esta fórmula inocente usada para começar histórias, naquela manhã, que não deixava de ser bela, para mim, foi o início da pior aventura que se possa imaginar - uma bela manhã, portanto, apresentei-me no Banco para levantar um cheque de dez mil francos, cheque assinado por minha mãe, é claro. Urgia receber aquele dinheiro, pois estávamos nos últimos dias de Março e eu devia liquidar algumas contas.
Apresentei o cheque ao empregado, que já me conhecia -no Banco todos me conheciam - e lembro-me de ter acrescentado um comentário sobre o tempo que estava chuvoso, enquanto ele me entregava a pequenina chapa de metal com o meu número de chamada para a caixa.
Todos os pormenores daquela memorável manhã me ficaram gravados na memória. Munida com a preciosa chapinha, fui sentar-me num canto, aguardando que me chamassem. Sabia que, em geral, não demorava mais de cinco minutos.
Naquela manhã, porém, a expectativa prolongou-se. Havia mais de um quarto de hora que me encontrava ali e começava a impacientar-me. A certa altura alguém me chamou:
- Mademoiselle Chambreuil!... Mademoiselle Chambreuil!
Voltei-me e vi o empregado que, pouco antes, me entregara a chapa numerada. Apesar de ouvir o meu nome, custou-me a apreender que se tratava de mim. Em geral, o pagador limitava-se a chamar pelo número. Eu chegava ao guichet, entregava a chapa, recebia o dinheiro e ficava tudo concluído. Por que motivo, daquela vez, era o empregado que punha o visto nos cheques quem me chamava?... Muito estranho, na verdade!
Aproximei-me com ar de estranheza e mais espantada fiquei ao notar-lhe o constrangimento e o sorriso forçado.
- Chamou-me? - inquiri, sem reparar quanto a pergunta se tornava supérflua.
- Exactamente - confirmou, metendo a cabeça pelo guichet, como se pretendesse confiar-me importante segredo - O senhor Bordier, o nosso chefe, deseja falar-lhe.
- Falar-me? - repeti com espanto.
Nem me passou pela cabeça que pudesse ter surgido qualquer complicação, mas, no entanto, perguntei:
- O cheque não está em ordem?
Como se não tivesse ouvido a pergunta, o empregado chamou o contínuo e indicou:
- Senhor Granger, acompanhe mademoiselle ao gabinete do senhor Bordier. Ele espera-a.
Depois voltou-se para mim e pediu:
- Quer ter a bondade de acompanhar o contínuo, mademoiselle?
Em seguida, voltou-se e dirigiu-se a outro cliente, como se eu tivesse deixado de existir. Era evidente que o assunto do cheque deixara de lhe dizer respeito e passaria a ser tratado pelo tal senhor Bordier.
Não tendo outro recurso, segui o contínuo sem protestar e sem pedir mais explicações.
Mas posso afirmar que a minha tranquilidade era absoluta e não me assaltou o mais pequeno temor, nem sequer um pressentimento. Pensei que faltaria a data ou a assinatura não estivesse muito legível, enfim, que se tratasse de pequeno lapso, facilmente remediável em poucos instantes. O meu optimismo podia classificar-se de inabalável.
Entrei no gabinete do director, que me recebeu com toda a cortesia, mas sem o habitual sorriso de amabilidade. Nunca esquecerei o seu rosto. Tinha os cabelos grisalhos, usava bigode e óculos. Numa das mãos vi o meu cheque e na outra uma régua de aço.
- Foi sua mãe quem assinou este cheque, não é verdade, mademoiselle Chambreuil?
- com certeza.
- Há muito tempo que não temos o prazer de a ver aqui no Banco...
- Minha mãe tem estado gravemente doente e ainda não pode sair do quarto.
- Compreendo agora... O seu pai faleceu o ano passado, creio eu?...
- De facto, assim foi.
- Agora tudo se torna claro - murmurou Sua mãe não se encontra em estado de fazer contas e medir a situação...
Que significariam estes rodeios?... Onde pretenderia ele chegar?... Como me conservasse calada e nada lhe desse ensejo para se explicar melhor coisa que me seria impossível, pois não compreendia o que se passava - depois de ter tossido levemente, Bordier prosseguiu com modos constrangidos:
- Lamento dizer-lhe, mademoiselle, mas não podemos pagar este cheque. O saldo- da sua conta limita-se a trezentos e quinze francos e, apesar de toda a nossa boa vontade, somos forçados a proceder assim. Concebo que sua mãe, doente como está, pudesse enganar-se e aconselho-a a dirigir-se ao seu procurador. Talvez ele já tomasse disposições para que a conta corrente de madame Chambreuil fosse reforçada e lhe abra novo crédito no Banco. Por enquanto, custa-me comunicar-lho, não temos instruções a esse respeito...
Fiquei como fulminada por um raio e nem sei o que lhe respondi. Balbuciei qualquer coisa e levantei-me. Não sei como me despedi de Bordier, nem como meti o cheque na malinha de mão.
Só sei que me encontrei na rua, debaixo de chuva torrencial, estonteada, como se tivesse apanhado forte pancada na cabeça.
De princípio, não compreendi bem o fatal significado deste incidente. Regressei a casa, encharcada, e não revelei a ninguém o que se tinha passado. Nunca o diria, principalmente a minha mãe!
Por forma alguma iria provocar-lhe inquietações que poderiam comprometer as ligeiras melhoras que se verificavam no seu estado. Por outro lado, precisava de reflectir e medir a situação com calma e sossego.
Tinha de confessar que tudo aquilo me parecia confuso. De mim para mim, convencia-me de que devia existir erro de contas ou que o procurador se esquecera de fazer a devida transferência de fundos, mas, no Intimo, estava certa de que tudo acabaria por se normalizar sem preocupações de maior.
A minha cegueira era espantosa e a minha confiança insensata!
A primeira coisa a fazer, para me tranquilizar, seria, sem dúvida, falar com o nosso procurador e, mal acabei de almoçar, dirigi-me a sua casa.
Não tive de esperar muito tempo. Recebeu-me logo que lhe comunicaram o meu nome.
Ducourget era muito diferente dos procuradores de comédia que se apresentam com fartos bigodes e lunetas na ponta do nariz. Andava pelos cinquenta anos, embora aparentasse muito menos e, com o seu aprumo, fato de corte impecável, seria mais fácil tomá-lo por um industrial com fortuna do que por um procurador.
- Em que lhe posso ser útil? - perguntou, indicando-me confortável poltrona e esboçando o seu mais amável sorriso.
Descrevi-lhe o incidente do Banco e o meu desapontamento por não receber o dinheiro - porque naquela altura o caso-, para mim, não passava de mero incidente.
Foi naquele instante que, pela primeira vez, vi as coisas com outro aspecto. Por várias vezes ouvira falar em cheques sem cobertura e sabia, pelos jornais, que semelhante delito podia conduzir à prisão. Até ali, todas essas coisas, para mim, eram como contos irreais, factos ocorridos num mundo à-parte, absolutamente estranho àquele em que vivia.
Mas, no gabinete do procurador, ocorreu-me de repente a ideia de que, desde aquela manhã, quer quisesse ou não, tinha no meu activo" um cheque sem cobertura.
A cadeia não era, como eu poderia supor, uma criação da minha fantasia, mas um local destinado a receber aqueles que se permitiam brincadeiras do género da que tinha feito de manhã!... E foi como se, de repente, me visse encerrada por detrás de sinistras grades e presa com fortes correntes!
O sorriso benévolo e amável apagou-se nos lábios de Ducourget e foi substituído por uma expressão de espanto e de preocupação.
- Fiquei absolutamente surpreendido, mademoiselle Chambreuil - declarou-me com certa frieza, depois de ter escutado a minha história - A senhora sua mãe estava perfeitamente ao facto da vossa situação financeira e não sei como pôde esgotar assim o depósito do Banco.
- Minha mãe tem estado muito doente e há muitos meses que não se levanta.
- No entanto, era ela quem assinava os cheques...
- Evidentemente. Mas era eu quem os preenchia e minha mãe ainda ignora o que se passou... O seu melindroso estado de saúde não lhe permitia ocupar-se com essas coisas.
- Agora compreendo... Não sabia que madame Chambreuil estivesse assim tão mal... Estou desolado com tudo isto, tanto mais que, segundo me parece, a minha filha não mede bem a situação...
- Então o paizinho não deixou títulos ou acções que pudessem...
- Nenhum. Todos os que possuía foram empenhados pouco antes da sua morte, a fim de que o Banco nos abrisse créditos. Mais tarde, em face das necessidades prementes, o próprio Banco os vendeu.
- Sim... eu sei que a doença do paizinho foi muito dispendiosa.
- Exactamente. Todavia, quando morreu, na conta corrente do Banco restava um saldo de oitocentos mil francos, se não me engano.
- Também não sabia, mas devia estar certo. Curvei a cabeça, envergonhada.
- Espanta-me que pudesse ter despendido quantia tão importante em sete meses - continuou o procurador- e lamento dizer-lhe que não tenho em meu poder nem títulos, nem fundos que pertençam a sua mãe. Em consequência, não posso obter novos créditos no Banco...
- Sendo assim... que hei-de fazer?...
- Encarar as circunstâncias em toda a sua desoladora evidência. Presentemente, a sua família possui, como único recurso para viver, a pensão de sua mãe.
Meia hora depois, encontrava-me sentada num dos bancos do Campo de Marte, completamente desamparada e desesperada.
A chuva da manhã cessara e o sol de Inverno, pálido e frio, como promessa vaga ou triste sorriso, envolvia-me como se pretendesse consolar-me.
A cabeça quase que me estalava. A venda caira-me dos olhos e só então medi bem a situação, que não era brilhante, tinha de o confessar.
De nada me serviria protestar contra o Destino ou tentar endossar a outros as responsabilidades do que acontecia. A única responsável pelo desastre era só eu.
A pensão de minha mãe não chegava para dar de comer a sete pessoas, incluindo Germana, quanto mais para pagar os estudos dos meus irmãos, o tratamento da doente e todas as outras despesas...
A minha consciência acusou-me sem apelo nem agravo, sentia-me culpada como se tivesse esbanjado, voluntariamente, o pequeno capital deixado por meu pai.
O vento começou a soprar e uma aragem fria subia das margens do Sena, talvez de propósito para me refrescar a inteligência, que primara pela sua ausência, naqueles últimos tempos.
Na minha cegueira e falta de perícia, nem sequer podia alegar, como desculpa, ter tentado retardar a catástrofe que, de um momento para o outro, nos esmagava. Fora tão grande a minha inconsciência que, naquela manhã ainda, sem atender a tão assustadores prenúncios, teimava em pensar que tudo se arranjaria.
Não podia esquecer a expressão compadecida e ligeiramente desdenhosa de Ducourget, quando me despedi dele.
No meio de toda a minha indecisão, porém, uma coisa se me apresentou ao espírito, nítida e inabalável: impunha-se ocultar a minha mãe o que se passava. Não sabia ainda como proceder, mas, fosse como fosse, ela não saberia coisa alguma.
Tentei sossegar o espírito e pôr em ordem os pensamentos. Recapitulando o passado, reconheci muitos erros, para os quais, à primeira vista, a minha pouca idade poderia ser tomada como atenuante, mas que, examinando as coisas a sangue-frio, pelo contrário, considerava como agravante.
Por exemplo, recordo-me de ter encomendado, pouco depois da morte do paizinho, o mais belo mausoléu que pude encontrar. Para um general de peito constelado de medalhas, para o oficial que mais de cem vezes e em todos os pontos da terra, arriscara a vida pela França e várias vezes também vertera o seu sangue pela Pátria, seria justo regatear?...
Agora reconhecia que teria sido esse o meu dever, visto que, tendo, praticamente, assumido o encargo da família, a minha obrigação consistia em assegurar-lhe o bem-estar e, com uma administração sensata, velar para que esse bem-estar se mantivesse.
Quando minha mãe adoeceu e o médico assistente falou em especialistas, as maiores sumidades de Paris não me pareceram bastantes para restituir a saúde daquela que era o nosso único bem. E só Deus sabe quanto me custaram as consultas desses célebres cardiologistas!
Teria sido preferível levar a mãezinha às consultas dos hospitais em vez de mandar chamar os especialistas a casa?... Naquela altura, porém, afigurou-se-me que, em tais circunstâncias, olhar a dinheiro seria uma ofensa à memória do meu pai...
Os resultados estavam presentes para me acusar de inconsequência... E agora, como continuar a tratar de minha mãe... como manter a casa no mesmo pé?
Nem sequer me veio à ideia despedir a cozinheira. Meus irmãos precisavam de boa alimentação e para isso não podia dispensar a Germana.
Impunha-se, pelo contrário, que me tivesse sacrificado e eu própria me encarregasse de certos trabalhos, reduzindo a despesa, despedindo pessoal, dando, enfim, à nossa vida um cunho mais modesto e mais conforme com a situação.
Nada disso fiz na devida altura e merecia as maiores censuras pela minha inconsciência.
com a pensão que recebíamos todos os trimestres e o depósito no Banco, em sete meses gastara mais de um milhão de francos!... Era espantoso!...
Vejo-me ainda sentada não muito longe do Sena, fazendo o balanço dos meus erros com uma lucidez muito rara em mim... E acabei por concluir que; por minha culpa, por minha culpa e de mais ninguém, a minha família iria lutar com as maiores dificuldades e até privações.
Que fazer?...
Visto reconhecer a minha responsabilidade, devia chegar a consequências lógicas e reconhecer também que o meu dever imediato me impunha resolver a situação, sem prejuízo para todos os meus e sem pensar em mim.
Quando me levantei e me dirigi para casa em passo firme e apressado, a minha resolução estava tomada.
Se no passado fora cega e inconsciente, no futuro repararia os meus erros.
Antes de mais nada, tornava-se imprescindível não deixar transpirar o que se passava e proceder de forma que nem minha mãe nem meus irmãos suspeitassem da catástrofe. Continuaria a sorrir, a aparentar uma calma olímpica, a fim de que nenhum deles adivinhasse que a adversidade se abeirava de nós. Devia-lhes isso. Mantê-los na ignorância da desgraça... depois, ver-se-ia.
E vi, não há dúvida.
Inspirada por magnífico zelo, corri às agências à procura de emprego.
Possuía os meus diplomas de bacharel, nos quais baseava as maiores esperanças. No meu meio, ser bacharel representava o mais alto grau da sabedoria, uma espécie de "Abre-te Sésamo" para todas as portas, numa existência normalmente concebida.
Ainda não estava licenciada, mas o bacharelato chegava!
Era esta a minha firme convicção, cimentada por muitas gerações de burgueses bem assentes na vida e ingénuos. Considerava os meus diplomas como verdadeira tábua de salvação, garantia permanente e infalível contra todos os golpes da adversidade por muito duros que fossem.
Supunha, com a minha ignorância da vida, que bastaria erguer um dedo para que as portas de acesso aos mais rendosos empregos se abrissem diante de mim e as minhas esperanças eram, praticamente, ilimitadas.
Depressa reconheci o meu erro e verifiquei a inanidade das minhas ilusões. Em todas as portas que batia recebia idêntica resposta, recusas bruscas ou delicadas, mas sempre recusas. O cenário era, por assim dizer, imutável.
- Venho, em resposta ao anúncio...
- Lamento muito, mademoiselle, mas o lugar já está preenchido.
Ou então:
- Informaram-me de que pensava em admitir uma secretária...
- Por certo a enganaram, mademoiselle. A crise é tremenda, os encargos cada vez maiores e, portanto, não podemos pensar em criar novos lugares.
Estes diálogos terminavam invariavelmente por estas palavras:
- Deixe-nos a sua morada... Se precisarmos de empregada, escrever-lhe-emos.
Frase que, mais tarde, reconheci não ser mais do que uma fórmula de delicadeza, pois a promessa nunca teve resultados práticos.
Depressa verifiquei que, apesar de bacharel, como não era frisadora, nem torneira de metais, caldeireira, caixeira de praça com clientes ou automóvel, não havia a mais pequena probabilidade de arranjar colocação bem remunerada.
Não deixei de conhecer o trabalho em sua casa, lucrativo, não pedindo conhecimentos especiais, com aprendizagem rápida ou trabalho para fazer na própria casa, para pessoas sérias, com futuro assegurado, mediante pequena caução, mas não tardei em saber que se tratava apenas de uma rede bem organizada de caça-tolos. E não era assim que podia encontrar solução para as minhas dificuldades.
Quantos passos em vão, quantas tentativas inúteis que me deixavam deprimida com a perspectiva de um amanhã tão sombrio como a véspera.
Inspirada por inabalável resolução, animada por um optimismo cimentado com cal e areia, perante tantos desaires sucessivos, repetidos, cotidianos, tendo chegado à amarga conclusão da inutilidade dos meus esforços, do ridículo das minhas ilusões, da risível ineficácia dos meus diplomas, a minha energia fraquejava e a minha confiança desvanecia-se.
Para mais, a adversidade entrava a passos largos na nossa casa. Comecei por vender alguns dos nossos mais ricos móveis, quadros de preço, recordações preciosas que meu pai nos trouxera das suas longínquas viagens, das suas permanências pelos quatro cantos da terra, ao acaso das comissões de serviço. Travei conhecimento com essa coorte variada e especial dos antiquários, compradores de móveis e de quadros antigos. Pedia-lhes para virem a nossa casa, tendo o cuidado de escolher a hora em que me encontrava sozinha ou quase, quando os meus irmãos ainda estavam nas escolas. Outras vezes, levava eu própria os objectos para vender, cuidadosamente embrulhados, passando como uma seta diante do cubículo da porteira, a fim de não me tornar notada.
- Não posso dar-lhe mais de três mil francos por isto...
- Mas vale pelo menos dez mil! -protestava.
- Valia, concordo, quando estava novo... Mas assim, como sabe, na época presente, os compradores destas bugigangas são raros e o negócio está, por assim dizer, paralisado. Estamos em plena crise... Arrisco-me a ficar com isto na loja durante muitos meses, sem que encontre quem mo compre. E, na altura em que o vender, pode muito bem acontecer que a moeda esteja mais desvalorizada ainda.
- Não pode dar-me, pelo menos, os quatro mil francos?...
- Isso sim!... Impossível!... Olhe, unicamente para lhe ser agradável e para lhe provar que estou disposto a favorecê-la, se me deixar também essa tabaqueira, dar-lhe-ei três mil e cinquenta. É a minha última palavra, pode crer.
E as fugidas à casa de penhores... escadas a subir e a descer... visitas infrutíferas e tentativas vãs. E, segundo a frase célebre de Marcel Achard, os angustiosos fins do mês que duram três semanas... Os maus modos dos credores quando se retiravam sem lhes pagarem... O rosto carrancudo da porteira... a expressão desdenhosa do vizinho do andar superior... O regatear dos preços, as discussões, as facturas, as cartas registadas, as visitas dos oficiais de diligências...
Despedi Germana e fazia prodígios para que minha mãe não se apercebesse do que se passava ou, pelo menos, para lhe ocultar o mais possível as minhas preocupações. Mas, por muito que fizesse, não conseguia dissimular-lhas por completo.
Por exemplo, quando notava a desaparição de qualquer objecto, via as lágrimas assomarem-lhe aos olhos, apesar de ela as reprimir e nada me dizer. Eu própria persistia em calar-me, como se entre nós se tivesse estabelecido tácito acordo, a fim de evitarmos referência a certos assuntos bastante dolorosos.
Não me dirigia censuras, mas eu percebia quanto sofria, quanto as manobras e as mentiras, a que eu me via forçada a recorrer, a humilhavam.
À noite, quando me deitava, chorava à vontade a minha triste condição de irmã mais velha, a dura prova imposta aos meus vinte e um anos, o pesado fardo que me caira sobre os ombros, demasiado principalmente pela total falta de preparação para o suportar, pela forma como vivera até ali.
Pensava quantas raparigas da minha idade se encontravam em situações idênticas ou piores do que a minha e estavam aptas para lhes fazer face... a resolver as dificuldades sem custo, alegremente. Nesse ponto, eu era-lhes nitidamente inferior.
Deixava-me vencer por um desespero sem limites, pelo mais negro pessimismo. Fosse por que lado fosse, não via surgir o mais pequenino vislumbre de esperança e considerava a vida como uma cadeia ininterrupta de desgostos.
Ainda se o meu irmão Jacques tivesse mais dois anos, tudo se tornaria mais fácil... pelo menos, assim se me afigurava. Um homem sabe melhor como proceder quando procura emprego ou tem de defrontar credores. Ou, pelo menos, em certas transacções, como venda de móveis ou de preciosidades, a minha responsabilidade teria sido menor.
Infelizmente, por um lado, a pouca idade dos meus irmãos, por outro o silêncio que me impusera para com minha mãe, a fim de não lhe prejudicar a saúde, por outro ainda a completa ausência de amigos sinceros que me aconselhassem e com quem compartilhasse as minhas preocupações - tínhamos sido sempre muito unidos, bastando-nos o afecto da família, sem facultarmos a nossa intimidade a estranhos - tudo isto foram factores para que, naquela situação, eu me encontrasse completamente sozinha, desamparada, esmagada pela fatalidade dos acontecimentos.
Apesar disso, ainda apelei para todos os amigos e antigos conhecidos do meu pai, que, ainda assim, não
eram poucos.
Bati a todas as portas que, nos tempos ainda não muito afastados, nos acolhiam com simpatia. Mas só quando a desgraça nos atinge nos apercebemos do nosso isolamento.
Fiz visitas, acorri a entrevistas, escrevi, subi escadas, dei caminhadas e tudo inutilmente...
Nesse período humilhante, das promessas em que todos eram pródigos, das lindas frases e palavras animadores, das expressões compadecidas, de tudo quanto me prodigalizavam sem resultado tangível, resta-me ainda hoje a mais amarga recordação!
Julgo ver ainda os semblantes condoídos, as expressões de encomenda, os olhares de hipócrita tristeza de toda essa gente.
Não me faltou coisa alguma: as cartas de recomendação, os apertos de mão calorosos e solícitos, as propostas pouco honestas e mal encobertas... mas faltou-me auxílio profícuo e sincero.
Pouco a pouco, apesar da minha coragem inicial, toda a minha energia se ia consumindo, corrompida pela vida que derrubava todas as minhas ilusões ou as cobria de lama. O oiro dos meus sonhos de rapariga transformava-se em chumbo vil e escuro.
Entretanto, minha mãe entrava em convalescença. Os cuidados constantes, a vigilância de todas as horas, as prescrições dos maiores especialistas, acabaram por vencer a doença e todos os meus trabalhos, pelo menos, não tinham resultado em pura perda.
Chegou o dia em que o médico assistente a considerou livre de perigo.
- Mas - apressou-se a acrescentar - necessita de uma superalimentação e o tratamento especial que vou prescrever. O melhor seria mandá-la para o campo, para que a cura se estabilizasse e o organismo se fortificasse.
Os médicos são todos iguais, não olham às circunstâncias. Se aquele que assim me falava com ar grave e convencido, pudesse saber quais os passos que, ainda na véspera, eu fora obrigada a dar - inutilmente como sempre - talvez se abstivesse de semelhantes Imposições.
Mas a aparência da casa ainda podia iludir o visitante alheio às nossas dificuldades e eu tentava, por todos os modos, evitar que suspeitassem a transformação sobrevinda na nossa vida. Era uma espécie de fachada e o médico não viu o que ia dentro e receitou como se fôssemos ricos.
Eu, porém, tomei estas instruções à letra e considerei o facto de as seguir como uma questão de vida ou de morte...
Foi então que perdi a cabeça...
E teria eu, de facto, perdido a cabeça?
Naquela altura, contudo, estava certa de me encontrar no meu perfeito juízo, de ter tomado a resolução mais sensata e imperiosa. Hoje, porém, ainda pergunto a mim própria se não teria, momentaneamente, perdido a razão.
Um anúncio de jornal... que importância tem isso?... Quantos milhares de anúncios se imprimem por dia, por esse Mundo fora?
Recordo-me de um filme de antes da Guerra, um filme de Maurício Chevalier, que se chamava: Ciladas. O tema era justamente anúncios dos jornais. Eram essas as ciladas.
No dia em que, pela primeira vez, publiquei um anúncio, comprometi a minha vida e só Deus sabe por quanto tempo!... Talvez para sempre.
E, no entanto, dei-lhe uma redação tão simples!... Publiquei no Observer, edição do Continente, e depositei nele as minhas últimas esperanças. Custou-me caro, porque o preço dos anúncios do Observer são elevados. Sabia que, em face do estado deplorável das minhas finanças, eu não podia renovar a tentativa, mas, falando correctamente o inglês, considerei-me na obrigação de aproveitar as minhas habilitações.
Não me recordo bem de quem me falou no Observer... Tenho a vaga impressão de ter sido uma das minhas antigas condiscípulas a quem encontrei quando fazia uma das muitas caminhadas quotidianas, à procura de emprego.
A fim de obter a quantia para o anúncio, vendi a única jóia que possuía, um anel muito simples, com pequena pérola, que meu pai me havia oferecido pelos meus quinze anos.
Custou-me separar-me do anelzinho. Posso mesmo dizer que constituiu para mim verdadeiro sacrifício, mas fi-lo sem hesitar. Não tinha vendido ou empenhado objectos e móveis mais valiosos, que pertenciam aos meus?... Era justo agora que, para um assunto absolutamente pessoal, recorresse ao que era minha exclusiva propriedade.
Se mais possuísse, mais teria vendido, feliz por poder colocar a minha família ao abrigo da miséria.
Ainda há quem negue os pressentimentos!... Enquanto que, em todas as outras tentativas, nas iniciativas que até ali tomara, intimamente, tivera a sensação nítida, quase a certeza, da sua inutilidade, afinal, naquele dia tive como que íntima e ínexplicável confiança no resultado... confiança e, ao mesmo tempo, uma espécie de angústia vaga, inexplicável também. Para todas estas sensações não havia a mais pequena base ou lógica, mas vão lá encontrar lógica - ou nós não a vemos - nos meandros e mistérios da psicologia humana!
Mas voltemos ao assunto. Publiquei, como já disse, no Observer, na secção francesa, um anúncio, pedindo emprego, concebido nestes termos:
Menina de 21 anos, bacharel, falando inglês na perfeição e tendo mãe e quatro irmãos a seu cargo, deseja colocação compatível com as suas habilitações e categoria social. Dá as melhores referências quanto a moralidade. Resposta a...
Agora reconheço a ingenuidade desta redacção, mas foi talvez essa mesma ingenuidade que chamou a atenção para o anúncio e me conduziu ao ponto onde hoje me encontro.
Para bem ou para mal?... Só o futuro poderá responder.
Seja como for, o anúncio em questão, de princípio, ficou sem resposta. Se eu fosse razoável teria achado o acto muito natural. Pelo contrário, a minha decepção foi grande e quase acusei o Destino de traição.
Todavia, decorridas quarenta e oito horas, recebi uma carta, a primeira e única resposta que obtinha... muito vaga, de resto.
Provinha de uma organização chamada Aliança Franco-Inglesa, em Paris. Estava assinada por "Betty Kemm, a directora", que me pedia para passar pelo seu escritório logo que pudesse.
Pensei imediatamente que se tratava de um lugar sério. Ambicionava esse lugar com todas as forças da minha alma e por isso tomei o meu desejo por certeza.
Acalmei o mais que pude o nervosismo provocado pelos dois dias de febril ansiedade, fiz minuciosa toilette e, depois da última olhadela ao espelho que me devolveu a imagem de uma rapariguita não muito desagradável, tomei o caminho da morada indicada. A sede da organização ficava numa das avenidas que desembocam na Étoile, no segundo andar de um prédio moderno e luxuoso. Entrei numa sala espaçosa e alegre e fui atendida por uma empregada de óculos, que pediu para esperar uns momentos. Na sala, com os ficheiros bem arrumados e a máquina de escrever, não vi ninguém. Era eu a única visitante, talvez devido à hora matinal a que me apresentava. A demora não foi grande. Decorrido pouco tempo, introduziram-me noutra sala mais vasta e acolhedora, onde fui recebida por uma senhora de cabelos brancos, olhos azuis e sorriso benévolo. Calculei ser ela a tal Betty Kemm que me havia convocado.
- Mademoiselle Chambreuil, não é verdade? inquiriu, indicando-me a poltrona colocada diante da secretária.
Ao mesmo tempo, voltava a ler o meu anúncio, sublinhado com lápis azul, e depois a ficha que eu tinha preenchido pouco antes, a pedido da empregada.
- Exactamente-respondi, de súbito dominada por inexplicável timidez e por irreflectida apreensão.
Ao mesmo tempo, instalava-me na poltrona designada, sentando-me muito direita, quase sem me atrever a mexer-me.
Tinha de concordar, no entanto, que a expressão da directora não justificava o meu acanhamento.
- Antes de mais nada - começou ela - desejava que me desse, a seu respeito, elucidações um pouco mais explícitas do que as do anúncio.
Expressava-se num francês correcto, embora com leve sotaque estrangeiro.
Consegui vencer a timidez e a língua desprendeu-se-me. Esbocei-lhe um quadro rápido da minha situação e da minha família, falei-lhe do meu pai, dos meus estudos e aspirações. Fiquei com a impressão de não lhe ter desagradado, porque me escutava com manifesta satisfação, tomando, ao mesmo tempo, rápidos apontamentos.
- Quais são as suas habilitações em inglês?...
- Ia licenciar-me quando meu pai morreu, o que me forçou a interromper os estudos.
- Isso facilita muita coisa. Não era indispensável, mas pode valer-lhe de muito. Já foi a Inglaterra?
- Nunca.
Olhou para mim como se contemplasse um fenómeno.
Mostrava-se espantada e talvez um pouco ofendida por verificar que eu pertencia a essa espécie rara e inesperada das pessoas que nunca tinham visitado a Inglaterra. Para ela, o facto constituía uma espécie de crime imperdoável ou doença perigosa. Mas, caso estranho, ao mesmo tempo mostrava-se mais satisfeita do que aborrecida.
- Talvez seja preferível assim - murmurou. Estava extremamente intrigada. Como se me adivinhasse os pensamentos, a directora da Aliança Franco-inglesa, retomando a máscara sorridente, declarou-me:
- Vai saber de que se trata. Os escoceses do Norte, no extremo setentrional das Ilhas Britânicas, precisam de donas de casa. A Guerra despovoou os Highlands e os planaltos. O grande esforço de guerra exige mão-de-obra nas fábricas, nas oficinas e nos campos; nas cidades e nas terras baixas, tornou-se forçoso substituir os homens que foram combater. Em consequência, as raparigas emigraram em massa e alistaram-se no serviço civil. Terminada a Guerra, os homens regressaram, mas as raparigas, já habituadas à vida das cidades, não querem voltar, porque o clima é áspero, a região muito isolada e quase sem distracções. Eis porque os senhores das herdades, os industriais, todos aqueles que, antes da Guerra, viviam tranquilamente nos Highlands, procuram agora donas de casa.
A expressão donas de casa deu-me que pensar e recordou-me as numerosas ocupações exercidas pelas mulheres... no Canadá, por exemplo.
- Que entende por esse termo: donas de casa?
- perguntei.
- vou explicar-me melhor. Conhece a existência de certas raparigas que, em França, antes de criarem as assistentes sociais, auxiliavam as mulheres doentes e as mães sobrecarregadas com filhos?
- Refere-se às auxiliares dos lares?
- Isso mesmo. Conhece, sem dúvida, o projectado auxílio às mães, criando as assistentes às donas de casa?
- Sim, sei que se pretende preparar assistentes, cuja tarefa consistirá em auxiliar as donas de casa e as mães sobrecarregadas de filhos, em tratar pessoas doentes, etc.
- Exactamente. Pois é para uma actividade desse género que pretendemos contratá-la. Convém-lhe?...
- Teria de ir viver para a Escócia?...
- Evidentemente.
- Por quanto tempo?...
- Por um período muito longo.
- E seria bem remunerada?
O sorriso de Betty Kemm acentuou-se até tomar expressão quase irónica.
- Magnificamente.
- Nesse caso, convém-me. O que desejo, antes de mais nada, é um ordenado convidativo.
- Quer ganhar muito? - inquiriu, olhando-me com estranheza.
- Quero. Tenho minha mãe doente e os meus irmãos são ainda muito novos.
- Estão todos a seu cargo?
- Completamente, e tenho de deixar-lhes a existência assegurada, se tiver de me afastar para longe.
Miss Kemm voltou a sorrir.
- Se aceitar a nossa proposta, isso ser-lhe-á fácil.
- Sendo assim - afirmei com o rosto iluminado pela esperança - estou disposta a partir para a Escócia.
Não sei que espécie de demónio me impeliu, nem por que aceitei tudo tão espontânea como irreflectidamente.
Talvez que todas as tentativas inúteis, todas as recusas recebidas naqueles últimos meses, me tivessem familiarizado com piores eventualidades.
Até ali, nunca me passara pela cabeça a possibilidade de me afastar dos meus e muito menos de me expatriar.
Mas, naquele momento, aceitei, sem hesitar, a perspectiva de abandonar a França.
Creio ter sido porque, pela primeira vez, me ofereciam qualquer coisa de concreto, qualquer coisa mais do que boas palavras ou vagas esperanças.
O Inverno e a Primavera iam longe e o Verão tocava o seu termo. Passavam dias, semanas, meses, e a minha vida eternizava-se nas mesmas preocupações... uma vida lenta, interminável, sem esperança de dias melhores, sempre em face das mesmas contas, discussões e dificuldades... limitada pelo mesmo horizonte sombrio, sem possibilidade de melhoras.
Nem por um segundo podíamos pensar em gozar férias, numa mudança de ares que tão necessária se tornava para os meus.
O Outono aproximava-se e o emprego que procurava havia tanto tempo, tornava-se cada vez mais problemático.
Evocavam a crise, a ocasião pouco favorável, a estação morta, mas quanto a emprego, nem pensar nele!
A nossa mobília desaparecia pouco a pouco e, em breve, ficaríamos sem nada. E, ainda por cima, os médicos impunham, como urgente, que minha mãe fosse convalescer para o campo!
Não podia dizer tudo isto a Betty Kemm, mas talvez ela o adivinhasse pela minha expressão.
- Quer fazer-me o favor de passar a esta sala, mademoiselle Chambreuil?...
Indicava-me pequeno gabinete contíguo à sala, onde estava instalada uma máquina fotográfica semelhante àquela que os fotógrafos utilizam para os retratos próprios para cartões de identidade.
Sem uma palavra, miss Kemm fotografou-me de todos os ângulos.
De mim para mim, estranhava que, para um cargo semelhante ao de assistente social, os predicados físicos assumissem primordial interesse.
A voz da amável Inglesa arrancou-me a estas reflexões.
- Por hoje, chega - declarou, enquanto voltávamos para a sala - vou enviar para Londres o seu nome e o curriculum vitae. Em seguida, um dos nossos correspondentes procederá ao indispensável inquérito, o que exige certo tempo. Volte daqui a dias e poderei então dar-lhe uma resposta.
Como eu, de pé, parecesse aguardar mais explicações, acrescentou:
- As famílias escocesas que contratam donas de casa são constituídas por gente rude, mas bastante exigente e de clãs muito orgulhosos da sua estirpe. Portanto, é indispensável elucidá-los sobre todos os pontos, compreende?
Fiz um gesto de indiferença. Um único desses pontos me preocupava.
- Tem a certeza de que serei bem remunerada?
- insisti, vendo apenas o lado monetário e não prestando importância de maior as elucidações da minha interlocutora.
Nem sequer me passou pela cabeça que o resultado do tal inquérito me fosse desfavorável.
No desejo de justificar tanta avidez, que não estava no meu carácter e podia inspirar-lhe triste opinião sobre a minha pessoa, acrescentei:
- Compreende... eu tenho absoluta necessidade de uma remuneração considerável.
- Sobre esse ponto, pode ficar descansada- declarou miss Kemm, soltando franca gargalhada Se a aceitarem, não terá razão de queixa, pelo contrário. Mas é fácil de admitir que, dispondo-se a acolhê-la, essa família deseje conhecer a sua vida e antecedentes. É forçoso também que, antes de tomar uma resolução, vejam o seu rosto. Não deve dar tanta importância ao dinheiro, minha filha. Pode crer que o maior interesse do assunto reside noutro ponto.
Corei até à raiz dos cabelos e despedi-me da simpática senhora. Sentia-me, de facto, envergonhada por atender unicamente ao ordenado que receberia. Mesmo assim, pensava que, sendo Ingleses, me pagariam em libras, que, convertidas em francos franceses, atingiriam quantia suficiente para assegurar o bem-estar dos meus.
E ia tão distraída, tão absorvida pelas minhas reflexões e pensamentos contraditórios, que quase me deixei atropelar por um automóvel.
Esperei com paciência, conforme me tinham acon selhado, mas os dias tornaram-se bem longos para mim.
Por outro lado, temia não ser aceita para esse tal emprego de dona de casa e, por outro, assustava-me a ideia de ir residir em Inglaterra. Sentia-me infeliz quando pensava que teria de me separar da minha querida mãe e dos meus irmãos.
Em primeiro lugar, ainda não estava muito segura com as melhoras de minha mãe. Depois, também não me sentia tranquila com os outros membros da família, cujos estudos, a menos de um milagre, deveriam ter resultado muito triste, no fim do ano lectivo.
Dona de casa!... Seria eu a pessoa mais indicada para desempenhar semelhante cargo se, na minha própria, eu esbanjara a fortuna deixada pelo meu pobre pai, num tão curto espaço de tempo?
Se os meus patrões contavam com a minha capacidade para governar a casa, estavam bem servidos!
Tanto mais que os Escoceses têm fama, com razão ou sem ela, de ser um tanto agarrados aos seus interesses.
Decididamente, previa um êxito estupendo!... Para tomar as rédeas da administração de uma casa, ninguém mais competente do que eu, não podiam restar-me dúvidas!...
Mesmo assim, estava disposta a aceitar... porque não tinha por onde escolher.
A carta de miss Kemm fora a única recebida como resposta ao anúncio!
Alguns dias passaram, mas a demora não me preocupava. O inquérito promovido pela Aliança Franco -Inglesa exigia certo tempo. Todavia, andava nervosa.
- Contanto que me aceitem...
Porque, apesar do desgosto que sentia com a ideia de me expatriar, ansiava pela resposta favorável. Se desse crédito às afirmações da directora da Organização, tratava-se de um emprego sério e bem pago e, em consequência, aceitava a esperança de não ter gasto em vão o dinheiro da venda do meu pobre anel.
Decorreu uma semana e, não conseguindo dominar-me, fui outra vez falar com miss Kemm.
Entrei para a sala e não esperei mais tempo do que da primeira vez.
A directora acolheu-me com esperançoso sorriso.
- Adivinhou, mademoiselle?... A resposta chegou esta manhã e posso dizer-lhe, desde já, que é favorável.
- Favorável? - repeti com alegre expressão.
- Exactamente. Agradou aos nossos clientes, sob todos os aspectos. Os resultados do inquérito, discretamente feito em Paris, foram excelentes.
O sorriso de miss Kemm tornou-se ainda mais aliciante quando acrescentou:
- Agora, só lhe resta partir.
- Mas... custa-me insistir no assunto... eu queria saber...
- Não ficou muito encantada com a notícia, segundo me parece - notou ela com bondade - Que mais temos, minha filha?...
- Engana-se. Fiquei contentíssima!... Não se trata disso. Estou um pouco preocupada, porque... para partir...
Miss Kemm interrompeu-me com uma gargalhada.
- Precisa de dinheiro, não é assim?... Está bem de ver... mas tudo foi previsto, descanse. Tem à sua disposição a quantia de duzentos mil francos...
Passou-me um deslumbramento pela vista e em volta de mim tudo começou a girar. A directora continuou a falar mas eu quase não percebi o que me dizia.
- Este dinheiro - explicava - servirá para preparar o que seja necessário para a viagem, vestidos, tudo quanto constitui um enxoval. Precisa também de deixar aos seus o suficiente para se manterem durante algum tempo... E agora, está satisfeita?...
Miss Kemm compreendera muito bem a causa das minhas hesitações. Não posso bem dizer porquê, mas tive a impressão de que estava mais ao facto da minha verdadeira situação financeira do que deixava transparecer.
E daí o ter adivinhado logo o motivo do meu deslumbramento.
Aquela avultada quantia varreu-me as últimas hesitações se, por acaso, algumas existiam ainda.
Recuperei a coragem, pois assim, ao separar-me dos meus, já não os deixava a braços com dificuldades. Foi como se me tivessem tirado um peso dos ombros e não pudesse deixar de soltar profundo suspiro de alívio.
Miss Kemm continuava a sorrir.
- Aqui tem o contrato. Leve-o e estude-o com atenção antes de o assinar. Depois prepare o passaporte e volte a visitar-me daqui a dois dias. Se não surgirem contratempos, deve estar em Londres na terça-feira, às oito horas, o mais tardar.
Regressei a casa num estado de indiscritível excitação.
Agora já não podia tergiversar; impunha-se contar tudo a minha mãe.
Até então nunca me referira às minhas dificuldades e desilusões e até procurava ocultar-lhas na medida do possível.
Escondi-lhe sempre as minhas tentativas para arranjar emprego, a última tanto como as outras, porque não queria dizer-lhe coisa alguma sem estar certa de partir. Seria inútil provocar-lhe comoções supérfluas, o que aconteceria se, por fim, não me decidisse a aceitar ou não me aceitassem.
Mas, agora, que tudo estava resolvido, forçoso se tornava explicar-lhe o ocorrido.
A confissão causava-me certa apreensão, preocupava-me... Como iria minha mãe aceitá-la?...
Encontrei-a estendida no divã, no seu quarto.
Fixou-me com olhar interrogador, mas, com esse instinto das mães que raramente se enganam, adivinhou, pela minha atitude, que alguma coisa de anormal se passava.
- Que temos, Cristiana? - perguntou, indicando-me um lugar junto dela.
Trémula, ajoelhei-me a seus pés e, encostando-lhe a cabeça ao peito, confessei:
- vou dar-te uma novidade, mãezinha... uma novidade que tem tanto de bom como de mau e de antemão te peço que me perdoes...
- Santo Deus!... Assustas-me, filha!
- Não é caso para isso, mãe. Não tomes as coisas tanto ao trágico. Peço-te simplesmente que não te zangues comigo por só hoje te falar no assunto. Mas não queria causar-te preocupações inúteis, se a minha tentativa falhasse.
Depois, fiz uma confissão completa e contei-lhe tudo. Disse-lhe como tinha gasto o nosso depósito no Banco e descrevi-lhe todos os passos que tentara para arranjar emprego.
- Era de enlouquecer, mãezinha!... Todas as portas se fechavam!... E, no entanto, eu estava disposta a aceitar fosse o que fosse, contanto que ganhasse o suficiente para sustentar a casa.
Em seguida, revelei-lhe a colocação que arranjara, mas tentando apresentar-lhe as coisas pelo mais sedutor aspecto, sem insistir muito na necessidade da separação.
Minha mãe começou a chorar e, como era de prever, eu imitei-a porque não posso ver correr as suas lágrimas.
Tive de empregar toda a minha ciência de argumentação para lhe provar que a nossa situação financeira não me permitia ficar de braços cruzados. Todos nós devíamos concorrer para melhorar a nossa vida: meus irmãos estudando com boa vontade para concluírem os seus cursos e eu empregando-me para lhes facilitar a tarefa.
- Custou-me a tomar esta decisão, mãezinha, mas não podia deixar de o fazer. A situação que me oferecem, em Inglaterra, afigura-se-me de molde a livrar-nos de preocupações, pelo menos, nestes tempos mais próximos...
- Isso é muito vago, Cristiana... Quanto tempo contas permanecer nesse emprego?...
- Todo o que for preciso para os meus irmãos acabarem os cursos e poderem bastar-se a si próprios.
- Isso vai demorar, filha!... Os estudos dos rapazes prolongam-se por tanto tempo...
- Eles que empreguem todos os esforços para tornar esse período o mais curto possível. Logo que adquiram a sua independência, ficaremos as duas sossegadas e assim cumpriremos os desejos do paizinho. Bem sabes como ele ambicionava ver os filhos bem colocados. Será uma satisfação para nós.
Apesar de tudo quanto lhe dizia, minha mãe não podia conformar-se com a separação.
Havia muito que suspeitava do estado desastroso das nossas finanças, mas nunca se sentira com forças para abordar o assunto comigo, tanto mais que eu também me mostrava retraída e não lhe dava ocasião para isso.
Tranquilizou-se um pouco quando lhe disse que receberia duzentos mil francos e os deixaria depositados no Banco, a fim de lhes assegurar um período de férias no campo, onde ela completaria a cura. Tanta coisa lhe disse, que acabou por concordar que seria tolice recusar tão vantajosa colocação, pois em França nunca conseguiria obter nada que se assemelhasse.
Quanto à questão de honestidade das pessoas que iam acolher-me, bastava o facto de me terem adiantado tão avultada quantia para a provar.
Tendo conseguido convencer minha mãe da absoluta necessidade da separação, restava-me tratar do enxoval.
Não precisava de fazer grandes despesas. Enquanto vivo, meu pai amimara-me sempre, de forma que estava bem provida de roupas interiores e de toilettes, vestidos e casacos que, por certo, causariam sensação no Norte de Inglaterra, onde as senhoras não estariam muito a par das modas. Quanto a vestidos de luto, devo dizer, para minha vergonha, que, até à altura em que o depósito no Banco se acabou, não me tinha privado de coisa alguma.
Além disso, minha mãe, cuja estatura era idêntica à minha, disse-me que dispusesse à vontade de tudo quanto me servisse e encontrasse nas suas gavetas e guarda-vestidos.
- Leva o que precisares e gostares, Cristiana. São coisas que nunca mais voltarei a usar, porque uma viúva deve restringir-se à maior simplicidade.
Em consequência, arranjei um enxoval dos mais completos e elegantes, sem ter despendido coisa alguma. Dos duzentos mil francos entregues por miss Kemm, tirei unicamente pequena quantia para levar comigo.
Parti, portanto, com duas malas cheias e uma maleta de mão com tudo que pudesse precisar durante a viagem. E como a passagem foi paga pela Organização, pus-me a caminho na data fixada sem ter encetado o dinheiro que levava comigo.
Um empregado da Aliança Franco-Inglesa acompanhou-me à estação, talvez para ter a certeza da minha partida. Desculpo a precaução. A Organização tinha responsabilidades perante os seus clientes e, por conseguinte, competia-lhe prever todas as eventualidades.
Não consenti que minha mãe fosse despedir-se de mim ao comboio. Além do seu estado de saúde ser ainda vacilante, sempre tive horror às despedidas em público, às lágrimas dos últimos instantes, ao último quarto de hora tão doloroso em que não encontramos palavras para dizer aos que nos são queridos porque já dissemos tudo e não sentimos desejos de repisar o que nos faz sofrer. Detesto o agitar dos lenços, esse prolongamento da angústia causada pela separação.
Mas não consegui evitar que os meus irmãos, Maurício e Jacques, me acompanhassem à estação.
Pelo caminho, não deixei de lhes fazer recomendações. Os pobres pequenos escutavam-me com os olhos rasos de lágrimas e prometeram-me tudo quanto lhes exigi.
O meu afastamento para tão longe causava-lhes o maior desgosto, tanto mais que a minha ausência por tempo indeterminado fazia recair-lhe sobre os ombros responsabilidades incompatíveis com a sua idade e inexperiência. Felizmente, a Germana, que voltara a ocupar o seu lugar, velaria pela minha mãezinha com todo o carinho. Sejamos optimistas.
A Escócia não fica no fim do Mundo. Conto poder em breve mandar-lhes mais dinheiro de forma que os duzentos mil francos constituam uma garantia, uma reserva. E, quem sabe, talvez, mais tarde, consiga que meus irmãos venham passar as férias comigo.
Quando o comboio começou a andar, debrucei-me na janela, sem perder de vista os dois rapazes que se conservavam ainda na gare. À despedida procurámos ocultar a nossa tristeza com gracejos e sorrisos. Quando deixei de os ver, senti-me completamente só e abandonada... por quanto tempo não sabia!
toda a minha coragem vacilou, as lágrimas assomaram-me aos olhos e os mais negros pensamentos me assaltaram.
Que espécie de gente Iria eu encontrar?... Como seriam os estranhos a quem teria de dedicar-me, quando os meus ficavam privados da minha ternura e carinho?
Verdade seja que, nos últimos tempos, a minha presença lhes fora mais prejudicial do que útil... Portanto, não tinha feito mais do que o meu dever.
Minha querida mãe, meus queridos irmãos e irmãs, tão ajuizados, tão dóceis, um tesouro de afectos que encerro no coração; levo-o comigo e nunca vos esquecerei, nunca!
Por fim, as últimas casas dos arredores de Paris desapareceram...
- Lamento muito, mademoiselle Chambreuil, mas tem de voltar amanhã de manhã.
A minha interlocutora mostrava-se preocupada, como se o meu processo estivesse incompleto ou algum dos documentos não se encontrasse em ordem.
- Sobreveio alguma dificuldade? - indaguei a medo.
Ergueu a cabeça e examinou-me com os seus olhos de míope.
- Não, mademoiselle. Não está inscrita para hoje, simplesmente. Espero-a amanhã de manhã, sem falta. Combinado, não é assim?
Levantei-me desapontada e despedi-me de mrs. Cynthia Hapers. Que outra coisa poderia fazer?...
O começo não era auspicioso, na verdade. Havia três dias que estava em Londres e quase já sabia de olhos fechados o caminho que vai de Regent Street. onde me encontrava hospedada, ao escritório de mrs. Hapers.
A viagem decorreu sem incidente, mas choveu quase sempre. Mal pude contemplar o Pas-de-Calais e as dunas, por causa do estado do Canal da Mancha e da ondulação muito cavada. O nevoeiro ocultou-me também as penedias de Douvres e os deliciosos cottages disseminados pela costa inglesa.
De resto, também, nem as minhas preocupações, nem os meus pensamentos me deixaram apreciar a paisagem dos arredores de Londres, que são, devo dizer, muito mais sombrias e tristes do que os de Paris.
Talvez o tempo concorresse para isso, mas o facto é que cheguei aqui bastante deprimida e cheia de ideias negras.
Fui mesmo obrigada a violento esforço, a fim de dominar-me, pois sabia que estavam à minha espera em Victoria-Station.
À partida recebi pequena rodela de cartão para pregar na banda do casaco, o que me levou logo a ser reconhecida por duas senhoras de idade que, de facto, me aguardavam no cais.
Foi nessa altura que tercei as minhas primeiras armas em inglês. É espantosa a diferença que existe entre a teoria de um idioma e a sua prática. Quase possuía a licenciatura, em inglês, mas quando fui obrigada a falar, fiquei como peixe fora de água. Porém, esperava habituar-me rapidamente.
As duas senhoras conduziram-me para uma pensão familiar, escolhida e recatada. O quarto já estava marcado e a dona da pensão avisada.
No dia seguinte mandaram uma rapariguinha acompanhar-me à Agência, onde devia apresentar-me a um dos membros da família que me contratara.
A Agência de Londres tinha como directora mrs. Hapers.
Deu-me a impressão de uma solteirona rabugenta e mal-humurada e deu-me acolhimento muito diferente da amabilidade de miss Kemm.
Logo que me apresentei, fez-me o seguinte discurso, em tom seco e frio:
- vou dar-lhe desagradável notícia, miss Chambreuil. Sobreveio lamentável contratempo...
- Lamentável contratempo? - repeti maquinalmente, deveras desorientada.
- É como lhe digo - prosseguiu no mesmo tom inexpressivo, tanto mais temível porque me anunciava uma arrelia no mesmo tom com que me elucidaria sobre o horário dos comboios.
E foi assim que continuou:
- A pessoa com quem devia encontrar-se hoje. antecedeu a viagem e apareceu quarenta e oito horas mais cedo. Por acaso, encontrou aqui outra rapariga francesa que lhe agradou imenso e contratou-a imediatamente.
Fiquei aterrada.
- Sendo assim... Se bem compreendi, estou sem emprego?...
- Exactamente - concordou, rindo com gosto, como se achasse graça à minha aflição.
Mas, quase logo, acrescentou para me tranquilizar, visto os meus interesses estarem ligados aos da Agência:
- Não se assuste antes de tempo. A nossa Agência tem numerosos clientes... Não se aflija, pode ser que amanhã ou depois tenha duas ou três casas à escolha, para se colocar.
Mas esta afirmação foi feita sem grande convicção.
E aquilo durou três dias. Estava não só desanimada como aflitíssima.
Mais uma desilusão!... E o pior de tudo é que outra tomara o meu lugar e talvez me visse ainda obrigada a restituir o dinheiro que me haviam adiantado.
Bastava-me esta ideia para me fazer tremer de susto. Não me atrevi a escrever para Paris na esperança de quimérica solução. Quimérica sim, porque não seria provável encontrar outra família disposta a adiantar-me soma tão considerável como a que recebi.
Desde a última vez que tinha falado com mrs. Hapers que não conseguia dormir. Passeava no quarto durante muitas horas antes de me resolver a deitar e de manhã não toquei no substancial breakfast que me apresentaram. Vivia em constante inquietação e nem sequer me sentia com disposição para me interessar pelos aspectos de Londres, pelas esculturas da catedral de S. Paulo ou pelas colunas de S. James.
Mal deram as nove horas, seguindo o caminho que me indicaram para ir sozinha, encontrei-me na Agência, minada pela incerteza e trepidando de impaciência.
O aposento onde nos recebem é um misto de escritório e sala de espera, com cadeiras alinhadas contra as paredes.
Já se encontravam ali outras pessoas. As poltronas, ao meio da casa, estavam ocupadas por cavalheiros que fumavam e liam jornais.
Não estava habituada a frequentar agências de colocação, porque em França essas agências destinam-se unicamente para serviçais e não existe nenhuma semelhante à Aliança Franco-Inglesa. Por isso comecei a pensar que as senhoras sentadas em volta da sala eram pretendentes a lugares como eu e os ocupantes das poltronas os futuros patrões.
Como saber se não estava enganada se, até ali, nunca me tinham feito esperar naquela sala e entrava directamente para o gabinete de mrs. Hapers?
Fosse como fosse, naquela manhã estava pouca gente. Mas, como a expectativa se prolongasse, a casa encheu-se pouco a pouco.
A enorme sala sugeriu-me, de repente, a ideia de uma sala de espera... por exemplo, do aeródromo de Bourget ou da estação marítima do Havre, onde, em pequena, fui acompanhar meu tio Ernesto que partia para o Canadá.
Nestas salas, tanto como nesta, havia constante movimento, pessoas que saíam, outras que entravam, num incessante vaivém.
Por momentos, distraí-me a observar o movimento, depois, aborrecida, acabei por pegar numa revista que estava em cima da mesa e comecei a ler.
Quanto tempo passou assim?... Não poderia dizê-lo. Na realidade, nem sabia o que lia e as gravuras passavam diante da vista sem que eu as compreendesse.
Estava demasiado preocupada para poder prestar atenção à leitura. O meu pensamento andava muito longe, trabalhava incessantemente, pesando as probabilidades e os contras, enquanto olhava vagamente o espaço.
Por fim, levantei os olhos da revista e tentei voltar à realidade.
Por que razão, ao observar as pessoas que me rodeavam, notei especialmente um dos cavalheiros sentado junto da mesa central?
Foi talvez pressentimento, mas quando o meu olhar se fixou naquele homem, tive a intuição de que a sua influência no meu destino seria decisiva.
Não se parecia nada com o Príncipe Encantado, não. Os bigodes grisalhos, tipicamente ingleses, encobriam a boca de lábios delgados. Os olhos, em que só então reparei, eram sobrepujados por sobrancelhas fartas e negras; e, por fim, a calvície quase total, completava o aspecto digno e importante. Tinha toda a aparência de intendente ou mordomo de casa rica. Se me dissessem que já tinha usado suíças não ficaria admirada.
Fumava, tranquilamente, curto cachimbo, com as pálpebras semicerradas como se sonhasse, meio adormecido pelo ambiente saturado de fumo. As faces, ligeiramente avermelhadas, testemunhavam a preferência imoderada pelas carnes em sangue e pelo whisky.
Tive a impressão de que, através do nevoeiro artificial provocado pelo cachimbo, também me examinava.
Foi talvez esta impressão que me levou a notá-lo.
Senti que corava puerilmente, o que o obrigou a desviar a atenção para outro lado. Todavia, pouco depois, surpreendi-o de novo a observar-me com olhar inquisitorial.
Daí a pouco, contudo, não me prestou mais atenção e passou a olhar para outro ponto.
Por fim, soergueu-se da poltrona e, com um gesto, chamou a empregada que estava sentada à secretária.
Depois de falar com ela, esta entregou-lhe uma pasta de cartão avermelhado. Não soube bem porquê, mas tive logo a certeza de que se tratava do meu processo, porque, quando lho entregou, involuntariamente, a rapariga voltou a cabeça para mim.
Talvez se tratasse de simples coincidência, pois o estranho indivíduo acomodou-se confortavelmente e começou a consultar a papelada sem me olhar uma única vez que fosse.
Mergulhei de novo na leitura da revista, mas, de espaço a espaço, não podia deixar de relancear uma olhadela para o desconhecido.
Lia o processo com tanta atenção, demorava-se tanto tempo em cada folha de papel, que poder-se-ia acreditar que desejava decorá-las ou fotografá-las na retina.
- Decididamente, enganei-me-conclui. - Não é o meu processo. Emprega demasiada fleuma e reflexão para assunto tão simples.
Quando acabou de ler e reler todos os documentos, o sujeito poisou a pasta em cima da mesa e, enchendo o cachimbo, entregou-se a profunda meditação.
Não existia motivo aparente para que seguisse todos os gestos daquele homem e, para encontrar desculpa à minha curiosidade, julguei que era uma forma como outra qualquer de matar o tempo. Tão longa expectativa enervava e sentia-me profundamente desanimada.
As horas fugiam e via que passava mais um dia sem emprego. O que seria se tivesse de regressar a França, para recomeçar a subir o calvário das tentativas vãs, das caminhadas fatigantes quando, havia apenas três dias, partira radiante, supondo a minha vida solucionada?
Entretanto, o Inglês como que despertou da prolongada meditação.
Vi-o bater com o cachimbo na borda do cinzeiro para sacudir a cinza e levantar-se.
Pude então admirar a sóbria elegância de todos os seus movimentos. Onde teria os olhos quando o classifiquei como mordomo ou intendente de casa rica?... Possuía a linha perfeita de um gentleman e deveria reconhecê-lo à primeira vista. Orçava pelos quarenta e cinco anos, era alto, magro e de tipo caracteristicamente inglês.
Dirigiu-se à empregada e, encostando-se à secretária, falou por muito tempo em voz baixa.
De novo me pareceu que se referiam a mim, porque a rapariga se voltou diversas vezes para o meu lado, olhando-me furtivamente.
Terminada a conversa, a empregada levantou-se e acompanhou o cliente ao gabinete de mrs. Cynthia Hapers, a quem deixou a pasta vermelha.
Quando voltou a sentar-se, chamou-me discretamente com um gesto.
Aproximei-me por meu turno.
- Desta vez, pareceu-me que teve sorte - informou. - O cavalheiro que viu há pouco interessou-se por si. Quando ouvir a campainha de mrs. Hapers, entre, porque o seu destino já deve estar decidido.
Portanto, não me tinha enganado.
Mas na cena que acabava de desenrolar-se, naquela feira de mercadorias em exposição, havia qualquer coisa que me chocava intimamente.
Porém, quando tocou a campainha, pus de parte o orgulho, esqueci as minhas susceptibilidades e entrei, exibindo o meu mais cativante sorriso.
Em que ficaria tudo aquilo?...
Mrs. Hapers, ao mesmo tempo que relanceava o meu processo, dirigia-me um sorriso muito mais benévolo do que o dos dias antecedentes. Em toda a evidência, estava em melhores disposições, conquistada pela perspectiva da avultada comissão que o negócio lhe renderia e supusera perdida pelo contratempo ocorrido três dias antes, e hoje de novo ao seu alcance. Visto tudo caminhar bem, não havia razão para me mostrar má cara.
- Miss Chambreuil - começou, depois de me ter examinado dos pés à cabeça, como vitelinho que se leva para a feira - este senhor está disposto, em princípio, a levá-la para Uam-Yar... Esse solar, cujo nome se pode traduzir em francês por Grande Caverna, é habitado por sir Archibald, chefe da família Duncan.
Levantou-se e, no mapa pendurado na parede, apontou-me um ponto bem ao Norte, não muito longe da costa.
- É aqui. Uam-Yar fica situado em pleno Meeallen Fuarain - prosseguiu - ao norte dos Highlands, para lá do Loch Ness. Se chegarem a acordo, está disposta a acompanhá-lo?
Este se chegarem a acordo era sem dúvida uma fórmula como outra qualquer. Como recusar na situação em que me encontrava?... Evidentemente, o local em questão devia estar perdido num deserto, mas eu não tinha a faculdade de escolher. Além disso, confesso, o indivíduo em nome de quem fazia a proposta e o seu porte distinto influíam muito para a considerar aceitável. Assustada por súbito temor, perguntei:
- E este senhor toma a seu cargo o adiantamento que me fizeram?
- Não se preocupe com isso. Esse adiantamento passa, automaticamente, para a conta de sir Archibald
- informou mrs. Harpers, como se não se referisse ao cavalheiro presente.
No entanto, não pude deixar de notar:
- Fica um pouco mais ao Norte do que tinha calculado, mas o facto não tem importância. É provável que, durante o Inverno, tomem as providências necessárias para que a temperatura se torne aceitável, nesse Uam-Var a que se refere.
A frase foi acompanhada por um sorriso e apreciada pelos meus dois interlocutores, que baixaram afirmativamente a cabeça. O ambiente tornava-se um pouco menos frio do que no início da conversa.
- Muito bem, miss Chambreuil - continuou mrs. Hapers, sem perder tempo com preâmbulos - Tem dois dias para resolver o assunto. Entretanto, faça as suas compras e entre elas um casaco de abafar, bem forte, para não ir desprevenida se, por acaso, chover ou nevar, quando chegar a. Uam-Yar. O trajecto de carro é longo, desde já a aviso.
- Agradeço-lhe o conselho, mrs. Hapers, mas julgo possuir tudo quanto me é necessário.
- Sendo assim, tudo está bem.
Não me sentia delirante de alegria e, na verdade, não havia motivo para isso. O mais que podia fazer, era congratular-me por não ser obrigada a voltar para Paris.
- Portanto, vamos combinar, desde já, encontrarmo-nos depois de amanhã. Tem a sua documentação em ordem?
- Toda. Está aqui - respondi, tirando os meus papéis.
Examinou-os um a um.
- Está tudo bem - declarou por fim - Precisamos agora de uma dispensa para o registo civil porque, mesmo nos casamentos por procuração, a dispensa é imprescindível. Suponho que o procurador da família poderá obtê-la para amanhã.
Olhei para ela de boca aberta, sem compreender coisa alguma e sem conseguir articular palavra.
Dispensa... registo... casamento... Que história era aquela?
Por fim, consegui balbuciar, com a garganta contraída:
- Dispensa... de quê?
- De casamento!... De que havia de ser? - replicou mrs. Hapers, como se o que acabava de me dizer fosse a coisa mais natural do Mundo.
Começava a duvidar dos meus conhecimentos da língua inglesa.
Cada vez mais apatetada, protestei:
- De casamento?... Mas o meu contrato refere-se apenas ao lugar de dona ãe casa!...
- Pois é isso exactamente o que lhe exigimos, nada mais - redarguiu a minha interlocutora com a mais absoluta fleuma- Mas devemos respeitar as conveniências... E onde será mais respeitada do que na casa do seu marido, debaixo da sua protecção, não me dirá?...
Se um raio tivesse caído a meus pés não me deixaria mais estonteada...
Tudo aquilo era espantoso... inacreditável!
Nem forças tinha para esboçar qualquer protesto e a mim própria perguntava se estava acordada ou a sonhar.
Mrs. Hapers não me parecia pessoa dada a gracejos e, se falava sério, impunha-se que a desenganasse quanto antes.
- Mas eu não quero casar! -consegui declarar por fim.
Antes de mais nada, devo dizer que o cavalheiro que me tinha escolhido se conservava a meu lado e assistia à discussão muito calado, sem intervir. Não antipatizava com ele, mas daí a aceitá-lo por marido, ia grande distância. Se nem sequer o conhecia!... Quando falávamos, voltava a cabeça ora para uma ora para outra e mais nada.
Mais calma, prossegui:
- Nunca me passou pela cabeça casar com um homem a quem não conheço... alienar a minha liberdade, vender-me por duzentos mil francos!
Os mais negros pensamentos cruzavam-me o cérebro. Recordava certas histórias ouvidas em Paris, de Ingleses pouco honestos que casavam com Francesas para depois as sujeitarem aos maiores vexames.
Estremeci... não, não podia tratar-se de semelhante abominação.
A Aliança Franco-Inglesa era uma organização séria. Tomara informações na embaixada e, além disso, o homem que estava a meu lado possuía a linha de um gentleman.
- Deixemos o dinheiro de parte! -intimou, um tanto brutalmente, mrs. Hapers - Não se trata agora disso, mas simplesmente de um casamento para salvaguarda das conveniências. É tudo quanto a família Ducan exige.
- Nem por isso deixa de ser casamento! -balbuciei sem me deixar convencer.
- Que representa para si uma sorte inesperada!
- atalhou mrs. Hapers - Muito mais do que os duzentos mil francos a que há pouco aludiu. Se conhecesse bem as leis inglesas de protecção à mulher, não teria tantas hesitações... No entanto, se não lhe convém... se pretende eximir-se ao contrato, procuremos outra. Pretendentes não faltam, prontas a agarrar com mãos ambas aquilo que a miss despreza... Devolve o adiantamento que lhe fizeram, reembolsa-nos das despesas de viagem e hospedagem em Londres e pode considerar-se livre.
Fiquei, positivamente, esmagada.
Num relance, calculei quanto se impunha restituir. A viagem e as despesas feitas em Londres não representavam grande quantia. Mas o resto... o dinheiro que tinha deixado a minha mãe e, naquela altura, já gasto, pelo menos em parte! Por certo, os meus já tinham partido para o campo ou estavam prestes a partir.
Momentos antes, reagira violentamente, numa repulsa instintiva contra aquele casamento... Mas talvez fizesse mal.
Por uma questão de princípios, poderia renunciar àquilo que tanto trabalho me dera a alcançar e infligir a minha mãe tão grande desilusão?...
Num segundo, medi a minha responsabilidade... compreendi que se tornava forçoso fazer o sacrifício de toda a minha vida. Fora apanhada por uma engrenagem e tudo, mocidade, aspirações e até a própria Pátria, seria imolada nessa engrenagem.
Uma sensação glacial percorreu-me a espinha, foi como se um sudário gelado me envolvesse.
Se a morte se aproximasse não me sentiria tão angustiada, com certeza. Pressenti que ia fazer uma viagem em sentido único. Nunca mais poderia recuar, nunca mais voltaria a Paris, nunca mais retomaria o lugar no meio dos meus.
Contudo, depressa tomei a minha resolução: faria o sacrifício, iria até ao fim.
Voltei-me para o Inglês, perfilado como uma estaca. Sorria com leve ironia. Tendo percebido, talvez, que me equivocara com as propostas da Agência, achava a situação deveras engraçada.
Sem sombra de revolta - que poderia fazer ou dizer se não tinha outro dilema, se me sentia vencida ao primeiro golpe? - fiz-lhe esta pergunta, que representava, ao mesmo tempo, a derrota:
- Terei então de casar consigo?...
- Comigo? - protestou com um gesto que significava talvez: "não interfiro no assunto em coisa alguma" - Eu sou apenas o representante da família Duncan... escòlhi-a, porque preenchia as condições que me indicaram, nada mais. Entre nós, nada há de comum.
- Não é com este senhor que tem de casar explicou-me mrs. Hapers, verificando que eu não tinha compreendido muito bem - Ele representa, por procuração, o filho mais velho da família Duncan.
Cada vez melhor... Parecia uma comédia!...
Durante algum tempo fiquei calada, perplexa e perdida em singulares reflexões. Na minha pobre cabeça reinava a maior confusão. Queria ver claro na situação, conciliar as ideias e não conseguia.
Tinha sido colhida nas malhas de uma rede apertada e nunca mais conseguiria desenvencilhar-me.
Os factos e as suas consequências encadeavam-se com perfeita lógica e estava condenada a avançar, sem poder recuar, sem encontrar desculpas.
Não descrevo a cerimónia do casamento... Assemelhou-se tão pouco ao que, nos meus sonhos de rapariga, tinha idealizado, que inútil se torna repisar o assunto. O contraste entre aquilo que eu esperava que a vida me concedesse e a triste realidade foi tão grande que só de evocar esse dia o meu coração se confrange de angústia, e por isso prefiro não pensar nele. Ainda agora, parece-me que enlouqueço quando o recordo.
Atroz agitação de todo o meu ser, revolta inconsciente da minha mocidade... Como paguei cara a dura aprendizagem da vida!
Não mencionarei também as palavras trocadas bem poucas por sinal - entre o homem que me desposava por conta do outro e a desolada noiva que eu fui. Todos os pormenores desse dia me ficaram bem gravados na memória, mas gostaria que tudo isso fosse bem sepultado para sempre, porque não creio que jamais houvesse dia de casamento tão triste.
Conforme mrs. Hapers me informara, o gentleman com quem casei era apenas o representante do meu marido, que se deixara ficar no Norte e nem se dignara incomodar-se para me conhecer. E, no entanto, supunha que a aventura devia interessá-lo tanto como a mim. Cheguei a recear que fosse um monstrozinho, talvez um aleijado, que não desejasse mostrar-se se não depois dos factos consumados... ou não se encontrasse em estado de se deslocar de casa...
Uma coisa era inegável. Meu marido aceitara o casamento sem se preocupar com o meu físico, visto ser o tal sugeito que, em Londres, decidira tudo, sem pedir instruções para a Escócia...
Qual a imperiosa e misteriosa necessidade que impelira aquele homem a casar em tão estranhas circunstâncias?
Cerimónia triste... casamento invulgar!... Ainda tentei obter mais esclarecimentos pelo notário, pelo oficial do registo civil e até pelo agente da Organização, em Londres. Mas nenhum deles desmentiu a reputação de correcção e discrição que, segundo é notório, são apanágio do povo britânico.
Em resumo, tornei-me Duncan sem estar preparada para isso. Aquele período foi para mim como um pesadelo estranho e angustioso. A todo o momento esperava acordar e encontrar tudo como antes. Mas, pelo contrário, o pesadelo persistia e tudo aquilo se encadeava de modo a formar uma realidade bem evidente que se prolongaria até aos meus últimos dias.
Quarenta e oito horas depois da inverosímil cerimónia nupcial conduziram-me à estação de Euston. O comboio, que seguia ao longo da costa leste da Inglaterra, deveria conduzir-me, dezoito horas decorridas, a Lairg, para lá de Edimburgo e de Inverness. Entregaram-me um guia turístico, para que pudesse apreciar devidamente as belezas e as vantagens do Flying Ssotchman, o comboio mais rápido do Reino Unido.
O trajecto podia classificar-se de muito interessante. Infelizmente, fi-lo, na sua maior parte, de noite. Além disso, ferida em todas as fibras do meu ser, não estava em condições de me interessar pela paisagem.
Encolhida na minha cama, cuja cabina partilhava com uma inglesa velha, de Dundee, de regresso à terra natal, cerrei os olhos e tentei dormir.
Toda a gente sabe que as celibatárias abundam na Grã-Bretanha.
A minha companheira não abria a boca se não para pedir chá ao stervart oo para lhe ordenar que fechasse a janela. A sua presença não obstava a que me sentisse só e desamparada. Podia, sem receio, entregar-me às minhas reflexões, que eram das mais dolorosas. E quando o sono chegava, depois de ter repisado os diferentes aspectos da minha extraordinária aventura, soçobrava em horríveis pesadelos, dos quais acordava com o coração palpitante e a testa coberta de suor.
Nestes períodos de semi-inconsciência, o meu marido apresentava-se sob a forma de terrível gorila ou de um diabinho pavoroso, com pés de cabra, ou ainda como um polvo enorme, com dezenas de tentáculos viscosos ou uma espécie de Quasímodo, corcunda e com pés enormes.
Só depois de passar Inverness reparei que a Escócia era pitoresca, apesar de árida e agreste. Mas, perante essa paisagem sombria, sentia-me dominada pelo mais horrível desespero, como se corresse para um precipício negro... um abismo insondável onde mergulharia sem esperança de voltar à superfície. Mais esmagador do que nunca, sentia o tal sentido único pesar-me sobre os ombros...
Que situação atroz!
Cheguei a Lairg às catorze horas, com alguns minutos de atraso. Aí terminava a minha viagem em comboio, pois este não ia mais além, pelo interior, e seguiria para Dornoch, pela costa.
Na estação aguardava-me um carro, modelo antiquado, de rodas muito altas, com a carroçaria em forma de chapéu alto. Devia ser um dos primeiros automóveis, contemporâneos, talvez, do Dion-Bouton de 1908.
Era guiado por um criado velho. A única estrada para o Norte subia a direito e creio que, se me têm enviado uma carruagem em vez de automóvel, e sem cocheiro, teria chegado ao meu destino da mesma forma. Essa estrada contornava o lago Shin, em todo o seu comprimento.
Os terrenos, apertados em vales estreitos, estavam todos cultivados com pasto e semeados de pequenos lagos, estreitos e compridos, de difícil acesso por causa dos pântanos.
À direita, os pontos mais altos formavam uma espécie de planaltos escavados ou encostas arborizadas, ladeadas por precipícios e rochedos graníticos.
Ao sair do vale, a estrada trepava por uma encosta árida e deserta. Encontrávamo-nos nos Highlands ou Terras Altas, era visível.
- Ainda estamos muito longe? - perguntei ao condutor, que quase não descerrara os lábios durante todo o caminho.
E, ao verificar como aquela gente se mostrava pouco expansiva e taciturna, mais desanimada fiquei.
O criado indicou-me um ponto distante, à direita.
- O castelo fica além, por detrás daquela colina. Está rodeado por boas pastagens e campos de cultura. A região talvez seja um pouco isolada, mas é bela, de uma beleza agreste, para quem não conhece este ponto da Escócia. Acabará por se habituar e gostar de permanecer aqui o tempo suficiente para apreciar a sucessão das estações.
Tão largas explicações surpreenderam-me agradavelmente. Calado desde Lairg, o meu companheiro não me tinha habituado a semelhante abundância de palavras.
Contanto que não se arrependesse!
Para manter a conversa, perguntei:
- E para além, à esquerda?
- Terrenos militares, até ao mar. Aquela é considerada a região mais deserta e mais árida de toda a Inglaterra. Foi ali que, durante a Guerra, receberam instruções os agentes da Inteligent Service e pára-quedistas. E, segundo afirmam, é ali também que procedem a experiências de desintegração atómica.
O meu condutor mostrava-se muito ao facto do assunto. Cumprimentei-o por isso, o que o incitou a prosseguir as explicações.
Prestava toda a minha atenção à pronúncia especial e à forma como falava. Entremeava pitorescamente ao dialecto escocês, arrastado e característico, palavras gaélicas, língua de que não se encontram vestígios senão nos Highlands.
Entretanto, prosseguíamos o nosso caminho. Depois da rude subida através das florestas, abandonámos a estrada principal e metemos pela charneca.
De espaço a espaço, encontrávamos pequenos bosques, bastante espessos; depois seguiam-se verdadeiras estepes, áridas e desertas. Por vezes, o caminho atravessava pântanos e o condutor via-se forçado a guiar com cautela, a fim de que o carro não se desviasse para a esquerda ou para a direita e não saísse do carreiro.
Antes de abandonar a França tomara a precaução de me documentar sobre a região onde teria de habitar. A Alta Escócia é como imenso rochedo magnífico, formando altos picos e profundos precipícios. O Inverno prolonga-se quase durante todo o ano. No entanto, apesar de pouco fértil e das condições do clima, não existe região mais bem aproveitada e inteligentemente cultivada.
Não temos, em França, província que se pareça com a Alta Escócia. Não se encontram, nas montanhas do meu País, os vastos planaltos desertos, as charnecas incultas entremeadas com campos magníficos cultivados à força de pulso e devido à energia e constância do Homem, onde o feno e os cereais abundam, graças a um milagre que se renova todos os anos.
Os criadores de gado dedicam-se especialmente aos carneiros. Onde as vacas e os bois não encontrariam coisa alguma para comer, sabem os carneiros ou as cabras descobrir pastos maravilhosos. Matizando as colinas, vêem-se, com frequência, grandes pinhais, de um verde quase negro e sombrio. Durante seis horas esta paisagem repetiu-se, sucessivamente, em volta do carro.
A chegada ao castelo foi triste. Anoitecera e a chuva caía, uma chuva gelada e miúda que nos penetrava até aos ossos.
Envergava um dos meus mais espessos casacos e, mentalmente, agradeci a mrs. Hapers por tão generosamente me ter avisado para me prevenir com agasalhos.
Uam-Var é uma espécie de torre imensa, erguida a meio de um pátio interior, encerrado entre altos muros. Visivelmente, fora construído para suportar a guerra entre clãs e os prolongados cercos.
Impressionada com o aspecto tristonho da moradia, que mais se assemelhava a uma prisão, olhei em volta, numa sensação de terror.
A terra era glacial, o castelo sinistro e os seus habitantes retraídos e sombrios. Eis tudo quanto, naquele momento, o meu subconsciente registou.
Logo que transpus o portão, apareceu uma mulher, protegendo cuidadosamente com a mão a chama de uma vela. Em toda a evidência, a electricidade era coisa que não existia ali.
Num mau francês, mas com amabilidade, saudou-me:
- Seja benvinda, madame... está em sua casa... Mas entre depressa, por favor.
Depois acrescentou breves explicações na sua língua. Estava convencida de que sabia inglês, mas não consegui compreender uma palavra do que me dizia com volubilidade. Empregava uma quantidade de termos gaélicos para mim desconhecidos totalmente e, para mais, a pronúncia tornava ainda mais difícil a compreensão para uma pobre estrangeira.
Contava ver aparecer a família Duncan completa, mas enganei-me.
Pelo que depreendi, andavam em viagem.
O meu marido - e dizer que serei forçada a habituar-me à ideia disparatada de ter marido - o meu marido, repito, não considerara necessário estar presente quando eu chegasse para me receber.
Um casamento branco, eis como o tinham classificado na Organização... Mas, para mim, considerava-o um autêntico casamento negro!
O meu vestido de noiva deveria ter sido de luto carregado... o luto pela minha mocidade e ilusões!
A conversa com a mulher que me tinha aparecido tornava-se deveras difícil, mas, recorrendo aos gestos, acabámos por nos entender mutuamente, um pouco à maneira dos surdos-mudos.
Por enquanto, até fazer progressos no idioma gaélico, teria de me habituar àquela linguagem de gestos que, estou certa, acabaria por se tornar fatigante.
Calculando que eu estivesse cansada com a viagem - e estava de facto, mas muito mais moralmente do que fisicamente - conduziu-me ao quarto, onde pouco depois me serviram abundante ceia: carnes frias, ovos cozidos, presunto e chá... uma ceia apetitosa, em resumo.
A mulherzinha conseguiu explicar-me:
- Na ausência de sir Duncan nunca se acendem os fogões, lá em baixo e, se a tivesse servido na sala de jantar, com certeza que gelava. Calculei que preferisse ser servida no quarto.
Os princípios de economia, apanágio de todos os Escoceses, eram bem aplicados em Uam-Var, certamente. Os Duncan não constituiam excepção à regra.
Acudiam-me à memória algumas histórias de Escoceses, tendo quase todas por tema a sua proverbial avareza.
A mim própria perguntava por que milagre mrs. Hapers conseguira que me adiantassem os duzentos mil francos. Deve ser muito persuasiva e hábil, com certeza. Verdade seja que duzentos mil francos, convertidos em libras, não constituem quantia tão avultada que assuste uma fortuna britânica.
Depois da mulher ter abandonado o quarto, levando os restos da ceia, fiquei sozinha no vasto aposento que me haviam destinado e que tinha mais o aspecto de coro de igreja do que de quarto de dormir.
A fogueira que tinham ateado no enorme fogão não conseguia transmitir-me a sensação de calor, porque o ambiente não tinha intimidade.
Apaguei a vela porque o clarão do lume bastava-me e, maquinalmente, absorvi-me no bailado de sombras imensas que se reflectiam na parede do fundo.
Irresistivelmente, pensava em todas as histórias de fantasmas que escutara em criança.
Todos os castelos escoceses possuem o seu fantasma, ninguém o ignora, e cada clã tem o seu. Pobre daquele que confunde o fantasma dos MacGuire com o dos MacCallum!...
Os fantasmas também têm os seus pergaminhos. Todos sabem que vagueiam a partir da meia-noite, arrastando pesadas correntes, e que é perigoso contrariá-los seja no que for.
Os Duncan também deviam possuir um, não duvido, o fantasma de Uam-Var que não tardaria a aparecer logo que eu adormecesse, me puxaria pelos pés e me obrigaria a dizer o que fazia naquela casa.
Recordava histórias de almas do outro mundo, histórias humorísticas, para me distrair e aliviar o peso que me oprimia o peito.
Tudo em vão, porém.
Depois, a tremer, despi-me e meti-me na cama gelada, sem querer pensar no silêncio e na tristeza daquele castelo isolado.
Até então, conseguira reter as lágrimas, mas já não podia mais. Assim que me deitei, comecei a soluçar como garota medrosa que se sente abandonada por todos.
Fez-me bem chorar. Chamava mãezinha... mãezinha, como em pequena. Era na verdade ridículo, não remediava nada, mas aliviou-me!
Há quantas horas me sentia oprimida, esmagada por horrível tristeza, por uma angústia pungente, por uma confusão que não me deixava ver claro em mim!
As lágrimas rolavam-me, incessantes, pelas faces pálidas, os soluços sufocavam-me, estrangulavam-me a garganta, mas preferia aquele dilúvio à sensação opressiva que pesava sobre mim desde o minuto em que entrara no gabinete de mrs. Hapers e que, hora a hora, se ia acentuando.
Dava-me a impressão de estar encerrada num cárcere, rodeada por espesso nevoeiro, tão sombrio como aquela terra, como o castelo erguido no planalto árido e deserto.
O horizonte, para mim, apresentava-se cercado, sem esperança, sem a perspectiva de um raio de luz que o iluminasse. De futuro, estava condenada ao desespero e à renúncia. Tinha casado e a minha vida acabara!... Não conseguia habituar-me àquela situação definitiva, à sensação de vácuo.
Quando acabaria de chorar?... As minhas lágrimas deviam representar os últimos assomos de revolta, porque, na verdade, em face dos acontecimentos, tinha procedido pela melhor forma possível... Que outra coisa poderia eu fazer?
A minha consciência estava tranquila e ninguém encontraria motivo para censurar-me... ninguém! Se agi mal, só eu sofreria as consequências... ninguém mais seria prejudicado...
E assim, continuando a chorar, adormeci suavemente, sem dar por isso.
Tudo isto se passou ontem à noite...
Dormi como uma pedra. A natureza reclama os seus direitos e eu estava necessitada de repouso.
Acordei mal rompeu o dia e, impressionada com o silêncio que reina no castelo, vagueio pelo quarto.
Tenho a impressão de me encontrar em Uam-Var há uma eternidade. E, para passar o tempo, escrevo estas linhas, como se quisesse medir a situação ou fazer confidências, descrever a alguém esta invulgar aventura.
No fundo, sou obrigada a confessar, estou curiosa por conhecer os Duncan e fiquei horrivelmente desapontada por não os encontrar quando cheguei.
O processo de pôr o preto no branco e de escrever o que penso, tem sido, até hoje, infalível. Desta vez, porém, afigura-se-me que perdeu a eficácia. Porquê?... Talvez pela desorientação em que me encontro.
Sempre me considerei pessoa ponderada, sensata e normal.
Teria endoidecido ou será fantasmagoria?...
Não tarda que desperte deste pesadelo e me encontre no meu quarto, em Paris...
Os pardais chilreiam nos castanheiros da avenida... A camioneta do leiteiro acaba de passar na rua... Gastão, o porteiro, já pôs à porta o caixote do lixo e está a lavar o passeio... Oiço o riso argentino de Miguel, o filhito do sapateiro. Fez dois anos, esta manhã, e sorri para a vida...
Miragens, todas estas reminiscências, pobre de mim! A minha sorte está lançada e encontro-me na Escócia.
Batem à porta.
Abri e encontrei-me em face de uma rapariguita loira e robusta, com um tabuleiro na mão. Deve ser filha da mulher que ontem me recebeu.
- Bons dias, madame Duncan.
- Bons dias.
- Venho trazer o almoço a Vossa Graça.
É engraçado ouvir tratarem-me por Lady Duncan. Talvez esteja de mau humor, mas não me sinto lisonjeada.
A rapariga poisou o tabuleiro e, ao lançar-lhe os olhos, verifiquei quanto as emoções me tinham enfraquecido.
O almoço era suculento: as inevitáveis carnes frias, ovos com bacon, chocolate, mel, torradas e marmelada.
- A minha mãe destinou-me para o serviço de Vossa Graça - elucidou a rapariga - Quando ordenar, irei mostrar-lhe a casa. Sir Duncan recomendou-nos que puséssemos Vossa Graça ao facto de todos os pormenores de Uam-Var, porque, de futuro, é Vossa Graça a verdadeira senhora da casa e a mamã Bertrand ficará debaixo das suas ordens.
- Quem é a mamã Bertrand? - perguntei.
- A governanta de Uam-Var, que todos aqui tratam por boa senhora. Trata-se de minha mãe, Lady Duncan.
Não me tinha enganado. Entre a rapariga e a mulher que, na véspera, me havia recebido, existia um ar de família bem evidente. Mas nos olhos da filha pairava uma expressão de ansiedade, de sonho e de nostalgia que não vira nos da autora dos seus dias.
- É sua mãe? - comentei, sorrindo-É muito amável e simpática... E o seu pai, também vive aqui?
- Para servir Vossa Graça... e o meu irmão Guilherme também.
Enquanto não me habituar, sempre que oiço chamarem-me Vossa Graça dá-me vontade de rir.
Nestes últimos tempos tenho vivido como que em sonhos. Tudo quanto se passou: o anúncio, a Aliança Franco-Inglesa, a viagem, mrs. Hapers, o casamento, a travessia da Inglaterra, a chegada a Uam-Var, tudo me parece como um conto, um romance, aventura cuja heroína é outra pessoa e de que estou ao facto por ma terem contado. Mas quando me tratam por Vossa Graça, é como se obtivesse a prova tangível do que me acontece.
- Há mais criados em Uam-Var? - perguntei de novo.
- Além do Caleb, criado particular de sir Archibald, não há mais ninguém. Os dois senhores novos, sir Edward e sir Michael, não têm criado particular e contentam-se com os serviços de meu irmão Guilherme.
Estremeci ao ouvir o nome de Edward, por ser o que mencionava a certidão de casamento.
Mentalmente, fiz exame de consciência e fiquei impressionada com os meus reflexos.
Porque motivo estremeci eu?... Que importância tem para mim o facto de meu marido se chamar Edward?... É uma palavra sem sentido, visto ter ficado estipulado que o casamento não passaria de simples formalidade para salvaguardar as conveniências e que nunca serei mais do que dona de casa em Uam-Var. Nada mais do que isso!... E, no entanto, sinto que sir Edward é a única pessoa que me interessa conhecer entre os habitantes do castelo.
Não devemos, porém, atribuir às palavras maior importância do que merecem, nem sermos suas escravas. O casamento realizou-se pela força das circunstâncias e não se reveste de outra significação mais do que a de ser uma espécie de máscara afivelada pelas conveniências sociais, mundanas e de família.
Por várias vezes mo acentuaram.
É preciso ser-se Latina, Francesa e romântica, ter ainda certas ideias antiquadas como eu, para estremecer quando oiço o nome de Edward.
Ponto final nas tolices e voltemos à realidade.
- Fale-me dos filhos de sir Archibald Duncan pedi à rapariga em tom despreocupado e indiferente.
- São dois rapazes que apreciam muito a caça e vivem todo o ano em Uam-Var.
- O quê?... Nunca saem daqui?...
Fiz a pergunta tão bruscamente que a criadita ficou assustada.
Era natural que desejasse conhecer as pessoas com quem ia viver e de quem ignorava tudo. Mas saber que costumavam passar, praticamente, todo o ano nesta charneca rude e triste, não foi notícia das mais agradáveis.
- Há muito trabalho aqui - elucidou a rapariga.
- A propriedade é enorme e o senhor de Uam-Var não gosta de ver os filhos à boa vida...
Bonita perspectiva, não haja dúvida!... Continuei a conversar no intuito de obter mais pormenores sobre os dois rapazes.
A criadita - disse-me chamar-se Catarina respondia às minhas perguntas, mas sem entrar em particularidades, como se tudo quanto se relacionasse com a vida íntima dos senhores de Uam-Var fosse considerado sagrado para ela.
Conheço a repugnância que todo o Inglês tem por
desvendar aos outros aquilo que chama o santuário da sua vida particular, e não insisti.
Para mais, não conseguia obrigá-la a falar-me mais de Edward do que de Michael.
A minha legítima curiosidade também não foi satisfeita quando, mais tarde, discretamente, abordei o mesmo assunto com mrs. Bertrand. Descobri que, em conversa, trata familiarmente os dois rapazes pelos diminutivos de Neddyc e Mikayn. São talvez palavras gaélicas, mas a minha competência linguística não abrange esse idioma e, para mais, não me adianta coisa alguma acerca dos dois filhos de sir Archibald. No entanto, de futuro, terei de me habituar a esses diminutivos.
A minha tarefa, hoje, consistiu em visitar todos os aposentos do castelo, incluindo os alojamentos do pessoal. Mrs. Bertrand não se esqueceu de uma única gaveta ou armário. Fui forçada a ver tudo.
Passámos revista aos lençóis, às toalhas e até aos panos da loiça, empilhados nas prateleiras. Depois, seguiram-se os boiões de compota e as caixas de conservas, fechados na despensa. Visitei os sótãos, as caves e a adega. Em resumo, foi um dia extenuante, tanto mais que fiquei com a cabeça confusa de tantos números que me mencionou.
À noite, conversando com a governanta, perguntei:
- Que necessidade tenho eu de estar ao facto de" todas estas coisas?
- Foi sir Archibald quem assim o ordenou. Vossa Graça deve conhecer bem todos os cantos da sua casa e os recursos de que dispõe.
Calculei que tinha despertado na governanta um complexo de ciúme e que a minha vinda para o castelo a magoava bastante. E então inquiri:
- Mas não tem sido mrs. Bertrand quem, até hoje, se tem ocupado com essas coisas?...
- Evidentemente - concordou - e continuarei a ocupar-me, se Vossa Graça permitir que a auxilie.
Alegrou-me a perspectiva e afirmei-lhe que não poderia passar sem a sua colaboração. Sorriu, satisfeita, mas insistiu:
- Foi uma ideia de sir Archibald e não podemos contrariá-lo.
Esta forma de falar no patrão não me augurou nada de bom. Calculei logo que fosse despótico, autoritário, maníaco, irritável, amigo de esmiuçar, em resumo, insuportável.
- Quando regressa sir Duncan? - indaguei.
- Talvez para o fim da semana... ou daqui a oito dias. É difícil calcular, porque, quando vai para a caça com qualquer vizinho, nunca se sabe quando volta. Depende dos convites que recebe, enquanto está fora de casa.
Esta explicação rasgou-me horizontes que nunca encarara e que me deixaram positivamente indignada.
Pois quê!... Não só não se dignaram comparecer ao casamento, considerando como suficiente fazerem-se representar numa tão solene cerimónia por um indivíduo qualquer, não só não se julgaram na obrigação de me receberem pessoalmente quando cheguei, mas ainda por cima se ausentaram e foram divertir-se a caçar, por tempo indeterminado!
De repente, porém, toda a minha indignação se desvaneceu e considerei a minha insignificância. Quem era eu, afinal?... Lady Duncan ou não, no fundo, não passava de uma dona de casa, quer dizer, uma governanta, pouco mais do que uma criada. Pagam-me para desempenhar este papel, fizeram-me considerável adiantamento, dinheiro de que tinha a mais urgente necessidade e, apesar das estranhas cláusulas do contrato, estou aqui, cumprindo rigorosamente o meu compromisso, da mesma forma que eles cumprem, pontualmente, o seu.
Que direitos tenho eu para exigir mais do que isto?... Para que estou a quebrar a cabeça com considerações, despeitos e indignações completamente deslocadas? A minha insignificante pessoa e o meu amor-próprio não contam no pacto bem simples e claro que aceitei.
Num tom, voluntariamente despreocupado, comentei a ausência da família Duncan nestes termos:
- Verifico que a ausência dos patrões não impede que o castelo continue de pé e o vento sopre do lado que lhe apetece.
A governanta achou graça a isto e riu com gosto.
- Evidentemente - respondeu. - Estou em Uam-Var há trinta anos e tanto eu como o meu marido conhecemos bem o domínio.
- É uma tarefa importante e de responsabilidade! - observei com admiração por forma alguma simulada. - As terras cultivadas devem ser imensas.
- Sim, a responsabilidade é grande, como diz concordou, consciente do seu trabalho - porque assumimos também a do pessoal.
- Pessoal!... Existem mais criados em Uam-Var, além da família Bertrand?...
- Pois claro. De nós dependem os trabalhadores do campo que contratamos, conforme as necessidades da época.
Calou-se por momentos e depois acrescentou:
- Vossa Graça pode estar sossegada... porque não tem que se preocupar com tudo isto.
Ao mesmo tempo, relanceava-me uma olhadela ligeiramente irónica.
A extenuante visita à casa teve, pelo menos, uma vantagem. Num só dia fiquei conhecendo todos os cantos de Uam-Var e todos os pormenores caseiros. Soube, por exemplo, que coziam pão um dia por semana e que, nos restantes, se comia duro; explicaram-me que usavam beber pale ale, stout e cidra e que o vinho estava reservado apenas para os dias festivos.
Em compensação, o scotch, o gin e o cherry, assim como o Porto, estavam, em princípio, à disposição de todos.
Cheguei à conclusão de que representava uma espécie de tradição da família Duncan vigiar cuidadosamente tudo quanto saía da adega ou da cozinha e assentar, com a mais escrupulosa exactidão, todas as despesas da casa.
As virtudes mais em destaque desta respeitável família eram, sem dúvida, desde os tempos remotos, a parcimónia e a regra.
E, nesta particular ordem de ideias, comecei a duvidar da minha competência.
Não esqueço que, num tempo que por certo bateu todos os records, delapidei com espantosa habilidade a pequena fortuna dos meus.
A família Duncan regressou decorridos quatro dias.
Intimamente, sentia-me um tanto ofendida com a demora, considerando-a uma falta de atenção para comigo; mas esses quatro dias, que foram para mim exactamente iguais ao primeiro, permitiram-me conhecer melhor o castelo e aqueles que lá viviam. Tão bem que, no quarto dia, quando os caçadores regressaram, estava senhora da situação e com a impressão - impressão unicamente - de que toda a minha vida exercera aquele lugar e já conhecia os costumes escoceses em todos os seus pormenores... talvez pensasse que não me restava coisa alguma para aprender e que podia falar com conhecimento de causa de tudo quanto dizia respeito ao domínio.
Vi-os chegar, da janela do vestíbulo, com o seu equipamento, montados nos cavalitos shetlanãs, os poneys destas regiões nórdicas, os animais mais resistentes e indicados para esta terra montanhosa e semi-selvagem.
As bolsas de caça, bem recheadas, pendiam-lhes no peito.
Logo que entrou no vestíbulo e me viu, Sir Archibald voltou-se para mim, enquanto Caleb e Guilherme o libertavam, assim como aos filhos, das armas e das bolsas.
Os seus olhitos pequenos fixaram-me com acuidade.
As feições, que pareciam talhadas a machado, os cabelos brancos e ralos, o aspecto robusto e musculoso, assemelhavam-no um pouco aos shetlands que acabavam de recolher nas cavalariças.
Examinou-me dos pés à cabeça com ar satisfeito, alegre e conhecedor.
- Viva!... Bons-dias, minha filha!... Estou falando com a minha nova dona de casa, não é assim?
Sentindo pesar sobre mim aquele olhar profundo, corei até à raiz dos cabelos, porque me deu a impressão de ser um objecto em exposição ou cobaia destinada a vivissecção.
Falava-me como se me conhecesse desde pequena e com a maior naturalidade.
- De facto, sou Cristiana Chambreuil - respondi com a maior calma possível, tentando falar num tom natural e indiferente.
- Belo!... Aperte esta mão... seremos dois bons amigos, segundo espero!... Aqui tem os meus rapazes
- acrescentou, designando com a mão e sem voltar a cabeça para o ponto onde sabia encontrarem-se os dois filhos, perfilados e constrangidos. - Agora vamos festejar a sua chegada, gentil francezinha, e o nosso conhecimento. Dê as suas ordens nesse sentido, senhora dona de casa, e prepare-nos um jantar apetitoso e interessante.
Falava com patriarcal afabilidade, mas com indiscutível autoridade. Tornava-se evidente que não seria muito agradável contrariá-lo nem levantar obstáculos aos seus desejos.
Inclinei-me ligeiramente, ao mesmo tempo -que relanceava uma olhadela para os dois rapazes.
Não tive tempo para os observar. Pareceu-me, no entanto, que um deles era loiro, sisudo e alto e o outro, de estatura média, moreno e vivo. Qualquer deles devia ultrapassar bem os vinte anos.
Era característica a forma como escutavam o pai, com respeitoso silêncio, deferentes e submissos, prontos a obedecer-lhe, sem se ofenderem com o tom levemente condescendente que tomara para indicar-lhes a presença, como se os considerasse a ambos como dois zeros ou pouco mais.
Qual deles seria o Edward... qual deles o Michael?...
Não traziam o nome escrito na testa, mas como o loiro era mais alto do que o irmão, deduzi, puerilmente, ser ele o mais velho e em consequência - não sei também porque cheguei a essa conclusão - o Edward, mencionado na certidão de casamento,
De resto, que importância teria isso para mim?... Dadas as circunstâncias, nenhuma!
Queria convencer-me disso e também de que a minha curiosidade se tornava inútil e era imprópria.
Para afugentar tão disparatados pensamentos, corri para a cozinha, considerando que o mais urgente seria conformar-me com as ordens do dono da casa e dedicar toda a minha atenção à preparação do jantar.
Encontrei a governanta sorridente e perfeitamente calma.
Já não era cedo, mas devia estar habituada a festejar o regresso do patrão, pois não se mostrava por forma alguma preocupada com o facto de ter de improvisar um jantar festivo em tão pouco tempo. Sim, porque começava a anoitecer, depois de um dia seco e frigidíssimo, e a refeição devia ser servida daí a pouco, pois os caçadores vinham cansados e cheios de apetite.
- Vamos fazer um cozido de carneiro - explicou - com geleia de groselha. Posso acrescentar haddhock com puré de ameixas secas.
Semelhante ementa deixou-me petrificada. Em primeiro lugar, detesto bacalhau, seja ele fresco ou salgado. Sempre o considerei como comida de jejum, própria para Sexta-feira Santa. E naquele dia não era Sexta-feira Santa, pelo contrário, pensava-se em festejar o regresso dos donos de Uam-Var.
Quanto ao cozido de carneiro, servido com geleia de groselha, pensava que era preciso nascer ao norte de Dundee para gostar de semelhante petisco, no que me enganava, como depois tive de reconhecer.
- Será forçoso servir haddhock? - perguntei, timidamente.
- Se prefere outro peixe, também tenho carro.
- Carro?... Que peixe é esse?
Olhou para mim, sorrindo da minha ignorância. Devia considerar-me talvez, estúpida e vaidosa, mas não estava na minha mão evitá-lo.
- O carro - explicou-me com paciência - é uma espécie de truta que se pesca com rede, nos rios da Escócia. O meu filho Guil, esta manhã, pescou o bastante para comermos excelente fritada.
- Pois então prefiro o tal carro - acedi, radiante. Não conhecia o sabor do peixe, mas estava disposta a todos os sacrifícios para evitar o bacalhau.
- Quanto ao carneiro, não acha que seria preferível assá-lo no forno?
Olhou-me com espanto, como se eu tivesse sugerido a coisa mais inverosímil.
- Que ideia!... com certeza nunca provou carneiro cozido com bastante sal e especiarias!...
Perante a sua indignação, bati em retirada.
- Sendo assim, faça como entender. E quanto à sobremesa? julgo que também já tem a sua ideia concluí, renunciando a qualquer iniciativa.
- Tenho, de facto. Salvo se Lady Duncan deseja ensinar-me a fazer algum dos afamados doces franceses...
Tanta amabilidade sensibilizou-me, mas, em face da forma como tinham sido recebidas as minhas sugestões, todo o meu entusiasmo esfriara...
Talvez mais tarde...
Consultei o meu relógio de pulso.
- É tarde para isso - declarei. - Deixo-lhe carta branca, Mrs. Bertrand. Tenho mais confiança nos seus talentos culinários do que nas minhas modestas habilidades. Mas agradeço-lhe a ideia e, de tempos a tempos, sentir-me-ei satisfeita se quiser aprender alguns pratos franceses.
Saí da cozinha e passei à sala de jantar a fim de verificar se Catarina tinha posto a mesa como devia ser e segundo os usos da casa. Porque, neste campo, como no outro, eu não podia introduzir modificações.
Em Uam-Vàr tudo girava como maquinismo bem afinado e lubrificado e se, nessa noite, puseram pratos para doce em cima dos pratos para fruta, podia considerar-se como excepção; e se saíam dos moldes da mais estrita economia que constituía regra absoluta da casa, era unicamente para festejar o regresso dos senhores do castelo.
Em sua honra, também, acenderam os fogões do rés-do-chão, que até ali tinham conservado apagados.
Parecia tudo tão bem pautado, segundo um código, sem modificações possíveis, com regras estabelecidas havia muitos anos, que não havia lugar para a mais pequena fantasia ou iniciativa.
E a mim própria perguntava para que estava eu ali... para que desejavam eles uma dona de casa, se tudo estava meticulosamente regulado desde os tempos mais remotos?...
Para manter a ordem e vigiar que não fugissem às regras, Mrs. Bertrand chegava e, indiscutivelmente, cumpria a sua tarefa a contento de todos.
Quanto ao resto, dado o carácter tradicionalista desta existência sedentária, com certeza se morre de aborrecimento em Uam-Var. Uma rapariga como eu, por certo, acabará por estiolar e morrer lentamente neste ambiente pesado, debaixo deste céu inclemente. Deus me perdoe, mas nessa noite tudo me era indiferente e tanto me importava que Catarina pusesse as facas à direita como à esquerda.
Devo reconhecer que, como dona de casa, deixava muito a desejar e a minha indiferença pelos assuntos domésticos era a melhor prova disso. Devia preocupar-me com os mais pequenos pormenores desse primeiro jantar, e pelo contrário, não me importava com ele para nada.
No entanto, outra coisa me preocupava e muito... Mas qual?...
Para ser sincera comigo mesma, embora não tivesse a coragem de o confessar abertamente, naquele dia uma coisa constituía o alvo dos meus desejos e pensamentos: saber qual dos rapazes era Edward Duncan. Seria o loiro, alto, ar sério e, porque não dizer, bonito rapaz?... Ou seria o moreno, baixito e que dava a impressão de ser o mais novo?
Por muito que repetisse a mim própria que tudo aquilo era absurdo e inepto, que a minha curiosidade não tinha razão de ser e se tornava perfeitamente inútil, não conseguia ser senhora dos meus reflexos. E não havia para mim coisa que me merecesse mais atenção e considerasse mais urgente, mais vital e mais essencial do que descobrir qual dos dois era Edward... o meu marido!
Porquê?...
Não daria importância demasiada ao caso?... Não estava farta de saber - visto ser essa uma das condições do contrato - que o meu casamento representava uma comédia para a sociedade e que Edward nunca seria para mim verdadeiro marido?
O pouco que tinha observado sobre os dois rapazes fazia-me desejar - e nem eu própria saberia explicar porquê - que Edward fosse o loiro. Fosse ou não fosse, eu não podia, decentemente, perguntar a qualquer dos da casa e visto ninguém parecer disposto a esclarecer-me, continuaria por muito tempo sem satisfazer a minha curiosidade, na maior das perplexidades.
Chegara a este ponto das minhas reflexões, ao mesmo tempo que diante do espelho do meu quarto, acabava de me vestir para o jantar, quando bateram à porta.
Era Caleb, o criado de quarto de Sir Archibald Duncan.
- Milorde pede a Vossa Graça para ir falar-lhe
- disse, num esforço insólito para se me dirigir em mau francês. - Encontra-se no gabinete de trabalho... a salinha contígua à biblioteca.
- vou já.
Acedi imediatamente aos desejos do senhor de Uam-Var, pois que, estava certa, ele não gostava de esperar. Desci a escada no estado de espírito de um estudante que comparece ao exame.
O coração palpitava-me com alvoroço e atravessei a biblioteca em passo hesitante.
Por muito que tentasse acalmar-me, não podia negar que estava com um medo horrível.
Por fim, resolvi-me e bati à porta da salinha.
- Entre - respondeu uma voz.
Sir Archibald Duncan encontrava-se sentado diante de uma secretária de carvalho maciço e, quando entrei, mais uma vez me mediu dos pés à cabeça com olhar inquisitorial.
Na verdade, não gostava nada de ser apreciada assim.
Finalmente, com extrema delicadeza, designou-me uma poltrona.
- Sente-se, minha filha - pediu com benevolente sorriso. - Espero que tenha feito boa viagem, que não tenha sofrido muito frio e encontrado bom acolhimento ao chegar aqui, embora não me fosse possível estar presente nesse dia.
Tudo isto foi dito no mesmo tom de requintada correcção.
Lamentava não ter estado em casa para me receber, dando-me a entender que o facto fora independente da sua vontade e nada mais. A frase não significava uma desculpa.
Desculpa! Esta palavra que me acudiu ao pensamento fez-me sorrir intimamente.
De uma maneira geral, o meu interlocutor não devia estar habituado a apresentar desculpas fosse a quem fosse e muito menos a uma rapariguita como eu. com certeza que foi coisa que nunca lhe passou pela cabeça.
- Fui recebida com todas as atenções. Agradeço-lhe, Sir Archibald.
Afligia-me atroz complexo de inferioridade, para o qual não encontrava justificação. Tentei dominar-me, fazer face à situação com toda a dignidade que as circunstâncias exigiam.
- Sei que deu as suas ordens a esse respeito - prossegui - e de novo lhe agradeço ter pensado em mim.
Não mentia, mas não lhe disse, porque, por certo, não me compreenderia, que, desde o primeiro minuto que entrara naquela casa, me sentia moralmente regelada, rodeada por um ambiente glacial.
Se lhe tivesse comunicado esta impressão, tê-la-ia tomado, com certeza, por uma patetice feminina, por uma deformação romântica, tipicamente latina.
- Sou eu quem lhe agradece ter aceitado entrar na minha família - retorquiu.
Esta frase inicial surpreendeu-me agradavelmente.
- Desejo que o governo da casa fique absolutamente entregue nas suas mãos. Acima de tudo, quero que seja em toda a Escócia a dona de casa mais bem estabelecida na sua situação. Creio que é esse o verdadeiro papel de toda a mulher sensata e honesta.
E, visto que está disposta a desempenhá-lo, pretendo que o desempenhe sem restrições.
- É esse também o meu maior desejo - respondi, um tanto atrapalhada.
Pressenti vagamente que, no desejo que acabava de exprimir de me colocar no primeiro lugar, como senhora absoluta da casa, a minha pessoa não influia. O orgulho de Raça, os preconceitos de família também deviam pesar muito.
Mas, além destes motivos, deviam existir outros mais poderosos, um sentimento oculto que eu não podia adivinhar e dava a este casamento estranho e ao meu papel de dona de casa o seu verdadeiro carácter absurdo.
Até ali ainda não medira bem, em toda a consciência, quanto esta história saía da lógica, da realidade e das normas correntes. Naquela altura, porém, compreendi que o meu lugar oficial não era mais do que um pretexto, um conto da carochinha.
Absorta nas minhas reflexões deixei de lhe dar atenção e foi preciso que repetisse duas vezes a mesma pergunta para o ouvir:
- Instalaram-na no quarto vermelho?...
- Exactamente, Sir Archibald.
- Mostraram-lhe o castelo de cima abaixo?... Os campos que o rodeiam... todas as construções que constituem o domínio de Uam-Var?...
- Julgo que não ficou coisa alguma por visitar. Na realidade, sabia muito mais do que desejava deixar perceber.
Antes de me pôr a caminho, durante as quarenta e oito horas que me tinham concedido em Londres, levara o meu escrúpulo a documentar-me, conscienciosamente, sobre os usos e costumes da terra onde ia viver. Interroguei também o pessoal da Agência, pedindo-lhe pormenores, tendentes a verificar se as informações que me tinham dado eram exactas.
E, quanto à vida familiar das casas escocesas, sabia o mais que era possível saber para compreender a sua psicologia - de uma forma geral - e conhecer os porquês e os comos da sua maneira de proceder.
A sua música podia considerar-se pouco maviosa e os instrumentos limitavam-se quase exclusivamente à gaita de foles, que apreciavam com paixão. Em todos os clãs, o piper - gaiteiro - era considerado personagem importante.
Sabia estas coisas e muitas outras, mas por uma forma abstracta e teórica. Em consequência, não fiz alarde dos meus conhecimentos a Sir Archibald.
Calculava que todos estes costumes tinham passado à História, embora restassem vestígios deles nos hábitos actuais.
O pouco que sabia ou adivinhava da família Duncan, com o primeiro contacto, dera-me uma impressão, conquanto latente, difícil de precisar e quase imponderável, que confirmava esta opinião.
Como é de prever, não deixei adivinhar nada do que sentia ao chefe do clã, confinando-me numa atitude da mais perfeita submissão, persuadida de que era a única compatível com a minha situação presente.
Portanto, quando Sir Archibald me perguntou, aludindo aos usos e costumes de Uam-Var:
- Segundo espero, já teve tempo de se pôr ao facto de tudo?...
Confirmei com um gesto de cabeça e respondi:
- Julgo que interpretei bem os seus desejos, Sir, e nestes poucos dias procurei ficar o mais possível ao corrente de todos os encargos inerentes às minhas funções.
- Sendo assim, está bem - retorquiu Sir Archibald, manifestamente satisfeito com a resposta. Congratulo-me com isso porque, em breve, teremos convidados e desejo que todos admirem o cunho de elegância francesa - sem contudo perderem as características escocesas - das nossas recepções.
Sorri ao escutar esta frase pretenciosa, mas, para ocultar esse sorriso com aparente aquiescência, baixei a cabeça.
O cunho elegante e francês sem perder as características escocesas, afigurava-se-me muito difícil de obter em Uam-Var e, para ser sincera, tenho de dizer que considerava o desejo de Sir Archibald puramente platónico.
Os salões enormes, gelados e denegridos pelo fumo. não me pareciam susceptíveis de se tornarem elegantes, conforme o gosto francês, e, para mais, dado o que eu já conhecia dos gostos ancestrais daquela gente. Mas, enfim, visto o senhor de Uam-Var, implicitamente, me autorizar a introduzir modificações na austera moradia, ia tentar.
E, retrospectivamente, envergonhei-me do sorriso trocista pouco antes esboçado.
Vendo bem, tudo quanto Sir Archibald acabava de dizer era inspirado por um sentimento de simpatia e testemunhava o desejo de me ser agradável, desejo que me sensibilizava.
Estranha pretensão a de modificar ao gosto francês aquela casa que, provavelmente, se conservara sem mudança desde a época de Macbeth ou do rei Duncan. No fundo, era muito lisonjeiro para mim. E o facto de terem ido procurar dona de casa a Paris, embora me deixasse perplexa, podia considerar-se, ao mesmo tempo, um sintoma favorável.
Após estas reflexões, passei a olhar Sir Duncan com maior indulgência e compreensão.
Nessa altura, a sineta soou, chamando-nos para o jantar.
- Vamos então para a mesa - comentou ele. Veremos se o jantar que nos preparou está perfeito... e saboroso.
Fiz um trejeito receoso, não desprovido de vergonha, quando pensei que não tinha contribuído em coisa alguma para a preparação do jantar.
E, em voz pouco firme, confessei:
- O tempo escasseava para apresentar pratos novos e limitei-me a aceitar as sugestões de Mrs. Bertrand.
- Vejo que Mrs. Bertrand a secunda - comentou, sorrindo.
- E secundará por muito tempo, Sir! - afirmei com convicção.
- Agrada-me a sua modéstia, minha filha! Mas
- continuou com benévolo sorriso que não devia iluminar muitas vezes aquela face pergaminhada, o que o tornava mais simpático - tem de pôr de lado o Sir. E, visto eu chamar-lhe minha filha e como tal a considerar, trate-me também por pai, como fazem os meus filhos. Por mim, hei-de tratá-la muitas vezes por Christie... é um nome que me agrada.
Intimamente, fiquei comovida com esta agradável atitude. Colocava-me, oficial e familiarmente, no mesmo pé que os filhos e isso estabelecia entre nós uma aproximação que nem sequer me passara pela cabeça uma hora antes, quando assistia à sua chegada, e o vira entrar no vestíbulo carregado de caça e da espingarda.
O meu demónio familiar, o demónio da curiosidade, impeliu-me, como já tinha acontecido muitas vezes nos dias precedentes e no decorrer da cena que nos colocara os quatro face a face pela primeira vez na vida. Sem reflectir e persuadida de que o meu interesse se tornava legítimo e lisonjeava o seu orgulho de pai e de chefe do clã, declarei:
- Combinado, pai, farei como deseja. Mas não lhe oculto que estou ansiosa por conhecer o Edward.
A resposta não demorou, tão inesperada como própria para atrapalhar a rapariga mais segura de si:
- Para quê? - retorquiu tranquilamente, com toda a calma e sem que um só músculo da face se contraísse ou deixasse adivinhar o que pensava.
- Não pensa, por certo, que entre ambos possa existir convivência... pelo menos por enquanto.
Fiquei como sufocada, incapaz de responder e as faces tornaram-se-me de fogo.
Qual a conclusão que tirava da minha frase... qual a interpretação que dera às minhas palavras?...
Não sabia, nem podia compreender.
Talvez a reputação de leviandade que, muito injustamente, atribuem às raparigas francesas, influísse na resposta... Sendo assim, tornava-se difícil de explicar o motivo que o levara a procurar, justamente, uma Francesa para o lugar que me atribui.
E o mais terrível em tudo isto não era a resposta. Se eu fizesse uma análise fria e profunda ao meu subconsciente, se procurasse bem, não podia garantir que, lá muito no fundo, não vivesse um sentimento oculto, que nem a mim própria confessava, bastante similar àquele de que, gratuitamente, o velho me suspeitava.
Como se quisesse precisar a sua maneira de pensar, ele continuou:
- Penso que entre os dois não deve existir qualquer laço, por enquanto. Contratei-a e está aqui para ser dona de casa em Uam-Var. Por agora, é esse o seu papel.
Nem forças tive para lhe responder porque a surpresa me tolhia a voz. Que significava aquele por agora tão sibilino?...
Recordava também a ironia expressa na frase: Não pensa, por certo, que entre ambos possa existir convivência...
Não, nunca semelhante pensamento me passara pela cabeça... conscientemente, pelo menos.
No meu desejo de conhecer Edward Duncan não havia maldade.
Era tolo, o velhote!
Naquela casa, onde me tinham distribuído uma tarefa bem definida, em relação com o nome e com o título concedido, afigurava-se-me normal o desejo de conhecer o companheiro, imposto no estranho casamento realizado em Londres, o homem enigmático, que nem sequer considerara da mais elementar delicadeza estar presente no dia da minha chegada, como se, para ele, eu fosse uma coisa qualquer e não uma pessoa... uma coisa insignificante e sem valor.
Que história seria aquela?... Tanta tolice, para quê?
Por muito que me tivessem insinuado que o casamento não tinha valor, que se tratava de simples formalidade, o tal Edward não deixava de ser meu marido! Nesse ponto, não podiam haver dúvidas, nem admitir brincadeiras.
Quanto mais reflectia, mais me convencia de que em tudo aquilo existia qualquer coisa de obscuro, que soava falso. Não possuía, era evidente, elementos que me permitissem resolver o problema. Mas, dadas as reacções que, involuntariamente, eu tinha provocado, compreendi que não era aquela a melhor ocasião para pedir esclarecimentos ou fazer perguntas. Indiscutivelmente, deixar-me-iam na incerteza, salvo se não me fechassem a boca com uma resposta desagradável ou brutal.
Enquanto me entregava a estas reflexões, encaminhava-me com Sir Archibald para a sala de jantar.
Edward e Michael já se encontravam encostados ao fogão. Havia ainda terceira pessoa, um homem dos seus trinta anos, cabelos ruivos, faces avermelhadas, o tipo característico dos Escoceses, tal como os estrangeiros os imaginam pelas narrativas dos jornalistas e viajantes. O dono da casa apresentou-mo, com os modos frios e autoritários que lhe eram peculiares:
- Sir Artur MacLean, um dos nossos melhores amigos que costuma dar-nos o prazer de vir jantar connosco quando regressamos da caça.
Falava com a maior naturalidade, como se a nossa conversa anterior não tivesse tido lugar.
- Disseram-me - continuou - que anda por estas paragens um bando de raposas que tem causado grandes estragos. Temos de pensar em abatê-las.
Expressava-se com o tom dominador que lhe era habitual, com essa atitude orgulhosa que eu supunha ser inata e da qual ele nem sequer parecia aperceber-se. Não devia ser muito conveniente contrariá-lo. O hábito de mandar é um dos que mais se arreiga e do qual os homens sentem maior dificuldade em se libertar.
Estendi a mão ao homenzinho ruivo, que se curvou com deferência.
- Vamos, minha filha, faça as honras da mesa
- sugeriu Sir Archibald com a sua voz autoritária Sente-se na minha frente e dê a direita a Sir Artur MacLean. É o melhor rapaz que conheço e tenho a certeza de que, quando se conhecerem melhor, o acolherá em Uam-Var com o maior prazer. Não calcula a quantidade de anedotas que ele sabe...
Sorri-lhe com amabilidade e o jantar começou. Recordo os mais pequenos pormenores desta primeira refeição; ficaram-me gravados na memória com extraordinária precisão, embora o pensamento me vagabundeasse e se perdesse em reflexões de toda a espécie e considerações de natureza bem diversa. Por exemplo, não me lembro de uma só palavra da conversa que se travou, mas vejo ainda, ponto por ponto, a forma como o jantar foi servido.
Começaram por beber razoável quantidade de whisky e depois serviram-nos a sopa.
Já na véspera a tinha provado. Era feita com cabeça do carneiro, muito bem cozida e cujos miolos e carne, esmagados ou cortados em bocadinhos miúdos, nadavam no caldo. Infelizmente, excepto assado e talvez guisado, nunca gostei de carneiro ou borrego. Quanto mais cozido!...
Em vista disso, mal provei a mirabolante sopa à qual não estava habituada. Os outros convivas, pelo contrário, pareciam achá-la deliciosa.
Os carros - os tais carros de que Mrs. Bertrand me falara - foram acolhidos com prazer.
Quanto ao carneiro cozido com compota de groselha, agradou imenso a todos, excepto a mim. Nunca tinha visto apresentar assim um cozido e devo confessar que o carneiro não me pareceu melhor preparado daquela maneira.
Mas como me afirmaram ser um prato nacional e dos melhores, provei sem grande custo.
Como estávamos no princípio do Outono, serviram-nos feijão verde de uma qualidade que nunca vi em França.
Cresciam em latada, com mais de dois metros de altura e as vagens, cortadas muito finas, tinham mais de trinta centímetros de comprimento.
Nos dias anteriores, já tinha parado várias vezes debaixo daquela latada de nova espécie, para a admirar. De princípio, supus que fossem feijões de Espanha, isto é, feijoeiros de jardim e não comestíveis. Estes legumes tardios, mas tenros, com paladar diferente dos nossos, não deixavam de ser saborosos e achei-os excelentes.
Por que motivo fixei e conservei vivos na memória estes pormenores tão singelos?... Talvez por ter nascido num país onde se dá muita importância aos assuntos culinários e à forma como são servidos os pratos.
Ou talvez - e era o mais certo - todo o meu pensamento se voltasse para outros assuntos e o meu cérebro registasse, maquinalmente, tudo quanto se relacionava com os factos materiais, desenrolados diante de mim e ferindo-me os sentidos, como compensação automática entre os diversos valores.
Por várias vezes olhei furtivamente para os dois filhos de Sir Archibald, que se mantinham em atitude reservada, sem conseguir descobrir qual deles era o Edward.
Julguei até que o loiro, a quem de princípio supusera o mais velho, porque era o mais alto - ilógica dos silogismos humanos - me olhava com certo desdém.
Impressão errónea, por certo, mas pareceu-me que evitava olhar para mim, com marcada afectação. No entanto, quando eu falava ou fazia um gesto - não interferia na conversa, mas, de vez em quando, forçoso era mostrar que escutava o que diziam - tinha uma maneira desprezadora de me fitar, com um arzinho irónico e importante, que me irritava os nervos. E eu não precisava daquele suplemento de irritação, pois chegava bem a que me agitava quando me sentei à mesa.
Em compensação, o moreno - transmito apenas as minhas primeiras impressões - tornou-se-me simpático e pensei, contrariamente ao que primeiro desejara, que ficaria contente se fosse ele o meu marido. Possuía modos agradáveis e parecia bom rapaz. Em resumo, agradava-me, tanto mais que, forçosamente, um dos dois era o meu marido e não tinha por onde escolher. Era mais simpático do que o outro.
Fosse qual deles fosse e apesar de todos os esforços para resolver este enigma conjugal, o primeiro dia terminou sem que pudesse esclarecer o mistério da identidade do meu esposo.
E, por classificar de inverosímil semelhante mistério, os meus nervos atingiam tensão máxima, o auge da irritação.
Foi com prazer que vi chegar a hora de recolher ao quarto.
Decorreram muitos dias sem que a situação se modificasse. Nem Sir Archibald, nem qualquer dos outros habitantes do castelo se mostravam dispostos a elucidar-me.
Quer quisesse ou não, integrava-me, pessoalmente, na vida familiar, e era a primeira a irritar-me com isso, dada a invulgaridade da minha posição. Mas era positivo: habituava-me a viver ali como se não tivesse vivido noutro sítio desde pequena: Isto prova que nos habituamos a tudo, mesmo às coisas mais anormais e insólitas. O ser humano é uma criatura cujas faculdades de mimetismo, de adaptação e assimilação não têm, praticamente, limites. Pessoalmente, chego a acreditar que o Homem podia aclimatar-se no planeta Marte, não obstante a diferença de condições de vida que deve existir entre esse planeta e o nosso, contanto que o submetessem a um treino apropriado e progressivo, tão grandes são essas faculdades de adaptação ocultas e por desenvolver.
Voltando ao que me diz respeito, o que mais me aborrecia não eram os encargos de dona de casa, o trabalho que me incumbiam, a nova decoração das salas ou os novos costumes a que devia habituar-me. Não me arreliava também com as dificuldades da língua, embora o pessoal falasse o dialecto escocês ou mesmo gaélico, o que, de facto, me dificultava um pouco a compreensão.
Não, todas estas coisas formavam um conjunto de circunstâncias a que, por muito pouco que estivesse habituada, conseguia adaptar-me. O que mais me custava a admitir era a situação de mulher casada sem ter marido, a ignorância disparatada, quase grotesca, cómica, em que me debatia, sobre a personalidade desse mesmo marido e a falta absoluta de interesse que testemunhava pela minha pessoa, fosse o loiro ou o moreno quem me desposara.
Por muito que repetisse a mim própria que este casamento não podia considerar-se um casamento no verdadeiro sentido da palavra, mas simples acordo comercial, não conseguia convencer-me e não deixava de me sentir profundamente humilhada, ferida no meu amor-próprio, e, sem o querer confessar, completamente desapontada.
E se, como atrás digo, o ser humano tem em si possibilidades de adaptação quase sem limites, não é menos certo que nunca está contente com a sua sorte.
A presença dos quatro homens no castelo aumentava o trabalho do pessoal. Nem a Catarina, que, de princípio, era destinada ao meu serviço particular, podia desempenhar-se do seu cargo.
E, no entanto, quantas perguntas desejava fazer-lhe!... Tinha a impressão de que era a única a quem podia dirigir-me para obter certas informações sobre o carácter dos diversos habitantes do castelo e talvez sobre-o mistério que adivinhava em toda esta história. Catarina ignorava tudo ou quase tudo, calculava eu, mas podia citar-me certos factos ou acontecimentos que fizessem luz sobre o assunto.
Mas durante muitos dias não consegui ficar sozinha com ela. A rapariga demasiado atarefada, não podia perder tempo a conversar.
Não conseguindo falar com a Catarina, que fazia o trabalho de três criados, consegui, certa manhã, agarrar Mrs. Bertrand, quando íamos as duas à adega, verificar se a provisão de guiness - cerveja preta e espessa que está sempre à disposição dos convidados- precisava de ser renovada.
Tomando como pretexto uma reflexão da governanta sobre as últimas caçadas da família Duncan, arrisquei, sem demonstrar grande interesse pela resposta:
- Confunde sempre a idade dos dois filhos de Sir Archibald. Qual deles é o mais velho?...
A boa criatura olhou para mim com assombro e replicou:
- Vossa Graça está zombando de mim, com certeza. Conhece, por certo, o seu marido, sem que precise designá-lo.
Tornei-me corada como uma papoila e tentei, sem grande resultado, levar o caso para a brincadeira, soltando alegre gargalhada e desviando o rumo da conversa.
Esta desastrada tentativa foi, como se vê, coroada do pior êxito. Compreendi quanto era ridícula e não tentei renová-la, nem com Mrs. Bertrand, nem, com mais forte razão, com o restante pessoal.
Esta atitude, ditada por um sentimento de curiosidade disparatada, era tanto mais imperdoável porque Sir Archibald já me tinha posto de sobreaviso contra ela.
com efeito, uma semana após a minha chegada, chamou-me à biblioteca e recomendou-me que evitasse abordar com o pessoal de Uam-Var todos os assuntos que se referissem ao meu casamento, visto que ninguém precisava de saber em que condições ele se tinha realizado.
Esta recomendação foi ditada pelo bom-senso e eu devia tê-lo reconhecido e calar-me.
Quanto a pedir mais explicações ao próprio Sir Archibald, não seria muito para tentar depois do retumbante sucesso que a minha curiosidade alcançara na tarde da sua chegada. Nunca mais devia esquecer a inflexão com que me respondera:
"Não pensa, por certo, que entre ambos possa existir convivência..."
Corava retrospectivamente, sempre que a recordava.
No decurso da segunda entrevista, mostrou-se muito prolixo sobre vários assuntos e, devo reconhecê-lo, verdadeiramente paternal.
- Quero felicitá-la, minha filha - declarou Até hoje tudo tem corrido conforme os meus desejos.
- Alegra-me sabê-lo, pai.
- Acrescentarei - prosseguiu com benévolo sorriso- que, se continuar a desempenhar tão bem o seu papel de dona de casa, a recompensarei generosamente.
- Do coração lhe agradeço.
Embora outras preocupações me dominassem, não devia descurar a questão monetária. Se havia aceitado aquela situação, se acedera a casar-me com um desconhecido, tinha sido porque o ordenado e as condições se me haviam afigurado mais do que vantajosas. E se Sir Archibald estava na disposição de as ultrapassar, melhor para mim. Só tinha a felicitar-me por tão boa disposição de espírito. Poderia assim melhorar, sensivelmente, as condições de vida da minha família.
Como se me adivinhasse o pensamento, o meu sogro acrescentou:
- Sei que tem irmãos e irmãs a seu cargo...
- com efeito, somos cinco e eu a mais velha. Fez-me então muitas perguntas sobre os meus.
Respondi-lhe o melhor que podia, procurando ser natural e simples. Descrevi-lhe a carreira de meu pai, a sua doença e morte, a situação precária em que nos encontrámos depois, a doença de minha mãe e todas as preocupações e encargos que recaíram sobre os ombros, porque meus irmãos eram muito novos e não queria barrar-lhes o futuro. Passei rapidamente sobre as desastrosas consequências da minha inexperiência, a forma como a pequena fortuna se me escoara por entre os dedos com espantosa rapidez. No entanto, julgo ter-lhe dado uma ideia exacta das dificuldades com que luta uma família numerosa, quando desaparece, de repente, o seu chefe e sustentáculo.
Escutou-me em silêncio e com marcada atenção. Quando terminei, pareceu reflectir durante algum tempo, considerando-me com simpatia.
- Já não estamos a tempo - acabou por dizer de mandar vir um dos seus irmãos para passar as férias connosco. Mas, pelo Natal ou pela Páscoa, se quiser, pagar-lhe-emos a viagem para vir até cá. Recebê-lo-emos com prazer e organizaremos algumas caçadas para o distrair.
Começo a perceber que, na Alta Escócia, a caça é a forma mais requintada de obsequiar alguém. E se o senhor de Uam-Var se propunha oferecer esse prazer a meus irmãos, tinha que lhe agradecer como testemunho do desejo de me ser agradável.
Essa prova de simpatia, seguida à promessa de generosa recompensa, acabou por abafar as minhas prevenções contra a avareza e mesquinhez dos Escoceses.
"Salvo se - pensava, ainda desconfiada - esta atitude e a avalanche de promessas e generosidades são ditadas por um motivo poderoso que ignoro e este homem procede assim, movido por um sentimento que não consigo adivinhar, mas que acabarei por descobrir mais cedo ou mais tarde".
Todavia, sou obrigada a confessar que Sir Archibald tem sido sempre atencioso comigo e, desde que cheguei, me tem proporcionado uma vida sossegada, respeitável e respeitada; a sua dignidade protege-me por forma afectuosa e vigilante.
Também me vejo forçada a reconhecer que, desde o primeiro instante, me tem tratado como se eu fosse, de facto, sua filha, e é esse o lugar que ocupo na sua casa.
Nas mais pequenas coisas demonstra-me afectuosa benevolência, vinca bem o seu desejo de que me considerem como verdadeira dona de casa. Quando nos levantamos da mesa para passar à sala, oferece-me o braço. Nunca perde ocasião de solicitar e aceitar ou simular que aceita a minha opinião em tudo quanto se refere ao governo do nosso lar. Sempre que temos visitas, procura, por todas as formas, pôr-me em destaque. A sua atitude para comigo é perfeita e só tenho que agradecer-lhe.
Uma destas tardes, tomou-me o braço, levou-me para a biblioteca e mostrou-me um texto de Tácito, o discurso proferido por Calgacus aos seus irmãos de armas, nas montanhas da Caledónia, precisamente estas onde nos encontramos. Depois disse-me:
- Este discurso pode figurar entre os mais antigos monumentos do País e atesta a coragem e a virilidade dos nossos antepassados que são, em toda a evidência, irmãos celtas dos seus. Leia, minha filha.
Enquanto eu lia o texto de Tácito, tentava descobrir-me nos olhos a impressão recebida.
- O que está provado-afirmou com orgulho e visível satisfação, como se tudo aquilo fosse assunto pessoal e se tivesse desenrolado na véspera e não muitos séculos atrás - o que está provado é que os Romanos não conseguiram submeter os Caledónios, como nos chamavam naquele tempo, nem penetrar nas montanhas do Norte.
Concordei com esta opinião, o que lhe causou visível prazer.
Se o comportamento de Sir Archibald está acima de toda a crítica, o dos filhos, em compensação, mantém-se reservado e frio, anormal e exagerado.
Não sei dizer a que ponto essa atitude me magoa e fere. Será talvez impressão pessoal que não corresponde à realidade, mas nem por isso deixo de sofrer e isso basta para me provocar profundo sentimento de revolta, revolta que mal consigo dominar e ocultar. Se não fosse a presença constante do pai e suas afectuosas atenções, creio que já teria feito escândalo.
Se por acaso, em conversa, me dirijo a eles, respondem-me concisamente e em tom glacial.
Mesmo assim, para ser sincera, devo confessar que o moreno me demonstra menos hostilidade do que o outro. Se não receasse exagerar, diria - guardadas as devidas distâncias, é claro - que me trata com mais camaradagem!
Não ignoro que os rapazes ingleses são bastante reservados com as mulheres... é uma coisa que faz parte da sua educação, da formação do seu carácter. Mas, valha-me Deus!... devem saber que sou mulher de um deles ou, pelo menos, que estou nesta casa com esse título!
Mas nem um nem outro tem um gesto ou um olhar que demonstre a existência desse laço e continuo condenada a fazer suposições. É a coisa mais extraordinária e incompreensível!... Parece que todos se combinaram para me ocultar a verdade!
E tenho a impressão de que estou bem longe de alcançar a chave do enigma.
Tivemos novidades de sensação, esta manhã. Passava das onze horas e estávamos sentados à mesa para tomar o breakfast, quando Caleb entrou na casa de jantar, trazendo uma salva com um cartão de visita. Mostrava-se aflito, sobre brasas, como é uso dizer-se.
- Pedem para falar a Lady Duncan - acabou por comunicar, como se lhe custasse a falar.
- Quem? - perguntou Sir Archibald, tomando o ar autoritário e de comando, a atitude dos momentos solenes.
- Três homens que não conheço-respondeu o criado - Parece-me que vêm de longe - acrescentou como que a medo.
E depois repetiu:
- Perguntaram por Lady Duncan.
- Lady Duncan não atende desconhecidos - decidiu o dono da casa - Deixa ver o cartão.
Torturado pela Indecisão, o pobre Caleb metia dó.
Pus termo à sua angústia, pegando no cartão, ao qual relanceei a vista antes de o passar a Sir Archibald.
Desconhecia por completo o nome.
- Veja se conhece, pai - pedi com o mais doce sorriso - Por mim, não sei quem sejam...
O dono da casa pegou no cartão de visita, leu-o e ficou pensativo durante alguns momentos.
- Manda entrar para aqui -acabou por ordenar, dirigindo-se ao criado.
O convite era estranho e fora de todos os usos estabelecidos.
Ao mesmo tempo, Sir Archibald levantou-se da mesa e foi encostar-se ao fogão.
Instintivamente e sem reflectir, levantei-me também. No mesmo instante, os outros três presentes, isto é, os dois irmãos e MacLean, imitaram-me.
Estava intrigadíssima, confesso. Não conhecia ninguém naquela terra. Quem poderia ter interesse em falar-me e com que desígnio?...
Quando me entregava a essas reflexões, a porta abriu-se e os três visitantes anunciados entraram na sala. Eram todos de certa idade e aspecto carrancudo. O calçado e mesmo os fatos estavam salpicados de lama, o que não era para admirar, dada a chuva forte e persistente que desde a véspera caía.
- Pedimos que nos perdoem por termos vindo a esta hora - disse um deles, o que parecia mais velho- Sou o advogado de Sir Duncan Hummer e venho, com os meus dois ajudantes, certificar-me da presença de Lady Cristiana Duncan...
"Que é isto? " - pensei intrigada.
O caso começava a tornar-se interessante... A existência de uma Lady Cristiana Duncan era tão importante que motivava a deslocação de um advogado e dos seus ajudantes?
Quem seria também o tal Sir Duncan Hummer?
A fisionomia de Sir Archibald tomou o aspecto dos maus dias. As sobrancelhas uniram-se e as narinas palpitavam-lhe assustadoramente. Numa voz cortante, que ainda não lhe conhecia, declarou para o homem que acabava de falar, designando-me com a mão esguia e nodosa:
- Eis a minha nora... Mas se tem qualquer coisa a perguntar-lhe sobre o assunto, será preferível falar comigo. Em primeiro lugar, porque não é hábito desta casa as senhoras tratarem de negócios, em segundo, porque desejo salvaguardar a tranquilidade dos meus filhos. Portanto-concluiu num tom que não admitia réplica - se quiser ter a bondade de me acompanhar ao meu gabinete particular, estou ao seu dispor para lhe responder a tudo quanto desejar.
Estas últimas palavras deviam, no espírito do dono da casa, representar o extremo limite das concessões que estava disposto a fazer.
A sua maneira de falar era daquelas que fazem vergar as espinhas mais rígidas e não admitia discussão ou réplica. Contudo, o visitante não se mostrou por forma alguma impressionado e contentou-se em abanar a cabeça com a mais perfeita calma.
Em toda a evidência, já suportara outras tempestades mais violentas. Pela sua profissão, havia muito que devia estar vacinado contra as declarações peremptórias e imperiosas intimativas.
- Perdão! -limitou-se a contrariar com simplicidade e com firmeza calma, mas fria, que não era inferior à determinação do seu interlocutor - Peço a Vossa Honra que me perdoe, mas tenho uma missão a cumprir e cumpri-la-ei.
Dava-se o choque entre duas vontades igualmente firmes e inabaláveis.
Qual deles venceria?
O advogado -pois advogado dizia ser- sem mais se preocupar com as objecções de Sir Archibald, voltou-se para mim:
- Queira dizer-me, minha senhora... Estou falando com Lady Edward Duncan, em solteira Cristiana Chambreuil?...
- Sou, com efeito, a pessoa que diz - retorqui com frieza.
- Como se chama o pai de Vossa Graça?... Desta vez pus maior altivez na resposta.
- Meu pai já faleceu. Era o general Chambreuil.
Os dois ajudantes transcreviam as minhas respostas no livro de notas tirado da algibeira, o que me fez franzir a testa.
- Filha legítima, não é assim?... Vossa mãe ainda vive?
- Vive, mas sou maior e, portanto, os meus pais nada têm a ver com a minha vida particular.
Não sei o que me levou a pôr assim os pontos nos ii. Talvez pensasse que, se faziam um inquérito sobre a minha pessoa, podia muito bem acontecer que esse Inquérito os levasse a França para interrogar a minha família. Nesse caso, como nenhum dos meus estava ao facto do meu casamento, impunha-se evitar, na medida do possível, que se intrometessem no assunto.
Calculava o espanto de minha mãe, o seu descontentamento e até a sua cólera, se soubesse que havia casado sem lhe dizer nada. Sabia também que, se tal sucedesse, não poderia explicar-lhe como tudo aquilo acontecera.
Instintivamente, revoltei-me com o interrogatório e manifestei claramente o meu descontentamento.
Sem se incomodar com isso, o advogado prosseguiu:
- Se é maior, tem, pelo menos, vinte e um anos?...
- com certeza.
Fiquei maravilhada com tão grande manifestação de inteligência, com "a penetração daquele cérebro que tão depressa chegara a descobrir aquela verdade do senhor de la Palisse. Não me recordava de que, perante a lei, só é evidente aquilo que é provado e confirmado.
Só nessa altura reparei que um dos filhos de Sir Archibald Duncan, o loiro, se colocara a meu lado, aprumado como uma estaca.
Tomou então a palavra, para se dirigir ao advogado numa voz dura, quase metálica, que nunca lhe tinha ouvido e me deixou muda de espanto.
- Não seria preferível - disse - aceitar a sugestão de meu pai e acompanhá-lo ao seu gabinete de trabalho?...
O advogado, admirado, por sua vez, com aquele tom de voz, mediu o novo adversário, de alto a baixo, como se quisesse avaliá-lo ao primeiro olhar. Ao responder-lhe, fê-lo também de maneira que me levou a compará-lo com uma panela de água prestes a atingir a ebulição.
- Seu pai responderá daqui a pouco às minhas perguntas... se me apetecer interrogá-lo!... Por enquanto, desejo falar com esta senhora...
As nuvens de trovoada acumulavam-se e começava a sentir-me pouco à vontade.
- Esta senhora não responderá a mais nenhuma palavra; meu pai tentou fazer-lho compreender com delicadeza e não consinto que prossiga o interrogatório- respondeu o filho de Sir Archibald, sempre no mesmo tom - Lady Duncan não responde a desconhecidos pouco correctos.
Voltando-se para mim, acrescentou, esforçando-se para dominar a cólera que se revelava no tremor da voz, mascarando-a com uma inflexão de súplica apenas perceptível:
- Não responda a este homem, peço-lhe... oponho-me a isso.
O sangue subiu-me às faces... Naquele instante fiquei convencida de que era Edward Duncan quem falava. A sua atitude autoritária, a forma como me proibia de responder, tudo me revelou aquilo que, havia duas semanas, tentava descobrir.
Mas já me tinha enganado tanta vez que não me atrevia a acreditar no que descobria... Se, de novo, estivesse iludida?
O rapaz continuava a meu lado, com as mãos metidas nas algibeiras do casaco, aprumando-se numa atitude imponente, uma atitude que não podia deixar de classificar como conjugal.
Mas o advogado mais uma vez provou que não se deixava intimidar.
com a maior impassibilidade, voltou-se para os dois ajudantes e declarou:
- Podem verificar que nesta casa existe, de facto, uma Lady Dunkan... ou, pelo menos, uma senhora que afirma ser Lady Duncan. Podem também testemunhar que não consentem que lhe fale... e tentam impedir-me de continuar a interrogá-la.
Tudo isto foi dito numa voz sem inflexões, no tom de um professor de física ao revelar aos alunos que os corpos sólidos se dilatam pela acção do calor.
Dadas as circunstâncias, esperava que estas afirmações, não destituídas de verdade, poriam termo à cena da qual, para ser franca, não compreendia uma palavra, mas enganei-me.
Antes que pudesse aperceber-me bem do que se passava, o outro irmão, o moreno, avançou para os três homens, intimando numa voz fremente, sem se dar ao trabalho de ocultar a cólera e a irritação:
- Se não saem imediatamente desta casa, mandá-los-ei expulsar pelos criados.
Era tão ameaçadora a atitude daquele rapaz nervoso e forte que, com o maior espanto da minha parte, se impôs aos três desconhecidos e, por muito estranho que pareça, deu resultado instantâneo.
Os três homens de lei pressentiram imediatamente que a ameaça não era vã e, num momento, sem mais protestos, abandonaram a sala.
Em toda a evidência, ficaram persuadidos de que a visita não poderia prolongar-se e que os três membros da família Duncan, pai e filhos, por motivos imperiosos, que ignorava, não os consentiriam em sua casa nem mais um segundo.
De resto, a cena não durara mais do que cinco minutos.
Quanto a mim, absolutamente transtornada com tudo quanto acabava de se desenrolar, impressionada com "a violência daquela rápida troca de palavras ameaçadoras, deixei-me cair numa cadeira, junto do fogão, perguntando a mim própria, como já o tinha feito mais vezes, o que estava a fazer no meio daquela gente.
Por outro lado, o mistério que tanto me preocupava, em vez de se desvendar, mais espesso se tornava.
Já não estava tão certa de que fosse o loiro o meu marido, porque, se, como verdadeiro senhor, me ordenara que não respondesse, o outro, com a sua atitude decidida, também não procedera com menor autoridade.
Mais uma vez o meu olhar passou de um para outro.
Se é verdade, como afirmam, que as mulheres gostam de ser dominadas e de obedecer a vontades firmes e a ordens precisas, tinha por onde escolher.
Logo que os homens sairam, o rapaz moreno voltou-se para mim e desculpou-se:
- Lamento ter sido obrigado a usar destes modos violentos na sua presença, minha boa amiga, mas o processo ignóbil que empregaram, vindo certificar-se da sua existência na sua própria casa, revoltou-me, positivamente. Nunca admitirei em Uam-Var semelhante maneira de agir.
Nunca admitirei... era ou não o falar de senhor? Quanto ao outro, declarou:
- A Cristie é estrangeira, caso contrário saberia que coisa alguma a obrigava a responder àqueles cavalheiros. A forma como procederam é invulgar na Inglaterra, onde o respeito pela liberdade do indivíduo constitui, talvez, o nosso mais precioso bem. Igualmente lhe peço que me perdoe- acrescentou, envolvendo-me num olhar demorado - e me desculpe, Lady Duncan, por não ter sabido evitar-lhe tão odiosa cena.
Não ter sabido evitar-lhe tão odiosa cena... Era ou não falar como marido?
Bondade divina!... O mistério continuava.
Quanto a Artur MacLean nem sequer abrira a boca durante toda a cena e, mesmo depois da saída dos três homens, continuava calado.
Logo que o filho acabou de falar, Sir Archibald veio ter comigo e, arvorando o seu mais afável sorriso, como se não desse a menor importância ao que acabava de passar-se, disse-me:
- Vamos, não se atormente, minha filha!... A história acabou. Voltemos para a mesa... Tratava-se, unicamente, de saberem se tínhamos uma verdadeira dona de casa ou se havíamos contratado apenas uma governanta...
Depois, com volubilidade, uma volubilidade que não estava nos seus hábitos, como se estivesse ansioso por mudar de conversa, declarou aos três homens:
- Estou com uma fome de lobo e penso que a vossa não é menor, meus amigos. Voltemos para a mesa e a Cristie não se preocupe mais com esta deplorável ocorrência. Enterre a desagradável recordação numa boa fatia de gamo. Este empadão também está excelente e quero felicitar Mrs. Bertrand por tão apetitoso petisco.
Voltámos a sentar-nos à mesa, mas todo o meu apetite desaparecera. Estava ainda trémula com a cena que acabava de desenrolar-se.
Evidentemente, o melhor caminho a seguir, seria, como acabava de sugerir Sir Archibald, esquecê-la e fazer honras ao almoço. Foi o caminho que, aparentemente, escolheram os outros quatro convivas.
Mas, por mais que desejasse, não conseguia afastar do pensamento as estranhas circunstâncias da inesperada visita e as insistências de Sir Archibald, procurando para ela uma explicação plausível.
Entretanto, no meio de todas as sombras que me rodeavam, um raio de luz surgiu que inundou a minha alma de alegria: recebi cartas de França.
Minha mãe tinha ido convalescer para Corèze, numa aldeia tranquila, indicada pelo médico. Instalara-se numa pensão não muito cara, mas confortável e com excelente situação. Pelo que me dizia, a alimentação era abundante e cuidada e o ar puro. Naquela calma absoluta contava que as forças lhe voltassem em breve.
Os meus irmãos tinham ido com ela e, encantados com as férias, faziam excursões pelos arredores. Cada um deles me escrevia, descrevendo-me as boas cores e excelente saúde dos outros.
Estas cartas ajudaram-me a suportar o meu sacrifício. Pensar que a minha aventura e o dinheiro que lhes deixara tinham contribuído para as férias dos meus irmãos e para a convalescença de minha mãe, não só me dava enorme alegria como me compensava de todos os inconvenientes e dificuldades com que lutava.
Até ali, evitara, cuidadosamente, fazer qualquer alusão ao casamento. Além disso, não dispunha de um minuto para reflectir com calma na situação e, dada a recente doença de minha mãe e a ameaça constante de uma recaída, achava um pouco prematuro pô-la assim, bruscamente, diante do facto consumado, ou, melhor, perante um estado de coisas que não se assemelhava a nenhum outro, perfeitamente anormal e muito difícil de explicar a distância.
Mas, acima de tudo, queria dar tempo a mim própria para pensar no assunto. Porque, por muito que dissessem e fizessem, apesar das aparências e de saber perfeitamente que tinha casado, não me parecia nada que o fosse. Todas as manhãs dizia e tornava a repetir que era mulher casada e só assim me convencia. Não só o casamento não se parecia com qualquer outro, mas, do ponto de vista espiritual, a minha vida actual não fazia a mais pequena diferença da de solteira.
No castelo, sentia-me como de visita. Poderia mesmo dizer mais: se em Paris tinha tido vagos flirts, aqui nem isso, e as horas decorriam como se vivesse no convento.
Como explicar a minha mãe tão falsa situação?
Sucedesse o que sucedesse, por agora, vivia na Escócia, porque as circunstâncias o exigiam e não porque a ela me prendessem laços de afecto.
Além das considerações que o meu marido-fantasma poderia sugerir-me, coisa alguma em Uam-Var me despertava a atenção ou me atraía.
Terminada a tarefa caseira, depois de ter dado a volta obrigatória pelo domínio, contado de novo os boiões de compota, chegava por vezes a lamentar que os fantasmas do velho castelo escocês ou o monstro de Loch Ness não existissem na realidade, para me distrair; mas qualquer dessas coisas pertencia ao domínio da lenda e não tinha a mais leve confirmação em Uam-Var.
Aborrecida com o espectáculo constante da charneca que nos rodeava e no desejo de contemplar mais alguma coisa do que silvas e urzes, encontrei uma ocupação e um derivativo para as minhas preocupações.
Nas traseiras da casa, no ponto mais exposto ao pálido sol que nos aquecia, instalei, com o auxílio de Caleb e de Catarina, uma estufa primitiva. Preparei cuidadosamente o terreno, cobri-o com uma armação rudimentar e vidros, e semeei flores - dizem que a fé pode tudo.
Não podia conceber que as donas de casa, as senhoras do castelo que, em tempos passados, viveram em Uam-Var, não houvessem tentado embelezá-lo com flores.
Decorrido algum tempo, tive a alegria de ver as plantas rebentarem.
Semeara margaridas, maravilhas, amores-perfeitos, goivos, tudo flores comuns e fáceis de tratar.
Seria imprudente criar dificuldades e desafiar o destino com outras plantas cuja cultura pedisse mais cuidados.
Todos os dias ia verificar os progressos da sementeira com vigilante desvelo e não dissimulado orgulho. A minha confiança recebia o prémio merecido. Naquela triste casa, as minhas modestas flores servir-me-iam de consolo e constituiriam uma distracção.
O prazer de poder florir os aposentos que habitávamos não era menor, principalmente o tal quarto vermelho, ao qual no primeiro dia dera o nome de coro de igreja, graças às dimensões, aspecto glacial e total ausência de intimidade que o caracterizavam.
Todavia, tudo isto não passava de mera distracção, tímidas tentativas para adormecer as minhas verdadeiras preocupações.
De facto, uma única coisa me dominava o pensamento e, dia a dia, mais me atormentava, a despeito dos desesperados e contínuos esforços que fazia para a expulsar do cérebro. Refiro-me ao problema do meu casamento.
Embora as dúvidas sobre a identidade daquele com quem casara tivessem desaparecido, a obsessão mudava de aspecto, mas não deixava de existir.
Já sabia qual deles era meu marido.
Pela força das circunstâncias, tinha-me documentado sobre o idioma gaélico, o erse albannach que, com raras excepções, todo o pessoal de Uam-Var falava. Comecei a compreendê-los, embora não tivesse a mais pequena ligação com a língua inglesa e acabei por me familiarizar com os nomes e diminutivos célticos.
Se, desde o primeiro dia, me tivesse interessado verdadeiramente pelo assunto, verificaria que ninguém pensava em me ocultar quem era o Edward e quem era o Michael.
Ao primeiro, designavam-no pelo diminutivo gaélico de Neddyc e ao outro pelo de Mikayn.
Só a minha absoluta ignorância do idioma dos Highlands foi causadora de ter ignorado por tanto tempo a verdadeira personalidade dos dois irmãos.
Sei agora que o mais alto, loiro, sempre frio e desdenhoso, é o Edward que figura na minha certidão de casamento, mas a sua atitude para comigo não se modificou. Trata-me com a mais perfeita correcção, mas evita familiaridades.
E é isso que me atormenta, embora não o confesse. O seu procedimento fere-me profundamente e tortura-me muito mais do que seria razoável! Aquele homem que, por muito que faça, não deixa de ser meu marido, não me presta atenção!... Para ele, é como se não existisse!
Seria assim tão feia" tão, desagradável, que nem sequer merecesse a graça de um olhar?
Chegava a duvidar de mim própria e para não desanimar tentava avivar as minhas recordações de rapariga. Alegrava-me verificar que, nesse tempo, nunca experimentei a impressão de que alguém me considerasse objecto de repulsa, de tédio ou mesmo de simples indiferença. Sem vaidade, posso mesmo
afirmar que fazia certa impressão e conheci alguns triunfos com os meus condiscípulos... sem querer afirmar que se apaixonavam por mim ao primeiro olhar.
Sendo assim, a que atribuir a indiferença do meu marido?
Não devo ser eu a lançar-me ao seu pescoço, nem sequer penso naquilo que, no primeiro dia, Sir Archibald classificou de convivência.
Sempre que recordo a cena, coro de vergonha.
Não, mas da convivência ao desdém e à frieza de Edward vai certa distância, podia haver o meio termo e por isso chegava a descrer de mim própria.
Além de todas estas interrogações que se erguiam na minha mente e que começavam a desenvolver em mim um complexo de inferioridade, surpreendia-me a observar, sempre com maior frequência e atenção, os mais pequenos gestos do meu marido, a sua atitude, não só para comigo mas na generalidade.
Passei a observá-lo às furtadelas e a segui-lo com a vista sempre que ele não me prestava atenção, o que acontecia muitas vezes.
Era uma patetice, confesso, mas Edward passou a ser para mim o fantasma de Uam-Var.
Acabei por saber de COr os seus gestos, atitudes, hábitos, maneira de andar, de se vestir, de olhar, de montar a cavalo, de sorrir, de comer, de beber, de subir ou descer as escadas, em resumo, de viver!
Esta preocupação era tanto mais estúpida, quanto era certo que meu marido não me ligava a mais pequena atenção.
Mas por muito que repetisse que tudo aquilo se tornava ridículo e indigno de mim, o resultado era nulo. Continuava a olhar para Edward e a pensar nele.
Pode ser que este estado de coisas tomasse aspecto de crescente gravidade, devido ao isolamento em que vivíamos e ao facto de me encontrar num meio estranho e desconhecido. Mas quer quisesse ou não, psicologicamente, não tinha outro caminho por onde escolher.
No entanto, para descer, realmente, bem ao fundo das coisas, devo confessar que não sei a que ponto a atitude distante e algo desdenhosa de meu marido provocou este meu estado de espírito.
Se Edward se mascarava de iceberg, Michael, pelo contrário, começava a humanizar-se.
Foi ele quem me auxiliou a levar terra para a estufa, e quem, improvisando-se engenheiro, canalizou a água para a regar.
Depois propôs-me para darmos passeios a cavalo na montanha e como ninguém achou estranho e muito menos meu marido, aceitei com alegria.
A perspectiva agradava-me, mas como não sabia montar, foi ainda Michael que se dispôs a ensinar-me.
Demonstrei um entusiasmo desproporcionado ao prazer que sentia, mas suspeito que forcei um pouco a nota, no Intuito confessável de obrigar Edward a quebrar a capa de gelo, provocando-lhe ciúmes.
Mas, se foi esse o propósito desta vossa criada, vejo-me forçada a confessar que perdi o meu tempo!
Aparentemente, pelo menos, Edward conservou-se de pedra e não manifestou a mais pequena emoção.
- Como vai montar à moderna - declarou-me Michael- bastar-lhe-á um calção largo.
Como não possuía trajo próprio, foi ainda ele quem me arranjou o calção, até que eu tivesse ocasião de ir à cidade próxima comprar um, na minha medida.
Descobriu, abandonado numa gaveta, um calção que, por certo, tinha pertencido a uma das antepassadas da família Duncan. Tratei de o apertar e não ficou mau. Não podia classificar-se de extremamente elegante, pelo contrário. Quando o enverguei fiquei mais com aparência de um moço de cavalariça do que de uma Lady, mas era prático e não me tolhia os movimentos.
Como não tinha polainas, arranjei grevas, o que me dava o aspecto de um poilu da guerra de 1914-18.
com esse trajo pitoresco, saí para receber a primeira lição de equitação.
Essas lições não deixaram de ser divertidas. Tudo era motivo para risos.
Meu cunhado tinha vinte e cinco anos, eu pouco mais de vinte e um... As minhas tolices provocavam gargalhadas e só Deus sabe quantas cometi! Em cima do cavalo, devia ter a elegância de um saco de batatas!
Ríamos com prazer e aproveitávamos todas as ocasiões para rir porque, em Uam-Var, não abundavam. Se Edward pudesse ver-nos nessa altura, talvez empalidecesse de ciúmes, mas vejo-me forçada a dizer que nunca nos via. E mesmo, ter ciúmes, não estava na sua índole.
Por certo desconhecia o ciúme, assim como o amor e até o prazer de um flirt.
Como foram belas aquelas horas que passei longe de Uam-Var... como foram salutares para a minha saúde!... Tinha, de facto, necessidade absoluta de arejar os pulmões, de refrescar as ideias e de expulsar os miasmas e os fantasmas que me perseguiam desde o dia em que entrara no castelo.
Ao mesmo tempo, ia conhecendo melhor a região. Possuía belas florestas e terras cultivadas a par das charnecas incultas e melancólicas que escalavam as montanhas geladas como as estepes bravias.
Pouco a pouco, consegui aprender a montar e pude, assim, acompanhar a família, quando saía.
Chegou então a altura de visitar os vizinhos que nos convidavam para jantar e, por vezes, para ficarmos seus hóspedes, e nunca mais fiquei sozinha no castelo, contrariamente ao que sucedia nos primeiros tempos da minha chegada à Escócia.
Acolhia sempre, com alegria, estas ocasiões de fugir à atmosfera sufocante de Uam-Var, mas podia comparar-me ao doente que supõe aliviar as dores, mudando de posição. Na realidade, o mal vivia comigo e acompanhava-me, tanto mais que Edward ia sempre connosco e eu passava a maior parte do tempo a observá-lo à socapa e a fazer variadas suposições sobre o que poderia pensar ou não pensar a meu respeito.
Enfurecia-me comigo própria, classificava-me de pateta e outras coisas mais, mas em vão. O meu cérebro trabalhava sozinho e não me obedecia.
A fraca consolação obtida nestas excursões consistia no facto de me tratarem por madame a todo o passo, porque para uma recém-casada não existe prazer maior do que esse título, principalmente se, como acontecia comigo, não correspondia à realidade.
Estes passeios tinham ainda outra vantagem: permitiam-me conviver com raparigas da minha idade, a quem, à falta de melhor, ensinava receitas culinárias.
Como é de supor, não gostava de falar no meu casamento e quanto a outros assuntos, como literatura, pintura ou música, não encontrava da parte delas qualquer interesse.
A única coisa por que se apaixonavam era pela filosofia que, como todos sabem, é o violino de Ingres de todo o escocês que se preza.
Suponho também que, na minha qualidade de Francesa, me consideravam como embaixatriz da moda e da boa cozinha. No que diz respeito a modas, sem me apresentar como uma pobretona, estava bem longe de me assemelhar a um manequim de Sciaparelli, e as minhas novas amigas preferiam levar-me para o campo da culinária.
A primeira coisa que lhes ensinei foi a fritar batatas!... A primeira achou-as deliciosas e fui obrigada, depois, a ensinar sucessivamente todas as outras.
Tentei também mostrar-lhes como se assava carneiro no forno. Em Uam-Var já tinha tentado a receita sem obter aplausos e o mesmo aconteceu com as minhas novas amigas.
Concordavam que o paladar do carneiro assado era absolutamente diferente do modo habitual como o serviam, mas nunca consegui saber se intimamente gostavam mais do carneiro assim. Tudo quanto pude verificar é que o comiam sem fazer caretas.
Nos doces, porém, obtive verdadeiro triunfo. Posso dizer que me excedi a mim própria e conquistei numerosos adeptos. Farófias, creme de chocolate, bolos secos, pudins, línguas de gato, tudo experimentei.
Não sei bem dizer se este estendal de conhecimentos culinários foi exibido para causar a admiração às minhas amigas ou em honra de Edward. Quase posso afirmar que a pessoa visada era ele, pois sabia que, em geral, os homens se conquistam pelo paladar. Mas se consegui conquistar meu marido, não o deu a perceber...
Que estúpido!
Estas exibições culinárias deram motivo para alegres reuniões, bailaricos ou partidas de ténis. Nesse campo, a minha inferioridade tornou-se manifesta e senti-me humilhada. Nos desportos não conseguia acompanhá-las. Felizmente para mim, o desporto preferido era o golfe, para o qual demonstrei certa habilidade; e, graças a esta circunstância, subi vários furos no conceito dos meus amigos e conhecimentos.
Mas fosse o golfe, o ténis ou o basquetebol, tudo servia de pretexto para nos reunirmos. Um dos nossos vizinhos chegou até a construir uma piscina com vinte metros de comprimento, o que nos permitiu crawls estupendos.
Estava encantada com este modo de vida, que me obrigava a sair de Uam-Var quase todos os dias ou que, quando as reuniões se efectuavam no nosso domínio, o enchiam de animação e de alegria.
Desta forma, não tinha tempo para pensar e, por conseguinte, não me atormentava. As reuniões obrigavam-me a atender a várias coisas absolutamente estranhas aos meus problemas íntimos.
Punha a minha família ao corrente de todos os divertimentos em que tomava parte, porque alguma coisa lhes havia de escrever. Acima de tudo, queria evitar falar-lhes naquilo que mais me preocupava e eu considerava, com razão ou sem ela, como assunto absolutamente pessoal. Não deixava de recomendar aos meus irmãos e irmãs para nadarem o maior número de vezes possível e para jogarem o ténis, a fim de não ficarem colocados num pé de inferioridade quando viessem passar as férias comigo.
Aguardava com impaciência essa altura, mas, ao mesmo tempo, temia-a. Porque se, por um lado, me alegrava poder proporcionar-lhes essa bela distracção, por outro sabia que seria obrigada a revelar a minha mãe que tinha casado, visto não ser possível ocultar-lhe por mais tempo a verdade,
Como resolveria o problema?... Dir-lhe-ia tudo ou limitar-me-ia a comunicar-lhe o casamento sem entrar em pormenores, sem lhe revelar as cláusulas e as circunstâncias anormais que me tinham imposto aquele passo?... Ainda não sabia como proceder e todos os dias pensava e tornava a pensar na solução a dar ao dilema.
Admitindo que optasse pela última solução, meus irmãos não deixariam de se aperceber de tudo quanto de singular havia na minha situação.
Teria ainda de contar que minha mãe, mesmo a distância - as mães são dotadas de uma espécie de antenas, desconhecidas aos outros mortais - acabaria por pressentir o que acontecia...
Todos os meses, Sir Archibald me entregava uma quantia para eu enviar para França; o meu reconhecimento era profundo ao verificar que não se esquecia dos meus, pois nunca tive de lhos lembrar.
Levava a amabilidade ao ponto de me obter ele próprio a licença de exportação de divisas o que, naquela época, representava dificuldade quase insuperável que, sozinha, não conseguiria vencer.
Também encontrei grandes dificuldades em enviar, aos meus, pequenos presentes de Inglaterra para França, porque tudo estava racionado e, pelo correio, não podíamos mandar tecidos ou doces.
Mesmo assim, obtive senhas e comprei um tecido de boa lã e guardei-o para fazer um roupão a minha mãe e presenteá-la com ele quando viesse visitar-me.
Tudo isto era talvez demasiado pueril e secundário comparado com os outros problemas cuja solução me preocupava. Mas enquanto tinha o pensamento ocupado com estas ninharias, não reflectia no resto... o resto que teimava em avassalar-me por completo o cérebro.
Por vezes, enervava-me por persistir em pensar nesse resto e afligir-me por coisas e impressões que, vendo bem, pertenciam ao domínio do imponderável e da fantasia e que, em todo o caso, não apresentavam interesse imediato.
Mas o ser humano, quando não tem motivos reais de sofrimento, inventa-os e por suas próprias mãos vai buscar os espinhos que o ferem.
Que motivos de queixa tinha eu, afinal?...
Em Uam-Var tudo caminhava bem. Consideravam-me como verdadeira dona de casa e todos me respeitavam e acolhiam como tal. O meu sogro e o meu cunhado acarinhavam-me o mais que podiam. Tudo isto estava conforme o contrato estipulado, direi mesmo que ultrapassava os compromissos tomados para comigo.
Sendo assim...
Sendo assim, para que me atormentava?... Nem me atrevo a declarar que, se o loiro Edward se dignasse baixar o olhar glacial para a minha pessoa, se me sorrisse e me falasse com amabilidade e não com a mais estrita delicadeza, tudo se modificaria.
Pode ser que, nesse caso, o meu sogro me fosse indiferente, tanto como o meu cunhado... poder-me-iam tirar as prerrogativas de dona de casa, não ter travado novas relações e encontrado novas amizades, não pôr um pé fora do castelo, para mim, tudo ficaria na mesma... e o facto de todas essas coisas serem contrárias ao estipulado, deixar-me-iam completamente insensíveis.
Despeito... simples vaidade de mulher que se vê ignorada?... Ou complexidade de sentimentos nascida de uma causa mais profunda e oculta... uma causa que não queria confessar, nem a mim própria?...
Os Duncan não voltaram a referir-se diante de mim ao incidente com o advogado. Por meu lado, além do desinteresse real que sentia, nascido de razões pessoais de que ninguém suspeitava, nunca me atreveria a interrogar sir Archibald. Adoptei a única atitude que me estava indicada: simular que me contentava com as vagas explicações dadas por meu sogro após a saída dos três homens.
E, no entanto, reconhecia que tudo aquilo não tinha sido natural. Nem a visita do advogado, nem a atitude dos Duncan. Por muito que se afirme que os Ingleses são pessoas reservadas, avaras de palavras, que professam repugnância invencível por falar dos seus assuntos íntimos, a atitude tomada, a imposição de silêncio, num assunto e em circunstancias tão excepcionais, não deixava de ser estranho.
Quanto ao pessoal, não estava no meu papel provocar confidências nem no dele fazer-mas.
Mas, repito, esta ignorância que, noutra altura, me teria provocado a curiosidade, agora não me preocupava ou, pelo menos, só me preocupava na medida em que o incidente pudesse dar-me a explicação da atitude de meu marido.
Existiria qualquer relação entre o procedimento de Edward e a intervenção do advogado?... Seria difícil de admitir.
JORNAL DE CRISTINA
20 de Outubro
Regressávamos de um passeio a Badcall, onde tínhamos ido pescar trutas. O tempo estava medonho e eu ansiosa por chegar a casa, apesar do tríplice impermeável forrado de lã que me cobria.
Os nossos shetlands metiam dó. Sir Archibald e Michael seguiam à frente e o cavalo que meu marido montava vinha quase a par do meu.
- Cansada? - perguntou ele, falando-me por cima do ombro.
Edward preocupava-se comigo!... Que maravilhoso!
Nunca tal acontecera e quando me falava, embora com irrepreensível cortesia, escolhia sempre assuntos dos mais banais.
Tentei um esforço sobre-humano para lhe responder com o mais amável dos meus sorrisos, sorriso que, através da avalancha líquida que desabava sobre nós mais se devia parecer com uma careta.
- Um bocadinho, mas não muito - respondi, conquanto as minhas feições transtornadas devessem desmentir a afirmação.
O mais obtuso teria dado por isso e, se tivesse por mim um bocadinho de interesse, meu marido tentaria animar-me. Edward, porém, estou certa de que nem o notou. No entanto, como raramente abre a boca para me falar, quis aproveitar a ocasião e comentei:
- O tempo está horrível!
Edward relanceou-me um olhar de espanto, como se eu tivesse proferido o maior disparate. Em seguida, replicou:
- Acha?... Pelo contrário, não há melhor para a saúde... principalmente para o gado.
Depois desta categórica sentença não voltou a abrir a boca até chegarmos a Uam-Var.
Evidentemente, tão prolongada conversa deixara-o extenuado!
16 de Novembro
Ontem fomos visitar uma família amiga que habita nos Sutherlands e os três filhos da casa fizeram-me grandes elogios.
Ensinei as irmãs a fazer creme de chocolate e os rapazes acharam-no delicioso e felicitaram-me por isso.
Só me são permitidas estas extravagâncias na casa alheia. Na nossa, raramente as tenho, pois sei, por experiência própria, que Sir Archibald e Mrs. Bertrand sofrem martírios quando me permito confeccionar qualquer prato extra, sem pretexto admissível, quebrando assim as sacrossantas regras da mais estrita economia que são lei em Uam-Var.
Fiquei deveras lisonjeada com os cumprimentos dos três rapazes... e direi até que os de um deles tomavam feição de galanteio bastante acentuado.
Edward estava sentado na minha frente e, contrariamente ao seu costume, fixava-me com atenção, enquanto o outro proferia as suas tolices.
Não sei bem porquê, mas corei.
- O creme, na verdade, estava excelente disse Edward, com sarcástico sorriso - mas se comêssemos todos os dias essas guloseimas, a fortuna dos Duncan acabaria por desaparecer... É mais fácil cumprimentar uma visita do que formar o nosso juízo sobre a dona da casa!
Dito isto, voltou costas e passou à sala de fumo sem mais se preocupar comigo, nem com a conclusão que eu pudesse tirar das suas palavras, considerando-as uma crítica feita à dona de casa ou uma tentativa para meter o rapaz na ordem e significar-lhe que seria conveniente pôr ponto final nos seus galanteios.
26 de Dezembro
Sinto-me triste.
Passou o Natal... um Natal longe dos meus, um Natal com plum-pudding, pies e muffins, com pinheiro enfeitado... Mas nada disso pode consolar-me da ausência da minha mãe e dos meus irmãos, nem da falta da afectuosa atmosfera de família.
Sir Archibald não me esqueceu e presenteou-me com um par de botas para montar que me assentam como uma luva.
A atenção sensibilizou-me, mas o Natal teria sido muito mais alegre para mim se, ao menos, tivesse um dos meus irmãos comigo. Nenhum deles pôde sair de Paris para vir passar as férias, aqui, como tínhamos combinado.
Minha mãe teve leve recaída e, por isso, não quiseram abandoná-la. Fiquei triste mas, por outro lado, não me desagradou o facto. Se um deles tivesse vindo, seria forçoso revelar a minha mãe este estranho casamento e eu ainda não me resolvi a fazê-lo. Reconheço que, quanto mais hesito, mais difícil se torna a confissão e quanto mais difícil ela se torna, mais hesitações tenho!... A isto pode chamar-se um círculo vicioso...
A neve cobre os Sutherlands até ao extremo limite do horizonte. Da janela do vestíbulo contemplava a torre escura de Uam-Var, avultando no fundo imaculado, como ameaça permanente, manchando de negro a brancura.
De súbito, pressenti uma presença atrás de mim. Voltei-me e vi Edward que, no outro extremo do aposento, me observava.
Instintivamente, fiz rápido exame à minha pessoa. Quando dou com ele, olhando-me com tanta fixidez, imagino sempre que descobriu em mim qualquer coisa de anormal: uma mascarra na ponta do nariz, o vestido sujo, que sei eu!
Mas, não, tudo estava na ordem!
- Passou bem o Natal, Cristie?...
Foi meu marido que proferiu semelhantes palavras!... Milagre estupendo!
Estou tão habituada a que me dirija apenas as frases estritamente necessárias e me responda só para me provar que não é surdo-mudo, sem manifestar o mais pequeno interesse pela minha humilde pessoa!...
É preciso que as circunstâncias sejam, na verdade, excepcionais, para o meu marido se dignar demonstrar-me que se lembra de mim.
Não quis, no entanto, deixar de corresponder à sua amabilidade e respondi precipitadamente, com o melhor dos meus sorrisos, conseguindo evitar que o sangue me subisse às faces ao proferir tão manifesta mentira:
- Um Natal maravilhoso!
- Ainda bem... Alegra-me sabê-lo.
Depois desta troca de palavras, abandonou precipitadamente o aposento, como se, de repente, se arrependesse por ter saído dos seus hábitos.
3 de Março
Uma noite destas houve festa em Uam-Var, segundo um costume que remonta ao século XV, se não me engano. Comemoraram a reconciliação, efectuada há mais de quinhentos anos, entre o clã dos MacGuire e o clã dos Duncan, que combatiam havia mais de seis anos, sem interrupção. Esta reconciliação foi selada com o casamento da filha mais nova dos MacGuire com o filho mais velho dos Duncan.
- Desde então, todos os anos se festeja o acontecimento em Uam-Var. A família dos MacGuire está
completamente extinta, mas o costume persiste.
Todos os homens do domínio envergaram o kilt tradicional, o plaid e o barrete de peles. Todos eles exibiam a tiracolo a gaita de foles, o seu instrumento preferido e, em volta da fogueira acesa a meio do pátio, com troncos de pinheiro impregnados de resina, dançaram a gigue, a dança nacional escocesa.
Estava frio, mas a chuva parou muito a propósito. De resto, podia chover à vontade, e o frio ser duas vezes maior, que ninguém se aperceberia, porque os jarros de stout e as canecas com scotch circulavam sem descanso, num desmentido formal à proverbial avareza dos Duncan. Pouco a pouco os rostos tomavam o tom avermelhado da carne em sangue.
Bem embuçada no casaco, assisti à festa, encostada à balaustrada do terraço. Junto da fogueira, Edward, que acabava de dançar uma gigue endiabrada, enlaçou uma das raparigas, fresca e graciosa, e beijou-a; depois beberam juntos, tocando os copos. Meu marido estava animado e ria alegremente, soltando sonoras gargalhadas. Nunca o vi assim, nunca, na minha presença, manifestou tanta jovialidade. Ele, sempre tão frio, tão reservado e comedido!... Foi para mim verdadeira revelação. Isto quer dizer que é um rapaz como os outros, alegre, divertido, direi mesmo, um pouco atrevido!
Quando cheguei a este ponto das minhas conclusões, senti como que um aperto no coração.
Tolice, bem sei.
Edward, embora meu marido no nome, não representa coisa alguma para mim, nunca manifestou, nem de longe, o desejo de me ser agradável.
Não devia deixar-me influenciar por uma atitude tão pouco nos seus hábitos e, contudo, tentei escutar o que dizia à rapariga. Não consegui perceber uma única palavra, porque falava em gaélico, mas devia ser muito engraçado, porque ela ria como doida.
De repente, como se o meu olhar o influenciasse, levantou a cabeça e viu-me.
Tentei sorrir-lhe. Não queria que pudesse supor, nem por um instante, que eu o vigiava ou espiava.
Mas, quando deu comigo, empalideceu e o riso morreu-lhe nos lábios. Largou o copo, sem deixar de me fixar com estranha expressão e depois, subitamente, abandonou a festa. Não tornei a vê-lo se não daí a dois dias.
20 de Março
Consegui que passassem para a salinha do primeiro andar o piano que estava condenado ao esquecimento na sala do rés-do-chão e que não se abria se não nos dias solenes. Mandei vir o afinador de Alnaharra e agora, todas as noites, quando os cuidados da casa não me absorvem, toco durante uma hora ou mais.
Em geral, os Duncan não assistem a estas sessões de música. Tenho a impressão de que não apreciam muito esta arte e ainda menos o piano. É evidente que este instrumento não tem qualquer ponto de contacto com a gaita de foles... Ou talvez eu, como executante, deixe muito a desejar e não os interesse escutar-me.
Seja como for, passam directamente da casa de jantar para a sala de fumo ou para a do bilhar e se, por delicadeza, acedem a entrar na saleta, pouco se demoram.
Esta noite, como de costume, encontrava-me sozinha e os meus dedos erravam maquinalmente pelo teclado. Estava aborrecida e não me sentia com paciência para interpretar Mendelsson ou Gabriel Fauré.
Maquinalmente, toquei canções francesas: Il était une bergère, Meunier, tu dors, Sur lê pont d'Avignon, Plalsir ã'Amour, Femmes, que vous êtes jolies... Acabava de tocar os últimos acordes de Nous n'irons plus au Bois e, ao mesmo tempo, deixava-me embalar pelas recordações que estas singelas melodias me despertavam.
De repente, embora soubesse que estava sozinha, voltei-me instintivamente e dei com Edward entre portas.
Fiquei atrapalhada porque não tinha dado por ele e não sabia se estava ali havia muito. Por seu lado, meu marido empalideceu, corou e balbuciou como garoto apanhado em falta:
- Desculpe, Cristie... perdi a bolsa do tabaco... e vinha ver se estava aqui...
- Entre... entre... Não a vi, mas talvez esteja por aí, caída em qualquer canto - concordei, esboçando compreensivo sorriso.
Relanceou a vista pela arca e pela mesa, numa inspecção rápida e superficial, como se estivesse certo, de antemão, de que a bolsa não se encontrava ali.
E, com efeito, não seria muito provável, visto Edward não ter entrado na sala havia mais de dois dias.
- Não está, não... desculpe tê-la interrompido, Cristie... vou ver se a deixei noutro lado.
E saiu precipitadamente, como se algum bicho lhe tivesse mordido.
Mas para que reparo nestas ninharias que nem sequer merecem que lhes dê atenção?...
Sir Archibald foi a Ullapool com os filhos e não pude acompanhá-los, como sempre acontece quando a viagem é motivada por negócios de família ou de dinheiro.
O tempo continuava péssimo, embora estivéssemos numa época que, em França, se considera já como Primavera. A viagem a Ullapool, nestas circunstâncias, não constituiria divertimento para mim, tanto mais que iam tratar de negócios.
Um navio, de que os Duncan são armadores, acabava de chegar ao porto com avarias, o relatório recebido do comandante não foi de molde a tranquilizar os seus proprietários e surgiram certas dificuldades com a companhia de seguros que exigia a presença dos interessados.
O caminho é longo e fatigante e, apesar do desejo de conhecer o porto, não me importei de não ir desta vez, prometendo a mim própria aproveitar ocasião mais favorável para visitar a cidade, que me interessava bastante.
Os primeiros dias correram sem novidade. Há muito que pus um freio à fantasia e tracei um programa, no que diz respeito à minha vida de todos os dias, isto é, jurei contentar-me com as modestas alegrias que Deus me concede e não exigir mais.
Há quanto tempo releguei a imagem pueril do Príncipe Encantado para o sótão!...
Se, a cada passo, me preocupo com Edward, com todas as suas palavras e gestos, isso é comigo e não o dou a perceber a ninguém.
Comecei a bordar uma toalha de linho para oferecer à minha mãezinha e quando me aborrecia, largava o trabalho e lia ou ia para o piano ou para a estufa cuidar das flores... as flores que são todo o meu orgulho e consolação.
A solidão se, por vezes, se tornava nostálgica, como todas as solidões, não me custava a suportar.
Na manhã do terceiro dia, quando me preparava para tomar o breakfast, antes de começar a tarefa cotidiana, isto é, assistir à arrumação da roupa e dar uma vista de olhos pela cozinha, Catarina entrou na sala de jantar.
Estava transtornada, como se qualquer coisa se tivesse passado que a impressionasse.
- Que temos, Catarina?...
- Está lá fora uma mulher com um pequenito, que pede para falar, pessoalmente, a Vossa Graça.
Olhei-a com espanto... Não conhecia ninguém na Escócia, salvo os amigos dos senhores de Uam-Var.
- Tens a certeza de que é a mim, em especial, que pretende falar? -insisti.
- Perguntou por Lady Duncan, teimou em ser recebida por Milady, mas não quis dizer o nome.
- Provavelmente, não a conheço.
- Afirmou tratar-se de um assunto pessoal... uma coisa que só a Vossa Graça diz respeito.
Num relance, pensei na minha família de França e fiquei assustada. Mas, logo a seguir, reconsiderei.
Se o caso se referisse aos meus, a mulherzinha teria primeiro dito quem era.
Então, não sei bem porquê, nem por que associação de ideias, recordei a visita do advogado e dos dois ajudantes, na manhã já tão distante, pouco depois de ter chegado ao castelo.
- Bem... vou falar-lhe...
Abandonando a mesa, encaminhei-me para o vestíbulo para onde Catarina tinha mandado entrar a visitante.
Encontrei-me na presença de uma mulher dos seus quarenta anos, correctamente trajada, mas com aspecto boçal. Trazia consigo um garotito loiro, de olhos negros e vivos, que deveria ter os seus três ou quatro anos.
Dirigi-lhe breve saudação e perguntei logo:
- Pediu para me falar... que deseja?...
Não a tratei com muita amabilidade. Estava contrariada com a visita e, na ausência dos Duncan, receava cometer alguma tolice.
- Venho trazer-lhe o Cristiano - declarou a desconhecida com a maior naturalidade, como se estivesse certa de eu conhecer o assunto-A Gertrudes morreu e a família não sabe o que há-de fazer da criança.
com grande surpresa minha, falou-me em francês... mau francês, na verdade.
- Cristiano!... Mas quem é Cristiano?... Estava desorientada, visto nunca ter ouvido falar
em semelhante pessoa.
- Este garoto! -elucidou, indicando-me o pequenito.
A criança fixava-me com os grandes olhos negros, mas numa atitude abstracta, dando voltas ao bonézito, como se não se tratasse dele. As feições eram finas e adoráveis.
A minha interlocutora demonstrava, pelo modo de falar, achar aquilo tudo tão normal, que, persistindo na minha surpresa e incompreensão, arriscava-me a comprometer não sabia bem que disposições tomadas sem que eu soubesse.
Como se adivinhasse estas hesitações e quisesse pôr os pontos nos ii, a mulherzinha prosseguiu:
- Não ignora que o pequenito estava em França!... E como eu fui lá, de passagem, pediram-me para o trazer. Se a velha Gertrudes morreu, compete agora ao pai e à mãe tomarem conta dele, não acha?...
A frase foi acompanhada por leve sorriso e proferida com convicção tão evidente que me deixou muda de espanto.
Foi como se tivesse notado simplesmente: "Chove imenso, esta manhã".
Concordei, maquinalmente, com um movimento de cabeça, como se lhe respondesse: "Tem razão... ".
No entanto, não compreendia nada, nem a mulher me deu tempo para reflectir.
Designando a maleta, poisada em cima de uma arca antiga, continuou:
- Está ali a roupa... aqui tem o pequeno... Como vê, trataram-no bem.
Estendeu a mão ao pequenito, que continuava a olhar para mim como se me considerasse maravilhoso brinquedo ou delicioso bolo.
- A minha missão terminou - concluiu a mulherzinha com um suspiro de alivio - Tome conta dele.
Depois, sem descansar, e sem me dar tempo a protestar, declarou:
- Regresso no carro que me trouxe porque não tenho tenções de dormir em Kilkrew e quero apanhar o comboio em Lairg. Peço-lhe, Milady, que não me demore e passe recibo do pequeno e da roupa.
com um gesto autoritário, designou novamente a maleta e pediu ainda:
- É conveniente que, primeiro, se certifique de que não falta nada. Depois posso partir, mas só depois de me ter reembolsado das despesas da viagem.
Tudo parecia regulado de antemão, como se o caso fosse, absolutamente, normal.
Se tivesse na minha frente um rendeiro e ele me prestasse contas, as coisas não se passariam de outro modo.
Quanto a mim, ia de surpresa em surpresa e nem tempo tinha para me aperceber bem do que se passava.
A mulher demonstrava saber o que queria e, por isso, limitei-me a perguntar:
- Quanto tenho de lhe pagar?
- Quarenta e duas libras e quinze xelins declarou sem sombra de hesitação.
Mostrou-me a nota das despesas que já trazia preparada e, ao mesmo tempo, entregou-me volumoso sobrescrito, contendo papéis.
A quantia afigurou-se-me enorme e, atrapalhada, nem sequer lancei a vista para a conta. De resto, não era o dinheiro que mais me preocupava. Não queria passar por tola... e, como dona de casa, pretendia demonstrar-lhe que estava ao facto do assunto. No entanto, não pude deixar de perguntar, observando-a com atenção:
- Tem a certeza de que o pequenito pertence à família Duncan?
- Essa agora!... Vossa Graça está a brincar comigo, por certo!... Se tenho a certeza?... Pois não foi Sir Archibald Duncan, o avô, quem pagou sempre a mensalidade para sustento do neto?...
Dada a avareza bem conhecida do chefe da família o argumento não tinha réplica, nem oferecia dúvidas.
Durante toda a cena, Catarina conservava-se entre portas, sem compreender o que se passava, visto mal perceber o francês.
Mandei chamar Mrs. Bertrand, não porque desejasse pedir-lhe conselhos ou esclarecimentos, visto Sir Archibald me ter recomendado que nunca pedisse a intervenção do pessoal para assuntos de família, mas simplesmente para me dar dinheiro, porque não dispunha das quarenta libras precisas para saldar aquilo que, em toda a aparência, devia ser um compromisso dos Duncan.
Mrs. Bertrand satisfez-me o pedido imediatamente, sem pedir explicações. Estava habituada à mais completa obediência e tinha sempre dinheiro à sua disposição. A parte financeira do governo da casa estava-lhe entregue desde sempre e ela não cedia a ninguém os seus direitos.
- Não quer almoçar ou, pelo menos, tomar uma bebida quente? - ofereci à mulher, que se preparava para retirar.
- Não, obrigada... Não me apetece nada e, além disso, tenho receio de perder o comboio... Como sabe, as estradas estão más, por causa do tempo.
Não insisti. Dava a impressão de que tinha o diabo atrás dela e que ansiava por se ver bem longe de Uam-Var. Eis o efeito que a sombria torre provoca nos visitantes incautos...
Recordava, com um sorriso, os calafrios que sentira na noite da chegada, ao contemplar as pedras denegridas e o aspecto pavoroso do castelo.
À saída, voltou-se para a criança e, afectuosamente, despediu-se:
- Adeus, Cricri... Porta-te com juízo...
Depois saiu, apressada.
Ficámos as três, eu, Catarina e a mãe, a olhar umas para as outras e para a migalhinha de gente que, sem dizer palavra, olhava para nós também, sem se mostrar por forma alguma preocupado com a saída da mulherzinha.
Pelo contrário, dir-se-ia que a considerava absolutamente normal. Estava decente e confortavelmente vestido, mas o trajo era mais de camponês do que de um membro da aristocrática família Duncan, cuja ascendência remontava à época das lutas entre os Pitt e os Scots.
Só então eu considerei quanto a presença do pequenito tinha de insólito.
Tudo se desenrolara com tal rapidez que nem tivera tempo para reflectir e, por assim dizer, haviam-me imposto os acontecimentos sem que pudesse protestar. Dir-se-ia prestidigitação ou hipnotismo.
Mas, depois de cair em mim, começava a recear deveras que me tivesse deixado intrujar.
Quem seria aquela criança... quem me provava que, de facto, pertencia à família Duncan?... Nenhum dos dois irmãos era casado ou, por outra, se um deles tinha esposa, não dava por ela!... Nunca ouvira Sir Archibald referir-se a filhas que pudessem ser mães do pequenito e, no entanto, a mulher que o trouxera afirmara ser Sir Archibald o avô.
Uma história sem pés nem cabeça, no fim de contas. O sobrescrito que me entregara estava endereçado a Lady Duncan, mas com certeza não se tratava de mim. Por outro lado, nem sequer me lembrara de lhe perguntar o nome, nem onde residia.
Começava a perguntar a mim própria se não teria sido vítima de uma mistificação... Logo, por infelicidade, tudo isto se passava na ausência de Sir Archibald e dos filhos. Só eles poderiam desembaraçar esta meada tão enredada.
Enquanto reflectia em tudo isto, o pequeno continuava a contemplar-me, como se eu fosse a oitava maravilha do Mundo.
Os olhos eram maravilhosos, enormes, profundos e brilhantes como dois diamantes!... E tão comovente, em atitude ansiosa, torcendo o bonezito entre os dedos...
De súbito, fossem quais fossem as razões por que estava ali, apesar de todas as minhas reflexões, só vi diante de mim aqueles dois olhos, fitando-me, e as mãozitas, torcendo o boné! E compreendi vagamente que, se porventura me deixara enganar, se tomara conta do pequeno quase sem provas e aceitando como verdadeiras todas as palavras da mulherzinha... se em toda aquela história demonstrara uma fraqueza de ânimo e passividade, muito estranhas ao meu modo de ser, fora unicamente por causa da expressão daquele olhar de criança.
- Que vamos fazer do pequeno?
Foi a pergunta da boa senhora, pedindo-me instruções.
Estava decidida, como já disse, a proceder sozinha e não solicitar esclarecimentos do pessoal sobre o pequenito. No entanto, quis vincar bem a Mrs. Bertrand que, também para mim, tudo aquilo constituía um enigma.
Mas quando queremos explicar muita coisa, acabamos sempre por não explicar coisa alguma. Todavia, tornava-se necessário que ela não supusesse que o pequenito tinha qualquer laço de parentesco comigo.
- Quando Sir Archibald regressar, nos explicará quem é esta criança, visto Mrs. Bertrand saber tanto como eu, segundo parece.
Era um meio, como qualquer outro, de ilibar a minha responsabilidade e, ao mesmo tempo, de a sondar. Mas, por muito hábil que fosse, o estratagema não deu resultado.
Mrs. Bertrand começou a rir.
- Há muito tempo que não se vêem crianças em Uam-Var - limitou-se a dizer - Além disso acrescentou, retomando o ar sério com aparente ingenuidade - a mulher não disse que o garoto vinha de França?
Como interpretar esta frase, aparentemente tão sensata, mas, ao mesmo tempo, tão ambígua?... Porém, não perdi muito tempo a adivinhar as intenções ocultas da governanta, porque uma vozita infantil me interpelou:
- Quero voltar para a minha casa... quero ir para a minha mãe.
Tinha um timbre meigo e suave como o piar de um passarito, caído do ninho. Ao mesmo tempo, havia acentuações tão tristes, vibrações tão patéticas naquela vozita de criança, que, a partir desse momento, tive a certeza de que faria tudo quanto ela me pedisse, porque nunca teria forças para lhe recusar fosse o que fosse.
Além disso, falava em francês. Havia longos meses que não ouvia falar a minha língua natal, com excepção das raras e desastrosas tentativas feitas por um ou outro dos criados.
Instintivamente, impelida por uma força que não saberia analisar, mas que me enchia o peito como rajada poderosa e irresistível, curvei-me para a criança e puxei-a para mim.
- Onde está a sua mãe, meu amor?
- Ficou lá.
- Lá, aonde?
- Em Bourbourg. Ficou a dormir, mas o Cricri quer ir ter com ela.
- Chamas-te Cricri?...
- Chamo, sim.
Encontrei, instintivamente, as inflexões que minha mãe tomava para me falar quando eu era pequena e, por certo, tinham ficado adormecidas no fundo da minha memória. Seria também o instinto latente da maternidade, que existe no coração de toda a mulher digna desse nome ou resultado do meu carácter sentimental, mas a criança encantava-me.
Relanceei mais uma vez os olhos para o sobrescrito que a mulher me tinha dado, endereçado a Lady Duncan.
Perdia-me em conjecturas. Quem seria essa Lady Duncan?... Talvez pertencesse ao ramo Duncan Hummer que o advogado tinha mencionado na ocasião da visita ao castelo.
Fosse quem fosse, estava decidida a conservar o sobrescrito fechado. Apesar da curiosidade me devorar, mantê-lo-ia intacto até ao regresso de Sir Archibald, contando que ele desembrulharia a meada.
Até ele chegar e dada a forma como, em toda a evidência, me deixara enganar, que mais poderia fazer se não acolher a criança e fazer o possível para a distrair da recordação daquela por quem chamava com tanta insistência?...
Apesar do adiantado da estação, os fogões ainda estavam acesos porque, nesta região, o Inverno eterniza-se. Sentei-me na cozinha, diante da chaminé, libertei o pequenito do casaco húmido da chuva, tirei-lhe o boné das mãos e as polainas de lã, todas salpicadas de lama.
- Onde vamos instalá-lo? - perguntou a governanta, que, decididamente, tinha sequência nas ideias.
- Arma-se uma caminha no seu quarto sugeri.
Nem sei porque me ocorreu esta lembrança.
Pensei que não seria decente pôr um Duncan
- visto supor-se que era um Duncan - a dormir com o pessoal, mas, inconscientemente, quis remediar a precipitação com que tinha acolhido o pequeno e atenuar, de qualquer modo, a minha responsabilidade.
Mrs. Bertrand, porém, com uma acuidade e uma oportunidade que faziam honra à sua presença de espírito, respondeu-me:
- Não sei o francês bastante para poder compreendê-lo. Não seria preferível instalá-lo na casa de banho de Vossa Graça?... Se for preciso - apressou-se a acrescentar, prevenindo qualquer objecção da minha parte - arma-se também um divã para a minha filha, para Vossa Graça não ser obrigada a levantar-se de noite, se ele chorar.
Olhei para ela com espanto.
Perguntava a mim própria se a proposta não encobria manha ou segundo sentido.
Talvez não... A sua expressão era ingénua como a de um cordeirinho. Decididamente, que ideias tolas ia eu buscar?... No entanto, a proposta não deixou de me parecer estranha.
Era um facto que a criança só falava francês, que tinha vindo da minha terra e que, até se provar o contrário, pertencia à família Duncan. Mas seria normal eu tratar dele? Não resolvi o assunto de momento e limitei-me a dizer que decidiria mais tarde.
- Como Vossa Graça entender - redarguiu a governanta, sem se mostrar ofendida.
Entretanto, levei o pequenito comigo para a saleta do rés-do-chão.
- Vem comigo, Cristiano - disse, sorrindo-lhe
- Vais conhecer o Mirza.
- Quem é o Mirza.
- Um cãozinho muito bonito que está a aquecer-se diante do fogão.
O Mirza pertence-me, foi-me dado pelo próprio Sir Archibald e é descendente da mais pura raça setters.
O pequeno deixou-se conduzir docilmente, sorrindo também. O seu sorriso continha todas as doçuras do paraíso e todas as graças da terra.
- Vais levar-me para casa da mamã Gertrudes?
- perguntou com comovente confiança - Não a vejo há muito tempo, sabes?...
- Vê-la-ás para a semana, meu amor.
- Nessa altura ela já estará acordada?... Estremeci, olhando-o com tristeza. Sorria com a
perspectiva de encontrar a mamã Gertrudes desperta do seu sono letárgico.
- Gostavas muito da mamã Gertrudes? -perguntei muito séria.
- Se gostava! -afirmou a criança com o rosto iluminado - Pegava-me ao colo e beijava-me muito... Era tão bom!... Depois, um dia adormeceu e os homens levaram-na... uns homens todos de preto... Mas disseram-me que voltaria.
Estas ingénuas confidências confrangiam-me o coração.
- Há-de voltar, sim, meu amor - confirmei, compadecida - Tu verás...
- Tenho tanta coisa que lhe contar...
- Muitas?...
- É verdade. vou dizer-lhe que fiz uma grande viagem e ela vai ficar muito admirada. Andei de comboio, num navio e de carro... Pensei que nunca mais chegávamos. E como a mamã Gertrudes não pôde acompanhar-me, quero contar-lhe tudo. Quando me levas para casa dela, dize lá?...
De princípio tímido e retraído, o pequenito, com a versatilidade infantil e com súbita confiança em mim, começou a falar.
A mulher que o trouxera tinha-me dito que a avó da criança morrera, mas o pobre Cricri não fazia a mais pequena ideia do que isso significava.
Era um órfão, uma criança sem família que me tinham lançado nos braços e, sem saber ainda qual o verdadeiro laço que o prendia à família Duncan, sentia a maior ternura e compaixão por ele.
Embora ainda não fosse meio-dia, ordenei à Catarina que servisse o almoço. A hora era anormal, mas pensei que, tendo feito tão longa viagem, a criança morresse de fome e de fadiga.
- Comeremos aqui, na salinha, perto do fogão. Depois, deitá-lo-emos.
Nesse instante, ocorreu-me uma ideia que, segundo me pareceu, resolveria o problema, satisfazendo as conveniências e o desejo que me animava de rodear a criança de cuidados e carinhos.
- Pensando bem, Catarina, resolvi que o pequenito dormisse no teu quarto. Se ele chorar, de noite, irás chamar-me. Seria inútil desarrumar a minha casa de banho para dormirem lá os dois - acrescentei.
- Como Vossa Graça entender - respondeu a rapariga com a mesma expressão impessoal que a mãe tomara pouco antes, ao falar no assunto - Ele é muito engraçadinho - concluiu, humanizando-se e sorrindo para o pequenito.
Cricri, porém, não lhe deu atenção... nem tão-pouco a mim... Naquela altura, para ele só existia o Mirza.
A criança não devia ter mais de três anos. A vozita cristalina, a forma engraçada de pronunciar as palavras, encantavam os ouvidos. Os grandes olhos que, até ali, fixavam tudo numa expressão tímida, ao mesmo tempo receosa e maravilhada, contemplavam agora o cão com confiança e alegria.
Visivelmente, Mirza era o ser vivente que, naquela casa, mais o interessava e logo o adoptou como companheiro para a brincadeira. Quanto a nós, punha-nos de lado.
O animalzinho, por seu lado, acolheu Cricri, lambendo-lhe as mãos, e não opôs o mais pequeno protesto quando o viu de gatas a seu lado, nem quando lhe puxou pela cauda e pelas orelhas ou, sem cerimónia, lhe cobriu de beijos o focinho negro e felpudo.
Quando, vinte minutos depois, Catarina apareceu com a bandeja do almoço, o pequenito, com a cabeça encostada ao dorso do cão, que se conservava muito quieto para não o acordar, dormia tranquilo, com um sorriso angelical.
Quando, decorridos alguns dias, Sir Archibald e os filhos regressaram, encontraram-me arvorada em ama. Quando chegaram, estava na saleta do rés-do-chão a coser uma bluzita para o garoto. Estendido no tapete, a meus pés, Cricri brincava com Mirza.
Quando os vi entrar, pensei: "Finalmente, vou descobrir o enigma desta história! ".
O meu sogro foi o primeiro a aparecer e o seu olhar caiu, notei-o logo, com o maior espanto, na minúscula personagem que se instalara em Uam-Var.
- Que é isto, Cristiana?... Teve uma herança? Soltei uma gargalhada.
- Caiu do Céu, pai. Trouxe-o uma mulher, declarando que a Gertrudes tinha morrido e que a família da dita Gertrudes não podia continuar a olhar por ele.
O semblante de Sir Archibald revestiu-se logo de grave expressão. Fixava-me com olhar penetrante, aguardando, visivelmente, que eu lhe desse mais pormenores. Contudo, não se mostrava muito admirado.
- A mulher - prossegui, considerando que seria preferível contar-lhe tudo e falar-lhe logo na questão do dinheiro que, segundo eu calculava, seria a mais difícil - a mulher pediu-me quarenta e duas libras e quinze xelins, como reembolso das despesas de viagem e outras mais.
Custou-me, mas estava dito... e o meu sogro nem pestanejou. Continuava, simplesmente, a olhar para mim.
- Mrs. Bertrand liquidou essa quantia - prossegui- e a mulher foi-se embora, deixando-nos o pequeno e a respectiva roupa. Pode verificar o conteúdo da mala, na qual ainda não toquei. É tudo quanto sei. Aguardava ansiosa a vossa chegada, contando que pudessem esclarecer-me sobre o assunto.
Levantei-me da cadeira e encaminhei-me para a secretária.
- Esqueci-me de lhe dizer que também me entregou este sobrescrito... Embora esteja endereçado a Lady Duncan, como não julgava possível ser eu a destinatária, não o abri.
Entreguei o sobrescrito a Sir Archibald, que não demonstrava a mais pequena surpresa e, sem proferir palavra, continuava a observar-me com olhar penetrante.
Durante a conversa, Edward aproximara-se do fogão e examinava a criança com olhar curioso e insistente. Sir Archibald rasgou o sobrescrito e tomou conhecimento dos documentos que ele continha.
Michael havia abandonado o aposento, depois de me ter dirigido amistoso sorriso e um gesto de despedida.
Curvando-se para o pequenito, que o examinava com olhar misto de curiosidade e de receio, Edward perguntou-lhe em francês:
- Quantos anos tens?
- Três.
- Como se chama a tua mãe?
- Mamã Gertrudes.
- Gertrudes - repetiu Edward, pensativo - Não conheço esse nome.
- Conheço eu - atalhou Sir Archibald com estranha dureza - É o da ama a quem esteve confiado.
Sempre calculara isso. A insistência com que o pequeno me pedia para a ver - insistência que diminuira nos últimos dias - provava que nunca conhecera a verdadeira mãe.
- Está aqui a certidão de baptismo - declarou Sir Archibald, examinando os documentos que tinha na mão - e também uma certidão de legitimação. Suponho - acrescentou, dirigindo-se ao filho com expressão intencional que não me passou despercebida - suponho que não ignoras o que isto significa.
- com efeito, já sei do que se trata - concordou meu marido com singular despreocupação, como se o assunto não fosse com ele, embora, pela atitude do pai, eu adivinhasse que, particularmente, lhe dizia respeito.
Edward voltou-se com leve dureza no olhar e examinou o pequeno com indiferença.
- Seja como for, eis-nos com um garoto à nossa conta, sem sabermos muito bem o que havemos de fazer dele - observou, aborrecido-Que ideia disparatada teve a mulher em o trazer aqui!
- Sim, com efeito, não havia necessidade disso. Seria preferível que me tivesse escrito, comunicando-me a morte da ama. Que mau gosto teve ela em morrer nesta altura! Mas, enfim, já que veio, temos de nos conformar com o que Deus nos envia. Não consideremos o facto como catástrofe, mas apenas como um contratempo.
Para mim, era como se falassem hebreu, pois não percebia uma palavra do que diziam. A vinda do pequeno aborrecia-os, mas não os surpreendia. Para mim, uma única coisa me interessou. Sir Archibald não se afligira com a despesa das quarenta e duas libras e quinze xelins. O facto representava um sintoma de extrema agitação ou provava que ele considerava tudo aquilo absolutamente normal.
Como se adivinhasse o curso dos meus pensamentos, voltou-se para mim e, levemente trocista, exclamou:
- Tem então um filho, Lady Duncan... pois penso que vai acolhê-lo maternalmente.
Fiquei sufocada e mal pude balbuciar:
- Meu filho?
- Seu filho, sim, porque não?... Não gosta dele?... Vibrava-lhe na voz uma nota de ironia que nunca
lhe conhecera e me desagradava sobremaneira. Contra toda a evidência, quis persuadir-me de que tinha ouvido mal e respondi:
- Pelo contrário, gosto imenso. É muito engraçadinho e desde que chegou tenho olhado por ele com prazer. Não porque seja sua mãe, mas simplesmente por ser um entezinho fraco e, para mais, Francês. Julgo não existirem outros laços entre nós.
Num gesto brusco, Sir Archibald mostrou-me uma certidão francesa.
- Leia - ordenou num tom autoritário que nunca tinha usado comigo - Filho de pais incógnitos, diz a certidão de baptismo.
- Pobre garoto! -murmurei compadecida.
- Pobre garoto, sim - repetiu Sir Archibald, mantendo a mesma ironia que tanto me desagradava
- Felizmente - prosseguiu em voz sarcástica ainda há pessoas caridosas. Aqui tem outra certidão que legitimou a criança. Leia e veja se a fixa, prevendo futuras complicações. Reconhece a sua assinatura?...
Maquinalmente, peguei na certidão, escrita em inglês e, absolutamente estupefacta, como num pesadelo, li que Edward Duncan, ao casar com Cristiana Chambreuil, legitimara no registo do condado de Londres o filho nascido antes do casamento e que a mesma Cristiana Chambreuil, confirmara, assinando a legitimação.
Não podia duvidar, era bem a minha assinatura! Por instantes fiquei sem voz, como sufocada. Depois, uma onda de indignação toldou-me o cérebro.
- Assinei, sim! -bradei - Não posso negar que seja a minha assinatura. Assinei este, como todos os papéis que me apresentaram na ocasião deste maldito casamento que eu desejaria nunca ter realizado; assinei-os confiadamente, sem ter tempo de ler ou examinar. Mas este pequeno não é meu filho. Isto representa um abuso, uma indignidade!
Estava fora de mim e não podia nem queria dominar-me. Todo o fel, toda a amargura acumulados durante tantos meses, subia-me agora aos lábios, numa vaga impetuosa. Aquela última história, que não podia deixar de considerar como suprema infâmia, fora a gota que fizera transbordar a taça. Que cavalheiros! Aquilo que eu classificava como escroquerie moral, podia considerar-se de força.
Sir Archibald, que até ali se mostrara sarcástico, para não dizer insultante, ficou manifestamente impressionado com o meu tom de sinceridade. Em voz calma, persuasiva, essa voz que sempre empregara para me falar desde a minha chegada à Escócia, protestou:
- Não, Cristiana, não é uma indignidade como afirma... é uma caridade. Se for esse o seu desejo, afastaremos a criança daqui. Mas lembre-se de que, por estranha e feliz coincidência, ele tem o seu nome. Não pensa que talvez seja predestinação, um sinal do Céu para que a Cristiana não atire fora do ninho o pobre pardalito que Deus lhe enviou?...
Voltei-me para o garoto e, no mesmo instante, toda a minha cólera se desvaneceu. Olhava para nós com os seus olhitos brilhantes e sem proferir palavra. Ninguém reconheceria nele a criança tímida e receosa do primeiro dia. Agora era um entezinho confiante, seguro de si e dos outros e nem por sombras lhe passava pela mente que eu pudesse mandá-lo embora, o repelisse. Considerava como muito seu o cantinho diante do fogão e ao lado de Mirza.
- Predestinação... predestinação! -resmunguei entre dentes - Se encaramos o assunto por esse prisma, então é outra coisa. Não quero mal ao pequeno e, embora não seja sua mãe, estou disposta a olhar por ele. Para que mo impuseram sem eu saber?
O meu olhar ia de Edward para Cristiano. O pequeno sorria, certo de que ficaria ali sempre, sob a protecção dos Duncan e de Cristiana Chambreuil. Mas a atitude do meu marido exasperou-me mais uma vez. Era uma impressão estranha, que me dava a sensação de um mal físico, mas não podia suportar os seus ares impenetráveis, distantes, a raridade das palavras, o desdém e a indiferença que tudo, nele, revelava.
Não sei o que daria para o ver sair daquela apatia, senti-lo vibrar, zangar-se, apostrofar-me em termos que não fossem, eternamente, impregnados da mais requintada, mas também da mais fria delicadeza.
Seria forçoso pensar que só o álcool ou a presença das belas camponesas tinham o condão de o despojar da sua couraça e que eu estaria condenada para sempre à impotência total para lhe despertar interesse, para influir de qualquer forma no seu ânimo?... Como me considerava ele? Conservaria sempre aquela atitude glacial como até ali?
Fui impelida pelo irresistível desejo de o fazer sair fora de si, de fazer contrair, embora sob o impulso da cólera, aquela máscara impassível e indiferente. Não podia encontrar melhor ensejo... quando encontraria outro semelhante?
- Pergunto, simplesmente - declarei, martelando as palavras, dirigindo-me directamente a ele e fixando-o bem a direito nos olhos, enquanto, pouco a pouco, a cólera me toldava o cérebro com crescente violência - o que eu pergunto é a quem pertence esta criança e qual o motivo porque ma impuseram?
Edward não resistiu ao meu olhar e respondeu-me, sem elevar a voz, em tom calmo, quase paternal:
- Pelo documento de legitimação que acaba de ler, o pequeno parece ser meu filho. A mãe morreu em França, quando ele nasceu, e é de crer que eu não estivesse junto dela, visto a criança ter sido baptizada como filho de pais incógnitos; quando lhe dei o meu nome, a si, a quem não conhecia, considerei também que seria justo dar uma situação legal ao pobre pequenito que nascera sob o signo da desventura. Meu pai pagava à ama que tomava conta dele, mas essa mulher morreu agora. Lembraram-se então de trazer o garoto para aqui, para a sua casa. Eis tudo quanto julgo poder dizer-lhe a este respeito.
Creio que nunca falou tanto, mas, vendo bem, poderia ter ilusões.
"... A si, a quem não conhecia, considerei também que seria justo legalizar a situação do pequenito... eis tudo quanto julgo poder dizer-lhe... ".
Era o máximo que podia suportar!... Como tudo aquilo se tornava odioso, odioso ao máximo! Seria possível que não o percebessem?... Pois se não percebiam, ia eu dizê-lo.
Notei também que o meu marido não tinha vontade própria. O pai decidia e ele contentava-se em concordar.
Não teriam melhor marido para me arranjar?... E, ainda por cima, era pretensioso e egoísta... e desdenhoso, o cavalheiro!... Quem seria a mãe do pequeno? Gostaria de lhe dizer quatro verdades amargas, mas a ocasião não me pareceu das mais próprias. Já tinha razões bastantes para me enfurecer, sem ser preciso procurar outras mais íntimas. A principal, era a legitimação do pequeno que me lançavam à força nos braços. Chegava bem...
Em voz alta, protestei fora de mim:
- Não, não e não!... Nunca me conformarei em ser mãe legítima de uma criança que conheço há dois dias... nascido de uma mulher qualquer!
- Mas...
- Não há mas, nem meio mas. Não repararam que o pequeno nasceu quando eu ainda não tinha feito dezoito anos?...
- Cristiana...
- Não quero ouvir nada.
A minha revolta atingia o paroxismo e quanto mais me encolerizava, mais considerava como justas e únicas as razões de queixa que expunha.
- Não recuaram perante coisa alguma... a tudo se julgaram autorizados. Não pensaram que existem coisas sagradas em que se não deve tocar. vou imediatamente escrever a minha mãe para lhe contar o sucedido e pedir-lhe conselho. O meu advogado saberá libertar-me desta maternidade imposta à força.
No fundo, só a ideia de revelar a minha mãe toda esta história, quando nem sequer lhe tinha dito que estava casada, me fazia tremer.
Antes de prosseguir, observei alternadamente Sir Archibald e o filho. O primeiro, couraçado na sua dignidade invulnerável, não proferia palavra. O segundo também não tentava justificar-se, mas estava lívido. Nunca o tinha visto tão pálido. Cada uma das minhas palavras devia ser para ele uma punhalada.
Atingira os meus fins. Agora tinha de continuar, se quisesse esmagá-lo com as minhas justas queixas e obrigá-lo a sair da sua reserva de gentleman que nunca perde a calma. Gostaria de o ouvir protestar, praguejar, chegar até a ameaçar-me, se tanto fosse preciso. Tudo em mim exigia uma cena disparatada. Não podia continuar naquele exasperante self-controle.
- Considero-os como dois falsários - continuei, implacável - A pretexto de precisarem de uma dona de casa, trouxeram-me para aqui e dispuseram a seu belo prazer da minha pessoa e da minha honra. O mal é fácil de acreditar. Todos vão supor que fui mãe aos dezoito anos... Para os senhores, a honra e a reputação de uma rapariga honesta nada valem, pois não?... Detesto-os, fiquem sabendo... odeio-os!
Esta última apóstrofe foi destinada especialmente a meu marido. E como, apesar das minhas fanfarronadas, os soluços me subiam à garganta, procurei a salvação, fugindo.
Sem fazer caso do pequeno, do cão, de meu marido e de Sir Archibald, corri para a porta e fui refugiar-me no meu quarto.
Chorava havia um quarto de hora, repisando nos agravos recebidos reais e imaginários, e considerando no absurdo da situação, quando ouvi bater à porta.
Rapidamente, procurei enxugar as lágrimas e remediar os estragos que tinham causado aos meus olhos avermelhados de pálpebras inchadas, antes de dizer: "Entre! " numa voz que mais se assemelhava a um murmúrio.
Era Sir Archibald. Mostrou-se muito impressionado com o meu estado, mas simulou que não viu o gesto de aborrecimento que fiz ao vê-lo. Aborrecimento e desapontamento, pois contava ver aparecer meu marido. Mais uma vez me enganava.
Convidou-me com um gesto a sentar-me, antes de se instalar, por sua vez, em funda poltrona que já devia ter assistido a discussões dos Mac-Guire com os Duncan, nos séculos passados. Não obedeci ao convite porque estava demasiado nervosa para me conservar quieta e fui encostar-me ao enorme fogão, principal ornamento do meu quarto.
- Cristiana - começou o meu sogro, pondo na voz toda a ternura de que era capaz - venho pedir-lhe que reflicta antes de tomar uma resolução. Se escreve a sua mãe, separar-se-á de nós para sempre... E se eu lhe oferecesse uma indemnização pelo mal que lhe causámos?...
Sobressaltei-me. Não só pela rapidez do ataque e a singularidade da proposta, como, sabendo como era avarento, pela surpresa que me causava semelhante decisão. Que representaria eu para eles, para que meu sogro se decidisse a sacrifícios de dinheiro?...
- Finalmente, quero saber o que significa isto tudo!... Sem uma explicação, sem mesmo me conhecerem, como se atreveram a semelhante abuso de confiança?... Sim, porque não encontro outro termo para classificar o vosso procedimento. A família Duncan não tem então a mais pequena noção do que exige a honra de uma rapariga?...
- Estava certo de que o homem a quem encarreguei deste negócio a tinha posto ao facto do assunto.
Santo Deus!... Como se tornava desagradável e irritante ouvir o velhote classificar o meu casamento como negócio!... Contudo, via-me obrigada a reconhecer que, de facto, tudo aquilo não fora se não um negócio... nada mais. Como se me metera em cabeça que poderia algum dia ser outra coisa?... Devaneios de uma cabeça tonta.
Como seria possível que Sir Archibald acreditasse ou fingisse acreditar que o agente, encarregado de levar a cabo o tal negócio, não me tivesse posto ao facto da situação?... Se o tivesse feito, eu não teria passado tantos meses em Uam-Var sem me referir à criança.
Olhei-o bem de frente, mas não pestanejou. Parecia sincero e de boa fé. No fim de contas, talvez falasse verdade e estivesse na convicção de que o agente me explicara tudo. O ar irónico, mesmo sarcástico, que tomara ao mostrar-me a certidão de legitimação era mais uma prova da sua inocência no caso. A culpa não fora dele, mas do intermediário que me acompanhara a Londres. Encarregado por Sir Archibald de me pôr ao corrente das condições, abstivera-se de o fazer, com receio de que eu recusasse e, em consequência, ele perdesse a comissão que não devia ter sido pequena.
Não havia dúvidas. Tudo aquilo era um negócio, não mais do que negócio!
- Nunca pensei - continuou Sir Archibald que, dando-a como mãe do pequeno, lhe causasse o mais pequeno prejuízo. De momento, não posso se não oferecer-lhe uma compensação pecuniária - o negócio continuava - mas prometo-lhe que, dentro de alguns meses, ficará completamente satisfeita sob todos os aspectos.
Qual o significado dessa promessa? Estava farta de mistérios e de toda aquela história. Se ao menos Edward mostrasse reparar que eu existia... Mas quase ia jurar que se preocupava mais com a sua winschester de repetição do que com a minha humilde pessoa.
- Há sete meses que se encontra na Escócia e vive junto de nós. Pode certificar-se que não somos más pessoas e que toda a região nos considera. Suplico-lhe que acredite, a despeito das aparências, que nunca tivemos intenção de atingir a sua honra...
com efeito, os Duncan eram excelentes pessoas. Não podia negar também que Sir Archibald me considerava sempre como sua filha e todos me respeitavam como verdadeira dona da casa. Portanto, oficialmente, não havia razão de queixa, visto terem cumprido, desde o primeiro dia, todas as cláusulas do contrato. Se o casamento não passava de simples aparência, assim fora estipulado. Eu própria assinara a legitimação e, portanto, ninguém podia acreditar que ignorava aquilo que assinara, pois por ser perfeito o meu conhecimento do inglês.
Eles tinham razão e eu não podia protestar. Mas a irritação, a surpresa e o acesso de cólera que me dominara pouco antes haviam sido muito violentos para que confessasse agora o meu erro.
De resto, ainda que o quisesse, não o faria, porque nem uma palavra conseguia proferir.
Acima de tudo, o que mais me feria era a atitude daquele cujo nome usava. Só ele provocara a minha irritação, desapontamento e rancor... um rancor que se acumulara, pouco a pouco, durante aqueles sete meses. Eis o que não podia confessar a meu sogro.
Considerar-me-ia como um ser anormal... um fenómeno... um animal raro...
A frase do primeiro dia: "Não pensa, por certo, que entre ambos possa haver convivência..." e o tom em que fora dita ficaram-me gravados na memória. E, por isso, continuava encostada ao fogão, obstinadamente calada, numa atitude hostil, como criança amuada.
- Concebo que se sentisse magoada - continuou meu sogro-Impuseram-lhe a criança sem o seu consentimento e garanto-lhe que fiquei desolado com isso, pois nunca me passou pela cabeça abusar da sua boa fé e confiança... Desolado, pode crer... Não seria possível reparar o mal?...
- Se não anular a legitimação, como reparar? protestei com acrimónia.
- Não, isso não, Cristiana!... Não faça escândalo! Pense bem, suplico-lhe... Nem o seu nome, nem o nosso serão beneficiados se o fizer!
- Nesse caso, o que deseja?
De mim para mim, reconhecia que, de facto, um processo não seria o melhor meio. Se recorresse aos tribunais, todos os jornais citariam o caso e o escândalo seria tremendo.
Como se me adivinhasse os pensamentos, Sir Archibald prosseguiu:
- Quando aceitou o lugar que lhe oferecíamos, foi no desejo de ganhar dinheiro... Nessa altura, dei-lhe uma indemnização de duzentos mil francos, como compensação por se expatriar... E se lhe oferecesse agora igual quantia para mandar a sua mãe?...
Santo Deus! Pois ele oferecia-me dinheiro!...
Estive prestes a exaltar-me de novo. Semelhante abuso de confiança poderia ser remediado com dinheiro?... Depois olhei para o pobre velho... vi-o tão acabrunhado, tão humilde... Compreendi então que não pretendera ofender-me e considerava essa oferta como a única forma de compensar o prejuízo causado ao meu bom nome.
O negócio... sempre o negócio!... Toda a minha cólera se desvaneceu num segundo... Tudo aquilo, desde o princípio, se resumira num negócio... A minha saída de França, a vinda para Inglaterra, o casamento, a instalação em Uam-Var e, finalmente, a legitimação da criança... Sim, o negócio continuava. E como tal pedia reflexão e não podia resolvê-lo, pondo em jogo o meu amor-próprio ou um sentimentalismo sem importância. A oferta de Sir Archibald merecia estudo. Além disso, inteirada como estava, não seria minha obrigação tirar o melhor partido possível da situação?... Teria o direito de rejeitar a compensação que me oferecia?...
O primeiro passo é o mais difícil... agora era tarde para recuar... Não seria mais sensato a minha família aproveitar com as minhas tolices, visto não poder remediá-las, nem sair do labirinto em que me metera?... Visto as coisas terem chegado a tal ponto, o mais razoável seria beneficiar os meus e não arranjar mais complicações.
Desta forma, nitidamente, a necessidade de concluir mais um negócio impôs-se perante o meu espirito.
Mesmo assim, não deixava de me surpreender que meu sogro o propusesse. Qual seria o family skeleton que o obrigava a prender-me a Uam-Var?...
Duzentos mil francos!... Para ele se resolver a fazer-me tão mirabolante proposta, era preciso que estivessem em jogo interesses muito maiores!
Outra qualquer, mais manhosa e esperta do que eu, teria tirado partido da situação, feito chantagem e exigido maior quantia.
Sir Archibald, porém, já me conhecia bem e considerava-me incapaz de semelhante cálculo, dessa manifestação de baixos sentimentos.
Como se adivinhasse o que se passava em mim, declarou:
- Comprometo-me, além disso, a dar-lhe todas as satisfações a que tem direito, dentro de alguns meses. Mas, agora, preciso absolutamente que continue aqui, como esposa de meu filho Edward e mãe do pequenito.
Tive de fazer um esforço para me calar, porque não era aquele o problema. Ser esposa de Edward... Eu não queria outra coisa, santo Deus! Mas era, justamente, isso, que não podia dizer-lhes, nem a ele, nem ao filho em questão.
O meu silêncio fê-lo recear novas objecções. com bondade, prosseguiu:
- Vamos mandar o pequenito para o campo como se Uam-Var não pudesse considerar-se campo
- para casa de pessoas que não a conheçam a si e, assim, ninguém poderá dizer que foi mãe antes de casar.
Evidentemente, era uma solução... mas uma solução que não me agradava. Tinha-me afeiçoado ao pequenito e gostaria que ficasse em Uam-Var.
O seu afastamento, de facto, salvaguardaria a minha reputação no futuro, tanto para minha mãe como para todos... Sim, era preferível que não vivesse junto de mim...
Ocorreu-me, de repente, como seria triste ver o pequenito partir para ir viver com estranhos. Depois pensei que as crianças depressa esquecem e ele esquecer-me-ia como já tinha esquecido a mamã Gertrudes. Vendo bem, aquela era a solução que mais convinha.
- Daqui a alguns meses - continuou Sir Archibald, voltando à carga para me varrer as últimas hesitações, porque, sem dúvida, com a sua penetração, adivinhava-me prestes a ceder - poderei reparar aquilo que considera como prejuízo grave. Prometo-lhe que, nessa altura, lhe darei todas as satisfações e a recompensarei por todos os aborrecimentos por que tem passado.
Abandonando a poltrona em que estava afundado, aproximou-se de mim e poisou-me a mão no ombro, acrescentando em voz surda e vibrante:
- É um pai quem lhe suplica, Cristiana, é um homem que precisa do seu auxílio absoluto, sem restrições. Quer ter confiança em mim e ajudar-me como lhe peço?... Pense também que a mãe oficial de um Duncan nunca poderá suportar privações... o seu futuro está garantido e ao abrigo de todas as preocupações... tem assegurados para sempre o respeito e a consideração de todos... Cristiana, minha filha... e falo-lhe como se fosse, de facto, seu pai... garanto-lhe que só encontrará vantagens em confiar em mim.
Que poderia responder a este pedido, formulado em semelhantes termos e naquele tom?... Cólera, irritação, desgosto, tudo se desvanecera.
Ia responder-lhe com um sim, sem mais protestos, quando a imagem de minha mãe se desenhou na minha frente. Como poderia explicar-lhe, mais tarde, que, sem conhecer um homem, consentira em casar com ele pela ridícula quantia de duzentos mil francos, prejudicando todo o meu futuro e que, por outros míseros duzentos mil francos, acedera a passar por mãe de um rapazinho que não era meu filho?... Sim, porque, no fundo, a história resumia-se nestes dois pontos.
No entanto, a atitude acabrunhada e ansiosa de Sir Archibald impressionava-me.
Saindo, por fim, do meu mutismo, precisamente no momento em que meu sogro, já sem esperança de obter uma resposta, se decidira a sair do quarto, declarei:
- Oiça, pai. Estou ainda muito transtornada com tudo isto, para poder dar-lhe uma resposta e tomar uma decisão a sangue-frio. Peço-lhe vinte e quatro horas para reflectir. Amanhã de manhã, dar-lhe-ei a minha resposta definitiva, prometo-lhe. Dê-me tempo para me habituar a esta ideia.
- Seja como quer, Cristiana.
com estas palavras saiu do quarto e dirigiu-se para a escada.
Segui-o com a vista. Alquebrado, pensativo, dir-se-ia ter envelhecido dez anos.
Quanto a mim, esmagada pelos acontecimentos, impotente para os modificar, percebi que, mais do que nunca, o sentido único pesava sobre a minha vida.
Jamais conseguiria libertar-me daquela situação que, por minhas mãos, procurara e onde me enterrava progressivamente.
A sabedoria popular afirma que a noite é boa conselheira.
Este axioma para mim não mentiu, porque não consegui dormir. Dei voltas e reviravoltas na cama, pesando os prós e os contras, analisando a minha estranha situação, tentando recapitular, com serenidade e a sangue-frio, os acontecimentos do dia anterior e tomar, enfim, uma decisão.
Adormeci tardíssimo e acordei muito antes de romper o dia. Pressentia que, da minha resposta, dependia não só o meu futuro como o da criança e também, provavelmente, o da família Duncan.
Pensando bem, ao ponto a que chegara, a aquiescência não representava modificação essencial na minha vida. O tal sentido único tornar-se-ia irremediável, mas tudo continuaria como até ali. Casada com Edward, não ia tomar qualquer responsabilidade que não dissesse respeito a esse mesmo casamento. Pelo contrário, sentia a impressão de que, assim, tornaria mais fortes os laços que me prendiam a meu marido.
com o cérebro completamente desanuviado dos fumos da cólera, cheguei à conclusão de que o mal datava do dia em que tinha chegado a Londres e não das últimas vinte e quatro horas. Nessa altura, deveria ter reflectido e não aceitar, levianamente e sem pensar, um casamento fora do normal. Deveria ter calculado as possíveis consequências de tal passo e não proceder contra todas as regras impostas pela educação que tinha recebido... Sim, nesse momento, impunha-se que tivesse medido e pensado em tudo e não agora, que o mal já não tinha remédio.
E tudo isto acontecera só porque não vira possibilidade de devolver os duzentos mil francos recebidos adiantadamente e que, naquela altura, já deviam estar quase gastos... Como reconstituir a soma... como arranjar tanto dinheiro se não tinha meios de o ganhar?...
Talvez tivesse sido preferível enfrentar a tempestade e ter tido a triste coragem de regressar a França e confessar tudo a minha mãe... Ter-me-ia amparado com o seu carinho e, para me evitar tão estranho casamento, venderia os móveis e quanto fosse preciso.
Mas só de pensar nisso eu estremecia de horror. Não, nunca poderia sujeitar os meus a tão pesado sacrifício! Sendo assim, qual o caminho que deveria ter seguido para sair daquela trágica situação?... Não teria havido outra solução melhor?
Mas para que serviam tantas interrogações inúteis?... Por muito que me revoltasse agora, que me enfurecesse e tomasse atitudes de rainha ofendida, era muito tarde, porque o mal não tinha remédio.
Tanta indignação para quê?...
Admitindo que conseguisse romper com tudo, repudiar a maternidade que eu própria reconhecera, assinando cegamente documentos oficiais, não podia evitar o escândalo, precisamente aquilo que, por todas as formas, não queria que se desse. Pelo contrário!
Provocando um escândalo não ganhava coisa alguma perante minha mãe e perdia tudo perante os Duncan. Portanto, a revolta de nada servia, assim como se tornava inútil pensar o que poderia ter feito de princípio.
Por outro lado, aceitando as coisas tal como se apresentavam, a minha situação em Uam-Var em coisa alguma se modificaria e poderia continuar a olhar pela família que, por minha culpa, dependia absolutamente de mim. Mais ainda, graças à proposta que Sir Archibald me fizera, poderia reconstituir, pouco a pouco, o capital que, pela minha inépcia, havia esbanjado. Portanto, tinha tudo a ganhar calando-me, principalmente se as palavras sibilinas de meu sogro, ao afirmar-me que, dentro de alguns meses, me explicaria tudo e me recompensaria pelas horas amarguradas por que tinha passado, fossem verdadeiras.
Vendo bem, não havia razão para duvidar da boa fé de Sir Archibald. Até àquela data, cumprira sempre as suas promessas e fora, escrupulosamente, fiel aos compromissos tomados.
Pressentia também que em toda aquela história havia mistério. Para ser sincera comigo própria, tinha de confessar que a curiosidade, a tão falada curiosidade feminina de que estão constantemente a acusar-nos, era um dos motivos que me fazia inclinar para a aceitação.
Mas, para ser absolutamente sincera, acrescentaria que, além e muito acima destas considerações, havia duas outras que, embora à primeira vista não parecessem decisivas, na realidade, eram as de maior peso e mais essenciais: os lindos olhos de Cricri e os de Edward.
O olhar de Edward quando me voltei para ele, apostrofando-o com uma violência que ele não podia compreender!... Nunca lhe vira expressão semelhante àquela com que me fitara com uma intensidade e insistência insólitas.
Esse olhar fugitivo exprimia, simultaneamente surpresa, súplica, admiração e arrependimento. Fora como que um relâmpago, mas estava certa de não me ter enganado. Vi nesse olhar uma expressão diferente de todas as outras que estava habituada a encontrar nas raras ocasiões em que o seu olhar cruzava com o meu. E foi tão novo, tão inesperado para mim, que me deixou uma impressão que não conseguia apagar e que se impunha, por assim dizer, ao meu subconsciente. Era... era como se tivesse descoberto um Edward completamente diferente do Edward do costume... um ente novo, ignorado, desconhecido, que interferira, de súbito, na minha vida triste e isolada...
E os olhos de Cricri?... Uns olhos que não tinham coisa alguma de misterioso e só sabiam exprimir surpresa e súplica, na sua acepção mais pura?... Olhos cândidos de uma criança de quem já gostava e me pediam simplesmente, com ternura, para não renegar a minha assinatura de filho de pais incógnitos. Esse olhar advogava com inocência e instintivamente. Dizia-me que não tinha pedido para vir ao Mundo.
Ninguém me explicara, nem me explicaria, com certeza, por que conjunto de circunstâncias a criança tinha nascido longe do pai, nem porque esse mesmo pai se mostrava quase tão espantado como eu com a sua presença. Ninguém me dera pormenores sobre o idílio que fora origem do nascimento da criança. Mas o facto é que o pequeno vivia, estava ali e não podia eliminar-se com um simples traço da pena.
Eis tudo quanto li naqueles olhos inocentes... que falavam com eloquência e me tocavam mais fundo do que as mais veementes súplicas.
Foi, portanto, por estas duas razões que, de manhã, saí do quarto com a minha resolução assente e, mal acabou o primeiro almoço, subi ao escritório de meu sogro, muito antes de terem acabado as vinte e quatro horas pedidas.
- Não quero pensar no futuro, pai - declarei
- porque começo a ficar céptica quanto às surpresas que pensa preparar-me. O exemplo do passado torna-me prudente. Mas, no que diz respeito ao presente, depois de ter reflectido muito, concordo com a inverosímil atitude que ontem me suplicou para manter durante algum tempo.
Levantou-se sem dizer palavra, apertou-me a mão entre as suas e, comovido, murmurou simplesmente:
- Obrigado, minha filha!
Tive a impressão de que as lágrimas lhe toldavam os olhos, mas não fez mais comentários.
Considerava talvez que a emoção que deixara perceber na véspera era o máximo compatível com a dignidade de chefe de clã.
O assunto ficou assim encerrado e não voltámos a falar nele.
Decorridos alguns dias, conforme a promessa que quase esquecera, meu sogro entregou-me um cheque de duzentos mil francos.
Os dias que atribuira a esquecimento da sua parte tinham sido empregados a obter a autorização para enviar fundos para França. A saída de quantias de certa importância estava severamente regulamentada em Inglaterra e, para conseguir a autorização, Sir Archibald foi obrigado a dar muitos passos.
Minha mãe ficou radiante e acreditou piamente no que lhe escrevi, isto é, que o dinheiro era o produto de negócios bem encaminhados, das minhas economias e do meu trabalho.
Recebi uma carta dela, transbordante de reconhecimento pela sua querida filhinha que tão bem sabia tomar a sério o encargo da mãe e dos irmãos.
Senti-me envergonhada pelas minhas mentiras, mas não me resolvia a revelar-lhe a verdade.
No entanto, a carta era tão afectuosa, demonstrava tal confiança no futuro que não me arrependi por ter aceitado a proposta de Sír Archibald.
Encontrava-me na saleta do primeiro andar, na minha salinha particular, a ler a carta de minha mãe, quando Edward entrou, depois de ter batido duas discretas pancadas na porta de comunicação com a sala de fumo.
- Dá-me licença?...
Não tinha o hábito destas visitas inopinadas. Os nossos contactos eram sempre ocasionais e podia dizer-se que mais fugia do que procurava a minha companhia. Singular marido o meu, não podia deixar de o notar!... Todavia, fiquei radiante com esta alteração da rotina.
Maquinalmente, olhei para a janela. O sol, excepcionalmente, alastrava pelos campos, de ordinário tão tristes e desolados e a raridade do facto mais precioso o tornava. Sorridente - tanto pela influencia do dia maravilhoso, como pela carta da minha mãe e ainda pela inesperada visita de meu marido
- voltei-me para a porta e respondi em voz alegre:
- Entre... entre! Foi o que ele fez.
Talvez pela primeira vez desde que me instalei em Uam-Var, estávamos os dois sozinhos, na salinha aconchegada.
Tive a impressão de que Edward estava atrapalhado. Talvez não se sentisse à vontade, sozinho comigo... ou talvez isto não passasse de ideia minha.
Envergava o fato de veludo cinzento que costumava vestir quando se dispunha a visitar os rendeiros e vigiar as sementeiras.
- Incomodo?...
- Nunca me incomoda.
O que me levou a ser tão amável?... No fim de contas, meu marido nunca usou de atitude semelhante para comigo. Demonstrava quase sempre ignorar-me e fugia-me. Mas talvez, naquele dia, estivesse inclinada para o optimismo e para a indulgência.
- Venho agradecer-lhe a bondade que teve para o Crístíano...
Sorria, coisa que pude verificar não mais de dez vezes desde que o conhecia. Sorri também. Naquele momento, creio que podíamos ser tomados por duas estatuetas, destes bonecos de Saxe que usa colocar-se como guarnição dos fogões!
- Agradecer-me... Não vejo motivo para isso...
- Engana-se... aceitou ser mãe de Cristiano... não acha bastante?...
- Mãe do seu filho...
- Mãe do meu filho... sim - respondeu com hesitação- Por isso mesmo lhe estou reconhecidíssimo...
Sacudi a cabeça.
- Não me agradeça. Confiei em seu pai e na promessa que me fez de, mais tarde, me explicar tudo... Por outro lado, sou, oficialmente, sua mulher. Portanto, não é de estranhar que tivesse acedido em ser mãe do seu filho.
- Por isso mesmo quis eu próprio agradecer-lhe, receando que o pai não o tivesse feito como devia.
- O pai foi muito persuasivo... e usou de muito tacto para comigo...
- Não duvido. Mas o pai é uma coisa e eu sou outra... Por vezes, as nossas opiniões diferem... Ele é o chefe da família e, quase sempre, decide as coisas sem me consultar... No entanto, posso afirmar-lhe que tenho vontade própria... personalidade... Não quero que viva com impressão de que não passo de um boneco nas mãos do pai.
Calou-se, hesitou um segundo e depois continuou:
- Tenho a minha vida à parte, peço-lhe que acredite. Sei agir, raciocinar e decidir quando é preciso.
- Não duvido.
Meu marido sorria. Na verdade, nunca me apercebi da realidade da independência que afirmava. Mas, enfim, naquele dia, por forma alguma queria discordar da sua opinião.
- Admito perfeitamente que tenha a sua personalidade - afirmei com a melhor das boas vontades.
- Não me ofendo se duvidar, visto as aparências terem sido, até hoje, contra mim. Talvez estivesse na convicção de que não possuía, por assim dizer, livre arbítrio.
Riu com gosto, apesar do sentido ambíguo das últimas palavras. Eis um acontecimento sem precedentes, tanto mais que aquele riso em nada se assemelhava com o que surpreendera no dia da festa da reconciliação dos Mac-Guire com os Duncan.
- Suplico-lhe que me perdoe se há dias lhe dei a impressão de aproveitar a sua indulgência a favor de Cristiano. Infelizmente, há muita coisa que, por enquanto, me vejo obrigado a ocultar-lhe, Cristie, porque não me pertence revelá-las. Todavia, há uma que não quero deixar de lhe dizer: prometo-lhe que, um dia, lhe explicarei tudo. E espero... desejo de todo o coração que, depois, consiga alcançar a sua estima e compensá-la por todos os aborrecimentos que, involuntariamente, lhe impus.
- Até hoje, não me impôs coisa alguma - protestei- Foi o seu pai quem determinou tudo. O Edward... deixa-o proceder, apenas... com evidente indiferença.
- Não faça juízos prematuros, Cristie, nem me suponha um pateta, ignorando a vida. Fui militar, combati durante a Guerra na sua linda pátria e já viajei muito; conheço, por assim dizer, o Mundo inteiro. Portanto, não sou a nulidade que me supõe.
Sorriu e continuou:
- Vejo e adivinho muita coisa. Muito mais do que pode calcular e que não devo dizer-lhe, por agora. Mas, acima de tudo, quero afirmar-lhe que tem em mim um amigo... um amigo sincero e verdadeiro... capaz da maior dedicação.
Depois, contrariamente aos usos ingleses e aos dele em particular, pegou-me na mão e beijou-a. Em seguida, saiu em passo ligeiro, sorrindo, como que aliviado de um peso, deixando-me completamente assombrada.
Nunca o ouvira falar tanto e nunca o fizera em semelhantes termos. Não atingia, precisamente, qual o fim em vista naquela conversa, mas como fora amável e simpático, fiquei radiante.
Aquele homem, que sempre conhecera frio e distante, falara-me com amizade e havia sido tão caloroso nos agradecimentos que, depois dele sair, perguntei a mim própria se não estava ainda a sonhar.
Tinha a impressão de que a muralha de gelo que, até ali, se erguera entre mim e meu marido, havia desaparecido, instantaneamente, e como por encanto, naquela manhã. Para que insistira tanto em tomar a sua parte nas responsabilidades?... Estaria, de facto, empenhado em conquistar a minha estima?...
Uma alvorada de luz como que me despontou na alma.
Ter-me-ei enganado no juízo feito sobre meu marido?... Edward não era a estátua de mármore que via nele... teria coração, inteligência, sentimentos pessoais como qualquer outro homem?... Por último, eu não lhe inspirava repulsa ou indiferença, como supunha?
Acusava-me de injustiça para com ele. Compreendia, finalmente, que a sua atitude para comigo não fora ditada por sentimentos hostis ou frieza, mas por circunstâncias que ignorava e que, por certo, não tinha a mais pequena relação com a minha pessoa.
Então, resolvi perdoar-lhe muita coisa... e felicitei-me por ter tomado a resolução de ficar em Uam-Var... Que tolice teria feito, quebrando todos os laços que me prendiam aos Duncan!... Não fora muito melhor, quase maravilhoso, poder esperar que um dia... mais tarde?...
Meu pobre amor ignorado e desprezado, será possível que um dia?...
Seria ilusão, consequência do meu estado de espírito ou expressão da realidade?...
Fosse o que fosse, senti a impressão de que meu marido passou a mostrar-se menos indiferente comigo. Por vezes, via-o olhar para mim com interesse e aprovar os meus gestos e palavras com indulgente sorriso.
Posso dizer, sem falsa vergonha, que toda a minha vida se transformou, embora, em aparência, coisa alguma tivesse mudado. Quanto pode a esperança!...
Cumprindo a promessa que me fez, Sir Archibald procurou afastar Cristiano.
Descobriu uma camponesa num lugarejo afastado, para lá de Loch Ness, em Nairn, e mandou-a chamar para levar o pequeno.
Este afastamento devia, em sua opinião, tranquilizar-me quanto ao futuro, conforme a combinação que fizéramos.
Estávamos todos reunidos na sala de jantar e íamos sentar-nos à mesa, quando a mulher chegou.
Tinha aspecto carrancudo, mas dava-nos imediatamente a impressão de asseio e de saúde. Pelo que afirmava Sir Archibald, fornecera as melhores referências e garantias. Sentia-me um pouco inquieta, mas o meu sogro conseguiu tranquilizar-me.
O pequeno olhava ora para um ora para outro, como se quisesse ler-nos no rosto e adivinhar pelo que dizíamos o significado da cena a que assistia.
E então aconteceu uma coisa estranha e inesperada.
Quando a mulher o trouxe para Uam-Var, pudemos eu e ela falar impunemente da morte da mamã Gertrudes, pessoa que devia ter tido grande importância na sua vida, visto que, desde pequeno, substituira a mãe e como tal a considerava. Falámos na
sua morte, sem que o pequeno se mostrasse impressionado ou desse a impressão de compreender o sentido das frases trocadas. Tudo aquilo lhe passou por cima da cabeça como se não lhe dissesse pessoalmente respeito. E, no entanto, trocávamos as nossas impressões em francês.
Mas, desta vez, conquanto falássemos por alusões e em inglês, idioma do qual Cricri conhecia apenas vagos rudimentos, o pequenito, não sei bem porque instinto divinatório, compreendeu imediatamente do que se tratava.
A sua sensibilidade teria antenas mais potentes e eficazes do que a sua palavra? Ou entre mim e ele se estabeleceu naquele momento uma espécie de telepatia mais forte do que os laços de sangue e da convivência?
O caso é que, poucos instantes depois da chegada da mulher de Nairn, Cristiano precipitou-se para mim e, numa crise de terror e violento desespero, prendeu-se-me ao vestido com os dedos crispados, envolvendo-me as pernas com os bracitos débeis, a chorar e a gritar:
- Mamã... mamã... não me deixes ir embora!... Tenho medo!
Havia tanta angústia neste brado, numa expressão de tanta ternura que, instintivamente, apertei-o contra mim. Como resistir à súplica ardente daqueles olhitos ternos, exprimindo ao mesmo tempo um terror muito maior do que no dia da chegada?
- Pobre criança! - murmurei - Seria uma crueldade deixá-lo ir... Não me sinto com coragem para lhe roubar o meu carinho.
- Sendo assim... visto que o deseja - respondeu Sir Archibald, vagarosamente, como que pesando as palavras - cumpra-se a sua vontade. O pequeno ficará connosco.
Como se tivesse compreendido que o seu destino acabava de se decidir, Cricri ergueu a cabecita, sorriu reconhecido e esse sorriso recompensou-me de todos os meus desgostos.
Na alma de todas as mulheres existe um sentimento de mãe que dorme. Onde li estas palavras? Não sei bem onde. Sei apenas que esta pequenina frase me ocorreu imediatamente e se impôs como verdade inegável.
Nesse instante, o meu olhar cruzou com o de Edward e pude ler nele a confirmação do que me dissera... Aquele olhar era o de um amigo, uma manifestação de afecto, tanto mais apreciada quanto mais rara... olhar de gratidão... de compreensão... quase de ternura!
Entre nós acabavam de se estabelecer novos laços, bem fortes, porque eram cimentados pela comunhão de sentimentos. No nosso silêncio havia mais ressonância do que nos mais eloquentes diálogos ou discursos. O nosso acordo, de futuro, seria indestrutível, mais real e mais afectivo do que os laços do amor.
Tive, de súbito, a impressão de que já conhecia aquela expressão, embora muito raramente a tivesse visto nos olhos do meu marido: no dia em que entrou na minha salinha, quando estava ao piano; quando tinha ido agradecer-me por ter aceitado a situação que me havia sido imposta e agora, quando a camponesa se apresentara para levar o pequenito.
Vagarosamente, abandonou o vão da janela e, com emoção mal contida, disse-me com simplicidade:
- Obrigado, Cristie. Tem razão... esta criança bem merece a sua compaixão e o seu carinho... Ele não tem culpa de ter nascido, nem da negligência dos seus.
Repetindo o gesto que tivera quando nos encontrávamos sós os dois, pegou-me na mão e, com um movimento terno e gracioso, levou-a aos lábios.
Para o Cricri mal olhou, embora o pequenito lhe sorrisse confiante.
Então perguntei a mim própria que espécie de homem seria o meu marido. Talvez a educação rígida da Igreja presbiteriana fosse responsável por tão completo domínio próprio e tão acentuado self-controle. Todavia, a forma porque me falara no dia em que entrara na saleta para me agradecer, provava que podia expandir-se e até entusiasmar-se. Mas a indiferença, real ou simulada, que demonstrava pela criança que, no fim de tudo, era seu filho, podia considerar-se estranha. Se alimentasse uma pontinha de ciúme oculto pela mãe do Cristiano ciúmes porquê, dado o carácter absolutamente platónico em que assentava o nosso casamento? - a atitude do pai para com o pequenito não deixava de ser tranquilizadora. Provava, pelo menos, que essa mulher não contara na sua vida.
Perguntava, de mim para mim, se tanta indiferença não representaria, da parte do meu marido, frieza de coração, inaptidão para amar e sentir.
No entanto, a expressão do olhar, o tom caloroso da voz, provavam o contrário... que Edward era susceptível de comoção, de entusiasmo e, quem sabe, talvez de amar.
A decisão que acabava de tomar com respeito à criança provou-me, por associação de ideias, a necessidade inadiável de confessar tudo a minha mãe. Não era humanamente possível adiar por mais tempo a revelação do meu casamento, salvo se quisesse desencadear a pior das catástrofes. Mesmo assim, quem sabe se já não seria tarde!... Resolvi então ocultar-lhe parte da história.
Ao encarar esta perspectiva, um calafrio me percorreu a espinha porque - via-me obrigada a confessar- não sentia a consciência muito tranquila.
Edward, cuja voz perdera o tom brando, quase meigo, voltou-se para o pai e, numa atitude autoritária que nunca o vira tomar com Sir Archibald, pediu:
- Gostaria de que o pai me desse certas explicações sobre a presença deste pequeno... desta criança, a quem, normalmente, eu não devia conhecer, por enquanto.
O espanto deixou-me sem fala.
Da frase deduzia uma coisa que me assombrou. A despeito dos calorosos agradecimentos, meu marido ignorava, tanto como eu, o que significava a vinda de Cristiano para Uam-Var.
Contrariamente ao que esperava, Sir Archibald não se zangou e não respondeu ao filho no tom de comando que lhe era habitual. Foi em voz branda e quase benevolente que retorquiu:
- Para que te preocupas com isso, Edward? Tudo acabará por se arranjar, verás... Imita a Cristiana... confia em mim.
Depois de ter significado que o assunto estava encerrado e de me ter relanceado um olhar penetrante, saiu, levando o filho consigo.
Naquele dia não nos referimos de novo ao caso.
Fiquei sozinha com o Cricri, debatendo-me em pensamentos contraditórios. Mas, de todos eles, havia um que se impunha, que não podia afastar, embora se tornasse importuno: não escreveria a minha mãe no sentido que primitivamente tinha pensado, visto ter prometido a mim própria que, espontaneamente, não o faria. Tornava-se evidente que não podia prolongar por mais tempo o meu silêncio, adiar explicações e mantê-la na ignorância total da minha situação. Meus irmãos e irmãs viriam, com certeza, passar as férias comigo e tornava-se materialmente impossível evitar por mais tempo as confissões.
Fiquei sentada na sala de jantar, perplexa, indecisa, descontente comigo própria.
O meigo sorriso de Cristiano enchia-me de alegria e recompensava-me de todos os dissabores.
Mas não podia pensar na singularidade e complexidade das atitudes do meu marido, nas suas reacções, sem sentir um misto de profunda alegria e estranha apreensão.
Por muito que fizesse, o mistério persistia e envolvia-me em sombras que, dia a dia, se tornavam mais densas.
Uam-Var, 10 de Maio de 19...
"Querida mãe
"vou começar por lhe fazer uma confissão.
"Decidi dizer-lhe tudo... há muito que o devia ter feito e reconheço que não devo calar-me por mais tempo. De princípio, fi-lo porque não queria prejudicar a sua saúde e tranquilidade... Supunha que, com o tempo, seria menos custoso, que talvez as coisas se modificassem.
"Agora, vejo que o tempo foi passando, as coisas continuam na mesma... e que dizer-lhe agora? tudo ainda se torna mais difícil do que no princípio. Contudo, vou encher-me de coragem para lhe revelar a verdade, pois creio que, quanto mais demorar a confissão, mais me custará.
"Casei...
"E pronto, já disse o pior.
"Sou Lady Duncan, mulher de Sir Edward Duncan, o primogénito da família que, afectuosamente, me acolheu, na Escócia.
"Esta decisão não foi tomada bruscamente, mas pode considerar-se consequência das tolices que fiz depois da morte do paizinho. Fui deplorável administradora do capital que me confiaram e lealmente lho confessei, antes de abandonar a França. Era muito nova e inexperiente, eis a minha única desculpa.
"Por outro lado, a mãezinha querida estava muito doente e eu não queria inquietá-la e, sem querer saber, esbanjei todo o dinheiro que o pai tinha depositado no Banco. Todo, até ao último cêntimo.
"Quis reparar, não a minha culpa, porque foi involuntária, mas a minha inconsequência. Impunha-se recuperar o dinheiro perdido... angariar meios para viverem e para os estudos dos meus irmãos.
"Quando me ofereceram o emprego em Inglaterra com o providencial adiantamento de duzentos mil francos, considerei que era meu dever aceitá-lo sem hesitar.
"Mas quando me encontrei em Londres, perante a dura realidade, reconhecendo que era demasiado tarde para recuar, para me eximir ao contrato, compreendi que não bastava aquele sacrifício. O exílio não chegava. Não se tratava apenas de ser dona de casa, num castelo escocês; tratava-se de ser mulher legítima do filho mais velho da casa e mãe de um filho seu. Se não quisesse aceitar, era simples, teria, somente, de devolver os duzentos mil francos.
"Eis o terrível dilema em que me debati, mãe querida. Que seria de si e dos meus irmãos?
"Como reembolsar aquela quantia, sem os sacrificar, sem que suportassem, todos, o peso dos meus erros, devolver os duzentos mil francos que, nessa altura, já deviam estar gastos, pelo menos em parte?
"Eis como os acontecimentos se encadearam. Toda eu tremo e sinto-me comovida ao escrever esta carta e ao contar-lhe coisas que, durante tantos meses, calei. Se agora me resolvi a fazê-lo, foi por ter adquirido a certeza de que entrei numa família considerada, de educação, e que me rodeia de todo o afecto e respeito. Posso, portanto, revelar-lhe a verdade, sem receio de a desgostar.
"Um pequenito de três anos, fruto do primeiro casamento do meu marido, vive aqui comigo e manifesta-me uma afeição tão profunda que, por vezes, chego a esquecer que não é meu. A criança foi educada em França e não calcula o conforto que representa para mim ouvir a minha língua natal na boquita infantil e nesta terra tão afastada e tão diferente da minha. Para mais, tem um nome semelhante ao meu. Chama-se Cristiano.
"A família em que entrei é abastada: o dinheiro que tenho mandado para França prova o desafogo em que vivo. Meu marido é muito bom. Sou feliz e confio no futuro.
"Suplico-lhe de joelhos, mãe adorada, que me perdoe a precipitação com que, em Londres, tomei semelhante resolução sem a consultar. Mas eu já estava presa na engrenagem e não podia fazer outra coisa... Felizmente, no fim, tudo resultou pelo melhor, muito melhor do que eu contava de princípio.
"Espero, querida mãe, que virá passar uns dias comigo e os meus irmãos também, na altura das férias. Poderá verificar como a minha nova família é simpática, respeitável e atenciosa e como o meu marido é bom.
"Adeus, mãezinha querida. Aguardo ansiosa as suas notícias e a sua bênção."
"Cristiana
"O cheque que me enviaste causou-me enorme alegria porque acreditei sinceramente nas historietas que me contaste; devolvo-to agora nesta carta, pois não quero tocar nesse dinheiro.
"A tua última carta mergulhou-me num desespero tão grande que ainda não estou em mim. Não foi bem o inesperado dos acontecimentos que me impressionou, mas o abismo de mentiras de que não te supunha capaz.
"Eduquei-te no culto da verdade, da rectidão e com a ternura bastante para que me testemunhasses o respeito devido a uma mãe. Acreditava não ser obrigada a recordar-te que toda a rapariga, antes de casar, tem por dever consultar os pais e razão alguma poderia servir-te de desculpa para não o fazeres.
"Sejam quais forem as circunstâncias, pode sempre adiar-se uma decisão dessa natureza por quarenta e oito horas, o tempo suficiente para me telegrafares ou telefonares e pedires a minha opinião, antes de te lançares em semelhante aventura.
"Casaste com uma pessoa que não conhecias e meteste-te num beco sem saída, numa aventura que podia ter péssimo resultado.
"Felizmente, segundo afirmas, tal não se deu, mas o facto do remate ser favorável não desculpa a incorrecção do teu procedimento para comigo.
"Se o teu pai fosse vivo, por certo não ficaria satisfeito com tanta independência da tua parte.
"Sejam quais forem as razões que ditaram a tua conduta, não podem servir de desculpa e não te dispensavam de me consultar e avisar do que se passava. ÉS maior, bem sei e, legalmente, podias passar sem a minha autorização; mas a atitude que adoptaste é tão inadmissível como ofensiva.
"Portanto, não aceito o teu cheque, pois não quero que se diga que, por uma questão de dinheiro, faltei ao meu dever de mãe e aprovei a tua leviandade. Bonito exemplo para os teus irmãos e irmãs, se vierem a saber como procedeste! "
Uam-Var, 6 de Janeiro de 19...
"Minha mãe
"Não sei dizer-lhe quanto me penalizou a sua carta. Não contava que aprovasse o meu procedimento, não, mas as suas censuras ultrapassaram tudo quanto podia esperar.
"Depois de muitas hesitações, escrevi-lhe com sinceridade, contando-lhe tudo, isto é, omiti a descrição dos transes angustiosos por que passei, para não a afligir. Os termos duros em que me escreve e que estava bem longe de esperar, causaram-me o mais profundo desespero. Há ainda diversos factos que não posso contar-lhe porque não me pertencem. Por agora, prometi calar-me e não quero faltar à minha promessa. Mais tarde saberá tudo e então talvez lamente a severidade que me manifesta, mãe querida.
"Remeto-lhe novamente o cheque dos duzentos mil francos e, se não quiser empregar esse dinheiro em seu proveito, suplico-lhe, em nome dos meus irmãos, que o guarde para eles."
Paris, 15 de Junho de 19...
"Minha querida Cristiana
"Seja, acedo ao teu pedido e guardo para os teus irmãos o dinheiro que me enviaste. Fica sabendo, porém, que enquanto não justificares completamente o teu procedimento e esta estranha situação que, quanto mais reflicto mais anormal, para não dizer escura, me parece, não lhe tocarei, nem mesmo para eles.
"Nunca tive conhecimento de uma história tão singular e tão obscura como a tua.
"Afirmas que se trata de uma família respeitável e eu só desejo acreditar-te. No entanto, a forma como procedeu neste casamento torna-se infinitamente suspeita.
"Prometes explicar-me tudo mais tarde. Registo a promessa, mas, por agora, formo o meu juízo por aquilo que sei e pressinto.
"Temo que tenhas caído num vespeiro, cujos perigos e ciladas ainda não mediste bem e se estás nesta situação - por muito que o deseje não posso concluir outra coisa - foi porque a tua leviandade te levou a proceder sem pedir conselhos fosse a quem fosse. Nada disto teria acontecido se não tivesses cometido a inconveniência de agir sem me consultares.
"De todo o coração desejo, minha querida filha, que tudo isto não acabe mal e um dia não lamentes, amargamente, não teres confiado na tua velha mãe."
Uam-Var, 27 de Junho de 19...
"Mãe adorada
"Agradeço-lhe ter acedido em ficar com o dinheiro que lhe mandei.
"Suplico-lhe, mais uma vez, que não esteja zangada comigo. A sua filha é sensata, muito mais sensata do que pode calcular e fosse a que pretexto fosse, seria incapaz de cometer uma acção que a envergonhasse.
"O desenrolar dos acontecimentos não dependeu da minha vontade. Posso, no entanto, garantir-lhe de novo que, tanto meu marido como a família, são pessoas das mais respeitáveis e que não há perigo de me ferirem as catástrofes que parece temer.
"Não seja pessimista, mãe, porque os seus receios não têm razão de existir. Tente pensar na sua Cristiana com a indulgência de mãe que sabe ser ternamente amada... ".
Uam-Var anda num reboliço.
A Páscoa está próxima e esta manhã deu-se um acontecimento que vai modificar por completo a nossa vida, julgo eu.
Chegaram uns poucos de homens vestidos de preto, homens dos tribunais, e há uma hora que se fecharam no gabinete com Sir Archibal e os filhos, a discutir.
Fiquei na sala e aguardo que saiam, para saber do que se trata. A entrevista afigura-se-me importante. Trata-se de qualquer coisa grave e decisiva, a ajuizar pela atitude dos três membros da família Duncan, pelas idas e vindas do pessoal e pelo ar preocupado da boa senhora.
Cricri está junto de mim, brincando com o Mirza. Seria preferível que brincasse lá fora porque o tempo está lindo e o sol brilhante, o mais belo desde que passou o tão comprido Inverno escocês.
Cricri, porém, prefere a minha companhia à de todos os habitantes de Uam-Var, porque se me afeiçoou por forma inacreditável. Já fez quatro anos e é encantador. Quando me passa os bracitos ao pescoço e me beija com meiguice, sinto-me vaidosa pela excepcional ternura que me dedica.
Nesta vida tristonha que, apesar de tudo, continuo a viver em Uam-Var, a afeição do pequenito, que não pode passar sem mim, é como um raiozinho de luz que me aquece e alegra os dias. Também lhe quero muito, talvez porque a sua sorte dependeu da minha vontade e porque a criança me dedica todas as suas carícias.
Mais de um ano decorreu desde que o Cricri chegou a Uam-Var e durante este ano as nossas condições de vida pouco se modificaram.
O meu irmão Jacques visitou-me no Outono passado, a convite dos Duncan. A Madeline veio passar o Natal comigo. Ambos foram recebidos com extrema cordialidade e os dois irmãos Duncan multiplicaram-se para organizar divertimentos em sua honra, tratando com o máximo carinho os dois representantes da minha família.
Pelo Jacques e depois pela Medeline, soube que minha mãe continua mal disposta comigo... ressentimento maternal, muito justo, concordo.
Não se conforma com o que classifica a minha falta de respeito e faz-se desentendida sempre que a convido para vir passar uns dias a Uam-Var.
A atitude da família Duncan, enquanto meus irmãos estiveram aqui, não podia ser mais amável, nem mais simpática, mas o que não conseguiria explicar a minha mãe, se viesse, nem a meus irmãos, nem mesmo consegui dissimular por completo, foi a estranha situação criada entre mim e meu marido.
Edward é perfeito, delicado, e tem por mim as maiores atenções. Nunca mais se mostrou frio e indiferente, como acontecia nos primeiros meses. Somos dois bons amigos, mas não somos marido e mulher e isso é uma coisa que se percebe logo por pequeninos nadas.
Este estado de coisas desagrada-me, principalmente porque me prendi a ele e quanto mais o tempo passa mais a minha afeição se enraíza.
Viver a seu lado, tornou-se para mim mais do que um hábito. É uma necessidade do meu coração. Para ser franca, confesso que estou apaixonada pelo meu marido-fantasma e que já não posso conceber a vida sem o ter junto de mim. Não posso negar esta paixão, embora não a deixe adivinhar seja a quem for.
A sua atitude preocupa-me e aflige-me. Muitas vezes pergunto a mim própria se não existiria uma razão imperiosa que não consigo descobrir, um mistério que se ergue entre nós e não o deixa manifestar-se. A não ser que seja eu, o meu físico, que o afaste...
Chego a duvidar de mim e então corro a mirar-me no espelho...
No entanto... os olhares que por vezes surpreendo, a maneira como me fita, tranquilizam-me por completo a esse respeito e quase me dão a certeza de que me engano e que, se meu marido me desdenha, não é porque me ache feia ou repulsiva.
Não... existe outro motivo... outro motivo que o obriga a calar-se e a demonstrar-me uma indiferença que, de facto, não existe.
Perco-me em suposições... Mas que posso fazer?... Não me ficaria bem, por certo, tomar iniciativas que não me competem. Por outro lado, nunca terei coragem para modificar o meu destino... Nunca me resolverei a tomar uma decisão, visto que, apesar das tristes condições em que vivo, prefiro isso e ter Edward a meu lado a separar-me dele para sempre.
Finalmente, a porta do gabinete do meu sogro abriu-se e os homens saíram, acompanhados por ele e pelos dois filhos.
- Michael - sugeriu meu sogro, voltando-se para o filho - acompanha estes senhores ao quarto que lhes destinámos e depois vão dar uma volta pelo domínio até à hora do almoço. Entretanto, eu e Edward temos que falar a Lady Duncan, para lhe dar a boa notícia.
Interessada, olhei para o meu sogro, enquanto Michael lhe obedecia e saía, deixando-nos sozinhos os três.
- Cristiana - começou meu marido com ar satisfeito e olhar brilhante - vou dar-lhe uma grande novidade. Podia ter-lha comunicado mais cedo, mas quis que tudo se confirmasse antes de o fazer, porque não desejava dar-lhe falsas alegrias. A Cristiana suportou pacientemente todas as preocupações e aborrecimentos e, portanto, não seria justo enganá-la, mesmo involuntariamente. Acabámos de ganhar um processo que se arrastava pelos tribunais havia muitos anos e entrámos na posse de importante herança: fortuna, domínios, títulos honoríficos, tudo... com mais vagar lhe darei os pormenores desta complicada história, na qual, sem o saber, a Cristiana esteve envolvida. Fique sabendo, por agora, que, graças ao feliz desfecho do processo, sou, desde hoje, Par da Escócia e tenho direito a sentar-me na Câmara dos Lordes. Talvez a Cristiana não possa avaliar tudo quanto isto representa. Basta que lhe diga que, para meu pai, é o fim de renhida luta, de muitas preocupações e angústias. Agradeço ao céu que me permitiu ver este dia, podendo compartilhar consigo todas as alegrias e benefícios. Antes de mais nada, decidimos que haverá em Uam-Var três dias de festa sem interrupção, para celebrar tão excepcional acontecimento. Dê as suas ordens nesse sentido, Cristiana, como perfeita dona de casa que é - concluiu com alegre sorriso trocista. Depois continuou:
- Desejo que a festa seja em tudo digna de nós. Embora devorada pela curiosidade, sorri para os dois homens e afirmei:
- Alegra-me saber que as vossas preocupações acabaram. Permita-me que o felicite, pai, e também a si, Edward... Quanto à festa, podem ficar descansados, vou imediatamente tratar disso...
Não compreendi muito bem o alcance da notícia, nem o que representava para meu marido, mas concluí - e foi o mais importante para mim - que ia ter a chave do enigma que me intriga desde que entrei em Uam-Var.
- Espere um momento, minha filha - atalhou Sir Archibald, muito risonho, poisando-me a mão no ombro, num gesto paternal - Antes de mais nada, quero dizer-lhe, Cristiana, que, se ganhámos o processo, foi devido a si, ao auxilio que nos prestou e à sua discreta atitude. Graças a si, minha filha, porque aceitou este casamento estranho e o papel de dona de casa, que desempenhou com tanto brilho, sem protestos, sem pedir explicações e demonstrando um tacto e prudência excepcionais. Graças a si alcançámos fortuna, títulos e terras. Como prova da nossa gratidão, decidimos, eu e meu filho, pôr à sua disposição uma soma igual àquela que seu pai deixou quando morreu. Sabemos, por informações dadas pelo procurador da sua família...
Nessa altura, o sorriso do meu sogro impregnou-se de leve ironia.
- sabemos que essa soma ascendia a oitocentos mil francos. Poderá, assim, devolver aos seus a quantia que - perdoa-me, não é verdade? - a Cristiana gastou com mais rapidez do que competência.
Corei até aos olhos. Por muito que quisesse, não consegui evitá-lo. Fiquei um tanto humilhada ao verificar até que ponto Sir Archibald estava ao facto da minha vida.
De repente, porém, funda sensação de medo me tomou. Se eles me ofereciam tão importante quantia, pretendiam, sem dúvida, anular o nosso contrato. Paga assim a dívida, consideravam-se quites para comigo. As nossas contas ficavam liquidadas. Se eu não lhes devia nada, eles nada me deviam também.
Desempenhara o meu papel e a peça tinha acabado!
Este pensamento fez-me sofrer atrozmente.
Já não precisavam de mim e despediam-me, como uma empregada que cumpriu a sua obrigação. Gratificavam-me e mandavam-me para França.
Calculava que não lhes seria difícil obter o divórcio... Para um Par da Inglaterra tudo se tornava fácil. Eis a razão por que meu marido nunca tentara cortejar-me, nem me considerava sua verdadeira esposa. Tratava-me bem porque precisava de mim, mas não me tinha amor como, ingenuamente, admitira. Colocava-me no mesmo plano que Mrs. Bertrand, que lhes governava a casa há tantos anos ou como o shetland que monta quando vai caçar... ou talvez num plano mais inferior ainda!... Tola, pateta que fui ao pensar que podia ser doutro modo!
Ainda podia felicitar-me - conhecendo como conhecia a avareza do meu sogro - por ele ter resolvido reconstituir o capital deixado por meu pai. Se não me desse nada, ninguém o censuraria. Foi muita bondade da sua parte, tenho de o reconhecer!
Quanto aos sentimentos de meu marido, o caso é diferente. Não sente por mim nem sombra de ternura.
A história do nosso casamento não passou de um negócio, desde o primeiro dia até hoje. Um negócio!... Simples acordo comercial, nada mais!... Uma questão de heranças, eis tudo!
Desilusão tão súbita deixou-me esmagada. Meu pobre coração, para que te prendeste a quem não te retribui?...
Como a minha mãezinha tinha razão quando afirmava que me esperavam as piores desilusões, os maiores desgostos!
A despeito da minha vontade, recordava o tom irónico do meu sogro, ao dizer na noite da minha chegada:
"Não pensa, por certo, que entre os dois se estabeleça convivência... ".
Para esconder os soluços que me subiam à garganta e que não tardariam a irromper-me dos lábios, depois destas reflexões, fugi sem mesmo lhes agradecer, deixei meu sogro e meu marido sozinhos, a pretexto de ter de começar imediatamente a organizar as festas dignas de tão estrondoso acontecimento.
Mas que doloroso calvário o meu!... Agora, espero a todo o momento o golpe de misericórdia: - a intimação - acompanhada com elogiosas palavras para abandonar Uam-Var e renunciar ao meu título de esposa e ao nome dos Duncan.
Talvez uma questão de horas ou de minutos, quem sabe...
ó meu pobre coração... meu pobre amor!
Os três dias de festa foram para mim três dias de aflição. No meio de tanta alegria, ninguém deu por isso. O meu orgulho impunha-me que sorrisse e me mostrasse alegre e não fraquejei.
Inverness é uma cidade encantadora. Chegámos ontem, eu e meu marido, e instalámo-nos em magníficos aposentos no Grande Hotel.
Da salinha central, para onde comunicam, de um lado, o meu quarto e, do outro, o do meu marido, tem uma vista esplêndida sobre o golfo e, na meia luz do crepúsculo, de tonalidades doces, admiráveis cambiantes e atmosfera puríssima, chegamos a avistar, ao longe, os telhados pontiagudos de Cromartz.
A Primavera e o Verão, nestas regiões onde o Inverno é tão prolongado e rigoroso, tomam excepcional relevo, desusada imponência, como se quisessem compensar a sua brevidade com a intensidade.
Acabámos de regressar de um longo passeio pelo porto. Chegámos ontem e é a primeira vez que nos encontramos sozinhos num aposento, longe de todas, as vistas.
Não sei o que pensar dos acontecimentos desenrolados nestes últimos dias.
Mal acabaram as festas em Uam-Var para celebrar a elevação de Sir Edward ao Pariato, festas que duraram três dias, meu marido, com o maior espanto da minha parte, pediu-me que o acompanhasse a Inverness, onde ia tratar de vários assuntos.
Fiquei radiante, tanto por ir viajar com Edward, coisa que menos podia esperar naquela ocasião, como pelo passeio imprevisto, muito diferente das breves visitas a amigos, nos arredores de Uam-Var.
Procurei no mapa a cidade de Inverness e, com grande satisfação, verifiquei que o trajecto teria de ser longo.
com efeito, um carro conduziu-nos a Lairg. Depois tomámos o comboio e seguimos, em sentido inverso, o mesmo caminho, ao longo das margens do lago Shin, que tinha feito na ida para Uam-Var, havia quase dois anos.
Quantas coisas se passaram nesse tempo!
Muitas coisas, sim; no entanto...
No entanto, continuo a ser Lady Duncan apenas de nome... Antes de partirmos, supus que meu marido quisesse trazer-me para longe, justamente, para me comunicar que seria forçoso separarmo-nos para sempre.
Mas voltemos à viagem.
Cricri despediu-se de mim a chorar. É a primeira vez que nos separamos desde que se instalou no castelo. Quando me viu em trajo de viagem e me instalei no carro, começou a soluçar com desespero, não obstante a minha promessa de regressar em breve.
Perante aquela dor infantil, senti o coração oprimido. O pai, pelo contrário, não teve a mais pequena reacção perante esta explosão de sensibilidade da criança. Fleuma... Indiferença... Respeitabilidade... Domínio próprio do carácter britânico, habituado a dissimular os seus sentimentos íntimos?... Muito sagaz seria quem pudesse adivinhá-lo.
Há momentos em que pergunto a mim mesma se Edward não sofre de insensibilidade absoluta. Mas, decorrido pouco tempo, censuro-me por essa suposição, ao surpreender-lhe um olhar terno e profundo. Nestas alternativas, não consigo formar o meu juízo sobre os verdadeiros sentimentos do novo Lorde e não sei o que pensar a esse respeito.
A viagem prolongou-se ao longo das margens do Donorch Firth, do Fleet Tain e do Conon. Este lado é menos áspero do que a costa Norte, mas admirável na sua agreste beleza.
Edward mostrou-se sempre encantador e cheio de atenções para comigo. O antigo desdém desapareceu por completo e é para mim o melhor dos camaradas. Na verdade, não creio que, da sua parte, haja mais do que simples camaradagem.
Os nossos aposentos foram reservados alguns dias antes da nossa chegada. À tarde, Edward sentou-se à secretária e começou a escrever diversas cartas. Depois de me ter demorado algum tempo à janela, contemplando o pôr-do-sol, voltei para dentro e passei por detrás da cadeira de meu marido. Maquinalmente, sem o propósito de ser indiscreta, relanceei a vista para cima da secretária. O sobrescrito, poisado ao lado do mata-borrão, chamou-me a atenção por estar endereçado em francês. Curvei-me, instintivamente, para ver melhor e li:
Madame HELENA CHAMBBEUIL
PARIS
Fiquei assombrada. Meu marido voltou-se, sorriu-me e depois continuou a escrever sem procurar esconder-me o que escrevia. Pelo contrário, com o olhar convidou-me a ler por cima do ombro. Foi o que fiz.
Eis o que li:
"Querida mãe
"Se me autoriza a tratá-la assim, permita-me também que lhe escreva, pedindo notícias suas. Peço-lhe, além disso, que desculpe o meu francês, um tanto aproximado, nada mais. Antes de tudo, venho manifestar-lhe o meu pesar por ter sido forçado pelas circunstâncias a casar com a sua adorável filha com tanta precipitação. Talvez considere este casamento injurioso, mas se eu lhe afirmar que lhe voto a mais profunda afeição, talvez possa perdoar-nos a vivacidade e a forma demasiado expedita como procedemos.
"Quero também indemnizá-los pela má administração da sua filha, depois da morte do pai. Posso também afirmar, por forma categórica, que Cristiana se tem mostrado tão superior no seu papel de dona de casa que, de futuro, não tornará a merecer censuras, mas apenas felicitações.
"Creia-me, querida mãe, com afectuosa consideração... etc...".
Fiquei sem respiração. Depois perguntei:
- Pensa o que escreveu, Edward?
Meu marido voltou-se, sorridente, e afirmou:
- Pois com certeza.
- Nesse caso, não pensa em mandar-me para França, visto não ser necessária a minha presença em Uam-Var?
Como tive coragem de formular a pergunta em voz alta e firme?
Fixou-me com espanto e severidade:
- Mas que ideia faz a Cristie do casamento?... Na Escócia, como em França, não se fazem e desfazem casamentos com essa facilidade. E julgo não ter desmerecido no seu conceito, não é assim?...
O coração palpitou-me com mais força e, com súbita gravidade, repliquei:
- Não. Penso, simplesmente, que fui eu que não soube alcançar a sua estima e afeição, visto que, durante estes meses, só me manifestou indiferença, para não dizer... antipatia.
Se fosse mais corajosa, ter-lhe-ia dito quanto sofria secretamente por não ter sabido despertar-lhe amor!
Teve um sorriso brando e murmurou:
- E se lhe disser que fiquei seduzido desde o primeiro instante?...
Empalideci, enquanto as faces de meu marido se tingiam de leve rubor. A esta declaração, seguiu-se breve silêncio.
Decorridos alguns instantes, Edward prosseguiu:
- Mas o que teria pensado de mim se eu lhe mostrasse que... se, antes de saber o resultado do processo a cortejasse? É assim que dizem em França, não é verdade?...
- Mas que relação...
- Muito maior do que pensa, Cristiana!... Poderia atribuir à minha atitude um móbil interesseiro e pensar que, se dava a impressão de gostar de si, era simplesmente para a prender em Uam-Var o tempo suficiente para a solução dos nossos problemas.
O meu espanto foi enorme!
- Santo Deus! - exclamei - Foi então por isso?...
- Unicamente por isso...
- Que se mostrou tão frio e indiferente?...
- Não podia proceder doutra forma.
- Eis a verdadeira razão!... Decididamente, mesmo entre aqueles que vivem na mesma casa, erguem-se montanhas de incompreensão... e essa incompreensão, Edward, quase sempre resulta das pessoas não procurarem explicarem-se com a maior franqueza...
Fixou-me com uma espécie de intensidade, como se tentasse descobrir-me o fundo do pensamento.
- É possível, Cristiana - aprovou por fim a meia voz - não nos conhecemos uns aos outros e formamos maus juízos.
- com efeito, é sempre o mal que primeiro acode ao pensamento.
- Exactamente!... Posso confessar-lhe que, de princípio, a julguei muito mal. Tinha a impressão
- perdoe-me o pensamento, do qual, agora que a conheço, me arrependo amargamente - de que estava em Uam-Var apenas pela ânsia do dinheiro... que se sujeitara a casar comigo só por interesse e por interesse aceitava o título de dona de casa.
Sorri, confusa, e confessei:
- Evidentemente!... O interesse foi a causa inicial da minha ida para a Escócia... Depois, quando me disseram que se impunha casar, compreendi que o assunto se tornava muito mais grave do que supunha... Era uma viagem em sentido único e por toda a vida, o que me propunha... uma viagem sem regresso.
- E aceitou alegremente a situação?
- Pode dizer, antes, gravemente, com o coração apertado, porque não sabia com quem ia casar. Tinham-me dito: "As raparigas da Escócia não querem voltar para a sua terra e os boys precisam de donas de casa"... Mas quando compreendi que se tratava de um Escocês, vi que comprometia para sempre a minha vida... porque nunca mais voltaria a França... A situação era grave, muito grave! Mas jurei a mim própria que seria boa esposa... dedicada e sincera... De toda a minha alma, prometi a mim mesma amar o meu marido, olhar pela sua casa e pelos seus interesses... Cheguei a Uam-Var cheia de boas intenções...
- E ficou desapontada, não é assim?
- Desapontada?... Não. Verifiquei apenas que, absorvido pelos seus pensamentos e cuidados, o meu marido não me prestava atenção, nem sequer dava pela minha existência... Pois se nem se dignou casar pessoalmente e mandou um representante seu para casar por procuração! Nos primeiros tempos, tive a impressão deprimente de ser para si um objecto de desprezo... quase de repulsa!
- Isso não! -exclamou, num brado de protesto
- Não fui a Londres, é facto, mas entre cinquenta fotografias, que me enviaram, escolhi-a a si...
- Viu o meu retrato? - perguntei num sobressalto.
Levemente corado e constrangido, Edward confessou:
- Sim, por assim dizer, já a conhecia... Nunca podia supor, mas na minha secretária, no meu quarto, guardava preciosamente a sua imagem... O marido indiferente que, durante o dia, mal olhava para si, à noite desforrava-se, dizendo ao retrato tudo quanto não podia exprimir de viva voz.
Por meu turno, também corei e o coração palpitou-me, desta vez de alegria e não de apreensão.
- Sim... nunca podia supor - balbuciei, muito comovida.
E como ainda me restassem dúvidas, insisti:
- Realmente, Edward, tem a minha fotografia na sua secretária?
- Não, já não tenho... esteve lá até ao dia em que a Cristiana não consentiu que um pobre garotinho de quatro anos saísse de Uam-Var para acompanhar uma camponesa boçal...
- Então?...
- Então, nesse dia tirei-a da secretária e nunca mais me deixou...
Corou mais ainda e confessou em voz surda:
- Anda comigo na carteira e aí ficará sempre, se mo consentir.
Tão comovidos um como o outro, ficámos os dois sem trocar palavra e sem nos atrevermos a cruzar o olhar.
Por fim, Edward pegou-me na mão e, numa súplica, murmurou:
- Perdoe-me, Cristiana, mas desejo ser absolutamente sincero... Não se constrói nada de sólido na vida se não tiver por base a sinceridade... De princípio, quase a desprezei, confesso... não podia formar juízos a seu respeito se não pelos seus actos... depois, ouvindo-a falar, observando-a dia a dia, acabei por compreender como as coisas se tinham passado, percebi que se tinha iludido com o título de dona de casa e acedido a casar pela força das circunstâncias, por se encontrar na impossibilidade de restituir os duzentos mil francos recebidos adiantadamente, e não por ser uma ambiciosa, uma intrigante. Quero confessar-lhe também que cheguei a fazer discreto inquérito... experiências, e as suas reacções acabaram por me convencer!
- Se soubesse as aflições por que passei nessa altura! -afirmei com sinceridade - Confesso que, se estivesse em condições da anular o contrato, o teria feito sem hesitar.
- Foi isso exactamente o que deduzi. E mais tarde, quando não repudiou a criança que lhe impunham... no dia em que elevou a voz a favor do orfãozinho... fiquei profundamente comovido, apreciei a sua bondade e reconheci o seu valor. Não tornou a criança responsável pelas suas desilusões, pelo seu nascimento ilícito, nem pela sua indesejável presença em Uam-Var...
Estas palavras soavam-me divinamente aos ouvidos, como se fosse a declaração de amor daquele a quem consideramos nosso noivo.
Mas, de súbito, assaltou-me terrível receio. Se os sentimentos que Edward manifestava não fossem de amor, mas de simples reconhecimento?...
Como se quisesse confirmar estes temores, meu marido prosseguiu:
- Nesse dia, contraí para comigo uma grande dívida. De todo o coração lhe agradeço o que fez e peço-lhe que me considere seu grato devedor para toda a vida.
Falava em voz meiga, vibrante, uma voz que nunca lhe ouvira, com uma expressão que não lhe conhecia. Dir-se-ia que, pela primeira vez, se libertava de não sei que constrangimento e se mostrava tal como era, sincero, sem pensamentos reservados.
- Devo-lhe muito, Cristiana, e nunca conseguirei saldar esta dívida. De todo o meu coração desejo que o nosso casamento se torne definitivo e a Cristie seja para mim a mais querida, a mais adorada das esposas.
Reconhecimento... dívida... gratidão...
Corei ao ouvir as palavras por que suspirava havia tantos meses... Ao mesmo tempo, porém, continuava debaixo da impressão de que se me amasse deveras, meu marido não faria tantas considerações.
- O Edward está, de facto, convencido de que o nosso casamento se transformará num casamento como os outros, simplesmente porque assim o decidimos?...
Tive de chamar em meu auxilio toda a minha coragem para proferir esta frase. Não me arriscava a estragar tudo?...
Não seria já uma felicidade enorme aquilo que me oferecia?... Para que exigia mais?...
Mas o tom em que me respondeu foi mais envolvente, mais caricioso do que nunca:
- Não, Cristie, não creia que seja superficialmente que assim o decido. É essa a minha mais Intima, mais querida ambição... Quero rodeá-la de carinho, ser para si o marido mais apaixonado de toda a Inglaterra... Conceda-me um bocadinho de afeição e dê-me tempo para conquistar o seu amor. Será possível?...
Sentia-me quase desfalecer. O pedido e o tom em que mo fazia, perturbava-me até ao mais íntimo da alma...
"Dê-me tempo para conquistar o seu amor... ".
Não pressentia ele que esse amor lhe pertencia havia muito tempo?... Havia mais de um ano que aguardava ansiosa aquele momento e aquelas palavras, mas nunca admiti que Edward pudesse amar-me um dia... Desejava-o de todo o coração, mas não alimentava ilusões...
Mas, depois do que ouvi, seria possível duvidar?...
Meu marido apertou-me nos braços e os nossos lábios uniram-se num beijo prolongado... o primeiro beijo que recebi e no qual julguei exalar a vida...
Decorrido um tempo que me pareceu curtíssimo, mas que, na verdade, deveria ter-se prolongado durante alguns minutos, desenlaçámo-nos, mas sem deixarmos de nos devorar com o olhar... Ouvi-o murmurar:
- Cristiana, meu amor... minha adorada... E de novo os nossos lábios se uniram.
- Sabes o que vamos fazer? - disse-me meu marido, após esse beijo que encerrou para mim toda a doçura e embriaguez do Mundo - Vamos partir imediatamente para França. Quero que a tua mãe me conheça pessoalmente e não por carta. Desejo, também, que passemos alguns dias sozinhos, o que em Uam-Var não é possível, nem tão-pouco no castelo do meu tio que acabamos de herdar e onde nos iremos instalar no regresso. E agora devo-te ainda certas explicações.
- Para quê tantas explicações, Edward? - perguntei, sorrindo, e apertando-lhe a sua mão entre as minhas.
- Sim, são precisas para que compreendas tudo, querida - teimou, sorrindo.
Depois começou:
- Há dois anos, quando o testamento de meu tio foi aberto, viu-se que me instituía seu herdeiro, com a condição de casar e ter um filho. Além disso, impunha que a minha esposa fosse Francesa e dava-me o prazo de dois anos para cumprir os seus desejos... Meu tio foi sempre muito original, muito viajado, conhecendo meio Mundo. Entre todas, a mulher francesa caiu-lhe na graça... porque, a mãe nascera na tua pátria e foi sempre esposa admirável. Tinha de submeter-me ou renunciar à herança, o que achava preferível. Meu pai, porém, não perfilhava a minha opinião e não queria que a fortuna e os títulos de meu tio fossem parar a outras mãos.
Meu marido passara-me o braço pela cintura e, enquanto falava, tinha-me arrastado para a janela que deitava para o mar. Através da vidraça, vi acenderem-se as luzes da cidade e os faróis dos navios ancorados no porto.
- Então - prosseguiu Edward, disposto a pôr-me ao corrente de todas as fases do problema e das causas da minha ida para Uam-Var - como, por um lado, não conhecia rapariga que me agradasse e, por outro, o casamento imposto se me tornava profundamente desagradável, declarei a meu pai que casaria com a primeira mulher que me aparecesse, fosse ela Francesa ou não. Deixava-lhe carta branca para tratar do assunto. Pegando-me na palavra, meu pai teve a ideia de mandar procurar uma rapariga em França, porque assim - dizia ele-além de satisfazer a condição imposta por meu tio, se mais tarde quisesse divorciar-me, o caso faria menos escândalo do que se eu tivesse casado com uma Inglesa.
Volveu-me um olhar submisso, como se me pedisse perdão por ter podido encarar semelhante possibilidade.
- Deixei-o proceder à vontade, intimamente decidido a não me prender a minha mulher e a separar-me dela logo que me fosse possível... Mas o homem põe e Deus dispõe. Aconteceu que, contrariamente aos meus cálculos, a esposa escolhida era encantadora, distinta, simpática, o mais atraente possível. A sorte tinha-me favorecido e em breve comecei a pensar que Deus pusera no meu caminho uma criaturinha adorável que me faria o mais feliz dos homens. Mas, para isso, tornava-se forçoso que ela me aceitasse como verdadeiro marido. E é por isso, minha adorada Cristiana, que hoje te peço para seres minha mulher, de verdade.
Estrangulava-me a garganta profunda emoção, uma vontade de chorar que não me deixava proferir palavra.
Por única resposta, deitei-lhe os braços ao pescoço e, pela terceira vez, unimos os lábios como para saciar a sede que nos atormentava havia tanto tempo e para recuperar o tempo perdido, os beijos que naqueles dois anos poderíamos ter trocado.
Edward é o mais carinhoso dos maridos. Atravessávamos as ruas de Inverness, quer para o cinema, jantar a um restaurante da moda, passeando no porto ou de regresso ao hotel, de braço dado, ternamente cingidos. Embora isto não esteja nos hábitos ingleses, quem poderia censurar-nos, vendo-nos tão apaixonados um pelo outro?...
Considerava-me a mais feliz das mulheres e posso dizer que a intensidade da minha ventura era proporcional ao tempo e às torturas que suportara para a alcançar.
Passámos oito dias em Inverness, oito dias deliciosos, que foram os primeiros da nossa lua de mel. Depois pensámos no regresso. Na gare, enquanto meu marido escolhia algumas ilustrações, eu examinava os vários quiosques ali existentes. Um deles oferecia-nos brilhante exposição de brinquedos e, entre eles, um palhaço que me encantou. Lembrando-me do pobre Cristiano, que tão triste devia encontrar-se com a minha ausência, não pude deixar de o comprar.
Edward, que acabava de sair da livraria, percebendo o que estava fazendo, veio ter comigo, pegou-me na mão e beijou-a, como no dia em que me recusara a deixar partir Cricri.
- Sensibilizou-me a tua ideia, minha gentil Lady - disse com súbita emoção - Como foste boa, lembrando-te do pobre garotinho! Talvez, por vezes, tenhas estranhado a minha indiferença a seu respeito. Gosto muito dele, mas a fibra paterna nunca vibrou em mim.
Escutei com espanto esta declaração tão estranha.
- Pela simples razão - prosseguiu meu marido
- de que o pequeno não é meu filho.
Soltei incrédula exclamação:
- Que dizes!... Cristiano não é teu filho?...
- Não, é filho do meu irmão mais velho, Rodney, que, de facto, devia ser o herdeiro do meu tio, por ser o primogénito... Mas o Destino é caprichoso e decidiu doutra forma. Rodney morreu em França, vítima de um acidente de automóvel, quando ia, precisamente, reconhecer o filho, nascido de uma senhora francesa de quem ele muito gostava e com quem tinha vivido em Paris, durante dois anos. A mãe do pequenito acabava de morrer na Normandia, vitimada por uma febre maligna... Desta forma, a criança ficou órfã e sem nome... foi recolhida pela
avó, excelente criatura, a quem chamava "mamã Gertrudes" e que, por sua vez, morreu, e por isso a levaram para Uam-Var.
Fiquei estupefacta com a revelação. Estupefacta e agitada por confusos sentimentos, um misto de alegria, por saber que meu marido não era responsável pelo nascimento da criança, e de terna compaixão pelo pobre órfão.
- Meu pai - prosseguiu Edward - que partiu para França a buscar o corpo do filho para o trazer para a Escócia, foi posto ao facto, por um amigo de Rodney, da aventura amorosa de meu irmão. De princípio, não lhe deu importância, porque o desgosto sobrelevava todas as outras considerações. Mesmo assim, ordenou ao nosso procurador que todos os anos enviasse determinada quantia à avó do pequeno. Quando o tio Benstrong morreu, há dois anos, instituindo-me seu herdeiro debaixo de certas condições, lembrou-se da criança desconhecida que vivia na Normandia... Não era ela filha de Rodney, do querido desaparecido, do nosso sangue? Pensou então que tinha deveres a cumprir para com ela e aproveitou o nosso casamento para lhe dar uma situação legal, legitimando-a. De tio, passei a pai, sem dar por isso. No entanto, como sempre tive a maior afeição ao meu irmão mais velho e, embora a determinação do chefe da família fosse contrária aos meus interesses, visto prejudicar os meus filhos se, mais tarde, os tivesse, colocando Cristiano como meu filho mais velho e, portanto, herdeiro de todos os meus bens, acedi sem discutir. Será ele quem herdará toda a minha fortuna, visto ser essa a vontade de meu pai, mas não importa. Não atribuo ao dinheiro e aos títulos a importância que meu pai lhes dá... Procurarei fazer dos meus filhos - os nossos, Cristiana - homens instruídos, honrados e trabalhadores, aptos a ganharem a sua vida, e conto que a minha adorada mulherzinha me coadjuve nesta tarefa. O Cristiano não deve suportar o contracheque desta situação.
- Sou da mesma opinião, Edward - concordei de todo o coração - Devemos amar sem reserva o pobre pequenito que não pediu para nascer e que, por agora, não exige de nós se não afecto e carinhos...
- E que, indiscutivelmente, é do nosso sangue.
- Sim, é filho do teu irmão, vítima de atroz destino... e vítima o podemos considerar a ele também, visto ter ficado sem os seus naturais protectores.
- Agradeço-te a forma como encaras as coisas.
- Não me agradeças coisa alguma, Edward. O Cricri é, de facto, nosso filho, porque o reconhecemos como tal. Para mais, tenho a impressão de que a sua entrada em Uam-Var nos trouxe a felicidade... Ganharam o processo e estamos unidos um ao outro para as boas e más horas.
- És muito boa, querida. Alegra-me ver como aceitas a situação... que não ficas mal disposta por as coisas não serem como podiam ser... e por não fazeres recair sobre o inocente Cricri o peso da tua desilusão.
- Não tive desilusão, Edward. O futuro que me proporcionas e o presente tão risonho, são mil vezes mais belos do que eu podia conceber... Admito perfeitamente o teu despeito, porque um homem, nestas circunstâncias, não aceita as coisas da mesma forma do que nós, mulheres, embora estejamos, directamente, interessadas no assunto. Tranquiliza-te. Amaremos o Cricri, porque é filho de um ente querido. E, se tivermos filhos, considerá-los-emos todos da mesma forma, com igual ternura, e acabaremos por nos esquecer da forma como ele entrou em Uam-Var.
- Obrigado, minha querida, obrigado de todo o coração!
Pouco mais tenho a contar.
Antes de regressarmos a casa, fomos a França visitar minha mãe, que ficou logo conquistada pelo Edward, como os meus irmãos e irmãs, quando tinham ido passar as férias a Uam-Var.
Demos-lhe todos os pormenores sobre a história do nosso casamento, que ela achou maravilhosa. Como mulher de militar, tinha corrido Mundo e presenciado muita coisa estranha durante as suas viagens. Mesmo assim, nunca ouvira coisa que se assemelhasse à nossa aventura.
- Nunca calculei que a minha Cristiana, tão sensata e tão dócil, acedesse a casar com um desconhecido e sem me pedir conselho - não se cansava de repetir.
O que mais a impressionou foi compreender que a causa inicial das minhas aventuras residia nas despesas disparatadas que fizera durante a minha aprendizagem como dona de casa... A sua filha, em cuja inteligência sempre confiara, que ela supunha tão ao facto dos assuntos referentes ao governo do lar, suportara horas tão difíceis de remorso e de preocupações?... Era fantástico, extraordinário, inconcebível!... E acabou por concordar que se sentia estranha, nesta época.
Não lhe dissemos coisa alguma sobre o Cricri, visto ser assunto que só a mim e a meu marido dizia respeito... Visto sermos, oficialmente, seus pais, ninguém deveria saber que não era nosso filho.
Tudo está bem quando acaba bem. Minha mãe perdoou-me, como só as mães sabem perdoar, e acolheu sem reservas o marido que me tinha caído do céu. Se Edward me tornava tão feliz, seria injusta se não o acolhesse bem.
Correram os dias... meses... e anos até.
presentemente, sou mãe, tenho filhos muito meus, mas reparto o meu carinho entre eles e Cricri, que me testemunha um amor verdadeiramente filial.
posso considerar-me a mais feliz das mulheres, mas faço votos para que todas as raparigas que se encontrem na contingência de governar casa em solteiras o façam com economia e moderação para que, mais tarde, pela força das circunstâncias, caso se vejam na necessidade de desempenhar o cargo de dona de casa, como eu, estejam à altura dessa tarefa. Isto, para honra sua e para felicidade das futuras esposas!
Max Du Veuzit
O melhor da literatura para todos os gostos e idades