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O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui dentro.
Fora: quase novembro, a ventania de primavera levando para longe os últimos maus espíritos do inverno, cheiro de flores em jardins remotos, perfume das primeiras mangas maduras, morangos perdidos entre o monóxido de carbono dos automóveis entupindo as avenidas. Dentro: a fila que não andava, ar-condicionado estragado, senhoras gordas atropelando os outros pelos corredores estreitos sem pedir desculpas, seus carrinhos abarrotados, mortíferos feito tanques, criancinhas cibernéticas berrando pelos bonecos intergalácticos, caixas lentas, mal-educadas, mal-encaradas. E o suor e a náusea e a aflição de todos os supermercados do mundo nas manhãs de sábado.
Ela olhou as próprias compras; bolachas-d’água-e-sal, água com gás, arroz integral e, num surto de extravagância, um pote de geléia de pêssegos argentinos. “Duraznos”, repetiu encantada. Gostava de sonoridades. E não tinha mãos livres para se abanar. E a mulher de pele repuxada amontoara no balcão seus víveres, dois carrinhos transbordantes de colesterol e sugar blues. Ela suspirou. E olhou para cima, de onde a espiava uma câmara de TV, como se fosse uma ladra em potencial, e olhou também as prateleiras dos lados do corredor polonês onde estava encurralada e viu montanhas de pacotes plásticos com jujubas verdes, rosa e amarelas, biscoitos com sabor de bacon, cebola, presunto, queijo. E latas, pilhas de latas.
Suspirou outra vez, suspirava muito, e voltou a olhar para fora, para além das cabeças. Continuava o céu azul tão claro e raro naquela cidade odiosa. Mas aqui dentro ela só conseguia tirar um pé da sandália havaiana - era sábado, “danem-se”, ela era assim mesmo - para apoiar os dedos de unhas muito curtas, sem pintura, sobre o outro pé. Feito uma garça, ela, pousada no meio do charco açucarado. A saia larga indiana estampada de muitas cores até os tornozelos, a blusa solta de seda branca sem mangas, o dinheiro contado escondido no bolso sobre o seio esquerdo. O pé inchado, balançou-o no ar para ativar a circulação. E se alguém olhasse para ela assim, sem ver o pé inchado escondido pela saia larga, diria ser perneta, pobre moça, toda desgrenhada, essas roupas meio hippie amassadas e ainda por cima perneta. Perneta, equilibrista, não se apoiava em nada nem ninguém, sem muletas ou bengala. “Danem-se”, repetiu olhando enfrentativa em volta. Mas “danem-se” não era suficiente para aquela gentalha. Então rosnou: “Fodam-se!” em voz baixa, mas com ódio suficiente, exclamação, maiúscula e tudo. Ficou mais serena depois, embora exausta, desaforada e sem toxinas, a moça-garça. Foi então que o viu na fila ao lado, já passando pela caixa. Não estava mais gordo, não no rosto pelo menos, nem mais calvo. Mas havia no corpo magro uma estranha barriga que parecia artificial. E rodas de suor nas axilas, manchando o tecido sintético da camisa branca social de manga comprida. Sem jeito, sem vê-la, ele tentava enfiar as compras nas sacolas de plástico, e enviesando a cabeça ela investigou curiosa: vodca, uísque, Campári, pilhas de salgadinhos plásticos, maionese, margarina, pacotes de jornal com cruas lingüiças sangrentas, outro carrinho cheio até as bordas de latas de cerveja, queijo, patê - seria uma festa? -, mais latas, muitas latas, seleta de legumes, massa de tomate, atum. As sacolas furavam, latas despencavam pelo chão, ele curvava-se para apanhá-las tentando assinar o cheque, e ninguém o ajudava. Ele era um homem que conhecera havia muito tempo, quando ainda não era esse urbanóide naquele supermercado mas apenas um quase jovem recém-chegado de anos de exílio político no Chile, Argélia, depois a pós-graduação em Paris, em algum assunto que ela não lembrava direito. Só sabia que ele o tempo todo falava num certo simulacro de uma tal imagerie, as pernas cruzadas no sofá forrado de algodãozinho estampado de lilás e malva da sala do apartamento dela, as pernas apertadas com força protegendo as bolas, como se ela estivesse sempre a ponto de violentá-lo no segundo seguinte, falando e falando sem parar em Lacan e Althusser e Derrida e Baudrillard, principalmente Jean Baudrillard, enquanto ela se ocupava em servir mais vinho branco seco gelado com pistache, contemplar as rosas amarelas no centro da mesa e comover-se a admirá-lo, assim jovem, assim estrangeiro no próprio país, assim aterrorizado com qualquer possibilidade do toque de outro humano em sua branca pele triste sem amor vinda do exílio.
“Você sabe viver”, dizia ele. Ela sorria modesta, mais sarcástica do que lisonjeada. Mal sabia ele do quanto, entre as traduções do alemão, ela mourejava feito negra passando panos com álcool nas paredes, aspiradores nos tapetes, recolhendo cortinas para a lavanderia, trocando lençóis todo santo dia, lavando louça com as próprias mãos avermelhadas que olhava melancólica quando ele diziaessas coisas, ensaboando no tanque roupa quase sempre branca, quase sempre seda, que não tinha nem teria jamais máquina, picando cenouras, rabanetes e beterrabas para saladas cruas, remexendo em panelas de barro com colher de pau, odiava microondas, para sempre e sempre exausta de tudo aquilo. Seu único consolo era a fita com Astrud Gilberto e Chet Baker sempre cantando búdicos ao fundo.
Limpa, ordenada, trabalhadeira, aquela mulher, todo dia. E morta de cansaço e amor sem esperanças por aquele homem que não a via nem veria jamais como realmente era, nem a tocaria nunca. Admirava-a para não precisar tocá-la. Conferia-lhe uma superioridade que ela não possuía para não ter que beijá-la. Dissimulado, songamonga, recolhia nomes, telefones, endereços de pessoas e lugares provavelmente úteis algum dia para a Árdua Tarefa de Subir na Vida, vampirizava cada um dos amigos dela, sobretudo os que detinham alguma espécie de poder, editores, políticos, jornalistas, donos de galerias de arte, cineastas, fiadores, produtores. Sedutor, insidioso, irresistível.
- “Vamos jantar uma hora dessas”, insinuava ambíguo para todo mundo. Durante três anos. Nunca lhe dera um orgasmo. Nunca deitara nu ao lado dela na cama, nua também. No máximo sussurrava doçuras tipo: “Fica agora assim por favor parada contra essa janela de vidro que a luz do entardecer está batendo nos seus cabelos e eu quero guardar para sempre na memória esta imagem de você assim tão linda”.
Não, ela não era tola. Mas como quem não desiste de anjos, fadas, cegonhas com bebês, ilhas gregas e happy ends cinderelescos, ela queria acreditar. Até a noite súbita em que não conseguiu mais. E jogou copos de uísque na cara dele, ligou bêbada de madrugada durante dias, deixou recados terríveis na secretária eletrônica ameaçando suicídio, assassinato, processo, chamando-o de ladrão,
“Quero porque quero minhas fitas de Astrud e Chet de volta, sua bicha broxa”, bem bruta e irracional repetindo o que seu analista, também exausto de tudo aquilo, dissera não especificamente sobre ele, mas sobre todos os homens do mundo: homossexual enrustido que não deu o cu até os trinta e cinco anos vira mau-caráter, minha filha. Ele tinha trinta e sete quando se conheceram. Agora quantos mesmo? Uns quarenta e três ou quarenta e quatro, era de Libra, daquele tipo que não sabe a hora de nascimento. E aquela barriga nojenta, aquele Ar de Quem Venceu na Vida, aquela camisa sintética, as rodas de suor, as calças Zoomp com pregas, as bolsas de plástico barato do super, três ou quatro em cada mão, saindo torto e quase gordo do supermercado.
Atrás dela, na fila, alguém empurrou-a com o carrinho. A caixa esperava com ar entediado e sotaque paraíba: “É cheque, cartão ou dinheiro, quéééérida?”. “Dinheiro”, ela disse. E jogou sobre o balcão a nota retorcida, como se fosse uma serpente viva. Depois pegou as poucas compras e caiu fora. Ausgang!
Lá fora o vento bateu em sua saia longa, fazendo-a voar. “Estou sem calcinha”, ela lembrou. E pensou em Carmem Miranda. Mas deixou que voasse e voasse. Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul - daquela não-dor, afinal.
São oito horas da noite, não há ninguém na estação. Não, não é exato. Para ser preciso o TGV chega pontualmente às 8h07 - e não há nada mais pontual que um TGV, exceto talvez aquele ônibus sueco de Kungshambra, faz tanto tempo, continuará assim? -, portanto não são bem oito horas da noite, mas um pouco mais, embora não muito. Se é que importa a hora em que tudo isto começa.
Suponhamos que eu tivesse levado três, no máximo cinco minutos para apanhar a mochila, essa bagagem típica e mínima de quem não se importa de andar de lá para cá o tempo todo sem paradeiro, saltar do trem e subir as escadas da plataforma até o corredor de saída, naquele passo meio desconfiado dos recém-chegados a algum lugar onde nunca estiveram antes. Suponhamos também que tenha olhado em volta à procura de K ou de qualquer outra pessoa inteiramente desconhecida e parada na estação deserta, segurando um cartaz com meu nome escrito, e talvez então tivesse me detido um momento a pensar vago que sempre foi um dos meus sonhos esse: desembarcar numa estação deserta e desconhecida para encontrar alguém igualmente desconhecido segurando meu nome num cartaz erguido bem alto, sobre todas as outras cabeças dos que partem ou chegam, pois essa é a estação que imagino, cheia de gente que sobe e desce escadas, carregada de malas, vindo ou indo para lugares, para outras gentes, e sobre as suas anônimas cabeças em trânsito meu nome seria o único escrito em grandes letras visíveis, talvez vermelhas, erguidas bem alto, as letras do meu nome. Mas suponhamos ainda que tivesse me distraído alguns segundos nas esquinas desse pensamento (vadio, reconheço, auto-referente, narcisista), de qualquer forma não mais que segundos que não chegaram sequer a minuto, porque não há ninguém lá, nem cartaz, nem gente viajante nem nada e paciência, querido, ainda não será desta vez que, conformado, começo a subir as escadas ou vou saindo das escadas para o corredor que leva até a rua, e nisso tudo, que não levaria mais que cinco, talvez sete ou nove minutos, embora possa parecer muito mais dito assim dessa maneira aqui, para ser preciso, para começar, ou quase, digamos finalmente que:
Não deve passar de oito horas e quinze minutos de uma noite de novembro quando, sozinho, na estação com minha mochila, olho em volta e não há ninguém a minha espera
Lá embaixo, ainda na plataforma onde param os trens que chegam de Paris, um homem manco e velho, um tanto cansado e metido num sobretudo xadrez preto e branco, dirige-se lento às escadas para subir até onde estou. Não usa bengala ou muletas, o que me faz imaginar, talvez desejar, que tenha apenas um pé machucado ou algo assim, e portanto mancar seja uma coisa passageira, não um destino irremediável. Ele desaparece por instantes nessa espécie de túnel das escadas que ligam a plataforma de chegada do trem ao corredor onde estou, só com minha mochila e meu olhar. Olho disfarçado mas muito atentamente para seus pés quando ele emerge do túnel e vem vindo pelo corredor em minha direção. Trôpego, acostumado aos trancos, traz as mãos nos bolsos, o homem manco, e nenhuma bagagem. Então sorri ao passar por mim, esse homem velho, e leva dois dedos ao boné como se fosse retirá-lo num cumprimento, como se fazia antigamente, embora eu não seja uma senhora ou senhorita nem pareça, sejamos francos, digno desse tipo de respeito. Mas é só um gesto, um resto de gesto, quem sabe a nobreza que sobra a um velho manco. Não retira o boné, o homem cansado de faces vermelhas e olhos azuis, vejo melhor tão perto, e se vai em direção à cidade, arrastando a perna manca que bate no cimento da passarela, e me deixa só, e desta vez sim, é exato dizer desta maneira para continuar:
São pouco mais de oito horas da noite. Estou completamente só entre os guichês fechados desta estação numa cidade do Norte.
Espero o velho manco cansado ultrapassar com dificuldade a lama, os ferros, as telas cor de laranja das obras em frente à estação, depois desaparecer na primeira esquina. Então espero mais. Cuido os táxis que passam, como se K pudesse estar dentro de um deles e poderia sim, poderá quem sabe abrir a porta rápido para que eu entre, sem descer, apenas recuando um pouco para dentro, para me dar espaço a seu lado, nesse ninho morno do banco de trás, e diga o endereço ao motorista caprichando na pronúncia francesa para que eu o admire, embora isso não me importe agora, quero apenas encontrá-lo, e meio ao acaso, pouco depois, quando o carro recomeçasse a andar, tomar entre as suas uma das minhas mãos avermelhadas pelo frio e pelo peso da mochila, e afinal comece a falar sem parar naquela língua que ambos conhecemos bem e não ouvimos faz tempo, contando coisas engraçadas, estranhas ou até mesmo um tanto estúpidas, não importa. Não importará nada do que diga ou faça, desde que venha e tudo aconteça desta ou de outra maneira inteiramente diversa da que invento, parado na frente da estação desta cidade do Norte onde, dizem, existe também o mar.
Nenhum carro pára. K não vem e o tempo passa. Olho a cidade enlameada, varrida por ventos vindos quem sabe desse mar que por enquanto nem vejo. No meio do olhar, uma palavra me vem à mente: sinistrée. Não sei de onde vem, nem lembro, mas fico a mastigá-la em voz alta muitas vezes, feito um mantra demasiado longo, parado na frente da estação deserta: sinistrée, sinistrée, c’est une ville sinistrée.
São muito mais de oito horas da noite, talvez nove, meu relógio foi roubado numa aldeia africana ou numa metrópole da América do Sul. Não lembro, não sei. K não veio, não veio ninguém e ninguém mais poderia vir além dele. Fico tentado a dar a volta agora, em direção a Amsterdã, Katmandu ou Santiago de Compostela, mas sei que K está aqui, nesta cidade do Norte, e eu preciso encontrá-lo. Há um hotel na minha frente. Jogo a mochila nas costas e penso: sempre haverá um hotel ao alcance do olho e das pernas de alguém perdido, aqui ou em qualquer outro lugar do planeta, e isso sempre deve ser também uma espécie de solução, mesmo provisória. Como os próprios hotéis estão aí afinal para isso mesmo: o provisório.
Puxo o zíper da jaqueta de couro até o pescoço, enfio as mãos nos bolsos, os pés na lama, e atravesso a rua.
Não quero ficar justamente em frente a elas, mas todas as outras mesas no restaurante do hotel estão ocupadas. A menos que eu sentasse de costas para elas, portanto de frente para a cozinha, o que seria esquisito, suponho, no mínimo inconveniente. Nem tanto talvez, mas como ainda desconheço o limite de tolerância para com as esquisitices alheias neste lugar onde nunca estive antes, por delicadeza acabo sentando exatamente onde não suportaria ficar. Em frente ao aquário em que elas estão.
Esguias, sinuosas.
Claro que posso, em princípio, desviar meu olhar através da parte superior do vidro do aquário, e depois desse primeiro vidro, pelo segundo vidro da outra parede do aquário, e depois desses dois vidros entre os quais ainda não há água, ultrapassar um terceiro - o da janela voltada para a rua, a lama, os ferros em frente à estação. Posso também olhar para a direita, onde três escandinavos de gravatas coloridas falam uma língua cheia de consoantes, mas como continuo a desconhecer o limite de tolerância e etc. compreendo que não devo olhá-los tempo demais. E por delicadeza, outra vez, mudo meus olhos. Mas por mais que possa sempre olhar para a esquerda, em direção à portaria com a loura cinqüentona que me providenciou o quarto mais barato, para o teto ou a toalha da mesa, e até mesmo para a esquina lá fora, em que parece estar parado um homem velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco, há um momento em que, como se nada mais houvesse no mundo para ser olhado, e por absoluta delicadeza, sou obrigado a encará-las de frente.
Negras, lisas.
Há duas enguias no aquário em minha frente. Há outros peixes menores também, nadando indiferentes em torno delas. Estão imóveis, duas serpentes viscosas preparando um bote sem pressa. Devem medir pelo menos quatro palmos, quase toda a extensão do aquário. Remotas, aceitam a exigüidade, amoldando o quieto horror de seus corpos pelas esquinas de vidro, apoiadas sobre as pedras do fundo, entre peixes menores tão distraídos que chegam a roçar nelas suas caudas, suas barbatanas. Mas não dão choque? - quero perguntar feito criança - e não devoram os outros peixes? - morro de curiosidade mórbida - e é verdade que são capazes de rastejar na lama feito cobras anfíbias? - mas não pergunto nada. Não demonstro sequer que sua presença me estremece. Entre paredes de vidro: expostas, obscenas. Sorrio para o garçom. Peço mais vinho, tão negro quanto a pele das enguias. E por monstruosa delicadeza, bebo sem espanto algum.
(...e bom, poderei comentar daqui a algum tempo, muito natural, dando outro gole no uísque ou acendendo mais um cigarro: “Então de repente uma noite lá estava eu naquela cidade desconhecida, bebendo vinho tinto cara a cara com aquelas duas enguias num aquário pequeno demais para elas”...)
Esse pensamento quase me salva, Digo quase porque, embora me jogue para a frente, para o tempo em que já não estarei aqui e agora olhando ad infinitum as enguias sem mais nada no mundo, não é exatamente esse, mas um outro que chega junto, talvez dentro dele, o realmente salvador. Se é que salva - pensamento, memória, fantasia - qualquer coisa que venha de dentro, não de fora. De dentro, isso que vem, ainda vago no começo, limita-se àquela palavra trágica que repito olhando fixo para as enguias, porque de alguma forma ajusta-se com perfeição aos seus lisos corpos negros esguios sinuosos: sinistrée.
A primeira vez que encontrei alguém que conhecia Saint-Nazaire e perguntei sobre a cidade, foi com essa palavra que me respondeu. “Sinistrée”, disse. “C’est une vilie sinistrée.” Chamava-se Alain, Jean-Paul, talvez François, em todo caso um desses nomes masculinos tipicamente franceses. Mas não estávamos na França. Era Ribeirão Preto, Presidente Prudente, talvez Piracicaba, em todo caso uma dessas cidades ricas do interior de São Paulo por onde eu andava, já naquele tempo, à procura de K. Enquanto Alain ou Jean-Paul, mais provavelmente François, e Deus sabe o que faria lá, num português difícil tentava contar uma longa história antiga de guerra, bunkers, bombardeios, nazistas, sem ouvi-lo direito eu mastigava a palavra - si-nís-tré-e -, rolando entre os dentes sua sonoridade dramática que me fazia pensar em sombras, gemidos. Escombros, ruínas. Fria chuva ácida e vento radioativo soprando sobre o sangue nas calçadas.
Quase peço mais vinho, então, enquanto os escandinavos levantam da mesa ao lado e o salão vai ficando pouco a pouco completamente vazio. Seria mais fácil permanecer aqui, me embebedando nesta pausa difícil, a mastigar palavras trevosas e a contemplar enguias até que alguém me mande embora, as portas se fechem e todos vão dormir. Mas não - penso de repente, um segundo antes de, por pura delicadeza, pedir outro vinho, porque são os atos e não as palavras que podem salvar -, quanto a mim: não.
Não há de ser por delicadeza que perderei minha vida - vou repetindo no mesmo ritmo em que afasto o vinho, levanto da mesa e decido, ainda esta noite e de qualquer maneira, sair à procura de K.
É fácil descobrir o endereço - dix-sept, rue du Port -, que me soa romântico com seus erres rascantes ditos pela loura cinqüentona da portaria. Mais difícil, e ela insiste, seria explicar por que me vou sem sequer passar uma noite aqui. Não pelo quarto, madame, pela comida ou qualquer outro desses detalhes dos hotéis, s‘il vous plaït, mas pelo horror imóvel das enguias em sua jaula de vidro associado ao outro horror também imóvel daquela palavra. Pelo risco da imobilidade eterna, madame, pelo perigo de eu mesmo permanecer para sempre aqui, igualmente imóvel, congelado em inúteis delicadezas enquanto tudo ou nada ou apenas qualquer coisa, mesmo insignificante, se agita e move e se perde em outro lugar, com certeza madame não compreenderia tanta ânsia tropical, bien súr.
Finjo que meu francês é pior do que na realidade é. Pago a conta, ela me estende um pequeno mapa da cidade. Aponta o caminho com a unha vermelha: “No building”, diz. E repete, batendo com a ponta da unha na ponta do papel até que eu compreenda a palavra inglesa com estranho acento francês: “No building”.
Avenue de la République, sempre em frente, e me perco um pouco quando a rua se divide em duas para contornar um prédio redondo onde as vitrines exibem sapatos, toca-fitas, vestidos e cristais, como todas as vitrines do mundo. Só depois de uma volta completa, cuidando sempre as placas, consigo chegar ao Hôtel de VilIe. Não passa muito da meia-noite, imagino, mas as ruas estão desertas como se a cidade tivesse sido evacuada.
Sirenes, não sei se lembro ou penso ou vejo, clarões no ar, depois a explosão e cacos, estilhaços na carne macia das crianças. A mochila pesa, o vento corta a cara: Sarajevo, gemo, como se estivesse lá e fosse eu. Às vezes me detenho e olho para trás, como se ouvisse passos mancos batendo e batendo contra o cimento das calçadas. Nunca há ninguém quando olho. Deve ser o eco de meus próprios passos, fantasmas desta ou de outra guerra emboscados nas esquinas, alguma lata soprada pelo vento.
Em frente ao Hôtel de Ville hesito um pouco mais, indeciso entre virar à esquerda ou à direita. Desdobro no ar o mapa que o vento tenta arrancar-me das mãos, e para que não o faça sou obrigado a voltar-me de costas para ele - para o vento, para o lugar de onde sopra, talvez o mar que não vejo - e nesse movimento rápido, no segundo em que protejo a folha de papel com minhas costas arqueadas, ao mesmo tempo em que abaixo o rosto para procurar a direção correta, por acaso meus olhos esbarram no edifício dos correios, pouco abaixo, na mesma rua. E tenho certeza de que alguém acabou de esconder-se entre as sombras das escadas. Loucura, ilusão, delírio.
A chuva é tão fina que nem chega a molhar, apenas gela. Tenho que ir em frente ao encontro de K, nesta ou em qualquer outra cidade do Norte ou do Sul, da Europa ou da América. Histórias como esta costumam acabar bem e, mesmo que não se viva feliz para sempre - afinal, não se pode ter tudo -, deve haver pelo menos algum lugar quente e seco para abrigar o final da noite. À esquerda, decido - sempre à gauche -, em direção ao cais, pela rue Géneral De Gaulle, depois da igreja de tijolos expostos, cercada pelas folhas amarelas caídas desses plátanos que me fazem lembrar outras folhas, outros outonos, outras cidades. Tudo e cada coisa em qualquer lugar lembrará sempre e de alguma maneira outra coisa num lugar diverso, portanto é inútil me deter e sigo em frente. Cuido sempre as placas, prossigo até a altura em que a rua muda de nome para boulevard René Coty, falta pouco agora, posso sentir nos meus passos. No ritmo da caminhada, na minha respiração.
Quando vejo os barcos atracados à esquerda e, mais à frente, onde a rua termina, a ponte iluminada verde, cinza e branca que começa a levantar-se à medida que me aproximo - como num sinal, como se me desse boas-vindas -, começo a andar mais depressa sem olhar para trás, apesar dos passos mancos que continuam batendo às minhas costas. Estou certo de que é lá, onde esta rua se detém para que a ponte se eleve e os barcos entrem no cais, na curva exata onde o vento sopra mais forte.
Um navio começa a entrar no porto. Não presto atenção. Em vez de olhar para ele, antes de atravessar os arcos do edifício em direção à porta, prefiro olhar para cima em busca das janelas iluminadas atrás das quais K possa estar sentado, escrevendo ao lado de um cálice de calvados ou remy-martin, assistindo a qualquer programa exótico na televisão sobre as serpentes domésticas do Daomé ou as rumbas catalãs entrecortadas por ay! ay! ay! pungentes, e ouvindo então o movimento embaixo, abra uma fresta para espiar o navio que chega, e de repente me veja parado aqui embaixo, à sua procura, e sorria um sorriso que não verei, porque está muito alto e a luz que chega por trás não ilumina seu rosto, apenas seus contornos, mas de qualquer forma acene para mim, largamente, braço erguido contra o céu, para que eu suba sem demora ao encontro dele.
As janelas não abrem. Um vulto passa mancando atrás de mim. Aperto várias vezes o botão com o número de seu apartamento. Espero, e enquanto espero tento me distrair acompanhando a chegada do navio. Mas ele não me interessa. Nada me interessa além do botão desse painel eletrônico que aperto e aperto outra e outra vez, até a ponta do meu dedo começar a doer. Ninguém responde. Lá dentro, lá em cima, lá longe. Experimento a porta de entrada, não chego a compreender por que ainda continua aberta a estas horas, o que seria impensável e arriscado nas cidades de onde venho. Empurro a porta, entro, chamo o elevador e até que chegue calculo o andar onde certamente K deve estar, nem escrevendo nem assistindo à televisão, mas apenas talvez dormindo esquecido de tudo, inclusive de mim, da minha chegada, e abrirá a porta um tanto mal-humorado, sem saber ao certo se faço parte de um sonho que não estava sonhando ou de uma realidade que ele mesmo inventou, tão distraído que depois esqueceu ou teve preguiça de esperar que acontecesse.
Deposito a mochila no chão do corredor, investigo os números das três portas deste andar. Em frente a uma delas há um estranho arranjo: uma mesa de madeira dessas das escolas de antigamente com pedras redondas polidas, a maioria cinzentas, em arranjos sinuosos sobre o tampo e pelo chão, como um código celta esotérico, talvez lógico para quem o armou, mas perfeitamente incompreensível para mim, que não entendo nada. Dirijo-me à outra porta, ao lado daquela, toco a campainha. Outra vez, várias vezes. E outra vez ninguém atende, e outra vez experimento a porta, e outra vez continuo a não compreender como possa estar aberta, à disposição de qualquer um e não apenas de mim.
Meu coração bate louco, tenho as palmas das mãos molhadas quando abro devagar a porta desse apartamento onde K com certeza estará. Puxo a mochila para dentro, sem ruído, antes que o vizinho celta possa entreabrir uma fresta para perguntar qualquer coisa difícil de responder. Fecho a porta atrás de mim, as luzes estão todas apagadas. Mas flutuando inconfundível na penumbra varada somente pelas luzes do porto além das janelas fechadas - como se eu fosse um animal, e ele outro - posso sentir perfeitamente nesse espaço o cheiro do corpo vivo de K.
De fora chega apenas o ruído do vento estremecendo as vidraças. Nem um grito no porto. Tiro as botas, prevenindo ruídos, tiro a jaqueta, coloco-as no chão ao lado da mochila e permaneço parado no pequeno corredor de entrada até que meus olhos se acostumem ao escuro. Não sei quanto tempo se passa assim, enquanto minhas pupilas se dilatam aos poucos para começar a perceber formas como as de um armário aberto e vazio à minha esquerda, e um pouco mais adiante a televisão desligada, com um botão vermelho que brilha sozinho na penumbra. Depois, começo a avançar pela sala.
As cortinas estão abertas sobre as vidraças altas, que tomam quase toda a extensão da parede que dá para fora. Através delas posso ver as calçadas e tetos molhados pela chuva nesse bairro do outro lado da rua, que me disseram chamar-se Petit Maroc. Um pequeno Marrocos, duvido, pois visto de cima não há nada nele que lembre arcos mouriscos, vielas tortuosas, punhais afiados, meninos descalços meio mendigos, meio prostitutos, e o vento que sopra por lá certamente não é o siroco nem vem do deserto. A massa escura de algo que só depois de algum tempo percebo que deve ser água, talvez o mar, abraça as casas desse pequeno Marrocos abandonado no outro lado da ponte.
Há alguém parado na esquina. Parece um homem velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco. Olha para cima, para onde estou, mas não tenho tempo de me deter nele. Preciso encontrar K. Avanço mais, avanço sempre.
Em frente à televisão há um sofá e uma mesa baixa, retangular, alguns livros sobre o tampo de vidro. Tenho vontade de curvar-me, ver suas capas - Pessoa talvez, sempre Pessoa, alguma biografia maldita falando de fracassos, como ele gostava, e qualquer coisa inesperada feito um novo romancista búlgaro ou poeta letão de nome impronunciável -, mas tenho medo de esbarrar em algo e despertar K, que certamente dorme lá dentro. Eu continuo a avançar. Antes de chegar ao lado oposto da sala, onde há outra mesa redonda com apenas um grande vaso branco sem flores, passo pela porta aberta da cozinha.
E é então que, na área coberta que dá para o interior do prédio, esse que chamam building, acontece de súbito um ruído de asas.
Um grande pássaro branco, talvez uma gaivota, pousa na janela da cozinha e olha para dentro, para o interior escuro do apartamento onde estou parado e respiro lento, quieto, abafado, tentando não despertar nada vivo aqui dentro. Desvio-me da pequena mesa de madeira no centro da cozinha, nada sobre os balcões, a geladeira, vou vendo em câmara lenta, como se estivesse dentro de uma cápsula espacial e qualquer movimento mais brusco pudesse romper a força da gravidade e lançar-me suavemente para cima, pelos ares. Curvo-me em frente à janela e fico olhando, do outro lado da vidraça, para os olhos do grande pássaro quase totalmente branco, vejo melhor agora e assim de perto certas penas cinza-claras no seu dorso. Seus olhos cor de laranja vivo, fulvos, com pequenas pupilas negras encravadas no centro, olham sem medo algum para minhas pupilas dilatadas.
Curvo-me mais, ajoelho-me no chão, apóio o braço direito no metal gelado da pia, aproximo o rosto, comprimo a testa contra a vidraça. O pássaro vira o pescoço, me examina de perfil, o bico afiado. Mas antes que eu espalme a mão sobre o vidro e sequer comece a pensar que poderia talvez abrir a janela para deixá-lo entrar ou para que eu mesmo pudesse sair, quem sabe, acontece outra vez aquele ruído de asas e de repente o pássaro se foi.
Sou um homem de joelhos no chão de uma cozinha vazia, num apartamento com todas as luzes apagadas nesta cidade do Norte onde nunca estive antes. Tudo isso, que é nada, subitamente parece tão absurdo e patético e insano e monótono e falso e sobretudo tristíssimo, que levanto de um salto, dou a volta, saio da cozinha e vou entrando decidido pelo corredor que parte da sala para o interior do apartamento. As portas estão todas abertas. A privada, o banheiro, o escritório onde aparentemente não há nada além de uma mesa em frente à janela que dá para o porto e outra estante de livros. Ah, as inúteis delicadezas, digo em voz alta, sem me importar de fazer barulho, de despertar qualquer outra pessoa que possa não ser K e porventura durma atrás de uma dessas duas portas no final do corredor.
Estendo a mão e abro a porta à minha esquerda. É um quarto. Com as luzes de fora atravessando a janela, consigo ver uma mesa vazia e duas camas de solteiro dispostas em forma de L. Forço os olhos tentando divisar algum volume, alguma forma sobre qualquer uma delas. Estão perfeitas, intocadas. Frias, esticadas, desertas. Não há ninguém dormindo nelas.
Não quero pensar em nada, nem mesmo em voltar atrás, ao corredor de entrada, apanhar minhas botas, minha mochila, minha jaqueta, sem nunca mais olhar para trás, e partir enfim para Amsterdã, Katmandu, Santiago de Compostela. Ações, repito, ações são o que salva. Quero apenas estender minha mão no escuro, abrir a porta e entrar no quarto, mas não consigo deixar de ver a mim mesmo, ainda em silêncio, ainda agitado, sentando à beira da cama onde K deve dormir, e sem acender a luz de cabeceira, sentindo dentro do sono minha presença e meu cheiro, abriria os olhos antes que eu pudesse distender os dedos do braço que acabei de alongar em direção a seu rosto adormecido - então segura meus dedos abertos no ar, um segundo antes do gesto. Estou agitado e desfeito e confuso e não quero pensar absolutamente nada antes de abrir essa porta.
Para compor meu rosto, então, subo as mãos pelo espaço. Quero ajeitar os cabelos antes de vê-lo. E antes ainda, antes, porém, que elas alcancem a testa, sem saber por quê, uma canção antiga, dessas de roda, de jogo, umacantiga de infância que ninguém lembra mais, muito menos eu, por isso me espanta tanto lembrá-la, me sobe estridente na memória. Detenho as mãos. Sem levá-las à testa, os dedos cobrindo por completo o rosto, pouco antes de abrir a porta canto no escuro em voz mais baixa que o vento lá fora:
Senhora dona Cândida,
coberta de ouro e prata,
descubra o seu rosto,
quero ver a sua graça.
Eu paro de cantar.
Eu abro a porta.
Eu estou sorrindo quando abro a porta do último quarto.
A cama de casal está feita. Mais além, as luzes amarelas do pequeno Marrocos varam o escuro. K não está no quarto, nem ninguém mais. Mergulho a cabeça nos lençóis à procura de seu cheiro, que também não está lá. Entranhado nos panos, guardado nas dobras. Lençóis limpos, cheiram apenas a limpeza. Água, sabão, detergente. Estou tão cansado, minha cabeça estala com passos mancos, estações desertas, enguias sinuosas, ruas vazias, chuva miúda, vento gelado, códigos celtas, gaivotas brancas, canções antigas. Sem pensar em nada mais, fecho os olhos para esquecer. Dorme, menino, repito no escuro, o sono também salva. Ou adia.
Pouco antes de dormir, percebo que ainda estou sorrindo. E que não sinto alegria. Afrouxo um por um os músculos do rosto, do corpo, da mente. Depois afundo.
Há um céu resplandecente lá fora.
Logo que abro os olhos, essa é a primeira coisa que vejo além da janela: o céu resplandecente lá fora.
Mesmo antes de saber ao certo se estarei no sótão de alguma squatter-house em Brixton, naquele porão do cortiço turco em Kreuzberg ou num hotel barato perto da Puerta del Sol - sei do sol. Quando olho para dentro, as paredes brancas do quarto, o metal cor de vinho da armação da cama, uma reprodução azul de Salvador Dali na cabeceira, e quando olho para fora, a ponte que leva ao pequeno Marrocos, a outra ponte maior ao longe, que lembra a cauda de um dinossauro, e sobretudo a luz do estuário - tudo isso confirma: continuo em Saint-Nazaire.
Continuo nesta cidade estranha, e a ausência de K também continua dentro do apartamento, confirmo, e vou confirmando mais enquanto saio da cama e volto, um por um, sobre meus próprios passos da noite passada. Tudo permanece como quando cheguei: vazio. Apenas o grande pássaro quase todo branco não está mais atrás da janela da cozinha - só as manchas escuras de fezes endurecidas no chão de cimento, algumas penas brancas entre elas, testemunham a sua visita. Não há vestígio algum da passagem de K ou de qualquer outra pessoa por aqui. Abro todos os armários do apartamento, abro os armários dos quartos, toalhas, lençóis, cabides, abro os armários da cozinha, louças, panelas, talheres, copos e um vidro com restos de café solúvel, único indício de que alguém mais, além do pássaro e de mim, andou também por aqui.
Sinais, procuro. Rastros, manchas, pistas. Não encontro nada.
Misturo devagar os grãos envelhecidos do café à água fervente da torneira. Tem gosto de terra, de lã, de cinza e de não sei que mais, áspero e grosso. Bebo assim mesmo. Abro a porta de vidro, saio na sacada que dá para o porto. O vento despenteia meus cabelos, acendo um cigarro e fico a olhar o sol oblíquo, entre a chaminé de tijolos e o molhe de cimento com alguns barcos atracados. Há verdes e brancos do outro lado do estuário, talvez dessa cidade que me disseram chamar-se Saint-Brévin-les-Pins.
O céu é tão azul e sem nuvens que poderia ser abril, mas o vento gelado na minha cara e os galhos nus das árvores à beira d’água afirmam: é quase dezembro nesta cidade do Norte. Uma cidade tão luminosa agora pela manhã que não parece a mesma da noite anterior. Talvez pela luz, essa luz limpa e leve dos estuários onde os Oxuns encontram as lemanjás, talvez pelo vento, pelo gosto mofado do café na minha boca, pela vaga vertigem que um primeiro cigarro sempre deixa na cabeça - por tudo isso, quem sabe, ou porque não há outro jeito, se tudo foi tentado, de repente fico perfeitamente sereno.
Jogo o cigarro no espaço. Como de costume, repito e repito: bem, paciência, querido, ainda não será desta vez que. E com a mesma nitidez de todas essas coisas que vejo e faço neste momento, enquanto contemplo o sol sobre o estuário, parado na sacada como numa fotografia, na seqüência imediata deste momento que se move, decido ir embora de Saint-Nazaire.
Antes de entrar, percebo: o homem de sobretudo xadrez continua parado na esquina do Petit Maroc. Ao me ver, dá um passo à frente, e nesse movimento uma de suas pernas vacila um pouco, como se mancasse. Ele ergue o braço, parece que vai retirar o boné num cumprimento. Mas não espero que conclua o gesto. Preciso pegar minhas coisas e partir. Viajar, esquecer, talvez amar.
Estou quase feliz enquanto procuro as botas, a jaqueta e a mochila no corredor de entrada. Na estação certamente há trens para toda parte e a qualquer hora. Calço minhas botas com estrelas de metal cromado pensando vagamente que preciso de um banho e poderia quem sabe, mas não tenho vontade sequer de espiar os livros na mesa da sala nem de ficar mais um segundo neste lugar onde não há marcas da passagem de K. Exceto aquele vago cheiro, na noite passada, que logo se dissipou.
Tenho a mão estendida para abrir a porta, chamar o elevador. Descer, partir, viver.
Então, feito um soco no peito, lembro do escritório. E vou voltando atrás, rastros, eu atravesso a sala, pistas, eu vejo o tampo negro da mesa sob a janela, manchas, eu entro no escritório, sinais, eu me aproximo da mesa, indícios, eu vejo, a pasta roxa sobre a mesa, vestígios: eu sei que todas essas coisas estão dentro dela. O mapa, dentro da pasta roxa. Eu a prendo forte entre as mãos, como se pudesse escapar.
“Journal d’une ville sinistrée”, está escrito na capa, como se fosse um título. Letras negras, finas, quase anônimas de tão minuciosas, desenhadas cuidadosamente feito ideogramas chineses, como se alguém tivesse levado horas nesse trabalho que parece feito a bico de pena. Mesmo assim, nessa escritura frágil, tombada para a direita como se pudesse cair da página, sou capaz de reconhecer a letra de K. Logo abaixo desse título, feito uma epígrafe colada na parte inferior da capa e provavelmente recortada de algum livro, há este trecho:
Aún no sé si este es el sitio donde yo pueda vivir. Talvez para un desterrado - como la palabra lo indica - no haya sitio en la tierra. Solo quisiera pedirle a este cielo resplandeciente y a este mar, que por unos días aún podré contemplar, que acojan mi terror.
No final dessas palavras, com a letra muito miúda de K, está escrito o que suponho seja o nome de seu autor - Reinaldo Arenas -, que não conheço. Não paro para pensar, nem me detenho no sentido do que acabei de ler. Mesmo que a palavra resplandeciente me surpreenda, apesar de o céu começar a fechar-se lá fora. Ainda não é suficiente, eu preciso de mais. Abro a pasta com tanto estabanamento que algumas folhas de papel caem ao chão. Há também cartões-postais, folhas secas, recortes. Começo a apanhá-los, não parece haver lógica entre essas folhas soltas. Num suplemento de jornal há fotos, entrevistas, cronologia e bibliografia de Jorge Luis Borges. Algo dito por ele, em francês, foi sublinhado com tinta vermelha:
[...] arc-en-cie c’est três beau, n ‘est-ce pas? C’est une architecture on construit un arc dans le cíel, c’est três beau; tandis que dans les autres langues, c ‘est plat; voyez arco-íris en espagnol, arcobaleno en italien; rainbow en anglais; cela n ‘a rien de particulier, tandis que arc-en-ciel, c ‘est de toute beauté. Qui a trouvé ça?
Procuro mais. Lá fora o céu acabou de fechar-se. Não há nenhum arco-íris e uma bruma lenta começa a atravessar as águas, vinda dos lados de Saint-Brévin. Há vários postais sem nada escrito atrás: um dólmen, uma dessas ruínas druídicas no centro de uma praça banhada pelo sol; o portal sul da catedral de Chartres, do século XIII; Chet Baker tocando sua clarineta no festival de jazz de Newport, em 1955; um violinista sentado numa janela, o violino e o arco nas mãos, olhando para fora, numa pintura chamada Der Geiger en Fenster, de Otto Scholderer, em 1861; uma cidade medieval cercada de muralhas, chamada Guérande; uma gárgula na fachada da igreja de Notre Dame; uma foto de Corinne Marchand em Cleo das 5 às 7 recortada de algum jornal, escrito embaixo “Je suis une maison vide sans toi... sans toi...”. Quando começo a me desesperar, algo que parece uma oração impressa em papel azul barato cai do meio dos papéis:
Notre-Dame des Flots,
les flots montants de la tendresse.
Notre-Dame des jlots tranquilles,
‘abondance coulant à flots
et le coeur remis à flot.
Le flot débordant de la foie,
le soleil entrant à flots
et la paix à grands flots...
A bruma cobre por completo o cais. Cais das brumas, repito, sem lembrar quando nem onde li ou ouvi essa expressão: cais das brumas. Se há ondas na água além do farol em frente, a bruma ficou tão impenetrável que já não posso vê-las. Sento na cadeira e, disciplinadamente, coloco a pasta à minha esquerda enquanto vou empilhando à minha direita as coisas que já vi. E continuo a ver, coisas aparentemente sem nenhum nexo, nenhuma ligação: um mapa da cidade de Praga com os nomes Daniela e Johana ao lado da palavra laska,* que não sei o que significa, escritos sobre ele com a mesma letra de K, em tinta fina e negra; o catálogo de um programa de leituras e palestras de escritores da Estônia, Lituânia e Letônia, com fotos de cada um dos escritores, mas apenas uma das fotos, a de uma mulher de olhos penetrantes e cabelos lisos, chamada Vizma Belsevica, cercada por uma moldura tão cuidadosamente desenhada quanto aquelas letras do título; um grosso catálogo de um festival de cinema em Nantes, sem nada assinalado; recortes de entrevistas com uma cantora do Cabo Verde, mulata e gorda, chamada Cesaria Evora, sem nada assinalado; e de repente, outra vez copiado na letra de K, algo que parece um fragmento da Ode marítima de Fernando Pessoa:
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do [crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha [imaginação!
Amantes casuais da obliqüidade das minhas [sensações!
(*) “Amor”, em tcheco
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos, a vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
No pequeno Marrocos, o restaurante acendeu seu neon azul. É a única coisa visível através da bruma que cobre o cais. Procuro algum navio atracado no porto, mas a bruma é tão branca e espessa que não consigo ver nada. E continuo a procurar, e procuro pelo menos a letra de K numa frase, numa palavra perdida no meio dos papéis que incluem recortes sobre o julgamento dos estupradores e assassinos da pequena Céline: caras escaveiradas das crianças negras da Somália; uma entrevista de Leonard Cohen, sem nada assinalado; bombardeios em Sarajevo; um mapa com as estatísticas da AIDS na África marcadas em tarjas negras; uma foto de Jeremy Irons e Juliette Binoche fazendo amor vestidos e em pé, apoiados no que parece a porta de uma igreja, em algum filme que não vi; a capa rasgada de um livro de bolso chamado Les nuits fauves, de Cyril Collard, que também não li, nem vi, nem sei e de repente uma página inteira quase completamente coberta pela letra de K cai no meu colo. Na parte superior, há uma foto de Brad Davis vestido de marinheiro, recortada e colada, e logo abaixo um texto sem crédito de ninguém e que, embora lembre Genet ou Fassbinder, parece ter sido escrito pelo próprio K:
A aposta está perdida. Querelle curva-se sobre a mesa. Desabotoa o cinto, as calças, mas não chega a abaixá-las. Apenas abre as pernas e debruça-se mais sobre a mesa. O negro vem por trás. Primeiro, com a mão direta, abaixa as calças do marinheiro até os pés. Com a esquerda, desabotoa as próprias calças. O negro lambe o dedo indicador e começa a introduzi-lo entre as nádegas de Querelle. Seu dedo desaparece na carne branca. Não há nenhuma resistência. O negro retira o dedo e, com um único movimento firme, introduz seu membro dentro de Querelle. Querelle não se move. Com as duas mãos, o negro escancara as nádegas do outro para entrar mais, e melhor. Quando entrou completamente, sobe as mãos pelo peito de Querelle até alcançar os mamilos duros perdidos entre os pêlos. É quando o negro tem a primeira suspeita. Move-se mais, entrando dentro de Querelle. Morde sua nuca, enfia a língua em seus ouvidos. Querelle continua imóvel. O negro desce as mãos dos mamilos do outro pelos pêlos da barriga, até seu sexo. Quando a palma de sua mão segura o sexo rijo de Querelle, ele tem certeza absoluta. O marinheiro não perdeu a aposta. Ao contrário, é o único vencedor. E tarde demais para o negro recuar dessa derrota enviesada. Ao longe uma voz rouca de mulher cantarola sempre: “Each man kills the things he loves”. O negro entra mais fundo, ao mesmo tempo em que sente a umidade do prazer de Querelle começando a molhar a palma de sua mão. Lá-rá-rá-lá-rá-rá-rá: o negro geme e goza dentro de Querelle. Querelle não geme nem se move. Apenas goza também, ao mesmo tempo, abundantemente, na palma branca da mão do negro. A aposta está ganha.
Brest: digo esse nome cortante feito faca. E recomponho na memória o mapa desse pequeno pedaço da França, qualquer coisa entre o que chamam Pays de la Loire e a Bretagne. A esquerda, pouco mais acima, pouco mais ao norte, naquela ponta do mapa que lembra uma cabeça de cão projetada sobre o Atlântico, fica a cidade de Brest. Procuro com os olhos além da ponte que lembra a cauda de um dinossauro - porque tudo, repito, sempre lembrará outra coisa. A bruma começou a dissipar-se, mas não o suficiente para que se possa ver a ponte maior, e muito menos o que existe além dela. Reviso as coisas que já examine várias vezes. Nada mais há entre elas que ainda não tenha visto.
Sacudo a pasta roxa no ar, parece vazia. Mas de repente uma pequena folha arrancada de um bloco de anotações cai de dentro dela. Apanho-a enquanto ainda flutua no ar. Nessa folha, com a letra frágil e tombada, clara e precisa de K, está escrito:
Este é o trigésimo dia. O ciclo está completo e não encontrei o Leopardo dos Mares. Já não sei ao certo se alguém me contou, se leram nas cartas, nas runas, mas estava certo de que ele estaria aqui e só por isso vim. Procurei-o no porto, nos cafés, na praia, pelas esquinas e barcos. Olhei tudo e todos muito atentamente. Sei que o identificaria por aquela tatuagem no braço esquerdo - um leopardo dourado saltando sobre sete ondas verdes espumantes. E mesmo que fizesse frio e eu não pudesse ver seus braços, reconheceria de longe seus olhos de jade. E, se usasse óculos escuros, eu assobiaria aquela canção até que me escutasse. Sem ele, não vejo sentido em continuar nesta cidade. Que todos me perdoem, mas escrever agora é recolher vestígios do impossível. Para encontrá-lo, e isso é tudo o que me importa, eu parto.
Embaixo, a data de ontem. Arrumo cuidadoso a folha de papel sobre as outras, à minha direita, bato-as juntas sobre a mesa para tentar certa ordem, certa harmonia. Depois pego a pasta, coloco tudo dentro e deixo exatamente como encontrei. Tudo isso é um tanto inútil porque, de toda maneira, ninguém saberá que estive aqui. Então, quando já quase parti, de dentro das dobras da contracapa cai um pequeno envelope fechado. Há um desenho sobre ele. Mas é tarde demais. A bruma dissipou-se, o céu começa a ficar outra vez lentamente azul, e eu preciso partir.
Fecho a pasta, deixo-a no centro do grande tampo negro da mesa em frente à janela. Da porta, olho-a pela última vez: é como se ninguém tivesse jamais tocado nela.
Atravesso a sala, o corredor de entrada, pego minhas coisas, olho os desenhos celtas do vizinho também pela última vez. Apontam para o Norte. Alcanço a rua, tudo é pela última vez agora e aqui, e só depois de dobrar a esquina é que, no bolso da jaqueta, aperto contra o coração o pequeno envelope que trouxe comigo.
Há um arco-íris desenhado atrás da ponte. Arc-en-ciel, arcobaleno, rainbow: preciso mesmo partir.
Não sei que horas são. A estação está completamente deserta. Mas não, não é exato. Sem saber se vejo realmente, porque o trem é veloz demais e uns restos de bruma ainda persistem no ar, tenho quase certeza de ver parado na estação vazia um homem um tanto velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco, um boné, faces vermelhas e olhos azuis. Ele acena, ele tira o boné e acena como num cumprimento, não sei se para mim ou para qualquer outro dentro ou fora do trem. Mas isso não importa: estou certo de que, se pudesse voltar atrás e vê-lo melhor enquanto anda, poderia também ouvir o som de seus passos mancos batendo contra o cimento.
Estico as pernas, apóio os pés no banco da frente. Gosto de olhar minhas botas com estrelas cromadas de metal. Passo a mão pelas faces, a barba de três dias raspa a palma. Faz calor aqui dentro, neste vagão onde viajo quase sozinho, acompanhado apenas por três escandinavos com gravatas coloridas, falando uma língua cheia de consoantes. Tiro a jaqueta, depois a blusa de lã, fico apenas de camiseta. Não me importam mais aqueles limites de tolerância e etc. que desconheço nas terras estranhas.
Depois que o trem dobra a primeira curva e me sinto completamente à vontade, abro o envelope que trouxe comigo. Dentro, numa folha de papel arrancada de um bloco, igual àquela outra, K copiou algumas linhas que parecem versos de uma canção francesa que conheço muito bem. Tão bem e há tanto tempo que, enquanto leio, todo o resto me volta à memória, e cantarolo com facilidade:
Je me souvíens de vous
Et de vos yeux de jade,
Là-bas, à Marienbad,
Là-bas, à Marienbad.
Mais, où donc êtes-vous?
Avec vos yeux de jade,
Si loin de Marienbad,
Si loin de Marienbad.*
Quero procurar entre as cassetes que guardo na mochila aquela que traz essa canção, que anda sempre comigo. Mas me detenho. Logo abaixo, na mesma folha de papel, K escreveu assim: “Aos caminhos, eu entrego o nosso encontro”.
Aos caminhos, repito, erguendo o envelope no ar. Como num brinde. Coloco a cassete no walkman, ajusto os fones nos ouvidos, vou cantando junto e sorrio. Arregaço as mangas da camiseta até os ombros. No meu braço esquerdo, acaricio a tatuagem de um leopardo dourado saltando sobre sete ondas verdes. Na face do pequeno envelope que aperto entre as mãos, como num sobrescrito para um único destinatário possível em seu endereço improvável, acaricio ao mesmo tempo o desenho de um leopardo igual, saltando sobre sete idênticas ondas verdes. Às minhas, às dele, às ondas espumantes dos sete mares. Como champanhe.
Afasto o rosto do vidro da janela do trem que corre pelo meio dos campos até conseguir ver minha imagem refletida. Embora as formas sejam vagas, trêmulas, mais
(*) “Marienbad”, de Barbara e f. Wertheimer
diluídas ainda pela luz do crepúsculo que tomba, posso ver meus dois olhos flutuando no espaço. E apesar das sombras sinuosas que se dobram dentro deles, feito enguias num aquário pequeno demais, confirmo que são muito verdes. Como se fossem de jade.
Lá fora, o vôo de um grande pássaro quase totalmente branco, talvez uma gaivota, corta minha imagem refletida na vidraça.
Desvio o rosto, não devo me deter tempo demais em meus próprios olhos. Aumento o som da canção, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu, e alguns dizem que há castelos pelo caminho.
Saint-Nazaire, dezembro de 92
Meu coração está perdido, mas tenho um mapa de Babylon City entre as mãos. Primeiro dia do fog autêntico. Há um fantasma em cada esquina de Hammersmith,W14. Vou navegando nas waves de meu próprio assobio até a porta escura da casa vitoriana.
- Good morning, Mrs. Dixon! I’m the cleaner!
- What? The killer?
- Not yet, Lady, not yet. Only the cleaner...
Chamo Mrs. Dixon de Mrs. Nixon. É um pouco surda, não entende bem. Preciso gritar bem junto à pérola (jamaicana) de sua orelha direita. Mrs. D(N)ixon usa um colete de peles (siberianas) muito elegante sobre uma malha negra, um colar de jade (chinês) no pescoço. Os olhos azuis são duros e, quando se contraem, fazem oscilar de leve a rede salpicada de vidrilhos (belgas) que lhe prende o cabelo. Concede-me algum interesse enquanto acaricia o gato (persa):
- Where are you from?
- I’m Brazilian, Mrs. Nixon.
- Ooooooouuuuuu, Persian? Like my pussycat! It ‘s a lovely country! Do you like carpets?
- Of course, Mrs. Nixon. I love carpets!
Para auxiliar na ênfase, acendo imediatamente um cigarro. Mas Mrs. Nixon se eriça toda, junto com o gato:
- Take care, stupid! Take care of my carpets! They are very-very expensive!
Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago meu cigarro (americano). But, sometimes, yo hablo también um poquito de español e, if il faut, aussi um peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon City, depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de Carmen Miranda com uma Rumbeira-from-Kiúba. Perhaps pelas origens tropicais e respectivos backgrounds, comunicam-se por meio de requebros brejeiros e quizá pelo tom dourado das folhas de outono (like “Le Bonheur”, remember “Le Bonheur”?), talvez, maybe: amam-se imediatamente. Mas Cármen foge da briga, fiel às suas já citadas origens e repete enl(r)ouquecida, em português castiço, que aquele amor ledo e cego acabaria por matá-la. A Rumbeira-from-Kiúba, cujo nome até hoje não foi devidamente esclarecido (something between Remedios and Esperanza), decide tomar providências no sentido de abandonar a old-fashion e matricula-se no beginner de dança moderna do The Place, Euston, NW1. Para consolar-se de seu frustrado affair, todos os sábados vai a Portobello Rd, W11, onde dedica-se à pesquisa e eventual aquisição de porcelana chinesa. Su pequeña habitación em Earl’s Court Rd, W8, está quase toda tomada. Ainda ontem substituiu o travesseiro por uma caríssima peça da dinastia Ming. Entrementes, Cármen ganha £20 por semana cantando “I-I-I-I-I-I-I like very much” nos intervalos das sessões do Classic, Nothing Hill Gate, W11. Aos sábados compra velhos tamancos de altíssimas plataformas, panos rendados e frutas nas barracas de Portobello - para preencher el hueco de su (c)hambre. Muito tarde da noite, cada uma en sus pequeñas habitaciones, lêem respectivamente Cabrera Infante e a lírica de Camões. Secretamente ambas esperam encontrar-se qualquer Saturday desses, entre lustres art nouveau, roupas de pajem renascentista, couves-de-bruxelas e pastéis da Jamaica, bem em frente ao Ceres, Portobello Rd, W14, onde tudo acontece. Ou quase. Mas secretamente, apenas. Nenhuma falará primeiro. Nenhuma deixará transparecer qualquer emoção por detrás do make-up. It’s so dangerous, money, e, de mais a mais, na Europa é assim, meu filho, trata de ir te acostumando. Pero siempre puede ser que sus ojos digan todo. Como nessas melosas e absurdas histórias de Rumbeiras-from-Kiúba meeting Carmen Miranda pelas veredas outonais do Hyde Park - onde as folhas, a quem interessar (f)possa, continuam caindo.
- I think all Latin-American writers should write in English. Spanish is very difficult. But don‘t worry, dear: Joseph Conrad learned to write only at nineteen...
Bolhas nas mãos. Calos nos pés. Dor nas costas. Músculos cansados. Ajax, brush and rubbish. Cabelos duros de poeira. Narinas cheias de poeira. Stairs, stairs, stairs. Bathrooms, bathrooms. Biobs. Dor nas pernas. Subir, descer, chamar, ouvir. Up, down. Up, down. Many times got lost in undergrounds, corners, places, gardens, squares, terraces, streets, roads. Dor, pain. Blobs, bolhas.
- You‘re not just beautiful. I think you‘ve got something else.
I’ve got something else. Mas onde os castelos, os príncipes, as suaves vegetações, os grandes encontros - onde as montanhas cobertas de neve, os teatros, balés, cultura, História - onde? Dura paisagem, hard landscape. Tunisianos, japoneses, persas, indianos, congoleses, panamenhos, marroquinos. Babylon City ferve. Blobs in strangers’ hands, virando na privada o balde cheio de sifilização, enquanto puxo a descarga para que Mrs. Burnes (ou Lascelley ou Hill ou Simpson) não escute meu grito.
- What’you think about the Women’s Lib?
- Nothing. I prefer boys.
- Chawvinist!
Ela está descalça, embora faça frio. Tem uma saia de retalhos coloridos até quase o chão cheio de lixo. Os cabelos vermelhos de hena, algumas mechas verdes. Nos olhos, um pincel stone traçou enormes asas de purple butterfly. Como se seu rosto fosse um jardim. Empurra um carrinho de bebê vazio e canta. Qualquer coisa assim: “I’m so happy/ I’m so happy/ ‘cause today is The Day/ ‘cause today is a Sunny Day”. É muito jovem, mas a heroína levou embora a rosa de suas faces. O boá azul esvoaça com o vento dos ônibus. Ela sorri ao passar e se detém e faz meia-volta e retira de dentro do carrinho de bebê uma bolsa de vidrilhos e cordões dourados e apanha um vidrinho escuro e salpica algumas gotas de óleo na ponta dos dedos e passa - siowly, siowly - na minha testa, na minha face, no meu peito, nas cicatrizes suicidas de meus pulsos de índio:
- You know and I know that you know. today is just The Day.
Cheira a sândalo, a Oriente. Eu não quero dizer nada, em língua nenhuma, eu não quero dizer absolutamente nada. Eu só sorrio e deixo ela ir embora com seus pés descalços e muito sujos dançando embaixo dos trapos coloridos da saia. Ela canta, ainda, Eu aproximo os pulsos das narinas e aspiro, até o ônibus chegar, eu aspiro. Sândalo, Oriente.
- Won‘t you finish your bloody cigarette?
- Fuck off!
- Very eccentric!
Mrs. Austin aponta as pombas no quintal e diz que não pode morrer, you know?, que tem oitenta anos mas não pode morrer. O que seria das pombas se Mrs. Austin morresse agora? Fico parado na esquina, as mãos cheias de pombas, os pés no jardim dourado de Mrs. Austin, que me deu cinqüenta pence a mais. Elas passam, eles passam. Alguns olham, quase param. Outros voltam-se. Outros, depois de concluir que não mordo, apesar de meu cabelo preto e olho escuro, aproximam-se solícitos e, como nesta ilha não se pode marcar impunemente pelas esquinas, com uma breve curvatura agridem-me com sua British hospitality:
- May I help you? May I help you?
- No, thanks. Nobody can help me.
Something else. Toco o pequeno cacto com os dedos cheios de bolhas rosadas. É um frágil falo verde, coberto de espinhos brancos. Comprimo os espinhos brancos contra a pele rosada das bolhas de meus dedos. Mas nada acontece. Something else. Eu queria tocar “Pour Élise” ao piano, sabia? É meio kitsch, eu sei, mas eu queria, e en el Brazil, cariño, en el otro lado del mar, hay una tierra encantada que se llama Arembepe, y un poco más al sur hay otra, que se llama Garopaba. En estos sitios, todos los días son sunny-days, todos. Mon cher, apanhe suas maracas, sua malha de balé, seus pratos chineses apanhe todos os pedaços que você perdeu nessas andanças e venha para o meu tapete mágico. Te quieres volar conmigo hasta los sitios encantados? Something else. Coño. Aperto minhas bolhas contra o pequeno falo verde. E nada continua acontecendo. Como César Vallejo: “Tenemos en uno de los ojos mucha pena, y tanbién en el otro, mucha pena, y en los dos, cuando miran, mucha pena”. Cármen hesita, o telefone nas mãos. Flash-back: Cármen-menina hesita com o pintinho do vizinho entre as mãos de unhas verde-menta, esmalte from Biba, High Street Kensington, W8. Quizá Remedios, Soledad o Esperanza. Zoom no olho de cílios de visom. A boca escarlate repete enr(l)ouquecida:
- Pero si no te gusta esa de que te hablo, hay otra más al sur, o más al centro, donde lo quieras, cielo, donde lo quieras, locura. Sometimes, penso que mio cuore es una basura, but “your body hurts me as the world hurts God”. I can’t forget it.
- Look deep on my eyes. Can you see? They ‘re lost. They’re completely lost. And I can do ,nothing.
Caminho, caminho. Rimbaud foi para a África, Virginia Woolf jogou-se num rio, Oscar Wilde foi para a prisão, Mick Jagger injetou silicone na boca e Arthur Miller casou com Norma Jean Baker, que acabou entrando na História, Norman Mailer que o diga. Mrs. Burnes não vem, não vem. Wait her and after call me. Espero, espero. Mrs. Burnes não vem. Amsterdã até que é legal mas nunca vi tanta merda de cachorro na rua. Na Nicarágua um terço da população fala abuara, que é uma língua hindu. No muro perto de casa alguém escreveu com sangue: “Flower-power is dead”. É fácil, magro, tu desdobra numa boa: primeiro procura apartamento, depois trabalho, depois escola, depois, se sobrar tempo, amor. Depois, se preciso for, e sempre é, motivos para rir e/ou chorar ou qualquer coisa mais drástica, como viciar-se definitivamente em heroína, fazer auto-stop até o Katmandu, traficar armas para o Marrocos ou sempre existe a old-fashion - morrer de amores por alguém que tenha nojo de sua pele latina. Why not?
- Please, can you clean the other side of that door?
Primeiro, a surpresa de não encontrar. Surpresa branca, longa, boca aberta. £10. O aluguel da semana mais um ou dois maços de Players Number Six. Alguns sanduíches e ônibus, porque metrô a gente descola, five na entrada e five, please, na saída. Reviro a bolsa: passaporte brasileiro, patchuli hindu, moedas suecas, selos franceses, fósforos belgas, César Vallejo e Sylvia Plath. Olho no chão. Afasto as pernas das pessoas, as latas de lixo, levanto jornais, empurro bancos. Tenho duas opções: sentar na escada suja e chorar ou sair correndo e jogar-me no Tâmisa. Prefiro tomar o próximo trem para a próxima casa, navegar nas waves de meu próprio assobio e esperar por Mrs. Burnes, que não vem, que não vem.
WHY?
- I beg your pardon?
Sempre anoitece cedo e na sala discutem as virtudes da princesa Anne, alguém diz que o marido sim, é uma tesão, e ouvem rock que fala numa ilha-do-Norte-onde-não-sei-se-por-sorte-ou-por-castigo-dei-de-parar-por-algum-tempo-que-afinal-passou-depressa-como-tudo-tem-de-passar-hoje-eu-me-sinto-como se agora fosse também ontem, amanhã e depois de amanhã, como se a primavera não sucedesse ao inverno, como se não devesse nunca ter ousado quebrar a casca do ovo, como se fosse necessário acender todas as velas e todo o incenso que há pela casa para afastar o frio, o medo e a vontade de voltar. Mas o carrinho de bebê está vazio. A pedra de Brighton parece um coração partido. O tarô esconde a Torre Fulminada. As flores amarelas sobre a mesa branca ainda não morreram. O telefone existe, mas não chama. Na parede tem um mapa-múndi do século não sei quantos. O cacto. A agulha faz a bolha na ponta do dedo de Saturno libertar um líquido grosso e adocicado. Sinto dor: estou vivo. Meu último olhar do dia repousa, como num poema antigo, sobre o uniforme da Terceira Grande Guerra jogado ao chão para a ofensiva da manhã seguinte: tênis francês (trinta francos), blue jeans sueco (noventa coroas), suéter inglês (quatro libras), casaco marroquino (novecentas pesetas). Agora custo um pouco mais caro e meu preço está sujeito às oscilações da bolsa internacional. Quando você voltar, vai ver só, as pessoas falam, apontam: “Olha, ele acaba de chegar da Europa”, fazem caras e olhinhos, dá um status incrível e nesse embalo você pode comer quem quiser, pode crer. Magrinha, você me avisou, eu sei, mas onde estão teus dedos cheios de anéis? Mas na sala, na sala discutem as virtudes do marido da princesa Anne e cantam rock. David Bowie é uma grande mulher, mas meu coração é atlante. Tenho Sol em Virgo, Marte em Scorpio, Vênus em Leo e Júpiter em Sagitarius. Situo, situo-me. Coloco o despertador para as sete horas, ainda é escuro, os carros ficam cobertos de gelo, apago a luz e puxo o cobertor roxo para cima de mim. E ainda por cima diz alguém longe, ainda por cima no fim do ano tem o cometa. Procuro o fósforo, acendo um cigarro. A pequena ponta avermelhada fica brilhando no escuro. Sorry, in the dark: red between the shadows. Quase como um farol. Sorry: a lighthouse. Magrinha, lá na Bahia, localiza minha pequena luz, estende tua mão cheia de anéis por sobre o mar e toca na minha testa caliente de índio latino- americano e fala assim, com um acento bem horroroso, que Shakespeare se retorça no túmulo, fala assim:
- De beguiner is ólueis dificulti, suiti ronei, létis gou tu trai agueim. Iuvi góti somessingui élsi, donti forguéti iti.
I don‘t forget. Meu coração está perdido, mas tenho um London de A a Z na mão direita e na esquerda um Collins dictionary. Babylon City estertora, afogada no lixo ocidental. But l’ve got something else. Yes, I do.
Mas também, às vezes, a Noite é outra: sozinho, em postura de meditação (será talvez um papel que me atribuo?), penso calmamente no outro, como ele é: suspendo toda interpretação; o desejo continua a vibrar (a obscuridade é transluminosa), mas nada quero possuir; é a noite do sem-proveito, do gasto sutil, invisível: estoy a oscuras: eu estou lá, sentado simples e calmamente no negro interior do amor.
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso
- Como esta música - disse, aumentando o volume do som enquanto caminhava pela sala abrindo os grandes vidros da janela para deixar o gemido do sax contaminar ainda mais o ar sujo das ruas, da noite, da cidade. - Exatamente como esta música.
O vento de julho despenteou um pouco os cabelos dele. De costas para o outro, rosto voltado para o escuro, braços abertos. Como se dançasse. E foi dizendo, a cara erguida para o céu coberto de fuligem molhada pelas gotas da garoa fria:
- Percebe como ela se contrai? Feito uma pessoa que tivesse levado um soco inesperado. Bem na boca do estômago, assim. Voltou de repente e deu um salto para dentro da sala, a cara violenta, o punho fechado, estendido em direção à barriga do outro. Que se desequilibrou um pouco sobre o sofá, descruzando as pernas, os pés bem plantados no chão, o cálice de vinho numa das mãos, a outra parada tensa no ar, pronto para defender-se. Mas ele recuou sem tocá-lo, sorriu de lado e foi andando, novamente de costas, em direção à janela.
- Depois se estende outra vez. Lentissimamente, está Ouvindo? É agora, daqui a pouco, quando entra o acordeom. Acordeom não. Bandoneón, é assim que eles dizem lá. Presta atenção. Você percebeu. O sax é o soco.
Dobrou o próprio punho e fez um movimento brusco no ar, como se esmurrasse a si mesmo. Com força, no ventre. Curvou o corpo inteiro, a cara torcida num simulacro de dor sem fôlego. Depois começou a distender devagar a coluna. De onde estava, no canto oposto da sala, o outro tinha a impressão de que ele alongava uma por uma as vértebras, até atingir a altura do pescoço que se erguia, ao abrir os braços feito uma criança com sono espreguiçando-se, pela manhã. Então voltou o rosto e continuou:
Quando entra o bandoneón tudo se abre. - Estendeu o braço à frente, parecia querer segurar algo no ar. - Percebeu? Por alguns momentos, apenas alguns momentos, é como se houvesse assim uma espécie de esperança, de possibilidade de esperança. Seja o que for, você está quase alcançando. O teu braço está tão estendido que essa parte que junta com o corpo parece que vai rasgar. E as pontas dos dedos podem sentir assim quase como. Um formigamento, uma dormência. A vibração dessa coisa que está lá, por enquanto ainda longe deles, prestes a ser tocada.
Ele alongou ainda mais o braço. O tronco acompanhava, num esforço tão grande e lento que precisou tirar uma das pernas do chão. Estendeu-a no ar, equilibrando-se a princípio precário sobre a outra, depois mais e mais seguro, enquanto o braço estendido, o tronco alongado e a perna suspensa formavam uma linha quase perfeitamente horizontal. O rosto agora tinha uma expressão de prazer. Ou de expectativa de prazer. À beira da alegria, o rosto. O que quer que estivesse no limite dos dedos, pensou o outro, estava para ser tocado no próximo segundo. E não conseguiu evitar certa tensão ao olhar fixo, meio hipnotizado, os cinco dedos excessivamente entreabertos. Tanto que - de onde estava, podia ver - os ossos nas costas da mão dele se faziam mais salientes.Nascendo do pulso, um feixe de cinco ossos finos, nervosos. Sem querer desejou que, fosse o que fosse, ali, guardado no ar, à espera do toque, entre as paredes brancas, os dedos encontrassem logo o objeto. Que se fechassem definitivos sobre ele numa espécie de posse, para alívio dos dois.
Sentia como um calor, mas quando levou a mão ao rosto não havia suor. Pensou então que, naquele décimo nono andar, de algum outro edifício, outra janela, e eram tantas, devia ser esquisito ver aquela silhueta de homem longo e musculoso estendida assim no ar. Mas a música continuava, sax e bandoneón, uma cópula dolorida, interminável, entrelaçada como a dos cães nos becos, insuportável. Tivesse um lenço enxugaria a testa. Mas não havia suor.
Foi então que num dos acordes bruscos o homem de longo corpo estendido musculoso voltou-se subitamente para ele, cinco dedos abertos em sua direção. Quase sorriu, julgando entender. Sem premeditar, num impulso esboçou um movimento de levantar-se do sofá. Antes de fazer o gesto já se via também erguendo-se, um filme em câmara lenta. Talvez três vezes, repetindo os mesmos fotogramas - gesto incompleto, gesto incompleto e gesto incompleto - até completá-lo: a própria mão aberta estendida em direção à mão aberta estendida do outro. Mas a mão do outro voltou a encolher-se. Tão fortemente fechada que ele viu as juntas das falanges esbranquiçadas pelo esforço, e enveredou rápida cortando o ar, navalha em direção ao próprio estômago, fazendo o corpo contrair-se de dor e o rosto, o rosto devagarabaixado deixando desaparecer aos poucos uma imagem que se sobre- põe à outra, por um segundo ainda misturada à anterior, aquela expressão de gozo próximo, para permitir que aflorasse outra, traço a traço, sobrancelhas unidas em vértice, comissuras amargas da boca, voltadas para baixo, uma outra face mais escura que além da dor seca, injusta, espantada, tinha agora um novo elemento. Qualquer coisa como uma quebra? Qualquer coisa como a decepção da alegria entrevista nítida, pouco antes, bem ali, guardada no ar, a milímetros da extremidade dos dedos, ele vira. E isso doía ainda mais que a outra dor, assim humano, carente, incompleto. Então ele, que agora era o outro, interrompeu por um momento aquela dança torcida para dizer:
- E volta o sax. Quando volta o sax, volta o soco. Mas não um soco duro, você me entende? Um soco manso. Como se a tua barriga fosse uma almofada macia. Como se o próprio punho que bate estivesse meio acolchoado. Tudo macio. Não há ruído. Só uma coisa fofa. Uma dor lenta, vaga. Uma dor que começa a ser dor só aos poucos, não de repente, porque é aos poucos que você começa a perceber que ela existe, a dor. Antes de a música terminar, ele desligou o som e sentou no tapete em frente do outro.
- Você sabe que de alguma maneira a coisa esteve ali, bem próxima. Que você podia tê-la tocado. Você podia tê-la apanhado. No ar, que nem uma fruta. Aí volta o soco. E sem entender, você então pára e pergunta alguma coisa assim: mas de quem foi o erro?
O outro fez um movimento como se fosse falar, mas ele o deteve.
- Sei, sei. Você vai perguntar: mas houve um erro? Bem, não sei se a palavra exata é essa, erro. Mas estava ali, tão completamente ali, você me entende?
No segundo seguinte, você ia tocá-la, você ia tê-la. Era tão. Tão imediata. Tão agora. Tão já. E não era. Meu Deus, não era. Foi você que errou? Foi você que não soube fazer o movimento correto? O movimento perfeito, tinha que ser um movimento perfeito. Talvez tenha demonstrado demasiada ansiedade, eu penso. E a coisa se assustou, então. Como se fosse uma fruta madura, à espera de ser colhida. É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida por alguém que é exatamente você. Não aconteceria com outro. Depois, quando ela foge, penso que não, que não era uma fruta. Que era um bicho, um bichinho desses ariscos. Coelho, borboleta. Um rato. É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo. Um bicho arisco vive dentro de uma espécie de eternidade. Duma ilusão de eternidade. Onde ele pode ficar parado para sempre, mastigando o eterno. Para não assustá-lo, para tê-lo dentro dos seus dedos quando eles finalmente se fecharem, você também precisa estar dentro dessa ilusão do eterno.
O outro tinha se debruçado no sofá até ficar quase deitado. E ouvia, atenção dividida entre as palavras dele e algum gole de vinho. Ele sorriu. Tinha um jeito de sorrir de lado, como se quisesse esconder alguma falha nos dentes, embora não tivesse nenhuma, via-se quando ria inteiro, o que era raro. Ele sorriu, então um dos cantos da boca ergueu-se fazendo subir também uma das sobrancelhas, enquanto o olho quase fechava, embora brilhasse mais intenso assim, por entre as pálpebras meio inchadas, quase invisível. Tinha um pouco de criança quando sorria desse jeito. E de demônio. Demônio astuto, pensou.
- O erro? Eu dizia, pois é, o erro. Eu penso, se o erro não foi de dentro, mas de fora? Se o erro não foi seu, mas da coisa? Se foi ela quem não soube estar pronta? Que não captou, que não conseguiu captar essa hora exata, perfeita, de estar pronta. Porque assim como o movimento de apanhar deve ser perfeito, deve ser perfeita também a falta de movimento, a aparente falta de movimento do que se deixa apanhar. Você me entende? Eu penso também, e se houve alguma interferência no. No em-volta-dos-dois, no ar. No astral, eu penso também. Uma coisa de Deus, do invisível, do mistério, que embora pareça errada ao não te deixar apanhar o prometido, no entanto está absolutamente certa. Porque é assim que é. Naturalmente. As coisas sempre prestes a serem apanhadas. E você eternamente prestes a apanhá-las. Como uma sina. Sempre prestes.
Ele acendeu um cigarro. Acompanhou distraído com os olhos a fumaça fluindo em direção à janela aberta. Como se fosse parar de falar. Depois sorriu outra vez. De lado, de novo. E prosseguiu:
- Como se algo que estivesse perfeito. Eu insisto no perfeito, era assim: pouco antes da perfeição se cumprir. Perfeito, preparado para acontecer e, de repente, não acontecesse. Não acontece. E logo depois, quando você ainda nem entendeu direito o que aconteceu, ou o que não aconteceu, ou por que deveria ter ou não ter acontecido, vem alguém de repente e te dá um soco no estômago. E a mão que daqui a pouco você tinha certeza que ia estar cheia, pronto!, está vazia de novo.
Ele estendeu a própria mão no ar. Olhou os dedos, o cigarro pela metade. Repetiu, dramático:
- Entendeu? É bem simples. E medonho, porque não pára nunca de acontecer. A mão que daqui a pouco ia estar cheia, pronto!, está vazia de novo. Levantou-se de um salto. Curvou o tronco numa reverência exagerada, enquanto olhava para a frente, para os lados, para cima, para as galerias repletas, agradecendo aplausos estrepitosos, bravôs! incendiados, sozinho no palco vazio, cheio apenas da presença dele mesmo, além da cenografia e das rosas, talvez dezenas de corbeilles de rosas, provavelmente vermelhas. Ao mesmo tempo em que o outro dizia devagar, como se tateasse as palavras, sentindo-se meio idiota:
- Você podia ter sido bailarino.
A resposta veio seca:
- Agora é muito tarde.
- Ou ator, também podia. Você tem uma incrível capacidade de.
- Sei, ator. Mas sempre posso falar do trabalho dos outros. O que é sempre um consolo. Ou não.
Certa melancolia, quem sabe, no fundo da voz rouca pelo excesso de cigarros, o outro localizou. Mas limitou-se a balançar em silêncio a cabeça - cristal, o momento, na transição para outro -, enquanto ele caminhava até a estante de livros em passos tão milimetricamente marcados que era como se tivesse ensaiado tudo aquilo antes. O que viria depois também.
- Escuta disse, apoiado na estante -, eu tive uma idéia. Já faz dias, desde que a gente se encontrou. Agora que você falou nisso. O outro fez uma cara de nisso-o-quê, mas ele não parou: - Nisso de ser bailarino, ou ator. Ou sei lá, qualquer coisa. Não gosto quando a gente fica falando assim no que não foi, no que poderia ter sido. God! Não aos sábados, principalmente à noite. Não hoje, por favor, hoje não dá, eu tenho. Eu tenho uma sensação meio de amargura, de fracasso. Você me entende? Como se tivesse a obrigação de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa.
Mas-se-você-é-um-cara-tão-bem-sucedido, quase disse o outro. Mas continuava sentindo-se meio idiota, sentado ali feito um touro pastando no charco, e preferiu continuar calado. Um pouco como se estivessem ensaiandoum texto que ainda não tinha decorado: esquecia as deixas certas e, bobamente, olhava um cálice cheio de vinho até a metade. Mas ele voltava da estante, improvisava rapidamente sobre a falha do outro, três livros na mão. Sentou-se no braço da poltrona, mostrou as capas:
- Conhece estes livros?
Os títulos em espanhol, leu devagar: Los premios, de Julio Cortázar, Cronica de una muerte anunciada, de García Márquez, e Conversación en la catedral, de Mario Vargas Llosa. Tocou de leve nas capas. Certo carinho distante, intenso como quem toca um álbum de fotografias quase antigas, as cores vivas já começando a ser invadidas pelo amarelo do tempo nos papéis. Sorriu, meio fatigado:
- Conheço, claro.
- Conhece e gosta? Ou conhece e não gosta? Ou conhece e não acha nada? Vamos lá, tipo múltipla escolha. Ou então assinale com um x o último quadrinho. Aquele que diz outros. Na linha pontilhada, especifique o que quer dizer com outros, certo?
Mas o que tem a ver, meu Deus, o que tem a ver, cruzou a cabeça. Umas invenções que ele não seguia. Do charco, afundado, Touro, precisou erguer um pouco a cabeça para ver melhor o rosto dele a seu lado, no braço do sofá, de baixo para cima, curvado sobre seu ombro. A barba crescida, dois dias. Alguns fios brancos no cabelo. Baixou os olhos, para ver o esgarçado no joelho dos jeans quase brancos.
- Primeiro quadrinho - disse. E desenhou no ar um grande x.
- Conhece e gosta?
- Gosto. Muito.
- E atenção, atenção, meus senhores: qual você gostou? - Deitou a cabeça no encosto do sofá. Além do rosto muito próximo, podia ver também o teto pintado de branco. Algumas rachaduras tênues entre aquelas pomposase falsas decorações em gesso, típicas dos apartamentos antigos, grandes e baratos no centro da cidade. Os olhos dos dois se encontraram, inesperados. Desviou os seus para o teto, enquanto pensava, sem pensar propriamente que era tão raro, enquanto lembrava de um navio saindo do porto de Buenos Aires, e sem querer lembrou também do gemido do bandoneón no som agora desligado, tão raro e rápido, as águas do rio da Prata, cruzavam-se sempre, inevitável, na rua, ao acaso, com qualquer pessoa, logo se desviavam como se tivessem medo, e ainda de uma ruazinha qualquer num subúrbio de Lima, mas não conhecia o Peru, tão ariscos, feito os bichos que ele tinha falado, como era mesmo? Machupicchu, sempre teve vontade, devia ser lindo, insuportavelmente esotérico, você tem que estender a mão com cuidado dentro do silêncio, dentro do eterno, seria isso?, como se naquele breve encontro, raspão, fagulha, anzol, um farol que pisca daqui, outro que pisca de lá, fortes vibrações, respondendo ou não, houvesse um código indecifrável, ameaçador, e mais poderoso que tudo então, varrendo todo o resto, a imagem do rapaz vestido de branco, encurralado na tarde contra a porta antiga de madeira escura, talvez carvalho, mogno, as punhaladas, depois, muito fundas, seriam sete?, manchando o linho branco, feito as rosas de sangue espalhadas no palco vazio, então os aplausos, cortinas fechadas, camarins, bastidores. Piscou. E tornou a olhar para ele.
- A Morte - disse. - Gosto mais da Morte anunciada. Lembrei agora. Incrível, tão claro. Como se fosse uma fotografia, Santiago Nasar parado na porta. E todos, menos ele, sabendo que vai morrer.
Ele deu um salto tão brusco que o braço do outro tremeu um pouco fazendo o cálice de vinho respingar algumas gotas sobre o veludo branco da calça, na altura da coxa. Como Santiago, o sangue do Santiago Nasar manchando o linho, pensou à toa.
- Santiago, então?
- Santiago, claro.
Parado na sua frente, solene, engraçado, o outro estendeu o braço com o pequeno livro na mão. Feito uma espada, para tocá-lo litúrgico no ombro direito. Como se sagrasse rei a um cavaleiro.
Você vai se chamar Santiago. Tens que jurar fidelidade eterna a esse nome. Eu te batizo, Santiago, no meio da noite fria de julho. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém.
- O quê?
Mas ele não ouviu. Colocou os livros sobre a capa do disco, que não conseguira ver direito, sem parar de falar:
- Pérsio, de agora em diante eu vou me chamar Pérsio. Sempre quis me chamar Pérsio. Lembra do Pérsio, aquele maluco dos Premios? O que olhava as estrelas no tombadilho, é assim que se diz? Tombadilho ou convés? Aquela coisa aberta dos navios. Ou popa, onde é a tal popa? Proa e popa, os navios têm tanta coisa. Comportas, escotilhas. Acho que era astrólogo, o Pérsio. Ou astrônomo, não sei, ou só pirado mesmo. Seja o que for, vou ter que falar de estrelas. O Pérsio entendia horrores de estrelas. - Caminhou até a janela aberta e olhou o céu. Um luminoso de Coca-Cola brilhou ao longe, vermelho, branco: “Beba”. - Só que não se vêem nunca as estrelas nesta maldita cidade, senão começaria a falar já. Tudo bem, falo depois. Na seqüência, quem sabe pinta? Afinal, vai ser uma longa noite. E é só uma criança, a noite ainda é uma criança. Você se chama Santiago, eu me chamo Pérsio. Santiago e Pérsio vão virar a noite nesta noite de inverno. Entendeu, Santiago?
- Não - o outro disse, sorrindo talvez de pura implicância. - Acho que não.
Ele voltou-se da janela. Abriu os braços, bateu forte as palmas das mãos contra as coxas, teatralmente desanimado:
- Como não, cara? Não tem o que entender. Tudo muito simples: a partir de agora você se chama Santiago e eu me chamo Pérsio. Certo, Santiago? Que que foi, não gosta do nome? É um nome fantástico, cara. Além do Nasar, que você gosta, tem o outro Santiago, o da Catedral, aquele jornalista com mania de pobre, filho de pai político e veado; é uma dupla homenagem. Como a Simone Clarice do Rubem Fonseca, naquela história, como era o nome, “Corações solitários”, era isso? Sem falar em Santiago do Chile, que Deus salve e guarde. Allende. Aff, uma tripla homenagem. - Vinha caminhando em direção ao sofá. Que tripla que nada: quádrupla, God!, que palavrinha, quá-dru-pla. Tem ainda Santiago de Compostela, lembra da Via Láctea? Na Espanha, acho que na Espanha, será Galícia? - Parou bem na frente dele, sem sapatos, as meias berrantes listradas de azul, amarelo, uma bandeira sueca, quase tocando as pontas dos seus tênis muito brancos. - Mais ainda, muito, muito mais. Tem Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, terra de macho, chê, quase fronteira com a Argentina, já ouviu falar? Pois tem, quer ver no mapa? Tive um amigo de lá, o Ruy, onde andará o Ruy Krebs? - Deu um salto no ar, arregalando os olhos. - Impossível que você não goste desse nome, rapaz. É uma quín-tu-pla homenagem. E mais, tem mais, nossa, sêxtupla: aquele Santiago pescador do Hemingway. Se procurar tem mais ainda. Santiagos não faltam.
Engraçada, aquela animação falsa. Ou meio louca. Esta-pa-fúr-dia, soletrou. Bebeu um gole de vinho. E sorriu sem jeito:
- Não, o nome eu gosto. Isso eu entendi. Tudo bem, o que não.
- Pérsio.
- Hein?
- Diga assim, dois-pontos-nova-linha-travessão: “Não, o nome eu gosto. Isso eu entendi. Tudo bem, Pérsio, o que não”.
Os olhos dos dois tornaram a se cruzar. Tão raro. Nas ruas, nos ônibus, nos elevadores. Você me reconhece? E por me reconhecer, tem medo? A peste de que nos acusam. E assustado. Baixou-os, baixavam quase sempre os olhos para os pés, as listras, azul, amarelo, sobre o bordô do tapete. O outro veio se curvando para ele, um dos joelhos apoiados no chão, num melodramático simulacro de súplica. Começou a rir:
- Que loucura.
- Diga, diga. Por favor, diga.
Tá bom, eu digo. - Repetiu, tentando conter o riso. Afetado, escandindo bem as sílabas, num espanhol hesitante: No, el nombre me gusta. Esto yo he compreendido. Todo bien...
Recomeçou a rir. Tão violentamente que colocou o cálice no tapete, ao lado do joelho do outro.
- Ah, diga. Diga, vamos: um, dois e.
- Tá bom, Pér... Pérsio.
Que foi que você disse, Santiago?
- Pérsio. Eu disse: “Tá bom, PÉRSIO”.
O outro bateu palmas, rindo. Um gato no sol do meio- dia, rolando pelo tapete da sala enorme. As mãos cruzadas seguravam os joelhos bem na altura do esgarçado dos jeans, quase furados.
- Pérsio, você me chamou de Pérsio! - Esfregou as mãos. - Estamos apenas começando, e vamos muito bem. Já viu que nome lindo, cara? E não tem homenagem nenhuma. Ninguém se chama Pérsio.
Sacudiu a cabeça, fazendo que não, ainda rindo. Sentado no chão, as pernas cruzadas feito um iogue, o outro olhava para algum ponto da parede acima da cabeça dele.
- Só mesmo a própria Pérsia. Tapetes, gatos, aiatolás, Sorayas e que tais. Que nem se chama mais Pérsia, mas Irã, não é? Tenho uma amiga que quando falam no Irã ou no Nordeste, leva a mão ao coração, revira os olhos ediz assim: “Ai, meus Deus, o Irã! Ai, meu Deus, o Nordeste!”. Depois grita, puta: “Mas não tenho culpa se estou bebendo champanhe, porra!”.
- Olha, Pérsio, o que não entendi foi...
- Fala, Santiago.
- Foi o que isso tinha a ver com o que eu falei antes.
- Antes?
- É, o negócio de ser bailarino. E aquilo que você falou depois, de.
Parecia sério, embalando-se sobre os joelhos cruzados, numa imitação de surto catatônico. Para a frente, para trás. Os olhos fixos num ponto remoto da parede, bem acima da cabeça dele.
- Sei, sei. Qualquer coisa que ficar falando no que a gente podia ter sido não é bom. Dá uma sensação de...
- ...fracasso...
- Justamente. Em cima. De fracasso, amargura, frustração. Tipo Walter Hugo Khoury, nem pensar. Aí resolvi que nesta noite de inverno em que vamos virar a noite de sábado pelo avesso da noite de julho, ninguém vai falar no que podia ter sido e não foi. Simplesmente porque você não se chama João nem Paulo, assim como eu não me chamo Carlos nem Pedro. Você se chama Santiago, eu me chamo Pérsio. Além de evitar amarguras, é superpolitizado, você não vê? Adequadíssimo, perfeito. Mais do que, sei lá, Jean-Paul ou Vittorio ou Steeve ou Wolfgang. Com um nome desses você pode virar a noite impunemente. Do champanhe à cachaça, dos Jardins ao Jeca, do 0ff à Terra de Marlboro. Sem culpa alguma, rapaz. Dois latino-americanos virando a noite pelo avesso da noite na noite da maior cidade da América do Sul. Cantarolou, desafinado: - Vi-ve-mos-na-me-ihor-ci-da-de-dAmé-ri-ca-do-Sui-dA-mé-ri-ca-do-Sul-ba-hy-ha-by-há-quan-to-tem-po? - Olhou direto para ele quando disse: - Há quanto tempo, não? Desde o ginásio. Desde Os Verdes Anosna província. Ah, The Green Years... Quem diria que... - Ergueu-se, manso, mão estendida para ele. – Como é que é, Santiago? Topas o nome que nos dei?
Tocou a mão estendida. Morna, boa. Como o rosto, um rosto que se eliminasse certos fios brancos nas têmporas, quase invisíveis, pouco mais que reflexos prateados quando a luz batia, e aquele vinco fundo no canto direito da boca, ah, essa mania de sorrir de lado, pensou com uma espécie de arrepio, gelo na nuca, a janela continuava aberta, mas não era frio, só um certo incerto frio, vinha junto com outra coisa de muito longe, uma coisa clara mas meio perdida, e tinha um gramado inclinado, estranhamente inclinado, sol quase posto, cheiro de terra, queixo apoiado numa bola de futebol, uma bola de couro número cinco, tão raras, só no Natal, não eram assim como essas de hoje, quadriculadas de preto, um talo de grama entre os dentes, seria o mesmo, menos as espinhas de lá, menos o azulado da barba de dois dias daqui, gosto ácido açucarado na superfície da língua, a voz que então subia e descia, montanha-russa derrapando súbita entre graves e agudos incontroláveis, em mutação, super- postos a tarde, o céu, a grama, superpostas as mãos de pêlos macios, apertando-se cordiais - sim, te reconheço tanto, tanto tempo, tanta coisa.
- E daí, Santiago? - ele repetiu. Visto assim, de baixo para cima, os olhos pareciam brilhar. Baços, claros. Talvez um pouco molhados. - Como é que é, você topa?
Ele apertou com força a mão do outro. Confirmou:
- Topo. Eu topo, sim. Claro que eu topo, Pérsio. E percebeu que ele estremecia um pouco. Como se visse um pouco além de tudo aquilo? Soltou seus dedos quase bruscamente para esfregar as palmas das mãos nos braços nus. Está com frio? Por que não veste uma coisa mais quente?
Em silêncio, Pérsio parecia olhar agora não mais acima de sua cabeça nem direto nos seus olhos. Mas através dele, para uma região tão insondável que já não era ele a quem olhava, e sim.
- Quer que eu feche a janela?
Sem esperar resposta, levantou-se sacudindo as pernas meio dormentes pelo vinho, pela umidade da chuva, pelo frio de julho, pelo tempo que ficara ali sentado, pelas histórias loucas do outro. Teve que desviar-se dele, cheiro de maconha e cigarro e suor limpo e lençóis mornos, para caminhar até a janela. No escuro viu lá embaixo as cintilações dos faróis dos carros, anúncios luminosos, Minister, Melitta, Coca-Cola, fume, beba, compre, morra, suspensos no ar, flutuantes, naves espaciais, janelas iluminadas nos outros edifícios, luzes às vezes vermelho-quente, íntimas como as das boates, vago erotismo nas silhuetas mal desenhadas nos interiores alheios, beijavam- se talvez, acariciavam seios coxas dedos mergulhados em pêlos umedecidos, atrás de cortinas gemiam baixinho entre plantas desidratadas, gemidos roucos de tenso prazer urbano, dezenas de metros abaixo as poças d’água no asfalto espelhavam o brilho artificial do neon. Pulsante, a noite de sábado refletida às avessas no meio da rua. Um grande mar escuro, alto-mar sem ondas sobre o qual tivessem Deus, o capitão de um transatlântico, o piloto de um helicóptero - salpicado na superfície das águas gotas de tinta fosforescente. Fechou com cuidado os vidros. Junto com o ruído metálico dos dois puxadores de metal, penetrando um por dentro do outro, escutou o tilintar agudo do telefone. A mão suspensa sobre a mesinha de tampo de vidro, em frente do sofá, Pérsio esperou que tocasse três vezes. Piscou irônico antes de atender:
- Lições Urbanas de Estratégia Telefônica, principalmente à noite e durante os fins de semana. Claro que tudo isso se você não tiver uma secretária eletrônica, o que infelizmente é o caso. Capítulo um: nunca atenda antes de deixar tocar pelo menos três vezes, para não demonstrar ansiedade. Que ninguém possa supor jamais que você vive plantado ao lado de um maldito telefone. Principalmente à noite e durante os fins de semana, claro. - Atendeu, entediado. - Alô? Eu. - Equilibrou o fone no ombro esquerdo, contra o queixo, procurou com a mão livre o maço de cigarros na mesa. Acendeu um. Tragou.
- Tudo em cima, e você?
Parecia subitamente cansado, os cabelos claros muitos curtos, uma das pernas estendidas sobre o encosto do sofá, forçando para a frente, como numa barra, o pé em ponta numa aula de dança, na camiseta sem manga era David Bowie a figura, via agora, a barba por fazer. Distraídos, os olhos erravam à toa pelos quatro cantos. Na parede atrás do sofá Santiago viu então, pela primeira vez, a grande reprodução colorida e vertical de um quadro onde um homem beijava uma mulher. Podiam-se distinguir apenas os cabelos dele, muito pretos e crespos, com uma nesga do rosto moreno afundando na pele branca da mulher. Dela, via os olhos fechados numa expressão menos de prazer que de paz, pequeninas estrelas brancas e azuis emaranhadas no cabelo. E aquela chuva de ouro ao fundo, derramada também pelos longos mantos amarelos que vestiam, pisando flores miudinhas. Tão claro, tudo, mancha ofuscante de sol no meio da parede da sala branca.
- Hoje não - seca, a voz de Pérsio. Ou delicadamente irritada, evasiva. - Tenho um compromisso, posso não. É, um amigo. Muito tempo. Liga outra hora. Amanhã, depois. Se vê, a gente se vê. Tchau, Outro. - Bateu o telefone, tragou fundo, soltando a fumaça pelas narinas. A cabeça erguida, acompanhou o olhar de Santiago até o quadro. - É O beijo, de Klimt. Trouxe de Paris, faz tempo. Tem muito por aí, só que esta é uma reprodução au-tên-ti-ca.
Até que ponto uma reprodução pode ser autêntica? Ah, eis aqui uma contradição intrínseca. Sabia que atrás dele mora uma lagartixa? Uma lagartixa chique, atrás de uma reprodução francesa. Chiquíssima. Ainda se fosse um primitivo. Mas não, um clássico nouveau. Nouveau ou decô, qual a diferença? Não sei como foi parar lá, já viu uma lagartixa morando num décimo nono andar? Quer ver? - Sacudiu de leve um dos cantos do quadro. Kay Kendall - chamou. - Kay Kendall, meu bem, onde está você?
De um dos cantos superiores do quadro surgiu uma pequena lagartixa de longa cauda nervosa. Vacilou por um segundo na parede, indecisa em sentir-se ameaçada, depois subiu veloz em direção ao teto e desapareceu entre rebuscados arabescos de gesso. Santiago imaginou a pele gelada, viscosa. Cauda cortada retorcendo-se como se tivesse vida própria. Nasceria outra, depois, bífida. Desviou os olhos:
- Não gosto de lagartixas.
- Mas a Kay é inteiramente inofensiva. E tão ecológica. Deixo ela aí, à vontade. Dizem que dá sorte. Tem gente que chama de salamandra. Me disseram que são os duendes do fogo, as salamandras. Não é lindo salamandra? E eu sempre penso na Teiniaguá, lembra da Teiniaguá? A princesa moura encantada em forma de salamandra, uma pedra preciosa no lugar da cabeça. Depois penso também que a Kay Kendall pode muito bem ser uma princesa encantada. Fazendo companhia a um príncipe encantado também, por que não? - Apagou com força o cigarro. Esfregou a palma da mão na barba crescida.- Tenho um amigo que diz: “Ultimamente tenho me deitado com príncipes e acordado com sapos...”
Santiago baixou os olhos.
- Você parece cansado.
- Cansado, eu? Imagina, sou inesgotável. Uma verdadeira Fonte Alternativa de Energia. Passei a tarde inteira deitado queimando fumo, vendo televisão, cheirando umas, batendo punheta. Tenho fantasias cada vez mais singelas & eficientes. Esse frio, essa umidade, essa chuva, essa.
- Se você não quiser sair, não se preocupe.
- Que que é isso, menino? Já não te disse que vamos virar a noite? Não me ouviu descartar agora há pouco mais uma suculenta FF?* - Imitou, a voz melosa:-Oi-tudo-bem-e-aí-tô-ligando-pra-saber-se-você-va-fazer-alguma-coisa-hoje-à-noite. Como se a gente tivesse obrigação de fazer alguma coisa toda noite. Só porque é sábado. Essa obsessão urbanóide de aliviar a neurose a qualquer preço nos fins de semana, pode? Tenho vontade de dizer nada, não vou fazer absolutamente nada. Só talvez, mais tarde, se estiver de saco muito cheio, tentar o suicídio com uma dose excessiva de barbitúricos, uma navalha, um bom bujão de gás ou algo assim. Se você quiser me salvar, esteja a gosto, coração. God! Um dia acabo mesmo dizendo, porra. Acendeu outro cigarro. - Cansado nada. Só um pouco. Histérico, acho que estou meio histérico, não estou? Você deve estar me achando completamente louco. Cabeça a mil, garoto. Aí começo a falar e não paro mais. - Ergueu lentamente os ombros, depois soltou-os, com um gemido. - Olha, vou tomar uma boa chuveirada, fazer uma bela barba. Aí te mostro a minha outra face, que você ainda não viu. Uma face limpa, barbeada, saudável, equilibrada, gentil, simpática, madura & razoável. Cheirando a sabonete Phebo, creme de barbear Bozzano, pinho silvestre e carradas de santas intenções. Então a gente sai. Você está com fome?
- Um pouco - disse Santiago. - Nada de grave.
- Nunca, nada de grave. Nada-de-grave é ótimo. Fica aí, eu volto já. - Antes de entrar, ainda ergueu os olhos para o alto da parede, chamando em voz baixa:
(*) FF: Foda Fixa.
- Kay Kendall, onde está você? Pode voltar, gatinha. Não ouviu o moço? Nada de grave no pedaço.
Vinda de dentro, Santiago ouviu a voz dele, batendo portas, fica à vontade, sabe mexer no som? põe um som aí, tem jazz, porradas de jazz, que tal uma boa e velha Billie pra dar o clima noturno? tem um rock também, uns berros de Nina Hagen? ligando a televisão no quarto, a música familiar, irritante e estridente do Jornal nacional derramou-se pelo corredor para invadir a sala, umas revistas malucas aqui no quarto, gosta de sacanagem forte? muito fist-fucking, cada posição, menino, nem de conto, Kama-Sutra é Imitação de Cristo, perde, fica à vontade, quer ver? ai, meu Deus, o Irã, o Nordeste, odeio ficar bem informado, se quiser mais vinho vai até a cozinha, te serve, tem branco também, branco e tinto, rosé não é vinho, tem queijo em cima da mesa, a casa é sua, olha, se estiver a fim de queimar uma coisa tá na latinha, na cabeceira, tem umas revistas antigas de cinema, um sarro, a tia Clara eu bato depois, quer dar uma conferida nas baixarias de hoje do nosso querido planetinha ou prefere ouvir Mozart?
Santiago gritou que não, que não queria, que tudo bem, que não se preocupasse. A musiquinha diminuiu, desapareceu num dique seco. Depois uma gaveta fechada, um ruído de porta, a água caindo do chuveiro, a voz agora em falsete imitando Ângela Maria num bolero qualquer. Através da água uma voz gemida, desafinada, cortante.
Sozinho, rodou por alguns momentos desorientado na sala subitamente esvaziada. Olhou em volta, o sofá, o quadro, a mesinha, a estante despencando de livros e discos, o tapete bordô, algumas almofadas. Remexeu nos discos sem vontade, Caetano, Gal, Duke Ellington, Armstrong, Stan Getz, Thelonious Monk, Marina, acariciou a capa de um Erik Satie, Silvia Telles, continuou mexendo, João Gilberto, Ray Charles, Dinah Washington, Elis, váriasElis, Dulce Veiga, Nina Simone, Ângela Rô-Rô, obras completas, um velho Mutantes, um Sérgio Sampaio, fui internado ontem, lembrou, um Brahms. Deteve-se na capa conhecida, azul-desbotado, rosto branco, olhos fechados como uma máscara mortuária. Colocou-o no prato, sobre o outro, o do bandoneón, Piazzolla e Gerry Mulligan, conferiu, apertou o botão. No exato momento em que a música começou a brotar das caixas, olhou para a parede atrás do sofá e viu a lagartixa descendo rápida de um orifício no gesso.
- Kay Kendall - chamou baixinho -, nada de grave, gatinha. - E cantarolou lento, junto com a voz rouca de Billie Holiday: - I’m a fool to want you, I’m a fool to hold you.
Inesperadamente pacífico, ou com o gosto de outra paz antiga, o blues trazia uma vontade de deitar-se no chão ao comprido, sobre almofadas, para olhar detidamente o teto, suas tênues rachaduras, rios num mapa, as cintilações dos anúncios luminosos através das vidraças fechadas, alguma coisa dura nos ombros se soltava, talvez acenderia um cigarro, se fumasse apagaria as luzes, bebendo lento o vinho. Apanhou o cálice quase vazio junto ao sofá, e penetrou pelo corredor de paredes também brancas, tão estreito e alto que sentiu uma espécie de vertigem. O longo canal do útero à vagina, deve ser fome, pensou, e entrou na cozinha aberta, iluminada no final do corredor. Do banheiro, a voz de Pérsio chegava agora misturada à de Billie, em meio a gritos e ruídos, água, corpo, sabonete. Pegou a garrafa, encheu o copo enquanto cortava uma lasca de queijo. A cozinha de azulejos limpos, a cesta de maçãs vermelhas. Foi quando voltava, sem planejar, vontade apenas de chegar novamente à sala para estender-se sobre as almofadas, descalçando os tênis, talvez porque a porta estivesse também aberta, a luz do abajur acesa como um convite, ou por algum tipo de esquisita vibração, custou a achar o nome, mas repetiu, uma esquisita vibração de intimidade, por curiosidade pura, limpa, sem inscrição nenhuma, diria, se lhe pedissem explicações mais tarde, mas ninguém pediria, ninguém saberia, por razões ainda mais simples, se houvesse razões, porque simplesmente, finalmente, naturalmente a porta estava aberta e ele parado ali, na entrada do quarto de Pérsio, por uma coincidência de tempo, de geografia, de cir-cuns-tân-ci-a, justificou. Instante rápido: ele ali parado e a voz rouca de Billie repetindo qualquer coisa melancólica como it ‘s a pleasure to be sad. Instante em que ele poderia perfeitamente ter continuado a caminhar em direção a.
Quando deu por si estava dentro do quarto.
Era grande, alto, branco. Como a sala. Não havia muito para ver, nem muita coisa. Nada excepcional capaz de atraí-lo assim, hipnótico, para dentro. Mas como um ímã, magnetizado, parou à beira da cama desarrumada e olhou em volta. A escrivaninha cheia de livros, laudas de jornal, programas de teatro, revistas, xícara vazia, garrafa térmica amarela, par de óculos de armação pesada. Contra um fundo lilás, pôster com uma fotografia em sépia de Sarah Bernhardt, entre a escrivaninha e as cortinas fechadas, espessas, até o chão. O armário embutido de portas azul-marinho levemente entreabertas deixando ver qualquer coisa verde-brilhante, talvez um blusão de náilon. E a cama, então. Lençóis brancos, travesseiros amassados, o cobertor listrado de verde e vermelho, meio dobrado, um cinzeiro cheio de pontas equilibrado entre as dobras. Ao lado a mesinha-de-cabeceira, o relógio digital marcando dois mil e trinta, vinte horas e trinta minutos, corrigiu, maço de cigarros amassado, Hollywood, leu, o abajur aceso, uma caneta de tampa mordiscada, bloco de papel, a caixinha de metal cheia de fumo, a espátula verde-translúcido, marinha, algas, ilhas, o corpo nu de uma mulher de selos empinados, braços erguidos acima da cabeça, segurando uma lupa redonda, marcava a página aberta de um livro com algumas frases sublinhadas. Curvou-se para ler, de repente, assim:
- Dançarás! - disse o anjo. - Dançarás com teus sapatos vermelhos, até estares pálida e fria, até tua pele enrugar-se como a de um cadáver. Dançarás deporta em porta, e onde morem crianças soberbas, vaidosas, baterás à porta, para que te ouçam e tenham pavor de ti! Dançarás, dançarás sempre...
- Misericórdia! - implorou Karen.
Mas não ouviu o que o anjo respondeu, pois os sapatos já a levavam, através do portão, aos campos, cruzando caminhos e atalhos, fazendo-a dançar continuamente, sem interrupção.
Fechou o livro. E viu a capa branca: contos de Andersen. A princesinha deitada sobre dezenas de colchões, o grão de ervilha sob o último, lembrou, princesa encantada, Kay Kendall, acordar com sapos, Teiniaguá. Teve um pequeno tremor, como se fizesse algo proibido e pudessem surpreendê-lo assim, vampiro de intimidades, Bebeu um gole de vinho. Talvez na noite anterior, ou à tarde, nu entre os lençóis, janelas fechadas, o ruído distante dos automóveis, na rua, coados pelas cortinas cerradas. O cheiro áspero das pontas de cigarros amassadas no cinzeiro. Desviou os olhos, desviava muito os olhos, calor no rosto, sentia sempre calor no rosto, para as duas pilhas de revistas em cima da televisão desligada, aos pés da cama.
Só ao se aproximar viu o desenho: um homem jovem inteiramente nu, a não ser pelos tênis e as meias, deitado de bruços na grama, olhos fechados, boca entreaberta, passivo, deliciado, possuído pelo leão entre suas coxas, a língua do animal penetrando fundo numa das orelhas. Animals love maneaters, leu, uma sensação de proibido. Na memória, um professor bateu com estrondo um livro no tampo de sua mesa, porque esta i-mo-ra-li-da-de, Carlos Zéfiro, Suzana Flag, Adelaide Carraro. Virou as páginas furtivo, outro homem deitado de costas, a camiseta erguida roçando os mamilos rijos cercados de pêlos dourados, coxas abertas entre almofadas marroquinas, densos interiores, a glande redonda, rosada, um figo aberto na extremidade mais polpuda, meio invisível, perdido entre sombras, pentelhos, músculos, tudo num tom avermelhado de febre, igual ao do interior das janelas nos Outros edifícios, atrás dos quais alguém insinuava lentamente as pontas hábeis dos dedos por entre botões desabotoados da camisa de outro, outra quem sabe, a leve carícia, e o negro em pé, de costas, apoiado na poltrona de couro, bunda voltada para ele, a bunda dura, negra, musculosa, uma bunda de homem com um pequeno triângulo de pêlos negros encaracolados antes da divisão macia das nádegas por onde se penetraria aos poucos, primeiro o dedo umedecido descobrindo caminhos, depois talvez a língua móvel, ágil, despertando o prazer em convulsões miudinhas, gemidos abafados, as pernas abertas, a voz de Billie vinda da sala embalava os dois rapazes nus, misturados em meio aos lençóis de cetim, o rosto erguido para a câmera de um, em direção à luz, o rosto do outro mergulhado nos cabelos do peito, como o quadro na sala, os músculos tocando-se tensos, luz azulada sobre os dois, estrelas emaranhadas nas peles, nas carnes matas cerradas, pântanos de estranho perfume, o grande pau em ereção, a glande de curvas suaves, ponta de foguete enristado em direção à luz, talvez Saturno, um lento blues ao fundo, imaginou, roupas jogadas em desordem pelo chão, misturadas, como os corpos, calças brancas de um, camiseta vermelha de outro, cálice de vinho virado sobre o tapete bordô, um cinzeiro cheio, alguma cinza no chão, dessas que se apanham com o indicador molhado para depositar novamente no cinzeiro, o vinho misturado à cor do tapete, tinto sobre tinto, poça onde se refletiriam não os edifícios, mas esquisitas luzes íntimas, chama de isqueiro, brilho de olho, de ouro, reflexo de neon nos dentes, ânsias, tesões, sensualidades, par de tênis e meias brancas jogados ao acaso, brilhando no escuro fosforescentes, cristal do cálice, ruído de zíper, peles nuas, cheiro espesso de suor limpo, almíscar, quando o suor mal começa a vencer os perfumes, diluindo colônias, sucos, cruas secreções com seu odor de carne livre de roupas, os números do relógio digital vermelhos destacados no escuro, e o lento blues, um choque de dentes, unha rasgando as costas, uma mão meticulosa acompanhando devagar o desenho preciso dos pêlos no ventre, um gemido baixinho, a carne do pescoço levemente ferida pelos dentes, roxo indisfarçável na manhã seguinte, óculos escuros, mas antes, bem antes, o peso quente de outro corpo, os cheiros guardados secretos sob as axilas, no vértice do queixo, curva da virilha, onde termina a pele lisa e começam os pentelhos, a um passo do poço fundo da orelha onde a língua se perde para descobrir gostos longínquos, desconhecidos, os dedos dos pés separados, intimidades, fronteiras, acariciando o outro pé, o pé do outro, dois membros duros, luta de espadas, calor, quarenta graus, pressão pulsante na barriga um segundo antes. Tocou o próprio pau endurecido contra a calça. E ouviu a voz rouca de Pérsio, do meio da água, num grito, no banheiro:
- Vira o disco. Esse é ótimo.
Apanhou rápido uma das revistas da pilha ao lado e saiu do quarto. Na sala excessivamente clara, um pouco tonto, entre dois goles de vinho, folheou à toa as páginas amareladas, como não tivesse ouvido, como não tivesse culpa, estendido nas almofadas, rindo sozinho, divertido demais, enquanto enumerava os nomes, as fotos, Donna Reed, Yvonne de Cano, Dorothy Malone, Rhonda Fieming, Mamie van Doren, Arlene Dahl, e então, de entre as páginas caiu sobre o tapete o cartão-postal. Antes de virá-lo para ler viu um céu todo manchado de roxo e laranja, um laranja mais claro em cima, adensando-se em nuvens de um lilás cada vez mais pesado, até desabarem no horizonte realçando o contorno dos edifícios com luzes esparsas, a torre Eiffel ao fundo. Paris La Nuit, leu. Virou o cartão, a tinta preta, a letra firme:
Paris, 5 de abril
Já começou a esquentar, eu penso em você. A cidade está linda. O inverno guardado nos ossos vai indo embora aos poucos. Como um degelo, por dentro. Me dá notícias. Se encontrar um daqueles telefones, ligo qualquer noite. Você vem mesmo em julho? Sinto saudade, ando meio só. Um beijo, cem beijos, teu J.
Fechou a revista, o cartão dentro. E ficou olhando na capa os olhos profundos de Lana Turner. Levantou-se para virar o disco. Aproveitou que estava em pé para entreabrir as duas folhas de vidro da janela. Um vento quase gelado bateu em sua testa. Ao recuar, viu o próprio rosto misturado às luzes da cidade, corado como o de um garoto surpreendido em meio a um ato obsceno. Caminhou até a mesa, acendeu um cigarro. Teve medo de sentir náuseas. Fazia tanto tempo. Mas a fumaça subiu pelas narinas apaziguante, alcançando o cérebro, agradável. Gosto meio áspero misturado ao espesso do vinho sobre a língua, reconfortante como um chá, uma mão no ombro, uma palavra de carinho, um blues, uma punheta. Santiago suspirou, atento a alguma coisa crispada nos ombros soltando-se, desaparecendo.
Então o telefone tocou outra vez, e duas vezes, enquanto ele esperava que Pérsio gritasse qualquer coisa como atende aí, ou deixa tocar. Atendeu.
- Ele está tomando banho - disse. - Quem quer falar?
- É o Paulinho. Diga a ele que é o Paulinho.
Chamou Pérsio, o fone nas mãos, meio confuso. O outro emergiu do corredor enrolado numa toalha branca, cabelos molhados, cara coberta de espuma, um pincel de barba na mão.
- Paulinho? - cumprimentou. - Olha, eu estou no meio de um banho. Você pode ligar depois? Daqui a pouco, sei lá. Dez minutos, quinze. Me dá um tempo, estou todo ensaboado.
Bonito, Santiago pensou, era um homem bonito de ver, bem desenhado, de ficar olhando para ele, Pérsio, pincel de barba numa das mãos, telefone na outra. E olhou devagar e detalhado o peito nu sem barriga, a espuma branca do rosto escorrendo num fio entre os mamilos, em direção aos pêlos espessos em volta do umbigo.
- Tchau então. Até já. - Pérsio desligou. Para ver Santiago estranhamente ruborizado no meio da sala, copo de vinho numa das mãos, cigarro na outra, muito moço, vagamente familiar. Como um vizinho que mal se vê, um colega de trabalho em outro andar, vestido de branco e cinza, sólido, ao mesmo tempo frágil jeito nas mãos, parado ali a olhar para ele, Sorriu mecânico, sem vontade, sem nada para dizer, que praticamente não o conhecia, e no entanto era por ele, de certa forma era para ele que tomava banho, afugentando os fantasmas do sábado à tarde. Teve uma espécie de frio. Ou medo, desconforto. Premonição, pode ser.
- Está gostando da Billie?
- Perfeito, é realmente perfeito para um sábado à noite.
Pérsio entrou pelo corredor, fechou a porta e examinou o rosto no espelho embaçado do banheiro. Tão embaçado que precisou limpá-lo devagar com uma toalha. Feito nuvem, a camada fina de vapor dissolveu-se para revelar olhos muito claros, pupilas um pouco dilatadas. Estou com olheiras, pensou. Largou o pincel na pia, bateu leve com os dois indicadores sob os olhos, depois nas faces, cada vez mais forte, até ficarem coradas como as de Santiago parado na sala, jeito frágil nas mãos.
O banheiro nublado pelo vapor do chuveiro morno. Como a sauna onde mal divisava as formas do outro, diluídos naquela neblina, chegando muito perto, subindo os olhos pelo peito largo coberto de crespos pêlos negros reluzentes de suor, depois o pescoço forte, taurino, nascendo reto dos maxilares, uma massa escura de cabelos pretos empastados e os olhos pretos também olhando atentos, vindos de longe, de muito longe, tanto que não conseguiria precisar quando, nem onde, nem quanto, em que lugar, em que tempo, de que jeito, com que intenção escondida. Identificou-se aos poucos, hesitante tateava aqui, ali, na sombra. Para não errar, tateava. Não errava, que eram eles mesmos, embora de muitas formas talvez já não fossem iguais - os anos, a distância, a cidade, os caminhos. Pérsio suspirou paciente, deixando os olhos vararem pelos outros homens nus dispostos feito estátuas nos bancos de azulejos, entre o vapor um músculo mais nítido, relance, coxa, braço, bunda, reconhecendo também, mas há quanto tempo, o que é que você faz aqui. Logo depois, sentindo-se um pouco idiota, o que é que um cara podia fazer num lugar daqueles senão procurar outro homem? Mas resguardaram ambos um clima talvez de antiga intimidade, mesmo que para isso precisassem renunciar tacitamente a todas as outras possibilidades expostas, machos na caça, vagamente nítidas na névoa. Que não seria o caso, porque era sábado - como hoje, só que antes -, porque praticamente mal se conheciam, e o que um pudesse pensar do outro pouco ou nada importava, tantas esquinas na cidade, caminhos diversos, descruzados, por delicadeza, por atenção gratuita, involuntária, natural, jogada um sobre o outro. Pérsio, Santiago - sem nome, pagãos.
E de repente estavam sentados juntos à beira da piscina de jatos quentes, bebendo cerveja civilizados, lembrando coisas sem tocar no assunto, você também, procuras, como se fosse inteiramente por acaso, veja só, um lugar como outro qualquer, cruzamento de duas avenidas centrais, no fim da tarde elevador repleto ou sala de espera de um cinema, sessão anônima de domingo. De repente viu-se convidando sem planejar, por que você não aparece em casa uma noite dessas, fim de semana, a gente podia sair, jantar, dar uma olhada na noite. E de repente apressado, estava no vestiário, estendia um cartão, um número, um nome. Era bonito o outro que ainda não era Santiago, se espiasse com cuidado por baixo dos cabelos pretos molhados, emaranhados, se desbastasse traço a traço aquele ar solícito e espantado até quem sabe algum atrevimento, coisas assim, promessas, mas não ousava. Sairia então pela noite levando uma sensação esquisita, quase nova, dentro do peito, essa armadilha de que não gostava, o passado abrindo súbito seu baú mofado para trazer de volta fantasmas esquecidos, que não era, como supunha, um desconhecido na grande cidade, embora dando a partida no carro, arrancando brusco, ligando o rádio numa FM qualquer para ouvir Guilherme Arantes, o som ligado bem alto, ou qualquer um deles, cada vez que o mundo diz: não, não importava, pudesse imaginar que na próxima volta da próxima esquina e outra mais e ainda mais uma, ninguém o reconheceria.
Ninguém o reconheceria assim, a cara coberta de espuma dentro do banheiro embaçado, teve certeza, músculos mais soltos depois da ducha morna. Vinha de longe a cara do outro, com suas sobrancelhas espessas unidas sobre o nariz curto, vinha de coisas e tempos que gostaria de deixar talvez completamente para trás, tão distantes e empoeirados que não conseguiria ver-lhes direito as faces, mesmo depois de afastar meticuloso a poeira acumulada durante anos e anos de quedas e vôos.
Vertical, a gilete cortou a face. Um fio fino de sangue espalhou-se no branco da espuma, tinta vermelha em mata-borrão. Caralho, resmungou. E ouviu da sala que Santiago substituía Billie Holiday por um velho James Taylor. Subitamente então, tentando estancar o sangue, pensou que era muito tarde. Entre os dois, não haveria volta?
Qualquer coisa que ainda não compreendia, que não era exatamente essa. Nem assim. De alguma maneira só restava a ele, Santiago, dar prosseguimento aquilo que começara talvez antes do sábado anterior, tortuosamente, à revelia deles, numa tarde qualquer havia muitos anos - ah, The Green Years, repetiu, era como num filme, sessão da madrugada -, num gramado, como uma sina, estranhamente inclinado, numa cidade do interior em que teriam sido os únicos, mesmo sem dizer, mesmo que eles próprios não soubessem ainda o que já sabiam sem sequer saber o nome, criava uma espécie de pacto mudo, sinuosa cumplicidade prosseguindo agora - fatalidades? E, no entanto, o sangue estancava junto com a letra da velha canção, you just call out my name, tudo era tão bonito e tão antigo, and you know wherever I am, gostava dele assim, meio pesado, I’ll come running to see you again, vacilando entre as emoções, winter spring summer or fall, gostava como se gosta de si mesmo, all you have to do is call, ou o que ficou de si, and I’ll be there, no passado, you ‘ve got a friend, cantou junto: um pedaço que se imagina para sempre perdido. Até que um dia, como nas histórias inventadas, como se quisesse abraçá-lo para confirmar-se, como se pudesse abraçar-se para confirmá-lo. Do meio da neblina emergia o rosto do outro, desculpa, não leva a mal, mas você não é? Era, ou tinha sido, ou poderia voltar a ser, e isso teria quem sabe um gosto bom de mel, se pudesse estancar definitivamente o sangue, merda, se soubesse dividir a noite, se quisesse, como dizer, como dizer?, a questão era sempre como e não o que, sim, espelhar-se? sim, re-per-cu-tir-se, sim, qualquer coisa dessas, refletida, por isso mais amena, mais suportável, menos maldita, compartilhada, cúmplice. E queria, pelo menos agora, queria limpo, queria instintivo, bicho que busca proteção, enquanto não era determinado um Pérsio furiosamente independente numa cidade para sempre sem estrelas, rechaçando convites telefônicos, mas apenas um homem sozinho raspando apático a espuma de um dos lados da cara, enquanto na torneira aberta deixava escorrer do barbeador os tufos de pêlos negros diluídos no branco da espuma, desaparecendo no ralo da pia.
- Santiago - chamou, abrindo a porta. - Você pode me alcançar. - Mas não havia nada que o outro pudesse alcançar. No entanto, já estava ali, que bastava chamá-lo, na porta do banheiro, o vapor embaçando os óculos, o cálice de vinho. Pérsio virou a colônia na palma da mão, depois bebeu do copo do outro. Um gole grande, sem pedir licença. Esfregou as faces. Sorriu constrangido. - Nada, não é nada. Eu esqueci que.
Santiago não parecia pedir nem esperar explicação alguma. Então ele atravessou o corredor, desviando-se um pouco do corpo largo do outro que atrapalhava a passagem - que atrapalhava a passagem, repetiu -, entrou no quarto, jogou a toalha molhada em cima da cama, entre os lençóis, o cinzeiro cheio, abriu a porta do guarda-roupa e pediu:
- Você me alcança o cigarro que ficou na sala?
Completamente nu, olhou o guarda-roupa. Como um desânimo, vontade de dizer rápido qualquer coisa como olha, você me desculpa, mas estou mesmo muito cansado, fica para outro dia, para outra noite, outro tempo, outra vida. Depois que o outro partisse, sem ao menos abrir a janela para que o ar circulasse um pouco no interior viciado de fumaça, sono e solidão, sem esvaziar o cinzeiro nem arrumar a cama, apagar a luz, ligar a televisão, névoa colorida, intermitente, mergulhar entre lençóis ainda quentes, cheiro de corpo e porra seca guardado nas dobras, mergulhar de cabeça na penumbra colorida, no escuro amarfanhado de dentro, e nunca mais outra vez. Olhou a caixinha aberta na mesa-de-cabeceira, fecharia mais um, talvez bebesse também um copo de vinho, ou dois, ou três, havia ainda alguns comprimidos cor-de-rosa no armário do banheiro, Elis, lembrou, uísque, Dietil, Dienpax, altos, baixos, morrer de amor não dado. Depois a noite avançaria flácida, lenta como se o tempo tivesse cessado, os membros gordurosos da noite e sua molhada boca negra sem dentes envolvendo seus membros num abraço pegajoso, puta gorda, porca irresistível, que teria quem sabe vontade de chorar mais tarde, ou telefonar para alguém a quem pudesse queixar-se longamente choroso, drogado, pedinte, saciado de punhetas secas até dormir sem sentir, sem parar de falar, sem desligar o telefone. Mais fácil, mais confortável deixar a dormência conhecida começar devagarinho a escalar as pernas, pelos dedos dos pés, como sempre começava, subindo pelas coxas para atingir a cabeça que rodaria ainda alguns momentos, perdida entre imagens içadas do inconsciente, tontos anzóis, súbitas vozes, contornos difusos dos objetos, presenças ausentes, antes de afundar confusa, dolorida, no travesseiro onde identificaria, um segundo antes de cair no poço, o cheiro de seus próprios cabelos, xampu de babosa, guardado desde a tarde ou a noite anterior, não voltaria.
Demasiado, demasiado esforço. Imaginou a cidade lá fora, com gentes falando sempre alto demais, sem parar, entrando e saindo de lugares, bebendo, comendo coisas, pagando contas, dançando alucinadas, querendo ser felizes antes da segunda-feira: urgente. Apertou o rosto contra o travesseiro. Mas Santiago o tocava de leve no ombro com o maço de cigarros:
- Está se sentindo mal? Já disse que se você não quiser sair.
Pérsio ergueu-se rápido, acendeu um cigarro. Recomeçou, elétrico, a mexer no guarda-roupa:
- Branco? Branco é bom, brilha na luz negra, afasta as más vibrações. Só que as más vibrações desta cidade, God! Nem todo o sal grosso, nem toda a arruda do mundo dariam jeito. Mas não, você também está de branco. Tipo par de vasos, é péssimo. - Embolou a calça branca, jogou-a sobre a cama. Encostado à porta aberta, uma velha Cinelândia nas mãos, Santiago olhava para ele sem dizer nada. - Amarelo, então. Porque hoje é sábado, porque hoje é dia de Oxum. - Saudou, a mão direita com o indicador mais alto erguida para o teto: - Ora ye ye ô! Mas estou meio abatido, não estou? God!, umas olheiras até o queixo. Quem sabe vermelho. Realça, joga pra cima. - Enfiou a blusa larga, depois começou a enfiar os mesmos jeans quase brancos de tão velhos. - Sem muita produção, melhor: Um Certo Ar Esportivo de Saudável Juventude um Tanto Gasta. E sem cuecas: liberdade para os países baixos! Você ainda usa cuecas?
Que bastaria talvez estender a mão. Acariciar primeiro, colando o corpo. Mas não era assim.
- Uso - disse Santiago. E estendeu a revista para colocá-la em cima da televisão.
Foi quando Pérsio recuou para poder ver-se de corpo inteiro no espelho que esbarrou na mão dele e a revista caiu no chão. O cartão-postal escorregou de dentro. Pérsio curvou-se para apanhá-lo. Leu, em voz alta:
- Paris La Nuite. - Estalou os lábios. - Um beijo, cem beijos.
- Eu li sem querer - explicou Santiago. - Caiu de dentro.
- Tudo bem, não tem importância. Quer saber quem é J? - Releu o cartão, rapidamente. - Tem alguma referência ao sexo do remetente? Não, não tem. Então eu poderia dizer que se chama. Digamos, Janice? Ou Juçara, tão tropical, Ou Jennifer, melhor Jeanne, já que veio da França. E ninguém poderia provar jamais absolutamente nada. - Apanhou o cinzeiro no meio dos lençóis, bateu o cigarro com força, depois colocou-o sobre o cartão, em cima da pilha de revistas, sobre o busto de Lana Turner. - Mas não vou mentir: é homem mesmo. Tenho cara de receber cartões amorosos de mulheres? J, teu J. Não é misterioso? O que te parece? Poderia ser Jorge ou José, na linha trivial com fritas. Se você prefere um sabor estrangeiro,bem, Juan, Jean, John. Qualquer coisa assim, que tal? Tanto faz. Um cara aí, que importa? Que importam os cartões ou todas as cartas de amor do mundo? Se eu ia mesmo em julho. Bem, você vê, julho está nas portas e eu não fui. Você está me vendo aqui onde estou? Tanto quanto estou me vendo ali no espelho? Pois é, eu não estou em Paris.
Santiago ia dizer qualquer coisa quando o telefone começou a tocar novamente. Fez um movimento para atender, mas Pérsio o deteve.
- Deixa tocar. Deve ser o Paulinho de novo. God!, as pessoas não têm nem QI nem complexo de rejeição nem componentes paranóides suficientes para desconfiarem que quando você diz me liga daqui a dez minutos quase sempre significa não liga mais, não quero falar com você.
Escutaram o telefone tocar, contando as chamadas até oito. Quando cessaram, Pérsio riu:
- Bem, agora está mais do que claro. Se eu realmente estava no banho não poderia me vestir e sair em dez minutos. Eles contam no relógio. Exatinho, minuto por minuto. Ou fumam dois cigarros, um cigarro dura uns cinco minutos. E se eu pedi que telefonasse é porque esperaria. E se não esperei é porque. Pelo menos é assim que uma mente normal funciona. Ou deveria funcionar. - Deu uma última tragada no cigarro, esmagou a ponta no cinzeiro, em cima do cartão. Olhou para Santiago, irônico. - O que você achou deste número?
- O quê?
- Ora, esse do Telefone que Toca Insistentemente. Você deve estar impressionado, não está? Tantas so-li-ci-ta-çõ-es. O jovem crítico de teatro tão disputado.
Santiago riu sem vontade.
- É que pedi a um amigo meu que telefonasse de quinze em quinze minutos. Para impressionar você. - Começou a calçar os tênis. - Tudo estudadíssimo, cara. Para você não supor que nunca acontece nada na minha vida. Esta é a primeira vez que você vem aqui, preciso passar uma imagem ultra-dinâmica, hiper-jovem & super-movimentada. Para que você pense nossa, mas ele é um verdadeiro vendaval de atividade & sedução. Dez mil encontros, dez mil pessoas querendo vê-lo. Ansiosamente. Homens, homens, homens, reparou quantos homens? Até o do cartão-postal, special guest star a distância. Você acha que deixei a revista bem em cima da pilha por mero acaso?
Santiago encolheu os ombros:
- Se você quer que eu acredite nisso, está bem. Eu acredito. Na minha cabeça a sua imagem está se tornando a cada minuto mais. - Ia dizer sedutora, mas interrompeu-se, inibido. Quis dizer atraente, mas também não conseguiu. Não conseguia acompanhar aquele ritmo acelerado, sarcástico, teatral. E se tentava, voltava então aquele nó crispado nos ombros. Porque não era preciso, embora. Não se trata de um duelo, pensou. E foi isso que finalmente disse, olhando direto nos olhos de Pérsio: - Não quero pensar nada de você. Não se trata de um duelo.
Ele tinha terminado de se vestir. A blusa vermelha, os jeans muito gastos, os tênis um pouco sujos. Passava a mão pelos cabelos quase raspados, para eriçá-los ainda mais.
- Eu sei - suspirou. E mais sereno: - Também acho que não. É que. Não sei, estou mesmo meio histérico, não estou? - Aproximou-se para tocá-lo, a ponta do dedo no ombro. Cheirava a sabonete, loção de barba, Eau Sauvage. - Tudo bem, está tudo bem. Agora vamos organizar a saída, onde fica a saída? Você desliga o som na sala enquanto eu faço uma produção rápida, por aqui, então a gente sai, certo?
Tão próximo que Santiago hesitou. E se? Mas quando deu por si batiam-se os dois estonteados numa onda nervosa de movimento, apagavam luzes, fechavam portas e janelas, esvaziavam cinzeiros. As luzes da cidade brilhavam através da cortina da sala, viu antes de saírem.
De repente estavam com os casacos nas mãos, parados em frente à porta que Pérsio fechava dentro de um corredor que a luz amarela no teto fazia parecer ainda mais alto, cinza e frio. Apertaram o botão do elevador. O topo da cabeça encostado no pequeno orifício da porta, Pérsio podia sentir o vento lambendo seus cabelos ainda molhados. Quando o elevador parou e a porta abriu, à luz amarelada do teto que se misturava àquela outra mais dura, vinda de dentro das outras paredes revestidas de fórmica, um tanto azulada, o rosto de Pérsio, segurando a porta aberta para que ele entrasse, parecia extremamente fatigado. O vermelho-vivo da blusa realçava ainda mais os círculos roxos das olheiras em torno dos olhos claros, quase verdes. Seriam verdes, quase certo, em dias de muito sol. Dias de luz tão clara que precisaria escondê-los atrás de óculos escuros. Ou perto do mar, gostaria certamente de mar, No sétimo dia de bronzeado, quando o dourado da pele se torna mais brilhante, os dentes e os olhos brilhariam feito facas no escuro. Um dia, ele também. A barba recém-feita, em vez de aliviar o peso das sombras nos ângulos do rosto, ao contrário, sublinhava ainda mais a palidez que os pêlos escuros tinham disfarçado pouco antes. Como a luz clara do dia, quase insuportável, embora noturno.
No fundo do elevador, uma mulher muito maquiada sorriu para eles dentro de um vestido lilás cintilante e justo, o talho na saia deixando à mostra uma nesga grossa de coxa sob o casaco de peles. Pérsio cumprimentou, sério. Depois começou a vestir seu enorme casaco verde-musgo, como o de um aviador, cheio de bolsos, presilhas, cordões, distintivos costurados, pendurados, caseados e fechos. Atrapalhou-se, e como um afogado, como num conto de Cortázar, Santiago lembrou, começou a fazer gestos desordenados com os braços compridos, enfiando um pelo avesso e deixando o capuz escorregar para dentro, uma corcunda. Babou um pouco, olhando para os dois, vesgo.
Santiago tentou ajudá-lo, envergonhado, enquanto a mulher continuava a sorrir com a boca cuidadosamente pintada de vermelho denso quase negro. Sobrancelhas muito finas, sombra azul nas pálpebras pesadas.
- Porra, que aflição - Pérsio gemeu. Detesto estas trolhas. Parece que nunca mais vou achar a saída. Meio uterino, um barato meio uterino. O longo canal entre o útero e a boceta.
Santiago riu. A mulher contemplava-os tolerante, remota, duas crianças, monstrinhos atrevidos, fascinantes. Quando o elevador parou outra vez, Pérsio segurou a porta para que ela saísse.
- Ladies first - curvou a cabeça. - Ou você é daquelas feministas radicalésimas que acham que boa educação é machismo desprezível?
A mulher agradeceu em voz baixa, rouca. Piscou brejeira. Depois desviou-se deliberadamente do tapete estreito para sair batendo os saltos altíssimos contra os ladrilhos do corredor. Pérsio contou no ouvido de Santiago:
- Chama-se Lavínia. É uma traficante de morfina que mora na cobertura. Detesta o sol, reparou na pele branca? Só sai depois que o sol se põe. Lá na porta está esperando o amante Douglas, numa Mercedes dourada. Ela detesta a cor, já pediu mil vezes a ele que mande pintá-la de preto. Douglas veio do interior, é primeiranista de medicina, podre de rico, filho de fazendeiros. Ele tem o pau pequeno, mas ela gosta de chupá-lo, embora quase sempre durma no meio. Ele está apaixonado, mas ainda não sabe direito com quem está envolvido. Lavínia ainda não revelou nada a ele sobre o terrível vício que a devora, nem sobre seu trágico passado. Pode ser que ela tenha estado em Auschwitz, como Sophia. Ela tem medo de ser deportada para a Romênia, de onde veio após a Segunda Guerra. Até que um dia Douglas, que ela chama ardente e suavemente de “meu Douggie”, resolve convidá-la para jantar no Rodeio com seu pai, aquele fazendeiro riquíssimo. E ao entrar no restaurante, restorrân, ela diz, com seu exótico e sensual sotaque, de longe, da porta, sem ser vista pelos dois, atrás de uma coluna Lavínia percebe que o Riquíssimo Fazendeiro é nada mais nada menos que justamente o Homem de Pau Enorme que a desgraçou quando muito jovem, no cais do porto de Santos.
Cumprimentou o porteiro, parou à porta do edifício, abriu os braços para a noite úmida:
- Que fará a desventurada Lavínia? Enfurnar-se-á, repare na mesóclise, sorrateiramente no banheiro, aplicando-se, quem sabe, com uma dose mortal? Sentar-se-á normalmente à mesa, fumando seu Camel, enquanto o Riquíssimo Fazendeiro empalidece mortalmente, repare nos advérbios, sem que o ingênuo Douggie perceba qualquer, repare na gíria, transação escusa? Sucumbirá Lavínia a uma incontrolável onda de lascívia, repare na aliteração, e, sub-repticiamente, sob a toalha, tocará no latejante pau enorme do Riquíssimo Fazendeiro? Beberá, trêmula, as narinas frementes, uma dose dupla de vodca, repare no merchandising, Wyborowa? Ou sairá em desabalada carreira do restorrân, esbarrando em Telmo Martino, que a tudo assistiu, quebrando um salto e telefonando em prantos de um orelhão para explicar que sente muito, mas, devido aos gravíssimos acontecimentos, não poderá comparecer ao encontro? Voltará à sua luxuosa cobertura para tentar o suicídio ingerindo uma dose excessiva de barbitúricos? Ou ligará o videocassete para assistir, uma vez mais, a Tio Wiggily in Connecticut, encharcando-se de gim junto com Susan Hayward?
Rindo, Santiago atravessou a calçada para abrir a porta do carro. Pérsio enterrou o capuz até os olhos. Sentou-se ao lado dele, ligou o rádio. A voz de Roberto Carlos encheu o carro. Ele desligou:
- Assim não dá, que pobreza. A controvertida Lavínia, a lasciva, merecia pelo menos uma Marlene Dietrich.
Uma Edith Piaf, um Non, je ne regrette rien - cantarolou baixinho, rascando os erres.
Santiago espiou a mulher sozinha à beira da calçada, fazendo sinais inúteis para táxis que não paravam. Uma das mãos comprimia a gola do casaco de peles contra o pescoço, a coxa branca escapando do rasgão lilás-cintilante do vestido.
- Vestem-se como putas para ir a festas - comentou Pérsio. - É a moda, que se há de fazer? E fumam baseados infindos, cheiram carreiras bem servidas, dançam punk rock, copiam modelinhos new wave, topam qualquer cantada. Trepam em pé, coito anal, coito oral, sexo grupal, masturbação sem culpa. Tão liberais, você não acha? Sou do tempo em que cabaço era documento.
- Aonde você quer ir? - Santiago perguntou lento, coadjuvante conformado.
Pérsio tornou a ligar o rádio. Gal Costa cantava um frevo nervoso do Carnaval passado.
- Não suporto mais a Paraguaia - disse.
- Quem?
- Essa linha Paraguaia Tropical da Gal.
Santiago passou um feltro no pára-brisa.
- Sei, mas onde você quer ir?
- Qualquer lugar, por mim. Você faz questão de algum?
- Qualquer coisa.
- Então vai em frente. Daqui a umas seis quadras tem uma pizzaria absolutamente normal. Não há a menor possibilidade de encontrar nenhum ator, atriz, diretor, cenógrafo, figurinista, produtor, divulgador, autor ou iluminador em cartaz ou em vias de. - Puxou os dois fios do capuz, amarrou-os sob o queixo, num laço. - Não suporto assédios profissionais em horas de lazer. Ou tentativa de lazer. Hoje estou inteiramente incógnito. Não quero cruzar com nenhuma das passadas, presentes ou futuras estrelas de nossa cultura.
Santiago ligou a chave. Enquanto o motor esquentava, no meio do ruído teve tanta certeza de que o outro ia novamente começar a falar sem parar que chegou a curvar-se para ele, para ouvir melhor. Mas Pérsio sacudiu a cabeça e nada, Pérsio disse que não tinha dito nada e, o carro subindo pela Consolação, abriu a janela deixando a cabeça pender para trás, apoiada no banco. Um vento molhado entrou pela janela. Ele soltou os cordões sob o queixo, acendeu um cigarro. Sem mover a cabeça, procurou outra estação de rádio, a voz estridente de Gal perdendo-se entre outras, agudas, roucas, ruído de estática, um baixo elétrico desvairado, um samba de braços-erguidos-e-todo-mundo-agora, até deter-se no piano lento.
- A sonata número 4, de Beethoven - sussurrou.
- Moonhight. Só que não tem lua.
Atrás, além do perfil dele, recortados contra a janela aberta, encobrindo por vezes as luzes que passavam, Santiago pôde ver primeiro a silhueta irregular dos edifícios, algum ponto de ônibus com pessoas encolhidas, amontoadas embaixo das marquises batidas pela garoa fina, um outdoor com dentes resplandecentes, outro com coxas morenas, volume saliente, cuecas qualquer coisa, bares abertos, algumas putas, um travesti de saia de couro, botas brancas, depois o início dos muros altos e brancos do cemitério, a massa sombria dos ciprestes - seriam mesmo ciprestes?, ou pinheiros?, ou abetos, repetiu, abetos, e sem querer pensou numa mangueira cercada de samambaias -, desviando os olhos para baixo, para o asfalto, aquelas poças de água colorida pelo neon, longo lago vertical ascendente, subindo através da rua, como se o carro fosse um barco navegando pela avenida, para cima, contra a correnteza, Aguirre.
Pérsio estava quieto agora, o rosto meio voltado para a janela. De vez em quando a brasa do cigarro brilhava mais nítida. Depois de um som miúdo como um pequeno suspiro, descia pelo ar a brasa tão lenta quanto o piano, no mesmo ritmo, para juntar-se à outra mão esquecida sobre as coxas. Outra vez assim, olhando para ele Santiago pensou que era bom de olhar, e não conseguiria ainda dizer de outro jeito, mesmo que parecesse absurdo. Bom, que bom de olhar, um quadro, o detalhe caprichoso de algum objeto antigo, o parque atrás das vidraças, Mesmo quando em movimento, qualquer coisa quieta no fundo. Restava, permanecia. Qualquer coisa que se movimentava ou, de dentro, contemplava os movimentos tolerantes, não crítica, apenas remota, feito Lavínia no elevador, duas crianças, olhando para eles sob pálpebras azuis. Ou de novo como se seus olhos, os olhos escuros de Santiago, um pouco pesados nos cantos, cílios densos, fossem câmeras cinematográficas com lentes capazes de aproximar ou afastar as imagens em zoom tornando às vezes mais definido o primeiro plano, agora a brasa que tornava a subir para empastar em cores foscas, misturadas, indefinidas, as formas do fundo cortadas por alguma súbita cintilação, lâmina, externa, ou liquefazer então os dedos esmaecendo o formato, a brasa que descia, mão suspensa encontrando mão pousada, vagos, obscuros, ressaltando vibrantes, dinâmicos, mastigava adjetivos como quindins, algum reflexo do semáforo no meio-fio da sarjeta transbordante da água suja dos bueiros, esgotos. Tossiu, menos por vontade que por confusão, para afastar um pouco aquela - era feito uma vertigem?, era feito uma tontura, teria sido o vinho, lentes meio embaçadas dos óculos, fome, chuva no pára-brisa, piano lentíssimo, nota por nota, cada dedo do pianista depositado em infinito cuidado sobre cada uma das teclas, a brasa despencava devagar em direção ao solo para deter-se na altura da outra mão, porque era sábado, tinham programado sair, ou todas essas coisas juntas, afinal, porque ele também estava bastante cansado de semanas e histórias e trabalhos e pessoas e.
Parecia dormir, Pérsio. A boca entreaberta. O lábio inferior mais polpudo, onde se poderia passar num carinha a ponta do dedo médio.
Morderia sem força, gato brincando. Estacionou devagar, para não acordá-lo. Mas era tão cedo, tudo, a noite, uma criança, virando a cabeça para trás, para os lados. Façamos de conta no meio da chuva que te enxuguei os cabelos, te levei para a cama, te aqueci com abraços, tirei tua roupa devagar, cantei para te adormecer até a manhã seguinte. Ficou olhando as grades baixas cortando a avenida em duas, enquanto os toques nas teclas do piano tornavam-se mais e mais acelerados no allegro, câmera que se aproxima, brasa acesa na penumbra, respiração regular. Ergueu as vidraças, as gotas mais fortes esmagadas. Do lado de Pérsio, salpicavam o casaco, o rosto, os cabelos. Santiago olhou para ele. Que o olhava também, atento, do outro lado, desperto, um palmo. Mas nenhum se moveu até Santiago dizer:
- Acho que é aqui. Vamos lá?
Saltaram poças, os dois pela calçada. A pequena marquise metálica de pessoas misturadas, algumas crianças, Herodes, rosnou Pérsio, o sábio mais injustamente incompreendido de toda a história ocidental, depois o calor no rosto, os grandes fornos abertos, um cheiro inesperado de cânfora ou alecrim queimado perdido no ar, mas não tinham nada em comum os dois, a nota disfarçada na mão do garçom, sorriso cúmplice, rapidinho, não temos tempo, tantas cores misturadas, saídos de um filme preto-e- branco para a rua repleta de cores, em plena tarde de sol, janeiro, verões, piscinas azuis de cloro, pouco depois a mesinha no canto, a toalha xadrez verde e branco. Escolheram indecisos, veio o vinho, tinto como o outro, e um cálice de conhaque dourado para afastar a gripe, limpar a voz, Pérsio justificou, que precisava de pretextos, álibis, culpas, punições, e passaram o cálice de um para o outro, aquecendo a base mais larga entre as duas mãos. Estava mais corado agora, Santiago observou. E depositou os óculos ao lado do maço de cigarros.
- Bem, agora conte-me coisas - Pérsio pediu.
Santiago olhou por cima da cabeça dele, O quadro com faunos e bacantes nuas esmagando cachos de uvas sob os pés dentro do barril de madeira.
- Que coisas?
- Coisas, ora, coisas. Excitantes, escabrosas, melancólicas, excêntricas, depressivas, estimulantes, atrevidas, mesquinhas, loucas, maravilhosas.
- Mas não há nada para contar.
- Então inventa, inventa rápido. Falei a noite inteira. Agora entrei em alfa. Aproveita, senão recomeço. É a sua vez.
- Eu gosto de ouvir.
- Claro que você gosta. Eu sou interessantíssimo, não é mesmo, gente? Mas pelo amor de Deus, pare de fazer o ouvinte omisso & respeitoso, senão vou morrer de sono antes que venha a pizza. Faz mal morrer de sono com o estômago vazio, sabia?
Santiago corou:
Mas contar o quê?
- Qualquer coisa, já disse. Senão eu piro. Conte depressa, senão eles vão começar a olhar.
- Olhar?
- Todo mundo. As mammas, as possessivas gordas, as criancinhas odiosas, os maridos subjugados, as nonnas de saco cheio.
Santiago olhou em volta. Localizou três mocinhas feias na mesa ao lado e, mais além, um casal entediado, ela gorda, tranças presas no alto da cabeça, ele de terno azul-marinho, provavelmente o mesmo que usava para trabalhar, bigodinho fino, antes da mesa grande, cheia de criancinhas barulhentas. Caras cansadas, sem mistério. Eram só dois rapazes não muito jovens numa noite de sábado. Nada especial. Comuns, urbanos, talvez bonitos.
- Ninguém está olhando.
- Ainda não, mas vão começar já, se você não falar alguma coisa. Em silêncio profundo, God!, deep silence, não é bonito?, só casal em fase de separação. Aquela linha Tédio, Rancor & Acusações Recíprocas. Conheces?, perguntaram. De sobra, responderam. Ou namorados, começo de namoro, inteiramente apaixonados, nem treparam ainda, meio bestas, babando de tesão contida. Você sabe, aquela coisa de olho no olho. Um gole, um cigarro. Muitos cigarros, o cinzeiro. Talvez até terminarem os cigarros e terem que dividir um. Suprema perversão, lamber a saliva do outro. Um roçar de mãos ocasional, completamente ocasional, ao bater o cigarro, de repente. Assim.
Pérsio bateu o cigarro no cinzeiro. Deixou a ponta de um dedo roçar fugidia nos pêlos macios das costas da mão de Santiago. Santiago abriu os dedos. O indicador suspenso no ar, Pérsio não se mexeu.
- Vamos, diga alguma coisa. Quer que rasteje a teus pés? Senão eles vão pensar que somos um casal em fase de separação. Ou um par de namorados babões. Onde está seu superego? O que é que você quer que eles pensem de nós, de mim, aqui a teus pés? E em qualquer das hipóteses as mammas cutucarão seus maridos ruins de cama repetindo baixinho, escandalizadas, guarda, amore, questi belli ragazzi, Dio mio, veados. Santa Madona, como é que se diz veados em italiano? - Acentuou a palavra, como gostava de fazer. As mocinhas se voltaram, curiosas. - Já começaram a olhar, viu? Você quer que pensem isso de você, hein? Que nós somos veados, bichas, baitolas, putos, maricões, xibungos, jaciras, frescos, peras, homossexuais, invertidos? Hein, cara? - Bateu forte no joelho sob a mesa. - Então, como disse Michelangelo dando a martelada, parla, cazzo!
Santiago estava vermelho:
- Eu não sei bem por que estou aqui. Ainda não consegui entender bem por que é que eu estou aqui com você.
- Porque a gente se encontrou sábado passado na sauna. E eu convidei, eu disse apareça um sábado desses.
Qualquer coisa assim, e você apareceu. Você ligou hoje à tarde, aceitando sensibilizado. - Pérsio sacudiu o cálice de conhaque, depois entornou-o rápido, erguendo o pescoço para vê-lo melhor. - Então eu fiquei meio surpreso de você ligar e.
- Você ficou surpreso?
- Fiquei. Quer saber? Eu quase não saio mais. Eu quase não vejo ninguém. Devo pedir aos violinos que comecem a tocar ao fundo?
- Eu também não.
- Também não o quê?
- Quase não vejo ninguém, quase não saio mais. Dou aquelas aulas, volto para casa. Aí fico lendo ou vou ao cinema. Vou ao cinema quase todo dia. Ou vejo uns dois filmes na televisão, cada noite. Já ando vendo as coisas, as coisas todas, o tempo inteiro como. Como se meus olhos fossem lentes. Dessas de cinema, um dose, pá, vejo mais perto. Um zoom, pá, vou afastando.
- Ou aproximando.
- Ou aproximando, claro. Mas também fiquei surpreso de eu mesmo ter telefonado.
- E agora você não entende como está aqui.
- Eu não entendo?
- Você disse.
- Eu disse? Não sei bem. As coisas foram indo. Quase não conheço você. - Hesitou. E acrescentou: - Pérsio.
- Faz muito tempo.
- Muito, faz muito tempo.
- E de repente eu ia dizer não, não posso, não quero, não devo, estou doente, descobri que estou com AIDS, tenho um compromisso, tentei pular da janela. Quando vi tinha dito te espero às oito, não foi? E de repente eram só sete e meia quando a campainha tocou e eu não pensei que fosse você. Oh, Deus, tudo tão típico. Eu queria ter tomado um banho antes e feito a barba, uns cheiros, uns charmes, essas coisas. Eu queria dar uma boa. Sei lá, troço mais babaca, impressão. Eu queria que você gostasse de mim. Eu estava superchapado, supercheirado. Torto, eu estava torto. Detonado. Ainda estou um pouco, comecei a aterrissar só depois do banho. Eu ia espiar pelo olho mágico e não ia abrir, a não ser que fosse assim um. Um James Caan, um Nuno Leal Maia, paizão. Mas de repente já tinha aberto a porta e você disse oi, e eu devia estar um horror, uma cara de Christiane F. antes da desintoxicação, eu disse oi com aquele olho vermelho, o nariz meio pingando, aquele bafo de maconha. A pele, a pele, você reparou como estou pálido? Então você entrou e perguntou como é que eu estava, daí eu botei correndo aquela música, eu tinha que me mexer rápido, e disse.
- Como esta música.
- O quê?
- Como esta música, você disse. Exatamente como esta música.
Pérsio parou de falar. Bebeu mais um gole de conhaque.
- Foi. Bem assim. Flash-back na mosca, cara. Entra “Years of solitude” na trilha. Só uma vinheta, anos. Anos de solidão. Falar em flash-back, sabe que às vezes tenho vontade de voltar para lá?
- Você? Não acredito.
- Acredite, tenho. Uma vontade louca, às vezes, de voltar para o Passo da Guanxuma. Besteira? Pode ser, mas me dá um cansaço daqui. Um nojo, às vezes me dá. Esse cinismo lento invadindo. Principalmente quando chove, e chove sempre. Você não tem?
O quê?
- Vontade de voltar.
- Agora é muito tarde.
- Já pensou, eu lá? Não ia ter nada a ver, menino. God!, como ia ser medonho. Não ia mesmo ter nada a ver.
- Chamou o garçom, pediu outro conhaque. - Você dá uns tapas? Então tudo bem. Não quero segurar a culpa sozinho.
Preciso de cúmplices. - Pegou os óculos de Santiago, ficou revirando entre os dedos. - Naquele tempo, já não tinha. Imagina agora. Descaralhei tanto, esses anos. Vamos entrar na linha traumas, algo a opor?
- Vai em frente.
- Acho prudente avisar. Mas é sempre danger.
- Não tem importância.
- Oh, como você é compreensivo. - Tocou com o vidro dos óculos na mão de Santiago. - Sabe que quando eu saía na rua as meninas gritavam biiiiiiiiiicha! Não, não era bicha! Nem veado. Acho que era maricas, qualquer coisa assim.
- Fresco - Santiago disse. – Era fresco que se dizia.
- Isso. Fresco, elas gritavam. Todas gritavam juntas. Ai, ai, elas gritavam. Bem alto, elas queriam ferir. Elas queriam sangue. E eu nem era, porra, eu nem sabia de nada. Eu não entendia nada. Eu era superinocente, nunca tinha trepado. Só fui trepar aqui, já tinha quase vinte anos. E cheio de problemas, beijava de boca fechada. - Sorriu, contornando os aros dos óculos com as pontas das unhas roídas.
- Vou perguntar uma besteira: foi bom?
- Bom? Foi uma bosta, cara. Mas não vem ao caso, tudo superado. Ah, tão Maduro & Equilibrado. Cinco anos de terapia, sob controle. Mas era difícil lá. Aquelas garotas todas gritando de manhã bem cedo, quando eu ia para o colégio. Todos os dias. Ao meio-dia, quando voltava. Todos, todos os dias. God!, que inferno. Semana após semana, ano após ano. Eu já não tinha coragem de sair de casa. Ficava chorando pelos cantos, bem tanso, me perguntando apavorado meu Deus, meu Deus, será que sou mesmo isso que elas gritam que eu sou? - Enfiou o dedo no fundo do copo vazio e lambeu. Depois passou nas gengivas. - Só tinha um na cidade, lembra?
- Lembro, o seu Benjamim, o barbeiro. Ele se matou, sabia?
- Claro, não é? E fez muito bem. Sábia decisão. Só podia mesmo era cortar os pulsos.
- Ele se enforcou. Bem no meio da praça. Num domingo de Páscoa. Na figueira. O padre encontrou na hora de abrir a porta da igreja, antes da missa.
- Perfeito, perfeito. A Anônima Tragédia Provinciana. E dá no mesmo. Aquelas garotas eram umas assassinas. - Olhou em volta, as pessoas, uma a uma. - Como eles, todos uns assassinos. Eles não perdoam, eles não aceitam. Eles não perdoam nunca, sabia? Eles não vão sacar que não se trata sequer de perdão. Se um deles discutir com você, esse vai ser sempre o último insulto que te jogarão na cara. O mais ofensivo, na opinião deles. Você não vai passar nunca de um veado escroto. Uma a-ber-ra-ção. Com todos os Masters & Johnsons do planeta. Que lamentável, meu amigo.
Santiago esfregou as mãos. Desviou os olhos.
- Tinha outro, também - tentou. - Como era o nome dele? Ary, era o Ary do Instituto de Beleza.
- Mania que veado tem de mexer no cabelo dos outros.
Santiago riu:
- Não tem graça.
- Eu sei, era triste?
- Triste, você disse triste? Era medonho, cara. Era duma solidão horrenda, era dum desespero pânico. Era duma. Duma agressão, de um desprezo, de uma crueldade. Você não lembra?
- Eu já tinha ido embora.
- Eu não tinha nenhum amigo. Só Peter Pan.
- O quê?
Pérsio passou o indicador, de leve, sob o roxo dos olhos.
- Ao fundo, entra agora um slide de Pollyana. Eu já tinha visto o filme, depois comprei o livro. A versão de Monteiro Lobato. Depois ganhei a tradução, era lindo.
Não tinha um álbum, um álbum de figurinhas? Eu fiquei absolutamente apaixonado pelo Peter Pan. Quando eu ia dormir, de noite, queria que aquelas garotas nojentas todas morressem enquanto eu voava sobre a cabeça delas. Para a Terra do Nunca, Peter Pan vinha me buscar toda noite, nós íamos voando para a Terra do Nunca. God!, introjetei completamente a Wendy, aquela putinha. Eu não queria crescer. Eu tinha nojo de crescer. Gente adulta me dava vontade de vomitar. - O garçom trouxe o conhaque. Ele bebeu até quase a metade, de um gole só. Estendeu o cálice para Santiago. - Mas eu não pensava em sacanagem nenhuma. Só queria ficar perto dele. No máximo, deitar abraçado com ele. Na mesma cama. Nem um beijo, nada. Só um abraço, bem apertado. Ridículo, ridículo. Eu era meio retardado, acho. Até uns dezoito anos não sabia nem o que era punheta, pode?
As mocinhas se agitaram na mesa ao lado. Riram baixinho. Pérsio olhou para elas. Acendeu outro cigarro. Tragou, bem fundo. E repetiu alto:
- Pu-nhe-ta. Eu não sabia o que era. Aquelas monstras. Devem estar todas gordas, balofas, megeras medonhas, cheias de varizes, frígidas, com mil crias ranhetas na barra da saia, malcomidas. Os maridos arrotando e peidando repolho, barrigudos de cerveja, meio broxas, trepando pelos cantos com as empregadas. Como cachorros. - Levantou a mão. E bateu o cigarro no ar. A cinza caiu. - Não me venha dizer que perdoar-é-divino. Desejo o pior para eles todos. A lepra, o câncer na pele. Merda, continuo histérico. Eu não devia sentir tanto ódio. Mas nunca, porra, nunca ninguém. Ai, que lamentável orgia de autocomiseração. Mas não consigo esquecer. Sei que não é nem um pouco espiritual. - E de repente, o olho brilhando: - Você tinha uma namorada, não tinha?
Santiago corou outra vez:
- Tinha, era a.
- Espera aí, não diz. Eu vou lembrar, claro que eu vou lembrar. Era uma das mais monstras de todas. Tinha uns peitos enormes, uma franjona na testa. Era um nome ridículo, como era mesmo? Janete? Não, Salete? Sei, sei: Rejane, pelo amor de Deus, cara, era a Rejane Magalhães, filha do doutor Antoninho.
Santiago começou a rir.
- Eram duas irmãs, não eram? Regina e Rejane. A Regina usava óculos, tinha bigode e uma saia jeans. Era a única saia jeans de toda a cidade. Estudava por aqui, só voltava lá nas férias. E levava sempre uma amiga. Umas amigas desmilingüidas, de cabelo liso, óculos e rabo-de-cavalo. Diziam que era paraíba, macho-fêmea, meio comunista. Minha mãe garantia que não. Minha mãe era meio gay, botava a mão no fogo por todas as bichas e sapatões incompreendidos da cidade. Claro, com o filho que tinha. Jurava que a Regina tinha era muita personalidade. Uma personalidade muito forte. Você, como ex-futuro-cunhado, deve saber toda a verdade sobre Regina Magalhães. Era lésbica?
- Era. Uma vez encontrei ela no Ferro’s Bar. De moto e blusão de couro.
Pérsio riu tão alto que a família inteira da outra mesa voltou-se para os dois:
- Mentira, jura? Calçando quanto?
- Uns cinqüenta em cada pé. Bico largo.
Pérsio batia na mesa, rindo:
- Você é louco, cara. Você é completamente pirado. Como é que você namorou a Rejane Magalhães, com aqueles ubres de Jayne Mansfield? Elas moravam na esquina de baixo. Quando subiam de tardezinha para o centro, depois do banho, meu pai olhava e dizia mas não é possível, gente, esta filha do Antoninho andou comendo estoura-peito.
- Eu fui noivo dela.
Pérsio riu tanto que quase caiu da cadeira, engasgado com a fumaça do cigarro. Bebeu um gole de vinho. Quando esfregava os olhos vermelhos o garçom colocou a pizza na mesa. Santiago cortou um pedaço. Assoprou, antes de provar.
- Não era cânfora. Nem alecrim.
- O quê?
- O cheiro. Um cheiro que senti quando entramos, era manjericão.
- Erva de Oxum. - Pérsio ergueu a mão para o teto, saudando outra vez: - Ora ye ye ô, minha mãe! Segura essas, com a bênção de Oxalá e Ogum de guarda. Então me conta mais. Você devia ser completamente mongolóide, bicho. Meu Deus, ficar noivo da Rejane.
- De aliança, sofá e tudo - Santiago confirmou. - Anos a fio. Seis anos. Ela já estava com o enxoval pronto. Aí eu vim para São Paulo fazer a faculdade e.
- Conheceu um cara.
- Como é que você sabe?
- Clássico, é clássico, rapaz. Mas não se constranja. Em princípio, tipo rapaz encontra moça. Mas logo depois, para infelicidade dela, encontra também rapaz. E gosta muito mais, lógico. Vai em frente.
Santiago vacilou, remexendo na pizza com o garfo. Mordeu um tomate. Mesmo sem óculos, as bacantes nuas, muito nítido, os sátiros com coroas de folhas de videira nos cabelos encaracolados. As mocinhas atentas na mesa ao lado. Mastigou devagar, as duas mãos cuidadosamente postas sobre a toalha, mal tocando o pano, uma ao lado da outra. Pérsio o espiava, olhos divertidos, meio ternos talvez, um pouco avermelhados.
- Pois é. Um cara, na faculdade. Roberto, era o Roberto. Beto, as pessoas todas chamavam ele de Beto. Eu andava sempre com um livro embaixo do braço, acho que eu queria que as pessoas vissem a capa do livro. Que pensassem coisas, que eu lia, sei lá. Eu ficava sozinho no Centro Acadêmico lendo o tal livro. Não era sempre o mesmo, mas era escolhido, para que vissem. Demorava uma semana com o mesmo livro, depois trocava. Eu lia devagar naquela época. Um dia ele chegou de repente e perguntou que livro era.
- Fantástico - disse Pérsio. - Estudadíssimo você, hein? Com essa carinha sonsa. E que livro era, afinal?
- Era Clarice Lispector, nesse dia era Perto do coração selvagem. Eu acho que fiquei olhando para ele uma porção de tempo antes de conseguir dizer o nome do livro. Era uma ousadia ler Clarice naquele tempo, ninguém entendia direito, diziam que era difícil. Eu também achava, mas gostava. Eu gostava dela. Tinha um jeito de ver por trás, por dentro, que eu achava que também tinha. Que só eu tinha. Eu fiquei olhando para o Beto. Era bonito, eu já tinha visto ele e tinha pensado, que bonito. Nossa, que bonito. Ele tinha uma camisa xadrez. De madras, não era assim que se dizia? Lembro até hoje. Xadrez meio assim desbotado, muito vago, vermelho, verde. Madras, engraçado, não é o nome de uma cidade da Índia? Aí ele sentou e começou a falar em Kafka e em Sartre e em Camus. Em Simone não, ele achava Simone uma farsa. Depois perguntou se eu tinha lido um livro chamado Poeira.
- Dusty answer. - Pérsio sorriu. - Rosamond Lehman.
Santiago sorriu também.
- Isso, isso. Judith, Roddy.
- O rio, a escola.
- E Jennifer. Que eu tinha que ler. Que se eu gostava de Clarice tinha que ler Poeira. Que ele ia me emprestar, fazia questão. Aí ele me trouxe, no dia seguinte. No dia seguinte não, que era sábado. Nem no domingo. Na segunda, ele trouxe na segunda. Todo o fim de semana eu pensei nisso, achei que ele ia esquecer. Mas ele não esqueceu. Eu esperei ele fumando numa mesa do fundo. No recreio das dez, que era maior, eu não fumava, mas Minister, eu tinha comprado um maço de Minister. Era um livro de capa dura, meio amarelado. Aí a gente começou a se emprestar livros, a ir ao cinema juntos, de tarde. Glauber, Godard, Truffaut, aquelas coisas. Ele gostava de Françoise Dorléac, eu adorava Rita Tushingham. Depois uns concertos, de noite. Mozart, o Beto tinha paixão por Mozart. Principalmente um concerto de piano em si bemol. No teatro, umas vezes. Eu nunca tinha ido ao teatro. Foi uma noite, era Um gosto de mel, sabe Um gosto de mel?
- Sei. Aquela história da garota grávida que vai morar com uma bicha boa. Tinha uma música, não tinha? “A taste of honey” - Pérsio cantarolou, batendo com a faca no cálice. - Ta-ram-tam. Taram-taram-taram.
- Depois fomos num bar e começamos a beber. Ele escrevia poemas. Tinha um, como era? Ele me mostrou naquela noite. Lembro, lembrei. Ele disse inteiro, o começo era assim: Navego pelo teu silêncio, amigo, esse estranho labirinto cheio de portas falsas e desejos de mármore redondo.
- Mármore redondo?
- É. O que tem?
- Nada, esquisito. Fiquei pensando. Redondo como as bundas de Rodin. E aí o poema era para você.
- Claro que era. Nós só tínhamos vinte anos.
- Não se justifique.
- Não estou me justificando, era bonito. Nós bebemos muito, Cuba, a gente bebia cuba. Era uma ousadia tremenda dele mostrar aquele poema justo depois daquela peça. A gente saiu junto, já estavam fechando o bar, e na praça. A gente estava completamente bêbado, na praça a gente se abraçou com força. Com muita força. Durante muito tempo. Eu me lembro que ele tremia. Acho que eu tremia também. E me beijou, depois, na boca. Ou eu beijei ele, não me lembro. Ou nos beijamos juntos, ao mesmo tempo.
- Vocês foram para a cama?
- Na mesma noite. Eu morava num hotel pequeno, ninguém via.
- Foi legal?
- Foi... foi complicado. Foi complicadíssimo. Eu não sabia trepar. Nem ele. A gente ficava só do pescoço para cima. Como se o corpo nem existisse. Pau, essas coisas. Mas foi bonito. Não tinha importância que não desse muito certo. - Repetiu: - Nós só tínhamos vinte anos.
Santiago cruzou os talheres, empurrou o prato.
- E aí?
- Aí o quê?
- Aí, depois. O que aconteceu na seqüência?
Santiago acendeu um cigarro.
- Nós vivemos juntos quase dez anos. Quer dizer, eu viajei, ele viajou. Quando um voltava, a gente continuava. Separava, às vezes. Poucas vezes, transava outras pessoas. Mas voltava sempre.
- Dez anos? God!, longas paixões, hein? SEIS anos com a Rejane Magalhães, DEZ anos com o Beto. Como é que você pode? Porra, eu nunca consegui ficar mais do que um mês transando a mesma pessoa. Sempre me dá uma... Uma coisa, já conheço aquele corpo, aquele cheiro, aquele gosto. Aí vou à luta.
Santiago soltou a fumaça pelas narinas e ficou vendo-a embaçar-se sobre a cabeça de Pérsio. Como uma auréola, apagando os contornos dos sátiros, das bacantes. Os cachos de uvas escorregavam meio desmanchados pelas bordas do barril. Roxo sobre o verde, misturavam-se à grama alta cheia de flores amarelas. Madras, mudras, gesto parado.
- Muito tempo, não?
- Para caralho, cara. E depois? Dez anos, deixa ver. Se vocês começaram a transar quando você tinha uns vinte. Dez anos, quantos você tem agora?
Santiago bebeu mais um gole de conhaque. E disse:
- Trinta e três. Faz quatro anos que o Beto morreu.
O rapaz olhava de longe fazia algum tempo, Santiago tinha visto. Com o canto do olho, enquanto contava, percebeu que ele procurava chamar a atenção de Pérsio. Movimentava-se sem parar, falando muito alto. Mas Pérsio estava mergulhado nas palavras dele, um menino antigo ouvindo uma história de fadas, bruxas, príncipes. Chegara a esquecer a ponta do cigarro aceso entre os dedos, boca entreaberta, olhos arregalados, mais próximos do verde assim, a luz batendo direto na íris clara. Quis alertá-lo, as estrelas de nossa cultura, lembrou. O rapaz veio se aproximando por trás, macio, felino, até tocá-lo no ombro. Pérsio assustou-se e queimou os dedos num sobressalto.
- Merda - resmungou, esmagando a ponta no cinzeiro. E voltou-se para o rapaz sorridente, um excesso de dentes grandes enfileirados sobre a gola alta, cabelos curtos, um topete anos 50, as mãos enfiadas nos bolsos das calças largas cheias de bolsos, um enorme chaveiro pendurado, tilintando enquanto ele se curvava.
- Oi - cumprimentou. - Lembra de mim?
- Oi. - Pérsio lambeu os dedos queimados. Estendeu a mão. - Lembro, claro que lembro. Como vai? Você não é do elenco do Édipo?
- Antígona - o rapaz corrigiu. - Do coro, sou o Carlinhos do coro.
- Claro, claro. O coro, lembro sim. Não foi você quem levou as fotos e o release no jornal? E como vai o espetáculo, Carlinhos do Coro?
- Meio mal, sabe como é. - Enfiava as mãos até o fundo dos enormes bolsos, balançando-se para a frente e para trás. - Hoje nem teve. Meia dúzia de pessoas. Puta crise, não é?
- Putíssima - concordou Pérsio. E repetiu, olhando para as três mocinhas: - Putésima, de pleno acordo. Eu não sei onde vamos parar com. Para teatro então, nem se fala. Artes em geral.
A deixa exata. Santiago tornou a tragar demorado o cigarro, o conhaque, o vinho, a miopia, olhando em volta.
Mas não acontecia nada. As três mocinhas disputavam um último pedaço de pizza (de aliche, reconheceu), na mesa grande uma das crianças dormia afundada nos seios fartos da mãe, enquanto alguém cantava melancólico la festa è appena com inciata e già èfinita, o vento lá fora, a moça gorda de tranças e o moço de bigodinho tinham ido embora, uns japoneses frenéticos tinham tomado conta da mesa, falando uma língua cheia de miúdos faniquitos. Quase sem respirar, Carlinhos investiu:
- Pois é daí então a gente precisa de força sabe como é cooperativa e tal gente nova todo mundo pôs alguma grana em cima tá super-ruço você sabe daí que se você pudesse dar uma força lá no jornal sabe como é sempre ajuda a divulgação é fundamental só depende da boa vontade de alguns uma questão de acreditar e dar força.
Pérsio colocou os óculos de Santiago. Cruzou os braços, balançando a cabeça com ar profissional:
- Tá. Vou ver o que posso fazer. Não depende só de mim. Tem os caras mais em cima, você sabe, que mandam mais. Você tem um diretor, eu tenho um editor. Eles é que decidem.
- A gente agradece. - Carlinhos curvou a cabeça. Fez um ar tardiamente polido de não-quero-interromper-nada-entre-vocês, apertou a mão de Santiago, levemente cúmplice, e foi saindo entre as mesas.
Pérsio tirou os óculos, cruzou os talheres, empurrou o prato. Parecia deprimido. Pegou outro cigarro, acendeu na ponta que Santiago começava a apagar.
- Saco. Sempre aparece um. Na próxima vez que eu falar que este lugar é normal, você me cospe na cara, combinado?
- Ou chamo a Rejane - Santiago brincou.
- Maravilha. Chama a Rejane e manda ela gritar da porta, bem alto, para todo mundo ouvir: freeeeeeeesco! - Tornou a lamber os dedos queimados. - Bosta, bosta de profissão. Sabe o que eu fiz ontem à noite? Gastei três laudas demolindo im-pi-e-do-sa-mente a tal Antígona. Principalmente o coro. Que parece sofrer de descontrole motor, com tantas acrobacias físicas. Que não decorava o texto. Que devia voltar a fazer teatro infantil daquele bem debilóide, cheio de oncinhas. Que Antígona, quem diria, acabou na Mooca. E eu que até gostava de teatro. Estou pegando bode para sempre, vejo um palco e quero sair batendo em todo mundo. O coro tem pelo menos vinte pessoas. São vinte inimigos, já pensou? Haja santo forte capaz de segurar. Você não acha o fim ficar dando palpite no trabalho dos outros assim, sem saber direito da viagem dos caras?
- Eu corrijo provas.
- Dez anos. Classe teatral. Aquelas monstras todas gritando na rua. Pede a conta, enchi o saco disso aqui. Coitado do menino, deve morar em Pirituba. Tem que comer depressa porque volta de metrô. Tem metrô em Pirituba? E mora num conjunto habitacional do BNH, com a irmã costureira e a mãe entrevadinha. Dorme na parte de cima de um beliche. Na cama de baixo dorme o irmão que trabalha na polícia de choque. E amanhã vai sair no jornal que ele é uma besta. Assinado por mim.
Santiago disse que ele estava exagerando, que fazia parte, que não era tão grave assim, Mas ele não parou. Santiago chamou o garçom.
- Dez anos. God! E você deu o cu nesses dez anos?
- Hein?
Pérsio batia com a faca no copo, os olhos injetados.
- O cu, não é isso? No final das contas tudo se reduz a isso. Se eu fizesse assim com os dedos o Carlinhos caía nos meus pés e me dava o cu em público. Ou me comia o cu. Podia até ser gostoso. Daquele tamanho, deve ter um baita pau. O Carlinhos, o Paulinho, o Luisinho, todos os inhos com seus enormes chaveiros. Queria bater neles todos. Cu, cu, cu - repetiu. As mocinhas levantavam da outra mesa, olhando sempre. - Aquelas monstras, porra, eu só tinha uns treze anos. Fiquei com um nojo. Entre dois homens, amor é igual a sexo que é igual a cu que é igual a merda. Sabe que não agüento merda? Eu vejo um cara e gosto e tal e me aproximo e rola umas, sempre rola umas, porque eu canto bem, eu sei cantar, veja que vaidade, e daí eu penso Deus, daqui a pouco a gente vai pra cama e chupa daqui, chupa dali, baba, roça, morde, e no fim inevitável tem o cu e a merda no meio. Você acaba sempre dando a bunda ou comendo a bunda do outro. Se você dá, ainda não é nada. Tem a dor, a puta dor. Caralho dói para caralho. Tem uns jeitos, uns cuspes, uns cremes. Mas é nojento pensar que o pau do outro vai sair dali cheio da sua merda. Mesmo nos casos mais dignos, você consegue imaginar Verlaine comendo Rimbaud? E se você come o outro, tem a merda do cara grudada no teu pau. Mesmo no escuro, você sente. É impossível não sentir. Por mais limpos que vocês estejam fica aquele cheiro, aquele cheiro de merda solto no ar. Às vezes vou no escuro até o banheiro e lavo o pau de olhos fechados, ensabôo bem com a torneira aberta para pensar que aquela meleca toda é do sabonete, não da merda. Mas fedor de merda é sempre mais forte. Mais forte que tudo. Objetivo, subjetivo. Tem amor que resista? Agora me diz. - Bateu com os óculos na mesa. Tão forte que Santiago teve medo de que as lentes quebrassem. Mas não quebraram.
- Por mais flores e risos e beijos e carinho e, droga, compreensão mútua e ma-tu-ri-da-de. Por mais apaixonado, por mais legal. Para mim, nunca. Fica um cheiro de merda por tudo. Mesmo que você não veja. Que você não sinta. No escuro, fica. No dia seguinte, mexendo nos lençóis, sem querer você vai acabar descobrindo uma manchinha fedorenta: merda, merda pura. Não me venham com liberações, normalidades, porque não tem nada demais, é uma opção como qualquer outra, não sei que lá. Quem resolve o meu bode com cheiro de merda? Amor entre homens tem sempre cheiro de merda. Por isso, eu não agüento. Um mês, dois. Você mascara, disfarça, põe uma vaselina aqui, um sabonete ali. Mas o cheiro da merda continua grudado na tua pele. Eu não consigo aceitar que amor seja sinônimo de cu, de cheiro de merda. Aí eu falava isso para o analista e ele repetia sempre mas, afinal, o que há de tão nojento com a merda? Pode? Como o que há de tão nojento? É nojentíssimo, porra. Ter cu é insuportável, é degradante você se resumir a um tubo que engole e desengole coisas. Eu não vou aceitar nunca que o ser humano tenha cu e cague. Você conseguiria imaginar Virginia Woolf cagando? Eu só estou falando nisso agora porque a gente parou de comer. Se falasse antes, ninguém conseguiria comer nada.
O garçom trouxe a conta, cafés. Pérsio riscou a toalha com a faca várias vezes, horizontalmente. Depois na vertical, grades.
- Ontem à noite sublinhei umas frases numa história de Andersen. A moça dos sapatinhos vermelhos. A maldição, quando o anjo diz.
- Dançarás, dançarás para sempre, não é isso?
- Como é que você sabe?
- Eu vi no seu quarto. Estava aberto.
- Pois parece assim. Uma maldição. Para sempre. Só acaba quando amputam os pés da moça. Quando você perde um pedaço. Quando você se anula. Quando você renuncia e nunca mais trepa. Em nome da higiene, em nome da... Eu não consigo. Jean Genet me cuspiria na cara. Daí você me diz, então pára, se é tão... Tão traumatizante, tão violento, pára. Ou batalha uma mulher. Sublima. Ou muda a tua sexualidade. Eu não gosto de mulher. Até já transei, mas não sinto nada, tudo liso. Então eu tento, eu ficou uma semana, quinze dias sem foder. Então sinto falta. Aí vou na esquina e cato o primeiro que passar. Quanto custa, vamos lá, qualquer um. Paraíba, michê, crioulo, não tem problema. É rápido. Toalhas, torneiras, camisinha e tal. A grana, papéis definidos, eu-sou-bicha-você-é-macho, nenhum envolvimento. Já me roubaram, qualquer dia me matam. Isso não me importa. Mas é isso que falavam, amor? Essa sua história, eu não conheço. Eu só tive vislumbres, parecia prometido, preparado, e nunca aconteceu. Eu nunca consegui, eu nunca fui capaz, deve ser culpa minha. Ah, que banal. Até que ponto as circunstâncias não me favorecem, ou eu é que não favoreço as circunstâncias?
Santiago voltou a colocar os óculos. Estendeu a mão para a conta.
- Quanto foi?
- Deixa, eu tenho.
- A gente racha, então.
Santiago colocou duas notas no pratinho de plástico. Pérsio remexeu nos bolsos de casaco verde. Guardou as duas notas, assinou um cheque. E tocou com a ponta do dedo no pulso de Santiago.
- Me diz.
- Hein?
- A merda, o cheiro, o nojo. E o amor, o amor, cara. O que eu faço com isso?
- Você esquece, sei lá. Não tem tanta importância assim. E se for mais forte?
- A merda?
- Claro que não. O amor.
- Amor não existe. É uma invenção capitalista.
- Isso é só uma frase.
- Eu não sei, pode ser.
- Mas se. Tudo bem. Suponhamos que os dois caras gostem muito um do outro.
- O que já é difícil.
- Pode ser, mas... Suponhamos. Eu já vivi isso. E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também.
Pérsio vestia o casaco, cigarro apertado nos lábios.
- Muito edificante - disse. E contraiu os olhos para evitar a fumaça. - Mas quem sabe, quem sabe? Então você conclui que, portanto, eu não entendo picas de amor.
- Não disse isso.
- Mas pode ser. O meu problema é um problema juvenil, de adolescente enrustido. Ou de burguesinho que fez a primeira comunhão e vai se sentir eternamente culpado com a possibilidade do prazer. Tudo muito cristão. - Revirou os olhos. - Ai, tormentos, cilícios. De repente devo ter parado no Peter Pan. A carne é insuportável, uma espécie de macrobiótica da sexualidade. Só platonismos. Ou sacanagem braba, Dama do lotação perde.
Ia dizer qualquer outra coisa. Mas de repente estendeu os braços sobre a mesa e segurou nos ombros de Santiago. Apertou forte. O bafo morno dos restos de pizza flutuando no óleo, cinzeiro cheio, copos vazios, pratos amontoados entre os dois, pedaços de lingüiça, caroços de azeitona, queijo derretido, lascas engorduradas de presunto. Santiago quase não entendeu o que ele disse, palavras brotando confusas de entre os dentes que apertavam o cigarro.
- Sabe que eu gosto de você? Eu gosto muito de você, garoto.
Um bicho arisco, Santiago lembrou. Você precisa estender a mão com cuidado senão ele foge, era isso? Entre os brilhos falsos, insinuado, um pedaço de estopa. Porque eu também sinto medo, e haverá a morte um dia. A vida é apenas uma ponte entre dois nadas e tenho pressa. De repente sentiu-se sufocado enquanto saíam por entre as mesas barulhentas. Uma sufocação semelhante à daquelas manhãs de fim de semana em que, involuntário, acordava cedo demais apesar do esforço para permanecer na cama até mais tarde, para que o dia parecesse mais curto e não precisasse bater-se tanto pelo apartamento vazio, sem vontade de fazer coisa alguma a não ser olhar pelas janelas. Espiava então pela janela o movimento das ruas, os verdes lá fora, com vontade de sentar-se num banco de praça, comendo maçãs ao sol. Não saberia por que justamente maçãs, mas sem dúvida maçãs, maçãs vermelhas daquelas argentinas, embrulhadas em papel fininho quase roxo.
Não havia nenhuma praça próxima. Quase nunca havia sequer sol. Nem verdes, lá fora. Ainda que houvesse, que pudesse talvez comprar maçãs na venda da esquina e procurar uma praça, em algum lugar devia haver uma, sentado ali na poltrona alta de couro que, só percebera tempos depois, arrastara para junto da janela exatamente com esse fim, olhar lá fora, permanecia parado, atravessando as manhãs sem sequer fumar ou falar sozinho. Cortava unhas, às vezes. Das mãos, dos pés, detendo-se para pensar que - seria bom. E vinha depois também, insinuada aos poucos no meio da manhã, uma vontade de que alguém telefonasse, tocasse a campainha, chamasse lá embaixo, a princípio vaga, mas cada vez mais nítida, até chegar quase a ferir, feito uma dor, agulha, brasa. Nada acontecia. Aquela como uma vontade de ser feliz, de haver alguma ordem ou estar noutro lugar onde fosse possível sentar ao sol comendo maçãs, deixava também de ser como um estar-à-beira-de-qualquer-coisa-boa Campainha e telefone mudos, a manhã a transformar-se em tarde, emergia venenosa a sufocação, vontade de fugir, de não ser quem era nem ter vivido nenhuma das coisas que vivera. Todo um passado, essa coisa que chamam de passado, desembocava ali naquele momento, em pleno centro das manhãs esbranquiçadas de silêncio. Na chuva mais forte da rua, Pérsio tornou a enfiar o capuz verde.
- Vamos em frente?
Santiago hesitava, mãos nos bolsos, óculos embaçados. Pérsio mostrou a ponta acesa do cigarro.
- Que é isso, companheiro? Vacilando? Vamos lá. Olha, vou jogar esta ponta na calçada. Se a brasa fizer tsssss! ao apagar, nós vamos.
Jogou a ponta numa poça d’água aos pés de Santiago. Quase puderam ouvir o chiado forte da brasa apagando.
- Está vendo? São os deuses que ordenam, a noite continua. Você está sem casaco, me dá a chave, eu corro na frente, abro e você entra.
Santiago estendeu as chaves. Pérsio correu pelo meio da chuva, pulando poças. Acontecia às vezes também, sentado na poltrona de couro junto à janela, observando a curva do sol pelos edifícios em frente iluminar aos poucos o parapeito, escorregar para dentro da sala, alongar-se por suas pernas, aquecendo as mãos paradas, distender- se palmo a palmo pelo tapete até encontrar uma ponta da parede oposta. Certas manhãs, ou quando as manhãs já tinham virado tarde, levantava-se por um momento para sair a recolher as plantas do apartamento, colocando-se atrás da poltrona, dentro da mancha de sol. Ficava ele também junto com as plantas na luz, existindo silencioso e imóvel no centro do dia. Mas acontecia quase sempre de o sol não aparecer, de a manhã acinzentar-se aos poucos, sem que fosse necessário apanhar as plantas. Algumas gotas de chuva começavam a bater nos vidros. Chovia muito, os papéis amoleciam, as paredes mofavam. A alma, se havia uma, curvava os ombros. Ele baixava os vidros, ficava vendo as gotas formando desenhos vadios. Duas, três, que encontravam uma outra para descer mais rápidas, pequenos rios verticais, pára-brisa do carro. Em vez de maçãs tinha vontade então de qualquer coisa como um chá, como se fosse velho, como se tivesse sobrado à margem dos movimentos que levam pelo tempo afora.
Não se movia para fazê-lo, esse movimento, Alguém que não chegava espiaria na porta perguntando em voz baixa se. Estremeceu. Pérsio buzinava, a porta aberta do carro. Correu, a gola do casaco levantada.
- Posso dirigir um pouco? - Pérsio pediu.
- Claro. Tudo bem.
Pérsio deu a partida. Depois repetiu, o carro passando por baixo do viaduto da Rebouças:
- Veni de sancta sede, Adonai: timor qui omnia ad voluntatem nostram coarctabit.
- O que foi que você disse?
- Um feitiço, cara. Aprendi num livro de magia, seduções e tal. Estou te ensinando um encantamento da pesada. Seguinte: se na seqüência você ficar a fim de um cara, olha bem fixo para ele e repete mentalmente. Bem concentrado, sete vezes. É tiro e queda. Repete junto comigo até decorar. Vamos: Veni de.
Santiago suspirou:
- Mas não vou ficar a fim de ninguém.
- Como é que você tem tanta certeza? Vamos, eia, sus, avante, companheiro! E se de repente, no meio da noite, um garoto lindíssimo avançar para você e perguntar como nos velhos bons tempos que livro você está lendo? Não, livro não. Livro em bar de veado não dá muito certo. Veado só lê Vogue e Interview. Livro parece a Theresa Dunn em Looking for Mr. Goodbar, só pinta baixo- astral. Mas pode perguntar que bebida, isso, o que é que você está tomando, garotão? E você diz um supernovo drinque chamado Perto do Coração Selvagem. Que tal?
- Não brinca com isso, porra.
Pérsio tirou uma das mãos do volante, colocou-a sobre o joelho dele. Apertou leve. Teve vontade de tocá-lo. Mas continuava parado na janela, espiando o sol, a rua, as gotas sem se mover. Antes que descruzasse os braços, Pérsio já tinha retirado a mão.
- Desculpa. Não tive intenção de.
- Não tem importância.
- Como não tem importância? Foi grossura minha.
Desciam pela rua molhada. Santiago viu o relógio da Faria Lima marcando, a intervalos, zero hora, trinta minutos, doze graus, depois zero hora, trinta e um minutos, doze graus.
- Você sente falta, não é? Você sente muita falta dele?
Zero hora, trinta e dois minutos, doze graus, zero hora, trinta e três minutos, doze graus, zero hora, trinta e.
- Sinto, às vezes. Sinto muita falta.
- Como foi que ele morreu?
Acendeu um cigarro. Estendeu o maço para Santiago, que aceitou sem pensar. A chama do isqueiro brilhou por um segundo, iluminando de relance o rosto deles. Ligou o rádio. A voz aguda e clara de Cida Moreyra brincou irônica entre os dois, repetindo: Ah, deixe-me, rapaz, lhe dizer que em mim tudo tanto faz. Pérsio riu.
- Nem de encomenda, não? Cantarolou junto, um pedacinho. E tornou a tocá-lo no joelho. É difícil, não é?
- Não gosto de falar nisso.
- Tá bom, desculpa outra vez. É que estou achando você triste. Falar de repente ajuda. Sabe no que eu estava pensando há pouco? Santiago não disse nada mas ele continuou, a voz soando falsa, estridente demais, alegre demais. - Em Lavínia, a lasciva. God! Como estará a ardente Lavínia nos braços de seu amado Douggie?
- Foi um acidente - cortou Santiago, brusco. - Ele morreu num acidente de carro. Nada, não teve nada demais. Nenhuma tragédia. De repente, um negócio besta. Eu estava em casa, eu estava achando estranho que ele estivesse demorando tanto. A gente sempre sabia onde o outro estava, não tinha nenhum jogo de angústia. A gente cuidava um do outro, não havia dor. Aí tocou o telefone e uma voz desconhecida perguntou se era ali que o Beto morava. Era, eu disse, é aqui. E pronto, já tinha acontecido. Morreu na hora. Não doeu, não deve ter doído, não houve tempo. - Jogou fora o cigarro. - Mas tudo bem, esquece. Já passou.
Pérsio olhava para ele, atento:
- Como esquece? Você deve ter sofrido muito.
- Claro, é normal, não é? As coisas dele ali, todos os dias, sem ele. A cama vazia. Uma falta, eu sentia uma falta. - Sorriu para si mesmo. - Dor, dor, dor. Lembrei duns versos do Ferreira Gullar, o Beto gostava do Ferreira Gullar. Uns versos assim:
Será maior a tua dor que a daquele gato que viste a espinha quebrada a pau arrastando-se a berrar pela sarjeta sem ao menos poder morrer?
Pérsio sorriu de volta.
- Pois lembrei de outros. Do Ferreira Gullar, também. Há Ferreira Gullar para todas as ocasiões, eu sempre gostei. Presta atenção neste. - E recitou, devagar:
Amigos morrem, as ruas morrem, as casas morrem. Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.
- Versos, versos, versos. Acho que somos a última geração que sabe versos.
- E por que não, versos? Versos, livros, filmes, músicas, quadros. Qualquer coisa, desde que seja bonita. É bom poder tocar um instrumento, é bom cantar, Quando eu lavava pratos em Paris pedia sempre para um amigo, o J, lembra do J do cartão-postal? O J era o João, que ficou. até hoje. O João foi a única pessoa que. Eu pedia para ele me escrever as letras de Roberto Carlos, prendia o papel na prateleira em frente e ficava cantando o dia inteiro. Roberto, Erasmo, Leno e Lilian, Ronnie Von, Mar- tinha, ele sabia toda a Jovem Guarda de cor. “Ternura”, lembra de “Ternura”? Era a que eu mais gostava. - E cantou, imitando a voz de Vanderléia: - Uma fez você falou...
Santiago riu:
- Eu sei, mas dá. Às vezes dá uma distância. Eu penso coisas banais, eu sinto coisas banais. Mas tão nítidas. Quando estou dando aula, quando digo a eles para copiarem ou fazerem qualquer coisa em silêncio, fico olhando aquela porção de cabeças baixas e pensando que tem um abismo entre a gente. Um abismo de tempo, de história. Que as coisas andaram muito rápidas. Que eles não têm tempo. Que tudo acabou. E eu sinto pena, então. Como os velhos, os bem velhos, devem ter pena dos moços. Que a gente tem a cabeça cheia de versos e filmes e livros e histórias e memórias que para eles já não têm nada a ver. Peças de museu, nossas emoções. Todas as emoções.
- Pior para eles.
- Ou para nós, que estamos ficando velhos?
Pérsio fez uma mudança rápida:
- Velhos? Imagina, eu não. Por favor, me exclua desse seu grilo. Estou na flor da idade. Na força da juventude. Mal comecei, mal comecei a me desembaraçar de toda a culpa. Quero mais, quero o que ainda não veio.
- Mas tantas memórias. A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que você vai juntando por dentro. De repente o presente, qualquer coisa presente. Uma rua, por exemplo. Há pouco, quando você passou perto de Pinheiros eu olhei e pensei: eu já morei ali com o Beto. E a rua não é mais a mesma, demoliram o edifício. As ruas vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você. Chega um tempo, eu acho, que você vai olhar em volta sem conseguir reconhecer nada.
- As ruas morrem - repetiu Pérsio. - As casas morrem.
- Eu sei, eu sei. Mas você não sente medo?
- Sinto, sinto. Claro que sinto. Tenho milhões de medos. Alguns até mais graves. Medo de ficar só, medo de não encontrar, medo de AIDS. Medo de que tudo esteja no fim, de que não exista mais tempo para nada. E da grande peste. Mas hoje não, agora não. Agora só tenho vontade de galinhar um pouco. Portanto nós vamos estacionar este batmóvel, se os orixás ajudarem. Depois vamos descer e tomar uns bons drinques ali no Deer’s, conhece o Deer’s?
Santiago disse que não, que não conhecia e que. Mas Pérsio tinha acabado de estacionar, empurrando um pouco o carro da frente, e descia abrindo a porta para que ele descesse. A chuva fria bateu forte na cara. Pérsio tirou o casaco, colocou-o sobre a cabeça dos dois, como uma capa de chuva. Enfiou o braço no dele, e correram então protegidos pelo meio da chuva até a porta iluminada com o guarda vestido de amarelo. Penetraram de repente numa penumbra bordô borbulhante, cheia de gente. A moça da caixa estendeu dois cartões. Pérsio tirou o casaco da cabeça dos dois e começou a puxá-lo pela manga em direção ao bar, metendo-se pelo meio das pessoas sem pedir licença.
- Vou tomar vinho - disse. - É bom não misturar. O que você quer?
Santiago não conseguiu ouvir direito com o barulho. Música muito alta, e vozes, e corpos, e acima de tudo uma espécie de excitação coletiva. Como um ruído atordoando, estonteando. Pérsio repetiu aos gritos:
- Vinho, pede vinho também.
Deixou que ele apanhasse os dois copos e continuasse andando por entre as paredes forradas de veludo - interior de uma fruta, ameixa madura demais - até encontrarem uma mesa vazia no canto, ao lado da coluna coberta de pequenos espelhos.
- São todos muito nervosos, muito tensos. Não conseguem ficar parados um segundo. God!, que galinhagem.
- Bateu na perna de Santiago. - Não esqueça, hein? Qualquer modelo mais forte, é só fixar o cara na nuca, de preferência na nuca. Ou então entre os olhos, bem no terceiro olho, mas aí é muita bandeira, e se ele se permitiu chegar a esse ponto também não precisa mais feitiço algum.
E repita: Veni de sancta sede, Adonai. Dá o maior resultado, cara. Uma vez deu certo comigo mesmo, aqui onde me vês, neste mesmo lugar. Eu tinha ficado a noite inteira sentado no bar, meio de bode, com um cara do lado. Um cara fantástico, algo assim entre o David de Michelangelo e James Bond em início de carreira, mas não me dava a mínima. Eu puxei o banquinho para trás dele um pouco e volta e meia olhava a nuca do moção. Era um moção do tamanho daquela porta, coxas arqueológicas, e repetia, veni, veni, veni. Lá pelas quatro da matina, quando o bar estava quase vazio e eu inteiramente de porre, ele olhou para mim e perguntou você quer dormir comigo? Eu disse não, obrigado. Só estou testando uma arma secreta.
Santiago bebeu um gole de vinho. Pérsio olhou em volta:
- Então, ninguém te agrada?
- Não - Santiago disse.
- Vamos dar notas, tipo Márcia de Windsor, que Deus a tenha. Aquele ali, de blusão de couro, não te piace? É muito dangerizante. Vestido assim, dou nota oito. Com direito a segunda época. God!, que rabo. E o parrudinho de jeans? Em geral os baixinhos parrudinhos são uma grande revelação na hora do let’s dance. Eu dou sete, queridos telespectadoreS. Nossa, como estou generoso hoje. Deve ser carência generalizada. Mas olhando bem, a média geral não passa de cinco. Com muito boa vontade.
- Parecem todos iguais.
- E são. Tipo andróides, em série. Vestem as mesmas roupas, usam o mesmo cabelo, dizem as mesmas coisas, vêem os mesmos filmes, ouvem as mesmas músicas. Não existe um tal cultura gay? E se acham todos muito originais, muito exclusivos. Odeio guetos.
- Odeio a palavra gay.
- Mas ela existe, rapaz. E não é só uma palavra. É mais grave, um comportamento, um feeling. A sacralização da bobagem. E são todos exatamente assim. Felizes, descontraídos, sem problemas. Leves, levíssimos. Soltos, sem culpas nem traumas. Todos muito bem vestidinhos com os modelinhos que trouxeram de Nova York, todos adoram Nova York. Todos muito bem-amados. Musculosinhos, liberadinhos, burrinhos. Umas gracinhas. - Olho para Santiago. - Você não vai ficar deprimido agora vai?
Eu estou deprimido, Santiago quis dizer. Mas preferiu permanecer em silêncio, bebendo devagar o vinho. Começava a ficar tonto, E poderia rir, tão fácil, só não tinha vontade. Um garçom colocou um pratinho cheio de pipocas ao lado. Mordiscou algumas, entediado.
- Não tenho nada a ver com isso.
- Sei, sei. Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui. Mas finja que tem. Não olhe para eles como se quisesse assassiná-los. No fundo é tudo a mesma coisa. E tanto faz. Vamos, sorria.
Pérsio segurou o queixo dele entre o indicador e o polegar, como se faz com os bebês, obrigando-o a voltar- se. Santiago foi se virando lento, sem vontade, a pressão forte no queixo, até olhá-lo bem dentro dos olhos. Uns olhos claros brilhantes, inquietos, irônicos, o vinco de lado, no canto da boca. Na coluna de espelhos quebrados viu refletidos os rostos dos dois. Vários rostos espatifados, divididos em ângulos, em pedaços. Um rapaz de cabelos curtos eriçados, segurando o queixo de um outro mais moreno, de óculos, sobrancelhas densas, cacos também. Tirou os óculos, colocou-os no bolso. E sorriu à toa. Pérsio acariciou de leve seu queixo, rascando a barba forte.
- Isso, assim, bom. Bom menino. Não precisa esgazear os olhos, apavorado como se visse abantesmas. Aqui está tudo em casa, não tem aquelas mammas repressoras. Nem garotas monstras vaiando em coro. Esse trauma é pessoal, mas todo homossexual sul-americano tem no subconsciente um grupo de garotas monstras vaiando enfurecidas, Está tudo bem, tudo zen. - Soltou os dedos, desviou os olhos, acendeu um cigarro. - Só quero que você se sinta bem, meu bem.
Como um vazio no queixo, de repente. O calor que já não estava ali.
- Mas eu estou bem. Não se preocupe.
- Bem mesmo?
- Ótimo. Maravilhoso. Opíparo.
- Não precisa ser agressivo. Deixe as doenças mais graves para mim. E se segure por aí, entre a moçada. Vou até o banheiro pegar mais vinho para nós, dar uma olhada rápida no açougue. - Parou ao lado da coluna, piscou. - Olha, se você quiser namorar alguém não faça cerimônia. E não esqueça do encantamento.
Um desamparo súbito desabando. Aquela poeira fina chovendo dos telhados cheios de cupins. Um automóvel em alta velocidade na hora da descida brusca, vácuo no estômago. Pérsio mergulhou na penumbra bordô fervilhante. Marina cantava quem é esse rapaz que quando chega?, a voz rouca fazia as pessoas relaxarem, por um segundo abandonando as poses. Um copo longo, acariciou com os dedos um copo esguio, corpo entre borbulhas. O líquido da cor das paredes, pouco mais escuro, tão espesso que poderia tocá-lo. Cruzou os braços, jogou a cabeça para trás olhando os outros. Mas quase não conseguia ver ninguém assim sem óculos. O copo de vinho, a coluna de espelhos, depois a grande massa móvel, colorida, cabeças destacadas, agitadas, um único corpo de muitas cabeças nervosas. A Quimera, lembrou, o monstro grego. E repetiu sem pausa, mexendo nas pipocas: quimeras quimeras quimeras. Era Belerofonte? Ou Teseu, ou Perseu. Perseu, Pérsio. Desejou que ele estivesse logo de volta, para dizer coisas sem sentido, para se mexer, para ferir e ferir-se, para sorrir de lado, esfregar as mãos, fazendo estalar as juntas dos dedos, uma saudade prévia, para ficar perto e fazê-lo rir de susto, de prazer, de. Apertando um pouco os olhos, no meio da massa de cabeças irrequietas viu destacar-se uma vagamente conhecida, cada vez mais próxima. Só quando chegou na beira da mesa é que Santiago conseguiu reconhecê-lo. Era Carlinhos.
- Desculpe, não nos encontramos há pouco?
- Não lembro - Santiago mentiu.
- Você não estava na pizzaria?
Viu Pérsio aproximar-se por trás, de repente. Quis avisá-lo, mas era muito tarde, Carlinhos já o tinha visto.
- Oi de novo - disse Carlinhos. - Eu estava justamente perguntando por você.
Pérsio colocou mais dois copos de vinho sobre a mesa. Sentou-se ao lado de Santiago e passou o braço sobre os ombros dele, no encosto da cadeira. Apertou-o, suave.
- Pois aqui me tens, infante. Pedi e ser-vos-á dado, não falou o Senhor?
- Não quero interromper nada. - Carlinhos estendeu a mão para os copos. - Posso dar um gole?
- Esteja a gosto, a casa é sua. - Pérsio estendeu o maço de cigarros. - Não quer aproveitar o ensejo e fumar um, também?
- Obrigado. - Carlinhos pegou um e ficou esperando, o cigarro no ar, que alguém acendesse. Mas Pérsio brincava com o isqueiro olhando para ele como se estivesse distraído. O rapaz cutucou alguém que passava. - Fogo - pediu. E de novo, malicioso: - Como eu disse, não quero interromper mesmo nada. Desculpa eu parecer indiscreto, longe de mim, mas vocês são caso?
Pérsio batia o isqueiro na mesa, ritmadamente. Cinco vezes, Santiago contou, bem destacadas.
- O que é que você acha?
- Ah, não sei. Olhando assim, bem. Difícil dizer. Sei lá, às vezes parece, às vezes não. Tenho amigos que... Mas de cara dá pra sentir que vocês têm assim uma, como dizer... Uma ligação muito forte. - Olhou para Santiago, que já tinha bebido quase metade do vinho. - Aliás, meu bem, me dá licença de dizer. De muito bom gosto os dois, umas gracinhas, uns gatinhos. Sabia que vocês são lindos? - Bebeu outro gole de vinho. E debruçou-se na mesa. - Ah, deixa de onda, qual é? Conta logo, vai. Vocês são mesmo caso?
- Somos - disse Pérsio. Apertou mais o ombro de Santiago. - O nome dele é Beto. Vivemos juntos há quase dez anos.
- Aff Maria, dez anos? Que loucura, gente.
- Eu disse DEZ anos. E é bom você ir se mandando porque além de detestar veado, ele morre de ciúmes. Por qualquer coisinha, fica completamente louco. Sai virando mesa, quebra tudo e parte a cara de quem pinta pela frente.
Carlinhos empalideceu, pediu desculpas, licença e sumiu. Pérsio bateu na mesa.
- Não disse? Veado é foda. No restaurante chegou cheio de salamaleques, porque com licença, porque não sei o quê? No gueto perdeu logo o respeito, já veio invadindo, pedindo bebida, pedindo cigarro, querendo saber se é caso. Pelo amor de Deus, caso, mais um pouco e ia falar em entendido. Que nojo. Só porque é veado também acha que está tudo em casa. Se eu não chegasse a tempo provavelmente ia te passar uma cantada. Viu só do que te livrei, garoto?
Santiago afastou com força o braço dele das costas da cadeira:
- Por que foi que você disse aquilo?
- Aquilo o quê? Que a gente era caso? God!, que palavra asquerosa. Sei lá, pra ele desgrudar, sair de cima. Você ficou chateado?
- Não é disso que estou falando.
- Você está falando do quê, então? Por que eu disse o quê, rapaz?
- Que o meu nome era Beto. Você disse que o meu nome era Beto.
Pérsio parecia surpreso.
- Beto, eu disse Beto? Que você se chama Beto?
Santiago batia com a palma da mão no tampo de fórmica da mesa:
- Disse, você disse: O nome dele é Beto. Vivemos juntos há quase dez anos.
Pérsio arregalou os olhos:
- Mas eu não disse isso.
- Disse, você disse. Quer chamar o garoto aqui para confirmar? Você disse Beto, o nome dele é Beto. - Colocou a mão no ombro dele. Mas não chegou a tocá-lo. A mão ficou pairando trêmula no ar, pouco acima da blusa vermelha. - Olha, cara, de repente você está brincando com coisas muito sérias para mim. Você não tem esse direito. Primeiro foi o cu, se eu dava o cu para ele. Quer saber, quer mesmo saber? Pois eu dava, sim. Ele dava também. Sem culpa, com prazer. Sem doença. A gente se amava, será que você é capaz de entender isso? Será que você consegue esquecer por um segundo a sua monumental frustração para entender que outras pessoas podem ter tido relações mais dignas que as suas? Depois foi no carro, aquela história de alguém perguntar que livro eu estava lendo. E agora você acabou de me chamar pelo nome dele. Você não pode fazer isso. Uma pessoa não é só um amontoado de frasezinhas supostamente brilhantes. Você não sabe o esforço enorme que estou fazendo para.
- A mão no ombro baixou, apertou forte. Pérsio olhava para ele como se não compreendesse sequer a língua que falava. A voz de Santiago era apertada e rouca. - Ah, você e seus truques. Você e suas palavras impensadas. Você e suas brincadeiras espirituosas. Você e seus traumas, seus ódios, seus nojos. Eu não tenho nada a ver com isso. Estou cansado dos seus números, da sua inconseqüência, da sua neurose, da sua. - Levantou-se e empurrou a cadeira. - Eu vou embora, eu já devia ter ido embora há muito tempo. Não tenho mais paciência nem cabeça para esse tipo de coisa miúda. Quer saber do que mais? Boa noite, meu amigo.
Pérsio ficou sentado com o copo de vinho enquanto Santiago colocava os óculos, apertava sua mão e desaparecia no meio dos outros. Mas eu não, pensou. E bebeu outro gole. Tão rápido que o vinho derramou na mesa. Passou o dedo, puxou um fio longo, vermelho, para baixo, depois lambeu. A música parecia bater nas paredes forradas de veludo, câmara de eco, para depois voltar mais alta, mais barulhenta, cheia de metais, nosso louco amor, repercutindo dentro da cabeça. Apertou o copo com as duas mãos. Escuta, eu não pretendi, eu gosto de você. Em volta olhavam disfarçado, riam baixinho. Foi quando terminava de acender mais um cigarro que sem pensar apanhou o casaco, pegou os dois cartões, levantou-se, correu para a porta. Alguém tentou segurá-lo pelo braço, há quanto tempo, nossa você por aqui, precisamos. Libertou- se brusco, quase num soco, afastando faces e corpos com os cotovelos. Jogou os cartões na caixa, pagou sem esperar o troco e saiu para a chuva.
Surpreendeu-o no momento em que abria a porta do carro. A roupa branca parecia brilhar no meio da noite.
- Santiago - chamou.
- Não me chame assim. Não é esse o meu nome.
Segurou-o pelos ombros, forçando-o a encará-lo.
- Olha, eu não quis. Eu juro que. Eu não me lembro.
- Beto - Santiago repetiu. - Beto, Beto, Beto. Você disse que eu me chamava Beto. Você não tem o direito.
Pérsio sacudiu-o, muito leve. Depois com mais força, olhando-o nos olhos. Se conseguisse enxergar os olhos dele, atrás das lentes respingadas de chuva.
- Pára com isso. Já ouviu falar em, em... - Hesitou, e disse: - Em lapso, lapso freudiano, que idiota, eu. Deve ter sido isso. Uma coisa assim. Eu não quis dizer. Conscientemente, eu não quis dizer, me entende. Acredite, eu gosto de você. Não vamos estragar a noite, não vamos estragar o nosso... Conhecimento, a nossa amizade. Não vamos, por favor, não vamos. Não quero que você pense. A gente bebeu demais, só isso. Por favor, não quero que você pense.
Santiago tinha uma das mãos na porta aberta do carro, a outra caída ao longo do corpo. Olhava para ele sem dizer nada, a chuva escorrendo pelos cabelos, ombros tensos. Atrás dele, Pérsio via agora, atrás e além dele a grande avenida cheia de carros em movimento, anúncios luminosos, a cidade encharcada, alagada, nunca mais pararia de chover. Charco e brilho, pensou sem querer. À sua frente, muito próximo, o rosto erguido de Santiago com um orgulho infantil, a chuva molhava os óculos por trás dos quais o olhar brilhava sobre os maxilares cerrados, enrijecidos com raiva, desprezo, mágoa, confusão e todas essas coisas assim vermelhas, coisas que não havia antes, que não suportava agora porque não era assim, porque não devia ser desse jeito farpado, porque não era preciso. Porque iria embora quase certamente no próximo minuto, e nunca mais se veriam, porque estava só, embaixo da chuva interminável, o Sul alagado, a segurá-lo pelos ombros como se pudesse prendê-lo, e se ele fosse embora naquele momento, daquela forma dura, se ele fizesse um movimento para entrar no carro, dando a partida, parado na calçada, não queria o drama, por favor, poupe-me as cenas, tornaria a entrar no bar, tinha certeza, para encher a cara copo a copo, determinado, seria insistente, desagradável, pegajoso, cantaria qualquer um, treparia até a manhã seguinte, talvez dormisse no meio, de porre, de tédio, não importava, para despertar cheio de náusea e cansaço e ressaca, o ruído incessante da chuva, uma requintada tortura e dor no meio da tarde de outro domingo sujo. Quase gritou, apavorado:
- Alguma coisa em. Alguma coisa em mim que eu não entendo. Eu devo ter inveja, eu não te disse que eu nunca consegui? Eu não entendo de amor, de algum jeito complicado. Dentro de mim, vê se me entende. Isso nunca aconteceu antes, eu não queria ferir você. Te ferir, eu não podia ferir. Seria a última coisa que. Eu não devia, eu não pensei.
Santiago soltou os ombros, baixou a cabeça. A chuva escorreu pelo rosto:
- Está bem, está tudo bem. Mas eu vou embora.
- Você não vai embora.
- Eu estou cansado.
- Você não pode ir embora.
- Eu estou triste.
As unhas roídas, Pérsio tocou-o no rosto. Ele virou brusco a cabeça. Pérsio avançou mais os dedos, puxando-o para si até que estivessem tão próximos que o ar entre a boca dos dois formava uma pequena esfera de fumaça, cheirando a conhaque, a vinho, a cigarro, a medo.
- Não, você não vai embora. Pelo amor de Deus, você quer me ver fazer uma cena passional em plena frente do Deer’s? Sabia que esta é conhecida como a Esquina do Ridículo? Daqui a pouco começa a juntar gente. O Carlinhos viu tudo. Você acha que a viborazinha não ficou cuidando? E a minha reputação pro-fis-si-o-nal, onde fica? God!, deve ter ido correndo chamar o coro inteiro do tal Édipo.
- Antígona - Santiago corrigiu.
- Tanto faz, que importa? Édipo, Antígona, Ifigênia, Hipólito, Prometeu, Electra, Agamêmnon, Clitemnestra, Orestes. Toda a tragédia grega. Não transforme um lapso freudiano primário numa super-tragédia urbano-contemporânea, menino. Eu gosto de você. Eu estou meio bêbado. Eu estou ficando completamente torto. Me dá uma chance. - Abraçou-o. Afundou o rosto na gola molhada do paletó de veludo branco. E parecia verdadeiro, pequenino e desamparado, repetindo: - Eu gosto de você, eu gosto tanto de você, garoto. Me dá outra chance. Me deixa guiar a nossa noite.
Santiago podia sentir o rosto dele ao lado do seu, pouco abaixo, apoiado no peito. Ergueu devagar o casaco que Pérsio trazia nas costas, colocou-o sobre a cabeça molhada dos dois abafando os ruídos. Como embaixo de uma barraca, acampados num lugar deserto longe de tudo, talvez montanha, perto de uma vertente de água, e então começasse a cair aquela chuva louca lá fora. Dentro de uma redoma de cristal, protegidos da rua, da cidade, dos Outros. Dos artifícios, jogos, tortuosidades, pensou, a respiração morna junto ao pescoço. Abraçou-o também, que vinha de muito longe, que mal se conheciam, um bicho arisco, abraçou-o com muita força, como se quisesse entrar dentro dele para poder compreendê-lo mais, e melhor, inteiramente sozinhos no meio da chuva, assim mais poderosos, na esquina do ridículo, por dentro da noite. Foi apertando aos poucos, o corpo inteiro contra o corpo do outro. Pérsio beijou-o leve, lábios molhados, com cuidado e vagar, onde a barba terminava e começava a pele lisa – La peau douce, lembrou. Ao longe a porta do bar abriu e tornou a fechar, deixando fugir para a calçada um rugido de guitarra elétrica que o fez estremecer com frio e medo e saudade e uma bola, um novelo escuro parecido com solidão e nunca mais. O casaco escorregou, caiu na calçada, ruído fofo. Afastou-se para olhá-lo outra vez nos olhos, que não se esgotavam. Eram olhos de criança muito claros e limpos, um pouco vermelhos, assustados, sem maldade. Sorriram um para o outro. E tudo estava certo outra vez, e tudo tinha um gosto bom.
- Está bem - disse. - Eu não vou embora. Você pode comandar a nossa noite.
Entregou-lhe a chave do carro. Entrou, deslizando pelo banco, puxando-o para dentro, pela mão de unhas roídas. Pérsio apanhou o casaco molhado. E manteve a mão dele apertada, até soltá-la lentamente para dar a partida.
- Você está muito molhado. Vai pegar uma gripe. Precisamos de mais um conhaque. Você quer ir até a Terra de Marlboro?
- Onde?
Ele riu. Canto de boca, fio suspenso, cordel puxado: o vinco.
- Terra de Marlboro, onde os homens se encontram. Ou se perdem às vezes, dá no mesmo.
Santiago enxugava os óculos na ponta da camisa.
- Você quer?
- Para dizer a verdade, não queria ir a lugar nenhum mais. Quero ir embora.
- Mas nós podemos ir.
- Não é isso. Não para casa. Nem para Paris, Londres, Roma, Nova York. Nem para Pasárgada, Xanadu ou Eldorado. Para mais longe. Jacarta, Togo, Bali, Surabaya, Zaire, Java, o mar de Java. Qualquer lugar onde a gente pudesse viver uma coisa mais inteira. Não nesta cidade, não neste país. - Cantarolou: - Surabaya, Johnny, não me deixe assim, Surabaya, Johnny, estou tão infeliz. - Repetiu, como uma música: - Jacarta, Togo, Bali, Surabaya, Zaire, Java.
Mas deslizavam outra vez pelas mesmas ruas molhadas no caminho de volta, entre edifícios com algumas janelas iluminadas, recortes de cartolina, velhos filmes na televisão, Jane Wyman, Cornel Wilde, pessoas entrando, saindo de lugares barulhentos, semáforos colorindo as poças onde navegavam. Santiago quis dizer outra vez que preferia ir embora. Mas as manhãs paradas, temeu, como uma toca, seu lugar conhecido onde tomaria um chá bem quente, leite morno com mel e canela antes de afundar entre lençóis, talvez dormir, se conseguisse deter o galope na cabeça cruzada de memórias e presságios. Não pelas palavras, não pelo encontro, não pela noite. Talvez apenas para certificar-se de que em algum ponto da cidade existia um espaço onde não seria forçado a movimentar-se, onde não houvesse nenhuma conversa, nenhuma solicitação de fora, nenhuma possibilidade de prazer ou dor, nenhuma expectativa. Somente um silêncio de homem sozinho naquelas manhãs sem praças nem maçãs, olhando a luz do dia do lado de fora da janela.
- Gostaria que fosse de manhã - disse.
Pérsio não respondeu. Fumava quieto atravessando sinais fechados, desertos, virando esquinas. Alguma coisa partida agora. A xícara, uma xícara antiga de porcelana chinesa que você ganhou de alguém especial, de um modo especial, num dia especial, ou comprou em certa tarde de extravagâncias, recriminando-se mais tarde ao fazer contas debruçado sobre o talão de cheques, ao mesmo tempo em que acompanha com fascínio, talvez algum horror e infinito cuidado, os desenhos delicados, aquele ideograma indecifrável, quem sabe Pi, como no I-Ching que jogara à tarde, Santiago foi desenhando no vidro embaçado água sobre terra, repetiu, seis na segunda linha, o-movimento-para-com-união-e-afeto-procede-do-intenor-da-mente. De repente, num canto de sala, sobre um objeto, você esbarraria sem querer, e cacos numa explosão aguda, os cacos da xícara que nem chegou a durar um dia, depois você tentaria colar paciente, embora sabendo que sempre restarão pequenos vincos, gretas, quase invisíveis, mas indisfarçáveis na sua trama, as linhas finas entre os cacos colados um por um, para sempre. Uma almofada de seda clara onde num movimento bruto você derramaria vinho tinto. A mancha, o caco, o silêncio soando falso.
Pérsio ligou o rádio, volume muito alto. Mas era um som alucinado de metais, manchas, cacos no espaço entre os dois. Das janelas abertas, nos carros próximos, quando paravam nos sinais, brotavam músicas semelhantes. Donna Summer, pensou, Terra de Marlboro. E dentro dos carros próximos havia quase sempre um casal sem crianças, ou duas moças, ou dois rapazes, ou mais raramente três ou quatro pessoas que fumavam, se olhavam, diziam coisas. Quando o carro novamente avançou pela Faria Lima e ele pôde ver o relógio brilhando no escuro, no alto, duas horas e quarenta e três minutos, onze graus, dentro do carro ao lado, duas horas e quarenta e quatro minutos, onze graus, um homem de cabelos grisalhos, sem música, sozinho, olhou para ele como se não o visse. Que ficaria assim um dia, dirigindo à toa, à noite, pelas ruas, cheio de memórias fatigadas sem presságio algum, ausências ocas, lembranças áridas, porque não faria nada com elas a não ser senti-las ácido, não seria necessário o rádio ligado nem direção alguma, não iria para lugar nenhum, negou, negou de novo, nunca haveria ninguém ao seu lado. Falaria consigo mesmo em voz baixa coisas sem importância, talvez cantasse repetindo nomes de outros tempos, de pessoas, cidades, livros, cruzaria de ponta a ponta a cidade que não teria fim, atravessando túneis, viadutos, por baixo, por cima da terra, que tinha medo da morte cega em seu encalço e das perdas e das marcas deixadas pelas perdas e mais além, das perdas tão completas que nem sequer deixavam marcas e do que não conseguiria lembrar, sentia pena dos cacos entre as mãos, tão pulverizados que mesmo que os apertasse com força não conseguiria arrancar nem uma gota de sangue.
- Você está cheio de memórias - Pérsio disse.
As gotas de chuva começavam a apagar o ideograma no vidro.
- Eu sei. Às vezes acho que não vou esquecer. Mas está passando. Vai passar, vai passar. - Deslizou o dedo pelo desenho quase apagado. - Eu é que devia pedir desculpas a você. Não tinha o direito de dizer aquelas coisas todas.
Pérsio sacudiu os ombros.
- Não tem importância. Já passou.
Atravessaram a avenida Paulista, alcançaram a descida ampla em direção às luzes da cidade, os muros altos do cemitério, as sombras emaranhadas das árvores - ciprestes, abetos, abetos, e as urzes, os cardos -, o grande anjo de braço erguido, mármore frio segurando a espada reluzente de chuva, a igreja recortada contra o céu, nenhuma estrela, uma vontade de benzer-se pedindo proteção, afasta de mim, Deus, mas Deus tinha morrido em Auschwitz, talvez no Vietnã, fazia tempo. Enveredaram pelas ruas estreitas repletas de gente parada pelas esquinas, sob as marquises, nos bares, buracos iluminados. Pérsio estacionou com dificuldade, depois de voltas lentas pelos quarteirões. Na calçada, lado a lado em silêncio, procuraram as marquises junto aos edifícios para abrigar-se. Um na frente do outro, encolhidos, até que Pérsio alcançou-o, tirando o casaco para protegê-lo novamente. Mas já não se olhavam, mesmo quando à beira da porta pegou-o pelo braço empurrando-o por entre as pessoas, para mergulharem na penumbra de uma onda riscada de cores, pesada de fumaça, vozes, perfumes e música muito alta, ansiosa, elétrica como a do carro. Furar lentamente a barreira dos corpos de muitos homens, uma cerimônia selvagem, a massa de pessoas dançando sem parar na pista do centro, imaginou um adolescente branco e nu, amarrado num altar no centro da pista, o anjo empunhava a espada, prestes a ser sacrificado. Cálices de sangue, tambores, atabaques, percussões.
No balcão, Pérsio estendeu os tickets por cima da cabeça de alguém e pediu dois conhaques. Apresentou-o a um rapaz grande, de camiseta muito justa realçando os músculos esticados sob a pele tensa, mas não conseguiu ouvir o nome nem outra coisa qualquer sendo dita, apenas sorriu, apertou a mão enorme. Suspensa do teto, sobre a pista uma esfera de pedaços de vidro girava jorrando fachos de luz em todas as direções. Às vezes soava um apito agudo, sirene, buzina, então a luz começava a tremer azulada e os movimentos das pessoas tremiam também, partidos como se no ato de voltar a cabeça para o lado não houvesse transição alguma: o rosto subitamente de perfil, curvado sobre o ombro, depois outra vez de frente, ou o contrário. Como o rapaz grande curvando a cabeça para ele, depois de costas, interposto entre Pérsio e ele.
A roupa branca cintilava, feita de prata e luz.
Fechou os olhos. Por um momento um ninho de serpentes coloridas e riscos de neon agitou-se no fundo das pálpebras, entrelaçadas. Santiago apanhou o copo que Pérsio estendia sobre o ombro do outro e de repente, quando um dos fachos de luz incidiu direto sobre as garrafas dispostas na prateleira de vidro atrás do balcão, entre o ombro largo do outro e os reflexos de luz, percebeu que ele o olhava outra vez direto nos olhos. Que não se esgotavam, os olhos inesgotáveis. Mas não sorria. Não sorria nem fazia movimento algum com o rosto ou o corpo além de erguer o copo quase acima da própria cabeça, para depois estendê-lo entre o ombro largo do outro e o reflexo de luz batendo no vidro, tocando de leve no copo dele sem dizer nada, num brinde sem tilintar nem palavras, ou dizendo alguma coisa que se perdia no meio das vozes, da luz que tornava a apagar, palavras partidas como os movimentos, cacos, lascas.
Disse que ia ao banheiro, e voltou-se para penetrar entre os homens. Mas deteve-se na porta aberta, o homem de pernas abertas, braços cruzados, contra os azulejos do fundo, a mão pousada na braguilha dos jeans, entre o cheiro de mijo vindo de dentro, desodorante sanitário e alguém que o empurrava, pedindo passagem. Voltou até o bar, durante horas voltou até o bar desorientado, procurando o rosto conhecido do outro sem encontrá-lo. Viu uma blusa vermelha ao longe, dobrando a curva das escadas, em direção ao andar de cima, feito balcões suspensos de onde se podia acompanhar a dança dos outros, o sacrifício, anjo, espada, ritual, embaixo, no meio da pista, estava tonto, sob a esfera de vidro que girava e girava e girava. Pensou em chamá-lo, mas não ouviria. Não queria ouvir mais, e quis ir embora, mas estava perdido, as chaves do carro, a noite suja. lima das n1ns segurando bem alto o copo cheio foi subindo pelos degraus olhando as caras desconhecidas uma por uma, uns cabelos crespos, um bigode negro, uns olhos escancarados. Pérsio não estava lá. Estou bêbado, disse em voz baixa. Descobriu a mesa no canto, pediu licença ao homem solitário ao lado e sentou-se debruçado no balcão, olhando para baixo. Guardou os óculos no bolso para que se emaranhassem melhor os corpos, as formas, as cores, os gestos. Com os olhos fechados, depois, as serpentes coloridas voltavam a se revolver inquietas.
Não conseguiria lembrar ao certo. Talvez fosse verão, porque usavam roupas leves, calções largos, camisetas. Estava entardecendo, não fazia frio. Por alguma razão, tinham ficado os dois para trás, ele e aquele outro garoto esquisito, silencioso, esguio como um daqueles egípcios das gravuras no livro de história. Ele tinha uma bola de futebol embaixo de um dos braços. Caminhavam sobre um campo inclinado, tão inclinado que antes do topo, onde estavam, não conseguiriam ver o que viria depois. Havia outros, que já tinham ultrapassado aquele ponto. Ele queria chegar até aquele ponto onde estavam os outros, embora já o conhecesse, a tudo o que existia do outro lado, e só iria porque os outros tinham ido, como um dever que se cumpre. Mas havia também aquele garoto caminhando lento pouco mais atrás, descobrindo devagar entre os talos de grama coisas que ele não via. Foi ficando quase junto com ele, para trás também. Se desse mais alguns passos alcançaria o topo, então olhou para trás e o garoto tinha começado a rodar de braços abertos para depois cair estendido de costas no chão. Ao invés de avançar, começou a voltar em direção a ele, e percebeu que mastigava um talo de grama, e perguntou então qualquer coisa como se estava cansado ou tonto ou algo assim. Mas o outro disse que não, que só estava olhando o céu, que quando rodava daquele jeito o céu rodava junto, e quando finalmente caía de costas sobre a grama, o céu e a terra de repente se misturavam e na cabeça, disse, parecia que uma coisa de dentro ia para longe, para cima, para fora. Perguntou se ele não queria experimentar também, que era divertido. Ele achou estranho, no começo ele achou bastante estranho, o outro era um garoto estranho que fazia coisas estranhas, mas não havia ninguém em volta vendo, então jogou a bola na grama e rodou ele também de braços abertos cada vez mais rápido tanto e tanto que não conseguiu perceber o momento exato em que deixava de estar em pé e começava a tombar. O céu e a terra se misturavam enquanto ele já não era completamente ele mesmo, mas uma coisa que girava junto misturada também, deitado ali ao lado do outro na terra, enquanto a cabeça parecia flutuar um pouco acima do corpo. A tontura passava aos poucos feito um começo de porre, mas isso só saberia mais tarde, muitas vezes, quando você respira fundo ou sacode a cabeça, por enquanto não, porque era pouco mais que uma criança, o outro também, e não sabiam. Por enquanto sabia só que aquilo era estranho, estranho estar deitado na grama, o queixo apoiado na bola de futebol, descobrindo vidas miúdas entre os talos, mascava um, gosto adocicado entre os dentes. O rosto do outro muito perto com seus olhos claros que não eram egípcios, eram olhos de gato fixos, redondos, entre o verde, amarelo, e dizia então que não era igual aos outros, os que estavam do outro lado, que um dia iria embora para outra cidade, uma cidade grande, uma cidade imensa, para outras cidades de outros países, e viveria coisas tão inteiramente diferentes de todas aquelas vividas ali que nenhum de todos aqueles seria mais capaz de compreendê-lo, nunca mais. E que quando rodava assim, tudo se misturando, era como se sentisse naquela tarde o que sentiria no tempo futuro, quando todas as pessoas que tivesse conhecido e todos os lugares por onde teria andado e todas as coisas que teria vivido se misturassem dentro dele. E perguntou se ele não queria também partir um dia.
Afundou o queixo na bola de futebol e disse talvez, não conseguiria lembrar direito, talvez primeiro que não, que nunca tinha pensado nisso, depois que sim ou que gostaria, um pouco depois, ou que guardaria isso na cabeça para pensar mais tarde, quando chegasse em casa. Então o garoto esquisito como um egípcio levantou-se de um salto para recomeçar a rodar e a rodar de novo, o rosto erguido para o céu quase transparente de fim de tarde, até cair novamente no chão. Mas desta vez desequilibrou- se um pouco antes de tombar, rolando por cima dele. Que não se desviou, apenas levantou-se e rodou também e rodou de novo e rodou bastante até cair também um pouco por cima do outro, do esquisito. Então, ou antes ou depois, não lembraria, era tanto tempo e tanta história e muita estrada, o outro garoto perguntou se duas pessoas juntas não poderiam rodar assim para sempre juntas e quando os Outros olhassem com raiva porque rodavam assim, eles os veriam de um Outro jeito, daquele lugar para onde teria ido a cabeça, um pouco de cima, de longe, de fora, porque não seriam como eles, veriam juntos, os outros não os compreenderiam nunca, porque estavam misturados com o céu e a terra, talvez não os perdoassem. E tornaram a rodar mais vezes, o sol se pondo e talvez algum vento deixavam a grama liberar um perfume forte de coisa verde viva, e rodaram outra vez caindo um por cima do outro, rindo a cada choque, porque eram leves, os corpos se tocavam sem se machucar. E de repente rolavam juntos um sobre o outro para baixo no campo inclinado, na direção oposta das pessoas que tinham passado para o outro lado e quem sabe esperavam por eles. Porque era o que se esperava das outras pessoas, que passassem também para o outro lado, aqueles mesmos que diriam, se soubessem, para não se deterem assim no meio do caminho a procurar inutilidades na grama, no céu, no vento. Então rolaram e rolaram outra vez e tornaram a rolar, às vezes subindo com esforço pelo campo inclinado, os corpos se tocando mais, para depois baixarem mais velozmente, misturados um no outro. Tinham começado a suar, sujos de terra e muito vermelhos, e riam alto às gargalhadas rolando pelo campo afora. Não lembraria agora, não lembraria aqui nem naquele dia ou outro qualquer, pudesse avançar ou voltar, e não voltaria, não saberia precisar qual deles parou primeiro para olhar bem de perto o rosto do outro. Não saberia ainda se teriam sabido que eram rostos muitos moços, rostos que apenas tinham começado a deixar de ser crianças, imprecisos, traços não definidos, e alguns pêlos por nascer, outros formando sombras nas faces, espinhas, indecisões que desapareciam mais tarde ou se confirmariam em outros traços mais duros, mais suaves, mais pesados ou leves, não sabiam o que aconteceria, nem das marcas reservadas pelo tempo enorme como um tapete estendido na sua frente. Não saberia dizer qual das bocas avançou antes de outra para que se encontrassem vencendo o espaço molhadas, se misturando. Rolaram outra vez assim calados tontos suados ofegantes sem medo algum, porque eram leves e não tinham culpa, quase crianças, até que de longe cortando o momento longo do outro lado, do lado para onde todos os outros iam sempre e para onde eles deveriam ir também, se fossem como os outros, mas não iriam nunca mais, que era muito tarde, se não tivessem se detido por ali, no campo inclinado brincando tonturas, trazida pelo vento veio uma voz chamando por seus nomes três, quatro vezes, uma navalha interposta afiada entre dois objetos colados, rasgando o inseparável.
O contato morno na perna direita tinha subido desde o joelho, avançando pela coxa até deter-se móvel, circular, em sua braguilha. O ruído da voz, o silêncio do campo, o deslizar o zíper da calça sendo abaixado e dedos penetrando feito cobras quentes, um ninho contorcido de cobras lentas, afastando os panos, os pêlos, procurando. Bebeu mais um gole de conhaque e sem sentir, num gesto mecânico, tornou a colocar os óculos para ver as pessoas dançando lá embaixo. Os dedos no ritmo da música, cada vez mais acelerados, um calor que não sabia se vinha da bebida ou da proximidade do corpo do homem a seu lado, cada vez mais perto, embora olhasse para a frente, para baixo, os dedos alcançando a cabeça redonda de seu pau duro, depois um braço passado em torno de seus ombros quase timidamente, como se tivesse medo de ser afastado, pedindo desculpas, uns olhos de cão, viu sem olhar. Santiago abriu mais as pernas, deitou o corpo para trás na cadeira, lentamente cedendo, os dedos do homem se fechavam, moviam-se ritmados, para cima, para baixo. Foi quando começava a apoiar a nuca no encosto da cadeira que seus olhos descobriram inesperados os olhos de Pérsio dançando sozinho no meio das pessoas lá embaixo, voltados para ele, um jato de luz iluminando primeiro o rosto de um, depois o rosto do outro. Pérsio ergueu o copo sorrindo para ele.
- Desculpe - disse levantando-se.
O homem limitou-se a sacudir os ombros. Não importava, havia tantos. Tornou a descer, puxando o zíper, afastando corpos. Braços abertos, Pérsio o esperava no fim da escada. Mas Santiago pegou-o pelo braço estendido e começou a puxá-lo entre as pessoas, no caminho de volta em direção à saída. Uma folhagem densa, quase intransponível, em torno de um pântano, os outros homens, os rostos, os corpos, os muitos cheiros dos outros homens que afastava brusco com a mão feito cortasse cipós, plantas daninhas, até a porta onde pagou rápido procurando ar. Depois os bares, calçadas cobertas de cores e desejos, carros parados no meio da rua, motos, algumas frases, certos olhares, convites, palavras partidas, rapazes de braços cruzados, mãos entre as coxas, encostados na parede, travestis, policiais tolerantes entre o cheiro de porra e maconha - e como uma febre, no interior da folhagem densa, uma febre coletiva enchendo o ar de tremores, ardências delírios, malárias, dentes rangentes, promessas, convites, rostos distorcidos pelas luzes artificiais, as luzes cruas do mercúrio revelavam marcas fundas, da noite. Pararam perto do carro. A chuva tinha diminuído, pouco mais que uma garoa fria.
- Mas o que deu em você, cara?
- Quero ir embora. Você quer ficar?
Pérsio sacudiu a cabeça:
- Sozinho não. Não tem graça. - Estendeu-lhe a chave que tirou do bolso. - Pensei que eu é quem ia comandar a nossa noite. Ainda é cedo. Não são sem quatro. Podemos ainda dar um pulo no Triângulo das Bermudas.
- Eu te dou uma carona.
- Não precisa, é perto. Posso ir sozinho. Assim talvez consiga alguma companhia mais bem-humorada.
Santiago sorriu, imitando a voz do outro. Rouca, arrastada, irônica:
- God! Você não quer me ver fazendo uma cena passional em plena Terra de Marlboro, quer? E a minha reputação pro-fis-si-o-nal, onde fica? - Tocou-o de leve, os cabelos molhados de suor. - Vamos logo, senão daqui a pouco chega um bando de garotas monstras. Ou o que é pior, seu amigo Carlinhos e todo o coro do Édipo.
- Antígona - Pérsio corrigiu. E entrou no carro, tentando rir. - Ok., você venceu. Zero a zero, está empatada a peleja. Dura peleja, duríssimo embate, caros ouvintes.
Olhou para a frente enquanto Santiago limpava o vidro. O casarão antigo recém-pintado. As molduras das janelas cuidadosamente coloridas de azul-marinho brilhante, ressaltadas contra o branco do fundo, as vidraças lavradas com guirlandas de flores miudinhas. Era quando via casas assim, pensou, que sentia vontade de voltar para o Passo da Guanxuma. Quis dizer qualquer coisa sobre isso, vidraças assim. Mas já tinha dito fazia tempo, as casas morrem, e Santiago parecia não ouvir nem ver nada, uma sombra escurecendo o rosto onde Pérsio descobriu pela primeira vez a nítida beleza dos traços bem desenhados. Só que, repetiu devagar para dentro, não se conserta uma pessoa como se conserta uma casa. E de repente lembrou de alguém que não lembraria se ele o lembrasse um dia, porque talvez tivesse se perdido, sem permitir, repetindo, os olhos pretos, não se diz conserta quando se trata de uma coisa bonita, a gente diz re-cons-ti-tui, aprenda, e ele tinha respondido com palavras meio vazias, superficialmente brilhantes, convidativas, então vamos re-consti-tu-ir a nossa relação?, o outro dissera eu sabia que você ia dizer isso, e ele rápido mas claro, foi por isso mesmo que você disse, das dores cinzentas de tudo o que tinha se perdido essa era exatamente a que mais doía, porque não tinha sido capaz, e dependia dele? Ah, gemeu sem ninguém ouvir, ah, amor, ai, amores, e contaria todas as faltas de nobreza, sem nenhum esforço viria à tona mais claro depois do banho, um dia, e ficariam horas a fio sentados no sol quase insuportável de Saquarema, os pés descalços de um tocando os pés descalços do outro, mas já não poderia dizer que tinha sido tanto e quis lamentar-se, quis beber mais para chorar baixinho repetindo eu não mereço eu não mereço não me deram chance alguma a culpa não foi minha sempre a mesma solidão eu devia estar acostumado eu só queria e era tão simples, muitas vezes. Esta sangrava ainda, você compreende? Ele estava meio bêbado, não daquela vez, desta. Quando estava meio bêbado assim emergia, vinha à tona, mas não estava limpo, todo melado de emoções informuláveis, saudades impossíveis, tinha vontade de pedir que ficassem com ele, que o colocassem no colo, na cama, que lhe dessem chá ou leite quente e repetissem que tudo ia ficar bem, que amanhã haveria sol, e não teria ressaca nem precisaria trabalhar e todas as dívidas estariam saldadas e receberia todas as cartas, todos os telefonemas que esperava inutilmente havai meses, havia anos, uma vida inteira esperando o que não vinha.
Teve vontade de pedir a Santiago que ficasse com ele, mas a rua girava junto com o movimento do carro, a rua era dinâmica, aquela pedra suspensa sobre o mar, eu não vou esquecer, como as casas que envelheciam e ruíam, como as pessoas que chegavam e partiam para se perderem umas das outras entre viagens inconciliáveis, linhas paralelas, o infinito não existia, coisas sem importância, o que era um casarão antigo de repente tinha se tornado uma avenida, um estacionamento, e o que tinha sido uma presença morna se perdia à toa pelas ruas da cidade, pelas estradas que levavam a outras cidades distantes, a outros países, às vezes inatingíveis, pelos telefones que não voltavam a chamar, sem nenhuma explicação, porque era assim que as coisas eram, era assim que o que chamavam de vida, essa tontura que sentia agora evoluía em direção ao nada sobre uma esteira de perdas que não aceitava, de sonhos que não aconteciam, desejos espatifados, espelhos, pedras, cacos, fios dispersos no tear de um tapete incompreensível que as mãos vazias um dia talvez não se atrevessem mais a tecer.
O coração batia tão forte que por um segundo teve medo de que Santiago ouvisse. Então pensou em ligar o rádio outra vez bem alto, bem inadequado. Ou começar a falar sem parar, exagerando carências, até convencê-lo a pelo menos tomarem um café na esquina da São João, depois o flipperama, as colunas do cinema, a banca de jornal, os cartazes gigantescos dos cinemas, depois. Acendeu um cigarro, encostou a cabeça no vidro.
- Queria que fosse de manhã - Santiago repetiu.
- Então viria uma luz cinzenta, uma horrível luz cinza-clara. Cada vez mais clara. Então as pessoas se olhariam disfarçadas, para perceberem que estavam com olheiras fundas, a pele gasta, cansada, velha. Durante alguns momentos ficaria um silêncio pesado, você tentaria dizer alguma coisa, e perceberia que a sua voz está meio rouca porque você já fumou e já bebeu e já falou demais. Na melhor das hipóteses alguém proporia mais uma carreira gentilmente, mais uma carreira, caros sobreviventes do naufrágio do sentido? - Tragou fundo, soprou a fumaça em direção ao pára-brisa. - Não diria que foi uma noite especialmente brilhante não?
- As noites não são brilhantes. As manhãs sim. Por isso eu queria.
- Mas as manhãs são péssimas. Eu nunca vejo as manhãs. Eu sinto um humor nazista de manhã. - Pérsio fez um risco no vidro. Depois outro, cortando o primeiro, com um grande X. - Talvez seja esse o problema. Uma vida sem manhãs. Estranho é que não escolhi. Não consigo precisar o momento em que escolhi. Nem isso, nem qualquer outra coisa, nem nada. Foram me arrastando. Não houve aquele momento em que você pode decidir se vai em frente, se volta atrás, se vira à esquerda ou à direita. Se houve, eu não lembro. Tenho a impressão de que a vida, as coisas foram me levando. Levando em frente, levando embora, levando aos trancos, de qualquer jeito. Sem se importarem se eu não queria mais ir. Agora olho em volta e não tenho certeza se gostaria mesmo de estar aqui. Só sei que dentro de mim tem uma coisa pronta, esperando acontecer, O problema é que essa coisa talvez dependa de uma outra pessoa para começar a acontecer.
- Toque nela com cuidado - disse Santiago. - Senão ela foge.
- A coisa ou a pessoa?
- As duas.
Santiago tinha estacionado o carro em frente ao edifício. E respirava lento, feito um iogue. Isso era só o que Pérsio podia perceber olhando para ele, a cabeça apoiada no vidro. Os ombros do outro subiam e desciam como se tivesse corrido. Quando expulsava o ar, saía junto um pequeno jato de fumaça que batia contra o vidro.
No meio do silêncio, Pérsio teve a impressão de ouvir o coração de Santiago batendo batendo batendo tão forte quanto o dele, enquanto convidava:
- Você não quer descer um pouco? Você não quer tomar uma saideira?
- Já bebi demais.
Um relâmpago clareou o céu para os lados do Martinelli. Pagu, lembrou. Muito além.
- Não beberemos, então. Um chá, talvez? Quem sabe um café, um baseado? Vou te revelar um segredo, no fundo de uma caixinha secreta tenho ainda uma poeira dum papel dangerizante. Esquentando bem, batendo com cuidado, dá umas três carreiras para cada um.
Que subiriam juntos outra vez pelo elevador, acenderiam luzes, aqueceria a pedra de ágata ou o pequeno espelho, a gilete, a nota, colocaria um disco, talvez o mesmo, ou Ravel, gostava de Ravel nessas horas, o Bolero, tornaria a dançar, a dizer coisas como quando você estende a mão e pensa que vai tocá-lo, pronto: ele já não está mais ali. Falariam de coisas como essas novamente, ou de outras, se houvesse, e haveria, porque precisava desesperadamente falar e falar sem parar, para que não começasse a doer aquele ponto por dentro, à espera de que algo - ou alguém, seria alguém? - vindo de fora o tocasse para começar a acontecer, e aconteceria brilhante, iluminando ao redor, para que não latejasse tanto, chaga, ferida aberta, escondida feito úlcera, até que o cinza-claro do dia atravessasse cortinas e embora fosse domingo já não haveria tempo para mais nada porque teria amanhecido e quando amanhece, pensou, as pessoas fazem coisas prosaicas, caseiras, uma ilusão de ordem, feito escovar dentes, cabelos, bater travesseiros, ou no reverso alucinam-se falando e falando a um ponto de exaustão em que, no dia seguinte, como num lapso etílico, as grandes descobertas, as palavras incendiadas, as fantásticas sacações não passariam de manchas foscas quase apagadas.
Que não, de um Outro jeito, que não esse. Quis abraçá-lo de novo no meio da chuva, à beira do ridículo, na esquina. Mas as mãos de Santiago permaneciam cerradas em torno do volante. Ele respirava, o coração batia forte.
- Não - disse. - Melhor eu ir.
Pérsio abriu a porta.
- Você é que sabe. - Riu, de lado. No canto da boca, o vinco, marca funda, um talho. - Então o que digo? Me liga, está bem? Ou nos vemos. Ou pinta aí. O que você prefere? Quem sabe como foi moda em Ipanema há uns dois verões, tchau, su-ces-so, hein? Ou.
- Não precisa dizer nada. - Santiago estendeu a mão, segurou na mão dele. Acariciou a parte interna do pulso com a ponta do dedo. - Eu penso devagar. Não sei dizer coisas. Estou cansado. Preciso ficar só. A gente se vê. Até.
Pérsio desceu.
- A gente se vê é perfeito.
Jogou a ponta do cigarro numa poça d’água, foi andando para o edifício. Não se voltou quando ouviu o carro dar a partida. Atravessou o cheiro de éter da portaria, porteiro adormecido, tapete vermelho. No fundo do corredor, no espelho, a cara cansada que ele desviou abrindo a porta do elevador, Uma peça, pensou, uma peça teatral inteira passada no interior de um elevador enguiçado entre dois andares. Primeiro aqueles olhares paranóicos entre as pessoas, bem demorados, uns cinco ou dez minutos só de olhares e climas de elevador subindo ou baixando, pouco importa. Depois um dique, luzes apagadas, tudo parado. Nenhum grito. O elevador parou, ele desceu. Mas haveria um problema de espaço, um elevador é pouco maior que uma escrivaninha, uma banheira, imagine um palco apenas com aquele espaço iluminado, caberiam uns quatro, cinco atores. E não poderiam se movimentar. Só palavras soltas, movimentos presos, esboçados, entalados. Sem marcações.
Besteira, besteira, besteira, repetiu enfiando a chave na porta, fáceis realismos. Acendeu a luz, a sala grande demais, branca demais. Parado na porta, um impulso breve de voltar, tornar a descer pelo elevador, atravessar outra vez o tapete vermelho, sair para as ruas, não era longe, quatro, cinco quadras, um café na esquina, outra bebida talvez, uma cerveja, rebater todas, qualquer um, o primeiro, ao acaso, uni-duni-tê, como é seu nome, o que você faz, chupa-dá-come?, quanto você cobra, só da cintura para baixo, paraplegia às avessas, nada de beijos, lambeções, macho, sei, sei, examinar o volume apertado pelas calças justas como quem compra carne, talvez apalpar, mas quem garante que é de primeira?, depois esconder a carteira, a chave, o creme, a camisinha, a porra, a grana, pausa, banho, banho longo, trocar lençóis, Neocid nos pentelhos.
Fazia tempo, não tinha vontade. Atento apenas à coisa, ao ponto palpitante, pronto por dentro, redondo. Era redondo?, perguntaram. Era perfeito, responderam. To silencioso e remoto que quase não existia, ali à espera. Um toque, uma palavra mágica, um beijo no sapo, desencantaria. Redondo, aberto, perfeito. Pêssego maduro, os vermes rondavam, apodreceria logo se ninguém... Jogou o casaco sobre o sofá e chamou baixinho, sacudindo o quadro:
- Kay Kendall, onde está você, meu amor? Apareça: o prisioneiro da cela ao lado voltou da condicional. Está péssimo lá fora, meu bem.
Mas não aconteceu nada.
Mas não aconteceu nada, caminhando à toa pela sala enquanto recolocava os livros nas estantes. Pérsio, Santiago, lembrou, depois guardou os discos na capa um por um. Então apago a luz da sala, vou até o banheiro, examino a cara com desgosto e pena, principalmente pena, muita pena, descubro alguma marca nova, mijo, lavo o rosto, vou até a cozinha, uma maçã, talvez coma uma maçã, ponho um pouco de leite a ferver, uma colher de mel, um pouco de canela, isso, como a maçã enquanto o leite ferve, parabéns, muito saudável, jovem, apago a luz, entro no quarto, cubro a xícara de leite quente com o cinzeiro para não esfriar, tiro a roupa, ligo a televisão, procurando um filme com Audrey Hepburn, que saudade de Audrey Hepburn, sacudo os lençóis, desligo a televisão, Audrey nenhuma, peruas platinadas, dúzias delas, então deito, bebo devagar o leite pensando em escrever para minha mãe, em mudar de vida, de emprego, de cidade, de país, que vontade, querida mamãe, de ser feliz, de ter um grande amor bem limpinho, bem clarinho, um amor de manhã bem cedo, não diga nada a ninguém, não é preciso, mas cá-entre-nós-que-ninguém-nos-ouça, não vem dando muito certo, tenho tentado, juro, beijos no pai, que ele não saiba que estou ficando velho, não conte a tia Flora que perdi as ilusões, que já nem lembro mais, e encho o saco disso e apago a luz e durmo e sonho. Sonho um sonho muito vivo, colorido, sonho por exemplo que estou no meio de um gramado, de manhã bem cedo, um ar tão limpo que os pulmões chegam a doer um pouco quando você respira, há flores amarelas no meio do gramado verde, e brilham, eu respiro e respiro mais fundo e sei que bem perto dali existe uma cachoeira, minha flor das montanhas, posso ouvir o ruído das águas caindo, caminho em direção à cachoeira pelo meio do mato, tiro toda a roupa, não, não, eu estou nu, o sonho todo, desde o começo, eu sempre estive nu, então fico embaixo da cachoeira muito tempo, encostado numa pedra, deixo aquele jato de água fria limpa clara bater bem no alto da cabeça, o lótus em mil pétalas abertas abrindo, passa uma borboleta azul, bons presságios: eu penso, eu acredito, a água gelada continua batendo na cabeça, escorre pelo corpo todo, e vou entrando, o sonho é meu, numa espécie de êxtase, satori, nirvana, eu acredito, eu sigo acreditando, outra vez eu acredito, embaixo da cachoeira, eu não paro um segundo de acreditar porque tudo é vivo vibra brilha, meu corpo não se separa da água nem da pedra nem do céu que vejo entre as folhas.
Filho da puta, disse sozinho, eu nem falei de estrelas, Pérsio falaria o tempo todo de estrelas pulsares quasares anãs brancas buracos negros, apontaria constelações, se fosse possível ver constelações neste céu de merda, mostraria o céu, didático: ali um pouco acima de Scorpius, está vendo?, bem ali fica Lupus, e logo acima a grande constelação da Hydra, entre Lupus e Hydra está Centaurus, de onde eu pensei que tinha vindo um dia, você consegue ver?, traçaria com o dedo, acompanharia o desenho, aquela bem grande, aquela estrela imensa, tem vida lá na Alfa de Centaurus, se você puxar uma linha quase horizontal, levemente oblíqua, só levemente, para cima, encontrará também Canopus, teria sido lá?, e não importava, ouça, não é lindo Ca-no-pus-Ca-no-pus-Ca-no-pus-Ca-no-pus-Ca-no-pus-Ca, a água escorreria pelo corpo inteiro, cabeça, peito, pinto, pés, mas se fosse de manhã bem cedo não poderia apontar estrelas.
Acendeu Outro cigarro. Caminhou para a janela como se fosse olhar para fora. Mas não queria olhar para fora. Queria talvez olhar para dentro, dentro-e-fora, misturados, o céu sujo da cidade pregado na alma, se havia alma. Mas se era um sonho, repetiu, num sonho pode. Num sonho pode tudo. A água escorria da cachoeira no dia claro enquanto as constelações brilhavam sobre a cabeça entregue.
Filho da puta, filho da puta, filho da puta.
- Sentado no chão, as mãos nos pés. E todo aquele papo, todos aqueles toques, todos aqueles traumas, todos aqueles climas, todas aquelas cenas, tudo aquilo na noite feito um movimento vindo de fora para despertar o vivo de dentro, o vivo quieto, à espera apenas daquele justo toque exato - mas de quem foi o erro, o que é um erro? Teve vontade de rolar pelo tapete, cena dramática, altamente realista, em gemidos dilacerados, síndrome de abstinência, sabor mexicano, delirium tremens, fassbinderiano bater nas paredes, chorando em soluços arquejartes, em gemidos desmesurados, depois correr ao banheiro para vomitar vomitar vomitar sem vírgulas nem pausas: vomitar. Mas não sentia náusea alguma, nem ânsias melodramáticas, filmáveis, aplaudíveis, premiáveis, patrocináveis. Só uma coisa seca na garganta. Poeira, dusty answer. Lera em algum lugar que as glândulas lacrimais começam a secar com o passar do tempo, seria isso?, cada vez você chora menos, já não conseguia, lágrimas, venenos expulsos pelo organismo, quem chora menos vive menos, não chorarei então, que estava farto, que tinha acostumado ao prego, que tinha petrificado, estátua de sal, de plástico, descalçou os tênis, dançarás descalço, para sempre pela Terra de Marlboro e pela Terra do Nunca, até que te amputem esses pezinhos e, de muletas, te tiveres tornado outra vez Puro & Piedoso, Iluminado por uma Divina Chama Interior, que eram anos, nem horas, nem dias, nem meses, mas anos, não apenas um, dezenas, anos e anos de solidão, eu quero a alegria, rosnou, quero porque quero o princípio do prazer, não tornaria a ouvir o sax desesperado, o seco, porque não suportaria, sim, suportaria, suportarás, as pessoas suportam tudo, as pessoas às vezes procuram exatamente o que será capaz de doer ainda mais fundo, o verso justo, a música perfeita, o filme exato, punhaladas revirando um talho quase fechado, cada palavra, cada acorde, cada cena, até a dor esgotar-se autofágica, consumida em si mesma, transformada em outra coisa que não saberia dizer qual era, porque não chegara lá ou sim, que chegar lá não passava disso, aqui passando a mão no rosto, nos cabelos, alguns brancos poucos, bijo, como estás viejo, cuspiu o verso de Vallejo, o que morrera em Paris com aguaceiro, onde João lavava pratos, a carta da mãe, mas a mãe estava morta, autopiedade nojenta, quase não havia mais tempo, embora pudesse ainda repetir there will be time, there will be time ou acaso não fui cúmplice dos meus? desses vindos da noite ou stars open among the lilies, tanta literatura andando pelo apartamento vazio, a vida, fosse o que fosse era agora, a vida era já, a vida era aqui, e o aqui e o já e o agora não passavam de uma vontade de chorar sem lágrimas, de vomitar sem náusea, de trepar sem sexo, tantos versos, tantos planos ficados para trás, só os dias rodando sem parar, o de ontem gerando o de amanhã, trazendo sempre o mesmo gosto de café e cigarros, tocou o peito, que talvez já tivesse começado a apodrecer, a coisa secreta, o ponto escondido, sem ninguém tocá-la, mais um tempo e sentiria o fedor, os outros sentiriam o fedor de longe, quando o encontrassem sozinho pelas esquinas da noite, procurando a pedra de toque, o aleph, sephirot, em algum encontro que, se chegasse, chegaria tarde demais porque o verde novo começara a ceder à decomposição.
Não existe volta para quem escolheu o esquerdo.
Tirou a roupa aos poucos. Completamente nu, começou a girar de braços abertos no meio da sala. Remoto, então, como se viesse do apartamento ao lado ou de baixo, de cima - talvez o de Lavínia, a lasciva, lembrou querendo rir, mas não conseguiu -, o som da campainha cortou o movimento. Uma voz que chega de longe. Navalha, alfanje, cimitarra. A cabeça ainda girava no meio da tontura quando entreabriu a porta para ver Santiago parado no corredor, mãos nos bolsos.
- Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
- Eu não me chamo Santiago - ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse, Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
- Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais
nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
- Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom.
Caio Fernando Abreu
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