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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTRELA ERRANTE / J. M. G. Lê Clézio
ESTRELA ERRANTE / J. M. G. Lê Clézio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Esther descobre o que pode significar ser judia em tempo de guerra: após uma adolescência serena, vai conhecer o medo, a humilhação, a fuga pelas montanhas e a morte do pai. Terminada a guerra, Esther parte para o jovem estado de Israel. Mas a Terra Prometida não lhe vai proporcionar a paz: à chegada, terá um encontro com Nedjma, que deixa o seu país com as colunas de palestinianos, rumo aos campos de refugiados. Ester e Nedjma, a judia e a palestiniana, nunca mais deixarão de pensar uma na outra. Estrela Errante é a descrição de uma viagem rumoà consciência de si mesmo.
Lê Clézio glorifica as mulheres e denuncia o absurdo da guerra.

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Saint-Martin-Vésubie, Verão de 1943
Sabia que o Inverno tinha acabado quando ouvia o ruído da água. Durante o Inverno, a neve cobria a aldeia e os telhados das casas e os prados ficavam todos brancos. O gelo formava estalactites nos beirais dos telhados. Depois, o sol começava a brilhar, a neve derretia e a água ia pingando gota a gota de todos os rebordos, de todas as traves, dos ramos das árvores; as gotas juntavam-se e formavam fios de água, os fios de água formavam regatos e a água corria alegremente por todas as ruas da aldeia.
Talvez esse som da água fosse a sua mais antiga recordação. Lembrava-se do primeiro Inverno na montanha e da música da água na Primavera. Fora há quanto tempo? Seguia no meio do pai e da mãe pela rua da aldeia, dando-lhes a mão. Um dos braços ia mais esticado do que o outro porque o pai era mais alto. E a água escorria de todos os lados, fazendo aquela música, aquele tilintar, aquele chiar, aquele tamborilar. Sempre que se lembrava disso dava-lhe vontade de rir porque era um som doce e alegre como uma carícia. Nessa altura, ria entre o pai e a mãe e a água das goteiras e do regato respondia-lhe, escorria, saltitava...
Agora, com o calor do Verão e o céu de um azul intenso, sentia uma felicidade que lhe inundava o corpo e quase a fazia sentir medo. Adorava particularmente a grande encosta coberta de erva que subia em direcção ao céu logo acima da aldeia. Não ia até lá cima porque diziam que havia víboras. Caminhava uns momentos pela orla do campo apenas para sentir a frescura da terra, encostando os lábios às
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eles não eram maus como os alemães. Um dia, numa reunião na cozinha da casa de Esther, alguém tinha dito mal dos italianos e o pai zangara-se: "Calem-se! Foram eles que nos salvaram a vida quando o prefeito Ribière deu ordem para nos entregarem aos alemães." Mas quase nunca falava da guerra nem de todas essas coisas e era raro dizer "os judeus" porque não acreditava na religião e era comunista. Quando o Sr. Seligman tinha querido inscrever Esther na instrução religiosa que as crianças judias freqüentavam todas as tardes na vivenda no cimo da aldeia, o pai tinha recusado. As outras crianças tinham feito troça dela, exclamando mesmo: goi, que quer dizer "paga". Também a tinham chamado "comunista!" Esther tinha andado à bulha com elas. Mas o pai não tinha cedido. Contentara-se em comentar: "Não faças caso. Vão-se cansar mais depressa do que tu." Na verdade, os pequenos da aula do Sr. Seligman tinham esquecido e nunca mais a tinham chamado nem "paga" nem "comunista". Aliás, havia outras crianças que não iam à instrução religiosa, como Gasparini ou Tristan, que era meio inglês e cuja mãe era italiana, uma bela morena que usava uns chapéus enormes.
Esther gostava muito do Sr. Heinrich Ferne por causa do piano. Vivia no rés-do-chão de uma velha vivenda um pouco escalavrada, do lado de baixo da praça, na rua que descia para o cemitério. Não era propriamente uma casa bonita, podia até considerar-se um tanto sinistra, com o jardim abandonado e invadido pelos acantos e as persianas sempre fechadas. Quando o Sr. Ferne não dava aulas na escola, fechava-se na sua cozinha e tocava piano. Era o único piano da aldeia e talvez não houvesse mesmo outro em nenhuma das aldeias da montanha até Nice e Monte-Carlo. Contava-se que quando os italianos se tinham instalado no hotel, o capitão dos carabineiros, que se chamava Mondoloni e gostava de música, tinha pretendido trazer o piano para a sala de jantar. Mas o Sr. Ferne tinha dito: "Pode levar o piano, com certeza, são vocês os vencedores, mas fique a saber que nunca tocarei lá para vocês."
Não tocava para ninguém. Vivia sozinho na sua vivenda a cair de velha e às vezes, à tarde, quando passava, Esther ouvia a música que
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saía pela porta da cozinha. Era como o ruído dos regatos na Primavera, um som doce, leve, fugidio, que parecia brotar de todos os lados ao mesmo tempo. Esther parava na rua, junto do gradeamento, e ficava a ouvir. Quando acabava, ia-se embora rapidamente para ele não a ver. Um dia tinha falado do piano à mãe e esta contara-lhe que outrora, antes da guerra, o Sr. Ferne tinha sido um pianista célebre em Viena. Dava concertos em salas cheias de senhoras com vestidos de noite e senhores de preto. A quando da sua entrada na Áustria, os alemães tinham metido todos os judeus na prisão; levaram a mulher do Sr. Ferne mas ele conseguira escapar. A partir desse dia, nunca mais tinha querido tocar para ninguém. Quando se tinha instalado na aldeia não havia lá nenhum piano. Conseguira comprar um na costa, mandara-o vir numa camioneta, coberto com toldos e instalara-o na sua cozinha.
Agora que sabia tudo aquilo, Esther mal ousava aproximar-se do gradeamento. Ouvia as notas de música, o doce esvoaçar das notas, e parecia-lhe que havia nelas algo de triste que lhe fazia vir as lágrimas aos olhos.
Naquela tarde estava calor e tudo parecia adormecido na aldeia. Esther foi até casa do Sr. Ferne. Havia no jardim uma grande amoreira e, oculta por ela, Esther tinha trepado ao muro, agarrando-se às grades. Pela janela da cozinha via a silhueta do Sr. Ferne inclinada sobre o piano. As teclas de marfim brilhavam na penumbra. As notas deslizavam, hesitavam, recomeçavam, como se se tratasse de uma linguagem e o Sr. Ferne não soubesse muito bem por onde começar. Esther olhava com toda a atenção para dentro da cozinha, a ponto de os olhos lhe doerem. Então a música começou realmente, brotou do piano e encheu toda a casa, o jardim e a rua, encheu tudo com a sua força, com a sua ordem, e depois tornou-se suave, misteriosa. Agora saltitava, corria como a água nos regatos, ia direita ao céu, às nuvens, misturava-se com a luz. Subia a todas as montanhas, chegava às nascentes dos dois cursos de água, tinha a força da ribeira.
com as mãos crispadas no gradeamento enferrujado, Esther ouvia a linguagem do Sr. Ferne. Agora não falava como professor. Contava histórias engraçadas de que ela não se conseguia recordar, histórias como as dos sonhos. Nessas histórias as pessoas eram livres, não havia guerra, não havia alemães nem italianos, nada que pudesse
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causar medo ou acabar com a vida. E, no entanto, também era triste e a música tornava-se dolente, parecia interrogar. Por momentos tudo se rasgava, se quebrava. E depois, o silêncio.
A música recomeçava e Esther ouvia atentamente todas as palavras que brotavam. Nunca nada lhe parecera tão importante, excepto talvez quando a mãe cantava uma canção ou o pai lhe lia passagens dos seus livros preferidos, como a entrada do Sr. Pickwick na prisão de Londres ou o encontro de Nicolas Nickleby com o tio.
Esther empurrou o portão e atravessou o jardim. Sem fazer barulho, entrou na cozinha e aproximou-se do piano. Via as teclas de marfim baixarem com precisão sob os dedos nervosos do velho e escutava atentamente cada palavra.
De repente, o Sr. Ferne parou e o silêncio tornou-se pesado, ameaçador. Esther começou a recuar mas o Sr. Ferne voltou-se para ela. O seu rosto pálido, com uma barbicha de cabra, estava iluminado pela luz.
Perguntou:
- Como te chamas?
- Hélène - respondeu Esther.
- Muito bem, entra.
Como se fosse natural, como se conhecesse a pequena.
Depois recomeçou a tocar sem se importar com ela. Esther ouvia-o de pé, ao lado do piano, sem ousar respirar. A música nunca lhe tinha parecido tão bela. Na penumbra, o piano escuro ofuscava tudo. As longas mãos do velho corriam sobre as teclas, detinham-se, recomeçavam. De vez em quando o Sr. Ferne procurava numa pilha de cadernos papéis com misteriosos nomes escritos.
Sonaten für Pianoforte von W. A. Mozart
Czerny Études depetite vélocité, op. 636
Beethoven
Sonaten, vol. II, par Moszkowski
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Liszt
Klavierwerke, Band IV
Bach
Englische Suiten, 4-6
Voltou-se para Esther:
- Gostavas de tocar? Esther fitou-o, espantada.
- Eu não sei tocar.
O homem encolheu os ombros.
- Isso não interessa. Tenta, vê o que fazem os meus dedos. Sentou-a no banco a seu lado. Tinha uma maneira estranha de correr com os dedos sobre o teclado, como um animal magro e nervoso.
Esther tentou imitá-lo e, para sua grande surpresa, conseguiu.
- Estás a ver? É fácil. Agora a outra mão. Seguia-lhe os movimentos com um ar impaciente.
- Bem, vou ter que te dar lições. Talvez possas vir a tocar. Mas tens que trabalhar. Tenta os acordes.
Corrigia a posição das mãos de Esther, afastava-lhe os dedos. Ele próprio tinha mãos longas e esguias, não mãos de velho mas sim mãos jovens, fortes, com veias salientes. Os sons dos acordes brotavam, mágicos, vibrando sob os dedos da pequena e chegando-lhe ao coração.
Quando a lição acabou, o Sr. Ferne procurou febrilmente na pilha de folhas em instável equilíbrio sobre o piano e tirou uma que estendeu a Esther:
- Tens de aprender a ler as notas. Quando as souberes, podes voltar cá.
A partir desse dia, Esther voltava à tarde, sempre que lhe era possível. Empurrava o portão do gradeamento e entrava sem fazer barulho na cozinha enquanto o Sr. Ferne tocava. A dado momento, sem voltar a cabeça, ele sabia que ela ali estava. Dizia:
- Entra e senta-te.
Esther sentava-se a seu lado no banco e observava as longas mãos que corriam sobre o teclado como se fossem elas que fabricassem as
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notas. Aquilo demorava tanto tempo que a pequena esquecia tudo, até o lugar onde se encontrava. O Sr. Ferne mostrava-lhe como devia deixar deslizar os dedos sobre as teclas. Tinha escrito as notas num papel branco e queria que ela as cantasse ao mesmo tempo que as tocava. Os olhos brilhavam-lhe e a barbicha de cabra estremecia. "Tens uma linda voz, mas não sei se serás realmente capaz de tocar piano." Quando ela se enganava, enfurecia-se. "Por hoje acabou. Vai-te embora, deixa-me em paz!" Mas depois segurava-a por um braço e tocava para ela uma sonata de Mozart, o seu preferido.
Quando Esther voltava para a rua sentia-se ofuscada pelo sol e pelo silêncio e precisava de alguns instantes até poder seguir o seu caminho.
Ao fim da tarde, Esther via o Sr. Ferne na praça da aldeia. As pessoas aproximavam-se para o cumprimentar mas ele falava de tudo menos de música. Eram pessoas ricas que habitavam em vivendas do outro lado da ribeira, no meio de jardins com frondosos castanheiros. O pai de Esther não as apreciava muito mas não admitia que dissessem mal delas à sua frente porque ajudavam os pobres que vinham da Rússia ou da Polónia. O Sr. Ferne cumprimentava todos cerimoniosamente, trocava algumas palavras com cada um e depois voltava para a sua casa semi-arruinada.
Ao anoitecer, a praça animava-se. Vinham pessoas de todas as ruas de Saint-Martin, as ricas das vivendas e as pobres que viviam em quartos alugados, os camponeses que tinham voltado da guerra, as aldeãs de avental, as raparigas que passeavam em grupos de três sob o olhar dos carabineiros e dos soldados italianos, os negociantes de jóias, os alfaiates e os peleiros vindos do norte da Europa. As crianças corriam pela praça, divertindo-se a empurrar as raparigas ou a jogar às escondidas atrás das árvores. Esther ficava sentada no murinho que rodeava a praça e observava toda a gente. Ouvia o som das vozes, os chamamentos. Os gritos das crianças ecoavam agudos como um clamor de pássaros.
Depois, o sol ocultava-se por trás da montanha e uma espécie de bruma leitosa envolvia a aldeia. A sombra invadia a praça. Tudo parecia
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estranho, longínquo. Esther pensava no pai, que andava pelo meio das ervas, algures na montanha, de regresso dos seus encontros. Elizabeth nunca vinha até à praça. Esperava em casa, tricotando com bocados de lã para iludir a inquietação. Esther não conseguia compreender o que significava tudo aquilo, aqueles homens e aquelas mulheres tão diferentes, falando todas aquelas línguas, vindos de todas as partes do mundo para aquela praça. Via os velhos judeus vestindo longos casacões negros, as mulheres da região, com os fatos usados do trabalho do campo e as raparigas que passeavam em redor da fonte com os seus vestidos claros.
Quando a luz desaparecia, a praça esvaziava-se lentamente. As pessoas voltavam para casa e as vozes iam-se extinguindo pouco a pouco. Ouvia-se o glouglou da fonte e os gritos das crianças que corriam umas atrás das outras pelas ruas. Elizabeth chegava então à praça. Pegava na mão de Esther e juntas regressavam ao pequeno e escuro apartamento. Andavam com o mesmo ritmo e os seus passos ressoavam em uníssono na rua. Esther gostava daqueles momentos. Apertava com força a mão da mãe e era como se ambas tivessem treze anos e toda a vida à sua frente.
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Tristan lembrava-se sempre das mãos da mãe, tocando no piano negro ao princípio da tarde, quando tudo em redor parecia dormir. Havia muitas vezes convidados no salão e ele ouvia as vozes e os risos das amigas da mãe. Tristan já não se lembrava dos seus nomes. Via apenas o movimento das mãos sobre as teclas do piano e ouvia a música que se evolava. Fora há já muito tempo. Não sabia quando é que ela lhe tinha dito o nome daquela melodia - A Catedral submersa - com o som dos sinos ressoando no fundo do mar. Fora em Cannes, noutro tempo, noutro mundo. Tentava então regressar a essa vida, como num sonho. O som do piano crescia, enchia o pequeno quarto de hotel, vagueava pelos corredores, chegava a todos os andares. Ressoava distintamente no silêncio da noite. Tristan sentia o coração palpitar ao ritmo da música e, de repente, saía do sonho, assustado, com as costas alagadas de suor, erguia-se na cama para escutar, para ter a certeza de que ninguém mais tinha ouvido a música. Ouvia a respiração calma da mãe adormecida e, do lado de fora das persianas, o som da água na fonte.
Viviam no primeiro andar do Hotel Victoria, num pequeno quarto com varanda dando para a praça. Os andares estavam todos ocupados por famílias pobres ali instaladas pelos italianos e era tanta a gente que, durante o dia, o hotel fervilhava como uma colmeia.
Quando a Sra. O'Rourke tinha chegado a Saint-Martin de autocarro, Tristan era um solitário e tímido garoto de doze anos. Os cabelos louros e lisos estavam cortados "à taça" em redor da cabeça e usava
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estranhas roupas inglesas: calções de flanela cinzenta demasiado compridos, meias de lã e uns casacos de malha esquisitos. Tudo nele era estrangeiro. Em Cannes, tinham vivido no círculo fechado dos ingleses em férias, que a guerra tornara ainda mais restrito. Quando fora declarada a guerra, o pai de Tristan, que era comerciante na África Equatorial, alistara-se nas forças armadas coloniais. Desde então, nunca mais tinham sabido nada dele. Tristan tinha deixado de ir à escola e era a mãe que lhe dava aulas. Quando chegaram à montanha, a Sra. O'Rourke também não quisera matricular o filho na escola do Sr. Seligman. A primeira recordação que Esther guardava dele era da sua silhueta, com aquela bizarra indumentária, parado em frente da porta do hotel vendo passar as crianças que iam para a escola.
A Sra. O'Rourke era muito bonita. Os vestidos compridos e os grandes chapéus contrastavam com a seriedade do rosto e a expressão melancólica do olhar. Falava um francês muito correcto, sem pronúncia, e diziam que era realmente italiana. Afirmavam que era uma espia ao serviço dos carabineiros ou uma criminosa escondida. Eram principalmente as raparigas que contavam essas histórias em voz baixa, como quando falavam de Rachel, que visitava o capitão dos carabineiros às escondidas.
No princípio, Tristan não queria misturar-se com as outras crianças. Passeava sozinho pela aldeia ou então, às vezes, ia para os campos e descia o declive que conduzia à ribeira. Quando estavam lá outros miúdos, tornava a subir sem se voltar para trás. Talvez tivesse medo deles. Queria mostrar que não precisava de ninguém.
À tarde, Esther via-o passear na praça dando cerimoniosamente o braço à mãe. Caminhavam lado a lado sob os plátanos, seguindo até ao extremo da praça, onde se encontravam os carabineiros. Depois regressavam em sentido inverso. As pessoas falavam pouco à Sra. O'Rourke, mas ela trocava algumas palavras com o velho Heinrich Ferne por ele ter sido músico. Nunca ia com as outras pessoas marcar o nome na lista, no Hotel Terminus. Não era judia.
O tempo tinha passado e aproximava-se o Verão. Agora já todos sabiam que a Sra. O'Rourke não era rica. Dizia-se mesmo que já não tinha dinheiro nenhum, porque procurara os negociantes de jóias para lhes pedir dinheiro em troca das suas. Dizia-se que já não tinha
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quase nada para empenhar a não ser alguns medalhões, uns colares de marfim e bugigangas.
Tristan via a mãe como nunca a tinha visto. Queria lembrar-se dos tempos da casa de Cannes, das mimosas à luz do meio-dia, do canto dos pássaros lá fora, da voz da mãe e das mãos que tocavam sempre A Catedral submersa, essa música ora violenta ora triste. Era uma visão que se ia esbatendo, afastando.
Já não conseguia estar no quarto do hotel. O sol tinha-lhe queimado o rosto e as mãos e tornado quase brancos os cabelos demasiado compridos. A roupa estava estragada e suja pelas correrias no meio do mato. Um dia, na estrada, à saída da aldeia, tinha andado à bulha com Gasparini porque este namoriscava Esther. Gasparini era mais velho e mais forte; tinha preso Tristan pelo pescoço e com o rosto contraído pela raiva dizia: "Repete que és um estupor! Repete!" Tristan tinha resistido até desmaiar. Por fim, Gasparini largara-o, fazendo crer aos outros que Tristan tinha cedido.
Tudo mudara a partir desse dia. Agora era Verão e os dias tinham-se tornado compridos. Tristan saía todas as manhãs do hotel enquanto a mãe ainda dormia no acanhado quarto. Só voltava à hora de almoço, esfomeado e com as pernas arranhadas pelos silvados. A mãe não dizia nada mas adivinhara. Um dia, quando ele ia a sair, dissera com uma voz estranha: "Essa rapariga não é para ti, Tristan." O rapazito estacara: "De quem estás a falar? Que rapariga?" Ela limitara-se a repetir: "Ela não é para ti, Tristan." E nunca mais tinham falado no caso.
De manhã, Tristan estava na praça da aldeia quando os judeus faziam bicha em frente da porta do Hotel Terminus. Os homens e as mulheres esperavam pela sua vez para entrarem, marcarem os seus nomes nos registos e receberem os seus cartões de racionamento.
Semi-oculto por trás das árvores, Tristan via Esther e os pais à espera. Sentia uma certa vergonha porque ele e a mãe não tinham que ir para a bicha, não eram como os outros. Fora aqui, na praça, que Esther tinha olhado para ele pela primeira vez. Chovia com intermitência. As mulheres embrulhavam-se nos seus xailes e abriam os grandes guarda-chuvas pretos. As crianças permaneciam a seu lado, sem correrias nem gritos. Na sombra dos plátanos, Tristan olhava para
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Esther no meio da fila de espera. Tinha a cabeça descoberta e brilhavam gotas de chuva nos seus cabelos negros. Dava o braço à mãe e o pai parecia muito alto a seu lado. Não falava. Ninguém falava, nem mesmo os carabineiros, em pé frente à porta do restaurante.
De cada vez que se abria a porta, Tristan conseguia ver um bocado da grande sala iluminada pelas portas-janelas que davam para o jardim. Os carabineiros estavam de pé, junto das janelas, e fumavam. Sentado a uma mesa, um deles, com um registo aberto à sua frente, ia marcando os nomes. Havia naquilo qualquer coisa de terrível, de misterioso para Tristan, como se as pessoas que entravam na sala não fossem tornar a sair. Do lado da praça, as janelas do hotel estavam fechadas e as cortinas corridas. Quando anoitecia, os italianos fechavam as persianas e barricavam-se no hotel. A praça ficava às escuras, desabitada. Ninguém tinha o direito de sair.
Era o silêncio que atraía Tristan em frente do hotel. Tinha abandonado o quarto aconchegado onde a mãe respirava suavemente, sonhando com música e jardins, para vir ver Esther no meio dos vultos escuros que esperavam na praça. Os carabineiros escreviam o nome dela. Entrava com o pai e a mãe e o homem do registo marcava o seu nome no caderno, na seqüência dos outros nomes. Tristan gostaria de estar com ela na bicha, de avançar com ela até à mesa, não podia dormir no seu quarto do Hotel Victoria enquanto aquilo se passava. O silêncio da praça era demasiado intenso. Apenas se ouvia o ruído da água na taça da fonte ou um cão que ladrava ao longe.
Depois Esther saiu. Avançou pela praça, um pouco afastada do pai e da mãe. Quando passou em frente das árvores, viu Tristan e nos seus olhos negros brilhou uma chama como se fosse de cólera ou de desdém, uma chama violenta que fez bater com força o coração do rapazinho. Recuou. Queria dizer: "És tão bonita, só penso em ti, amo-te." Mas já os vultos se perdiam nas ruelas.
O sol subia no céu e a luz brilhava por entre as nuvens. Nos campos, as ervas cortavam e os silvados fustigavam as pernas. Tristan fugia a correr, descendo até ao regato gelado. O ar estava cheio de aromas, de pólen e de moscas.
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Era como se nunca tivesse havido outro Verão antes daquele. O sol queimava os prados e as pedras da torrente e as montanhas pareciam mais distantes, recortadas no céu azul forte. Esther ia muitas vezes para a ribeira, no fundo do vale, onde se uniam os dois cursos de água. Ali, o vale alargava-se. O círculo das montanhas parecia ainda mais longínquo. Pela manhã, o ar estava límpido e frio e o céu absolutamente azul. Depois, à tarde, as nuvens faziam o seu aparecimento a norte e a este, por cima dos cumes, inchando as suas estranhas volutas. A luz vibrava sobre a água da ribeira. A vibração espalhava-se por todo o lado e, quando voltávamos a cabeça, fundia-se com o som da água e o cantar dos grilos.
Um dia, Gasparini tinha vindo com Esther até à ribeira. Como o sol estava no centro do céu, Esther começara a subir a encosta para regressar a casa quando Gasparini lhe segurou na mão: "Anda, vamos ver o meu primo ceifar lá em baixo, em Roquebillière." Esther hesitava. Gasparini insistiu: "Não é longe, fica ali logo em baixo, vamos na charrete do meu avô." Esther já tinha visto a ceifa com o pai, mas não tinha muito bem a certeza de se lembrar como era o trigo. Acabara por subir para a charrete. Havia mulheres com lenços na cabeça e crianças. Era o avô Gasparini que conduzia o cavalo. A charrete tinha seguido o caminho em ziguezagues que descia até ao vale. Já não se viam casas mas apenas os prados e a ribeira que brilhava ao sol. O caminho estava em mau estado, a charrete saltava e as mulheres riam. Um pouco antes de Roquebillière o vale era bastante largo. Antes de
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ver, Esther tinha ouvido: gritos, vozes de mulheres, risos estridentes que chegavam trazidos pelo vento quente, e um rumor surdo, regular, como o ruído da chuva. "Estamos a chegar. Os campos de trigo são além", dissera Gasparini. O caminho foi dar à estrada e Esther vira de repente aquelas pessoas todas a trabalhar. Havia muita gente, charretes paradas com os cavalos tasquinhando a erva das bermas, crianças a brincar. Junto das charretes, os homens mais velhos iam carregando o trigo com a ajuda de forquilhas de madeira. A maior parte dos campos já estava ceifada e as mulheres com a cabeça protegida por lenços inclinavam-se para os molhos que iam atando antes de os empurrarem para a estrada, junto das charretes. A seu lado, crianças brincavam com as espigas caídas no chão. As mais velhas procuravam pelo campo, metendo as espigas em sacos de juta.
Os homens mais novos trabalhavam no fundo do campo. A poucos passos uns dos outros, formavam uma linha como os soldados e avançavam lentamente pelo trigal, manejando as foices. Eram eles que Esther tinha ouvido de longe, ao chegar. com uma regularidade mecânica, as foices vinham atrás, as longas lâminas brilhavam ao sol, imobilizavam-se por um instante, e depois caíam todas ao mesmo tempo, rangendo ao cortar o trigo e os homens faziam um ruído surdo com a garganta e o peito, um ran! que ressoava pelo vale.
Esther tinha-se escondido atrás das charretes porque não queria que a vissem, mas Gasparini puxara-a pela mão e obrigara-a a avançar pelo meio do campo. As pontas do restolho eram duras e cortantes, espetavam-se nas suas alpercatas de corda e esfolavam-lhes os tornozelos. Pairava sobre tudo aquilo um cheiro que Esther nunca tinha aspirado antes e fora talvez por causa dele que sentira medo ao chegar. Um cheiro acre de poeira e suor, um cheiro misto de homem e de planta. O sol cegava, queimava as pálpebras, o rosto, as mãos. À sua volta, no campo, havia mulheres e crianças pobremente vestidas que Esther nunca vira antes. com uma espécie de febril actividade, apanhavam as espigas caídas das medas e metiam-nas em sacos de pano. "Aqueles são italianos", dissera Gasparini com uma entoação condescendente na voz. "Como não têm trigo lá, vêm ver se apanham algum aqui." Esther observava com curiosidade as mulheres andrajosas, com os rostos semi-ocultos por lenços esfarrapados. "De onde vêm?" Gasparini
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apontara as montanhas, ao fundo do vale. "Vêm de Valdieri, de Santa Anna (ele pronunciava Santana). Atravessaram a montanha a pé porque lá têm fome." Esther estava admirada; nunca tinha imaginado que os italianos pudessem ser como aquelas mulheres e aquelas crianças. Mas Gasparini arrastava-a para a linha dos ceifeiros. "Olha, aquele é meu primo." Um rapaz de camisola interior, rosto e braços avermelhados pelo sol, parará de manejar a foice. "Então, não me apresentas a tua namorada?" Desatara a rir e os outros homens tinham parado também para olhar para eles. Gasparini encolhera os ombros e dirigira-se com Esther para o outro extremo do campo onde se sentaram num talude. Dali apenas se ouvia o assobio das foices no trigo e o sopro rouco dos homens: ran! ran! Gasparini tinha dito: "O meu pai diz que os italianos vão perder a guerra porque já não têm nada para comer." Esther: "Então talvez venham instalar-se aqui." Gasparini respondera sem hesitar: "Nós não os deixamos, expulsamo-los. Aliás, os ingleses e os americanos vão ganhar a guerra. O meu pai diz que os alemães e os italianos vão ser derrotados em breve." Depois, baixara um pouco a voz: "O meu pai pertence ao maquis. E o teu?" Esther tinha reflectido. Não tinha muito bem a certeza do que devia responder. Repetira, como ele: "O meu pai também pertence ao maquis." E Gasparini: "O que é que ele faz?" Esther respondera: "Acompanha os judeus que atravessam a montanha e ajuda-os a esconderem-se." Gasparini parecia um pouco irritado: "Não é a mesma coisa. Pertencer ao maquis não é isso." Esther lamentava já ter falado daquilo. O pai e a mãe tinham-lhe recomendado que não falasse nunca da guerra nem das pessoas que vinham a sua casa fosse a quem fosse. Tinham dito que os soldados italianos davam dinheiro aos que denunciassem alguém. Talvez Gasparini fosse repetir tudo aquilo ao capitão Mondoloni. Durante um longo momento ficaram os dois silenciosos, mastigando grãos de trigo que iam tirando um a um das suas capas transparentes. Gasparini acabara por dizer: "O que faz o teu pai? Quero dizer, o que fazia ele antes da guerra?" Esther tinha dito: "Era professor." Gasparini estava com um ar interessado: "Professor de quê?" Esther: "Professor de História no liceu. História e Geografia." Gasparini não disse mais nada. Olhava em frente, com o rosto fechado. Esther pensava na forma como ainda há momentos ele
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tinha dito, olhando as crianças que apanhavam as espigas caídas: "Eles lá têm fome." Daí a bocado, Gasparini dissera: "O meu pai tem uma espingarda. Está sempre escondida em nossa casa, no celeiro. Se quiseres, um dia mostro-ta." Tinham ficado ambos mais um bocado sem falar, ouvindo o ruído das foices e da respiração dos homens. O sol permanecia imóvel no centro do céu e não se viam as sombras projectadas na terra. No meio do restolho havia grandes formigas pretas que avançavam, paravam, continuavam a andar. Também elas procuravam os grãos de trigo que tinham caído das espigas.
"É verdade que és judia?" tinha perguntado Gasparini. Esther tinha-o olhado como se não compreendesse. "É verdade? És judia?" repetira o garoto. O seu rosto exprimia subitamente um tal receio que Esther respondera muito depressa, zangada: "Eu? De maneira nenhuma!" O rosto de Gasparini não se tinha desanuviado. Disse: "O meu pai diz que se os alemães vierem aqui matam os judeus todos." De repente, Esther sentiu o coração bater com toda a força, dolorosamente, e o sangue entumescer-lhe as artérias do pescoço e bater nas têmporas e nos ouvidos. Sem compreender porquê, tinha os olhos rasos de lágrimas. Era o resultado da mentira. Ouvia a voz lenta e insistente do rapazito e a sua própria voz que ressoava, repetindo: "Eu? De maneira nenhuma!" O medo ou a dor transbordavam dos seus olhos. Por cima dos campos o céu estava de um azul quase negro e a luz brilhava nas foices e nas pedras das montanhas. O sol queimava-lhe as costas e os ombros através do vestido. Lá ao longe, no meio do campo, semelhantes a incansáveis formigas, as mulheres e as crianças andrajosas continuavam a procurar avidamente no meio do restolho e os dedos feridos sangravam.
Subitamente, sem dizer nada, Esther levantara-se e partira, andando pelo meio do restolho, cujos espetos lhe penetravam nas alpercatas. Atrás dela, ouvia a voz um pouco rouca do rapaz, gritando: "Hélène! Hélène, espera por mim! Onde vais?" Quando chegou à estrada onde as charretes esperavam o seu carregamento de medas, desatou a correr com todas as suas forças em direcção à aldeia. Corria sem se voltar, sem perder um instante, pensando que vinha um cão enraivecido atrás dela para conseguir correr ainda mais depressa. O ar fresco do vale deslizando por ela, depois do calor dos campos de trigo, era como água.
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Correu até se sentir mal e quase não conseguir respirar. Depois, sentou-se na beira da estrada e o silêncio era aterrador. Aproximou-se um camião guiado por carabineiros e envolto numa nuvem de fumo azulado. Os italianos fizeram-na subir lá para trás e, poucos instantes mais tarde, Esther apeava-se na praça da aldeia. Não contara à mãe o que se tinha passado lá em baixo onde andavam a ceifar. Durante muito tempo ficara na boca com o sabor acre dos grãos de trigo.
Os italianos tinham acabado por levar o piano do Sr. Ferne, uma manhã muito cedo, debaixo de chuva. A notícia espalhara-se sem se saber como. Juntaram-se todas as crianças da aldeia, bem como algumas velhas de avental e judeus com as suas casacas de Inverno vestidas por causa da chuva. O grande móvel mágico, de um negro brilhante, com os seus castiçais de cobre em forma de diabos, tinha começado a subir a rua, transportado por quatro soldados italianos uniformizados. Esther tinha visto passar aquele cortejo bizarro, aquele piano que oscilava e dançava como uma enorme uma e as plumas negras dos chapéus militares que se agitavam a cada balanço. Os soldados tinham tido que parar diversas vezes para retomar o fôlego e, de cada vez que poisavam o piano no chão, as cordas ressoavam com uma longa vibração semelhante a um queixume.
Fora nesse dia que Esther tinha falado com Rachel pela primeira vez. Seguira o cortejo de longe e depois descobrira o vulto do Sr. Ferne, que também subia a rua à chuva. Esther tinha-se escondido num portal, à espera, e Rachel detivera-se a seu lado. Gotas de água molhavam a sua linda cabeleira vermelha e escorriam-lhe pelo rosto como lágrimas. Talvez fosse por causa disso que Esther sentira desejo de ser sua amiga. Mas já o piano tinha desaparecido ao cimo da rua, direito ao Hotel Terminus. O Sr. Ferne passara à frente delas sem as ver, com o rosto pálido estranhamente contorcido numa careta por causa da ansiedade ou da chuva. A barbicha cinzenta agitava-se como se fosse a falar sozinho e talvez estivesse a lançar maldições aos soldados italianos na sua língua. Era simultaneamente cómico e triste e Esther sentia a garganta apertada porque compreendia subitamente o que era a guerra. Quando havia guerra, os homens, os polícias e os soldados
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com estranhos chapéus de plumas podiam tirar o piano do Sr. Ferne de casa dele para o levarem para a sala de jantar do Hotel Terminus, apesar do Sr. Ferne adorar esse piano mais do que qualquer outra coisa no mundo e ser tudo o que lhe restava na vida.
Então Rachel subiu a rua na direcção da praça e Esther caminhou a seu lado. Ao chegarem à praça, abrigaram-se debaixo de um plátano e ficaram a olhar a chuva que caía. Quando Rachel falava formava-se uma pequena nuvem de vapor em torno dos seus lábios. Esther sentia-se contente por estar ali, apesar do piano do Sr. Ferne, porque havia já muito tempo que queria falar com Rachel sem se atrever. Esther adorava os seus cabelos ruivos, compridos e caindo livremente sobre os ombros. Aquilo chocava muitas pessoas da aldeia, tanto as mulheres dali como os religiosos judeus, porque Rachel deixara de assistir às cerimónias e falava muitas vezes com os carabineiros italianos em frente do hotel. Mas era tão bela que Esther achava que não tinha importância não proceder como os outros. Tinha-a seguido muitas vezes, sem que ela se apercebesse, pelas ruas da aldeia, quando ia fazer compras ou quando, à tarde, passeava na praça com o pai e a mãe. As pessoas falavam dela e os rapazes diziam que saía à noite apesar do recolher obrigatório e ia tomar banho nua na ribeira. As raparigas contavam coisas menos extraordinárias mas mais venenosas. Diziam que Rachel andava com o capitão Mondoloni, que ia visitá-lo ao Hotel Terminus e que passeava com ele pelas estradas no automóvel blindado. Quando a guerra acabasse e os italianos tivessem sido derrotados, cortar-lhe-iam os belos cabelos e fuzilá-la-iam, como a todos os agentes da Gestapo e do exército italiano. Esther tinha a certeza que elas diziam aquilo porque tinham ciúmes.
Naquele dia, Esther e Rachel ficaram juntas durante um longo bocado, falando e olhando a chuva que picotava as poças de água. Quando a chuva parou, as pessoas vieram para a praça como todas as manhãs, as mulheres da região de avental e galochas, os judeus com os seus casacões e lenços e os velhos com as compridas casacas pretas e os chapéus. Também as crianças recomeçaram a correr, a maior parte delas andrajosas e descalças.
Depois Rachel chamou-lhe a atenção para o Sr. Ferne. Estava também na praça, escondido do outro lado do fontanário. Olhava na
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direcção do hotel como se pudesse ver o seu piano. A sua silhueta magra, que se esgueirava de uma árvore para outra, esticando o pescoço para tentar ver o interior do hotel, enquanto os carabineiros fumavam em frente da porta, tinha simultaneamente qualquer coisa de risível e de miserável que envergonhava Esther. Agarrou na mão de Rachel e arrastou-a para a rua do regato, seguindo até à estrada, por cima da ribeira. Avançaram juntas até à ponte pela estrada ainda brilhante de chuva sem dizerem uma palavra. Por baixo reuniam-se os dois cursos de água, formando turbilhões. Um caminho levava até à confluência, onde havia uma estreita praia de seixos. O ruído das torrentes era ensurdecedor, mas Esther adorava aquilo. Ali, não havia mais nada no mundo e não era possível falar. As nuvens tinham-se afastado e o sol brilhava sobre as pedras e fazia cintilar a água que corria rápida.
Esther e Rachel ficaram um bocado sentadas nas pedras molhadas vendo a água em turbilhão. Rachel puxou dos cigarros, um maço estranho, escrito em inglês. Começou a fumar e o fumo agri-doce do cigarro envolveu-a e atraiu as vespas. A dado momento, passou o cigarro a Esther para ela experimentar, mas o fumo fê-la tossir e Rachel riu.
Tornaram depois a subir o talude porque estavam com frio e sentaram-se no murinho, ao sol. Rachel começou a falar dos pais com uma voz estranha, dura e quase maldosa. Não gostava deles porque estavam sempre com medo e tinham fugido de sua casa, na Polónia, para se virem esconder em França. Não falava dos italianos, nem de Mondoloni, mas de repente procurou no bolso do vestido e mostrou um anel na palma da mão aberta.
- Olha o que me deram.
Era um anel antigo muito bonito, com uma pedra azul escura que brilhava no meio de outras pedras pequeninas, muito brancas.
- É uma safira - disse Rachel. - E as mais pequenas, em volta, são diamantes.
Esther nunca tinha visto nada assim.
- Não é lindo?
- É - concordou Esther. Mas não gostava daquela pedra sombria. Tinha um brilho estranho que fazia um certo medo. Esther achava
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que era como a guerra, como o piano que os carabineiros tinham tirado de casa do Sr. Ferne. Não disse nada, mas Rachel compreendeu e guardou imediatamente o anel no bolso.
- O que vais fazer quando a guerra acabar? - perguntou Rachel. E antes que Esther tivesse tempo para reflectir, continuou:
- Eu sei o que gostava de fazer. Queria tocar música, como o Sr. Ferne, tocar piano, cantar. Ir às grandes cidades, a Viena, a Paris, Berlim, à América, a todo o lado.
Acendeu outro cigarro e enquanto ela falava de tudo aquilo Esther observava o seu perfil aureolado pela cabeleira vermelha, luminosa, os braços, as mãos de longas unhas longas. Talvez por causa do fumo do cigarro ou do sol, Esther sentia a cabeça um pouco à roda. Rachel falava dos espectáculos em Paris, em Varsóvia, em Roma, como se realmente tivesse conhecido tudo aquilo. Quando Esther falou da música do Sr. Ferne, Rachel encolerizou-se imediatamente, dizendo que era um velho imbecil, um vagabundo, com o piano na cozinha. Esther não protestou para não destruir a imagem de Rachel, o seu perfil fino e a auréola de cabelos ruivos, para continuar a seu lado o máximo de tempo possível e sentir o aroma do seu cigarro. Mas era triste ouvi-la falar assim e pensar no piano do Sr. Ferne sozinho na grande sala de jantar cheia de fumo do Hotel Terminus, com os carabineiros a beberem e a jogarem às cartas. Fazia pensar na guerra, na morte, na imagem que vinha constantemente à cabeça de Esther do pai andando por imensos campos cobertos de mato, muito longe da aldeia, e desaparecendo como se não fosse mais voltar.
Quando Rachel acabou o cigarro inglês, atirou a beata para o fundo do vale e levantou-se, limpando o rabo com as mãos. Lado a lado, sem falar, regressaram à aldeia onde as chaminés fumegavam para a refeição do meio-dia.
Era já Agosto. Agora, todas as noites o céu se cobria de espessas nuvens brancas ou cinzentas, que assumiam formas fantásticas. Há já vários dias que o pai de Esther saía de manhã cedo, vestindo o seu fato completo de flanela cinzenta e levando na mão uma pequena pasta de estudante, a mesma que usava antigamente para ir dar aulas de
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História e Geografia no liceu de Nice. Esther observava com ansiedade o seu rosto tenso e sombrio. Abria a porta do apartamento, que ficava a um nível inferior à rua ainda escura, e voltava-se para dar um beijo à filha. Um dia, Esther perguntou-lhe: "Onde vais?" Respondeu quase secamente: "Vou ver umas pessoas." E acrescentou: "Não faças perguntas, Estrellita. Não deves falar disto nunca, percebes?" Esther sabia que ele ia ajudar judeus a atravessarem as montanhas, mas não perguntou mais nada. Era isso que fazia com que o Verão parecesse aterrador, apesar da beleza do céu azul, apesar dos prados com ervas tão altas, apesar do canto dos grilos e do cantar da água nas pedras das torrentes. Esther não conseguia estar um segundo quieta no apartamento. Lia no rosto da mãe a sua própria inquietação, no seu silêncio o peso da espera. Portanto, logo que acabava de beber a sua taça de leite quente do pequeno almoço, abria a porta do apartamento e subia a escada para a rua. Já lá estava fora quando ouvia a voz da mãe dizer: "Hélène! Vais já sair?" A mãe nunca lhe chamava Esther quando alguém de fora podia ouvi-la. Uma noite, na cama, às escuras, ouvira a mãe queixar-se que ela passava o tempo a vagabundear e o pai responder apenas: "Deixa-a lá, talvez sejam os últimos dias..." Desde então, essas palavras tinham-lhe ficado na cabeça: os últimos dias... Era isso que a atraía irresistivelmente para fora de casa. Era isso que tornava o céu tão azul, o sol tão deslumbrante, as montanhas e os prados tão atraentes, tão enfeitiçadores. Desde madrugada que Esther espreitava a luz pelos interstícios do cartão que tapava a janela do respiradouro; aguardava os sons breves dos pássaros que a chamariam, o pipilar dos pardais, os gritos agudos dos andorinhões que a convidariam a sair. Quando finalmente podia abrir a porta e sair para o ar fresco da rua, com o regatozinho correndo pelo meio das lajes, sentia uma extraordinária sensação de liberdade, uma felicidade sem limites. Podia ir até às últimas casas da aldeia, ver toda a extensão do vale, imenso sob a bruma da manhã, e esquecia as palavras do pai. Desatava então a correr pelo grande prado acima da ribeira sem se preocupar com as víboras e atingia o ponto em que o caminho começava a subir para a montanha. Era por ali que o pai ia todas as manhãs, rumo ao desconhecido. com os olhos encandeados pela claridade matinal, tentava descortinar os cumes mais altos, a floresta de larícios, as ravinas,
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os desfiladeiros perigosos. Lá em baixo, no fundo do vale, ouvia as vozes das crianças na ribeira. Divertiam-se a pescar lagostins-do-rio com água fria pelo meio das coxas, enfiadas nos fundões arenosos da torrente. Esther ouvia distintamente os risos das raparigas e os seus chamamentos estridentes: "Maryse! Maryse!..." Continuava a avançar pelo prado até as vozes e os risos se irem desvanecendo e desaparecerem. Do outro lado do vale ficava a encosta sombria da montanha, os amontoados de pedras avermelhadas misturados com maciços de espinheiros. O sol já queimava nos prados e Esther sentia o suor escorrer-lhe pelo rosto e debaixo dos braços. Mais adiante, ao abrigo de alguns blocos de rocha, não havia vento, nem um sopro, nem um ruído. Era esse silêncio que Esther procurava. Quando não se ouvia um único som humano mas apenas o canto agudo dos insectos e, de vez em quando, o grito breve de um andorinhão e a vibração das ervas, então sentia-se bem. Ouvia o seu coração batendo compassadamente e até o som do ar saindo das narinas. Não sabia o que a levava a desejar tanto esse silêncio; sabia apenas que se sentia bem, que lhe era necessário. Então, pouco a pouco, o medo desaparecia. A luz do sol, o céu em que as nuvens começavam a acumular-se e os imensos campos onde as moscas e as abelhas pareciam suspensas na luz, as muralhas sombrias das montanhas e das florestas, tudo isso podia continuar, continuar, continuar. Tinha então a certeza de que não era ainda o último dia, tudo aquilo havia de permanecer, de continuar, nada iria interferir.
Um dia, Esther tinha querido mostrar esse local, esse segredo a alguém. Levara Gasparini através dos campos até aos blocos de rocha. Felizmente, ele não tinha falado das víboras, provavelmente para mostrar que não tinha medo. Mas quando chegaram perto das pedras amontoadas dissera muito depressa: "Não gosto de estar aqui, vou descer." E partira correndo. Mas Esther não tinha ficado zangada. Sentia-se simplesmente admirada por ter compreendido a razão que levara o rapaz a partir tão apressadamente: ele não sentia necessidade de saber que tudo aquilo permaneceria imutável, que tudo aquilo continuaria dia após dia, durante anos e séculos, e que ninguém o poderia alterar.
Não eram os prados com víboras que metiam medo a Esther. O que a assustava eram as ceifas. Os campos de trigo eram como as
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árvores que perdem as folhas. Esther tinha voltado uma vez aos campos ceifados onde fora com Gasparini, no fundo do vale, para os lados de Roquebillière.
Os campos estavam agora quase completamente ceifados. A linha dos homens empunhando as grandes lâminas brilhantes desfizera-se e apenas restavam alguns grupos isolados que ceifavam na parte alta, na encosta da colina, em socalcos estreitos. As crianças atavam as últimas medas e as mulheres e garotos pobres vagueavam por entre o restolho mas os seus sacos permaneciam vazios.
Esther sentara-se no talude olhando os campos nus. Não compreendia porque sentia aquela tristeza, aquela raiva, quando o céu estava tão azul e o sol brilhava sobre os campos ceifados. Gasparini sentara-se a seu lado. Não falavam. Viam os ceifeiros avançar ao longo dos socalcos. Gasparini tinha uma mancheia de espigas e ia trincando os grãos de trigo, saboreando demoradamente o seu sabor agri-doce. Gasparini nunca mais tinha falado da guerra nem dos judeus e tinha um ar tenso, inquieto. Era um rapazote de quinze ou dezasseis anos mas já grande e forte como um homem, com faces que coravam facilmente como as das raparigas. Esther sentia-se muito diferente do rapaz mas, apesar disso, gostava muito dele. Quando os amigos passavam na estrada, ao longo dos campos, lançavam-lhe graçolas e ele fitava-os irritado, soerguendo-se como se lhes quisesse bater.
Um dia, Gasparini veio buscar Esther a casa logo de manhã. Desceu os degraus abaixo do nível da rua e bateu à porta. Foi a mãe de Esther que abriu. Olhou-o por momentos sem compreender mas depois reconheceu-o e mandou-o entrar para a cozinha. Era a primeira vez que entrava em casa de Esther. Olhou em redor o compartimento escuro e estreito, a mesa de madeira e os bancos, a panela de ferro fundido, as caçarolas poisadas numa prateleira. Quando Esther chegou quase deu uma gargalhada ao vê-lo tão atrapalhado em frente da mesa, com o olhar fixo na toalha de oleado. De vez em quando enxotava as moscas com as costas da mão.
Elizabeth trouxe a garrafa de sumo de cereja que tinha preparado na Primavera. Gasparini bebeu o copo de sumo e depois tirou um lenço
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do bolso para enxugar a boca. O silêncio que pairava na cozinha fazia com que o tempo parecesse ainda mais longo. Acabou por decidir-se a falar, com uma voz um pouco rouca: "Queria pedir autorização para acompanhar a Hélène à igreja na sexta-feira, à festa." Fitava Esther, em pé à sua frente, como se ela pudesse vir em seu auxílio. "Que festa?" perguntou Elizabeth. "Na sexta feira é a festa de Nossa Senhora" explicou Gasparini. "A Nossa Senhora tem de voltar para a montanha e vai deixar a igreja." Elizabeth voltou-se para a filha: "Então? Tu é que tens de decidir." Esther disse, muito séria: "Se os pais concordarem, eu vou." Elizabeth respondeu: "Por mim, dou-te autorização, mas tens de pedir também ao teu pai."
A cerimónia realizou-se na sexta, como estava previsto. Os carabineiros tinham dado autorização e logo desde manhã as pessoas começaram a chegar à pequena praça em frente da igreja. Lá dentro, as crianças acenderam velas e puseram flores. A quase totalidade das pessoas eram mulheres e homens de idade, porque a maior parte dos homens novos estavam prisioneiros e não tinham regressado da guerra. As raparigas vieram com os seus vestidos de Verão decolados, sem meias, de alpergatas, só com um lenço na cabeça. Gasparini foi buscar Esther. Vestia um fato completo cinzento claro, com calças de golfe, pertencente ao irmão mais velho, que só o usara no dia da comunhão solene. Era a primeira vez que punha uma gravata, de um vermelho cor de vinho. A mãe de Esther esboçou um sorriso um tanto trocista ao ver o jovem aldeão endomingado, mas Esther lançou-lhe um olhar de reprovação. O pai de Esther apertou a mão a Gasparini e dirigiu-Lhe algumas palavras amáveis. O rapaz estava muito impressionado com a sua elevada estatura e com o facto de ele ser professor. Quando Esther pedira autorização ao pai, este tinha respondido sem hesitar: "Sim, sim. É importante que vás a essa festa." Dissera aquilo com um ar tão sério que a pequena ficara intrigada.
Agora, ao ver a igreja tão cheia, compreendia por que era tão importante. As pessoas tinham vindo de todos os lados, mesmo das quintas mais isoladas da montanha ou dos currais de ovelhas de Oréon ou Mollières. Na praça grande, em frente do Hotel Terminus com a bandeira italiana hasteada, os carabineiros e os soldados viam passar a multidão.
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Começou cerca das dez horas. O padre entrou na capela, seguido por parte da multidão. No meio, iam três homens com fato azul escuro. Gasparini murmurou ao ouvido de Esther: "Estás a ver aquele? É o meu primo." Esther reconheceu o rapaz que ceifava trigo no campo perto de Roquebillière. "Quando a guerra acabar, ele é que vai levar a Nossa Senhora até lá cima, à montanha." A igreja estava cheia e eles já não conseguiram entrar. Ficaram no adro, ao sol, esperando. Quando o sino começou a tocar, a multidão agitou-se e os três homens surgiram, transportando a imagem. Esther via a imagem de Nossa Senhora pela primeira vez. Era uma mulher pequena, com o rosto cor de cera, que segurava nos braços um bebê com um estranho olhar de adulto. A imagem envergava um grande manto de cetim azul que brilhava ao sol. Também os cabelos, negros e fortes como a crina de um cavalo, brilhavam. A multidão afastara-se para deixar passar a imagem que oscilava acima das cabeças e os três homens voltaram para dentro da igreja. No meio do brouhaha distinguia-se o som da Ave Maria. "Quando a guerra acabar, o meu primo irá com os outros levar a imagem ao santuário que fica na montanha." Gasparini repetia aquilo com uma espécie de impaciência. Quando a cerimónia terminou, toda a gente veio para a praça. Pondo-se na ponta dos pés, Esther tentou ver os soldados italianos. Os seus uniformes cinzentos formavam uma mancha estranha à sombra das tílias. Mas quem Esther queria ver era Rachel.
Um pouco afastados, os velhos judeus também observavam. Distinguiam-se bem de longe, com os seus fatos pretos, os chapéus, os lenços das mulheres e a palidez da sua pele. Apesar do calor do sol intermitente, os velhos não tinham tirado as suas casacas. Olhavam sem falar, acariciando as barbas. As crianças judias não se misturavam com a multidão endomingada, ficando ao pé dos pais, sem se mexerem.
De súbito, Esther viu Tristan. Estava na orla da praça, com as crianças judias. Não se mexia, olhava apenas e o seu rosto tinha uma expressão estranha, uma careta que o sol imobilizara.
Esther sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto. Libertou-se da mão de Gasparini e avançou para Tristan. O coração batia-lhe com força e ela estava convencida que era de raiva: "Por que estás sempre a olhar para
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mim? Por que é que me vigias?" O pequeno recuou ligeiramente. Os olhos azuis escuros brilhavam, mas não respondeu. "Vai-te embora! Vai brincar, deixa-me, não és meu irmão!" Esther ouviu a voz de Gasparini chamando: "Hélène! Anda cá, onde vais tu?" O olhar de Tristan exprimia uma tal angústia que ela se deteve por momentos e adoçou a voz para dizer: "Desculpa, eu volto já. Não sei por que te disse aquilo." Atravessou a multidão de cabeça baixa, sem responder a Gasparini. As raparigas afastavam-se para deixá-la passar. Começou a descer a rua do regato, agora deserta. Mas não queria voltar para casa, não queria ter de responder às perguntas da mãe. Longe da praça, ouvia o ruído das vozes humanas, os risos, os chamamentos e, acima de tudo, como um zumbido, a voz do padre que cantava na igreja Ave, Ave, Ave Mari-i-ia...
Ao fim da tarde, Esther voltou à praça. A maior parte das pessoas já tinham ido embora mas do lado das tílias havia um grupo de rapazes e raparigas. Ao aproximar-se, ouviu o som da música de um acordeão. No meio da praça, junto da fonte, havia mulheres que dançavam umas com as outras ou com rapazitos muito novos que mal lhes chegavam aos ombros. Os soldados italianos estavam de pé, em frente do hotel, fumando e ouvindo a música.
Agora, Esther procurava Rachel. Lentamente, avançava em direcção ao hotel com o coração a bater. Espreitava para a grande sala e, pela porta aberta, via os soldados e os carabineiros. Em cima do piano do Sr. Ferne estava um gramofone a tocar uma espécie de mazurca lenta e roufenha. Lá fora, as mulheres rodopiavam, com os rostos afogueados brilhando ao sol. Esther passava em frente delas, em frente dos rapazes, em frente dos carabineiros, e aproximava-se da porta do hotel.
O sol estava baixo no céu e iluminava completamente a grande sala, entrando pelas janelas abertas para o jardim. A luz incomodava Esther, provocava-lhe vertigens. Talvez fosse por causa do que o pai dissera, que tudo tinha que acabar. Quando entrou na sala, sentiu-se aliviada mas o coração continuava a bater com toda a força no peito. Viu Rachel. Estava com os soldados emplumados, no meio da sala
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cujas mesas e cadeiras tinham sido afastadas para junto da parede, e dançava com Mondoloni. Havia mais mulheres na sala, mas Rachel era a única que dançava. As outras viam-na revolutear, com o vestido esvoaçando e deixando ver as pernas esguias e o braço nu levemente poisado no ombro do soldado. De vez em quando, os carabineiros e os soldados paravam à sua frente e Esther tinha de pôr-se na ponta dos pés para a ver. Não conseguia distinguir-lhe a voz por causa do barulho da música, mas julgava perceber de vez em quando uma exclamação, uma gargalhada. Rachel nunca lhe tinha parecido tão bela. Devia ter bebido já bastante, mas era daquelas pessoas que controlam bem a bebedeira. Apenas se mantinha demasiado hirta enquanto girava e girava ao som da mazurca e a longa cabeleira de um vermelho escuro varria-lhe as costas. Esther tentava em vão captar-lhe o olhar. O rosto mate estava inclinado para trás, tinha partido para algures, para um outro mundo, transportada pela música e pela dança. Os soldados e os carabineiros estavam todos voltados para ela e observavam-na enquanto iam fumando e bebendo. Esther julgou ouvi-los rir. Em frente da porta, os garotos paravam para tentar ver e as mulheres esticavam-se para distinguir a silhueta clara que dançava na enorme sala. Então os carabineiros voltavam-se para eles, faziam gestos e toda a gente se afastava. Lá fora, na praça, os jovens permaneciam à parte, do outro lado da fonte. Ninguém parecia prestar atenção. Era isso que fazia bater o coração de Esther: sentia que aquilo não era normal, que havia algures uma espécie de mentira. As pessoas fingiam não ver nada mas estavam a pensar em Rachel, odiavam-na do fundo dos seus corações, mais ainda do que aos soldados italianos.
A música não parava, com o seu som roufenho, as polcas ritmadas em cima do piano do Sr. Ferne, a voz estrangulada do clarinete que se enrolava no ar.
Quando Esther saiu do hotel, Gasparini estacou à frente dela com os olhos chispantes de cólera. "Anda, vamos passear." Esther abanou a cabeça e desceu a ruela até ao ponto em que se podia ver o vale. Queria estar só e não ouvir mais nem a música nem as vozes. A dado momento, Gasparini agarrou-lhe no pulso e puxou-a para si desajeitadamente, segurando-a pela cintura como se quisesse dançar. Tinha o rosto afogueado de calor, a gravata sufocava-o. Inclinou-se para
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Esther e tentou beijá-la. Ela sentiu o seu cheiro, um cheiro forte, que a amedrontava e atraía simultaneamente, um cheiro de homem. Começou a empurrá-lo, repetindo a princípio "deixa-me em paz, deixa-me!" e depois debateu-se com raiva e esbofeteou-o. Gasparini ficou especado no meio da rua, sem perceber. Os garotos riam em volta deles. Nessa altura, Tristan saltou-lhe ao pescoço procurando imobilizá-lo, mas era muito pequeno e ficou pendurado, com os pés no ar. Gasparini libertou-se com um empurrão e atirou-o ao chão, gritando: "Estuporzeco duma figa! Se continuas parto-te a cabeça!" Esther desatou a correr rua abaixo o mais rapidamente que pôde e desceu pelo meio dos campos até à torrente. Parou e sentiu o coração a bater no peito e na garganta. Mesmo ali, junto da ribeira, ainda ouvia a música triste e lamurienta da festa, o clarinete repetindo incansavelmente a mesma frase no disco enquanto Rachel rodopiava nos braços de Mondoloni com o rosto pálido impassível e distante como o de um cego.
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As noites eram escuras por causa do recolher obrigatório. Era preciso correr as cortinas nas janelas e tapar todos os interstícios com trapos e papéis. Os homens do maquis chegavam à tarde, por vezes. Instalavam-se na cozinha acanhada, sentando-se nos bancos em redor da mesa coberta com o oleado. Esther conhecia-os bem mas não sabia o nome da maior parte deles. Havia os da aldeia e dos arredores, que abalavam antes de anoitecer, e havia os que vinham de longe, de Nice ou de Cannes, os enviados de Ignace Finck, Gutman, Wister ou Appel. Havia mesmo alguns que vinham dos maquis italianos. Entre eles, Esther gostava particularmente de um. Era um rapaz com os cabelos tão ruivos como os de Rachel a quem chamavam Mario. Vinha do lado de lá da montanha, onde os camponeses e os pastores italianos lutavam contra os fascistas. Quando chegava, estava tão cansado que ficava a dormir no chão da cozinha, em cima de almofadas. Não falava muito com os outros do maquis. Preferia brincar com Esther. Contava-lhe histórias engraçadas, metade em francês e metade em italiano, histórias que ia pontuando com grandes gargalhadas. Tinha uns olhinhos pequenos de um verde estranho, olhos de serpente, pensava Esther. Às vezes, quando passava a noite na cozinha, ia de madrugada passear com ela em redor da aldeia, sem se preocupar com os soldados do Hotel Terminus.
Iam até aos prados por cima da ribeira. Entravam juntos pelo meio das ervas altas, com Esther a seguir o caminho que ele abria na vegetação. Fora a primeira pessoa a falar-lhe das víboras. Mas não tinha
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medo delas. Dizia que era capaz de as domesticar e mesmo de as agarrar, assobiando como quem assobia aos cães.
Uma manhã, levou-a através dos campos ainda até mais longe, para além da confluência dos dois cursos de água. Esther avançava atrás dele com o coração a bater, ouvindo Mario modular os seus estranhos assobios, suaves e agudos, uma música que nunca ouvira. O calor do sol já se fazia sentir na vegetação e as montanhas em redor do vale pareciam gigantescas muralhas de onde nasciam as nuvens. Andaram durante muito tempo pelo meio das ervas, com os assobios doces de Mario parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo e provocando uma sensação de vertigem. De repente, o rapaz estacou levantando a mão. Esther aproximou-se dele por trás, sem fazer barulho. Mario voltou-se para ela. Os olhos verdes cintilavam. Num sussurro, disse: "Olha!" Através das ervas, na praia de areia e seixos, à beira da ribeira, viu qualquer coisa que não compreendeu o que era. Parecia tão estranho que não conseguia afastar os olhos. Assemelhava-se a uma corda grossa, formada por dois cordões curtos e retorcidos, cor de folhas mortas, que brilhava ao sol como se acabasse de sair da água. De repente, Esther estremeceu: a corda mexia-se. Horrorizada, olhava através das ervas as duas víboras enlaçadas que deslizavam e se contorciam na praia. A dado momento, as cabeças separaram-se revelando o focinho curto, os olhos de pupilas verticais, as bocas entreabertas. As víboras permaneciam ligadas uma à outra, com o olhar fixo como se estivessem em transe. Depois os corpos recomeçaram a torcer-se na praia, rastejando por entre os seixos, formando lentamente anéis, ligados um ao outro por nós que deslizavam de cima a baixo e se desfaziam quando as caudas se agitavam como chicotes. Continuavam a rastejar, a enrolar-se e, apesar do barulho da ribeira, Esther julgava ouvir o raspar das escamas umas de encontro às outras. "Estão a lutar?" perguntou, esforçando-se por falar em voz muito baixa. Mario olhava as víboras. Todo o seu rosto se concentrava no olhar, nos seus olhos estreitos e fendidos como os das serpentes. Voltou-se para Esther e disse: "Não, estão a amar-se." Esther olhou então ainda com mais atenção as víboras unidas que deslizavam na praia, por entre os seixos, sem se aperceberem da presença deles. Aquilo demorou muito tempo; as serpentes ficavam por vezes imóveis e frias como ramos de
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árvores, outras vezes trêmulas e chicoteando o solo, tão estreitamente ligadas que nem se distinguiam as cabeças. Por fim, os dois corpos acalmaram e as cabeças tombaram cada uma para seu lado. Esther via as pupilas fixas, semelhantes a uma seteira, e a respiração que lhes dilatava os corpos fazia brilhar as escamas. Muito lentamente, uma das víboras desfez o nó e deslizou para longe, desaparecendo pelo meio das ervas na margem da ribeira. Quando a outra começou a rastejar, Mario assobiou daquela forma estranha, por entre os dentes, quase sem abrir os lábios, um assobio fininho, leve, quase inaudível. A serpente ergueu a cabeça e olhou fixamente para Mario e para Esther em pé à sua frente, no meio das ervas. A pequena sentiu o coração estremecer sob aquele olhar. A víbora hesitou um instante, a larga cabeça formando um ângulo recto com o corpo erguido. Depois, num abrir e fechar de olhos, desapareceu por sua vez no meio da vegetação.
Mario e Esther voltaram para a aldeia. Não falaram durante todo o caminho através das ervas altas, atentos apenas ao que estava sob os seus pés, Quando chegaram à estrada, Esther perguntou: "Nunca as matas?" Mario desatou a rir. "Também as sei matar." Pegou num pauzinho da beira do caminho e mostrou-lhe como se deve fazer, dando uma pancada seca no pescoço de serpente, junto à cabeça. Esther perguntou ainda: "E podias tê-las morto lá?" Uma expressão estranha surgiu no seu rosto. "Não, lá não podia. Seria muito mal feito matá-las."
Era por isso que Esther adorava Mario. Um dia, em vez de lhe contar histórias, relatara-lhe um pouco da sua vida, alguns pedaços. Antes da guerra era Pastor para as bandas de Valdieri. Não tinha querido ir para a guerra e escondera-se na montanha. Mas os fascistas tinham morto todas as suas ovelhas e o cão e Mario juntara-se ao maquis.
Esther tinha agora documentos falsos. Uma tarde, os homens tinham vindo com Mario até à sua cozinha e posto em cima da mesa bilhetes de identidade para todos: para Esther, para o pai, para a mãe e também para Mario. A pequena tinha olhado durante muito tempo o cartão amarelo com a fotografia do pai e lera o que lá estava escrito:
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Apelido: JAUFRET. Nome: Pierre Michel
Nascido a: 10 de Abril de 1910
Local: Marselha (Bouches-du-Rhône)
Profissão: Comerciante
Sinalética:
Nariz: rectilíneo
Base: média
Dimensão: média
Forma geral do rosto: longo
Pele: clara
Olhos: verdes
Cabelos: castanhos
Olhara depois para o da mãe, em nome de LEROY, casada com JAUFRET, nome: Madeleine, nascida a 3 de Fevereiro de 1912 em Pontivy (Morbihan), sem profissão. Por fim o seu: JAUFRET, Hélène, nascida a 22 de Fevereiro de 1931 em Nice (Alpes-Marítimos), sem profissão, sinalética: nariz: rectilíneo, base: média, dimensão: média, forma geral do rosto: oval, pele: clara, olhos: verdes, cabelos: pretos.
Os homens conversaram durante muito tempo em redor da mesa, com os rostos iluminados de forma fantasmagórica pela luz do candeeiro de petróleo. Esther tentava ouvir o que diziam, sem compreender, como se fossem ladrões preparando um assalto. Fitava o rosto largo de Mario, os seus cabelos ruivos, os olhos estreitos e oblíquos e pensava que ele talvez estivesse a sonhar com as víboras no campo, ou com as lebres que apanhava nas suas armadilhas em noites de lua cheia.
Quando os homens conversavam com o pai havia sempre um nome que era pronunciado, um nome que não conseguia esquecer porque soava bem, era como o nome de um herói dos livros de História do pai: Ângelo Donati. Ângelo Donati tinha dito isto, Ângelo Donati tinha feito aquilo, e todos os homens aprovavam. Ângelo Donati tinha arranjado um barco em Livorno, um grande barco à vela e a motor que transportaria todos os fugitivos, que os salvaria. O barco atravessaria o mar e levaria os judeus até Jerusalém, longe dos alemães. Esther ouvia tudo aquilo deitada no chão em cima das almofadas
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que serviam de cama a Mario e ficava semi-adormecida sonhando com o barco de Ângelo Donati e com a longa viagem por mar até Jerusalém. Então Elizabeth levantava-se, rodeava Esther com os braços e iam juntas para o pequeno quarto de alcova onde se encontrava a cama da pequena. Antes de adormecer, Esther perguntava: "Quando vamos no barco do Ângelo Donati? Quando vamos para Jerusalém?" A mãe beijava-a e dizia alegremente mas em voz baixa, velada com um tom de inquietação "Dorme. Nunca fales de Ângelo Donati a ninguém, percebes? É um segredo." Esther insistia: "Mas é verdade que esse barco vai levar toda a gente para Jerusalém?" Elizabeth respondia: "É verdade e talvez nós vamos também até Jerusalém." Esther ficava de olhos abertos no escuro e ouvia o som das vozes que ressoava surdamente na pequena cozinha, o riso de Mario.
Depois, os passos afastavam-se na rua, a porta fechava-se. Quando o pai e a mãe vinham deitar-se na cama grande ao lado da sua e ouvia o ruído da sua respiração, adormecia.
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Estava-se já no fim do Verão, com a chuva ao fim da tarde e o som da água escorrendo nos telhados e em todas as valetas. Pela manhã, o sol brilhava sobre as montanhas e Esther bebia a sua taça de leite o mais depressa que conseguia para vir cá para fora. Na praça, junto à fonte, esperava por Tristan e desciam correndo com os outros miúdos a rua do regato até à ribeira. A água do Boréon, alterada pelas chuvas, era fria e violenta. Os rapazes ficavam lá em baixo e Esther subia com as outras pequenas até ao ponto em que a torrente cai em cascata sobre grandes blocos de pedra. Despiam-se nas moitas. Como a maior parte das raparigas, Esther tomava banho de cuecas, mas havia algumas, como Judith, que não se atreviam a tirar a combinação. O que era bom era entrar na torrente no ponto em que ela era mais forte e, agarrando-se aos rochedos, deixar a água escorrer ao longo do corpo. A água caía, batia-lhes nos ombros e no peito, deslizava pelas ancas e ao longo das pernas fazendo um ruído contínuo. Então esqueciam tudo e a água fria lavava-as até ao mais profundo de si mesmas, libertava-as de tudo o que as pudesse perturbar, queimar interiormente. Judith, a amiga de Esther (não era verdadeiramente uma amiga, não era assim como Rachel, mas estavam sentadas uma ao lado da outra nas aulas de Sr. Seligman) falara do baptismo que apaga os pecados. Esther pensava que devia ser assim, uma ribeira transparente e fria que escorria sobre nós e lavava tudo. Quando saía da água e ficava de pé, ao sol, cambaleando sobre a rocha plana, tinha a impressão de ser uma pessoa nova e que todo o mal e toda a raiva tinham
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desaparecido. Depois, desciam para onde estavam os rapazes, que em vão tinham escarafunchado em todos os buracos da torrente procurando lagostins-do-rio e, para se vingarem de não terem pescado nada, atiravam água às raparigas.
A seguir, sentavam-se todos numa grande pedra lisa sobre a torrente e esperavam, olhando a água. O sol elevava-se no céu ainda sem nuvens. A floresta de bétulas e castanheiros iluminava-se. Vespas irritadas voavam à sua volta, atraídas pelas gotas de água presas nos cabelos e na pele nua. Esther estava atenta a cada pormenor, a cada sombra. Olhava com uma atenção quase dolorosa tudo o que estava perto ou longe, a linha de crista dos Caíres de encontro ao céu, os pinheiros recortados no cimo das colinas, os arbustos espinhosos, as pedras, os mosquitos suspensos na luz. Os gritos das crianças, as risadas das raparigas, cada palavra ressoava estranhamente dentro dela duas ou três vezes, como os latidos dos cães. Gasparini com o seu rosto vermelhusco, os cabelos cortados muito curto e os largos ombros de homem, e os outros, Maryse, Anne, Bernard, Judith, muito magros nas suas roupas molhadas, com o olhar oculto na sombra das órbitas e as silhuetas simultaneamente frágeis e distantes, eram estranhos, incompreensíveis. Tristan não era como os outros, era desajeitado e tinha um olhar muito doce. Agora, quando iam passear nos arredores da aldeia, Esther segurava-lhe na mão. Brincavam aos namorados. Desciam até à torrente e ela arrastava-o para o desfiladeiro saltando de pedra em pedra. Achava que era o que melhor sabia fazer na vida: correr pelos rochedos, saltar com leveza calculando o impulso a dar, escolher a passagem numa fracção de segundo. Tristan queria segui-la mas Esther era demasiado rápida para ele. Saltava tão depressa que ninguém a podia acompanhar. Saltava sem pensar, descalça, com as alpergatas na mão, e depois detinha-se para ouvir a respiração ofegante do rapaz que não conseguia segui-la. Quando tinha subido já até muito acima na torrente, parava à borda de água oculta por uma rocha e escutava todos os ruídos, os estalidos, a vibração dos insectos que se misturava com o barulho da corrente; ouvia os cães ladrar muito ao longe e depois a voz de Tristan gritando o seu nome: "Hélène! Hé-lè-ne!..." Gostava de não responder, de ficar aninhada ao abrigo da rocha, porque era como se fosse dona da sua vida e pudesse decidir
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sobre tudo o que viria a acontecer-lhe. Era um jogo, mas não falava dele a ninguém. Quem poderia compreender? Quando Tristan já estava rouco de tanto gritar, descia a torrente e Esther podia então sair do seu esconderijo. Subia a encosta até ao carreiro e seguia na direcção do cemitério. Quando lá chegava, gesticulava exageradamente e gritava para que Tristan a visse. Mas às vezes voltava sozinha para a aldeia, ia para casa, atirava-se para cima da cama e chorava com o rosto enfiado na almofada. Nunca soube porquê.
Era o final, o momento mais ardente do Verão, quando os prados ficavam amarelos e o restolho fermentava nos campos com um calor acre. Esther fora mais longe do que nunca, sozinha, ultrapassando o lugar onde os pastores guardavam o gado durante o Inverno, os abrigos de pedra nua sem janelas, os buracos abobadados como grutas.
De repente, as nuvens apareceram ocultando a luz como se uma gigantesca mão se tivesse aberto no céu. Esther estava tão longe que se julgava perdida, como nos sonhos, quando o pai desaparecia nos campos de altas ervas. Não era verdadeiramente aterradora aquela sensação de estar perdida à entrada dos desfiladeiros, no interior sombrio da montanha. Estremecia por causa das histórias de lobos. Mario contara-lhe dos lobos que no Inverno, em Itália, avançavam na neve uns atrás dos outros e que desciam aos vales para roubar cordeiros e cabritinhos. Mas talvez fosse o vento de chuva que fazia estremecer Esther. Em pé sobre uma rocha, acima dos silvados, via as nuvens cinzentas que cobriam os flancos das montanhas e subiam o estreito vale. Formavam uma cortina que engolia as paredes rochosas, as florestas, os blocos de pedra. O vento começou a soprar com força e um frio cortante sobrepôs-se ao calor das ervas fermentadas. Esther começou a correr, tentando regressar antes da chuva aos abrigos dos pastores. Mas já gotas geladas, enormes, fustigavam o chão. Era a vida que se vingava, que recuperava o tempo que Esther tinha roubado nos seus esconderijos. Corria e o coração batia-lhe com toda a força no peito.
O curral era imenso, uma espécie de gruta, formando um longo túnel no interior da montanha. Havia morcegos no tecto escuro. Esther acocorou-se na entrada semi-protegida por um silvado. Sentia-se
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mais calma, agora que a chuva caía. Brilhavam clarões nas nuvens. A água começou a correr pela colina abaixo, formando grandes regatos vermelhos. Em breve o Sr. Seligman ia reabrir as portas da escola, os dias seriam cada vez mais curtos e a neve cairia nas montanhas. Esther pensava nisso vendo a chuva cair e os regatos escorrerem por ali abaixo. Pensava que caminhava para outra coisa, mas não sabia o quê.
Naqueles dias, os últimos dias, as pessoas não eram as mesmas. Tinham uma espécie de pressa quando falavam, quando se moviam. Eram sobretudo as crianças que tinham mudado. Estavam impacientes e irritadiças quando brincavam, quando iam pescar ou tomar banho na torrente, quando corriam na praça. Gasparim disse outra vez: "Os alemães vão vir qualquer dia e levar todos os judeus." Disse aquilo como uma certeza e Esther sentiu a garganta apertar-se uma vez mais, porque era isso que o tempo trazia, e que ela queria impedir. Disse: "Então também me vão levar a mim." Gasparini fitou-a atentamente: "Se tiveres papéis falsos não te levam." E acrescentou: "Hélène não é um nome judeu." Esther disse então sem gritar, friamente: "Eu não me chamo Hélène, chamo-me Esther. É um nome judeu." Gasparini comentou: "Se os alemães vierem, tens que te esconder." Pela primeira vez, tinha um ar perturbado. Acrescentou: "Se os alemães vierem, escondo-te no celeiro."
Na praça, os rapazes falavam de Rachel. Quando Esther se aproximou, mandaram-na embora empurrando-a: "Vai-te embora! És muito pequena!" Mas Anne sabia do que eles falavam porque o irmão mais velho pertencia ao grupo. Ouvira-os dizer que tinham descoberto onde o capitão Mondoloni se encontrava com Rachel, um velho celeiro do outro lado da ponte, perto da ribeira. Era meio-dia mas, em vez de ir almoçar, Esther correu pela estrada até à ponte e depois através dos campos até ao celeiro. Ao chegar, ouviu os gritos dos corvos no silêncio e pensou que os rapazes tinham inventado uma história. Mas quando se aproximou da velha construção, viu-os emboscados atrás dos arbustos. Havia vários rapazes, dos grandes, e também raparigas. O celeiro fora construído encavalitado sobre duas plataformas que ficavam num nível inferior ao da rua. Esther desceu até lá pelo talude sem fazer barulho. Estavam três rapazes deitados no chão, espreitando
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para dentro do celeiro por uma frincha no cimo da parede, mesmo por baixo do tecto. Quando Esther chegou, levantaram-se e começaram a bater-lhe sem dizer uma palavra. Deram-lhe murros e pontapés enquanto um deles a segurava. Esther debatia-se com os olhos cheios de lágrimas mas sem gritar. Procurou agarrar o pescoço do que a segurava e este recuou, vacilante. O rapaz recuava com Esther agarrada ao pescoço com todas as suas forças, enquanto os outros lhe batiam nas costas para a obrigarem a largar a presa. Por fim, caiu no chão com os olhos velados por uma nuvem de sangue. Os rapazes subiram o talude e fugiram pela estrada. Depois, a porta do celeiro abriu-se e através da nuvem vermelha Esther viu Rachel a olhar para ela. Tinha o seu lindo vestido claro e o sol fazia os cabelos brilharem como se fossem de cobre. A seguir saiu o capitão atrás dela, compondo a farda. Trazia o revolver na mão. Quando viu Esther no talude e os rapazes a fugir, desatou a rir e disse qualquer coisa em italiano. Nessa altura, Rachel começou a gritar com uma estranha voz esganiçada e vulgar que Esther não reconhecia. Escalava a inclinação do talude com a cabeleira a refulgir e apanhava pedras que atirava desajeitadamente na direcção dos rapazes que fugiam, sem conseguir atingi-los. As dores impediam Esther de se levantar e ela começou a subir o talude rastejando, procurando desesperadamente um buraco para se esconder, para acabar com a vergonha e o medo. Mas Rachel voltou, sentou-se na erva a seu lado, acariciou-lhe os cabelos e o rosto, dizendo com uma voz enrouquecida por ter gritado tanto: "Não é nada, minha querida. Já passou..." Acabaram por ficar sozinhas no declive coberto de erva, ao sol. Esther tremia de frio e cansaço enquanto olhava a luz nos cabelos vermelhos de Rachel e sentia o cheiro do seu corpo. Desceram depois até à torrente e Rachel ajudou-a a lavar cuidadosamente o rosto onde o sangue tinha coagulado. Esther estava tão fatigada que teve que se apoiar a Rachel para subir a encosta até à aldeia. Gostaria que chovesse agora, que a chuva nunca mais deixasse de cair até ao Inverno.
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Foi à noite que Esther soube da morte de Mario. Na escuridão, ouviram-se umas leves pancadas na porta e o pai deixou entrar os homens: um judeu chamado Gutman e outros dois que vinham de Lantosque. A pequena esgueirou-se da cama e entreabriu a porta do quarto com os olhos franzidos por causa da luz da cozinha. Deixou-se ficar ali à porta, espreitando os homens que sussurravam em redor da mesa como se falassem com a lamparina de azeite. Elizabeth estava sentada com eles e também fitava a chama da lamparina sem dizer nada. Esther compreendeu imediatamente que algo de grave se passava. Quando os três homens se foram embora, mergulhando de novo na noite, o pai de Esther viu-a, de pé em camisa de noite na frincha da porta e disse primeiro, quase com dureza: "Que estás tu a fazer aí? Volta para a cama!" Depois, veio até junto dela e apertou-a nos braços como se lamentasse ter-lhe gritado. Elizabeth aproximou-se, com as lágrimas correndo pela cara abaixo, e disse: "O Mario morreu." O pai contou então o que acontecera. Eram apenas palavras mas no entanto, para Esther, pareciam nunca mais acabar, era uma história que recomeçava constantemente, como nos sonhos. Naquela tarde, enquanto Esther descia em direcção ao celeiro abandonado onde Rachel se encontrava com o capitão Mondoloni, Mario seguia pela montanha com a mochila cheia de plástico, detonadores de acção retardada e cartuchos de tolamite, para se juntar ao grupo que ia fazer explodir a instalação eléctrica de Berthemont, onde os alemães acabavam de instalar o seu quartel-general. O sol brilhava sobre as ervas
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por entre as quais Esther se dirigia ao celeiro abandonado e, ao mesmo tempo, Mario avançava sozinho pelos campos na base da montanha e com certeza que ia assobiando suavemente às víboras, como era costume, e olhava o mesmo céu que ela, ouvia os mesmos gritos dos corvos. Mario tinha os cabelos tão ruivos como os de Rachel, Rachel em pé, ao sol, com o vestido claro desabotoado atrás e os ombros brancos brilhando ao sol, tão vivos, tão atraentes. Mario gostava muito de Rachel, fora ele próprio que dissera um dia a Esther, e quando o confessara tinha corado, ou seja, tinha ficado escarlate, e a pequena desatara a rir por causa da cor da sua cara. Tinha dito que quando a guerra acabasse havia de convidar Rachel para ir dançar um sábado e Esther não tivera coragem para lhe dizer a verdade: que Rachel não gostava dos rapazes como ele, que preferia os oficiais italianos, que dançava com o capitão Mondoloni e que as pessoas diziam que ela era uma puta e que lhe haviam de cortar os cabelos quando a guerra acabasse. Mario ia levar o saco de explosivos aos homens do maquis da zona de Berthemont e caminhava rapidamente pelo campo para chegar antes da noite porque queria ir dormir a Saint-Martin. Quando os três homens tinham batido à porta fora por isso que ela se tinha levantado, pensando que era Mario. Esther avançava pelo meio das ervas duras em direcção ao celeiro em ruínas. No celeiro quente e húmido, Rachel estava deitada com o capitão e ele beijava-a na boca, no pescoço, por todo o lado. Eram as raparigas que contavam aquelas coisas, mas não tinham visto nada porque o celeiro era demasiado escuro. Apenas tinham ouvido os ruídos, os suspiros, o amarrotar das roupas. Depois, quando os rapazes pararam de bater em Esther, fugiram correndo até à estrada e desapareceram e ela arrastou-se sobre a erva, no talude, com aquela nuvem vermelha em frente dos olhos. Fora nesse momento que ouvira o ruído da explosão lá em baixo, muito ao longe, no fundo do vale. Fora por isso que o capitão saíra do celeiro com o revólver na mão, porque também ele ouvira a explosão. Mas Esther não prestara atenção porque na mesma altura estava Rachel em pé, frente ao celeiro, com a cabeleira vermelha brilhando como uma juba e gritando insultos aos rapazes, sentando-se depois ao lado dela. E o capitão desatara a rir e partira pela estrada enquanto Rachel se sentava no chão para acariciar os cabelos da pequena. Fora
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uma explosão única, tão terrível que Esther ainda sentia os tímpanos a vibrar. Quando os homens do maquis chegaram, apenas viram um grande buraco no chão, um buraco escancarado, de bordos queimados e que cheirava a pólvora. Procurando nas ervas em redor, encontraram uma madeixa de cabelos ruivos e fora assim que tinham ficado a saber que Mario morrera. Era tudo o que restava dele. Apenas uma madeixa de cabelos ruivos. Esther soluçava agora nos braços do pai. Sentia as lágrimas transbordarem dos seus olhos e correrem pelas faces, pingando do nariz e do queixo para a camisa do pai. Este dizia coisas a respeito de Mario, de tudo o que ele tinha feito, da sua coragem, mas Esther não chorava verdadeiramente por causa disso. Não sabia por que chorava. Talvez fosse por todos esses dias passados a correr pelo meio das ervas, ao sol, por todas essas canseiras e também por causa da música do Sr. Ferne. Ou talvez por causa do Verão que terminava, das ceifas e do restolho que apodrecia, das nuvens escuras que se acumulavam todas as tardes e da chuva que caía com gotas frias, dando origem aos regatos vermelhos e cavando ravinas na montanha. Estava tão cansada! Queria dormir, esquecer tudo, estar noutro lugar qualquer, estar com outras pessoas, ser outra pessoa, com outro nome, um nome verdadeiro e não um nome inventado num bilhete de identidade. Foi a mãe que lhe pegou ao colo e a levou lentamente para a alcôva escura onde se encontrava a cama. A testa ardia e tremia como se tivesse febre. com uma voz enrouquecida, ridícula, perguntara: "Quando parte o barco do Ângelo Donati? Quando é que ele nos leva para Jerusalém?" Elizabeth murmurava como se entoasse uma canção: "Não sei, meu amor, minha vida, agora dorme." Sentou-se na cama ao lado de Esther, acariciando-lhe os cabelos como quando era pequena. "Fala-me de Jerusalém, por favor." No silêncio da noite, a voz de Elizabeth murmurava, repetia a mesma história, a que Esther ouvia desde que era capaz de compreender as palavras, o nome mágico que aprendera sem o entender, a cidade de luz, as fontes, a praça onde iam dar todos os caminhos do mundo, Eretzraél, Eretzraèl.
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No fundo do desfiladeiro era tudo misterioso, novo e inquietante. Tristan nunca tinha sentido aquilo antes. À medida que subia ao longo da torrente, os rochedos tornavam-se cada vez maiores, mais escuros, amontoados caoticamente como se um gigante os tivesse lançado do alto das montanhas. Também a floresta era sombria, vinha quase até à água e nos intervalos das pedras brotavam fetos e silvas misturados, semelhantes a animais, que dificultavam a passagem. Naquela manhã, Tristan seguiu Esther ainda até mais longe. O grupo de rapazes e raparigas tinha ficado à entrada do desfiladeiro. Durante algum tempo, Tristan ouviu os seus gritos, os seus chamamentos, mas depois as vozes foram abafadas pelo ruído da água caindo em cascata por entre os rochedos. Por cima do vale o céu era de um azul total, de uma cor dura e tensa que feria a vista. Tristan seguiu Esther pelo desfiladeiro sem a chamar, sem dizer nada. Era uma brincadeira e, no entanto, sentia o coração bater mais depressa, como se fosse verdade, como se se tratasse de uma aventura. Sentia a pressão do sangue nas artérias do pescoço e nos ouvidos, provocando um tremor bizarro que ressoava na terra e se juntava à vibração da água da torrente. No interior do desfiladeiro a sombra era fria e quando Tristan respirava o ar parecia rasgar-lhe o corpo interiormente e assobiava como por uma janela, por uma brecha na montanha. Era por causa disso que tudo ali era tão novo, tão misterioso e inquietante. Era um lugar como ele nunca imaginara, nem mesmo ao ouvir a mãe ler-lhe livros como "A Quinta Viagem de Sindbad, o
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Marinheiro", quando ele se aproxima da ilha deserta onde vivem os rocs.
Sentia no seu íntimo uma dor, uma vertigem que não compreendia bem. Talvez fosse por causa do céu excessivamente azul, do ruído da torrente que engolia todos os outros sons, ou das árvores escuras debruçadas sobre o vale. No fundo da ravina, a sombra era fria e Tristan sentia o estranho odor da terra. As folhas mortas apodreciam entre os rochedos e havia sob os seus pés poças em que fervilhava uma água negra.
À sua frente, por instantes, prepassava a silhueta ligeira de Esther. Saltava de rocha em rocha, desaparecia nas cavidades, reaparecia mais adiante. Tristan queria chamá-la, gritar o seu nome: "Hélène!..." como faziam os outros rapazes, mas não era capaz. Era um jogo: ele tinha que saltar pelo meio dos rochedos com o coração a bater e o olhar atento, prescrutando cada recanto sombrio, adivinhando-lhe o rasto.
À medida que subiam a torrente os desfiladeiros tornavam-se mais apertados. Os blocos de pedra eram enormes, sombrios, gastos pela água. Era como se a luz do sol ali não penetrasse. Pareciam gigantescos animais petrificados em torno dos quais a água turbilhonava. Para cima, as paredes do desfiladeiro estavam recobertas por uma floresta densa e escura. Tudo era selvagem. Tudo desaparecia, era arrastado, lavado pela água da torrente. Ficavam apenas aquelas pedras, aquele som da água e aquele céu cruel.
Alcançou Esther no centro do círculo de rochedos escuros onde a água da torrente formava um lago. Estava agachada na beira da água e lavava os braços. Depois, com um movimento rápido, tirou o vestido e mergulhou, não de pés, como fazem normalmente as raparigas, mas de cabeça, tapando o nariz. A luz brilhando sobre o seu corpo muito branco fez estremecer Tristan. Ficou no cimo do rochedo, sem se mexer, espiando Esther enquanto nadava. Tinha uma forma muito particular de nadar, atirando um braço por cima da cabeça e desaparecendo na água. Quando chegou à outra margem, ergueu a cabeça e fez sinal a Tristan para ir ter com ela.
Depois de uma hesitação, Tristan despiu-se desajeitadamente entre os rochedos e entrou por sua vez na água gelada. A torrente atravessava
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lentamente o lago com um ruído de catarata. Tristan nadou com toda a sua energia para o outro extremo, engolindo muita água.
Na outra margem havia um grande rochedo que dominava o desfiladeiro. Esther saiu da água e Tristan observou uma vez mais o esplendor da luz sobre a pele branca, as costas e as pernas magras. Sacudia a negra cabeleira espalhando pequenas gotas em redor. com agilidade, escalou o rochedo e instalou-se lá em cima, ao sol. Tristan tinha vergonha do seu corpo nu, da sua pele pálida. Subiu lentamente até ao cimo do rochedo para se sentar ao lado de Esther. Depois de ter nadado para atravessar o lago, sentia a pele a arder.
Esther estava sentada bem no cimo, com as pernas penduradas no vácuo e olhava-o como se tudo aquilo fosse muito natural. Tinha um corpo esguio e musculado como o de um rapaz mas notava-se já a doçura dos seios, uma ligeira sombra, uma palpitação.
O som da água a correr enchia o estreito vale até ao céu. Aqui, neste desfiladeiro, não havia mais ninguém além deles, era como se estivessem sozinhos no mundo. Tristan saboreava a liberdade pela primeira vez na vida, o que fazia vibrar todo o seu corpo, como se, de repente, o resto do mundo tivesse desaparecido e apenas restasse aquele rochedo escuro, uma espécie de ilha acima da violência da torrente. Tristan não pensava na praça em que os vultos escuros esperavam à chuva antes de entrarem no Hotel Terminus. Nem sequer pensava na mãe, no seu rosto triste e contraído quando ia tentar vender os colares de pechisbeque aos negociantes de jóias para comprar leite, carne e batatas.
Esther estava recostada para trás sobre o rochedo liso, com os olhos fechados. Tristan olhava-a sem ousar aproximar-se, sem ousar poisar os lábios sobre os ombros que brilhavam para saborear a água das gotas que ainda restavam sobre a sua pele. Esquecia o olhar duro dos rapazes, as palavras maldizentes das raparigas na praça, quando falavam de Rachel. Sentia o coração bater com muita força no peito, sentia a irradiação do calor do seu sangue, toda aquela luz do sol que penetrara nos rochedos negros e irradiava os seus corpos. Tristan agarrou na mão de Esther e de repente, sem compreender como ousava, poisou os lábios sobre os da pequena. Esther desviou primeiro o rosto mas depois, subitamente, com uma incrível violência, beijou-o
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na boca. Era a primeira vez que fazia aquilo, cerrava os olhos e beijava-o como se quisesse absorver a sua respiração e aniquilar as palavras, como se o medo que sentia pudesse desaparecer com aquele beijo, como se não houvesse mais nada antes nem depois, apenas aquela sensação simultaneamente doce e ardente, o sabor das salivas que se misturavam, o contacto das línguas, o som dos dentes chocando, a respiração suspensa e o bater do coração. Pairavam num turbilhão de luz. A água fria e a luz embriagavam, quase provocando náuseas. Esther afastou o rosto de Tristan com as mãos e estendeu-se na rocha com os olhos fechados. Murmurou: "Nunca me abandonarás?" A voz estava rouca e cheia de sofrimento. "Agora é como se fosse tua irmã. Não vais contar a ninguém?" Tristan não compreendia. "Nunca te hei-de abandonar." Dissera aquilo com tal gravidade que Esther riu. Meteu-lhe a mão nos cabelos e puxou-lhe a cabeça para cima do seu peito. "Ouve o meu coração." Permanecia imóvel, com as costas sobre o rochedo e os olhos fechados sob a luz do sol. Tristan sentia na sua orelha a pele doce e escaldante de Esther, como se ela estivesse com febre, e ouvia o ruído surdo do coração a bater; via o céu muito azul e ouvia também o barulho da água em torno da sua ilha.
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Os alemães já estavam muito perto agora. Gasparini afirmava ter visto balas tracejantes uma noite, para os lados de Berthemont. Dizia que os italianos tinham perdido a guerra e que se iam render e que os alemães ocupariam então todas as aldeias, toda a montanha. Fora o pai que dissera.
Naquela tarde, toda a gente se tinha reunido na praça, em frente do hotel. Falavam uns com os outros, não apenas os homens e as mulheres da aldeia mas também os judeus, os velhos envergando as casacas e os grandes chapéus, os judeus ricos das vivendas, o Sr. Heinrich Ferne e até a mãe de Tristan, com o seu vestido comprido e o chapéu extravagante.
Enquanto as pessoas falavam de coisas dramáticas, as crianças corriam como habitualmente em redor da praça e talvez corressem mesmo propositadamente mais depressa e dessem gritos mais estridentes para disfarçar o seu medo. Esther viera com a mãe e permaneciam imóveis, junto da parede, ouvindo as pessoas falar. Mas não era o que as pessoas diziam que interessava Esther. Olhava fixamente o Hotel Terminus, tentando ver Rachel. Os rapazes e as raparigas contavam que Rachel se tinha zangado com os pais e que vivia agora no hotel com o capitão Mondoloni. Mas ninguém a tinha visto entrar ou sair. à tarde, as persianas verdes do hotel estavam todas fechadas, excepto as que davam para o outro lado, para o jardim. Os soldados permaneciam lá dentro, na grande sala, fumando e bebendo. Esther tinha-se aproximado e ouvira o som das vozes. Pela manhã, tinham chegado
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outros militares, vindos da zona inferior do vale em camiões. Gasparini dizia que os italianos tinham medo, depois do que acontecera a Mario, e por isso nunca mais se atreveriam a sair da aldeia.
Esther estava imóvel, sentada no muro, observando a fachada do hotel porque queria ver Rachel. Quando a mãe tinha regressado a casa, ela ficara, sentada na sombra. Há dias que procurava Rachel. Tinha mesmo chegado a ir ao celeiro abandonado e entrara no edifício arruinado com o coração a bater e as pernas trêmulas como se estivesse a fazer qualquer coisa proibida. Esperara que os olhos se habituassem à obscuridade, mas não havia nada para ver, apenas montes de ervas que tinham servido de cama para o gado e o odor acre da urina e do bafio.
Queria ver Rachel, nem que fosse por um instante. Tinha mentalmente preparado o que lhe ia dizer: que estava enganada, que não fora para espiar que tinha vindo até ao celeiro, que nada daquilo tinha importância, que tinha lutado para a defender. Diria: "Não é verdade! Não é verdade!" com todas as suas forças para que Rachel soubesse que ela a acreditava, que ela continuava a ser sempre sua amiga e que acreditava nela, que não queria saber do que diziam os outros, que não fazia troça como eles. Mostrar-lhe-ia as marcas das pancadas que apanhara, as nódoas negras nos lados e nas costas e que fora por isso que, no dia seguinte, não conseguia falar nem andar, porque tinha tantas dores que nem podia manter-se de pé.
Onde estava a Rachel? Talvez eles já a tivessem levado num carro, à noite, quando ninguém podia ver, para qualquer lugar algures em Itália, do outro lado das montanhas ou, pior ainda, para o Norte, onde os alemães encerravam os judeus em prisões.
Naquela tarde, na praça, as pessoas andavam de um lado para outro nervosamente, falavam em todas as suas línguas, mas ninguém se preocupava com Rachel. Faziam de conta que não tinham notado nada. Esther foi-se dirigindo a uns a seguir aos outros, perguntando: "Viram a Rachel? Sabem onde está a Rachel?" mas todos voltavam a cabeça com um ar incomodado, fingindo não saber de nada, não compreender. Nem o Sr. Ferne disse qualquer coisa, limitando-se a abanar a cabeça em silêncio. Era por haver tanta maldade e ciúme que Esther tinha medo e se sentia mal. As persianas do hotel continuavam fechadas
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e Esther não era capaz de imaginar o que se passava nos quartos tristes e sombrios como cavernas. Talvez Rachel estivesse fechada num deles e olhasse pelas frinchas para as pessoas que iam e vinham na praça, conversando. Talvez a visse e não quisesse sair por julgar que ela era como os outros, que se escondia no meio das ervas para espiar e troçar. Sentia vertigens só de pensar nisso. Quando começou a escurecer, Esther desceu até à zona baixa da aldeia, de onde se via o vale ainda iluminado por uma espécie de bruma e as altas silhuetas das montanhas.
No dia seguinte de manhã, ouviu-se uma música vinda do lado de baixo da praça, da vivenda da amoreira. Esther correu o mais depressa que pôde. Na rua inclinada, em frente do gradeamento, estavam já paradas algumas mulheres e crianças. Agarrada às grades, Esther trepou ao muro, no seu lugar oculto pela árvore, e viu o Sr. Ferne sentado na cozinha, em frente do seu piano negro. "Trouxeram-no! Devolveram o piano ao Sr. Ferne!" Esther queria voltar-se para as pessoas e gritar-lhes isso, mas não era necessário: tinham todos a mesma expressão no rosto. Pouco a pouco, as pessoas foram-se reunindo na rua para ouvirem o Sr. Ferne. E a verdade é que ele nunca tinha tocado assim. As notas voavam pela porta da cozinha escura, subiam no ar leve, enchiam toda a rua, toda a aldeia. O piano, que tinha ficado durante demasiado tempo silencioso, parecia tocar sozinho. A música evolava-se, voava, brilhava. Esther, agarrada à grade, à sombra da amoreira, ouvia quase sem respirar, de tal forma as notas do piano soavam rapidamente e lhe enchiam o corpo, o peito. Pensava que agora tudo iria voltar a ser como dantes. Poderia sentar-se de novo ao lado do Sr. Ferne e aprender a deslizar com as mãos sobre as teclas, ler a música que ele lhe arranjasse. Pensava que nada acabaria, visto que o piano do Sr. Ferne tinha regressado. Tudo se tornaria simples, as pessoas deixariam de ter medo e não pensariam mais em vingar-se. Rachel voltaria a andar na rua para fazer as compras aos pais, iria à praça e a sua cabeleira brilharia como cobre vermelho ao sol. Pela manhã, esperaria por Esther junto da fonte e iriam sentar-se à sombra dos plátanos para conversar. Havia de contar o que queria fazer mais tarde, quando a guerra acabasse e ela fosse cantora em Viena, em Roma, em Berlim. A música do Sr. Ferne era assim: fazia parar o tempo
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e era mesmo capaz de o forçar a andar para trás. Depois, quando acabou de tocar, o Sr. Ferne apareceu no limiar da porta da cozinha. Fitou todos com os olhos a piscar por causa da luz do sol e a barbicha agitou-se. Tinha uma expressão estranha, como se fosse chorar. Deu um ou dois passos pelo jardim na direcção das pessoas paradas na rua e abriu os braços, inclinando um pouco a cabeça, como se dissesse: Obrigado, obrigado meus amigos. E as pessoas começaram a aplaudir, primeiro alguns homens e mulheres dos que ali estavam e depois toda a gente, mesmo as crianças, gritando para o aclamar. Esther também aplaudiu, pensando que era como outrora em Viena, quando o Sr. Ferne, na sua juventude, tocava para cavalheiros de fraque e senhoras de vestido de noite.
Foi na sexta-feira que Esther entrou pela primeira vez na sinagoga, na parte alta da aldeia, onde se realizava a cerimónia do shabbat. Sucedia o mesmo todas as sextas: o Sr. Yacov, o assistente do idoso Rabi E"izik Salanter, ia de casa em casa, batendo às portas onde sabia que viviam judeus.
Batia sempre à porta da casa de Esther, mas ninguém ia ao shabbat porque nem o pai nem a mãe da pequena eram religiosos. Quando Esther um dia tinha perguntado por que não iam lá a cima, ao shabbat, o pai respondera simplesmente: "Se quiseres lá ir, podes ir." Achava que a religião era uma questão de liberdade
Por várias vezes fora até junto da vivenda no momento em que as mulheres e as raparigas entravam para preparar o shabbat. Pela porta aberta, vira brilhar luzes e ouvira o murmúrio das orações. Hoje, em frente da porta aberta, sentia a mesma apreensão. Mulheres vestidas de negro passavam junto dela sem a olharem e entravam na sala. Reconheceu Judith, que estava sentada a seu lado na escola. Tinha um lenço preto na cabeça e quando entrou com a mãe voltou-se para Esther e fez-lhe um sinal.
Esther ficou durante muito tempo parada do outro lado da rua, olhando a porta aberta. De repente, sem compreender porquê, avançou para a porta e entrou na vivenda. Lá dentro, devido ao cair da noite, estava escuro como numa gruta. Esther dirigiu-se para a parede
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mais próxima, como se quisesse esconder-se. À sua frente, as mulheres permaneciam de pé, envoltas nos seus xailes pretos e não lhe prestaram atenção, excepto uma ou duas garotitas que se voltaram. Os olhos negros das crianças brilhavam intensamente na penumbra. Depois, uma das pequenas, que se chamava Cécile e também andava na escola do Sr. Seligman, veio ter com ela e deu-lhe um lenço, dizendo: "Tens de pôr isto na cabeça." Pegou-lhe pela mão e levou-a para o centro do compartimento, onde estavam as outras raparigas. Sentia-se melhor desde que o lenço lhe ocultava os cabelos e o rosto.
As mulheres agitavam-se em redor do Sr. Yacov preparando o altar, trazendo a água, colocando os candelabros dourados. Subitamente, a luz brilhou algures na sala e todos os olhares se voltaram nessa direcção. Umas após outras iam surgindo estrelas de luz, primeiro trêmulas, quase a extinguir-se, até que as chamas se fixavam, lançando raios em redor. Algumas mulheres iam de candelabro em candelabro, com uma vela na mão, e a luz aumentava. Ao mesmo tempo, ouvia-se um murmúrio de vozes semelhante a um cântico subterrâneo e Esther viu pessoas a entrar na vivenda, homens e mulheres no meio dos quais vinha o velho Rabi Eizik Salanter. Avançaram até ao meio da sala, em frente das luzes, falando na sua língua estranha. Esther observava admirada os xailes brancos que lhes caíam dos lados do rosto. À medida que entravam, a luz aumentava e as vozes tornavam-se mais fortes. Cantavam agora e as mulheres de negro respondiam com as suas vozes mais doces. No interior da sala, as vozes alternadas faziam um som semelhante ao do vento ou da chuva, que ia diminuindo e depois se elevava de novo e ressoava com força na sala demasiado pequena, fazendo tremer as chamas das velas.
Em seu redor, as raparigas e as miúdas, voltando o rosto para as luzes, repetiam as palavras misteriosas, balançando o corpo para a frente e para trás. O cheiro das velas misturava-se com o do suor e com o cântico ritmado, provocando uma espécie de vertigem. Não ousava mexer-se mas no entanto, sem se aperceber, começou a fazer oscilar o busto para a frente e para trás, seguindo o movimento das mulheres à sua volta. Procurava ler-lhes nos lábios as palavras estrangeiras, naquela língua tão bela que ressoava no seu íntimo como se as sílabas despertassem recordações. A vertigem ia crescendo dentro
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dela, naquela gruta cheia de mistério, à medida que olhava as chamas das velas que pareciam estrelas na penumbra. Nunca tinha visto uma luz assim, nunca tinha ouvido um cântico semelhante. As vozes subiam, ecoavam, diminuíam, depois brotavam de novo noutro ponto. Às vezes havia uma voz que se fazia ouvir sozinha, a voz límpida de uma mulher que cantava uma longa frase, e Esther via o seu corpo velado balançando mais fortemente, com os braços ligeiramente afastados e o rosto voltado para as chamas. Quando acabava, ouvia-se o murmúrio da assistência dizendo em surdina: amen, amen. Depois uma voz de homem respondia noutro ponto, fazia ressoar as palavras estranhas, palavras semelhantes a música. Pela primeira vez, Esther sabia o que era a oração. Não compreendia como aquilo tinha entrado nela, mas era algo de concreto: era o murmúrio surdo das vozes onde explodia de repente o sortilégio da linguagem, o balanço regular dos corpos, as estrelas das velas, a sombra quente e plena de odores. Era o turbilhão da palavra.
Aqui, neste compartimento, nada mais podia ter importância, nada mais podia ser ameaçador, nem a morte de Mario, nem os alemães prestes a subirem o vale com os seus carros blindados, nem mesmo o vulto alto do pai que ia para a montanha, de madrugada, que desaparecia por entre as ervas como alguém que mergulha na morte.
Esther balançava o corpo, lentamente, para a frente e para trás, com os olhos fixos nas luzes, e no seu íntimo a voz dos homens e das mulheres chamava e respondia, aguda, grave, dizendo todas aquelas palavras na linguagem do mistério, conseguia ultrapassar o tempo e as montanhas, como o pássaro negro que o pai lhe mostrara, e ir até ao outro lado do mar, até onde nascia a luz, até Eretzraèl.
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No sábado 8 de Setembro Esther foi despertada por um ruído. O ruído, um ribombar que parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo, enchia o vale, ressoava nas ruas da aldeia, entrava em todas as casas. Levantou-se e, na penumbra da alcova, viu que a cama dos pais estava vazia. A mãe estava na cozinha já vestida, de pé em frente da porta aberta. Foi o seu olhar que fez estremecer Esther: um olhar cheio de inquietação e que correspondia ao som vindo do exterior. Antes que Esther tivesse tempo para perguntar qualquer coisa, Elizabeth disse: "O teu pai partiu esta noite mas não te quis acordar." O ribombar afastava-se, voltava, parecia irreal. Elizabeth continuou: "São os aviões dos americanos que vão para Genes... Os italianos perderam a guerra, assinaram o armistício." Esther agarrou-se com força à mãe. "Então os italianos vão-se embora?" A inquietação dominava-a por sua vez, percorria-lhe as mãos e as pernas como um fluxo gelado, tornando mais lenta a sua respiração, o seu raciocínio. O ruído dos aviões afastava-se, ressoava ao longe como o som de uma trovoada. Mas Esther ouvia agora um outro ribombar mais definido: era o barulho dos camiões italianos rolando no fundo do vale, subindo para a aldeia, fugindo do exército alemão. "A guerra ainda não acabou", disse Elizabeth lentamente. "Agora vão vir os alemães. Temos de partir. Todos têm de partir." Emendou: "Todos os judeus têm de partir o mais depressa possível, antes que os alemães cheguem." O ruído dos camiões era agora muito forte, iniciavam a última curva antes de entrarem na aldeia. Elizabeth agarrou numa mala pronta, colocada ao
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lado da porta, a velha mala de cabedal na qual guardava todos os seus objectos preciosos. "Vai-te vestir. Põe roupa quente e sapatos fortes. Vamos atravessar a montanha. O teu pai irá lá ter connosco." Movia-se com uma pressa febril, afastando as cadeiras, à procura de qualquer coisa útil que pudesse ter esquecido. Esther vestiu-se rapidamente. Sobre a camisola colocou a pele de carneiro que Mario tinha deixado nas costas de uma cadeira no dia em que morrera. Atou na cabeça o lenço preto que pertencia à sua mãe.
Lá fora, na praça, o sol brilhava desenhando no chão as sombras da folhagem. O campanário da igreja refulgia. Havia no céu duas nuvens muito brancas. Esther olhava em seu redor com uma dolorosa atenção. Chegavam à praça pessoas vindas de todos os lados. Os judeus pobres saíam das ruelas, das caves onde tinham vivido durante todos aqueles anos, trazendo as suas bagagens, as velhas malas de cartão forte, as trouxas de pano, as provisões metidas em sacos de algodão. Os mais velhos, como o Rabi Eizik Salanter, Yacov e os polacos, tinham vestido as pesadas casacas de Inverno e enfiado os gorros de astracã. Algumas mulheres traziam dois casacos, um em cima do outro, e todas se embrulhavam em xailes pretos. Também os judeus ricos iam chegando, com malas melhores e fatos novos, mas muitos nem sequer traziam bagagens porque não tinham tido tempo para se preparar. Alguns chegavam de taxi, vindos da costa, com o rosto tenso e pálido e Esther pensava que talvez nunca mais revissem tudo aquilo, aquela praça, aquelas casas, a fonte, as montanhas azuis ao longe.
O ruído dos motores dos camiões ecoava na praça e, de qualquer forma, impediria quem quer que fosse de falar. Os camiões estavam parados uns atrás dos outros, ao longo da rua até ao parque dos castanheiros. Os motores roncavam e havia uma nuvem azulada flutuando ao nível da calçada. As pessoas aglomeravam-se em redor da fonte, mesmo as crianças, sem correr como era seu hábito. Estavam pobremente vestidas e permaneciam junto das mães, sentadas nas trouxas de roupa, com um ar perplexo. Os soldados do IV Batalhão italiano estavam em frente do hotel, aguardando o sinal de partida. Esther aproximou-se deles e ficou impressionada pela expressão do seu rosto, com um ar desnorteado e olhar ausente. Muitos deles não deviam ter dormido
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naquela noite, na espectativa da notícia que confirmaria a derrota e a assinatura do armistício. Os soldados não olhavam para ninguém. Esperavam de pé, em frente do hotel, enquanto os camiões faziam roncar os motores do outro lado da praça. Os judeus iam e vinham em torno da fonte, mudando as bagagens de um lado para outro, como se procurassem o melhor lugar para esperar. Também as pessoas da aldeia, os camponeses, lá estavam mas à parte, sob as arcadas da Câmara, olhando os judeus que se amontoavam junto da fonte.
Tristan estava imóvel à sombra das arcadas, semi-oculto. Tinha o rosto pálido, com grandes olheiras sombreando os olhos. Parecia enregelado e distante com o seu fato inglês gasto pelas deambulações do Verão. Também ele fora acordado pelo ruído que enchia todo o vale e se vestira à pressa. Quando ia sair do quarto do hotel, a mãe perguntara: "Onde vais?" E como ele não respondesse, dissera com uma voz estranhamente velada pela inquietação: "Fica aí! Não deves ir para a praça, é perigoso." Mas ele já estava fora.
Procurou Esther no meio das pessoas que esperavam. Quando a viu, esboçou um movimento para correr para ela mas deteve-se. Havia muita gente e as mulheres tinham um olhar angustiado. Depois chegou a Sra. O'Rourke. Ela, habitualmente tão elegante, tinha-se vestido à pressa, enfiando apenas um impermeável por cima do vestido e nem trazia chapéu. Os longos cabelos louros caíam-lhe pelos ombros. Também ela tinha um rosto tenso e olhos cansados.
Foi Esther que atravessou a praça e se dirigiu a Tristan. Não conseguia falar, não sabia o que havia de dizer, sentia a garganta apertada. Beijou Tristan ligeiramente e apertou a mão à Sra. O'Rourke. A mãe de Tristan sorriu-lhe, abraçou-a, deu-lhe um beijo na cara e disse algumas palavras, talvez "boa sorte!" Tinha uma voz grave e era a primeira vez que falava com Esther. Esta voltou para junto da mãe. No momento seguinte, quando olhou outra vez para as arcadas, Tristan e a Sra. O'Rourke tinham desaparecido.
O sol agora brilhava com intensidade. As lindas nuvens brancas erguiam-se a Este e deslizavam lentamente no céu. De vez em quando, a sua sombra fria passava sobre a praça e apagava os desenhos da folhagem no chão. Esther pensava que estava um lindo dia para partir em viagem. Imaginava o pai caminhando pela montanha, mesmo nos
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cumes, olhando a imensidade dos vales ainda sombrios. Talvez que de lá conseguisse ver a aldeia, com a minúscula praça e a multidão negra que devia assemelhar-se a formigas.
Talvez descesse ao fundo do vale ainda mergulhado na sombra, atravessando os campos de ervas amarelecidas, para os lados de Nantelle ou de Châtaigniers, onde marcara encontro com os judeus que chegavam de Nice, de Cannes ou de mais longe ainda, fugindo do avanço dos soldados alemães.
De repente, ressoou na praça um roncar de motores e os italianos começaram a partir. Deviam ter recebido o sinal que aguardavam desde madrugada ou então tinham-se impacientado, não suportando mais tempo de espera. Partiram uns a seguir aos outros, em grupos, a maior parte deles a pé. Partiam acompanhados pelo barulho dos motores, sem falar, sem comunicarem uns com os outros. Os camiões punham-se em marcha e começavam a subir a estrada na direcção das montanhas, seguindo pelo vale do Boréon. O som dos motores ampliava-se, repercutia-se no fundo do vale, regressava como o eco de uma tempestade. Enquanto os soldados se movimentavam, Esther aproximou-se do hotel. Talvez conseguisse ver Rachel por um instante, quando ela saísse com o capitão Mondoloni. Havia homens à paisana, com impermeáveis e chapéus de feltro, e também algumas mulheres, mas Rachel não estava com eles. Era tudo tão rápido, numa tal confusão, que talvez ela tivesse passado sem Esther ver, talvez tivesse subido para um dos camiões com outras pessoas. O coração da pequena batia com toda a força e sentia a garganta apertada vendo os últimos soldados italianos apressando-se em redor dos veículos e saltando com eles já em andamento para a parte de trás, coberta por um toldo. Era tudo tão cinzento e triste que Esther gostaria de ver pelo menos uma última vez a cabeleira de cobre de Rachel. As pessoas na praça diziam que os oficiais tinham partido muito cedo, antes das dez horas. Então Rachel estava já na montanha e atravessava a fronteira no desfiladeiro de Ciriega.
As pessoas começavam agora a partir também. Um grupo de homens tinha-se reunido no centro da praça, junto da fonte, em torno do Sr. Seligman, o professor. Esther reconheceu alguns daqueles que costumavam visitar por vezes o pai, à noite, na cozinha. Discutiram
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durante um bocado, porque uns queriam seguir a mesma estrada que os camiões dos italianos e passar o desfiladeiro de Ciriega e outros preferiam ir pelo caminho mais curto, pelo desfiladeiro de Fenestre. Afirmavam que era perigoso seguir atrás dos italianos, pois era com certeza o caminho escolhido pelos alemães para os bombardearem.
Depois, o Sr. Seligman subiu para o rebordo da fonte. Parecia inquieto e comovido, mas a sua voz ressoava com clareza, como quando lia livros às crianças. Pronunciou primeiro algumas palavras em francês: "Meus amigos! Meus amigos... Ouçam!" O brouhaha da partida cessou e algumas pessoas que tinham começado a andar poisaram as malas para o ouvir. Então, com a mesma voz clara e forte com que lia às crianças "Os animais com peste" ou extractos de "Nana", recitou uns versos que ficaram gravados para sempre na memória de Esther. Pronunciou-os lentamente, como se fossem as palavras de uma oração, e muito tempo mais tarde Esther soube que tinham sido escritos por um homem chamado Hayyim Nahman Bialik:
No meu caminho tortuoso não encontrei a felicidade. A minha eternidade perdi.
Ao lado de Esther, Elizabeth chorava silenciosamente. Os soluços sacudiam-lhe os ombros e o rosto estava contraído. Esther achou aquilo mais horrível do que todos os sons e todos os gritos do mundo. Abraçou a mãe com toda a força para tentar abafar os soluços, como se faz com as crianças.
As pessoas já se encaminhavam para o fim da praça, passando em frente da fonte em que o Sr. Seligman os olhava. Os homens iam à frente, seguidos pelas mulheres, pelos velhos e pelas crianças. Era um longo bando preto e cinzento, sob o sol escaldante, fazendo lembrar
um enterro.
Quando passaram em frente do hotel, Esther viu o vulto do Sr. Ferne, sombra furtiva semi-oculta atrás de um plátano. com as pernas arqueadas, o longo casacão acinzentado de bolsos deformados, o gorro e a barbicha, parecia um guarda de cemitério assistindo de longe a uma cerimónia que não lhe dizia respeito. Apesar da tristeza da
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mãe e da angústia que lhe apertava a garganta, Esther sentiu vontade de rir quando viu a silhueta do Sr. Ferne. Lembrou-se como ele se escondera quando os soldados italianos subiam a rua fazendo oscilar o piano. Correu para ele e agarrou-lhe na mão. O velho olhou-a como se não a reconhecesse. Abanava a cabeça e a sua barbicha ridícula agitava-se ao mesmo tempo que repetia: "Não, não, partam, partam todos, eu não posso, eu tenho que ficar aqui. Para onde ia eu, na montanha?" Esther apertava-lhe a mão com toda a sua força e sentia as lágrimas embaciarem-lhe a vista. "Mas vêm aí os alemães. Tem de vir connosco." O Sr. Ferne continuava a olhar para as pessoas que passavam na praça. "Não." Falava docemente, quase em voz baixa. "Não. O que é que eles iam fazer de um velho como eu?" Depois beijou Esther, uma única vez e rapidamente, e recuou. "Agora, adeus. Adeus." A garota voltou correndo para junto da mãe e começaram a avançar com os outros, na direcção da zona alta da aldeia. Quando se voltou, já não viu o Sr. Ferne. Talvez já tivesse voltado para junto do seu piano, na cozinha escura da vivenda. Restavam apenas algumas pessoas em pé, sob as arcadas da Câmara: as pessoas da aldeia, mulheres com vestidos floridos e aventais. Observavam o grupo de fugitivos desaparecendo no cimo da aldeia, no ponto em que começam os prados e as matas de castanheiros.
Agora seguiam pela estrada, sob o sol do meio-dia, e eram tantos que Esther não conseguia distinguir o princípio nem o fim do grupo. Já não se ouvia o ronco dos motores no vale e o único ruído era o do arrastar dos pés no caminho pedregoso, o que provocava um estranho rumor, um som de rio correndo sobre os seixos.
Esther ia andando e observando as pessoas em seu redor. Conhecia a maior parte. Eram pessoas que tinha visto nas ruas da aldeia, no mercado ou na praça, à tarde, conversando em pequenos grupos enquanto as crianças corriam dando os seus gritos estridentes. Havia os velhos, com os seus grandes casacões de gola de pele e os chapéus pretos de onde saíam as tranças de cabelos grisalhos. Havia o que designavam por hazan, o Sr. Yacov, que caminhava ao lado do velho Eizik Salanter transportando nas mãos as pesadas malas. Além dos nomes do Rabi Eizik e do Sr. Yacov, Esther não sabia os dos outros. Eram os judeus mais pobres, os que tinham vindo da Alemanha, da
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Polónia e da Rússia e que tinham perdido tudo na guerra. Quando tinha ido ao templo, na vivenda da parte alta da aldeia, tinha-os visto de pé em redor da mesa onde estavam acesas as luzes, com as cabeças cobertas pelos grandes xailes brancos, tinha-os ouvido recitar as palavras do livro na língua misteriosa e bela que penetrava no nosso íntimo mesmo sem a compreendermos.
Vê-los agora, ao sol, na estrada pedregosa, curvados para a frente, avançando devagar, sobrecarregados com os pesados casacões, fazia-Lhe bater com mais força o coração como se estivesse para acontecer algo de doloroso e de inevitável, como se fosse o mundo inteiro que avançasse por aquela estrada rumo ao desconhecido.
Observava especialmente as mulheres e as crianças. Havia velhas mulheres que entrevira por vezes nas cozinhas e que nunca saíam excepto para as festas ou para os casamentos. Agora, enfiadas em pesados casacos, com as cabeças protegidas por xailes pretos, avançavam pela estrada sem uma palavra, com os rostos muito brancos contraídos por causa do sol. Havia mulheres mais novas, ainda elegantes apesar dos casacos e dos embrulhos de todas as espécies de que iam carregadas, puxando as malas. Conversavam umas com as outras, algumas até riam, como se fossem para um piquenique. As crianças corriam à sua frente, enfiadas em camisolas demasiado quentes, com pesados sapatos de cabedal que só calçavam para as grandes ocasiões. Também elas transportavam embrulhos e sacos com pão, fruta e garrafas de água. Enquanto ia andando com elas, Esther procurava lembrar-se dos seus nomes: Cécile Grinberg, Meyerl, Gelibter, Sarah e Michel Lubliner, Léa, Amélie Sprecher, Fizas, Jacques Mann, Lazare, Rivkelé, Robert David, Yachet, Simon Choulevitch, Tal, Rebecca, Pauline, André, Marc, Marie-Antoinette, Lucie, Eliane Salanter... Mas tinha dificuldade em recordar os nomes porque já não eram os rapazes e as raparigas que conhecia, que via na escola, que corriam e gritavam pelas ruas da aldeia, que tomavam banho nus na torrente e que brincavam às guerras nas moitas. Agora, vestidos com fatos demasiado grandes, demasiado pesados, calçados com os sapatos de Inverno, as raparigas com os cabelos tapados com lenços, os rapazes com gorros ou chapéus, já não corriam depressa nem falavam. Pareciam órfãos que tinham saído a passeio, tristes, cansados, sem olharem para ninguém.
O grupo atravessava a parte alta da aldeia, passando em frente da escola fechada e do posto da guarda. Quando passavam, os aldeões ficavam a olhá-los por momentos, de pé em frente das portas ou debruçados das janelas, silenciosos como os que desfilavam à sua frente.
Pela primeira vez, e isso era doloroso, Esther compreendia que não era como as pessoas da aldeia. Eles podiam ficar nas suas casas, podiam continuar a viver naquele vale, sob aquele céu, a beber a água das torrentes. Permaneciam em frente das suas portas ou olhavam pela janela enquanto ela passava à sua frente, vestida com a sua roupa escura e a pele de carneiro de Mario, tendo a cabeça coberta com o lenço preto e os pés apertados nos sapatos de Inverno. Ela tinha que seguir com os que, como ela, já não tinham casa, já não tinham direito ao mesmo céu, à mesma água. Sentia a garganta contraída pela cólera e pela inquietação e o coração batia com toda a força no peito. Pensava em Tristan, no seu rosto pálido e nos seus olhos febris. Na frescura da face da Sra. O'Rourke e na mão que apertara a sua por instantes e o seu coração palpitara porque fora a primeira vez que lhe tinha falado e com certeza nunca mais a veria. Pensava em Rachel e no hotel agora vazio. O vento devia entrar pelas janelas abertas e redemoinhar na grande sala. Compreendera pela primeira vez que se tinha transformado noutra pessoa. O pai nunca mais poderia chamar-lhe Estrellita, nunca mais ninguém a trataria por Hélène. De nada servia olhar para trás. Tudo isso desaparecera.
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O grupo avançava pela estrada de pedras, no meio dos prados onde Esther dantes costumava esconder-se à espera do pai. Lá em baixo, ouvia-se o ruído da torrente, um tumultuar de água que ressoava nos flancos da montanha. As nuvens brancas amontoavam-se no céu, a leste, formando fantásticas arquitecturas ao fundo do vale, como se fossem picos nevados ou castelos. Esther lembrava-se de as ver chegar deitada sobre as pedras lisas, ainda molhada da água da torrente, sentindo as gotinhas frias que se iam evaporando sobre a pele das coxas e ouvindo a música da água e o zumbido das vespas. Lembrava-se de querer partir com as nuvens porque elas deslizavam livremente ao vento e passavam sem dificuldade de um lado para o outro da montanha, indo até ao mar. Imaginava tudo o que elas viam, os vales, as ribeiras, as cidades semelhantes a formigueiros e as grandes baías onde o mar brilha. Hoje, eram as mesmas nuvens e, no entanto, tinham qualquer coisa de ameaçador. Formavam uma espécie de barragem no fim do vale, engoliam os cumes das montanhas, erguiam uma enorme parede branca e ameaçadora que não era possível ultrapassar.
A pequena apertava a mão da mãe com toda a força enquanto avançavam pela estrada com o mesmo passo, misturadas na multidão. A floresta já se tornara mais densa e os castanheiros e carvalhos tinham sido substituídos por grandes pinheiros de folhagem quase negra. Esther nunca se tinha aventurado até tão longe no vale da torrente. Agora já não viam o fim do vale nem a muralha de nuvens.
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Apenas apercebiam por momentos, entre as árvores, o curso de água cintilando ao sol. O grupo abrandara a marcha, subindo com dificuldade a íngreme vereda. Já os velhos e as mulheres que transportavam crianças ao colo começavam a parar na beira do caminho para descansar, sentados nas pedras ou em cima das malas. Ninguém falava. Ouvia-se o som dos sapatos nas pedras e os gritos dos bebês que ecoavam de forma estranha, um tanto abafados pelas árvores, semelhantes a gritos de animais. Ao atravessar a floresta, o grupo espantava gralhas que levantavam vôo à sua frente com grande alarido. Esther olhava para os negros pássaros e lembrava-se do que o pai tinha dito um dia, referindo-se a Itália. Mostrara-lhe um corvo no céu e dissera: "Se pudesses voar como aquele pássaro, ainda esta noite lá chegavas." Não se atrevia a perguntar a Elizabeth: "Quando é que o papá vem ter connosco?" Mas apertava-lhe a mão com força enquanto avançavam e olhava furtivamente o rosto esguio e pálido da mãe, a boca de lábios apertados, o ar envelhecido por causa do lenço preto que lhe cobria os cabelos e que pusera para fazer como as outras mulheres. Também aquilo lhe contraía a garganta de raiva, porque se lembrava dos dias de Verão em que Elizabeth punha o seu lindo vestido azul decotado e as sandálias e escovava demoradamente o cabelo negro e sedoso para agradar ao marido e acompanhá-lo até à praça da aldeia. Esther recordava as esguias pernas bronzeadas da mãe, com a pele muito lisa, e a luz que irradiavam os seus ombros nus. com certeza que agora nada disso se repetiria, pois será possível reencontrar o que se deixa para trás ao partir? "Voltaremos aqui com o papá ou partimos para sempre?" Esther não tinha sido capaz de perguntar isto quando, depois de se ter vestido à pressa, agarrara na mala e saíra de casa subindo os seis degraus estreitos que davam para a rua. Caminharam juntas em direcção à praça e Esther não se atrevera a fazer a pergunta. Mas a mãe tinha compreendido. Ficara com uma expressão estranha, encolhendo os ombros, e a pequena vira-a pouco depois limpar os olhos e o nariz porque estava a chorar. Então, tinha mordido o lábio com toda a força, até fazer sangue, como quando pretendia anular qualquer coisa que tivesse feito mal.
Nunca mais tinha olhado para ninguém para não ter de enfrentar a angústia nos olhares, para que não soubessem que também ela se semtia
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da mesma forma. Ao longo do carreiro pedregoso que subia através da floresta, as pessoas tinham-se ido distanciando umas das outras. Os mais novos, os homens e os garotos iam lá à frente, já nem as vozes se ouviam quando falavam. Para trás, estendia-se a longa procissão. Embora não andassem depressa por causa do peso das malas que lhes queimava as mãos, Esther e a mãe iam passando à frente de outras pessoas: velhas que tropeçavam nas pedras, mulheres com crianças ao colo, idosos judeus enfiados nas suas casacas demasiado pesadas e apoiando-se a bengalas. Quando se aproximavam, Esther abrandava para os ajudar, mas a mãe puxava-a pelo braço quase com violência e a rapariguinha ficava perturbada por ver a dureza do seu rosto quando ultrapassavam os retardatários. À medida que avançavam iam-se tornando mais raras as mulheres sentadas na borda do caminho. Depois, houve um momento em que Esther e a mãe seguiam completamente sós, sem ouvirem outro som que não fosse o dos seus próprios passos e o doce murmúrio das águas, mais abaixo. O sol estava muito próximo da linha das montanhas, por trás delas. O céu adquirira um tom pálido, quase cinzento, e pesadas nuvens amontoavam-se à sua frente. Elizabeth, que já há algum tempo olhava em redor com atenção, descobriu de repente uma espécie de clareira numa plataforma sobranceira à torrente. "Vamos passar aqui a noite", disse. Desceu um pouco, até aos rochedos que ficavam logo por sobre a água. Esther nunca tinha visto lugar tão bonito. O musgo formava um tapete entre as massas arredondadas das rochas e mais acima, à esquerda, via-se uma praiazinha de areia onde vinham bater as pequenas ondas da torrente. Depois da dureza do caminho de pedras e da ardência do sol, depois de tanta perturbação, incerteza e fadigas, aquele lugar pareceu a Esther uma imagem do paraíso. Correu a estender-se no musgo, entre os blocos de pedra, e fechou os olhos. Quando tornou a abri-los, viu à sua frente o rosto da mãe. Elizabeth tinha lavado os braços e o rosto na água da torrente e a luz difusa da tarde formava uma auréola em torno dos seus cabelos soltos. "És tão bonita", murmurara Esther. "Também te devias ir lavar" disse Elizabeth. "A água está muito fresca e depois vão com certeza parar aqui outras pessoas também para passar a noite." Esther tirou o xaile e os sapatos e entrou na água gelada até quase aos joelhos, levantando
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o vestido. A água fria deslizava ao longo das pernas, fazendo com que deixasse de as sentir. Bebeu água no côncavo da mão e molhou o rosto para atenuar a queimadura do sol. A água molhava a parte inferior do vestido e as mangas da camisola e formava gotinhas na pele de carneiro.
Pouco depois, com efeito, chegaram outras pessoas. Muitas tinham parado mais abaixo, noutra clareira, e Esther ouvia as vozes das crianças e os chamamentos das mulheres. Todos sabiam que não era possível acender lume para não chamar a atenção do exército alemão e portanto preparavam a refeição da noite como podiam. As mulheres tinham pegado no pão e cortavam fatias que as crianças comiam sentadas junto do curso de água. A mãe de Esther tinha trazido um bocado de queijo seco que lhe fora dado pela proprietária do apartamento em que tinham vivido e que era delicioso. Também comeram figos e depois foram beber água à torrente, ajoelhando-se na pequenina praia. Antes de anoitecer, construíram um abrigo com ramos de pinheiro cujas agulhas muito densas formavam uma espécie de tecto.
A noite aproximava-se docemente. Na floresta, um pouco por toda a parte, ressoavam vozes humanas com mais intensidade. Apesar do cansaço, Esther não tinha sono. Desceu para jusante da torrente, guiada pelas vozes infantis. Cerca de cem metros mais abaixo viu um grupo de garotas que brincavam à beira da água. Apesar da roupa, estavam metidas na água até meio das coxas e salpicavam-se umas às outras, rindo. Esther reconheceu-as. Eram polacas que tinham chegado à aldeia com os pais no início do Verão e que apenas falavam a sua língua, estranha e cantante. Esther lembrava-se de o pai lhe ter falado uma noite de uma cidade com nome tão estranho como a língua das garotas, Rzeszow, e dos soldados alemães terem incendiado as casas e expulso todos os judeus, metendo-os em vagões de gado para os enviarem para acampamentos nas florestas, onde até as crianças tinham que trabalhar até à morte. Lembrava-se disso enquanto olhava para as garotas. Agora elas estavam ali, naquela floresta densa, à beira da torrente, novamente escorraçadas, seguindo para o desconhecido, para as montanhas onde as nuvens se amontoavam e, no entanto, pareciam tão descontraídas como se não fosse mais do que um passeio. Esther penetrou na clareira para as observar. Brincavam agora ao agarrar,
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correndo de uma árvore para outra, com os vestidos compridos que rodopiavam à sua volta como se dançassem. A mais velha, que devia ter dez ou onze anos, tinha os cabelos e os olhos muito claros, enquanto que os das outras eram escuros. A dado momento, viram Esther. Imobilizaram-se. Juntas, cautelosamente, aproximaram-se e pronunciaram algumas palavras na sua língua. Caía a noite. Esther sabia que devia voltar para junto da mãe e, no entanto, não conseguia desviar o olhar dos olhos claros da garota. As outras recomeçaram a brincar.
Perto de um pinheiro estavam os pais, mulheres vestidas de preto e homens envergando casacas. Havia também um homem de idade com uma grande barba grisalha, que Esther tinha visto à entrada do templo, na vivenda.
A garota agarrou Esther pela mão e levou-a até junto da árvore. Uma das mulheres, sorrindo, fez-lhe perguntas, mas sempre naquela língua estranha. Tinha um lindo rosto de feições regulares e os olhos de um verde muito claro, como os da pequena. Cortou então uma fatia de pão escuro e deu-a a Esther. Esta não foi capaz de dizer que não mas sentiu uma espécie de vergonha, porque já tinha comido queijo e figos sem partilhar nada. Agarrou no pão e, sem dizer nada, correu até ao caminho de pedras e dirigiu-se para a clareira onde a mãe a esperava. A noite envolvia já as árvores criando por todo o lado sombras inquietantes. Atrás de si ouvia ainda as vozes e os risos das garotas.
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Começou a chover, provocando no telhado um ruído doce e deslizante, suave e tranqüilo depois do roncar dos motores dos camiões e do barulho dos passos. Rachel sai para a rua, apesar da escuridão da noite, embrulhada no grande xaile preto da mãe. Quando o ruído dos camiões italianos começou a ressoar no vale quis correr para a praça, mas a mãe disse: "Não vás! Não vás, por favor! Fica connosco!" O pai estava doente e Rachel não saiu. Durante todo o dia o ruído dos camiões se fez ouvir no vale e nas montanhas. Às vezes, o som era tão próximo que tinha a impressão que os camiões iam derrubar as paredes da casa. Houve depois um ruído de passos e talvez esse ruído abafado, galopante, fosse ainda mais assustador. Até ser já noite ainda as pessoas subiam a ruela, afastando-se. Ouviam-se vozes, chamamentos surdos, o choro de crianças. Rachel ficou acordada toda a noite, às escuras, sentada numa cadeira ao lado da cama onde dormia a mãe. Na outra cama do pequeno quarto ouvia a respiração acelerada do pai e a sua tosse seca e asmática. Pela manhã - era domingo reinava uma grande calma. O sol brilhava lá fora através das frinchas das janelas. Havia cantos de pássaros no ar, como no Verão. Mas Rachel não quis sair, nem sequer abrir as persianas. Estava tão cansada que sentia uma dor no coração. Quando a mãe se levantou para se arranjar e cozinhar, Rachel deitou-se na cama ainda morna e adormeceu.
Agora, que anoiteceu outra vez, a chuva cai docemente sobre os telhados da aldeia. Quando acordou, Rachel não compreendeu bem onde estava. Supôs por momentos que estava no quarto do hotel, com
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Mondoloni, mas depois lembrou-se do que se tinha passado. Talvez imaginasse que o carabineiro tinha ficado sozinho no hotel e ouvia também a chuva cair. Todos os soldados italianos partiram e o silêncio regressou à montanha. Um dia, no hotel, quando se penteava em frente do espelho, no quarto, ele aproximou-se e fitou-a com uma expressão estranha. Depois disse: "Quando a guerra acabar, levo-te a Itália. Havemos de ir a Roma, a Nápoles, a Veneza, faremos uma grande viagem." Foi nesse dia que lhe deu aquele anel com a pedra azul.
Rachel avança pelas ruas silenciosas. Todas as persianas estão fechadas. Pensa numa coisa que lhe faz palpitar o coração, pensa que talvez seja hoje, que talvez a guerra tenha acabado. Quando os americanos bombardearam Genes, Mondoloni dissera que era o fim, que os italianos iam assinar o armistício. Os soldados italianos partiram rumo à montanha, regressaram a casa, e a aldeia adormeceu silenciosamente, como uma pessoa muito cansada.
Rachel dirige-se para a praça. Quando chegar em frente do hotel, baterá na persiana, como é costume, e ele virá abrir. Sentirá o seu cheiro, o cheiro do tabaco, o cheiro do seu corpo, e ouvirá a sua voz ressoar-lhe no peito. Gosta de o ouvir falar de Itália. Fala das cidades, de Roma, de Florença, de Veneza; pronuncia coisas em italiano, lentamente, como se ela pudesse compreender. Quando a guerra acabar, Rachel poderá ir-se embora para longe desta aldeia, para longe destas pessoas que espiam e murmuram, dos garotos que lhe atiram pedras, para longe da casa em ruínas, do apartamento gelado onde o pai tosse; irá viajar por essas cidades onde há música nas ruas, cafés, cinemas, grandes armazéns. Deseja tão intensamente que isso se concretize de imediato que as pernas lhe tremem e tem de parar no vão de uma porta, com a água a escorrer sobre a cabeça, colando-lhe o lenço preto aos cabelos.
Está na rua que sobe para a praça, junto da vivenda da amoreira onde vive o Sr. Ferne. Não se vê qualquer luz pelas frinchas das janelas, não há barulho e a noite está muito escura, mas Rachel tem a certeza que o velho está em casa. Aguçando o ouvido, parece-lhe ouvi-lo falar sozinho com a sua voz trêmula. Imagina-o a fazer as perguntas e a dar as respostas e dá-lhe vontade de rir.
Agora ouve a água que cai na bacia da fonte. Na praça, as árvores
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estão deslumbrantes de luz. Por que haverá tanta luz? Terá acabado o recolher obrigatório? Rachel pensa nas sentinelas. Os carabineiros dispararam contra o marido da Julie Roussel na noite em que ele ia buscar o médico para o parto. Quando Mondoloni fala dos soldados, diz "bruti" com desprezo, baixando a voz. Não gosta dos alemães. Diz que são como animais.
Rachel hesita à entrada da praça. Sai do hotel uma luz intensa que ilumina as árvores e as casas como se fossem um cenário teatral. A luz cria sombras fantásticas. Mas Rachel ouve o som da água caindo na fonte e sente-se calma. Talvez os carabineiros e os soldados tenham decidido festejar o fim da guerra. Mas agora Rachel sabe que não é nada disso. A luz que ilumina a praça é fria e faz brilhar os pingos de chuva. Não se ouve um ruído, uma voz. Tudo é silêncio e vazio.
Rachel aproxima-se do hotel seguindo junto à balaustrada. Vê a fachada por entre os troncos das árvores. Todas as janelas estão iluminadas, as persianas e a porta estão escancaradas e a luz é ofuscante.
Lentamente, ainda sem compreender, Rachel aproxima-se do hotel. A luz incomoda-a e atrai-a contra vontade, apesar do coração bater com toda a força e as pernas tremerem. Nunca viu tanta luz. Em redor, a noite parece ainda mais densa e silenciosa. Ao chegar perto do hotel, vê o soldado de pé em frente da porta. Está imóvel, com a espingarda na mão, olhando a direito como se quisesse furar a noite com toda aquela luz. Rachel permanece imóvel. Depois, muito lentamente, recua para se esconder. É um soldado alemão.
Repara então nos camiões parados e no carro preto da Gestapo, na sombra. Recua até às árvores, foge, desce correndo as ruelas até à velha casa, e os seus passos ressoam no silêncio como o galope de um cavalo. O coração bate com tanta força que sente uma dor no meio do peito, uma espécie de queimadura. Pela primeira vez na vida, sente medo de morrer. Quereria poder correr pelas montanhas até Itália, até aos acampamentos nocturnos dos soldados, queria ouvir a voz de Mondoloni, sentir o seu cheiro, abraçá-lo pela cintura. Mas está em frente da porta de casa e sabe que é demasiado tarde. Sabe que os alemães virão buscá-la, assim como ao pai e à mãe, para os levarem para muito longe. Detém-se um instante para o coração se acalmar e a respiração
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voltar a ser normal. Procura as palavras que vai dizer ao pai e à mãe para os serenar, para que não saibam logo. Ama-os a ponto de ser capaz de morrer por eles e não sabia.
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A chuva acordou-as de madrugada. Era uma chuvinha fina, que tamborilava docemente nas agulhas dos pinheiros por cima delas e se fundia com o ruído da torrente. Os pingos começavam a atravessar o tecto do abrigo, pingos gelados que lhes caíam no rosto. Elizabeth bem tentou arranjar os ramos, mas só conseguiu que entrasse ainda mais água. Agarraram então nas malas e, embrulhadas nos seus xailes, aninharam-se ao pé de um larício, tremendo. A luz do dia começava a revelar a forma das árvores e uma névoa branca descia o vale. Estava tanto frio que Esther e Elizabeth permaneciam abraçadas junto ao tronco da árvore, sem coragem para se mexerem.
Vozes de homens ecoaram na floresta, chamando. Tiveram de pôr-se em pé, embrulharem-se bem na roupa húmida, agarrar nas malas e partir.
Esther tinha os pés a doer tanto que avançava tropegamente pelo caminho pedregoso, olhando a silhueta da mãe à sua frente. Da floresta iam surgindo outros vultos que pareciam fantasmas. Esther esperava ver aparecer as garotas polacas, mas não se ouviam quaisquer vozes ou risos de criança. Apenas, outra vez, o ruído dos sapatos nas pedras do caminho e o som constante da torrente que corria na direcção inversa.
Envolta na bruma, a floresta parecia não ter fim. Não se via o cume das árvores nem as montanhas. Era como se avançassem sem rumo, inclinados para a frente, sobrecarregados com o peso das malas, tropeçando, com os pés feridos pelas arestas das pedras. Esther e Elizabeth
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ultrapassavam fugitivos que tinham partido antes do amanhecer e que já estavam cansados. Havia mulheres idosas sentadas em cima dos embrulhos, na berma do caminho, e a bruma fazia com que os seus rostos parecessem ainda mais pálidos. Não se queixavam. Esperavam apenas na berma do caminho, muitas vezes sozinhas, com um ar resignado.
O caminho desembocava na torrente e agora era preciso passar a vau. O nevoeiro abria-se, deixando ver a encosta da frente, coberta de larícios sombrios, e o céu de um azul desbotado. Isso deu coragem a Elizabeth, que atravessou a torrente dando a mão a Esther e começaram a subir a montanha sem se deterem. Mais acima, à direita, havia um edifício de pedra onde deviam ter passado a noite alguns fugitivos porque a erva estava pisada em redor. Esther ouviu de novo os gritos das gralhas. Mas, em vez de a perturbarem, esses gritos deram-lhe alegria, porque queriam dizer: "Estamos aqui! Estamos aqui com vocês!"
Esther e Elizabeth chegaram ao santuário antes do meio-dia. Ao terminar a floresta, o vale alargava-se e viram os edifícios militares e a capela numa plataforma que dominava a torrente. Esther lembrava-se de Gasparini falar da Nossa Senhora cuja imagem levavam no Verão lá para cima, para o santuário, e traziam para baixo no Inverno, com um casacão vestido, para não ter frio. Aquilo parecia-lhe já tão distante que não compreendia que tinha lá chegado. Pensava que ia ver a imagem numa gruta, oculta no meio das árvores e rodeada de flores. Olhava sem compreender aqueles grandes e feios edifícios que se assemelhavam a casernas.
Continuando a andar, Esther e a mãe chegaram à plataforma. A praça em frente da capela estava apinhada de gente. Encontravam-se ali todos os fugitivos que tinham partido ainda de noite. Os homens, os rapazes, as mulheres, as crianças e até os velhos, enfiados nas suas casacas, estavam na praça, sentados no chão e com as costas apoiadas à parede. Também ali estavam os soldados italianos do IV Exército. Estavam instalados num dos edifícios. Sentavam-se cá fora, com um ar cansado, e apesar dos uniformes, também pareciam fugitivos. Esther procurou com os olhos o capitão Mondoloni, mas não estava ali. Devia ter seguido por outro caminho, pelo desfiladeiro de Ciriega;
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talvez até já tivesse chegado a Itália. Rachel também não se encontrava lá.
Esther apertou a mão de Elizabeth: "É aqui que o papá vem ter connosco?" Mas Elizabeth não respondeu. Poisou as bagagens junto da parede de um dos edifícios, pediu a Esther para tomar conta delas e foi falar com uns homens que estavam com o Sr. Seligman. Mas eles não sabiam nada. A pequena ouviu-os falar do caminho de Berthemont e de Passe. Apontavam para o outro lado do vale, para a alta montanha já envolta em sombras. Elizabeth voltou. Tinha uma voz surda, cansada. Disse apenas: "Vamos esperar aqui até amanhã de manhã. Atravessamos amanhã. Ele vem ter connosco aqui." Mas Esther compreendeu que ela não tinha a certeza.
Os fugitivos instalaram-se para a noite. Os soldados italianos abriram a porta de um dos edifícios e ajudaram as mulheres a transportar as malas. Arranjaram-lhes cobertores para as camas e até trouxeram café quente. Esther não conhecia aqueles soldados. Alguns eram muito novos, quase umas crianças. Exclamavam: "Acabou a guerra!" E riam. Depois da noite passada à chuva, a caserna parecia até luxuosa. Não havia camas suficientes para todos, de forma que Esther e a mãe tiveram que partilhar a mesma cama. Iam chegando outros fugitivos e instalavam-se no dormitório como podiam. Quando já não havia lugar no edifício militar, foram instalar-se na capela, cujas portas tinham sido arrombadas.
Os homens mais corajosos, com o Sr. Seligman à frente, decidiram
passar o desfiladeiro antes do anoitecer. O vento tinha dispersado as
nuvens e as altas montanhas, ao fundo do vale, brilhavam cobertas de
neve. Esther estava na praça quando o grupo começou a subir pelo
caminho acima do santuário. Via-os partir e sentia vontade de ir com
eles, porque ainda aquela noite chegariam a Itália. Mas a mãe estava
demasiado cansada para continuar e talvez esperasse realmente que o
pai aparecesse naquela noite.
Na parte de baixo da encosta havia um estábulo abandonado, no meio de grandes prados atravessados por braços da torrente. Esther achava que o pai devia vir daquele lado. Imaginava-o a descer a montanha, a andar pelo meio das pastagens com erva pela cintura e a saltar de uma rocha para outra para atravessar a torrente.
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Os filhos dos fugitivos já tinham esquecido a fadiga. Começavam a brincar na praça do santuário ou a descer a encosta rindo e gritando. Esther ficava a olhá-los e quando dava conta que por causa deles se tinha esquecido de vigiar a chegada do pai ao fundo do vale sentia apertar-se-lhe o coração. Depois, os gritos estridentes dos garotos ecoavam de novo e ela seguia-os com os olhos. As gralhas esvoaçavam no céu sobre o santuário, gritando também, como se tivessem algo a dizer aos homens.
A mãe de Esther veio sentar-se a seu lado, passou-lhe o braço à volta dos ombros e apertou-a a si com força. Também tinha prescrutado o fundo do vale e a encosta árida e escura da montanha durante toda a tarde. Permanecia em silêncio. Esther perguntou: "Se o papá não vier esta noite, vamos aqui ficar à espera dele amanhã?" Elizabeth respondeu bruscamente: "Não, ele disse que não devíamos esperar por ele, que devíamos seguir sem parar." "Então ele vai ter connosco a Itália?" "Claro, querida, vem ter connosco. Deve vir por outro caminho, ele conhece-os todos. Talvez até já tenha passado por Berthemont com os amigos. Os alemães perseguem os judeus por toda a parte, compreendes? É por isso que temos que continuar sem parar." Mas, tal como momentos antes, Esther sabia que a mãe estava a mentir, que inventava aquilo tudo para a acalmar. Isso magoava-a bem no íntimo, como o soco que os rapazes lhe tinham dado da outra vez, perto do celeiro abandonado. "E Rachel?" perguntou Esther de repente. "Os alemães também a perseguem?" A mãe sobressaltou-se como se a pequena tivesse dito uma blasfêmia. "Por que te lembraste de Rachel?" Esther respondeu: "Porque ela também é judia." Elizabeth encolheu os ombros. "Essa abandonou tudo, os pais, os amigos, tudo. Partiu com os italianos." Esther irritou-se e quase gritou: "Não! Não é verdade! Ela não partiu com os italianos! Ficou na aldeia com os pais." "Como sabes?" perguntou a mãe. Esther repetiu teimosamente: "Ela não foi com os italianos, eu sei. Ficou com os pais." "Tudo bem" disse Elizabeth friamente. "Suponho que saberá desenvencilhar-se." Ficaram em silêncio fitando ambas o mesmo ponto, no fundo do vale, junto à orla da floresta. Mas algo se quebrara; talvez já não esperassem nada.
Ao fim da tarde, as nuvens escureceram os cumes. O ribombar dos
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trovões fazia vibrar o chão e os sons eram tão nítidos e compassados que alguns fugitivos julgaram que se tratava de um bombardeamento e puseram-se a gritar com medo. A chuva começou a cair com grandes gotas. Esther correu a abrigar-se na capela. Estava tão escuro que não conseguia distinguir nada e ia tropeçando nos corpos. Os fugitivos estavam deitados no chão, embrulhados em cobertores. Havia outros em pé, encostados às paredes. A parte esquerda do tecto tinha sido atingida por um obus e a chuva caía em cascata no interior. Apesar da proibição dos italianos, tinham acendido velas à direita do altar
e a luz vacilante revelou a Esther os vultos e os rostos dos fugitivos.
Eram na sua maior parte pessoas idosas, velhos e velhas vestidos à
maneira dos russos ou dos polacos, parecidos com os que vira durante
o shabbat, na vivenda. A fadiga e a angústia tinham-lhes vincado os rostos.
Perto das velas, junto ao altar, os velhos, agasalhados nas suas
casacas, voltavam-se para o Rabi Eizik Salanter que lia em voz alta
num livro, de costas para a luz das velas para ver melhor. Encostada à parede fria da capela, Esther ouvia de novo as palavras incompreensíveis naquela língua doce e sincopada, sem tirar os olhos do velho iluminado pelas velas. Uma vez mais sentiu um arrepio, como se aquela voz desconhecida soasse apenas para ela, no seu íntimo. A voz baixa, ciciante, lia o livro e aquilo apagava nela a fadiga, o medo, a raiva. Deixava de pensar na encosta escura por onde o pai devia vir como numa ravina aterrorizadora e mortal, para a ver como um caminho
muito longo, muito distante, cujo fim era um mistério. Aqui, tudo se
transformava: as montanhas onde ribombava a trovoada, o caminho
que atravessava os desfiladeiros, tudo isso se tornara semelhante a
uma lenda em que os elementos se misturavam para se voltarem a reu[1 nir por uma nova ordem.
Lá fora, a chuva caía torrencialmente e a água entrava em cascata
dentro da capela pelo tecto esburacado. As crianças estavam agarradas
às mães que oscilavam suavemente todo o corpo, ao ritmo sereno da
voz de Eizik Salanter que lia as palavras do livro.
A seguir, o velho manteve o livro aberto durante muito tempo em
frente do rosto e começou a cantar com uma voz grave e doce que
não tremia. Então, os homens, as mulheres e mesmo as crianças cantaram
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com ele, acompanhando-o sem palavras, repetindo apenas o mesmo som: Ai'e, ai'e, ai'e, ai'e!... Uma das garotas polacas, a que tinha os olhos muito claros e que tinha levado Esther até junto da sua família, aproximou-se dela e deu-lhe a mão. Tinha-a reconhecido apesar da penumbra. À luz dos relâmpagos, Esther viu-lhe o rosto como que iluminado por uma alegria interior enquanto cantava com os outros, oscilando lentamente o corpo. Esther começou também a cantar.
O canto ressoava no interior da capela, sobrepondo-se ao ruído da água e da trovoada. Parecia que aquelas poucas velas acesas nos castiçais junto ao altar difundiam a mesma luz que no templo, na noite do shabbat. Iam agora chegando pessoas vindas dos dormitórios das casernas. Esther viu a mãe em pé, junto da porta. Sem largar a mão da jovem polaca, aproximou-se dela e levou-a para junto da parede onde estavam encostadas. Lá fora, a noite era escura e atravessada por clarões. Pouco a pouco o canto foi terminando. Ficaram todos em silêncio, ouvindo o ruído da chuva e os trovões que se iam afastando no vale. As chamas das velas começavam a tremer e extinguiam-se uma a uma. Já ninguém sabia onde estava. Pouco depois, Esther atravessou a praça fustigada pelo vento frio e foi deitar-se na cama de Elizabeth, agarrando-se uma à outra para não caírem.
De madrugada, os soldados italianos puseram-se a caminho seguidos pelos fugitivos. O céu por cima das altas montanhas cobertas de neve era de um azul profundo. Acima da aldeia, o caminho de pedras subia em ziguezague. Lentamente, atrasado pelas crianças e pelos velhos, o grupo ia seguindo o caminho, minúsculas silhuetas pretas recortando-se na faixa pedregosa.
Esther e Elizabeth atravessavam agora uma imensa extensão pedregosa. Esther nunca imaginara paisagem semelhante. Acima delas estendia-se um caos de pedras sem uma árvore, sem uma erva. Os blocos de rocha tinham parado em equilíbrio instável na borda do precipício. O carreiro era tão íngreme que as pedras saltavam sob os seus pés e rolavam até ao fundo do vale. Ninguém dizia uma palavra, por causa do perigo ou por causa do frio. Até as crianças avançavam pela estreita vereda sem uma palavra. Apenas se ouvia o ruído da torrente, invisível no fundo do vale, o rebolar das pedras e o arfar das respirações.
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A dada altura, Esther quis poisar a mala e sentar-se, mas logo a mãe a agarrou pela mão com uma espécie de dureza desesperada e a obrigou a continuar a andar.
Os grupos de fugitivos iam-se espaçando. Os velhos e as mulheres embrulhadas nos seus xailes negros, que tinham partido por último da capela, iam ficando para trás, distanciados, e as anfratuosidades da montanha já os ocultavam. As outras, as mulheres com filhos, avançavam lentamente mas sem parar. O caminho bordejava um precipício onde algumas árvores tinham conseguido fixar-se. Esther via em baixo um grande larício fulminado por um raio, escurecido, semelhante a um esqueleto. Do outro lado do vale, a montanha ameaçadora e eriçada de picos recortava-se no céu. Reinava o medo mas havia também a beleza da pedra brilhando ao sol e o céu impenetrável. O que metia medo principalmente era ver ao fundo do vale, na direcção em que avançavam já há dois dias, a muralha sombria e azulada, cintilante de gelo, envolta numa grande nuvem branca, que se erguia contra o céu. Parecia tão distante, tão inacessível que Esther sentia vertigens. Como conseguiria chegar até lá? Será que alguém conseguiria? Ou tinham-Lhes mentido e iam perder-se todos no meio do gelo e das nuvens, ser engolidos pelos desfiladeiros? Mais adiante, quando o carreiro fez uma curva no flanco da montanha, Esther viu de novo pássaros negros que descreviam círculos no céu, mas desta vez eram gaviões silenciosos.
Ao longo do caminho, junto dos taludes, havia fugitivos parados. Esther reconheceu algumas das mulheres que vira na capela. Estavam exaustas de fadiga e fome e deixavam-se ficar sentadas nas pedras, à beira do caminho, prostradas, com o olhar perdido. As crianças permaneciam de pé a seu lado, imóveis, silenciosas. As raparigas olhavam Esther quando ela passava. Havia no seu olhar uma expressão estranha, sombria e suplicante, como se desejassem agarrar-se a ela com os olhos.
Quando Esther e Elizabeth chegaram ao lago, no sopé da montanha, já as nuvens tapavam o sol e a luz diminuía. A água do lago era brilhante, iluminada por um bloco de neve endurecida que a dividia como um espelho. A maior parte dos fugitivos estava sentada à beira do lago, nas rochas amontoadas, procurando descansar. Mas já os
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homens e as mulheres mais válidas partiam de novo, começando a ascensão para o desfiladeiro, enquanto grupos de mulheres e de velhos exaustos iam chegando ao lago uns atrás dos outros.
Sentada junto de um rochedo, ao abrigo das rajadas de vento, Esther observava os que chegavam. Por mais do que uma vez Elizabeth se pôs em pé: "Vá, temos de ir, é preciso passar antes que anoiteça." Mas Esther olhava o caminho como na véspera, quando esperava o pai. No entanto, hoje não era ele que ansiava ver chegar. Era o velho Rabi Eizik Salanter que tinha cantado e lido o livro na capela. Não queria partir sem ele. Quando a mãe se impacientou uma vez mais, disse: "Por favor! Espera mais um bocadinho." Sobre a parede rochosa à sua frente, a nuvem entreabriu-se mostrando por momentos a linha escura do caminho, que se confundia com uma ravina entre dois cumes agudos. Depois, fechou-se de novo.
A trovoada ribombava no fundo das cavernas. Elizabeth estava pálida e nervosa. Andava de um lado para outro à beira do lago. Os fugitivos iam partindo uns a seguir aos outros. Apenas restavam as mulheres mais velhas e algumas com bebês. Ao aproximar-se de uma delas, uma jovem polaca de cabelos ruivos envoltos num xaile preto, Esther reparou que chorava silenciosamente, encostada a uma rocha. Tocou-lhe no ombro. Gostaria de poder falar com ela, de a encorajar, mas não sabia dizer nada na sua língua. Então, tirou um bocado de pão e de queijo do saco das provisões e estendeu-lhos. A mulher olhou-a sem um sorriso e começou imediatamente a comer, sempre curvada sobre a rocha.
Por fim, chegou junto do lago um novo grupo de fugitivos. Esther reconheceu Eizik Salanter e a família. Apoiado à bengala, o velho avançava com dificuldade pelo caminho de pedras. As rajadas de vento enfunavam-lhe a casaca e faziam esvoaçar a barba e os cabelos grisalhos. Ao vê-lo, a pequena compreendeu que atingira o limite das suas forças. Sentou-se na beira do lago e as mulheres e homens que o acompanhavam ajudaram-no a estender-se no chão. O rosto voltado para o céu estava muito pálido e transtornado pela angústia. Aproximando-se, Esther ouviu-lhe a respiração arquejante. Não conseguiu suportar vê-lo assim e afastou-se, indo refugiar-se nos braços da mãe. "Quero ir embora já", disse em voz baixa. Mas agora era
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Elizabeth que não conseguia desviar o olhar do velho deitado no chão.
A claridade do céu transformava-se, adquirindo um bizarro tom avermelhado. A trovoada aproximava-se. A tempestade formava turbilhões e grandes nuvens escuras desfaziam-se de encontro à montanha para tornarem a reunir-se mais adiante, deslizando como fumo por entre os cumes nevados. O homem que acompanhava o Rabi Eizik Salanter ergueu-se subitamente e voltou-se para Esther e Elizabeth, dizendo simplesmente, quase sem elevar a voz, como se se tratasse apenas de uma fórmula de cortesia: "O rabi não pode andar, tem de ficar a descansar. Vão-se embora." Disse o mesmo na sua língua, dirigindo-se às mulheres que tinham vindo com ele. Então, docemente, todas agarraram nos seus embrulhos e malas e começaram a subir para o desfiladeiro.
Antes de entrar na ravina que penetrava na montanha e de desaparecer entre as nuvens, Esther deteve-se para olhar uma última vez para Eizik e o seu companheiro, imóveis à beira do lago gelado. Não eram mais do que duas manchas escuras no meio dos rochedos.
O caminho subia em ziguezague por entre os cumes, sem que se distinguisse o fim. As nuvens negras, iluminadas por relâmpagos, estavam mesmo por cima de Esther e da mãe. Metia medo, mas era tão belo que a pequena queria continuar a subir para ficar mais perto delas. Farrapos de nevoeiro adquiriam um tom avermelhado, deslizavam, rasgavam-se nas agulhas de pedra, escorriam pelas ravinas como regatos imateriais. Abaixo de Esther e Elizabeth tinha desaparecido tudo. As mulheres e os restantes fugitivos eram invisíveis. Flutuavam entre o céu e a terra e, pela primeira vez, a pequena pôde imaginar o que sentem os pássaros. Mas aqui não havia pássaros, não havia ninguém. Estavam num mundo onde apenas viviam as nuvens, amontoados de nuvens, e os raios.
Mario tinha falado algumas vezes do raio que mata os pastores por baixo das árvores ou nas suas cabanas de pedra. Contava a Esther que os que entram na zona de morte, precisamente no instante em que vão ser fulminados pelo raio, ouvem um ruído estranho, uma espécie de zumbido de abelhas, vindo de todos os lados simultaneamente, que lhes enche a cabeça, enlouquecendo-os. Agora, com o coração a bater,
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Esther procurava detectar esse ruído enquanto ia subindo pelo carreiro pedregoso.
Mais acima, começou a cair uma chuvinha fina. À direita, encastrado no flanco da montanha, havia um abrigo de pedras. Ali se tinham refugiado homens e mulheres esmagados pela fadiga e transidos de frio. Viam-se-lhe os vultos à entrada do sinistro abrigo. Mas Elizabeth disse: "Não podemos parar aqui, temos de estar do outro lado da fronteira antes que seja noite." Continuaram a andar, extenuadas, sem pensarem em nada. O nevoeiro envolvia-as de tal maneira que podiam acreditar ser as únicas a terem avançado até tão longe.
De repente, o céu abriu-se e revelou um grande pedaço de azul. Esther e Elizabeth detiveram-se, deslumbradas. Tinham chegado à garganta. Esther lembrava-se agora do que diziam as crianças na aldeia, dessa janela que se abrira no céu quando a imagem da Virgem fugira pela montanha. Era aqui essa janela através da qual se podia ver o outro lado do mundo.
No caos de rochedos que se estendia entre os cumes, a luz brilhava sobre a neve fresca. O vento era gelado mas Esther já não o sentia. Homens, mulheres, crianças, os fugitivos estavam sentados nas rochas, descansando. Embrulhados em abafos, curvados por causa do vento, olhavam em seu redor os altos cumes que pareciam deslizar por baixo das nuvens. Olhavam sobretudo para o outro lado, para Itália, para a encosta com grandes manchas de neve, as ravinas enevoadas e o grande vale já mergulhado na sombra da noite. Em breve tudo ficaria escuro, mas por agora isso não tinha importância. Tinham passado, tinham conseguido passar a parede, o obstáculo que lhes causava tanto medo; tinham vencido os perigos, o nevoeiro e a trovoada.
Abaixo deles, precisamente no local de onde vinham, clarões avermelhados refulgiam no interior das nuvens e os trovões ressoavam como se fosse um bombardeamento. O sol desapareceu, o céu fechou-se e a chuva recomeçou a cair. Era uma chuva rápida e fria, picava o rosto e as mãos e as suas gotas ficavam presas na pele de carneiro, sobre o peito de Esther. Pegou na mala e Elizabeth pôs o saco de pano ao ombro. Os outros fugitivos tinham-se erguido e, seguindo a mesma ordem pela qual tinham subido até à garganta, homens e rapazes à frente, mulheres, velhos e crianças a seguir, em pequenos
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grupos silenciosos, iniciaram a descida para o fundo do vale, já mergulhado na noite, de onde subiam fumos brancos, as aldeias esquecidas da Stura onde esperavam encontrar salvação.
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Festiona, 1944
Era o longo período do Inverno. Em Festiona, os véus de fumo arrastavam-se por sobre as lousas dos tectos. À tarde fazia frio. O sol escondia-se cedo por trás das montanhas e o vale da Stura era um lago de sombra. Sem saber porquê, Esther adorava aquela sombra; aquele fumo que saía dos tectos, que flutuava pelas ruelas, que rodeava a Pensão Passagieri, aquele fumo que afogava as árvores, que apagava os jardins. Por isso, caminhava pelas ruelas desertas, ouvindo o som dos seus tamancos que mal perturbava o silêncio algodoado. Havia sempre cães a ladrar.
Permanecera só com Elizabeth em Festiona durante todo o Inverno. Trabalhavam ambas na Pensão Passagieri em troca de alimentação e de um quarto no primeiro andar, por baixo do telhado, com uma porta-janela que dava para o terraço, do lado da igreja. No campanário, o relógio parado marcava interminavelmente dez para as quatro.
Elizabeth, de pé no terraço, pendurava os lençóis e a restante roupa. Colocara uma camisola por cima da bata caseira e tinha as mãos e as faces vermelhas como as de uma camponesa. Lavava o chão da cozinha com sabão e escova, queimava o lixo no pátio, de madrugada, descascava os legumes, dava de comer aos coelhos que constituíam a base da ementa do restaurante. Mas nunca os quisera matar. Era Angela, a gerente da casa (diziam que era também a amante do Sr. Passagieri), que se encarregava da tarefa e fazia as coisas sem problemas: uma pancada na nuca, a pele voltada ao contrário, o corpo sangrento pendurado pelas patas traseiras. A primeira vez que vira aquilo,
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Esther fugira a correr pelo meio das ervas até junto do rio. "Quero voltar para Saint-Martin, não quero ficar aqui, aqui ele nunca mais nos encontra!" Elizabeth tinha corrido atrás dela pelo mato e alcançara-a na beira do rio, sem fôlego, com os joelhos arranhados pelas silvas. Esbofeteara-a primeiro para depois a apertar a si; era a primeira vez que lhe batia. "Não te vás embora, meu amor, minha estrela, fica comigo senão morro!" Naquele momento, Esther odiava-a como se tudo aquilo fosse culpa dela, que colocara aquelas montanhas geladas entre ela e o pai para a destruir.
A Pensão Passagieri não tinha muitos hóspedes. Era a guerra. Havia alguns caixeiros viajantes a caminho de Vinadio, meio perdidos, e três ou quatro camponeses da aldeia de baixo, viúvos ou demasiado velhos para ficarem sozinhos nas suas cozinhas. Conversavam na sala do restaurante, com os cotovelos apoiados na toalha de oleado. Para ajudar, Esther trazia os pratos, a sopa, a polenta e o vinho. Falavam na sua língua cantante, chamavam-na "ragazza" com uma estranha forma de pronunciar os "r", como se fossem ingleses. Não sorriam, mas Esther gostava deles por serem elegantes e discretos.
Quando Angela ia comprar as provisões, era Esther que a acompanhava. Angela falava pouco. Esperava à entrada da quinta que lhe trouxessem o leite, os legumes, os ovos frescos, às vezes um coelho vivo que levava pendurado pelas orelhas. Tinha uma ferida ulcerada, manquejava e não podia usar meias. Esther olhava com receio a chaga que atraía as moscas. No princípio, achara que aquilo condizia com uma assassina de coelhos. Mas, sob aquela aparência rebarbativa, Angela escondia muita ternura e generosidade. Chamava a Esther "figlia mia" e tinha um olhar azul muito vivo, herdado de uma avó que nunca conhecera.
Em Festiona não havia tempo, não havia movimento, apenas havia as casas cinzentas com tectos de lousa por onde se escapava o fumo, os jardins silenciosos, a bruma da manhã que o sol desfazia e que voltava à tarde, invadindo o grande vale.
No seu pequeno quarto, Esther prestava atenção aos ruídos enquanto esperava que Elizabeth voltasse do trabalho. Estremecia. O ladrar dos cães que respondiam uns aos outros. O barulho dos tamancos dos pensionistas do asilo de crianças que iam e regressavam da
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igreja. Por vezes, um rumor de orações. Elizabeth tinha pensado em matricular Esther na escola, na tal do asilo. Mas a pequena recusara, sem gritos, sem lágrimas. "Nunca lá hei-de pôr os pés." O asilo era uma grande casa sombria de um só piso, com as persianas fechadas a partir das quatro horas, que albergava uma dezena de órfãos de guerra e alguns casos difíceis lá colocados pelos pais. Tanto os rapazes como as raparigas vestiam bibes cinzentos e eram pálidos, com um ar doentio e olhares fugidios. Nunca saíam do asilo a não ser para ir à igreja de manhã e à noite e, ao domingo, para um passeio em fila até à ribeira, enquadrados pelas freiras e por um homem corpulento e vestido de preto que servia de porteiro. Esther tinha tanto medo deles que se escondia logo que ouvia o som dos seus passos ressoar na praça e nas ruelas.
À noite, no quarto iluminado por uma lâmpada de azeite, Elizabeth obrigava Esther a estudar. Os vidros da porta-janela estavam cobertos com papel azul por causa dos bombardeamentos. Por vezes ouvia-se o som dos aviões, de noite, lá muito alto: um ruído agudo vindo de todos os lados ao mesmo tempo, que fazia acelerar o coração. Esther agarrava-se à mãe, apoiando a cabeça contra o seu peito. As mãos de Elizabeth estavam frias, gretadas pela água das lavagens. "Não é nada, mamã. Vão-se embora."
Às vezes, de noite, também se ouviam tiros ressoando por todo o vale. Eram os partisans. Brao dizia que se chamavam Giustizia e Liberta e desciam da montanha para atacar os alemães, para os lados de Demonte ou descendo a Stura, no local em que a ponte atravessa o desfiladeiro na direcção de Borgo San Dalmazzo.
Brao era um rapaz de quinze anos que tinha sido colocado como pensionista no asilo das crianças e era um dos tais casos difíceis. Fugira diversas vezes de casa e roubava nas quintas. Era tão magro e franzino que parecia não ter mais de doze anos, mas Esther achava-o engraçado. Fugia na hora de ir à igreja e vinha ter com ela ao pátio da pensão. Exprimia-se um pouco em francês e muito por sinais. Elizabeth não gostava desses encontros. Não queria que Esther falasse com qualquer pessoa, tinha medo de todos, mesmo dos que eram simpáticos. Dizia que Brao era um vadio.
Esther gostava muito de passear com ele pelos arredores da aldeia.
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Pela manhã, Brao escapava-se e vagueavam juntos pelos campos. O vale brilhava ao sol. Brao conhecia todos os caminhos e todos os atalhos, e também os trilhos dos animais, como os coelhos bravos, os esconderijos dos faisões e os lugares, no meio dos canaviais, de onde se podiam espreitar as garças e os patos selvagens. Esther lembrava-se de Mario e da forma como ele andava pelos grandes prados, em Saint-Martin, caçando víboras. Tudo isso lhe parecia agora muito distante, como num outro país, numa outra vida.
Ia com Brao vaguear pelo leito da ribeira, para os lados de Rua. Na Primavera, quando a neve fundia, a Stura transformava-se numa ribeira enorme, cheia até às margens, transportando lama, troncos e torrões com erva arrancados às margens. O barulho, sobretudo, atordoava, causava vertigens. A toalha de água descia, branca de espuma, arrastando tudo consigo. Esther sonhava descer a ribeira numa jangada feita de ramos e ervas e ir até ao mar ou ainda mais longe, até ao outro lado do mundo. Brao afirmava que se se deixassem levar pela ribeira iriam até Veneza. Apontava para Este, para além das montanhas, e Esther não conseguia compreender como era possível aquela água viajar até tão longe sem se perder.
Havia ilhas no leito da Stura. As árvores tinham crescido e as ervas eram altas. A ribeira separava-se em vários braços, formava baías, cabos, penínsulas. Havia até lagos serenos. Os corvos caminhavam pesadamente pelas margens e levantavam vôo quando alguém se aproximava, soltando gritos ásperos que faziam arrepios. Estava-se bem lá em baixo, no leito da ribeira. Esther podia por lá ficar horas enquanto Brao procurava lagostins-do-rio. Havia toda a espécie de esconderijos.
Era lá que Esther pensava no pai. Sentia-o como se estivesse perto, algures na montanha, na Costa dell'Arp ou na Pissoussa. Podia vê-la lá de cima. Não podia descer, porque não chegara ainda o momento, mas via-a. Esther sentia o seu olhar poisado nela, doce e forte como uma carícia, um sopro que se misturava com o vento nas árvores, o bater das águas nas praias de seixos e até mesmo com os gritos dos corvos.
"Se pudesses voar como um pássaro, ainda esta noite lá chegavas." Esther estava com ele em Saint-Martin, segurava a sua mão, ocultava-se
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na sua sombra: o pai era tão grande que servia de protecção contra a luz do sol de Verão.
Tanto o Inverno como a Primavera eram lentos, demorados, como quando se está muito no fundo de uma gruta e se vê a luz lá longe. Era por causa do que acontecera em Borgo San Dalmazzo. Elizabeth sabia mas nunca falava disso. Apenas uma vez, em que Esther tinha saído com Brao seguindo pela estrada para o lado em que a ribeira é mais larga, cheia de braços e de ilhas, e quase não se vê a montanha, Elizabeth fora à sua procura.
Esther tinha-a encontrado em Rua, ao cair da noite, com a bata de flores, os tamancos e um lenço preto tapando os cabelos, como uma camponesa. Elizabeth apertara-a a si e estava gelada. Foi a primeira vez que Esther se apercebeu de que a mãe era tão frágil, como se tivesse envelhecido de repente. Sentia-se envergonhada e estava zangada. "Por que é que não me deixas fazer o que quero? Estou farta, quero ir embora daqui! Aqui nunca nos vai encontrar!" Não queria dizer "papá", não queria sequer pensar nessa palavra, acreditar nesse nome. Sentia-se sufocar e os olhos estavam cheios de lágrimas. Como era estranho! O nevoeiro corria sobre os campos, prendia-se nas ruelas, subia do leito da ribeira com a noite. Elizabeth apertava Esther a si e seguiam lentamente, com a cabeça baixa e as gotas de orvalho poisando-lhes no rosto.
"Levaram todas aquelas pessoas, Hélène. Compreendes?" Elizabeth falava lentamente e era por isso que as suas mãos estavam geladas. As palavras eram lentas e calmas, igualmente geladas. "Apanharam-nos todos na estrada, em Borgo San Dalmazzo. Levaram todos, até os velhos, as mulheres e as crianças. Meteram-nos no comboio e nunca mais voltarão. Vão morrer todos."
Depois disso, sempre que Esther ouvia o nome de Borgo San Dalmazzo pensava no nevoeiro subindo da ribeira e apagando tudo, os rostos e os corpos, afogando os nomes.
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Esperaram nos edifícios da estação. Os soldados alemães tinham-nos capturado facilmente à entrada de Borgo San Dalmazzo. Estavam exaustos de fadiga, de fome e de sono. Há dias que andavam por caminhos pedregosos e agrestes. Ao descerem o vale estreito, viram primeiro a igreja de Entracque e os telhados da aldeia e detiveram-se com o coração a bater. As crianças olhavam, maravilhadas. Pensavam que tinham chegado, que não tinham mais nada a temer, que a guerra tinha acabado. O vale brilhava com o ar da manhã e notavam-se já as cores do Outono, um Outono triunfante, quase embriagador. Ouvia-se um som de sinos ao longe, um som que chegava em revoadas. Via-se brilhar o vôo dos pombos sobre os telhados. Era uma festa.
Tinham recomeçado a andar e atravessado a aldeia. Os cães ladravam à sua passagem e seguiam-nos correndo ao longo dos taludes. As crianças agarravam-se às mães. Na soleira das portas, os aldeões viam-nos passar. Eram na sua maior parte pessoas de idade, camponesas, velhas vestidas de preto. Olhavam sem dizer nada, com os olhos franzidos por causa do sol. Mas não revelavam hostilidade nem receio. Enquanto iam passando, algumas mulheres aproximavam-se e davam-Lhes pão, queijo fresco e figos, dizendo palavras na sua língua.
O grupo tinha descido o vale até Valdieri, passando de largo e seguindo a ribeira Gesso. As crianças olhavam espantadas as fachadas altas iluminadas pelo sol, a cúpula da igreja, o campanário erguendo-se como um farol. Também aqui os pombos voavam, agitando o som
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dos sinos no céu, em redor das cúpulas. Erguiam-se fumos trazendo o aroma da comida e de queimadas de ervas secas nos campos. Ouvia-se o ruído da água correndo sobre os seixos do leito da ribeira, um murmúrio doce que falava de futuro. Iam para o comboio. Partiriam para Gênova, para Livorno, talvez até para Roma. Apanhariam o barco de Ângelo Donati. Já não havia guerra. Podiam ir para todo o lado, recomeçar uma vida nova.
Pararam na margem da ribeira para repousar quando o sol estava no zénite. As mulheres dividiram as provisões: o pão duro de Saint-Martin e o pão fresco, o queijo e os figos que os aldeões lhes tinham dado ao passarem em Entracque e em Valdieri.
Agora tudo aquilo parecia ter o ar de um passeio, de um simples piquenique no campo, apesar das malas e dos embrulhos, apesar das feridas nos pés, do sofrimento e da febre que ardia nos olhos das crianças. A ribeira brilhava ao sol, havia mosquitos suspensos no ar e pássaros poisados nas árvores.
Tinham-se sentado nas praias de seixos para comer. Saboreavam a música de liberdade da ribeira. As crianças tinham começado a brincar, correndo ao longo da margem e fazendo barquinhos com pedaços de madeira. Os homens estavam sentados, fumando e conversando. Falavam do que iriam fazer lá, do outro lado das montanhas, em Gênova ou em Livorno. Alguns falavam mesmo de Veneza, de Trieste e do mar que iam atravessar até chegarem a Eretz Israel.
Falavam da sua terra, de uma quinta, de um vale. Falavam da cidade de luz, cintilante, com as suas cúpulas e minaretes, onde se encontrava o berço do povo judeu. Talvez sonhassem ter já chegado e que as cúpulas e torres de Valdieri estavam às portas de Jerusalém.
Tornaram a partir pouco depois porque a noite já se adivinhava ao fundo do vale. À entrada de Borgo San Dalmazzo, no caminho para a estação, os soldados da Wehrmacht tinham-nos capturado. Tudo se passara muito rapidamente, sem que compreendessem na realidade o que lhes estava a acontecer. À sua frente, no extremo da longa rua estreita e fria, estavam os soldados vestindo capotes verdes. Atrás deles, rodavam lentamente os camiões com os faróis acesos, empurrando-os como se fossem um rebanho. Chegaram assim à gare, onde os soldados os fizeram entrar para um grande edifício, à direita.
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Entraram todos, uns atrás dos outros, até as grandes salas estarem apinhadas. Os alemães fecharam as portas.
Era noite. Ressoavam vozes em redor da gare. Não havia qualquer luz além da dos faróis dos camiões. As mulheres sentaram-se no chão, junto dos seus embrulhos, e as crianças agarraram-se a elas. Ouviam-se choros de crianças, soluços, murmúrios. O frio da noite entrou nas grandes salas pelos vidros partidos, através dos caixilhos. Não havia móveis nem camas. Ao fundo da sala maior as latrinas entupidas cheiravam mal. O vento da noite passava sobre as crianças aterrorizadas. As mais pequenas acabaram por adormecer.
Cerca da meia-noite, foram acordados pelo barulho das manobras dos comboios que chegavam, pela chiadeira e os choques dos vagões, pelo soprar das locomotivas. Ouviram-se apitos. As crianças tentavam ver o que se passava e as mais pequenas recomeçaram a choramingar. Mas não se ouviam vozes de homens, apenas aqueles sons de máquinas. Já não tinham noção de onde estavam.
De madrugada, os soldados abriram as portas do lado das vias férreas e empurraram os homens e as mulheres para os vagões sem janelas, pintados com tons de camuflagem. Estava frio e o vapor das locomotivas espalhava-se em nuvens fosforescentes. As crianças agarravam-se às mães e talvez perguntassem: "Para onde vamos? Para onde nos levam?" Os cais, os edifícios da gare e a cidade em redor estavam vazios. Existiam apenas as figuras fantasmáticas dos soldados vestidos com os longos capotes, em pé, de espaço a espaço, sob o vapor dos comboios. Talvez os homens sonhassem fugir, bastaria esquecer as mulheres e as crianças e correr ao longo das vias, saltar os taludes e desaparecer nos campos. A madrugada era interminável e silenciosa, sem gritos nem vozes, sem pássaros nem ladrar de cães, apenas com o resfolegar das locomotivas e o barulho dos atrelados, seguidos do chiar agudo das rodas quando começaram a patinar nos carris e o comboio partiu para aquela viagem sem destino. Turim, Gênova, Vintimille, as crianças agarradas às mães, o cheiro acre do suor e da urina, o bater dos eixos, o fumo que entrava nos vagões escuros e a luz da madrugada através das frinchas das portas, Toulon, Marselha, Avignon, o som das rodas, o choro das crianças, a voz abafada das mulheres, Lião, Dijon, Melun, e o silêncio subsequente à
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paragem do comboio, e a nova noite fria, a imobilidade que atordoava, Drancy, a espera, todos aqueles nomes e todos aqueles rostos que se esfumavam como se tivessem sido irmãs e irmãos arrancados da memória de Esther.
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Os órfãos iam à igreja de Festiona todas as tardes, ao cair da noite. Uma vez, Brao escapou-se e encontrou Esther na praça. "Anda!" disse, apontando a igreja. Esther não queria, detestava ouvir o ruído de passos das crianças e o murmúrio maquinal das orações. Ao lado da porta havia aquele quadro estranho da Virgem pisando um dragão. Brao agarrou Esther pela mão e levou-a para dentro da igreja. Parecia uma gruta muito escura. Cheirava a madeira encerada e a velas. Ao fundo, de cada lado do altar, uma pequenina estrela tremeluzia ao frio. Esther aproximou-se das luzes como se não conseguisse desviar delas o olhar.
Passado um instante, Brao puxou-a por um braço. Sentia-se inquieto, não compreendia. Então Esther pegou numa das lamparinas e começou a acender as velas, umas a seguir às outras. Não sabia muito bem porque fazia aquilo; queria ver a luz brilhar, como naquela noite, em Saint-Martin, quando entrara na vivenda do alto da aldeia, com todas aquelas chamas palpitantes. Era a mesma luz, como se o tempo não passasse e estivessem ainda do outro lado, antes da barreira das montanhas, e as chamas furassem a sombra, olhando-os.
Lá, eram os olhos das pessoas que viam, as crianças, as mulheres, Cécile com o lenço cobrindo os lindos cabelos negros. As vozes dos homens cresciam, ressoavam como uma tempestade para depois se tornarem muito suaves, murmurando as palavras do livro naquela língua misteriosa que penetrava cá dentro mesmo sem ser compreendida.
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com uma lamparina na mão, Esther dava a volta à igreja, acendendo todas as velas que encontrava: nos cantos, em frente das imagens, dos lados do altar. Brao permanecia de pé junto da entrada olhando sem dizer nada, mas os seus olhos também brilhavam. A pequena andava de um lado para outro febrilmente, ia fazendo nascer estrelas de luz e agora a igreja refulgia como se houvesse festa. As velas bruxuleavam, provocando um calor intenso, quase mágico. Esther ficou de pé, a meio da igreja, vendo todas aquelas luzes a brilhar. Deixava que o calor a penetrasse. Era como se eles ali estivessem todos por mais um momento, um momento apenas; sentia a força dos seus olhares, as perguntas das crianças, o amor que as mulheres davam, sentia a força do olhar dos homens, ouvia o som grave das suas vozes e sentia o lento movimento de balanço dos corpos enquanto cantavam, enquanto toda a igreja vibrava e oscilava como um navio.
Mas tudo aquilo não durou mais do que um instante, porque de repente a porta da igreja se abriu e a voz do porteiro ressoou. O homem vestido de preto segurava Brao pelo colarinho do bibe e Brao gritava: "Elena! Elena!" Esther sentia vergonha. Devia ter ficado ajudado Brao, mas teve medo e fugiu a correr. Quando chegou à pensão foi fechar-se no quarto mas, mesmo aí, parecia-lhe ouvir Brao a gritar pelo seu nome e o ruído dos tamancos dos malditos órfãos avançando a passo para a igreja. Como todas as tardes, entravam na gruta sombria, sentavam-se nos bancos rangentes, as raparigas à esquerda e os rapazes de cabeça rapada à direita, com os velhos bibes cinzentos gastos nos cotovelos, e Brao estava no meio deles, com o ombro ainda dorido da pancada que apanhara.
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Chegava o fim do Verão e sabia-se que os alemães tinham iniciado a retirada, partindo para o Norte. Brao falava disso e as outras pessoas também, no restaurante da Pensão Passagieri. Falavam dos homens de Giustizia e Liberta, que se tinham reunido em Madone du Coletto, acima de Festiona. Elizabeth apertara Esther com muita força de encontro ao peito; tinha a voz alterada e não conseguia explicar-se bem. "Vamos regressar em breve, acabou-se tudo, vamos voltar para França." Mas Esther fitava-a com dureza. "Então vamos embora amanhã?" Elizabeth fazia-lhe sinal que se calasse. "Não, Hélène, temos de esperar, não é já." Fingia não compreender, como se nada se tivesse passado, como se tudo estivesse normal. Nem sequer queria pronunciar "Esther", era um nome que lhe metia medo. Esther soltou-se-lhe dos braços, saiu do pequeno quarto, desceu para o pátio e afastou-se na direcção dos campos. Doía-lhe o coração e sentia um nervo a palpitar no seu peito.
No dia seguinte de manhã, bem cedo, partiu para Coletto. Seguiu pela estrada de terra. A montanha erguia-se à sua frente, coberta de larícios coloridos pelo Outono. Logo a seguir às últimas casas de Festiona a estrada começava a subir em ziguezague.
Há já um ano, Esther e Elizabeth tinham descido por aquela mesma estrada ao chegarem a Valdieri. Fora já há tanto tempo e, no entanto, Esther tinha a impressão de poisar os pés exactamente sobre o rasto que deixara. Não tinha chovido desde o princípio do Verão. A estrada esboroava-se, as pedras rolavam e havia muita erva seca nos
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taludes. Esther cortava os ziguezagues por atalhos no meio do mato. Subia sem olhar para trás, agarrando-se aos arbustos. O coração batia-lhe com força no peito e sentia as gotas de suor ensopando o vestido nas costas e fazendo impressão nas axilas.
Não se ouvia qualquer ruído na floresta; apenas, de tempos a tempos, o crocitar dos corvos invisíveis. A montanha era bela e solitária. O sol da manhã fazia brilhar as agulhas dos larícios e intensificava o aroma das sebes.
Esther pensava na liberdade. Giustizia e Liberta. Brao dizia que eles estavam lá em cima, no alto daquela montanha, que se reuniam junto da capela. Talvez lhes conseguisse falar, talvez soubessem qualquer coisa, talvez tivessem notícias de Saint-Martin. Talvez pudesse partir com eles, passar as montanhas e, lá em baixo, estariam Tristan, Rachel, Judith e todas as pessoas da aldeia, os velhos envergando as suas casacas e as mulheres com os vestidos compridos e os cabelos ocultos pelos lenços. Haveria também as crianças, todas as crianças, correndo pela praça em redor da fonte ou cavalgando pela rua do regato até aos prados à beira da ribeira. Mas não queria pensar mais em tudo aquilo. Queria ir mais longe, apanhar o comboio para Paris, ir até ao mar, talvez até à Bretanha. Antigamente, falava muito da Bretanha com o pai e ele prometera-lhe que havia de a levar lá. Era por isso que ela estava a escalar aquela montanha: para ser livre, para não pensar mais. Quando estivesse com os de Giustizia e Liberta já não precisaria de pensar em nada, tudo seria diferente.
Esther chegou ao santuário um pouco antes do meio-dia. A capela estava abandonada, a porta fechada e as janelas tinham vidros partidos. No alpendre havia vestígios de fogueiras. Ali tinham comido pessoas, talvez dormido. Viam-se bocados de cartão e palhas secas. A pequena subiu até à fonte que ficava acima do santuário e bebeu a água muito fria. Depois, sentou-se à espera. O coração batia com força. Tinha medo. Tudo estava silencioso e apenas se ouvia o ligeiro ruído do vento nos larícios; mas, pouco a pouco, Esther começou a aperceber-se de outros sons: estalidos das pedras, restolhadas nas moitas, a passagem momentânea de um insecto, o canto distante de uma ave por entre as árvores. O céu estava muito azul, sem nuvens, e o sol queimava.
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De repente, não pôde esperar mais. Começou a correr como daquela outra vez, na estrada de Roquebillière, quando Gasparini a tinha levado a ver a ceifa do trigo e ela sentira dentro de si um grande vazio, o medo da morte. Correu pela estrada de Valdieri até à grande curva da qual se vê o vale e aí deteve-se, sem fôlego. Podia ver tudo à sua frente, como se fosse um pássaro.
O vale de Valdieri estava iluminado pelo sol. Conhecia todas as casas e todos os carreiros até à aldeia de Entracque pela qual chegara com Elizabeth. Era uma grande brecha por onde soprava o vento.
Sentou-se então no chão, à beira da estrada, e ficou a olhar para longe, para o lado das montanhas. Os cumes eram agudos e arranhavam o céu, a sua sombra estendia-se pelas encostas até ao vale. Bem ao fundo, a neve brilhava como uma jóia.
Há um ano, Esther e Elizabeth tinham passado aquelas montanhas com todas as outras pessoas que fugiam dos alemães. Esther recordava cada instante embora isso lhe parecesse muito distante, como que passado numa outra vida. Tudo tinha mudado. Agora, o que estava do outro lado da montanha tornara-se inacessível. Talvez não restasse nada.
Aquilo provocava um buraco dentro de si, uma janela por onde passava o vazio. Fora isso que ela vira, lembrava-se bem, quando se aproximara da montanha, antes de passar a garganta: uma janela irreal onde o céu brilhava. Mas talvez tivesse sonhado, precisamente antes de as nuvens se fecharem sobre Elizabeth e sobre ela própria, mergulhando-as no esquecimento em Festiona. Então os combatentes de Giustizia e Liberta nada podiam fazer, ninguém se liberta das sombras.
O sol descia para as altas montanhas e ela sentia no rosto o avanço das trevas. Lá ao fundo havia justamente essa montanha a que as pessoas davam o nome de Treva.
Esther esforçava-se por não desviar o olhar do fundo do vale, da passagem pelo meio dos gelos. A sombra ia-se estendendo lentamente, recobria o vale, afogava as aldeias. Agora Esther ouvia os sons da vida, o ladrar dos cães, o repicar dos sinos, até os gritos das crianças. O cheiro a fumo era trazido pelo vento. Lá em baixo era um dia como qualquer outro. Ninguém pensava na guerra.
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Ao longe, o cume do Gelas parecia cada vez mais afastado e flutuava acima da bruma, leve como uma nuvem. Esther via o sol aproximar-se inexoravelmente das montanhas. Pensava em Elizabeth, lá em baixo, em Festiona. Devia ter vestido o casaco de malha por cima da bata de trabalho, por causa do frio da noite que já começava a chegar. Brao devia estar à espreita na praça, pois era a hora em que as crianças do asilo se preparavam para ir à igreja. Ainda por mais alguns minutos, Esther ficou a olhar o vale de Valdieri e as arestas agudas dos glaciarrés, como se estivesse alguém para chegar, descer das alturas e avançar até às aldeias fumarentas, um homem muito alto que atravessaria as torrentes e os prados de costas para o sol e ela sentiria finalmente o seu ombro junto dela.
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ESTHER
Port d'Alon, Dezembro de 1947
Tenho dezassete anos. Sei que vou deixar este país para sempre. Não sei se conseguirei chegar ao outro, mas vamos partir em breve. A mamã está sentada a meu lado, na areia, ao abrigo de uma cabana em ruínas. Dorme enquanto eu espero. Estamos embrulhadas no cobertor militar que nos deu o tio Simon Ruben antes da nossa partida. É um cobertor do exército americano, duro e impermeável, de que ele gostava muito. Simon Ruben é amigo da mamã e meu. Foi ele que tratou de tudo para a nossa viagem. Depois da guerra, quando viemos para Paris sem o meu pai, Simon Ruben recolheu-nos. Era amigo do meu pai, conhecia-o muito bem e foi por isso que nos acolheu. Instalou-nos primeiro na garagem, porque não tinha a certeza de a guerra ter acabado e os alemães não voltarem. Depois, quando compreendeu que tinha acabado realmente, que já não havia motivo para ninguém se esconder, cedeu-nos metade de um apartamento que tinha na Rua dês Gravilliers. Na outra metade vivia uma velhinha cega que se chamava Sra. d'Aleu. Foi aí que vivemos. Mas agora já não há mais dinheiro e não sabemos para onde ir. Não há lugar para nós em parte nenhuma. Simon Ruben disse à mamã que não era por causa do dinheiro mas sim pela nossa vida, para podermos esquecer. Perguntou: "Não deveremos esquecer o que a terra já cobriu?" Ele disse aquilo e lembro-me muito bem que não compreendi o que queria dizer. Segurava as mãos da mamã, estava inclinado sobre a mesa, tinha o seu rosto muito próximo do dela e dizia e repetia: "É preciso partir para esquecer! É preciso esquecer!" Não compreendia o que ele
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queria dizer, o que era preciso esquecer, o que tinha a terra já coberto. Agora sei que se referia ao meu pai, que era isso que ele dizia, que o meu pai estava coberto pela terra e era preciso esquecer. Lembro-me do tio Simon Ruben, do seu rosto velho e gordo muito próximo do da mamã, tão linda, pálida e frágil, tão jovem. Lembro-me do seu rosto sombreado pelos grandes olhos de pestanas muito escuras. Até a mim, que era sua filha, parecia jovem e frágil como uma rapariguinha. Julgo que ela chorava. Chegámos aqui na penumbra da madrugada depois de termos caminhado de noite, à chuva, desde a gare de Saint-Cyr. Avançámos ouvindo o som do vento na floresta, o som do ar a passar, o vento que nos empurrava para o mar. Quantas horas andámos sem falar, às cegas, guiadas pela fraca luz da lanterna eléctrica, encharcadas pela água fria? Havia momentos em que a chuva parava e não se ouvia o vento. O caminho lamacento serpenteava pelas colinas e descia até ao fundo dos vales. Ao aproximar do dia entrámos na floresta de pinheiros marítimos gigantes, no fundo de um vale. Os troncos das árvores recortavam-se na vaga luminosidade do mar, o que nos fazia bater o coração como se fôssemos a entrar num país desconhecido. O homem que nos guiava instalou-nos todos junto das ruínas de uma cabana e foi-se embora. A mamã sentou-se no chão, sobre a areia, queixando-se das pernas e choramingando um pouco.
Esperamos na penumbra da madrugada. O vento sopra em rajadas, um vento frio que tenta atravessar a couraça molhada do cobertor. A mamã está encostada a mim. Adormeceu quase imediatamente. Não me mexo para não a acordar. Estou tão cansada.
Viemos de Paris de comboio. As carruagens estavam apinhadas e não havia nenhum lugar sentado. A mamã deitou-se no chão do corredor, sobre um cartão, em frente da porta do WC, e eu fiquei de pé o melhor que pude para vigiar as nossas malas. As duas malas estão reforçadas com cordel. Têm dentro todos os nossos tesouros: os vestidos, as coisas de toilette, os livros, as fotografias, as recordações. A mamã trouxe dois quilos de açúcar porque diz que lá deve haver falta, com certeza. Quanto a mim, não tenho muita roupa. Trouxe o vestido de Verão de percal branco, luvas, uns sapatos para mudar e sobretudo os livros de que mais gosto, os livros que o meu pai lia às vezes, à noite, depois do jantar: Nicolas Nickleby e As aventuras do Sr. Pickwick.
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São os livros que prefiro. Quando me apetece rir ou chorar ou pensar noutra coisa, basta-me agarrar num deles, abri-lo ao acaso e encontro logo a passagem que me convém.
A mamã trouxe apenas um livro. Antes de partirmos, o tio Simon Ruben deu-lhe o Livro da Criação, Sefer Berasith, é como se chama. A mamã adormeceu no chão porco do corredor do comboio, apesar das sacudidelas dos freios, da porta do WC que bate mesmo junto da sua cabeça e do cheiro... De vez em quando, alguém precisa de utilizar o WC e vem até ao fundo do corredor. Quando vê a mamã ali adormecida em cima do cartão, volta para trás e vai procurar outro. Mas houve um que quis mesmo entrar. Pespegou-se à frente dela e disse: "Dá-me licença?" pensando talvez que a mamã ia acordar de repente e levantar-se. Como ela continuasse a dormir, gritou várias vezes, cada vez mais alto: "Dá-me licença? Dá-me licença? Dá-me licença?" Depois, curvou-se para a empurrar para o lado. Não sei o que me deu, mas não consegui suportar aquele brutamontes sem piedade que ia acordar a mamã para ir calmamente à casa de banho. Atirei-me a ele e comecei a dar-lhe socos e bofetadas sem uma palavra, sem um grito, com os maxilares cerrados e os olhos cheios de lágrimas. O fulano recuou como se um gato assanhado se tivesse atirado a ele, empurrou-me e começou a gritar com uma esquisita voz esganiçada, vibrante de cólera e medo: "Hão-de ter notícias minhas! Vão ver!" E foi-se embora. Deitei-me então no chão ao lado da mamã, que nem sequer tinha acordado, abracei-me a ela e dormi um bocado, um dormir cheio de ruídos e de solavancos que me provocava náuseas.
Chove em Marselha. Esperamos durante horas no cais imenso. Eu e a mamã não somos as únicas. Há muita gente nos cais, amontoada pelo meio das bagagens. Esperamos toda a noite. Sopra um vento frio e a chuva forma uma névoa em redor das lâmpadas eléctricas. As pessoas deitam-se no chão, encostadas às malas, algumas embrulhadas em cobertores da Cruz Vermelha. Há crianças que choramingam e depois adormecem de repente, esgotadas pelo cansaço. Judeus vestidos de preto conversam interminavelmente na sua língua. Falam e fumam, sentados em cima das bagagens, e as suas vozes ressoam estranhamente na vastidão da gare.
Quando desembarcámos em Marselha, pouco antes da meia-noite,
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ninguém nos disse nada mas propagou-se de uns para os outros, ao longo do cais, um rumor de que não haveria comboio na direcção de Toulon antes das três ou quatro horas da manhã. Talvez tivéssemos de passar toda a noite nos cais à espera, mas que importância tinha? O tempo deixou de existir para nós. Andamos há muito tempo por fora, a viajar, num mundo onde já não há tempo.
Vi-o então por baixo do relógio que parece uma lua triste. Estava também no cais da gare de Paris, antes do comboio partir, há tanto tempo que já me parece ter sido há semanas. Furava pelo meio da multidão no momento em que o comboio entrava na gare, com o silvo do vapor que se espalhava e o chiar dos freios. Era alto e magro, com cabelos e barba dourados que lhe davam o ar de um pastor. Digo isto porque agora sei que é assim que ele se chama: Jacques Berger1. Dei-lhe portanto o apelido do Pastor.
Furava pelo meio da multidão procurando com o olhar qualquer coisa ou alguém, um parente, um amigo. Quando chegou a meu lado, o seu olhar deteve-se em mim tão demoradamente que tive que desviar o meu e, para que ele não me visse corar, curvei-me para a mala como se procurasse qualquer coisa.
Tinha-o esquecido, não por completo, é certo, mas o comboio, o barulho do rodado, os solavancos, a mamã a dormir como uma criança doente deitada no chão junto à porta do WC, tudo isso me impedia de pensar fosse no que fosse. D... Odeio viagens! Como é possível andar de comboio ou de barco por prazer? Gostava de ficar toda a vida no mesmo lugar, vendo passar os dias, passar as nuvens e as aves, sonhando. Tal como em Paris, o Pastor em questão está de pé, no outro extremo do cais, como se esperasse alguém, um parente, um amigo. Apesar da distância, distingo-lhe o olhar na sombra das órbitas.
Já que talvez tenhamos de passar toda a noite neste cais é melhor instalarmo-nos. Deitei as duas malas e a mamã sentou-se no chão, com a parte de cima do corpo apoiada nas malas. Tenho tenções de a imitar daqui a bocado. Quando irá acabar isto tudo? Hoje parece-me que andei sempre a viajar desde que nasci, de comboio, de autocarro,
1 Berger: pastor. (N. da T.)
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pelos caminhos da montanha, e depois saltando de uma casa para outra, em Nice, em Saint-Martin, em Festiona, outra vez em Nice, depois Orléans, Paris, até acabar a guerra. Foi nessa altura que compreendi que nunca poderia deixar de viajar, que nunca teria repouso. Gostaria de não poder pensar mais em Saint-Martin ou em Berthemont. A mamã disse um dia que esses nomes eram malditos, que não devíamos pronunciá-los mais, nem sequer pensar neles.
O "pastor" falou-me há bocado, quando eu voltava dos toilettes da gare. Eu ia a passar por baixo do relógio e ele estava lá, sentado na mala no meio das pessoas deitadas. A seu lado estava o grupo dos judeus vestidos de preto, conversando e fumando. Disse-me: "bom dia, menina", com uma voz um pouco grave. Continuou: "É aborrecido estar à espera num cais. Não tem frio?" com uma pronúncia que me pareceu parisiense. Vi que tinha uma pequena cicatriz junto do lábio e pensei no meu pai. Não sei o que respondi, talvez tenha passado sem responder, com a cabeça baixa, porque me sentia muito cansada, desesperadamente exausta. Acho que resmunguei qualquer coisa desagradável para poder desandar mais depressa e ir-me instalar com o busto apoiado nas malas e as pernas dobradas de lado, o mais perto possível da mamã. Acho que nunca até então tinha pensado que ela poderia morrer.
As noites são longas quando está frio e se espera um comboio. Não consegui dormir um momento, apesar do cansaço, apesar do vazio que havia em meu redor. Olhava constantemente em volta, como se me quisesse assegurar que nada tinha mudado, que tudo continuava a ser real. Observava tudo aquilo, a gare imensa com os vitrais por onde escorria a chuva, os cais cujo fim se perdia na noite, os halos em torno dos candeeiros, e pensava: Ora bem, estou aqui. Estou em Marselha e é a última vez na minha vida que vejo isto. Não devo esquecer nunca, mesmo se viver até ser tão velha como a Sra. d'Aleu, a senhora de idade que partilhava o nosso apartamento do número 26 da Rua dês Gravilliers. Não devo esquecer nunca mais nada disto. Erguia-me então um pouco, apoiando-me nas velhas malas, e olhava os corpos estendidos no cais, encostados às paredes, e as pessoas que dormitavam sentadas nos bancos, embrulhadas nos seus cobertores: pareciam despejos, roupa atirada para o chão. Tinha os olhos a arder,
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sentia vertigens, ouvia o som das respirações, pesado, profundo, e sentia as lágrimas escorrer pelas faces, ao longo do nariz, pingar na mala, sem compreender por que é que saíam dos meus olhos. A mamã mexia-se ligeiramente no sono, gemia, e eu acariciava-lhe o cabelo como se faz a uma criança para ela não acordar. Adiante, o relógio mostrava a sua cara pálida, a sua cara de lua onde as horas avançavam tão lentamente: uma hora, duas horas, duas horas e meia. Tentei ver o "pastor" no extremo do cais, por baixo do relógio, mas tinha desaparecido. Também ele se tinha transformado num despojo, num fato caído. com a cara encostada à mala, pensava em tudo o que acontecera, em tudo o que iria acontecer, lentamente, ao acaso, como quando escrevemos uma carta. Pensava quando o meu pai tinha partido, na última imagem que guardava dele, alto, forte, no rosto meigo, nos cabelos muito negros e encaracolados, no seu olhar que parecia sempre desculpar-se como se tivesse feito um disparate. Há instantes ele estava ali, beijava-me, apertava-me a si com tanta força que eu ficava sufocada e ria, empurrando-o um pouco. Depois, partira enquanto eu dormia, deixando apenas a recordação daquele rosto sério, daqueles olhos que queriam fazer-se perdoar.
Penso nele. Às vezes finjo acreditar que vamos encontrá-lo quando a viagem terminar. Há já muito tempo que treino esta mentira até acreditar nela. É difícil de explicar. É como a corrente que passa do íman para uma pluma de ferro. Por momentos a pluma agita-se, estremece. No momento seguinte, com uma rapidez que não permitiu ver nada, a pluma está pegada ao íman. Recordo-me que tinha dez anos, no princípio da guerra, quando fugimos de Nice para Saint-Martin. Nesse Verão o meu pai tinha-me levado até ao vale para ver a ceifa, talvez ao mesmo lugar a que voltei três anos depois com o Gasparini. Fomos na charrete puxada por um cavalo e o meu pai ajudou os camponeses a ceifar e a atar as medas de trigo. Eu mantinha-me perto dele, atrás dele, respirando o cheiro da sua transpiração. Tinha tirado a camisa e eu via, sob a pele branca, os músculos tensos como cordas de cada lado das suas costas. De repente, apesar do sol, apesar dos berros das pessoas e do cheiro do trigo cortado, compreendi que aquilo ia terminar; tive a sensação muito forte que o meu pai se iria embora para sempre, como nós hoje. Lembro-me que a ideia surgiu
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devagarinho, mal dando sinal de si, e que de repente me desabou em cima, me apertou o coração nas suas garras e não pude ignorá-la. Horrorizada, corri pelo caminho que atravessava a seara, sob o céu azul; fugi o mais depressa que pude. Não conseguia gritar nem chorar, a única coisa que conseguia fazer era correr o mais depressa que podia, sentindo aquele aperto que me esmagava o coração, que me sufocava. O meu pai correu atrás de mim, agarrou-me já na estrada, lembro-me que me ergueu do chão enquanto eu me debatia e me apertou de encontro ao peito, procurando acalmar os meus soluços sem lágrimas, acariciando-me os cabelos e a nuca. Nunca me fez qualquer pergunta ou qualquer censura a respeito daquilo. Às pessoas que perguntavam o que tinha acontecido, disse apenas: "Nada, nada, assustou-se." Mas vi nos seus olhos que tinha compreendido, que também tinha sentido a passagem daquela sombra gélida, apesar da esplendorosa luz do meio dia e do ouro das cearas.
Lembro-me também de um dia em que fui passear com a mamã para o lado de Berthemont, seguindo a corrente sulfurosa acima do hotel em ruínas. Já o meu pai tinha partido para se juntar aos do maquis e tudo era misterioso. Houvera uma troca de bilhetes que ele lia à pressa e queimava imediatamente e a mamã tinha-se vestido a correr. Agarrara-me pela mão e tínhamos seguido muito depressa pela estrada deserta, ao longo da ribeira, até ao hotel abandonado. Começámos a subir a montanha, primeiro por uma escadinha e depois por um carreiro estreito. A mamã andava depressa, sem se cansar, e eu tinha dificuldade em segui-la mas não me atrevia a dizer nada porque era a primeira vez que ia com ela. Tinha uma expressão de impaciência que hoje já não lhe vejo e os olhos brilhavam, febris. Seguíamos agora já muito alto, por uma encosta coberta de imensa erva e o céu rodeava-nos por todos os lados. Nunca tinha ido ainda até tão alto nem tão longe e tinha o coração a bater com força de fadiga e inquietação. Por fim, chegámos ao alto da encosta e ali, perto dos cumes, havia uma grande planície verdejante salpicada de cabanas de pastores feitas de pedras soltas e escuras. A mamã tinha avançado até às primeiras cabanas e quando chegámos apareceu o meu pai. Estava de pé, no meio da erva alta, e parecia um caçador. Tinha a roupa rasgada e suja e trazia uma espingarda ao ombro. Tive dificuldade em reconhecê-lo
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porque a barba crescera e o rosto estava queimado pelo sol. Como habitualmente, levantou-me e apertou-me a si com força. Depois, estendeu-se com a mamã na erva, perto da cabana de pedras, e conversaram. Ouvia-os falar e rir mas mantinha-me um pouco à parte. Lembro-me que jogava às pedrinhas, aparando-as com as costas da mão.
Ainda me parece ouvir as suas vozes e os seus risos naquela tarde, na encosta coberta de erva, rodeados pelo céu. As nuvens passavam, desenhavam volutas deslumbrantes no azul e eu ouvia os risos e as vozes do meu pai e da minha mãe ali ao lado, na erva. E foi nesse momento, precisamente, que compreendi que o meu pai ia morrer. A ideia surgiu-me na cabeça e, por mais que tentasse afastá-la, voltava sempre; ouvia a sua voz, o seu riso, sabia que bastava voltar-me para os ver, para ver o seu rosto, os seus cabelos e a sua barba brilhando ao sol, a sua camisa e a silhueta da mamã deitada a seu lado. De repente, atirei-me ao chão mordendo a mão para não gritar, para não chorar e, apesar disso, sentia as lágrimas que brotavam de dentro de mim e o vazio que se formava no meu estômago, que se abria à minha volta, um vazio, um frio, e não conseguia deixar de pensar que ele ia morrer, que ele tinha que morrer.
É isso que preciso esquecer nesta viagem, como dizia o tio Simon Ruben: "É preciso esquecer, é preciso partir para esquecer!"
Aqui, na baía de Alon, tudo parece tão distante como se se tivesse passado com uma outra pessoa, num outro mundo.
O vento norte sopra com força durante a noite e eu estou agarrada à mamã, com o cobertor duro do Simon Ruben puxado até aos olhos. Há muito tempo que não durmo. Todo o corpo me dói e os olhos estão a arder. O barulho do mar, mesmo tempestuoso, acalma-me. É a primeira vez na minha vida que durmo à beira-mar. Vi-o pela janela da carruagem, em pé no corredor ao lado da mamã, antes de chegarmos a Marselha, ao crepúsculo, cintilante, enrugado pelo vento. Toda a gente tinha vindo para o mesmo lado da carruagem para ver o mar. Depois, tentei vê-lo no comboio que seguia para Bandol, com a testa encostada ao vidro frio e abanada pela trepidação e pelas curvas. Mas
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apenas via a escuridão, clarões breves e luzes distantes que dançavam como se pertencessem a navios.
O comboio parou na gare de Cassis e muita gente desceu, homens e mulheres embrulhados nos seus abafos, alguns com grandes guardachuvas como se fossem passear pelas avenidas. Olhei para fora, tentando ver se o "pastor" tinha descido como eles, mas não o vi. Depois o comboio arrancou lentamente e as pessoas ficaram de pé no cais, distanciando-se como fantasmas. Era triste e simultaneamente engraçado; pareciam pássaros cansados, desnorteados pelo vento. Também eles irão para Jerusalém? Ou vão para o Canadá? Mas não é possível saber, não se pode perguntar. Há pessoas que escutam, pessoas que gostariam de saber para nos impedirem de partir. Foi o que disse Simon Ruben quando nos acompanhou ao cais da gare: "Não falem com ninguém. Não perguntem nada a ninguém. Há ouvidos à escuta." Meteu no Livro da Criação um papel com o nome e a direcção do irmão em Nice: Móveis Edouard Ruben, ladeira Crotti. É para lá que devemos dizer que vamos se a polícia nos detiver. Chegámos depois a Saint-Cyr e todos saíram. Um homem esperava-nos no cais da gare. Reuniu todos os que tinham que partir e seguimos pela estrada, guiados pela luz da sua lanterna eléctrica, até ao porto de Alon.
Estamos agora na praia, abrigados numa cabana em ruínas, e esperamos pela madrugada. Talvez outros tentem ver, como eu. Soerguem-se, olham em frente, procuram distinguir na escuridão a luz do barco, prescrutam o ruído do mar tentando ouvir vozes de marinheiros chamando. Os pinheiros gigantescos rangem e estalam ao vento e as suas agulhas fazem o barulho das vagas batendo na proa. O barco que deve vir é italiano como Ângelo Donati. Chama-se Sette Fratelli, que quer dizer Sete Irmãos. Quando pela primeira vez ouvi aquele nome em Paris pensei nos sete meninos perdidos na floresta da história do Polegarzinho. Parece-me que com aquele nome nada nos pode acontecer.
Lembro-me quando o meu pai falava de Jerusalém, quando à noite, antes de eu adormecer, contava o que era aquela cidade como se fosse uma história. Nem ele nem a mamã eram crentes. Isto é, acreditavam em D... mas não acreditavam na religião dos judeus nem em nenhuma outra religião. Mas quando o meu pai falava de Jerusalém
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no tempo do Rei David, contava coisas extraordinárias. Eu achava que devia ser a mais bela e a maior cidade do mundo, em nada semelhante a Paris, pois com certeza lá não havia ruas escuras nem edifícios vetustos, nem goleiras furadas, nem escadas mal cheirosas, nem esgotos onde corriam bandos de ratos. Quando se fala em Paris, há pessoas que acham que temos sorte, uma cidade tão bonita! Mas Jerusalém era certamente diferente. Como seria? Não conseguia imaginar uma cidade como uma nuvem, com cúpulas, campanários e minaretes (o meu pai dizia que havia lá muitos minaretes), rodeada por colinas em volta cobertas de laranjeiras e oliveiras, uma cidade que flutuava sobre o deserto como uma miragem, uma cidade onde não havia nada banal, nada sujo, nada perigoso. Uma cidade onde se passava o tempo a orar e a sonhar.
Acho que nessa altura não sabia muito bem o que queria dizer orar. Talvez pensasse que era como nos sonhos, quando deslizam em nossa volta coisas secretas, o que mais desejamos e o que mais amamos no mundo, antes de mergulharmos no sono.
Também a mamã tinha falado muitas vezes disso. Nos últimos tempos, em Paris, vivia apenas para essa palavra: Jerusalém. Não falava realmente da cidade nem do país, Eretz Israel, mas de tudo o que outrora lá existira, de tudo o que ia recomeçar. Para ela, segundo dizia, era uma porta.
O vento frio penetra pouco a pouco em mim, atravessa-me. É um vento que não vem do mar mas que sopra do Norte, por sobre as colinas, que assobia por entre as árvores enormes. Começa a clarear e consigo distinguir os troncos muito altos e o céu por entre os ramos. Mas ainda não se vê o mar. A mamã acordou por causa do frio da madrugada. Sinto o seu corpo tremendo junto do meu. Apertei-a com mais força a mim, murmurando palavras para a tranqüilizar, para a acalmar. Ter-me-á ouvido? Gostaria de falar-lhe de tudo aquilo, da porta, dizer-lhe que é realmente difícil e demorado franquear essa porta. Parece-me que é ela a filha e eu a mãe. A viagem começou há já muito tempo. Lembro-me de cada etapa desde o início, desde que fomos viver para Paris, no apartamento de Simon Ruben, na Rua dês
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Gravilliers, com a senhora cega. Nessa altura eu não falava, não comia senão se a mamã me desse à colher, como a um bebê. Transformara-me realmente num bebê e fazia chichi na cama todas as noites. A mamã punha-me fraldas que fazia com panos velhos de todas as cores. Havia um vácuo depois de Saint-Martin, depois da travessia da montanha até Itália, da longa caminhada até Festiona. As recordações surgiam desgarradas, como os farrapos de nevoeiro sobre os telhados da aldeia e a noite a subir pelo vale, no Inverno. Escondida no quarto da Pensão Passagieri, ouvia os cães ladrar, ouvia o ruído dos passos dos órfãos que todas as tardes se dirigiam para a igreja sombria, ouvia a voz de Brao gritando: "Elena!" enquanto o vigilante o empurrava pelo ombro. E o vale aberto até à janela de gelo, as longas encostas escuras que tanto prescrutara, os caminhos vazios, e o vento, apenas o vento que trazia o som das forjas das aldeias e os gritos imprecisos das crianças, o vento que soprava até ao mais profundo de mim mesma, que aumentava o vazio no meu íntimo. O tio Simon Ruben tinha tentado tudo. Tinha experimentado a oração, tinha chamado o rabino e um médico para me tratarem daquele vazio. A única coisa que não tentara fora o hospital porque a mamã não teria concordado, nem mesmo se tivesse pedido o auxílio da Assistência Pública. Foram anos terríveis que deixei para trás de mim, na sombra fria, nos corredores e nas escadas da Rua dês Gravilliers. Afastam-se, deslizam ao contrário como a paisagem na janela de um comboio.
Nunca uma noite me pareceu tão comprida. Lembro-me que antigamente, antes de Saint-Martin, aguardava a noite com inquietação porque achava que era nessa altura que se podia morrer, que era durante a noite que a morte roubava as pessoas. Adormecíamos vivos e, quando a noite se dissipava, tínhamos desaparecido. Fora assim que morrera a Sra. Aleu uma noite, deixando o corpo frio e branco na cama e o tio Simon Ruben viera ajudar a mamã a preparar a morta para o enterro. A mamã tinha-me acalmado, tinha dito que não era nada disso, que a morte não roubava ninguém, que era apenas o corpo e o espírito que estavam cansados e paravam de viver, como se adormecessem. "E quando matam alguém?" Eu tinha perguntado isso. Eu tinha perguntado isso quase a gritar e a mamã desviara o olhar como se tivesse vergonha de ter mentido, como se fosse culpa sua. Pensara
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também imediatamente no meu pai e dissera: "Os que matam os outros roubam-lhes a vida, são como animais ferozes, não têm piedade." Também ela se lembrava de quando o meu pai partia para a montanha com a espingarda, também ela se lembrava de como ele desaparecera no meio das ervas altas para não voltar. Quando as pessoas crescidas não dizem a verdade, desviam os olhos porque têm medo que isso se veja no seu olhar. Mas nessa altura já eu estava curada do vazio, já não tinha medo da verdade.
É nessas noites que penso agora, no cinzento da madrugada, ouvindo o som do mar de encontro aos rochedos da baía de Alon. O barco deve chegar em breve para nos levar para Jerusalém. As noites colaram-se umas às outras e taparam os dias. As noites entraram dentro de mim em Saint-Martin, deixaram o meu corpo frio, só e sem forças. Aqui, na praia, com o corpo da mamã abraçado ao meu e a tremer, ouvindo o ruído da sua respiração que geme como a de uma criança, lembro-me das noites quando entrámos no número 26 da Rua dês Gravilliers, o frio, o barulho da água nas goteiras, os sons das oficinas do pátio, as vozes que ecoavam e a mamã deitada a meu lado no quarto estreito e frio, apertando-me a si para me aquecer porque a vida fugia de dentro de mim, fugia cá para fora, para os lençóis, para o ar, para as paredes.
Escuto e parece-me poder ouvir em meu redor todos os que estão à espera do barco. Estão ali, deitados na areia encostados à parede da cabana em ruínas, sob os altos pinheiros que nos abrigam das rajadas de vento. Não sei quem são, não sei os seus nomes, excepto o do "pastor", mas isso foi o apelido que eu lhe pus. São apenas rostos pouco visíveis na penumbra, formas, mulheres embrulhadas nos seus casacos, velhos abrigados sob os grandes guarda-chuvas. Todos com as mesmas malas atadas com cordéis, com os mesmos cobertores da Cruz Vermelha ou do exército americano. Algures, no meio deles, estava o "pastor", sozinho, ainda com um ar de adolescente. Mas não devemos falar uns com os outros, não devemos saber nada. Foi o que disse Simon Ruben no cais da gare. Beijou-nos demoradamente, à mamã e a mim, deu-nos algum dinheiro e a sua benção. Não somos portanto as únicas a franquear essa porta. Há outros, aqui, nesta praia e noutros lugares, milhares de outros que esperam os barcos que vão
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partir para nunca mais voltar. Vão para outros mundos, para o Canadá, para a América do Sul, para África, onde talvez os esperem, onde poderão recomeçar outra vida. Mas aos que estão aqui connosco na praia de Alon, quem os espera? Em Jerusalém, dizia o tio Simon Ruben rindo, só os anjos vos esperam. Quantas portas iremos franquear? De cada vez que atravessarmos o horizonte, será como uma nova porta. Para não desesperar, para resistir ao vento frio e à fadiga, é preciso pensar na cidade que parece uma miragem, a cidade dos minaretes e das cúpulas brilhando ao sol, a cidade de sonho e de orações suspensa sobre o deserto. com certeza que é possível esquecer nessa cidade. Nessa cidade não há o escuro das paredes, o escuro da água que corre, o vazio e o frio, nem a multidão que nos empurra nas ruas. Pode-se viver de novo, pode-se encontrar o que existia antes, o aroma do trigo no vale, perto de Saint-Martin, a água dos regatos quando a neve derrete, o silêncio das tardes, o céu de Verão, os carreiros que se metem por entre as ervas altas, o som da torrente e a face de Tristan poisada no meu peito. Odeio as viagens, odeio o tempo! Jerusalém é a vida antes da destruição. Será possível encontrar isso, mesmo atravessando o mar no Sette Fratelli?
Amanhece. Pela primeira vez penso no que se vai passar. Em breve o barco estará ali, no porto de Alon que começo a distinguir. Parece-me já sentir o movimento do mar. O mar vai levar-nos até aquela cidade santa, o vento vai empurrar-nos até à porta do deserto. Nunca falei de D... com o meu pai. Ele não queria que falássemos disso, Tinha uma maneira de olhar, muito directa e firme, que impedia que se fizessem perguntas. Depois, quando já lá não estava, isso deixou de ter importância. O tio Simon Ruben tinha perguntado um dia à mamã se não seria altura de começar a pensar no ensino - referia-se à religião - para recuperar o tempo perdido. A mamã recusou sempre, sem dizer que não mas declarando apenas: "Mais tarde vê-se", porque não era essa a vontade do meu pai. Achava que isso viria a seu tempo, quando eu tivesse idade para escolher. Também ela pensava que a religião é uma questão de escolha. Nem sequer queria que me chamassem pelo meu nome judeu; chamava-me Hélène, que também era o meu
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nome, o nome que ela me dera. Mas eu chamava-me a mim mesma pelo meu verdadeiro nome, Esther; não queria outro nome. Um dia o meu pai tinha-me contado a história de Esther, que se chamava Hadassa e não tinha pai nem mãe e como tinha casado com o rei Assuérus e ousado entrar na grande sala onde ele se encontrava para pedir que poupassem o seu povo. E Simon Ruben tinha-me também falado dela, mas dizia que não se devia pronunciar o nome de D... nem escrevê-lo, e isso levava-me a pensar que era um nome semelhante ao mar, um nome imenso e impossível de conhecer completamente. Agora sei que é verdade. É necessário que atravesse o mar, que vá até ao outro lado, até Eretz Israel e Jerusalém, é preciso que encontre essa força. Nunca teria imaginado que era tão grande, nunca teria pensado que tinha de transpor uma porta assim. A fadiga e o frio impedem-me de pensar noutra coisa. Apenas posso pensar nessa noite interminável que agora termina na madrugada cinzenta, no vento batendo nas gigantescas árvores, no mar que faz o seu barulho entre as pontas dos rochedos. Adormeço naquele instante abraçada com força à mamã, ouvindo o vento fazer bater o cobertor como se fosse uma vela, ouvindo o som incessante das vagas na praia de areia. Talvez sonhe que quando abrir os olhos o barco estará ali, no mar cintilante.
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Estou sentada numa anfratuosidade das rochas, junto da grande árvore mona. Vigio. À minha frente, o mar é de um azul deslumbrante que me fere. Por cima de mim passam as rajadas de vento. Oiço-as chegar nas folhas dos arbustos e nos ramos dos pinheiros, fazendo um ruído líquido que se mistura com o som das vagas de encontro aos rochedos brancos. Desde que acordei, esta manhã, corri para o extremo do porto de Alon para ver melhor o mar.
O sol queima-me o rosto, queima-me os olhos. Como é belo o mar, com a lenta vaga que vem do outro lado do mundo. As ondas batem na costa com um som de água profunda. Já não penso em nada. Olho e os meus olhos percorrem incansavelmente a linha nítida do horizonte, prescrutando o mar varrido pelo vento e o céu limpo. Quero ver chegar o barco italiano, quero ser a primeira quando a sua proa fender o mar, avançando na nossa direcção. Acho que o barco não viria se eu não ficasse aqui, na ponta, face à entrada da baía de Alon. Se desviasse um instante o olhar, não nos veria e continuaria rumo a Marselha.
Sinto que deve estar a chegar. O mar não pode estar tão deslumbrante nem o céu tão limpo de nuvens se não houver uma razão.
Quero ser a primeira a gritar quando o barco chegar. Não disse nada à mamã, que ficou na praia, ainda embrulhada no seu cobertor americano. Ninguém veio comigo. Sou eu a vigia, tenho o olhar tão firme e aguçado como o dos índios nos romances de Gustave Aymard. Como gostaria que o meu pai estivesse a meu lado neste
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momento! Pensar nele, imaginá-lo sentado a meu lado nos rochedos, prescrutando o mar cintilante, acelera o bater do meu coração e sinto invadir-me uma espécie de vertigem que me perturba a vista. Talvez a fome e a fadiga tenham também um pouco a ver com isso. Há já tanto tempo que não durmo, que não como verdadeiramente! Parece-me que vou cair para a frente, no mar sombrio e fascinante. Lembro-me que olhei assim para a montanha enevoada de onde o meu pai devia surgir. Em Festiona, saía todos os dias do quarto da pensão e ia até à parte alta da aldeia, de onde podia ver todo o vale e toda a montanha, a embocadura do caminho, e olhava, olhava durante tanto tempo e tão intensamente que tinha a impressão que o meu olhar ia abrir um buraco na parede rochosa.
Mas não posso distrair-me. Sou a vigia. Os outros estão sentados à espera no abrigo da baía de Alon. Esta manhã, quando vim para aqui, a mamã apertou-me a mão sem dizer nada. O sol, que já surgira, tinha-lhe dado forças. Sorriu-me.
Quero ver o barco italiano. Quero que chegue. O mar é imenso e fervilhante de luz. O vento forte arranca a espuma da crista das vagas e atira-a para trás. As poderosas ondas vêm do outro lado do mundo, batem nos rochedos brancos, chocam umas com as outras na entrada estreita do porto de Alon. A água azul turbilhona no interior da baía, formando remoinhos. Depois, estende-se na areia.
O tronco da árvore morta está ao meu lado. É branco e liso como um osso. Adoro esta árvore. Parece que sempre a conheci. É mágica e graças a ela nada nos acontecerá. Os insectos correm sobre o tronco gasto pelo mar e entre as suas raízes. O aroma dos pinheiros é trazido pelo vento, acentuado pelo calor do sol. O vento passa, o mar gira. Acho que estamos no fim do mundo, no limite, de onde já não é possível voltar para trás. Se o barco agora não viesse, creio que morreríamos todos.
As cidades escuras, os comboios, o medo, a guerra, tudo ficou para trás de nós. Quando caminhámos esta noite pelas colinas, debaixo de chuva, guiados pela luz da lanterna eléctrica, franqueávamos a última porta. Era por isso que tudo se revelava tão duro e fatigante: a floresta de pinheiros gigantescos, ao fundo da baía de Alon, o barulho do vento que fazia estalar os ramos, o vento frio, a chuva e, por fim, aquela
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parede em ruínas junto da qual nos abrigámos como animais perdidos na tempestade.
Abro os olhos. O mar e a luz queimam-me até ao mais profundo do meu corpo, mas isso agrada-me. Respiro, sinto-me livre. Sou levada pelo vento e pelas vagas. A viagem começou.
Durante todo o dia vagueei pelos rochedos da ponta. O mar sempre a meu lado e a linha do horizonte na cabeça. O vento continua a soprar, inclina os troncos das árvores e agita os arbustos. Na zona abrigada há azevinho e salsaparrilha. Mais próximo do mar há urze, com as pequenas flores rosadas marcadas com um olho preto. Os aromas, a luz e o vento provocam vertigens. O mar vai batendo.
Os emigrantes estão sentados na praia do porto de Alon e comem. Sento-me por momentos ao lado da mamã sem deixar de olhar a linha que separa o céu e o mar, entre as duas pontas do rochedo. Ardem-me os olhos e tenho a cara em fogo. Os meus lábios têm o gosto do sal. Como à pressa as provisões que a mamã tirou da mala: uma fatia de pão americano, muito branco, um pedaço de queijo e uma maçã. Bebo grandes golos directamente da garrafa de limonada. Depois volto para os rochedos, para o meu ponto de vigia junto da árvore morta.
O mar está violento, orlado de espuma, mudando constantemente de cor. Quando as nuvens surgem de novo no céu, torna-se cinzento, sombrio, violeta, pórfiro em fusão.
Agora tenho frio. Aninho-me ao abrigo do rochedo. Que farão os outros? Esperarão ainda? Se deixarmos de acreditar, talvez o barco faça meia volta, deixe de lutar contra o vento e regresse a Itália. O coração bate-me acelerado e com força e tenho a garganta seca porque sei que neste momento se joga a nossa vida, que o Sette Fratelli não é um barco qualquer. É ele que traz o nosso destino.
O "pastor" veio ter comigo ao meu esconderijo. Já é fim de tarde. Por uma abertura nas nuvens o sol projecta uma luz violenta, púrpura, que parece misturada com cinzas. O "pastor" vem até junto de mim, senta-se no tronco da árvore e fala. De início, não oiço o que ele diz, estou demasiado cansada para conversar. Tenho os olhos a arder e deles e do nariz escorre água. O "pastor" pensa que estou a chorar de
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desânimo; senta-se ao meu lado e passa-me o braço em torno dos ombros. É a primeira vez que faz aquilo e sinto o calor do seu corpo, vejo a luz que faz brilhar de forma estranha os pelos da sua barba. Penso em Tristan, no cheiro do seu corpo depois da água da ribeira. É uma recordação muito antiga, de uma outra vida, tênue como o arrepio que me percorre a pele. O "pastor" fala, conta a sua vida, o pai e a mãe levados para Drancy pelos alemães e que nunca mais voltaram. Diz-me o seu nome, fala do que fará em Jerusalém, dos estudos que gostaria de fazer, talvez na América, para ser médico. Dá-me a mão e vamos juntos até ao porto, até à cabana de pedras onde as pessoas esperam. Quando me sento outra vez ao lado da mamã é quase de noite.
A tempestade recomeçou aos poucos. As nuvens encobriram as estrelas. Está frio e a chuva cai em bátegas. Estamos embrulhadas no cobertor do tio Simon Ruben, com as costas apoiadas na parede em ruínas. Os pinheiros gigantes recomeçaram a ranger. Sinto o vazio dentro de mim e deixo-me cair. Como poderá o barco encontrar-nos se agora já não há vigia?
O "pastor" acorda-me. Está inclinado para mim e toca-me no ombro, dizendo qualquer coisa. Devo ter um ar tão ensonado que me obriga a pôr de pé. Também a mamã se levantou. O rapaz mostra-me ao longe um vulto que avança no mar, em frente da embocadura do porto de Alon, pouco visível à luz cinzenta da madrugada. É o Sette Fratelli.
Ninguém grita, ninguém diz nada. Uns a seguir aos outros, homens, mulheres e crianças puseram-se de pé na praia, embrulhados nos seus cobertores e casacos, e olham o mar. O barco entra lentamente na baía com as velas batendo ao vento. Vira e balança com as vagas que lhe batem de lado.
Nesse momento, abre-se no céu um rasgão que brilha entre as nuvens e a luz da madrugada ilumina de repente a baía de Alon, os rochedos brancos, as copas dos grandes pinheiros. O mar cintila aqui e além. As velas do barco parecem imensas, brancas, quase irreais.
É tão belo que nos arrepiamos. A mamã ajoelhou na areia da praia e outras mulheres fazem como ela, seguidas pelos homens. Também
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estou de joelhos na areia molhada e olhamos o barco que vem imobilizar-se no meio da baía. Limitamo-nos a olhar. Não podemos falar, nem pensar, nada. Todas as mulheres estão de joelhos na praia. Rezam ou choram; ouço-lhes as vozes monótonas trazidas pelas rajadas de vento. Por trás delas, os velhos judeus permaneceram de pé, envergando os seus pesados casacões pretos, alguns apoiados aos guarda-chuvas como se fossem bengalas. Olham o mar e os seus lábios movem-se também como se rezassem. Pela primeira vez na minha vida também eu rezo. Sinto-o no fundo de mim, contra minha vontade. Sinto-o nos meus olhos, no meu coração, como se estivesse fora de mim e visse para lá do horizonte, para lá do mar. E tudo o que agora vejo tem um significado, transporta-me, leva-me no vento por sobre o mar. Nunca sentira aquilo. Tudo o que vivi, todas as canseiras, a marcha pelas montanhas, os anos horríveis na Rua dês Gravilliers, os anos em que nem me atrevia a vir até ao pátio para ver a cor do céu, os anos sufocantes e terríveis, longos como uma doença, tudo vai apagar-se aqui, sob a luz que ilumina a baía de Alon, com o Sette Fratelli rodando lentamente em torno da âncora e as grandes velas brancas e pandas que estalam com a borrasca.
Estamos todos imóveis, na praia, de joelhos ou em pé, ainda embrulhados nos nossos cobertores, entorpecidos de frio e de sono. Deixámos de ter passado. Somos novos como se tivéssemos acabado de nascer, como se tivéssemos dormido mil anos aqui, nesta praia. Digo-o em voz alta porque me surgiu assim, num relâmpago, com tanta intensidade que o coração bate desordenadamente. A mamã chora em silêncio, talvez de fadiga ou de contentamento; sinto encostado ao meu o seu corpo que se curva para a frente como se lhe tivessem batido. Talvez chore por causa do meu pai que não chegou pelo caminho por onde o esperávamos. Nessa altura não chorou, mesmo quando compreendeu que nunca mais viria. E agora há este vazio, este vazio em forma de barco, imóvel no meio da baía, e isso é mais do que ela pode suportar.
Será um barco real, construído pelos homens? Olhamo-lo com tanto medo como desejo, receando a cada momento que solte as amarras e desapareça ao longe sobre o mar, levado pelo vento, abandonando-nos nesta praia deserta.
De repente, as crianças começaram a correr na areia, esquecendo a fadiga, a fome e o frio. Correm até à ponta rochosa, agitando os braços e gritando: "He! Ohé!..." As suas vozes agudas arrancam-me ao meu sonho.
É realmente o Sette Fratelli, o barco que esperávamos e que nos vai conduzir até ao outro lado do mar, até Jerusalém. Lembro-me agora por que razão gostei do nome do barco da primeira vez que Simon Ruben o pronunciou, os "Sete Irmãos". Um dia, eu e o meu pai tínhamos falado dos filhos de Jacob, os que se espalharam pelo mundo. Já não me lembro dos nomes de todos eles, mas havia dois de cujos nomes eu gostava muito porque estavam imbuídos de mistério. Um era Benjamim, o lobo devorador. O outro era Zabulon, o marinheiro. Pensava que tinha desaparecido um dia no seu barco, no meio de uma tempestade, e que o mar o tinha levado para outro mundo. Também havia Nephtali, a corça, um rapaz belo como uma rapariga, e eu achava que a minha mãe devia ser parecida com ele por causa dos olhos muito negros e doces (e eu também, com os meus olhos amendoados e sempre atentos). Talvez fosse então Zabulon que voltasse hoje no seu barco para nos transportar até à terra dos nossos antepassados, depois de tanto e durante tantos séculos ter vagueado pelo mar. O "pastor" está ao meu lado. Agarrou-me a mão por momentos, sem uma palavra. Tem os olhos brilhantes e a garganta de tal forma apertada pela emoção que não consegue falar. Mas, de repente, solto-me e começo a correr pela praia com as crianças, gritando e agitando os braços. O vento frio faz-me chorar e agita-me os cabelos. Sei que a mamã não vai gostar disto, mas paciência! Tenho de correr, não consigo ficar mais tempo imóvel. Preciso de gritar também. Grito não importa o quê, agito os braços e grito para o barco: "Ohé! Zabulon!" As crianças compreenderam também e gritam comigo: "Zabulon! Zabulon! Ohé, Zabulon!..." com vozes estridentes semelhantes a gritos de aves encolerizadas.
E o milagre acontece: do Sette Fratelli destaca-se uma canoa a remos com dois marinheiros. Desliza sobre a água calma do porto e chega à praia, saudada pelos gritos infantis. Um dos marinheiros salta para terra. As crianças calaram-se, um pouco assustadas. O marinheiro olha-nos por instantes: as mulheres ainda de joelhos, os velhos judeus com os seus casacões pretos e os guarda-chuvas. Tem um rosto
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avermelhado e cabelos ruivos colados pelo sal. Os sete irmãos não são
filhos de Jacob.
A tempestade recomeça quando estamos já todos no bojo do barco. Vejo pelas escotilhas o céu modificar-se e as nuvens começarem a escurecer. As velas cinzentas (vistas de perto já não parecem brancas) batem ao vento. Ficam pandas e vibrantes para logo a seguir penderem, com grandes estalos, como se fossem rasgar-se. Apesar do motor que ronca nas profundezas, o Sette Fratelli avança com dificuldade, todo inclinado para um dos lados, de tal forma que toda a gente tem que se agarrar à armação para não cair. Deito-me no chão ao lado da mamã, com os pés entalando as malas. A maior parte dos passageiros já estão enjoados. Na penumbra do porão distingo-lhes os vultos estendidos no chão e os rostos transtornados. O "pastor" também deve estar a sentir-se mal porque desapareceu. Os que conseguem arrastar-se até lá, inclinam-se para o fundo do porão, por cima dos trincanizes, e vomitam. Há crianças a chorar com uma vozinha estranha, simultaneamente fraca e aguda, que se mistura com os estalidos do casco e o assobio do vento. Ouvem-se também sons de vozes, murmúrios, invocações, queixumes. Acho que neste momento todos lamentam terem-se deixado apanhar na armadilha deste barco, desta casca de noz arrastada pelo mar. A mamã não se queixa. Quando olho para ela, esboça um vago sorriso mas tem o rosto cor de terra. Tenta falar, dizendo-me: "Estrela, estrelinha", como o meu pai, antigamente. Mas no momento seguinte tenho que a ajudar a chegar até aos trincanizes. Estende-se depois, gelada. Aperto com muita força a sua mão na minha, como ela dantes costumava fazer quando eu estava doente... Na coberta, os marinheiros correm de um lado para outro descalços, no meio da tempestade, gritando e praguejando em italiano, lutando e debatendo-se como se o barco fosse um cavalo louco.
O motor parou, mas não me apercebo disso logo. O navio oscila e baloiça de forma assustadora e penso subitamente que vamos naufragar. Não consigo suportar ficar enclausurada nesta situação. Apesar das proibições e das rajadas de vento e de chuva, empurro a escotilha e ponho a cabeça de fora.
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À luz da tempestade vejo o mar correndo na direcção do barco e explodindo em trombas de espuma. O vento transformou-se num monstro visível que bate nas velas e as sacode, agarra nos dois mastros e abana o barco. Turbilhona, sufoca-me, faz-me chorar os olhos. Tento resistir para ver o mar, tão belo e aterrador. Um marinheiro faz-me sinal para voltar lá para baixo. É um rapaz de cabelos muito negros que nos instalou no porão quando subimos para bordo. Fala francês. Aproxima-se, agarrado às protecções; está encharcado da cabeça aos pés. Grita: "Desça! Desça! É perigoso!" Faço-lhe sinal que não, que não quero, que me sinto mal lá em baixo, que prefiro ficar no convés. Digo-lhe que com certeza vamos morrer e que quero ver a morte cara a cara. Olha-me fixamente: "É maluca? Desça imediatamente ou vou dizer ao capitão." Grito-lhe, contra o vento e contra o barulho do mar: "Deixe-me em paz! Vamos morrer todos! Não quero descer!" O rapaz aponta-me uma mancha escura no mar, à frente do barco. Uma ilha. "Vamos para ali esperar que a tempestade passe! Não vamos morrer! Vá, desça para o porão!" A ilha está à nossa frente, a menos de duzentos metros, e já protege o barco: o vento deixa de baloiçar os mastros. A água escorre pelo convés, corre em torrentes pelas bordas, goteja das velas pendentes das vergas. Subitamente faz-se silêncio, com o barulho do mar a ressoar ainda nos nossos ouvidos. "Então é verdade, não vamos morrer?" Disse isto com um tal ar que o jovem marinheiro desatou a rir. Empurra-me delicadamente para a escotilha. Os outros marinheiros vão aparecendo, exaustos. Por cima de nós o céu é cor de incêndio. "Como se chama esta ilha? Já estamos em Itália?" O rapaz responde apenas: "É a ilha de Port-Cros, em França, menina. Aqui é a baía de Port-Man." Mergulho de novo no bojo do barco. Sinto o odor abafado, o medo, a angústia. Tacteando na penumbra, procuro o corpo da mamã. "Acabou. Chegámos a Port-Man. É a nossa primeira escala." Digo aquilo como se fossemos num cruzeiro. Estou cansada. Deito-me também no chão. A mamã está ao meu lado e poisa-me a palma da mão na testa. Fecho os olhos.
Há já um dia e uma noite que estamos em frente de Port-Man sem fazer nada. O navio gira lentamente em torno das amarras, primeiro
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ESTRELA ERRANTE
num sentido e depois no outro. O porão ressoa com o barulho das ferramentas consertando o motor. Apesar da proibição do capitão (um homem gordo e calvo que tem o ar de tudo menos de um homem do mar), subo constantemente ao convés com as outras crianças. Sou magra e, com os cabelos curtos, creio que passo por rapaz. Vamos até à popa, junto dos cordames. Sento-me e fico a olhar para a costa negra da ilha, sob o céu de tempestade. A margem está tão próxima que facilmente a atingiria a nado. Na baía de Port-Man a água é lisa e transparente, apesar do céu de chuva e das rajadas de vento.
O marinheiro italiano vem sentar-se a meu lado. Fala-me ora em francês, ora em inglês, com algumas palavras italianas pelo meio. Disse-me que se chamava Silvio e ofereceu-me um cigarro americano. Tentei fumar, mas tem um sabor acre e adocicado que me provoca tonturas. Depois, tirou do bolso do casaco uma tablette de chocolate e partiu uma barra para me dar. O chocolate é doce e amargo ao mesmo tempo e acho que nunca comi nada assim. O rapaz faz tudo aquilo muito sério, sem um sorriso, vigiando a escada por onde pode aparecer o comandante. "Porque não deixam as pessoas' subir ao convés?" Faço a pergunta lentamente, fitando-o. "Está-se muito mal lá em baixo. Sentimo-nos sufocar e não há luz. É desumano." Silvio parece reflectir e depois diz: "O comandante não quer. Não quer que vejam que há pessoas a bordo. É proibido." Respondo: "Mas nós não fazemos nada de mal. Vamos para a nossa terra." Fuma nervosamente, olhando na direcção da ilha para a floresta sombria e a praia branca, e diz: "Se os fiscais da alfândega vierem, apreendem o barco e já não poderemos ir embora." Atira o cigarro ao mar e levanta-se. "Agora tem que descer para o porão." Chamo as crianças e voltamos para o interior do barco. Lá dentro, está escuro e quente. Ouve-se um brouhaha de vozes. A mamã aperta-me o braço com olhos febris. "O que estavas a fazer? com quem falavas?" Os homens falam ruidosamente do outro lado do porão. Há cólera ou medo nas suas vozes. A mamã murmura: "Dizem que não vamos continuar, que fomos enganados e nos vão desembarcar aqui."
Durante todo o dia vemos a luz que entra pela escotilha, uma luz cinzenta que incomoda. Vemos passar as nuvens, cortinas que ocultam o céu como se caísse a noite. Pouco a pouco, as vozes dos
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homens vão-se calando. Lá em cima, no convés, os marinheiros pararam de trabalhar. Ouve-se a chuva tamborilar no casco do barco. Sonho que estamos longe, ao largo, no meio do Atlântico, e que vamos ambas para o Canadá. Antigamente, em Saint-Martin, era para lá que ela queria ir. Lembro-me no Inverno, no quartinho em que eu ficava de olhos abertos no escuro, de a ouvir falar do Canadá, da neve, das florestas, das casas de madeira na margem dos rios sem fim, do vôo dos patos selvagens. Era isso que eu gostaria de ouvir agora. "Fala-me do Canadá." A mamã curva-se para mim e beija-me sem dizer nada. Talvez esteja demasiado cansada para pensar num país que não existe. Talvez o tenha esquecido.
À noite a tempestade recomeça. As vagas devem passar por cima da ponta rochosa que abriga Port-Man e vêm bater no barco, fazendo-o baloiçar e gemer. Todos acordam. Agarramo-nos ao cavername para não sermos atirados contra o casco. Os embrulhos, as malas e outros objectos invisíveis deslizam e vão bater nas paredes. No convés não se ouve uma voz, um som humano. O rumor espalha-se: fomos abandonados pela tripulação, estamos sós a bordo do barco. Antes que o medo se instale, os homens acendem uma lanterna de tempestade. Estão todos em torno da lanterna, os homens de um lado, as mulheres e as crianças do outro. Observo os rostos iluminados de forma fantástica, os olhos brilhantes. Um dos homens vem da Polónia e chama-se Rabi Joél. É um homem alto e magro, com lindos cabelos e uma barba negra. Está sentado em frente da lanterna e tem a seu lado uma pequena caixa preta atada com uma correia. Recita palavras estranhas naquela língua que não compreendo. Pronuncia lentamente palavras que ecoam, palavras ásperas, longas, doces que me fazem lembrar as vozes que cantavam no templo dentro de casa, em Saint-Martin. Nenhumas outras palavras me causaram semelhante efeito, uma espécie de frêmito na garganta como se fosse uma recordação. "Que diz ele?" pergunto à mamã em voz baixa. Os homens e as mulheres oscilam lentamente, acompanhando o movimento do navio baloiçado pela tempestade, e a mamã também oscila, olhando a chama da lanterna poisada no chão. "Ouve, agora é esta a nossa língua."
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Observo o seu rosto quando me diz isto. As palavras do rabino são fortes e afastam o medo da morte. No chão, a pequena caixa de cabedal preto brilha estranhamente, como se tivesse uma força incompreensível. As vozes dos homens e das mulheres acompanham as palavras de Joêl e tento ler nos lábios para compreender. O que estão a dizer? Gostaria de perguntar ao Jacques Berger mas não me atrevo a ir sentar-me a seu lado; posso quebrar o encanto e o medo voltaria a instalar-se entre nós. São palavras que acompanham o movimento do barco, palavras que ressoam e rolam, palavras suaves e poderosas, palavras de esperança e de morte, palavras maiores do que o mundo, mais fortes do que a morte. Quando de madrugada o barco chegou à baía de Alon, compreendi o significado da oração. Agora, que oiço as palavras da oração, a sua linguagem envolve-me. As palavras do Rabi Joèl soam no barco também para mim. Não estou de fora, não sou estrangeira. As palavras transportam-me a um outro mundo, a uma outra vida. Agora sei, agora compreendo. São as palavras de Joêl que nos vão levar até lá, até Jerusalém. Mesmo havendo tempestade, mesmo se formos abandonados, havemos de chegar a Jerusalém com as palavras da oração.
As crianças tornaram a adormecer, abraçadas às mães. As vozes graves ou límpidas respondem às palavras de Joèl, acompanham o balanço das vagas. Talvez comandem o vento, a chuva e a noite. A chama da lanterna vacila e faz brilhar os olhos. Ao lado do rabino, a pequena caixa preta brilha estranhamente, como se as palavras viessem dela.
Tornei a deitar-me no chão. Já não tenho medo. A mão da mamã acaricia-me os cabelos como antigamente, oiço a sua voz repetindo perto do meu ouvido as palavras ásperas e doces da oração. Sinto-me embalada e adormeço. Mergulho na minha recordação, a mais antiga recordação da terra.
Ao sair de Port-Man, pela madrugada, o Sette Fratelli foi mandado parar pela vedeta da alfândega. O mar estava calmo, muito liso depois da tempestade. O barco tinha voltado a utilizar o motor e, com as velas desfraldadas, corria para o largo. Estava no convés com algumas
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crianças e olhava o mar profundo que se abria à nossa frente. De repente, sem que ninguém tivesse tempo de compreender como, a vedeta surgiu, fendendo o mar com a proa possante e aproximando-se da nossa borda. Por momentos, o comandante fingiu não compreender e o Sette Fratelli, inclinado para um dos lados, continuou a cortar as ondas, rumo ao largo. Então os fiscais da alfândega gritaram qualquer coisa pelo altifalante. Não havia hipótese de dúvidas.
Vi a vedeta aproximar-se de nós. O meu coração começou a bater descompassadamente e não conseguia desviar os olhos das figuras uniformizadas. O comandante deu ordens e os marinheiros italianos arriaram as velas e pararam o motor. O nosso navio ficou a flutuar à deriva. Depois, em resposta a uma ordem, voltámos as costas ao mar largo e regressámos para a costa. A linha de terra estava à nossa frente, ainda sombria. Não vamos para Jerusalém. As palavras da oração já não nos conduzem. Vamos para o grande porto de Toulon, onde seremos metidos na cadeia.
No bojo do navio ninguém pronuncia uma palavra. Os homens estão sentados no mesmo lugar de ontem, semelhantes a fantasmas. A maior parte das crianças dorme ainda com a cabeça poisada nos joelhos das mães. As outras desceram do convés, com os cabelos todos despenteados pelo vento. No canto do porão, junto às bagagens, a lanterna de tempestade está apagada.
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Meteram-nos todos numa grande sala vazia, no extremo das oficinas do Arsenal, com certeza porque não nos podiam pôr em celas com os prisioneiros vulgares. Deram-nos camas de campanha e cobertores. Tiraram-nos todos os nossos papéis, o dinheiro e tudo o que pudesse ser utilizado como arma, até as agulhas de tricotar das mulheres e as pequenas tesouras de aparar a barba dos homens. Pelas grandes janelas com grades vemos um pátio de cimento rachado deserto, onde o vento agita alguns tufos de erva. No fundo do pátio há uma parede de pedra. Se não fosse essa parede poderíamos ver o mar Mediterrâneo e sonhar que íamos partir de novo. Dois dias depois de termos sido fechados no Arsenal sentia um tal desejo de ver o mar que arquitectei um plano para fugir. Não disse nada a ninguém porque a mamã iria ficar aflita e eu não teria coragem de partir. À hora da refeição do meio-dia, entram na nossa sala, pela porta do fundo, três fuzileiros. Dois distribuem as rações, enquanto o terceiro vigia, apoiado à espingarda. Consegui aproximar-me da porta sem despertar atenção. Quando um dos marinheiros me deu o prato cheio de sopa, atirei-lha aos pés e fuji a correr pelo corredor fora, sem fazer caso dos gritos atrás de mim. Corri assim com todas as minhas forças e era tão leve e rápida que ninguém me conseguia apanhar. No fim do corredor há a porta que dá para o pátio. Continuei a correr ao ar livre, sem parar. Há tanto tempo já que não vejo a luz do sol que ela me provoca vertigens e sinto o coração bater no pescoço e nos ouvidos. O céu é de um azul intenso, sem uma única nuvem, e tudo brilha no
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ar frio. Corri até à parede de pedra, procurando uma saída. O ar frio queima-me a garganta e o nariz e faz-me chorar os olhos. Parei por instantes para olhar para trás, mas ninguém parecia seguir-me. O pátio estava vazio e a parede resplandecia. Era a hora da refeição e todos os marinheiros deviam estar no refeitório. Sem parar de correr, segui ao longo da parede. De súbito, surge à minha frente uma grande porta aberta e a avenida que vai dar ao mar. Atravesso a porta como uma flecha, sem saber se haverá uma sentinela na guarita. Corro, sem parar para tomar fôlego, até ao fim da avenida, onde há um forte e rochedos sobre o mar. Meto-me pelo meio do matagal, arranhando as mãos e as pernas, e salto de rocha em rocha. Ainda não esqueci como fazia em Saint-Martin, ao subir a torrente. Numa fracção de segundo, vejo para onde vou saltar, o lugar onde posso passar e os buracos a evitar. Os rochedos tornam-se abruptos e tenho que abrandar. Agarro-me às plantas e desço até ao fundo das falésias.
Quando chego perto do mar, o vento sopra com tanta força que tenho dificuldade em respirar; empurra-me de encontro aos rochedos e assobia no matagal. Parei numa anfratuosidade da rocha, com o mar exactamente por baixo de mim. É tão bonito como na baía de Alon: um lençol de fogo, sólido, liso, tendo ao fundo as massas escuras dos cabos e das falsas ilhas, O vento faz turbilhão à entrada do meu esconderijo, rosna e lamenta-se como um animal. Lá em baixo, a espuma salta entre os rochedos e espalha-se ao vento. Aqui só existe o vento e o mar. Nunca tinha experimentado uma tal sensação de liberdade. Dá vertigens e provoca calafrios. Fito a linha do horizonte como se o nosso barco fosse chegar pelo caminho incendiado que o sol traça no mar. com o pensamento, estou do outro lado do mundo, ultrapassei o vento e o mar, deixei para trás os cabos e as ilhas onde vivem os homens, onde nos prenderam. Como um pássaro, deslizei rente à água, seguindo o vento, na luz e na poalha do sal; aboli o tempo e a distância e cheguei ao outro lado, onde a terra e os homens são livres, onde tudo é realmente novo. Nunca tinha pensado nisso antes. É uma espécie de embriaguês, porque naquele momento não penso em Simon Ruben, nem em Jacques Berger, nem mesmo na minha mãe, nem sequer no meu pai, desaparecido no meio das ervas altas acima de Berthemont; não penso no
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barco nem nos fuzileiros que andam à minha procura. Mas procurar-me-ão mesmo?
Não terei desaparecido para sempre por sobre o mar, suspensa no meu esconderijo de rochas, no meu ninho de pássaro, com o olhar fixo nas águas? O meu coração bate serenamente. Já não sinto medo, já não sinto fome, nem sede, nem o peso do amanhã. Sou livre, tenho dentro de mim a liberdade do vento e da luz. É a primeira vez.
Fiquei no meu esconderijo todo o dia, vendo o sol descer serenamente para o mar. Não se vê ninguém. Há tanto tempo que desejo estar verdadeiramente só, sem ninguém a falar ao meu lado. Penso na montanha, no vale imenso, na janela de gelo, quando espreitava o regresso do meu pai. Era essa a imagem que levava comigo, para toda a parte onde fosse, quando sentia necessidade de solidão. Era a imagem que via quando ficava fechada no quarto sombrio da Rua dês Gravilliers, era ela que se projectava no papel pintado da parede. Ainda me lembro: o meu pai avançando à minha frente pelo meio das ervas e as cabanas de pedra onde eu e a mamã fomos ter. O silêncio, apenas o som do vento na erva. As suas gargalhadas enquanto se beijavam. Tal como aqui, o silêncio, o som do vento no matagal, o céu sem nuvens, e o fundo do vale, imenso, enevoado, com os cumes da montanha emergindo como ilhas. Guardei isso sempre comigo, na minha cabeça, na garagem de Simon Ruben, no apartamento da Rua dês Gravilliers de onde nunca saíamos, mesmo quando Simon Ruben afirmava que os alemães não voltariam nunca, nunca mais. Eu conservava na cabeça essa montanha, essa encosta coberta de erva que parecia subir até ao céu e o vale afogado em bruma, os fumos das aldeias que subiam no ar transparente, ao crepúsculo.
É disso que me quero lembrar e não dos ruídos terríveis, dos tiros. Avanço como num sonho e a mamã aperta-me o braço e grita: "Anda, minha querida, anda! Foge! Foge!" E arrasta-me para a base da montanha velozmente, pelo meio das ervas que me cortam os lábios. Corro à sua frente apesar de me tremerem as pernas, ouvindo a sua estranha voz que vibra quando me grita: "Foge! Foge!"
Aqui, no meu esconderijo, parece-me pela primeira vez que nunca
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mais poderei ouvir esses sons, essas palavras, que nunca mais verei essas imagens tantas vezes sonhadas, porque o vento, o sol e o mar entraram em mim e lavaram tudo.
Fiquei ali, no meu esconderijo no meio dos rochedos, até o sol estar muito perto do horizonte e tocar o cume das árvores naquela espécie de ilha, do outro lado da baía.
Então, de repente, senti frio. Veio com a noite. Talvez fosse também por causa da fome, da sede e da fadiga. Tenho a impressão que nunca mais parei de andar e de correr desde o dia em que descemos da montanha pelo meio das ervas altas que me cortavam os lábios e as pernas, e que desde esse dia o meu coração nunca mais deixou de bater muito depressa e com muita força, de escoicear no meu peito como um animal assustado. Até no apartamento escuro da Rua dês Gravilliers eu não parava de andar e de correr e sentia-me sem fôlego. O médico que me veio ver chamava-se Rose; não me esqueci do seu nome, embora apenas o tivesse visto uma vez, porque ouvia a mamã e o tio Simon Ruben repetir o seu estranho nome: "O Sr. Rose disse... O Sr. Rose foi... O Sr. Rose acha que..." Quando veio, quando entrou no nosso apartamento miserável, julguei que tudo se iria iluminar e brilhar. No entanto, não fiquei grandemente decepcionada quando vi que o Sr. Rose era um homenzinho gorducho e careca, com uns grossos óculos de míope. Auscultou-me por cima da combinação, apalpou-me o pescoço e os braços e disse que eu tinha bronquite e estava magra demais. Receitou pastilhas de eucalipto para a bronquite e disse à mamã que eu precisava de comer carne. Carne! Calcularia ele que apenas comíamos legumes estragados que a mamã ia apanhar do chão nos mercados e, às vezes, só cascas? Mas a partir dessa altura passei a ter caldo feito com pescoços e patas que a mamã ia comprar duas vezes por semana. Depois, nunca mais tornei a ver o Sr. Rose.
Penso nisso enquanto a noite cai sobre a baía porque me parece que aqui, neste esconderijo, pela primeira vez parei de andar e de correr. O coração começou finalmente a bater tranqüilamente no meu peito e consigo respirar sem dificuldade, sem que os brônquios chiem.
Foram os cães que me acordaram antes do amanhecer. Os marinheiros
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descobriram-me na minha gruta e levaram-me de regresso ao Arsenal. Quando entrei na enorme sala, a mamã levantou-se da cama, veio ter comigo e beijou-me. Não disse nada. Eu também não lhe podia dizer nada, nem porquê, nem perdão. Sabia que nunca mais teria um dia e uma noite como aquelas. Tinham ficado dentro de mim, com o mar, o vento e o céu. Agora, podiam-me prender para sempre.
Ninguém disse nada. Mas as pessoas que até então me ignoravam, passaram a falar comigo amavelmente. O "pastor" veio sentar-se ao meu lado, dirigindo-se-me com uma espécie de deferência que eu achava estranha. Parecia-me que tinham passado anos enquanto estava no meu esconderijo da rocha. Agora ficávamos a conversar todo o dia, sentados no chão junto das altas janelas. O Rabi Joél vinha também ter connosco e contava coisas de Jerusalém e da história do nosso povo. Gostava principalmente quando ele falava de religião.
O meu pai e a minha mãe nunca tinham falado de religião. O tio Simon Ruben referia-se às vezes à religião, às cerimónias, às festas, aos casamentos. Mas para ele isso eram coisas normais que não metiam medo, coisas sem mistério, hábitos. E se eu lhe fazia qualquer pergunta sobre religião irritava-se. Franzia as sobrancelhas, olhando-me de lado e a mamã permanecia de pé, como se se sentisse culpada. É porque o meu pai não era crente, porque era comunista, segundo dizem. Então o tio Simon Ruben não se atrevia a trazer o rabino e falava de religião zangado.
Mas quando o "pastor" falava de religião com o Rabi Joèl transformava-se. Gostava de os ouvir e observava-os disfarçadamente, o "pastor" com a sua barba e os seus cabelos de ouro e Joèl com o seu rosto muito branco, os cabelos negros e o vulto esguio. Tinha os olhos de um verde muito pálido, como Mario, e eu achava que era ele o verdadeiro "pastor".
Era estranho falar assim de religião naquela grande sala onde estávamos prisioneiros. O "pastor" e Joél falavam em voz baixa para não incomodar os outros e era como se ainda estivéssemos prisioneiros no Egipto, como se fôssemos partir e a voz aterradora fosse ressoar no céu e nas montanhas e a luz brilhar no deserto.
Eu fazia perguntas que deviam ser estúpidas porque não sabia nada. O meu pai nunca me falara daquelas coisas. Perguntava por que
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razão não se podia nomear D... por que é que ele era invisível e oculto se fez tudo à superfície da terra. O Rabi Joél abanava a cabeça e dizia: "Não é invisível nem oculto. Nós é que somos invisíveis e ocultos, nós é que estamos na sombra." Falava muitas vezes da sombra. Dizia que a religião é a luz e que toda a vida dos homens, todos os seus actos, tudo o que constróem de grande e magnífico não são mais do que sombras. Afirmava: "Aquele que tudo fez é o nosso pai, nascemos dele. Eretz Israel é o lugar onde nascemos, o lugar onde a luz brilhou pela primeira vez e onde começaram as primeiras sombras." Estávamos sentados junto da janela de grades e eu olhava o céu muito azul. "Nunca chegaremos a Jerusalém." Disse aquilo porque estava cansada de pensar nisso. Queria voltar para o meu esconderijo nos rochedos, sobre o mar. "Talvez nem sequer exista Jerusalém." O "pastor" fitou-me irado. O seu rosto doce estava contraído pela cólera. "Porque dizes isso?" Falava lentamente mas os seus olhos brilhavam de impaciência. Respondi: "Talvez exista, mas não chegaremos lá. A polícia não nos deixará partir. Teremos de voltar para Paris." O "pastor" disse: "Mesmo que não nos deixem partir hoje, partiremos amanhã. Ou depois de amanhã. E se não nos deixarem ir de barco, iremos a pé, mesmo que tenhamos de andar durante um ano." Não era apenas por partir que ele dizia aquilo, mas porque queria ver o país onde tinha nascido a religião, onde fora escrito o primeiro livro. Ver a luz nos seus olhos fazia-me bater o coração mais depressa. Já que ele queria tanto chegar a Jerusalém, talvez realmente lá chegássemos um dia.
Os dias iam-se passando assim, longos e esquecidos. As pessoas diziam que nos iam levantar um processo e reenviar a todos para Paris. Quando via a mamã abatida e triste, sentada na cama, com o olhar fixo no chão, embrulhada no cobertor americano por causa do frio, sentia apertar-se-me o coração. Dizia-lhe: "Não estejas triste, mãezinha. Vais ver, vamos fugir. Tenho um plano. Se nos quiserem meter no comboio de regresso a Paris, tenho um plano, fugimos." Não era verdade, eu não tinha plano nenhum e depois da minha fuga os fuzileiros tinham-me debaixo de olho. "E para onde iríamos? Apanhavam-nos fosse onde fosse." Apertava-lhe as mãos com força. "Vais
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ver. Seguimos ao longo da costa e vamos até Nice, para casa do irmão do tio Simon. Depois vamos à Itália, à Grécia, e acabaremos por chegar a Jerusalém." Não fazia a mínima ideia dos países que seria preciso atravessar para chegar a Eretz Israel, mas tinha ouvido o "pastor" falar da Itália e da Grécia. A mamã sorria. "Criança! E onde arranjamos dinheiro para a viagem?" Eu respondia: "Dinheiro? Não importa, vamos trabalhando pelo caminho. Vais ver que nós duas não precisaremos de ninguém." De tanto falar nisto quase acabava por acreditar. Se não arranjássemos trabalho, cantaria nas ruas e nos pátios, com a cara pintada de preto e luvas brancas, como os menestréis nas ruas de Londres, ou então aprenderia a andar no arame, vestiria um collant coberto de lantejoulas e as pessoas que passassem deitariam moedas num chapéu velho, com a mamã sempre a vigiar, porque o mundo está cheio de pessoas más. Imaginava mesmo que o "pastor" iria connosco para Itália, assim como o rabi Joèl, com o seu fato preto e a sua caixa de orações. Falaria da religião e de Jerusalém às pessoas. E estas sentar-se-iam em seu redor para o ouvir e dar-nos-iam de comer e algum dinheiro, principalmente as mulheres e as raparigas, por causa do "pastor" e dos seus lindos cabelos de ouro.
Tinha que arranjar um plano para nos escaparmos. Passava as noites a remoer aquilo na cabeça. Imaginava todas as manhas para escapar aos marinheiros e à polícia. Talvez pudéssemos deitar-nos ao mar e nadar com uma espécie de bóias, ou numa jangada, até termos passado a fronteira italiana. Mas a mamã não sabia nadar e eu não tinha a certeza se o "pastor" saberia e se o Rabi Joél aceitaria lançar-se à água com o seu belo fato preto e o seu livro.
Aliás, ele não aceitaria deixar a família, abandonar o seu povo nas mãos dos inimigos que nos mantinham prisioneiros. Tínhamos de partir todos, os velhos, as crianças, as mulheres, todos os que estavam prisioneiros, porque também eles mereciam chegar a Jerusalém. Nem o próprio Moisés abandonaria os outros para fugir sozinho para Eretz Israel. Era isso que tornava tudo tão difícil.
Aquilo de que mais gostava na grande sala em que estávamos prisioneiros eram as longas tardes, depois da refeição, quando o sol iluminava
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as altas janelas e dissipava um pouco o frio húmido. As mulheres instalavam-se nos rectângulos de luz recortados nas lages de pedra cinzenta, estendendo os cobertores no chão como tapetes, e conversavam enquanto as crianças brincavam a seu lado. O barulho das suas conversas formava um estranho zumbido de colmeia. Quanto aos homens, permaneciam ao fundo da sala e falavam em voz baixa, fumando e bebendo café, sentados nas camas de campanha, e o som das suas conversas fazia um rumor mais grave, pontuado por vozes mais elevadas e risos.
Gostava muito de ouvir as histórias que o Rabi Joèl contava. Vinha sentar-se no chão com as crianças, à luz de uma das janelas, e os seus cabelos e fato negros brilhavam como seda. A princípio, Joèl falava apenas para mim e para Jacques Berger, sem elevar a voz para não incomodar os outros. Abria o seu livro negro e lia lentamente, primeiro naquela língua tão bela, simultaneamente áspera e doce, que eu ouvira no templo, em Saint-Martin. A seguir, falava em francês, também lentamente, procurando as palavras, ajudado às vezes pelo "pastor" pois não dominava muito bem essa língua. Depois a mamã começou a aproximar-se também, assim como outras crianças, rapazes e raparigas estrangeiros que não falavam a nossa língua mas que, apesar disso, ficavam a ouvir. Havia igualmente uma rapariga chamada Judith, pobremente vestida, sempre com um lenço de flores na cabeça, como uma camponesa. Esperávamos que o Rabi Joèl começasse a falar e quando começava era como se fosse uma voz interior que dizia aquilo que estávamos a ouvir. Falava da lei e da religião como se fossem as coisas mais simples do mundo. Explicava simplesmente o que era a alma falando da nossa sombra e o que era a justiça falando da luz do sol e da beleza das crianças. Depois, pegava no Livro da Criação, o que o tio Simon Ruben tinha dado à mamã antes de partirmos, e explicava o que lá estava escrito. O melhor de tudo era a história do começo do mundo. Pronunciava primeiro os nomes na língua divina, lentamente, destacando cada nome e cada sílaba, e às vezes parecia-nos ter compreendido tudo apenas por ouvirmos as palavras daquela língua ressoando no silêncio da nossa prisão. É que nessa altura paravam todas as conversas e discussões e até os velhos ficavam a ouvir, sentados nas camas de campanha. Eram as palavras de D... as que deixara
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suspensas no espaço antes de fazer o mundo. Joél pronunciava lentamente os nomes num sopro: "Elohim, Elohim, o único no meio dos outros, o maior dos seres, o que é único e senhor de si mesmo, o que pode fazer..." Falava dos primeiros dias, aqui, nesta grande sala, com o rectângulo das janelas deslocando-se lentamente no chão.
"Assim, em primeiro lugar, Elohim fez a pessoa do céu e a pessoa da terra."
Eu perguntava: "Pessoas? O céu e a terra eram pessoas?"
"Eram, eram pessoas, as primeiras criaturas, semelhantes a Elohim"
E continuava a ler: "Porque a terra estava prestes a nascer e as trevas encontravam-se no vazio." Acrescentava: "Elohim utilizava o vazio; o vazio é o cimento da terra, da existência."
Prosseguia: KE o sopro do maior dos seres, Elohim, passava e semeava sobre a superfície das águas." Explicava: "O sopro, o hálito, por sobre o frio da água."
Falava do sol e da lua como se contasse histórias. Deixávamos de pensar na sala sombria e no passar do tempo que fazia deslocar o desenho das janelas no chão.
Era extraordinário. Todos nós, Judith e até as crianças mais pequenas, compreendíamos imediatamente o que queriam dizer essas palavras.
Lia: "Ele, o maior, disse faça-se luz. E fez-se luz. Ele, o maior, viu que isso era bom. Ele, o maior, separou a luz das trevas." Acrescentava: "A luz era o que nós podíamos ver e as trevas eram o cimento da terra. Então uma e outras foram-nos dadas para sempre, separadas e impossibilitadas de serem guardadas juntas. De um lado, a inteligência; do outro, o mundo..."
"Então ele, o maior dos seres, deu à luz o nome de IO e às trevas o de LAYLA." Ouvíamos esses nomes, os nomes mais belos que alguma vez tínhamos ouvido. "IOM era como o mar, sem limites, enchendo tudo, dando tudo. LAYLA era o vazio, o cimento do mundo." Ouvia as palavras daquela língua divina ressoando na prisão. "Então foi o fim do dia a Oeste e a madrugada a Este. IOM EHED."
Quando Joèl dizia: Dia Um, sentíamos um arrepio: o primeiro dia, o momento do nascimento.
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"Então o maior dos seres disse: haverá uma abertura no centro das águas. E ele, o maior dos seres, fez essa separação entre as águas de baixo e as águas de cima. E assim foi feito."
"O que são as águas de baixo?" perguntava eu. Joèl fitava-me sem responder e depois dizia: "Espera, o livro não fala sem razão. Ouve a continuação: e ele, o maior dos seres, deu a esse espaço o nome de SHAMAÍN, os céus, as águas de cima, e houve a noite a Oeste e a madrugada a Este. IO SHENI." Esperava um instante e recomeçava: "E ele, o maior dos seres, disse que as águas de baixo seriam levadas para um único ponto de encontro e ver-se-ia a terra. E assim foi feito."
"Por que existia primeiro a água?"
"Era o movimento depois da imobilidade, o primeiro movimento da vida."
Pensava no mar que tínhamos que atravessar. A terra sem água começaria do outro lado. Joél continuava a ler e depois traduzia:
"E ele, o maior dos seres, deu nome à terra, ERETZ, e à água que se movia deu o nome I AM MI M, a água sem fim, o mar. E ele, o maior dos seres, viu que isso era bom."
"Como era Eretz?" Tentava imaginar as primeiras terras saídas do mar como as ilhas escuras que vira do convés do Sette Fratelli durante a tempestade.
"Como a imaginas?" Joèl voltava-se para mim, depois para o "pastor" e para cada um de nós. E como ninguém respondesse:
"Como vês, não se pode explicar..."
Continuava: "Ele, o maior dos seres, disse que na terra cresceriam as plantas verdes com sementes, cada uma com uma semente para semear a terra. E assim foi feito."
Interrompia-se: "Já pensaram nessa semente?"
Acrescentava: "O movimento que liga o calor e o frio, que une a inteligência e o mundo, o dia, a noite, as sementes, a água... Tudo isso já existia..."
E lia as palavras do livro: "E a terra fez crescer uma planta viva, cada planta com a sua semente, cada planta com o seu fruto com a sua semente, segundo a sua espécie. E ele, o maior dos seres, viu que isso era bom. E fez-se noite a Oeste e madrugada a Este. IOM SEHLISHI."
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A voz mexe dentro de mim, toca-me no coração, no ventre, está na minha garganta e nos meus olhos. Sinto-me tão perturbada que me afasto um pouco e escondo a cara no xaile da mamã. Cada palavra entra dentro de mim para quebrar qualquer coisa. A religião é assim. Quebra as coisas dentro de nós, coisas que impediam essa voz de circular.
Naquela prisão, oiço a voz do mestre todos os dias, há semanas. Sento-me no chão com as outras crianças, as mulheres e os homens, e ouvimos os ensinamentos. Agora já não tenho vontade de fugir, de correr lá fora, ao sol, para ir ver o mar. O que diz o livro tem muito mais importância do que aquilo que há lá fora.
Joèl dizia: "Ele, o único, diz que haverá uma, luz no vazia do céu para separar o dia da noite e outras luzes para representar o futuro, para medir a passagem do tempo, para medir a transformação dos seres vivos."
"O tempo era isso?"
Mas Joél olhava-me sem responder. E continuava a ler.
"E serão como luzes brilhando no vazio do céu para iluminar a vida na terra. E assim foi feito."
Voltava-se depois para mim e respondia:
"Não era o tempo que Elohim nos dava. Era a inteligência, o poder de compreender. Aquilo que hoje se chama a ciência. Estava tudo preparado para que a mecânica do mundo pudesse funcionar. A ciência era a claridade das estrelas..."
Nunca mais ninguém me tinha falado das estrelas desde que o meu pai mas mostrara uma noite, no Verão da sua morte. As estrelas fixas e as estrelas cadentes, que deslizavam como gotas na superfície da noite. Fora assim que ele inventara o meu nome, estrela, estrelinha...
"E ele, o único, fez as grandes luzes irmãs: a maior, ao centro, o sinal do dia, e a mais pequena, o sinal da noite. E todas as que se chamavam Chochabim, as estrelas."
Joél fechava o Livro da Criação porque caía a noite. O silêncio penetrava na sala como um frio. Íamo-nos levantando uns a seguir aos outros, voltando cada um para o seu canto. Ia-me sentar com a mamã em cima da cama, junto da parede. "Agora sei que chegaremos a Jerusalém." Dizia aquilo para dar coragem à mamã mas também porque
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acreditava. "Quando soubermos tudo o que há no livro, chegaremos." A mamã sorria: "É uma boa razão para o ler." Gostava de perguntar à mamã por que razão o meu pai nunca me tinha lido o livro, por que é que ele preferia ler-me os romances de Dickens. Talvez ele quisesse que eu o descobrisse por mim mesma, no dia em que tivesse realmente necessidade. Tudo o que ele me tinha explicado e tudo o que me tinham ensinado na escola até agora se tornava claro e verdadeiro, tudo se tornava fácil de compreender. Tornara-se real.
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O advogado veio ver-nos à prisão. Chegou esta manhã bem cedo, com uma pasta cheia de papéis, e ficou na enorme sala durante uma boa parte do dia, conversando com as pessoas. Até comeu connosco, quando os fuzileiros trouxeram a refeição: batatas cozidas e carne. Os velhos judeus não queriam comer a carne porque diziam que não estava boa, mas as mulheres e as crianças devoraram-na sem lhes dar ouvidos. O "pastor" dizia que o importante era viver para termos a força de sermos livres e irmos até Jerusalém. O advogado também veio falar com a mamã, com Jacques Berger e com a mãe da Judith, que estava connosco. Era um homem já não muito novo, de fato cinzento, cabelos bem penteados e um bigodinho. Tinha uma voz muito suave e olhos meigos e a mamã estava muito satisfeita por poder conversar com ele. Fez algumas perguntas para saber de onde vinha, quem era e por que tínhamos decidido partir para Jerusalém. Tomava nota dos nomes e das respostas num caderno de escola e quando soube que o meu pai tinha morrido durante a guerra por causa dos alemães e que pertencia ao maquis, escreveu tudo cuidadosamente no caderno. Disse que não podíamos continuar aqui, nesta prisão. Tomou também nota dos nomes do Jacques Berger e da mãe da Judith e examinou todos os papéis cuidadosamente, pois tinham-lhos entregue no quartel general antes de vir. Devolveu depois a cada um o bilhete de identidade ou o passaporte. As pessoas rodearam-no e ele apertou a mão a todos. Os homens e as mulheres aglomeravam-se à sua volta fazendo-lhe perguntas, querendo saber quando iriam ser
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libertados e se os mandariam de volta para Paris. Eram sobretudo os que vinham da Polónia que mais insistiam, com as mulheres falando todas ao mesmo tempo. O advogado pediu silêncio e disse em voz forte, para que todos pudessem ouvir e que os que não falavam francês pedissem para que lhes traduzissem o que ele dizia: "Meus amigos, meus caros amigos, não tenham medo. Tudo se vai arranjar e em breve estarão livres. Sou eu que vos garanto. Nada têm a recear." À sua volta, as vozes interrogavam: "E o barco? Poderemos apanhar o barco outra vez?" Havia um brouhaha em que se destacava a palavra barco e o advogado teve que falar ainda mais alto: "Sim, meus amigos, vão poder continuar a vossa viagem. O barco está pronto para partir. O comandante Frullo mandou instalar os escaleres que faltavam e prometo... prometo que poderão continuar a viagem dentro de um ou dois dias." Quando o advogado saiu era quase noite. Tornou a apertar a mão a toda a gente, mesmo às crianças mais pequenas.
E ia repetindo: "Tenham confiança, meus caros amigos. Tudo se vai resolver."
Vivemos as horas seguintes numa espécie de exaltação. As mulheres falavam e riam e, à noite, as crianças não queriam dormir. Talvez fosse por causa do vento seco que soprava naquele dia. O céu estava tão límpido que se via mesmo à noite. Quanto a mim, fiquei sentada junto de uma janela, embrulhada no meu cobertor, e via a lua deslizar por entre as grades e descer para a parede no fundo do pátio. Na sala, os homens falavam em voz baixa e os velhos religiosos oravam.
Parecia-me agora que a distância que nos separava da cidade santa já não existia, como se aquela mesma lua que deslizava no céu iluminasse Jerusalém, as casas, os jardins de oliveiras, as cúpulas e os minaretes. O tempo também deixara de existir. Era o mesmo céu de outrora, quando Moisés esperava na casa de Pharaon ou quando Abraão sonhava como tinham sido feitos o sol e a lua, as estrelas, a água, a terra e todos os animais do mundo. Aqui, nesta prisão do Arsenal, sabia que éramos parte desse tempo e isso fazia-me tremer de medo e acelerava-me o coração, como quando ouvia as palavras do livro.
Nessa noite, o "pastor" veio sentar-se junto da janela, a meu lado. Também ele não conseguia dormir. Conversámos em voz baixa. Pouco a pouco, à nossa volta, as pessoas foram-se deitando e as crianças
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adormeceram. Ouvíamos o som regular das respirações e o ressonar dos velhos. O "pastor" falava-me de Jerusalém, dessa cidade onde poderíamos finalmente ser nós mesmos. Disse que iria trabalhar para uma quinta e que, quando tivesse economizado o suficiente, continuaria os seus estudos, talvez em França ou no Canadá. Não conhecia ninguém em Jerusalém, não tinha parentes nem amigos. Disse que a mamã e eu também poderíamos trabalhar num kibutz. Era a primeira vez que ouvia falar daquelas coisas, do futuro, do trabalho. Pensava nos campos de trigo, em Roquebillière, nos homens que avançavam manejando as foices e nas crianças que apanhavam as espigas. O coração batia e eu sentia o calor do sol no rosto. Estava tão cansada! Parecia que nunca mais deixara de estar à espera, em Festiona, no campo, na parte alta da aldeia, com os olhos fixos na parede rochosa onde se abria o caminho do desfiladeiro por onde o meu pai nunca surgira.
Poisei então a cabeça no ombro do Jacques Berger e ele passou-me o braço nos ombros, como quando esperava nos rochedos a chegada do barco, em Port d'Alon. Sentia o cheiro do seu corpo e dos seus cabelos. Apetecia-me dormir finalmente, fechar os olhos e, quando os tornasse a abrir, estaria no meio das oliveiras, nas colinas de Jerusalém, e veria a luz brilhar sobre os telhados e minaretes.
A mamã apareceu. Sem uma palavra, ternamente, pegou-me pelo braço, ajudou-me a levantar e levou-me para a cama, junto à parede. O "pastor" compreendeu. Afastou-se, disse boa noite com uma voz rouca e voltou para a sua cama, do lado dos homens. A mamã deitou-me e embrulhou-me bem no cobertor para não ter frio. Estava tão cansada! Nunca gostara tanto da mamã, porque ela não dizia nada. Aconchegou-me bem o cobertor como quando eu era pequena, na mansarda, em Nice, e ouvia ranger o cata-vento no telhado de chapa. Beijou-me junto à orelha, como eu gostava. Depois, deitou-se também e ouvi a sua respiração regular abafando a respiração e o ressonar dos outros. Adormeci enquanto ela ainda tinha os olhos abertos na escuridão e me olhava.
O Sette Fratelli partiu esta manhã, pela madrugada. O mar está liso, escuro, cheio de gaivotas. Agora temos o direito de subir ao convés desde que não perturbemos as manobras. O advogado acompanhou-nos
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até à escada do portaló. Apertou a mão a todos, dizendo: "Adeus, meus amigos. Boa sorte!" O Rabi Joêl, com o seu fato preto, foi o último a subir para bordo. Perguntou-lhe timidamente o que poderíamos fazer para lhe pagar, mas o advogado apertou-lhe a mão e disse: "Escrevam-me quando chegarem." Ficou em pé, no cais. O capitão Frullo deu ordem para soltarem as amarras. O motor do barco começou a vibrar com mais força e começámos a afastar-nos. O advogado continuava no cais, fustigado pelo vento, com a sua pasta de estudante na mão. As mulheres e as crianças agitaram os lenços e o cais foi-se tornando cada vez mais pequeno e a sua silhueta cada vez menos visível à luz da madrugada.
A mamã está embrulhada no cobertor e no xaile preto, já muito pálida por causa do balanço. Viu a costa afastar-se e as falsas ilhas abrirem-se. Desceu para se deitar no porão. Todos reencontraram os lugares que ocupavam no início da viagem.
Ao largo, os golfinhos começaram a acompanhar o barco, saltando à frente da proa. Depois surgiu o sol e os golfinhos desapareceram. Ainda esta noite estaremos em Itália, em La Spezia.
Em pé, na ponte, Esther observava o convés do barco, onde os passageiros se tinham reunido. Estava um tempo maravilhoso. Pela primeira vez depois de muitos dias, as nuvens cinzentas tinham desaparecido e o sol resplandecia. O mar estava de um azul violento, magnífico, que Esther não se cansava de contemplar.
Naquela noite, o Sette Fratelli tinha passado ao largo de Chipre com todas as luzes apagadas, as máquinas paradas, apenas à velocidade do vento que fazia bater as velas. No porão ninguém dormia a não ser as crianças muito pequenas, que não tinham consciência do perigo. Todos sabiam que a ilha estava ali, muito perto, a bombordo, e que as vedetas inglesas patrulhavam as águas. Em Chipre, os ingleses tinham preso milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças, capturadas no mar a caminho de Eretz Israel. O "pastor" dizia que se os ingleses os apanhassem com certeza que os repatriariam. Metê-los-iam num campo e depois em navios para os mandarem para França, para Itália, para a Alemanha ou para a Polónia.
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Esther não dormira naquela noite. O barco deslizava silenciosamente no mar agitado, baloiçando e inclinando-se por causa da força do vento sobre a vela mestra. O comandante Frullo não queria ninguém no convés. Não se podia acender uma lanterna, nem sequer um isqueiro para um cigarro. No porão do Sette Fratelli estava escuro como dentro de um forno. Esther apertava com força a mão da mãe, ouvindo o roçar da água no casco e os estalos da vela. A noite tinha sido muito longa. Era uma noite em que cada instante contava, como em Festiona, quando os alemães procuravam os fugitivos na montanha, ou como aquela noite em que os americanos tinham bombardeado Gênova. Mas esta noite ainda parecia mais longa porque o fim da viagem estava próximo, depois daqueles vinte dias no mar. Todos tinham esperado, orado, falado e cantado tanto! Na escuridão, as vozes tinham cantado por instantes, em surdina, naquela língua desconhecida. Depois, tinham parado bruscamente como se, algures no mar, apesar da distância e do barulho das vagas, as patrulhas dos ingleses os pudessem ouvir.
Em dado momento, apesar da proibição, alguém tinha acendido um isqueiro para ver as horas e a informação tinha circulado de um para outro, em alemão, em yiddish, finalmente em francês: "Meia-noite... É meia-noite. Já passámos Chipre." Como podiam saber? Esther tentava imaginar a ilha e as suas altas montanhas ficando para trás do barco, como um monstro fúnebre. Os passageiros recomeçavam a falar, ouviam-se risos. Houve um ruído de passos no convés e a escotilha abriu-se. Silvio, o jovem italiano amigo de Esther, desceu alguns degraus: "Silêncio! Nada de barulho! Os barcos ingleses andam perto." Tinham ouvido ordens no convés e depois o som mole da vela a ser arreada. Sem vento, o barco endireitara-se, oscilando com a ondulação, apanhando com as vagas ora de um lado, ora do outro. Onde estavam os ingleses? Esther tinha a impressão que eles estavam em todos os lados ao mesmo tempo, descrevendo círculos no mar à procura da presa que adivinhavam na sombra.
O barco ficou imóvel durante muito tempo, girando sobre si mesmo sob a acção do vento, açoitado pelas vagas. Não se ouvia um ruído no convés. Os marinheiros italianos ter-se-iam ido embora? Talvez tivessem abandonado o barco. Esther continuava a apertar a mão da
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mãe. O silêncio era tal que as crianças tinham acordado e começado a chorar, enquanto as mães tentavam abafar-lhes o choro de encontro ao peito.
Os minutos e os segundos eram longos, cada bater do coração era separado do seguinte por uma dolorosa espera. Passado um intervalo muito longo, ouviu-se de novo um ruído de passos no convés e a voz do comandante gritou: "Alza Ia vela! Alza Ia vela!" O vento tornou a enfunar a vela. Tinham ouvido os mastros estalar e o chiar dos aprestos. O barco começara a avançar contra as vagas, inclinado para um lado.
Nunca nada parecera nunca bonito a Esther. Na escuridão, as pessoas tinham recomeçado a falar, primeiro em voz baixa, depois cada vez com mais força, todas ao mesmo tempo, gritando, rindo, cantando. A escotilha abrira-se. Silvio descera com uma lanterna de tempestade e dissera: "Já passámos." Todos tinham gritado e aplaudido. Pouco depois, os motores recomeçavam a funcionar. O roncar das máquinas assemelhava-se à mais doce das músicas. Tinham-se deitado no chão, com a cabeça apoiada nos embrulhos prontos para a chegada. Esther adormecera sem largar a mão de Elizabeth, sentindo a vibração regular dos motores no soalho e com os olhos fitos na estrela luminosa que era a lanterna de tempestade.
Antes do nascer do sol tinha subido ao convés. Os marinheiros ainda dormiam. Ao abrir a escotilha, o vento cortara-lhe a respiração. Estava há tanto tempo fechada no porão que ficara por momentos petrificada, sem se conseguir mexer. Depois avançara com precaução até à parte da frente do barco e tinha-se instalado lá, com o triângulo da vela enfunado à sua frente. Foi dali que viu o dia nascer sobre o mar.
A princípio havia apenas a escuridão azul, as estrelas que baloiçavam e a luz vaga da galáxia. A claridade surgira pouco a pouco no horizonte, mesmo à sua frente, uma mancha que ia apagando as estrelas. Por momentos, o céu tornara-se cinzento, o mar revelara-se com as suas cristas brilhantes e o horizonte riscado sobre o mundo era como uma fractura. O barco ia avançando regularmente, vencendo as vagas sem dificuldade, com o vento enfunando as velas e a vibração monótona dos motores. Quando a luz finalmente chegara, Esther
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tinha fixado o olhar na fina linha do horizonte sem pestanejar, sem o desviar. Apoiando-se na amurada, parecia-lhe formar um corpo único com a proa e ser ela a rasgar o mar, a deslizar sobre o seu próprio desejo, como um pássaro em vôo planado; ia direita ao horizonte, tentando ver a primeira linha da costa, fina e transparente como uma nuvem e, no entanto, real; prescrutava o mar até se sentir mal.
Ficara assim durante horas. Depois Silvio tinha-lhe tocado no ombro. "Menina, faça favor..." Olhara-o sem compreender. O sol ia agora alto no céu, incendiando o mar. Silvio ajudara-a a chegar ao tombadilho. "O comandante não quer... É perigoso." Tinha dito "pezigoso" mas Esther não conseguia rir. Tinha o rosto petrificado pelo vento e pela dor do olhar.
"Venha, vamos dar-lhe café." Mas ao chegar junto do buraco negro da escotilha Esther tinha-se recusado a entrar. Não era capaz de tornar a descer para o fundo do porão, a sentir o cheiro do medo e da espera. Se descesse, a costa de Eretz Israel nunca apareceria no mar. Abanava a cabeça e as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Tinham sido o vento e a luz do sol que tinham provocado as lágrimas, mas de repente sentira os soluços brotarem-lhe da garganta. Silvio tinha-a fitado, perplexo, e depois passara-lhe um braço pelos ombros e forçara-a a sentar-se no convés, abrigada pela escada do tombadilho. Voltara momentos depois com uma chávena de loiça: "Café." Molhara os lábios no líquido fervente. Tinha os cabelos colados às faces pelas lágrimas e a boca não conseguia sorrir. "Obrigada." Gostaria de falar com ele, de lhe fazer perguntas, mas as palavras não passavam na garganta. O rapaz compreendera o seu olhar e apontara-lhe o horizonte, à proa: "Mezzodi." Depois fora ter com os outros marinheiros. Esther ouvira as vozes deles fazendo troça de Silvio.
Os passageiros tinham saído do porão uns atrás dos outros. O sol estava no zénite, brilhando sobre o mar, e as mulheres e crianças protegiam os olhos com as mãos quando chegavam ao convés. Estavam todos pálidos, cansados, encandeados como se tivessem passado anos no fundo do porão. Os homens tinham o rosto sombreado pela barba e os fatos amarrotados. Usavam chapéus ou bonés para se protegerem do sol e do vento. As mulheres estavam embrulhadas nos xailes e algumas tinham vestido os casacos com gola de pele. Os velhos envergavam
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as longas casacas. Iam-se amontoando encostados uns aos outros no convés de trás do barco, olhando em silêncio o horizonte a leste. Também o Rabi Joél lá estava, com o seu fato preto.
Os marinheiros tinham ligado o rádio na cabina do timoneiro e a música ia e vinha, era a mesma voz estranha e rouca que Esther ouvira uma noite no desfiladeiro de Messina, a voz de Billie Holiday cantando blues.
Elizabeth também apareceu. Jacques Berger trazia-a pela mão. O seu rosto parecia muito pálido, em contraste com a roupa preta. Esther queria ir ter com ela, mas a multidão de passageiros não a deixava passar. Trepou à escada do tombadilho para ver melhor. O olhar de Elizabeth, tal como o dos outros, estava fixo no horizonte. O sol começara a descer do outro lado do barco. O vento tinha parado. De repente, sem perceberem como, a costa estava ali, na frente do barco. Ninguém disse uma palavra, como se tivessem medo de se enganar. Todos fitavam a linha cinzenta que surgira no mar como uma espécie de névoa. Amontoavam-se sobre ela grandes nuvens.
Então, as vozes dos homens e das mulheres começaram a fazer ecoar as mesmas palavras: "Eretz Israel! Eretz Israel!" Até os marinheiros italianos pararam, olhando também a linha da costa.
O sol fazia brilhar as ondas. As velas do barco pareciam mais brancas. Viram então as primeiras aves voando em redor do barco. Os seus gritos ecoavam no silêncio do mar por sobre as vozes das pessoas e o roncar dos motores, por cima da voz de Billie Holiday. Todos pararam de falar para os ouvir. Esther lembrou-se do pássaro negro que passava as montanhas antigamente, o pássaro que o pai lhe tinha mostrado. Também eles chegariam antes que fosse noite e poisariam livremente nas praias.
O Rabi Joèl veio até à escada do tombadilho. Tinha penteado cuidadosamente a barba e os cabelos e o fato preto brilhava ao sol como uma armadura. O seu rosto exprimia fadiga e inquietação mas também energia e os olhos brilhavam como quando lia o Livro da Criação em França, no cárcere. Atravessou a multidão, cumprimentando todos como se os reencontrasse depois de uma longa ausência. Apesar do cansaço do seu rosto, a silhueta esguia parecia a de um rapaz.
Parou em frente da escada e abriu o livro. Agora todos estavam
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voltados para ele, sem olharem para a linha de terra que se estendia à frente da proa do barco. O comandante Frullo também se aproximou e os marinheiros apagaram o rádio. A voz de Joèl elevou-se no silêncio do mar. Lia lentamente, naquela língua estranha e doce, a língua que Adão e Eva tinham falado no Paraíso, a língua que Moisés tinha falado no deserto de Sinai. Esther não compreendia, mas as palavras penetravam dentro dela como já acontecera antes, misturavam-se com a sua respiração. As palavras resplandeciam sobre o mar intensamente azul, iluminavam cada recanto do barco, até os mais conspurcados e deteriorados pela viagem, até as manchas do convés ou os rasgões da vela.
Iluminavam também todos os rostos. As mulheres vestidas de preto, as raparigas com lenços de flores, os homens, as crianças, todos escutavam. Entre cada palavra do livro, Joèl parava e ouvia-se o barulho da roda da proa e o roncar do motor. As palavras do livro eram belas como o mar, impeliam o barco para a frente, para a linha enevoada de Eretz Israel.
Sentada nos degraus da escada, Esther ouvia a voz e olhava a costa que ia crescendo. As palavras nunca se apagariam. Eram as mesmas palavras que Joèl ensinara na prisão, que falavam do bem e do mal, da luz e da justiça, do aparecimento do homem no mundo. E hoje era isso mesmo, era o princípio. O mar era novo, a terra acabava de surgir sobre as ondas, a luz do sol brilhava pela primeira vez e, no céu, as aves voavam sobre o navio para mostrar o caminho da praia onde tinham nascido.
Depois tudo se passou muito depressa, como num sonho. O Sette Fratelli fundeou ao largo de uma grande praia, em frente da linha das montanhas de um verde sombrio. As lanchas vieram até junto do barco e desembarcaram as pessoas em pequenos grupos. Quando chegou a vez de Elizabeth e Esther, a pequena viu na praia os homens que esperavam, as malas e os embrulhos, as mulheres que apertavam as crianças a si. De repente, teve medo. Voltou para o seu lugar junto da escada do tombadilho como se quisesse tornar a partir com o barco, continuar a viagem. Elizabeth estava à espera e Jacques Berger fazia-Lhe sinal para ir, mas ela não se movia, com as mãos agarradas ao corrimão da escada. Por fim, Elizabeth veio buscá-la, levou-a até à amurada e desceram juntas a escada de corda até à lancha.
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Instantes depois estavam na praia. O "pastor" estava de pé ao lado das malas, com o rosto corado tenso de inquietação e os olhos deslumbrados pela luz. Sem querer, Esther desatou a rir e logo de seguida sentiu as lágrimas nos olhos. Tinha o rosto a arder de febre. Deixou-se cair na areia e encostou-se à mala da mãe. Não olhava para mais nada. "Acabou-se, vai correr tudo bem, Estrellita." A voz de Elizabeth era agora calma. Esther sentia os dedos esguios acariciarem-lhe os cabelos emaranhados pelo sal. A mãe nunca lhe chamara "estrelinha", era a primeira vez.
O barco estremecia ao largo. As correntes das âncoras subiam aos solavancos. No convés, os marinheiros italianos olhavam a praia. A vela mestra subiu, estalando ao vento, e depois ficou panda de repente. O Sette Fratelli afastou-se. Pouco depois, nada mais havia do que o mar deslumbrante ao pôr-do-sol e as lanchas que eram puxadas para a praia. Esther e Elizabeth avançaram lentamente pela areia, acompanhadas por Jacques Berger que transportava as malas. Junto às dunas, as pessoas esperavam, deitadas. Algumas tinham estendido os cobertores. Caía a noite. O vento era suave e o ar doce, cheirando a pólen. Embriagava ligeiramente.
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Omais belo era a luz, a luz e as pedras. Como se nunca tivesse visto nada antes, como se até então só tivesse existido sombra. A luz era o nome da cidade que ouvia desde muito pequena, o nome que o pai pronunciava à noite para que adormecesse com ele. O nome estava à sua frente, à frente de Elizabeth, quando avançavam pelo caminho pedregoso, através da floresta, dirigindo-se a Itália. Era o nome que queria ouvir, que esperava todas as tardes, em Festiona, escondida entre as ervas, no caminho por onde o pai devia chegar. Era o nome que existia no apartamento do número 26 da Rua dês Gravilliers, na passagem escura, nas escadas onde caía a água do telhado esburacado como um trapo velho. Era ainda ele no barco que corria sobre o mar de Inverno, era ele que brilhava quando ela subia ao convés e que a deslumbrava.
Esther corria pelas ruas da nova cidade onde os emigrantes se tinham instalado. Ia até ao alto da colina e perdia-se pelos pinhais. Ia até tão longe que deixava de ouvir qualquer som humano, apenas o assobiar do vento nas agulhas dos pinheiros, o esvoaçar leve de um pássaro.
O azul do céu provocava vertigens. As rochas ardiam com uma chama branca. A luz era tão violenta que as lágrimas lhe corriam dos olhos. Sentava-se no chão com a cabeça poisada nos joelhos e a gola do casaco levantada até às orelhas.
Fora assim que Jacques Berger a fora encontrar uma manhã e, depois disso, ia com ela todos os dias. Talvez lhe tivesse seguido o rasto
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ou a espiasse de longe, quando ela corria pelas ruas até aos montes. Chamara-a pelo nome, gritando com toda a força, e ela tinha-se escondido atrás de uns arbustos. Depois dele ter passado, descera outra vez até um velho muro e fora aí que ele a apanhara. Tinham andado pelo meio dos pinheiros de mãos dadas. Quando ele a beijara, Esther consentira, voltando a cabeça para o lado de forma a fugir ao seu olhar.
Jacques falava dos perigos que havia por todo o lado devido à guerra. Dizia que ia lutar contra os inimigos de Israel, contra os árabes, contra os ingleses. Um dia falara da notícia da morte de Gandhi e estava pálido e perturbado como se aquilo tivesse ocorrido ali. Esther ouvia-o e via a morte brilhar no céu, nas pedras, nos pinheiros e nos ciprestes. A morte brilhava sob os seus passos como uma luz, como o sal, em cada pedaço de terra.
"Andamos em cima de mortos", dizia Esther. Pensava em todos os que tinham morrido em qualquer parte, esquecidos, abandonados, todos os que os soldados da Wehrmacht perseguiam nas montanhas e no vale do Stura, os que tinham encerrado no campo de Borgo San Dalmazzo e que nunca tinham regressado. Pensava na encosta abaixo de Coletto onde esperara ver surgir o vulto do pai durante tanto tempo que a vista se lhe turvava e ela perdia o conhecimento. As pedras brancas que brilhavam aqui eram os ossos dos que tinham desaparecido.
Jacques lia o livro preto da Criação e Esther ouvia os nomes dos que tinham morrido naquela terra, aqueles cujas ossadas se tinham transformado em pedras. Pedia: "Lê-me o que o Rabi Joêl leu no convés do barco quando chegámos." Ele lia lentamente e a sua voz doce tornava-se forte, violenta, fazendo Esther estremecer.
"O Eterno falou a Moisés e disse: sou o Eterno, apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob. Era IAOH, o soberano, não me mostrei a eles como um espírito. Fiz com eles uma aliança dando-lhes a terra de Canaan, esta terra por onde tinham errado, vivendo como estrangeiros. Ouvi por fim os lamentos dos filhos de Israel dominados pelos egípcios e lembrei-me da aliança. Fala com os filhos de Israel e diz-lhes que eu sou o Eterno e quero livrá-los das infelicidades do Egipto, libertá-los da escravidão. E libertá-los-ei estendendo um braço e enviando castigos terríveis. Adoptar-vos-ei como o meu povo e serei o vosso rei. E
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reconhecerão que sou IAOH, o Eterno, porque vos terei salvo da desgraça do Egipto. Levar-vos-ei então para a terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacob e ela vos será entregue como possessão hereditária."
As palavras ressoavam no silêncio da montanha. Jacques debruçava-se para Esther e rodeava-a com o braço. "O que tens? Sentes frio?" Ela abanava a cabeça mas tinha a garganta apertada. "Por que é que há-de haver guerra? Não é possível viver em paz?" Jacques respondia: "Esta tem que ser a última guerra. Nunca mais haverá outras. Então as palavras do livro ter-se-ão cumprido e poderemos ficar na terra que Deus nos concedeu."
Mas a montanha acima da cidade de Haifa estava branca de ossadas. A luz não era suave; queimava os olhos, era violenta e feroz, e o medo estava no vento, no céu azul, no mar. "Estou tão cansada!" dizia Esther. "Como queria poder descansar!" Jacques olhava-a sem compreender. Sobre ele, sobre os seus cabelos e a sua barba loura, nos seus olhos azuis pálidos, a luz era mais doce. A pequena conseguia sorrir. Olhava a grande mão branca entre as suas, tão morenas, tão pequenas, mãos de cigana. Permaneciam estendidos na encosta pedregosa, aspiravam o aroma da murta e dos pinheiros, ouviam a música furtiva do vento.
Quando o sol descia na direcção do mar, Jacques agarrava na mão de Esther e seguiam pelo meio das oliveiras, de terraço em terraço, até às casas da cidade nova. A planície estava à sua frente, com algumas leves colunas de fumo. Os pombos voavam sobre os telhados. No porto havia novos barcos que tinham conseguido furar o bloqueio dos ingleses. Esther e Jacques entravam nas ruas da cidade sem largarem as mãos. Foi assim que ficaram noivos.
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No dia 14 de Maio, pela manhã, as pessoas começaram a chegar à praça de Jaffa, em frente da Grande Mesquita e ao longo da praia. Alguns tinham vindo das quintas dos arredores apenas por algumas horas. Muitos, como Esther, Elizabeth e Jacques Berger, tinham vindo com as malas para iniciar a viagem. Os rapazes e as raparigas formavam grupos ruidosos. Algumas mulheres pobres, acompanhadas pelos filhos, tinham-se abrigado no pinhal porque o sol já brilhava com intensidade. Elizabeth e Esther tinham-se instalado na praia, como os pobres, próximo da cidade velha. Todos esperavam em silêncio, sem saberem o que se iria passar. Dizia-se que era hoje o dia em que tudo começava. Os camiões iam levar as pessoas a Jerusalém.
Iam chegando mais famílias à praia. Eram na sua maioria pessoas vindas da Europa Central, vestidas de negro. Instalavam-se nas dunas ao lado da estrada e esperavam olhando o mar, sem demonstrarem impaciência. Apenas as crianças e os jovens não conseguiam ficar quietos no mesmo sítio, correndo pela praia e conversando uns com os outros. Alguns tinham trazido instrumentos musicais: um acordeão, uma guitarra, uma harmônica. De vez em quando ouviam-se canções.
Ninguém pensava no que se ia passar naquele dia. Era como se estivessem separados do tempo, flutuando sobre a terra. Aquele dia era assim: sem princípio nem fim. Quando os camiões tinham chegado ao campo de emigrantes, em Haifa, ainda era de noite. Esther e
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Elizabeth dormiram vestidas, com as malas prontas ao lado. Rapidamente tinham subido para o camião. Jacques fora num outro camião só com homens, todos armados para o caso de serem atacados na estrada. O sol brilhava quando os camiões entraram em Tel-Aviv. Era por isso que aquele dia parecia não ter tido princípio.
Quando os camiões entraram, cruzaram-se com um comboio de blindados que seguiam em sentido inverso, na direcção de Haifa. Todos os homens desceram das viaturas para os verem passar, gritando e aplaudindo. Jacques veio até junto de Esther, com os olhos brilhantes de emoção, e disse: "São os ingleses que se vão embora. Estamos livres!" Os blindados ingleses rolavam lentamente pela estrada poeirenta e no meio do comboio seguia o automóvel do Alto Comissário Cunningham. Passaram em frente dos homens e das mulheres e desapareceram numa nuvem de poeira rumo ao cruzador Ettryalus que os esperava.
As pessoas na praia começaram a comer pão, azeitonas e fruta. Os jovens tinham assado dois carneiros em fogueiras feitas com madeiras velhas e distribuíam por todos bocados de carne assada. Um dos rapazes veio ter com Esther e estendeu-lhe o prato onde estavam os bocados de carne. Esther serviu-se, assim como Elizabeth, e Jacques também tirou um bocado. O rapaz devia ter uns doze ou treze anos. Possuía um lindo rosto tisnado, cabelos encaracolados e imensos olhos negros, brilhantes como jaspe. Esther perguntou-lhe em francês: "Como te chamas?" Mas ele não compreendia. Jacques traduziu. "Yohanan. Diz que vem da Hungria e também vai para Jerusalém." Afastou-se para distribuir os bocados de carne às famílias que esperavam na praia.
Quando acabaram de comer, lavaram as mãos com areia e água do mar. Jacques Berger pegou no Livro da Criação e começou a ler lentamente, traduzindo, Beha'alote'ha, a passagem que fala da luz suspensa no céu como um meteoro até de manhã e da nuvem que cobria a tenda do tabernáculo e que guiou o povo de Moisés no deserto. Esther ouvia as palavras misteriosas e distantes que ressoavam estranhamente aqui, nesta praia, face ao mar tão azul, sob aquele céu, com os emigrantes que esperavam dispersos, as crianças que brincavam na areia, a música da harmônica vinda sem se saber de onde e o cheiro do fumo. Pensava nas luzes que vira em Saint-Martin da primeira vez
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que entrara na vivenda, nas velas acesas na penumbra e no velho Eizik Salanter, envolto no seu xaile branco, lendo as palavras daquela língua doce e áspera que não compreendia.
Um pouco antes das quatro horas, Esther e Jacques foram até ao museu da cidade velha. Seguiam com a multidão, os jovens e as crianças. Em redor do museu havia soldados armados e milicianos com braçadeiras. A grande avenida estava apinhada de gente e tudo se mantinha silencioso. Os que iam chegando paravam e esperavam sem fazer barulho, sem falar. Saíram de um automóvel homens e mulheres que entraram no museu. Por cima das cabeças, pondo-se na ponta dos pés, Esther viu um homenzinho vestido de preto, com rosto de velho Pastor e uma farta cabeleira branca. Depois, um alto-falante colocado no jardim da velha casa começou a difundir a voz um pouco rouca e velada, e todas as pessoas retiveram a respiração para a ouvirem, mesmo os que não compreendiam o hebreu. Inclinado para Esther, Jacques ia traduzindo as palavras: "Israel é o local onde nasceu o povo judeu; aí nasceram a sua religião, a sua independência, a sua civilização... Para ele e para o Universo, aí foi escrito o Livro, para que fosse dado ao mundo..." Parou de traduzir porque não conseguia falar. Quando a voz se calou repentinamente, fez-se silêncio e depois começou a ecoar um cântico, primeiro longínquo e depois cada vez mais próximo, enchendo toda a rua, as ruas vizinhas, até tão longe que o mundo inteiro devia ouvi-lo. Esther não cantava porque nunca tinha aprendido as palavras, mas tinha a garganta apertada e os olhos rasos de lágrimas. Fez-se de novo silêncio e o alto-falante transmitiu a voz frágil e lenta do velho rabino Maimon que dava a benção. Jacques curvou-se para Esther e disse: "Israel existe, Israel acaba de ser proclamado." Sobre o museu subiu no mastro, flutuando no céu, a bandeira com a estrela azul.
Os jovens corriam pelas ruas, cantando. As mãos davam-se e formavam-se cordões que dançavam, serpenteando. Esther fora agarrada e também corria, já sem fôlego, por ruas desconhecidas, de mão dada com uma rapariga que envergava uma camisola riscada de marinheiro. Depois de tantas canseiras, era uma vertigem, uma loucura. Jacques também corria por ruas deslumbrantes, cruzando-se com Esther, afastando-se de novo. A música e os cantares estavam por toda a parte.
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Sentaram-se num café perto da praia para descansar e beber café e cerveja. A rapariga da camisola riscada chamava-se Myriam e uma outra Alexia. Os rapazes disseram também os nomes: Samuel, Ivan, David. Só falavam yiddish, alemão e um pouco de inglês. Beberam, fumaram e riram, procurando falar uns com os outros como podiam. Nada disso tinha importância. Jacques apertava Esther a si e acariciava-lhe os cabelos. Estava um pouco embriagado.
Recomeçaram a errar pelas ruas. Apesar dos preparativos para o shabbat, os jovens continuavam a dançar e a tocar. Quando caiu a noite, voltaram para a praia, onde os pinheiros cresciam na terra argilosa, no meio de rochas que avançavam até ao mar. Os rapazes apanharam ramos e agulhas de pinheiro e fizeram uma fogueira no meio das pedras para verem a luz brilhar. Quase em silêncio, permaneciam sentados em redor da fogueira, ouvindo o crepitar das chamas e atirando de vez em quando ramos para as alimentar. Nunca tinham visto uma luz tão bela na noite, com o vento soprando do mar.
Quando a fogueira se apagou, estenderam-se no meio das árvores, sobre a caruma dos pinheiros. Esther sentia a terra girar lentamente debaixo dela, como uma jangada transportada pela corrente. Sentia encostado a si o corpo de Jacques e ouvia-lhe a respiração. Ouvia também o som dos outros pares, os corpos que esmagavam as agulhas dos pinheiros e quebravam pequenos ramos. Os lábios do "pastor" procuravam os seus. Sentia o seu corpo tremer. Levantou-se: "Anda, temos de voltar para junto da mamã." Andaram durante um bocado sem falar. Depois, Esther agarrou na mão de Jacques e foram a correr até ao extremo da praia, tropeçando na areia. Encontraram Elizabeth embrulhada no seu velho cobertor, com as costas apoiadas nas malas. Quando chegaram, disse apenas: "São horas de dormir." E deitou-se
na areia.
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Dois dias mais tarde, Esther e Elizabeth seguiam na plataforma traseira de um camião que se dirigia a Jerusalém. O comboio, formado por seis camiões e um jeep americano, avançava lentamente pela estrada quase intransitável através das colinas áridas, a leste de Ramla. Nos camiões da frente seguiam homens armados e Jacques Berger ia com eles. Os quatro camiões de trás transportavam as mulheres e as crianças. Quando afastava o encerado, Esther só conseguia ver a poeira e os faróis acesos do camião seguinte. Quando a poeira às vezes diminuia, distinguia as colinas, os barrancos e algumas casas. O vento era frio e o céu de um azul imutável. E no entanto a guerra estava ali, por toda a parte em seu redor. Havia notícia de que uns agricultores judeus tinham sido assassinados na colónia de Ataroth. Antes de partirem de Tel-Aviv, Jacques tinha lido a Esther a declaração do general Shealtiel afixada nas paredes: "O inimigo volta o olhar para Jerusalém, berço eterno do nosso povo eterno. Será uma batalha selvagem, sem piedade e sem recuo. O nosso destino será a vitória ou o extermínio. Lutaremos até ao último homem pela nossa sobrevivência e pela nossa capital." O exército árabe, comandado por John Bagot Glubb e pelo rei Abdallah, tinha bombardeado a estrada entre Tel-Aviv e Haifa. Os egípcios tinham passado a fronteira e avançavam para se juntarem às tropas da margem oeste do Mar Morto.
Apesar disso, nos camiões ninguém tinha medo. Vivia-se ainda a embriaguês da proclamação de Israel, a correria pelas ruas soalheiras, as canções, a agradável noite na praia, no meio dos pinheiros.
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As pessoas afirmavam que, agora que os ingleses tinham ido embora, tudo se iria resolver. Outros diziam que esta guerra ainda mal tinha começado e que iria ser a terceira guerra mundial. Mas Elizabeth não queria ouvir dizer isto. Também ela sentira a embriaguês e a alegria, agora que a meta estava tão próxima. Tinha os olhos brilhantes, falava e até ria como há muito tempo não fazia. Esther fitava o seu rosto regular emoldurado pelo lenço negro e achava-a jovem e muito bonita.
Durante todas aquelas horas em que tinham esperado pela partida, fora ela que falara de Jerusalém, dos templos, das mesquitas, das cúpulas brilhantes, dos jardins e das fontes. Falava de tudo aquilo como se já o tivesse visto, e talvez tivesse visto em sonhos. A cidade era o lugar mais belo do mundo, onde se realizavam todos os desejos, onde não podia haver guerra porque todos os que tinham sido expulsos e espoliados no mundo e que tinham errado sem pátria podiam finalmente viver em paz.
A caravana de camiões penetrou numa floresta de pinheiros e cedros, atravessada por riachos claros. O comboio deteve-se na aldeia de Latrun e os soldados e emigrantes desceram para se refrescarem. Havia uma fonte e um lavadouro e a água corria com um murmúrio tranqüilo. As mulheres lavaram a cara e os braços, por causa da poeira, e as crianças molhavam-se umas às outras, rindo. Esther bebeu a água fresca longamente, deliciada. Zumbiam abelhas no ar. As ruas da aldeia estavam desertas, silenciosas. Por vezes ouvia-se uma espécie de ribombar de trovoada ao longe, nas montanhas.
Enquanto as mulheres e as crianças bebiam, os homens permaneceram em pé, à entrada das ruas, com as espingardas na mão. O silêncio era estranho, ameaçador. Esther lembrava-se do dia em que tinha chegado com Elizabeth à praça, em Saint-Martin, quando as pessoas se juntavam para partir, os velhos com os casacões pretos, as mulheres com o rosto envolto num lenço, as crianças correndo, sem compreender, e o silêncio era o mesmo. Apenas se ouvia o ribombar, como se houvesse trovoada.
O comboio tornou a pôr-se em marcha. Mais adiante, a estrada atravessava desfiladeiros cheios de rochedos onde a noite já se instalara. Esther afastou o encerado e viu uma coluna de refugiados. Uma
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mulher debruçou-se ao lado dela. "Árabes", foi tudo o que disse. Os refugiados seguiam na borda da estrada, ao lado dos camiões. Eram uma centena, talvez mais, apenas mulheres e crianças. Ao passarem envoltas na nuvem de pó, andrajosas, descalças, com a cabeça envolta em trapos, as mulheres desviavam a vista. Algumas traziam embrulhos à cabeça. Outras tinham malas ou caixas de cartão atadas com cordas. Uma velha transportava mesmo um carrinho de bebê desengonçado carregado de objectos heteróclitos. Os camiões tinham parado e os refugiados passavam lentamente, desviando o rosto e com o olhar ausente. Havia um silêncio pesado, um silêncio mortal sobre aqueles rostos semelhantes a máscaras de poeira e de pedra. Só as crianças olhavam, com o medo nos olhos.
Esther desceu e aproximou-se, tentando compreender. As mulheres desviavam-se e algumas gritavam-lhe palavras duras na sua língua. De repente, destacou-se do grupo uma rapariguinha muito jovem. Dirigiu-se a Esther. Tinha o rosto pálido e fatigado, o vestido cheio de pó e um grande lenço no cabelo. Esther viu que as tiras das suas sandálias estavam rebentadas. A pequena aproximou-se dela até lhe tocar. Os seus olhos brilhavam com uma luz estranha, mas não falava, não pedia nada. Durante um longo momento permaneceu imóvel, com a mão poisada no braço de Esther, como se fosse dizer qualquer coisa. Depois, tirou do bolso do casaco um caderno em branco com capa de cartão preto e na primeira página, ao cimo, à direita, escreveu assim o seu nome, em letras maiúsculas: NEJMA. Estendeu o caderno e o lápis a Esther para que ela escrevesse também o seu. Ficou ainda um momento, com o caderno preto apertado ao peito como se fosse a coisa mais importante do mundo. Por fim, sem pronunciar uma palavra, voltou para o grupo dos refugiados que se afastava. Esther deu um passo na sua direcção para a chamar, para a reter, mas era tarde demais. Teve que tornar a subir para o camião. O comboio retomou a marcha, no meio de uma nuvem de poeira. Mas Esther não conseguia afastar da lembrança o rosto de Nejma, o seu olhar, a sua mão poisada no braço, a lentidão solene dos gestos com que lhe estendera o caderno onde tinha escrito o seu nome. Não conseguia esquecer os rostos das mulheres, os olhares desviados, o medo nos olhos das crianças, nem aquele silêncio que pesava sobre a terra, na sombra dos barrancos,
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em redor da fonte. "Para onde vão?" Fez a pergunta a Elizabeth. A mulher que tinha afastado o encerado fitou-a sem dizer nada. "Para onde vão?" repetiu Esther. A mulher encolheu os ombros, talvez por não compreender. Foi outra mulher, vestida de preto, de rosto muito pálido, que respondeu: "Para o Iraque." Disse aquilo com dureza e Esther não se atreveu a perguntar mais nada. A estrada estava esburacada pela guerra e a poeira formava uma poalha amarelada sob o encerado do camião. Elizabeth mantinha a mão de Esther apertada na sua, como antes, no caminho de Festiona. A mulher disse ainda, olhando para Esther como se tentasse ler-lhe os pensamentos: "Não há inocentes. São as mães e as mulheres dos que nos matam." Esther retorquiu: "Mas as crianças?" Os olhos dilatados pelo medo permaneciam na sua memória e sabia que nada poderia apagar o olhar delas.
À tarde o comboio chegou em frente de Jerusalém. Os camiões pararam numa grande praça. Não havia soldados nem gente armada, apenas mulheres e crianças que esperavam junto de outros camiões. O sol já desaparecia mas a cidade ainda brilhava. Esther e Elizabeth desceram com as malas. Não sabiam para onde ir. Jacques Berger já tinha seguido para o centro da cidade. O ribombar da trovoada estava muito próximo, cada deflagração fazia tremer o chão e via-se o clarão dos incêndios. Em frente das duas erguiam-se as muralhas da cidade, as colinas cobertas de casas com janelas estreitas e, talvez, as silhuetas fabulosas das mesquitas e dos templos. Vinda do centro, subia no céu cor de cobre uma grande fumarada negra que se espalhava, formando uma nuvem ameaçadora onde a noite começava.
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NEJMA
Campo de Nour Cbams, Verão de 1948
Esta é a recordação dos dias que vivemos em Nour Chams, tal como eu, Nejma, resolvi escrevê-la, em memória de Saadi Abou Talib, o Baddawi, e da nossa tia Aamma Houriya. Também em memória da minha mãe, Fatma, que não conheci, e do meu pai, Ahmad.
O sol não brilha para todos? Oiço esta interrogação a todo o momento. Quem há mais de um ano a fez está agora morto. Foi enterrado no cimo da colina que domina o campo. Foram os filhos que abriram a terra à força de enxada, atirando as pedras para dois montes iguais de cada um dos lados; enterraram-no embrulhado num velho lençol que eles próprios coseram mas que era curto demais e tornava-se estranho ver o corpo hirto do velho a descer para a cova envolto nesse lençol de onde saíam os pés nus. Os filhos tornaram a colocar a terra com as enxadas e os miúdos mais pequenos ajudaram-nos com os pés. Depois, colocaram por cima as pedras maiores para que os cães vadios não reabrissem a campa. Eu pensava nas histórias que a nossa tia nos contava nos dias de chuva, nesses lobisomens, nesses lobos esfomeados que devoravam os mortos. Aamma Houriya gostava de contar histórias de terror quando o céu estava sombrio, histórias de diabos e de almas do outro mundo. Quando o velho Nas morreu, antes mesmo de sentir o desgosto era precisamente nisso que eu pensava, na voz de Aamma Houriya contando coisas ao som da chuva.
Quando os soldados vieram a casa dele para o levarem para o campo,
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 o velho perguntou-lhes aquilo e, desde essa altura, não cessava de repetir a interrogação. com certeza que os soldados não compreenderam. E se tivessem compreendido, talvez rissem: "O sol não brilha para todos?"
Sol a mais tinha o nosso campo naquele Verão, quando a terra abria fendas e os poços secavam uns a seguir aos outros. O velho Nas morreu no fim do Verão, quando as rações começaram a tornar-se mais escassas. As pessoas esperavam a chegada do camião das Nações Unidas durante horas, na colina pedregosa acima do campo, porque é o lugar de onde se vê melhor a estrada de Tulkarm.
Quando chega o camião, sabemos muito tempo antes porque do alto daquela colina se vê perfeitamente a nuvem de pó a oeste, do lado de Zeita. Começam então as crianças a gritar e a cantar. Gritam e cantam interminavelmente as mesmas palavras: "A farinha!... A farinha!... O leite!... A farinha!..." Depois, descem a correr pela colina abaixo até à entrada do campo e batem com paus nos bidões de combustível vazios ou em velhas caixas de conserva, fazendo tanto barulho que os velhos os amaldiçoam e todos os cães vadios se põem a ladrar. O velho Nas pode agora ouvi-los do cimo da sua colina e é o primeiro a ser avisado da chegada dos camiões que trazem farinha, óleo, leite e carne seca. Talvez não tivesse morrido se subisse com as crianças ao cimo da colina de pedras. Mas lá em baixo, nas ruas do campo, o barulho vinha de todos os lados, o barulho das vozes das pessoas que desesperam e foi isso que ele ouviu e que lhe foi roendo o coração e foi por isso que ele não quis continuar a viver. Morreu dia após dia, como uma planta que vai definhando.
O boato surgiu primeiro em Jenim e espalhou-se depois por todos os campos, em Fariaa, em Balata, em Askar: as Nações Unidas abandonam-nos, não nos vão dar mais comida nem medicamentos e vamos morrer todos. Morrerão primeiro os velhos, porque são os mais fracos, as velhas, as crianças recém-desmamadas, as parturientes e os que sofrem de febres. A seguir vão morrer os jovens, mesmo os rapazes mais fortes e corajosos. Ficarão como arbustos ressequidos pelo vento do deserto e morrerão. Assim decidiram os estrangeiros, de forma a que desapareçamos para sempre da face da terra.
Hassan e Said, os dois filhos de Nas, são fortes e viris, de elevada
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estatura, pernas musculosas, rosto tisnado pelos trabalhos do campo e olhar ardente de entusiasmo. Mas quando enterraram no cimo da colina pedregosa o pai embrulhado no lençol, o boato, o que se dizia, penetrou dentro deles. Agora já nem sequer esperam a chegada dos camiões dos estrangeiros. Talvez os odeiem. Talvez sintam vergonha daquilo em que se transformaram, uma espécie de mendigos pedindo comida às portas das cidades.
O campo de Nour Chams começa pouco a pouco a mergulhar no desânimo. Quando chegámos no camião das Nações Unidas coberto com um encerado não sabíamos que este lugar ia ser a nossa nova vida. Pensávamos todos que seria por um dia ou dois, antes de seguirmos viagem. Quando parassem os bombardeamentos e os combates nas cidades, os estrangeiros dariam a cada um de nós um terreno, uma horta para cultivar, uma casa onde pudéssemos recomeçar a viver como dantes. Os filhos do velho Nas tinham uma quinta em Tulkarm. Abandonaram tudo, os animais, as ferramentas, até mesmo as reservas de cereais e de azeite, e as mulheres deixaram também os utensílios de cozinha e as roupas porque também julgavam que partiam por um ou dois dias, o tempo de se organizarem as coisas. Tinham pedido ao pastor vizinho, que não fazia parte do comboio das pessoas deslocadas, que olhasse pela casa durante a sua ausência, não deixasse roubar as galinhas e desse de beber às cabras e às vacas. Como paga, tinham-lhe dado a cabra mais velha do rebanho, que era estéril e já não dava leite. Quando subiram para o camião, o velho pastor beduíno ficou a vê-los partir com os olhos semelhantes a duas fendas rasgadas no rosto, segurando por uma corda a velha cabra poeirenta que tentava mastigar um jornal caído na estrada. Fora a última imagem que tinham trazido da sua casa natal; o camião, ao partir, ocultara tudo numa nuvem de pó.
Olho o campo do alto da colina pedregosa, sentada numa rocha não muito afastada do lugar onde foi enterrado o velho Nas. Pensaria ele nesta colina quando perguntava: o sol não brilha para todos? Aqui, a luz queima permanentemente a vastidão do deserto, a luz do sol é tão forte que as outras colinas, do lado de Yaabad e de Jenin, parecem avançar como vagas.
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As ruas recticulares do campo estendem-se abaixo de mim. Tornou-se a nossa prisão dia-a-dia e sabe-se lá se não será também o nosso cemitério. Na planície coberta de pedras, limitada a este pelo leito do oued seco, o campo de Nour Chams forma uma grande mancha escura, cor de ferrugem e lama, em que desemboca a estrada poeirenta. Cá em cima, no alto da colina, no silêncio do princípio da tarde, gosto de imaginar os telhados de Akka, a diversidade dos telhados planos, das cúpulas, das altas torres e das antigas muralhas sobrepostas ao mar, onde se vêem as gaivotas planando no vento e as velas esguias dos barcos de pesca. Agora compreendo que nada daquilo nos voltará a pertencer. Akka, quando os soldados árabes esfarrapados, de cabeças ensangüentadas e pernas embrulhadas em panos à guisa de ligaduras, desarmados, com o rosto cavado pela fome e pela sede, alguns ainda crianças mas já transformados em homens pelo cansaço e pela guerra, e a multidão das mulheres, das crianças, dos desgraçados, que se estendia até ao horizonte, chegaram junto das muralhas, não ousando franquear as portas e estendendo-se no chão dos olivais enquanto esperavam que lhes déssemos água e pão e um pouco de leite coalhado. Era então Primavera e contavam o que se tinha passado em Haifa, contavam os combates nas ruas estreitas e dentro do mercado coberto da cidade velha e os inúmeros corpos que jaziam de borco. As pessoas tinham-se então dirigido para Akka, avançando à beira-mar, pela imensa praia de areia, durante todo o dia, queimadas pelo sol e pelo vento, até chegarem às muralhas da nossa cidade.
Lembro-me que nessa noite vagueei sozinha, envergando um vestido muito comprido e embrulhada em véus, curvada e com um pau na mão para fingir que era uma velha procurando alguma comida, porque diziam na cidade que havia bandidos misturados com os fugitivos e que violavam as raparigas. Vi, às portas da cidade, todas aquelas pessoas estendidas no chão, entre os arbustos e as oliveiras, como se fossem milhares de mendigos. Estavam esgotadas mas não dormiam. Tinham os olhos dilatados pela febre e pela sede. Alguns tinham conseguido fazer fogueiras que brilhavam na praia de longe em longe, na penumbra do crepúsculo, iluminando-lhes as faces de vencidos. Velhos, mulheres, crianças. Tão longe quanto se conseguia distinguir, na praia e nas dunas, estavam essas pessoas, como se as tivessem espalhado
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pelo chão. Não se queixavam, não diziam nada. E esse silêncio era ainda mais terrível do que gritos e lamentos. Havia apenas, por momentos, o choramingar de um bebê que logo se calava. E o som do mar na praia, as longas vagas que se estendiam e vinham aflorar os barcos encalhados.
Andei por momentos no meio daqueles corpos e sentia uma tal sensação de piedade que me esqueci de imitar o andar de uma velha. Depois, de repente, faltou-me a coragem. Voltei para a cidade. À entrada, um homem armado barrou-me a passagem, perguntando com rudeza: "Onde vais?" Disse o meu nome e onde era a casa do meu pai. Iluminou-me o rosto com uma lâmpada eléctrica e a seguir fez troça de mim, perguntando o que fazia uma rapariga da minha idade sozinha fora de casa. Segui o meu caminho sem lhe responder. Sentia-me envergonhada com tudo o que tinha visto.
Oiço depois as armas crepitar em torno da cidade e os tiros de canhão que fazem tremer a terra, quando os drusos travaram batalha com a Haganah, dia e noite, antes do Verão. Os homens válidos partiram para a guerra e Ahmad, o meu pai, também seguiu com eles para o norte. Confiou-me a casa, deu-me a sua benção e partiu. Também ele acreditou que em breve estaria de volta, mas nunca mais voltou. Soube mais tarde que tinha sido morto durante o bombardeamento de Nahariyya.
Vieram a seguir os camiões cobertos com encerados para transportarem os habitantes civis até um lugar seguro. Os soldados chegaram, instalaram-se na nossa casa e eu subi para um camião.
Os comboios de camiões cobertos atravessavam as portas de Akka, sob o olhar dos que ficavam, seguindo em todas as direcções: para Kantara, para Nabatieh, ou então para Gaza, a sul, ou para Tulkarm, Jenin, Ramallah. Segundo se dizia, alguns iam mesmo até à cidade de Salt, em Amman, na outra margem do rio Jordão. Aamma Houriya e eu não sabíamos para onde íamos. Não sabíamos que íamos juntar-nos aos corpos estendidos no chão que vira uma noite perto das muralhas.
O campo de Nour Chams é com certeza o fim da terra porque não me parece que possa haver mais alguma coisa para além, que se possa esperar mais nada. Os dias parecem ter-se amalgamado. Assemelham-se àquela fina poeira que vem de todos os lados, invisível e impalpável,
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mas que cobre tudo: a roupa, os tectos das tendas, os cabelos e até a pele. Uma poeira que pesa sobre mim, que se mistura na água que bebo, cujo gosto sinto nos alimentos e na língua, quando acordo de manhã.
Há três poços em Nour Chams, três buracos abertos no leito seco do rio, rodeados por cercaduras de pedras achatadas e cobertos com tábuas velhas. Pela manhã, de madrugada, quando o sol ainda está oculto por trás das colinas e o céu é imenso e puro, vou com os baldes buscar água, a água da noite, ainda fresca e límpida porque ninguém a remexeu. Começa a fila ininterrupta de mulheres e crianças na direcção dos poços. A princípio, quando chegámos ao campo, havia ainda o som das vozes e dos risos como em qualquer outra parte do mundo, num local sem guerra e sem prisões. As mulheres contavam as novidades umas às outras, faziam mexericos, inventavam histórias como se estivessem apenas em viagem e brevemente fossem voltar para casa.
Perguntavam: "De onde és?" E as vozes claras pronunciavam os nomes dos lugares onde tinham nascido, onde tinham casado, onde os filhos tinham nascido também: Qalqiliya, Jaffa, Qaqun, Shafa Amr; os nomes das pessoas que tinham conhecido, as velhas ruas de Akka, de Al-Quds, de Nablus, Hamza que vivia perto da gruta de Makpela, Malika, a mãe do sapateiro que tinha a loja próximo da sinagoga do Rabi Yokhanan, e Aicha, que tinha três filhas e vivia ao lado da grande igreja dos cristãos, perto da cidadela onde Glubb Pacha instalara os canhões. Ouvia aqueles nomes, Moukhalid, Jebaa, Kaisariyeh, Tantourah, Yajour, Djaara, Nazira, Djitt, Ludd, Ramleh, Kafr Sabá, Rãs al-Ain, Asqalan, Gazza, Tabariya, Roumaneh, Araara, todos aqueles nomes que ressoavam estranhamente no ar frio, em redor dos poços, como se pertencessem já a um outro mundo...
Aamma Houriya estava demasiado cansada para poder vir ouvir os nomes junto do poço. Assim, quando eu voltava com os baldes cheios de água, poisava-os em frente da porta da nossa cabana e contava-lhe tudo o que tinha ouvido, até mesmo os nomes que não conhecia. Escutava tudo abanando com a cabeça como se aquilo tivesse um significado profundo que eu não podia compreender. Eu tinha uma memória excepcional.
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Isto foi no princípio, porque depois, pouco a pouco, o som das vozes diminuiu à medida que a água dos poços se foi tornando mais rara e lamacenta. Agora, era preciso deixar a água repousar nos baldes durante uma ou duas horas antes de a deitarmos nas bilhas, inclinando cuidadosamente o balde para a lama ficar no fundo. O sol erguia-se todas as manhãs sobre uma terra cada vez mais ressequida, mais vermelha, calcinada, com esquálidos arbustos espinhosos e acácias que não davam sombra, o vale do oued seco e as casas de tábuas e cartão, as tendas rasgadas e os abrigos improvisados com encerados de carros, bidões de petróleo e pedaços de pneus presos uns aos outros com arames de ferro à laia de tecto. Pela manhã, todos ficavam a ver o sol surgir por trás das colinas, depois da oração, excepto a velha Leyla, que tinha o destino escrito no nome, pois era cega e os seus olhos brancos não podiam distinguir o sol. Ficava sentada numa grande pedra em frente da sua gruta, murmurando orações ou insultos, esperando que alguém lhe trouxesse qualquer coisa para beber e para comer e todos sabíamos que morreria no dia em que nos esquecessemos dela. Os filhos tinham sido todos mortos na guerra, durante a tomada de Haifa, e ficara só no mundo.
Pouco a pouco, até as crianças tinham deixado de correr, de gritar e de se baterem nos arredores do campo. Agora, ficavam em torno dos abrigos, sentadas no pó, à sombra, famélicas e semelhantes a cães, deslocando-se com o movimento do sol. A excepção era quando se aproximava a hora da distribuição de alimentos, com o sol no zénite.
Observava-as então e eram um espelho da minha própria fraqueza, da minha própria degradação. As feições infantis pareciam já vincadas por uma incompreensível velhice em muitas delas, sobretudo nas pobres, nos órfãos de pai e mãe e naquelas que tinham fugido das aldeias costeiras sob os bombardeamentos, sem dinheiro e sem provisões. Rapariguinhas magras, de ombros curvados, com o corpo flutuando em vestidos demasiado grandes para elas; rapazinhos semi-nus, de pernas arqueadas e joelhos excessivamente volumosos, com a pele de um cinzento escuro, cor de cinza, o couro cabeludo atacado de tinha e os olhos cobertos de moscas. Eram sobretudo os rostos que eu olhava, que fixava porque não queria ver a expressão que não compreendia, o seu olhar vazio, distante, estranho, onde a chama da
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febre brilhava. Quando deambulava pelas ruas de Nour Chams sem destino, ao acaso, seguindo as filas de casas, as paredes de cartão alcatroado, as tábuas velhas, eram esses rostos de criança que via por todo o lado, esses olhares vazios e distantes que me assediavam. E, como num espelho, via o meu próprio rosto, não o de uma rapariga de dezasseis anos, beleza velada que os olhos impacientes dos jovens querem desvendar, mas o de uma velha enrugada, murcha, escurecida pela infelicidade, ressequida pela aproximação da morte.
Era esse o rosto que eu via por todo o lado do campo, o meu rosto e as minhas mãos emagrecidas, com as veias salientes, e a silhueta do meu corpo frágil e fugidio como uma sombra. Os outros desviavam os olhos ou então fitavam-me sem pestanejar na sombra do seu tarh, como do fundo de uma gruta, sem dizerem nada mas com uma espécie de muda loucura.
Agora, até nos poços as mulheres tinham deixado de falar. Já não se queixavam nem diziam os nomes das cidades e das pessoas desaparecidas. com a seca estival, a água descera ainda mais no fundo dos poços e o balde baloiçando na extremidade da corda raspava um fundo lamacento, quase negro.
A água tinha-se tornado tão rara que já não nos podíamos lavar nem lavar a roupa. Os fatos das crianças estavam sujos de excrementos, de comida e de terra e os vestidos das mulheres tinham-se tornado rígidos de tanta sujidade, semelhantes a cascas.
As velhas, com o rosto escuro e os cabelos emaranhados, tinham um cheiro a cadáver que me dava a volta ao estômago. Partilhávamos nessa altura a casa com uma velha camponesa do litoral (de Zarqa). O cheiro da velha tornara-se-me tão insuportável que adquirira o hábito de dormir fora, na poeira, enrolada num pano velho.
Só me sentia bem quando me podia afastar do campo. Logo pela manhã, trepava ao alto da colina pedregosa, até ao túmulo do velho Nas. Um dia, pelo caminho, vi pela primeira vez um animal morrer de sede. Era a cadela branca de Said, o filho mais novo de Nas, que eu conhecia bem porque o velho se lhe tinha afeiçoado no fim da vida e a cadela ficava muitas vezes ao lado dele deitada, com as patas da frente bem esticadas no chão e a cabeça erguida. Acho que não tinha nome, mas seguia o velho para todo o lado onde ele ia. Quando morreu, a
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cadela seguiu-o até ao túmulo, no topo da colina, e só desceu no dia seguinte. Depois, todas as manhãs, subia até lá cima e descia ao cair da noite. Mas a água tinha-se tornado preciosa e quando a encontrei, uma manhã, estava a morrer. Arquejava com tanta força que comecei a ouvi-la logo desde cá de baixo. No meio das sebes espinhosas, à luz do sol nascente, lá estava ela, magra, sem forças, semelhante a uma mancha. Aproximei-me até quase lhe tocar, mas não me reconheceu. Estava já do lado da morte, os olhos vítreos, o corpo percorrido por arrepios, a língua negra e inchada saindo da boca. Fiquei a seu lado até ao fim, sentada no chão, enquanto a luz do sol se ia tornando mais intensa. Pensava no que dizia o velho Nas, naquela interrogação que repetia constantemente, como um refrão: "O sol não brilha para todos?" Agora, o sol ia bem alto no céu, queimava a terra sem esperança, queimava o rosto das crianças, brilhava intensamente sobre o pelo da cadela moribunda. Nunca sentira aquilo antes, aquela espécie de maldição, aquela força implacável da luz sobre uma terra onde a vida se desfaz e foge, onde cada dia que começa rouba qualquer coisa ao dia anterior, onde o sofrimento é imóvel, cego, impossível de compreender como os resmungos da velha Leyla na sua gruta.
Foi por isso que Saadi Abou Talib, o Baddawi, que veio a ser mais tarde meu marido e que não sabia ler nem escrever, quando soube que eu tinha andado na escola em al-Jazzar me pediu para escrever tudo o que sofremos aqui, no campo de Nour Chams, para que isso se saiba e ninguém ouse esquecê-lo. E eu ouvi-o e foi por isso que, dia-a-dia, descrevi a nossa vida nos cadernos de escola que tinha trazido comigo. Foi Ahmad, o meu pai, antes de partir para o norte de onde nunca mais regressou, que quis mandar-me aprender a ler e a escrever como se eu fosse um rapaz para poder conhecer as suras do Livro e calcular e resolver problemas de geometria como sabe fazer qualquer deles. Teria ele pensado que um dia eu me serviria da escrita para encher estes cadernos com as minhas memórias? Acho que aprovaria e foi por isso que dei ouvidos ao que me dizia Saadi, o Baddawi.
E também escrevi para ela, para aquela que escreveu o seu nome no alto do caderno, na estrada da fonte de Latrun, Esther Greve, na esperança de que um dia leia isto e venha ter comigo. Nesse dia ela veio e eu li o meu destino no seu rosto. Estivemos juntas um breve
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instante, como se desde sempre devêssemos encontrar-nos. Quando tiver acabado de escrever estes cadernos, vou dá-los a um soldado das Nações Unidas para que ele lhos entregue, onde quer que ela esteja. É por isso que tenho força para escrever, apesar da solidão e da loucura que me rodeiam.
Falei da morte da cadela branca, do fim do seu sofrimento enquanto o sol subia impiedosamente no céu por cima da colina de pedras, porque era a primeira vez que via a morte. Já tinha visto em Akka homens e mulheres mortos, deitados nas suas esteiras em quartos muito limpos, muito brancos, mortos que pareciam dormir no lençol muito branco e muito limpo que iam coser sobre eles, com uma zona sombria rodeando os olhos de pálpebras descidas e os lábios que eram mantidos fechados por um estreito fio que passava por baixo dos maxilares e se perdia nos cabelos. Por exemplo, a minha tia Raissa e o meu avô Mohamad, frios, imóveis, um pouco desajeitados na morte como se ainda não estivessem habituados. Depois, os caixões que eram metidos nos túmulos com a cabeça voltada para o sul, o trabalho dos coveiros e os gritos estridentes das carpideiras profissionais. O próprio Nas, o primeiro, tinha partido sem mistério, como uma chama que se apaga e dele apenas vira aquela forma embrulhada no velho lençol demasiado curto e os dois pés descalços que se inclinavam para o fundo da terra.
Mas a cadela branca tinha morrido realmente, eu vira o terror espavorido do seu olhar, os olhos vítreos, tinha ouvido o esforço da sua respiração que não queria parar, tinha sentido sob a minha mão o estremecimento longo e doloroso e depois o frio silêncio do seu corpo, enquanto o sol iluminava, impiedoso, o pelo cheio de pó. Soube então que a morte tinha entrado no nosso campo. Agora, ia levar os outros animais e os homens e as mulheres e as crianças uns a seguir aos outros. Corri pelo meio dos arbustos até ao alto da colina, de onde se via a estrada de Attil, de Tulkarm, as colinas de Jenin, a mancha escura do oued seco, tudo o que se transformara no nosso mundo e nos mantinha prisioneiros. Por que estávamos ali? Porque não partíamos rumo a oeste, atravessando as colinas, na direcção do mar que nos podia salvar?
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A maior parte dos habitantes do campo de Nour Chams vinha das montanhas. Tinham vivido nesses vales vermelhos, com árvores espinhosas espalhadas, por onde avançam lentamente os rebanhos de cabras guiados por uma criança. Não conheciam mais nada e nunca tinham visto o mar. Nem Aamma Houriya pensava nisso.
Mas eu tinha nascido em Akka, fora lá que crescera, na praia, ao sul da cidade, mergulhando nas ondas que vinham até às muralhas, perto da fortaleza dos ingleses, ou então junto às paredes da fortaleza dos franceses, prescrutando as velas esguias dos pescadores para ser a primeira, no meio de todas as crianças, a descobrir o barco do meu pai. Parecia-me que se pudesse ver o mar uma vez mais a morte deixaria de ter importância, não teria mais domínio sobre mim, nem sobre Aamma Houriya. Então o sol deixaria de ser tão implacável, os dias não roubariam o alento aos dias precedentes. Agora, tudo isso me era proibido.
Quando os soldados estrangeiros nos fizeram subir para os camiões para nos trazerem para aqui, para o fim da terra, para este lugar de onde não se pode ir mais longe, compreendi que nunca mais reveria aquilo que amava. Onde estão as velas dos barcos que deslizam pela manhã, rodeadas de gaivotas e pelicanos?
No olhar das crianças aninhadas na sombra das suas cabanas, imóveis, semelhantes a cães vadios com que ninguém se preocupa, vi a minha própria velhice, o meu próprio fim: o corpo magro e enrugado, a pele sem viço, a cabeleira, dantes tão bonita, cobrindo-me as costas até aos rins como uma capa de seda, agora transformada neste emaranhado sujo, cheio de poeira e espinhos, devorado pelos piolhos, e o corpo tão leve, as mãos e os pés enegrecidos, onde as veias são salientes como nas mãos e nos pés das mulheres idosas.
Há já muito tempo que ninguém em Nour Chams tem espelho. Quando os soldados nos revistaram as bagagens levaram tudo o que pudesse servir de arma: as facas, as tesouras e também os espelhos. Receavam por eles? Ou temiam que os utilizássemos contra nós próprios?
Nunca tinha pensado nos espelhos antes. Era natural poder ver o meu rosto. Actualmente, compreendi que sem um espelho somos diferentes, deixamos de ser a mesma pessoa. Talvez os soldados que os tiraram soubessem disso. Talvez adivinhassem como olharíamos
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com inquietação o rosto dos outros, como tentaríamos adivinhar neles aquilo em que nos tínhamos tornado para tentarmos recordar-nos de nós mesmos como do nosso próprio nome.
Cada dia, cada semana que passava em Nour Chams trazia mais homens, mais mulheres, mais crianças.
Lembro-me agora como chegou a minha tia Houriya. Embora não me fosse nada, pois tinha chegado alguns dias depois de mim, com os refugiados vindos de al-Quds, chamava-lhe tia porque gostava dela como se fosse minha verdadeira parente. Chegou a Nour Chams como eu, num camião coberto das Nações Unidas. A sua única bagagem era uma máquina de costura. Como não tinha casa, levei-a para a cabana de tábuas em que vivia só, na parte do campo encostada à colina pedregosa. Quando foi a última a descer do camião, vi-a tal como a veria até ao fim, muito digna e com um ar altivo no meio de todos nós já cansados das provações: uma figura serena, muito direita no chão poeirento. Trazia vestido o fato tradicional, a longa galabieh de tecido claro, o shirwal preto, o rosto velado de branco, os pés com sandálias incrustadas de cobre. Os recém-chegados tinham reunido as suas bagagens e começado a avançar para o centro do campo, tentando encontrar um abrigo contra o sol, uma habitação. O camião dos estrangeiros tinha partido já para Tulkarm, envolto numa nuvem de pó. Ela permanecia imóvel, de pé ao lado da máquina de costura, como se esperasse outro camião que a levasse para mais longe. Depois, no meio das crianças que a olhavam, escolheu-me talvez por eu ser a mais velha. Disse: "Indica-me o caminho, minha filha." Disse-me aquilo, pronunciou a palavra benti, minha filha, e creio que foi por isso que a chamei Aamma, tia, como se ela me tivesse vindo visitar a Nour Chams, como se fosse por ela que eu esperava.
Foi do seu rosto que primeiro gostei, quando ela tirou o véu, na cabana. A pele tinha uma cor de cobre escuro e os olhos garços brilhavam estranhamente, como se neles houvesse uma luz especial quando me olhava, simultaneamente calmante e perturbadora. Talvez soubesse ver para além das coisas e das pessoas, como alguns cegos.
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Aamma instalou-se na cabana em que eu vivia sozinha. Instalou a máquina de costura, embrulhada em panos por causa da poeira. Escolheu a parte da casa que ficava mais próxima da porta. Dormia no chão, em cima de um lençol que dobrava sobre si mesma de forma a desaparecer por completo. Durante o dia, quando acabava de preparar a comida, usava de vez em quando a máquina de costura para consertar roupa das pessoas que lhe pagavam com o que podiam, comida ou cigarros mas nunca dinheiro, porque aqui, no nosso campo, o dinheiro já não servia para nada. Foi fazendo isso pelo menos enquanto teve linhas. As mulheres traziam-lhe pão, açúcar, chá ou azeitonas. Mas às vezes não tinham mais nada para dar senão agradecimentos e isso bastava.
Belas eram as noites, por causa das histórias. Às vezes, de improviso, sem se saber porquê, ao fim da tarde, quando o sol declina e desaparece nas brumas para o lado do mar, ou então quando o vento arrasta as nuvens e o céu resplandece, com o crescente da lua erguido como um sabre, Aamma começava a contar uma história de Djinn. Sabia, sentia que era o momento de contar. Sentava-se à minha frente e os seus olhos tinham um fulgor estranho quando me dizia: "Ouve, vou-te contar uma história de Djinn." Conhecia os Djenoune, tinha-os visto, semelhantes a labaredas vermelhas que dançassem à noite no deserto. De dia não era possível vê-los nunca, ocultavam-se na claridade da luz. Mas à noite apareciam. Viviam em cidades, como os humanos, com torres e muralhas, cidades com lagos e jardins. Só ela sabia onde eram essas cidades e tinha mesmo prometido levar-me lá quando a guerra acabasse.
Começava então a contar uma história. Sentava-se em frente da porta da nossa cabana, com o rosto voltado para fora, sem véu, porque não era apenas para mim que contava. Eu ficava sentada dentro de casa, na sombra, muito perto dela para lhe ouvir a voz.
Iam chegando as crianças da vizinhança, umas a seguir às outras. Avisavam-se mutuamente e sentavam-se em frente da casa, no pó, ou então ficavam de pé, encostados à parede de tábuas. Quando Aamma Houriya começava a contar uma história de Djinn tinha uma voz diferente, uma voz nova. Não era a sua voz de todos os dias mas uma voz mais abafada, mais grave, que nos obrigava a ficar em silêncio
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para melhor a ouvirmos. À tarde não havia um ruído no campo. A sua voz era como um murmúrio mas conseguíamos ouvir todas as palavras e nunca mais esquecíamos.
Também o rosto de Aamma Houriya se modificava pouco a pouco. Para a ouvir melhor, estendia-me no chão, em frente da porta, e via o seu rosto animar-se. Os olhos brilhavam mais, despediam fulgores. Mimava as expressões, o seu rosto exprimia o medo, a cólera, o ciúme. Mimava também as vozes, ora graves e surdas, ora agudas, estridentes, ou lamentosas. As mãos gesticulavam como se dançassem, fazendo cantar as pulseiras de cobre. Mas o resto do corpo permanecia imóvel, sentada de pernas cruzadas à entrada da porta.
Eram histórias maravilhosas que Aamma Houriya nos contava, sentada no pó em frente da cabana, enquanto a luz do sol se ia adoçando e o peso do dia diminuía. Histórias que nos aterrorizavam, com homens que se transformavam em lobos ao atravessar uma ribeira, ou mortos que saíam dos túmulos para respirar. Histórias de almas do outro mundo, de cidades de mortos perdidas algures no deserto e de onde nunca mais saía o viajante extraviado que nelas se aventurasse. Histórias do Djinn que se torna marido de uma mulher, ou de uma Djenna que se apodera de um homem e o leva até sua casa, no cimo das montanhas. Quando sopra o vento deserto, há um Djinn mau que entra no corpo das crianças e as faz enlouquecer, subir aos telhados das casas como se fossem pássaros ou saltar para o fundo de poços como se fossem sapos.
Contava-nos também histórias de mau olhado, quando Bayrut, a feiticeira, enfeitiça a mãe de um bebê e a convence de que é sua tia.
A mulher ausenta-se por um instante e Bayrut apodera-se do bebê, colocando no seu lugar, no berço, uma grande pedra envolta em panos. Depois, coze a criança e dá-a a comer à própria mãe. Mostrava-nos então como resistir ao mau olhado, colocando a mão em frente da cara e escrevendo na testa o nome de Deus com água misturada com cinzas. Mostrava-nos como podíamos assustar as feiticeiras soprando na mão aberta um pouco de areia. Também contava histórias de Aicha, a Africana, cruel e negra, disfarçada de escrava, que comia o coração das crianças para permanecer imortal. Quando Aamma Houriya me agarrava na mão, me fazia sentar a seu lado em frente da casa
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e perguntava: "O que é que te vou contar esta tarde?" eu respondia imediatamente: "Uma história da velha Aícha, a imortal!"
Esquecia quem era e onde estava, esquecia os três poços secos, as barracas miseráveis onde os homens e as mulheres se estendiam no chão esperando a noite, esperando o desconhecido, esquecia as crianças esfomeadas que espreitavam no cimo da colina pedregosa a chegada dos camiões das Nações Unidas e que, quando viam a nuvem de pó na estrada, gritavam: "O pão! A farinha! O leite! A farinha!" E esse pão que se distribuía, duro, amargo, à razão de duas fatias por dia e por pessoa, e às vezes apenas uma. Esquecia as chagas que cobriam os corpos das crianças, as mordidelas dos piolhos e das pulgas, os calcanhares gretados, os cabelos que caíam às mãos cheias, a conjuntivite que queimava as pálpebras...
Nem sempre o que Aamma Houriya contava era para nos meter medo. Quando via que estávamos desanimadas, que as crianças estavam cansadas e com o rosto marcado pela fome e que o ardor do sol era insuportável, dizia: "Hoje é dia para uma história de água, uma história de jardim, uma história de cidade com fontes que cantam e jardins cheios de aves."
A voz era mais doce e os olhos brilhavam com uma luz mais alegre quando começava a sua história:
"Antigamente, como sabem, a terra não era o que é hoje. Era habitada ao mesmo tempo pelos Djenoune e pelos homens e assemelhava-se a um grande jardim rodeado por um rio mágico que podia correr nos dois sentidos. De um lado, ia para o poente e do outro para o nascente. E esse lugar era tão belo que o chamavam Firdous, o paraíso. Segundo me disseram, não era muito longe daqui, sabiam? Ficava à beira-mar, próximo da cidade de Akka. Ainda hoje há uma aldeiazinha com esse nome de paraíso e diz-se que todos os seus habitantes são descendentes dos Djenoune. Se é verdade ou mentira não vos sei dizer. Mas nesse lugar era eternamente Primavera, os jardins estavam sempre cheios de flores e de frutos, as fontes nunca secavam e nunca faltava comida aos seus habitantes. Viviam de frutos, de mel e de ervas, pois desconheciam o gosto da carne. No meio desse grande jardim havia um palácio magnífico, da cor das nuvens, e nesse palácio viviam os Djenoune, pois eram eles os donos daquela terra, fora a eles
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que Deus a confiara. Nesse tempo, os Djenoune eram bons e não faziam mal a ninguém. Os homens, as mulheres e as crianças viviam no jardim em redor do palácio. O ar era tão suave e o sol tão clemente que não precisavam de casa para se protegerem e nunca havia Inverno nem frio. E agora, meus filhos, vou contar-vos como tudo se perdeu. Porque nesse lugar onde outrora se encontrava o jardim de tão doce nome, Firdous, o paraíso, nesse jardim cheio de flores e de árvores onde cantavam permanentemente as fontes e os pássaros, nesse jardim onde os homens viviam em paz comendo apenas frutos e mel, agora é a terra sem água, a terra áspera e nua, sem uma árvore, sem uma flor, e os homens tornaram-se tão maus que travam uma guerra cruel e impiedosa sem que os Djenoune os ajudem."
Aamma Houriya parava de falar. Ficávamos imóveis, na expectativa do que se seguiria. Lembro-me que foi enquanto ela contava esta história que o jovem Baddawi, Saadi Abou Talib, chegou pela primeira vez ao campo. Sentou-se sobre os calcanhares, um pouco afastado, para ouvir o que dizia a nossa tia. Dessa vez, Aamma Houriya fez um longo silêncio, para que pudéssemos ouvir o bater do nosso coração, os ruídos ligeiros que precedem o anoitecer vindos das outras casas, o choro dos bebês, o ladrar dos cães. Conhecia o valor do silêncio.
Continuou: "Nesse jardim, o mais belo era a água. Era uma água como vocês nunca viram, nem provaram, nem sonharam, uma água tão límpida, tão fresca e pura que os que dela bebiam tinham em si a eterna juventude, não envelheciam, nunca morriam. Os regatos corriam pelo meio do jardim e iam dar ao grande rio que o rodeava e que corria nos dois sentidos, do poente para o nascente e do nascente para o poente. Assim eram as coisas nesse tempo. E assim teriam continuado sempre e neste momento em que vos falo estaríamos hoje nesse jardim, à sombra das árvores, ouvindo a música das fontes e o canto das aves, se os Djenoune, os donos do jardim, se não tivessem enfurecido contra os homens, secando todas as fontes e deitando sal no grande rio que se tornou no que é hoje, amargo e sem fim."
Houriya parava mais uns momentos. Víamos o céu escurecer lentamente. Aqui e além erguiam-se fumos dos telhados das barracas, mas sabíamos que eram ilusórios e enganadores. As velhas tinham acendido o lume para ferver água, mas não tinham mais nada para deitar
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dentro a não ser algumas ervas e raízes encontradas nas colinas. Algumas não tinham nada para cozer mas acendiam o lume por hábito, como se fossem alimentar-se com o fumo, como as almas-penadas das histórias que Aamma Houriya nos contava. Continuava a contar e, de repente, o meu coração começava a bater mais depressa porque eu compreendera que era a nossa própria história que ela estava a contar, esse jardim, esse paraíso que tínhamos perdido quando a cólera dos gênios caíra sobre nós.
"Como é que os Djenoune se zangaram com os homens, porque é que destruíram esse jardim onde deveríamos viver numa eterna Primavera? Há quem diga que foi por causa de uma mulher que quis entrar no palácio dos Djenoune e, para isso, convenceu os homens de que eram tão fortes como os Djenoune e que facilmente os poderiam expulsar do seu palácio, visto que eram mais numerosos. Outros dizem que foi por causa de dois irmãos, um chamado Souad e o outro Safi, nascidos do mesmo pai e de duas mães diferentes e que se odiavam por causa disso, querendo cada um guardar para si a parte de jardim do outro. Contam que, ainda muito pequenos, se batiam a soco e os Djenoune riam por verem os seus esforços, como dois carneiros jovens que se enfrentam no meio da poeira. Depois cresceram e bateram-se com paus e com pedras e os Djenoune, do alto das muralhas do seu palácio, muito perto das nuvens, continuavam a rir e faziam troça deles, comparando-os a macacos. Mas tornaram-se adultos e a luta continuava, agora com espadas e espingardas. Os dois homens eram igualmente fortes e manhosos. Feriam-se cruelmente, o seu sangue corria sobre a terra, mas nenhum dos dois queria dar-se por vencido. Os Djenoune continuavam a observá-los do alto do seu palácio e diziam: que se batam e esgotem as forças, para que depois possam tornar-se amigos. Mas então interveio uma velha, dizem que uma feiticeira, de rosto escuro, coberta de farrapos, talvez até já fosse Aicha, porque era muito velha e conhecia todos os segredos dos Djenoune. Os dois irmãos foram consultá-la, cada um de sua vez, e prometeram-Lhe muito ouro para que lhes desse a vitória. A velha escrava procurou nas suas bagagens e deu um presente a cada um. Ao mais velho, Souad, deu uma pequena gaiola com um animal selvagem de focinho vermelho que brilhava estranhamente no escuro e nunca ninguém vira
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nada parecido naquele jardim. Ao segundo rapaz, que se chamava Safi, deu um grande saco de pele que continha uma nuvem invisível e poderosa. Nesse tempo, nesse jardim, não existia o fogo nem o vento. Então os dois irmãos, no cúmulo da raiva, sem reflectirem, atiraram um ao outro os seus presentes envenenados. Quando o que tinha a gaiola a abriu, o animal selvagem de focinho vermelho saltou cá para fora e apoderou-se imediatamente das árvores e das outras plantas e tornou-se muito grande. O outro irmão, por sua vez, abriu o saco de pele e do saco saiu o vento que soprou o fogo e o transformou num incêndio gigantesco que devorou todo o jardim. As chamas vermelhas queimaram tudo, as árvores, as aves e os homens que estavam nesse jardim, excepto alguns que se refugiaram no grande rio. Agora, no seu palácio envolto em fumo negro, os Djenoune já não riam. Exclamaram: "Que a maldição de Deus caia sobre todos vocês, homens, e sobre os vossos descendentes." E abandonaram para sempre o jardim devastado. Antes de partir, fecharam todas as nascentes e todas as fontes, para terem a certeza que nada voltaria a crescer naquela terra, e depois atiraram uma grande montanha de sal que se quebrou e espalhou no rio. Foi assim que o jardim de Firdous se transformou neste deserto sem água e que o grande rio circular se tornou amargo e deixou de correr nos dois sentidos. Aqui termina a minha história. Desde esse tempo, os Djenoune deixaram de gostar dos homens, ainda não lhes perdoaram, e sobre esta terra continua a vaguear a velha Aicha, a escrava imortal, que oferece armas e morte aos que dão ouvidos às suas palavras. Que Deus nos defenda de a encontrarmos no nosso caminho, meus filhos."
Tinha caído a noite. Aamma Houriya levantava-se e dirigia-se aos poços para fazer a sua oração, e as crianças voltavam cada uma para sua casa. Deitada no chão, no meu lugar junto da porta, ouvia ainda a voz de Aamma Houriya, leve, regular como a sua respiração. Sentia o odor do fumo no céu, o odor da fome. Pensava então durante quanto tempo ainda os Djenoune abandonariam os homens...
Roumiya veio para o campo de Nour Chams no fim do Verão. Quando chegou já estava grávida de mais de seis meses. Era uma
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mulher muito jovem, quase uma rapariga, com o rosto pálido marcado pela fadiga mas que tinha guardado qualquer coisa de infantil, acentuado pela cabeleira loura, penteada em duas tranças iguais, e pelos olhos cor de água que nos olhavam com uma espécie de inocência amedrontada, como alguns animais. Aamma Houriya tomara-a imediatamente sob a sua protecção. Trouxera-a até nossa casa e aí a instalara, no lugar da velha que arranjara um abrigo noutro sítio. Roumiya era uma das sobreviventes de Deir Yassin. O marido tinha morrido lá, assim como o pai, a mãe e os sogros. Os soldados estrangeiros tinham-na encontrado vagueando pela estrada e tinham-na trazido para um hospital militar porque julgaram que era louca. Aliás, talvez Roumiya se tivesse tornado louca a partir desse dia, porque tinha o hábito de ficar sentada num canto durante horas, sem se mexer, sem pronunciar uma palavra. Os soldados tinham-na levado para os campos perto de Jerusalém, Jalazoun, Mouaskar, Deir Ammar, depois Tulkarm, Balata. Fora assim que acabara por chegar ao fim da sua estrada, ao nosso campo.
A princípio, quando chegou a nossa casa, não queria tirar o véu mesmo dentro de casa. Ficava sentada ao lado da porta, absolutamente imóvel, com o grande véu sujo de pó que a envolvia até aos joelhos, e olhava em frente com olhos vazios. As crianças da vizinhança diziam que ela era louca e quando passavam em frente da porta ou quando se cruzavam com ela no caminho, à entrada do campo, sopravam pó no côncavo da mão para afastar a má sorte.
Falavam dela cochichando e diziam "habla, habla", enlouqueceu, e também "khayfi", tem medo, porque os olhos eram fixos e dilatados como os de um animal assustado, mas a verdade é que quem tinha medo eram as crianças. Para todos nós ela permaneceu um pouco assim, khayfi. Mas Aamma Houriya soube encontrar o caminho. Foi domesticando Roumiya um pouco cada dia. Era ela que lhe dava de comer: a princípio, trazia-lhe uma tigela de caldo de farinha com leite Klim, como para uma criança, e passava-lhe o dedo humedecido de saliva sobre os seus lábios secos para que ela começasse a comer. Falava-lhe docemente, acariciava-a, e pouco a pouco Roumiya acordou e recomeçou a viver. Lembro-me da primeira vez que tirou o véu, do rosto muito branco que brilhava à luz, do nariz fino, da boca infantil,
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das tatuagens azuis nas faces e no queixo e, sobretudo, da cabeleira longa, forte, com reflexos de cobre e de ouro. Nunca tinha visto nenhuma tão bela e percebia agora porque lhe tinham dado aquele nome, Roumiya, porque não era da nossa raça.
Por momentos, o seu olhar cessara de reflectir medo e ela tinha olhado para nós, para Aamma Houriya e para mim, mas sem nada dizer, sem um sorriso. Quase nunca falava, apenas algumas palavras para pedir água ou pão ou, de repente, uma frase que recitava sem compreender e que para nós também não tinha qualquer significado.
Às vezes fartava-me dela, do seu olhar vazio, e ia para o alto da colina de pedras, onde tinha sido enterrado o velho Nas, onde agora vivia o Baddawi numa cabana que fizera com ramos e pedras. Ficava lá com as outras crianças, como se estivesse à espreita dos camiões de reabastecimento. Talvez fosse a beleza de Roumiya que me afastava, a sua beleza silenciosa, o seu olhar que parecia atravessar tudo e esvaziá-lo de qualquer sentido.
Quando o sol subia no céu e as paredes da nossa casa aqueciam como as de um forno, Aamma Houriya molhava o corpo de Roumiya com uma toalha encharcada. Ia todas as manhãs buscar água aos poços porque a água era escassa e cor de lama e tínhamos que a deixar repousar durante muito tempo. Era a sua ração para beber e cozinhar e Aamma Houriya usava-a para lavar a barriga da mulher, mas ninguém mais sabia. Aamma Houriya dizia que a criança que ia nascer não podia ter falta de água porque já vivia e ouvia o som da água a escorrer na pele e sentia a frescura, como se fosse chuva. Aamma Houriya tinha ideias tão estranhas como as suas histórias, mas quando as compreendíamos tudo parecia mais claro e verdadeiro.
Quando o sol atingia o ponto mais alto do céu e nada mais se mexia no campo, com o calor envolvendo as barracas de tábuas e de cartão alcatroado como as chamas envolvem um forno, Aamma Houriya pendurava o seu véu em frente da porta, provocando uma sombra azulada. Docemente, Roumiya deixava-se despir completamente, esperando a água que pingava da toalha. Ponto por ponto, os dedos ágeis de Aamma Houriya lavavam-lhe o corpo, a nuca, os ombros, os rins. Nas costas, as longas tranças retorciam-se como serpentes molhadas. Depois, Roumiya deitava-se de costas e Aamma fazia
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escorrer água sobre os seios, sobre o ventre dilatado. A princípio eu saía, ia lá para fora para não ver aquilo, cambaleava sob a luz demasiado forte. Depois comecei a ficar, quase contra vontade, porque havia qualquer coisa de poderoso, de incompreensível e de verdadeiro nos gestos da velha, uma espécie de lento ritual, uma oração. O ventre enorme de Roumiya surgia sob o vestido preto arregaçado até ao pescoço como uma lua, branco marmorizado de rosa por causa da penumbra azul. As mãos de Aamrna eram fortes, torciam a toalha sobre a pele e a água caía fazendo ecoar o seu som secreto na casa que se assemelhava a uma gruta. Observava a rapariga, via-lhe o ventre, os seios, o rosto inclinado com os olhos fechados, e sentia o suor escorrer na testa, nas costas, colar-me os cabelos à cara. Na nossa casa, como um segredo no meio do calor e da secura lá de fora, ouvia apenas o som da água que escorria sobre a pele de Roumiya, a sua respiração lenta, e a voz de Aamma Houriya que entoava uma canção de embalar sem palavras, apenas um murmúrio, um zumbido prolongado que interrompia de cada vez que mergulhava a toalha no balde.
Aquilo durava infinitamente, tanto tempo que quando Aamma Houriya acabava de lavar Roumiya esta tinha adormecido sob os véus que ficavam manchados na barriga.
Lá fora o sol ainda encandeava. Sobre o campo pesava o peso da poeira, o silêncio. Antes de anoitecer ia até ao cimo da colina, com os ouvidos cheios do som da água e do zumbido da voz da velha Aamma. Talvez tivesse deixado de ver o campo com os mesmos olhos. Era como se tudo tivesse mudado, como se acabasse de chegar e não soubesse ainda o que eram aquelas pedras, aquelas casas escuras, o horizonte fechado pelas colinas, aquele vale seco semeado de árvores queimadas onde nunca chega o mar.
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Estamos há tanto tempo prisioneiros neste campo que tenho dificuldade em recordar como era dantes, em Akka. O mar, o cheiro do mar, os gritos das gaivotas. Os barcos deslizando na baía, de madrugada. O chamamento para a oração ao crepúsculo, na luz difusa, quando eu vagueava pelos olivais, junto às muralhas. Levantavam vôo as rolas indolentes e os pombos de asas prateadas, cruzando o céu lado a lado, revoluteando, dando a volta, tornando a partir em sentido inverso. Ouvia-se nos jardins, com a chegada da noite, o cantar inquieto dos melros. Foi tudo isso que eu perdi.
Aqui, a noite surge de repente, sem chamamentos, sem oração, sem aves. O céu vazio muda de cor, torna-se avermelhado e depois a noite ergue-se do fundo das ravinas. Quando cheguei, na Primavera, as noites eram quentes. As colinas pedregosas irradiavam o calor do sol até ao coração da noite. Agora, que é Outono, as noites são frias. Logo que o sol desaparece por trás das colinas sente-se o frio que vem da terra. As pessoas embrulham-se como podem nos cobertores que as Nações Unidas distribuíram, em casacos sujos, em lençóis. A madeira tornou-se tão rara que já se não acendem fogueiras por causa da noite. Tudo permanece negro, silencioso e gelado. Estamos abandonados, longe do mundo, longe da vida. Nunca tinha sentido isto antes. Rapidamente, surgem no céu as estrelas formando os seus desenhos magníficos. Lembro-me que outrora, quando passeava com o meu pai na praia, os desenhos das estrelas me pareciam familiares. Eram como as luzes de cidades desconhecidas suspensas no céu. Agora,
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a sua luz pálida e fria faz com que o nosso campo pareça ainda mais escuro, mais abandonado. Nas noites de lua cheia, os cães vadios ladram. "É a morte que passa", diz Aamma Houriya. Pela manhã, os homens atiram para longe os cadáveres dos cães que morreram durante a noite.
Também as crianças choram de noite. Sinto um arrepio percorrer-me o corpo. Será preciso, pela manhã, recolher os corpos das crianças mortas durante a noite?
O Baddawi, o que se chama Saadi, instalou-se na colina de pedras, perto do lugar onde foi enterrado o velho Nas há já mais de um ano. Construiu um abrigo não longe do túmulo, com ramos secos e um pedaço de encerado. Ali fica todo o dia e toda a noite quase sem se mexer, olhando a estrada de Tulkarm. As crianças vão ter com ele todas as manhãs e em conjunto vigiam a estrada por onde há-de chegar o camião do reabastecimento. Mas ele não desce quando o camião chega. Fica sentado junto do seu abrigo, como se aquilo não lhe dissesse respeito. Nunca vai buscar a sua parte. Às vezes tem tanta fome que desce até meio da colina e, como a nossa casa é a primeira que encontra, ali fica de pé, um pouco afastado. Aamma Houriya agarra num bocado de pão ou num bolo de grão-de-bico feito por ela, pousa-os numa pedra e volta para casa. Saadi aproxima-se. O seu olhar fita-me com um misto de timidez e dureza que me fazem bater o coração. Os olhos dos cães que vagueiam pelas colinas em redor do campo são da mesma cor. O Baddawi é o único que não tem medo dos cães. Fala com eles lá em cima, na colina. É o que as crianças contam e quando Aamma Houriya ouviu disse que ele era um inocente e que isso protegia o nosso campo.
Ia todas as manhãs ao cimo da colina para ver chegar o camião das Nações Unidas. Isso era o que eu dizia, mas a verdade é que ia também para ver o Baddawi sentado na sua pedra, em frente da cabana de ramos, embrulhado na sua túnica de lã. Tem os cabelos compridos e emaranhados, mas o rosto é o de rapaz ainda imberbe, apenas com uma leve sombra de bigode. Quando me aproximei, olhou-me e vi a cor dos seus olhos, idêntica à dos cães vadios. Só desce da colina para
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ir beber aos poços. Espera na fila e, quando chega a sua vez, tira a água do balde com a mão e não torna a beber até à noite. As raparigas fazem troça dele mas têm também um certo medo. Dizem que ele se esconde nos arbustos para as espiar quando vão urinar. Dizem que tentou agarrar uma rapariga e que esta lhe mordeu. Mas são tudo invenções.
Às vezes, quando Aamma Houriya conta uma história de Djinn, ele vem ouvir. Não se senta com as crianças. Fica um pouco afastado, com a cabeça inclinada para o chão de modo a escutar melhor. Aamma Houriya diz que ele está só no mundo, que não tem família. Mas ninguém sabe de onde vem nem como chegou até aqui, ao fim da estrada, a Nour Chams. Talvez aqui estivesse antes de todos, com um rebanho de cabras, e quando os animais morreram, como não tinha para onde ir, ficou. Talvez tenha nascido aqui.
Aproximou-se de mim e falou. Tinha uma voz doce, com um sotaque que nunca tinha ouvido antes. Aamma Houriya diz que ele fala como os do deserto, como um Baddawi. É por isso que lhe chamamos assim.
Fitava-me com os seus olhos amarelados, perguntando-me quem era, de onde era. Quando lhe falei de Akka e do mar, quis saber como era o mar. Nunca o tinha visto. Conhecia apenas o granda lago salgado e o imenso vale de Ghor e al-Moujib, onde afirmava que os Djenoune tinham os seus palácios. Eu contava-lhe o que tinha visto, as ondas regulares que morrem de encontro às muralhas da cidade, as árvores que vêm dar à praia e, de madrugada, os barcos à vela cortando o nevoeiro por entre os vôos dos pelicanos; o cheiro do mar, o gosto do sal, o vento, o sol que mergulha na água todas as noites até que se extinga o último fulgor. Gostava da sua maneira de ouvir, do seu olhar brilhante, dos braços cruzados sobre a túnica, dos pés descalços bem assentes na terra.
Eu não falava como Aamma Houriya porque não sabia histórias. Só sabia contar o que tinha visto. Ele, por sua vez, falava do que sabia, das montanhas onde guardava os rebanhos, perto do grande lago salgado, andando todos os dias ao longo dos cursos de água que correm por baixo da areia, comendo ervas e arbustos, tendo como únicos companheiros os cães que corriam à sua frente. Os acampamentos dos
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nômadas, o cheiro das fogueiras, as vozes das mulheres, os irmãos vindos de outras paragens, com outros rebanhos, que se encontravam e voltavam a partir.
Quando eu falava com ele ou ele comigo, as crianças vinham ouvir. Tinham os olhos dilatados pela febre, os cabelos emaranhados e a pele escura brilhava por entre os farrapos da roupa. Mas nós éramos semelhantes a eles, eu, a rapariga da cidade marítima, e ele, o Baddawi, nada nos distinguia, tínhamos o mesmo olhar de cão vadio. Conversávamos todas as tardes, quando o crepúsculo atenuava a ardência do dia, fitando as delgadas colunas de fumo que subiam do campo, e tudo deixava de parecer desesperado. Conseguíamos evadir-nos, voltávamos a ser livres.
Agora também eu já não ia esperar o camião de reabastecimento. No alto da colina, sentada ao lado de Saadi, via a nuvem de poeira ao longe, na estrada de Tulkarm, e ouvia os gritos das crianças excitadas que recitavam: "A farinha!... O leite!... A farinha!..."
Era Aamma Houriya que tinha que ir buscar as rações. Eu ficava a ouvir Saadi, tentando lembrar-me melhor ainda como era dantes, na praia de Akka, quando esperava o regresso dos barcos de pesca e tentava ser a primeira a ver o do meu pai.
Aamma ralhava: "O Baddawi enfeitiçou-te! Vou-lhe bater com um pau!" Troçava de mim.
A guerra está tão longe. Nunca acontece nada. No princípio, as crianças brincavam com pedaços de madeira, imitando o som das espingardas, ou atiravam pedras umas às outras como se fossem granadas, deixando-se cair no chão. Agora já não fazem isso. Esqueceram. Também perguntavam: "Porque não vamos embora? Porque não voltamos para casa?" Agora esqueceram. Os pais e as mães desviam os olhos.
Nos olhos dos homens há uma espécie de fumo, uma nuvem que lhes nubla o olhar, tornando-o difuso, estranho. Já não existe ódio ou cólera, já não há lágrimas, nem desejo, nem inquietação. Talvez seja por haver tanta falta de água, a água, a doçura. Surge assim este véu, como nos olhos da cadela branca, quando começou a morrer.
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É por isso que gosto dos olhos de Saadi. Ele não perdeu a água do olhar. As íris amareladas brilham como as dos cães que vagueiam pelas colinas em redor do campo. Quando o venho ver, brilha uma luz nos seus olhos. Ri mas dentro de si mesmo, sem mover os lábios, apenas com os olhos. Vê-se muito bem.
Às vezes fala da guerra. Diz que quando tudo terminar irá para o sul, para junto do lago salgado, para o vale da sua infância. Irá à procura do pai, dos irmãos, dos tios e das tias. Acha que vai reencontrá-los e que poderá recomeçar a andar com o seu gado ao longo das invisíveis ribeiras.
Fala-me de nomes que nunca ouvi antes, nomes tão distantes como os nomes das estrelas: Suweima, Suweili, Basha, Safut, Madasa, Kamak e Wadi al-Sirr, o rio do segredo onde cada um acaba por chegar sempre. Lá, segundo ele diz, a terra é tão dura e o vento tão forte que os homens são arrastados como o pó. Quando o vento começa, os animais vão até ao Jordão e às vezes mesmo até mais longe, à grande cidade de al-Quds que os hebreus chamam Jerusalém. Quando o vento abranda, os animais regressam ao deserto. Saadi diz como o velho Nas: A terra não é de todos? O sol não brilha para todos? Tem um rosto jovem mas um olhar cheio de sabedoria. Não está prisioneiro no campo de Nour Chams. Pode partir quando quiser, atravessar as colinas, ir até al-Quds ou mesmo mais longe, ao outro lado do rio, até essas cidades de ouro e nácar onde Aamma Houriya diz que outrora viviam os reis que governavam mesmo os Djenoune: Bagdad, Ispahan, Bassora.
Uma noite senti-me mal, ardia por dentro da pele. Sentia como se tivesse uma pedra poisada sobre o peito. Saí. Cá fora tudo estava calmo. Aama Houriya dormia embrulhada no seu lençol junto da porta mas Roumiya estava acordada. Tinha os olhos abertos. Notava a respiração que lhe fazia erguer o peito, mas não disse nada quando passei à sua frente.
Vi as estrelas. Pouco a pouco, na noite, tudo começou a brilhar intensamente, com uma luz crua que me magoava. O ar estava quente e o vento que soprava parecia o bafo de um forno. Não havia ninguém cá fora. Até os cães estavam escondidos.
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Observei os armamentos rectilíneos do campo, os telhados cobertos de alcatrão das casas, as chapas de metal que dançavam com o vento. Era como se todos estivessem mortos, como se tudo tivesse desaparecido para sempre. Não sei por que agi assim: tinha medo, repentinamente, sentia-me demasiado mal por causa daquele peso no peito e da febre que me queimava até aos ossos. Então, comecei a correr pelas ruas do campo sem saber para onde ia e gritava: "Acordem!... Acordem!..." A princípio, a voz não conseguia passar-me na garganta e saía apenas um grito rouco que me rasgava interiormente, um grito de loucura que ressoava estranhamente no campo adormecido. Em breve os cães começaram a ladrar, primeiro um, depois outro, depois todos os cães em redor do campo, até mesmo os das colinas invisíveis. Eu continuava a correr pelas ruas, descalça no pó, com aquele ardor no rosto e no corpo, aquela dor que não abrandava. Gritava para, todos, para todas as casas de tábuas e de encerados, para todas as tendas, para todos os abrigos de cartão: "Acordem! Acordem!" As pessoas começavam a sair de casa, os homens e as mulheres envoltas nos seus véus apesar do calor. Corria e ouvia distintamente o que diziam, a mesma coisa que tinham dito quando Roumiya chegara: "Está louca, enlouqueceu!" As crianças acordavam, as mais velhas corriam a meu lado, as outras choravam às escuras. Mas eu não podia parar. Continuava a correr pelo acampamento, passando e voltando a passar pelas mesmas ruas, ora para o lado da colina, ora mais para baixo, na direcção dos poços e ao longo do arame farpado que os estrangeiros tinham colocado à sua volta e ouvia a minha própria respiração assobiando-me nos pulmões, ouvia as pancadas do meu coração, sentia o fogo do sol sobre o rosto, sobre o peito. Gritava com uma voz que não era a minha: "Acordem!... Preparem-se!..."
Depois, repentinamente, faltou-me o fôlego. Caí no chão, junto ao arame farpado. Não conseguia mexer-me nem falar. As mulheres, as crianças, as pessoas aproximaram-se. Ouvia o ruído dos seus passos, ouvia nitidamente a sua respiração, as suas palavras. Alguém trouxe água num recipiente de ferro, a água escorreu-me para a boca e para a cara como se fosse sangue. Vi o rosto de Aamma muito perto. Murmurei o seu nome. Ela ali estava, com a mão suave poisada na minha testa. Pronunciava palavras que eu não compreendia. Depois percebi
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que eram orações e senti os Djenoune afastarem-se de mim, abandonarem-me. De repente, fiquei vazia e dominada por uma extrema fraqueza.
Consegui andar apoiada pelos braços de Aamma. Deitada na esteira, em nossa casa, ouvi diminuir o som das vozes. Os cães ainda ladraram durante muito tempo e adormeci antes deles.
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Quando, pela manhã, subi à colina pedregosa, Saadi veio ter comigo e disse: "Anda, quero falar contigo." Fomos para junto do túmulo do velho Nas. Ainda era cedo e não havia crianças. Vi que Saadi tinha mudado. Tinha lavado a cara e as mãos quando fora aos poços, à hora da oração, e a roupa, embora rasgada, estava limpa. Apertou com muita força a minha mão na sua e o seu olhar tinha um brilho que eu nunca vira. Disse: "Nejma, ouvi a tua voz esta noite. Ainda não estava a dormir quando começaste a chamar-nos. Compreendi que fora Deus que te mandara fazer aquilo. Ninguém te compreendeu, mas eu ouvi o teu apelo e por isso me preparei."
Quis tirar a minha mão e fugir, mas ele segurava-me com tanta força que não conseguia. A colina estava deserta, silenciosa; o campo estava muito longe. Tinha medo, e o medo misturava-se com uma emoção que não compreendia por causa do brilho do seu olhar. Continuou: "Quero que venhas comigo. Iremos até ao outro lado do rio, até ao vale em que nasci, a al-Moujib. Serás a minha mulher e teremos filhos se Deus consentir." Falava sem pressa, com uma espécie de alegria que lhe iluminava o olhar. Era isso que me atraía e assustava ao mesmo tempo. "Se quiseres partiremos hoje mesmo. Levaremos pão e alguma água e atravessaremos as montanhas." Apontava na direcção do levante as colinas ainda sombrias.
O céu estava limpo, o sol começava a sua ascensão. Lá em baixo, no sopé da colina, havia o campo semelhante a uma mancha escura de onde subiam algumas colunas de fumo. Distinguíamos as formas das
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mulheres junto dos poços e as crianças que corriam no meio da poeira.
"Fala, Nejma. Basta que digas que sim e partiremos ainda hoje. Ninguém nos pode reter." Respondi: "Não pode ser, Saadi. Não posso partir contigo." O olhar ensombrou-se-lhe. Largou-me a mão e sentou-se numa rocha. Sentei-me perto dele. Sentia o coração bater com força no peito porque tinha o desejo de partir. Falei para não ouvir o coração. Falei de Aamma Houriya, de Roumiya e da criança que ia nascer. Falei da minha cidade de Akka, para onde devia voltar. Ouvia-me sem responder, fitando a extensão do vale, o campo semelhante a uma prisão, com as pessoas que iam e vinham pelas ruas como formigas, que se amontoavam em torno dos poços. Disse: "Julguei que tinha compreendido o teu apelo, o apelo que Deus te enviou esta noite." Disse aquilo com uma voz monótona, mas estava triste e senti lágrimas nos olhos e o meu coração começou a bater porque eu queria partir. Segurei-lhe por minha vez nas mãos de dedos longos e esguios, em que as unhas formavam manchas claras na pele escura. Sentia o sangue pulsar nas suas mãos. "Talvez parta um dia, Saadi. Mas agora não posso ir. Estás zangado comigo?" Olhou-me, sorrindo, e os olhos brilhavam de novo. "Foi então essa a mensagem que Deus te enviou? Eu fico também."
Andámos um bocado pela colina. Quando chegámos à frente do seu abrigo, vi que tinha feito um embrulho para a viagem: comida embrulhada num pano e uma garrafa de água atada com um fio. "Quando a guerra acabar, levar-te-ei a minha casa, a Akka. Lá há muitas fontes e não precisaremos de levar água."
Desmanchou o embrulho e sentámo-nos no chão para comer um bocado de pão. A luz do sol ia dissipando a frescura da manhã. Ouvíamos o barulho do campo e as crianças que chegavam. Houve mesmo o rápido vôo de um pássaro, soltando gritos agudos. Desatámos ambos a rir, porque há já muito tempo que não víamos uma ave. Tinha poisado a cabeça no ombro de Saadi. Ouvia a sua voz titubeante, cantante, que falava do vale onde ele e os irmãos andavam com o gado, ao longo da ribeira subterrânea de al-Moujib.
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Depois chegou o Inverno e a vida tornou-se difícil em Nour Chams. Há quase dois anos que estávamos no campo. O camião de reabastecimento vinha cada vez menos freqüentemente: duas vezes por semana ou até mesmo uma só. Não se passava uma semana sem que o camião de transporte viesse ao campo. Havia boatos de guerra e contavam coisas terríveis. Diziam que em al-Quds a cidade velha tinha ardido e que os combatentes árabes lançavam pneus incendiados para dentro das caves e dos estabelecimentos. O camião trazia refugiados, homens, mulheres e crianças de rosto devastado. Já não eram camponeses pobres, como no princípio. Eram pessoas mais ricas de Haiffa e de Jaffa, comerciantes, advogados, até um dentista. Quando desciam do camião, as crianças esfarrapadas rodeavam-nos lamuriando: "Foulous! Foulous!" Seguiam os recém-chegados, importunando-os até que lhes dessem algumas moedas. Mas não sabiam onde se haviam de instalar no campo. Alguns dormiam ao ar livre, com as malas amontoadas aos pés e embrulhados nos cobertores que tinham. Por causa deles, o camião tinha trazido cigarros, chá e bolachas Maria. Eram os motoristas que lhas vendiam às escondidas, enquanto os pobres faziam bicha para receber as rações de farinha, de leite Klim e de carne seca.
Quando os recém-chegados saíam do camião eram logo rodeados pelas pessoas que perguntavam: "De onde são? Que novidades há? É verdade que Jerusalém está a arder? Alguém conhece o meu pai, o velho Serays, da estrada de Am Karim? Viste o meu irmão? Vive na
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casa maior de Suleiman, onde há um estabelecimento de móveis. Pouparam a minha loja de tecidos, em frente da porta de Damasco? E a minha loja de loiças, próximo da mesquita de Ornar? E a minha casa de al-Aksa, uma linda casa branca com duas palmeiras em frente da porta, a casa de Mehdi Abou Tarash? Sabem alguma coisa do meu bairro, perto da estação dos caminhos de ferro? É verdade que foi bombardeado pelos ingleses?" Eles lá iam avançando no meio de todas aquelas perguntas, estonteados da viagem, piscando os olhos por causa do pó, com os bons fatos já sujos de suor, e pouco a pouco as interrogações iam cessando e o silêncio voltava a reinar. As pessoas do campo afastavam-se à frente deles, tentando ainda ler qualquer resposta às suas perguntas nos olhos vazios, nos ombros curvados, no rosto das crianças onde o medo brilhava como um suor maléfico.
Isto foi quando chegaram os primeiros habitantes das cidades, expulsos pelas bombas. O seu dinheiro aqui não servia para nada. Em vão o tinham distribuído às mãos cheias ao longo do caminho: por um salvo-conduto, pelo direito de poderem ficar mais algum tempo na sua casa, pelo preço de um lugar no camião coberto com um encerado que os tinha trazido até ao campo, no fim da estrada.
Depois, as rações tornaram-se cada vez mais escassas por causa de todo aquele afluxo de pessoas ao campo. Agora a morte atacava por todo o lado. Quando ia aos poços, pela manhã, a passagem entre os arames farpados estava juncada de cadáveres e de cães que disputavam os sobreviventes, rosnando como animais selvagens. As crianças não podiam aventurar-se longe de casa com medo de serem devoradas pelos cães. Quando subia à colina de pedras para ir ter com Saadi tinha que levar um pau na mão para os afastar. Ele não tinha medo. Queria continuar ali. O seu olhar mantinha-se brilhante e agarrava-me na mão para me falar com a sua voz tão doce. Mas eu já não me demorava muito tempo. Roumiya chegara à altura de parir e eu não queria estar longe quando isso acontecesse.
Aamma Houriya estava cansada. Já não podia dar banho a Roumiya. Agora os poços estavam quase secos, apesar das chuvas. Os últimos a tirar só encontravam lama. Era preciso esperar toda a noite para que tornasse a haver água no fundo dos poços.
O único alimento eram as papas de aveia desfeita em leite Klim.
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Os homens válidos, os rapazitos de dez ou onze anos e até as mulheres partiam uns a seguir aos outros. Iam para o norte, para o Líbano, ou para leste, para o lado do Jordão. Dizia-se que iam juntar-se aos feddaine, os sacrificados. Chamavam-lhes os aidoune, os retornados, porque voltariam um dia. Saadi não queria ir para a guerra, não queria ser um retornado. Esperava que eu partisse com ele para ir até ao vale da sua infância, em al-Moujib, do outro lado do grande lago salgado.
Roumiya já quase só saía de casa para fazer as suas necessidades no barranco, fora do campo. Só lá ia comigo ou então acompanhada por Aamma Houriya, cambaleando pelo caminho e segurando a barriga com as mãos. Foi no barranco que as dores começaram. Encontrava-me no cimo da colina; era ainda de manhã cedo e o sol estava muito baixo, iluminando a terra por entre a bruma. Era hora para os Djenoune, hora para ver as chamas vermelhas dançando junto ao poço de Zikhron Yaacov, como Aamma Houriya tinha visto antes de chegarem os ingleses.
Ouvi um grito agudo, um grito que trespassou o silêncio da madrugada. Deixei Saadi e comecei a descer a colina a correr, esfolando os pés descalços nas pedras aguçadas. O grito tinha soado uma única vez e eu estava na expectativa, tentando adivinhar de onde tinha vindo. Quando entrei em nossa casa vi os lençóis atirados para o lado. A bilha de água que eu tinha enchido de madrugada estava ainda intacta. Instintivamente, dirigi-me para o barranco. Sentia o coração a bater porque o grito tinha penetrado dentro de mim e compreendera que tinha chegado o momento: Roumiya ia ter a criança. Corri pelo meio dos arbustos. Ouvi-lhe de novo a voz. Agora não gritava, queixava-se, gemendo com uma intensidade crescente e parando como que para retomar fôlego. Vi-a logo que entrei no barranco. Estava deitada no chão, com as pernas dobradas, embrulhada no seu véu azul e com a cabeça descoberta. Aamma Houriya estava sentada ao lado dela, acariciando-a e falando-lhe. O barranco ainda estava mergulhado na sombra. Havia uma frescura nocturna que atenuava um pouco o cheiro da urina e dos excrementos. Aamma Houriya ergueu a cabeça. Vi pela primeira vez uma expressão perturbada nos seus
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olhos, que estavam rasos de lágrimas. "Temos de a levar. Ela já não pode andar." Ia afastar-me em busca de ajuda, mas Roumiya afastou o véu e soergueu-se. O rosto infantil estava deformado pela dor e pela angústia e os cabelos molhados de suor. Murmurou: "Quero ficar aqui. Ajudem-me." Depois recomeçou os seus queixumes ritmados pelas contracções do útero. Eu estacara de pé, à frente dela, incapaz de me mexer, incapaz de pensar. Aamma Houriya dirigiu-se-me com dureza: "Vai buscar água e lençóis!" E como eu continuasse sem me mover: "Despacha-te! Ela está quase a ter a criança!" Parti então a correr, sentindo o sangue bater nos ouvidos e a respiração assobiar na garganta. Quando cheguei a casa, agarrei nos lençóis, na bilha de água e, com a pressa, a água saltava da bilha e molhava-me o vestido. As crianças seguiram-me. Quando cheguei à entrada do barranco mandei-as embora, mas elas ficaram e treparam pelos lados do barranco para poderem ver. Atirei-lhes pedras. Recuaram mas voltaram de novo.
Roumiya, deitada no chão, sofria muito. Ajudei Aamma a erguê-la para a embrulharmos no lençol. A roupa estava molhada pelas águas e sobre o seu ventre branco, dilatado, as contracções pareciam formar ondas como à superfície do mar. Nunca tinha visto semelhante coisa. Era simultaneamente belo e assustador. Roumiya não era a mesma, tinha o rosto transtornado. Deitado para trás, voltado para o céu luminoso, parecia uma máscara, como se outra pessoa a habitasse. Arquejava de boca aberta. Subiam-lhe por momentos da garganta gemidos de uma voz que não era a sua. Atrevi-me a aproximar-me. Passei-lhe água no rosto com um pano molhado. Abriu os olhos e olhou-me como se não me reconhecesse. Murmurou: "Dói! Dói!" Torci-lhe o pano sobre os lábios para que pudesse beber.
A onda subia no ventre, subia até ao rosto. Arqueava o corpo para trás, apertava os lábios como se quisesse impedir a voz de sair, mas a onda crescia mais e mais e o lamento escapava-se, transformava-se em grito, depois quebrava e passava a uma respiração arquejante. Aamma Houriya tinha colocado as mãos sobre o ventre e apoiava todo o seu peso, com tanta força como se quisesse fazer sair a sujidade de um pano na beira do lavadouro. Via assustada o rosto contraído da velha que espremia a barriga de Roumiya e parecia-me que estava a assistir a um crime.
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De repente, a onda começou a mover-se mais depressa. Roumiya arqueava-se sobre os calcanhares, com os ombros apoiados nas pedras do barranco e o rosto voltado para o sol. com um grito sobrenatural, expulsou a criança do seu corpo e deixou-se cair lentamente no chão. Agora havia aquela forma, aquele ser envolto no sangue e na placenta, com um cordão vivo em volta do corpo, que Aamma Houriya tinha agarrado e começava a lavar e que, de repente, deu o seu primeiro grito.
Olhava para Roumiya estendida, com a roupa enrolada sobre o ventre martirizado pelas mãos de Aamma e os seios tumefactos de bicos arroxeados. Sentia náuseas e uma vertigem incontrolável. Quando Aamma Houriya acabou de lavar o bebê, cortou o cordão com uma pedra e atou a ponta sobre a barriga da criança. Olhou-me pela primeira vez com um rosto sereno, mostrando-me o bebê minúsculo, engelhado: "É uma rapariga! Uma linda menina!" Pronunciou aquilo com uma voz descontraída, como se na realidade nada se tivesse passado, como se tivesse encontrado o bebê num cestinho. Poisou-o docemente sobre o peito da mãe, de onde o leite já escorria. Depois, tapou-as com um lençol limpo e sentou-se ao lado, cantarolando. O sol erguia-se agora no céu. As mulheres começavam a chegar ao barranco. Os homens e as crianças ficavam à distância, nos declives. As moscas enxameavam. Aamma Houriya pareceu aperceber-se de repente do cheiro horrível. "Temos de voltar para casa." As mulheres trouxeram um cobertor e cinco levantaram Roumiya com o seu bebê apertado ao peito e transportaram-na lentamente, como se fosse uma princesa.
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Agora que havia o bebê lá em casa a vida tinha mudado. Apesar da falta de comida e de água, surgira uma nova esperança para nós. Até os vizinhos o sentiam. Todas as manhãs vinham à nossa porta trazer um presente: açúcar, fraldas limpas, um pouco de leite em pó que tinham retirado das suas rações. As velhas, que não tinham nada para oferecer, traziam pedaços de madeira para o lume, raízes e ervas aromáticas.
Roumiya também mudara depois do nascimento do bebê. Já não tinha aquele olhar estranho nem se ocultava por trás do véu. Tinha chamado Loula à filha, porque era a primeira vez. Al-marra al-loula. E eu achava que era verdade. Aqui, no nosso campo miserável para onde o mundo nos tinha atirado, longe de tudo. Era realmente a primeira vez. Era a única criança que tinha nascido aqui. Agora havia um coração no campo, havia um centro e era em nossa casa.
Aamma Houriya não se cansava de contar o parto a todas as mulheres que a vinham visitar, como se tivesse sido um milagre. Contava: "Imaginem que levei Roumiya ao barranco para fazer as suas necessidades antes do nascer do sol. E Deus quis que a criança nascesse naquele barranco, como se quisesse mostrar que a coisa mais bela pode aparecer no lugar mais nojento, no meio do lixo." Divagava incansavelmente sobre este tema que se ia tornando uma lenda que as mulheres contavam umas às outras. As visitantes metiam a cabeça dentro de casa, segurando no véu, para darem uma vista de olhos àquela maravilha: Roumiya sentada amamentando Loula. E a verdade
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é que a história inventada por Aamma Houriya a envolvia numa luz especial, com o vestido branco muito limpo, os longos cabelos loiros caindo-lhe pelos ombros e a criança chupando o seio. Algo ia realmente começar: era a primeira vez.
Fora nesse Inverno que o nosso campo tinha conhecido o desespero, a fome e o abandono. As crianças e os velhos morriam por causa das febres e das doenças provocadas pela água dos poços. Isso sucedia principalmente na zona mais baixa do campo, onde se tinham instalado os recém-chegados. Saadi, do alto da colina, via as pessoas enterrando os mortos. Como não havia caixões, envolviam os cadáveres num lençol velho, sem sequer o coserem, e cavavam à pressa um buraco no flanco da colina, colocando em cima algumas pedras grandes para os cães vadios não os desenterrarem. Mas queríamos convencer-nos que tudo isso se passava muito longe e que, graças a Loula, nada nos podia acontecer.
Estava frio. À noite, o vento soprava sobre as pedras, queimava as pálpebras e entorpecia os membros. Por vezes chovia e eu ouvia o som da água escorrendo sobre as tábuas e sobre o telhado de cartão alcatroado. Apesar da nossa miséria, aquilo parecia-me tão bom como se estivéssemos numa casa com paredes bem secas e um lago no pátio onde a chuva fizesse soar a sua música. Para aproveitar a chuva, Aamma tinha colocado por baixo das goteiras todos os recipientes que conseguira arranjar: caçarolas, bilhas, latas de leite em pó vazias e até um velho capot de automóvel que os miúdos tinham encontrado no leito da ribeira. Ouvia a chuva tamborilar em todos os recipientes e sentia a mesma alegria de outrora, em minha casa, quando ouvia a água bater no telhado e no lajeado do pátio e regar as laranjeiras que o meu pai tinha plantado em vasos. Era um som que também me fazia sentir vontade de chorar porque me falava, me dizia que nada voltaria a ser como dantes e que não tornaria a encontrar a minha casa, nem o meu pai, nem os meus vizinhos, nem nada do que conhecera.
Aamma Houriya vinha sentar-se a meu lado como se adivinhasse a minha tristeza. Falava suavemente, às vezes contava-me uma história de Djinn, e eu encostava-me a ela mas sem fazer muita força porque
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estava muito enfraquecida devido às privações. Uma noite, quando a chuva tinha começado a cair, brincara: "Agora a velha planta vai reverdecer." Mas eu sabia muito bem que a chuva não lhe devolveria as forças. Estava muito magra e pálida e não parava de tossir.
Agora era Roumiya que tomava conta dela. Aamma embalava o bebê embrulhado nos panos e ela cantava-lhe canções de embalar.
Há já muito tempo que o camião das Nações Unidas não vinha. As crianças andavam pelas colinas em busca de raízes para comer, de folhas e de frutos de mirtilho. Saadi conhecia bem o deserto. Sabia apanhar animais, pequenas aves e roedores que assava e partilhava connosco. Nunca poderia pensar que comer aqueles bichinhos tão pequenos me desse tanto prazer. Também trazia bagas selvagens e medronhos que ia colher muito longe, para além das colinas. Quando trazia a sua colheita envolta num pano que poisava cerimoniosamente sobre a pedra lisa em frente da nossa porta, precipitávamo-nos sobre os frutos para os comermos e chuparmos avidamente e ele, com uma voz inalterável, troçava: "Vejam lá se trincam os dedos! Não comam as pedras!"
Havia agora qualquer coisa estranha entre o Baddawi e Roumiya. Ela, que dantes desviava os olhos quando Saadi se aproximava da casa, puxava agora o véu sobre o rosto como para se ocultar mas os seus olhos claros fitavam o rapaz. Pela manhã, quando voltava dos poços, não precisava de ir ao alto da colina ter com Saadi porque ele estava já ali, sentado na pedra ao lado da casa. Não falava com ninguém e mantinha-se um pouco afastado como se esperasse qualquer coisa. Agora eu já não podia segurar a sua mão na minha nem poisar-lhe a cabeça no ombro para o ouvir. Continuava a dirigir-se-me com a mesma voz doce e cantante mas eu adivinhava que já não era a mim que olhava, era a silhueta de Roumiya oculta na penumbra da casa, Roumiya a quem Aamma Houriya penteava a longa cabeleira, Roumiya que amamentava o bebê ou que preparava a refeição com farinha e óleo. Às vezes conversavam. Roumiya sentava-se no limiar da porta, envolta no seu véu azul, Saadi sentava-se do outro lado da porta e falavam e riam.
Então eu subia ao alto da colina, com o meu pau na mão para afugentar os cães. Já ali não havia crianças e era a única a vigiar a chegada
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do camião de reabastecimento. A luz do sol era deslumbrante e o vento levantava a poeira no fundo dos vales. Ao longe, o horizonte era cinzento, azul, impalpável. Podia imaginar que estava à beira-mar, na praia, ao crepúsculo, e que esperava a chegada dos barcos de pesca para ser a primeira a ver aquele que eu conhecia tão bem, com a sua vela vermelha e, à proa, a estrela verde do meu nome que o meu pai levava sempre consigo.
Uma manhã, chegou ao nosso campo um estrangeiro acompanhado por soldados. Estava no alto da colina a vigiar quando a grande nuvem de pó se levantou na estrada de Zeita e compreendi que não eram os camiões com alimentos. O meu coração começou a bater aterrorizado, porque julguei que eram os soldados que vinham para nos matar.
Quando o comboio de viaturas penetrou no campo, deixaram-se ficar todos escondidos porque tinham medo. Depois, os homens começaram a sair das cabanas e, atrás deles, as mulheres e as crianças. Desci a colina a correr.
Os camiões e as outras viaturas tinham parado à entrada do campo e deles tinham saído homens e mulheres, soldados, médicos e enfermeiras. Alguns tiravam fotografias ou conversavam com os homens e distribuíam bombons às crianças.
Aproximei-me no meio da multidão para ouvir o que diziam. Os homens de branco falavam em inglês e eu não conseguia apanhar senão uma palavra ou outra pelo ar. "Que dizem eles? Que dizem eles?" perguntava-me uma mulher com inquietação. Tinha ao colo uma criança de rosto emaciado e cabeça coberta de tinha. "São médicos e vêm para nos tratar." Disse aquilo para a acalmar, mas continuava a espreitar, semi-oculta no seu véu, repetindo: "Que dizem eles?"
No meio dos soldados havia um estrangeiro muito alto e magro, elegante, com um fato cinzento. Enquanto todos os outros traziam capacetes, ele estava de cabeça descoberta. Tinha um rosto doce, um pouco avermelhado e inclinava a cabeça para o lado, ouvindo o que lhe diziam os médicos. Pensei que devia ser o chefe dos estrangeiros e aproximei-me para o ver melhor. Queria ir ter com ele, falar-lhe, contar-lhe o que sofríamos, as crianças que morriam todas as noites e que
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enterrávamos todas as manhãs no sopé da colina, o choro das mulheres que ressoava de um extremo ao outro do campo e que me obrigava a tapar os ouvidos e correr até à colina para não as ouvir.
Quando começaram a andar pelas ruas com os soldados o meu coração começou a bater com toda a força. Corri para eles sem vergonha, apesar do vestido rasgado, dos cabelos emaranhados e do rosto sujo. Os soldados não me viram logo porque estavam a vigiar os lados, com medo que alguém os quisesse atacar. Mas ele, o homem alto de fato claro, viu-me e parou com os olhos fixos em mim, como se me interrogasse. Via perfeitamente o seu rosto doce, avermelhado pelo sol e os seus cabelos prateados. Os soldados agarraram-me, detiveram-me, apertando-me os braços com tal força que me magoavam. Compreendi que não conseguiria chegar até junto do chefe, que não lhe conseguiria falar, e portanto gritei o que sabia em inglês e que era: "Good morning sir! Good morning sir!..." Gritava aquilo com toda a força e queria que ele compreendesse apenas com aquelas palavras tudo o que eu tinha para lhe dizer. Mas os soldados afastaram-me e o grupo dos homens de branco e das enfermeiras passou. Ele, o chefe, voltou-se para mim, olhou-me sorrindo e disse qualquer coisa que não compreendi mas que julgo que era apenas: "Good morning." E todas as pessoas avançaram com ele. Vi afastar-se pelo campo a sua alta silhueta clara com a cabeça um pouco inclinada para o lado. Voltei para junto das outras mulheres e crianças. Estava tão cansada pelo que tinha feito que nem sequer sentia a dor dos braços nem o desespero de não ter conseguido dizer nada.
Voltei para casa. Aamma Houriya estava deitada com o cobertor por cima. Notei como estava pálida e magra. Perguntou-me se os camiões com alimentos tinham chegado finalmente e, para a confortar, disse que o camião tinha trazido tudo: pão, óleo, leite, carne seca. Falei também dos médicos, das enfermeiras e dos medicamentos. Aamma Houriya murmurou: "Ainda bem. Ainda bem." Continuou deitada no chão com o cobertor por cima e a cabeça apoiada sobre uma pedra.
A doença chegou ao campo apesar da visita dos médicos. Já não se tratava da morte furtiva que levava as crianças mais pequenas e os
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velhos durante a noite, esse frio que penetrava no corpo dos mais fracos e apagava o calor da vida. Agora era uma peste que percorria as ruas do campo e espalhava a morte em pleno dia, a qualquer momento, mesmo entre os homens mais válidos.
Tudo tinha começado com os ratos que víamos morrer nas ruas do campo, à luz do dia, como se tivessem sido expulsos do fundo dos barrancos. A princípio, as crianças brincavam com os ratos mortos e as mulheres atiravam-nos para longe com o auxílio de um pau. Aamma Houriya dizia que era preciso queimá-los, mas não havia gasolina nem madeira para fazer uma fogueira.
Os ratos tinham saído de todos os lados. Durante a noite, ouvíamo-los correr sobre os telhados das casas, com as unhas arranhando nos encerados e nas tábuas.
Era da morte que eles fugiam. Pela manhã, quando ainda madrugada ia buscar a água do dia, as redondezas dos poços estavam juncadas de ratos mortos. Nem sequer os cães selvagens lhes tocavam.
Primeiro morreram as crianças que tinham brincado com os ratos. A notícia espalhou-se pelo campo porque as crianças, irmãos ou amigos dos mortos, corriam pelas ruas gritando. As suas vozes agudas faziam ecoar palavras tremendas, incríveis, que elas próprias não compreendiam, como nomes de demônios: "Habouba!... Kahoula!..." Os gritos das crianças ressoavam no ar imóvel do princípio da tarde como gritos de pássaros sinistros. Saí sob o sol ardente e deambulei pelas ruas do campo. Não havia vivalma. Tudo parecia adormecido e, no entanto, a morte estava em todo o lado. No extremo norte, onde tinham ficado os recém-chegados, os ricaços de al-Quds, de Jaffa e de Haifa fugidos à guerra, as pessoas estavam amontoadas em frente de uma casa onde havia um homem vestido como um inglês mas com as roupas sujas e rasgadas. Era o dentista de Haifa. Fora ele que recebera no campo os médicos e o chefe dos estrangeiros. Tinha-o visto com os soldados. Olhara para mim quando eu correra para a frente deles, tentando falar ao homem de fato claro.
Estava em pé, à frente da casa, com um lenço sobre o rosto. A seu lado, amarfanhadas, as mulheres choravam com o véu cobrindo a boca e o nariz. Na sombra da casa estava estendido no chão o corpo de um rapazito. Tinha a pele do tronco e do ventre com placas de um
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azul escuro e tanto no rosto como até nas palmas das mãos tinha manchas terríveis.
O sol brilhava intensamente no céu sem nuvens e o calor fazia tremer as colinas de pedras em redor do campo. Lembro-me de ter vagueado lentamente pelas ruas, descalça no pó, ouvindo os ruídos que vinham das casas. Ouvia o bater do meu coração e estava rodeada pelo silêncio, sob aquela luz ofuscante, como se o mundo inteiro tivesse sido tocado pela morte. As pessoas escondiam-se na sombra das casas. Não se ouviam as suas vozes mas eu sabia que aqui ou além havia outras crianças, mulheres e homens que a peste tinha atacado e que ardiam de febre e gemiam por causa da dor provocada pelos gânglios inchados e duros debaixo dos braços, no pescoço e nas virilhas. Pensava em Aamma Houriya e tinha a certeza que as marcas fatais já tinham aparecido no seu corpo. Sentia-me angustiada. Não podia voltar para casa. Apesar do calor, trepei o declive de pedras até ao cimo da colina, até ao túmulo do velho Nas.
Não havia por ali crianças e o Baddawi não estava no seu abrigo de ramos. Já ninguém espreitava a chegada do camião com alimentos e, aliás, talvez nunca mais viesse. A peste ia aniquilar todos os vivos de Nour Chams. Talvez tivesse mesmo assolado a terra inteira, flagelo enviado pelos Djenoune aos homens por ordem de Deus para que acabassem com a guerra; depois, quando todos tivessem morrido e a areia do deserto recoberto os seus ossos, os Djenoune regressariam e reinariam de novo sobre o jardim do paraíso nos seus palácios.
Fiquei durante todo o dia à sombra dos arbustos calcinados esperando não sei o quê. Talvez esperando que Saadi chegasse. Mas desde que vivia ao lado da nossa casa já não vinha até ao túmulo. Quando se ausentava era por vários dias, para caçar lebres ou perdizes nas montanhas de leste ou no norte, em Bedus, onde dizia que existiam as ruínas de um palácio dos Djenoune tal como no vale da sua infância.
Durante todo o dia vigiei do alto da colina, esperando ver o vulto de um homem ou de uma criança, ouvindo as vozes longínquas das mulheres.
Desci antes do pôr-do-sol por causa dos cães selvagens que se aproximavam com a noite. Na casa sombria, não era Aama que estava doente mas sim Roumiya. Deitada no chão sobre o lençol, fora já atacada
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pelo mal. A febre tinha-lhe tornado o rosto tumefacto e os olhos estavam injectados. A sua respiração era acelerada, provocando um ruído doloroso e vagas de arrepios percorriam-lhe o corpo. Aamma Houriya estava silenciosa a seu lado. Embrulhada no seu véu azul, olhava-a sem se mexer. O bebê Loula não estava ali. Aamma tinha-o confiado a uma vizinha. De vez em quando, como eu tinha feito no barranco enquanto Roumiya estava a ter a criança, Aamma molhava um pano na bilha da água e torcia-o lentamente sobre o rosto da rapariga. A água escorria-lhe pelos lábios e molhava o pescoço e os cabelos. Os olhos de Roumiya já não viam. Já não ouvia, já nem sequer sentia a água que escorria sobre os lábios rebentados.
Durante a noite, Aamma Houriya não saiu de junto de Rouniya. Lá fora a lua estava cheia, magnífica, sozinha no meio de um céu azul-negro. Para não ouvir o som da respiração dormi cá fora, embrulhada no meu cobertor e com a cabeça apoiada na pedra da soleira. Saadi chegou de madrugada. Trazia perdizes e tâmaras selvagens. De pé, em frente da porta da casa, apoiado a um pau, parecia muito alto e magro. O seu rosto escuro brilhava como se fosse de metal.
Entrou em casa e fiquei atenta ao silêncio, como fazia nas ruas do campo. Saiu, deu alguns passos e sentou-se próximo da porta, esgotado. As aves mortas e as tâmaras espalharam-se no pó. Entrei em casa por minha vez. Aamma Houriya continuava sentada no mesmo lugar, com o pano na mão. Na penumbra conseguia ver o corpo de Roumiya, o seu rosto alterado, os olhos fechados, os cabelos louros molhados caídos nos ombros. Era como se estivesse a dormir. Lembrei-me quando ela chegara ao campo; parecia ter sido já há muito, muito tempo. Era o silêncio da morte e eu não sentia uma lágrima sequer a humedecer-me os olhos. Era uma morte como a da guerra, que gelava tudo em redor. O rosto de Roumiya não fora afectado pela doença. Estava muito pálida, com fundas olheiras negras em torno dos olhos. Nunca esqueceria aquele rosto. Como permanecesse imóvel, de pé, junto da porta, Aamma Houriya olhou para mim. O seu olhar era duro. com uma voz que nunca lhe ouvira, quase de ódio, disse: "Vai-te embora! Parte! Agarra no bebê e parte. Vamos morrer todos." Deitou-se no chão, ao lado de Roumiya, e fechou também os olhos como se fosse dormir. Beijei-lhe a cabeça e saí.
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Em casa da vizinha arranjei um embrulho com pão, farinha, fósforos, sal e várias latas de leite Klim para a Loula. Juntei-lhes também os meus cadernos, aqueles em que descrevera a minha vida dia-a-dia. Era tudo o que levava do campo. Saadi tinha a garrafa de água pronta. Atei o bebê às costas com um véu, agarrei no embrulho e saí do campo pela estrada por onde vinham os camiões de reabastecimento.
O sol estava ainda baixo, rasando as colinas, mas o horizonte já tremia. A dado momento, voltei-me para olhar o campo. Saadi, a meu lado, não dizia nada. Tinha o rosto tenso e duro. Poisou-me a mão no ombro e fez-me avançar.
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Avançaram para sul, por entre as colinas ressequidas, caminhando do nascer do sol até ao meio-dia. Quando o leite Klim acabou, Nejma disse que tinham que arranjar leite ou a criança morreria. Tulkarm estava ocupada pelos soldados. Do topo de um promontório Saadi vigiou durante todo o dia, imóvel, como costumava fazer no alto da colina pedregosa, próximo do túmulo do velho Nas. Tinha um olhar tão agudo que conseguia distinguir o arame farpado que cercava a cidade e os postos de metralhadoras escondidos com pedras. Do outro lado, havia a fita negra da via férrea que atravessava os campos férteis e, mais longe ainda, os fumos do porto de Moukhalid e a vastidão do mar sombrio e irreal.
Quando voltou, foi isso sobretudo o que Nejma ouviu: o mar, distante, inacessível. Estendeu-se à sombra de uma árvore para dar de beber a Loula, com o biberão em que desfizera as últimas colheres de leite em pó. Depois de beber, a criança recomeçou a gemer. Saadi partiu de novo.
Ficou ali à espera, junto da árvore, durante o resto do dia, durante a noite gélida e durante o dia seguinte ainda, quase sem se mexer, excepto para fazer as suas necessidades, rodando com a sombra da árvore. Já só havia um pouco de água açucarada para Loula e algumas bolachas Maria. Se Saadi não voltasse, morreriam.
O bebê sofria com sede e calor. Apesar dos panos que o envolviam, tinha a pele queimada pelo sol e os lábios gretados. Para o acalmar, Nejma cantou-lhe as canções da sua infância, mas já não se lembrava
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muito bem das palavras. Estava suspensa, com o olhar perdido no vácuo, escutando a respiração de Loula, um som estranho no silêncio das colinas.
Viu por várias vezes passarem sombras e o coração batia-lhe com força por julgar que era Saadi que voltava. Mas eram pessoas que fugiam de Tulkarm, que também se dirigiam para o sul. Passaram sem se aperceberem da presença de Nejma, sem ouvirem Loula choramingar no escuro.
Na segunda tarde, depois de Nejma ter feito a sua oração passando a mão pelo seu rosto e pelo da criança, preparando-se para morrer, Saadi regressou. Chegou até junto da árvore sem fazer ruído e disse a Nejma: "Vem ver." A voz era impaciente. Ajudou Nejma a andar. "Despacha-te." Um pouco abaixo, Nejma viu dois vultos claros atados a um arbusto: uma cabra e o seu cabritinho. Sentiu uma violenta alegria, como não sentia desde a infância. Correu para os animais, que se assustaram. A cabra esticou a corda, debatendo-se, e o cabritinho desatou a correr pelo meio do mato. Nejma poisou o bebê no chão e aproximou-se da cabra com uma das últimas bolachas na palma da mão. Quando o animal se acalmou, tentou ordenhá-la mas as suas mãos não tinham força.
Foi o Baddawi que mungiu a cabra para um prato de metal. As tetas túrgidas deitavam um leite espesso, aromático. Nejma deitou logo o leite quente no biberão e levou-o a Loula. O bebê bebeu sem tomar fôlego e a seguir adormeceu; Nejma deitou-a junto da árvore. Ainda havia leite. Saadi bebeu primeiro e Nejma a seguir, pelo mesmo prato. O leite morno e salgado escorria-lhe pela garganta e espalhava o seu calor por todo o corpo. "Que bom!" Pela primeira vez, Nejma voltava a ter esperança. "Agora já não morreremos." Disse aquilo em voz baixa, para si própria. Saadi fitava-a sem falar.
Caiu a noite e deitaram-se no chão com Loula entre os dois. Nejma ouvia na escuridão o cabritinho tropeçando nas pedras e depois as cabeçadas quando mamava na mãe. As estrelas brilhavam no céu escuro. Há muito que Nejma não as olhava. Eram lindas ali no sul. Não eram as mesmas que brilhavam sobre o campo.
Chegou o frio. Nejma agarrou na mão do Baddawi e ele veio para junto dela, passando por cima do corpo do bebê adormecido. com a
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cabeça apoiada no seu peito, Nejma sentia a vibração da sua vida, o seu cheiro. Ficaram durante um longo momento sem se mexerem, com os olhos abertos no escuro. O desejo cresceu no corpo do rapaz e ele desapertou a roupa. Nejma sentiu uma vertigem e começou a tremer: "Tens medo?" perguntou Saadi sem ironia, docemente. A rapariga agarrou-se a ele, envolvendo-o com os braços e as pernas e comprimindo o seu peito de encontro ao dele. Tinha a respiração acelerada como se tivesse corrido. Não pensava; havia apenas a noite fria lá fora, as estrelas brilhantes e o corpo ardente de Saadi, o seu sexo que a penetrava, rasgando-a.
Todos os dias avançavam um pouco mais para sul, pelo meio das colinas, distinguindo de vez em quando a linha escura do mar. Subiram depois o curso das ribeiras secas até Djemmal. A cabra e o cabritinho seguiam-nos, bebiam da mesma água dos poços, comiam as mesmas raízes. Todas as manhãs e todas as tardes, depois de Loula estar saciada, bebiam o leite morno que lhes dava forças. Saadi tinha ensinado a Nejma a forma de apertar as tetas tumefactas e fazer esguichar o leite.
Comiam bagas de murta e medronhos. Não entravam nas cidades com medo dos soldados. A guerra espalhava-se por todo o lado. O troar dos canhões ressoava ao longe como uma trovoada, mas não viam combates. Em certos sítios deparavam com casas destruídas, carcassas de cavalos e de burros e buracos de obus no solo. Um dia, quando se aproximavam de Azzoun, nas montanhas, ouviram no céu um ruído aterrador. Saadi e Nejma ficaram petrificados enquanto os aviões avançavam e a sua sombra corria sobre a terra. Os Constellations cruzaram lentamente o céu, traçando um semi-círculo de que Nejma e Saadi pareciam ser o centro. Entretanto, a cabra e o cabritinho fugiram pelo meio das moitas. Quando os aviões desapareceram no horizonte, Nejma tremia tanto que teve que sentar-se no chão, apertando a si a criança que chorava. "Não tem importância", disse Saadi. "Vão para o sul, para Jerusalém." Mas nunca tinha visto aviões tão de perto.
Correu para apanhar a cabra. Para conseguir agarrar na corda teve
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que ser manhoso e colocar-se contra o vento, como para caçar uma lebre.
Avançaram depois na direcção de Haouarah, para leste, durante toda a tarde. Ao cair da noite chegaram ao vale de Azzoun. Instalaram-se na margem da ribeira, sob as acácias. O tempo estava fresco, o vento murmurava nas folhas e havia morcegos no céu. Um pouco recuado, um olival abandonado desprendia um aroma sereno. Aqui, com a água da ribeira a correr suavemente, o cheiro das árvores e o som do vento nas acácias e nas palmeiras anãs, esqueciam a fome, a sede, a guerra, tudo o que matava as mulheres e as crianças e expulsava as pessoas de suas casas, a doença que fazia manchas no corpo e no rosto dos adolescentes e que consumira o corpo de Roumiya. Nejma ouvia a voz de Aamma Houriya repetindo: "Vai-te embora! Parte! Vamos morrer todos."
Saadi foi lavar-se na ribeira antes da oração. Voltou-se para o vale da sua infância, al-Moujib, e tocou a areia da margem com a testa. Quando estava já noite cerrada, despiu-se completamente, entrou na água e nadou durante momentos contra a corrente.
Nejma veio ter com ele. Ficou com o sherwal e, segurando o bebê contra o peito, entrou na ribeira. A água fria envolvia-a e formava turbilhões nas suas costas. Loula chorou, mas Nejma falou-lhe docemente e a água acabou por fazê-la rir. À luz das estrelas a ribeira cintilava entre as margens escuras. O vento soprava em rajadas, cantando nas folhas das acácias.
Quando Nejma saiu já Saadi tinha ordenhado a cabra. Deu o biberão morno a Loula e depois, alternadamente, beberam pelo prato de metal. Nejma queria acender uma fogueira para se aquecer mas Saadi receava atrair a atenção dos soldados. Comeram bagas de murta, figos selvagens e algumas azeitonas amargas. A criança dormia já numa cavidade da areia, embrulhada no véu de Nejma.
Saadi e Nejma deitaram-se sobre a roupa. Ouviam o som do vento nas folhas das acácias e o constante deslizar da água no vale. Saadi inclinou-se sobre o rosto de Nejma e aflorou-o com os lábios. A rapariga sentiu o calor do seu hálito embriagando-a. Quando ele a penetrou não sentiu dor. Envolveu-lhe o corpo com as pernas e os braços e as mãos rodearam-lhe a nuca. Ouvia o som da respiração,
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cada vez mais forte, e as palpitações do seu coração, cada vez mais aceleradas.
Instalaram-se para ficar no fundo do vale, onde a ribeira formava uma bacia de água profunda, azul como o mar, que os pássaros roçavam de passagem. Nas margens havia acácias, tamargueiras e oliveiras bravas. Numa colina acima do vale Saadi descobriu as ruínas de uma quinta: paredes de pedra e adobe e os restos de um telhado calcinado. O incêndio tinha queimado tudo em redor da quinta, até o curral. Nejma não quis entrar. Disse que era uma casa de mortos. Saadi guardou as cabras no curral e construiu um abrigo de ramos mais abaixo, na margem da ribeira.
Neste vale os dias eram longos e belos. Pela manhã, Nejma via a luz do sol que nascia no intervalo das colinas sobre a água da ribeira. A água brilhava como um caminho de pedrarias entre as margens ainda escuras. O céu clareava e as colinas rochosas saíam da noite. Nejma ia até à água, deixando Loula a dormir embrulhada nos seus véus, sob o abrigo. Lavava o corpo, o rosto e os cabelos voltada para o sol. Depois de fazer a oração, acendia o lume com os ramos secos que Saadi trazia. Cozia na marmita cercefis, cenouras bravas e outras raízes que Nejma não conhecia, ásperas e amargas. Só acendiam o lume de madrugada porque Saadi garantia que os aviões não os podiam ver por causa do nevoeiro. Nejma pensava que talvez a guerra já tivesse acabado e estivessem todos mortos nos campos, em Tulkram, em Nour Chams. Talvez os soldados tivessem voltado para casa.
Quando Loula acabava de beber o seu biberão, Nejma ficava sentada com ela à sombra das tamargueiras. Via a água correr na bacia profunda: há muito que não sentia uma tal paz. com os olhos semicerrados, podia sonhar com o bater do mar nos rochedos e com os gritos das gaivotas quando os barcos dos pescadores regressavam ao molhe.
Saadi procurava comida. Descalço, com a túnica de lã e o rosto e os cabelos ocultos pelo longo véu branco, percorria as colinas pedregosas em busca de raízes e bagas de murta. Um dia tinha descoberto uma colmeia pendurada nos ramos de uma acácia, como um fruto do
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sol. Acendera uma fogueira com folhas secas até que o fumo fizesse sair as abelhas e trepara então à árvore, quebrando a colmeia para tirar os favos. Nejma tinha saboreado, deliciada, aquele mel espesso que embebia os favos e até Loula tinha chupado algum.
Os dias passavam-se assim, do nascer ao pôr-do-sol, apenas com o som monótono da ribeira, os gritos e os choros de Loula e os balidos doces da cabra e do cabritinho. Saadi chamava Nejma "minha mulher" e ela ria. Gostava particularmente do fim da tarde, quando tudo acabava. Saadi voltava-se para a noite invocando o nome de Deus e depois vinha sentar-se ao lado de Nejma. Conversavam, enquanto Loula adormecia. Era como se não vivesse mais ninguém no mundo, como se fossem os primeiros ou os últimos, era o mesmo. Os morcegos surgiam no céu cinzento e passavam rasando a bacia de água profunda à caça de mosquitos. Saadi e Nejma bebiam o leite de cabra ainda morno, molhando alternadamente os lábios no prato de metal. As estrelas brilhavam à sua frente, no intervalo entre as colinas, e o vento frio da noite começava a fazer barulho nas folhas das tamargueiras.
Mais tarde, quando já estava realmente frio, Saadi inclinava-se docemente sobre os lábios de Nejma e ela bebia o seu hálito de vida. Era um momento tão ardente que lhe parecia sempre ter vivido apenas para ele, quando os seus corpos se uniam, quando o seu hálito e o seu suor se misturavam e tudo desaparecia em redor deles. Depois, quando Nejma sentia o sono entorpecer-lhe os sentidos, Saadi recitava em voz baixa, junto ao seu ouvido, um poema, um cântico que falava do seu vale natal, do pai, da mãe dos irmãos, dos rebanhos que conduziam para o vale onde corria o grande rio. Entoava-o para ela e para si próprio e depois deitava-se também, embrulhado na sua tú-i nica.
Uma noite, foram acordados por pessoas que se aproximavam. Caminhavam sombras pela beira do rio e detinham-se junto à bacia. Saadi estava atento, pronto para se defender. Ouviram então o choro de crianças. Eram fugitivos como eles, que caminhavam de noite e se escondiam durante o dia. De madrugada, Nejma foi à ribeira levando
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Loula embrulhada no véu e viu os recém-chegados: eram apenas mulheres e crianças vindas dos campos de Attil, Tulkarm e Kalansaoueh, ou das cidades da costa Jaffa, ÍVloukhalid e Tantourah. As mulheres contavam coisas terríveis: aldeias destruídas, queimadas, animais mortos, homens prisioneiros ou em fuga para a montanha, mulheres e crianças nas estradas com pacotes de comida à cabeça. Os que tinham tido sorte tinham-se metido em camiões para irem até ao Iraque. Havia soldados por todo o lado. Percorriam as estradas nos blindados, dirigiam-se a al-Quds ou mais longe ainda, ao lago salgado. As velhas salmodiavam, invocando os nomes dos filhos mortos. Algumas interpelaram Saadi: "E tu? Por que não estás a combater? Por que foges com as mulheres em vez de agarrares na tua espingarda?" Saadi não respondeu. Quando as mulheres viram que Nejma segurava uma criança deixaram de o invectivar. "É teu filho?" Afastaram o véu e viram que era uma menina. Nejma mentiu: "É a minha primeira filha. Chama-se Loula, a primeira vez." As mulheres desataram a rir. "Então tiveste esta criança da primeira vez que te deitaste com ele!"
Saadi queria ir-se embora. Dizia que agora iam vir mais pessoas e que os soldados os apanhariam. Disse-o, calmamente. Para ele partir era normal. Desde criança sempre agarrara nas suas coisas e caminhara pelo deserto, atrás dos rebanhos. Mas Nejma olhou em redor com tristeza. Era o primeiro lugar onde tinha podido viver sem pensar na guerra. Era como antigamente, em Akka, junto às muralhas, quando olhava o mar e não precisava do futuro.
Partiram ao romper do dia, levando à sua frente a cabra e o cabritinho, subindo o vale até a ribeira se transformar numa torrente de água límpida correndo por entre os rochedos. Uma manhã, ao chegarem ao cimo de uma montanha não longe de Houarah, Saadi mostrou a Nejma uma sombra verde no horizonte: "É o Ghor, o grande rio."
Para contornarem as falésias dirigiram-se para sul, na direcção de Yassouf, Loublan e Djidjiliah, e depois novamente para levante, até Mejdel. Saadi olhava o grande vale com inquietação. Subiam nuvens de poeira no ar. "Os soldados já lá estão." Mas Nejma não conseguia vê-los. A conjuntivite nublava-lhe a vista. Estava tão cansada que adormecia no chão, sem ouvir o choro da criança.
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Dormiram nas ruínas de Samra, antes de descerem para o rio. De manhã, ao acordar, Saadi tinha visto que o cabritinho estava morto. A cabra permanecia a seu lado e empurrava-o com os chifres, sem compreender. Saadi abriu uma cova na terra e enterrou-o. Para os cães vadios não o desenterrarem, colocou sobre o seu túmulo pedras da ruína romana. Depois mugiu a cabra, mas as tetas gretadas davam pouco leite, misturado com sangue.
Chegaram ao grande rio antes da noite. A água lodosa corria no vale por entre grandes árvores. Junto às margens, havia por todo o lado vestígios dos homens: marcas de lagartas dos tanques, pneus furados, rastos de botas, excrementos.
Seguiram para o sul, para al-Riha, a fronteira. Ao crepúsculo encontraram outros fugitivos. Desta vez eram homens que vinham de Amman. Estavam magros, queimados, esfarrapados. Alguns estavam descalços. Contaram dos campos onde as pessoas morriam de fome e de febre. As crianças morriam em tão grande número que tinham que deitar os corpos nos canais secos. Os que ainda tinham forças partiam para o norte, para o país branco, para o Líbano, para Damasco.
Saadi e Nejma atravessaram o rio antes do anoitecer, pela ponte guardada pelos soldados do rei Abdallah. Ficaram durante toda a noite à beira do rio. O calor era subterrâneo, como se houvesse um fogo ardendo nas profundezas. Quando o dia nasceu, Nejma viu pela primeira vez o mar de Lot, o grande lago salgado. Sobre a água havia estranhas nuvens azuladas e brancas que corriam para as falésias. Junto à margem, onde a água do rio transbordava, uma espuma amarela formava uma barreira que tremia ao vento. Nejma fitou o mar com os olhos ardentes. O sol ainda não se erguia no céu mas o sopro do vento já era quente. Saadi mostrou-lhe, para sul, as montanhas que a bruma esbatia: "É al-Moujib, o vale da minha infância." Tinha a roupa em farrapos, os pés descalços feridos pelas pedras e, sob o véu branco, o rosto estava ressequido e escuro. Fitou Nejma e Loula que gemia com a boca colada ao véu, procurando um seio para chupar. "Nunca chegaremos a al-Moujib. Nunca veremos os palácios dos Djenoune. Talvez também eles tenham partido." Disse tudo aquilo com a sua voz serena, mas as lágrimas corriam-lhe dos olhos, desenhando linhas sobre as faces e molhando a borda do véu poeirento.
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As mulheres e as crianças começavam a atravessar a ponte. Os fugitivos seguiam pela estrada na direcção de levante, rumo a Salt, para os campos de Amman, de Wadi al-Sirr, de Madaba, de Djebel Hussein. Sob os seus pés, a poeira formava uma nuvem cinzenta que o vento erguia em turbilhões. De vez em quando, os camiões com toldo dos soldados passavam na estrada com os faróis acesos. Saadi atou a corda da cabra ao pulso e passou o braço sobre os ombros da mulher. Começaram juntos a seguir pela estrada de Amman, poisando os pés nas pegadas dos que os tinham precedido. O sol brilhava bem alto no céu, brilhava para todos. A estrada não tinha fim.
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O FILHO DO SOL
Ramat Yohanan, 1950
Tinha encontrado o meu irmão, era Yohanan, o rapaz que na praia nos tinha dado borrego para comer quando chegámos pela primeira vez. Tem um rosto muito doce, mantém os mesmos olhos risonhos e os cabelos são negros e encaracolados como os dos ciganos. Quando entrámos no kibutz foi ele que nos mostrou as casas, os estábulos, a torre e os reservatórios. Fui com ele até à orla dos campos. Vi brilhar o lago por entre as macieiras e na colina, do outro lado da planície, distingui as casas dos drusos.
Yohanan continuava a falar apenas húngaro e, agora, algumas palavras de inglês. Mas isso não tinha importância. Falávamos com as mãos e eu lia nos seus olhos. Não sei se ele nos tinha reconhecido. Era vivo e ligeiro e corria pelo meio do mato sempre acompanhado pelo cão. Dava uma grande volta e regressava para junto de mim, arquejante. Ria por qualquer coisa. Era o pastor. Todos os dias, de madrugada, saía com o rebanho de cabras e ovelhas. Levava os animais a pastar do outro lado da planície, nas colinas. Levava num saco a tiracolo pão, fruta, queijo e qualquer coisa para beber. Às vezes era eu que lhe levava uma refeição quente. Atravessava os pomares de macieiras e quando chegava à orla da planície escutava o barulho das ovelhas para saber onde estava o rebanho.
Entrámos no kibutz de Ramat Yohanan no princípio do Inverno. Jacques combatia na fronteira síria, para os lados do Tiberíades. Sempre que tinha uma licença vinha com os amigos, num velho Packard verde todo esmurrado, com o pára-brisas estalado, íamos juntos até
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ao mar, andávamos pelas ruas de Haifa e víamos as montras. Ou então íamos para o Monte Carmel e ficávamos sentados no pinhal. O sol brilhava sobre o mar, o vento fazia barulho entre as agulhas e havia um odor a seiva. À tarde, vinha comigo até ao campo, ouvíamos música, discos de jazz. Yohanan tocava acordeão no refeitório, sentado num tamborete no meio da sala. A luz da lâmpada eléctrica fazia brilhar os seus cabelos negros. As mulheres dançavam, danças estranhas que embriagavam. Dançava com Jacques, bebia do seu copo de vinho branco e poisava-lhe a cabeça no ombro. Depois íamos passear ao ar livre, em silêncio. A noite estava clara, as árvores brilhavam suavemente e havia morcegos em redor das lâmpadas, íamos de mãos dadas, como crianças apaixonadas. Sentia o seu calor e o cheiro do seu corpo. Nunca o esquecerei.
íamos casar. Jacques dizia que isso não tinha importância porque era apenas um ritual para fazer a vontade à minha mãe. Seria na Primavera, quando ele voltasse da tropa.
Terminada a licença, voltava a partir no carro com os amigos, em direcção à fronteira. Não queria que eu lá fosse. Dizia que era demasiado perigoso. Ficava várias semanas sem o ver. Recordava o cheiro do seu corpo. Era Nora que nos emprestava o quarto para fazermos amor. Não queria que a minha mãe soubesse. Ela não me perguntava nada mas creio que desconfiava.
As noites eram suaves, cor de veludo. Ouvíamos o zumbido dos insectos por todo o lado. Nas noites de shabbat a música do acordeão chegava em lufadas, como uma respiração. Depois do amor, poisava o ouvido sobre o peito de Jacques e ouvia bater o seu coração. Imaginava que éramos crianças, tão distantes, tão sonhadores. Achava que tudo aquilo era eterno: a noite azul, o zumbido dos insectos, a música, o calor dos nossos corpos unidos sobre a estreita cama de campanha, o sono que flutuava à nossa volta. Às vezes conversávamos, fumando. Jacques queria estudar medicina. Iríamos para o Canadá, para Montreal ou para Vancouver. Partiríamos quando Jacques tivesse terminado o serviço militar. Casar-nos-íamos e partiríamos. O vinho dava-nos a volta à cabeça.
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OS campos eram imensos. O trabalho consistia em arrancar as pequenas plantas de beterraba de forma a que ficasse apenas uma de vinte e cinco em vinte e cinco centímetros. Os rapazes e as raparigas trabalhavam juntos, vestidos com as mesmas calças e blusões de tecido grosseiro e calçados com sapatos de grossas solas. De manhã os campos estavam congelados pelo frio da noite. Havia uma névoa leitosa agarrada às árvores e às colinas. Avançávamos agachados para colher os tenros caules das beterrabas. Depois o sol erguia-se no horizonte e o céu tornava-se de um azul muito intenso. Os regos dos campos estavam cheios de trabalhadores que faziam um barulho de aves. De tempos a tempos, à nossa frente, pássaros levantavam vôo.
Elizabeth ficava no campo. Tinha sido colocada na lavandaria, para lavar e arranjar as roupas de trabalho. Sentia-se demasiado velha para andar lá fora todo o dia, mas para Esther era simultaneamente duro e magnífico. Não se cansava de sentir o sol queimando-lhe o rosto, as mãos e os ombros através do tecido da camisa. Trabalhava com Nora. Avançavam ao mesmo ritmo ao longo dos regos, enchendo os sacos de juta com os rebentos arrancados. A princípio, conversavam e riam por andarem como patos. De vez em quando, paravam para repousar, sentadas na lama, fumando um cigarro a meias. Mas no fim do dia estavam tão cansadas que mal conseguiam andar. As pernas entorpecidas já não as seguravam. Acabavam o trabalho arrastando-se sobre os fundilhos. Pelas quatro horas, Esther voltava para o seu quarto e
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estendia-se na cama enquanto a mãe ia jantar. Quando acordava, era já manhã e um novo dia de trabalho começava.
Tinha em si o ardor do sol. Era por todos aqueles anos perdidos, por aqueles anos anulados. Nora também sofria desse ardor quase até à loucura. Às vezes deitava-se no chão, com os braços abertos em cruz e os olhos fechados, durante tanto tempo que Esther tinha que a abanar para a obrigar a levantar-se. "Não faças isso senão adoeces." Quando não havia trabalho nos campos, Esther e Nora iam levar comida ao pastor, lá nas colinas. Logo que as via chegar, Yohanan agarrava na harmônica e começava a tocar danças húngaras, as mesmas que costumava tocar no acordeão. As crianças da aldeia aproximavam-se timidamente, descendo pela colina pedregosa. Eram tão pobres que lhes víamos a pele escura através dos buracos da roupa. Quando viam Esther e Nora sentiam-se mais seguras e desciam mais, vindo sentar-se nas pedras para ouvir Yohanan tocar a harmônica.
Esther tirava a comida do saco: pão, maçãs, bananas. Dava-lhes a fruta e partilhava o pão. Os rapazes, mais audaciosos, agarravam nas coisas sem dizer nada e recuavam para os rochedos. Esther aproximava-se das miúdas, trepando pelas pedras até onde estavam, e tentava falar com elas, utilizando algumas palavras de árabe que tinha aprendido no campo: houbs, aatani, koul! As crianças riam, repetindo as palavras como se fossem de uma língua estrangeira.
Depois vieram os homens. Usavam a longa túnica branca dos drusos e cobriam a cabeça com um grande lenço branco que dançava sobre a nuca. Ficavam no alto, na linha das colinas, com as silhuetas recortando-se contra o céu como se fossem aves. Yohanan parava de tocar e fazia sinal para que se aproximassem. Mas os homens não se aproximavam. Um dia, Esther atreveu-se a trepar até junto deles pelo meio das rochas. Levava pão e fruta que deu às mulheres. Era silencioso e assustador. Entregou os alimentos e voltou a descer para junto de Nora e Yohanan. Nos dias seguintes, as crianças desciam logo que o rebanho chegava perto da colina. Desceu uma mulher com elas; tinha mais ou menos a idade de Esther, envergava um vestido comprido azul celeste e os cabelos estavam entrançados com fios de ouro. Ofereceu-lhes uma bilha de vinho. Esther molhou os lábios: o vinho era fresco, leve e um pouco ácido. Yohanan bebeu a seguir e Nora
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também. Depois a jovem pegou de novo na bilha e tornou a subir pelas rochas até ao cimo da colina. Restava apenas aquele silêncio, o olhar das crianças, o gosto do vinho na boca e o brilho do sol. Esther sentia que tudo era imutável, como se nunca tivesse havido nada antes, como se o pai fosse aparecer e caminhar também sobre as rochas, no alto da colina. Quando o sol se aproximava do horizonte, na direcção das brumas marítimas, Yohanan reunia os animais. Assobiava ao cão, agarrava no cajado e as ovelhas e as cabras começavam a dirigir-se para o centro da planície, onde o lago brilhava por entre os arbustos.
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ÀS vezes, à tarde, quando o sol declinava, Esther e Nora iam sentar-se nas plantações de abacateiros. A sombra da folhagem era fresca e ficavam ali um bocado, conversando e fumando, ou então Esther adormecia com a cabeça apoiada na anca de Nora. A plantação ficava numa elevação e via-se dali todo o vale. Ao longe, viam-se as colinas escuras para os lados do Tiberíades e as manchas claras das aldeias árabes. Mais longe ainda, a fronteira onde Jacques combatia. À noite, por vezes, viam-se os clarões dos morteiros como relâmpagos de tempestade, mas nunca se ouviam os trovões.
Nora era italiana, de Livorno. O pai, a mãe e a irmãzinha tinham desaparecido, levados pelos fascistas. No dia em que os milicianos apareceram estava em casa de uma amiga e sobrevivera durante a guerra escondida numa cave. "Olha, Esther, há sangue por todo o lado." Dizia coisas estranhas. Tinha um olhar vago e um vinco amargo de cada lado da boca. Quando não estava com a roupa de trabalho, vestia-se de negro como uma siciliana. "Vês o sangue a brilhar sobre as pedras?" Levantava as pedras lisas e divertia-se a fazer aparecer os escorpiões que fugiam sobre a terra poeirenta, por entre os abacateiros, procurando outro abrigo. Nora agarrava neles com dois pauzinhos sem lhes fazer mal e observava a glândula de veneno tumefacta e o dardo em riste. Dizia que podia domesticá-los e ensiná-los a fazer habilidades.
Quando trabalhava nos campos de beterrabas com Esther, detectava imediatamente as aranhas aninhadas sob os caules. Levantava-as
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suavemente com uma ervinha e colocava-as mais longe para que não lhes fizessem mal. No seu quarto, deixava as aranhas fazerem as suas teias no tecto, o que dava origem a estranhas estrelas cinzentas que estremeciam com as correntes de ar. A primeira vez que Jacques entrara no quarto tivera um movimento de repulsa. Tinha querido varrer as teias, mas Esther não o deixara: "Não podes fazer isso, são as amigas dela." Jacques tinha-se habituado. Também ele achava que Nora era um pouco louca. Mas não tinha importância. "De qualquer forma, é preciso ser-se um pouco louco para fazer o que aqui fazemos."
Um dia, enquanto Nora estava nos campos, tinham pintado o quarto e tudo ficara de um branco gelatinoso, do chão ao tecto. Nora ficara furiosa; vagueava pelo campo gritando, insultando os que tinham feito aquilo. Era por causa das aranhas; chorava porque as tinham destruído.
Esther e Nora tinham um esconderijo no fim dos edifícios, por baixo do reservatório da água. Fora Nora que o descobrira e refugiavam-se lá à tarde quando estava demasiado calor. Nora encontrara a chave que abria a porta por baixo do reservatório. Era uma grande sala vazia iluminada por duas seteiras. Só lá havia caixas, sacos de juta velhos, cabos e bidões vazios. Era escuro e frio como uma gruta. Não havia qualquer som a não ser o da água que corria nos canos e gotas que caíam regularmente, algures. Era estranho e inquietante. Por baixo das pedras, Nora descobria escorpiões brancos, quase transparentes, e outros muito pretos. Mostrava a Esther os anéis da cauda que mostravam a força do seu veneno. Desde que lhe tinham pintado o quarto de branco dizia que era ali que vivia. Queria fazer teatro. Andava de um lado para outro na grande sala recitando poemas em voz alta. Eram poemas parecidos com ela, veementes e trágicos, exclamações e apelos que traduzia para Esther. Dizia poemas de Garcia Lorca e de Maiakovski. Depois dizia versos em italiano, passagens de Dante e de Petrarca, textos de Pavese: Virá a morte e possuirá os teus olhos. Esther ouvia-a; era o seu único público. Nora dizia: "Sabes o que era bom? Trazer as crianças para aqui e ouvi-las cantar e brincar."
Pairava um silêncio denso como uma expectativa. Tinha acabado. Esther queria que tudo se mantivesse preenchido, que não houvesse
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lugar para o vazio da memória. Tinha copiado os poemas de Hayyim Nahman Bialik no seu caderno preto, um caderno igual àquele em que Nejma escrevera o seu nome a caminho do exílio. Lia:
"Irmão, irmão,
tem piedade dos olhos negros abaixo de nós,
porque estamos fatigados, porque partilhamos a tua dor.
Não encontrei a minha luz nas lições da liberdade
nem a recebi do meu pai.
Mordi-a na minha própria carne,
talhei-a no meu próprio coração.
A casa das crianças era no centro do kibutz. Funcionava nas salas do refeitório, que também serviam de escola. Tinham mesas e cadeiras para o seu tamanho, mas as paredes esTavam despidas, pintadas com o mesmo branco gelatinoso.
Era mais forte do que ela: havia momentos em que Nora não suportava ficar sozinha no reservatório, com o barulho da água e aquela luz deslumbrante lá fora. Caminhava ao ar livre, pelo meio das ervas altas que cresciam em redor do reservatório. Procurava serpentes. O rosto pálido parecia iluminado como uma máscara acima do vestido preto. Cruzava-se com Esther sem a reconhecer. A amiga tinha desaparecido no fundo da sua memória. Estava em Livorno e os homens da milícia tinham levado a sua irmã Vera. Errava como uma louca, gritando esse nome: "Vera, Vera, quero ver a Vera já!" Ia até à casa das crianças, entrava na sala de aulas e o professor estacava, com a frase de hebreu suspensa no quadro preto. Nora ajoelhava em frente de uma garotinha, abraçava-a, cobria-a de beijos, falava-lhe em italiano até que a criança, assustada, começasse a chorar. Então, de repente, Nora compreendia onde estava, ficava envergonhada e pedia desculpa em francês e em italiano pois não sabia mais nenhuma língua. Esther agarrava-a por um braço e levava-a até ao quarto, deitando-a na cama com muita doçura, como uma irmã. Sentava-se na cama a seu lado, sem dizer nada. Nora olhava em frente, fitando a parede demasiado branca, e depois adormecia de repente.
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Houve a Festa das Luzes que todos esperavam. Era a primeira vez, como se tudo fosse ser novo, como se tudo fosse recomeçar. Esther lembrava-se que o pai costumava dizer que era preciso recomeçar tudo desde o princípio. Quando se acendiam as hanoukkas, a terra devastada, as ruínas, as prisões, os campos malditos onde os homens morriam, tudo era lavado pela luz do Inverno, o frio da manhã e o fogo novo como um nascimento. Esther também se lembrava das palavras do Livro da Criação, quando, ao terceiro dia, as estrelas se tinham iluminado; lembrava-se das chamas das velas na igreja de Festiona.
Nessa altura ainda Jacques estava com ela. Devia partir imediatamente a seguir à festa. Mas Esther não queria ouvir falar disso. Tinha começado a colheita das pamplumossas. Jacques e Esther trabalhavam lado a lado. O pomar enchia-se com o barulho de todas aquelas mãos que apanhavam os frutos. Era uma manhã magnífica. O sol estava quente, apesar do ar frio. À tarde tinham ido para o quarto de Nora, permanecendo deitados com os corpos colados um ao outro e as respirações misturadas. Jacques dissera com simplicidade: "Vou daqui a bocado." Esther sentira as lágrimas inundarem-lhe os olhos. Era o primeiro dia, quando tinha sido acesa a primeira hanoukka.
Era aquela noite que não conseguia esquecer. A sala do refeitório estava cheia de pessoas, havia música e vinho para beber. As raparigas vinham ter com Esther e perguntavam-lhe em inglês: "Quando te casas?" Esther estava com Nora e embriagara-se pela primeira vez.
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Bebiam ambas vinho branco pela mesma garrafa. Dançou sem saber com quem. Sentia um vazio muito grande dentro de si e não sabia porquê. Não era a primeira vez que Jacques partia para a fronteira. Talvez fosse por causa de todo aquele sol que lhes queimara os rostos no pomar. Os cabelos e a barba de Jacques brilhavam como se fossem de ouro.
Nora ria e depois, de repente, desatou a chorar sem razão. Sentia-se agoniada com todo aquele vinho e o fumo dos cigarros. com a ajuda de Elizabeth, Esther acompanhou-a até cá fora, na escuridão. Seguraram-na as duas enquanto vomitava e depois ajudaram-na a seguir até ao seu quarto. Nora não queria ficar só. Tinha medo. Falava de Itália, de Livorno, dos homens que levavam a irmã Vera. Elizabeth molhou um pano e colocou-lho na testa para a acalmar. Adormeceu, mas Esther não queria voltar para a festa. Elizabeth foi-se deitar. Na cama, ao lado de Nora, à luz da lamparina, Esther começou a escrever uma carta. Não sabia muito bem a quem era dirigida; talvez a Jacques ou então ao pai. Ou talvez a escrevesse para Nejma, no caderno igual ao que ela tinha exibido no pó do caminho e onde tinham ambas escrito os seus nomes.
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Foi de manhã que Esther soube pela primeira vez que esperava um filho. Antes mesmo de ter a prova física, soube, sentiu esse peso, essa perturbação no centro de si própria, qualquer coisa que acontecera e que não podia compreender. Uma alegria, era isso, uma alegria como nunca antes sentira. Era de madrugada e dormira com a porta aberta para deixar entrar a frescura da noite ou talvez por causa do cheiro a vinho e a tabaco que impregnava o quarto e os lençóis. Elizabeth dormia ainda, silenciosamente. Era tão cedo que não havia qualquer movimento no campo e apenas alguns pardais esvoaçavam entre as árvores. De longe em longe, vinda do outro lado das casas, a voz rouca de um galo. Tudo era cinzento, estático.
Esther dirigiu-se ao reservatório e depois continuou a andar na direcção da plantação de abacateiros. Estava com um vestido leve e os pés nus calçavam sandálias beduínas compradas com Jacques no mercado de Haifa. A terra estalava sob os seus passos. À medida que avançava o dia ia clareando. Já havia sombras e as silhuetas das árvores destacavam-se no alto das colinas. Os pássaros levantavam vôo à sua frente, bandos de estorninhos prontos para a pilhagem que pairavam sobre os campos e deslizavam até ao lago.
Os ruídos começavam pouco a pouco. Esther ia reconhecendo uns a seguir aos outros. Achava que cada um deles lhe era dirigido, que estavam dentro dela como as palavras de uma frase que se desenrolava da frente para trás, mergulhando as raízes nas recordações mais longínquas. Conhecia-os, sempre os ouvira. Já existiam quando estava
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em Nice ou na montanha, em Roquebillière, em Saint-Martin. O canto dos pássaros, os chamamentos das ovelhas e das cabras no estábulo, as vozes das mulheres e das crianças, o zumbido da bomba da água, a vibração dos tubos e dos aerodínamos.
A dado momento, sem o ver, ouviu o rebanho de Yohanan afastando-se na direcção das pastagens, para o lado da aldeia dos drusos. A seguir, foi a vez do cow-boy abrir a porta do curral e levar as vacas a beber ao lago.
Esther recomeçou a caminhar pelos campos. O sol tinha aparecido por cima das colinas pedregosas, iluminando o cume das árvores e provocando reflexos vermelhos no lago. E dentro dela havia aquele sol, aquele ponto vermelho e ardente cujo nome ela desconhecia.
Pensou em Jacques. Não lhe diria nada por enquanto. Não queria que nada mudasse. Não queria que houvesse mais ninguém. Antes de partir para a fronteira Jacques dissera que se casariam quando estivessem no Canadá e que iria estudar na Universidade. Portanto Esther não queria falar de outra coisa, nem a Jacques nem a ninguém. Não queria pensar demasiado no futuro.
Seguia pelos campos ainda desertos. Dirigia-se para as colinas, longe, longe. Tão longe já que não ouvia os sons das pessoas nem os chamamentos do gado. Trepava pelo meio das plantações de abacateiros. O sol já ia alto agora e iluminava o lago e os canais de irrigação. Muito ao longe, a sul, havia a forma curvada do Monte Carmelo por sobre a bruma marítima. Paisagem nenhuma proporcionara aquela sensação a Esther. Era tudo tão vasto, tão puro e, ao mesmo tempo, tão desgastado, tão antigo. Esther não via com os seus olhos mas com os olhos de todos aqueles que tinham sonhado com aquilo, todos aqueles cujos olhos se tinham apagado com essa esperança, os olhos das crianças perdidas no vale da Stura, levadas nos vagões sem janelas. A baía de Haifa, Akko, o Carmelo, a linha escura das colinas tal como Esther e Elizabeth tinham visto surgir no horizonte em frente da proa do Sette Fratelli há já muito tempo.
Algo crescia, aumentava dentro de Esther, algo vivia dentro dela sem que o soubesse, sem que pudesse saber. Era tão forte que a fazia tremer. Não conseguia continuar a andar. Sentou-se numa pedra, à sombra de uma árvore, respirando lentamente. A sensação vinha de
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muito longe e sentia-se atravessada por ela. Lembrava-se das palavras de Joèl em Toulon, na prisão, as palavras na língua do mistério que se lhe formavam na garganta, que lhe enchiam todo o corpo. Gostaria de reencontrar todos agora, naquela terra, à luz do sol. Lembrava-se do momento em que ela e Elizabeth tinham tocado pela primeira vez aquele solo, a areia da praia, ao desembarcarem com a roupa suja e húmida do sal do mar e os embrulhos de pano velho.
Recomeçou a andar. Tinha saído das plantações e avançava pelo meio do mato. Estava longe do kibutz, no domínio dos escorpiões e das serpentes. E, de repente, voltou a sentir o medo. Era como antigamente, na estrada de Roquebillière, quando sentira a morte poisada sobre o pai, o vácuo se abrira à sua frente e correra até perder o fôlego.
Esther começou a correr. O som dos passos ecoava na colina, o som do sangue batendo nas têmporas, o som do coração. Estava tudo estranhamente vazio. Os campos pareciam abandonados, os regos regulares brilhavam cruamente à luz do sol como vestígios de um mundo desaparecido. Não havia pássaros no céu.
Mais adiante, Esther encontrou o rebanho de cabras e ovelhas. Os animais tinham parado no fundo de um barranco, espalhados pelos campos, e as cabras tinham mesmo começado a trepar ao talude e a comer os rebentos tenros de beterraba, chamando com as suas vozes de cana rachada.
Quando regressou ao kibutz, viu os homens e as mulheres reunidos em frente das casas. As crianças tinham saído da escola. À sombra do edifício central, sobre o cimento do pátio, tinham poisado o corpo de Yohanan. Esther viu-lhe o rosto muito pálido inclinado para trás. Os braços estavam ao longo do corpo e as mãos abertas. A luz que batia na parede fazia brilhar os seus olhos e os cabelos negros. Era terrível; parecia estar apenas adormecido no calor da tarde. Havia uma grande mancha escura sobre a camisa no ponto em que o assassino ferira.
No mesmo dia, Esther soube da morte de Jacques, morto na fronteira junto do lago Tiberíades. Quando os soldados vieram trazer a notícia não disse nada. Tinha os olhos secos. Apenas pensou: não vai voltar nunca mais, não vai ver o filho.
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Pela janela da varanda fechada olho a rua estática. O céu é tão distante e tão branco que é como se estivéssemos nas mais elevadas regiões da atmosfera. A rua está manchada de neve. Vejo as marcas sinuosas dos pneus, o desenho dos passos. Em frente do meu prédio há um jardim de árvores nuas erguidas de encontro ao céu pálido. Foi nesse bocadinho de jardim que Michel deu os primeiros passos. Os taludes ainda estão muito brancos, apenas com pegadas dos corvos. De cada lado da rua há grandes candeeiros curvos que à noite formam charcos de luz amarela. Os carros estão parados ao longo dos passeios atapetados de neve. Alguns não saíram dali há dias e têm os tejadilhos e os vidros cobertos de neve congelada. Vejo o VW de Lola, cuja bateria falhou no princípio do Inverno. Parece um destroço preso no gelo.
Ao fundo da rua, acendem-se as luzes de trás dos automóveis obrigados a travar no cruzamento. Os autocarros laranja e brancos contornam a praça e descem a rua na direcção do cruzamento. É ali que apanho o autocarro para Mac Gill. Foi lá que encontrei Lola pela primeira vez. Andava num curso de teatro, também esperava um filho e foi por isso que começámos a falar. Ao domingo, íamos de VW até Longueil ou ao cemitério do Mont-Royal ver os esquilos que viviam nos túmulos. Tudo isso está já tão longe que parece um pouco irreal. Agora o apartamento está vazio e há apenas alguns pedaços de cartão, livros velhos e garrafas.
É difícil partir. Não me tinha apercebido de ter armazenado tanta
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coisa ao longo de todos estes anos. Foi preciso empacotar, dar, vender. Ontem houve aquela venda no pátio, em frente da casa de Lola. Foi Philip que transportou tudo, ajudado por Michel e por Zoé, a filha de Lola: a loiça, os electrodomésticos, os brinquedos velhos, os discos, a pilha dos National Geographic. Depois da venda, houve uma espécie de festa, bebemos cerveja e dançámos. Philip falava um pouco alto demais. Michel e Zoé estavam com um ar um tanto envergonhado e desandaram rapidamente para ir jogar bowling com os amigos.
Era domingo e nevava. Lola quis que voltássemos juntas ao cemitério, como quando as crianças eram pequenas. Estava muito frio e por mais que procurássemos não vimos os esquilos que vivem nos túmulos.
É difícil regressar. Fito a rua com uma atenção dolorosa para fixar na memória cada pormenor. Tenho o rosto tão perto do vidro que sinto o frio na testa e a minha respiração forma dois círculos embaciados. A rua é ilimitada. Desce para o infinito das árvores despidas e dos edifícios de tijolos, para o céu pálido, como se bastasse apanhar um autocarro qualquer para ir até lá, até ao outro lado do oceano, até junto de Elizabeth, da minha mãe.
Agora, no momento de partir, é o rosto de Tristan que recordo, o seu rosto muito doce, ainda infantil, como o vi na penumbra dos castanheiros, em Saint-Martin, no dia em que iniciámos a nossa marcha pelas montanhas. Há pouco mais de um ano soube que Tristan está aqui, neste país. Parece que trabalha em Toronto, numa fábrica ou na hotelaria, não compreendi muito bem. Alguém falou dele a Philip, um número de telefone garatujado numa caixa de fósforos. Pensei nisso por momentos, mas depois perdi o número e esqueci.
Agora, no momento de partir, revejo o seu rosto mas é do outro lado da minha vida, é o adolescente que me irritava porque o encontrava por todo o lado e a quem acusava de me andar a espiar. Não é o homem de quarenta anos que quero ver, barrigudo e grisalho, com os seus negócios em Toronto. É a criança de Saint-Martin, quando nada tinha mudado ainda no mundo, quando ainda julgávamos que tudo era possível, mesmo havendo guerra à nossa volta. O meu pai estava ali, na soleira da porta, e Tristan apertava-lhe a mão compenetradamente. Ou então, no fundo do desfiladeiro onde ressoa a água da torrente,
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Tristan apoia o ouvido sobre o meu peito nu e ouve o bater do meu coração como se fosse a coisa mais importante do mundo. Como pôde desaparecer tudo isso? Dói-me cá dentro, não consigo esquecer.
É mais difícil regressar do que partir. Regresso por causa de Michel, para que reencontre finalmente a sua terra e o seu céu, para que esteja finalmente em casa. Apercebo-me de repente que ele tem exactamente a idade que eu tinha quando subi para bordo do Sette Fratelli. A diferença é que hoje, com o avião, bastarão algumas horas para ultrapassarmos o abismo que nos separa da nossa terra.
Olho esta rua e sinto vertigens. Pensava que estava tudo tão longe, quase inacessível, do outro lado do tempo, no final de uma viagem longa e dolorosa como a morte. Pensava que fosse precisa toda a minha vida para o conseguir e afinal está ali, amanhã. Mesmo no fim desta rua. Do outro lado dos semáforos, onde os autocarros laranja e brancos viram e desaparecem entre as falésias vermelhas dos prédios.
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É nela que penso agora, em Nejma, a minha irmã com perfil de índia de olhos claros, que encontrei apenas uma vez, por acaso, na estrada de Siloé, perto de Jerusalém, surgida de uma nuvem de pó, desaparecida noutra nuvem de pó, quando os camiões nos levavam para a cidade santa. Às vezes parece-me sentir ainda o peso leve da sua mão poisada no meu braço, o seu olhar interrogador, observo-a enquanto escreve lentamente o nome em caracteres latinos na primeira página do caderno preto. É a única certeza que tenho em relação a ela depois de todos estes anos, através da nuvem de pó que a cobriu: esse caderno preto em que eu também escrevi o meu nome como para uma misteriosa aliança.
Sonhei com esse caderno. Via-o durante a noite, coberto com uma caligrafia fina desenhada com o mesmo lápis preto que tínhamos utilizado alternadamente. Sonhei que sabia decifrar aquela escrita e que tinha lido o que ela contava apenas para mim, uma história de amor e de errância que podia ter sido a minha. Sonhei que o caderno tinha chegado à minha mão pelo correio ou que tinha sido deixado à porta do meu apartamento em Montreal por um misterioso mensageiro, como essas crianças abandonadas no tempo de Dickens.
Então comprei também um caderno preto no qual escrevi o seu nome na primeira página: Nejma. Mas era a minha vida que ali punha, um bocadinho todos os dias, os meus estudos na Universidade, Michel, a amizade com Lola, o encontro com Berenice Einberg, o amor de Philip. E também as cartas de Elizabeth, a expectativa do
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regresso, as colinas tão belas, o cheiro da terra, a luz do Mediterrâneo. Era ela, era eu, já não sabia. Um dia hei-de voltar à estrada de Siloé e a nuvem de pó abrir-se-á e Nejma caminhará na minha direcção. Trocaremos os cadernos para abolir o tempo, para apagar os sofrimentos e a queimadura dos mortos.
Philip fazia troça de mim: "Estás a escrever as tuas memórias?" Talvez julgasse que era apenas um diário de adolescente retardada, daqueles onde contam os seus amores e as suas confidencias.
Tenho procurado Nejma até agora. Espreitava-a pela janela nesta rua coberta de neve. Procurava-a com os olhos nos corredores do hospital, por entre as mulheres pobres que vinham à consulta. Nos meus sonhos ela surgia em pé à minha frente, como se acabasse de abrir a porta, e eu sentia a mesma atracção e o mesmo ódio. Olhava-me e eu sentia no meu braço o toque leve da sua mão. Nos seus olhos claros havia a mesma interrogação. Nada nela tinha mudado desde o dia em que a encontrara. Usava o mesmo vestido, o mesmo casaco cinzento de pó e o mesmo lenço que semi-ocultava o seu rosto. E havia sobretudo as suas mãos, as suas mãos longas e morenas como as de uma camponesa. Estava sempre só, as outras mulheres e as crianças que caminhavam a seu lado tinham desaparecido. Vinha do exílio, das terras da seca e do esquecimento, sozinha, por mim apenas.
Quando Jacques morreu fiquei arrasada, deixei de sonhar. Elizabeth levara-me para sua casa. Tinha-se instalado em Haifa num edifício de onde se via o mar. Não sabia onde me encontrava. Vagueei pelas ruas até à praia onde tínhamos desembarcado há já muito tempo. Encontrava sempre a mesma mulher no meio da multidão, uma silhueta sem rosto, vestida de farrapos, com o rosto coberto com um véu sujo de pó, que avançava em grandes passadas ao longo dos regatos com ar demente, perseguida por crianças que lhe atiravam pedras. Às vezes via-a sentada junto de uma parede, abrigada do sol, indiferente ao movimento dos automóveis e dos camiões. Um dia aproximei-me: queria ler nos seus olhos, reconhecer a luz de Nejma. Quando cheguei a seu lado estendeu a mão, uma mão esquálida de velha com veias salientes como cordas. Afastei-me, dominada por uma vertigem
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e a mendiga de olhar intenso cuspiu na minha direcção e desapareceu na sombra das ruelas.
Estava como Nora, via sangue e morte por toda a parte. Era Inverno e o sol queimava as colinas da Galileia e as estradas. Tinha no ventre aquele peso, aquela bola de fogo. À noite não conseguia dormir, as pálpebras abriam-se como se tivesse sal nos olhos. Não podia compreender. Era como se estivesse ligada a Jacques para além da morte por aquela vida que ele colocara dentro de mim. Falava com ele como se estivesse ali e pudesse ouvir. Elizabeth ouvia e acariciava-me os cabelos. Julgava que era tristeza. "Chora, Estrellita. Depois sentes-te melhor." Não queria falar-lhe da criança.
Durante o dia andava pelas ruas sem destino. Tinha o mesmo andar da louca que pedia esmola perto do mercado. Depois fiz uma
coisa insensata: meti-me num dos camiões militares que transportavam o material e os víveres, conseguindo convencer os dois soldados tão jovens, ainda umas crianças, que ia à frente visitar o meu noivo. Fui até Tiberíades e aí comecei a andar pelas colinas sem saber para onde ia, apenas para andar na terra em que Jacques Berger tinha morrido.
O sol queimava e eu sentia o peso da luz sobre os meus ombros, nas minhas costas. Trepei pelos socalcos com oliveiras, passei por quintas abandonadas com paredes crivadas de balas. Não havia qualquer ruído. Era como na estrada de Festiona, quando ia espreitar a montanha de onde devia vir o meu pai. O silêncio e o vento faziam-me bater o coração, a luz do sol encadeava-me mas eu continuava a avançar, a correr por aquelas colinas silenciosas.
A dado momento vi um tanque parado na beira da estrada. Não passava de uma carcaça semi-calcinada, com as lagartas imobilizadas pela terra, mas senti muito medo e não me atrevi a avançar. Mais adiante cheguei às chicanas. Eram trincheiras reforçadas com toros que ziguezagueavam pelo flanco da colina como se fossem fragmentos de estrela invadidos pelas silvas. Caminhei ao longo delas e depois sentei-me na borda e olhei na direcção do lago de Tiberíades durante muito tempo.
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Foi ali que os soldados me encontraram. Levaram-me ao Quartel General para me interrogarem porque julgavam que fosse uma espia dos sírios. Depois um camião reconduziu-me a Haifa.
Elizabeth organizou tudo, decidiu tudo. Eu partiria para o Canadá, iria para Montreal, para a Universidade Mac Gill estudar medicina. Era o que Jacques Berger teria querido. Aceitei por causa da criança. Era o meu segredo. Queria que nascesse muito longe e que Elizabeth não soubesse. No fim de Março embarquei no Providence, um pequeno navio que trazia os víveres e os medicamentos das Nações Unidas para os refugiados árabes e que levava viajantes até Marselha. Em Marselha embarquei no Nea Hellas que transportava os emigrantes para o Novo Mundo.
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O meu sol nasceu no fim de Setembro. Tinha sonhado que nasceria na minha terra, lá longe, do outro lado do oceano, na praia onde Elizabeth e eu primeiro tínhamos chegado, quando o Sette Fratelli nos desembarcou. Os últimos meses da gravidez tinham sido difíceis; deixei de ir às aulas e foi um semestre perdido. Os professores eram indiferentes excepto Salvadori, o de Patologia, um velho de bigode e oculinhos redondos como Gandhi. Tinha-me dito: "Voltará depois, quando tiver acabado." Mantivera-me a bolsa sem me obrigar a fazer os exames.
Era Lola que tratava de mim como se fosse uma irmã. Também estava grávida mas o bebê não devia nascer antes do Natal. Apoiávamo-nos uma à outra, contávamos histórias e ela troçava do meu ar de bibendum. Também ela estava só. O namorado tinha desaparecido sem deixar direcção. Vivíamos quase sempre sós. Lola ensinava-me yoga. Dizia que era bom para nós: respirar, contrair o ventre, cruzar as pernas em meio-lotus, fechar os olhos e meditar. Lola era engraçada, alta e nervosa, com um rosto infantil, olhos azuis, cabelos frisados e pele de boneca holandesa. Chamava-se van Walsum e nunca compreendi porque os pais lhe tinham dado aquele nome mexicano.
Discutíamos nomes. Ela queria uma rapariga e enumerava os nomes, mudando todos os dias a ordem: Leonora, Sylvia, Birgit, Romaine, Albertine, Christina, Carlotta, Sonya, Maryse, Marik ou Marit, Zoé. Acrescentava sempre Hélène por minha causa. Achava que Zoé lhe ficaria bem, sobretudo se se parecesse com a mãe. "E o
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teu filho?" Eu decidira que seria um filho, o meu sol, mas fingia não pensar nisso. Tinha medo do destino. Não me atrevia a dizer-lhe que seria o meu sol. Dissera-lhe apenas que se fosse um rapaz teria o mesmo nome que o meu pai: Michel. "E se for uma rapariga?" "Então és tu que lhe escolhes o nome." Lola nunca tinha feito perguntas a respeito do pai do meu filho. Talvez julgasse que era um caso idêntico ao dela, um homem que me tivesse abandonado. Éramos muito semelhantes, tínhamos dado à costa em Montreal como madeira à deriva e um dia a onda levar-nos-ia outra vez e sabíamos que não tornaríamos a ver-nos.
Seria o filho do sol. Estava em mim desde sempre, feito da minha carne e do meu sangue, da minha terra e do meu céu. Seria trazido pelas ondas do mar até à praia de areia onde tínhamos desembarcado, onde nascemos. Os seus ossos seriam as pedras brancas do Monte Carmelo e os rochedos de Gelas e a sua carne a terra vermelha das colinas da Galileia; o seu sangue seria a água das nascentes, a água da torrente de Saint-Martin, a água lamacenta da Stura e a água do poço de Naplouse que a mulher da Samaria dera a beber a Jesus. No seu corpo haveria a força e a agilidade dos pastores e nos seus olhos brilharia a luz de Jerusalém.
Quando vagueava pelas colinas em Ramat Yohanan, na terra poeirenta das plantações de abacateiros, já sentia isso, essa presença, essa força, como uma parcela de sol, tão ardente e tão pesada de transportar. Como podiam os outros compreender? Tinham uma família, um local de nascimento, um cemitério onde podiam ver os nomes dos seus avós, tinham recordações. Eu apenas tinha esta bola no ventre que havia de aparecer. Era por isso que eu tinha vertigens, que sentia náuseas virem-me à boca e um grande vazio formando-se dentro de mim, uma abertura para um outro mundo, para um sonho. Lembrava-me das palavras do Rabi Joél na prisão de Toulon quando contava na sua língua misteriosa a criação de Ayicha. As palavras faziam-me estremecer e eu apertava a mão de Jacques para ele traduzir mais depressa. Agora eu sentia essa mesma força em mim, passava pelo meu corpo como se as palavras se tivessem realizado. As frases passavam, eram ondas que avançavam como as marcas do vento na água.
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Já não sabia onde estava: a sala de trabalho do hospital, com as paredes pintadas de um amarelo brilhante, as maças rolantes nas quais as mulheres estavam deitadas, aquela terrível porta castanha que batia nos dois sentidos quando a parteira levava uma parturiente, o tecto com as suas seis lâmpadas de néon que crepitavam, as grandes janelas gradeadas que davam para a noite, o céu de um cinzento róseo, um luar de neve e o silêncio das estepes, apenas quebrado pelos queixumes das mulheres e o som dos passos apressados no corredor, sobre as lajes de granito.
Sonhei que o sol ia aparecer do outro lado do mundo sobre a grande praia onde Elizabeth e eu tínhamos chegado há já tanto tempo. Sonhei que estava lá, estendida na areia, no meio da noite, com a minha mãe a meu lado para me ajudar e acariciar os cabelos, e ouvia o barulho doce das vagas deslizando sobre a praia, os gritos das gaivotas e dos pelicanos que, de madrugada, acompanham os barcos de pesca. Fechava os olhos e estava lá. Sentia o cheiro do mar e o sal nos meus lábios. Através das pestanas via a luz muito clara do amanhecer, a luz que vem primeiro do mar e que escorre docemente até à praia.
Jacques estava comigo, sentia a sua mão na minha, via o seu rosto tão puro, a luz doirada nos seus cabelos e na sua barba. Era por isso que o meu filho era o filho do sol, por causa da cor dos seus cabelos. Ouvia a sua voz traduzindo para mim as palavras do Livro da Criação: E deixou cair, Ele, o maior dos Seres, o sono misterioso sobre Adão que adormeceu e, rasgando uma das suas membranas, deu-lhe a sua forma e a sua beleza e deu toda a sua vontade a essa membrana que tinha tirado de Adão e fez Ayicha e levou-a até junto de Adão. E disse: Adão, esta é agora substância da minha substância, forma da minha forma, e chamou-a Ayicha porque tinha sido rasgada e feita segundo a sua vontade.
Era a noite mais longa que tinha vivido. Estava tão cansada que, entre as contracções, adormecia na sala de trabalho. "Quando vai começar?" perguntei à parteira, desencorajada. Ela beijou-me: "Minha querida, já começou." Eu sabia que o meu filho nasceria ao nascer do sol; era seu filho, teria a sua força e a força da minha terra, a força e a beleza do mar que adoro. Era de novo a travessia do porto de Alon para Eretz Israel e, fechando os olhos, sentia o baloiçar suave das
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ondas, via a superfície muito lisa da água ao amanhecer, quando a proa do barco se aproximava da margem, ouvia uma voz rouca que cantava blues. E depois o bebê começou a nascer e as vagas levavam-me até à praia onde eu tinha adormecido enquanto Elizabeth velava junto das bagagens. Era extraordinário. Era muito belo. Tinha dores mas sentia o barulho das ondas na areia transportando-me, fazendo-me deslizar sobre o mar que se abria. A praia estava toda iluminada pelo sol prestes a nascer. "Respire, faça força, faça força, faça força, faça força." A voz da parteira ressoava estranhamente na solidão daquela praia. Respirava sem gritar. Tinha lágrimas nos olhos e as vagas passavam no meu ventre. E Michel nasceu. Estava cega por toda aquela luz. Não sei quem me levou, não sei o que se passou. Dormi muito tempo deitada na grande praia lisa onde tinha chegado por fim.
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ELIZABETH
Nice, Verão de 1982, Hotel da Solidão
Elizabeth, que foi minha mãe, morreu ontem, há já tanto
tempo, e, de acordo com a sua vontade, espalharei as suas cinzas no mar que ela ama esta tarde, ao crepúsculo, quando já não houver ninguém nas praias e apenas restarem alguns pescadores imóveis no molhe, entorpecidos pela temperatura demasiado elevada da tarde. Fá-lo-ei sem lágrimas, quase sem sentir nada. Depois vaguearei pelas ruas paralelas ao mar e que têm nomes em i, como Ribotti, Macarani, Verdi, Alexandre Mari. Nos cruzamentos, sentirei lufadas do vento do mar, o cheiro que ela sempre adorou.
O sol esteve ardente durante todas estas semanas, todos estes meses. Os incêndios devoraram as colinas e o céu estava estranho, metade azul e metade escurecido pelo fumo. Todos os fins de tarde caía uma chuva de cinzas sobre o mar.
Nas esplanadas dos cafés havia turistas alemães, italianos, americanos, argentinos ou árabes. As pessoas falavam alto, muito alto, e as mulheres estavam muito perfumadas. Havia casais de homossexuais tímidos, enfermeiras e marinheiros gregos, cipriotas, tunisinos e soviéticos. Havia vagabundos germano-pratins, michelobulevardianos, vendedores de pizzas, gigolos e chulos. Havia cambistas, reformados da S. N. C. F. raparigas de ar ausente e cabelos pintados e adolescentes drogados até à morte. Havia banhistas holandeses de um vermelho vivo, trabalhadores cabildas, antigos combatentes, cabeleireiros, embaixadores, garagistas, ministros, sei lá!
Via este mundo e não o conhecia. Já não o reconhecia. Não reconhecia
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estas pessoas que iam e vinham, se ultrapassavam, paravam, conversavam e se tocavam; esta multidão que se escoava como uma borra espessa através de uma ranhura. Havia sobretudo esse ruído de passos, esse ruído de vozes apesar dos rugidos dos motores. Metidos nas suas conchas herméticas, os homens têm um olhar duro, distante, semelhante a um reflexo.
Elizabeth partiu em 1973, durante a guerra do deserto de Sinai, e foi nesse ano que casei com Philip e abri um consultório de pediatria numa rua barulhenta de Tel-Aviv, próximo do Teatro Habima. Como pude deixá-la partir? Devia ter compreendido que já estava doente, que sofria sem dizer nada. O cancro devorava-lhe o ventre e eu queria viver, depressa e intensamente, sem tentar adivinhar, sem hesitar.
Elizabeth partiu vestida de preto, com a sua mala pequena, a mesma que tinha quando chegara de barco. Tentei retê-la mas sabia de antemão que era inútil. Falei-lhe da minha profissão, de Philip, de Michel que precisava dela. Sorriu e fez um gesto com a mão, significando que não valia a pena exagerar. Disse: "Não sou eu que lhe vou fazer falta, ele é que me vai fazer falta a mim." Acrescentou, com uma alegria fingida: "Quando ele quiser, fará a viagem para me ir visitar. Há-de gostar." Quando subiu para o avião, no aeroporto, disse com uma calma cruel que me fez bater o coração: "Compreendeste com certeza que não vou para voltar. Parto para sempre." Sei agora por que dizia isso.
Caminho pelas ruas desta cidade que não conheço. Foi aqui que viveram o meu pai e a minha mãe durante toda a juventude. Vi o liceu onde ele ensinava História e Geografia, uma magnífica prisão de pedra cinzenta, com torreões, ameias e grades encimadas por bicos. Vi a oliveira enfezada que plantaram no relvado como símbolo da paz. Vi o relógio de sol com a sua máxima em latim que me fez pensar nas fórmulas do Pickwick Club. Procurei o prédio onde o meu pai e a minha mãe viveram, com a varanda sobre a ribeira. Mas agora a ribeira está ocupada por parques de estacionamento e pretensiosas construções de betão armado. Não longe dali, num edifício antigo, há um hotel com um nome que me agrada: Hotel Soledad, Hotel da Solidão.
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Aluguei ali um pequeno quarto, do lado do pátio por causa do barulho do trânsito. Quando estou estendida na cama estreita oiço o arruinar dos pombos, um vago som de rádio e gritos de crianças. Parece-me estar não sei onde, em todo o lado ou em lugar nenhum.
Quantos dias passados nesta cidade desconhecida, no ardor dos incêndios! Todos os dias traziam rumores da guerra no Líbano e notícia dos focos que surgiam entre os mouros, no Esterel, nas colinas do Var. Todos os dias, no pequeno quarto do hospital, perante o corpo exangue e magro da minha mãe; todos os dias vendo aproximar-se o seu fim, o seu desaparecimento. Oiço a sua voz fraca, distante; sinto a sua mão na minha. Fala-me de antigamente, do meu pai, e chama-o Michel; fala de Nice, de Antibes, dos dias felizes, dos passeios à beira-mar, das férias em Itália, em Siena, em Florença, em Roma. Fala-me de tudo isso como se eu lá tivesse estado, algures, já crescida, uma amiga, uma irmã, uma rapariga que um casal encontra por acaso num hotel à beira de um lago e que, como um roubo, partilha um instante a sua felicidade. O restaurante de Amantea, o mar tão azul, os promontórios avançando no crepúsculo. Tinha lá estado com ela, com o meu pai, tinha comido aquelas melancias frescas, bebido aquele vinho, ouvido a música das vagas e os gritos das gaivotas. Tudo o resto se apagava quando ela me falava de Amantea, desses dias de Verão a seguir ao seu casamento, como se eu também lá tivesse estado e tivesse visto os seus rostos iluminados pela juventude, ouvido as suas vozes, as suas risadas cúmplices. Falava e a sua mão apertava a minha com muita força, como então devia apertar a do meu pai quando se meteram nessa embarcação, deslizando sobre o mar cintilante da noite, rodeados pelos gritos embriagadores das gaivotas.
A voz de Elizabeth tornava-se mais fraca de dia para dia, contava interminavelmente a mesma história, repetia os mesmos nomes, as mesmas cidades, Pisa, Roma, Nápoles, e sempre esse nome de Amantea, como se tivesse sido o único lugar no mundo onde a guerra nunca chegara. Nos últimos dias, a sua voz estava tão fraca que tinha que me inclinar até quase tocar os seus lábios, sentir o sopro que arrastava essas palavras, esses farrapos de recordação.
Todos os dias saía do hospital ao crepúsculo e vagueava ao acaso pelas ruas com a cabeça cheia de vertigens, ouvindo esse nome que se
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repetia indefinidamente até se tornar obcessivo, Amantea. Amantea... Lia no jornal as notícias dos incêndios que ardiam em todas as montanhas, que devoravam as florestas de carvalhos verdes e pinheiros em Toulon, em Fayence, em Draguígnan, no maciço de Tanneron. Os incêndios que iluminavam Beirute à beira da morte.
Andava à noite pelas ruas sufocantes procurando as sombras, as recordações. E a mão de Elizabeth apertava a minha mão e a sua voz murmurava palavras incompreensíveis, as palavras de amor que pronunciava na praia, em Amantea, encostada ao corpo do meu pai, as palavras que ele lhe dizia como um segredo, e o mar parecia ainda mais belo, cheio de emulações luminosas, com as ondas avançando eternamente para a praia. Nos últimos dias já nem sequer podia falar mas as palavras ainda estavam nela, chegavam-lhe aos lábios, e eu inclinava-me para as captar com a respiração, para ouvir mais uma vez as palavras da vida. Então, era eu que falava porque ela já o não podia fazer, era eu que falava de tudo aquilo, de Siena, de Roma, de Nápoles, de Amantea, como se lá tivesse estado, como se tivesse sido eu a segurar a mão do meu pai na praia, olhando os vôos inconseqüentes das gaivotas no céu da tarde, ouvindo a música das ondas, vendo a luz extinguir-se para além do horizonte. Apertava-lhe a mão e falava-lhe olhando o seu rosto, o seu peito que mal erguia o lençol, mantendo a mão apertada para lhe dar um pouco da minha força. Na cidade sitiada já não havia água nem pão, apenas a claridade vacilante dos incêndios, o troar dos canhões e os vultos das crianças que erravam pelo meio dos escombros. Eram os últimos dias de Agosto e as montanhas estavam em chamas acima de Sainte-Maxime.
À noite, quando vagueava pela colina ao sair do hospital, via no céu aquele clarão semelhante a um crepúsculo. No Var estavam sete mil hectares em chamas e havia um sabor a cinzas no ar, na água, até no mar. Os cargueiros afastavam-se da cidade em ruínas levando carregamentos de homens. Os seus nomes estavam gravados em mim, chamavam-se 5o/ Georgios, Alkion, Sol Phryne, Nereus. Partiam para Chipre, para Aden, para Tunis, para Port-Soudan. Avançavam pelo mar liso e as ondas dos seus rastos iam-se alargando até virem morrer nas margens, nas praias. As gaivotas acompanhavam-nos durante muito tempo no céu claro do crepúsculo, até os edifícios da costa se
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transformarem em minúsculas manchas brancas. Nos dédalos das ruas os rostos interrogavam-me, os olhos fitavam-me. Via as mulheres e as crianças movendo-se como sombras nas ruelas destruídas, nos becos dos campos de refugiados em Sabra, em Chatila. Os barcos afastavam-se, iam para o outro lado do mundo, para o outro extremo do mar. O Atlantis deslizava lentamente ao longo do molhe, avançava pelo mar liso com o vento quente do crepúsculo; era alto e branco como um edifício. Seguia para o norte, para a Grécia, talvez para Itália. Olhava o mar, aquele mar cinzento de cinzas, como se fosse vê-lo aparecer na penumbra, com as luzes acesas, deslizando no seu rasto, no seu turbilhão de gaivotas.
Elizabeth estava tão fraca que os seus olhos já não me podiam ver. Falava-lhe longamente, perto da orelha, sentindo nos meus lábios as madeixas dos seus cabelos cinzentos. Tentava dizer palavras que ela amava, esses nomes, Nápoles, Florença, Amantea, porque eram as palavras que conseguiam ainda entrar nela e misturar-se com o seu sangue, com a sua respiração. As enfermeiras tinham tentado afastar-me mas eu permanecia agarrada às barras da cama, com a cabeça apoiada na mesma almofada, esperando, respirando, vivendo. O soro corria para as suas veias pelo tubo, gota a gota, e as minhas palavras eram como essas gotas, vinham umas a seguir às outras, imperceptíveis, muito baixinho, muito lentamente, o sol, o mar, as rochas negras, o vôo dos pássaros, Amantea, Amantea... Os medicamentos, as injecções, os tratamentos violentos, terríveis, e a mão de Elizabeth que, de repente, se crispava na minha com a força do sofrimento. As palavras, de novo, mais uma vez, para ganhar tempo, para ficar mais um pouco, para não partir. O sol, os frutos, o vinho borbulhante nos copos, a silhueta esguia das tartanas, a cidade de Amantea adormecendo no calor da tarde, a frescura dos lençóis sob a pele nua, a sombra azulada das persianas fechadas. Também eu conhecera aquilo, estava lá com o meu pai e com a minha mãe, estava naquela sombra, naquela frescura, na polpa dos frutos. Nunca houvera guerra, nada perturbara nunca a imensidade do mar tão liso.
Elizabeth morreu durante a noite. Quando entrei no quarto vi o seu corpo deitado na maça, envolto no lençol, e o rosto muito pálido, muito magro, com um sorriso sereno que não parecia real. O sofrimento
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nas suas vísceras extinguira-se com a vida. Olhei-a por momentos e saí. Preenchi os papéis que era preciso e um táxi levou-me até ao centro de cremação para o sinistro ritual. O forno aquecido a oitocentos graus transformou em poucos minutos a que fora minha mãe num montão de cinzas. Depois, em troca do dinheiro, entregaram-me um cilindro de ferro com a tampa enroscada que meti no meu saco de pôr ao ombro. Estava há anos naquela cidade, parecia-me que nunca mais dali poderia partir.
Nos dias que se seguiram, vagueei pelas ruas com o saco, sob o calor metálico dos incêndios que rodeavam a cidade. Não sabia o que procurava. Talvez as sombras perseguidas nesta cidade pelos agentes da Gestapo, todos os que tinham sido condenados à morte e se escondiam nas caves e nas águas-furtadas. Os que o exército alemão tinha capturado no vale da Stura, encerrado no campo de Borgo San Dalmazzo, próximo da gare, e que partiram nos vagões blindados, que atravessaram a gare de Nice durante a noite, que continuaram a sua viagem para norte, para Drancy e mais longe ainda, para Dachau, para Auschwitz. Caminhava pelas ruas desta cidade com os rostos flutuando à minha frente, iluminados pelo clarão dos candeeiros. Homens inclinavam-se para mim e murmuravam-me frases ao ouvido. Jovens riam e seguiam abraçados pela cintura. Os que o Perfeito Ribière tinha condenado à morte ao lançar a sua ordem de expulsão contra os judeus. Numa praia, do outro lado do mar, enquanto a cidade parece imobilizada na sua destruição, as crianças e as mulheres dos campos de refugiados olham os grandes navios que se afastam no mar tão liso. E aqui, nesta cidade, as pessoas andam de um lado para outro nas ruas, em frente das montras cheias de luz, são indiferentes, distantes. Passam nas esquinas em que as crianças mártires foram penduradas pelo pescoço, presas nos bicos dos candeeiros como em ganchos de açougue.
No dia seguinte ao desaparecimento de Elizabeth no crematório andei pela colina de Cimiez, pelas ruas calmas brilhando ao sol, com o aroma dos ciprestes e dos pitósporos. Havia gatos correndo por entre os carros e melros insolentes. As rolas saltitavam nos telhados das vivendas. O cheiro do incêndio tinha desaparecido e o céu já não tinha nuvens. Não sabia o que procurava, o que queria ver. Era como
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se tivesse uma ferida no coração, queria ver o mal, compreender o que me escapara, o que me atirara para um outro mundo. Parecia-me que se encontrasse o rasto desse mal poderia finalmente ir-me embora, esquecer, recomeçar a minha vida com Michel e Philip, os dois homens que amo. Poderia viajar de novo, falar, descobrir paisagens e rostos, estar no tempo presente. Tenho pouco tempo. Se não descobrir onde está o mal, terei perdido a minha vida e a minha verdade. Continuarei a ser errante.
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Vagueei durante todos estes dias, com o saco ao ombro, pelo meio dos jardins em frente dos prédios de luxo face ao mar. Depois encontrei-me perante um grande edifício branco, muito belo e muito calmo, iluminado pelos últimos raios do sol. Era esta casa que eu queria ver, bela e sinistra como um palácio real, rodeada pelo seu jardim à francesa, com o lago de água tranqüila onde os pombos e os melros vinham beber. Como era possível ainda não a ter visto? Era visível de todos os pontos da cidade. No extremo das ruas, por sobre a agitação dos automóveis e das pessoas, havia aquela casa branca, majestosa, eterna, que fazia permanentemente face ao sol e seguia o seu percurso de um lado a outro do mar.
Aproximei-me lentamente, com precaução, como se o tempo não tivesse passado, como se a morte e o sofrimento ainda ali estivessem, nos apartamentos luxuosos, no parque regular, sob as alamedas arborizadas, por trás de cada estátua de gesso. Avanço devagar pelo parque, oiço o cascalho estalar sob as solas das minhas sandálias e isso, no silêncio daquele espaço, é um som que parece ecoar com uma dureza seca, quase ameaçadora. Penso no Hotel Excelsior, que vi ontem perto da gare, nos seus jardins, na sua fachada barroca, na sua grande entrada enfeitada com anjinhos de gesso diante dos quais deviam passar os judeus antes do interrogatório. Mas aqui, na calma e no luxo do grande parque, sob as janelas da casa branca, apesar dos arrulhos das rolas e dos gritos dos melros, é o silêncio da morte que reina. Avanço e continuo a ouvir a voz do meu pai na cozinha da nossa casa,
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em Saint-Martin, a ouvi-lo falar destas caves onde todos os dias torturam e matam, destas caves ocultas sob o edifício sumptuoso onde ecoam à noite os gritos das mulheres espancadas, os gritos dos supliciados que são abafados nas sebes e nos lagos, esses gritos agudos que não é possível confundir com os dos melros e que talvez obrigassem a tapar os ouvidos os que não queriam compreender. Avanço sob as altas janelas do palácio, essas janelas de onde se debruçavam os oficiais nazis para vigiar com binóculos as ruas da cidade. Oiço o meu pai pronunciar o nome da casa, Ermitage, oiço-o dizer esse nome quase todos os dias no escuro da cozinha, quando as janelas estão calafetadas com papel de jornal por causa do recolher obrigatório. E esse nome tinha ficado dentro de mim durante todo este tempo como um segredo odiado, Ermitage, esse nome que para os outros não quer dizer nada, não significa senão o luxo dos grandes apartamentos sobre o mar, o parque tranqüilo onde os pombos se amontoam. Passo em frente da casa, olhando a fachada janela a janela e as bocas sombrias dos respiradouros por onde saía a voz dos torturados. Hoje não há ninguém e apesar da luz do sol e do mar que brilha ao longe, por entre as palmeiras, sinto uma espécie de frio no fundo de mim.
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No domingo seguinte à morte de Elizabeth tomei o autocarro até à aldeia de Saint-Martin. Na rua do regato procurei a porta da nossa casa, num nível mais baixo, com os três ou quatro degraus de pedra que lhe davam acesso. Mas tudo se me tornou estranho ou sou eu que sou estranha a tudo isto. O regato que saltita pelo meio da ruela, outrora forte e perigoso como um rio, não passa de um fiozinho transportando alguns papéis. As caves, as antigas escudadas, são agora restaurantes, pizzarias, vendedores de gelados e de recordações. Na praça há um edifício novo, anônimo. Procurei em vão o hotel misterioso e inquietante onde fazia bicha com o meu pai e a minha mãe, todas as manhãs, para marcarmos os nossos nomes no registo dos carabineiros; onde Rachel tinha dançado com o oficial italiano; onde os carabineiros tinham instalado o piano do pobre Sr. Ferne. Acabei por compreender que era aquele hotel modesto, duas estrelas, com os guarda-sóis com anúncios e as estranhas cortinas antiquadas nas janelas. Até a casa do Sr. Ferne, a vivenda da amoreira, tão estranha e abandonada, onde ele, no negro piano, tocava para si mesmo as valsas húngaras, se transformou agora numa vivenda de férias. Mas reconheci a velha amoreira. Esticando-me na ponta dos pés apanhei uma folha grande, finamente recortada, de um lindo verde escuro.
Segui para a parte de baixo da aldeia, até à curva de onde se pode ver a torrente e o desfiladeiro sombrio em que íamos tomar banho como se fosse o fundo de um vale secreto, e senti ainda os pêlos eriçarem-se-me
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na pele por causa da água gelada e da força do sol, ouvi o zumbido das vespas e senti sobre o peito a face macia de Tristan escutando o bater do meu coração. Pareceu-me ouvir os risos das crianças, os gritos estridentes das raparigas salpicadas pelos rapazes, as vozes que chamavam, como outrora: "Maryse! Sónia!" Senti apertar-se-me o coração e voltei rapidamente para a aldeia.
Não me atrevi a falar com ninguém. Aliás, os velhos morreram e os jovens partiram. Tudo foi com certeza esquecido. Os turistas passeiam pelas ruelas com as suas crianças e os seus cães. Na velha casa em que as mulheres acendiam as luzes do shabbat há agora uma garagem. Na praça onde os judeus se tinham reunido antes da sua partida para as montanhas, enquanto as tropas do IV Batalhão italiano subiam o vale e abandonavam a aldeia aos alemães, vi os jogadores de malha, os carros parados, os turistas que tiravam fotos e um vendedor de gelados belga. Apenas a fonte continuava a correr para a bacia como antigamente, deitando água pelas suas quatro bocas para as crianças que vêm beber, de pé sobre o parapeito.
Como não havia outro processo, pedi boleia na estrada de Notre-Dame-des-Fenestres. Parou um carro guiado por uma rapariga loura. Lá dentro ia também um rapaz moreno, com ar de italiano, e outra rapariga muito morena e com uns lindos olhos negros. Em poucos minutos o automóvel subiu a estrada através da floresta de larícios até ao santuário. Olhei sem emoção o caminho por onde Elizabeth e eu tínhamos seguido, tentei em vão descobrir a clareira onde dormimos, perto da torrente. Os jovens do carro tentavam conversar comigo. O rapaz disse qualquer coisa como: "É a primeira vez que aqui vem?" Disse que não, não era a primeira vez, tinha cá vindo há muito tempo. Ao fundo da estrada, sobre o círculo de montanhas, as nuvens já ocultavam os cumes. Os edifícios onde tínhamos dormido, o acampamento dos soldados italianos, a capela, tudo lá estava mas era como se tivessem tirado qualquer coisa, como se já não tivessem o mesmo significado. No edifício em que tínhamos dormido, em frente da caserna dos soldados, há agora uma pousada do Clube Alpino. Foi para lá, aliás, que os jovens levaram os seus sacos para passarem a noite. Por instantes apeteceu-me fazer-lhes companhia, dormir ali, mas era impossível. "Mesmo nesta estação é preciso reservar cama pelo menos
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com uma semana de antecedência." O guarda da pousada disse-me isto com um ar indiferente. Dantes era menos difícil!
Como já era tarde, não tive coragem de seguir pelo carreiro de pedras de onde voltavam os turistas. Sentei-me no talude, não longe dos edifícios, abrigada do vento por um muro de pedras, e olhei a montanha exactamente onde a tinha olhado até me arderem os olhos e sentir vertigens, quando esperava pelo meu pai que devia vir ter connosco. Mas agora sei que ele não poderá vir.
No próprio dia em que a minha mãe e eu partimos a caminho de Itália, o meu pai acompanhava um grupo de fugitivos em direcção à fronteira, acima de Berthemont. Foram surpreendidos pelos alemães cerca do meio dia. "Corram! Fujam!" gritou o homem da Gestapo. Mas quando tentaram fugir pelo meio das ervas altas, ceifou-os uma rajada de metralhadora e caíram uns sobre os outros, homens, mulheres, velhos, crianças. Foi uma rapariga que se escondeu nas moitas e depois num curral abandonado que contou isto e Elizabeth voltou para França por isso, para estar na terra em que o marido fora morto. Escreveu-o numa única e longa carta, em folhas de caderno de escola, com a sua letra fina e elegante; escreveu o nome do meu pai, Michel Greve, e os nomes de todas e de todos os que morreram com ele, no meio da erva, acima de Berthemont. Agora também ela morreu na mesma terra e o seu corpo está encerrado num cilindro de aço que trago comigo.
Avancei um pouco pela estrada na direcção de Saint-Martin. Ouvi o som tranqüilo da torrente e os rugidos da trovoada atrás de mim, nos castelos de nuvens. Foram turistas ingleses que me trouxeram no seu carro até à aldeia. Apesar da estação, consegui arranjar um quartinho num hotel ao fundo da Rua Central, numa velha casa que não conhecia.
Quis ver o lugar em que o meu pai tinha sido morto, em Berthemont. No dia seguinte de manhã, bem cedo, tomei o autocarro até ao cruzamento da estrada e segui até ao fundo do vale, até ao velho hotel abandonado onde antigamente eram as Termas. Continuei pela escada acima do curso de água sulfurosa e depois pelo carreiro que sobe para a montanha. O céu estava magnífico. Pensei que Philip e Michel também teriam gostado de ver aquilo, a luz da manhã brilhando nas
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encostas cobertas de vegetação e nos rochedos. Do outro lado do vale da Vésubie as altas montanhas azuis pareciam leves como nuvens.
Há tanto tempo que não ouvia este silêncio, que não saboreava esta paz. Pensei no mar, como o tinha visto uma manhã ao deitar a cabeça de fora do porão do Sette Fratelli, há tanto tempo que já parecia uma lenda. Imaginei o meu pai nesse barco, no instante em que o sol aflora o bordo do mundo e ilumina as cristas das ondas. Era assim que ele falava de Jerusalém, da cidade luz, como de uma nuvem ou de uma miragem sobre a nova terra. Onde está essa cidade? Existirá realmente?
Parei à beira da montanha, no ponto em que começam os grandes campos cobertos de erva onde Mario procurava as víboras, onde sonhei ver o meu pai avançar. O sol estava forte, brilhava no centro do céu e reduzia as sombras ao mínimo. O vale mergulhava ainda na sombra enevoada da manhã. Não havia nenhuma forma humana, nenhuma casa, nenhum ruído. A encosta coberta de ervas subia em direcção ao céu, ao infinito. A única marca era o caminho.
Compreendi que fora ali que eles tinham passado, o meu pai à frente, os fugitivos atrás, em fila indiana, as mulheres embrulhadas nos seus xailes, as crianças chorosas ou despreocupadas, e os homens atrás, com as malas, os sacos com víveres e os cobertores de lã. com o coração a bater, continuei a subir pelo meio das ervas altas. Era o fim do Verão, como há quarenta anos, lembro-me muito bem: o céu imenso, azul, como se pudéssemos ver o fundo do espaço. O cheiro das ervas queimadas, o som estridente dos grilos. Por sobre os vales sombrios, os milhafres voando em círculos e soltando gemidos. Tenho o coração a bater porque caminho para a verdade. Tudo está ainda ali, não esqueci, era ontem que a minha mãe e eu seguíamos pelo caminho de pedras aguçadas na direcção do fundo do vale, rumo a Itália, por entre nuvens de tempestade. As mulheres estavam sentadas na beira do caminho com os embrulhos poisados a seu lado, o olhar vazio, fixo. Aqui a erva inebria como um perfume capitoso; talvez os camponeses da aldeia a tenham ceifado e começasse a fermentar. O suor corre-me pelo rosto, pelas costas, enquanto vou seguindo pelo carreiro na direcção do topo da encosta coberta de vegetação. Estou agora num imenso prado que chega até aos rochedos dos
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cumes. Estou tão alto que já nem vejo o fundo do vale. O sol desceu na direcção das montanhas azuis, na outra vertente. As nuvens estão túrgidas, magníficas, oiço algures o ribombar da trovoada.
As cabanas dos pastores erguem-se à minha frente. São abrigos de pedra solta, sem idade. Talvez já aqui estivessem antes dos homens construírem as suas cidades, os seus templos e as suas cidadelas. À medida que me aproximo das cabanas sinto uma espécie de arrepio bem no fundo de mim que cresce apesar do calor do sol e do aroma embriagador das ervas altas que fermentam. De repente sei, tenho a certeza: é aqui! Estavam escondidos aqui, nas cabanas de pedra. Quando os fugitivos chegaram ao planalto, os assassinos saíram com as metralhadoras na anca e algum deles gritou em francês: "Fujam! Depressa, depressa, fujam! Vão-se embora que não lhes fazemos mal!" Foi um homem da Gestapo que gritou aquilo; vestia um fato cinzento muito elegante e usava chapéu de feltro. As mulheres e as crianças, as velhas e os homens, começaram a correr pelo meio das ervas altas como animais assustados. Então os SS carregaram no gatilho e as metralhadoras varreram o campo de ervas fazendo cair os corpos uns sobre os outros e os gritos agudos de pavor afogavam-se no sangue. Alguns ainda estão vivos, há homens que tentam fugir para a parte de baixo da encosta, seguindo o carreiro pelo qual subiram, mas as balas apanham-nos pelas costas. Os embrulhos, as malas, os sacos de farinha caíram no meio das ervas, há roupa e sapatos espalhados como para um jogo. Os soldados deixaram as bagagens. Puxaram os corpos pelas pernas até às cabanas dos pastores e ali os abandonaram à luz do sol.
É noite e a chuva começou a cair sobre o campo e sobre as cabanas de pedra. O carreiro desce pelo meio das ervas em direcção ao vale cheio de sombras como outrora, quando as folhas cortantes ficavam à altura dos meus lábios, e eu já não sabia onde estava. Já ninguém aqui vem. Talvez, no fim do Verão, os rebanhos de ovelhas conduzidos por um velho surdo que fala com o seu cão assobiando e que se senta numa pedra para ver as nuvens deslizar.
Desci a montanha quase a correr, no meio das altas ervas, pelo carreiro escorregadio. Continuará a haver víboras enlaçadas no seu combate amoroso? Haverá ainda alguém que saiba chamá-las como
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Mario, suavemente, assobiando por entre os dentes? Tudo gira em meu redor como se eu fosse o único ser vivo, a última mulher escapada às guerras. Parece-me agora que a cidade de luz, a Jerusalém que o meu pai queria ver, era lá em cima, no alto desta encosta coberta de ervas, com as suas cúpulas celestes e os minaretes que ligam o mundo terrestre às nuvens.
A sombra no vale estava tépida. A chuva deslizava sobre a estrada com um ruído doce. Foi um camião conduzido por um italiano que me trouxe de volta a Nice. Soube o que vim procurar. Daqui a dois dias chegarão Philip e Michel. Amo-os. Partirei com eles para o outro lado do mar, para o meu país onde a luz é tão bela. É sobretudo nos olhos das crianças que ela brilha, nos seus olhos de que quero afastar o sofrimento. Sei que vai recomeçar tudo. E penso ainda em Nejma, a minha irmã perdida há tanto tempo na nuvem de pó do caminho, e que eu tenho de reencontrar.
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O mar é belo ao pôr-do-sol. A água, a terra e o céu misturam-se. Há uma brisa que se espalha oculta imperceptivelmente o horizonte. E o silêncio, apesar do movimento dos automóveis, apesar dos passos das pessoas. Tudo está calmo no molhe onde Esther se senta. Olha em frente quase sem pestanejar. Há vários dias que vem a este lugar quando o sol declina para olhar o mar. Esta tarde é a última vez. Amanhã chegam Philip e Michel e juntos tomarão o comboio para Paris, para Londres. É preciso partir para esquecer.
Todas as tardes, à mesma hora, os pescadores vêm instalar-se sobre as lajes de cimento dos quebra-mares e preparam cuidadosamente as iscas, as canas, os carretos; têm gestos precisos e seguros. Esther gosta de os observar. Estão tão concentrados, tão cuidadosos, como se tudo o resto não passasse de sonhos, de delírio, da imaginação de um louco divagando sozinho no corredor do seu manicômio. E Esther pensa que a realidade é isso, esses pescadores na luz do crepúsculo, as linhas que lançam agora ao mar, os chumbos que assobiam e fustigam as ondas suaves e a fulguração da luz quando o sol, aumentado, desaparece na bruma. O olhar de Esther perde-se na imensidade azul-cinza à sua frente e depois fixa-se num barquinho, uma única vela esguia e triangular que atravessa lentamente a bruma.
É ainda o fim do Verão. Os dias são mais curtos e a noite cai bruscamente. Esther estremece, apesar da suavidade do ar. Os pescadores ligam um rádio no quebra-mar. A música chega em lufadas, trazida pelo vento, uma voz de mulher que canta com intensidade, dir-se-ia
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quase em falso, e o ruído dos parasitas por causa das trovoadas nas montanhas.
Os pescadores voltam-se de vez em quando, olham-na com um ar brincalhão, dizem coisas em dialecto local e Esther desconfia que falam dela, rindo. Alguns são ainda muito jovens, têm a idade do filho, são muito morenos, com ar italiano e camisas cor-de-rosa de mangas curtas. Que poderão dizer a respeito dela? Tem dificuldade em imaginar, vestida como uma vagabunda, como está, com os cabelos curtos já grisalhos, o rosto ainda infantil tisnado pelos dias que passou ao sol na montanha. Mas, de certa maneira, sente-se contente por ouvir as suas vozes, a sua música vulgar e os seus risos. É a prova de que são reais, que tudo aquilo existe, aquele mar lento, aqueles blocos de cimento, aquela vela que avança na bruma. Não vão desaparecer. Sente-se invadir pela leveza do ar, pela névoa luminosa. O mar entrou nela com a sua agitação, com os fulgores da luz refractada. É a hora em que tudo oscila, em que tudo se transforma. Há tanto tempo que não sente uma tal paz, um tal abandono! Lembra-se da ponte do barco à noite, quando não havia terra nem tempo. Foi depois de Livorno, talvez mais ao sul, perto da passagem do Estreito de Messina. Apesar da proibição do capitão, Esther tinha trepado a escada, saído pela escotilha entreaberta e rastejado pela ponte, sob o vento frio, até chegar ao posto da frente com precauções de ladrão. Era Silvio que estava de quarto e tinha-a deixado aproximar-se sem lhe dizer nada, como se não a tivesse visto. Esther lembra-se como o navio deslizava sobre o mar liso, invisível na noite, lembra-se do ruído doce da proa, da vibração dos motores por baixo da ponte. O rádio estava aceso no castelo da proa e os marinheiros ouviam uma música roufenha e estralejante como aquela que os pescadores ouvem naquele momento. Era a rádio dos americanos, da Sicília ou de Tanger; a música de jazz atravessava a noite em lufadas, como hoje; íamos sem saber para onde, perdidos no espaço. Afastava-se, voltava, a voz poderosa, rouca, Billie Holiday cantando Solitude e Sophisticated Lady, Ada Brown, Jack Dupree, os dedos de Little Jones no piano. Fora Jacques Berger que lhe ensinara aqueles nomes mais tarde, quando ouviam discos num velho gramofone, no quarto de Nora, em Ramat Yohanan. Jealous Heart. Esther lembra-se da música, cantava-a em
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voz baixa quando ia pela rua. Reencontrara tudo isso no Canadá, no apartamento da Avenida Notre-Dame, a música que ajudava a viver com a solidão e o frio, no exílio. Agora, no molhe, frente ao mar que escurece, divaga com a música que vem do rádio dos pescadores. Recorda-se como era então seguir rumo ao desconhecido, para o outro lado do mar. Mas sente apertar-se-lhe o coração porque pensa que isso já não existe para Elizabeth, que para ela não haverá mais viagem alguma. O barco deixou de deslizar sobre o mar liso, transportado pela música de Billie Holiday, quando Elizabeth deixou de respirar. Morreu durante a noite, só na sua cama de campanha, sem ninguém para lhe segurar na mão. Esther entrou no quarto e viu o rosto pálido tombado na almofada e a sombra escura sobre as pálpebras. Inclinou-se para o corpo frio e hirto e disse: "Não agora, por favor! Fica um pouco mais! Quero falar-te de Itália, de Amantea." Disse-o em voz alta, apertando nas suas a mão fria para fazer entrar um pouco de calor nos dedos mortos. A enfermeira entrou e ficou em pé junto da porta, sem dizer nada.
Tudo aquilo se afasta agora. É como se fosse um outro mundo, um mundo em que a luz era diferente, onde tudo tinha outra cor, outro sabor, onde as vozes diziam outras coisas, onde os olhos tinham uma outra forma de olhar. A voz do pai que dizia assim o seu nome, Estrellita, estrelinha, a voz do Sr. Ferne, as vozes das crianças que gritavam na praça, em Saint-Martin, a voz de Tristan, a voz de Rachel, a voz de Jacques Berger quando traduzia as palavras do Rabi Joèl na prisão de Toulon. A voz de Nora, a voz de Lola. É terrível sentir as vozes afastarem-se. Agora que já está noite, Esther sente que as lágrimas podem vir, pela primeira vez desde há muitos anos, desde que deixou a infância. As lágrimas transbordam dos olhos e correm pelas faces. Não sabe por que chora. Quando Jacques morreu, nas colinas de Tiberíades, vieram três soldados ao kibutz dar a notícia, dois homens e uma mulher. Disseram, como se pedissem desculpa: "Jacques Berger morreu a 10 de Janeiro e foi enterrado." Partiram imediatamente. Tinham expressões muito doces.
Esther não chorou nessa altura. Talvez nesse momento não houvesse lágrimas no seu corpo por causa da guerra. Ou talvez fosse por causa da luz do sol sobre os campos, sobre as plantações, da luz que
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dançava nos cabelos negros de Yohanan, por causa do silêncio e do brilho do sol. Agora, sente as lágrimas chegarem como se fosse o mar que subisse aos seus olhos.
No saco que transportou consigo todos aqueles dias, pelas ruas da cidade ou até ao cimo da montanha, pela encosta coberta de vegetação onde o pai morreu, Esther leva o cilindro de metal onde estão encerradas as cinzas. Faz girar a tampa com toda a sua força. O vento que sopra sobre os blocos de cimento é morno e chega até ela em rajadas, trazendo o som da música roufenha, parece a voz de Billie Holiday cantando Solitude para os lados do Estreito de Messina. Mas com certeza é outra coisa. O vento da noite leva as cinzas que saem da caixa metálica e dispersa-as na direcção do mar. Às vezes um turbilhão torna a trazer as cinzas para cima de Esther, cega-a, espalha-as nos seus cabelos. Quando a caixa fica vazia, Esther atira-a para longe e o seu ruído ao cair no mar faz os pescadores voltarem a cabeça. Fecha o saco e salta de bloco em bloco ao longo do quebra-mar, seguindo depois pelo cais. Sente uma grande fadiga, uma grande paz. Há morcegos dançando em redor dos candeeiros.

 

 

                                                                  J. M. G. Lê Clézio

 

 

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