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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ETERNIDADE / Nancy Holder
ETERNIDADE / Nancy Holder

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

                               Perto de Nias, Indonésia, 1863

Os mortos a perseguiam.

Ela estava amaldiçoada, e era da carne dos amaldiçoados que eles se alimentavam.

Sob o vento, eles mastigaram seu cabelo. Sob a chuva, roeram seus ossos.

Os mortos estavam sempre famintos.

Enquanto ela se arrastava pela floresta, eles cortaram sua pele com as presas e beberam seu sangue com as pontas de seus dedos esqueléticos.

Os espíritos se fartaram com sua carne viva. Seus órgãos, deliciosos tesouros, encontravam-se mais no fundo. O mais apreciado de todos era o coração. Com os ossos dos braços e das pernas quebrados, eles rasgavam a carne em busca da iguaria.

Os tambores eram as batidas do coração dos mortos, batendo cada vez mais rápido conforme se aproximavam. Quanto mais perto da morte ela chegava, mais alto os tambores soavam. Logo as batidas seguiriam o ritmo do seu coração e o mudariam para sempre. Como dois gravetos em atrito, o resultado seria uma faísca. Logo seu coração pegaria fogo e a queimaria por dentro, até que ela não passasse de uma pilha de cinzas.

 

 

 

 

Quando seu corpo virasse nada mais que uma memória, o demônio jin arrancaria sua alma e a devoraria. Ela ficaria condenada ao esquecimento. Não lembraria de sua vida nem de seu ser. Nada que foi dela vagaria pelo universo. Ela simplesmente sumiria, para sempre.

Agora somente Latura, Deus dos Mortos, poderia salvá-la desse destino. Os mortos eram seus servos. Se ordenasse que poupassem a mulher amaldiçoada, eles o obedeceriam.

E Latura a salvaria, porque somente ela conhecia as palavras que poderiam garantir o acesso ao mundo dos homens. O Deus dos Mortos habitava o Submundo, tendo por companhia apenas os demônios e os mortos. Seu mundo era a realidade mais próxima do esquecimento. Era a matéria-prima do inferno.

Era o inferno.

O irmão gêmeo de Latura, Lowalangi, era o Deus do Céu, o comandante do paraíso. Lowalangi havia criado a raça humana. Mas os humanos mudavam, viviam suas aventuras.

Os mortos nunca mudavam. Eram estáticos.

Latura ansiava por emergir do submundo e habitar entre os vivos. Para isto precisaria de alguém que realizasse sacrifícios incalculáveis, aumentando a população dos mortos para que ele pudesse descansar da tarefa de recolher seus corpos sem vida.

Alguém com vida para pronunciar seu nome e realizar ritos e rituais profanos, concentrando a energia mágica que o fortaleceria para a jornada.

Também necessitava de um veículo — um corpo vivo em que pudesse habitar. Este corpo deveria ser preparado corretamente, caso contrário arderia em chamas, e ele teria de retornar às profundezas.

A Serva entendeu agora que seu amante humano havia planejado aquele destino para ela, e a traição a chocou profundamente.

Quando o amante infiel percebeu que ela sabia, confessou seu amor e disse que não poderia prosseguir com seu sacrifício. No entanto, ela sabia que se tratava de mais uma mentira. Após ter previsto a própria morte, ele precisava deixar alguém para trás para continuar seu trabalho. Caso contrário, Latura entregaria sua alma como alimento aos mortos.

Então, sob o tormento da mesma punição, ela se tornou a nova assistente de Latura. Tinha de aprender os ritos e os encantamentos, e rápido, antes que seu amante fosse encontrado e morto. Se não conseguisse, Latura, em sua ira e frustração, deixaria que jin devorasse suas almas e os reduzisse a pó.

Agora seu amante estava morto, e somente ela sabia as palavras que trariam Latura de volta. Ela foi poupada da “honra” de se tornar o veículo a ser usado. Estava a salvo.

A menos que os segredos de Latura fossem escritos em algum lugar.

Mas a Serva não sabia escrever, mantinha o segredo em sua memória. Tal conhecimento a manteria viva, pelo menos até que a torturassem para arrancar-lhe a informação proibida.

Ou até que Latura perdesse a paciência e a entregasse aos demônios.

Se ela soubesse como seria servir àquele deus, nunca teria iniciado a jornada da qual se arrependia tão amargamente agora. O máximo que podia esperar era escapar dos devoradores de almas e entrar na terra da vida após a morte. Existir como um fantasma.

Existir, ainda que em sofrimento.

— Latura — ela sussurrou. Murmurou outros sons, palavras que não faziam sentido, que não eram uma língua deste tempo e deste mundo. Mas estas palavras o libertaram, ainda que apenas como uma força invisível.

— Latura.

Relâmpagos irromperam o céu. O vento uivou pela selva. Pássaros saíram em revoada, gritando, enquanto as árvores balançavam e caíam.

— Latura.

A selva agitada ficou gelada, incrivelmente gelada; e um cheiro de podridão subiu do chão como névoa.

O pânico se espalhou entre os animais.

Os tambores ficaram em silêncio.

Ela colocou o rosto sobre o chão e encobriu os olhos.

Tudo estremeceu, árvores e pedras antigas se abalaram com o movimento constante do chão da selva, subindo e descendo com impressionante força enquanto o Deus dos Mortos andava pela terra.

O fogo subiu e formou um anel em torno da Serva. O mundo ardeu em chamas. A selva úmida começou a queimar. A mulher sentiu o calor, inalou a fumaça. Não se moveu.

O temido Senhor das Sombras a ergueu do chão. Carregou-a sobre os ombros enquanto ela se debatia nos emaranhados de trepadeiras, arbustos e plantas primitivas. O vapor saía do grosso bambu. Os animais gritavam. Alguns morreram. As cobras deslizavam.

Guerreiros em capas pretas e coroas de penas emergiram da paisagem flamejante, aos berros. Suas lanças cortavam as hastes de bambu conforme avançavam em sua direção.

Ela estava no território de Nias, onde os habitantes eram caçadores e canibais. Latura ordenou a Serva que os alcançasse e prometeu que eles não tirariam sua cabeça.

O tremor era forte. Ela era uma Badui. Sagrados e exilados, os Baduis eram proibidos de ter contato com o mundo externo. Não podiam cortar o cabelo. Não podiam comer animais de quatro patas. Não podiam tocar em dinheiro. Não podiam cometer adultério nem roubar. No entanto, em nome de Latura, ela havia feito muitas dessas coisas. A mulher Badui, que atualmente se autodenominava a Serva, porque seu verdadeiro nome pertencia à sua outra existência, havia cortado o cabelo na altura dos ombros. Amou um homem casado em segredo, o chefe Badui, que cultuava Latura. Seu amante era violento, belo e assustador. Ele se sacrificara a Latura em seu próprio nome e no dela, e assim ambos tornaram-se servos fiéis do Deus dos Mortos.

Ela nunca soube como foi a primeira comunicação do amante com Latura nas profundezas. Este segredo morrera com ele. Porém, antes disso, ele misturou seu sangue ao dela e lhe passou a capacidade de conversar com Latura. Se ela não conseguisse trazer o deus para o mundo, seria seu dever gerar um novo Servo antes de sua própria morte.

Latura se aproximou dela, sob a forma de um redemoinho de fogo, e lhe contou muitos mistérios da vida e da morte. Ensinou-a encantamentos e poções mágicas. Podia controlar o avanço de doenças e da decomposição. Prometeu dizer-lhe as palavras mágicas que a poupariam da morte para sempre, se ela lhe fosse fiel.

Contudo, era impossível guardar segredos nas três pequenas aldeias proibidas dos Badui. Latura, o cruel e odioso Deus da Morte, era proibido. Antes do amante da Serva ter sido massacrado pelo seu próprio povo, ele implorou à amada que fugisse enquanto fosse possível.

Os Baduis a perseguiram, mas Latura a protegeu em troca de sua promessa de ir para Nias. Primeiro ele invocou a escuridão, e o céu se encheu de nuvens sombrias. Em seguida invocou o calor, e as selvas borbulharam e fervilharam.

Os aldeões andavam à espreita da Serva.

Latura enviou uma horda de demônios. Ela assistiu, escondida na selva, os monstros esverdeados arrancarem as cabeças daqueles que a perseguiam — muitos deles seus parentes — e puxarem seus corações para fora do peito.

Estes eram os sortudos.

Para os outros, a morte foi mais dolorosa. Seus corações pegaram fogo e queimaram dentro do peito, inflamando o sangue até que seus corpos se transformassem em cinzas.

Vendo essa cena, a Serva tremeu. Ela e seu amante deram a Latura suas almas, e agora ela pertencia ao Deus dos Mortos, para sempre. Deveria servi-lo até o fim dos dias. Embora sua aldeia a tenha amaldiçoado, seu juramento de lealdade era a maior maldição.

Agora, ao ver os caçadores vindo em sua direção, a Serva chorava com tanta força que saía sangue de seus olhos. Gritando, guerreiros chamavam uns aos outros e corriam atrás dela com suas lanças sobre a cabeça.

A Serva rezou para seus antigos deuses que tinham se afastado.

 

                                             Venice Beach, atualmente

 

“Ninguém vive para sempre”

— Danny Elfman, Oingo Boingo

 

Sob o sol brilhante do oceano, Meg Taruma deslizava com seus patins, ouvindo Oingo Boingo. Este grupo da Califórnia já estava desfeito há uma década e o líder, Danny Elfman, desde então tinha se tornado um famoso compositor de trilhas sonoras. Seu macabro senso de humor e o ritmo cativante eram eternos, e ela lastimava nunca tê-los escutado ao vivo.

Há seis meses em sua nova vida, Meg morava em uma velha e rústica mansão vitoriana em Venice Beach. Diz a lenda que um mago foi proprietário da grande casa de pedras com sacada e torres imponentes antes do estado dividi-la em apartamentos. À noite os degraus rangiam e o vento cantava pelos canos da chaminé. Era assustador, mas também divertido.

“Parecida com o Jusef”, disse a si mesma e sorriu.

Venice Beach era como as crianças da Indonésia imaginavam a Califórnia: uma cidade da moda, louca e sexy. Meg se sentiu em casa logo que Jusef a levou lá. E sentiu que deveria morar naquela cidade. E o prédio vitoriano, chamado “Casombra”, foi o único lugar que olharam antes de assinar o contrato de um ano.

Por três meses Meg estudou voz e dança, enquanto Jusef a preparava para ser a vocalista de sua nova banda. Na Ásia, Jusef Rais era um superastro de rock. Mas ele queria mais. Queria conquistar a América. E estava formando o Bahasa Fusion com este propósito. Meg acreditava que ele seria o próximo Ricky Martin, só que asiático.

E ela estaria ao seu lado durante todo o percurso.

Jusef era filho único de uma família incrivelmente rica da Indonésia, os Rais. Seu pai, Bang, era uma figura admirada por lá, tão idolatrado quanto temido, geralmente pelas mesmas pessoas. Milhares queriam que ele governasse o país, da maneira que escolhesse: presidente, primeiro ministro, ditador.

Jusef ficava superintimidado com seu pai, algo que Meg compreendia perfeitamente. Ela preferia fazer quase qualquer coisa a estar perto de Bang Rais. Pak Rais lhe dava arrepios. Ele estava sempre a observando. Jusef tentava não dar importância ao fato, dizendo que ela era gostosa. Como poderia culpar o velho?

Ela nunca disse a Jusef que seu pai a fazia lembrar dos homens que a procuraram depois da morte de sua família. Não tinha certeza se ele entenderia. Meg e Jusef eram indonésios e sabiam que ela recebeu o tratamento destinado às mulheres que tomavam o caminho que ela escolheu. Homens eram homens. A mulher que esperasse que um homem fosse diferente de sua natureza só estava procurando encrenca.

Tudo isso era apenas uma sombra frente ao imenso céu azul. Jusef teve medo que seu pai fosse impedir seu sonho. Como filho único, ele foi destinado a assumir o império da família. Na Indonésia, os filhos devem se comportar como filhos. Mas Bang fez a vontade do filho e escolheu o primo de Jusef, Slamet, para ser o próximo Rais a cuidar dos negócios.

Jusef se mudou para o condomínio da família em Los Angeles para correr atrás de seu sonho, fazer sucesso nos Estados Unidos. Slamet e Bang o visitavam com freqüência, trazendo uma comitiva, e costumavam ficar na América por meses. De acordo com Jusef, os dedicados seguidores de Bang estavam planejando uma tomada de posse do governo.

Meg não sabia se aquilo era verdade. Ela obedecia Jusef, e concentrava-se em sua música. Fazia ginástica na academia, aulas de dança e patinava sempre que podia. Tinha um corpo leve e atlético agora, e se vestia para exibi-lo. Usava short jeans cortados e camisetas baby look agarradas e sensuais. Sempre que um fortão malhando na praia de areia brilhante mexia com ela, Meg sorria. Seu cabelo negro, liso e incrivelmente comprido estava sempre preso em um rabo-de-cavalo e, conforme ela acelerava o ritmo, o prendedor caía. Quando sacudiu os cabelos, a galera dos sarados aplaudiu.

Sua sacola do McDonald’s estava presa no punho direito. Ela sabia que estava atrasada para o ensaio, mas Jusef a perdoaria. Afinal, foi ele que a manteve acordada a noite toda.

“Quanta melação...”

Ela sorriu porque se sentia bem, jovem e segura acima de tudo. Nunca mais seria a Mary Margaret Taruma, dos campos de morte onde todas as coisas boas do mundo foram feitas em pedaços.

Estremeceu com uma dor física ao pensar nessas coisas assustadoras e as afastou do pensamento. Foi preciso muito esforço durante mais de cinco anos para apagá-las. Graças a Jusef, elas quase sumiram.

Meg continuou patinando, assobiando a nova composição de Jusef. Chamava-se “Ressuscitando os Mortos” e ela esperava que a música os levasse à fama. Los Angeles curtia muito tudo que era “étnico”, e a banda deles, o Bahasa Fusion, era originalmente da Indonésia. Quando mais da metade das crianças nascidas em L.A. não são caucasianas, fica claro que há bastante espaço para tudo que supere o que Jusef chamava de “as fronteiras do pão branco”.

O namorado de Meg era alto para um indonésio, com cabelos negros espetados e olhos enormes que pareciam se fixar na pessoa para todo o sempre. O rosto de belos traços e o sorriso largo eram suficientes para convencê-la a fazer qualquer coisa que ele quisesse.

“Oh, Meg, você caiu de quatro”, disse a si mesma.

Mas não havia nada de errado nisso.

“Bem, algumas pedras aqui e ali.” Mas ela conseguia lidar com elas.

— Oi, gata. O que está acontecendo, gata?

Era o velho de pernas arqueadas que morava em uma casa abandonada a alguns quarteirões. Usava um agasalho laranja brilhante e um velho chapéu com uma pena comprida. Ele sempre esperava por Meg encostado em uma cerca de correntes. Todas as manhãs ela levava um Cheeseburger para o velho, que vivia dizendo às pessoas que havia cantado com Bo Diddley, o que não era verdade.

— Bom dia — ela disse ao parar.

— Tingtang wallawalla bingbang — respondeu ele. — Acertei?

Ela riu. O velho tinha decidido que aquela frase sem sentido significava “Bom dia” em indonésio.

— Quase perfeito — afirmou.

Entregou-lhe a sacola do McDonald’s e ele mais do que depressa pegou o Cheeseburger e o café. Pelo que Meg sabia, era a única coisa que ele comia durante todo o dia.

— Você é uma boa garota — disse, segurando o sanduíche. — Muchas gracias, amiga linglang.

— De nada — ela sorriu. — Cuide-se.

— Eu conheci Bo Diddley — falou.

— Sim, eu sei.

— Ele costumava me trazer dois Cheeseburger — acrescentou.

— Trago dois amanhã, que tal?

— Inky dinky parlez vous. — Mordeu o sanduíche com uma expressão de felicidade. — A ramalama ding dong.

— Até mais.

— Chattanooga choo-choo. Do-wah-diddy-diddy.

Ela fez tchau e saiu patinando. Alguns quarteirões depois, encontraria Olive LaSimone, uma senhora que dizia ter sido uma estrela do cinema mudo.

— Tão importante quanto Mary Pickford — diria a senhora enquanto regava os gerânios na frente de seu apartamento. Ela tingia seus cachos com o mesmo tom de laranja das flores.

Como não havia registros de uma atriz chamada Olive LaSimone, ela explicaria:

— Pickford me tirou da parada. Ela tinha ciúmes.

Jusef achava a pobre Olive engraçada.

— É como uma antiga egípcia — dissera à Meg na noite anterior. — Imagina que se for lembrada, viverá para sempre. É nisso que todos em Los Angeles acreditam, que se suas imagens forem capturadas pela película, nunca morrerão. Por isso querem ser astros de cinema.

Meg pensou em ponderar que nem sempre era assim. Mas não queria dar a impressão de que discordava dele em alguma coisa.

Jusef não gostava disso.

O oceano era azul, o ar salgado. Ela era nova. Não havia razão para irritar Jusef ou perturbar a paz entre eles.

Na verdade, ele era bastante genioso.

Os patins de Meg eram brilhantes e bonitos; ela estava quase voando do chão, como uma deusa alada. Passou pelo Lixão, um de seus pontos de referência, e pulou a guia com um salto gracioso.

Andou rápido pela rua, subiu a entrada à direita e virou a esquina. O complexo de apartamentos onde Olive morava era perto e...

Meg olhou pasma para o entulho fumegante que ocupava o lugar onde antes ficava o prédio.

E para o corpo chamuscado na calçada.

Ela gritou.

Uma mulher loira, que parecia amarrotada e cansada, vestindo uma capa de chuva caqui, mostrou-lhe um distintivo e disse:

— Por favor, circulando.

Mas Meg ficou congelada, paralisada. Não conseguia desviar o olhar.

O corpo de Olive era uma coisa preta e derretida. Meg nem saberia que era Olive se não fosse pelos poucos fios de cabelo laranja presos à cabeça, e os trapos do roupão colorido.

“Isso não aconteceu”, pensou enquanto as antigas lembranças tentavam emergir. “Nunca aconteceu.”

Começou a patinar.

A policial olhou para ela atentamente e disse:

— Você conhecia esta mulher? Posso fazer algumas perguntas?

 

Abaixo da barulhenta manhã da cidade de Los Angeles, Angel, o vampiro, acordava assustado. “Algo está errado”, pensou.

 

                                       Capítulo 1

Los Angeles, duas semanas depois

Chamas saíam pelo chão do apartamento imundo da zona leste de L.A. enquanto Angel agarrava o enorme demônio alado enrolado em seu peito e pescoço. A cobra monstruosa assobiava e se retorcia, ansiando por extrair a vida de sua vítima. Isso era um esforço totalmente inútil, pois Angel já estava morto.

“Pelo menos, tecnicamente.”

A criatura incandescente se enrolou com mais força, queimando um pedaço dos ombros e da parte superior do tronco de Angel. Que bom que respirar não era um problema.

Que pena que a dor era.

“Pior, eu não trouxe marshmallows.”

O apartamento era o próprio inferno. Pilhas de bilhetes de loteria, de corridas, e jornais de língua estrangeira estalavam e queimavam conforme a mobília de má qualidade praticamente explodia com o calor.

Angel estava horrorizado. “É aqui que os empregadores que oferecem salários de fome obrigam seus trabalhadores-escravos a morar. Na verdade, estes são os alojamentos bons, oferecidos às pessoas que ajudam a explorar seu próprio povo.”

Os trabalhadores comuns viviam em condições piores do que a maioria dos presos americanos. Sob segurança máxima. Em lugares onde os prisioneiros fariam uma rebelião e matariam guardas por estarem cansados de viver como animais.

A cada batida das grandes asas de couro negro da serpente, as chamas ficavam mais altas. Um abajur com franja vermelha de seda subiu como uma tocha. Hordas de ratos em pânico correram pelos escombros. Um roedor virou uma bola de fogo desfigurada e depois caiu pelo chão ardente e desapareceu.

Sobre uma cesta cheia de peças de máquina de costura chamuscadas havia um ventilador decorado com demônios de rosto verde, pintados à mão, e uma enrugada vasilha de isopor, que desapareceram nas chamas.

Enquanto Angel lutava com o monstro, uma figura masculina alta apareceu na porta de entrada. Angel teve a sensação de que ele apenas se materializou, como um fantasma. Embora seu semblante estivesse escondido pelas chamas, Angel pôde ver sua silhueta envolta em uma roupa preta e justa. O homem nada disse, nada fez. Simplesmente observou.

Quando Angel novamente conseguiu colocar as mãos ao redor do grosso corpo da cobra, o homem estalou os dedos. O couro do animal se transformou em uma superfície tão áspera como se estivesse forrada de cacos de vidro, e furou as palmas das mãos e as pontas dos dedos de Angel. Comandada por um assobio agudo, a cobra deu um bote, e mostrou no olhar possuir uma inteligência diabólica. Sua língua negra chicoteou enquanto ela lutava para enfiar suas presas no rosto de Angel.

— Seus trabalhadores vão queimar até a morte! — gritou Angel.

O homem fechou suas mãos, estendeu os braços e levantou os polegares. Chamas azuis saíram das juntas de seus dedos, percorrendo o minúsculo cômodo.

Imediatamente Angel soltou a cabeça da cobra e abaixou a cabeça. Teve o cuidado de manter os olhos fechados para proteger-se do brilho excessivo da energia mágica do ambiente enquanto agarrava os grossos anéis da cobra e os erguia na altura do raio de chama azul.

Segundos antes de ser atingida, a cobra enfiou seus dentes afiados como agulha no topo da cabeça de Angel, mas quando a energia azul penetrou seu corpo, gritou em agonia e soltou sua presa. Esperto, Angel conseguiu se desviar mais uma vez do homem que tentava atingi-lo.

Pedaços da cobra caíram pelo chão. Angel esquivou-se novamente de sucessivas rajadas de chamas azuis que saíam das mãos do estranho. Agachado no chão, ele rolou para a direita, procurando proteção atrás de um molde de costura.

O homem murmurou em uma língua que Angel não conhecia, e uma legião de facas de formato curvo e muito afiadas cortou o ar como mísseis teleguiados. Acertaram o molde. Dos cortes começou a sair fumaça e jorrar sangue.

Novamente o homem moveu as mãos, dando forma ao que quer que fosse lançar contra Angel em seguida.

Não eram uma nem duas, mas três serpentes aladas.

Angel puxou duas das facas presas ao molde de costura e as empunhou, espetando duas das criaturas, que gritaram, retorcendo-se como enguias no anzol. O vampiro as arremessou com habilidade nas chamas, onde explodiram em uma chuva de destroços nada atraente nem apetitosa. A terceira, ainda intacta, deslizou sobre a cabeça de Angel.

O homem aplaudiu. Uma caveira humana surgiu entre eles e se projetou diretamente para o vampiro, com os olhos em brasa e os dentes estalando.

Angel pulou sobre ela, agarrou-a com as duas mãos e a jogou no chão. A criatura gemeu e virou pó, como acontece com os vampiros. Do pó ao pó.

A terceira serpente aproveitou o momento para acertá-lo mais uma vez. Desta vez, caiu sobre o chão superaquecido e deu o bote em Angel, movendo-se na velocidade da luz. O vampiro calculou seu próprio salto no ar, a serpente saltou logo em seguida, mas Angel caiu de costas atrás da criatura, propositadamente longe da área abalada. A serpente caiu sobre o buraco que acabara de se abrir no chão. E explodiu, lançando pedaços de carne assada para todos os lados, inclusive na manga do casaco de couro preto de Angel.

— Ei — protestou o vampiro.

Do outro lado do cômodo, começou a sair fumaça do cabelo do estranho. Um clarão o iluminou. Pelas feições deu para ver que era asiático, possivelmente da Malásia. As sobrancelhas pesavam sobre os olhos, que mais pareciam buracos negros. O nariz era curvo, o queixo quadrado e saliente.

Uma fumaça densa e negra saiu do nariz e dos olhos do homem. Ele ergueu a mão e apontou para Angel. Seus olhos vermelhos, envoltos em carne e bolhas, cintilavam vazios e mortos.

— Você — disse, embora os lábios não tenham se movido. — Morto-vivo. Este mundo não o quer. Você nunca estará a salvo. Vai morrer sozinho e esquecido. Meu deus vai comer a sua alma.

O lugar se transformou em palco para uma tempestade de chamas. Um redemoinho impetuoso de fogo cercou Angel. Nada mais que uma mancha fumegante laranja e vermelha. Garras seguraram Angel com os dedos, rasgando suas roupas, seu cabelo, seu rosto.

A barra do casaco do vampiro pegou fogo, e ele o apagou com as mãos. Bolhas começaram a aparecer em sua pele. Até os olhos ficaram quentes.

Então o fogo ficou azul. Tudo no cômodo se tingira com a cor crepitante e intensa da energia que o homem alto lançara.

O azul transformou-se em um brilho intenso e logo depois congelou. Onde antes o fogo dançava, agora havia pedras de gelo estalando e resplandecendo. Uma camada fria se formou sobre as janelas e sobre os montes de ratos mortos.

Dentro do fogo onde estava o homem, a figura de uma mulher adorável e esbelta se materializou. Não tinha mais de vinte anos. Os cabelos negros azulados, enfeitados com folhas e pétalas de flores de ouro, envolviam sua cabeça como se ela dançasse sob águas impetuosas e turbulentas.

Vestia uma túnica de fios de ouro tão reluzente que o brilho parecia sobrenatural. Conjuntos de pulseiras do metal precioso cintilavam enquanto ela movia lentamente suas mãos curvas. Tinha unhas compridas e douradas mais longas que suas mãos. E calças no mesmo tom moldavam suas coxas firmes. Enquanto ela se inclinava para fazer uma saudação, os joelhos permaneceram dobrados e os pés flexionados.

Angel pensou nas marionetes da Tailândia, com suas superfícies decorativas invisíveis às suas platéias encantadas, que assistiam performances míticas por dez, doze horas sem intervalo. Vinda das terras exóticas onde os homens com manto cor de açafrão se perdiam em meditação e ritual. Ele ouviu sinos de templos, gongos, a batida rítmica do bambu na pedra e o doce e claro soprano de uma jovem mulher.

Ele conhecia tais lugares. Já havia morado lá.

Lentamente, ela levantou uma perna atrás de si, inclinando a cabeça. Mudando de posição com muita leveza, começou a desenhar um círculo no mundo do gelo azul. Quando se virou e viu Angel, ela parou de dançar.

Lágrimas escorreram pelo seu rosto. Ela abriu a boca e pronunciou palavras que ele não podia ouvir, mas mesmo assim entendeu: “Ajude-me.”

Lentamente o gelo derreteu. O cômodo parecia estar naufragado sob a água. Onde antes havia chamas que subiam até o teto, havia pilhas de cinzas e destroços retorcidos que um dia tinham sido móveis. Um quadro escurecido de uma paisagem montanhosa e de vegetação viçosa caiu da parede, espalhando os restos carbonizados de caixas e cestas de madeira.

Um rato, com as costas fumegantes, escorregou pelo sapato de Angel e desapareceu.

Não havia sinal da bela garota. Nem do estranho que controlava a magia.

Então ouviu-se um grito distante, abafado em segundos pelas sirenes agudas da ambulância e do carro de bombeiros.

Com o barulho dos seus movimentos disfarçado pelo ruído, Angel caminhou com dificuldade até conseguir sair pela porta em pedaços. Subiu pelas escadas, de dois em dois degraus, às vezes três, esperando que a qualquer momento um deles cedesse.

Mas não cederam. Angel chegou no topo da escada e correu para a porta mais próxima. Estava preta e em brasas, assim como as paredes à sua volta. Ouviu soluços e batidas. A maçaneta estava bem quentes.

Atrás dele, a escada desmoronou num estrondo semelhante ao som de um demônio enorme morrendo. Os soluços viraram gritos de horror.

— Está tudo bem! — gritou Angel, se esforçando para ser ouvido.

Ele colocou o ombro contra a porta e empurrou com firmeza. As tábuas se curvaram, mas não cederam. Recuou novamente e então golpeou com força.

A madeira rachou e se quebrou em pedaços. Havia muita fumaça, que o pegou desprevenido. Angel tossiu e deu um passo para trás.

Uma mão se estendeu por uma das fendas e agarrou a perna da calça de Angel furiosamente.

— Ajude-nos! — apelou a pessoa desesperada. A voz era da jovem mulher que vira há pouco.

— Angel? — uma segunda voz feminina gritou. Era Nira Surayanto, sua cliente, que havia ligado pedindo ajuda. Ela era a razão de sua vinda aquela noite.

— Nira?

— Tire-nos daqui! Não podemos respirar! — Nira teve um acesso de tosse.

— Fique longe da porta — ordenou Angel.

Ele bateu com mais força e arrebentou a porta. O quarto estava completamente enfumaçado. Tanto que ele precisou fechar um pouco os olhos. Uma mão apertou a sua. Então Angel se viu rodeado por pelo menos meia dúzia de jovens mulheres, nenhuma com mais de dezoito anos, e um bando de crianças. Elas estavam se agarrando nele, gritando como se estivessem se afogando.

Movendo-se rapidamente, ele levou todo mundo para o corredor. Nira segurava sua mão. Ela tinha uns dezoito anos, era baixa e magra, com cabelos negros cortados na altura do queixo. A calça jeans e a camiseta laranja com gola canoa estavam cobertas de fuligem.

Quando levantou os olhos para vê-lo, suas unhas se enterraram na palma da mão de Angel. Ela caiu no choro. Duas das outras jovens juntaram-se a ela. Nira enxugou os olhos e falou com firmeza, o que ajudou as outras a se acalmarem. As lágrimas misturadas com a fuligem transformaram seus rostos em máscaras monstruosas.

— Nira, há fogo aí dentro? — perguntou Angel, segurando os ombros dela e observando seu rosto. A fumaça estava grossa e oleosa, aumentando em volta deles conforme saíam do quarto.

— Sim.

— Estão todos aí?

— Sim, pak — disse ela, verificando o grupo.

— Vamos — disse, preocupado com a rota de fuga na frente do prédio, que estava bloqueada.

Foi só então que um grupo de bombeiros irrompeu pela porta da frente. Um deles encarou Angel e disse:

— Não se mova! O chão está para cair. Nossa, chegamos aqui bem a tempo.

Nira perguntou a Angel:

— Você acredita em milagres?

O vampiro com séculos de idade respondeu:

— Acredito em alguma coisa parecida.

Os bombeiros trouxeram uma escada alta e a apoiaram no andar superior, já bastante estremecido. Apressaram-se em ajudar as mulheres a descer antes que o teto cedesse.

A capitã da brigada de incêndio ordenou a Angel que saísse, mas ele mostrou — com razão, pensou — que já estava pisando em uma superfície instável. Não havia sentido em correr o risco de fazer os sobreviventes caírem pelo chão caso ele saísse da plataforma só para outra pessoa assumir seu lugar. A capitã retorquiu dizendo que era provável que houvesse vazamento de gás e nesse caso o prédio inteiro iria pelos ares.

— Sua família nos processaria para valer se você fosse pelos ares junto — concluiu ela.

— Eu não tenho família — foi direto. — E não vou a lugar nenhum.

Talvez tenha percebido que era inútil discutir com ele, pois ela apenas acenou e falou rispidamente:

— Rapazes, mexam-se. Este civil sobe, alguém do meu lado desce.

Trabalharam juntos, a capitã dando ordens aos bombeiros, enquanto Angel supervisionava os sobreviventes. Duas das mulheres desmaiaram e precisaram ser carregadas em macas pela escada. Uma menininha com uma grave queimadura nas costas tinha os olhos arregalados de dor, embora não tivesse chorado uma só vez. Angel teria se sentido bem melhor se ela não tivesse permanecido tão forte e serena. Seria melhor colocar para fora todo o medo e horror que estava sentindo. Só então a cura poderia começar.

Enquanto Nira era levada para a ambulância, ele andou ao lado da maca e disse:

— Vou passar lá mais tarde. Precisarei da sua ajuda para prender os responsáveis.

Ela tirou a máscara de oxigênio do rosto.

— Não — sussurrou. — Você me tirou daqui. Foi só isso que eu pedi.

Ela tossiu. Sua voz estava rouca.

— Vou pagar você assim que voltar do hospital. Tenho algum dinheiro escondido, para voltar para casa, e...

— Isso não é problema — disse-lhe com firmeza. — Mas isto não acabou, Nira.

— Mas...

— Ajude-me a fazer com que isso não aconteça a mais ninguém — disse.

Ele não tinha idéia se ela sabia sobre o uso de mágica. E não queria falar disso na frente de outras pessoas.

— Eles quase me mataram — ela sussurou. — Aquele homem... um homem subiu as escadas depois que eu liguei para você. Disse que faríamos grandes sacrifícios.

— Moça, por favor, fique com a máscara — disse um dos paramédicos.

Nira obedeceu.

Seus olhos enormes se fixaram em Angel enquanto a colocavam na ambulância. Ele a viu saindo, devagar, com o motorista desviando da multidão que se formou ao redor. Usuários de drogas com olhos entreabertos, crianças com olhos arregalados. Mulheres do bairro, fazendo o sinal da cruz, causando mais desconforto mental no vampiro do que qualquer outra coisa.

Angel não tinha uma idéia clara de quanto tempo foi preciso para resolver toda a situação. Isso acontecia às vezes com os vampiros. Eles vivem por tanto tempo que às vezes as horas voam como minutos. Outras vezes alguns minutos podem se encaixar em uma vida toda...

— Pergunta: Você sempre ignora os policiais, ou só aqueles que conhece?

Angel piscou. Era a detetive Kate Lockley à sua frente, com os cabelos loiros presos em um displicente coque temporário. Usava uma capa de chuva caqui, nenhuma maquiagem, mas estava bonita como sempre. Segurava um guarda-chuva. Ele olhou para o céu e ficou surpreso. Estava chovendo, e ele nem havia percebido.

— Só aqueles que eu conheço — respondeu.

Ela suspirou.

— Perguntei o que você está fazendo aqui.

— Vivendo la vida loca — ele não queria testar sua paciência, não nessa situação, então acrescentou: — Uma das sobreviventes é uma cliente. Ela queria sair. Aparentemente os líderes atraíam as garotas, imigrantes asiáticas, com promessas de ensiná-las inglês e dar-lhes empregos decentes. Usavam a mão-de-obra barata principalmente nos trabalhos de costura. Ou as redistribuíam para outros asiáticos ricos como empregadas e garçonetes.

— E prostitutas? — Kate perguntou diretamente. — Sua cliente estava trabalhando como prostituta?

Angel deu de ombros.

— Acho que esta palavra não foi mencionada.

— E as iniciais I.N.S.?* Essas mulheres estão no país ilegalmente?

Ele olhou bravo para ela.

— Kate, pega leve. Elas quase morreram no incêndio.

— Não posso fingir que não vi nada só porque tiveram um dia difícil, Angel — disse, com os olhos azuis brilhando. — Temos leis neste país. Talvez isso o surpreenda, mas elas ajudam a evitar situações como esta.

— Você está certa. Talvez me surpreenda. — Virou de costas para ir embora.

— Ei — a irritação dela aumentou. — Não seja tão hipócrita comigo. Meu dever é proteger e servir.

Angel passou a mão pelos cabelos. Ele estava cansado. Estava imundo.

E já estava quase amanhecendo.

— Não vou mentir para você e dizer que nossa política de imigração é justa ou íntegra — ela confessou. — Mas é a política que temos. Cheia de leis para garanti-la. Estas pessoas querem uma vida melhor, mas automaticamente colocam a si e aos outros na situação de vítimas ao entrar no país ilegalmente.

— Tudo que algumas destas “pessoas” querem é qualquer tipo de vida — respondeu Angel. — Liberdade contra a inanição. Ou contra a perseguição política.

— Você está concorrendo a algum cargo público? — atirou ela

Eles se respeitavam mutuamente. Foi ela quem suspirou primeiro. Talvez estivesse cansada demais para brigar. Normalmente não desistia com tanta facilidade.

— Vou conseguir o nome dela no hospital de qualquer jeito se você não quiser me contar. — disse Kate, com mais gentileza.

 

* Immigration and Naturalization Service — Serviço de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos. (N. T.)

 

— Nira Surayanto. Ela me ligou porque o “supervisor” a estava ameaçando. Aparentemente ele tentou matá-la hoje à noite. — Angel queria ter tido mais tempo para conversar com Nira. — Ela se arriscou muito para me ligar.

— Fico feliz que tenha feito isto — disse ela simplesmente. — Mas você poderia, pelo menos uma vez, ligar para mim quando algo estiver acontecendo? É meu trabalho, você sabe disso.

— Tudo bem, Comissário Gordon.

Ela sorriu com a referência ao Batman.

— Fico com cara de palhaça quando você chega a todas as minhas cenas de crimes primeiro.

— Você nunca fica com cara de palhaça, Kate. — Ele foi sincero.

Ela suspirou e passou os dedos pelos cabelos, exatamente como ele fez, talvez inconscientemente.

— Qual é o seu negócio, Angel? O que você realmente faz em Los Angeles?

— Procuro aquela grande chance — respondeu. “Velhas perguntas, velhas evasivas.”

Ela acenou dizendo que ele podia ir embora:

— Você pode ir para casa tomar um banho antes de ir à delegacia para dar seu depoimento.

— A noite eu vou — disse. — Vou aparecer e vou falar bastante. Mas agora estou exausto. Preciso do dia para descansar.

Ela franziu as sobrancelhas.

— É muito tempo para esperar pelo relato de uma testemunha.

— O prédio já estava em chamas quando cheguei aqui — informou.

— Havia um corpo — disse ela secamente. — Na verdade, por mais estranho que possa parecer, acho que foi ele quem começou o incêndio.

Angel olhou para a policial. Ela bufou. Kate não era muito de compartilhar informações.

— Olha, tenho alguns homicídios estranhos que acho que podem estar relacionados com esta charmosa situação.

— Ah? — ele ergueu as sobrancelhas.

Ela balançou a cabeça.

— Pelo que vejo, você não quer se envolver.

— A menos que alguém me peça para me envolver.

— Não serei eu. — A voz de Kate foi firme. — E se alguém pedir sua ajuda, espero ser notificada.

Angel despediu-se com cansaço e desapareceu nas sombras.

“Não nesta vida”, pensou.

Geralmente, por uma razão ou outra, as pessoas que Angel ajudava não podiam ir à polícia. Cordelia os chamava de desamparados. Angel era a última esperança deles.

E eles eram a dele.

Olhou sobre o ombro. Kate o encarava zangada, frustrada. Em seguida, ela passou por cima dos cavaletes presos com a fita amarela da polícia e começou a comandar a ronda dos policiais enquanto conversava com a capitã dos bombeiros. Seu telefone tocou e ela atendeu à ligação. Um milhão de coisas ao mesmo tempo. Negócios, como sempre.

O sol estava a caminho, ele podia sentir sua força mesmo na escuridão da madrugada.

Doyle devia estar cambaleando para casa, bêbado depois das baladas. Cordelia provavelmente dormia, sonhando com fama e fortuna. Pelo que lembrava, ela teria um teste hoje.

“É simplesmente outra mágica terça-feira”, pensou enquanto entrava no carro conversível e dava a partida. “Que rotina.”

“Preciso de um hobby.”

“Ou de férias.”

Mas Angel, o único vampiro na existência dotado de alma humana, não estava na fila para nenhuma das duas coisas. Chegara a Los Angeles procurando paz, esperando um refúgio para o seu amor por Buffy Summers, a Caça-Vampiros. Ainda teria de encontrar paz.

Ele dirigiu pelas ruas. Parou o carro no estacionamento coberto e entrou no prédio com passos largos. Precisava entrar. O sol estava prestes a nascer.

Destrancou a porta do escritório, cruzou a soleira e bateu-a atrás de si. Deu uma olhada rápida no interior da sala: o sofá gasto, as mesas e cadeiras que o lembravam de um velho filme noir de detetives dos anos trinta.

A secretária eletrônica piscava. A imagem da mulher dourada apareceu em sua mente enquanto ele ia até o aparelho. Apertou o botão “Play”.

— Mmm — murmurou uma voz feminina. — Preciso de ajuda. Eu...

Na gravação, apareceu um sinal de ocupado. Quem ligou havia desligado rapidamente.

Ou foi desconectado por alguém.

Angel discou *69, simplesmente para ser informado por uma voz computadorizada de que não era possível usar o recurso de rediscagem para o número desejado.

“Celular”, supôs.

Ele esperava que ela ligasse novamente.

Se ela puder.

 

                                   Capítulo 2

Nos últimos rastros da noite

Bem abaixo do condomínio, no subterrâneo do complexo onde Jusef Rais construíra um templo para Latura, a jovem Julie Gonda gritou e caiu no chão ao mesmo tempo em que ele tirava seu celular e o fazia em pedaços contra o cimento.

— Para quem você ligou? — Jusef exigiu saber.

Ela escondeu o rosto entre as mãos. Ele ouvia seus soluços silenciosos.

“Ela sabe que tenho o poder da vida e da morte sobre ela. Não há ninguém no seu mundo mais forte do que eu. Sou o deus dela.” Agarrou os cabelos da garota e virou sua cabeça para trás, forçando-a a olhar para ele. O terror no rosto de Julie era o afrodisíaco mais poderoso do universo. Ele a queria, mas a deixaria intacta. Assim seria um sacrifício mais apropriado para Latura.

Latura. Ele nem sabia qual era a aparência desse deus. Com os fragmentos e pedaços que ele, seu pai e seu primo, Slamet, juntaram com o passar dos anos, Jusef tentou construir um templo que agradasse ao Senhor dos Mortos. Deve ter se saído bem em algum nível, porque o deus continuava a lhes favorecer.

“Mais especificamente, a me favorecer”, pensou ele, contente.

Finalmente ela começou a falar:

— Ele me disse... ele... — a garota emudeceu, como se tivesse percebido que havia falado demais.

— Decha? Decha Sucharitkul? — indagou ele.

Ela engasgou.

Triturando o que ainda restava do celular com o calcanhar, ele percebeu, ao mesmo tempo, que não deveria tê-lo quebrado. Teria sido muito mais fácil descobrir para quem ela ligou. E como conseguira fazê-lo funcionar no subsolo.

“Bem, posso arrancar isto dela com bastante facilidade.”

— Traidores, com seus pagers e celulares e “vigias”. Você é mesmo patética.

Jusef puxou-a com mais força. Julie gritou quando ele arrancou uma enorme mecha de cabelos da sua cabeça. Para silenciá-la, ele deu uma joelhada nas costas da garota, que começou a tossir.

— Decha contou que eu estava com ele, não foi? Ele entrou em um quarto e fez a ligação. Disse que era seguro se enfiar aqui e violar meu templo?

— Isto está violado desde a construção — disse ela cheia de coragem.

Ele considerou o que ouviu:

— É verdade.

Ele e os outros construíram o templo da melhor maneira possível. Mas as informações foram muito esparsas, então tiveram de improvisar. Assumiram que o Deus da Morte exigia imagens da morte em seus locais sagrados. Fizeram o melhor para agradá-lo: as paredes foram pintadas com murais de torturas em massa, execuções e pilhas de cadáveres mortos por desastres e pragas. Montes de crânios, tanto humanos quanto animais, estavam enfileirados nas paredes como estantes, com orações a Latura enfiadas em suas bocas. Velas brilhavam dentro das órbitas oculares.

Acima dos crânios estavam os feitiços escritos, ou mandi, gravados em varas de bambu e em páginas feitas de casca de árvore, como antigamente. Eram orações de súplica por proteção, por vingança e por ajuda na busca pelo Livro de Latura. O sangue de suas vítimas foi espirrado sobre os feitiços para que as palavras saíssem do pensamento e passassem à existência. Porque assim foi dito em muitas religiões: “O sangue é a vida”. Baldes de sangue estavam dispostos nos quatro cantos do templo entalhado em rocha viva. Os empreiteiros originais do complexo — que datava dos anos vinte — não usaram o subterrâneo para nada. O corretor de imóveis que vendeu o condomínio de três acres para a família de Jusef disse que o boato que corria é que as cavernas haviam sido construídas para abrigar bebida alcoólica contrabandeada. Mas que na verdade o lugar nunca fora utilizado durante todo esse tempo.

Após certa discussão, Jusef conseguiu convencer os demais a não usar energia elétrica no templo. Antigamente Latura sentia-se mais próximo dos caçadores canibais de Nias porque estes acendiam tochas para obter calor e luz. O fogo era um deus para Latura, portanto, seria iluminado por ele.

A fuligem chamuscava o fantástico teto, entalhado pelos artesãos indonésios para que parecesse uma caixa torácica. Cada uma das costelas ia de trás das pilhas de crânios até o topo da sala alta.

O altar de sacrifícios era, literalmente, o coração do ambiente. Entalhado em rocha e coberto de metal — a única concessão de Jusef às mudanças que o tempo tinha impingido ao legado de Latura. Quando as vítimas eram queimadas sobre ele, o metal aumentava sua agonia. Isto era importante para Latura. A dor e o terror eram as únicas sensações disponíveis no Submundo, porque pertenciam aos condenados e moribundos.

Uma imagem de Latura, deus demônio das sombras, abraçava o altar. Jusef e os demais trabalharam com referências vagas, buscando retratar seu mestre com a maior exatidão possível, mas não sabiam se tinham chegado perto. Eles ouviram nas selvas de Java as histórias sobre o Primeiro Servo, passadas de geração a geração através de música e dança. Foi com base nessas histórias que esculpiram em pedra o que acreditavam ser a aparência de Latura: um rosto que mais parecia um pesadelo, cheio de cortes, feridas e uma garganta enorme e entreaberta. A cabeça gigante e os olhos enormes e brilhantes elevavam-se sobre seus treze braços, cobertos com espinhos feitos de lâminas afiadas de aço inoxidável. Jusef nunca tinha lavado as lâminas cobertas de camadas de sangue grosso, endurecido e mofado. A lição: abaixo da deterioração existe aquilo que não enferruja.

Vida eterna.

Mais espinhos cobriam as sete pernas cruzadas que acabavam em massas de pedra com membranas e garras. O monstro tinha uma cauda bifurcada e as enormes asas envolviam o altar numa terrível posição de posse.

Larvas e outros insetos passavam noite e dia sobre a pedra e o metal. Jusef sabia que haviam sacrificado mais de duzentas pessoas sobre este mesmo altar, e muitas mais na Indonésia.

Entretanto, a garota Gonda começara a desfazer alguns dos trabalhos com o Ritual da Purificação que Jusef não conhecia. Do lado esquerdo do altar havia um espaço limpo, livre do poder profano de Latura, o que significava que ela vinha obtendo sucesso em seus trabalhos mágicos, pelo menos até ser pega. Das duas uma: ou seus opositores tinham mais conhecimento que ele e sua família sobre Latura, ou possuíam o Livro. Tal idéia era insuportável de ser admitida, mas como seu pai sempre dizia: “Espere pelo melhor, mas esteja preparado para o pior”.

De um modo ou de outro ele arrancaria dessa garota tudo que ela sabia antes de matá-la no altar.

— Resumindo — disse calmamente. — Presumo que você tenha ligado para seu amigo Decha um pouco antes para garantir que a barra estava limpa. E ligou novamente agora para avisá-lo que tinha entrado?

Ela assentiu com a cabeça:

— Sim.

— Mentirosa! — gritou ele.

— Estou dizendo a verdade — insistiu. Sua voz estava trêmula. — Por favor, Pak Rais, acredite em mim.

Ele a agarrou pelos cabelos novamente e começou a arrastá-la pelo chão de pedra.

— Ele está morto — disse calmamente. — Está morto há horas. Quando se recusou a me dizer algo útil, pus fogo no coração dele.

Embora lágrimas escorressem de seus olhos, ela manteve a expressão fria como uma máscara. Ele ficou impressionado com sua coragem. Disse:

— É impossível falar com os mortos, mesmo que seu celular seja extremamente potente.

Ela sorriu, realmente sorriu, para ele.

— Você está certo — disse.

Ela começou a ter ânsias. Ele observou, perplexo, enquanto sangue e saliva espumavam nos lábios da garota.

— Não! — gritou Jusef.

Ela sorriu mais uma vez.

O sangue jorrou de sua boca como um vulcão que entrava em erupção, espirrando nele. Uma onda de sangue acertou o rosto de Jusef e escorreu por seu queixo enquanto o corpo dela se debatia em violentas convulsões.

— Pare com isso, pare! — gritou ele.

Havia uma mistura de triunfo e tristeza no rosto dela. Então seu corpo ficou mole. Os olhos perderam o foco.

Ela estava morta.

— Latura, devore a alma dela! — gritou ele, furioso. Em sua ira, saliva escorreu de sua própria boca.

Ele jogou o corpo da garota no chão e ficou esperando. Olhando para seu deus, fechou as mãos e bradou.

— Latura, arraste-a para o inferno com você!

— É um pouco tarde para isso — disse uma voz na escuridão.

Jusef se virou.

Uma ponta de luz azul pairava no negrume da caverna. A luz ficou mais intensa e começou a girar. Ganhou dimensão e velocidade.

Seu pai apareceu, envolto em energia azul.

— Pai? — perguntou, atordoado. — Como... o que foi isso? Você é um espírito?

— Bem que você gostaria — disse Bang Rais. — Você não tem idéia do que sou capaz, Jusef — apertou os olhos. — Mas já deu para ter uma boa idéia do que você é capaz. Já faz algum tempo que o observo.

O brilho azul se dissipou. Bang Rais, um dos homens mais temidos da Ásia, olhou seu filho com desprezo.

— Pensou que poderia me passar para trás? — disse. — Pensou que mentiria para mim?

O pai deu um passo ameaçador em direção ao filho.

— Você também pensou que eu estava em Dakarta e que não fazia a menor idéia das suas tentativas de me passar a perna e conseguir a imortalidade para você.

— Não, pai — disse Jusef, recuando. — Seja lá o que você ouviu, é mentira. São meus inimigos tentando criar problemas entre nós.

O pai sacudiu a cabeça.

— Não tente se salvar. Você matou Decha Sucharitkul na tentativa de descobrir a localização do Livro. Quando o apartamento pegou fogo, você não pensou nas conseqüências.

— Não parecia haver nenhuma — disse Jusef em tom baixo.

O pai cerrou os olhos.

— Mas o que você não sabia é que havia garotas lá, trancadas no andar de cima por um dos supervisores que queria fazer delas prostitutas. Uma delas já tinha ligado para pedir ajuda. A ajuda chegou a tempo. O problema é que ela não ligou para um homem, meu filho. Ligou para um demônio.

Bang Rais olhou fixamente para o filho.

— Era um demônio, que eu não consegui matar. Agora ele vai seguir o rastro que você deixou.

— Quem? Que tipo de demônio?

— Ninguém com quem você precise se preocupar, já que você vai estar morto.

Jusef segurou as mãos no alto.

— Pai, não. Você entendeu errado.

O pai se aproximou dele. Era alto e musculoso, mas também estava cansado. O recurso mágico, que até o momento seu filho desconhecia, servira para transportá-lo até o templo, mas deixara-o exausto.

“É minha única chance de me salvar”, pensou Jusef desesperadamente. “Mas como? Não conheço a mágica que meu pai faz. Nem sei como aquela garota Gonda conseguiu fazer o telefone funcionar aqui dentro.”

“Aquela garota...”, Jusef foi tomado por uma inspiração repentina. A purificação.

Ele andou até o pai e disse: — Pai, você não está se sentindo bem? Então agarrou Bang Rais, que parecia uma fortaleza perto dele, e o arremessou para o local que Julie Gonda santificara. Foi dito — mas nunca testado — que Latura abandonaria qualquer um que andasse sobre solo sagrado. Jusef cruzou os dedos, torcendo para que o deus considerasse sagrada uma parte purificada de seu próprio templo. Seu pai ficou surpreso. — O que você está fazendo? Tomando o cuidado para permanecer fora da área purificada, Jusef pegou um talismã e segurou-o na sua frente. Era uma miniatura da Marca de Latura: um coração flamejante posto dentro da boca de um crânio de demônio.

— Deus do Mistério, pare o coração dele — entoou. — Pare as batidas. Pare o sangue.

— Jusef! — urrou o pai. — Pare com isso!

— Pare-o — continuou Jusef. — Ele está limpo, pertence à bondade. Sinta a bondade dele e o destrua.

— Não!

Bang se arrastava na direção do filho. Gritou, apertou o peito e tombou para a frente. O rosto dele bateu com força contra o concreto. O sangue jorrou.

O pai caiu com o rosto para baixo e não se moveu.

Cuidadosamente, Jusef o observou por pelo menos meia hora.

Satisfeito com a morte do pai, o filho único de Bang Rais riu tanto que até chorou.

 

Mais tarde, naquela manhã

Meg ainda estava soluçando quando Jusef entrou no estúdio de dança de Venice Beach, não muito longe do apartamento dela. Jusef alugava o local para os ensaios da banda nos horários em que não havia aulas de dança. Guitarras, instrumentos de percussão e uma bateria ocupavam parte do espaço. Do outro lado ficavam os instrumentos tradicionais da antiga música do gamelão* de Bali: o ugal, um instrumento parecido com o xilofone; gongos, tambores, pratos e gangsa, tocado com martelos.

Jusef tinha acabado de tomar banho e cheirava a sabonete de sândalo e xampu de coco. Usava calça jeans preta, botas de cowboy e camiseta preta. Apesar da tristeza, Meg ficou animada com a presença do namorado. A palavra querido veio em sua mente em todas as línguas em que era fluente: bahasa indonésio, inglês, javanês (seu dialeto nativo) e holandês.

— Meg, o que aconteceu? — perguntou ele, preocupado, enquanto se agachava ao lado da cadeira da garota. O pessoal da banda tinha saído para fumar, o que garantiria aos dois alguns minutos de privacidade.

— Houve outro incêndio — disse ela. Nas duas semanas desde a morte de Olive, houve mais três mortes como a dela. — Estava no jornal.

— E está chegando muito perto de casa — disse ele. Ela concordou com a cabeça. — A polícia procurou você desta vez? — perguntou. Das outras duas vezes Meg tinha sido procurada por conhecer Olive. Foi o que disseram, mas ela ficava pensando se eles sabiam sobre seu passado.

— Não, mas a mesma detetive, aquela mulher que conversou comigo, estava no noticiário. Detetive Lockley.

— Eles têm alguma pista? — perguntou ele, acariciando os ombros da namorada.

Ela se recostou, sentindo os músculos do peito dele pressionando seu rosto. Ninguém na terra era tão forte e poderoso como Jusef. Ninguém jamais cuidaria melhor dela.

— Não falaram nada. Foi em um prédio de apartamentos no bairro das confecções. Disseram que as pessoas estavam morando lá em péssimas condições. O proprietário falou que não sabia para que o lugar estava sendo usado. O prédio era alugado.

— A polícia não ligou — repetiu ele.

Ela fez que não.

 

* Orquestra indonésia, composta, sobretudo, de instrumentos de bronze, xilofones e tambores. (N. do T.)

 

— Por que deveriam?

Ele deu de ombros.

— Sei lá. — Jusef riu e passou a mão por seus cabelos incrivelmente sedosos e volumosos. Os cílios eram compridos e roçaram a pele de Meg quando ele encostou sua testa na dela.

— Disseram que pode ser um crime tipo “colarinho” — continuou ela, em voz baixa. — No estilo da vingança que fazem na África do Sul.

— Além disso, é uma forma de execução do crime organizado — disse Jusef. — Gangues e tongs também fazem isso aqui nos Estados Unidos. É um jeito doloroso de morrer.

Ela tremeu.

— Quando eu era menina, sempre ouvi que a América era um lugar violento. Não fazia idéia do quanto.

Ele suspirou.

— Eu não devia ter trazido você para cá.

Ela se acalmou ouvindo a auto-recriminação em sua voz.

— Mas a Indonésia é perigosa também.

— Se meu pai cuidasse das coisas por aqui, seria seguro andar sozinho a uma ou duas da manhã. — disse Jusef com fúria. — O mundo está indo para o inferno, Meg. Cabe a pessoas como o meu pai salvá-lo.

“Tirando a liberdade de todo mundo. Prendendo qualquer um que ousasse criticar o grande Bang Rais”, pensou ela. No entanto, guardou a opinião para si.

— Vou mantê-la em segurança — garantiu Jusef, erguendo a mão dela até sua boca macia e beijando seus dedos. — Você é muito valiosa para mim. Não há mais ninguém como você no mundo inteiro.

— Do jeito que você fala, quase acredito — sussurrou ela, querendo ouvir mais.

— É verdade. Sei disso — disse sorrindo. — Você é única. Insubstituível.

Meg enrugou o nariz, deixando as más lembranças irem embora como ele havia ensinado, e concentrando-se nele.

— Você faz com que eu me sinta como um vaso Ming — ela falou de brincadeira.

— Ou algum outro tipo de vaso precioso — respondeu. Ele ficou em pé e a levantou. — Pronta para trabalhar?

Ela balançou a cabeça, concordando.

— Essa é minha Meg. Vou chamar os outros. — Puxou um cigarro do maço que estava sobre um banquinho de três pernas. — Relaxe, lave o rosto.

Jusef cruzou a sala na direção da porta dos fundos, onde os colegas estavam fumando. Meg se olhou no espelho.

— Deus, minha cara está um caco — resmungou. Foi lavar o rosto.

 

                                    Capítulo 3

Um pouco depois, naquela tarde

— Meu hálito está tão fresco — disse Cordelia Chase enquanto subia os degraus do Cooper Building, bairro de confecções encravado no centro de Los Angeles.

Ela não estava lá atrás de pechinchas. Perambular por prédios de tijolos sujos com metade das vidraças faltando e experimentar roupas em lugares onde provadores eram improvisados com um cobertor jogado sobre uma corda, nunca foi sua diversão favorita.

“Antigamente eu nem olhava a etiqueta de preço”, pensou com pesar. “Agora, tudo o que faço é me preocupar com dinheiro.”

Era uma tarde seca e quente. O dia estava sendo longo, e Angel não facilitara nada. Hoje de manhã, justamente quando Cordelia se preparava para o teste, o vampiro ligou pedindo que ela ficasse de olho na máfia durante todo o dia, enquanto ele dormia. Tinha a ver com um incêndio na noite passada e uma ligação interrompida. E era muito importante retornar qualquer ligação de uma garota chamada Nira. Sem maiores explicações, claro.

“Talvez esta tal Nira signifique que ele esqueceu a Buffy”, pensou Cordelia, enquanto olhava a multidão na primeira loja à direita. “Só se passaram alguns meses aqui em L.A. mas, caramba, foi ele quem desmanchou com ela.”

Apesar das pontas de estoque terem proliferado, o bairro de confecções de L.A. ainda era famoso. O paraíso para quem adora uma boa pechincha na hora de adquirir marcas como Armani, Hugo Boss e outras etiquetas chiquérrimas. Os ônibus de turismo despejavam sacoleiros vindos até de Las Vegas.

Espero que a viagem valha a pena. Para eles e para mim.

Espero que a Nira ligue, se é isso que ele quer.

Cordelia tinha de vigiar o telefone porque Angel estava exausto. Ele contou a ela que não vinha dormindo bem e que realmente precisava se recuperar. “Para quê?” “Até parece que se ele não dormir o suficiente vai morrer ou algo do tipo...”

“Ou vai ver ele não esqueceu o lance com a Buffy.”

Para ser gentil e porque, afinal, este era o seu trabalho, Cordelia concordou em ficar de olho nas ligações, o que arruinou de vez sua preparação para o teste. Sempre há muito o que fazer quando seu chefe é um super-herói.

Ela franziu os olhos ao inspecionar as mulheres e garotas à sua volta, com sacolas de compras nos pés, experimentando com alegria calças de lycra sobre meias-calças de péssima qualidade.

“Não, não e não”, ela pensou, sacudindo a cabeça frente ao assassinato da moda que via à sua volta. “Se mais pessoas lessem Caras e tivessem personal stilyst, muitos erros abomináveis poderiam ser evitados.”

Ela olhou para uma saia, suspirou, e a colocou de volta no lugar. Não tinha nenhum lugar para usá-la no momento. E a jaqueta de camurça? Quente demais para o clima de L.A.

Enquanto isso: Angel. Cordelia fez o que ele pediu, apesar de ter atrapalhado seus planos profissionais. Se fosse antes, ela teria usado o celular para fazer todas as ligações, e deixaria que o papai pagasse a conta. Achava estranho usar o telefone público do escritório de seleção de elenco, ter de ficar procurando moedas, sabendo que os outros tentavam ouvir o que dizia, procurando conhecer os outros concorrentes, talvez pegar dicas sobre outra seleção. Todas essas preocupações a desviavam da postura que se esforçava tanto para manter. A de uma aparência radiante e jovial, com o hálito de anti-séptico bucal mais refrescante de toda a vida.

No entanto, seu humor não estava dos melhores. O Santa Ana — ventos quentes que sopraram pelos desfiladeiros de Los Angeles e sugaram a umidade de seus poros — deixou-a com sinusite. E, para dizer a verdade, ela estava nervosa. Isso acontece quando se é rejeitado constantemente para qualquer coisa que se tente.

Quase sentiu pena dos idiotas que a convidavam para dançar no Bronze e que ela enxotava.

Com os pés ardendo, cheios de bolhas — “droga de sapatos baratos!” — ela deixou o Cooper Building para trás. Começou a andar pela Fashion Alley, onde as araras de roupas se amontoavam no meio da rua. Era uma confusão de pessoas se acotovelando pelo caminho. O fedor de C.C. era intenso.

Mulheres com cara de turista usando camisetas GG e calça legging — tão fora de moda, até na terra do brega que, com certeza, ficava em algum lugar como Michigan — posavam para fotos em frente de um prédio um pouco mais original que os outros. A maioria — dos prédios, não das mulheres — era depósito e fábrica construídos nos anos vinte, com tijolos aparentes, algo que não se via muito no sul da Califórnia por causa dos terremotos.

Uma das mulheres do grupo disse:

— Vamos comer no Pantry! O restaurante é do prefeito.

Cordelia ficou pensando se algum dia conseguirá dinheiro para tirar férias novamente. E repetiu com entusiasmo:

— Meu hálito está tão fresco!

Murchou.

— Mas, no geral, sou uma droga.

Ela não se saíra bem no teste. Cordelia percebeu isso pelo olhar da diretora de elenco enquanto fazia o teste. Ou talvez pela maneira como a interrompeu:

— Próximo.

“Qual foi o problema desta vez?”, Cordelia quase exigiu saber. “O meu nariz é muito grande? Muito pequeno?”

Sempre há algo de errado nessa cidade.

Ela parou na calçada e tirou o cabelo da testa. Suas panturrilhas doíam. As solas dos pés estavam pegando fogo. “Droga de sapatos.” Também, não passava de um comercial estúpido. Ela sentiria vergonha de estar nele.

“Em Sunnydale eu era o padrão pelo qual todas as outras garotas da escola eram julgadas. Na escala Cordelia Chase, de um a dez, eu era doze.”

Mas em Hollywood — a apenas duas horas de sua cidade, mas certamente em outro planeta, e esta não era uma referência à cadeia de restaurantes Planet Hollywood, de Arnold, Bruce e Demi — Cordelia não estava sendo tratada como o Peixe Arco-íris*, aquele que todo mundo odiava porque era muito mais bonito. Ela

 

* Livro de Marcus Pfister, em que o peixe arco-íris se acha bom demais para brincar com os outros peixes e precisa aprender uma lição. (N. do T.)

 

mal merecia a atenção dos peixinhos pequenos da história. Um diretor de seleção disse ao empresário de Cordelia que suas sobrancelhas eram muito grossas. As sobrancelhas, algo que se pode mudar com facilidade.

Narizes podem ser cortados. Dentes podem ser encapados. As pálpebras podem receber maquiagem definitiva. Pode-se aplicar colágeno nos lábios, sugar a gordura do queixo, fazer covinhas, lifting ou uma escultura total. Em Los Angeles pode-se fazer praticamente qualquer coisa no corpo humano — quando se tem dinheiro — tudo para melhorar a aparência. Ou para piorar, como colocar piercing e outras coisas.

Então ela só podia acreditar que o problema não era nenhuma parte do seu corpo, já que era simplesmente maravilhosa, e estava mais do que disposta a fazer qualquer plástica. Nunca disseram que ela não tinha talento para atuar, então devia ser alguma coisa que os diretores não conseguiam colocar em palavras.

Ela conseguia.

“São minhas roupas.”

Antigamente — isto é, quando ela vivia em Sunnydale e seus pais ainda não tinham perdido todo o dinheiro para o ganancioso leão do imposto de renda, que com certeza poderia pegar outras pessoas ricas para cobrir o pequeno déficit que seu pai sonegador havia deixado — Cordelia ia às compras por diversas razões. Por diversão. Para manter o alto padrão que estabelecera anteriormente. E para melhorar o estilo na escola Sunnydale High (tão fácil).

Também comprava porque, caramba, vamos encarar os fatos, andar com a Buffy e o resto da “Turma do Scooby” — com aspas para mostrar que isso não é divertido — foi muito duro para o seu armário. Cordelia já perdeu as contas de quantas roupas legais jogou fora por não conseguir tirar as manchas de sangue.

Vai ver que Buffy e Willow estavam certas em escolher aquelas roupas bregas. Era mais fácil remover muco de demônio e tripas de monstros de poliéster do que de tecidos de fibras naturais. E se não fosse, não seria nenhum grande trauma perder uma roupa pela qual se pagou tão barato.

Mas agora, quando as pessoas ao seu redor realmente eram importantes e conheciam a moda tão bem quanto ela, Cordelia não tinha dinheiro para parecer uma milionária. Nem para parecer que valia cinqüenta centavos.

— Como se eu pudesse comprar qualquer coisa melhor do que uma peça de liquidação da última estação de dois anos atrás — resmungou enquanto dava uma olhada na blusa de seda verde pendurada numa arara circular lotada com um cartaz que dizia: NO ESTADO EM QUE ESTÁ — TUDO EM PROMOÇÃO.

“Só podia estar em promoção. É a cor mais feia que já vi na vida. Eu ficaria parecendo um zumbi.” “E olha que eu sei do que estou falando.” Lágrimas escorreram dos seus olhos. Ela estava desesperada para comprar roupas legais, sapatos novos e tomar um capuccino sempre que quisesse. Comprar era apenas mais um prazer que lhe era negado, e só servia para lembrá-la de que estava a caminho de lugar nenhum.

— Ibu, por favor, não — disse um homem.

Cordelia estremeceu e olhou para cima.

“Peraí”, ela hesitou surpresa. “Olá, excitante nova definição para a palavra ‘gostoso’.”

O jovem que pegou a blusa de sua mão era incrível. Parecia ter vinte e poucos anos e vestia-se muito bem apesar da aparência casual. Ela sabia reconhecer uma bela camiseta de algodão de cinqüenta dólares quando via uma. A calça jeans preta era apertada e as botas de cowboy gastas, perfeitas. Ele exalava dinheiro, com uma fragrância de Bijan for Men. Era alto, tinha a pele da cor da manteiga de cacau e os traços do Brad Pitt. O cabelo era preto, curto e espetado, e os olhos, castanhos e penetrantes, tinham formato amendoado. Parecia o Harrison Ford, se o Harrison Ford ainda tivesse vinte anos e fosse do Japão.

— Esta cor vai derrubá-la. — disse ele. Com um sorriso simpático para abrandar a crítica, ele jogou a blusa de volta na mistura de cabides de casacos, blusas mais feias e moletons ainda piores.

— Ah? — disse ela, hipnotizada demais para responder. Alguém estava rodando um filme? Ela estava no Show da Cordelia?

Tinha morrido e ido para o céu?

Ele levantou a cabeça.

— Vous me comprenez?

“Ele é francês”, pensou ela, encantada. “Ai, por que pensei que francês era uma língua morta? Por que pelo menos não fiz minhas unhas em uma aula diferente?”

— Bem, sou americana — respondeu ela, em inglês.

Voltando a falar na língua de Cordelia, ele disse com um sotaque carregado:

— Desculpe a minha intromissão, mas é que minha família está no ramo de confecção e eu conheço roupas — deu de ombros. — Você é quem manda.

Acenou com a cabeça e começou a andar.

— Espere! — gritou ela. — Eu sabia que aquela cor era horrível. — Limpou a garganta e gesticulou na arara. — O tom é muito amarelado.

Ele se animou:

— Demais.

— Eu ficaria pálida — concordou avidamente.

— Seria um desastre — ele sorriu e uniu as palmas das mãos. — Meu nome é Jusef Rais — disse como se ela devesse saber quem era; e, se ele fosse alguém importante na indústria do entretenimento, ela saberia. Cordelia lia todos os dias o relatório de fofocas de Ted Casablanca no site do E! no computador de Angel.

— Oi! — ela começou a copiar o gesto dele, mas lá pela metade do caminho decidiu que seria cafona. Então só acenou com as mãos e sorriu.

— Não há nada nesta arara que combine com você — disse Jusef. — São roupas para caixas de bancos — torceu o nariz. — Funcionárias de escritório.

“Não há necessidade de mencionar que sou recepcionista”, pensou. “Especialmente porque é um trabalho temporário, só para ajudar o Angel enquanto eu não alcanço o sucesso.”

“E, bom, pelo menos assim posso comer.”

Ela se arriscou:

— Então, você está aqui para...?

— Vim encontrar alguém.

— Ah — ficou desapontada. “Faz sentido.”

Ele sorriu:

— E já encontrei.

“Ela atira e acerta”, pensou Cordelia com felicidade. “Até que enfim!”

— Você costuma fazer compras aqui? — perguntou ela, paquerando.

Ele riu.

— Não, mas temos muitos negócios na região. Venho aqui de vez em quando só para saber como vão as coisas.

“Muitos negócios? Muitos mesmo?”, apesar da euforia, ela franziu o nariz.

— Que coisas? Aquilo que pessoas não deveriam estar comprando?

— Pode-se dizer que sim. Eu impedi você de comprar aquela blusa, não foi?

Ela estava um pouco na defensiva.

— Como disse, eu sabia que era uma droga.

— Você devia aparecer no nosso showroom qualquer dia — prosseguiu ele. — Somos especializados cm tecidos da Indonésia. Batik. Isso está voltando à moda.

— Sim — concordou, embora não fizesse a menor idéia do que fosse “batik”. — É realmente lindo. Eu adoro.

— Estamos ensinando os nossos funcionários a fazê-lo aqui.

“Aqui é o oposto de onde?”

— Ótimo! — disse entusiasmada.

Ele ergueu a cabeça.

— Você é atriz, não é? Seu rosto é familiar.

— Provavelmente não. Faço muita coisa alternativa. Independente — corrigiu ela. — Como o que se vê nos Landmark Theaters*. “Quem dera.” — Mas não filmes sobre lésbicas ou coisas assim.

— Temos um pequeno estúdio na Indonésia. Em Dakarta.

— Ah. — ela ergueu as sobrancelhas. “Um estúdio? Ele é dono de um estúdio inteiro? Indonésia... onde fica a Indonésia? Não deve ter um Club Med lá, ou eu saberia. Quem poderia adivinhar que algumas das coisas inúteis que nos ensinam na escola seriam de fato úteis?”

“Como francês ou geografia.”

— Algum filme que eu já tenha visto? — ela indagou.

— Na verdade não. — Ele sorriu. — Produzimos muita coisa indie, como você diz, só que em línguas estrangeiras. Mandarim. Tagalog. E, é claro, bahasa indonésio.

— Ah, claro! — concordou como se fizesse alguma idéia do que ele estava falando.

— É verdade. Não estou tentando dar em cima de você. Tenho certeza de que você sempre conhece caras que dizem que estão nesta indústria.

— Ah, é claro! — ela fez um gesto de quem não liga. — Em todas as festas. Nas que eu vou, sempre com muitos outros profissionais da área. Você sabe como é. — Sim, as festas em que ela não conseguia mais ir porque trabalhava para o Angel, que só pode trabalhar à noite, na hora das festas.

— Talvez você possa trabalhar conosco em alguma coisa.

Ele pôs a mão no bolso e estendeu um cartão. Seus dedos se tocaram, e ela quase derrubou o cartão.

“Que energia! Que bom que está um dia completamente seco, ou eu seria eletrocutada.”

Pela aparência dele, ele também sentiu. Cordelia olhou para o cartão para disfarçar sua reação. Ela costumava ser a Rainha da Pose, até que ficou enferrujada de tanto ser ignorada em Los Angeles. As letras eram douradas e impossíveis de ler. Havia um galo ou algo do tipo no cartão. Ela decidiu examiná-lo mais de perto depois; abriu a bolsa e colocou-o dentro, sorrindo.

— Bem — disse Jusef olhando ao redor —, parece que meu primo não vai aparecer. — Dava para notar uma aspereza em sua voz que não havia anteriormente. Seus olhos se estreitaram e a desaprovação pareceu surgir em ondas.

 

 

* Maior circuito norte-americano de teatros para produções independentes. (N. do T.)

 

— Atrapalhei suas compras — acrescentou.

— Não, tudo bem — disse ela. — Como você mesmo disse, não há nada aqui e... — os olhos dela se arregalaram. Ele estava usando um Rolex. “Um belo e caro Rolex.”

Quando percebeu que ele notou o que ela havia notado, achou melhor dizer:

— Nossa, olha a hora. São quase seis da tarde.

— Os compromissos estão chamando — ele fez uma pausa. Os olhos brilharam e o rosto voltou ao modo de paquera. — Você tem namorado?

“Quem dera.” Conversar com ele foi a coisa mais próxima de um encontro que ela teve em meses. “O problema só pode ser minhas roupas.”

— Slamet, finalmente — disse Jusef quando um rapaz veio na direção dos dois.

— Jusef, onde diabos você estava? — quis saber o rapaz.

— Esperando bem aqui, como combinamos.

— Não seja bobo. Eu estava na porta da frente.

Cordelia ficou olhando. Ele podia ser irmão gêmeo de Jusef — em outras palavras, incrivelmente bonito — exceto por ser bem mais gostoso. Os olhos estavam inchados — de chorar, imaginou ela — e parecia que ele tinha feito uma aula de spinning com o belo terno cinza chumbo que usava.

O novo cara, Salami, disse de forma áspera:

— Não quero ser rude — começou a falar e parou. Olhou rapidamente para Cordelia. — Meu Deus, ela é igualzinha a Meg — completou.

Jusef deu de ombros.

— Um pouco. E me ocorreu que nem sei seu nome.

— Cordelia Chase — disse aos dois.

— Atriz — acrescentou Jusef.

— Ah — Salami não deu a mínima.

Houve uma pausa. Então Jusef disse:

— Meu pai morreu hoje cedo.

“E você não está triste com isso”, pensou ela.

Mesmo assim, como era o certo a se fazer, ela levou a mão ao peito e disse:

— Sinto muito. De verdade.

Ele fez uma cara triste também.

— Meu pai já estava mal, mas é sempre um choque quando a morte rouba uma alma da terra. Sabe o que eu quero dizer?

— É, sei. “A menos que seja a alma de um monstro, embora a maioria deles não tenha alma. E, em parte, ser um monstro é isso. Além de matar pessoas.”

Ele a observou atentamente.

— O que alguém como você sabe sobre a morte?

“Você tem algumas horas para ouvir?”, pensou ela, mas preferiu dizer:

— Talvez eu o surpreenda.

— Precisamos ir — falou Salami.

Cordelia se voltou para Jusef.

— Foi... legal... conversar sobre roupas feias.

Jusef a pegou pelo cotovelo e a levou alguns passos para o lado.

— No enterro do meu pai só podem comparecer os membros mais próximos da família — disse ele. — Mas posso convidá-la para o sedhekah?

Ela hesitou:

— Acho que depende do que seja isso.

— É um jantar tradicional de preces para os mortos, para prestar nossa homenagem — ele soltou a mão. — Como já estamos há muito tempo no ocidente, também haverá uma recepção bem grande para os sócios da minha família. Os dois eventos serão no nosso condomínio.

— Seu condomínio — disse devagar.

— Na Indonésia convidamos todo mundo para as recepções funerárias. Quanto maior o grupo de pessoas, mais honra a família recebe. Você será muito bem-vinda. — disse.

— No funeral do seu pai.

— Sim — ele estava totalmente sério.

— Bem...

O sorriso dele foi incrível. Fez uma leve ruga no nariz.

— Para mim? Seria uma honra.

“Vamos, aceite”, disse a si mesma. “Comida de graça e belos rapazes. Belos rapazes que fazem filmes, têm sócios e são donos de um condomínio.”

“É só um pouco esquisito.”

“Certo?”

— Vou precisar ver com o meu chefe, quero dizer, na minha agenda — disse. Atrizes de sucesso em L.A. não faziam bico de recepcionista.

— Você é uma garota cuidadosa, gosto disso — ele apontou para a bolsa dela. — Meus telefones estão no cartão, inclusive o celular — deu um tapinha no bolso e ela viu a pequena saliência de algo de última geração. — Temos pelo menos três horas antes do sedhekah. Slamet e eu vamos para casa lavar o corpo para o enterro.

“Credo. Informação demais.”

Ocorreu-lhe que ela nunca havia preparado o corpo de um morto. Recentemente, reunira os pedaços de um como um quebra-cabeça, e em Sunnydale sempre os encontrava nos lugares mais inconvenientes — na geladeira da lanchonete, no armário do vestiário da Aura, no banco de trás do seu carro. Mas lavar um cadáver era algo novo para ela.

— É um ritual — explicou Jusef. — Minha família dá muita importância aos rituais — sorriu como que se só ele conhecesse a piada.

— Está bem — sussurrou Cordelia.

— Então me ligue daqui a três horas — sugeriu. — Vai ser bem bacana. Mando um carro buscá-la se você puder ir.

“Ele quer dizer uma limusine? Os dias felizes voltaram?”

— Sou uma estranha — apontou. — Quero dizer, isso é uma coisa de família — “coisa de família rica, então cala a boca!” — o que devo usar?

— Alguma coisa preta. — Jusef olhou-a de cima abaixo, o que fez suas bochechas queimarem. — Você deve ficar linda de preto.

— Fico — concordou.

Ele colocou a mão no antebraço de Cordelia. Suas unhas eram impecáveis.

A alguns passos de distância, onde não se podia ouvir, Salami olhava. Ele parecia realmente bravo. “Talvez esteja com ciúmes”, pensou com esperança. “Ou talvez, se eu aparecer no tal do Neil Sedaka, a família irá me amaldiçoar ou coisa parecida.”

— Seria bom ter alguém para me animar — acrescentou ele. — Sou um tipo de ovelha negra da família.

— Bem, sou uma garota alegre, sempre dizem isso — ela levantou a mão. — Vou fazer o possível.

— Obrigado! — ele deu um sorriso de menino triste

— Não sei se você acredita em carma, mas eu acredito.

— Não tenho certeza — ela balançou os ombros. — Às vezes parece que algumas pessoas têm mais do que sua cota de azar. “Como eu e minha carreira de atriz.”

— E também de sorte — acrescentou rapidamente, porque é claro que era esta a idéia.

— Vamos descobrir se nosso encontro foi sorte. Não acredito que tenha sido um acidente você estar segurando aquela blusa horrível quando a vi pela primeira vez — e pegou a mão dela.

Salami acenou para ele.

— Jusef, precisamos ir.

— Está certo, Slamet — disse.

— Ah, é Slamet — ela murmurou.

— Significa “boa sorte” em indonésio.

— O meu significa Cordelia.

Jusef olhou fundo em seus olhos. Ela sentiu como se estivesse nadando em seus ricos olhos castanhos. “Ênfase no ricos.”

— Espero você ligar.

— Está bem — ela falou baixinho.

— Espere três horas — ele a lembrou. — Vou desligar o telefone durante o enterro.

Ela assentiu com a cabeça, um pouco sem jeito. “Na verdade, muito.”

— Boa sorte — disse ela.

Então, na maior casualidade possível, virou-se em seu salto alto e foi andando.

“Vou a um encontro em um funeral. Só em LA”, pensou ela. “É claro que também aconteceria em Sunnydale, só que lá os caras seriam, tipo, demônios disfarçados ou coisa assim.”

Ela olhou sobre o ombro, um pouco desapontada por vê-los indo na direção oposta. Já era mesmo hora de ir embora. Angel acordaria logo, e ela queria descobrir se a tal Nira tinha ligado. E quem era ela.

Já estava quase no ponto de ônibus — por mais humilhante que fosse não ter carro em Los Angeles — quando sentiu um puxão na bolsa.

— Ei! — gritou, trazendo a bolsa para perto de si. Ela baixou os olhos e viu uma menina bem pequena com a mãozinha firmemente colocada dentro de sua bolsa. Só então Cordelia percebeu que a deixou aberta quando colocou o cartão de Jusef dentro.

A menina ficou olhando solenemente para Cordelia. Seu rosto era redondo e os olhos pareciam duas luas crescentes. O longo cabelo negro estava preso em duas maria-chiquinhas. Faltavam-lhe os dentes da frente. Ela usava shorts cor de framboesa e uma regata, e estava bem bonita, em nada parecida com uma pequena ladra.

Lentamente, ela tirou a mão.

— Você estava tentando roubar alguma coisa da minha bolsa? — quis saber Cordelia.

A menina continuou olhando para ela. Cordelia franziu a testa.

— Você fala inglês? Continuou olhando. Cordelia ficou nervosa e disse:

— Não faça isso de novo. É errado. Você vai arrumar encrenca. A polícia vai pôr você na cadeia. Que coisa feia.

Cordelia fez um show ao fechar a bolsa.

— Não, não — fez o sinal com o dedo e continuou andando.

Depois de uns cinco segundos, Cordelia olhou para trás.

A menina ainda a olhava.

Então um menino um pouquinho mais alto se juntou a ela. Também usava roupas coloridas, azul-marinho e branco. E deu um tapa forte no rosto da menina. Ela cambaleou, mas permaneceu quieta.

Cordelia gritou:

— Ei!

A menina voltou-se para Cordelia enquanto o sangue escorria do canto de sua boca para o queixo. O menino começou a puxá-la pelo braço. E começou a gritar com ela em uma língua estrangeira. Como ela não respondia, ele bateu novamente.

O olhar da menina ainda estava fixo em Cordelia, enquanto o sangue pingava em sua blusa.

— Pare com isso, seu marginalzinho! — Cordelia gritou. Ela correu na direção das duas crianças.

Uma pessoa que vinha andando, uma senhora corcunda com cabelo grisalho bem curtinho, bloqueou seu caminho.

— Com licença — disse Cordelia, agitada, e desviando-se dela.

As duas crianças desapareceram, praticamente evaporaram no ar.

Perplexa, Cordelia olhou para todos os lados. Não havia como fugir, ela teria visto.

A mulher grisalha estendeu a mão para ela e disse:

— Dinheiro?

Ela tinha olhos amendoados e rosto redondo. Parecia cansada e faminta.

— Tudo que tenho é um passe de ônibus — disse Cordelia.

— Você, garota rica — acusou a mulher. Ela esticou a mão. — Dinheiro.

— Ei, afaste-se. — Cordelia deu um passo para trás. — Não tenho dinheiro, tá? Só passe.

Então, as duas crianças apareceram do nada e cercaram Cordelia. Quando ela os olhou, a senhora agarrou sua bolsa, colocou-a embaixo do braço como um linebacker* e correu em disparada para um beco. As duas crianças seguiram a mulher, correndo juntas como dois antílopes.

— Ei! — gritou Cordelia.

Ela foi atrás deles em seu ridículo salto alto. Percebeu que acabaria perdendo a bolsa ou quebrando o tornozelo, e parou para tirar os sapatos. As três figuras ficavam cada vez menores enquanto ela andava graciosamente, como aprendera em um curso de modelo feito na época em que seus pais podiam pagar tais aulas. Agarrou os sapatos e começou a correr.

— Ei, meu passe de ônibus! — gritou alto.

Um homem realmente sujo e com um olhar distante observou-os passar por ali sem fazer nada. Cordelia olhou feio para ele.

— Ajude-me!

— Tem um trocado? Sou veterano — disse.

 

* Posição de defesa no futebol americano (segunda linha de defesa). (N. do T.)

 

Ela passou voando por ele. A sujeira grudava nos pés cobertos pela meia-calça. Ela estava engasgada, mas continuou mesmo assim.

Um monte de cacos de vidro brilhava na sua frente. Cordelia pisou no freio e espiou para dentro do beco. Não havia nada para se ver além da escuridão. Nada para ouvir além do homem sujo cambaleando atrás dela.

— Você tem um trocado? — pediu.

Ela olhou atentamente para ele.

— Não — disse. — Mas aposto que você tem. — Esticou a mão. — Pode me dar trinta e cinco centavos.

O homem piscou para ela.

Foi quando a gritaria começou.

 

                               Capítulo 4

— Como costumávamos dizer no velho mundo — disse Doyle a Angel — Eca!

Os dois estavam de pé no escritório de Angel. O vampiro tinha acordado de uma confusão de sonhos que incluía o inferno, o incêndio e a mulher que dançava vestida de ouro.

E também o chiuaua do comercial do Taco Bell.

Os dois examinavam as fotos da autópsia que Angel conseguiu baixar do laboratório de patologia do departamento de polícia. Kate não sabia que ele podia fazer — e fazia — isto sempre que ela mencionava alguma coisa fora do comum na cena do crime.

— Eca é uma palavra — respondeu Angel, tirando os olhos da foto e olhando para o relógio na parede. — Por onde anda Cordelia? Está atrasada.

— Talvez ela tenha conseguido o papel — disse Doyle com esperança. Ele tinha uma queda por Cordelia. Angel achava que nunca ia rolar nada entre eles, pois além de seu amigo irlandês não ser rico, escondia o fato de ser meio demônio. Talvez pelo fato de Cordy nunca ter dito uma única palavra boa com relação aos demônios.

— Seria ótimo — disse Angel.

Doyle franziu as sobrancelhas.

— Mas ela ligaria para contar, não? Quero dizer, somos seus melhores amigos. Talvez ela não tenha conseguido o papel. Talvez esteja numa espelunca qualquer, afogando as mágoas — ele parecia preocupado.

— Cordelia Chase? — Angel sacudiu a cabeça. — Nem morta ela iria sozinha a um bar. Mesmo se tivesse idade para beber — mudou de assunto. — Vamos esperar mais alguns minutos.

— Antes de quê? — perguntou Doyle assustado. Ele pegou o telefone. — Vou ligar para a casa dela.

— Boa idéia — disse Angel.

E voltou sua atenção para a tela do computador. A imagem na fotografia, embora de virar o estômago, também era um pouco familiar. Ele não conseguia se lembrar de quando e onde, mas já havia visto algo assim antes.

“Sempre posso contar com a Kate. Por não confiar em mim o suficiente, ela acaba me contando tudo”, pensou com um sorriso sarcástico. Certo, vítima do incêndio; ela não mentiu, mas era muito mais do que isso.

Angel sabia, mas não tinha certeza de como sabia, que esta pessoa tinha sido queimada de dentro para fora.

Então um corpo queimando pode pôr fogo em um prédio?

— Está na secretária eletrônica — disse Doyle.

Ele deixou recado:

— Cordelia, é o Doyle. Estamos preocupados com você. Avise se for demorar, tá? Eu já disse que é o Doyle?

Angel sorriu. “Como se pudesse ser mais alguém com esse sotaque.”

— Isso já foi uma pessoa um dia? — perguntou Doyle quando desligou o telefone.

— Foi — disse Angel. Com o mouse ele passou o cursor sobre as partes preta e vermelha no canto inferior esquerdo da tela. E acrescentou:

— Kate me disse que ocorreram alguns homicídios estranhos. Será que este é o corpo que ela achou no prédio da Nira ontem à noite?

— O que você acha? — Doyle perguntou, com uma careta.

Angel olhou com atenção para a foto, e pouco a pouco as imagens começaram a se formar em sua mente. Não eram as imagens dos seus sonhos, e não havia cachorros nelas.

— Combustão humana espontânea? — sugeriu Doyle, quebrando o silêncio. — Já leu sobre isso? Realmente acontece.

— Sim, acontece — respondeu Angel devagar.

As imagens eram recordações de Angel, há muito escondidas em sua mente. Quando permitiu que viessem à tona, passou a se lembrar muito mais do que gostaria.

Mais do que jamais se permitia.

— Angel? — chamou Doyle. — Você acha que é isso?

Seu ritmo irlandês trouxe Angel de volta a Galway, onde ele ainda era humano. |

As lembranças vieram à tona.

 

                                                           Galway, 1752

 

— A velha Quinn está morta. Vamos lá fazer um pedido sobre seu corpo — Doreen Kenney sussurrou para Angelus e o empurrou delicadamente.

Eles estavam deitados sobre o feno no celeiro do pai dela. O sol já estava se pondo, e os raios vermelhos cintilavam nas aberturas do teto. O cabelo de Doreen era cor-de-fogo, o que para alguns significava que era uma feiticeira. Angelus acreditava mais ou menos nisso. Um mero olhar dela o deixava em chamas.

— A vovó está morta, e não há mais nada a ser feito com seus ossos, só rezar sobre eles — disse Angelus, impaciente. — Sem dúvida nós dois já rezamos o suficiente pelos mortos na nossa vida. Porque os amávamos. Pela família e por amigos. O que aquela bruxa velha é nossa?

A morte era uma companheira constante em Galway. Morriam bebês, crianças e pessoas mais velhas, mendigos que passavam fome, e as doenças chegavam cada vez mais rápido. Nenhuma casa era poupada, fosse católica ou protestante. Nenhum homem, nem o aristocrata ou o fazendeiro.

— Moira disse que se você fizer um pedido sobre os mortos, consegue o que quiser.

— Se fosse assim, Moira seria uma solteirona de dezenove anos? — zombou Angelus.

Doreen parecia intrigada. Angelus sempre a achou confusa, o que não é uma coisa ruim para uma mulher, uma vez que não se queria que elas pensassem demais em certas coisas. As mulheres tinham coisas melhores a fazer: cuidar do seu homem e dos filhos.

Ela era mais como um potro indócil, nunca se tinha certeza se sua mente iria para onde você queria conduzi-la, ou se ela trotaria a esmo, esquecendo de sua natureza de mulher.

— O que quero dizer é que Moira já teve muitas oportunidades de fazer alguns pedidos — explicou Angelus. — E nós dois sabemos que ela não tem um único pretendente. Nem é provável que venha a ter, com aqueles dentes horríveis — ele se arrepiou. — E com aquele mau hálito.

— Isso é crueldade — disse ela. E sorriu. — Mas é verdade. A velha Quinn podia dar um jeito nisso. Tenho certeza.

— Está um gelo hoje — continuou Angelus — e temos coisa melhor a fazer do que zombar do corpo da sábia da aldeia.

— Sábia? Ela era uma bruxa, e você sabe disso — disse Doreen, incomodada. — Seu espírito condenado ao inferno vai subir hoje à noite e encontrar com o Diabo na floresta. Ela vai voar com ele, nua, sobre um cabo de vassoura — os olhos verdes da garota brilharam de excitação.

— Ah, Doreen, minha feiticeira, se ao menos você voasse nua sobre o meu cabo de vassoura — ironizou, pegando sua mão e tentando colocá-la onde mais o agradaria.

Ela riu e moveu sua mão.

— Angelus, você sabe que ainda sou virgem e que só vou me entregar ao meu marido.

— Certo, e você se diverte com o meu sofrimento — lamentou-se. — Meu pai não me dá meios de ter uma esposa. Se as coisas continuarem como ele quer, ainda ficarei muitos anos dependente dele.

— Eu não tenho muitos anos — disse ela, com segundas intenções. Seu pai era muito rico, e seu dote considerável. O velho Patrick Kenney queria que o casamento saísse enquanto a filha ainda fosse jovem; ela tinha dezesseis anos e era o momento certo para encontrar um marido adequado. Por ser proprietário de terras, Angelus poderia ser este marido, se sua reputação não o precedesse. Para Patrick Kenney, ele não passava de um vagabundo e salafrário.

E a opinião do cavalheiro era verdadeira nas duas vertentes.

— Doreen, se eu pudesse, me casaria — ele escorregou sua mão pela cintura dela. — Neste exato momento.

Rindo, ela encostou-se nele.

— Sim, você se casaria, Angelus. Disso não tenho dúvida.

Ele prendeu a respiração.

— Mas você não pode. Contudo — continuou ela, antes que ele tivesse a chance de protestar —, leve-me até a velha Quinn. Você poderá fazer um pedido e vê-lo se realizar.

Doreen deu um beijo longo e profundo em Angelus. Se naquele momento ela lhe pedisse para escavar o cemitério inteiro para procurar uma “mão da glória”*, ele teria concordado.

— Dizem que você é bruxa — murmurou ele.

Ela ficou tensa.

— Retire o que disse, Angelus — sua voz estava fria como pedra. — Retire, ou nunca mais fale comigo enquanto viver.

Ele hesitou.

— Claro, nem você mesma acredita nessas coisas.

— Nem mais uma palavra.

Ela se afastou, arrumando as roupas enquanto levantava.

Naquele exato momento o sol desapareceu, e as cores no celeiro ficaram cinzas.

Só pode ter sido um truque de luz, porque sobre o rosto da jovem ele podia jurar ter visto outro, deformado, horrendo, com olhos vermelhos brilhantes e cheios de ódio. Ele ficou pasmo, mas quando piscou, não havia nada além de sua adorada Doreen.

— Não devemos ir lá — ele deixou escapar. — Vai trazer má sorte.

Ela deu uma gargalhada.

— O quê, ele é covarde? — insultou. — Então vou encontrar outro que me leve.

— Não, não vai não. — Angelus se levantou.

O olhar de Doreen percorreu todo seu corpo, e um sorriso apareceu em seus lábios.

— Você é ciumento, então? — perguntou.

— Claro.

— Oh, Angelus, não seja bobo — disse ela gentilmente — O ciúme não vai ajudar em nada.

Ele se derreteu. E afirmou para si mesmo que a estranha aparição era simplesmente um truque de luz e de sua tola imaginação. As noites eram longas e ele estava cansado do mundo. Por causa disso acabava fantasiando coisas para se manter entretido — como deixar Galway para sempre e ir fazer fortuna. Só assim poderia ter uma mulher como Doreen.

— Doreen — disse sinceramente. — Eu te amo.

— A mim e a todas as outras jovens em Galway. — ela retrucou.

— Não, nunca — disse ele, com carinho. — E retiro tudo que tenha dito que possa tê-la ofendido. Perdoe-me, querida. Você tem meu coração.

— E sua alma?

Ele sentiu um leve arrepio. Mesmo assim, riu.

 

* Hand of glory é um objeto usado em magia. Trata-se da mão direita arrancada do cadáver de uma pessoa que morreu enforcada. Essa mão é depois usada como candelabro em um trabalho de magia. Hoje, na época do Halloween, as lojas vendem candelabros em formato de mão. (N. do T.)

 

— Se alguém além de Deus puder tê-la — falou rapidamente —, então este alguém é você.

Ela virou-lhe as costas e ergueu a cabeça. Pela janela podia-se ver a lua cheia brilhando. Angelus ficou surpreso com a rapidez de sua aparição. O cabelo ruivo de Doreen agora parecia loiro sob a luz. Ele nunca havia lhe contado, mas preferia as loiras.

Ainda de costas para ele, Doreen disse:

— Venha comigo. Vamos ver a velha Quinn e descobrir do que você é capaz.

 

Pegaram dois dos melhores cavalos do pai dela, ele sobre o Capitão, e ela sobre o Seda Negra, e enquanto galopavam pela escuridão, o sal e o cheiro do porto engrossavam como fumaça. Um vento forte enrolou o manto xadrez de Doreen enquanto Seda Negra assumiu um ritmo de trote, com batidas fortes sobre a terra negra. A família dela não era tão antiga quanto a de Angelus, mas os Kenneys sempre prosperaram. Alguns afirmavam que a família — todos ruivos — negociou com os espíritos para ganhar fortuna, mas as pessoas com algum estudo consideravam tais histórias fofocas de invejosos.

As nuvens se apressavam sobre suas cabeças, como se perseguissem os dois, e Angelus bateu as esporas no cavalo.

— Doreen! — gritou. — Vem vindo uma tempestade!

Ela galopava à sua frente. Não dava para saber se ela o ignorava ou se não conseguia ouvi-lo. Seu manto elevava-se como as asas de um grande pássaro; o corpo se encolhia conforme o cavalo ganhava velocidade, e ao olhá-los parecia que ela não tinha cabeça.

Os raios crepitavam sobre os dois. Capitão jogou a cabeça para trás e relinchou de medo. Com outro trovão, as nuvens romperam e a chuva começou a cair. Uma névoa se elevou das montanhas verdejantes, espalhando-se pelo caminho de Angelus.

Ele teve vontade de abandonar a estrada e procurar abrigo. Estava com vergonha de seu nervosismo infantil, mas alguma coisa dentro dele dizia que era uma grande loucura continuar com aquela aventura.

Além disso, ele tinha um compromisso na Casa de Tolerância da Sra. Burton. Bess, sua favorita, não tinha ilusões com anéis e votos, e tampouco era dada a provocações e insinuações sem se entregar...

E ele não tinha certeza se queria ver o cadáver da velha Quinn. Ela vivera bem sozinha, mas isso nunca a impediu de conversar com pessoas que ninguém mais podia ver. Havia histórias de um amante que se mostrou infiel e que teve os ossos enterrados em seu jardim. Dizem que nas noites de inverno, à meia-noite, era possível ouvir o uivo do vento através de sua caixa torácica e o ranger dos dentes por causa do frio.

“Invenções das mulheres”, disse a si mesmo.

Naquele momento, Doreen virou o cavalo e fez sinal para ele se apressar. Não era possível ver seu rosto na escuridão e com todo aquele vento, mas Angelus sabia que sua amada ria dele.

Irritado, bateu no cavalo com as esporas.

 

A cabana da velha Quinn era bem simples. Havia muita coisa jogada no monte de lixo ao lado da casa. O lugar fedia a estrume, lama e carcaça de pequenos animais, que estavam dispostos num varal como roupas de domingo penduradas do lado de fora da porta.

As tristes pedras da casa, expostas ao tempo e empilhadas umas sobre as outras, desprendiam um brilho amarelo por causa da grande fogueira que queimava no jardim. Angelus lembrou dos velhos tempos em que fogueiras eram acesas para que os mortos se aquecessem e procurassem o caminho para sua nova terra.

Havia um grupo de seis ou sete pessoas ao redor da fogueira. Somente um homem e quatro ou cinco das mulheres seguravam lenços no rosto. Estavam chorando. Outra cobria a boca com a ponta do xale e chorava alto o suficiente para acordar os mortos.

Angelus ficou surpreso; não pensou que encontraria muitas pessoas ali velando o corpo, ou cuidando do enterro, ou qualquer outra coisa. Quem visitava a velha Quinn o fazia nas noites escuras, sem luar. Tinham vergonha, por isso mantinham-se bem escondidos. Rastejavam até sua porta e sussurravam seus pedidos — poções de amor, remédios e venenos.

Com o rosto cintilante entre as chamas do fogo, a mulher que havia coberto a boca com o xale começou a cantar em uma língua antiga. Angelus logo se deu conta de que era uma bean caointe, profissional paga para lamentar os mortos. Tinha certeza disso, mas o estranho é que ela cantava por uma criança afogada.

O homem vestia-se como um pescador de Aran*. Usava chapéu de aba preta e suas roupas claras eram duras e ásperas. Quando se virou para Angelus, o mistério da lamentação foi solucionado: ele segurava uma criança morta vestida com roupas brancas — parecia um menino de quatro ou cinco anos.

Ainda havia alga em volta do pescoço da criança, e seus pezinhos estavam azuis do frio. Silenciosamente, o pescador ficou olhando para Angelus, e então uma única lágrima escorreu pelo seu rosto.

Apeando do cavalo em um só pulo, Doreen não tomou conhecimento da trágica cena. Avidamente, ela passou pela fogueira e correu para dentro da cabana da velha Quinn.

Ainda que não quisesse, Angelus estava pasmo. Ainda montado no Capitão, olhou para o pescador, que não disse uma só palavra. Com o filho morto nos braços, o homem permaneceu em pé como uma estátua de pedra em uma sepultura.

“Este homem está morto, igual ao filho”, pensou Angelus. “E eu estou morrendo aqui em Galway. Dia após dia. Não há nada aqui para mim além de procurar meretrizes e discutir com o meu pai, que também não passa de um homem morto.”

A lamentação das mulheres chorosas aumentou, pontuada pelos estalos da fogueira. Elas continuavam cantando, e Angelus, mesmo não querendo, ouvia paralisado. Finalmente voltou a se mover, com a impressão de ter se perdido por um momento; mexeu-se e olhou entre as chamas para a porta no canto da cabana, imaginando o que Doreen estava fazendo lá. Rezando, provavelmente.

Um vento repentino e agudo bateu sobre aquela cena, trazendo uma camada pesada de escuridão sobre as pessoas, cujos rostos foram envolvidos pela sombra. O ar ficou gelado e sombrio em um instante.

As vozes das mulheres de luto cessaram. Juntas, fizeram o sinal da cruz e olharam à sua volta, perplexas. Não havia barulho, fora o uivo do vento e as batidas do coração de Angelus.

 

* Ilhas Aran, na costa oeste da Irlanda. (N. do T.)

 

Até que pôde ouvir, baixo e misterioso, um gemido maligno que lhe arrepiou a espinha. O som começou como um nevoeiro sobre a terra fria, depois subiu em espiral, ganhou altura e se transformou num grito agudo que secou as lágrimas assustadas dos presentes.

O pescador de Aran gritou:

— Não! Você não vai levar o meu Paddy! — ele se dobrou sobre a criança e caiu no chão como um escudo protetor.

Angelus lutou contra o vento forte para chegar ao lado dele. Pôs a mão no ombro do homem e disse:

— O que é isto? Que som é este?

— Então você não é irlandês? — gritou o pescador. — Banshee* está vindo buscar meu menino! Vim pedir sobre os ossos da velha para que devolvesse meu filho, mas agora Banshee vai levá-lo! — começou a soluçar. — São Patrício! Oh, Paddy, não vá com ela!

Os outros começaram a gritar.

Angelus revirou os olhos ao que lhe pareceu pura superstição.

— É o vento, homem! — berrou.

O gemido se tornou um grito. O vento estava mais forte agora, e as mulheres se dispersaram. Com as chicotadas do vento frenético, a fogueira lançou uma chuva de faíscas como se fosse um cometa. O pescador ergueu a mão sobre a cabeça e começou a rezar num latim lastimável.

Então Doreen saiu cambaleando da cabana. Ela ficou de perfil para Angelus por um momento e de alguma forma parecia desfigurada. O capuz fazia sombra no espaço entre a testa e a parte superior do nariz, mas suas bochechas e queixo estavam estranhos.

Bem lentamente ela levou as mãos até o capuz e o jogou para trás. Ao mesmo tempo deu uma volta de noventa graus e parou em frente à fogueira, olhando fixamente para o fogo. Seu rosto estava pálido, com olheiras negras abaixo dos olhos. Os lábios eram cinza.

Seus cabelos estavam totalmente brancos.

Angelus ficou perplexo.

— Dorrie? — murmurou, embora ninguém, principalmente ela, pudesse ouvi-lo.

Sem firmeza, ele fincou um pé abaixo de si, erguendo-se como um homem idoso que sofresse de um sério problema de gota. O vento estava tão frio que suas articulações jovens doíam. A saliva nos lábios congelou.

Doreen desviou o olhar do fogo para encontrá-lo. Ergueu a mão e estendeu um dedo. Lentamente, começou a andar, cambaleando e arrastando-se de um jeito horrível.

— Banshee! — gritou o pescador, agarrado ao filho. — Não, Não! Deus e todos os Seus anjos estão olhando por Paddy! — o homem olhava freneticamente para Angelus. — Ele não é batizado! Ela vai levá-lo!

Angelus ficou boquiaberto olhando para Doreen. Nunca sentiu tanto medo em sua vida.

Doreen — ou seja lá em quem ela havia se transformado — gritou uma palavra em uma língua que ele não entendeu, e o vento parou. O pescador estava murmurando e chorando, agarrado ao seu bebê. Ela olhou para os dois, e então abriu um sorriso horrendo.

 

* Demônio feminino da morte, presente no folclore irlandês. (N. do T.)

 

Quase todos os seus dentes haviam sumido.

— Angelus — disse. — Faça um pedido. Peça para eu ser jovem, bonita e sua noiva — ela ergueu os braços. — Peça, e irá acontecer.

Ele não conseguia se mover, não conseguia falar. Ela deu mais um passo em sua direção. Angelus sentiu controle sobre as pernas e correu para trás. Fez um sinal contra mau-olhado.

Ela caminhou para mais perto.

O pescador olhava angustiado para ele.

— Peça-lhe para poupar meu filho — implorou.

A criatura olhou primeiro para o pescador, e depois para seu filho morto como se fosse tudo a mesma coisa para ela, e deu de ombros.

— Esse pode ser o seu desejo — disse a Angelus. — Um desejo, enquanto estou de pé — moveu as ancas. — Ou pode ter Doreen e toda a fortuna dela. É só dizer.

— Pelo meu filho, homem! — o pai suplicou. — Salve a alma do meu filho!

Angelus tremeu. “É um sonho”, disse a si mesmo, “um pesadelo, com certeza”. Embora soubesse que estava acordado.

“Um truque, então. Eu já não vi esse mesmo rosto sobre o dela no celeiro? Ela e as irmãs se divertiam à minha custa. Não sei como, mas não existe magia. Nunca acreditei nisso, e não será agora que acreditarei...”

— Você não precisa acreditar — a aparição falou, como se tivesse lido sua mente. — Não é necessário. É só fazer. Você tem os meios para mudar a sua vida para sempre. Precisa falar, Angelus.

Ele endireitou os ombros e passou a língua pelos lábios.

— Para falar é necessário acreditar.

— Pelo amor de Deus, homem! — o pescador gritou angustiado. — Diga-lhe para ir embora!

— É a Doreen e o dote dela que você quer? — sua voz era um sussurro, mas ainda assim ele podia ouvir cada palavra claramente, como se seus lábios cinzentos estivessem encostados na orelha dele. — Ou deixar Galway para sempre? Você gosta de Londres, acredito eu. Pode ter Londres. E Paris. E até as Colônias.

— Vou fazer meu próprio caminho — disse Angelus em um tom desafiador.

Ela riu, e o som foi horrível, como o grito de morte de uma mulher sofrendo dores terríveis.

— Você não consegue achar seu caminho para fora do pátio da escola, Mestre Angelus. É um mentiroso, um traidor, e rouba tudo o que pode do próprio pai. O coração de sua mãe está em pedaços, embora sua irmã ainda o ame. E você partiu o coração de muitas moças, algumas delas acharam o caminho até esta mesma porta, tudo para se livrarem de sua cria. Então, à sua maneira, você também é um assassino.

Ela levantou o dedo esquelético.

— E um dia pagará com a vida por esses assassinatos. Vai sofrer por tudo que fez, de formas que não pode imaginar nem eu posso descrever.

Ela apontou o dedo na direção dele.

— E morrerá sozinho, e ninguém vai sofrer por você.

Com estas palavras, o pescador fez o sinal para afastar o mau-olhado que era lançado na direção de Angelus. Angelus passou a mão pelo cabelo e sacudiu a cabeça com o nervosismo. Geralmente se diz que os olhos dos mortos podem ver o futuro. Então seu destino era ser enforcado por assassinato?

A raiva percorreu seu corpo. “Isso é tudo mentira”, disse a si mesmo. “A família de Doreen é rica; eles podem contratar ótimos charlatões para assustar os pretendentes que não aprovam.”

— Então eu não vou morrer — declarou ele. — Nunca vou morrer. Este é o meu desejo.

Ela gargalhou.

— Tola criatura! Você acabou de selar sua sentença. Pois saiba disso, meu bom jovem: os filhos de Deus morrem. Todos eles. Aqueles que não morrem não são Dele. Eles pertencem ao Demônio.

Enquanto falava, ela olhou para a criança morta. O pai do menino agarrou-se a ele e gritou:

— Arcanjo Miguel! São Patrício! Preciso da sua ajuda!

A mulher riu novamente.

— Jovem pai — disse, e para ele sua voz era suave — a alma do seu pequenino já está no Céu. Deus cobiça os inocentes, e esta criança certamente era inocente. Acalme suas palavras e corra para casa.

— Deus misericordioso — murmurou o homem, fazendo o sinal da cruz. Ele ficou de pé, virou-se e começou a correr.

Ela olhou de volta para Angelus.

— Agora só sobrou você para as Banshees e para a Grande Caçada. Logo, você servirá de alimento para os demônios.

— Eu não, sua bruxa! — gritou.

Em um piscar de olhos, o vento começou a uivar novamente, mais violento do que qualquer coisa que Angelus já tivesse visto, mesmo no mar. O vento o açoitava, e Angelus lutava.

A força do vento ergueu Doreen — ou quem quer que seja — para o ar e soltou-a exatamente no centro da fogueira.

Em um instante, ela estava em chamas. Gritava e lutava; cabelos, roupas, rosto — tudo foi consumido em um segundo.

O fogo ardia, transformado em uma montanha de chamas que rugiam direto para os céus; atravessando o nevoeiro e a luz da lua, até que se estendeu para além do campo de visão de Angelus. Ele imaginou que seria possível ver as chamas de Dublin. O fogo era como a cauda de um cometa.

Era como uma ponte para o Inferno.

Angelus tentou montar no cavalo, mas o animal se recusou. Relinchou e empinou, virou e partiu em disparada. Seda Negra correu atrás, e os animais desapareceram na escuridão.

— Malditos! — gritou Angelus.

O fogo apagou. De uma só vez, não havia nada, nem mesmo uma brasa incandescente. Era como se o fogo nunca tivesse existido.

Exceto pelo corpo que queimava sob o luar. Exceto por isso.

Por um instante, ele se aproximou. A luz estava fraca, mas o que viu, nunca contou para outra alma: era como se, de alguma forma, o corpo tivesse derretido, embora as feições permanecessem intactas. Era como se uma vela tivesse queimado pelo lado de dentro, deixando a parte externa por último.

Mudo, Angelus virou e fugiu na escuridão.

Foi preciso a noite toda e metade do dia seguinte para voltar para Galway, e quando perguntaram por onde andara, ele contou uma mentira sobre estar bêbado e cair no sono dentro de uma vala. Melhor bêbado do que louco.

Doreen Kenney nunca mais foi vista, e embora tenham feito uma busca, ninguém procurou perto da casa da velha Quinn. E pelo que Angelus sabia, ninguém mais voltou à tal cabana, nem para enterrar o que estava lá.

Quinze dias depois ele se tornou Angelus, Aquele com o Rosto Angelical, o vampiro mais cruel que já viveu.

Se é que pudesse ser considerado vivo.

 

                           Capítulo 5

“Você é um homem ou um demônio?

Um homem.

Qual é o seu nome?

Eu o perdi”.

— antigo barong ou dança da Indonésia

 

                                                         Nias, 1863

 

— Latura — a Serva murmurou quando os caçadores chegavam perto dela. Ela fechou os olhos e se esquivou quando uma lança passou tão perto de sua garganta que ela pôde sentir a pressão do ar.

Ele havia enviado demônios. Havia enviado chamas. Certamente não falharia com ela agora.

— Latura, auxilie sua Serva — murmurou.

Os caçadores se retiraram. Seus rostos furiosos mostraram-se aflitos e exaustos. Resmungando, ajoelharam-se, um a um, e colocaram a testa na terra.

Um peso caiu sobre o ombro da Serva; ela virou-se e sufocou o grito na garganta. Era horrendo o que via. Não era possível ser chamado de mão, garra, pata ou qualquer outra coisa parecida, mesmo assim era usada com essa finalidade. A coisa dura e verde escura da qual era incapaz de desviar o olhar, mudou de forma. No início parecia um rosto, e então ficou comprida, com tentáculos que lembravam cordas e se agitavam no ar, chicoteando. E ficou roxa, uma névoa nociva, depois espirrou um líquido que cheirava morte.

A Serva estava sozinha enquanto a coisa penetrava nela. E, enquanto flutuava na escuridão, incapaz de respirar, sentiu aquilo se movendo pelo seu corpo. Um frio intenso congelou seu sangue; após duas, três, quatro batidas, seu coração parou, incapaz de lhe dar vida.

“O deus me renegou”, pensou desesperadamente quando começou a morrer.

Então levantou-se do chão e flutuou pelos ares. Seu coração começou a bater novamente; por um instante achou que estivesse voando. Então percebeu que algo prendia suas roupas e a carregava no ar.

Ela olhou para trás e para cima.

Viu uma enorme serpente alada, de rosto imenso, olhos vermelhos brilhantes e focinho dentado. Dentes tão compridos quanto o antebraço da Serva rasgaram sua blusa, e ela estava pendurada por tiras esgarçadas de tecido muito acima do chão, bem no alto.

A mulher gritava enquanto ela e o monstro flutuavam acima do aglomerado de guerreiros, tão alto que parecia ser possível tocar a face da lua com a ponta dos dedos.

Quando olhou para trás por cima do ombro, avistou pontos amarelos piscantes no chão. Olhou com mais atenção. Eram os guerreiros, todos em chamas. Em agonia, corriam de um lado para outro tentando apagar o fogo.

— Não — sussurrou, mas no fundo da alma ouviu a resposta do deus: Sim.

 

Los Angeles, tempo presente

Era costume na Indonésia que as famílias cautelosas cuidassem dos mortos sozinhas. Lavavam e perfumavam o corpo com as próprias mãos. Embrulhavam o falecido em roupas brancas e, se optassem por cremar os mortos, tinham de acender o fósforo.

Se enterravam os mortos, deviam cavar a terra e pôr o corpo dentro.

Em uma sala escura cheia de incensos, os dois primos Rais chegaram para banhar o corpo de Bang Rais.

Meg não tinha certeza se eles sabiam que ela estava lá. Protegida de Jusef — e amante — ela tinha total liberdade para ir e vir. Costumava entrar naquela sala para meditar, como Jusef a ensinou, para manter as lembranças e se concentrar no presente.

Estava muito escuro e quieto; ela se sentou perto da fonte com flores de lótus flutuantes, e logo depois, quase dominada pelo cansaço, se esticou em algumas almofadas de cetim atrás da fonte, sonolenta. Hoje à noite aconteceria o sedhekah e, durante a recepção, ela dançaria o barong, como antigamente, mas antes...

Antes...

“Não”, pensou ela, e retirou tudo da mente.

Deixou o sono vir.

 

Quando acordou, o patriarca dos Rais estava deitado nu sobre tiras de seda amarela e vermelha perto da entrada da sala. Protegida pela mureta ao redor da fonte, Meg se sentou e fez questão de não ser notada, porque a morte estava na sala e exigia total atenção.

“Bang Rais. Está realmente morto”, pensou, arrepiada. Havia muitas pessoas em seu país que acreditavam que ele jamais morreria. Já tinha ouvido a notícia de que pelo menos uma dúzia de pessoas cometera suicídio, desesperadas com sua morte.

Ele parecia tão poderoso morto quanto em vida. Alto demais para um indonésio — quase um metro e noventa — musculoso por causa dos exercícios, mandíbula firme e rosto delineado pela cirurgia plástica, era um homem robusto.

Foi um choque quando seu coração parou de bater. Não houve aviso, nenhuma doença prolongada. De acordo com Jusef, que estava com ele na hora da morte — em sua sala, conversando sobre o futuro da Indonésia —, em nenhum momento o braço esquerdo formigou ou ele reclamou de dores no peito. Ele existia, e, em seguida, deixou de existir.

Milhares de indonésios rezaram aos deuses para que ele assumisse o país, como presidente, ditador, rei, deus — não importava como fosse chamado. Se ao menos ele pudesse liderá-los, e alimentá-los, e evitar que seus filhos morressem de doenças possíveis de se prevenir.

“O que vai acontecer com a Indonésia agora?”

“O que vai acontecer com a banda? Será que Jusef assumirá o comando da família, ou Slamet vai continuar cuidando das coisas?”

Meg ficou olhando enquanto os dois primos lavavam o corpo. Jusef mergulhou a concha em uma vasilha de vidro com água. Flores com pétalas amarelas e miolo vermelho boiavam na água, exalando um aroma floral que mascarava o começo da decomposição.

Jusef jogou água sobre o peito do pai. Slamet esfregou a palma da mão com o líquido aromático, fazendo um movimento parecido com o de limpar o vidro do carro.

Então Jusef curvou-se e sussurrou ao ouvido do pai:

— Como é estar assim, pai? Você é bem-vindo na terra dos mortos ou é um estranho aí?

— Não faça isso — resmungou Slamet. — Nós vamos trazê-lo de volta.

— Não temos o Livro — disse Jusef. — Não sabemos como. Além disso, ele está morto. Não podemos ressuscitar os mortos, só podemos fazer um vivo se tornar imortal. — Pegou mais água. — E isso só em teoria. Afinal, nunca foi feito antes.

— Você está feliz — Slamet falou para ele. — Não consegue nem esconder.

— Isso não é verdade — suspirou Jusef. — Meu pai morreu.

— Você sabe que ele não podia morrer. Sabe que o deus o favorecia. Algo está errado nessa história. Tem algo interferindo em nossa magia.

— Slamet, a roda da fortuna virou — disse Jusef. — Não era o carma dele.

“Slamet está certo”, pensou Meg. “Jusef está feliz com a morte do pai. Mas do que eles estão falando? Trazê-lo de volta?”

“Ressuscitar os mortos? Imortalidade?”

“Que livro?”

Ela começou a tremer. Uma voz em sua mente respondeu: “Você sabe que livro, Meg. Mary Margaret Taruma, você sabe”.

Os tremores aumentaram. Ela estava caindo na escuridão, caindo para dentro de suas lembranças...

 

Quando abriu os olhos, Jusef estava sentado à sua frente com uma vela na mão. A luz amarela e quente causava reflexos azul-escuro no curto cabelo dele.

— Você está bem, baby? — perguntou.

Ela hesitou.

— O que aconteceu?

— Você teve uma crise — disse. — Não se lembra?

Meg balançou a cabeça.

— Não me lembro de nada.

Ela olhou para os lados e só então se deu conta de que era o quarto de Jusef. A cama estava desarrumada. Dois alto-falantes e um amplificador ocupavam o amplo espaço acarpetado entre a cama e o imenso banheiro.

— Viemos ensaiar a dança para o enterro — ele a lembrou. — Você começou a ter uma de suas crises, quase não consegui controlá-la.

Ela pôs a mão na cabeça, que latejava.

— Obrigada — disse suavemente.

— Preciso ajudar com os preparativos do enterro. Já liguei para o nosso médico. Fique aqui e descanse, está bem?

Alguma coisa vibrou em sua mente. Algo sobre preparar para o enterro. Estava sentada perto da fonte, Slamet e Jusef conversavam sobre... sobre...

Tentou se concentrar. Nada.

Jusef pegou sua mão e a beijou.

— Descanse, Meg.

Ela concordou e deixou que ele a ajeitasse na cama. Jusef amaciou um travesseiro e o colocou atrás de sua cabeça. Então, carinhosamente puxou as cobertas até abaixo do seu queixo e beijou-lhe a testa.

— Volto mais tarde — assegurou. — Durma, está bem?

— Devo estar piorando — disse ela. — Não tinha uma crise destas há muito tempo.

— Não — insistiu ele.

Houve um sorriso triste entre eles. Há cerca de um ano, logo depois de terem se conhecido, Meg começou a ter crises epilépticas. Especialistas em Dakarta descobriram que ela tem um tipo específico de tumor no cérebro extremamente raro para alguém da sua idade. Entre outras coisas, causava um aumento do liquor, que era drenado por um pequeno tubo plástico colocado abaixo da pele do crânio até o pescoço. Olhando com atenção era possível perceber a leve elevação no lado esquerdo do pescoço, por onde passava o tubo.

O tumor não podia ser operado. Ela viu nas tomografias que ele estava crescendo. Cedo ou tarde, iria matá-la.

Na maior parte do tempo, ela era capaz de levar uma vida normal. Em alguns dias até se esquecia disso. E devia muito de sua melhora às sessões de hipnose que Jusef conduzia. Isso também a ajudou a esquecer de outras coisas.

Ela fechou os olhos.

E sonhou.

 

“Havia um homem, mesmo assim não era humano. Estava vivo, ainda que seu coração não batesse.” “Se ela o chamasse, ele viria.” “Ela abriu a boca e sussurrou: Angel.”

— O quê? — perguntou Angel ao voltar de um devaneio.

— Eu disse que ela ainda não está atendendo — respondeu Doyle.

Angel balançou a cabeça. Os sons da cidade penetraram nos últimos vestígios de suas lembranças daquela estranha noite em Galway. Ele se lembrou de todos os detalhes: roupas, cheiros, sensações; lembrou-se também de como ele se atormentou durante anos depois de ter recuperado a alma. Verificando exaustivamente cada momento, revirando as lembranças.

Será que aquele pedido, naquela noite, trouxe sua criadora, Darla, para sua vida? Será que foi condenado naquele momento?

É claro que não tinha como saber. “E isso não faz diferença, faz?”

“As coisas são como são. Tornei-me, e sou, o que sou, seja lá o que for.”

Mas o fato é que Angel não conseguia parar de pensar nisso. Não conseguia parar de lembrar. Era o que os Ciganos queriam, não era? Que eternamente, obsessivamente, ele se arrependesse de tudo que levou à sua transformação em uma das criaturas mais repugnantes que o Inferno já cuspiu de volta para o mundo.

A confissão deveria ser boa para a alma, mas que tipo de bem poderia vir com este tormento?

“Isto evita que eu faça tudo novamente”, pensou. Contanto que a verdadeira felicidade lhe fosse negada — “ou, como diria Doyle, contanto que eu me negue a verdadeira felicidade” — ele manteria sua alma. Remorso era a qualidade que separava os humanos dos demônios, pelo menos de acordo com o clã Cigano Kalderash que o amaldiçoou por ter matado a filha favorita deles. Fazia sentido, então, que a forma mais pura de existência fosse o sofrimento?

Ele não podia acreditar nisso, e não acreditava.

Falou para Doyle:

— Não é do estilo dela deixar de ligar.

— Estou dizendo isso há cinco minutos — Doyle falou impacientemente. — Você não ouviu uma palavra do que eu disse, ouviu?

O telefone tocou. Eles trocaram olhares aliviados entre si enquanto Angel atendia.

— Cordelia — falou Angel.

— Não, é Kate — disse a detetive. — Acho que estou com um cliente seu aqui. Algo que acho extremamente interessante.

— Nira? Presa?

— No necrotério. Acabou de chegar. Bem, recebemos o corpo ontem à noite, mas levou um tempo para ser reconhecido.

Do outro lado da linha, Kate mexia em alguns papéis. Ele tinha certeza de que ela estava falando da vítima cuja foto da autópsia estava na tela de seu computador. Isso o fez pensar se ela sabia que ele entrava no sistema sempre que precisava. Se esse era seu jeito de avisá-lo que estava ciente de suas atividades.

— Da Tailândia — disse ela. — O sobrenome é Suchar alguma coisa. S-U-C-H-A-R-I-T-K-U-L. Primeiro nome, Decha.

“A mulher dourada da minha visão?”

— Não me lembro desse nome. Por que você acha que ela era minha cliente?

— Não é mulher, é um homem. E tinha seu cartão. O interesse dele aumentou. Poucas pessoas tinham seu cartão, apesar dos esforços de Cordelia em espalhar a notícia sobre as investigações de Angel, preferencialmente para as “pessoas desamparadas de quem pudessem cobrar”. Isso tinha ligação com o que ele viu no incêndio ontem à noite?

— Sabe alguma coisa sobre o meu mais novo melhor amigo Decha Sucharitkul ou não? — insistiu Kate. — Altura: 1,55 m, pelo que achamos. Setenta quilos, mas toda a gordura foi consumida. Já designei pessoas para verificar a situação dele no país. Quanto quer apostar que ele estava aqui ilegalmente?

Se era uma isca, ele não a morderia.

— Qual foi a causa da morte?

— Isso ajudaria a refrescar sua memória? — perguntou ela, obviamente jogando a isca. Como ele não disse nada, ela suspirou. — Vítima queimada, como contei. Coisa esquisita.

Então ela entregou os pontos:

— Era o corpo encontrado no apartamento em chamas ontem à noite, Angel. Aquele que eu mencionei.

Angel olhou para o computador. “Combustão humana espontânea”, pegou-se pensando nas palavras de Doyle.

Uma vez ele viu a foto de um homem que ardeu em chamas. O cara tinha se sentado em uma poltrona estofada. Queimou pela metade; quando foi encontrado, as pernas ainda estavam em ordem. Tanto ele quanto a poltrona queimaram completamente da cintura para cima. A metade de cima e o encosto da poltrona viraram montes de cinzas.

Angel ficou pensando se a mulher no fogo azul estava relacionada ao homem morto na tela do computador. Talvez fosse namorada, ou irmã.

“Provavelmente ela nem é real”, lembrou-se. “Eu a vi por meios mágicos, não com um recurso de vídeo.”

— Você não acha uma incrível coincidência ele e você estarem lá na mesma hora?

— Que tipo de identidade ele tinha? — indagou Angel.

— Por incrível que pareça ele só tinha um livro com o nome escrito dentro. Inglês como uma Segunda Língua. Curioso que a outra vítima queimada seja a professora de inglês dele. O nome era Olive LaSimone.

— Como você sabe de tudo isso? — perguntou.

— Agora, Angel, você sabe que não sou indiscreta — respondeu ela.

— Não sei de nada disso — disse Angel honestamente. — Nunca falei com esse homem.

— Falou com outros imigrantes asiáticos recentemente? — perguntou Kate. — Sei que sua cliente de ontem à noite, Nira Surayanto, é indonésia.

— Não que eu saiba.

— Certo. Espere um pouco. — Ela tapou o telefone e conversou com alguém por um segundo.

— Parece que tem mais um — disse-lhe. — Avise-me se descobrir alguma coisa sobre este rapaz, certo? Os médicos do laboratório criminal disseram que o coitado tinha no máximo dezesseis anos e cinqüenta quilos. Enquanto isso, preciso ir visitar outra adorável cena de crime. Avise-me se descobrir qualquer coisa.

— Pode deixar. “Ou não.”

Eles desligaram.

— Tinha que ser Kate Lockley — disse Doyle.

— Vamos sair. — Angel pegou o casaco.

— Para procurar Cordelia?

Angel pegou as chaves tremendo. A ferida em sua cabeça feita pela serpente estava ardendo.

— Você está bem, Angel? — perguntou Doyle.

O telefone tocou. Angel atendeu novamente.

— Sim?

— Angel? Ai, meu Deus, é a Cordelia! — gritou. — Estou em... onde estou? Estou em uma casa para desabrigados!

— Cordelia, se você realmente precisa de um adiantamento de salário...

— Não esse tipo de casa para desabrigados — interrompeu ela. — A polícia me trouxe para cá!

— A polícia?

Ela bufou.

— Você pode vir aqui? Alguma coisa realmente estranha está acontecendo, e não vou pegar ônibus de jeito nenhum.

— Está bem. Qual é o endereço?

— O cartão dele estava na minha bolsa! — Cordelia se lamentou.

— Fique calma. — Angel não fazia idéia do que ela estava falando.

— Calma? Eu tinha um encontro com um cara bem rico em um enterro!

— Certo, Cordy, estamos saindo agora.

Enquanto ela dava o endereço, Doyle ficou olhando com franca preocupação. Angel desligou e Doyle disse:

— Por que a polícia?

— Vamos descobrir quando chegarmos lá.

— Mas ela está bem? — Doyle olhou desconfiado. — Está bem, não está?

— A coisa que mais a preocupa é ter perdido o telefone de um cara rico.

— Ah... — Doyle parecia aliviado. — Ah — e magoado.

— Acho que ele deve ter morrido. — prosseguiu Angel.

— É? — Doyle ficou mais animado. — Essas coisas nunca dão certo. Para uma garota como a Cordy, um cara como esse morrer é motivo para deixá-la aos prantos.

Sorrindo francamente, Angel saiu do escritório e passou pelo saguão em direção ao estacionamento, onde seu carro conversível estava estacionado. Eles entraram, e Angel partiu.

De repente, Doyle gemeu. Seu rosto demoníaco — algo meio azul com coisas pontudas saindo por todos os lados — emergiu. O demônio se contorcia e se debatia violentamente. Angel continuou dirigindo, sabendo que Doyle estava tendo uma visão. Não havia nada que Angel pudesse fazer, a não ser esperar o curso das coisas.

O rosto humano de Doyle se recompôs enquanto ele respirava fundo e gemia.

— O que você viu? — perguntou Angel.

— Esta foi ruim — gemeu Doyle.

— Dolorosa?

— Quero dizer ruim de ver — fez uma cara feia. — Era realmente uma garota adorável. — Doyle ficou sério. — Acho que você diria que é uma jovem. E foi queimada, Angel, como naquela foto da autópsia.

— Estava vestida com roupas douradas?

Doyle olhou para Angel curioso.

— Estava.

Angel virou à esquerda.

— Eu também a vi, ontem à noite.

Doyle ficou visivelmente espantado.

— Viu? Isso é novidade.

— Eu a vi dançando.

— Ela definitivamente estava queimada na minha visão. Não foi bonito de ver.

A seguir Doyle gemeu e fechou os olhos.

— Ela está em uma danceteria — disse ele. — Clube Ko-alguma coisa. Não consegui ver tudo.

Angel franziu a testa. As visões de Doyle às vezes pareciam vagas e desfocadas, mas, por fim, muito precisas. Eram imagens das pessoas que Os Poderes que Valem queriam que Angel resgatasse.

“Uma mulher queimada”, pensou. “Uma visão que Doyle e eu compartilhamos”. Era uma novidade.

E parecia ser algo grande.

 

Um policial apareceu depois que a gritaria começou. Ele saiu correndo e Cordelia gritou algo sobre a bolsa, mas não sabia se ele tinha ouvido.

Foi o parceiro dele, chamado Jason, que a levou para o abrigo. Ele estava no rádio da polícia o tempo todo, repetindo números ao invés de palavras, logo ela não fazia idéia do que estava acontecendo.

Depois de ligar para Angel, ela tirou a meia-calça, lavou os pés e calçou os sapatos sem a meia. Agora estava sentada em uma cadeira de metal dobrável com uma xícara de café na mão e uma rosquinha coberta de açúcar no guardanapo sobre a coxa. Um homem a encarava — não o Sr. Trocado, que se recusou a ir para o abrigo — mas alguém bem parecido com ele.

— Eu era apenas um menino quando Pearl Harbor foi atacado — um senhor lhe contava. — Jovem como você. Agora meu filho vende computadores aos japoneses. O que você acha disso?.

— Bem — disse Cordelia —, o que você quer que eu diga?

— Ele diz que está apaixonado pelo país, que quer se mudar para Tóquio. — Ele apontou o dedo para ela. — Agora, o que você acha disso?

Ela fez uma careta para ele.

— A mesma pergunta? — repetiu.

De repente, viaturas chegaram com a sirene ligada e pararam bem na entrada espelhada do abrigo. Policiais iam se amontoando e passando correndo.

— Puxa, o que está acontecendo? — Cordelia perguntou, quase se levantando.

— Outro crime — disse o homem. — O que você acha disso?

— Acho que você deveria se mudar para um lugar melhor — disse, vendo a polícia. “Aquela pessoa que ouvi gritar deve estar... muito machucada.”

Ela cruzou os dedos e rezou para ser apenas isto.

Os homens perto dela estavam absortos. Era quase hora do jantar, de acordo com o amigo do Pearl Harbor, e parecia que era só isso que passava por suas cabeças confusas.

Ela estava desanimada. Ficou pensando no seu ex-namorado, Xander, que na verdade não tinha sido seu namorado até ela sair de Sunnydale. Ela sempre achou que ele se tornaria um cara asqueroso, mas Xander estava ajudando Buffy e Giles na caça aos vampiros e, pelo que ouviu, era bastante útil.

“Zeppo* nunca mais”, pensou, um pouco saudosa.

Os guardas iam e vinham, falando em seus walkie-talkies. Cordelia estava ficando cada vez mais nervosa.

Havia uma agitação entre eles.

“Hora do rango”, arriscou Cordelia. “Macarrão. E estou com tanta fome que comeria se me oferecessem.”

“Mas só se comerem em prato descartável.”

A agitação foi causada pela chegada de Angel e Doyle. O primeiro apareceu na porta de entrada, alto e com boa aparência, mas também muito sério e dono de si. Tinha um ar de quem podia cuidar dos seus problemas, e cuidava.

“E, de preferência, podia cobrar por isso”, Cordelia pensou ao acenar para eles. “Afinal, as pessoas gastam centenas de dólares com seus bichinhos de estimação. Angel salva a vida das pessoas.”

Ficou em pé.

— Angel, aqui!

A rosquinha caiu no chão. Seu novo velho amigo mergulhou atrás da rosquinha e a enfiou inteira na boca, sem limpá-la.

— Eca! — disse Cordelia. Então, falou mais freneticamente: — Angel!

Os dois homens a viram e correram em sua direção.

— Cordelia, o que aconteceu? O que você está fazendo aqui? — quis saber Doyle, cheio de rugas de preocupação.

— Fui assaltada — disse ela esbaforida. — Por duas crianças e uma senhora. Ela ficou brava comigo porque não lhe dei um trocado, e então ela e as crianças, que já tinham tentado me roubar, sumiram com minha bolsa.

Ela bufou.

— Só que eu acho que não foi um assalto, porque não me machucaram.

— Esta é uma região terrível — murmurou Doyle.

— Depois veio toda a gritaria. — Cordelia deu um gole no café, embora ainda estivesse quente por fora. Os ventos fortes de Santa Ana estavam começando, e as vidraças das janelas voltadas para a rua rangiam e tremiam.

— Então meu amigo policial, Jason, me acompanhou até aqui e depois foi verificar — continuou ela. — Mas, nessa hora, os gritos já tinham parado, e não sei se ele vai voltar.

Ela fungou.

— Estão sentindo cheiro de bife? Porque meu amigo, o Sr. Rosquinha Grudenta me disse que vão ter macarrão no jantar.

Ela pegou o olhar entre Angel e Doyle.

— Vamos dar uma olhada por aí — disse Angel. Ele virou para voltar para fora. Doyle o seguiu.

— Ah, não — protestou Cordelia. — Não me deixem aqui.

Cordelia deu alguns passos, mas sem a meia calça os sapatos baratos rasparam as bolhas recém-formadas.

— Ai!

— Fique sentada. Beba seu café — mandou Angel.

Ela os viu partir.

 

* Num dos episódios de Buffy, Cordelia chamou Xander de Zeppo do grupo, dando a entender que ele não tinha nenhuma função além de ser o comediante da turma. (N. do T.)

 

— Está... tanto faz — disse ela. Voltou mancando para a cadeira e se sentou. Ficou olhando ansiosa, esperando que Angel e Doyle reaparecessem logo.

A garotinha que ajudou a roubar a bolsa estava olhando para ela pela janela.

— Ei! — Cordelia gritou. — Pare aí, ladra!

Foi mancando até a porta da frente. A menina hesitou por um instante, depois desapareceu. A tira da bolsa de Cordelia estava sobre seus ombros, e ela era tão pequena que a bolsa arrastava no chão.

— Dê-me isso! — gritou Cordelia. — Pelo menos, me devolva o cartão do Jusef!

A menina olhou para ela apavorada e continuou correndo.

Cordelia percebeu que poderia ser uma armadilha. Mas não iria abrir mão do que era seu sem lutar.

Tinha tão poucas coisas hoje em dia. “Além do mais, os telefones de Jusef estão lá.”

— Angel! Doyle! — gritou ela. Rapazes!

Ela entrou mancando em um beco diferente, reconhecido somente por um lixo mais nojento jogado no chão, mas sem cacos de vidro, graças a deus, e o cheiro de bife ficou mais forte. Bife queimado, na verdade. Mas não havia meio de pegar a menininha. Tudo que escutava era seus passos desaparecendo mais uma vez no espaço.

Cordelia rangeu os dentes frustrada e se apoiou em um ponto de ônibus.

Naquele momento, Doyle virou a esquina voando, foi até ela e perguntou:

— O que está acontecendo?

— A monstrinha que pegou minha bolsa voltou para me insultar — disse ela com raiva. — Onde vocês estavam? Vocês não têm esta droga de sapato alto. Poderiam ter pego a garota. — Ela olhou do outro lado da calçada.

O beco estava isolado com a fita que a polícia usa em cenas de crime. Dois ou três policiais estavam de guarda enquanto outro vomitava silenciosamente em uma lata de lixo.

— O que está acontecendo?

O rosto de Doyle estava pálido.

— Encontraram alguma coisa, Cordy.

Ela olhou para ele em pânico.

— Não a menininha...

— Não, um corpo. De um adulto. — Ele segurou os braços de Cordelia quando ela tentava ver por trás dele. — Você não vai querer ver aquilo. Acredite em mim.

 

“Cara, a Kate vai ficar uma fera”, Angel pensou. “Não há um centímetro quadrado de chão que os guardas ainda não tenham pisado. Eles não assistiram O Colecionador de Ossos?”

Enquanto os policiais se ocupavam contaminando a cena do crime, Angel conseguiu dar a volta na grande fábrica da esquina e achou um caminho pela perigosa escada de incêndio. De lá, ele pulou com silêncio e graça de um telhado ao outro. Agora, no telhado de um outro prédio, sentia o fedor de restos humanos. Ele se agachou e ficou ouvindo atentamente.

Eles haviam encontrado um corpo. Era um homem. Estava terrivelmente queimado. Seu nome era Ernesto Torres. No bolso dele havia um molho de chaves, todas numeradas. Surpreendentemente, também havia um maço de multas na jaqueta que carregava naquela noite quente. A polícia acha que ele largou a jaqueta logo que o fogo começou, e foi por isso que ela foi poupada.

Aparentemente o Sr. Torres gostava de estacionar na área de carga e descarga, que fica a uns cinco quarteirões ao sul de onde se encontra agora. Angel decorou o endereço.

Seria sua próxima parada.

O legista apareceu, e depois Kate. Como Angel já tinha previsto, Kate perdeu a cabeça quando viu que os guardas pisaram nas evidências. Não era preciso ouvir atentamente o que ela dizia; ele tinha certeza de que as pessoas a um quarteirão dali conseguiam ouvir cada sílaba.

 

Quando voltou para o abrigo, Doyle e Cordy estavam vasculhando a bolsa dela.

“Que bom, Doyle encontrou a bolsa”, pensou Angel em aprovação.

Quando os dois o viram, Cordy perguntou:

— O que está acontecendo?

Angel acenou com a cabeça para Doyle.

Doyle fechou o rosto.

— Deixe-me procurar os cartões de crédito para você — disse ele à Cordy.

— O que aconteceu? — Cordelia perguntou ao Angel. Depois, ao Doyle: — Não tenho cartão de crédito. Não tenho nenhum crédito. Está bem, tenho um. Não suportaria cortá-lo, mas está vencido.

Com a precisão de um matador ao meio-dia, ela abriu a carteira e sacou um cartão American Express Platinum.

— Meus dias de glória — sussurrou.

Colocou-o de volta na carteira. A seguir, abriu o bolso de moedas.

— Meu passe de ônibus ainda está aqui. Oh, que bom! O cartão do Jusef também.

— O cara que morreu? — perguntou Angel.

— Confie em mim — disse Doyle rapidamente. — Você não vai querer sair com um cara morto. Apesar de tudo que deve ter ouvido, eles não são bons de papo e...

Ela olhou para o cartão.

— Angel, veja.

Angel pegou o cartão. No verso, com um garrancho quase ilegível com tinta roxa, estavam as palavras AJUDE-NOS MOSSA, FOMO SEQÜESTRADO, CÉLIA SUCHARITKUL.

O mesmo nome da segunda e mais recente vítima queimada de Kate.

— Foram seqüestrados? — disse Cordelia. — Vocês os viram? Temos que contar para a polícia.

Angel virou o cartão para cima. O nome Jusef Rais estava circundado com a mesma tinta roxa.

— Ele não está morto? — Cordelia perguntou ansiosa. — Porque eu fui convidada para o enterro do pai dele...

— Ah — disse Doyle. — Então você não está paquerando um cara morto.

— Bem, espero que não — disse Cordelia irritada. — Quero dizer, trabalho para um, sem ofensa, e acho que já existem pessoas mortas suficientes na minha vida, você não? Além disso, acho que meu empresário também deve ser um morto, já que nunca me arranja trabalho.

— Talvez fosse ele lá atrás — sugeriu Doyle a Angel.

— Não! — Cordelia reclamou. — Não! Meus namorados só morrem em Sunnydale, tá? Aqui também não!

— A menos que ele estivesse usando o pseudônimo de Ernesto Torres, seu paquera provavelmente ainda está vivo — Angel lhe assegurou.

Houve um momento de silêncio. Cordelia ficou um pouco pálida.

— Então tem um cara morto lá atrás?

— Tem. — Doyle parecia um pouco envergonhado.

Cordelia respirou fundo.

— Achei que fosse apenas alguma coisa nojenta que você não quisesse me deixar ver — disse a Doyle. Ela sorriu para ele. — Foi legal da sua parte. Mas você sabe que em Sunnydale eu via todo tipo de coisa nojenta e ainda conseguia ser agradável e atraente.

— E a moda continua — propôs Doyle.

Ela aceitou o elogio, mas Angel viu que estava abalada. Cordelia gesticulou para o cartão novamente.

— Então, você acha que ele seqüestrou aquelas crianças?

— Talvez a menina estivesse tentando pedir para que você entrasse em contato com ele — sugeriu Doyle. — Talvez ele seja parente dela.

— Devemos verificar — disse Angel. — Topa um enterro, Doyle?

— Já fui a alguns muito bons na minha vida — disse Doyle.

Cordelia pareceu não gostar da idéia.

— Rapazes, não sei se eles têm lista de convidados ou coisa parecida...

— Eu estava pensando em abrir nosso próprio caminho — disse Angel.

— Um pequeno reconhecimento de área — acenou Doyle.

— Vamos levar você para casa. Depois Doyle e eu nos preparamos. Você ia pegar um táxi?

— Jusef vai mandar uma limusine — disse ela, erguendo o queixo. — Eu devo ligar para ele.

— Certo. — Angel olhou para suas roupas. — Precisamos nos trocar, para tentarmos nos misturar um pouco. — Olhou para Cordelia. — Pessoal rico?

— Donos de um estúdio de cinema na Indonésia.

Doyle ficou desanimado.

— Quando você tem que ligar?

— Três horas depois de quando nos conhecemos...

— Olhou para o relógio de Doyle. — Ai, não, daqui a uma hora e meia! Preciso me arrumar! Meu cabelo!

— Pôs as mãos na cabeça. — Estou terrível!

Doyle e Angel trocaram olhares mais uma vez.

— Que foi? — Cordelia quis saber.

— Salvar o mundo — falou Doyle lentamente. — Não é apenas um serviço, é uma aventura.

Então ouviram passos atrás deles, e Angel disse:

— Quanto vocês querem apostar que Kate veio perguntar o que estamos fazendo aqui?

Seria uma aposta ganha.

 

                               Capítulo 6

— Ora, ora, se não é o Batman — disse Kate de forma seca enquanto caminhava até Angel, Doyle e Cordy. — E você vai me dizer que está no bairro do meu mais recente homicídio por acaso.

— Não foi por isso — Cordelia entrou na conversa. — Umas crianças roubaram minha bolsa. E, aparentemente, foram seqüestradas. Ou talvez estejam só pregando uma peça. E eu consegui um trocado com um homem louco com sérios problemas de odor corporal para ligar para o Angel vir me buscar.

Cordelia olhou ao seu redor.

— Tem um policial chamado Jason que pode confirmar minha história. E ele é solteiro — acrescentou, caso Kate fosse também.

— Seqüestradas? — repetiu Kate.

Sem dizer nada, Angel lhe entregou o cartão de Jusef.

— Ei — protestou Cordelia.

Kate olhou brava para ela.

— Posso copiar o número? — Cordy pediu em tom baixo.

Kate estudou o cartão. Virou-o algumas vezes.

— Você conhece Jusef Rais? — perguntou a Cordelia.

— Vou ao enterro do pai dele, assim espero — acrescentou, olhando para o cartão.

— Vamos começar do início. — Kate esperava ansiosa.

— Certo. Duas crianças me assaltaram — disse Cordy.

Ela começou a contar a história. Sem perceber, Angel começou a ouvi-la cada vez mais longe. A ferida em sua cabeça ardia. Ele sentiu como se o cérebro estivesse congelando, se é que tal coisa fosse possível.

Doyle percebeu e foi até o amigo.

— O que está acontecendo? — perguntou sussurrando.

Angel disse:

— Alguma coisa me mordeu. É melhor pesquisarmos o que foi quando voltarmos para minha casa.

Doyle ergueu a cabeça.

— Alguma coisa... diferente de um cão ou gato?

Angel acenou com a cabeça.

— Definitivamente não era um gato.

— E então, ela deve ter escrito isto no cartão — Cordelia estava terminando.

Kate olhou desconfiada para Angel.

— Parece que a montanha veio a Maomé. Como ele não disse nada, ela prosseguiu:

— Você deveria ter ido até a delegacia dar seu depoimento sobre o cara do apartamento. Ao invés disso está aqui. Enquanto isso, temos um possível seqüestro envolvendo alguém com quem sua secretária vai se encontrar.

— Em um enterro — retificou Cordelia. — Não é exatamente um encontro.

Kate a ignorou.

— Quando você for dar seu depoimento, teremos material para um livro.

— Mas não um romance — respondeu. — Teria coincidências demais.

— Senhora — um policial se aproximou de Kate cuidadosamente. — Precisamos documentar e catalogar as evidências.

Kate fez um comentário que nunca poderia ir aos jornais. E virou-se para os três:

— Fiquem aqui — disse olhando para Cordelia e Doyle. — Todos vocês.

Cordelia franziu a testa e levantou a mão silenciosamente.

— Mas eu preciso...

— O que foi? — Kate falou rispidamente.

Cordelia encolheu os ombros.

— Nada — disse baixinho. — Este não foi mesmo o meu dia.

Doyle estava caminhando até Cordelia para consolar a amiga. Kate o olhou tão feio que ele parou no meio do caminho.

— Não vou me mexer — assegurou ele, levantando as mãos. — Não conseguiu o papel? — perguntou à Cordy.

— Duvido — falou ela melancolicamente. — Eu não pedi para ser assaltada perto de um crime, tá?

Kate saiu andando.

— Ufa! — Doyle falou devagar. — Essa daí é casca de ferida.

Angel a olhou partir.

— Ela tem muita coisa sobre os ombros.

— Aqueles caras desabrigados vão comer macarrão hoje à noite — anunciou Cordelia. — E só para vocês saberem, juro que ela já esteve em um episódio de Charmed.

 

“Quando se é rico, pode-se fazer um monte de coisas bem legais”, pensou Jusef.

“Por exemplo, conseguir que outras pessoas façam um monte de coisas demoníacas.”

A senhora de cabelos curtos foi trazida ao apartamento para implorar por sua vida e denunciar seu parceiro no crime. Um dos comparsas de Jusef, ao tentar mover o corpo de Ernesto Torres antes de ser descoberto, viu as crianças correndo em pânico pelo beco. Pegou o menino, mas a garota escapou.

O menino contou sobre a senhora, e eles a pegaram no caminho.

Parecia que ela estava ensinando a alguns de seus “afilhados” na fábrica como bater carteiras. Um crime insignificante como este era expressamente proibido pela família Rais. Não havia necessidade de chamarem atenção para si de maneira tão medíocre e desnecessária.

A mulher estava desesperada, queria dinheiro para sair da América. Parece que sua filha estava muito doente em Bangkok e não viveria por muito tempo. Tudo que queria era vê-la uma última vez. Ela também fora uma criança de rua que roubava carteiras e jóias para sobreviver.

Quando o Ditador Mao assumiu o poder na China, esta criatura desencaminhada se tornou uma ativista social na Tailândia. Foi perseguida e presa. Acabou desenvolvendo um grande fascínio pelos Estados Unidos, um país brutal que, apesar de tudo, oferecia liberdade de pensamento e independência. Anos depois, um de seus companheiros de prisão a encontrou na rua e se ofereceu para ajudá-la a ir para a América.

Se ao menos tivesse percebido que era uma cilada para colocá-la no trabalho escravo. Ela se tornou uma colaboradora desprezível, forçando crianças pequenas a trabalhar até cair. Como não agüentava vê-las sofrer tanto, colocou algumas delas para trabalhar em pequenos furtos, ficando com uma parte do que conseguiam em troca de liberá-los do trabalho na fábrica. Forjava o registro de horas trabalhadas e mentia sobre o número de peças de roupa costuradas na fábrica.

A mulher confessou tudo na esperança de conseguir perdão. E prometeu entregar todo o lucro que conseguira com sua aventura ilegal.

Entretanto, não tinha qualquer conhecimento dos demônios que lutavam contra ela. Sua morte foi lenta e sórdida. Agora, as tochas no Templo de Latura faziam sombras no rosto do menino que tremia em frente a Jusef.

Faminto e exausto, ele parecia um pequeno homem idoso, mas não viveria tempo suficiente para ser idoso, nem homem.

“A grande roda da fortuna está definitivamente virando a meu favor”, pensou Jusef.

O nome do menino era Kliwon Sucharitkul, irmão mais novo daquele tolo, o Decha, que originalmente era um seguidor, e se tornou um traidor. Perdeu a cabeça e tentou abandonar o trabalho. Latura não é um deus que aceita traição.

Os pulsos muito finos de Kliwon estavam acorrentados à parede. Lágrimas escorriam pelo rosto moreno amarelado e molhavam a camisa azul estampada. Jusef nunca tinha visto alguém chorar com tanta força. Era um mistério como aquela criança conseguia derramar tantas lágrimas e ainda assim não emitir nenhum som. Era fascinante.

Vestindo trajes cerimoniais, Jusef plantou-se à frente do menino e disse:

— Você compreende por que estou bravo, não?

Kliwon abaixou a cabeça. Jusef sussurrou. Por baixo de seu capuz, rangeu os dentes, pensativo. Será que ele já tinha sido tão humilde um dia? Pouco provável. Seu pai costumava rir e contar que ele nascera orgulhoso e ambicioso.

Vindo de um tirano como Bang Rais era um grande elogio. Mas nenhum elogio partiu daqueles lábios depois que Jusef contou que queria ser músico.

Isto é, até que Jusef começou a pesquisar os mistérios ocultos. Então seu pai voltou a ser seu amigo.

“É, bem, de qualquer forma, por algum tempo.”

Ele se lembrou disso agora: do último dia em que se preocupou com o que seu pai pensava. Do dia em que se tornou seu próprio homem.

O homem de Latura.

E de uma das noites mais estranhas de sua vida.

 

                                                 Paris, 1996

 

Havia um homem, ou uma criatura. Jusef não sabia ao certo, apenas se dera conta de que era imortal.

Ele descobriu tudo isso por acidente, depois de tocar com um grupo em Montmartre certa noite, e ir cambaleando até a estação de metrô mais próxima. Virou à direita na rua Mariotte e continuou andando, mesmo sendo três da manhã. Dispensara os guarda-costas porque o incomodavam.

Foi quando ouviu a luta e os rugidos.

As luzes turvas embaçaram sua visão, mas o que viu o fascinou: uma criatura alta com formato de homem, mas rosto demoníaco. O cabelo preto e a pele pálida. Usava um longo casaco preto.

Lutava com alguma coisa muito parecida com ele próprio, com feições grotescas e dentes longos afiados. A força dos dois era incrível. Quando se empurravam, voavam longe, batendo contra os muros do beco.

A outra criatura continuou rosnando e atacando, mas estava claro para Jusef que o mais alto venceria. Era surpreendente a violência de ambos. Homens comuns já teriam morrido.

E então, repentinamente, o mais alto fez algo estranho. Enfiou um bastão ou vara mágica em seu opositor, que explodiu e virou pó.

Jusef teve a sensação de ter virado pedra. Estava completamente paralisado e perplexo.

O vencedor se virou e correu pelo beco, engolido pela noite.

Acabou.

Jusef começou a pesquisar sobre tal poder. Contratou pesquisadores, médiuns, dukun e cartomantes. Comprou livros caros sobre ocultismo.

E começou a fazer descobertas incríveis. Utilizou-as para dar um empurrão em sua carreira de cantor.

O pai, que tinha espiões por toda parte, ouviu falar disso, claro. E usurpou as esperanças e os sonhos do filho. Pior que isso, trouxe o primo idiota de Jusef, Slamet, para a história. Jusef não entendia por que o pai gostava tanto de Slamet, a quem faltava inteligência e ambição, não necessariamente nesta ordem.

Pai, filho e primo tornaram-se peritos no uso da mágica. Bang subiu ainda mais nos círculos de poder da Indonésia. Ao se darem conta disto, os líderes mundiais começaram a puxar o saco dele. Os generais americanos brincavam dizendo “Mais grana depois do Big Bang”.

Depois de algum tempo, Jusef entendeu a barganha implícita do pai: o filho podia usar alguns truques aqui e ali para favorecer sua carreira, mas o verdadeiro poder tinha que alimentar as ambições de Bang. Era a única maneira de poupar o filho da indesejada posição de herdeiro de seu legado.

Jusef fez mais descobertas; e depois a descoberta suprema: como viver para sempre.

Latura era o Deus dos Mortos, e se você o servisse, poderia viver para sempre. Bang deixou claro que se a imortalidade fosse concedida a alguém da família, seria a ele.

“Como ele podia acreditar que eu lhe entregaria de mão beijada o segredo da vida eterna, se apenas um de nós poderia tê-lo?”, pensou Jusef.

Na verdade, Bang nunca acreditou. Não enquanto pudesse se mover em estranhos círculos de luz azul. Mas nunca compartilhou aquilo com o filho. E o que era o demônio que escapou dele? Com quem o pai lutou na última noite de sua vida?

Jusef imaginou como Slamet estava se sentindo agora, com Bang morto. Os deuses deveriam ter protegido Bang Rais de todo mal. Os pais de Jusef e Slamet fizeram muitas promessas, sacrificaram centenas de pessoas sem importância aqui e na Indonésia, para manter Bang livre de doenças e injúrias. Isso incluía numerosas tentativas de assassinato, e seus esforços eram recompensados.

No entanto, os três tinham apenas um leve conhecimento sobre Latura, baseado em algumas páginas do diário de um padre católico do século XVIII. Embora tenham conseguido se conectar com o poder de Latura, não tinham sido capazes de entrar em contato com o deus em si.

Foi então que Jusef ficou sabendo de algo maravilhoso: havia um Livro, um registro escrito de todo o conhecimento necessário para trazer Latura a este mundo. Era o preço do temido deus para conceder o dom da vida eterna a alguém. Mas só uma pessoa por vez poderia tê-lo — alguém que fizesse sacrifícios, aprendesse os rituais e os encantamentos, e desse a Latura um veículo correto e preparado para andar pela terra. Tudo isto estaria explicado no Livro.

Jusef tinha quase certeza de que o Livro estava cm uma pequena igreja perto de Nias. E mandou homens lá para procurá-lo. Foi quando assumiu seus riscos e começou a mentir sistematicamente para o pai.

Ele formou a Irmandade de Latura, um culto ultra-secreto de seguidores. Imaginou se Bang ficara sabendo deles também, da mesma maneira como ficou sabendo das mentiras.

“Tanto faz. Ele é comida de verme agora”, disse a si mesmo, com nervosismo.

Se fosse assim, ele saberia que o Livro tinha sido contrabandeado para os Estados Unidos. Alguém teve a brilhante idéia de disfarçá-lo como um livro escolar. Uma piada maravilhosa. Inglês como uma Segunda Língua. Jusef começou a localizar as pessoas que possuíam esse livro.

O interessante é que todos eles pertenciam à mesma paróquia católica em Los Angeles. E o pároco era da Indonésia.

E ele foi se esconder mais ou menos na mesma época em que Jusef tomou conhecimento de todas essas informações.

“Eu vou encontrar esse maldito Livro nem que tenha que matar todo mundo em Los Angeles.”

“E por falar em matar...”

— Você não estava tentando assaltar aquela jovem, estava?

O menino não respondeu. Em vez disso, tombou a cabeça e chorou ainda mais forte.

O homem esperou e esperou. Se havia algo que aprendera durante anos por ser filho de Bang Rais, era que quem fazia o primeiro movimento sempre perdia.

Jusef fez um gesto na escuridão. O som das asas batendo ecoou nas paredes esfumaçadas e ensopadas de sangue. O barulho das garras ficava um pouco mais alto no chão liso e molhado.

O menino se debateu freneticamente e disse:

— Não. Não, pak.

— Foi só a sua irmã. E você tentou puni-la por isso. — A mulher havia contado isso antes de morrer, na esperança de que ele fosse poupar o menino.

— Ela não roubou. Eu não estava... Eu não bati nela para puni-la. Ela disse que eu era estúpido, foi por isso.

O menino levantou os olhos para ele. Só para assustá-lo, Jusef deu um passo atrás para dentro da escuridão, e se transformou em um fantasma.

— Por favor, pak. — A criança começou a falar compulsivamente em um dialeto nativo, áspero e desagradável. Falava algo sobre sua mãe, e sobre como ficaria arrasada se seus filhos morressem. Sobre como as autoridades iriam procurá-los.

— Seu escravinho miserável — disse Jusef ironicamente. — Acha que seus apelos vão me comover? Jusef, de Latura? Como você subestima o poder dele!

O menino continuou implorando e suplicando. Seus soluços faziam barulho agora.

Barulho demais. Jusef olhou para cima e pensou nas muitas pessoas que estavam lá, convidados passeando pelo condomínio. Olhou para o menino, que estava se atirando para frente e cortando a pele de seus pequenos pulsos em tiras. Gotículas de sangue voavam.

As garras deslizavam com ansiedade pelo chão de concreto.

— Onde está a minha irmã? — gritou o menino. — O que você fez com a minha irmã?

Jusef observou o menino quase com carinho.

— Esta ia ser minha próxima pergunta — falou para o menino. — Como você claramente não sabe onde ela está, acabou de assinar sua própria sentença de morte.

O demônio — o demônio de Jusef — se arrastou para a luz vindo da lâmpada pendurada. Tinha quatro patas, a pele verde brilhante com feições profundas e grossas gravadas na carne vermelha, e asas que batiam mais rápido que um beija-flor. Com um grito de excitação voraz, ele se lançou para Kliwon.

— Eu sei quem tem o Livro! — gritou o menino.

Jusef ficou perplexo.

— Pare! — ordenou ao demônio.

Mas era tarde demais. Com a boca bem aberta, ele engoliu o rosto do menino. Algumas lamúrias indicavam que a criança ainda estava viva, mas realmente era tarde demais.

Jusef sentou-se devagar no chão e ouviu na escuridão o som do mastigar e engolir. Ele olhou para o deus dele no altar e murmurou:

— Para você, senhor das trevas. Outro sacrifício.

“A irmã dele”, pensou. “Célia.”

“Prioridade.”

 

Jusef estava calmo e sereno quando saiu do templo e se uniu ao primo na recepção dos convidados. O sedhekah logo começaria. A recepção mais geral já havia iniciado.

Jusef viu Slamet na entrada do palácio da família, um monumento à Art Deco, citado em dezenas de revistas. As linhas clean tinham delicados detalhes em néon violeta e cor de alfazema, iluminando uma fantástica escultura de cristal da deusa Diana com seu arco no centro da lua cheia sobre as portas duplas. Tijolos de vidro brilhavam suavemente com as velas. Embora o corpo de Bang Rais estivesse no chão, um altar foi montado na sala de estar como um memorial. Os presentes eram convidados — ou melhor, obrigados — a prestar homenagem aos deuses e ao espírito do querido falecido.

Vestindo um terno preto de corte perfeito, Slamet parecia realmente o sobrinho favorito de luto pela morte de um homem muito rico. Jusef também usava preto, um terno italiano com uma camisa branca sem colarinho e sem gravata. E botas pretas de cowboy. Ele notou o olhar de desaprovação de Slamet e sorriu para si mesmo. “Que homem de mente pequena é meu primo”, pensou.

Então uma viatura da polícia deslizou pelos portões de entrada. Slamet ergueu as sobrancelhas, assustado, e olhou para Jusef.

— O que é agora?

Jusef encolheu os ombros.

— Não tenho a menor idéia.

— Aquelas mortes — sussurrou Slamet. — Não podem ter deixado rastros?

Jusef se zangou.

— Vamos começar com isso de novo?

— Por que você não os matou de um modo menos óbvio? — continuou Slamet. — Ou os levou para outro lugar para matar?

— Estava expulsando nossos inimigos — informou Jusef. — Avisando-os de que temos o poder. Fazendo-os pensar que temos o conhecimento do Livro.

— Mas eles sabem que não temos o Livro — disse Slamet em voz baixa.

— Como? Como saberiam disso? Diabo! Eles acham que existem dois Livros. Vinte. São muitas as tradições antigas misturadas com lendas, Slamet. Você sabe quantas “cruzes verdadeiras” havia na Europa durante as Cruzadas?

Uma bela indiana se aproximou com ar triste. Jusef cumprimentou-a em silêncio. Ela o cumprimentou sobriamente. Era, ou tinha sido, alguém muito importante no governo indiano. Jusef não conseguia lembrar de quem se tratava.

— Madame Krishnamurti — disse Slamet em tom de respeito. — Obrigado por comparecer à nossa recepção.

— Madame — ecoou Jusef. — Obrigado.

— Meus pêsames pela morte de um grande homem. — disse ela.

E então passou rapidamente.

A viatura se aproximou.

Slamet disse:

— O que é isto? Na frente de todos? Na noite do enterro do tio?

— Isto não aconteceria na Indonésia — concordou Jusef.

A porta do passageiro se abriu, e uma mulher loira desceu. Ela parecia familiar. Claro, esteve na mídia, falando sobre os incêndios.

“Conversando com Meg.”

— Sr. Rais? — indagou.

“Vou deixar que Slamet cuide disso”, pensou ele. E permaneceu em silêncio.

— Jusef Rais? — continuou ela.

O coração acelerou um pouco, mas ele conseguiu manter a aparência.

Ela abriu uma carteira de couro e mostrou um distintivo.

— Sou a Detetive Lockley do departamento de polícia de Los Angeles. Preciso fazer algumas perguntas.

— Estamos no meio do funeral de meu pai — disse. — Posso ajudar em um outro momento?

— Sinto muito. — Foi sua tentativa de desculpas, mas estava claro que ela não ligava a mínima para quem havia morrido ou o que estava acontecendo.

— Vamos para um local reservado — sugeriu Jusef. Slamet se virou para segui-los. A mulher levantou a mão.

— Só seu irmão, por enquanto — informou.

— Ele é meu primo — disse Slamet, erguendo as sobrancelhas.

— Jusef, devo ligar para o seu advogado?

— Está prevendo confusão? — a detetive perguntou suavemente.

Slamet ficou vermelho.

Jusef teve vontade de estrangulá-lo naquela hora.

— Não, não — Slamet disse rapidamente, mentindo com suas próprias palavras. — É que somos muito ricos, sabe, e muito conhecidos. Precisamos estar cientes do nosso lugar na sociedade.

— Sei... — Ela deu de ombros. — Ligue para quem quiser, Sr. Rais. Só quero fazer algumas perguntas ao seu primo.

Slamet desapareceu, obviamente com raiva. Jusef decidiu agir racionalmente. Ele sorriu e disse:

— Suponho que, como está em serviço, não possa tomar uma taça de champanhe.

— Não quero nada, obrigada — disse com aspereza.

Jusef não quis insistir, então a levou para dentro da casa. Passaram por muitos empregados usando faixas pretas de luto no braço esquerdo e entraram em uma sala de estar que sua mãe sempre gostou. Ela havia morrido há quatro anos, e Jusef ainda sentia muita falta dela.

— Muito bonito aqui — disse a detetive, sentando-se em uma cadeira de vime com o encosto oval. Estava rodeada de jasmins.

Jusef se sentou à sua frente. Cruzou as pernas e as mãos.

— Uma menina roubou a bolsa de uma amiga sua esta noite — começou a detetive. — O nome dessa criança era Célia Sucharitkul.

Jusef não conseguiu evitar a expressão de reconhecimento. Ele viu que ela notou, e tentou parecer preocupado.

— Ela fugiu, acho — disse, inclinando-se um pouco para frente. — Teve um tipo de briga com os irmãos.

— Que são...?

Ele pensou por um momento. “Como se chamava o pequeno?”

— Kliwon — disse ele — e Decha.

— Decha foi encontrado morto.

Ele jogou o corpo para trás.

— O quê?

— Morreu queimado. Já encontramos diversos homicídios como este por toda a cidade. Você sabe alguma coisa a respeito disso, Sr. Rais?

— Não, claro que não.

 

Meg, que vira Jusef, começou a andar na direção do namorado e parou para ouvir, em silêncio. O coração dela estava aos pulos.

“Eles vieram atrás de mim”, pensou ela. “Acham que tenho alguma ligação.”

Lembrou-se do corpo desfigurado de Olive. Seu estômago embrulhou, e ela sentiu vontade de vomitar.

Então o rosto de um homem preencheu seu campo de visão. Ele era extremamente pálido, com olhos e cabelos negros. Parecia intrigado.

Parecia que podia vê-la. Será que era um anjo?

— Angel? — murmurou ela. — Você pode me ajudar?

 

Angel estava colocando sálvia e alecrim no que parecia ser um bule. Esperou um pouco e depois disse:

— Sim, Doyle?

Doyle torceu o pescoço ao olhar por cima de um velho e pesado livro de couro.

— O que é, cara?

Angel fez cara de espanto.

— Você não me chamou?

Doyle balançou a cabeça.

— Não. — Ele olhou novamente para Angel. — Não é a segunda vez que isto acontece?

— É. — Angel tocou na ferida em sua cabeça. — Lembro de uma vez em Sunnydale quando Buffy ficou com sangue de demônios nela. Podia ouvir os pensamentos das pessoas.

— Telepatia — identificou Doyle, muito prestativo.

Angel tirou o talismã que estava preparando e folheou o livro de onde pegou a receita. Era uma tradução, chamado Compêndio Demoníaco, e continha algumas informações sobre os demônios asiáticos.

— Estou me comunicando com alguém e não sei quem é. — Virou mais uma página. — Se um dia você vir isto no original em latim na Internet, avise-me. Nunca confio em traduções.

— Este é raro — disse Doyle, apontando para o livro. — Só existem alguns exemplares.

“Não vou lembrar”, sussurrou uma voz.

Angel piscou.

— Ouvi com mais clareza desta vez. É voz de mulher, parece ser jovem. E está assustada.

Eles se entreolharam.

— Talvez seja a mulher da visão que compartilhamos — disse Angel.

Doyle levantou o esboço que Angel tinha feito. Eles o desenharam juntos e o estudaram. Chegaram à conclusão que a roupa dela era javanesa, e sua dança, de Bali.

Indonésia.

Rais era um nome indonésio. Em alguns minutos na Internet, Angel descobriu que os Rais eram uma família muito rica e influente, tanto nos Estados Unidos quanto na Ásia. A principal fonte de riqueza deles era a confecção de roupas.

— A limusine já está chegando — avisou Cordelia. — O motorista acabou de ligar no meu celular.

Eles a trouxeram novamente ao apartamento de Angel para que pudessem trabalhar no mistério dos mortos queimados. Cordy não ficou nem um pouco feliz por ser apressada, mas acabou entendendo.

— Certo. É hora da festa — disse Angel.

Ele e Doyle vestiam ternos pretos. A noite estava agradável, então nada de capas sobre o paletó. Pegaram o elevador e encontraram Cordy no escritório, andando para lá e para cá.

Os olhos de Doyle brilharam quando a viram.

— Você está linda — disse com verdadeira admiração.

E estava mesmo. O cabelo preso em coque, com alguns fios em volta do rosto. Vestido preto curto, sem ser inadequado. Usava uma gargantilha e pulseira combinando, meia-calça preta e sapato de salto.

— Vocês também não estão nada mal — disse ela.

— Toma. — Angel entregou uma pequena bola esmaltada.

Cordelia fez uma careta.

— Eca. Para que serve isso? É fedido.

— É um talismã — disse Angel. — Vai ajudá-la a se precaver contra o mal, se minha referência for confiável. Realmente preciso do original em latim.

— Você já tentou o shopping.com? — perguntou Cordelia. — Fico metade da minha hora de almoço navegando por lá. Eles têm todo o tipo de coisas que eu não posso mais comprar.

— Melhores dias virão — garantiu Doyle.

— Coloque na sua bolsa — Angel disse a ela.

— Eu realmente não quero isso — ela tremeu de modo teatral. — Passei muito tempo me arrumando e acabei de colocar o equivalente a uns vinte dólares do meu perfume mais caro. Além disso, é minha bolsa de festa e não posso comprar outra se esta ficar fedida.

Angel continuou com a mão estendida.

— Você prefere arder em cinzas?

— Pegue — insistiu Doyle. Ele olhou para Angel. — Onde está o meu?

— Eu fiz três — Angel apontou para a sua mesa, onde os outros dois estavam.

Entregou um a Doyle e ficou com o outro, colocando-o no bolso do terno.

— Certo, Doyle, fique perto da Cordy. Eu os seguirei logo atrás — disse Angel. — Se eles o barrarem, provavelmente também não vão me deixar entrar.

Angel olhou para Cordelia.

— E se nós não entrarmos, o que você tem que fazer?

— Armar uma cena — falou ela. — Coisa que faço muito bem como você sabe.

— E como sei! — concordou Angel.

— Você também pode dizer que não está se sentindo bem. — sugeriu Doyle.

— O que for preciso — disse Angel. — Simplesmente saia de lá. Você não deve entrar sem ao menos um de nós.

— Está bem — ela ergueu os ombros. — Tem certeza de que não quer que eu use uma escuta? Ou uma peruca? Ou que fale com sotaque falso como o de Doyle?

— Cordy, você está empolgada demais com isso — avisou Angel. — Desacelere, certo?

— Para sua informação, meu sotaque não é falso — disse Doyle, ofendido. — Eu nasci com esse sotaque.

— Só que Angel é irlandês e não anda por aí imitando um duende.

— Ele saiu do país dele há muito mais tempo que eu.

— Está certo. Não fique tão magoado — Cordelia o repreendeu. — Precisamos de você de cabeça fria para a missão.

Angel a examinou.

— Para que foi o seu teste de hoje?

— Enxaguante bucal.

Doyle foi até a janela e olhou pelas venezianas.

— A limusine acabou de encostar.

— Aqui vamos nós — sussurrou Cordelia.

— Nervosa? — perguntou Doyle.

Cordelia bufou.

— Ah, claro. A Rainha da Frieza está nervosa só porque vai andar de limusine até o condomínio de uma família rica para um enterro. Faça-me o favor.

— Respire fundo — sugeriu Doyle.

Ela ficou brava e disse:

— Qual é, vamos logo. Espero que tenha um bufê, porque estou faminta.

Doyle e Cordelia saíram juntos. Angel ficou na entrada aguardando.

O motorista saiu e abriu a porta. Conforme os dois passaram por ele, o motorista olhou feio para Cordelia, desviando o olhar para sua bolsa. Ele olhou para a esquerda e para a direita, talvez dando um sinal com a cabeça para alguém nas sombras. Angel não soube dizer ao certo.

“Mas tenho um mau pressentimento em relação a isso.”

Foi uma sensação realmente física a que teve início no doloroso corte onde a serpente o mordera, no topo da cabeça, e desceu até os pés.

Angel andou até a porta da frente, abriu-a, e entrou na noite.


                                   Capítulo 7

Enquanto Angel andava até o estacionamento onde estava o carro, teve certeza de estar sendo seguido. Fez o velho truque de acelerar e depois diminuir o ritmo. Seja lá quem fosse, tratava-se de alguém muito bom nisso ou, então, era apenas sua imaginação.

“Vá até aquela primeira porta”, ele pensou, no mesmo instante em que algo muito pesado caiu muito rápido sobre seus ombros.

Ele se curvou para frente e deu um chute certeiro diretamente para trás, batendo com força no meio do corpo de seu agressor. Sem nenhuma hesitação, virou noventa graus e cravou um chute de lado no mesmo local.

O homem vestia roupas negras. Tinha cabelo preto, comprido, preso em um rabo-de-cavalo e uma cicatriz bem feia no lado esquerdo do rosto. Uma tatuagem de uma caveira foi feita sobre o tecido da cicatriz, e enquanto ele se retraía por causa da dor, a tatuagem parecia se contorcer em espasmos.

Angel virou mais noventa graus e empurrou o homem para trás. Avançou sobre ele, empurrando-o novamente.

— Quem é você? — exigiu saber. — Quem o mandou? O homem tossiu sangue. Tentou proteger o rosto quando Angel deu um soco no nariz dele.

Urrando de dor, caiu de joelhos. A cabeça tombou para frente. O homem se apoiou com as mãos, ofegante.

Angel pisou sobre a mão direita do homem. Com um grito, ele se jogou para trás.

Angel abaixou-se e o agarrou pelo colarinho.

— Quem o mandou?

— Sou servo de Latura — o homem falou em voz baixa.

O sangue escorria pelo queixo.

— Quem é esse?

O homem cuspiu um dente. Seus olhos se arregalaram. Ele disse:

— Mate-me agora, ou meu mestre vai me matar.

— Talvez eu deva deixar que seu mestre o mate — disse Angel.

— Não — implorou o homem. — Ele vai deixar que Latura coma a minha alma.

— E Latura é seu instrutor de artes marciais?

Os olhos do homem abriram ainda mais. Seu olhar fixou um ponto atrás de Angel. Angel conhecia este olhar e sabia o que fazer.

Ele se jogou no chão e rolou para fora do caminho enquanto um segundo agressor se arremessava em sua direção. Mas sem o corpo de Angel no seu caminho, o homem que queria atacar o vampiro curvou-se no ar e caiu sobre o outro agressor. Ambos soltaram gritos de dor e frustração.

Antes do segundo homem perceber o que havia acontecido, Angel estava ao seu lado, torcendo seu braço com habilidade.

— Mais um centímetro, e vai quebrar — Angel prometeu.

O homem gemeu.

— Por favor, não. Sou servo de Latura.

Angel franziu a testa.

— Seu chefe tem um endereço?

O homem permaneceu em silêncio. Então gritou de dor quando Angel cumpriu sua ameaça de quebrar o braço dele. O barulho ecoou na memória de Angel.

“Houve um tempo em que eu fazia coisas assim por prazer”, pensou. “Eu gostava de machucar as pessoas.”

“Agora, só preciso cumprir minhas obrigações.”

Lágrimas escorreram pelo rosto do homem. Ele murmurou alguma coisa, mas Angel não conseguia compreender.

— Vou machucá-lo ainda mais se for preciso — disse Angel. — Diga-me quem é Latura.

— Meu deus — sussurrou o homem.

— Vou perguntar mais uma vez.

— Meu deus. Ele é meu deus. “Ah.”

— E por que vocês me atacaram?

O homem mal podia falar agora:

— Devemos... proteger a família. Eu... eu não sei porque me mandaram atacar você.

— Quem mandou?

— Mustafa. O chofer.

— Da limusine? — Angel perguntou desconfiado. O homem concordou e começou a chorar. Angel sacou o celular e ligou para Cordelia. Ele esperou enquanto tocava.

E tocou. E tocou.

Uma figura na escuridão se fundiu com as sombras. “Jusef não vai gostar disso.”

 

— Estamos ou não estamos em um filme? — Cordelia sussurrou empolgada para Doyle.

— Que filme? Os Aventureiros do Bairro Proibido? — murmurou Doyle.

Eles já tinham conseguido passar pela guarda da fronteira, ou seja lá como isso se chama nos círculos sociais da Indonésia. Os pesados portões cor de jade estavam levando um tempão, e Doyle não estava gostando nadinha do que via à sua frente.

Nem de ter perdido o carro de Angel de vista no tumulto, na multidão parecida com passageiros tentando cruzar a fronteira entre Tijuana e San Diego às sete da manhã em uma segunda-feira, quando todas as empregadas, babás e jardineiros estão indo para seus locais de trabalho.

— É tão... — Ela não tinha palavras, pudera. Havia lanternas, tochas, gongos chineses e estátuas enormes de estranhas criaturas míticas que pareciam ser parte jacaré, parte cobra e parte alguma coisa demoníaca desagradável. Havia arbustos podados na forma de macacos e de elefantes, em tamanho real, iluminados com dezenas de luzes brancas. Redemoinhos de pessoas usando ternos e vestidos passeavam, com taças de cristal e ar de muito, muito ricos.

À direita deles, manobristas com calças pretas e camisas brancas estacionavam BMWs, Jaguares e Mercedes que podiam ser encontrados na maioria das revendedoras.

— Puxa, que enterro — murmurou Cordelia.

— É nobre — teve de admitir.

Ele olhou para trás mais uma vez.

— Relaxe — sussurrou Cordelia. — Meu telefone não tocou. Então ele está por aí.

Isso não satisfez Doyle nem um pouco. Não era um plano à prova de erros, e tanto ele quanto Angel tinham reconhecido isso. Melhor seria se ele ligasse dizendo que entrou na propriedade. A bateria do celular pode acabar, ou o sinal ficar fraco — tudo pode acontecer. Desse jeito, não havia como ter certeza de que ele conseguira.

O carro foi diminuindo a velocidade até parar. A porta se abriu.

— Oi — disse Cordelia, ofegante. Os olhos dela brilharam quando um homem lhe estendeu a mão para descer graciosamente da limusine. Era bem provável que o filme na sua cabeça fosse Como Agarrar um Milionário.

Doyle desceu sozinho, e viu Cordelia de frente para um cavalheiro bem apessoado usando uma versão moderna de um terno. Ele não pareceu muito contente com a presença de Doyle, mas este não reagiu. Não estava nem aí.

— Selamat malam — disse o cara. Então se voltou para o Doyle, como se ele fosse o único a precisar de tradução e disse: — Boa noite.

— Para você também — respondeu Cordelia, mas Doyle notou que ela estava desapontada com alguma coisa. — Doyle, este é Slamet Rais. Slamet, meu amigo Doyle.

— Ah, você veio acompanhada — Slamet parecia magoado.

Cordelia sorriu.

— Não, ele é apenas um amigo — acrescentou, de forma tímida. — Seu primo disse que quanto mais pessoas viessem, mais honra seu tio receberia.

— Então está dito — Slamet estendeu a mão para Doyle. — Bem-vindo.

Enquanto Doyle cumprimentava o homem, Cordelia olhou para trás, para o mar de pessoas e de carros deslizando para deixar os convidados. O homem — Slamet Rais — perguntou educadamente:

— Procurando alguém?

“Ele sabe de alguma coisa”, percebeu Doyle. “Talvez consiga detectar os talismãs.”

Doyle foi até Cordy.

— Acho melhor irmos...

Mas nesse exato momento, outro homem se juntou a Slamet. Um homem bem grande, alto. E outro. E mais alguns.

— Por favor, o sedhekah já vai começar — disse Slamet, unindo as mãos e curvando-se um pouco para frente, em reverência.

— Que bom — disse Cordelia, sem notar os olhares de repreensão que Doyle tentava mandar.

Devagar, todos começaram a andar.

 

— Certo, agora vamos falar de Ernesto Torres — a detetive loira disse a Jusef. — Era empregado seu?

— Não, não — respondeu Jusef, surpreso. — Nós alugávamos dele o espaço da fábrica. Acredito que havia algumas violações legais, mas dois meses depois o inspetor relatou que tudo tinha sido regularizado. Temos os registros, se você quiser ver.

“Isso não é verdade”, pensou Meg. “Ernesto Torres supervisionava uma equipe de costureiras.” Abruptamente, a detetive disse:

— Posso, por favor, ver o atestado de óbito do seu pai?

Meg suspirou.

— Detetive — disse Jusef. — Temos negócios em toda a costa do Pacífico, mas minha família é da Indonésia. Praticamos o adat, o que significa que mantemos nossos costumes. Nossas crenças estipulam que a família cuide pessoalmente dos rituais associados à morte. Não contratamos pessoas de fora, como vocês. A preparação do corpo, a arrumação da pira funerária, tudo é feito pelos parentes da pessoa falecida.

— O que isso tem a ver com o atestado de óbito dele? — ela quis saber.

Meg ficou ainda mais chocada. Na Indonésia ninguém falava com tanto desrespeito a um Rais.

— Só quis apontar que também temos nosso próprio médico. Foi ele quem fez o atestado de óbito. O corpo do meu pai não saiu do condomínio depois que ele morreu. — O tom de voz se elevou um pouco.

“Ele está ficando bravo”, Meg pensou.

— Então, se por alguma razão você não confia em nós...

— Você sabia que o corpo do Sr. Torres foi deslocado? — ela mudou de assunto.

Houve uma pausa. Em seguida, Jusef disse:

— Não, eu não sabia disso, detetive. Como iria saber?

— Aparentemente, ele foi assassinado dentro de um armazém — ela olhou para um bloco de anotações sobre seu colo. — E foi deslocado por sete quarteirões para uma localização mais movimentada. Como se alguém quisesse que ele fosse encontrado.

Jusef encolheu os ombros.

— Não sei por quê.

— Talvez alguém quisesse deixar um aviso.

— Pode ser — ele reconheceu.

— Ou talvez alguém quisesse que ele fosse encontrado por nós.

— Também é possível. Detetive, não quero ser rude, mas temos um costume chamado sedhekah. Já devia ter começado. Sou o filho do falecido e preciso estar presente.

— Está certo — ela fechou o bloco de anotações e pegou sua bolsa preta de couro. Meg se escondeu mais nas sombras. — Novamente, Sr. Rais, sinto muito por sua perda.

— Obrigado.

Os dois se levantaram. A mulher estendeu a mão. Jusef também estendeu, e se despediram.

— Não precisa me acompanhar — disse ela.

Ele não disse nada.

Assim que a detetive saiu da sala, Meg perdeu a compostura. Foi cambaleando até apoiar-se em Jusef, que ficou muito espantado.

— Baby! — disse ele. E ergueu os braços.

— Estou com medo — ela murmurou. — Tenho ligação com tudo isto, só não sei como.

Ele a abraçou e alisou seu cabelo. Depois, a levou para uma cadeira, e ela se sentou. Jusef ficou agachado na frente dela e pegou suas mãos.

— Olhe nos meus olhos, Meg — disse.

Ela obedeceu.

— Continue olhando. Veja como você é. A Meg que eu amo.

O sorriso dela foi breve.

— Veja a bela mulher que amo. Veja-a da cabeça aos pés.

Ela começou a relaxar. Os músculos de suas costas e ombros se soltaram. A cabeça ficou pesada. Jusef a estava hipnotizando, já fizera isto centenas de vezes, e cada vez ficava mais fácil.

— Você é um vaso de pura luz — disse ele suavemente. — Um vaso perfeito. Repita comigo, Meg.

— Um vaso — sussurrou.

— Isso. Em todos os momentos da sua vida. Em todos os dias da sua vida. A roda da fortuna virou para trazê-la até aqui.

— Sim — disse ela.

— Feche os olhos agora. Veja a chama no olho. Foi um truque que ele a ensinou para ajudá-la a entrar no estado hipnótico. Ela deveria visualizar uma estátua, e nos globos oculares vazios da estátua, uma chama. E na chama, ela mesma, dançando.

Da cabeça aos pés, ela estava envolta em dourado. Dançava o barong e sua fantasia era ouro puro.

Era uma dançarina do templo. Sempre foi uma dançarina do templo, deslizando pelo tempo. As mãos, os pés, fazendo gestos que geravam os deuses.

Crie o deus.

As mãos dela disseram Latura. Os pés, Latura.

 

                                                     Nias, Indonésia, 1863.

 

A Serva tremeu quando as cabeças foram trazidas. Os rostos não pareciam humanos, pois murchavam enquanto secavam.

Os potes estavam cheios com a carne dos mortos.

O chefe, que a tinha reivindicado para sua família, olhava com aprovação, enquanto os escravos de seus filhos traziam mais e mais cabeças. Será que havia alguém vivo além de seu clã?

— Minha casa a recebe com muita honra — o chefe recepcionou-a. — Agora você se casará com o meu filho, e lhe dará a sua mágica.

O noivo era mais novo que ela. Era forte e viril. Ele e seu bando conseguiram mais cabeças em um único ataque do que em qualquer outro.

No mundo deles, compravam-se noivas com cabeças.

Ela nunca tinha visto tanta morte. A cada cabeça apodrecida jogada a seus pés, a Serva fechava os olhos e cantava: Para você, Latura, Deus do Submundo.

Ela não queria ser a causa de tal carnificina. Mas o que era, senão a precursora da morte?

Quando o deus andar entre os vivos, irá destruir tudo que tocar. Tudo que ver. Tudo que respirar.

Disso ela tinha certeza. O conhecimento estava no seu sangue.

De repente ela se atirou na frente do jovem orgulhoso. Pegou os próprios cabelos e expôs sua nuca.

— Corte minha cabeça — implorou —, em vez de se casar comigo.

Por um momento, ninguém se moveu ou falou. Ninguém respirou.

Então alguma coisa desceu sobre sua cabeça, rápida e certeira, e ela desmaiou com a força do golpe.

“Não, eu não quero morrer”, pensou desesperada.

Ela não sabia que ninguém nunca quer morrer de verdade.

Eles querem que a dor desapareça. Que o terror do momento cesse.

Mas morrer?

Nunca.

Quando acordou, ela estava na casa da família do chefe. O noivo dela estava a seu lado, e entregou-lhe uma criança.

A filha deles nasceu no verão seguinte, e o sangue da Serva corria nas veias do bebê.

A Serva lastimou o destino da filha.

Desta vez, ela tentou fazer uma barganha com o deus:

— Se eu escrever tudo que sei, você vai poupá-la?

No sangue dela, o deus concordou. Ele prometeu que aquela criança teria uma vida boa, se curta, e que lhe seria concedida uma passagem segura para a casa de seu irmão gêmeo, Lowalangi, no céu.

Em troca, a Serva, que aprendeu os caminhos dos caçadores, entalhou os encantamentos dele em varas de bambu. Ela levou meses. Deixou-as escondidas entre suas coisas.

Quando terminou, o deus causou um grande incêndio que varreu a aldeia. As únicas coisas poupadas foram as varas de bambu.

E a filha da Serva ficou encolhida entre as ruínas chamuscadas até que um grupo de missionários holandeses a encontrou.

Eles não sabiam decifrar os bambus, e não se importaram. Mas uma freira bondosa, imaginando que as varas podiam conter informações sobre a herança da criança, reuniu-as carinhosamente e as levou para o acampamento, colocando-as ao lado da menininha, que dormia, e chamou-a de Maria.

 

Slamet conversava com Cordy e Doyle, mas estava claro que muitas outras coisas povoavam sua mente.

Ele continuou tocando em Cordy, o que estava começando a incomodá-la. Com os mesmos dedos que há poucas horas tocara um morto. Bem, grande coisa. Ela tinha certeza de que seus dias de tocar pessoas mortas não tinham ficado para trás. Especialmente se continuasse a abraçar Angel.

— Então esse negócio de lavar pessoas mortas é uma coisa da Indonésia — prosseguiu, principalmente para ter algo a dizer. Ela percebeu que não tinha comido desde o café da manhã, pois estava nervosa demais no teste, e seu estômago roncava. Cordelia riu para disfarçar, e ele a olhou de maneira estranha.

— Entendo por que suas próprias palavras a divertem — respondeu. — Sabendo que meu país é formado por catorze mil ilhas — ele ergueu as mãos. — Realmente não existe muita coisa “indonésia”. Talvez nossa língua principal, o Bahasa, mas mesmo ela não é indonésia. É da Malásia.

— Ah, sim — disse ela. E continuou pensando se já tinha visto catorze mil ilhas em um mapa.

Os três caminharam sob correntes de lanternas chinesas vermelhas e amarelas até uma mesa comprida coberta com toalha de linho branco, servida por homens vestindo smoking. Enchiam taças de champanhe com a mesma rapidez que os garçons, com grandes bandejas, se alinhavam para servi-las.

— Não somos muçulmanos — disse Slamet. Ao vê-lo, um garçom correu com dois copos apoiados delicadamente sobre um pequeno tabuleiro dourado laqueado. Slamet pegou os dois e deu um para Cordelia e outro para Doyle.

— Ao carma — disse ele. — A grande virada da roda.

— Para você também — ofereceu Cordelia.

Doyle fitou-a como se pedisse que tivesse cuidado. Cordelia deu um gole, para brindar. Ela precisava comer alguma coisa antes de tomar bebida alcoólica.

Como se lesse sua mente, Slamet tomou o copo de sua mão e disse:

— Por favor, siga-me. Temos uma casa especial para o sedhekah. Estes convidados estão aqui para a recepção.

Cordelia aceitou isso como uma honra, encantada por ser da elite. “E é assim que deveria ser”, lembrou-se. “E seria, se meu pai não tivesse perdido toda sua fortuna.”

Assim que Slamet estalou os dedos, outro empregado apareceu. Carregava um pequeno lenço preto.

— Por favor, Srta. Chase, não fique ofendida. Isto é da tradição — disse Slamet.

— Pois não?

Ele abriu o lenço e o levantou.

— Adat exige que as mulheres não vejam o caminho para o local do sedhekah. Na Indonésia, você nem poderia participar.

— Você quer vendar meus olhos? — perguntou ela, incrédula. Olhou para Doyle, que estava de cara amarrada.

— Somente por alguns instantes. Talvez durante dois minutos — ele sorriu. — Estamos em um local público, nada vai acontecer a você aqui.

Ela pôs a mão no peito.

— Na verdade, tecnicamente, bem, já que estamos no seu condomínio, este não é um local público. Ah. — Cordelia olhou para Doyle.

Ele olhou de volta.

“Não é um local público.”

“Angel vai precisar de um convite para entrar no condomínio, ou não poderá dar um único passo aqui dentro.”

Fazia parte da vida de vampiro: Angel não poderia sequer entrar em seu apartamento se ela não o convidasse.

Atrás de Doyle, Cordelia viu passar devagar uma viatura da polícia de Los Angeles. Na verdade, estava deixando o local.

— Mas estamos sendo cuidadosamente protegidos — disse, olhando para a mesma direção. — Como pessoas ricas, sempre tomamos cuidado. Somos sempre amigáveis com as autoridades, e sempre muito educados em nosso país adotivo.

Ele pegou a mão dela e deu um beijo, fitando-a com olhos negros comoventes.

— Nenhum mal vai acontecer a você. Prometo.

Doyle disse:

— E quanto a mim?

Slamet riu.

— Nenhum mal acontecerá a você também.

Doyle acenou para o lenço.

— Você só tem uma venda.

— Você é homem — disse Slamet.

— Certo — Doyle parecia não estar convencido. Olhou para Cordy. — Não estou me sentindo muito bem. Você se incomodaria se fôssemos embora?

Ela hesitou, mas depois pensou: “O que estou fazendo? Definitivamente é hora de dar meia volta.”

— Está bem, Doyle. Eu sinto muito — ela murmurou para Slamet. — Ele tem tido muitos problemas de saúde desde, bem, a guerra.

— Ei! — Doyle protestou, mas depois fechou a boca.

— Guerra? — Slamet pareceu surpreso.

— É, então... vamos para a limusine?

— Claro. Deixe-me mandar trazê-la até aqui — Slamet parecia confuso. — Isto pode levar alguns minutos.

— Mas ela estava bem aqui — disse Cordelia.

— O condomínio está lotado — explicou Slamet.

Slamet fez sinal para um cara muito musculoso vir até eles. O homem usava terno, mas não combinava com este estilo de roupa. Fazia o tipo que puxa ferro na praia.

Ele chegou até eles e dobrou as mãos na frente do corpo.

— Por favor, cuide dos nossos convidados — Slamet disse. Ele fez reverência e foi embora.

— Não estou gostando disso — sussurrou Cordelia.

— Nem eu — suspirou Doyle. — E não posso brigar para sair daqui com todas estas pessoas em volta.

Cordelia fechou os olhos e murmurou:

— Eu te convido. Eu te convido. Eu te convido.

— Bata os calcanhares três vezes — sugeriu Doyle.

— Oh. Está bem — e assim o fez.

Em tom de surpresa, ele disse:

— Agora repita comigo. “Não há lugar como o nosso lar”.

— Há há. Muito engraçado — ela abriu os olhos. — Então isso não funciona?

— Cordy, não faria sentido se fosse possível lançar convites para os vampiros ao vento, desse jeito.

— Mas desta vez faz sentido? — perguntou ela.

Ele fez que sim.

— É muito complicado. Acredite em mim, complicado demais — suspirou. — Assim como o fato de os humanos precisarem dormir. Mas mesmo assim, é um fato.

— Certo — ela não entendeu, mas imaginou que não fazia diferença. — Só vamos sair daqui, está bem? — suspirou. — Por que todos os homens ricos desta cidade são maus? Quando eu tinha dinheiro, eu não era má.

— É o que se tem que fazer para ficar rico nesta cidade — sugeriu Doyle. — Ou talvez seja apenas uma triste coincidência.

 

Slamet encontrou Jusef com Meg. Ela estava caída em uma das cadeiras de vime que a tia de Slamet — mãe de Jusef — tanto gostava. Jusef mantinha-se sentado à sua frente, com o celular no colo e bebendo uma taça de champanhe.

Slamet correu até eles. Teve de olhar duas vezes para a jovem. Seus olhos estavam arregalados e a boca aberta. Mas, fora algumas sutis diferenças, ela e Cordelia Chase eram incrivelmente parecidas.

— Slamet — disse Jusef —, que bom. — Ele deu um tapinha no celular. — Tenho novidades interessantes. Quando a limusine foi buscar Cordelia Chase, ela estava com dois homens.

Slamet se surpreendeu.

— Dois?!

— E os três estavam com amuletos de proteção contra várias subespécies de demônios asiáticos.

Slamet ficou boquiaberto.

— Ela parecia uma garota tão legal — Jusef falou. — É algum tipo de armação. Eles sabem quem somos.

— Dois homens?

Jusef deu outro gole no champanhe. Parecia relaxado, mas Slamet viu que suas mãos estavam tremendo.

“Se Jusef se assustou, temos um grande problema”, pensou, preocupado.

— Ela só apareceu com um — disse Slamet.

— Eu sei. O outro apenas deu uma surra em dois dos nossos melhores homens — ele virou o champanhe. — Mas escute isso, Slamet. Alguém deslocou o corpo de Ernesto Torres para um local público.

— Quem faria isso? — Slamet perguntou ainda mais preocupado.

— Alguém que quer que a gente seja pego.

Sem avisar, Jusef jogou sua taça no chão. O delicado cristal se estilhaçou em dezenas de cacos, que ricochetearam no ar.

— Um traidor. Parece que temos muitos deles em nosso meio, não?

Slamet passou a mão pelos cabelos.

— O que vamos fazer?

— O quê? — Jusef perguntou de modo seco.

Um empregado veio à porta. A voz dele era comedida e respeitosa.

— Pak, os convidados estão esperando o sedhekah começar.

— O que vamos fazer? — perguntou Slamet. — Para que fazer alguma coisa? Com seu pai morto...

Jusef o silenciou com um olhar fulminante. Slamet se calou.

— Estaremos lá em alguns minutos — disparou Jusef.

— Sim, pak — respondeu o empregado, que fez uma reverência e saiu.

— Tudo está desmoronando. Desmoronando — disse Slamet. Sua voz estava estridente.

— Fique calmo — falou Jusef. — Deixe-me pensar.

 

Meg estava na sala. Consciente.

Não podia se mover, mas via, ouvia e pensava.

Ela viu quando Jusef tirou a seringa do estojo de couro, introduziu a agulha em um frasco e puxou. O tubo continha um líquido verde e viscoso.

“Não”, ela implorou quando Jusef posicionou a seringa no topo da sua cabeça.

Ele enfiou a agulha.

Não sabia como ele conseguiu que penetrasse em seu crânio. Já tinha ouvido dizer que não se sente dor no cérebro. Era possível operá-lo sem anestesia, se fosse preciso.

Mas sentiu cada milímetro da afiada agulha entrando em sua cabeça. Passada a sensação da picada, teve a dor mais intensa de sua vida. Seus olhos incharam e arderam. Suas narinas pulsaram. Sua nuca parecia estar em chamas.

“Ele está me matando”, pensou turbulentamente.

Juntando todas as suas forças, Meg tentou impedi-lo. Mas só conseguiu se manter deitada na cadeira, mole como uma marionete, olhando para ele.

— Meg? — perguntou Jusef, trazendo seu rosto para perto dele. — Meg, você está acordada?

“Há quanto tempo você faz isso comigo?”, ela pensou. “Por que está fazendo isso comigo?”

Meg nada disse, nada fez. Ele pareceu feliz por ela estar inconsciente.

Jusef guardou a seringa no estojo e o fechou. No silêncio da sala, o som pareceu tão alto que ela teria pulado da cadeira se pudesse se mexer. Mas não podia.

Talvez isto esteja salvando minha vida agora.

— Quando eu contar até dez, você vai acordar — ele disse. — Meg, quando eu contar até dez, você não vai se lembrar de nada disto.

“Vou sim. Eu vou. Eu vou. Eu vou.

Vou me lembrar de tudo.

Angel?

Vou me lembrar de tudo.

Angel?”

— Um, dois, três, quatro...

 

Cordy e Doyle ainda estavam tentando decidir o que fazer. Ela pôs a mão no celular dentro da bolsa.

— Se eu ligar para a polícia, pode ser que eles peguem o sinal — disse Cordelia.

— Se forem riquinhos e metidos, vão ficar irritados com a perturbação, mas isso é o máximo que pode acontecer — observou Doyle. — E se eles não forem pessoas legais, queremos que saibam que a polícia está a caminho.

— Então está bem — Cordelia abriu o flip do celular. — Oh — mordeu o lábio —, a bateria acabou.

Logo em seguida, a limusine encostou, e Jusef Rais veio andando rapidamente na direção deles.

— Fiquei sabendo que alguém não está bem — disse ele. — Sinto muito.

— Sim. Precisamos ir — disse Cordelia, com firmeza. — Agora.

Jusef abriu a porta da limusine.

— Posso ligar para você? — perguntou.

— Oh, Deus, estou surpresa de você ainda querer, — ela deixou escapar, mas depois se recompôs. — Seria ótimo.

— Você tem um cartão? — ele indagou. — Algo onde eu possa escrever?

— Bem, não tenho.

— O que é aquilo? — ele perguntou.

Cordelia e Doyle se viraram. Cordelia engoliu em seco. Um dos cartões de Angel estava sobre o banco de couro.

— Puxa, que bom, achei que tinha perdido isso — disse ela.

Doyle foi até a porta para retirar o cartão, mas Jusef o pegou primeiro.

— Angel Investigações? — perguntou, olhando atentamente para o cartão. Doyle imaginou que ele estava olhando para o endereço. Então os olhos de Cordelia se arregalaram quando viu sua bolsa sobre o banco.

— Oh, é deste lado... é de um negócio de um amigo meu. — disse ela. — Ele é como um anjo da guarda. Para os desamparados... adolescentes fugitivos — terminou de forma esfarrapada. Ela olhou para Doyle.

— É — disse ele. — Damos uma mãozinha para ele de vez em quando.

— Ou pelo menos dávamos. Na verdade, não somos mais amigos — ela prosseguiu. — Era tudo muito... sujo, sabe? Quero dizer, aquelas crianças quase nunca tomavam banho — Cordelia encolheu os ombros. — Tenho vontade de jogar este cartão fora, mas nunca lembro.

— Você não tem mais contato com ele, com este amigo? — perguntou Jusef.

— De jeito nenhum. Não falo com ele há, hum, meses.

— Nem eu — Doyle levantou a mão. — Vamos jogar fora.

— Não, você pode escrever seu telefone atual nele. — Jusef falou para Cordelia.

— Oh. Você tem uma caneta?

Ele pegou uma bela caneta tinteiro Mont Blanc. Ela deu uma segunda olhada, e depois rabiscou um número falso.

— Aqui está — e entregou a Jusef.

— Bem, que pena que a noite terminou cedo para você — disse Jusef com seriedade.

— Obrigada. Boa noite! — disse Cordelia.

— Boa noite! — acrescentou Doyle.

Jusef pegou a mão dela e fez cócegas com seus lábios. Doyle pegou a outra mão e pediu para que entrasse no veículo.

Eles entraram.

Quando a limusine passou pelos portões, Doyle achou ter ouvido um barulho. Cordelia suspirou.

— O que foi isso? — disse ao Doyle. Pressionando o rosto contra o vidro escuro, ela tentou abrir a janela. Nem se mexia.

Doyle ligou o interfone que os conectava ao chofer.

— Você ouviu aquilo?

— Sim, pak. Foi um pavão — disse o homem.

— Oh! — Cordelia olhou para Doyle e deu uma risadinha nervosa. — Parecia alguém sendo morto, caramba.

— Sim, ibu — disse o chofer. — E foi.

Eles passaram pela fronteira. Então, alguma coisa doce soprou dentro do espaçoso interior de couro. Doyle olhou preocupado para Cordelia.

— Talvez seja desodorante de automóvel — ela disse com esperança. — Você está vendo essas árvores de Natal balançando?

— Cordy, me dê seu talismã — Doyle disse.

Em seguida, a cabeça dele caiu para trás no banco.

— Doyle? Doyle? — ela perguntou freneticamente. — Ajude-me!

Ela bateu no vidro que os separava do motorista. Não houve resposta.

— Não. Ajude-me. — murmurou ela.

Ela tentou ver pelo retrovisor se alguma árvore de Natal estava balançando, mas a janela entre ela e o chofer era escura demais.

Tudo deslizava nas laterais. Ela começou a rodar.

“Eu te convido. Eu te convido”, pensou com lentidão, lutando para permanecer acordada. “Angel, estou enviando um S.O.S. Responda, por favor.”

“Por favor, por favor.”

Os olhos dela se fecharam.

A limusine prosseguiu.

 

                                       Capítulo 8

Angel recebeu uma multa de velocidade a caminho do condomínio Rais.

Ele fervia de raiva enquanto o policial fazia o maior showzinho ao pedir a carteira de motorista e os documentos do carro, deixando bem claro que ninguém ultrapassava o limite de velocidade de 60 km/h no turno dele, muito obrigado.

“Este tipo de coisa não acontece nos filmes”, Angel pensou enquanto esperava que suas credenciais impecáveis fossem consideradas impecáveis. “Certo, talvez com alguém como o Indiana Jones.”

“O que não é uma companhia tão ruim.”

— Muito bem. Tudo confere — anunciou o funcionário do mês em lei e ordem. — Se continuar assim, o próximo funeral será o seu — o policial concluiu com ar de sucesso.

Foi difícil não dizer o óbvio, mas Angel se conteve. Até aceitou a multa e seu valor astronômico sem reclamar.

— Não tente lutar contra. — acrescentou o policial conforme Angel engatava a marcha. — Eu bati o recorde na minha divisão pelo maior número de condenações.

Mesmo nesta hora, Angel manteve a calma.

Mas depois que saiu dali, estava tão furioso que começou a se transformar no que realmente era. Era inútil olhar no espelho retrovisor, mas deu para confirmar o que estava acontecendo simplesmente tocando com as pontas dos dedos os caninos e as sobrancelhas enrugadas.

Ao perceber que estava virando vampiro, lembrou-se de que o condomínio Rais era propriedade particular. Ele não receberia convite para entrar lá tão cedo.

“Será que eles sabem que eu sou um vampiro?”, pensou. “Será que o talismã me entregou ou eles já sabiam quem eu era? E por que se importariam?”

“E quem é Latura?”

Ele dirigia como um louco, disposto a receber outra multa de velocidade, e com esperança de que pudesse manter a calma caso isso acontecesse. A fúria na estrada poderia muito bem se tornar um problema em L.A., mas vidas estavam em jogo, e cada segundo contava.

“As vidas de pessoas próximas a mim”, pensou. “Já enterrei tantos amigos.”

“Parte do motivo de me mudar para cá foi para não ter amigos.”

Mas parece que os Poderes Que Valem não iam deixá-lo livre tão facilmente. Doyle gostava de dizer que, para salvar as pessoas, ele tinha que conhecer as pessoas. “Envolver-se. Misturar-se”.

Caso contrário, dizia Doyle, elas não significariam nada para ele. A humanidade se tornaria uma mancha sem rostos para Angel.

“E isso seria ruim por quê?”

Porque o fato de se importar com as pessoas o fazia mais humano e menos demoníaco, ele supunha. Para os demônios, os humanos eram meros alvos. Presas.

Totalmente substituíveis, o que excluía o conceito de exclusividade, de cada homem ser único.

Isso negava a importância de suas almas.

O que o trazia de volta ao remorso. Contanto que pudesse lembrar de suas vítimas, rosto por rosto, nome por nome, se os conhecesse — contanto que sofresse em nome de cada um —, ele manteria sua própria alma intacta.

“Nenhum homem é uma ilha.” Quase podia ouvir Doyle dizer essas palavras.

“É, e há muitos peixes no mar.” E isso seria algo que Cordelia diria.

 

“Socorro.

Angel, socorro.”

Ele quase pisou no freio.

Era a voz novamente.

E ela sabia quem ele era.

“Socorro”, respondeu, caso tivesse uma conexão dupla.

 

Meg encarou Jusef tentando esconder o terror em seus olhos. Ele abaixou a cabeça e perguntou:

— Você está bem?

Ela estava com dificuldades para caminhar. Sentia o corpo dormente da cabeça aos pés.

— Quero que você dance esta noite — ele disse. — Você pode fazer isso por mim?

“Posso enfiar uma faca no seu olho?”, ela pensou, tomada pela raiva. Mas manteve a frieza.

Assim como tudo o mais.

— Iremos até a boate depois, tá? Para relaxar.

Ela fez que sim.

— Estou realmente tensa.

— Posso sentir — olhou para ela. — A sessão não a ajudou?

— Sinto-me melhor do que antes — ela tocou a cabeça. — Minha cabeça dói um pouco.

Jusef olhou-a com tristeza. Ela sabia que ele estava tentando fazê-la pensar no tumor.

“Eu não tenho nenhum tumor”, ela percebeu. “Ele me fez pensar que estava morrendo para que pudesse continuar fazendo seja lá o que está fazendo comigo.”

Os braços dele eram como ferro em volta de sua cintura. Ela ofereceu-lhe um sorriso triste em retorno e disse:

— Você se importa se eu me deitar? Eu gostaria de descansar antes da apresentação.

— Será seu debut — ele sugeriu. — Convidarei alguns caras para irem à boate e nós vamos gravar tudo, está bem?

— Um sonho que vira realidade.

Não dava para acreditar. Talvez tivesse sido um sonho um dia, mas não era mais.

Foi quando pensou: “Talvez as injeções sirvam para acabar com o tumor. Talvez eu tenha entendido errado. Ele não quis me contar porque não queria me assustar. Ou dar falsas esperanças.”

Ela ergueu os olhos para ele.

— Jusef?

O sorriso dele era incrível. Era como o sol.

— Sim?

Ela procurou o rosto dele. A cautela apoderou-se de seu rosto. Não estaria ali se ele não tivesse algo a esconder.

Ela tremeu por dentro.

“Não posso dizer nada”, pensou. “Se disser qualquer coisa, ele saberá que deixei de acreditar nele.”

— O que foi, Meg?

— Você acha que seremos famosos?

— Posso garantir que sim.

 

Angel correu até o condomínio, tentando formular um plano.

Mas ao se aproximar dos portões, ele ainda não tinha pensado em nada.

“Não tenho informações suficientes”, pensou com frustração. “Não sei contra o que estou lutando.”

Exceto que é algo realmente muito difícil de matar.

Ele saiu da estrada e desligou o motor do carro. Ficou observando o portão. Se alguém viesse a pé, ele poderia se aproximar, usar seu charme e talvez conseguir entrar com eles.

“Aí está a parte em que me misturo com as pessoas, mas o problema”, pensou Angel, “é minha falta de charme”.

Ele pensou nos dias em que viveu em Galway como um degenerado, época em que podia seduzir qualquer jovem até o celeiro. Até mesmo beldades como Dorrie.

Ele imaginava o que teria acontecido com ela.

 

                                             Nias, 1920

 

Alice Kenney disse ao Padre Van Der Putten:

— Por que Nias? Por que não? Sempre me senti atraída por aquele lugar.

Puxou o cloche* sobre a testa. Seus pés cozinhavam nas botas pretas. O sol estava escaldante. Ela ficaria com o rosto cheio de sardas. Os mosquitos picavam sem cessar; se ela não morresse por causa do calor, certamente seria pela perda de sangue.

— Ele tem uma grande importância mística para os nativos — informou o padre holandês, que falava inglês maravilhosamente. Ela ficou imaginando se ele tinha pedido o posto que ocupava ou se simplesmente havia sido designado do nada.

Ele seguiu:

— Eles acreditam que um de seus deuses vive abaixo da vila. Um tipo de demônio infernal.

— Céus — ela tocou o peito. Uma linda cruz celta reluzia embaixo da blusa branca.

— É superstição, claro — acrescentou ele.

Os dois sorriram num divertimento tolerante. Então Alice disse:

— Suponho que não se pode esperar que os selvagens no meio do nada sejam muito sofisticados. Na minha própria família acreditava-se que uma de minhas ancestrais era bruxa.

— Que fascinante! — ele ergueu as sobrancelhas. — Sou muito interessado por esse tipo de coisa. Por isso pedi para ser transferido para cá.

“Ah. Isso responde uma de minhas perguntas.” “A outra é... O quão observador é este padre?” O bom padre era bastante bonito. Alice, em todo seu desejo de devotar sua fortuna às boas ações, ainda era uma mulher jovem.

“Nos dias de hoje, vinte e sete ainda é uma idade jovem”, pensou Alice, na defensiva. Mas ela sabia que, em sua casa, em Galway, eles ficaram felizes de vê-la partir para o estrangeiro. Ela não tinha conseguido prender nenhum dos homens disponíveis e era desanimador, em uma família de beldades, ver a única filha feia solteirona.

“Foi como uma bênção”, ela pensou. “Poderei fazer todas as coisas que não deixam as bonitinhas fazerem.”

— Você ficará aqui — avisou o Padre Van Der Putten.

Ela parou. Era um chalé de madeira bastante charmoso. Mais se parecia com uma casa na árvore, com cortinas de chita e chaminé de tijolos. Embora não tivesse a menor idéia de quando precisaria de lareira em um país que mais parecia uma estufa superaquecida.

— Tenho certeza de que você queria descansar antes do jantar — ele continuou ao abrir a porta.

Era muito acolhedor, apesar de minúsculo. O único quarto tinha um beliche, uma cadeira de madeira e uma pequena mesa. Ela percebeu a presença de uma lamparina a óleo e várias velas.

Acima do beliche, havia um crucifixo grande e... nojento. As feridas de Cristo eram profundas e muito sangrentas. Engoliu em seco ao olhar para aquela ninharia, mas odiaria mencionar tal coisa ao padre.

— O senhor...? — ela riu.

Ele sorriu de volta.

— Sim?

— Eu ia perguntar se vocês se arrumam para o jantar.

 

* Chapéu feminino usado desde aproximadamente 1915 até meados da década de 30, atingindo maior popularidade nos anos 20. O cloche é um chapéu justo que cobre a cabeça a partir da nuca, sendo puxado sobre a testa. Pode ter aba ou não. (N. do T.)

 

— Na verdade, nos arrumamos — ele apontou para o colarinho da bata. — Vestirei o meu melhor colarinho. E as boas irmãs também.

Alice ficou envergonhada.

Ele disse gentilmente:

— Por favor, vista o que a deixar mais à vontade neste calor. Nós fazemos nossos rituais, mas não cerimônia.

Ela riu da piada.

— Seu inglês é excelente.

— Queria que meu javanês fosse tão bom assim — admitiu. — Parece que não consigo me fazer entender por aqueles com que mais desejo me comunicar.

— Bem, lembre-se, padre, que eles são primitivos.

— Eu tento — ele suspirou, então seu rosto iluminou-se. — De qualquer modo, sei que todos irão gostar do jantar desta noite, com uma companhia nova e tão fascinante.

— Nada fascinante — Alice ficou vermelha.

Seus olharem se cruzaram. Ele não afastou o olhar. O sorriso em seu rosto ficou um pouco malicioso. Muito desconcertante.

— Muito fascinante — reagiu.

Então deixou-a e fechou a porta.

Alice ficou preocupada, sentiu-se despida só de saber que o padre estava lá fora, em algum lugar. Ela ficou apenas de camisola, tirando as meias e outras roupas íntimas pesadas.

Deitou-se no beliche — “lençóis limpos; céus, como conseguem lavar as roupas aqui?” — e tentou pensar nos motivos que a faziam estar ali. Ela ouvira sobre Nias das Irmãs de Caridade em Galway. A terra exótica de Java era uma terra pagã, talvez cheia de mistérios, mas também de doenças e ignorância. Alice, uma mulher estudada, poderia fazer tantas coisas boas aqui, como ajudar as freiras e o padre na educação dos nativos. A pequena igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro estava em dificuldades e certamente se beneficiaria de outra pessoa branca e civilizada no meio de todos aqueles... amarelos.

— Não tenho certeza se sou tão civilizada — murmurou à rede de proteção contra mosquitos enquanto a puxava sobre si. Os insetos zuniam em seus ouvidos, fazendo um enorme barulho. E se batiam contra suas orelhas com tamanha rapidez e força que mais pareciam trovões.

“Não.”

“Como tambores.”

“Ou seria o meu coração?”

 

Ela foi a estrela do jantar, e a única coisa boa também, porque não fazia idéia do que estava ingerindo e não tinha nenhuma vontade de descobrir. A comida era extremamente apimentada, e alguns pedaços pareciam borracha e couro. Devia ser algum tipo de carne desconhecida.

Comeu pouco, mas falou muito, arranhando seu holandês medíocre, chegando quase às lágrimas pela vontade das freiras em ouvir um pouco sobre o “lar”, que, para elas, significava qualquer lugar na Europa. A saudade delas a fez pensar em seu próprio comprometimento de ficar ali por pelo menos seis meses. Ninguém viria buscá-la antes disso.

Ela estava sozinha, no meio da floresta.

O diário ajudava.

 

                                                 20 de abril de 1920

 

Estou aqui há três semanas e acho que já me acostumei com a rotina. Ajudo as irmãs com a limpeza da pequena igreja todas as manhãs, e depois preparamos o desjejum. Padre Van Der Putten, como o único homem em nosso galinheiro, parece gostar de ciscar por aí. Por mais que todas elas sejam as noivas de Cristo, devo confessar que as irmãs não se incomodam nem um pouco com a atenção dele, sempre comentando sobre as bochechas rosadas e os olhos brilhantes delas pela manhã.

O tom rosado vem das queimaduras do sol, e todas têm a pele repuxada e aparência de velhas. Em comparação, sou praticamente uma debutante no frescor da idade. Mas que ironia ter por perto o único homem que vale a pena, e este ser fiel aos seus votos, pelo menos até agora.

De noite, ouço o batuque dos mosquitos quando vou chamá-los. Na verdade, me pego esperando pelo momento de chamá-los, caso contrário não posso dormir. É estranho como o zumbido deles se parece com tambores. Mencionei o fenômeno às outras pessoas várias vezes, mas ninguém mais faz tal comparação. Já se perguntaram se alguma coisa na construção da cabana faz com que o barulho fique assim.

Mas acho que é parte da minha natureza imaginativa.

“Ou talvez parte de sua bruxaria”, disse o Padre Van Der Putten ontem, ao cair da tarde. “A besta no subterrâneo chamando por você”.

Ele riu após dizer isso, mas creio que acreditava parcialmente no que estava dizendo.

 

                   Em algum momento de junho de 1920

 

Ah, viu? Deve ser junho afinal. Já não consigo mais prestar atenção às datas. Somente aos meses. O Padre Van Der Putten me disse que, se eu ficar mais que um ano, depois de um tempo, vou começar a perder a noção dos meses. Misericórdia Divina! Que vida.

Finalmente conheci os nativos. É incrível perceber que eles são capazes de selvageria que levariam uma irlandesa típica a berrar de pavor. Embora sejam agradáveis o suficiente comigo, o Padre Van Der Putten me contou que, pouco antes de minha chegada, os guerreiros formaram um grupo de ataque. Vestidos em suas melhores roupas — jaquetas negras e cocares, como pássaros de rapina — massacraram dez homens de outra vila e trouxeram as cabeças de volta.

E fizeram isso, como agora o padre me informa, porque “o deus do subterrâneo” avisou que subiria em breve, pois um veículo estava sendo preparado para recebê-lo.

Ele acredita que esse “veículo” pode ter sido o grande círculo de crânios que eles formaram com as cabeças daqueles que foram aniquilados. Na verdade, tão certo quanto o fato de estar aqui de pé, eles me mostraram o círculo em minha primeira visita, sorrindo e apontando para mim.

O chefe tem um filho, talvez oito anos mais novo que eu, com quem ele parece esperar que eu me case. Ou seja lá o que for que fazem para estabelecer um vínculo entre eles. O bom Padre brincou dizendo que realizará um belo casamento católico, e as irmãs estão muito felizes com isso também.

Devo confessar que ele é muito bonito e bem formado, mas claro que isso é ridículo.

 

Angel saiu do carro. Uma pequena pimenteira à sua direita exalava uma fragrância que se contrapunha àquela situação. Ele não sabia se Doyle e Cordelia estavam em perigo — não se permitiria imaginar nada pior do que isso — mas aqui estavam as plantas espalhando um delicioso aroma de pimenta, como se tudo estivesse bem no mundo. No sofrimento da cidade, o mal estava à vontade. Mas, em meio à natureza, que era geralmente uma terceira parte neutra, as batalhas contra as forças da escuridão pareciam estar no lugar errado.

Moveu-se por entre as árvores, uma sombra mergulhada nas sombras, ouvindo os ruídos da recepção. Seguindo em frente, viu uma cerca elétrica estendida à altura do tornozelo e permaneceu do lado de fora do perímetro.

“Devia ter trazido armas”, pensou. “Ou pelo menos voltar correndo para pegar algumas antes de seguir em frente.”

Seus agressores estavam desarmados, exceto por seus golpes de artes marciais.

Continuou andando, procurando uma falha nas defesas do condomínio. Então correu e escondeu-se contra a parede do prédio vizinho.

Todo californiano é conhecido por sua devoção à arte de cercar suas propriedades.

Parecia não haver uma maneira de entrar na festa.

Foi quando ouviu alguém sussurrar:

— Você está aí?

Ele parou de se mexer. Se respirasse, teria parado de respirar. Tinha feito de tudo para se tornar indetectável.

— Sou eu.

A mulher em sua mente.

Ele virou a cabeça sobre os ombros.

Ela estava de frente para ele.

— Como chegou aqui? — disse ele, sem rodeios.

Ela não disse nada. O rosto estava branco, olhos vidrados para frente.

— Oh, não! — ela agarrou a cabeça e começou a chorar. — Tudo foi esquecido. Tudo foi esquecido!

E desmaiou.

 

                                                                 Nias, 1997

 

O ar da noite estava carregado com o cheiro sufocante de carne humana em chamas misturado ao aroma de pneus, óleo e eucaliptos queimando. Por mais incrível que parecesse, Meg ainda podia sentir levemente o seu próprio perfume, apesar do odor pútrido do sangue que escorria por seu rosto.

Eles haviam chegado com o entardecer, o horário do dia favorito dela. A imobilidade a fazia lembrar do Paraíso; o cheiro de sândalo no ar e os macacos sussurrando na floresta crescida. Ela e suas pequenas encarregadas, de cinco e seis anos, as hóspedes mais jovens da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, estavam em seu caminho para a missa.

Da floresta, homens mascarados correram até elas, tinindo e atirando com suas armas. As garotas gritaram e correram em todas as direções, apenas para serem capturadas pelos soldados e arrastadas noite a dentro.

Então vieram até Meg como orang pendek*, metade homem, metade macaco, numa confusão de rifles, máscaras e socos. As meninas estavam todas em fila, observando, enquanto os invasores batiam em Meg e faziam coisas piores. Mais de uma vez, a garota se forçou a não ceder ao desejo de perder a consciência. Ela tinha de fazer tudo que estivesse a seu alcance para proteger as meninas.

Horas se passaram. Eles a deixavam descansar sobre o próprio sangue para depois reavivá-la e começar a tortura de novo. Não perguntavam nada. Começava a escurecer, tudo estava em chamas, até a pequena igreja de uma antiga missão de colonização holandesa ardia e viraria ruína.

Finalmente um deles agarrou-a pelos cabelos e puxou sua cabeça com força. Segurou um facão impregnado de sangue seco contra sua garganta.

— Onde está o pustaka lakak? — perguntou numa voz gutural.

Ela estava perplexa. Na verdade, ria de desespero. O homem golpeou-a com força no queixo com o lado cego da lâmina.

— Conte, ou mataremos as meninas uma a uma.

Ela lutou para manter a histeria sob controle, mas de forma monstruosa, tudo isso era insuportavelmente engraçado. Era como ouvir uma daquelas histórias ridículas de piromaníacos que morrem acendendo a vela do bolo de aniversário. Só que isso estava acontecendo com ela e suas garotinhas; estava realmente acontecendo com ela.

— Isso não existe — conseguiu dizer, e uma nova onda de risada incontrolável ameaçou sair de sua boca. Ela abriu os olhos inchados, mas tudo estava ensangüentado e nebuloso. — É um mito.

A lenda local dizia que uma irlandesa viera anos atrás e fizera amor com um deus enterrado. Isso a levara à loucura. Ela passou o resto da vida presa dentro da igreja, insanamente escrevendo um pustaha lakek, um livro mágico.

Na Indonésia, tais livros eram escritos em cortiça, geralmente em sânscrito. Para os que acreditam na lenda, não importa que tal mulher não soubesse nada de sânscrito, e claro que também não importava como teria tido acesso a um livro de cortiça em branco.

Seja como for, dizia-se que esse pustaha lakek descrevia a natureza e o ser de

 

 

* Muitas pessoas afirmam terem visto esse hominídeo na ilha de Sumatra, na Indonésia. (N. do T.)

 

Latura, o antigo Deus dos Mortos. Os ensinamentos originais de Latura tinham sido entregues por uma mulher da vila Badui que viera morar entre os Nias. Seus descendentes, pelo que dizem, aprenderam todas as palavras dos ensinamentos profanos de cor.

Então, a mulher irlandesa chegou e escreveu tudo. Foi assim que Latura passou a ter um Livro Sagrado, como acontecia com muitos deuses da antigüidade cuja adoração havia sido refinada e transmitida pela tradição oral de geração em geração.

Para trazer Latura à vida, é preciso entoar com precisão os feitiços e encantamentos apropriados, e realizar os sacrifícios corretos. Sabia-se que Latura exigia muitos sacrifícios. Afinal, seus adoradores iniciais foram canibais e caçadores.

No entanto, na tentativa de invocar Latura, o coração da irlandesa insana pegou fogo. Ela queimou até a morte, de dentro para fora. O livro, contudo, não se queimou. Se seu esqueleto fosse exumado, seria possível encontrar braços carbonizados agarrando o livro de cortiça junto ao osso do quadril.

O conselheiro espiritual de Meg, Padre Hendrik, confidenciara a ela que realmente havia sido encontrado um livro enterrado com um esqueleto carbonizado de uma mulher de cinqüenta anos, em 1983. Mas se tratava de uma Bíblia, não um livro maldito do Diabo. Meg percebia agora que a história deveria ter vazado — provavelmente os servos tenham dado com a língua nos dentes — e agora alguém muito cruel estava atrás do Livro de Latura.

O Padre Hendrik, sempre seu rochedo em momentos difíceis — realizara o casamento de seus pais e seu batizado, bem como de todos seus irmãos e irmãs — estava no hospital nesta noite de terror. Nos últimos seis dias ele padecia de uma enfermidade misteriosa. O dukun local insistia que ele havia sido amaldiçoado por um inimigo. Meg estava chocada por perceber que, apesar de sua educação dentro da igreja, estava convencida de que o líder destes homens era o responsável pela doença do Padre Hendrik. Através de magia negra e rituais tradicionais e proibidos.

— Onde está o Livro? — exigiam, sem cessar, batendo com selvageria cada vez que repetiam a pergunta. Ameaçavam arremessá-la na igreja em chamas, junto com as crianças.

Arrancaram o Padre Hendrick de seu leito no hospital. Ela ficou chocada de vê-lo de avental, os cabelos vermelhos brilhantes quase desaparecidos, o rosto cansado e cinza. Era pouco mais que um esqueleto, quando uma semana atrás esbanjava saúde e vitalidade, apesar da idade.

Entreolharam-se. Os dois estavam perplexos, chocados.

— Mary Margaret — ele gemeu, chamando-a pelo nome de batismo. Ergueu a mão trêmula e tentou fazer o sinal da cruz. Um dos homens esmurrou-o no ombro. Padre Hendrik gritou e cambaleou para frente.

— Diga ou ele morrerá — avisou o líder.

— Meg, não! — gritou o padre.

O líder riu, deixando a cabeça tombar para trás.

— Então você ainda vai insistir em dizer que não existe nenhum Livro? — indagou, esbofeteando Meg.

Ela olhou atordoada para o padre. É claro que não existia nenhum livro. Ou será que ele havia mentido para ela?

— Ele sabe onde o livro está — disse o líder.

Então passaram a investir toda sua crueldade contra o padre. Meg desmaiou quando os gritos dele chegaram a um nível febril.

Quando voltou a si viu que haviam amarrado os pés e as mãos do padre. Ele estava deitado ao seu lado. O avental empapado de sangue. O rosto mal parecia humano de tantos hematomas.

Ele olhou para ela e disse suavemente:

— Há um kris — rapidamente olhou em volta procurando pelos torturadores, mas ninguém tinha ouvido nada. — Não sei onde está.

Agarraram a cabeça dela e a fizeram ficar olhando enquanto o padre era arrastado para a igreja em chamas.

Na ausência de uma labareda, levou muito tempo para que morresse.

A dezena de freiras holandesas e indo-holandesas foram as próximas.

O líder enviou homens para a vila de Meg. Eles zombaram e descreveram em detalhes o que fariam lá. Horas depois, retornaram com a cabeça do pai dela.

Depois do que fizeram com Meg, ela rezou para que sua mãe, uma mulher religiosa, também estivesse morta.

Já era quase dia. O líder disse:

— Aplaudo sua lealdade para quem quer que seja o feiticeiro que você serve. Fomos avisados de seus fortes laços de sangue com o Livro. Mas agora chegou a hora de nos contar o resto. Se não fizer isso, à primeira luz do dia, nosso mestre devorará sua alma. Acredite, é preferível morrer.

Ela estava confusa. “Laços de sangue?”

— Que resto? O que é o resto? — implorou.

O que acontecera depois, Meg sempre assumira ser uma ilusão trazida pelo medo e pela dor.

Com a silhueta destacada contra a luz do fogo, o líder bateu palmas. De uma só vez, ele e todos os homens retiraram as máscaras.

Ela e as meninas gritaram. Meg vomitou sangue.

Ela nunca tinha visto nada mais repugnante em toda sua vida. Os rostos daqueles homens eram de um verde doentio e nojento, as testas e bochechas retalhadas por golpes profundos e vermelhos que pulsavam e gotejavam. Os olhos eram alongados e amarelos, as pupilas estreitas e em formato de losango. Eles se lançavam para cima dela, sibilando como cobras venenosas.

— Somos jins — revelou o líder. — Demônios. Saímos de nossas covas para arrancar as almas dos mortos enquanto flutuam até o céu. Pode ficar certa de que nosso mestre nos alimentou bem hoje.

Ela chorou.

— Eu não sei. Eu não sei.

— Agarrem-na — ordenou o líder.

O rosto dele cresceu. Esticou da testa ao queixo pelo menos um metro; enquanto olhava aterrorizada, fileiras e mais fileiras de dentes cruzavam seu rosto. Os olhos recuaram, e dentes surgiram nas cavidades.

— Há muita escuridão em você — ele sussurrou com voz suave e irritante. — Há muito o que comer.

Os dentes saltaram para a frente, separando-se do que havia sido seu rosto, exceto por filamentos de uma protuberância azulada e pulsante.

— O Livro... onde está?

— Eu não sei, por favor, por favor!

Os dentes se lançaram em sua direção. O primeiro a atingiu na bochecha, ela gritou desesperada e fechou os olhos.

Então nada mais a tocou. Ela abriu os olhos.

Tudo o que restava era uma chuva de fagulhas azuis.

A distância, alguém gritou.

Meg dobrou-se no chão.

 

                                       Capítulo 9

Cordelia estava sonhando com compras. Todas as lojas tinham somente seu número, e todos os sapatos não eram apenas bonitos e confortáveis como também perfeitos para os seus pés. De fato, ao batê-los três vezes...

— Não há lugar como a minha casa — murmurou ela.

— Senhorita, senhorita, acorde — disse uma mulher com sotaque.

Nesse momento viu que estava sendo meio carregada meio arrastada para tomar ar fresco e quente. O vestido ficou preso num espinho de um arbusto, mas ela continuou sendo arrastada. A meia-calça rasgou.

Ela começou a tossir. Os olhos reviraram quando ela tentou erguer as pálpebras. Alguém estava batendo em suas costas.

— Ei! — gritou, enquanto se soltava dos braços de outra pessoa.

Era um homem franzino, com a pele cor de castanha, vestido de padre. Ao lado dele, observando com atenção, estava a garotinha que havia deixado o bilhete na bolsa dela.

Cordelia perguntou meio confusa:

— Célia?

A garota abriu um sorriso.

— Sou eu, ibu.

— Cordelia — disse Cordelia, esfregando a testa. Estava com uma dor de cabeça terrível. — Onde está o Doyle? O que está acontecendo?

— Sou o Padre Wahid — apresentou-se gentilmente o sacerdote. — Seu amigo vai ficar bem — ele apontou para o lado direito da limusine, que estava virada num ângulo estranho numa rua deserta. Eles estavam numa colina, acima das luzes da cidade.

— Ei — disse Doyle, pendurando a cabeça para fora da limusine e abrindo um sorriso frouxo. — O que você acha disso?

— O que é esse isso de que você está falando? — exigiu Cordelia. — O que vocês fizeram? Roubaram a limusine?

— Não, não — apressou-se o Padre Wahid. — Salvamos suas vidas. Eles iriam matá-los.

— Fazê-los em picadinho — disse a menina, num tom de voz estranhamente animado.

— Célia — reprovou o padre.

Cordelia tentou ficar de pé.

— Onde está o motorista? — ela hesitou. — Minha cabeça está me matando.

— Nós o fizemos desmaiar — informou o bom padre. — O que é muito melhor do que o inferno que ele planejava para vocês.

— Padre, não diga inferno — advertiu Célia, imitando um tom de voz reprovador.

— Perdão, minha criança — ele sorriu docemente para Doyle, que cambaleava em sua direção. — Como você está se sentindo?

— Igualzinho quando eu tenho uma visão — disse à Cordelia.

Ao padre, ele respondeu:

— Como se alguém tivesse explodido algo dentro da minha cabeça.

Doyle olhou para o padre.

— Quem é você, afinal, e como nos encontrou?

— E o que você quer? — acrescentou Cordelia.

— Em primeiro lugar, salvar suas vidas — disse o Padre Wahid. Ele apontou para o colarinho de clérigo com certa zombaria. — Sou um servo de Deus — observou. — Em segundo lugar, nós temos um inimigo em comum, eu queria unir nossas forças.

— E esse inimigo é...? — Cordelia indagou cheia de suspeita.

O padre deu de ombros, como se a resposta fosse óbvia.

— O Diabo.

Ela trocou olhares com Doyle, então também deu de ombros.

— Por mim tudo bem.

— Como você sabe que estamos lutando contra o Diabo? — indagou Doyle. — Tudo o que sabemos é que estávamos ao lado do Diabo e bebemos demais no funeral de Bang Rais. Desmaiamos no banco traseiro da limusine, só isso.

O Padre Wahid abaixou a cabeça.

— Vocês não sabem nada do jin, não é?

— Padre, sou irlandês — retorquiu Doyle. — Sei tudo sobre bebidas alcoólicas, seja ela fermentada ou destilada.

— Mas que idéia mais estereotipada — ironizou Cordelia. — Você já bebeu champanhe Kristal?

Doyle pensou por um momento.

— Não sei ao certo, não.

Ela ficou um pouco desapontada.

— Certo — ela disse ao padre. — Então, gim.

— Jin. Demônios. Agentes do sobrenatural. Há os bons, e os maus.

— Isso é difícil de acreditar — Cordelia revirou os olhos. — Sobre os bons, quero dizer. Nunca conheci um demônio que eu pudesse suportar. Exceto meu chefe. Ele é um caso à parte.

Padre Wahid franziu a testa, olhou para Doyle e disse:

— Mas, e quanto a...? Deixa pra lá.

— Angel é um caso especial — repetiu Cordelia. — Mas eu não iria tão longe a ponto de dizer que ele é bom. Talvez seja um cara legal — ela franziu o nariz. — Não é um chefe tão bom, porque paga uma mixaria. Mas por outro lado, ele não quer cobrar das pessoas por ajudá-las, e...

Padre Wahid limpou a garganta.

— Eu contratei jin para me ajudar nesta batalha.

— Anjos — Célia interrompeu.

O padre acariciou o cabelo da menina.

— Anjos. O que mais poderiam ser?

— Demônios? — aventurou-se Doyle.

— Acabamos de falar sobre isso — disse Cordelia, já impaciente. — Não existe essa história de demônios bonzinhos.

— Certo. Eu tinha esquecido — ele arrastou a voz.

— Meus jin detectaram os talismãs que vocês trazem consigo e voaram até mim para avisar. Os Rais também perceberam. Então Célia e eu nos arriscamos a sair do esconderijo para salvá-los.

— Então, eles são como uma espécie de pombo correio — concluiu Cordelia.

— Mais como as sondas em Guerra nas Estrelas — respondeu o Padre Wahid.

— Certo. Até aqui tudo bem, se é o que você acredita — Cordelia murmurou. — Mas que história é essa de lutar contra os Rais? Quero dizer, Diabo, Rais. Eles não são exatamente a mesma coisa?

A expressão do Padre Wahid era severa. Os olhos azuis ficaram afiados. Ele disse:

— Os Rais massacraram centenas, se não milhares de pessoas fracas e indefesas. Trouxeram legiões de imigrantes ilegais para esta cidade para fazê-los trabalhar até a morte, e então a sacrificá-los em nome do deus deles.

— Então você é um ativista político — Doyle massageou as têmporas. — O que é bom. Precisamos de pessoas assim. Mas talvez esses caras estejam fazendo algo realmente estranho, como queimar pessoas de dentro para fora.

— Eles adoram Latura, o Deus dos Mortos — disse o padre. — Latura exige centenas de sacrifícios. Com os rituais e encantamentos adequados, ele pode ser trazido à vida para caminhar sobre a Terra. Se isso acontecer, tudo o que ele olhar, tudo, e todo mundo que ele tocar, queimarão até a morte. Então ele devorará as almas. O lugar dessas pessoas no universo deixará de existir.

— Você quer dizer que elas morrerão — disse Cordelia.

— Quero dizer que o lugar designado apenas a elas ficará vazio. O equilíbrio desta dimensão, e de todas as outras que dependem delas, será permanentemente destruído.

— E isso que dizer que... — incitou Cordelia.

Padre Wahid suspirou profundamente.

— A realidade morrerá. O caos reinará. Para sempre.

— Isso não é bom — Cordelia sacudiu a cabeça.

— Nada bom — concordou o padre.

— O que os impede de fazer isso? — perguntou Doyle.

— Eles não têm todo o conhecimento de que precisam para alcançar esse objetivo — gesticulou o padre. — Todos os escritos ligados a Latura estão mantidos em um único livro. Se eles encontrarem o livro, o mundo estará perdido.

— Você sabe onde ele está? — indagou Doyle.

Lentamente o padre fez que sim.

— Está com você — arriscou Cordelia.

Mais uma vez ele fez que sim.

— E preciso da ajuda de vocês para escondê-lo — disse. — As estrelas estão se alinhando esta noite. Será a formação mais favorável para o triunfo desse mal nos próximos seiscentos e sessenta e seis anos. Não sei se os Rais perceberam isso.

— Mas Latura sim.

Cordelia fez cara feia.

— Para mim chega. Vou pedir aumento. E uma aspirina. Padre, o senhor tem uma aspirina? Ou Tylenol?

— Como podemos ajudar? — perguntou Doyle.

— Se os Rais ainda não sabem que estou com o livro, logo saberão. Eles vêm procurando por mim há muito tempo. Acho que um de seus jin me viu saindo do esconderijo agora a pouco. Se isso realmente aconteceu, eles vão preparar todos os demônios e forças da escuridão contra mim. São inimigos poderosíssimos, acredite.

— Não podemos simplesmente acreditar na sua palavra? — perguntou Cordelia. Antes que qualquer um pudesse responder, ela acrescentou: — Será que sou a única preocupada com Angel?

Doyle olhou para ela e lentamente concordou.

— Não é só você — disse.

— Você não pode estar falando sério — Meg disse a Angel enquanto ele se encolhia sobre ela ao lado do muro. — Eles estão sob alerta máximo em todo o condomínio. Se o encontrarem, você morrerá.

Angel ficou comovido com sua preocupação.

— Sou duro de matar — assegurou.

— Você não conhece os Rais. Você não sabe do que eles são capazes.

Ele a olhou de forma severa.

— E você? Está do lado deles?

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu não sabia. Ainda não tenho certeza.

— Meg — ele disse com pesar. — Há pessoas morrendo em toda a cidade, e de uma maneira horrível.

— Não dá para ter certeza de que Jusef esteja envolvido. Não temos nenhuma prova — disse com voz estridente.

— Olhe para mim — o tom de voz de Angel era gentil. Suave. — Meg, olhe. De algum modo, nossas mentes estão conectadas. Estamos partilhando nossos pensamentos.

Ela abaixou a cabeça.

— Ele me salvou — ela murmurou.

 

                                                     Nias, 1998

 

Meg estava no chão no meio da floresta. A chuva lavava seu corpo, e o sol o queimava.

Perto da morte, ela começou a delirar. Imaginou uma irlandesa de cabelos ruivos saindo do próprio corpo e a desamarrando.

A mulher disse à Meg:

— Lembre-se de mim sempre. Sou Doreen Kenney. Temos o mesmo sangue. Você não vem dessas pessoas, é minha descendente. Fui deixada à morte, mas sobrevivi. O tempo e o espaço perderam suas forças sobre nós, menina. Lembre-se disso. E viva.

 

 

Semanas depois, no hospital, Meg ficou sabendo que, de algum forma, ela se soltara e caminhara sozinha pela floresta por duas semanas.

As crianças sob sua tutela nunca mais foram vistas.

Sua família havia sido aniquilada, presumidamente pelos mesmos homens que a deixaram na floresta para morrer.

Mary Margaret Taruma — Mary Margaret Kenney — seja lá quem fosse, ela perdera seu lugar no mundo, pois sua identidade lhe escapava pelos dedos. Ela tentou se matar por três vezes e acabou internada em uma instituição psiquiátrica. E por lá ficou, tentando explicar aos médicos que, a menos que soubesse quem realmente era, não via razão para viver uma vida que podia pertencer a outra pessoa.

Foi rotulada como paciente sofrendo de delírio.

— Não há razão nenhuma para eu viver — insistia.

— Se não tenho passado, então não tenho futuro. ]

Eles a deram medicamentos.

Terapia de choque.

Ela começou a esquecer de tudo o que tinha acontecido na floresta. Ou mais precisamente, a esconder. Enterrar tão fundo em sua mente que ninguém, nem mesmo ela própria, podia acessar tais lembranças.

 

Então, certo dia, inexplicavelmente, ela foi libertada. Vieram buscá-la, deram-lhe uma calça jeans, tênis e camiseta — não trouxeram sutiã — e a levaram aos portões do hospício. Abriram e a olharam ansiosos.

Foi assim que passou por eles, momentaneamente empolgada com sua liberdade.

Mas logo teve de concordar com a velha música de Janis Joplin que dizia que: a liberdade era apenas sinônimo de "não ter nada a perder". Ela se entregou às drogas e às terríveis formas para pagá-las.

Um ano se passou. E Jusef Rais apareceu em sua vida. Ele a encontrou em um bar, onde ela dançava — oh, não o tipo de dança que aprendeu quando criança; não os gestos antigos e orgulhosos do barong. Não, era o requebrado triste das mulheres perdidas, vistas com desinteresse pelos homens perdidos.

Naquela noite, um burburinho tomou conta da multidão quando Jusef entrou. Ele estava muito bem vestido, era a imagem perfeita de um indonésio rico, um homem de sucesso. Seu refinamento e elegância contrastavam com o ambiente quente e enfumaçado, fedendo a CC e cigarros baratos.

Sentou-se silenciosamente, observando-a. O rosto dela queimava em chamas. Ele conversou com o gerente, que a chamou ao final das três apresentações da noite, quando se trocava. Ele disse:

— O Sr. Rais quer vê-la em particular.

Ela ficou tensa. Quando olhou para ela, Jusef viu alguém que poderia comprar. Por que ela tinha permanecido viva?

Juntando o que ainda lhe restava de dignidade, Meg colocou um vestido modesto e surrado, recusando-se a ser devorada pelo olhar de Jusef em suas roupas de dança. E apresentou-se a ele — sem maquiagem.

Quando ela entrou na sala dos fundos — espaço reservado para “festas particulares” — ele ficou de pé e a aplaudiu suavemente.

— Eu sabia que estava certo — disse.

Pagou-lhe uma taça de vinho. Ela bebeu em dois goles. Embalada pelo álcool, perguntou:

— Quanto você está pagando aos meus chefes para ficar comigo?

Jusef sorriu. Seus dentes eram magnificamente brancos. Ele disse:

— Eu gostaria que você fizesse parte da minha banda. É um trabalho de verdade. Uma banda de verdade. Eu sou dono de uma boate na Califórnia. Se você vier comigo, farei com que viva para sempre.

Ela não acreditou numa só palavra.

 

Meg olhou para Angel e disse:

— A aparição disse que temos o mesmo sangue. Não tenho certeza do que isso significa, mas acho que Jusef sabe. Estou conectada a tudo isso de alguma forma.

Angel passava por trás dela no meio das pimenteiras. E disse:

— Mesmo acreditando nisso, você ainda me pede que não entre para salvar meus amigos?

Ela parecia assustada:

— Mas você me conhece. Você é a única pessoa no mundo que me conhece.

— Não conheço — disse honestamente. “Porque se conhecesse, você me conheceria. Saberia o que sou.”

“E você não sabe.”

— Eu fui mordido por algum tipo de demônio, e você recebeu uma injeção de algum tipo de soro que deve produzir efeitos colaterais similares. Acho que é apenas coincidência estarmos conectados.

— Carma — ela disse, e deu um sorriso amarelo. — O que o Padre Hendrick diria? Eu sou católica e os católicos não acreditam em carma.

— Talvez você devesse acreditar — ele murmurou. A história de Meg era incrível. Se o que disse era verdade, havia uma chance de ela ser uma descendente de Dorrie Kenney, ou seja lá no que Doreen se transformara.

“Minha destruidora”, pensou.

“Será que ela voltou para terminar o trabalho?”

— Você precisa me ajudar — ele disse com firmeza.

— Mas eu não entendo. Por que tenho que convidá-lo para entrar no condomínio? Basta você entrar.

Angel fitou-a.

— Confie em mim — disse. — Faça o que peço. Você pode andar por onde quiser. Ninguém pergunta para onde está indo. Apenas entre e me convide.

— Você é um feiticeiro — ela adivinhou. — O prédio onde moro era de um mágico. Mas eu acho que ele era apenas um ilusionista. Não era mágico de verdade.

Angel ficou imaginando se ela estava puxando papo porque sentia medo. Afinal, tinha bons motivos para isso, estava se arriscando por um estranho.

— Venha — ela caminhou ao lado dele em direção à guarita do vigia. Depois de alguns passos foi como se alguém tivesse ligado um botão. Meg sorriu calmamente e pegou-o pela mão, balançando-a gentilmente enquanto lançava um sorriso maroto para o segurança.

— Crítico de música — avisou. — Da revista Rolling Stone. O vigia deixou-os passar.

Assim que Angel passou, o homem disse:

— Espere, pak.

Meg segurou a respiração. Angel ergueu as sobrancelhas numa expressão de educação e disse:

— Sim?

— Eu não concordo com você sobre o Powerman 5000. — disse honestamente.

— Eu não escrevi sobre isso.

— Ah — o homem deu de ombros. — Que bom. Senão, talvez eu tivesse que matá-lo — ele riu.

Angel sorriu.

— Mandarei o recado.

Meg seguiu em frente, virou-se para Angel com as mãos estendidas e disse:

— Entre.

Ele caminhou pelo condomínio.

A festa ou velório ou recepção estava a todo vapor. A multidão se acotovelava; Angel procurou por Cordelia e Doyle, mas logo percebeu que seria quase impossível enxergá-los.

— Veja. Ali está Jusef — ela murmurou, virando de costas para que ele não pudesse vê-la.

Angel observou-o. E também viu dois outros homens junto dele. Os três olharam para a esquerda, para a direita e entraram num pequeno prédio ao lado de um lago cheio de rãs e carpas.

— O que tem ali? — perguntou, depois que a barra estava limpa.

Ela sacudiu a cabeça.

— Nunca estive lá.

Angel decidiu dar uma olhada. E disse:

— Espere perto da guarita, certo? Você precisa sair daqui.

Ela parecia não ter certeza. Angel segurou-a pelo braço.

— Meg, Jusef está usando você. Ele a está envenenando.

— Ou me dando drogas experimentais.

— Ele está usando você para alguma coisa. Pode acreditar.

Ela respirou fundo e concordou.

— Perto da guarita — repetiu.

Angel fez que sim com a cabeça e começou a se afastar.

— Tenha cuidado — ela disse em voz baixa.

“Por que começar a ter cuidado agora?”, ele pensou.

Moveu-se pela multidão, abrindo caminho lentamente até o prédio. O telhado azul era quadrado e alto, terminando numa curva próximo das extremidades. Os muros externos eram de gesso branco.

Uma ponte de madeira estendia-se sobre o lago das carpas até a porta da frente. Quando Angel a atravessava, um homem passou apressado carregando uma túnica negra enrolada no braço.

“Uh-oh, fantasias”, pensou Angel. “Eu não trouxe uma. Nem estou perto de nenhuma loja.”

— Ei — disse ao outro homem.

O homem se virou e pareceu perplexo.

— Desculpe — disse, num inglês carregado de sotaque. — É uma celebração particular.

— Eu sei — respondeu Angel, gesticulando para que o homem se aproximasse. — É só que, o problema é que... — disse num tom bem baixo.

— Desculpe, não consigo ouvi-lo — o homem se aproximou. — O que foi?

— Estou sussurrando — sussurrou Angel.

— Por favor, fale mais alto — pediu o homem, vindo até Angel.

Angel colocou a mão sobre o ombro do sujeito.

— Essa é minha primeira reunião. Esqueci minha túnica.

O homem franziu a testa.

— Não é... — ele abriu a boca como se fosse gritar.

Angel segurou-o com uma mão presa ao ombro e, com os dedos da outra mão, socou o abdome. O homem se contraiu, mas Angel segurou-o de pé, arrastando-o para a lateral da casa.

Ali, atrás de alguns arbustos, deixou-o cair no chão. Pegou a túnica e vestiu.

“Capuz”, notou com aprovação. “Espero que não tenha uma senha.”

Enviou seus pensamentos. “Meg?”

Esperou.

“Meg?”

Não houve resposta. Pior, ele não sentia mais a conexão.

Parou por um momento, preocupado com ela. Depois correu para a porta que ficava bem no centro da frente da casa. Abriu-a.

Os degraus conduziam ao subterrâneo. Se tivesse entrado mais rápido, teria rolado escada abaixo.

Desceu sem pensar muito, como se passasse por ali todas as noites.

No final da escadaria havia duas portas, uma à direita e outra à esquerda.

Quanto você quer apostar que, se abrir a porta errada, eu morro?

Foi nesse momento que um homem saiu da porta à direita. Ele estava secando as mãos. Olhou e acenou para Angel, que abaixou a cabeça ao passar por ele, segurando a porta antes que fechasse.

Entrou.

Era o banheiro dos homens.

Um homem de túnica, no urinol, olhou-o entrar e continuou o que estava fazendo.

“Em Roma”, pensou Angel, “faça como os romanos”. Atravessou o banheiro tranqüilamente e entrou num dos boxes.

 

O Padre Wahid colocou o motorista da limusine, que estava inconsciente, atrás de alguns arbustos e disse:

— Se eu não fosse padre, teria matado este homem.

— Seria uma boa idéia — disse Cordelia, fazendo careta. — Mas também seria legal comprar Ferragamos por menos de cinqüenta dólares, e claro que isso nunca vai acontecer.

— Eu tinha pensado em fusão nuclear — aventurou-se Doyle. Mas ao ver o olhar dela, acrescentou: — Mas sapatos também são uma boa comparação.

Ela pareceu acalmar-se.

Doyle caminhou até a limusine. A porta do passageiro estava aberta. Ele disse:

— Eu dirijo.

— Você sabe dirigir limusine? — indagou Cordelia. — Estou impressionada.

— Claro. “Não que eu já tenha feito isso antes.” Todos entraram, Célia ao lado do padre. Ele colocou o braço em volta dela e disse:

— Precisamos ir a um lugar seguro.

— Acho melhor irmos para a casa do Angel — sugeriu Cordelia. — Não que seja necessariamente seguro, mas é que ele pode aparecer por lá, ou telefonar. Além disso, há toneladas de armas.

Padre Wahid disse:

— Seria maravilhoso se ele tivesse o kris.

Doyle deu a partida. “Posição das marchas”, pensou, vendo o câmbio. “O que é isso e, mais importante, o que interessa?”

— O que é um kris? — perguntou Cordelia.

— São espadas sagradas que eram usadas na antigüidade. Elas podiam “cortar” palavras. Na Indonésia, acreditamos em mandi. Pensamentos que, quando pronunciados, assumem forma e se tornam reais. Sólidos. Palavras. Colocadas lado a lado, desencadeiam grande poder. Tornam-se feitiços.

Célia ergueu a mão como se estivesse na escola.

— E orações.

— Sim, minha filha — o padre disse em aprovação.

— Mais ou menos como nas histórias em quadrinhos? — perguntou Cordelia. — Aqueles balõezinhos com as palavras dentro?

O padre sorriu.

— Sim, acho que sim. De qualquer modo, há um kris, apenas um, que pode cortar o poder do Livro de Latura. Se eu o tivesse, poderia destruir o Livro.

— Bem, Angel tem um monte de armas — Cordelia afirmou. — Mais um motivo para irmos para lá. Certo?

Doyle respirou fundo e colocou o pé no acelerador. O carro andou para trás.

— Opa. Marcha à ré — murmurou. — Eu sabia.

Sentado ao lado de Cordelia, o Padre Wahid fez o sinal da cruz e murmurou uma oração.

— Isso vale para mim também — disse Cordelia.

 

Angel não pôde deixar de reparar na arquitetura épica e, ainda assim, horrenda do templo subterrâneo. As nervuras que se convergiam em uma jaula acima de suas cabeças; as centenas, senão milhares de crânios humanos enfileirados nas paredes. Os murais arrepiantes — os piores pesadelos trazidos à tona.

“Queria saber quanto custou isso aqui”, pensou. “Em dólares, não em vidas.”

Viu a estátua demoníaca reclinada em torno do altar de metal — garras, espinha, tentáculos, caninos — tudo manchado de sangue.

“Então todo o barulho é por causa disso, como diria Spike, meu velho castigo vampírico e neto idiota, por assim dizer.”

Os outros homens, em suas longas túnicas negras, estavam de pé em volta de um fogo que ardia no centro rebaixado de uma mesa adornada com latão, que mais parecia um altar. Angel aproximou-se com cautela. Ele não parecia em nada com o homem cuja túnica havia roubado.

Um de seus companheiros de adoração ergueu um pequeno gongo e bateu com um martelo revestido na ponta. O som era melancólico.

— Em nome de Latura — entoou.

— Latura — os demais repetiram em coro.

— Bang Rais está morto. Ele não se erguerá — esperou, então sorriu. — O filho dele, Jusef, nunca morrerá.

— Que assim seja — disse o grupo.

— Oferecemos muitos sacrifícios a Latura. Fizemos tudo o que foi pedido. Deixe-nos continuar com as oferendas.

— Latura.

— Eu localizei o Livro.

Todos se voltaram para o altar, incluindo Angel.

Um homem ficou de pé sobre a superfície polida de metal. Ao abrir os braços, chamas ergueram-se da base e brilharam a uma distância segura abaixo dele.

Ele retirou o capuz. Por um momento, Angel pensou se tratar de seu adversário no incêndio do apartamento. Mas embora este homem se parecesse muito com o outro, era claramente mais jovem.

— Eu, Jusef Rais, encontrei o Livro — repetiu. — E agora enviarei o jin para recuperá-lo.

Os outros começaram a aclamá-lo e a erguer os punhos cerrados. Angel imitou-os.

Imitação. Não é apenas a forma mais sincera de elogiar, mas também uma técnica de sobrevivência.

Enquanto os demais aclamavam, monstros enormes, verdes e voadores saíram de trás do altar. Narizes arrebitados e bocas com uma infinidade de dentes pontudos e salientes. Com olhos de réptil, vasculharam o grupo. Línguas negras e pontudas sibilavam enquanto a saliva escorria de suas bocas.

— Eles estão famintos — explicou Jusef. — Quando trouxerem o Livro, serão alimentados.

— Latura! — gritou o homem ao lado de Angel. Os demais acompanharam. Isso se seguiu por pelo menos cinco minutos.

O que, na realidade, é muito tempo.

— Assim que o Livro estiver comigo, sacrificarei milhares em nome de Latura.

— Latura!

— Pronunciarei as palavras que trarão nosso Temido Mestre de seu inferno eterno de escuridão.

— Latura!

— Eu lhe darei o veículo no qual ele renascerá.

— Latura! Espere! O veículo!

O homem agachou-se e curvou-se para pegar algo atrás de si.

— Latura!

Deu meia volta, erguendo-se graciosamente ao mesmo tempo.

— Latura!

Tinha uma mulher amarrada, amordaçada e desmaiada em seus braços. Os olhos dela estavam vidrados e mortos.

— Latura! Era Meg.

 

                                                   Capítulo 10

Doyle estava começando a pegar o jeito de dirigir a limusine quando percebeu que estavam chegando perto do prédio de Angel.

Ele não achava boa idéia que um carro tão pomposo aparecesse do lado de fora do prédio, especialmente com aquela tal de Lockley fungando no cangote deles, então resolveu estacionar numa travessa a alguns quarteirões dali. Quando explicou os motivos para os outros, Cordelia murmurou:

— Bem, existe um Deus — e o Padre Wahid realmente caiu na risada.

Ficaram escondidos nas sombras e, na maior parte do tempo, conseguiram passar desapercebidos pelos habitantes da noite. Só um mendigo foi especialmente impertinente, fazendo tamanho barulho que Doyle acabou lhe dando o que esperava ser uma nota de um dólar. Estava escuro demais para saber.

— Valeu, cara — disse o mendigo. E parou sob um poste de luz. Vestia o jeans mais surrado que Doyle já vira. E uma camiseta rasgada com a estampa de um enorme dragão de Komodo de aparência feroz. Abaixo da estampa lia-se: CLUBE KOMODO.

— Espere — disse Doyle, mas Cordelia chegou ao seu lado e disse:

— É melhor a gente se apressar, Doyle.

Ele se virou e percebeu que todos olhavam para ele.

“Eu estou no comando?”

— É melhor eu entrar primeiro — disse. — Para dar uma olhada.

— Boa idéia — Cordelia concordou. Então colocou a mão gentilmente sobre o ombro dele e disse. — Tome cuidado.

— Boa idéia — ele respondeu, zombando dela, ainda que de leve.

Eles trocaram sorrisos.

Ele atravessou o estacionamento e entrou no prédio.

Depois de andar metade do corredor, ouviu passos de pés que pareciam pesar de 20 a 25 quilos cada um, pisando com força sobre o chão do escritório. O teto acima dele tremia com cada passo.

Pensou no que faria. Parecia algo imenso. Provavelmente tinha dentes do tamanho de gavetas de um armário de arquivos. Qualquer arma que pudesse usar contra tal criatura provavelmente estaria no andar de baixo. Doyle não sabia se Angel mantinha algo de fácil alcance que pudesse furar a coisa.

Enquanto pensava sobre o que fazer, a porta do escritório abriu e a criatura saiu, ficando de frente para ele.

Era uma misto de iguana e mamífero. A boca enorme se abriu, os olhos vermelhos de réptil brilharam com extrema frieza e terror. As patas unidas como grossas garras pontiagudas, e levemente separadas na ponta, pareciam cascos.

A criatura era coberta de um pêlo grosso, espetado na pele rachada, lisa e dura, com aspecto de pedra.

Era como um gigante Chia Pet muito mal acabado.

A criatura encarou Doyle, virou-se e voltou para o escritório.

“Ótimo. E agora?”

Foi quando ouviu-se o barulho do elevador seguido de um estrondo.

Doyle correu para o escritório.

A criatura tinha ficado entalada na parte da frente do elevador. O peso quebrou o cabo e a coisa despencou com a máquina até o porão.

Doyle ouviu passos no corredor. Cordelia foi a primeira a entrar, seguida do padre e da garotinha.

— Nossa! — disse Cordelia, quando viu o que tinha acontecido.

— É um jin — alertou o padre. — Uma forma de demônio.

— Ótimo. Espero que ele tenha uma boa cobertura no seguro — Doyle disse.

— Não. É maravilhoso — empolgou-se o Padre Wahid. — Ou melhor, pode ser maravilhoso. Ele foi enviado por algum motivo. Alguém deve achar que seu amigo tem algo que eles querem.

Ele sorriu.

— Eu aposto no Jusef Rais. E no kris.

— Mas eu não entendo — disse Cordelia. — Como você pode ter tanta certeza?

— Por causa da natureza do jin — disse. — Eles são como... — pensou por um momento. — Como aqueles porcos na França que fuçam à procura de trufas. Ou cães de caça. Eles buscam a essência. Pelo cheiro.

— Então, como ainda não encontraram seu Livro? — insistiu ela.

— Eu o mantive escondido através de meios sobrenaturais — explicou. — Mas minhas proteções estão se enfraquecendo.

— Isso costumava acontecer com Willow, lá em Sunnydale — disse Cordelia. — Era como se a magia dela ficasse cansada — ela olhou para Doyle. — Willow Rosenberg. Tenho certeza de que Angel e eu já falamos dela.

Doyle concordou com a cabeça.

— A bruxa.

— Acho que Wicca é mais politicamente correto — Cordelia informou-o.

— Bem, seja lá o que ela for, bem que poderia nos ajudar a chegar lá embaixo — disse Doyle. — Aquela coisa ficou presa e não está nada feliz com isso.

Angustiados eles viram a criatura se debater e lutar na gaiola do elevador.

— Alguém precisa descer até o apartamento do Angel — disse Cordy. — Porque é lá onde ficam as melhores armas.

As cabeças se viraram para Doyle. Ele resmungou.

— Quando recebi esta missão, tinha certeza de que era só para ser o mensageiro. Não dizia nada sobre lutar contra monstros em elevadores.

— Tome — Cordelia entregou-lhe um bastão de beisebol.

Doyle segurou o bastão nas mãos e avançou sobre a criatura, que, ferida, o olhou e urrou como o monstro furioso que era.

— Se eu sobreviver, vou escrever uma carta de reclamação para os Poderes Que Valem — anunciou Doyle.

 

Angel tentou conectar sua mente com a de Meg, mas ela não reagiu.

“Talvez ela sinta um medo tão avassalador que a impeça de se comunicar.”

O grupo de seguidores, todos de túnica, se dispersava. Não havia nada a ser feito a não ser sair com os demais.

“Por um momento.”

Olhou para ela.

“Eu vou voltar.”

Nada indicava que ela o tivesse ouvido.

Saiu da caverna o mais casualmente que pôde, e seguiu pela escada. Ninguém o desafiou. Os outros estavam empolgados demais, conversando sobre sacrifícios e demônios como se estivessem discutindo a última partida de futebol.

Ele foi para o lado de fora, só para ver Jusef seguir por escadas diferentes. Meg estava com ele. O paletó do terno estava jogado sobre os ombros dela, o que levou Angel a acreditar que suas mãos ainda estavam amarradas. Ela andava feito um zumbi.

Os dois desapareceram numa esquina.

Angel estava prestes a segui-los quando o celular tocou. Ele se assustou e atendeu ao primeiro toque.

— Ah, graças a Deus! — gritou Cordelia. — Você está vivo! Bem, tecnicamente, quero dizer. Angel, você precisa vir para cá. Temos que encontrar uma espada e tem um monstro no elevador.

Apesar da seriedade da situação, ele brincou:

— Você chamou a manutenção?

— Há-há. Muito engraçado. Sério. Precisamos de você. Eu não devia falar sobre isso no celular, especialmente se você estiver pensando em se candidatar a um cargo público, porque alguém pode escutar. Então venha para casa, tá?

“Meg, desculpe”, pensou.

— Certo. Chegarei o mais rápido possível.

Ele desligou e colocou o telefone no bolso da calça. Sem jeito, tirou a túnica pela cabeça e voltou para onde tinha deixado o cara desacordado. Jogou a túnica ao lado do homem e cruzou a ponte em cima do lago.

Ninguém o olhou mais de uma vez quando saiu pelo portão.

Mas quando ia entrar em seu conversível, uma criatura alada mergulhou cerca de cinqüenta metros sobre sua cabeça. Era um demônio em forma de serpente como aquela com quem lutou no apartamento em chamas, só que muito, muito maior.

O demônio agarrou Angel pela cintura com os dentes enormes e afiados, e o vampiro começou a sangrar quando a criatura o ergueu do chão.

Em poucos segundos estavam a trinta metros de altura. Uma queda não o mataria, a menos que caísse sobre uma estaca que varasse seu coração, mas a serpente que o carregava tinha um poder muito maior para matá-lo. Ela não parecia estar pensando em soltá-lo tão cedo. Em vez disso, continuava batendo as asas de forma turbulenta.

Tampouco parecia procurar um lugar para pousar.

Então, voou.

“Da próxima vez vou pegar um ônibus”, pensou Angel conforme as garras da serpente encontravam novos pontos para se enfiar em seu corpo.

A lua estava enorme e alaranjada, dando um tom acinzentado às suas mãos sujas de sangue. A criatura continuou voando.

Angel começou a enfraquecer e desmaiou. De repente, a serpente abriu sua mandíbula e assobiou, acordando o vampiro imediatamente. Angel só percebeu que ela soltava bolas de fogo pela boca quando se aproximavam de um grupo de pássaros. Os que não tinham sido atingidos grasnavam como loucos, mergulhando como bombas em direção ao chão.

A serpente continuou seguindo em frente, sem desviar um centímetro para a esquerda ou para a direita.

“E se chegarmos nas montanhas?”, pensou Angel. “Será que essa coisa está com algum tipo de piloto automático?”

Depois de um certo tempo, Angel percebeu que estava voltando novamente de um desmaio. Ergueu a cabeça devagar. Ela pesava mais que um carro.

“Epa.” Eles viajaram uma longa distância. Os arranha-céus brilhantes e espelhados de Los Angeles estavam prontos para recebê-los de frente, provavelmente devorá-los.

— Suba — grunhiu Angel. — Suba! — Empurrou as garras, lutando para se libertar.

Então a criatura assobiou. Abriu a boca e cuspiu fogo.

“O que foi agora?”, ele pensou.

Mas logo percebeu que a serpente estava desafiando seu próprio reflexo no vidro externo do hotel antes conhecido como Bonaventure.

As asas batiam com violência, a criatura ganhou velocidade e abriu a boca novamente. Ela vomitava fogo, enormes chamas que eram lançadas pelo céu noturno e colidiam com a fachada do hotel. No frenesi da batalha, ela apertava Angel ainda mais.

As pessoas começaram a gritar. Angel batia em suas garras, trincando os dentes de frustração, enquanto a criatura o apertava ainda mais.

Ele tentou avaliar a melhor estratégia para o impacto. Tudo o que pôde pensar foi em cobrir a cabeça e encolher as pernas. O esforço era demais para ele.

“Buffy”, pensou, “não se esqueça de mim”.

A serpente avançou contra a parede. O hotel estava em chamas. As labaredas faziam um barulho crepitante, como uma imensa cachoeira.

O mundo urrava numa tempestade de fogo, explosões atingiam Angel e quase arrancaram seus cabelos do couro cabeludo.

Foi quando Angel começou a cair. No meio da fumaça e do calor insuportável, ele gritava enquanto despencava como uma pedra.

“Isso vai doer”, pensou, tentando ficar relaxado. Assim se tem mais chance do que quando se está tenso. “A menos que isto seja o Duro de Matar V e eu caia em cima de um toldo ou de uma piscina...”

Não aconteceu nem um nem outro.

“Estou ferido?”

Estava quase inconsciente, mas não tinha idéia do que estava acontecendo.

 

Doyle respirou fundo.

— Eu ia gritar “Pela Rainha e pelo país”, mas, sabe, nós formamos nosso próprio governo alguns meses atrás — explicou.

— Faz tempo que quero perguntar — começou Cordelia. — Você tem o green card? Porque se estiver aqui ilegalmente, Angel pode acabar na cadeia. Além de ter que pagar uma bela multa, sabia?

Doyle olhou-a perplexo.

— Fui enviado para cá pelos Poderes Que Valem — ele a lembrou.

Ela deu de ombros.

— Certo. Tudo bem. Eles podem mandar alguém para a Imigração se Angel for preso. É o que quero dizer.

Ela apontou para o monstro.

— Chega — acrescentou. — Pode ir lutar com aquela coisa esquisita agora.

Doyle respirou fundo e ergueu o taco de beisebol sobre a cabeça. Ele gritou:

— Atacaaar! — e se lançou para cima da criatura. Ela urrou e sacudiu a traseira contra ele. Doyle usou o taco para golpear com toda força, preparando-se para o impacto.

A coisa explodiu em centenas de pedaços brilhantes e luminosos como cerâmica queimada, que caíram sobre ele como uma chuva intensa. Mas ao ricochetear no chão, pareciam balas de munição.

Por um momento houve um silêncio de espanto na sala. Então Célia começou a pular sem parar em comemoração.

— Bom trabalho — disse o Padre Wahid.

— Vamos ao que interessa. Kris — disse Cordelia. — Lá embaixo. Vamos ver. Agora,

 

Meg abriu os olhos. Estava confusa e desorientada.

Deitada na cama no condomínio de Rais, sacudiu a cabeça conforme sua memória voltava.

“Disse a Jusef que ia tirar uma soneca antes da nossa sessão de hipnose. Ele teve que sair para dar início ao hekak.”

Algo voltou à sua mente. Ele ficou quieta, tentando descobrir o que era. Nada veio, e ela virou de lado.

Estava cansada. Sentia como se tivesse feito cooper.

“Tenho que tomar cuidado. O médico me disse que exercícios demais podem fazer o tumor crescer”, lembrou. “E eu quero estar por perto durante muito, muito tempo.”

Seu sorriso era agridoce. Finalmente estava à beira do estrelato e precisava tomar cuidado extra com a saúde.

“Deve ser assim que Naomi Judd se sentiu. Ter que desistir depois de ter lutado tanto para chegar ao topo.”

“Bem, como Jusef gosta de dizer, Milagres acontecem todos os dias.”

Ela bocejou e se espreguiçou.

“Meu coração dói”, pensou. “Dói muito.”

Ignorando a dor, ela se sentou.

“Nada de descanso. Temos um show pela frente. Mandaremos o velho Bang Rais embora com um show que vai nos levar direto para uma gravadora de primeira linha.”

Ela sorriu e foi tomar banho.

 

Angel acordou devagar e sentindo muita dor. Não sabia onde estava, exceto que se tratava de um local escuro e cheio de fumaça.

Todo seu corpo doía. Ele não tinha certeza se conseguiria se mexer. E como estava debilitado, seria muito mais difícil lidar com os ferimentos.

Ergueu a cabeça. Estava um breu. Seus olhos lacrimejavam por causa da fumaça e sua cabeça rodava.

Respirando com força — não por necessidade, só por costume — ergueu a cabeça e gritou.

— Alguém... — disse num sussurro rouco, seguido de tosse.

— Oi? — uma voz respondeu.

— Estou... — a voz de Angel sumiu.

Ele rolou até ficar de lado. Descansou por um momento e apoiou-se no cotovelo.

— Olá? — a voz chamou com insistência.

— Estou aqui. Espere.

A fumaça subia. Parecia um pouco mais fina enquanto ele se arrastava pelo que parecia ser um piso de cimento.

Cacos de vidro furavam suas mãos.

Parecia ter levado uma hora para arrastar-se cerca de meio metro. Então sua mão tocou em um sapato de bico fino e salto. Um sapato de mulher.

Ouviu-se um uivo, quase desumano. Então a voz disse:

— Achei que tivesse morrido.

— Estou aqui.

Ele colocou a mão gentilmente sobre o peito do pé dela.

Ela caiu no choro.

— Oh, graças a Deus — ela murmurou. — Fiquei com tanto... tanto medo. Frio.

Ele percebeu que a mulher estava em estado de choque. O ambiente estava sufocante.

— Tome meu casaco — ele lhe disse. Um pouco mais ágil, conseguiu tirá-lo do corpo. A roupa grudou na parte superior das costas e nos tríceps, o que indicava que ele estava sangrando ali.

“Devo ter caído pela janela”, pensou. “Ou por uma clarabóia. O Bonaventure tem elevadores de vidro também. E um restaurante de revirar o estômago.”

— Aqui — disse. — Vou colocar o casaco sobre você.

— Obrigada — ela sussurrou. A mulher estava chorando. — Por favor, diga o seu nome.

— Angel.

— Você é hispânico?

— Não. Na verdade, sou irlandês.

— Você não tem sotaque de irlandês — a voz dela estava um pouco mais forte, mas mal se podia ouvir. No entanto, estava feliz de poder conversar. Era a melhor maneira de evitar entrar em pânico. Ou desmaiar.

— Faz tempo que não volto para casa — contou-lhe.

— Eu sou de L.A. — ela disse. E fez uma pausa. — É meu aniversário de casamento.

— Oh — ele não sabia o que dizer. Ficou imaginando o que teria acontecido ao marido. Se estaria procurando por ela naquela escuridão. Se teria se machucado no fogo.

Ou pior.

— Cinqüenta anos. Bodas de ouro.

— Parabéns — Angel disse com voz rouca.

— Faz um ano que meu marido morreu — houve uma longa e trêmula pausa. — Estou aqui sozinha.

Agora ele se deu conta de que o sapato que tocara estava adornado com contas. Ela estava toda arrumada. Como se fosse a algum lugar especial.

Mas sem ninguém para ir com ela.

— Sinto muito — ele disse.

— Não tivemos filhos — ela começou a tossir de novo. — E, claro, nenhum neto. Ele era professor de universidade.

Ela teve um acesso de tosse. Angel encontrou os ombros da mulher e segurou-os, mais para confortá-la do que qualquer outra coisa. Se ela desmaiasse por causa da fumaça, ele não poderia fazer respiração boca a boca, pois não tinha capacidade pulmonar no momento.

— Nós temos amigos — ela murmurou. Ele imaginou que ela estava divagando. — Muitos já se foram.

Ele continuou com as mãos nos ombros dela.

— Mas eu... — ela recobrou o fôlego. — Eu fiz algo.

Ele fechou os olhos. A mulher estava certa de que ambos morreriam ali, e iria confessar seu pior segredo.

— Eu tive um filho — ela começou a chorar. — Durante toda minha vida fiquei imaginando se era menino ou menina — ela abaixou a voz. — Ele era oriental. Todos o menosprezavam.

— Não deixariam que se casasse com ele — arriscou Angel.

— Ele me amava... — a voz sumia novamente.

Angel ouviu o crepitar das chamas, o ronco do vento sobre o fogo que se aproximava.

— Vou vasculhar o lugar — disse ele. — Ver se encontro uma saída.

— Não — ela implorou. — Não me deixe sozinha — moveu a mão sobre a de Angel, enquanto ele segurava seu ombro. — Por favor, meu jovem. Estou tão apavorada.

Ele tentou opor-se, mas acabou cedendo:

— Tudo bem.

— Minha filha deve ser uma adulta agora. Este tempo todo calculei quantos anos ela teria — suspirou. — Não sei se é menina ou menino. Mas sempre imaginei uma menina.

Entre acessos de tosse, ela chorava mais forte:

— Nem ao menos sei se ela sabe da minha existência. Naquela época não se costumava contar às crianças que eram adotadas. Era um segredo tão vergonhoso. Nunca contei ao meu marido que tive um filho.

Angel hesitou, surpreso.

— Éramos tão inocentes naquela época — ela acrescentou numa risada triste. — Ele provavelmente pensou que minhas pequenas estrias eram marcas normais na pele de uma mulher.

— Mas você nunca contou.

— Nunca contei — sussurrou. — Nunca contei a ninguém. Minha mãe me mandou para longe para ter o bebê. Era assim que faziam naquela época. Nenhuma amiga, nenhuma irmã, ninguém sabia — sua voz falhava. — Ninguém nunca soube.

— Isso a manteve sozinha — disse.

— Era meu segredo — lamentou. — Um segredo como este, um segredo terrível, afasta você da vida. A princípio pensei que esqueceria. — A tristeza partia o coração dele enquanto ela chorava em seus braços. — Mas como poderia esquecer?

— Agora eu sei — disse ele. — Eu sei, e antes de... morrer, contarei a mais alguém.

— Você entende — ela se encantou. Novamente, houve um silêncio. Então ela disse: — Como pode, tão jovem, conhecer uma dor tão profunda?

— Você conheceu.

— Conheci — ela respirou fundo. — Meu nome é Roberta Anne Hartford. O sobrenome de solteira é Anderson. Dei à luz em Cincinatti, em 1947. Dei-lhe o nome de Mae. Parecia chinês — lamentou. — Nunca mais vi o pai dela. Não sei o que aconteceu com ele.

— Vou descobrir — Angel lhe disse. — Diga-me tudo que você consegue lembrar. Tudo.

— Não me esqueci de nada — ela respondeu. — Não consigo lembrar do número da minha identidade. Às vezes, tenho que fazer contas para saber quantos anos eu tenho, mas nunca me esqueci de nada relacionado a ele.

Ela tossiu novamente.

— Ele tinha dezoito anos quando nos conhecemos. Queria ser engenheiro.

Ela contou a história de sua vida até o final. A voz foi ficando cada vez mais rouca, fraca, os olhos cada vez mais cheios de lágrimas por causa do fogo e da dor. Continuou falando, mesmo quando os bombeiros começaram a derrubar as paredes para resgatá-los.

Falou até mesmo quando seu peito, excessivamente cheio de fumaça, começou a subir e descer como um beija-flor.

Até mesmo quando os paramédicos iluminaram seu rosto ainda belo, apesar da idade, e anunciaram:

— As pupilas estão completamente dilatadas. Senhor, sinto muito.

Mesmo com o lençol sobre seu corpo imóvel e frágil, ela continuou contando sua história.

Porque, depois que a maça se foi, Angel a guardou na memória com toda a força de seu ser.

 

                                               Capítulo 11

O Padre Wahid gritou:

— É essa!

Era uma espada prateada e negra, cruelmente curva. Ele cortou o ar com ela.

— Então essa é a kris — comentou Doyle, dando uma bela olhada. — Na verdade estou um pouco decepcionado. Achei que ela seria um pouco mais mágica.

— As coisas não são exatamente o que parecem — disse-lhe o Padre Wahid.

— É, acho que sim.

— Agora preciso pegar o Livro — anunciou.

Ele parecia feliz.

“Como temos todas as peças”, pensou Cordelia, “acho que já podemos passar pela linha de chegada e receber nossos $200,00”.

— Doyle, vá com ele — disse Cordelia.

Doyle concordou.

— Fique aqui e tome conta da menina.

— Pode deixar — disse Cordy — Leve meu celular na limusine. Se o Angel ligar, me avise.

Doyle concordou:

— Tudo bem! — e voltou-se para o Padre Wahid. — Você precisa falar onde está o livro — disse. — A minha visão tinha alguma ligação com Meg Taruma, e ela não está lá. Preciso conseguir juntar as peças para o Angel.

— Visão? — perguntou o padre.

— Ela está em um clube. — “A camiseta!” Doyle bateu sua mão na cabeça. — Clube Komodo. — Ele olhou para o padre com expectativa. — Por favor! Você precisa contar a Cordelia para que ela avise o Angel. Nós não vamos contar para os Rais.

Mesmo assim, o padre estava claramente confuso. E disse:

— Até agora lidei com tudo isso sem dividir com ninguém — e balançou as mãos. — Você não pode imaginar como é isso, escondendo de todos, imaginando se o próximo som será o da minha morte. — Ele tossiu. — Estou doente.

“Ele é meio chorão”, pensou Cordelia, um pouco irritada. “Nós acabamos de encontrar a verdade, e eu, pelo menos, ainda estou confusa. Era isso que Buffy costumava falar.”

Ela sorriu. “Bem, nós estamos indo tão bem quanto a Caça-Vampiros, até agora. Exceto por parar o cara do mal de conquistar o mundo e destruí-lo.”

“No nosso caso, é mais provável que seja destruí-lo.”

— Você não disse que as estrelas se alinharão hoje à noite? — pressionou Doyle. — E que esta noite será a mais poderosa?

O homem suspirou. Seus ombros caíram.

— Você tem razão. Se alguma coisa acontecer comigo, alguém terá que completar o trabalho.

A voz do Padre se tornou um sussurro.

— Há um armazém. Uma fábrica. Um lugar infernal. Alguns dos meus paroquianos trabalham lá, esperando que um dia pagarão a passagem e aproveitarão a boa vida que eles esperavam encontrar aqui. Escondi o Livro em uma cópia de Inglês como uma Segunda Língua.

— Ah, sim, algumas pessoas inocentes morreram porque os Rais estavam procurando por essa cópia do Livro — comentou Doyle. — Não que seja sua culpa — completou rapidamente.

— Certo — disse Cordelia. — Porque entendemos que, às vezes, as pessoas morrem mesmo sem estar envolvidas diretamente.

— Então, a fábrica — disse Doyle.

— O verdadeiro Livro de Latura está no armazém. No sétimo andar. — O Padre Wahid deu o nome da rua.

— Perto da Fashion Alley — disse Cordelia, mostrando conhecimento.

— Obrigado, Padre — disse Doyle.

— Rezo a Deus para que eu não tenha assinado nossos atestados de óbito — murmurou o Padre Wahid.

— Antes nós do que o mundo — disse Doyle, tentando sorrir. Virou-se para Cordelia. — Diga ao Angel para investigar o Clube Komodo. Deve ser um nome elegante para Inferno.

Ela engoliu em seco.

— Testemunhem a minha surpresa.

 

Na geladeira, Angel tinha um frasco com sangue de porco gelado, três pedaços de pão e um pedaço de queijo cheddar. O estômago de Cordelia roncava, mas ela fez um sanduíche para Célia e ficou beliscando o outro pedaço de pão.

“A boa notícia é que, provavelmente, emagreci”, pensou. “A má notícia é que, se todos nós morrermos, me acabei por nada.”

Célia sentou-se para assistir TV, e Cordelia ficou andando de um lado para o outro.

Bem na hora em que não podia mais agüentar a pressão, o telefone finalmente tocou.

— Sou eu — disse Angel.

— Oh, Angel! Oh, graças a Deus!

— Não temos tempo para isso — disse Angel. — Você descobriu alguma coisa?

— Tem um tal de Clube Komodo. Doyle não sabe onde fica, mas faz parte da visão que ele teve.

— Então vou encontrar — afirmou Angel.

— Espere!

Mas Angel já tinha desligado.

 

Angel pegou carona com um dos paramédicos que o tinha resgatado. Era uma mulher e estava fora do horário de trabalho. Ela lhe garantiu que Santa Monica ficava no caminho. Em Los Angeles era assim, às vezes se levava uma hora ou mais só para chegar ao trabalho.

Ela tinha um forte estilo texano, cabelos negros longos e lisos, e passou o tempo todo alternando as funções de dirigir, flertar com Angel e descrever em riqueza de detalhes os piores acidentes em que já esteve envolvida.

— Os motociclistas são os piores, definitivamente — disse, virando à esquerda na contramão. As buzinas berraram e ela, alegremente, fez outra pessoa sair voando.

“Ela dirige pior que a Cordelia, se é que isso é possível”, pensou, preparando-se para o impacto. “É mais grossa também.”

— Nós os chamamos de motoqueiros doadores — seu sorriso era detestável. — Não, mas espere — sacudiu a cabeça. — As piores são as vítimas de queimaduras que temos recebido. Não sei que diabos está acontecendo com essas pessoas, mas são piores que os motoqueiros.

“Acertei em cheio”, pensou Angel. E disse cuidadosamente:

— Vítimas de queimaduras?

— São gangues. Só pode ser — ela disse em tom autoritário.

A lua brilhou sobre a água negra. Angel lembrou de seu sonho com Buffy e sentiu um aperto no peito. Em Sunnydale, o prefeito — ele próprio aspirante a demônio — jogara a culpa pela maioria das ocorrências sobrenaturais a “gangues de viciados”. Isso era absurdo, mas a boa gente da pequena cidade sobre a boca do inferno escondia a cabeça na areia e aceitava a explicação.

Os habitantes de Los Angeles pareciam um pouco mais preparados para aceitar a verdade sobre o lado obscuro.

— Por que você diz isso? — indagou ele. — Por que gangues?

— Bem, não sou policial — ela parecia um pouco na defensiva. — Mas tudo parece estar ligado a gangues hoje em dia — deu de ombros e acrescentou. — Novas pessoas chegam aqui, tentam roubar o território e todo mundo fica furioso.

— E matam civis?

Ela o analisou.

— Engraçado, eu não vi nenhum hematoma no seu traseiro.

— Como é que é?

— De quando você caiu aqui de pára-quedas. Não dá para ser assim tão ignorante e vivo.

— Estou meio por fora das novidades — aventurou-se.

— Que novidades? Isso não é novidade. É a vida.

— Por que estas pessoas são diferentes das outras vítimas de queimaduras? — indagou, tentando outra tática.

Ela continuou:

— Foram queimadas de dentro para fora. Devem ter sido forçadas a engolir algum tipo de material combustível programado para pegar fogo dentro deles. Provavelmente também há algum tipo de fonte de oxigênio, já que continuam queimando. Então, cabum. Aí está um tipo de lança-chamas queimando lá dentro. Ela deu de ombros.

— Eu gostaria de morrer dormindo. Ou transando — ela sorriu para ele. — Não é à toa que dizem que o orgasmo é uma “pequena morte”.

Antes que ele pudesse responder, ela disse:

— Tinha um filme com a Madonna, não tinha? Ela matava os caras de propósito, dormindo com eles. Desculpe, mas isso é ridículo. Sem falar que é extremamente egoísta. Caramba! — ela freou. — Não estou no meu horário de trabalho, mas ainda converso como uma dama. Mas isso é tudo que faço como uma dama.

Ela avançou para a pista da direita, quase batendo numa Mercedes. O motorista enfiou a mão na buzina.

— Eu faço musculação. Acho que poderia matar um cara com quem estivesse dormindo, se quisesse — deu outra olhada nele. — E acho que às vezes uma mulher quer fazer isso mesmo, quando o cara é um canalha. Alguns homens mudam depois que conseguem o que querem.

— Mmmm. — “Sexo e conseqüências amargas.” A conversa já estava ficando parecida com a dele.

— Quantos foram? Mortos, eu quero dizer?

— Pelo menos uma dúzia — ela fez careta. — Eles fedem.

“É verdade. A morte cheira mal.” Ele concordou educadamente, apontou pelo pára-brisa e disse:

— As luzes de freio estão acesas.

— Estou vendo — sua companheira suspirou, mas não reduziu um só milímetro. — É verdade o que dizem nesta cidade. Todos os bons partidos são gays ou casados.

Ele olhou para ela curioso.

Ela deu risada.

— Bem, claro que eu não penso que você é gay. Mas não há tentação nos seus olhos, e nós dois sabemos que você não ia morrer se fizesse uma sacanagem comigo esta noite. O que é o máximo que uma dama deve dizer.

Ele não deu resposta.

A voz dela era grossa como a de um motorista de caminhão.

— Está certo que os homens por aqui não são caubóis. Diabos, se continuar assim, vou voltar para Dallas.

Ela entrou cantando pneus no estacionamento de um hotel perto do píer. Deixou-o ali com um aceno bem amistoso.

— Se você se meter num acidente perigoso novamente, chame a Jessie — disse. — Vou cuidar bem de você. Ninguém sabe entubar melhor que eu — ela enrugou o nariz. — Pergunte aos meus dois últimos namorados.

Angel sorriu.

— Obrigado.

— Cuide-se. Tem uma garrafa de George Dickel e um pouco de Dwight Yoakum na minha casa. E Dwight, bem, digamos que ele funciona comigo. A propósito, escrevi meu telefone na sua cueca enquanto o médico o examinava.

— Outra hora — disse gentilmente.

— Oh, bem, está certo. A propósito, também tenho um chuveiro — ela sorriu para ele. — Você não está fedendo, só está cheirando fumaça.

Angel estava no píer e ainda tinha a sensação de estar sendo sacudido. A distância, viu a silhueta de um prédio de concreto contornado de néon. E o letreiro: “Clube Komodo”. Começou a caminhar naquela direção, mas parou ao ver alguém de pé na sacada, preparando-se para pular.

— Meg, não! — gritou Angel.

Ela hesitou. Franziu a testa e disse:

— Quem?

Seu rosto se transfigurou. Era possível reconhecer a mesma máscara horrenda que vira no celeiro escuro na noite em que ele e Dorrie foram até a casa da Velha Quinn.

Ela — ou aquilo, seja lá o que fosse — encarou-o e disse:

— O mal tem uma ótima memória, Angelus. O mal pode guardar rancor. Pode odiar. Pode arquitetar sua vingança. Mas o bem? O bem deve perdoar. Deve esquecer. É por isso que você será esquecido. O mal dentro de você anulará suas tentativas patéticas de acertar as contas. Como pode ter esperança de caminhar com anjos de verdade? Você é um assassino em massa. Seu lugar é conosco.

Ele ficou parado, sem entender.

— Você é Meg Taruma? — perguntou, tentando avançar.

Ela deu de ombros.

— Um nome é tão bom quanto outro. Mas não importa como você me chame, eu voltarei. Porque o mal é eterno. Essa é a verdade sobre a imortalidade.

Então se jogou do prédio e caiu de costas no chão.

 

No apartamento de Angel uma figura azul ganhava forma. Era alto para um indonésio. Musculoso e robusto, tinha queixo anguloso e nariz curvo.

Era Bang Rais que ascendia. Ele ousara arrancar seu corpo mortal, arriscando tudo para ganhar a vida eterna. Jusef não se lembrava que Latura concederia a imortalidade a uma única pessoa e a mais ninguém? Será que ele acreditava que o deus viraria as costas ao seu Servo mais devoto por causa dos desejos de um jovem impaciente?

“Eu matei mais pessoas para Latura do que se pode imaginar”, pensou Bang Rais. “Dizimei vilas inteiras. Populações étnicas.”

“Mas o mais importante é que persuadi outras pessoas a matar para Latura em meu nome, deixando-os pensar que poderiam tomar o meu lugar. Meu filho torturou dezenas. Ele aprendeu o segredo de queimar seus corações e pensou que poderia usurpar meu lugar.”

“Mas eu o mantive ocupado. Eu o mantive imaginando. Matei pessoas e movi seus corpos. Implantei muitas pistas falsas.” Olhou à sua volta e foi para a cozinha. “E o tempo todo, desviei a atenção da verdade.”

“Para contemplar:”

 

Em seu escritório no Clube Komodo, Jusef pegou o telefone e disse:

— Comece o incêndio.

Em toda Los Angeles outros telefones foram chamados e atendidos.

Latas de combustível foram despejadas. Fósforos riscados. Um a um, incêndios iniciavam e se espalhavam.

E as pessoas gritavam. Imigrantes, homens e mulheres eram trancados para que não pudessem fugir. Crianças sufocavam com a fumaça.

As sirenes tocavam nas ruas e avenidas de Los Angeles. A cidade estava envolta em uma nuvem de fumaça. O som da morte se ergueu. E ergueu.

E ergueu.

 

“Chegou a hora”, pensou Jusef. Passou a cinta da guitarra sobre a cabeça e subiu no palco. A banda estava esperando.

— Meg? — chamou ele.

Quando viu que ela não estava ali, olhou para a platéia, que esperava pacientemente e passou os dedos sobre as cordas.

Os músicos de gamelão começaram a percorrer a escala musical na percussão e no címbalo. A música exótica e ancestral da Indonésia encheu o salão.

Fazendo muita pose, Slamet subiu no palco segurando contra o peito uma pequena pilha de varas de bambu.

Eram os escritos originais da filha da Primeira Serva, preservados todo esse tempo pelos bons padres da igreja de Nias.

Através deles Jusef ficou sabendo que um pustaha lakek havia sido escrito, e outro teria sido ditado pelo próprio deus através dos tambores de seu povo, os caçadores de Nias. Esse teria informações erradas.

Impediria aquele que o usasse de alcançar a imortalidade.

Ele sabia de tudo isso, mas deixou que seu pai pensasse que ele, Bang Rais, tinha controle sobre tudo. Jusef causara a morte do pai de propósito. Ele fingira estar em busca do Livro, inventando um esquema estúpido sobre o tal livro de Inglês como Segunda Língua porque ele, Jusef, lembrava do ódio que sentia desse livro em seus tempos de escola.

Ele sabia muito bem que essa era uma noite especial para Latura, quando os poderes da escuridão estavam mais concentrados.

— Meg? — ele chamou de novo.

 

Bang Rais, em sua forma mais evoluída, sorriu para o veículo que traria Latura a este mundo. Por ter lido o Livro de Latura, ele sabia o que procurar.

Não se tratava de Meg.

Ela não possuía nada de especial em seu sangue.

Ele inventara tudo aquilo, a melhor forma de enrolar e distrair o filho e, se precisasse, o sobrinho.

“Enganei a todos”, pensou. “No final, eu serei o imortal.”

— Célia, Angel tem uma lata de Sprite — disse Cordelia ao caminhar até a geladeira. — Você quer?

Não houve resposta.

— Célia?

Cordelia deu meia-volta a tempo de ver.

Ela derrubou a lata sobre o tapete de Angel.

Ele disse:

— Tarde demais.

Então desapareceu, levando Célia consigo.

 

Enquanto Angel segurava Meg Taruma em seus braços, o celular tocou.

— Angel, um cara azul levou a Célia e aposto que estão indo para onde está o Livro — Cordelia falava sem parar.

— Mais devagar.

— O veículo era Célia Sucharitkul — disse. — Não Meg. Alguém mentiu para os outros.

— Me passe o endereço — disse ele.

Foi o que ela fez.

— Vou para lá agora — ela acrescentou.

Angel segurou Meg. Ele não sabia precisamente o que ela era agora, nem o que tinha acontecido, mas já havia se comunicado com ela. E sabia que ela era doce, frágil e vulnerável, e precisava de ajuda desesperadamente.

Quando ela começou a morrer, Angel viu o desfecho de sua vida:

Ela fora uma jovem comum vivendo numa parte comum de Dakarta. A parte mais excitante de seu dia era alimentar o gato, cujo nome ela não lembrava.

Meg nunca esteve em Nias. Tudo aquilo era um sonho. Uma mentira.

Ela abriu os olhos e olhou para ele.

— As injeções — disse. — Eles me fizeram imaginar uma vida que não tive.

Tratava-se de algum tipo de droga para estimular a mente. Para fazer com que falsas lembranças parecessem mais reais.

— Mas nos comunicamos — ela sussurrou para ele.

— Sim — ele respondeu.

Mas será que era verdade? Ele realmente fora picado por uma serpente?

“Se pensar nisso fico louco”, disse a si mesmo. Enquanto morria, Meg começou a chorar.

— Não fui eu — disse. — Não sei quem sou. Vou morrer e nunca saberei quem sou.

Angel abraçou-a. Quando Meg morreu, Angel olhou para seus olhos frios e apáticos.

Ele também não sabia quem ela era.

 

O lugar onde se realizava trabalho escravo era mais sujo e imundo do que o resto do distrito das roupas. Também não era longe de onde Célia havia roubado a bolsa de Cordelia.

Doyle seguiu o padre, subindo dois lances de escada. Ele abriu uma porta e olhou com um misto de horror e nojo a imundície e o fedor de uma sala cheia de máquinas de costura. Havia um ursinho de pelúcia embaixo de uma delas; sob outra, uma pequena pilha de livros infantis. O Padre Wahid parou para vasculhar.

“É aqui que eles mantêm os pequeninos e os forçam a trabalhar.”

A sala estava escura e encardida. Doyle foi até o fundo e encontrou um lance de escadas que apenas descia. “Isso que é uma casa misteriosa.”

Ele desceu as escadas.

O que viu fez seu estômago revirar.

Era um lugar horrível. Quadros de torturas e diferentes tipos de execuções estavam pendurados pelas paredes. Do teto, pendiam crânios e ossos. No centro, corpos que já começavam a apodrecer.

No meio da sala estava uma grande mesa de pedra. E presa à mesa, a pequena Célia.

— O veículo — disse uma voz.

Era o Padre Wahid.

Ele estava vestido com uma túnica negra, e ao mesmo tempo em que Doyle o encarava, asas de couro batiam sobre sua cabeça.

Dois monstros alados e repulsivos com pele esverdeada, cada um do tamanho de um leão, batiam as asas sobre eles. Cada um carregava um objeto redondo na boca.

De uma só vez, os dois soltaram os objetos, que se espatifaram contra o chão imundo.

Eram cabeças humanas.

As cabeças de Slamet e Jusef.

O Padre Wahid virou a cabeça para trás e riu.

— Eles acharam que eram tão espertos — disse. — Mentiram e trapacearam tanto que não conseguiam mais se lembrar se haviam mentido um para o outro. No final, mentiram para si próprios. Eu sou o verdadeiro Servo. Sou aquele que se tornará imortal.

Doyle deu de ombros.

— Eu não me importo — disse.

Então, lançou-se sobre o ex-padre com a espada.

 

Angel deixou o médico legista levar Meg. Então pensou em pegar um táxi para ir até o endereço que Cordelia havia lhe dado.

Assim que o táxi parou, ele sentou e pensou por um momento. E ordenou:

— Condomínio Rais. Fica nas colinas. Eu explico o caminho.

O motorista era atencioso. Eles chegaram em pouco tempo.

Mas quando Angel olhou pela janela, percebeu que o dia já amanhecia.

Na verdade, ele não tinha certeza se teria tempo suficiente para chegar ao condomínio.

“Não importa”, pensou.

O motorista conversava sem parar. Angel não estava realmente ouvindo. Estava repassando sua vida.

“Porque este pode muito bem ser o fim dela.”

O que ele havia prometido? Que morreria sozinho e esquecido?

— Chegamos — o motorista avisou. — Não acho que vão nos deixar entrar.

— Tudo bem.

Angel saiu do carro e deu dinheiro suficiente para mandá-lo embora. Depois se virou para o guarda, disse Ei! e socou o queixo do sujeito. O guarda dobrou ao meio.

Outro gritou Pare! e apontou a arma diretamente para Angel.

Angel ganhou velocidade e deslizou no chão, como um rebatedor roubando uma base. O homem, perplexo, mirou alto demais.

Com uma rasteira, Angel passou por ele.

Os tiros o perseguiam enquanto Angel descia os degraus da escada do templo, dois, três, quatro de uma só vez. Mais parecia estar caindo do que descendo.

Havia uma única tocha iluminando a escuridão do templo.

A estátua de Latura ganhara um tamanho colossal, e batia numa horda de jin alados, depenando-os e enfiando-os em sua boca.

— Velha Quinn! — gritou Angel.

A estátua parou de se mexer. Girou a feia cabeça de pedra na direção dele. Chamas saíam de seus olhos.

— Velha Quinn — disse ele novamente.

— Este não é o meu nome — a voz era alta o suficiente para abrir novas cavernas. As chamas dos olhos eram tão quentes que bolhas se formaram no rosto e braços de Angel.

— Mal é o seu nome — disse Angel. — Não é?

— Se você preferir assim.

A estátua fechou o punho e bateu no chão perto de Angel.

— E qual é o seu nome? Príncipe do Nada?

— Foi tudo armado para mim, não foi? — exigiu Angel, avançando. — Como uma experiência, para ver de que lado eu ficaria. Porque parte de mim é má...

— Muito má — disse a estátua, exibindo suas presas enormes ao sorrir.

— E parte de mim é boa.

Era difícil para Angel dizer isso, mas ele repetiu:

— Parte de mim é boa.

A estátua riu.

— Todos têm escuridão e luz.

Não como eu. Eu sou único. É isso que me torna o veículo perfeito.

— Interessante — disse a estátua.

— E é disso que você sente falta. De sentir interesse. Essa é a parte verdadeira das histórias de Latura. A morte é limitada. E a vida, para a maioria das pessoas, transitória. O que faz parecer, para muitos, que não tenha sentido.

A estátua abaixou o rosto.

— É o que você diz.

— À minha volta, todos vivem e morrem. Eles fazem escolhas pela luz ou pela sombra. Sou o único que continua vivendo e lutando. Sou eu esse Deus da Morte. Eu é que me ergui do Subterrâneo para caminhar entre as pessoas por toda a eternidade.

— Tanto orgulho — com zombaria, a estátua sacudiu o dedo.

— Você é simplesmente um demônio. Um demônio inteligente e entediado — disse Angel.

A enorme estátua de pedra inclinou a cabeça.

— Golgothla é o meu nome, vampiro. E você está certo. É você quem eu quero. Não o Servo. Não o Veículo. Nem Doreen, Alice, Meg, Hendrik, Wahid, Bang. Você é único.

A figura deu de ombros e continuou:

— Mas agora que você sabe, o jogo acabou. Não é mais interessante. Se deixá-lo escapar, mais cedo ou mais tarde você descobrirá uma maneira de me destruir.

A criatura cerrou o punho e lançou-o contra Angel. Depois chutou, enviando o vampiro pelos ares para o outro lado da caverna. Angel se espatifou contra uma parede de pedra e ricocheteou, caindo de costas.

Ele estava tão tonto que não podia ver nada além da escuridão. O chão tremeu quando o demônio veio em sua direção. Sua risada fez desprender uma pedra do teto, que caiu sobre a cabeça e o peito de Angel, ferindo-o gravemente.

Movendo-se como num sonho em câmara lenta, Angel rolou no chão. Depois de alguns segundos, apoiou-se nas mãos e ficou em pé novamente. Assumiu uma posição clássica de defesa no kickboxing, e esperou que seu agressor desse o primeiro passo.

Foi quando percebeu qual era o jogo. Ele não podia morrer. Sua vida lhe havia sido devolvida pelos Poderes Que Valem, e não cabia a ele dispor dela.

Era isso que o tornava interessante. Ele tinha algo a perder e os riscos eram altos.

“Então o que faço, luto até cair? Até morrer? Até que ele fique cansado de mim?”

— Isso não é diferente de ser esquecido, não é? — disse Angel. — O resultado disso não importa de verdade.

— Claro que importa. Importa se você me destruir — a criatura sussurrou num tom de voz assustador.

— Para você? Duvido — disse Angel. — Você não tem uma alma própria. Se morrer nessa forma, surgirá novamente em outra. O Mal é eterno.

— Que cinismo. — disse o demônio. — Assim dá vontade de desistir, não é?

— Não — Angel ergueu o queixo. — Dá vontade de viver para sempre também.

Então, lançou-se sobre o demônio, socando-o em todas as partes. Seus seguidores alados atormentavam Angel, mordendo seu rosto e cabeça, visando sua nuca.

O chão explodiu, e criaturas de pesadelos foram cuspidas como um rio de lava. O vampiro lutava contra um número tão grande de demônios que parecia uma única mancha.

— Já se cansou? — gritou para o monstro. — Já ficou entediado? Você não quer me matar. Porque sou a melhor coisa que o lado bom tem aqui embaixo.

— Chega! — gritou o demônio.

E se espatifou em centenas de pedaços. Cada pedaço virou um rosto, mas cada rosto era o mesmo. Todos tremiam de frustração. Foi quando os pedaços explodiram. Todos os pedaços. Todos. Até Angel deitar, exausto, num campo de areia.

 

                                 Epílogo

“Está perdoado, mas não esquecido.”

— The Corrs

 

Éire Shaor era um lugar estranho e maravilhoso: um autêntico bar da classe operária irlandesa localizado no meio de West Hollywood. Como Doyle havia encontrado, Angel não fazia idéia, mas ficou surpreso e feliz com a descoberta do meio demônio.

Ao ver a expressão de Angel, Doyle disse:

— Isso é melhor que uma biblioteca deserta, hein?

Doyle e Angel sentaram-se perto do alvo de dardos, cada um com seu chopp, observando o jogo em silêncio. Angel prestava atenção ao som dos grupos irlandeses: Chieftains, Corrs, Clannad. Música com harpa. Uma Irlanda romanceada, pode ter certeza.

Cordelia teria gostado, mas ela tinha um encontro com Jason, o policial.

— Você já esteve no IRA? — perguntou Doyle, ao pegar a caneca de chopp para beber. — Sinn Fein e tudo o mais? — ele apontou para o nome do bar, cuja tradução era “Irlanda Livre”.

Angel olhou-o com curiosidade.

— Por que a pergunta?

— Lembra quando não deixaram Gerry Adams entrar nos Estados Unidos? Eles com toda a família Kennedy, que era irlandesa e tudo o mais?

— Eles?

— Os americanos — Doyle franziu a testa. — O que você acha que eu queria dizer? Os humanos?.

Angel não disse nada.

— Não se esqueça, sou metade humano.

— Nem que eu quisesse.

Doyle parecia feliz em deixar essa de lado. Ficaram em silêncio por um tempo. Então disse:

— Sinto saudade de casa, sabe. — Ele fez pequenos círculos sobre o balcão com o fundo da caneca. — Ah, eu me viro bem aqui, mas em casa é mais fácil se misturar.

— Passar... — provocou Angel — por humano.

— Bem, você é um irlandês amargurado — Doyle o encarou. — Você ficaria tão desenturmado na Irlanda hoje em dia como está aqui. Não importa onde vá, você é um estranho numa terra estranha.

Angel olhou para ele.

— Não é uma terra estranha.

Doyle bufou.

— Los Angeles? É o lugar mais bizarro do planeta.

— Não mesmo — insistiu Angel.

— É um bando de adoradores do sol e comedores de tofu. Nada foi planejado para agradar você. Nada é conveniente para você.

Angel não disse nada.

— Além do mais, deve ser como caminhar por um campo minado todos os dias, vendo pessoas juntas, indiferentes aos horrores. Construindo suas vidas, fazendo planos.

Angel olhou para ele.

— Capazes de transar umas com as outras sem medo de ir para o inferno. Pelo menos aqueles que não são católicos.

— Doyle — disse Angel já cansado.

— Bem, é bom saber que você admite. Um vampiro com uma alma... — ele deu de ombros. — Você é um peixe fora d’água.

Angel ergueu a caneca.

— Sim — disse. — Pelo menos por enquanto.

“Talvez por toda a eternidade.”

— À Irlanda — brindou Angel.

Doyle abriu um sorriso amarelo e ergueu a caneca.

 

                                                          Nancy Holder 

 

 

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