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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EU FALO O QUE ELAS QUEREM OUVIR / Mario Prata
EU FALO O QUE ELAS QUEREM OUVIR / Mario Prata

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

EU FALO O QUE ELAS QUEREM OUVIR

 

CENA Um

Entram, pela porta, Dagoberto Pereira Barreto e Camilo Filho.

 

Dagoberto, 49 anos, bem vestido para quem é do Tocantins e deputado federal. Roupa esporte. Baixo. Percebe-se que a origem familiar é baiana. Rico, muito rico. Fazendeiro. Casado, putanheiro. Sabe beber. Tem o desagradável hábito de ficar coçando, literalmente, o sexo.

 

Camilo, 50 anos, mas se veste como nos anos 70. Usa um certo cabelo desalinhado, calça lee limpa. Tênis. Uma bolsa grande, quase mochila. No fundo, ainda agrada, é um homem bonito.

 

Dagoberto está calmo. Camilo não faz idéia do que esteja acontecendo ali. Entra e dá uma geral no apartamento. Sala grande, coisa fina, um pouco cafona. Mas rica.

 

DAGOBERTO- Data vênia, desculpa o jeito. Esse disfarce ridículo. Estou sendo seguido, é claro. Sei que o figurino é meio extravagante. (tirando um revólver da cintura e colocando numa gaveta) Senta. (Camilo senta, tenso. Dagoberto tira uma peruca de cabelos branca, uma barba postiça). O seu nome é Camilo Filho, 55 anos,você é diretor de teatro - dos mais brilhantes, diga-se de passagem -, casado com a, por uma estranha coincidência, Camila. Tem três filhas, nenhuma com ela. Formado em psicologia, pós-graduado com tese sobre a loucura. Nunca exerceu. Seu pai morreu há dois anos. A coisa tá feia lá em Porto Alegre, não tá? Você não tem de onde tirar o dinheiro para completar a compra do apartamento, no que você mora. Sei que 35 paus não é fácil conseguir hoje em dia. Principalmente um diretor de teatro como você, que teima em não ser comercial. Fora Diário de um Louco, você ganhou dinheiro com o quê? Prêmios, tá certo. Prêmios e mais prêmios. Há dez anos vem adiando a viagem com a Camila para Paris. Mas do jeito que você quer. Com grana. Paris sem grana só nos anos setenta, não é mesmo? Você começou como ator em Hair, em 1969, lembra? Sonia Braga. Mas vamos ao que interessa. (pega um jornal numa pilha cheia deles, em cima da mesa central, leva para ele, aponta uma matéria e manda ele ler) Lê isso aqui. Tarado da Cantareira, reconhecido, fugiu da polícia. Lê aí.

 

Camilo tira uns óculos de leitura da bolsa e começa a ler. Dagoberto vai até o barzinho e se serve de uísque, sem tirar os olhos de Camilo. Já vai voltando, resolve dar uma dose para Camilo, enche mais um copo, ambos sem gelo e vai até ele. Entrega. Camilo recusa, lendo.

 

CAMILO- Posso falar?

 

DAGOBERTO- Deixa eu me apresentar. Meu nome é Dagoberto Pereira Barreto, sou deputado federal por Tocantins. Talvez, nos últimos dias, você tenha lido o meu nome nos jornais (Diretor faz que “não, infelizmente”). Infelizmente, no setor policial, com chamadas na primeira página. Sou do interior da Bahia, fomos para Palmas antes daquilo virar estado. Boi - muito boi - e mineração. Sou candidato a governador. Mas já andei no jatinho do governo. No antigo, que não dava nem para ficar em pé. Agora tem um mono. Me esperando. Seis lugares, sala de reunião e duas camas no fundo. Além do bar, é claro. Autonomia de vinte mil quilômetros. Dá para ir almoçar, pra ir comer uma carne no Texas e voltar, sem a patroa nem perceber. Só esse avião já bastava pra mim querer ser governador. Mas eu sonho muito mais alto do que dez mil metros de altitude. Casado, seis filhos. O que mais poderia te dizer? No norte do estado, nas cidades de Xambiá, Filadelfia e Peritoró, extraio basalto. Filadélfia é muito conhecida pelos seus pistoleiros. Pistoleiro que, por uma ninharia, você contrata e eles fazem o que você quiser. O que quiser. Fazem qualquer negócio. Se você quiser dar um sumiço no Papa, é lá mesmo. Na região do Araguaia tenho boi e porco. Também colho e exporto babacú, mamona e pequi. Lá, sou conhecido como o Rei do Pequi. Sabe o que é pequi? Vocês aqui do sul não tem idéia do que seja o Brasil. Debaixo de todo o estado do Tocantins tem ouro, rapaz! Muito ouro. (mexendo nos livros da estante)Minha mulher é intelectual. Formada em letras na Bahia, dá aulas na Unitins, Universidade do Estado de Tocantins, muito boa, por sinal. Devoto de Nossa Senhora das Mercês. Também leio muito. Estudei em colégio salesiano. Sei latim. Mas, vamos ao que interessa. Com o passar dos dias, você irá me conhecendo melhor.

 

CAMILO- Posso falar?

 

DAGOBERTO (calmo) - Não, Camilo. Deixa eu terminar, aí você fala. Pode parar de ler. Sei que já leu o suficiente. Esse cara aí, que estuprou e matou onze mulheres, é meu irmão.

 

CAMILO- O Mario Alberto (lendo) Pereira Barreto? (o outro faz sim com a cabeça)

 

DAGOBERTO- Tá ali. No quarto. (apontando no jornal) Olha aqui: irmão do deputado Dagoberto Pereira Barreto, candidato a, etc, etc, etc.

 

CAMILO- Você podia fazer a gentileza de me explicar o que está acontecendo? Eu ia saindo calmamente do teatro, você encostou um revolver na minha cabeça/

 

DAGOBERTO-Foi um seqüestro sim. Se você está querendo saber se o que aconteceu foi um seqüestro, foi. O deputado Dagoberto Pereira Barreto (aponta-se) seqüestrou o diretor de teatro Camilo Filho.

 

CAMILO-Isso eu sei. Percebi.

 

DAGOBERTO-Não quer mesmo o uísque?

 

CAMILO- Úlcera.

 

DAGOBERTO- Meu pai tinha isso. É complicado.

 

CAMILO- É, é complicado. O que mais sabe de mim?

 

DAGOBERTO-Digamos que quase tudo. Não ia te seqüestrar sem mais nem menos. Sem saber o produto que poderia vender.

 

CAMILO- Você não acha que já está na hora de abrir o jogo?

 

DAGOBERTO(grita) - Bebé! (para Camilo)Ab jove principium.

 

Camilo - Como?

 

DAGOBERTO - Ab jove principium. Principiemos por Júpiter, ou seja, comecemos pelo primeiro personagem.

 

Entra Mario Alberto.

 

Mario Alberto - Ao contrário do que você estava imaginando, Mario Alberto Pereira Barreto Junior é um rapaz bonito, do tipo desalinhado mesmo. Descabelado e magro. Nem feio, nem bonito. Mais para o bonito. Parece ter olhos claros. Sofrido, parece que nunca sorriu na vida. 30 anos.

 

DAGOBERTO-Esse é o Mario Alberto. Camilo.

 

OS DOIS - Prazer.

 

Mario Alberto olha nos olhos de Camilo como os lutadores de boxe antes de começar a luta. Camilo fica sem jeito. Mario Alberto vai ao bar, pega uma garrafa grande de coca, abre e vai bebendo para o quarto.

 

DAGOBERTO - Tudo bem com a família?

 

CAMILO- Tudo bem.A Camila está com uma gastrite e. Mas isso não vem ao caso.              

 

DAGOBERTO- Gastrite é complicado!

 

CAMILO- Se você sabe tanto da minha vida, já deve ter percebido que eu não valho um tostão puto furado na praça. Ninguém vai te pagar nada por mim.

 

DAGOBERTO- Quero dinheiro, não, Camilo. Mas antes que alguém dê pelo seu desaparecimento, você vai ligar para a Camila, lá pru Rio, e dizer que acabou de receber um convite para dirigir um espetáculo na Argentina e está partindo daqui a pouco. Diz que vai ficar lá uns dez dias, que liga de lá, e tal. Tudo com a maior naturalidade do mundo. Espero não ser obrigado a dizer para o Tarado da Cantareira onde está a arma.

 

CAMILO- Só que esse negócio do Argentina não vai dar certo. Ela logo vai ligar para o Badaró atrás de mim.

 

DAGOBERTO- Badaró Castillo, o argentino que te abriu as portas de Buenos Aires, não é esse? Pois, logo em seguida de falar com a Camila, vai ligar para o Badaró, dizer que conheceu uma gatinha de 20 aninhos, que faz teatro amador lá em Olinda, que está apaixonado, que a menina é uma coisa, que sabe Shakespeare de cor, em inglês - com sotaque nordestino, o que é bastante excitante -, que você tá pirado com ela e que você vai passar uma semana com ela num motel e vai pra lá daqui a pouco e disse para a Camila que vai para lá, Argentina. Certo? E quando ela ligar para o Argentina, você dá o telefone daqui, ele te liga, você diz que isso aqui é o apê de um amigo em São Paulo. Assim você fica em contato com a sua mulher, numa boa. E pode ir adiantando para ela que esse projeto, dessa vez sim, tem muita grana. Produção do Mercosul inteiro, tem até gente de Brasília envolvida, coisa de primeiro mundo. Certo?

 

CAMILO- Pelo que eu entendi, ou eu faço isso ou vocês me matam, somem comigo, alguma coisa assim?

 

DAGOBERTO(frio)- Alguma coisa assim. (quase teatral) Digamos que essa viagem não tem mais retorno. E temos data para a estréia. E grana, muito grana, meu caro prêmio Moliere. Vai, vai telefonar. E nenhuma gracinha, entendeu? Nós simplesmente te apagamos. Quem matou onze, um a mais, não é mesmo?

 

CAMILO(pega o celular na bolsa, disca) - Camila? É, eu imaginei. Tudo bem? Não, não fui para o hotel ainda. Como é que tá tudo aí? (fica ouvindo) Ah, ligou, é? Mas eu já falei com a diretora do colégio, já acertei tudo. Quer dizer, fiquei de acertar. (Camila fala muito) Mas a Luíza é mesmo uma vaca! Tudo bem, tudo bem, não vamos discutir isso agora. Não, não acho mesmo. Já disse, já disse, depois a gente fala disso. Não, não estou adiando nada. É que o momento não é o ideal, né? Por telefone. Não, não, não, Camila. As coisas não foram bem assim. Você tá deturpando tudo. O que é isso, tá louca? A Fabiana não tinha nem três anos. Foi demais, Camila, você fazer a menina assistir o Batman, em inglês. Custava levar a menina onde tava passando dublado? Tá certo, não foi o Batman, foi o Superman. (ironizando) Um ou dois? Superman 1 ou 2? Vai você! (Bate o telefone).

 

DAGOBERTO- O que é isso? Pirou. E o combinado, Argentina...

 

CAMILO- Juro, esqueci. Comecei a me empolgar com a história da Fabiana e sempre acaba nisso. É que a Fabiana é uma adolescente cheia de minhoca na cabeça. E a terapeuta dela disse que os problemas delas - todos - se originaram no dia que ela foi assistir, forçada, o Batman.

 

DAGOBERTO- Superman.

 

CAMILO- Isso.

 

DAGOBERTO- Esse negócio de terapia é um negócio muito... Muito... Muito complicado. Veja você. Pelo que eu entendi, a sua filha, que não é filha da sua mulher, foi levada por ela, sua mulher, de sacanagem, para assistir o Superman sem dublar. E o que é que eu tenho com isso? Vamos, liga de novo e faz o que já devia ter feito. Que que eu tenho a ver com os problemas de adolescente da sua filha? Se eu começar...

 

CAMILO- Adolescência é complicado!

 

DAGOBERTO- É complicado! Vamos, liga lá. E, pelo amor de Deus, nada de Fabiana.

 

CAMILO(disca e, quando atendem, fala bem rápido) - Estou na Argentina! Estou na Argentina! Seguinte, pintou um negócio agora lá no Argentina, no Teatro Colon. Coisa finíssima. Tou indo pra lá. (ouve) Não, Camila, dessa vez tem grana. Amanhã te ligo de lá. (ouve) Tem, Camila. Pelo que eu entendi, é uma super-produção. (ouve)Amanhã eu te explico direito. Os remédios? Tão na bolsa. Acho. Beijinho. Eu também.

 

DAGOBERTO- Você não devia ter desistido da carreira de ator. Gostei.

 

CAMILO (que desligou e ligou para o Badaró, no Argentina. Fala em portunhol) - Madrediós? Camilo. Bien, tudo bien. Tá indo bien. Quer decir, aquele publicozito de siempre. Pero acá está mejor que en Rio. La critica estuvo mui bien. Tá bem, tá bem, tá ótima. Falei com ela agora. A Fabiana? (Dagoberto olha feio para ele, pede para ele acelerar) Seguinte, eu estou em São Paulo. O Badaró está? Si, si, nada grave. Pero, Madrediós, pida que Badaró me chame en lo celular, está bien? Dô, dô sim. Otro pra ti. Besos. (desliga) Não dava para abrir com ela. Ela é amiga da Camila. Não ia dar certo.

 

DAGOBERTO- Você foi muito bem.

 

CAMILO- Posso saber agora o que é que está se passando? O que é que vocês querem de mim?

 

DAGOBERTO- O Mario Alberto matou onze mulheres. Fora as que ele tentou e não conseguiu. Essas vagabundas, as sobreviventes, depuseram, deu a maior confusão. Você deve ter acompanhando pelos jornais e pela televisão. Resumindo: o Mario Alberto fugiu. Ninguém sabe onde ele está. Os jornais estão dizendo que ele foi visto no Paraguai. É incrível, sempre que alguém foge do Brasil a imprensa e os policiais desconfiam que ele esteja no Paraguai, já notou isso?

 

CAMILO(pensando, ouvindo bem, atento) - É verdade.

 

DAGOBERTO- Ninguém poderia imaginar que ele está em São Paulo, nos Jardins, no apartamento do irmão deputado. Ali, naquele quarto. Também ninguém sabe que eu tenho esse apartamento, percebes? Vamos ao que interessa. Isso, além do meu irmão estar ferrado, é claro, vai ferrar de vez com a minha carreira. Queria, quero e vou ser a governador do meu estado, o Tocantins. E não quero ver o meu irmão preso o resto da vida, isso se alguém não enfiar uma faca nele assim que ele entrar na penitenciária. Esse meu irmão, somos oito, é quase como um filho. Quando ele nasceu eu já servia o exército - aliás, sou tenente da reserva, com muito orgulho, diga-se de passagem. Implico até com o tamanho do cabelo dele, percebes? É como se fosse um filho. Meu filho mais velho. Ele sempre foi assim, meio doido.

 

CAMILO- Meio doido?

 

DAGOBERTO- É. Meio. Mas não é doido desses que você olha e diz que é doido, percebes? Meio esquisito, complicado,vamos dizer assim. Desde pequeno, essas coisas ligadas a sexo. Ele teve uns probleminhas - coisa à toa - com uma tia nossa, a tia Daví-   ah, a tia Daví!- , mas isso ele vai te explicar melhor depois. Claro que é uma pessoa que estupra onze mulheres e depois mata elas. Eu até desconfio, cá entre nós, que foram mais de onze. Mas isso não vem ao caso. Não que ele seja doido. Mas ele tem umas manias. Desde pequeno que tem umas manias esquisitas.

 

CAMILO- Você podia contar, pelo menos uma das manias dele?

 

DAGOBERTO- Isso é importante? Digo, para o trabalho?

 

CAMILO- Trabalho?

 

DAGOBERTO- Uma mania dele? Deixa eu ver se lembro duma boa. Deixa eu ver. A gente era oito, já falei, né? Morava quase tudo junto, lá na fazenda. Em dois quartos. Sabe a mania que ele tinha? De tirar as nossas cobertas, de noite. Ele tinha uns doze anos quando começou a fazer isso. Só que ele fazia isso de uma vez só. Puxava a coberta de todos de uma vez só. Sabe o que ele fazia? Amarrava linha de pescar em todas as cobertas, nos dois quartos, levava as linha lá para fora, onde amarrava uma na outra. Depois, amarrava todas numa só, saía para o quintal, amarrava no rabo do cachorro, dava um ponta-pé no cachorro, que acordava e saia correndo, patinando e latindo. Todo mundo acordava assustado. Até aqui tudo bem. O pior é que ele não conseguia dormir sem fazer isso todo dia. Principalmente no inverno. A gente só conseguiu acalmar ele, quando combinamos que ele podia amarrar todo mundo, mas não valia puxar. Então, toda noite, ele só conseguia ir dormir depois de amarrar todo mundo. Isso era uma complicação, porque alguém acordava de noite para ir ao banheiro, tropeçava numa só linha que fosse e descobria todo mundo. Esse inferno durou anos. Eu tenho uma tia - aquela - que dizia que o menino tinha problema. Meu pai dizia que era falta de couro.

 

CAMILO- Deputado, desculpa, mas eu não estou entendendo nada. Nada! Onde é que você quer chegar?

 

DAGOBERTO- Já chego lá. Só tem uma maneira, senhor Diretor, do Bebé escapar da cadeia, da penitenciária. É a defesa alegar que ele é doido. Doido varrido. Desses que quase babam. Desses que você olha na televisão e diz: esse cara é doido. Cê tá me entendendo, Camilo? Ele, sendo doido, vai ser internado e eu limpo a minha barra política, entendeu? Doido é doido, não sabe que está fazendo ou fez. O cara teve problemas de sexo na infância, na adolescência, pirou. Acontece. Uma vez ele no manicômio, depois eu tenho jeito lá em Brasília para tirar ele de lá. Coloco ele lá na minha fazenda e o Brasil, questão de pouco tempo, esquece de uma vez do Tarado da Cantareira. Afinal, ter um irmão louco, todo mundo tem, mesmo. Quem é que não tem um irmão louco? Normal.

 

CAMILO- Mas, pelo pouco contato que eu tive com ele, ele não parece ser louco. Talvez um pouco fechado. Ele não tem as características de um louco normal. Normal que eu digo é... entende? Um louco mesmo, de carne e osso.

 

DAGOBERTO- É esse o ponto, meu querido Diretor.

 

Toca o celular de Diretor.

 

DAGOBERTO- Veja lá, hein?

 

CAMILO- Deixa comigo. Badaró? E aí, rapaz! (...) Obrigado, obrigado. (...) Parece que dessa vez vou até ganhar um dinheirinho. Quando é que você vem assistir? (...) Pelo jeito fica uns seis meses. O público adora, Badaró. (...) Tá bem, estão bem também. (Dagoberto faz sinal para ele entrar logo no assunto) Sei, eu também gostei muito. Saiu um outro livro dele agora, depois de mando. Negócio de vidas passadas. (...) É, tá na lista da Veja. (...) Badaró, é o seguinte. Tou precisando que você me quebre um galho. Arrumei uma gatinha de Olinda, uma garota, atriz e (...) Vinte, Badaró. Vinte aninhos. (...) Melhor, muito melhor. Ora, Badaró, você sabe que todas as meninas de vinte anos são lindas.(...) Mas que Viagra, Badaró. Com uma menina de vinte anos não precisa dessas coisas, não. Mas é o seguinte: disse para a Camila que estou indo praí. Ficar uma semana. Disse que pintou uma senhora produção envolvendo todo o Mercosul, etecetera e tal. Mas eu vou ficar com a menina aqui no apartamento de um amigo. Não, estou em São Paulo. Anota aí o telefone, caso ela te ligar aí, você me liga aqui. (pega o papel com Dagoberto) Onze, né? 9883.7770. Não,70. Certo? Então, se ela ligar, você me avisa e eu entro em contato com ela. Tá entendendo? Estamos conversados? Sabia que podia contar com você, Badaró. Fica tranqüilo que eu não vou sumir, não. Eu dou notícias. Pode deixar. Fico te devendo essa, hein? Tá bom, tá bom. Outro, querido. Um beijo. (desliga) Fui bem?

 

DAGOBERTO- Beijo? (muda o tom) Ótimo. Bem, agora que você já está no Argentina, vamos ao que interessa. Você vai dirigir o Mario Alberto!

 

CAMILO- Dirigir o Mario Alberto?

 

DAGOBERTO- Você vai pegar o Mario Alberto e transformar o Mario Alberto num louco. Um louco que ninguém duvide da loucura dele. Basta olhar para ele, ao vivo, ou pela televisão, e até mesmo em fotos de jornais, para não se ter nenhuma dúvida, a menor dúvida de que o cara é louco e, conseqüentemente, precisa de tratamento e não de prisão. Desde o momento que ele sair daqui, pegar o taxi, chegar na Federal, se apresentar, etc. Tem que ser um louco. Não só a postura, mas as frases que ele tem que dizer, tudo, tudo, tudo. O penteado, tudo. E se eu te escolhi, depois de muito pesquisar, é porque eu sei, eu tenho certeza que você é o diretor adequado para isso. Confio em você, Camilo Filho. Sei que esse espetáculo, vamos dizer assim, será o maior desafio da sua carreira. O seu maior e melhor trabalho. Você terá o Brasil inteiro como espectador. Milhões e milhões de pessoas vão assistir esse seu trabalho ao vivo e a cores. Você não vai precisar ficar na porta do teatro, contando quantas pessoas pagam o ingresso. O seu espetáculo, Camilo querido, vai estar em todas as televisões do Brasil, durante horas, durante dias. Primeira página de todos os jornais. E esse espetáculo, querido Camilo, tem que ser, repito, tem que ser um sucesso de público e de crítica. O seu trabalho será visto do Oiapoque ao Chuí. Todas as classes sociais, os ricos e os pobres, os cultos e os ignorantes, católicos e igreja universal, em mansões e nas favelas. Não se fala em outra coisa hoje no Brasil a não ser no meu irmão. Ele é o personagem do momento. E eu te dou, de mão beijada, a direção do espetáculo. É pegar ou morrer.

 

CAMILO(literalmente de boca aberta) - Não sei o que dizer. Você está me propondo que eu, eu, seja cúmplice do assassinato de onze mulheres!

 

DAGOBERTO- Eu não estou te propondo isso. Estou te propondo dirigir um espetáculo teatral. Sei da sua capacidade. A estréia e as demais sessões têm que ser um sucesso. Casa cheia. Você não pode falhar, Camilo. Cem mil reais assim que ele der entrada no manicômio judicial. Dois anos para você e sua mulher em Paris, num apartamento já alugado em Marais, a um quadra do Sena. E tudo o que você está devendo hoje, pago. Assim que você disser o sim, hoje mesmo, já começamos a pagar todas as suas dívidas. Inclusive os 35 mil do apartamento. (pega o celular dele que está em cima da mesinha e coloca no bolso) Cê tá me entendendo?

 

CAMILO- Tô. Você foi de uma clareza shakesperiana. Ser ou não ser, não é mesmo?

 

DAGOBERTO- Aqui só vale o ser.

 

CAMILO- Tou fora, cara! Tou fora!

 

Dagoberto pega Camilo pelo colarinho, quase que o levantando.

 

DAGOBERTO-Acho que você não está me entendendo direito, rapaz!

 

CAMILO-cai em si)Duas perguntas. O seu irmão tem alguma experiência teatral?

 

DAGOBERTO- Nunca entrou num teatro. É bicho do mato mesmo. Não teve a sorte de ter uma mulher como a minha, formada em Letras, que fala inglês correntemente - precisava ver ela na Disney, arrasou! -, que mudou muito a minha vida. A Lourdes adora o seu trabalho, por exemplo. Foi com ela que eu aprendi a gostar e a entender de teatro. Gosto mesmo. Sempre que estou em São Paulo ou Rio reservo uma noite para o teatro. Escreve uns poemas, a Lourdes. Qualquer dia te mostro. Segunda pergunta.

 

CAMILO- Ele está sabendo desse seu plano?

 

DAGOBERTO- Claro. E, mais claro ainda, disposto a colaborar.

 

CAMILO- Mas eu estou falando em talento. A pessoa para interpretar tem que ter um mínimo de talento.

 

DAGOBERTO- Tem nada! Vejo muito ator sem talento aí na televisão.

 

CAMILO- Mas estamos falando em teatro. Tem que ser um ator muito bom para representar um papel desses. É um papel difícil. Vamos e venhamos!

 

DAGOBERTO- Estamos perdendo tempo, meu caro Diretor. Você tem que começar a ensaiar logo. Estreamos dentro de uma semana. A data e a hora da estréia já foram anunciadas. Deve sair nos jornais de amanhã. Você tem uma semana.

 

CAMILO- É pouco tempo.

 

DAGOBERTO- Repito: uma semana! Vinte e quatro horas por dia. Pelas suas perguntas, parece que aceitou a proposta. Sou um bom produtor. Pago em dia. Cumpro meus compromissos. Os figurinos também ficam por sua conta. Não era seu o figurino do Diário de um Louco?

 

CAMILO- Olha, realmente eu não sei o que dizer. Já dirigi espetáculo até dentro de ônibus, em buraco de metrô, ao ar livre/

 

DAGOBERTO- Pois agora vai ser via Embratel. Horário nobre. Oitenta milhões de espectadores.

 

CAMILO- E se não der certo?

 

DAGOBERTO- Você vai amanhecer boiando no Rio da Prata, em Buenos Aires. Você e o Badaró, é claro. (serve-se de outro uísque) Você precisa de algum material para o trabalho? Não quer mesmo uma dosezinha?

 

CAMILO(vai até o bar, dá uma virada do uísque e leva a mão imediatamente ao estômago) - Uma lousa e uma fita crepe. Preciso de umas horas para estabelecer um plano de trabalho. Traçar umas coordenadas.

 

DAGOBERTO- O seu quarto é o último do corredor. Ah, todas as janelas do apartamento têm grades. Não por você, mas sou eu mesmo que tenho um certo medo de olhar pela janela. Me dá vontade de pular. Dizem que isso é normal. Tem um nome isso.Todos os meus apartamentos têm grades. (estica a mão para Camilo)

 

Os dois dão um aperto de mãos, selando o contrato.

 

Camilo tira uma prancheta, já com papel, da mochila. Seu trabalho vai começar.

 

DAGOBERTO- Vem comigo. Vem conhecer o seu novo guarda-roupa. Tem a sua cara. Acta est fabula.

 

CAMILO- Como?

 

Dagoberto - Acta est fabula. Está representada a peça.

 

Os dois entram para os fundos, fechando a cena. Antes, porém, Dagoberto pegou o revólver na gaveta e girou no indicador, como os pistoleiros de cinema, bem teatral. Sorriu para si mesmo. Colocou na cintura, feliz. O homem estava contratado.

 

BLACK-OUT

 

Cena Dois

Quando abre a cena, Camilo está com o braço recostado na parte de cima de uma lousa verde, tamanho médio. Está olhando para Mario Alberto que está sentado na poltrona, olhando para ele. Na lousa está escrito:

 

               primeiro dia de ensaio

 

               rumo ao manicômio

 

CAMILO (já está com roupa que o Dagoberto arrumou para ele. A roupa é extremamente apertada, incômoda e cafona. Camilo está diante de Mario Alberto que não diz nada. Os dois estão sentados. Depois de longo silêncio, Camilo vai até o espelho e se olha) - Estou ridículo. Quem foi que escolheu essas roupas? Você? Se o seu irmão me conhecesse um pouquinho, como ele diz conhecer, não tinha me arrumado essas roupas. (fica em silêncio mais uma vez, esperando que Mario Alberto diga alguma coisa) Assim não vai dar, Mario Alberto. (Mario Alberto não fala nada, só olha para ele. Camilo começa a andar pela sala, preocupado) Mario Alberto, a primeira coisa que um ator tem que fazer para interpretar um papel é querer fazer esse papel. Gostar do papel. Esse papel ser o sonho da vida dela, entende? Quando você gosta do papel, fica fácil. Fazer é fácil. Claro que requer um mínimo de talento. Não posso ainda avaliar o seu talento, porque você está há quinze minutos aí me olhando e como é que eu vou conhecer você? A gente vai trabalhar junto, a gente precisa se conhecer antes. Precisa se conhecer, entende? Um tem que confiar no outro, está bem? É quase que uma coisa religiosa essa relação entre o ator e o diretor.

 

MARIO ALBERTO - Isso, pra mim, é coisa de viado!

 

CAMILO - (faz que não foi com ele) - Eu preciso saber o mínimo de você. Senão, não vai dar. Vai ficar um horror e nós três vamos dançar. Se você quiser dançar, o problema é seu. Acerto a minha parte com a produção, quer dizer, com o seu irmão, e tudo bem. Mas eu não posso dançar. Um dia, sei lá quando, sei lá se vou estar vivo, mas alguém vai ficar sabendo que fui eu quem dirigiu esse espetáculo. Então, já que eu aceitei esse desafio, vamos dizer assim, quero fazer o melhor possível. Sou profissional! Tenho fracassos, eu sei, mas foram fracassos da maior dignidade. Mas a hora, Mario Alberto, não é para fracasso. (fica andando e pensando um pouco) Nunca é demais lembrar o que o seu irmão disse: se você for preso os presos vão, muito provavelmente, te matar.

Novo silêncio longo entre os dois. Camilo começa a ler alguns dos jornais em cima da mesa.

 

CAMILO

 

- São todas muito iguais. O mesmo tipo físico, eu estou querendo dizer. Dentro daquele espírito de que a gente precisa se conhecer, eu queria te perguntar umas coisas. Você matou essas mulheres?

 

MARIO ALBERTO - Matei.

 

CAMILO - Quais?

 

MARIO ALBERTO - Todas.

 

CAMILO - Quantas mulheres você matou?

 

MARIO ALBERTO - Onze.

 

CAMILO (olhando o jornal) - Essa, você matou?

 

MARIO ALBERTO - Matei. Fui eu.

 

CAMILO - Como você matava as moças?

 

MARIO ALBERTO - Com o cadarço do tênis ou com uma cordinha que as vezes eu levava na pochete. Eu dava um jeito. (pausa, pigarros. Continua com a voz serena). Nunca contei isso pra ninguém, nem pra minha mãe. Eu tenho um lado ruim dentro de mim. É uma coisa feia, perversa, que eu não consigo controlar. Tenho pesadelos, sonho com coisas terríveis. Acordo todo suado. Tinha noite que não saía de casa porque sabia que na rua ia querer fazer de novo, não ia me segurar. Deito e rezo pra tentar me controlar. (longa pausa, fica olhando para Camilo). E você?

 

CAMILO - O que tem eu?

 

MARIO ALBERTO - Você não disse que a gente tem que se conhecer?

 

CAMILO (meio sem jeito) - Disse.

 

MARIO ALBERTO - Então. Me fala de você.

 

CAMILO - Falar o que?

 

MARIO ALBERTO - Falar, uai. Viagra, por exemplo. Você já usou Viagra?

 

CAMILO - O que é isso, cara? Também a gente não precisa entrar nessas intimidades.

 

MARIO ALBERTO - Ah, não? Você quer saber detalhes de como eu matava as meninas e vem me dizer que falar de Viagra é intimidade? (firme, quase autoritário) Você toma Viagra, não toma?

 

CAMILO - De onde é que você tirou isso, hein? Nunca tomei Viagra, cara.

 

MARIO ALBERTO - Assim não vai ser possível. Você está mentindo pra mim. Se é pra jogar honesto, você não pode mentir pra mim. Você não disse que a gente tem que confiar um no outro?

 

CAMILO - Nunca tomei Viagra!

 

MARIO ALBERTO (mostra um envelope de Viagra) - Caiu do seu bolso, ó. Olha aqui, ó. Viagra. Você é impotente?

 

CAMILO - Imagina.

 

MARIO ALBERTO - Então tá tomando pra quê? É bom mesmo? Verdade que o negócio fica tinindo? Dá quantas? Três, quatro? Quero saber, cara, vai que daqui a uns anos, né?

 

CAMILO - Só tomei uma vez.

 

MARIO ALBERTO - Aqui tá faltando duas.

 

CAMILO - Duas vezes. E não se fala mais nisso.

 

MARIO ALBERTO - Então me conta como é. Fica duro mesmo? Verdade que pode colocar toalha molhada que o bicho segura, não arreia?

 

CAMILO - Mario Alberto, com essa conversa a gente não vai chegar a nenhum resultado.

 

MARIO ALBERTO (sério, ameaçador) - Eu quero saber, cara! Eu preciso saber se esse negócio funciona. Vai, conta. Como é que é? Preciso saber. Depois a gente volta para o ensaio. Vamos, diz aí, o Estanislau fica duro mesmo? Estanislau é o nome do meu.

 

CAMILO - Fica. Fica duro.

 

MARIO ALBERTO - Quanto tempo?

 

CAMILO - Umas quatro horas.

 

MARIO ALBERTO - Fica duro quatro horas? Seguida?

 

CAMILO - Não, durante essas quatro horas, se você tiver desejo, ele fica duro. Bem duro.

 

MARIO ALBERTO - Paupacú?

 

CAMILO - Paupacú?

 

MARIO ALBERTO - Pau para cu!

 

CAMILO - Paupacú. (tentando descontrair o ambiente) Paupacú é bom. Gostei.

 

MARIO ALBERTO - E a sua mulher, como é com ela?

 

CAMILO - Olha aqui, cara... (percebe que pode levar uma porrada) Não transo com a minha mulher há alguns anos.

 

MARIO ALBERTO - E porque não larga ela?

 

CAMILO - Gosto de variar. Gosto de conquistar, entende? Gosto de novidades.

 

MARIO ALBERTO - Nesse ponto a gente é igualzinho. Só que quando eu fui casado eu não comia o - entende? - da minha mulher, não. Fui casado na igreja. Pra mim, bumbum de esposa é sagrado..

 

DAGOBERTO (vindo dos quartos) - Desculpa interromper, mas acho que tem que ser mais ação e menas conversa.

 

CAMILO - Duas coisas, deputado. Em primeiro lugar, é menos e não menas. Nem o Lula fala menas mais. Em segundo lugar, vamos dividir as coisas direitinho. Você é o produtor. Eu sou o diretor. Se você quiser dirigir, é outra coisa. Assim não vai dar certo.

 

DAGOBERTO (faz que nem ouviu) - Quer ver? Bebé, faz cara de louco, faz.

 

MARIO ALBERTO - O que?

 

DAGOBERTO - Faz cara de louco!

 

MARIO ALBERTO - Tá louco, Bebé? (Camilo senta-se, desanimado, e fica observando)

 

DAGOBERTO - Cara de louco! Vai, vai, faz cara de louco.

 

MARIO ALBERTO - Assim, ao natural, eu não tenho cara de louco?

 

CAMILO -   Infelizmente, não. Infelizmente.

 

O Mario Alberto faz uma cara tão esquisita, que Camilo nem entende. Mario Alberto está segurando a cara de louco.

 

DAGOBERTO -   EU SEI QUE NÃO ESTÁ BOM. O QUE VOCÊ TEM QUE FAZER, CAMILO, É CHEGAR NELE (CHEGA E VAI FAZENDO O QUE FALA) PEGAR NO BOCHECHA, OLHA, E IR MOLDANDO, LEVANTA MAIS UM POUCO AQUI, ABRE MAIS O OLHOS ASSIM, DESPENTEIA UM POUCO O CABELO. É ISSO QUE EU QUERO.

 

CAMILO (para si mesmo) - Vai ser uma luta! O que é isso?

 

DAGOBERTO - Cara de louco, ué. Tá ficando ou não tá? Bom serviço. E você, Bebé, vê se colabora.

 

Dagoberto sai. Camilo anda pela sala, em círculo, com as mãos para trás, segurando a prancheta.

 

CAMILO (para Mario Alberto) Vou te dizer um palavrão.

 

MARIO ALBERTO - Não enche.

 

CAMILO - Stanislavski.

 

Mario Alberto faz cara de quem não entendeu.

 

MARIO ALBERTO - O que? Estanislau? Tá a fim de me sacanear?

 

CAMILO - Stanislavski. É russo, um nome russo.

 

MARIO ALBERTO - Quer dizer o que?

 

CAMILO - É o nome de um cara. Constantino Stanislavski. Se você vai ser ator precisa conhecer esse cara.

 

MARIO ALBERTO - Olha aqui, cara,primeiro eu não vou ser ator coisa nenhuma. Esse negócio que o Bebé tá inventando, sei não. Ator. Depois, não estou a fim de conhecer mais ninguém, estou te conhecendo porque é o jeito. E mais ninguém. Ainda mais russo, vou falar o que com o cara?

 

CAMILO -Já morreu.

 

MARIO ALBERTO -Quem?

 

CAMILO -Esse cara, o Stanislavski. Morreu há mais de 50 anos. Esse cara foi um ator e diretor de teatro russo que inventou um sistema, um método pra fazer um ator criar um personagem. Eu quis dizer que você precisa conhecer o que ele disse, o que ele pensou. Pra representar um louco, Stanislavski pode te ser muito útil.

 

MARIO ALBERTO - Olha aí, manda eu fazer cara de louco, andar de louco, voz de louco e fim de papo.

 

CAMILO - Faz.

 

MARIO ALBERTO -O que?

 

CAMILO -O que você disse pra eu mandar você fazer. Cara de louco, voz de louco, andar de louco.

 

MARIO ALBERTO (Tentando. O resultado é um horror, pior do que ator de novela imitando nordestino.) - “Eu não sei do que vocês estão falando, eu gosto de sorvete... eu... que luz forte é aquela?”

 

CAMILO (Morre de rir) - Cadeira elétrica. (Ri mais) Cadeira elétrica. Vão te mandar pra cadeira elétrica. Vão aprovar a pena de morte só pra matar esse teu louco. (Ri ainda mais)

 

MARIO ALBERTO - Foi a primeira vez. Você não é diretor de teatro? Então diz como é cara de louco que eu faço.

 

CAMILO -Por isso eu te falei em Stanislavski. O jeito mais seguro, mais, mais eficiente de alguém fazer bem um personagem é usando o sistema do Stanislavski. Na Rússia eles passam quatro anos aprendendo. Mesmo nas escolas de teatro do Brasil, isso leva tempo. E, por outro lado, tem professor que mistura Stanislavski com, sei lá, com banana, tem outros que fazem qualquer coisa e dizem que é Stanislavski, enfim, já existe uma confusão danada. Imagine, o cara morreu há cinqüenta anos, muita gente já escreveu sobre o que ele disse. Só podia mesmo dar muita confusão. Mas assim mesmo ainda é a melhor maneira. De que ator você gosta?

 

MARIO ALBERTO Aquele do Poderoso Chefão.

 

CAMILO - Pois o Marlon Brando aprendeu a representar com o método do Stanislavski. Uma adaptação americana do método do Stanislavski. Numa escola dos Estados Unidos chamada Actor’s Studio, onde alguns dos melhores atores do cinema estudaram.

 

MARIO ALBERTO - Você não quer dizer que eu posso virar um Marlon Brando. Vou?

 

CAMILO - Também não é assim.

 

MARIO ALBERTO - Se não dá pra aprender a fazer cara de louco, se por esse tal método aí do russo, depois de estudar quatro anos, eu posso só saber representar soldado, então vamos chamar o Bebé e acabar logo com essa bobagera.

 

CAMILO -   Só que essa bobagera vale a tua vida. Posso até te desanimar mais. Na principal escola russa de teatro, eles passam o primeiro semestre só olhando para objetos, servindo água, segurando um copo, mudando uma cadeira de lugar, depois mais um semestre inventando umas historinhas bem simples para representar com um companheiro, e o professor só olhando, comentando, sem mandar nada. Só lá pelo quarto semestre os alunos começam a trabalhar com personagens de verdade. E a gente aqui só tem uma semana. O próprio Stanislavski ia desistir.

 

MARIO ALBERTO - O próprio Estanislau e o próprio animal aqui. Prefiro fugir pro Paraguai.

 

CAMILO -   Mas eu também posso te animar um pouquinho.

 

MARIO ALBERTO - Sabe do que mais? Vão se danar, você e o Estanislau.

 

CAMILO - Olha só, Mario Alberto. Quando uma pessoa está começando a estudar teatro e quer representar um assassino, o professor que usa o método russo geralmente diz que esse personagem, um assassino, não serve para quem está começando. Porque o aluno não vai encontrar dentro dele nenhum sentimento que possa usar para representar um assassino, que é melhor representar um homem abandonado pela mulher, porque isso todo mundo já viveu, um homem que se apaixona pela mulher de um amigo, porque isso todo mundo já viveu, alguém que perdeu um parente querido, porque isso todo mundo já viveu - enfim, situações que possam se valer de sentimentos que a pessoa já provou. Que personagens que precisem de sentimentos que não se provou é melhor deixar para os alunos mais adiantados, do quarto ano, que podem “inventar” esses sentimentos. Pois bem. Você já pode representar um louco que mata uma pessoa. Porque você já matou, já conhece esse sentimento.

 

MARIO ALBERTO - Quer dizer que na escola do Estanislau assassino já entra no quarto ano?

 

CAMILO -   Mario Alberto, me escuta com atenção. A gente vai ter que trabalhar e muito. Aquela cara que você fez, era de tudo, menos de louco. E o meu trabalho é pegar essa cara que você fez aí e ir moldando, como se fosse de barro, até ficar com cara de louco. Mas não pelo método do seu irmão. Sou mais o Estanislau.

 

MARIO ALBERTO - Não vai dar certo.

 

CAMILO (nem ouviu) - Essa noite, por exemplo, fiquei pensando no seu personagem. Porque, pra começar, eu tinha que optar entre criar um louco manso ou um louco doido. Está entendendo? Achei que essa era a meta inicial. O começo do começo, o começo do processo. Porque são duas interpretações completamente diferentes, distintas uma da outra. Um louco manso não tem nada, absolutamente nada, a ver com um louco doido. São enfermarias completamente diferentes.

 

MARIO ALBERTO - E eu, você pretende o que? Sou louco o que?

 

CAMILO -   Manso, é claro. Manso. Mas manso com dois lados. Um Louco-Manso-Calmo, durante a maior parte da sua vida. Mas que se transforma num Louco-Manso-Doido quando mata, quando planeja seus crimes. Então temos que trabalhar em cima do Louco-Manso-Calmo e do Louco-Manso-Doido, porque vamos usar os dois, os seus dois lados. Deixando, definitivamente de lado, o Louco-Doido-Simples.

 

Entra Dagoberto, dos fundos, com sanduíches.

 

Dagoberto coloca o embrulho em cima da mesa, senta-se para assistir ao ensaio. Camilo interrompe o clima.

 

DAGOBERTO - Pode continuar.

 

CAMILO (se aproxima dele) - Sabe o que é, deputado, é que. Confia no meu trabalho, não confia?

 

DAGOBERTO - Claro. Aliás, toma isso. (Camilo pega, lê, sério, sabe o que aquele papel significa para ele) É o recibo do pagamento. Depositei 35 paus na sua conta, preenchi aquele me você me deu e entreguei lá no escritório. Olha aí, com firma reconhecida e tudo. Diz que te manda a escritura definitiva na semana que vem. Pode confiar, mandei investigar, a imobiliária é honesta. E, caso não fosse, ficaria sendo, percebes?

 

CAMILO (se afasta com o papel na mão, olhando, sabendo que já recebeu a primeira parcela do seu trabalho) - Deputado, é o seguinte.

 

DAGOBERTO - Nem pra agradecer? Perdi a manhã toda com isso.

 

CAMILO - Eu tenho uma maneira de trabalhar que é a seguinte: a produção tem que ficar de fora. Já disse isso uma vez. Produtor assistindo ensaio só dá complicação. Vai por mim. Tou há mais de trinta anos no ramo. Nunca deu certo. E não vai ser num trabalho como esse, dificílimo, que a coisa vai ser diferente.

 

DAGOBERTO -Tudo bem, tudo bem. (levanta-se) Mas eu, como produtor e investidor, preciso saber sempre a quantas anda o trabalho.

 

CAMILO - Claro, te faço um relatório todo dia.

 

DAGOBERTO - Senti firmeza. E o ator aí, como é que vai? Faz cara de louco, faz.

 

CAMILO - Por favor, deputado. De novo, não. (...) Se ele não colaborar, não vestir a camisa do personagem, não incorporar.

 

MARIO ALBERTO - Bebé, eu acho mais fácil ir para o Paraguai. O presidente é teu amigo/

 

DAGOBERTO - Não é mais ele. Mas que Paraguai, Bebé. A gente vai tirar isso de letra. (sai)

 

Mario Alberto senta-se novamente. Camilo senta-se na frente dele)    

 

CAMILO -   Me conta da tua tia.

 

MARIO ALBERTO - (irritado) O que? Que tia, meu? Como é que você tá sabendo disso? Bebé! Bebé (volta Dagoberto)

 

DAGOBERTO - O que é?

 

MARIO ALBERTO - Tu tinha que contar da tia Daví pra ele? Tinha? O que que tem a tia Daví com o fato deu virar louco?

 

CAMILO - Tudo.

 

MARIO ALBERTO - Dagoberto, eu não sabia que era assim não, esse negócio. O cara parece médico de louco! Vai logo pegando duro, indo lá na ferida. Eu achei que representar era só fazer a cara, o jeitão e pronto. Assim é difícil demais, meu!

 

CAMILO - Tá vendo, deputado, assim não vai dar. Ele tem que entender que pra gente trabalhar junto, eu tenho que saber quem é ele.

 

MARIO ALBERTO - Por acaso eu estou aqui perguntando se você comeu a sua tia?

 

CAMILO -   Não é bem isso.

 

MARIO ALBERTO - Claro que é bem isso.

 

DAGOBERTO - Você quer desistir no primeiro dia?

 

CAMILO - Olha, deputado, eu tenho uma amiga que, além de figurinista, é psicóloga. Na verdade ela era psicóloga, formou comigo, mas como a profissão dela. Sabe como é, né? Tem psicóloga demais no Brasil. Toda garota que tem problema com o pai, vai estudar psicologia. Já existem estatísticas sobre o assunto. Tá certo que tem muito louco no Brasil, além de nós três. Mas que tem mais psicóloga do que louco, isso tem. Mas é uma puta figurinista e eu estava pensando. A parte psicológica da personagem.

 

MARIO ALBERTO - Do personagem. Qualé, meu?

 

DAGOBERTO - Mas o que é isso? Pensando em trazer toda a sua equipe pra cá? Daqui a pouco vai querer chamar a imprensa para assistir ensaio aberto. Já disse, se não disse digo agora, que os figurinos são seus também. Querendo descolar uma graninha para a sua amiga, as custas de moi? O que que há?, tá de caso a menina?

 

CAMILO - Mas não é por isso. É que ela podia/

 

DAGOBERTO (cortando) - Camilo, cê tá pensando que eu nasci ontem? Você acha que eu sou assim ó, com os homens, por que?

 

CAMILO - Melhor parar com essa loucura. Falando de empregado pra patrão. Esses 35 paus ficam por conta do meu silêncio. Uma palavra de honra. Agradeço muito, pode confiar em mim.

 

DAGOBERTO - Tem nada de palavra de honra, não! Continua isso aí. E você, Bebé, vê se colabora. Senão, já disse, vão te matar. Os presos não perdoam. E, ainda por cima, te estupram antes! E eu, como é que eu fico com um irmão morto numa situação dessas?

 

Sai.

 

Camilo vai até a mesinha, corta um sanduíche de mortadela pelo meio com as mãos e começa a comer, olhando para Mario Alberto que não está nem aí. Olha pela janela.

 

MARIO ALBERTO - (olhando pela janela) - Gostosa! Sobe aqui, sobe.

 

CAMILO (se aproxima, interessado) - Qual?

 

MARIO ALBERTO - A de calça lee. Isso que me deixa doido. São daquele jeito, sabe? Morena, “meia” baixa, “meia” alta, quase abaianada, quase mulata, o cabelo quase ruim, que desce moreno, mas todo enroladinho. Se for meio aloirado, melhor ainda. Mas aí já é pedir demais. Deus não é tão grande assim. Os beiços. Os beiços são fundamentais. Mulher tem que ter beiço. Essa aí eu comia inteira. Ia arrancando pedacinho por pedacinho na dentada. Adoro comer mulher crua.

 

CAMILO (dando força pra ele continuar, pois não entendeu o comer que Mario Alberto se referia)) - É, beiço é fundamental. E a bundinha, como é que você gosta da bundinha?

 

MARIO ALBERTO - Arrebitadinha, é claro. Mas não muito. Um pouquinho de culote só. Só um pouquinho, daqueles que deslizam-presos pela calça bem justinha, sabe? Bem justinha mesmo. Se peidar, arrebenta.

 

CAMILO -   E os peitinhos? Durinhos?

 

MARIO ALBERTO - Igual daquela. Olha lá, vai virar a esquina, a sacana. No final, cara, eu mandava elas tirar a roupa, mas ficar de calcinha e soutien. Mulher inteira pelada não é muito legal, não. Dá a impressão que estão frias, já notou? Mulher tem que ter alguma coisa em cima do corpo. Nem que seja um curativo no joelho, meio de lado, meio solto. Tem que ficar de calcinha pra eu poder arrancar com os dentes. Mas não é vontade de transar que eu tenho, cara, eu tenho vontade é de comer. Comer igual coxinha de galinha. Segurando assim dos dois lados, com as mãos, meter a boca, se lambuzar todo. A coisa escorrer pelo pescoço da gente. Chupar a pele, devagarinho, sem pressa. A última eu quase comi inteira.

 

CAMILO (percebeu que estava indo longe demais) - OK, OK, Mario Alberto. Senta aqui.

 

MARIO ALBERTO (limpa o suor) - O culote é a melhor parte. Podes crer! Filé mignon puro!

 

Toca o telefone. Silêncio. Dagoberto entra e atende.

 

DAGOBERTO (antes de atender) - Ou é o doutor Paulo ou o seu argentino. Só os dois tem o telefone daqui. (atende) Doutor Paulo? Um momento. (sai com o sem fio)

 

CAMILO - Esse doutor Paulo é o seu advogado?

 

MARIO ALBERTO - Não, é o homem do partido dele aqui em São Paulo. Donde é que você pensa que vem essa grana toda que você está ganhando, meu?

 

CAMILO - Quer dizer que tem mais gente que sabe disso aqui?

 

MARIO ALBERTO - O nosso advogado e o doutor Paulo.

 

CAMILO -   Esse doutor Paulo? É quem eu estou pensando?

 

DAGOBERTO - E eu sei lá em quem você está pensando.

 

Camilo se levanta, vai comer o outro pedaço do sanduíche. Mario Alberto também se serve de comida e abre mais uma garrafa grande de coca. Ficam os dois comendo em silêncio.

 

CAMILO - Precisamos arrumar um nome para esse seu personagem.

 

MARIO ALBERTO - Como é que é? Como, nome?

 

CAMILO - Todo personagem tem um nome. Você é o Mario Alberto, assim. Mas o que estamos criando é uma outra pessoa. Essa é a magia do teatro. A gente virar, por um período de tempo, outra pessoa. Enganar o público, entende? Então esse nosso personagem tem que ter um nome. (fica olhando para o sanduíche, pensando) Vai se chamar Irmão Beltrão.

 

MARIO ALBERTO - Irmão Beltrão? Por que Irmão Beltrão?

 

CAMILO - Não sei. Bateu. Bateu forte. Talvez tenha vindo na minha cabeça o Nelson Irmão Beltrão um velho amigo, irmão, que morreu. Morte besta. Puta ator, morrer daquele jeito. Ele dizia pra mim que o sobrenome dele, Irmão Beltrão era, na verdade, Mario Alberto. As mesmas letras, sabe?, misturadas. Tem um nome esse negócio das mesmas letras, que me fugiu agora. Tô vendo a palavra na minha frente, mas não vem, entende? Como é mesmo o nome dessa porra, meu?

 

MARIO ALBERTO - Quer dizer que é assim que dá nome para o personagem? Bateu? O cara que inventou o Tarzã, por exemplo. Tava assim, comendo um sanduíche e de repente falou Tarzã! e virou Tarzã?

 

CAMILO - Provavelmente.

 

MARIO ALBERTO - O Batman também?

 

CAMILO - Provavelmente.

 

MARIO ALBERTO - E você acha legal Irmão Beltrão, pra mim?

 

CAMILO - Se você colaborar, pode dar um ótimo Irmão Beltrão. Um Irmão Beltrão inesquecível. Para você e para mim. Faz aí, de novo, a cara de doido? (ele faz, igual da primeira vez) Sabe que melhorou?

 

MARIO ALBERTO - É mesmo?

 

CAMILO - Te juro

 

B.O.

  

 

CENA Três

Camilo está vestido como uma beata de trinta anos, dos anos 50. Caricatural, teatral, mesmo. Sentado, lendo o jornal. O Mario Alberto está tomando sua coca e comendo um pedaço de pizza.

 

CAMILO - Tenho certeza que você não leu o jornal, né?

 

MARIO ALBERTO - Sobre mim? Conta aí.

 

CAMILO - Estão dizendo aqui que você foi visto na Bolívia, em Cochabamba.

 

MARIO ALBERTO - Ja-já vão dizer que eu sou traficante.

 

CAMILO - Ja-já, não. Tá aqui. Tem uma declaração aqui do promotor, muito interessante: “estamos no rastro dele. É questão de horas. Estamos estudando e analisando as possíveis relações dele com o tráfico da cocaína, via São José do Rio Preto”.

 

MARIO ALBERTO - Porra!

 

CAMILO - E tem duas sobreviventes que disseram que você tem ejaculação precoce. Isso é verdade?

 

MARIO ALBERTO - Tá vendo, a gente não mata, dá uma de legal com as minas e elas saem dizendo uma barbaridade dessas por aí. Ninguém é sério nesse país.

 

CAMILO - Tem ou não tem?

 

MARIO ALBERTO - O que?

 

CAMILO - Ejaculação precoce.

 

MARIO ALBERTO - Depende do que você entende por ejaculação precoce. Pra você, quantas bombadas são?

 

CAMILO (vai até a janela com sua roupa ridícula) - Taí uma boa pergunta. Digamos umas cinqüenta.

 

MARIO ALBERTO - Cinqüenta, meu? Assim arrebenta. Tenho fimose. Não passo da décima. Mas sabe o que é isso? É que elas ficam apavoradas, não gozam e depois vem por a culpa em cima da gente.

 

CAMILO - E com esse travesti aqui, como é que era?

 

MARIO ALBERTO - Não acredito! Até isso? (vai pegar o jornal da mão de Camilo) Com foto e tudo? Mas que filho da puta.

 

CAMILO - Tá dizendo aí que você viveu um ano e meio com a, Talita, né?

 

MARIO ALBERTO - Olha só o que a filha da puta tá dizendo aqui. Que eu era o passivo. Passivo é o que dá, não é? Eu, o passivo, Talita? Eu? Olha aqui, cara, eu vou te dizer uma coisa. Lá na Bahia, onde eu nasci e depois no interior do Tocantins, esse negócio de dar a bunda é sério. Nem a esposa chega perto da bunda da gente. Não é quenem aqui no sul, onde parece que soltaram o fiofó de vez. Isso, pra mim, é uma coisa muito séria. Ainda mais um homem. Nunca dei! Nunca! E nunca beijei na boca! Nunca.

 

CAMILO (pega o jornal novamente)- Realmente, tem coisa melhor na praça.

MARIO ALBERTO - Eu sei o que foi! Quando eu larguei a bicha, tem mais de ano isso, ela me disse, toda molhada de lágrimas: “se você levar o vibrador italiano, eu azaro com você, um dia. Eu azaro com a sua vida! Você não me conhece, bofe”! Vingativa filha de uma puta!

 

CAMILO - Você levou o vibrador?

 

MARIO ALBERTO - Claro. Caríssimo. Italiano, importado, de primeira. Lavei muito bem lavadinho e levei comigo.

 

CAMILO - Vamos trabalhar, vamos.

 

MARIO ALBERTO - Passiva, essa é muito boa!

 

CAMILO - Vamos lá, faz de conta que eu sou a tia Daví.

 

MARIO ALBERTO - Já disse, cara, se você ficar aí vestido de mulher eu não ensaio. Você não vive falando em concentração? Como é que eu vou me concentrar com você vestido desse jeito? Cê tá ridículo, cara! E depois, o passivo sou eu?! A Roberta Close, por exemplo. Porque tudo depende do ponto de vista. A Roberta Close, por exemplo: não era um homem com peito. Era uma mulher com pau. Uma senhora mulher com pau! Mulher com pau é tudo que todo homem sempre pediu a Deus, não é? Não é? Aquilo que é bunda de homem! Burra, foi cortar o pau, ficou normal. Comer bunda de mulher é fácil. Quero ver é comer de homem! Tem que ser macho pra caralho.

 

CAMILO - É, uma bela bunda.A da Roberta Close (cai em si). Eu parto do princípio que tudo começou com a sua tia. Quantos anos você tinha?

 

MARIO ALBERTO - Nove, dez. Pára com isso, já estava entrando na sua.

 

CAMILO - Ela mandava você tirar a roupa?

 

MARIO ALBERTO - Não adianta, cara!

 

CAMILO - Eu acho que você não estima tanto essa sua vida, não. Vamos fazer a cena. Tira a roupa.

 

MARIO ALBERTO - O que? Quer que eu fique pelado na sua frente? Pensa um pouco no que você está querendo.

 

Black-out

 

Cena Quatro

Camilo está sozinho na mesa, fazendo umas anotações. Veste um roupão vermelho. Descalço. Entra, da rua, Dagoberto. Sempre que ele vem da rua, está disfarçado.

 

DAGOBERTO- Cadê o Irmão Beltrão?

 

CAMILO- Dormindo. O ensaio hoje foi meio exaustivo. Mas valeu. Houve um pequeno progresso.

 

DAGOBERTO- Ótimo. Amanhã o doutor Melão, o advogado, vai avisar a imprensa que o Mario Alberto se apresenta dia 3. Daqui a quatro dias, portanto.

 

CAMILO(cheio de dedos) - Eu queria te pedir uma coisa. Vamos ter que adiar a estréia.

 

DAGOBERTO- Vou fazer que não ouvi.

 

CAMILO- Uns dois ou três dias. No mínimo!

 

DAGOBERTO- Não tem lido os jornais, não? O cerco está se fechando. E se pegam ele aqui, com você aqui dentro, tá todo mundo perdido. Fudido! Você então, nem se fale.

 

CAMILO- Como diretor eu queria explicar que/

 

DAGOBERTO- Diretor, o caceta! Você é cúmplice! Cúmplice! Coloca isso nessa sua cabecinha! Você tá tão metido nisso quanto eu e ele! Vai acordar o cara! Quero ver resultados. Tu tem mais quatro dias. E não se fala mais nisso. Como é que está o Bebé?

 

CAMILO(depois de longo e reflexivo silêncio) - Você sabe o que, da história da sua avó com as rolinhas?

 

DAGOBERTO- Minha avó? Minha vó já morreu, cara. As duas. Sei lá há quanto tempo. Rolinha? Você disse rolinha? Rolinha, passarinho?

 

CAMILO- Ele contou hoje num laboratório.

 

DAGOBERTO- Laboratório?

 

Jogo de luz transforma um pedaço do palco em Espaço do Irmão Beltrão. Mario Alberto está deitado, sonhando, levanta-se de repente, suando, arfando.

 

MARIO ALBERTO- De novo, de novo a vovó! Eu só estava brincando, vovó! Era só uma brincadeirinha. Olha aí, nem tirei as penas.

 

CAMILO(se aproxima, fazendo a vó) - Assassino! Você é um assassino! Você matou as rolinhas e ia fritar as rolinhas! Monstro! Você é um monstro!

 

MARIO ALBERTO- Me dá as rolinhas! Eu quero comer as rolinhas! Fui eu que matei! As rolinhas são minhas! Se não deixar eu fritar as rolinhas eu vou comer as rolinhas cruas! Vou comer as rolinhas cruas! Cruas! Cruas!

 

CAMILO(vó) - Assassino! Monstro! (pega todos os jornais que estão espalhados pela sala, falando do caso do tarado, e vai jogando em cima dele)

 

Mario Alberto deita-se novamente, resmungando e volta a dormir. Luz normal.

 

DAGOBERTO- Precisa fazer essa zona toda para dirigir um louco?

 

CAMILO- Foi bom você usar essa expressão: louco. Não sou nenhum psiquiatra, mas acho que o seu irmão não precisa de nenhum diretor para se transformar em louco. Com todo o respeito, deputado, o rapazinho é louco. E não é de hoje, não. Talvez seja o fato de ser muito mais novo que os irmãos, acho que abusaram um pouco dele. Pirou.

 

DAGOBERTO- Abusaram como? Quem abusaram?

 

CAMILO- O que você acha da tia DAVÍ?

 

DAGOBERTO-Tia DAVÍ? Com todo o respeito à senhora minha mãe, mas a tia Davítá gostosa até hoje. É tia, mas é mais nova do que eu. Mais velha que o Bebé, é claro. Devo reconhecer que é meio assanhadinha, a danada. Ela é bem mais velha do que ele. Maxima debetur puero reverentia.

 

CAMILO - Como?

 

DAGOBERTO - Deve-se à criança o máximo respeito.

 

CAMILO- Ela é só dez anos mais velha. Quando o Mario Alberto tinha 9, ela tinha 19. O Mario Alberto me descreveu ela, em detalhes. Sabe o mais incrível de tudo? Ela, a tia Daví, tinha a mesma idade e o mesmo tipo físico das meninas que ele matou.

 

DAGOBERTO- Não estou entendendo onde você quer chegar.

 

CAMILO- Essa sua tia, deputado, com todo o respeito e decoro parlamentar, mas essa sua tia não passa de uma grande puta! Um putinha! Não tem nada de meia puta, a danadinha, não.

 

DAGOBERTO- Minha tia? Você acha mesmo necessário descobrir que a minha tia era ou é uma putinha, para o Mario Alberto representar um louco?

 

CAMILO- Fundamental. E você, ela nunca?/

 

DAGOBERTO- O que é isso?

 

CAMILO- É importante para o tratamento, quer dizer, para o trabalho.

 

DAGOBERTO(pensa muito, senta-se) - Uma vez ou outra.

 

CAMILO- E você gozou?

 

DAGOBERTO- Onde é que você quer chegar, rapaz?

 

CAMILO- O Mario Alberto tem fimose, sabia? Dói, dói muito, me disse ele no laboratório. Não consegue ter penetração. É como se ele se defendesse da dor, gozando rápido, entende? Dói e ele goza! E acho que ele também tem problema de ereção. Ficar de pau duro, entende?

 

DAGOBERTO- Me conta uma coisa: toda direção sua é assim, é? Precisa saber se o cara tem ejaculação precoce, se tem fimose, se dói, o escambau?

 

CAMILO- O ator, não, mas o personagem, sim! O que eu quero te dizer é que nós já chegamos, nessa primeira fase do trabalho, às causas da loucura dele. Loucura que ele está acostumado a interpretar maravilhosamente bem, quando convence as vítimas a irem para a Cantareira com ele. Quando o lado ruim dele - usando palavras dele - vem à tona e ele interpreta, matando, tentando comer a carne das vítimas.

 

DAGOBERTO- Ele te contou tudo isso?

 

CAMILO- Você vê que o trabalho está indo bem.

 

DAGOBERTO- Então, quer adiar a estréia por quê?

 

CAMILO- Porque eu já consigo fazer com que ele interprete o Irmão Beltrão quando a cena se refere aos crimes. Mas nós temos que conseguir que ele seja Irmão Beltrão sempre. Na vida normal, aqui, comendo pizza com a gente. Fazer com que ele saia definitivamente do lado bom e assuma para sempre - pelo menos por um bom tempo - o lado ruim. Aí sim, posso lhe garantir, assino embaixo.

 

DAGOBERTO- Irmão Beltrão? Mas se ele ficar louco o tempo todo, não pode ser perigoso? Pra ele e pra todo mundo? Para nós, por exemplo?

 

CAMILO- A gente tem que correr esse risco. O trabalho está nesse ponto. Foi por isso que eu marquei essa reunião. Se os políticos quisessem, nobre deputado, o Brasil teria, de graça, tratamento psiquiátrico. Posso te garantir que nada disso estaria acontecendo. Mas como a política/

 

DAGOBERTO- Não vem com papo de PT pra cima de mim, não. Vamos voltar para a reunião. E se, depois, ele nunca mais sair desse lado louco total, digamos assim?

 

CAMILO- Sai. Ele sai. Outra coisa: você sabia que ele morou um ano e meio com um travesti?

 

DAGOBERTO- Peraí. Aí você está indo longe demais. Isso já é invenção da mídia.E você acreditou. Intelectual acredita em qualquer coisa!

 

CAMILO- Você é o produtor. Não posso esconder nada de você.

 

DAGOBERTO- Você acreditou nisso?

 

CAMILO- Talita. Talita é o nome do travesti. Tá no jornal de hoje.

 

DAGOBERTO(pega o jornal) - Porra, meu, quando você falou em travesti, eu logo pensei numa gostosona. Mas olha isso. Isso não é travesti nem aqui, nem na China. Isso é um autêntico viado. (volta a si) Não acredito! Um irmão viado? Você está doido. O doido aqui é você. (pensa um pouco) Mas ele só comia, né?

 

CAMILO- É o que ele diz fora dos ensaios. Nos ensaios, é bem diferente. Desculpa, mais uma vez, mas ele dava, deputado. O seu irmão dava o fiofó para o Talita. Só assim ele gozava total. Com alguém massageando a próstata dele.

 

DAGOBERTO- Não acredito! Não acredito! Nenhum Pereira Barreto deu a bunda, jamais! Jamais, entendeu? Esse cara sempre foi um tarado. Não leu os jornais todos, não? Quem deve dar a bunda é o tal do Irmão Beltrão, que você inventou. O inverso dele. O Mario Alberto, não. Ponho a minha mão no fogo.

 

CAMILO- Deputado, o Irmão Beltrão não existe mais. Eu não quero mais transformar o Mario Alberto em Irmão Beltrão. Esqueci o Irmão Beltrão. Quero transformar o Mario Alberto no Mario Alberto mesmo.

 

DAGOBERTO- Você é doido. Imagina o meu irmão dando o rabo Pegando num pau. Tá louco, cara! Tá querendo ser substituído?

 

CAMILO- Você quer ver?

 

Camilo bate uma palma, forte, voltamos a contar com o Espaço do Irmão Beltrão. Camilo vai se aproximando, deixa o roupão cair e vira Talita. Acaricia Mario Alberto que dorme debaixo dos jornais.

 

MARIO ALBERTO- Talita?

 

TALITA - Meu gato, vem cá, vem. Pega aqui. Olha como ele está gostosinho, olha. Pega, pega.

 

Mario Alberto vai aproximando lentamente e esticando as mãos. Dagoberto fica nervoso, pega o revólver.

 

DAGOBERTO- Se ele pegar eu te mato. Mato você e ele!

 

Camilo sai da cena e vem falar com Dagoberto. Mario Alberto fica dançando com os jornais, uma coisa meio de Odalisca.

 

CAMILO- Presta atenção no que eu vou te dizer, deputado. Mas muita atenção mesmo porque estão acontecendo coisas fundamentais dentro do trabalho, do processo. O simples fato de pegar no pau, por exemplo.

 

DAGOBERTO- Simples fato de pegar no pau? Simples fato? Você fala como se todo mundo por aí andasse pegando no pau dos outros. Só se for assim na classe teatral. Lá em Brasília a gente não faz essa senvergonhice, não. Não conheço nenhum deputado que pega no pau em Brasília. Teve o..., mas aquilo era boato. Aliás, acho que nem as deputadas de Brasília nunca pegaram num pau. Pegar num pau é uma coisa muito séria, rapaz!

 

CAMILO- Digamos que, como Mario Alberto - personagem! - ele pega no pau. Não como ator, como seu irmão. Como personagem. Pela minha experiência, deputado, com mais de trinta peças dirigidas, depois de trabalhar com mais de quinhentos atores, posso te garantir que ator que nunca pegou num pau na vida real não sabe interpretar personagem que pega no pau no palco. Para o ator, pegar no pau é uma das coisas mais difíceis que tem.

 

DAGOBERTO- O que você quer dizer é que se o personagem pega bem no pau é porque o ator pega bem no pau?

 

CAMILO- É isso aí, deputado.

 

DAGOBERTO- Agora sou eu que quero que você me escute com toda a atenção: não está nem um pouco fora de cogitação eu mandar matar vocês dois. Você e o Bebé. E mando fazer de um jeito, que todo o Brasil vai acreditar que a tal da Talita era você mesmo, o diretor Camilo Roberto Campos de Morais Filho. Tenho toda a cobertura em Brasília para armar isso. Não está fora de cogitação, não. Te cuida, malandro. Você não tem idéia de onde se meteu. E só tem uma maneira de você sair vivo, consagrado e feliz disso tudo. (toca o telefone, ele atende) Pois não. É ele mesmo. Aguardo, sim. (para Diretor) O doutor Paulo. Alô? Como vai doutor Paulo? Vi a pesquisa, sim. Não vai dar outra. (...) Está indo muito bem. Acho que vai dar tudo conforme o combinado, doutor Paulo. (...) Acho, não. Tenho certeza! O nosso diretor é mesmo muito criativo, digamos assim. Lá no Palácio tá tudo em cima, né? Puxa, custou caro, hein doutor Paulo? (...) Já disse, doutor Paulo. Pode ficar tranqüilo. O Tocantins é nosso! Aquilo lá tem mais ouro que mil serraspeladas. Tranqüilo. Pode dormir tranqüilo. Outro. (desliga) Ouro, meu querido Camilo, que poderá ser seu. Uma parte, é claro. São hectares e hectares de ouro. Tudo de ouro. É cavar e sair pru abraço! (coloca a mão no ombro do Camilo, paternal, produtor) Só que, para isso acontecer, meu querido diretor, a partir de agora, está proibido, aqui dentro desde apartamento, de alguém pegar no pau de quem quer que seja, seja ele personagem ou civil!!! Mais loucura, menas sacanagem!!!

 

CAMILO(quase que só para si mesmo) - Não é menas, nobre deputado...

 

MARIO ALBERTO - (que, lentamente, dançara o tempo todo) Se for solto, sou capaz de engolir uma mulher.

 

Black-out

 

CENA Cinco

Agora Camilo está com uma roupa excessivamente larga. Mais cafona ainda. Estão em silêncio. Camilo se olhando no espelho, admirando seu jeitão. Mario Alberto, de repente, como milagre, diz:

 

MARIO ALBERTO (olhando para o teto, distante) - Eu falo o que elas querem ouvir.

 

CAMILO (Fica quase boquiaberto) - Repete isso.

 

MARIO ALBERTO - Isso, o quê?

 

CAMILO - Isso, que você acabou de falar.

 

MARIO ALBERTO - Eu falo o que elas querem ouvir. Isso? É tão importante assim?

 

CAMILO - Foi a coisa mais importante que você disse nesses cinco dias de ensaio. Eu falo o que elas querem ouvir.

 

MARIO ALBERTO - Você é doido, cara. Falei nada demais. Quando eu quero que elas entrem na minha, falo o que elas querem ouvir. Só isso!

 

CAMILO - Fala mais sobre isso. O que é que elas querem ouvir? (senta-se no chão com a prancheta) Parla!

 

MARIO ALBERTO - Quando eu acordava mal, quando eu tinha o pressentimento que o meu lado maléfico ia aflorar naquele dia, era foda. Quando eu acordava transpirando bastante, todo ofegante, eu já sabia que alguma coisa ia tomar o meu ser e coisa ruim ia acontecer. Eu saia patinando - eu patino muito bem - por aquelas avenidas da Cantareira - o melhor lugar do mundo para patinar é a Cantareira -, pra ver se o ar, o vento frio na cara tirava aquelas coisas da minha cabeça. Quando eu via o tipo de mulher que eu queria, eu não conseguia me segurar. Era forte, era muito forte. E eu olhava para elas e sabia qual delas tinha que ouvir o quê. Eram as que tinham cara de que estavam precisando de uma conversa diferente, que fizesse com que ela saísse da rotina dela. Era mais ou menos como eu oferecer um outro mundo para elas. E o meu papo é bom. Eu falo o que elas querem ouvir. Mulher quer ouvir duas coisas. Só duas coisas. E eu falava. Você é bonita e inteligente. Tudo mais que você falar se enquadra nisso aí: bonita e inteligente. Se ela for meia gordinha, pode acrescentar um teu corpo é lindo. Aí é covardia. Toda mulher entra nesse papo. E, ao mesmo tempo, eu ficava pensando não entra na minha, menina, a sua vida nunca mais será a mesma, sai dessa, sai correndo. Você vai se dar mal. Burra. Ficava pensando coisas assim. Mas o lado ruim era muito forte. Não vem comigo, não aceita o meu convite. Se você vier, você vai se dar mal. Mas não adiantava. O que saía da minha boca era outra coisa. Porque eu sentia que tudo aquilo que eu estava falando é o que elas queriam ouvir. Quando eu entrava no mato com elas - algumas já de mãos dadas - eu sabia o que ia acontecer. Se fosse teatro - e agora eu estou descobrindo que era - a cena era sempre a mesma. Eu fazia coisas com elas - coisas de carinho, coisas de sexo mesmo - que elas nunca podiam imaginar que existia. Nada muito extravagante, não. Elas piravam. Quando eu dizia você é toda bonita, definia tudo. Ela ali, se ajoelhando, de livre e espontânea vontade, diante de mim e eu pensando burra, idiota, você não imagina o que te espera. Enquanto elas estavam chupando, de joelhos diante de mim, não me restava mais nada a fazer, a não ser matar, acabar logo com aquilo de uma vez. O que eu queria não era gozar com o pau, mas com a loucura. Era a rolinha na frigideira, era a tia Daví, gostoso. Acho que é isso. O que eu queria é ver que elas se apaixonavam por mim. E eu não posso aceitar que ninguém se apaixone por mim. Porque eu sou um puta dum bosta e quem se apaixona por um puta dum bosta também tem merda na cabeça. Mas a merda é que são as inteligentes que entram na minha. Só as mulheres burras não me entendem. Essas mulheres que entraram assim na minha vida, sabe o que elas queriam? Mudar de vida, mudar de emprego, mudar de homem. Eram todas meninas que se aventuravam a entrar numa mata com um desconhecido pru que desse e viesse. Eram meninas que queriam sair da matinha delas. Ninguém entrou na minha cantada na marra. Isso você pode crer.

 

CAMILO - Mario Alberto, me diga uma coisa. Há quanto tempo você não vê a tia DAVÍ?

 

MARIO ALBERTO - Nunca mais vi. Uns dez anos.

 

CAMILO - E se você encontrasse com ela, agora? Assim, de repente? Como é que ia ser?

 

MARIO ALBERTO - Eu matava ela!

 

CAMILO (que já havia se levantado e ficava sempre estimulando Mario Alberto a prosseguir) - Mario Alberto, vou te dizer uma coisa e você não vai acreditar. Eu sou igualzinho a você. Impressionante. Só que eu não mato. Mas não mato fisicamente. Eu atraio as mulheres com os mesmos métodos seus. Dizendo o que elas querem ouvir, sabendo que elas estão num momento de querer se deslumbrar com alguma coisa nova. Quando a mulher fica completamente apaixonada eu começo a não gostar mais dela. Porra, se apaixonar logo por mim? Pegar no meu pé? Ao mesmo tempo, eu quero que uma pegue no meu pé, mas é que elas vem de repente, com pressa, se penduram no pescoço da gente, vão pegando e chupando o nosso pau. Você está me ensinando muito coisa, Mario Alberto. Compreendo perfeitamente os seus crimes. Não que eu concorde, pelo amor de Deus, não me vá entender mal. Isso, inclusive, essa relação que pintou agora entre a gente, essa cumplicidade, vai fazer com que eu mude radicalmente a nossa forma de ensaiar.

 

MARIO ALBERTO - Se as mulheres fossem mais mulheres, não se fudiam tanto. Eu olhava para elas, antes e pensava: eu não acredito, essa mulher quer se fuder. Será que não tá na cara que eu vou fuder com a vida dela? Por que ela não ficou quieta no canto dela? Tinha que atravessar o meu caminho? Tinha? O meu? Logo o meu? Justo quando eu estava daquele jeito?

 

CAMILO - A gente está sempre pronto, Mario Alberto. Pra caçar. Mesmo quando a gente está desprevenido, quando pinta a caça, a gente se excita. Você tem razão, a culpa é delas. (cai em si) Meu Deus, o que é que eu estou falando? Eu tenho três filhas, como é que o posso falar uma coisa dessas? Até o meu apelido é Bebé. De Camilo Roberto, sabe?

 

MARIO ALBERTO - É isso aí, cara. Você é igualzinho a mim. Você é doido também! Eu entendo de mulher: afinal, já matei onze. E você? (Camilo não quer responder) Uma puta, você matava?

 

CAMILO (não quer responder, mas ponderou bastante) - Acho que a gente é muito é convencido, sabe?

 

MARIO ALBERTO - Quanto eu chego num bar, por exemplo, já na entrada, bato o olho e já sei quem é a vítima, a caça. De cara, de cara! Bater o olho e pimba!

 

CAMILO - Igualzinho. Impressionante. Eu achava que só a minha geração era assim.

 

MARIO ALBERTO - Só de bater o olho. Seleciono logo de cara duas ou três. Depois vou à luta.

 

CAMILO - Impressionante. Faço igualzinho. Tenho uma amiga que me chama de periscópio. Sabe como é?

 

MARIO ALBERTO - É isso aí. Periscópio é um bom nome pra gente.

 

CAMILO - E você pode ter certeza que, quando a gente entrou no bar, ela também viu a gente e é como se elas pedissem: olha eu aqui, olha eu aqui. Elas pedem. Elas querem se fuder!

 

MARIO ALBERTO - Elas pedem pra morrer. É impressionante. Mulher gosta de ser assassinada pelos homens. Elas querem ser mortas, comidas. Mulher gosta de dentada, de porrada.

 

CAMILO - Nelson Rodrigues já dizia isso.

 

MARIO ALBERTO - Quem é? Um amigo seu? Caçador, também?

 

Camilo - Vamos ensaiar. Faltam só dois dias para a estréia. (longa e pensativa pausa) Sabe qual a única diferença entre eu e você? A única? Além da idade? É que você aperta o pescocinho delas com mais força.

 

Toca a campainha. Mario Alberto e Camilo olham-se, ficam preocupados. Dagoberto, não. Aparece, vindo dos quartos, e vai abrir a porta. Entra uma mulher, 40 anos, tudo em cima, de minissaia e um corpete com uma alça só, em tecido imitando tigre. Pode-se dizer que ela é bonita e já foi muito mais. Ela cumprimenta os três com meneio de cabeça e um pouco de sensualidade.

 

DAGOBERTO - Achei que estava faltando mulher nesse espetáculo.

 

MULHER (para Mario Alberto) - Você, aqui?

 

MARIO ALBERTO - Tia Daví? Como vai a senhora?

 

CAMILO - Prazer!

 

Black-out

 

CENA Seis

Quando volta a luz, está em foco na lousa:

 

Agora Camilo está com uma roupa excessivamente larga. Mais cafona ainda. Estão em silêncio. Camilo se olhando no espelho, admirando seu jeitão. Mario Alberto, de repente, como milagre, diz:

 

MARIO ALBERTO :(olhando para o teto, distante) - Eu falo o que elas querem ouvir.

 

CAMILO: (Fica quase boquiaberto) - Repete isso.

 

MARIO ALBERTO:: Isso, o quê?

 

CAMILO: - Isso, que você acabou de falar.

 

MARIO ALBERTO: - Eu falo o que elas querem ouvir. Isso? É tão importante assim?

 

CAMILO: Foi a coisa mais importante que você disse nesses cinco dias de ensaio. Eu falo o que elas querem ouvir.

 

MARIO ALBERTO- Você é doido, cara. Falei nada demais. Quando eu quero que elas entrem na minha, falo o que elas querem ouvir. Só isso!

 

CAMILO - Fala mais sobre isso. O que é que elas querem ouvir? (senta-se no chão com a prancheta) Parla!

 

MARIO ALBERTO- Quando eu acordava mal, quando eu tinha o pressentimento que o meu lado maléfico ia aflorar naquele dia, era foda. Quando eu acordava transpirando bastante, todo ofegante, eu já sabia que alguma coisa ia tomar o meu ser e coisa ruim ia acontecer. Eu saia patinando - eu patino muito bem - por aquelas avenidas da Cantareira - o melhor lugar do mundo para patinar é a Cantareira -, pra ver se o ar, o vento frio na cara tirava aquelas coisas da minha cabeça. Quando eu via o tipo de mulher que eu queria, eu não conseguia me segurar. Era forte, era muito forte. E eu olhava para elas e sabia qual delas tinha que ouvir o quê. Eram as que tinham cara de que estavam precisando de uma conversa diferente, que fizesse com que ela saísse da rotina dela. Era mais ou menos como eu oferecer um outro mundo para elas. E o meu papo é bom. Eu falo o que elas querem ouvir. Mulher quer ouvir duas coisas. Só duas coisas. E eu falava. Você é bonita e inteligente. Tudo mais que você falar se enquadra nisso aí: bonita e inteligente. Se ela for meia gordinha, pode acrescentar um teu corpo é lindo. Aí é covardia. Toda mulher entra nesse papo. E, ao mesmo tempo, eu ficava pensando não entra na minha, menina, a sua vida nunca mais será a mesma, sai dessa, sai correndo. Você vai se dar mal. Burra. Ficava pensando coisas assim. Mas o lado ruim era muito forte. Não vem comigo, não aceita o meu convite. Se você vier, você vai se dar mal. Mas não adiantava. O que saía da minha boca era outra coisa. Porque eu sentia que tudo aquilo que eu estava falando é o que elas queriam ouvir. Quando eu entrava no mato com elas - algumas já de mãos dadas - eu sabia o que ia acontecer. Se fosse teatro - e agora eu estou descobrindo que era - a cena era sempre a mesma. Eu fazia coisas com elas - coisas de carinho, coisas de sexo mesmo - que elas nunca podiam imaginar que existia. Nada muito extravagante, não. Elas piravam. Quando eu dizia você é toda bonita, definia tudo. Ela ali, se ajoelhando, de livre e espontânea vontade, diante de mim e eu pensando burra, idiota, você não imagina o que te espera. Enquanto elas estavam chupando, de joelhos diante de mim, não me restava mais nada a fazer, a não ser matar, acabar logo com aquilo de uma vez. O que eu queria não era gozar com o pau, mas com a loucura. Era a rolinha na frigideira, era a tia Daví, gostoso. Acho que é isso. O que eu queria é ver que elas se apaixonavam por mim. E eu não posso aceitar que ninguém se apaixone por mim. Porque eu sou um puta dum bosta e quem se apaixona por um puta dum bosta também tem merda na cabeça. Mas a merda é que são as inteligentes que entram na minha. Só as mulheres burras não me entendem. Essas mulheres que entraram assim na minha vida, sabe o que elas queriam? Mudar de vida, mudar de emprego, mudar de homem. Eram todas meninas que se aventuravam a entrar numa mata com um desconhecido pru que desse e viesse. Eram meninas que queriam sair da matinha delas. Ninguém entrou na minha cantada na marra. Isso você pode crer.

 

CAMILO - Mario Alberto, me diga uma coisa. Há quanto tempo você não vê a tia DAVÍ?

 

MARIO ALBERTO- Nunca mais vi. Uns dez anos.

 

CAMILO - E se você encontrasse com ela, agora? Assim, de repente? Como é que ia ser?

 

MARIO ALBERTO- Eu matava ela!

 

CAMILO (que já havia se levantado e ficava sempre estimulando Mario Alberto a prosseguir) - Mario Alberto, vou te dizer uma coisa e você não vai acreditar. Eu sou igualzinho a você. Impressionante. Só que eu não mato. Mas não mato fisicamente. Eu atraio as mulheres com os mesmos métodos seus. Dizendo o que elas querem ouvir, sabendo que elas estão num momento de querer se deslumbrar com alguma coisa nova. Quando a mulher fica completamente apaixonada eu começo a não gostar mais dela. Porra, se apaixonar logo por mim? Pegar no meu pé? Ao mesmo tempo, eu quero que uma pegue no meu pé, mas é que elas vem de repente, com pressa, se penduram no pescoço da gente, vão pegando e chupando o nosso pau. Você está me ensinando muito coisa, Mario Alberto. Compreendo perfeitamente os seus crimes. Não que eu concorde, pelo amor de Deus, não me vá entender mal. Isso, inclusive, essa relação que pintou agora entre a gente, essa cumplicidade, vai fazer com que eu mude radicalmente a nossa forma de ensaiar.

 

MARIO ALBERTO- Se as mulheres fossem mais mulheres, não se fudiam tanto. Eu olhava para elas, antes e pensava: eu não acredito, essa mulher quer se fuder. Será que não tá na cara que eu vou fuder com a vida dela? Por que ela não ficou quieta no canto dela? Tinha que atravessar o meu caminho? Tinha? O meu? Logo o meu? Justo quando eu estava daquele jeito?

 

CAMILO - A gente está sempre pronto, Mario Alberto. Pra caçar. Mesmo quando a gente está desprevenido, quando pinta a caça, a gente se excita. Você tem razão, a culpa é delas. (cai em si) Meu Deus, o que é que eu estou falando? Eu tenho três filhas, como é que o posso falar uma coisa dessas? Até o meu apelido é Bebé. De Camilo Roberto, sabe?

 

MARIO ALBERTO- É isso aí, cara. Você é igualzinho a mim. Você é doido também! Eu entendo de mulher: afinal, já matei onze. E você? (Camilo não quer responder) Uma puta, você matava?

 

CAMILO (não quer responder, mas ponderou bastante) - Acho que a gente é muito é convencido, sabe?

 

MARIO ALBERTO- Quanto eu chego num bar, por exemplo, já na entrada, bato o olho e já sei quem é a vítima, a caça. De cara, de cara! Bater o olho e pimba!

 

CAMILO - Igualzinho. Impressionante. Eu achava que só a minha geração era assim.

 

MARIO ALBERTO- Só de bater o olho. Seleciono logo de cara duas ou três. Depois vou à luta.

 

CAMILO - Impressionante. Faço igualzinho. Tenho uma amiga que me chama de periscópio. Sabe como é?

 

MARIO ALBERTO- É isso aí. Periscópio é um bom nome pra gente.

 

CAMILO - E você pode ter certeza que, quando a gente entrou no bar, ela também viu a gente e é como se elas pedissem: olha eu aqui, olha eu aqui. Elas pedem. Elas querem se fuder!

 

MARIO ALBERTO- Elas pedem pra morrer. É impressionante. Mulher gosta de ser assassinada pelos homens. Elas querem ser mortas, comidas. Mulher gosta de dentada, de porrada.

 

CAMILO - Nelson Rodrigues já dizia isso.

 

MARIO ALBERTO- Quem é? Um amigo seu? Caçador, também?

 

CAMILO - Vamos ensaiar. Faltam só dois dias para a estréia. (longa e pensativa pausa) Sabe qual a única diferença entre eu e você? A única? Além da idade? É que você aperta o pescocinho delas com mais força.

 

Toca a campainha. Mario Alberto e Camilo olham-se, ficam preocupados. Dagoberto, não. Aparece, vindo dos quartos, e vai abrir a porta. Entra uma mulher, 40 anos, tudo em cima, de minissaia e um corpete com uma alça só, em tecido imitando tigre. Pode-se dizer que ela é bonita e já foi muito mais. Ela cumprimenta os três com meneio de cabeça e um pouco de sensualidade.

 

DAGOBERTO

 

- Achei que estava faltando mulher nesse espetáculo.

 

Mulher (para Mario Alberto) - Você, aqui?

 

MARIO ALBERTO- Tia Daví? Como vai a senhora?

 

CAMILO - Prazer!

Black-out

 

                 estréia: amanhã

 

A sala está numa quase penumbra. Percebe-se, pela arrumação ou pela não-arrumação, que já se passaram três dias, desde a última cena.

 

Entra, vindo dos quartos, Camilo. Acende as luzes. Vai até a cozinha e volta logo, com um pedaço de pizza triangular numa das mãos e uma latinha de coca na outra. Vai até o som, liga. Entra Vivaldi. As Quatro Estações.

 

Senta-se, fica ouvindo. Dos quartos, entra, repentinamente, a Daví.Nua. Assim que percebe Camilo na sala, cobre o que dá para cobrir com as mãos e volta para dentro.

 

CAMILO não só percebeu, como fez o que ninguém poderia esperar. Passou um pente rápido nos cabelos.

 

CAMILO, o caçador de rolinhas, está a postos.

 

Ele senta-se e tira o cadarço do tênis, estica, testa a resistência dele.

 

Ela volta, com o roupão vermelho, aquele, provavelmente do Dagoberto.

 

No caminho da cozinha, Daví pára no meio da sala. Eles se olham. Apenas um sorriso de cada lado. Ela entra e volta com um pedaço de pizza numa das mãos e, na outra, a embalagem de pizza aberta com um ou dois pedaços dentro. Coloca na mesinha. Senta-se na frente dele. Silêncio entre os dois. Comem (-se).

 

Atenção: durante toda a cena entre os dois, Camilo está usando o seu charme de conquistador, mesmo que isso não esteja nos diálogos. Ele está mesmo a fim de comer a tia Daví.O caçador de rolinhas, agora é ele. Aliás, sempre foi. As pausas são longas e significativas.

 

CAMILO age como se estivesse voltado ao seu tempo, quando transava com putas. Ao mesmo tempo, me parece, ele imita um pouco o Mario Alberto.

 

Repito: todo o clima da cena é um clima de cantada. Das mais deslavadas. Quase barata.

 

DAVI - Você acha que esse negócio vai dar certo?

 

CAMILO - Acho.

 

DAVI - Certeza?

 

CAMILO - Absoluta.

 

Novo silêncio entre os dois.

 

CAMILO - Sem sono?

 

DAVI - O Dagoberto ronca feito um animal. Nunca vi. Sabia que eu gosto de pizza fria? E o Mario Alberto?

 

CAMILO - Ronca feito um animal. Nunca vi. Também gosto.

 

DAVI - Do que?

 

CAMILO - Pizza. Fria. Eu tinha uma amiga, a Ana que/ (lembra) Anagrama! Claro, anagrama!

 

DAVI - O que que tem ela?

 

CAMILO - Ela quem?

 

DAVI - A Ana Grama.

 

CAMILO - Não, não, esquece. Anagrama é outra coisa. Anagrama é quando a gente pega uma palavra e mexe nas letras, inverte, entende?, e dá outra palavra. Entendeu?

 

DAVI - Picas.

 

CAMILO - Seu nome, por exemplo. Daví.Aliás, isso é nome ou apelido?

 

DAVI - É Davineusa. Meu pai Daviberto e minha mãe Edineusa.

 

CAMILO - Igualzinho. Tinha um avô Camilo e um avô Roberto. Mas o seu nome, por exemplo Daví, o anagrama de Daví é vida.

 

DAVI - E morte, o que que dá? Bonito, vida.

 

CAMILO - Metrô. Temor!

 

DAVI - Temor?

 

CAMILO - Temor. Mas voltemos à vida, tia Daví.

 

DAVI - Mas e daí, o que é que eu ganho com isso? Do meu nome virar vida?

 

CAMILO - Nada. Ganha a vida, ué.

 

DAVI - E o seu nome, dá o que nesse negócio aí?

 

CAMILO - Camilo, dá málico.

 

DAVI - Málico o que é? Um cara mau?

 

CAMILO - Um cara astuto, esperto, com a intenção de prejudicar alguém.

 

DAVI - Eu, hein? Te acho muito metidinho, sabia? Tava te vendo ensaiar o Bebé. Você se acha o máximo, né? Dono do pedaço, né? Você acha que esse negócio de enlouquecer o Bebé vai dar certo mesmo?

 

CAMILO - Tem que dar. Tem que dar. Pru bem de todo mundo.

 

DAVI - E você acha mesmo que a culpada disso tudo fui eu?

 

CAMILO - Não é bem isso. Tem uma série de componentes psíquicos.

 

DAVI - Pára de falar difícil. Mania.

 

CAMILO - Quer um uísque?

 

Daví fica olhando para ele. Sabe que vai levar uma cantada. Mas, no fundo, gosta.

 

DAVI - Vou pegar o gelo.

 

Daví vai para a cozinha, Camilo vai pegar o uísque. Davívolta com um balde de gelo. Joga dentro dos copos já com uísque. Brindam, em silêncio.

 

CAMILO - O que você faz na vida? Assim, para ganhar dinheiro?

 

DAVI - Programa. Só não faço bum-bum.

 

CAMILO (ri) - Você é o máximo, sabia?

 

DAVI - E você é tão bobo, sabia?

 

CAMILO - Comecei com puta. Na minha época as meninas não davam, não. A gente tinha que ir pra zona. Lá em Porto Alegre. Peguei muita gonorréia na vida. (longa pausa) Saudades da gonorréia. A gente tomava três Tetrex e pronto. Faz tempo que não pego uma puta. Com todo o respeito.

 

DAVI - Ligo, não.

 

CAMILO - Durante muito tempo eu odiei todas as putas do mundo. É que eu comecei a transar com puta, entende?, e como puta não goza/

 

DAVI - Não goza, o caralho! Quando quer, goza, porra!

 

CAMILO - Puta não gozava. Na minha época, pelo menos, puta não gozava. As putas fuderam com a minha geração. Nunca ninguém disse pra mim que mulher gozava, porra! Como é que eu podia imaginar? De repente, chega a mulherada toda querendo gozar! Eu não estava preparado, entende? O que eu queria mesmo era gozar logo. Foi de repente, na minha cabeça. Elas queriam gozar, porra! Assim, de uma hora pra outra.

 

DAVI - Você não entende porra nenhuma de mulher. Imagina. Não goza! Já vi que você não entende nada da minha profissão. Tudo bem, porque eu também não entendo porra nenhuma da sua. Como diz o Mario Alberto, coisa de viado.

 

CAMILO - O que eu quis dizer é que quando eu transava com puta eu não tinha nenhum preocupação de esperar ela gozar. E você há de concordar comigo, toda puta tem pressa. Quer partir pra outra. Então eu tinha ejaculação precoce. Como o Mario Alberto. Foram anos e anos de análise. E eu, que sempre fui contra a análise? Sou do tempo que fazer análise era levar cocô pru laboratório.

 

DAVI - Sabe que, com esse negócio do Bebé,minha foto nos jornais, eu passei a faturar muito mais? Deus, depois que eu apareci na Globo, foi foda!

 

CAMILO - Literalmente.

 

DAVI - Que?

 

CAMILO - Nada, não. Pensando alto.

 

DAVI - Pensando até em comprar um Gol Mille. Você é muito doido, sabia? Pensa muito. Fico te observando. Pensando, o dia inteiro.

 

CAMILO - Um bom carro. (serve mais uísque para ela que bebe mais rápido do que ele) Você e o Dagoberto. Qual é a transa?

 

DAVI - Pra ele eu não cobro, né cara? Meu sobrinho. Ele que me fez.

 

CAMILO - É mesmo? Bela família.

 

DAVI - Olha o respeito. A gente é pobre, humilde, mas temos a nossa dignidade, como dizia um irmão meu, que Deus o tenha. (gole longo, pensando, lembrando) Não tinha nem catorze. O Mario Alberto era pequenininho. Dormia na cama do lado. De repente ele acordou, chorando. É que o Dagoberto é meio escandaloso.

 

CAMILO - Já percebi. Ouvi.

 

DAVI (confidencial) - Sabe o que ele gosta? Que enfia o dedo. Lá, tá entendendo? Tá vendo, a minha unha desse dedo? Tá vendo? São todas grandes. Mas a desse aqui, ele me fez cortar. Gosta, fazer o que? Fica doidão. E você gosta?

 

CAMILO (fica sem jeito, muda de assunto) - Se fosse um baile, eu te tirava pra dançar.

 

DAVI (não entende) - Que?

 

CAMILO - Nada, não. Acho bom você fechar melhor esse roupão. Daqui dá pra ver.

 

DAVI - O que?

 

CAMILO - O peito. O esquerdo.

 

DAVI - Tenho os seios lindos. Sabia que o esquerdo é maior que o direito? (abre o roupão) Não acha?

 

CAMILO - Acho, mas é melhor fechar (ela fecha). Se o Dagoberto acorda é capaz de ficar muito do puto. Eu, por exemplo, não gostaria que um amigo meu comesse a minha tia. Se bem que, pensando bem, dando uma geral nas minhas tias, acho que não tem nenhuma comível, não. O máximo que eu cheguei foi numa prima. Prima é interessante.

 

DAVI (sobre Camilo) - É doido. (sobre Dagoberto) Ele não vai acordar, não. Conheço ele.

 

CAMILO - Tudo bem, tudo bem. Mas vamos falar sobre o meu trabalho. Amanhã - amanhã, não, já é amanhã. Hoje, hoje cedo, o Mario Alberto tem que se apresentar. (súbito, raciocina como diretor) É a estréia.

 

DAVI - Pra mim ele já tá ótimo.

 

CAMILO - Mas tem que melhorar mais ainda. A sua presença aqui tem sido muito bom. Tem motivado o trabalho.

 

DAVI - Até agora eu ainda não entendi porque o Dagoberto me trouxe para cá. De quem foi a idéia?

 

CAMILO - Minha. (para ele mesmo) Minha...

 

DAVI - Acho que tá todo mundo doido, sabia? E se esse negócio não der certo?

 

CAMILO - Vai dar. Em todo espetáculo teatral, o último ensaio é o que vale.

 

Tia Daví vai até o som, muda o CD para uma dupla sertaneja conhecida. Para colocar o CD ela debruçou-se toda ficando de bunda virada para o Camilo. De propósito?

 

CAMILO - Foi bom te encontrar aqui agora, sem querer. Queria mesmo falar com você.

 

DAVI - Não sei se foi sem querer. Gosta (referindo-se à música)? Faz três dias que você não tira os olhos de mim. Tô sabendo, tou na minha, só sacando. É como se você estivesse bolando um plano para mim. Alguma coisa diabólica. Coisa de... málico, né?

 

CAMILO - E você de mim. Também não tira os olhos. Estou enganado?

 

DAVI - Mas não é o que você está pensando, não. Claro que eu tenho que ficar olhando para você. Você fala o dia inteiro, ensaia o dia inteiro, faz laboratório. É laboratório, que chama aquilo, não é?

 

CAMILO - É. E eu queria que você fizesse um laboratório com o Mario Alberto. Uma espécie de ensaio geral. Só vocês dois.

 

DAVI -   Meu, tá achando que eu sou besta, é? Ele vai é me matar. É isso que você tá querendo? Que ele me mate?

 

CAMILO - Mata, não. Vou estar junto.

 

DAVI - Sabe o que eu acho? Que você é um tarado. Não passa de um tarado. Tá mais é afim de ver eu transar com o Mario Alberto. Cê tem cara disso. Que gosta de olhar. Fica ali, do lado, na bronha. Tem um nome isso, não tem? Em francês, eu acho. Eu, hein?

 

CAMILO - Voyeur.

 

DAVI - É isso aí.

 

CAMILO - Você faz parte do processo. Você é o começo e o fim. Você é a rolinha.

 

DAVI - Tá vendo? Tem hora que você fala de um jeito que eu não entendo nada. Abre o jogo. Rolinha? Sabe que rolinha vem de rola, né? E sabe muito bem o que é rola, não sabe? Pelo menos lá em Palmas. Qual é o plano? Fazer um boquete no Bebé?

 

CAMILO - Mais ou menos. Como se fosse a primeira vez. Você se lembra como foi a primeira vez que você transou com ele?

 

DAVI - Transei, porra nenhuma. Ele inventou esse negócio e todo mundo entrou na história dele. Você acha que eu ia transar com um menino de nove anos?

 

CAMILO - Acho.

 

DAVI - Ainda por cima meu sobrinho? Filho da minha própria irmã? Sangue do meu sangue?

 

CAMILO - Acho. Tenta se lembrar de como foi a primeira vez. Onde foi? No quarto dele?

 

DAVI - Tou fora, cara. Tou fora.

 

Ela se serve de outra dose. Vai servir para ele, ele recusa. Vai até a cozinha pegar gelo. Ele pega o cadarço e olha, preocupado. Estica no ar novamente. Guarda. Ela volta. Insiste com o uísque para ele.

 

CAMILO - Úlcera duodenal.

 

DAVI - O que?

 

CAMILO - Nada. Hein? Ele pegava nos seus peitos? (enfia a mão no roupão dela) Assim?

 

DAVI - Cem o boquete, xota duzentos e pernoite quinhentos! E tira a mão do meu peito. Se quiser transar, vamos acertar a grana antes. Mais respeito, menas mão boba!

 

CAMILO - Não é menas, deputada.

 

DAVI - Que?

 

CAMILO - Você vai transar é com o Bebé. Vou acordar ele.

 

DAVI - Vai acordar, porra nenhuma!

 

CAMILO - Então me conta. Veja, Daví, estamos no mesmo barco, como diz o Dagoberto. A gente tem que fazer tudo para salvar a pele do Mario Alberto, do Dagoberto, a sua e a minha.

 

DAVI - A minha barra tá limpa. Tou na Globo, meu. Você, por exemplo, todo metido a sabidinho, a sabedor de tudo, já deu entrevista na Globo? Me diz: já deu? Jornal Nacional? Quando o Dagoberto me trouxe pra cá, não teve nenhum papo de ter que transar com o menino, não.

 

CAMILO - Pois agora tá tendo. É o último ensaio. E eu ainda sou o diretor desse espetáculo todo. E você vai ter que colaborar.

 

DAVI - No cu, jaburu! (pausa) Sabe que eu não te entendo? Vocês, intelectuais são muito complicados. Tá afim de um boquete, joga cem paus na minha mão que eu jogo o seu pau na minha boca. É simples, não complica, cara. Eu, hein? Pega no meu peito, fica todo excitadinho e quer que eu transe com o menino? Vê se se resolve, cara! Viver não é tão complicado assim, não.

 

CAMILO - Será que não dá para você entender a encrenca que a gente tá metido?

 

DAVI - Vocês, vocês. Eu tou fora. Eu não sou mais aquela Daví.Agora eu sou, foi você que deu a idéia, agora eu sou a Ana Grama. É um bom nome para garota de programa. Ana Grama.O pessoal das docas ia adorar. Ana Grama. Lembra pó.

 

CAMILO - Tá bem, Ana Grama. Mas tá quase amanhecendo, os dois têm que ir para o Forum. Você não quer ir junto? (pensando mais nele) A Globo vai estar lá, esperando. A Globo, o SBT, a Record, a Bandeirantes, tevê a cabo, tevês do mundo todo. Todas as rádios, todos os jornais. Até o Fernando Henrique vai estar ligado. Dez da manhã. Ibope máximo. Cem por cento de audiência. O Brasil inteiro vendo. E você lá, desfilando. A tia Daví, anagrama Vida!

 

DAVI - A Vida e o... como é mesmo o seu?

 

CAMILO - Málico, málico!

 

DAVI - Málico da Silva.

 

CAMILO - E de rosto colado, ainda por cima.

 

DAVI - O que? Tou dizendo que você é doido.

 

CAMILO - Se fosse baile, dançar, de rosto colado.

 

DAVI - Eu, hein?

 

CAMILO - Sabe que você é muito bonita?

 

DAVI - Agradecida.

 

CAMILO - Bonita e gostosa.

 

DAVI - Ih...

 

CAMILO - Além de inteligente, é claro.

 

DAVI - Não vem, não. Inteligente também já é demais. Bonita e gostosa, tudo bem. Inteligente. Se eu fosse inteligente eu tava fazendo programa com senador de Brasília e não com vereador de Palmas.

 

CAMILO - Sabe que eu nunca tinha conversado assim com... uma garota de programa? É interessante. Pra criação de personagem, entende? Você é uma personagem riquíssima, sabia?

 

DAVI - Rica, eu? Faz-me rir. Como você é complicado, cara. Todo artista é assim, é? A vida é tão simples, meu.

 

CAMILO - Olha, Daví/

 

DAVI - Ana Grama. Me chama de Ana Grama, please. Gostou do please? Sei várias palavras em inglês. Fuck. Fuck me. What the fuck do you want? Surpreso? Profissional, meu filho. Profissa. Pena que eu ainda não usava o Ana Grama. Puta nome, meu! Puta nome! Ana Grama! Já me virei no cais de Santos uns tempos atrás. Agora aquilo tá um lixo. Mas já foi bom. Dei pra todos os diretores da Codesp. Gente de muita grana.

 

CAMILO - Vou dormir. Você não quer falar da primeira vez que transou com o seu sobrinho, não quer transar pela última vez. Não tenho mais nada a te pedir. Se ele for condenado, a culpa é sua, sua!

 

DAVI - Vai dormir, não, bobinho. Fica. Fica aqui, com a Ana Grama.

 

CAMILO - Você quer mesmo? Tem certeza que você quer que eu fique aqui, Ana Grama?

 

DAVI - E, por falar em grama.

 

Tia Daví vai até a sua bolsa que estava em cima da mesinha, acima dos jornais todos. Pega um papelote de cocaína. Abana para ele.

 

Agora não há mais fala entre eles. Ela prepara as fileirinhas. Cheiram. Ela, de costas para a platéia, abre o roupão. Ele se aproxima, começa a beijar os seios dela. Ambos, excitados.

 

Ele senta-se na poltrona, de frente para a platéia, ela se ajoelha, de costas. O roupão irá encobrir o ato dela fazendo sexo oral com ele.

 

CAMILO - Esse seu movimento de cabeça, parece de rolinha. Já viu rolinha andando, tesão? Gostosa! Quero que você me chupe o resto da vida.

 

Ele começa a alisar os cabelos dela. Tira o cadarço do bolso.

 

Ele mata ela. A rolinha morre sem dar um pio. O corpo dela cai. Ele pega o cadarço e recoloca no tênis. Dá uma mordida no pedaço de pizza.

 

Sai e volta com o Mario Alberto. Mario Alberto está com a camisa usada por Camilo na primeira cena. Leva Mario Alberto até onde o corpo está estendido. Mario Alberto percebe o ocorrido.

 

Ajoelha-se, abraça a tia e começa a chorar. E a enlouquecer de vez.

 

CAMILO sai em direção aos quartos.

 

MARIO ALBERTO - Tia Daví... Tia Daví... A rolinha da vovó. Vou fritar a rolinha da vovó.

 

O que vemos agora é Mario Alberto, falando e quase babando, enlouquecendo de vez. Mario Alberto entra num irremediável estado de loucura-mansa. Basta olhar para ele e perceber que estamos diante de um louco.

 

MARIO ALBERTO - Eu sou o Messias, eu sou o Messias, o caçador de almas, o caçador de rolinhas!

 

Entra Camilo, vestido com sua roupa inicial, toda amassada, com a camisa inicial do Mario Alberto, com sua bolsa-mochila. Fica olhando para Mario Alberto que está distante. Camilo sai e volta com Dagoberto que dormia de cuecas e camisa do Flamengo.

 

DAGOBERTO olha para Mario Alberto e diz para Camilo.

 

DAGOBERTO - Perfeito! Impressionante. Eu sabia que você ia conseguir, Camilo. Excelente trabalho, senhor Diretor!

 

Só agora Camilo mostra o corpo de Daví no chão, morto.

 

DAGOBERTO ajoelha-se. Sente o pulso.

 

DAGOBERTO - Foi ele?

 

CAMILO - Quem mais? O caçador de rolinhas.

 

MARIO ALBERTO- Messias, irmão! Messias!

 

DAGOBERTO - Data vênia, você tinha razão, Camilo. Trazer a tia Daví para cá foi uma grande idéia. Nada como um bom diretor formado em psicologia e um produtor advogado. O doutor Paulo sempre disse. Depois dos 50 o que o homem precisa é de um psiquiatra e um advogado. (vai para o telefone e disca) Doutor Paulo. Desculpa, desculpa acordar o senhor a essa hora da madrugada. É que estamos prontos para a estréia. O homem (Camilo) é bom mesmo. Recomendo, doutor Paulo. Vai dormir, doutor Paulo. Vai dormir que tudo está certo por aqui. O senhor tinha razão. Vai tudo acabar em pizza. Isso. Tenha um bom dia, doutor Paulo. (desliga. Para Camilo) Você é um gênio, Camilo.

 

CAMILO - Sou, não. O rapaz é que é um bom ator. E você, um bom produtor.

 

DAGOBERTO senta-se e faz um cheque. Entrega para Camilo.

 

DAGOBERTO - O mesmo valor te dou no dia que ele entrar no Manicômio Judicial. Você é um gênio, rapaz!

 

CAMILO - Sou, não. Sou apenas um caçador de rolinhas. Como tantos que existem por aí.

 

CAMILO vai até a porta. Dagoberto vem e abre para ele. Um aperto de mão. Camilo volta e vai até Mario Alberto. Dá um abraço nele. Mario Alberto, nem aí. Volta e vai embora. Dagoberto fecha a porta. Senta-se onde Camilo matou Daví.Pega um pedaço de pizza. O último. Dá uma dentada.

 

DAGOBERTO - Quer pizza?

 

MARIO ALBERTO- Quero carne. (pequena pausa) De rolinha.

 

                                                                                Mario Prata  

 

                      

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