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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EXCALIBUR - P.2 / Bernard Cornwell
EXCALIBUR - P.2 / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

E X C A L I B U R

Segunda Parte

 

Dentro de alguns minutos respondi, aquela enorme massa de homens subirá a colina. Vedes como eles vêm apontei para baixo para a formação de saxões que estava ainda a ser empurrada e reunida para a formação. Cem homens na fileira da frente, e nove ou dez homens em todas as filas para empurrar aqueles homens da frente em direcção às nossas lanças. Conseguiremos enfrentar aqueles cem homens, Senhora, mas as nossas fileiras terão apenas dois ou três homens cada uma, e não conseguiremos empurrá-los pela colina abaixo. Detê-los-emos por algum tempo, e o escudo defensivo cerrar-se-á, mas não os faremos recuar e quando virem que todos os nossos homens estão encerrados na linha de combate, mandarão as suas fileiras da retaguarda darem a volta e atacar-nos por trás.

 

Os seus olhos verdes fitavam-me, imprimindo ao seu rosto um ar levemente trocista. Foi a única mulher que conheci que conseguia olhar-me nos olhos, e eu sempre achei desconcertante o seu olhar fixo. Guinevere tinha o dom de fazer com que um homem se sentisse tolo, embora nesse dia, enquanto os tambores saxões soavam e a imensa horda se aprestava para subir em direcção às nossas lâminas, ela apenas me desejasse êxito.

 

Estás a dizer que perdemos? perguntou-me, de modo frívolo.

 

Estou a dizer, Senhora, que não sei se consigo vencer respondi, severamente.

 

Questionava-me se devia fazer o inesperado e formar os meus homens em cunha, carregando pela colina abaixo e penetrando bem no interior da massa saxã. Era possível que semelhante ataque os surpreendesse e até mesmo os pusesse em pânico, mas o perigo era que os meus homens fossem cercados por inimigos na encosta da colina e que quando o último de nós fosse morto, os saxões subissem até ao cume e tomassem as nossas famílias indefesas.

 

Guinevere balançou o arco no seu ombro.

 

Podemos vencer afirmou ela, confiante, podemos vencer com facilidade. Por instantes não a tomei a sério. Eu consigo arrancar-lhes o coração disse ela, ainda com maior convicção.

 

Lancei-lhe um olhar rápido e vi a temível satisfação no seu rosto. Se ela ia fazer algum homem passar por tolo naquele dia seria Cerdic e Aelle, não eu.

 

Como podemos nós vencer? perguntei-lhe. Um olhar malicioso surgiu no seu rosto.

 

Confias em mim, Derfel?

 

Confio em vós, Senhora.

 

Então, dá-me vinte homens em forma.

 

Hesitei. Eu fora forçado a deixar alguns lanceiros no talude norte da colina para vigiarem algum ataque feito a partir da depressão oblonga, e não podia arriscar-me a perder vinte dos homens que restavam virados para sul; mas ainda que eu tivesse mais duzentos lanceiros sabia que iria perder esta batalha no cume da colina, por isso assenti.

 

Dar-vos-ei vinte homens da tropa recrutada concordei e vós dais-me a vitória. Ela sorriu e afastou-se em passos largos, e eu gritei a Issa para que encontrasse vinte jovens e lhos mandasse. Ela vai dar-nos a vitória! afirmei em voz suficientemente alta para que os meus homens ouvissem e eles, sentindo esperança num dia em que nenhuma havia, sorriram e deram gargalhadas.

 

Todavia, a vitória, concluíra eu, precisava de um milagre, ou então da chegada de aliados. Onde estaria Culhwuch? Durante todo o dia, eu esperara ver as suas tropas a sul, mas não houvera sinais dele e concluí que teria feito um enorme desvio em torno de Aquae Sulis na tentativa de se juntar a Artur. Não me ocorriam quaisquer outras tropas que pudessem vir em nosso auxílio, mas na verdade, ainda que Culhwuch se tivesse juntado a mim, o seu número podia não aumentar o nosso de forma suficiente para fazer frente ao assalto saxão.

 

Agora, esse assalto aproximava-se. Os feiticeiros haviam cumprido a sua tarefa e um grupo de cavaleiros saxões deixara as fileiras e subia, velozmente, a colina. Gritei pelo meu cavalo, pedi a Issa que juntasse as mãos para me ajudar a subir para a sela, depois cavalguei encosta abaixo ao encontro dos enviados inimigos. Bors podia ter-me acompanhado, uma vez que também ele era lorde, mas não quis encarar os homens que acabara de deixar, por isso fui sozinho.

 

Aproximaram-se nove saxões e três bretões. Um dos bretões era Lancelote, belo como lhe era habitual na sua armadura de lâminas brancas que reluziam à luz do sol. O seu elmo era prateado e encimado por um par de asas de cisne que esvoaçavam com a leve brisa. Os seus dois companheiros eram Amhar e Loholt, que combatiam contra seu pai sob a caveira de pele pendurada e sob a enorme caveira de boi de meu pai salpicada com sangue fresco, em homenagem a esta nova guerra. Cerdic e Aelle subiram a colina e acompanhavam-nos meia-dúzia de chefes de tribos saxãos; todos homens grandes em vestes de pêlo e com bigodes caindo-lhes sobre os cinturões das espadas. O último saxão era um intérprete e ele, tal como os outros saxões, montava desajeitadamente, tal como eu. Apenas Lancelote e os gémeos eram bons cavaleiros.

 

Encontrámo-nos a meio da colina. Nenhum dos cavalos gosta de encostas e todos eles se moviam nervosamente. Cerdic olhou carrancudo para o nosso talude. Ali viu os nossos dois estandartes, e um feixe de pontas de lanças por cima da nossa barricada temporária, mas nenhuma se moveu. Aelle fez-me um aceno ameaçador com a cabeça, enquanto Lancelote evitava o meu olhar de soslaio.

 

Artur está aqui? perguntou-me Cerdic, finalmente. Os seus olhos baços olharam-me por detrás de um elmo decorado a ouro e macabramente encimado pela mão de um homem morto. ”Sem dúvida”, pensei, ”que é uma mão britânica”. O troféu fora enfarruscado para que a pele escurecesse e os dedos enclavinhassem como garras.

 

Artur está a ganhar tempo, meu Rei e Senhor respondi. Ele deixou-me a mim a tarefa de vos esmagar, enquanto planeia a forma de retirar o cheiro da vossa imundície da Bretanha. O intérprete murmurou ao ouvido de Lancelote.

 

Artur está aqui? perguntou Cerdic. A convenção ditava que os comandantes dos exércitos conferenciassem antes da batalha, e Cerdic interpretou a minha presença como um insulto. Ele esperara que Artur viesse ao seu encontro, não um simples subalterno.

 

Ele está aqui, Senhor afirmei, com desenvoltura, e em toda a parte. Merlim transporta-o pelas nuvens.

 

Cerdic cuspiu. Envergava uma armadura sombria, sem exibir outra coisa que não a sinistra mão no pico do seu elmo orlado a ouro. Aelle tinha vestida a sua habitual pele negra, tinha ouro nos pulsos e em volta do pescoço e um único corno de touro projectava-se da parte da frente do seu elmo. Ele era o mais velho; todavia, como sempre acontecia, Cerdic assumira a liderança. O seu rosto vivo e comprimido lançou-me um olhar reprovador.

 

Seria melhor disse ele, se descesses a colina e depusesses as tuas armas na estrada. Mataremos alguns de vós como tributo para os nossos deuses e ficaremos com os restantes como escravos, mas tens de nos entregar a mulher que matou o nosso feiticeiro. Queremos matá-la.

 

Ela matou o feiticeiro sob as minhas ordens afirmei, como paga pela barba de Merlim. Fora Cerdic quem cortara um pedaço da barba de Merlim, um insulto que eu não fizera tenções de perdoar.

 

Então, teremos de te matar disse Cerdic.

 

Liofa tentou-o uma vez afirmei, espicaçando-o e ontem, Wulfger de Sarnaed tentou arrebatar a minha alma, mas foi ele quem regressou ao covil dos seus antepassados.

 

Aelle interveio.

 

Nós não te mataremos, Derfel resmungou ele, não o faremos se te renderes. Cerdic começou a protestar, mas Aelle silenciou-o com um gesto repentino da sua mão direita mutilada. Não o mataremos insistiu ele Deste o anel à tua mulher? perguntou-me.

 

Ela trá-lo neste momento, meu Rei e Senhor afirmei, gesticulando para o cimo da colina.

 

Ela está aqui? Pareceu surpreendido.

 

Com as vossas netas.

 

Deixa-me vê-las pediu Aelle. Cerdic voltou a protestar. Estava ali para nos preparar para uma carnificina, não para assistir ao feliz encontro de uma família; contudo, Aelle ignorou o protesto do seu aliado.

 

Gostaria de as ver uma vez disse-me ele, pelo que me virei e gritei para o cume da colina.

 

Ceinwyn surgiu uns instantes depois com Morwenna por uma mão e Seren pela outra. Elas hesitaram no talude, depois desceram cuidadosamente a encosta relvada. Ceinwyn trazia simplesmente um vestido de linho, mas o seu cabelo brilhava como ouro à luz do sol primaveril e eu pensei, como sempre, que a sua beleza era mágica. Senti um nó na garganta e lágrimas nos olhos enquanto ela descia tão suavemente a colina. Seren parecia nervosa, mas do rosto de Morwenna irradiava um olhar provocador. Detiveram-se junto ao meu cavalo e levantaram os olhos para os Reis saxões, fitando-os. Ceinwyn e Lancelote trocaram olhares e Ceinwyn cuspiu, deliberadamente, na relva para evitar o mal da sua presença.

 

Cerdic fingiu desinteresse, mas Aelle deslizou desajeitadamente da sua sela de couro já gasta.

 

Diz-lhes que estou contente por as conhecer disse-me ele, e diz-me o nome das crianças.

 

A mais velha chama-se Morwenna respondi e a mais nova é Seren. Significa estrela. Olhei para as minhas filhas. Este Rei disse-lhes eu em bretão, é vosso avô.

 

Aelle remexeu no interior da sua túnica negra e retirou duas moedas de ouro. Deu uma a cada neta, depois olhou em silêncio para Ceinwyn. Ela percebeu o que ele pretendia e, largando as mãos das filhas, deu um passo em frente para o abraçar. Ele devia feder, porque a sua túnica de pêlo estava oleosa e imunda, mas ela não vacilou. Depois de a beijar recuou, levou a sua mão aos lábios e sorriu ao ver o pequeno pedaço de ágata azul-esverdeada no seu anel de ouro.

 

Diz-lhe que pouparei a sua vida, Derfel pediu-me ele. Eu disse-lho e ela sorriu.

 

Diz-lhe que seria melhor se regressasse ao seu país afirmou ela e que ficaríamos bem mais agradados se o visitássemos lá.

 

Aelle sorriu quando isto foi traduzido, mas Cerdic franziu simplesmente as sobrancelhas.

 

Esta terra é nossa! insistiu ele, e o seu cavalo bateu com o casco no chão enquanto ele falava e as minhas filhas se afastavam diante da sua ruindade.

 

Diz-lhes que se vão embora resmungou-me Aelle, porque temos de falar de guerra. Ele observou-as subindo a colina. Herdaste de teu pai o gosto por mulheres bonitas, afirmou ele.

E o gosto bretão pelo suicídio disse Cerdic, com brusquidão. A tua vida ser-te-á poupada prosseguiu ele, mas apenas se desceres a colina de imediato e depuseres as tuas lanças na estrada.

 

Depô-las-ei na estrada, meu Rei e Senhor afirmei, com o vosso corpo espetado nelas.

 

Mias como um gato disse Cerdic com ironia.

 

Depois olhou-me, ao passar por mim e a sua expressão tornou-se mais ameaçadora ainda. Virei-me e vi que Guinevere estava agora de pé, no talude. Parecia muito alta e as suas pernas longas naquele fato de caça, coroado por uma massa de cabelo ruivo, e o seu arco atravessado nas costas, assemelhavam-na a uma Deusa da guerra. Cerdic devia tê-la reconhecido como a mulher que matara o seu feiticeiro.

 

Quem é ela? perguntou-me, furioso.

 

Perguntai ao vosso cãozinho de salão afirmei, gesticulando na direcção de Lancelote, e depois, desconfiando que o intérprete não havia traduzido as minhas palavras correctamente, voltei a proferi-las na língua britânica. Lancelote ignorou-me.

 

Guinevere disse Amhar ao intérprete de Cerdic é a prostituta de meu pai acrescentou ele, com sarcasmo.

 

Em tempos, eu apelidara Guinevere de coisas piores, mas não tinha paciência para ouvir o escárnio de Amhar. Nunca sentira qualquer afeição por Guinevere. Era demasiado arrogante, demasiado convencida, demasiado esperta e demasiado trocista para se tornar uma companhia agradável, mas nos últimos dias começara a admirá-la e, de repente, dei por mim a gritar insultos contra Amhar. Neste momento não me recordo do que disse, apenas sei que a ira imprimiu às minhas palavras um azedume rancoroso. Ter-lhe-ei chamado verme, monte de merda traiçoeiro, criatura sem honra, um miúdo que seria espetado na espada de um homem antes de o Sol se pôr. Cuspi-lhe, amaldiçoei-o e empurrei-o, a ele e ao irmão, pela colina abaixo com os meus insultos, e depois virei-me para Lancelote.

 

O teu primo Bors manda-te cumprimentos disse-lhe eu e promete arrancar-te o estômago pela boca, e será melhor rezares para que ele o faça, porque se eu te apanho até a tua alma gemerá.

 

Lancelote cuspiu, sem se dar ao incómodo de responder. Cerdic observara o confronto, divertido.

 

Tens uma hora para vires prostrar-te diante de mim terminou ele a conferência e se não o fizeres, viremos aqui matar-te. Volteou o cavalo e desceu a colina, esporeando-o. Lancelote e os outros seguiram-no, deixando Aelle de pé ao lado do seu cavalo.

 

Dirigiu-me um sorriso acanhado, quase um esgar.

 

Parece que temos de nos debater, meu filho.

 

Parece que temos de o fazer.

 

É verdade que Artur não está aqui?

 

Foi por isso que viesteis, meu Rei e Senhor? perguntei, embora não respondesse à sua pergunta.

 

Se matarmos Artur disse ele, simplesmente, a guerra está ganha.

 

Tendes de me matar primeiro, pai afirmei.

 

Achas que não o faria? perguntou-me ele com brusquidão, depois levantou a sua mão mutilada na minha direcção. Apertei-a, brevemente, e fiquei a observá-lo enquanto conduzia o seu cavalo pela encosta abaixo.

 

Issa acolheu o meu regresso com um olhar motejador.

 

Vencemos a batalha das palavras afirmei, ameaçador.

 

É um início, Senhor disse ele, de modo leviano.

 

Mas eles acabá-la-ão respondi em voz baixa e virei-me, observando os reis inimigos juntando-se aos seus homens. Os tambores começaram a soar. Os últimos saxões haviam finalmente sido reunidos numa densa massa de homens que subiria a colina para nos matar, mas, a menos que Guinevere fosse, de facto, uma deusa da guerra, eu não sabia como iríamos derrotá-los.

 

No início, o ataque saxão foi grosseiro, porque as sebes em torno dos pequenos terrenos no sopé da colina desmancharam o seu cuidadoso alinhamento. O Sol afundava-se a oeste, já que fora necessário um dia inteiro para preparar aquele ataque; mas agora o momento aproximava-se e nós ouvíamos os chifres de carneiro a retumbar o seu desafio cheio de ódio, enquanto os lanceiros inimigos irrompiam pelas sebes e atravessavam os pequenos terrenos.

 

Os meus homens principiaram a cantar. Cantávamos sempre antes de travar uma batalha e, naquele dia, entoámos a Canção da Guerra de Beli Mawr. Como este terrível hino consegue comover um homem! Fala de morte, de sangue no trigo, de corpos mutilados e de inimigos conduzidos como gado ao matadouro. Fala das botas de Beli Mawr a esmagarem montanhas e dos lamentos de viúvas chegadas a essa condição pela sua espada. Cada verso da canção termina num uivo triunfante e eu não consegui conter-me, chorando pelo desafio dos cantores.

 

Eu desmontara e ocupara o meu lugar na fileira da frente, perto de Bors, que estava por baixo dos nossos dois estandartes. As minhas protecções do rosto estavam fechadas, o meu escudo firme no braço esquerdo e a minha lança de guerra pesava na minha mão direita. A toda a minha volta, as vozes vigorosas avolumavam-se, mas eu não cantava porque o meu coração estava demasiado cheio de maus presságios. Eu sabia o que estava para acontecer. Lutaríamos durante algum tempo no escudo defensivo, mas depois os saxões irromperiam pelas frágeis barricadas de espinheiros de ambos os lados e as suas lanças viriam por trás e seríamos mortos um a um, e o inimigo escarneceria da nossa morte. O último de nós a morrer veria a primeira das nossas mulheres ser violada. Todavia, nada podíamos fazer para o impedir e, deste modo, aqueles lanceiros cantavam e alguns homens dançavam a dança da espada no cume do talude onde não havia nenhuma barricada de espinheiros. Havíamos deixado o centro do talude livre de espinheiros, na escassa esperança de que isso pudesse tentar o inimigo a vir em direcção às nossas lanças em vez de tentar flanquear-nos.

 

Os saxões passaram a última sebe e iniciaram a sua longa subida pela encosta vazia. Os seus melhores homens encontravam-se na fileira da frente e pude ver quão fechados estavam os seus escudos, quão juntas avançavam as suas lanças e de que forma tão brilhante a luz se reflectia nos seus machados. Não havia sinais dos homens de Lancelote; parecia que esta matança seria deixada unicamente a cargo dos saxões. Precediam-nos feiticeiros, chifres de carneiro incitavam-nos a prosseguir e, acima deles, pendiam as caveiras ensanguentadas dos seus reis. Alguns dos homens da fileira da frente seguravam cães-de-guerra pela trela, que seriam soltos a alguns metros da nossa linha. Meu pai estava nessa fileira da frente, enquanto Cerdic vinha a cavalo atrás da massa saxónica.

 

Avançavam muito devagar. A colina era íngreme, as suas armaduras pesadas, e não precisavam de se apressar para esta matança. Sabiam que seria uma tarefa lúgubre, contudo duraria pouco tempo. Eles viriam num escudo defensivo bem cerrado, e uma vez no talude os nossos escudos ressoariam e, então, eles tentariam empurrar-nos para trás. Os seus machados dardejariam sobre o rebordo dos nossos escudos, as suas lanças golpeariam, trespassariam e feririam. Ouvir-se-iam gemidos, uivos e guinchos, e homens a gritar de dor e homens a morrer, mas o inimigo estava em maior número; eventualmente eles flanquear-nos-iam e, desse modo, as minhas caudas de lobo pereceriam.

 

Todavia, nesse instante as minhas caudas de lobo cantavam enquanto tentavam abafar o cruel som dos lures e o incessante troar dos tambores feitos de árvores. Os saxões esforçavam-se por se aproximar. Agora víamos as divisas nos seus escudos redondos; máscaras de lobo dos homens de Cerdic e de touro dos de Aelle, e entre eles os escudos dos seus senhores da guerra: falcões e águias e um cavalo empinado. Os cães puxavam as suas trelas, desejosos de cravar os dentes no nosso escudo defensivo. Os feiticeiros gritavam-nos com vozes esganiçadas. Um deles chocalhou na nossa direcção um feixe de costelas, enquanto outro esgaravatava com os pés e as mãos como um cão e uivava as suas pragas.

 

Aguardei no ângulo sul do cume do talude, que avançava por cima do vale como a proa de um barco. Seria ali no centro que os saxões atacariam. Diverti-me com a ideia de os deixar aproximar-se e, justamente no último instante, recuar depressa para formar um círculo de escudos em volta das nossas mulheres. Contudo, ao retirar cederia o cume da colina, que seria o meu campo de batalha, e desistiria da vantagem do terreno mais elevado. Seria preferível deixar que os meus homens matassem tantos inimigos quantos conseguissem antes de sermos esmagados.

 

Tentei não pensar em Ceinwyn. Não lhe dera, nem a ela nem às minhas filhas, um beijo de despedida, e talvez elas vivessem. Talvez, no meio daquele horror, alguns lanceiros de Aelle reconhecessem o pequeno anel e as levassem a salvo até ao seu Rei.

 

Os meus homens começaram a bater com as hastes das lanças nos escudos. Ainda não necessitavam de cerrar os seus escudos. Podiam esperar até ao último instante. Os saxões levantaram os olhos quando o barulho lhes chegou aos ouvidos. Nenhum deles se adiantou para atirar uma lança a colina era demasiado íngreme para o fazer mas um dos seus cães-de-guerra partiu a trela e subiu a correr, ziguezagueando, pela relva. Eirrlyn, um dos meus dois batedores, trespassou-o com uma flecha e o cão começou a ganir e a correr em círculos com a haste da flecha a sair-lhe pela barriga. Os dois batedores começaram a lançar flechas sobre outros cães e os saxões puxaram os animais para trás dos seus escudos. Os feiticeiros correram apressadamente para os flancos, sabendo que a batalha estava prestes a iniciar-se. A flecha de um dos batedores cravou-se num escudo saxão e outra fez ricochete num elmo. Naquele instante, Já não faltava muito. Cem passos. Lambi os meus lábios secos, limpei o suor que me escorria para os olhos e fitei os rostos barbudos ferozes. O inimigo gritava, contudo não me recordo de ouvir o som das suas vozes. Recordo-me apenas do som dos seus lures, do troar dos seus tambores, do baque surdo das suas botas na relva, do tinido das bainhas nas armaduras e do entrechocar dos escudos.

 

Abri alas! Gritou Guinevere, atrás de nós, com uma voz cheia de entusiasmo.

 

Abri alas! repetiu ela.

 

Virei-me e vi que os seus vinte homens empurravam duas das carroças de mantimentos, atravessando os taludes. As carroças de bois eram enormes e andrajosos veículos com sólidos discos de madeira como rodas, e Guinevere aumentara o seu peso com outras duas armas. Retirara as hastes da parte da frente das carroças e cravara lanças no seu lugar, enquanto as armações das carroças, em vez dos mantimentos, levavam agora bolas de fogo feitas de ramos de espinheiro. Ela transformara as carroças num maciço conjunto de projécteis em chamas, que planeara rolar pela colina abaixo em direcção às fileiras inimigas juntas em feixes. Atrás das suas carroças, desejosa de ver o caos, vinha uma multidão excitada de mulheres e crianças.

 

Saiam! Gritei aos meus homens. Saiam! Eles pararam de cantar e apressaram-se a afastar-se, deixando todo o centro dos taludes sem defesa. Os saxões estavam agora a apenas setenta ou oitenta passos de distância e, ao verem o nosso escudo defensivo a dispersar, pressentiram a vitória e apertaram o passo.

 

Guinevere gritou aos seus homens para que se apressassem e mais lanceiros acorreram para imprimir mais força atrás das carroças fumegantes.

 

Avancem! Gritou ela. Avancem! E eles gemeram enquanto empurravam vigorosamente e puxavam com todas as suas forças, ao mesmo tempo que as carroças começavam a rolar mais depressa. Avancem! Avancem! Avancem! Gritava-lhes Guinevere, e ainda mais homens acorreram à parte de trás das carroças para obrigar os pesados veículos a subir a rampa de terra do antigo talude. Por instantes pensei que a pequena rampa de terra nos iria derrotar, já que as duas carroças abrandaram até estacarem e o seu denso fumo envolveu os nossos homens sufocando-os; mas Guinevere voltou a gritar aos lanceiros e eles rangeram os dentes e fizeram um último esforço para fazer passar as carroças por cima da barreira de turfa.

 

Empurrem! gritou Guinevere. Empurrem! As carroças vacilaram no talude, depois começaram a subir enquanto alguns homens as empurravam por baixo. Agora! gritou Guinevere e, de repente, nada mais havia que detivesse as carroças, para além de uma inclinada elevação de relva mais adiante e do inimigo, em baixo. Os homens que as haviam empurrado afastaram-se, exaustos, assim que os dois veículos em chamas começaram a rolar pela colina abaixo.

 

No início desceram devagar, mas depois ganharam velocidade e de tal modo ressaltaram sobre a turfa irregular que os ramos em chamas saltaram pelos lados das carroças. A encosta tornava-se mais íngreme, e agora os dois enormes projécteis deslocavam-se ruidosamente; quantidades maciças de madeira e fogo que desciam como trovões em direcção à aterrada formação saxónica.

 

Os saxões não tinham hipóteses. As suas fileiras eram demasiado compactas para que os homens fugissem das carroças, e estas haviam sido bem apontadas, já que ribombavam envoltas em fumo e chamas em direcção ao centro do ataque inimigo.

 

Fechem alas! Gritei para os meus homens. Formem uma barreira! Formem uma barreira!

 

Apressámo-nos a voltar à nossa posição inicial no preciso instante em que as carroças os atingiram. A linha inimiga quebrou-se e alguns homens tentaram dispersar, mas não havia fuga possível para os que estavam justamente no caminho das carroças. Ouvi um grito, enquanto as longas lanças presas à parte dianteira das carroças se enterravam na massa de homens, em seguida, uma das carroças empinou-se depois de as suas rodas dianteiras ressaltarem por cima de corpos caídos; todavia, continuou a rolar esmagando, queimando e despedaçando homens à sua passagem. Um escudo quebrou-se em dois quando uma roda o pisou. A segunda carroça mudou de direcção ao bater na linha saxónica. Por instantes ficou suspensa sobre duas rodas, depois caiu violentamente para o lado espalhando uma torrente de fogo por cima das fileiras saxãs. Onde houvera uma massa compacta e disciplinada, reinava agora o caos, o medo e o pânico. Até mesmo nos sítios onde as fileiras não tinham sido atingidas era o caos, já que o impacto dos dois veículos obrigara as fileiras ordenadas a vacilarem e a separarem-se.

 

Carreguem sobre eles! Gritei. Vamos!

 

Dei um grito de guerra enquanto saltava do talude. Não fora minha intenção seguir as carroças pela colina abaixo, mas a destruição que haviam causado fora tal, e o pânico inimigo era tão evidente, que havia chegado a altura de nos juntarmos àquele horror.

 

Gritámos enquanto descíamos a colina a correr. Era um grito de vitória, calculado para imprimir terror num inimigo já meio derrotado. Os saxões ainda nos suplantavam em número, mas o seu escudo defensivo fora quebrado, eles estavam sem fôlego e nós surgíamos como animais vingativos, vindos das alturas. Enterrei a minha lança na barriga de um homem, soltei a Hywelbane da bainha e ceifei tudo em meu redor como um homem que ceifa feno. Num combate como este não existem cálculos nem tácticas, apenas um imenso prazer de dominar um inimigo, de matar, de ver o medo nos seus olhos e de ver as suas últimas fileiras em debandada. Eu fazia um impressionante barulho estridente, deliciando-me com a matança e, ao meu lado, as minhas caudas de lobo mutilavam, estocavam e escarneciam de um inimigo que era suposto estar a dançar em cima dos nossos cadáveres.

 

Eles podiam ainda ter-nos derrotado, porque o seu número era descomunal, mas é difícil lutar num escudo defensivo quebrado pela colina acima e o nosso ataque súbito desestabilizara o seu estado de espírito. Muitos dos saxões também estavam ébrios. Um homem ébrio luta bem quando está a vencer, mas quando está a ser derrotado rapidamente entra em pânico, e apesar de Cerdic tentar mantê-los em combate, os seus lanceiros entraram em pânico e fugiram. Alguns dos meus lanceiros mais jovens estiveram tentados a segui-los um pouco mais pela encosta, e uma mão-cheia não resistiu à tentação e foi longe demais, pagando pela sua temeridade. Eu, porém, gritei aos outros para que permanecessem onde estavam. A maior parte dos inimigos fugiu, mas nós havíamos vencido e, a prová-lo, permanecemos de pé em cima do sangue dos saxões, tendo o nosso lado da colina ficado juncado com os seus mortos, os seus feridos e as suas armas. A carroça voltada queimava a encosta com um saxão aos gritos preso por baixo dela, enquanto a outra continuava ainda a rolar com estrondo até que estacou na sebe, no sopé da colina.

 

Algumas das nossas mulheres desceram para saquear os mortos e matar os feridos. Nem Aelle nem Cerdic estavam entre os saxões deixados na colina, mas encontrámos um importante chefe de tribo com fios de ouro e uma espada com o copo decorado a ouro, enfiada numa bainha de cabedal preto macio com linhas de prata cruzadas; retirei o cinto e a espada do homem morto e levei-os a Guinevere. Ajoelhei-me diante dela, algo que nunca fizera.

 

A vitória foi vossa, Senhora disse eu, inteiramente vossa. Ofereci-lhe a espada.

 

Ela firmou-a com a correia, depois levantou-me.

 

Obrigada, Derfel disse ela.

 

É uma bela espada afirmei.

 

Não te agradeço a espada disse Guinevere, mas por confiares em mim. Eu sempre soube que conseguiria lutar.

 

Melhor do que eu, Senhora afirmei, pesarosamente. Por que razão não pensara eu em utilizar as carroças?

 

Melhor do que eles! disse Guinevere, apontando para os saxões derrotados. Ela sorriu. E amanhã fá-lo-emos novamente.

 

Os saxões não voltaram nessa tarde. Estava um belo crepúsculo, sereno e brilhante. As minhas sentinelas guardavam o palácio enquanto as fogueiras saxãs luziam por entre as sombras dispersas ao longe. Comemos, e após a refeição falei com Scarach, a mulher de Issa, e ela recrutou outras mulheres que entre si conseguiram algumas agulhas, facas e fio. Dei-lhes algumas capas que retirara aos saxões mortos e as mulheres trabalharam até escurecer e depois pela noite dentro, à luz das nossas fogueiras.

 

Então, na manhã seguinte, assim que Guinevere acordou, havia três estandartes no talude sul de Mynydd Baddon. O urso de Artur e a estrela de Ceinwyn, mas no meio, no lugar de honra como convém a um senhor da guerra vitorioso, estava um estandarte que mostrava a insígnia de Guinevere: um veado com a lua a coroá-lo. O vento da manhã obrigara-a a levantar-se. Ela viu a insígnia e reparei que sorria.

 

Enquanto, por baixo de nós, os saxões voltavam a juntar as suas lanças.

 

Os tambores soaram ao amanhecer e, uma hora depois, cinco feiticeiros surgiram nas encostas mais baixas de Mynydd Baddon.

 

Naquele dia, conforme parecia, Cerdic e Aelle estavam determinados a exigir a vingança pela sua humilhação.

 

Os corvos dilaceravam mais de cinquenta cadáveres saxões que jaziam ainda na encosta, próximo dos restos chamuscados das carroças, e alguns dos meus homens quiseram arrastar aqueles mortos para o longo talude da trincheira e fazer aí uma horripilante fileira de corpos para receber o novo assalto saxão, mas eu proibi-os. Em breve, calculei, os nossos cadáveres estariam à disposição dos saxões e se nós profanássemos os seus mortos seríamos então, também nós, profanados.

 

Rapidamente percebemos que, desta vez, os saxões não se arriscariam a um assalto que pudesse transformar-se num caos por uma carroça desenfreada. Pelo contrário, eles preparavam um grande número de colunas que subiriam a colina pelo sul, por leste e por oeste. Cada grupo de atacantes seria apenas de setenta ou oitenta homens, mas ao todo os poucos atacantes suplantar-nos-iam. Talvez conseguíssemos derrotar três ou quatro colunas, mas as outras facilmente passariam os taludes e, deste modo, pouco mais podíamos fazer do que rezar, cantar, comer e, para aqueles que precisassem, beber. Prometemos uns aos outros uma boa morte, significando que lutaríamos até ao fim e cantaríamos durante tanto tempo quanto conseguíssemos, mas julgo que todos sabíamos que tudo acabaria não com uma canção de desafio, mas num tumulto de humilhação, dor e terror. Seria pior ainda para as mulheres.

 

Deverei render-me? perguntei a Ceinwyn. Ela pareceu surpreendida.

 

Não me cabe a mim dizê-lo.

 

Nunca fiz nada sem o teu conselho disse-lhe eu.

 

Em relação à guerra afirmou ela, não tenho nenhum conselho a dar-te, excepto talvez perguntar o que acontecerá às mulheres se tu te renderes.

 

Serão violadas, feitas escravas, ou dadas como esposas a homens que precisam de uma mulher.

 

E se tu te renderes?

 

Praticamente o mesmo admiti. Simplesmente a violação seria menos premente.

 

Ela sorriu.

 

Afinal, não precisas do meu conselho. Vai e combate, Derfel, e se eu não te vir senão no Outro Mundo, sabes que atravessaste a ponte das espadas com o meu amor.

 

Abracei-a, depois beijei as minhas filhas, e voltei para a proa saliente do talude sul para observar o início da subida dos saxões. Este ataque não demorara tanto tempo como o primeiro, já que aquele necessitara da organização e do encorajamento de uma massa de homens, enquanto neste dia o inimigo não precisava de nenhuma motivação. Vinha por vingança e em tão pequenos grupos que ainda que tivéssemos rolado uma carroça pela colina abaixo conseguiriam fugir dela com facilidade. Não se apressavam, mas não precisavam de o fazer.

 

Dividi os meus homens em dez grupos, cada um deles responsável por duas colunas saxãs. Todavia, tive dúvidas que até mesmo os melhores dos meus lanceiros ficassem de pé mais de três ou quatro minutos. O mais provável, pensei, era os meus homens recuarem para protegerem as suas mulheres assim que o inimigo ameaçasse contorná-los e, nessa altura, a luta decairia numa infeliz carnificina apenas num dos lados em volta da nossa cabana de recurso e das suas fogueiras de acampamento. Assim seja, pensei, e caminhei por entre os meus homens, agradecendo-lhes os seus serviços e encorajando-os a matar tantos saxões quantos conseguissem. Recordei-lhes que os inimigos que matassem na batalha seriam seus servos no Outro Mundo, ”Por isso matai-os” afirmei ”e deixai que os seus sobreviventes recordem esta batalha com horror”. Alguns começaram a cantar a Canção da Morte de Werlinna, uma canção lenta e melancólica que era cantada em volta das piras funerárias dos guerreiros. Cantei com eles, observando os saxões subindo e aproximando-se cada vez mais, e por estar a cantar, e o meu elmo estar bem ajustado aos meus ouvidos, não ouvi Niall, dos Escudos Negros, a chamar-me da orla mais distante da colina.

 

Só quando ouvi os aplausos das mulheres é que me virei. Porém, nada vi de fora do comum, mas depois, por cima do som dos tambores saxões, ouvi a nota estridente e alta de um lur.

 

Já anteriormente ouvira aquele toque do lur. Ouvira-o, pela primeira vez, quando ainda era um jovem lanceiro e Artur acorrera a salvar a minha mulher, e agora surgia novamente.

 

Ele viera a cavalo com os seus homens, e Niall gritara-me quando os cavaleiros bem aprestados em pesadas armaduras irromperam em direcção aos saxões, na colina para lá da depressão oblonga, e desceram a encosta a galope. Em Mynydd Baddon, as mulheres corriam para os taludes para o ver, uma vez que Artur não subia para o cume, conduzindo antes os seus homens em torno da encosta mais elevada da colina. Ele envergava a armadura polida de lâminas metálicas, trazia o elmo com incrustações a ouro e empunhava o escudo de prata trabalhada. O seu grande estandarte de guerra não estava desfraldado com o urso preto a tremular, resoluto, num campo de linho tão branco como as penas de ganso do elmo de Artur. A sua capa branca ondeava dos seus ombros e uma flâmula de fita branca estava presa à base da lâmina da sua longa espada. Todos os saxões que se encontravam nas encostas mais baixas de Mynydd Baddon sabiam quem ele era e sabiam o que aqueles grandes cavalos podiam fazer às suas pequenas colunas. Artur trouxera apenas quarenta homens, já que a maior parte dos seus grandes cavalos de guerra havia sido roubada por Lancelote no ano anterior. Todavia, quarenta homens bem aprestados com armaduras em quarenta cavalos podiam provocar o terror na infantaria.

 

Artur obrigou o cavalo a seguir a passo por baixo do ângulo sul dos taludes. O vento soprava fraco, de modo que o estandarte de Guinevere não era visível, vislumbrando-se apenas uma bandeira irreconhecível pendurada do seu mastro provisório. Ele andou à minha procura e, por fim, reconheceu o meu elmo e a minha armadura.

 

Tenho duzentos lanceiros a cerca de quilómetro e meio daqui! gritou-me ele.

 

Excelente, Senhor! respondi-lhe. Sede bem-vindo!

 

Podemos aguentá-los até que os lanceiros cheguem! gritou-me ele, depois acenou para os seus homens. Não desceu a colina, continuando a cavalgar em torno das encostas mais altas de Mynydd Baddon como se desafiasse os saxões a subirem e a defrontá-lo.

 

Porém, a visão daqueles cavalos era suficiente para os suster, porque nenhum saxão queria ser o primeiro a subir e a defrontar-se com aquelas lanças galopantes. Se o inimigo tivesse avançado em conjunto podia com facilidade ter derrotado os homens de Artur; todavia, a curva da colina fazia com que a maior parte dos saxões fosse invisível para os outros, e cada grupo deve ter tido esperança que outro se atrevesse a atacar os cavaleiros em primeiro lugar, e deste modo todos eles hesitaram. De vez em quando, um grupo de homens mais afoitos escalava, mas sempre que os cavaleiros de Artur surgiam, eles desciam nervosamente a colina. O próprio Cerdic reagrupou imediatamente os homens por baixo do ângulo sul, mas assim que os homens de Artur se viraram para fazer frente àqueles saxões, eles vacilaram. Haviam esperado uma batalha fácil contra um pequeno número de lanceiros, e não estavam preparados para defrontar a cavalaria. Não a subir a colina, não a cavalaria de Artur. Outros guerreiros a cavalo podiam não os assustar, mas sabiam o significado daquela capa branca, do penacho com penas de ganso e do escudo que brilhava como o próprio sol. Significava que a morte viera ao seu encontro, e nenhum deles pretendia subir até ela.

 

Meia hora mais tarde, a infantaria de Artur chegou à depressão oblonga da colina. Os saxões, que haviam tomado a colina a norte da depressão fugiram com a chegada dos nossos reforços, e aqueles lanceiros cansados subiram até aos nossos taludes ensurdecidos pelas nossas exclamações. Os saxões ouviram os aplausos e viram as novas lanças a surgirem por cima do antigo palácio, tudo aquilo terminando com as suas ambições daquele dia. As colunas retiraram-se e Mynydd Baddon ficou a salvo por mais um dia.

 

Artur retirou o elmo enquanto esporeava o fatigado Llamrei pela colina acima, em direcção aos nossos estandartes. Uma brisa soprou e ele levantou os olhos, vendo o veado de Guinevere coroado pela lua a esvoaçar ao lado do seu urso. O largo sorriso no seu rosto não se alterou. Nem disse nada a propósito do estandarte ao deslizar do dorso de Llamrei. Ele devia saber que Guinevere estava comigo, já que Balin a vira em Aquae Sulis e os dois homens que eu enviara com as mensagens podiam ter-lho dito; porém, fingiu nada saber. Tal como nos velhos tempos, e como se nenhuma frieza alguma vez tivesse existido entre nós, ele abraçou-me.

 

Toda a sua melancolia se dissipara. A vida ressurgira no seu rosto, um entusiasmo que se espalhava por entre os meus homens, que se reuniam em volta dele para ouvir as novas que trazia, embora primeiro tivesse querido saber as nossas novidades. Cavalgara por entre os mortos saxões na encosta e queria saber como e quando tinham eles morrido. Desculpavelmente os meus homens exageraram o número dos que haviam atacado na véspera, e Artur riu quando ouviu dizer que havíamos empurrado duas carroças em chamas pela encosta abaixo.

 

Bravo, Derfel disse ele, bravo.

 

Não se deveu a mim, Senhor respondi, mas a ela. Fiz um breve e rápido aceno com a cabeça em direcção à bandeira de Guinevere.

 

Foi tudo obra dela, Senhor. Eu estava preparado para morrer, mas ela tinha em mente outra coisa.

 

Sempre teve disse ele em voz baixa, mas nada mais perguntou. Não se via Guinevere em lado nenhum, e ele não perguntou por ela. Viu Bors e insistiu em o abraçar e ouvir as suas novidades, e só depois subiu para a muralha de turfa e olhou, fixamente, os acampamentos saxões em baixo. Permaneceu aí durante longo tempo, mostrando-se a um inimigo desalentado, mas algum tempo depois chamou por Bors e por mim para que nos juntássemos a ele.

 

Nunca planeei combatê-los aqui disse-nos ele, mas é um sítio tão bom como qualquer outro. Na verdade, é melhor do que a maioria. Estão aqui todos? perguntou a Bors.

 

Bors estivera novamente a beber antevendo o ataque saxão, mas fez os possíveis por parecer sóbrio.

 

Todos, Senhor. Excepto talvez a guarnição de Caer Ambra. Era suposto eles irem atrás de Culhwuch. Bors fez um movimento brusco com a barba em direcção à colina leste, de onde desciam ainda mais saxões para se juntarem ao acampamento.

 

Talvez sejam eles, Senhor? Ou talvez sejam apenas saqueadores?

 

A guarnição de Caer Ambra nunca encontrou Culhwuch afirmou Artur, porque ontem recebi uma mensagem sua. Não está longe, e Cuneglas também está próximo. Dentro de dois dias teremos aqui mais quinhentos homens e, nessa altura, eles apenas terão vantagem de um para dois deu uma gargalhada. Bravo, Derfel!

 

Bravo? perguntei, com alguma surpresa. Eu esperara a reprovação de Artur por ter sido cercado tão longe de Corinium.

 

Tínhamos de os defrontar nalgum lado afirmou, e tu escolheste o local. Agrada-me. Ficámos com o terreno mais elevado proferiu estas palavras em voz alta, para que a sua confidência chegasse aos meus homens.

 

Eu teria chegado aqui antes acrescentou ele, virando-se para mim, no entanto, não tinha a certeza se Cerdic mordia o isco.

 

Isco, Senhor? Eu estava confuso.

 

Tu, Derfel, tu deu uma gargalhada e saltou do talude.

 

A guerra é perfeitamente casual, não é? E, por casualidade, encontraste um local onde conseguíssemos derrotá-los.

 

Quereis dizer que subirão a colina? perguntei.

 

Não serão tão tolos afirmou ele, satisfeito.

 

Não, receio que tenhamos de descer a colina e lutar com eles no vale.

 

Com quê? perguntei, amargurado, porque até mesmo com as tropas de Cuneglas estaríamos em muito menor número.

 

Com todos os homens que temos disse Artur, confiante. E sem nenhuma mulher. Chegou a altura de levarmos as nossas famílias para um lugar mais seguro.

 

As nossas mulheres e crianças não iriam para longe; havia uma vila a uma hora de caminho para norte e a maioria encontraria aí abrigo. No preciso instante em que deixavam Mynydd Baddon, mais lanceiros de Artur chegaram do norte. Eram os homens que Artur havia reunido próximo de Corinium e contavam-se entre os melhores da Bretanha. Sagramor chegou com os seus melhores guerreiros e, tal como Artur, subiu para o elevado ângulo sul de Mynydd Baddon de onde conseguia ver o inimigo, lá em baixo; e também eles podiam olhar para cima e ver a sua figura esguia numa armadura preta recortada na linha do horizonte. Um breve sorriso surgiu no seu rosto.

 

O excesso de confiança fá-los parecerem tolos afirmou, de forma trocista. Sitiaram-se num terreno baixo e agora não sairão dali.

 

Não?

 

Uma vez construído um abrigo, o saxão não gosta de se mudar. Cerdic levará uma semana, ou mais, a retirá-los daquele vale.

 

Os saxões e as suas famílias haviam-se sem dúvida instalado, e nessa altura o vale do rio assemelhava-se a duas solitárias vilas de pequenas cabanas de colmo. Uma das vilas situava-se próximo de Aquae Sulis, enquanto a outra ficava a três quilómetros para leste, onde o vale do rio fazia uma curva pronunciada para sul. Os homens de Cerdic encontravam-se naquelas duas cabanas a leste, ao passo que os lanceiros de Aelle estavam aquartelados na cidade ou nos abrigos exteriores recentemente construídos. Eu ficara surpreendido por os saxões usarem a cidade como abrigo, em vez de simplesmente a queimarem; mas todas as manhãs, um cortejo isolado de homens atravessava os portões, deixando atrás de si a visão acolhedora do fumo dos cozinhados a subir dos telhados de colmo e de telha de Aquae Sulis. A primeira invasão dos saxões fora repentina, mas agora o seu ímpeto desaparecera.

 

E por que razão dividiram eles o exército em dois? perguntou-me Sagramor, fitando incrédulo o enorme espaço vazio entre o acampamento de Aelle e as cabanas de Cerdic.

 

Para nos deixar apenas um sítio para onde ir respondi directamente ali para baixo apontei para o vale, onde seremos cercados por eles.

 

E onde podemos mantê-los separados notou Sagramor, satisfeito, e dentro de alguns dias a enfermidade devastá-los-á ali.

 

A enfermidade parecia surgir sempre que um exército se instalava num local. Fora, simplesmente, uma praga semelhante que pusera fim à última invasão da Dumnónia por Cerdic, e uma terrível doença contagiosa que enfraquecera o nosso exército quando avançámos sobre Londres.

 

Eu temia que, naquele momento, semelhante doença pudesse enfraquecer-nos, mas não sei por que razão fomos poupados, talvez por ainda sermos poucos ou por Artur ter disposto o seu exército ao longo dos quase cinco quilómetros do elevado terreno do cume, que se expandia para trás de Mynydd Baddon. Eu e os meus homens permanecemos no monte, mas os lanceiros recém-chegados ficaram nas colinas, a norte. Nos primeiros dois dias que se seguiram à chegada de Artur, o inimigo podia ainda ter-se apoderado daquelas colinas, já que os seus cumes estavam precariamente guarnecidos. No entanto, os cavaleiros de Artur eram sempre visíveis e ele manteve os seus lanceiros em movimento por entre as árvores do cume para parecer que eram mais numerosos do que na verdade eram. Os saxões observavam-nos, contudo não atacaram. Então, ao terceiro dia após a chegada de Artur, Cuneglas e os seus homens chegaram de Powys e nós conseguimos guarnecer todo o vasto cume com vigias, que poderiam dar o alarme se algum ataque saxão, de facto, nos ameaçasse. Estávamos ainda em grande desvantagem numérica, mas ocupávamos o terreno mais elevado e agora tínhamos os lanceiros para nos defender.

 

Os saxões deviam ter abandonado o vale. Podiam ter avançado para o Severn e sitiado Glevum e, nesse caso, teríamos sido forçados a abandonar o nosso terreno elevado e a segui-los, mas Sagramor tinha razão; homens que se instalam confortavelmente têm relutância em deslocar-se, por isso Cerdic e Aelle permaneceram teimosamente no vale do rio, acreditando que nos cercavam quando, na verdade, éramos nós que os sitiávamos. De facto, por fim, empreenderam alguns ataques pelas colinas acima, mas nenhum desses assaltos foi suficientemente enérgico. Os saxões subiam em grande número pelas colinas, mas assim que no cume surgia uma linha de escudos prontos a fazerem-lhes frente e uma horda da pesada cavalaria de Artur lhes aparecia pelos flancos com as lanças em punho, a sua veemência esmorecia e recuavam para as aldeias; e cada fracasso dos saxões apenas aumentava a nossa confiança.

 

Estávamos já tão confiantes que, depois do exército de Cuneglas chegar, Artur sentiu que podia deixar-nos. No início fiquei estupefacto, já que não dera outra explicação senão a de ter uma importante incumbência que lhe tomava um dia de viagem para norte. Julgo que a minha admiração foi evidente, porque colocou um braço sobre os meus ombros.

 

Ainda não vencemos disse-me ele.

 

Bem sei, Senhor.

 

Mas quando chegar a altura, Derfel, quero que esta vitória seja esmagadora. Nenhuma outra pretensão me tiraria daqui. Sorriu. Confias em mim?

 

Certamente, Senhor.

 

Deixou Cuneglas no comando do nosso exército, mas com ordens expressas para que não atacássemos o vale uma única vez. Os saxões deviam pensar que nos dominavam, e para dar mais consistência a esta fraude uma mão-cheia de voluntários fingiu desertar e correu para os campos saxões com novas de que os nossos homens tinham tão fraco moral que alguns preferiam fugir a entrar numa luta; e, ainda, que os nossos comandantes estavam em furiosa disputa sobre se havíamos de ficar e fazer frente ao ataque saxão ou fugir para norte e pedir refúgio em Gwent.

 

Ainda não sei se conseguiremos encontrar uma forma de acabar com isto admitiu Cuneglas um dia depois de Artur ter partido. Estamos bastante fortes para os manter afastados do terreno mais elevado continuou, mas não tanto para descermos até ao vale e derrotá-los.

 

Então, talvez Artur tenha ido buscar auxílio, meu Rei e Senhor, sugeri.

 

Que auxílio? perguntou Cuneglas.

 

Talvez Culhwuch? respondi, apesar de ser improvável, já que se dizia que Culhwuch estava para leste dos saxões, e Artur rumara a norte. Oengus mac Airem? aventei. O Rei da Demétia prometera o seu exército de Escudos Negros, mas esses irlandeses ainda não haviam chegado.

 

Talvez Oengus concordou Cuneglas, mas até com os Escudos Negros não teremos homens suficientes para vencer aqueles estupores. Acenou para baixo, em direcção ao vale. Precisamos dos lanceiros de Gwent para o conseguir.

 

E Meurig não avançará afirmei.

 

Meurig não avançará concordou Cuneglas, mas há alguns homens em Gwent que o farão. Ainda se recordam do Vale do Lugg.

 

Dirigiu-me um sorriso perverso, já que por essa ocasião Cuneglas era nosso inimigo e os homens de Gwent, que eram nossos aliados, haviam temido marchar contra o exército liderado pelo pai de Cuneglas. Em Gwent, alguns ainda sentiam vergonha por tamanho fracasso, uma vergonha agravada por Artur ter vencido sem o seu auxílio, e julguei possível que, se Meurig o permitisse, Artur conduziria alguns desses voluntários para sul, para Aquae Sulis; todavia, ainda assim, eu não via como ele conseguiria reunir homens suficientes que nos permitisse descer àquele ninho de saxões e matá-los.

 

Talvez sugeriu Guinevere, ele tenha ido à procura de Merlim.

 

Guinevere recusara-se a partir com as outras mulheres e as crianças, insistindo que veria a batalha até ao fim, quer vencêssemos quer fôssemos derrotados. Julguei que Artur insistiria para que ela partisse, mas sempre que Artur vinha ao cume da colina, Guinevere escondia-se na tosca cabana que havíamos construído no planalto, e só depois de Artur ter partido voltava a aparecer. Certamente, Artur sabia que ela permanecera em Mynydd Baddon, já que observara demoradamente a partida das nossas mulheres, devendo ter visto que ela não estava com elas; porém, nada dissera. Nem Guinevere, quando surgiu, falou em Artur, apesar de sorrir ao ver que ele permitira que a sua bandeira permanecesse nos taludes. No início encorajei-a a deixar o monte, mas ela rejeitou a minha sugestão e nenhum dos meus homens quis que ela partisse. Atribuíam a sua sobrevivência a Guinevere, e com grande justiça, e a sua recompensa foi aprontá-la para a batalha. Haviam retirado uma bela cota de malha do cadáver de um saxão abastado, e depois de terem limpo o sangue dos anéis de malha, ofereceram-na a Guinevere, pintaram a sua insígnia num escudo capturado, e um dos meus homens emprestou mesmo o seu muito estimado elmo com cauda de lobo para que, desse modo, ela ficasse vestida como os meus lanceiros, embora, tratando-se de Guinevere, a indumentária de guerra assentasse de forma perturbadoramente sedutora. Ela tornara-se o nosso talismã, uma heroína para todos os meus homens.

 

Ninguém sabe onde está Merlim afirmei, respondendo à sua sugestão.

 

Corria o rumor de que estaria em Demétia disse Cuneglas, por isso talvez venha com Oengus.

 

Mas o vosso druida veio? perguntou Guinevere a Cuneglas.

 

Malaine está aqui confirmou Cuneglas, e sabe amaldiçoar bastante bem. Talvez não como Merlim, mas fá-lo bastante bem.

 

E que é feito de Taliesin? perguntou Guinevere.

 

Cuneglas não se mostrou surpreendido por ela ter ouvido falar no jovem bardo, porque não havia dúvida que a fama de Taliesin se espalhava rapidamente.

 

Foi à procura de Merlim afirmou ele.

 

E ele é assim tão bom? perguntou Guinevere.

 

Muito bom afirmou Cuneglas. Ele canta as águias que pairam nos céus e os salmões que saltam nas águas.

 

Rezo para que em breve o escutemos disse Guinevere e na verdade, aqueles estranhos dias passados naquele cume soalheiro da colina pareciam mais apropriados ao canto do que à peleja. A Primavera chegara suavemente, o Verão não estava distante, e nós estendíamo-nos sobre a relva quente e observávamos os nossos inimigos que pareciam atacados por uma repentina falta de energia. Tentavam os seus escassos e inúteis ataques às colinas, mas não faziam um verdadeiro esforço para deixar o vale. Mais tarde, soubemos que discutiam. Aelle quisera juntar todos os lanceiros saxões e irromper pelas colinas a norte para deste modo, dividir o nosso exército em dois e destruí-los separadamente, mas Cerdic preferia aguardar até que a nossa comida escasseasse e a nossa confiança esmorecesse, embora essa fosse uma esperança vã, já que tínhamos muitos mantimentos e a nossa confiança aumentava a cada dia que passava. Foram os saxões que começaram a ficar sem alimentos, já que os ágeis cavaleiros de Artur saquearam o seu grupo de salteadores, desvanecendo a confiança dos saxões. Passada uma semana, vimos montes de terra fresca surgir nas campinas junto às suas cabanas e percebemos que o inimigo cavava sepulturas para enterrar os seus mortos. A doença que esvazia as entranhas a jorros e rouba toda a força a um homem assolara o inimigo e, todos os dias, os saxões enfraqueciam um pouco mais. No rio, algumas mulheres montaram armadilhas para os peixes em busca de alimento para os seus filhos, os homens saxões abriam sepulturas, e nós estendíamo-nos ao sol quando ele ia alto e falávamos de bardos.

 

Artur regressou um dia depois das primeiras sepulturas saxãs serem abertas. Esporeou o seu cavalo ao atravessar a depressão oblonga e ao subir a íngreme encosta norte de Mynydd Baddon, incitando Guinevere a colocar o seu novo elmo e a pôr-se de cócoras no meio de um grupo dos meus homens. O seu cabelo ruivo ondulava como uma bandeira por baixo da orla do elmo, mas Artur fingiu não reparar. Caminhei ao seu encontro e, a meio da subida para o cume da colina, detive-me e fitei-o estarrecido.

 

O seu escudo era um círculo de pranchas de salgueiro cobertas de cabedal, e por cima do cabedal tinha sido trabalhada uma fina folha de prata polida, que brilhava com o reflexo da luz do sol; mas um novo símbolo era visível no seu escudo. Era uma cruz; uma cruz vermelha, feita com bocados de pano que haviam sido colados em cima da prata. A cruz cristã. Viu a minha perplexidade e fez um sorriso largo.

 

Agrada-te, Derfel?

 

Tendes-vos tornado cristão, Senhor? pareci consternado.

 

Todos nos tornámos cristãos afirmou ele, tu também. Aquece uma lâmina e marca uma cruz nos vossos escudos.

 

Cuspi para afastar o mal.

 

Quereis que o façamos, Senhor?

 

Ouviste o que eu disse, Derfel afirmou ele, depois deslizou do dorso de Llamrei e caminhou em direcção aos taludes a sul, de onde conseguia observar o inimigo. Ainda aqui estão disse ele. Óptimo.

 

Cuneglas viera colocar-se ao meu lado e, casualmente, ouviu as últimas palavras de Artur.

 

Quereis que sejamos nós a pôr uma cruz nos nossos escudos? perguntou ele.

 

Não vos posso exigir nada, meu Rei e Senhor disse Artur, mas se colocásseis uma cruz no vosso escudo e nos dos vossos homens, ficar-vos-ia grato.

 

Porquê? perguntou Cuneglas, iradamente. Era conhecida a sua oposição à nova religião.

 

Porque, disse Artur, continuando a olhar para o inimigo, a cruz é o preço a pagar pelo exército de Gwent.

 

Cuneglas fitou Artur como se lhe fosse difícil acreditar no que ouvia.

 

Meurig vem a caminho? perguntei.

 

Não respondeu Artur, virando-se para nós, Meurig não. Virá o rei Tewdric. O bom Tewdric.

 

Tewdric era o pai de Meurig, o rei que renunciara ao seu trono para tornar monge, e Artur fora a Gwent para pedir auxílio ao ancião.

 

Eu sabia que seria possível disse-me Artur, porque Galaad e eu havíamos falado com Tewdric durante todo o Inverno.

 

No início, disse Artur, o velho Rei estivera relutante em desistir da sua vida religiosa e modesta, mas outros homens de Gwent juntaram as suas vozes ao pedido de Artur e de Galaad e, após várias noites passadas a rezar na sua pequena capela, Tewdric declarara, com relutância, que temporariamente reassumiria o seu trono e conduziria o exército de Gwent para sul. Meurig insurgira-se contra essa decisão, que ele com razão viu como uma censura e uma humilhação, mas o exército de Gwent apoiara o velho Rei e, desse modo, dirigia-se agora para sul.

 

Houve um preço a pagar admitiu Artur. Tive de me ajoelhar diante do seu Deus e prometer atribuir-Lhe a vitória, mas atribuirei a vitória a qualquer Deus que Tewdric queira desde que ele traga os seus lanceiros.

 

E que mais teremos de fazer? perguntou Cuneglas, mostrando perspicácia.

 

Artur fez uma careta.

 

Eles pretendem que deixais os missionários de Meurig irem para Powys.

 

Apenas isso? perguntou Cuneglas.

 

Eu posso ter dado a impressão admitiu Artur, que vós os acolheríeis. Lamento, meu Rei e Senhor. O pedido chegou-me apenas há dois dias, e a ideia partiu de Meurig, cuja reputação tem de ser salvaguardada.

 

Cuneglas fez uma careta. Ele fizera todos os possíveis por impedir que o Cristianismo entrasse no seu reino, calculando que Powys não necessitava da acrimónia que se seguia sempre à implantação de uma nova fé, mas não protestou com Artur. Seria preferível cristãos em Powys, deverá ter ele concluído, do que saxões.

 

Foi tudo o que haveis prometido a Tewdric, Senhor? perguntei, desconfiado, a Artur. Lembrei-me de Meurig ter pedido que lhe entregássemos o trono da Dumnónia e do desejo de Artur de se ver livre dessa responsabilidade.

 

Estes tratados têm sempre alguns pormenores com os quais nem devemos incomodar-nos respondeu Artur, alegremente, mas na verdade prometi libertar Sansum. Agora, é o Bispo de Dumnónia! E, novamente, um conselheiro real. Tewdric insistiu para que assim fosse. Sempre que derrubo o nosso bom Bispo ele volta a surgir subitamente deu uma gargalhada.

 

Foi tudo o que haveis prometido, Senhor? voltei a perguntar, ainda desconfiado.

 

Prometi o suficiente, Derfel, para ter a certeza de que Gwent viria em nosso auxílio afirmou Artur, e eles comprometeram-se a estar aqui dentro de dois dias com seiscentos dos seus melhores lanceiros. Até mesmo Agrícola concluiu que não estava demasiado velho para combater. Lembras-te de Agrícola, Derfel?

 

Sem dúvida que me recordo dele, Senhor respondi.

 

Agrícola, o velho senhor da guerra de Tewdric, podia nessa altura ter já uma idade avançada, mas continuava a ser um dos mais famosos guerreiros da Bretanha.

 

Virão todos de Glevum Artur apontou para oeste, onde a estrada de Glevum surgia no vale do rio, e quando chegarem, juntar-me-ei a eles com os meus homens e, em conjunto, atacaremos imediatamente o vale.

 

Ele estava de pé, no talude, olhando fixamente para o profundo vale, todavia no seu espírito não via os campos, as estradas, as colheitas a serem agitadas pelo vento, nem as pedras tumulares do cemitério romano, mas toda a batalha a desenrolar-se diante dos seus olhos.

 

No início, os saxões ficarão confusos continuou, mas provavelmente transformar-se-ão numa massa de inimigos em fuga por aquela estrada

 

apontou para o Caminho Valado, imediatamente abaixo de Mynydd Baddon

 

e vós, meu Rei e Senhor, fez uma vénia a Cuneglas e tu, Derfel, saltou do baixo talude e enterrou um dedo na minha barriga atacá-los-ão pelos flancos.

 

Colina abaixo, em direcção aos seus escudos! Juntar-nos-emos a vós, desenhou uma curva com a mão para mostrar como as suas tropas circundariam o flanco norte dos saxões e depois aniquilamo-los empurrando-os para o rio.

 

Artur viria de oeste e nós atacaríamos a partir do norte.

 

E eles fugirão para leste afirmei, irritado. Artur abanou a cabeça.

 

Culhwuch marchará para norte amanhã, para se juntar aos Escudos Negros de Oengus mac Airem e, neste momento, já vêm a descer de Corinium. Ele estava satisfeito consigo mesmo, e não admirava, porque se tudo resultasse cercaríamos o inimigo e depois matá-lo-íamos. Todavia, este plano comportava riscos. Calculei que quando os homens de Tewdric chegassem e os Escudos Negros de Oengus se juntassem a nós, o nosso número não seria muito inferior ao dos saxões. Artur, porém, propunha dividir o nosso exército em três partes e, se os saxões resistissem, conseguiriam destruir cada uma delas separadamente. No entanto, se entrassem em pânico, e se os nossos ataques fossem implacáveis e arrasadores, e se eles ficassem confusos com o barulho, a poeira e o horror, poderíamos simplesmente arrastá-los como gado para o matadouro.

 

Dois dias disse Artur, apenas dois dias. Rezem para que os saxões não saibam disto e para que permaneçam onde estão.

 

Pediu Llamrei, lançando um olhar rápido aos lanceiros ruivos, depois foi juntar-se a Sagramor na serrania para lá da depressão oblonga.

 

Na noite anterior à batalha, todos gravámos cruzes nos nossos escudos. Era o pequeno preço a pagar pela vitória, embora não fosse, eu sabia-o, tudo o que teríamos de pagar. O resto seria pago com sangue.

 

Julgo, Senhora disse eu a Guinevere, nessa noite, que será melhor permanecerdes aqui em cima amanhã.

 

Ambos partilhávamos um corno de hidromel. Constara-me que ela gostava de conversar até tarde e eu adquirira o hábito de me sentar junto à sua fogueira antes de ir dormir. Agora, ela ria da minha sugestão de que devia permanecer em Mynydd Baddon enquanto descêssemos a colina para combater.

 

Sempre pensei que eras um homem pouco inteligente, Derfel afirmou ela, pouco inteligente, sujo e teimoso. Agora começo a gostar de ti, por isso peço-te que não me faças pensar que sempre tive razão a teu respeito.

 

Senhora pedi-lhe, o escudo defensivo não é lugar para uma mulher.

 

Nem a prisão, Derfel. Além disso, julgas que consegues vencer sem mim?

 

Estava sentada à entrada da cabana que construíramos com as carroças e algumas árvores. Havia-lhe sido concedida toda uma parte da cabana para dela fazer os seus aposentos e, nessa noite, convidara-me para partilhar uma ceia de carne chamuscada cortada da anca de um dos bois que haviam puxado as carroças até ao cume de Mynydd Baddon. O fogo que servira para cozinhar a nossa ceia extinguia-se naquele momento, lançando fumo em direcção às brilhantes estrelas que formavam um arco sobre nós. A Lua em forma de foice estava baixa, por cima das colinas a sul, contornando as sentinelas que caminhavam, pausadamente, nos nossos taludes.

 

Eu quero vê-la até ao fim disse ela, com os olhos a brilharem-lhe por entre as sombras. Há anos que não me divertia tanto, Derfel, há anos.

 

O que irá acontecer amanhã no vale, Senhora afirmei, não será divertido. Será uma tarefa penosa.

 

Eu sei ela fez uma pausa. Mas os teus homens acreditam que eu lhes darei a vitória. Negas-lhes a minha presença, se a tarefa for difícil?

 

Não, Senhora consenti. Mas resguardai-vos, peço-vos. Ela sorriu perante a veemência das minhas palavras.

 

Isso é uma prece pela minha sobrevivência, Derfel, ou o medo que Artur se zangue contigo se eu for ferida?

 

Hesitei.

 

Julgo que ele pode ficar zangado, Senhora admiti.

 

Guinevere saboreou aquela resposta durante algum tempo.

 

Ele fez perguntas a meu respeito? quis ela saber por fim.

 

Não, afirmei, com sinceridade. Nem por uma única vez. Ela fitou as brasas.

 

Talvez ele esteja apaixonado por Argante disse ela, melancolicamente.

 

Creio que ele nem suporta vê-la respondi. Há uma semana atrás, eu nunca teria sido tão sincero, mas Guinevere e eu sentíamo-nos agora muito mais próximos um do outro. Ela é demasiado jovem para ele prossegui, e nem tão-pouco medianamente esperta.

 

Os seus olhos brilhavam à luz do fogo quando os levantou e me fitou, desafiadoramente.

 

Esperta disse ela. Eu costumava pensar que era esperta. Mas todos vocês acham que sou uma tola, não é?

 

Não, Senhora.

 

Sempre foste um péssimo mentiroso, Derfel. Por essa razão, nunca foste cortês. Para se ser verdadeiramente cortês tem de se mentir com um sorriso.

 

Ela olhou fixamente para o fogo. Permaneceu em silêncio durante muito tempo, e ao voltar a falar o tom jocoso, mas gentil, da sua voz desvanecera-se. Talvez tenha sido a proximidade da batalha que a transportou para um estádio de verdade que nunca antes lhe ouvira.

 

Fui uma tola disse ela, num tom de voz tão baixo que tive de me inclinar para diante para a ouvir por cima da crepitação do lume e da canção que os meus homens entoavam. Agora digo para comigo que era uma espécie de demência continuou ela, mas não creio que fosse. Era apenas ambição continuou, novamente em voz baixa, observando as pequenas chamas crepitantes. Quis ser a mulher de um César.

 

Haveis sido afirmei. Ela abanou a cabeça.

 

Artur não é nenhum César. Não é um tirano, mas creio que desejei que o fosse; alguém como Gorfyddyd. Gorfyddyd fora o pai de Ceinwyn e de Cuneglas, um Rei de Powys inumano, inimigo de Artur, e, se os rumores se confirmavam, amante de Guinevere. Ela deve ter pensado nesse rumor, porque de repente me desafiou com um olhar franco e directo. Alguma vez te disse que ele tentou violar-me?

 

Sim, Senhora respondi.

 

Não, foi verdade disse ela, sombriamente. Não só tentou, como me violou. Ou, pelo menos, afirmei para mim mesma que era violação. As palavras saíam-lhe em breves espasmos, como se a verdade fosse algo extremamente difícil de admitir. Contudo, talvez não tenha sido violação. Eu queria ouro, honra e posição brincava com o debrum do seu justilho, puxando pequenos pedaços do tecido já puído. Eu estava constrangido, mas não a interrompi, porque sabia que ela queria falar. Mas não os obtive dele, Ele sabia exactamente o que eu queria, mas sabia melhor ainda o que pretendia para si próprio, e nunca teve intenções de pagar o meu preço. Em vez de o fazer, prometeu-me em casamento a Valerin. Sabes o que eu ia fazer com Valerin? Os seus olhos voltaram a desafiar-me e, desta vez, o seu brilho não era apenas por causa do fogo, mas por um tremeluzir de lágrimas.

 

Não, Senhora.

 

Eu ia fazer dele Rei de Powys disse ela, vingativa. Ia usar Valerin para me vingar de Gorfyddyd. Também o podia ter feito, mas depois conheci Artur.

 

No Vale do Lugg afirmei, cautelosamente, matei Valerin.

 

Eu sei que o fizeste.

 

E ele tinha um anel no dedo, Senhora prossegui, com a vossa divisa.

 

Ela fitou-me. Sabia a que anel me referia.

 

E tinha uma cruz de amantes? perguntou-me ela, em voz baixa.

 

Sim, Senhora respondi, e toquei no meu próprio anel de amante, o par do anel de Ceinwyn. Muita gente usava anéis de amantes com uma cruz incrustada, mas poucos tinham anéis com cruzes feitos de ouro retirado do Caldeirão de Clyddno Eiddyn como Ceinwyn e eu.

 

O que fizeste ao anel? perguntou-me Guinevere.

 

Lancei-o ao rio.

 

Contaste a alguém?

 

Apenas a Ceinwyn afirmei. E Issa sabe-o acrescentei, porque encontrou o anel e mo entregou.

 

E não contaste a Artur?

 

Não. Ela sorriu.

 

Julgo que tens sido melhor amigo do que alguma vez pensei, Derfel.

 

Para Artur, Senhora. Eu protegia-o a ele, não a vós.

 

Sim, penso que o fazias voltou a olhar para a fogueira. Quando tudo isto terminar disse ela, tentarei dar a Artur o que ele pretende.

 

Vós mesma?

 

A minha sugestão pareceu surpreendê-la.

 

É isso o que ele pretende? perguntou ela.

 

Ele ama-vos respondi. Pode não perguntar por vós, mas ele procura-vos sempre que aqui vem. Procurou-vos mesmo quando estáveis em Ynys Wydryn. Nunca me falou em vós, mas enfadou os ouvidos de Ceinwyn.

 

Guinevere fez uma careta.

 

Sabes quão enfastiante pode ser o amor, Derfel? Eu não pretendo ser venerada. Não pretendo que me sejam satisfeitos todos os caprichos. Quero sentir que sou contrariada nalguma coisa falou com veemência, e eu abri a boca para defender Artur, mas ela fez-me sinal para que nada dissesse. Eu sei, Derfel afirmou, agora, não tenho o direito de pretender o que quer que seja. Comportar-me-ei, prometo-te sorriu. Sabes por que razão Artur me ignora agora?

 

Não, Senhora.

 

Porque não quer encarar-me até conseguir a vitória.

 

Pensei que talvez ela tivesse razão, mas Artur não mostrara, de facto, sinais do seu afecto e, por isso, achei melhor que soasse como uma advertência.

 

Talvez a vitória seja para ele satisfação suficiente afirmei. Guinevere abanou a cabeça.

 

Eu conheço-o melhor do que tu, Derfel. Conheço-o tão bem que consigo descrevê-lo numa única palavra.

 

Tentei lembrar-me que palavra seria aquela. Corajoso? Certamente, mas isso deixaria de parte todo o seu cuidado e dedicação. Perguntei-me se dedicado não seria uma palavra melhor, mas não descreveria a sua insatisfação. Bom? Certamente que ele era bom, mas essa palavra simples escondia a ira que podia torná-lo imprevisível.

 

Que palavra, Senhora? perguntei.

 

Só disse Guinevere, e recordei-me de que na gruta de Mitras, Sagramor usara justamente a mesma palavra. Ele está só disse Guinevere, tal como eu. Por isso vamos entregar-lhe a vitória e talvez não volte a sentir-se solitário.

 

Que vos guardem os Deuses, Senhora afirmei.

 

A Deusa, creio disse ela, e viu o olhar de horror estampado no meu rosto. Deu uma gargalhada. Não é ísis, Derfel, não é ísis. Fora a sua veneração a ísis que conduzira Guinevere ao leito de Lancelote e provocara a infelicidade de Artur. Creio continuou ela que esta noite irei orar a Sulis. Parece mais apropriada.

 

Juntarei as minhas preces às vossas, Senhora.

 

Ela estendeu uma mão na minha direcção para me deter quando me levantei para a deixar.

 

Vamos vencer, Derfel disse ela, com seriedade, vamos vencer, e tudo se modificará.

 

Havíamos dito aquilo tantas vezes, e nunca nada havia acontecido. Mas agora, em Mynydd Baddon, voltaríamos a tentar.

 

Montámos a nossa armadilha num dia tão bonito que oprimia o coração. Também prometia ser um dia longo, já que as noites eram cada vez mais pequenas e a extensa luz da tarde se alongava pelas horas tardias.

 

Na noite anterior à batalha, Artur retirara as suas tropas colocadas ao longo das colinas por detrás de Mynydd Baddon. Ordenou a esses homens que deixassem as suas fogueiras de acampamento a arder para que os saxões julgassem que ainda se encontravam no mesmo sítio, depois levou-os para oeste ao encontro dos homens de Gwent, que se aproximavam pela estrada de Glevum. Os guerreiros de Cuneglas também deixaram as colinas, contudo deslocaram-se para o cume de Mynydd Baddon onde, juntamente com os meus homens, aguardaram.

 

Malaine, o chefe druida de Powys, andou por entre os lanceiros durante a noite. Distribuiu verbena, seixos de gnomos e pedaços de visco-branco seco. Os cristãos reuniram-se e rezaram em conjunto, embora eu tivesse reparado que muitos aceitavam as oferendas do druida. Orei junto aos taludes, rogando a Mitras uma grande vitória, e depois disso tentei dormir. Mas Mynydd Baddon estava agitada com o murmúrio de vozes e o monótono som de pedras a baterem em aço.

 

Eu já afiara a minha lança e aprestara um novo gume na Hywelbane. Nunca deixei que um servo afiasse as minhas armas antes de uma batalha, fazendo-o eu próprio e de forma tão obsessiva como todos os meus homens. Assim que tive a certeza que as armas estavam tão afiadas quanto eu conseguia aprestá-las, deitei-me próximo do abrigo de Guinevere. Queria dormir, mas não conseguia afastar o medo de me ver num escudo defensivo. Pressenti maus agouros, receando ver uma coruja e voltei a rezar. Por fim, devo ter adormecido, mas foi um sono agitado, perturbado por sonhos. Já passara muito tempo desde que eu lutara num escudo defensivo e quebrara, sozinho, uma defesa inimiga.

 

Acordei bem cedo, com frio e a tremer. O orvalho cobria tudo com uma camada espessa.

Os homens roncavam, tossiam, urinavam e gemiam. A colina fedia, uma vez que, apesar de todos termos cavado latrinas, não havia um ribeiro que levasse dali a sujidade.

 

O cheiro e os ruídos dos homens, pronunciou a voz perversa de Guinevere da penumbra do seu abrigo.

 

Dormistes, Senhora? perguntei-lhe.

 

Um pouco inclinou-se para passar pelos ramos baixos que serviam de telhado e de porta. Está frio.

 

Em breve estará calor.

 

Ela arrastou-se para junto de mim, envolta na sua capa. O seu cabelo estava desgrenhado e os seus olhos papudos por causa do sono.

 

Em que pensas tu durante uma batalha? perguntou-me ela.

 

Em sair dela vivo afirmei, em matar, em vencer.

 

Isso é hidromel? perguntou ela, gesticulando para o corno que eu segurava.

 

Água, Senhora. O hidromel torna um homem mais lento no campo de batalha.

 

Retirou-me a água, chapinhou um pouco nos olhos e bebeu o resto. Estava nervosa, mas eu sabia que nunca conseguiria convencê-la a permanecer na colina.

 

E Artur perguntou ela, em que pensa ele durante a batalha? Sorri.

 

Na tranquilidade que se segue ao combate, Senhora. Ele acredita que cada batalha é a última.

 

Todavia, as batalhas disse ela, sonhadoramente, nunca terão fim.

 

Talvez assim seja concordei, mas nesta batalha, Senhora, permanecei junto a mim. Bem junto a mim.

 

Sim, Lorde Derfel motejou ela, depois brindou-me com um sorriso. E obrigada, Derfel.

 

Tínhamos já as nossas armaduras aprestadas, quando o Sol rompeu por detrás das colinas a leste tocando farrapos de nuvens carmesim, lançando numa profunda obscuridade o vale dos saxões. A penumbra clareava e tornava-se mais diminuta à medida que o Sol se elevava. Fragmentos de neblina elevavam-se do rio em espiral, adensando o fumo das fogueiras de acampamento, por entre as quais o inimigo se movia com uma energia invulgar.

 

Algo se prepara ali em baixo disse-me Cuneglas.

 

Talvez eles saibam que vamos descer? aventei.

 

O que nos dificultará a vida afirmou Cuneglas.

 

Todavia, no caso de aos saxões constarem os nossos planos, eles seriam subtis nos preparativos. Não estava formado nenhum escudo defensivo frente a Mynydd Baddon, e tropa alguma marchava para oeste, pela estrada de Glevum. Pelo contrário, à medida que o Sol se elevava suficientemente alto para dissipar o nevoeiro das margens do rio, parecia que todos haviam, por fim, decidido abandonar o local ao mesmo tempo e se preparavam para marchar, embora fosse difícil dizer se haviam planeado ir para oeste, norte ou sul, já que a sua primeira tarefa fora reunir as carroças, os cavalos de carga, os rebanhos e as gentes. Do nosso posicionamento elevado, parecia um formigueiro em pânico, mas aos poucos surgiu alguma ordem. Os homens de Aelle reuniram a sua bagagem mesmo junto ao portão norte de Aquae Sulis, enquanto os homens de Cerdic organizavam a sua progressão junto ao seu acampamento na curvatura do rio. Queimaram um considerável número de cabanas e, sem dúvida, que haviam planeado queimar os dois acampamentos antes de partirem. Os primeiros homens a fazê-lo foi uma companhia de cavalaria pouco aprestada, que se dirigia para oeste, passando por Aquae Sulis e tomando a estrada de Glevum.

 

Que pena disse Cuneglas, em voz baixa.

 

Os cavaleiros faziam o reconhecimento da estrada que os saxões iriam tomar e dirigiam-se directamente para o local de onde surgiria o ataque surpresa de Artur.

 

Aguardámos. Não desceríamos a colina enquanto as forças de Artur não estivessem bem visíveis e, nessa altura, teríamos de nos apressar para preencher o espaço vazio entre os homens de Aelle e as tropas de Cerdic. Aelle teria de defrontar a fúria de Artur, enquanto Cerdic ver-se-ia impedido pelos meus homens e as tropas de Cuneglas de auxiliar o seu aliado. Com quase toda a certeza, nós estaríamos em menor número, mas Artur tinha esperança de conseguir irromper por entre os homens de Aelle para levar as suas tropas em nosso auxílio. Lancei um olhar rápido para a minha esquerda, buscando um vislumbre dos homens de Oengus no Caminho Valado, mas aquela estrada distante ainda permanecia vazia. Se os Escudos Negros não chegassem, então Cuneglas e eu ficaríamos em dificuldades entre os dois blocos do exército saxão. Olhei para os meus homens, reparando no seu nervosismo. A sua visão não alcançava o vale, porque eu insistira para que se escondessem até o nosso flanco lançar o ataque. Uns tinham os olhos fechados, alguns cristãos haviam-se ajoelhado com os braços abertos, enquanto outros homens batiam com pedras afiadas ao longo das lâminas das suas lanças já aprestadas numa ponta fina e cortante. Malaine, o druida, proferia palavras mágicas de protecção, Pyrlig rezava e Guinevere olhava-me fixamente de olhos muito abertos, como se conseguisse dizer pela minha expressão o que estava prestes a acontecer.

 

As sentinelas avançadas saxãs desapareceram a oeste, mas agora voltavam inesperadamente a galope. Rolos de poeira saíam em jactos dos cascos dos seus cavalos. A sua velocidade era suficiente para percebermos que haviam visto Artur e, em breve pensei aquela agitação confusa de preparativos saxões transformar-se-ia num muro de escudos e lanças. Agarrei na longa haste da minha lança, fechei os olhos e dirigi uma prece aos céus azuis, até onde Bei e Mitras me ouvissem.

 

Olha para eles! exclamou Cuneglas, enquanto eu rezava.

 

Abri os olhos e vi o ataque de Artur invadir a orla oeste do vale. O Sol brilhava nos seus rostos e cintilava em centenas de lanças desembainhadas e elmos polidos. A sul, junto ao rio, os cavaleiros de Artur esporeavam os cavalos para se apoderarem da ponte a sul de Aquae Sulis, ao passo que as tropas de Gwent avançavam numa imensa linha atravessando o centro do vale. Os homens de Tewdric envergavam um aprestamento romano: armaduras de bronze, capas vermelhas e elmos cheios de plumas, de tal modo que do cume de Mynydd Baddon pareciam falanges de carmesim e ouro sob uma hoste de bandeiras que mostravam, em vez do touro negro de Gwent, cruzes vermelhas cristãs. A norte deles, estavam os lanceiros de Artur, liderados por Sagramor sob o seu enorme estandarte preto preso num mastro encimado por uma caveira saxã. Ainda hoje fecho os olhos e vejo aquele exército avançar, vejo o vento ondular suavemente as bandeiras por cima das suas linhas firmes, vejo a poeira levantar-se da estrada atrás deles e vejo as espigas já altas dos cereais ficarem esmagadas à sua passagem.

 

Entretanto, à sua frente instalara-se o pânico e o caos. Saxões corriam em busca das armaduras, tentavam salvar as suas mulheres, procuravam os seus chefes ou reagrupavam-se, juntando-se lentamente até formarem o primeiro escudo defensivo próximo do seu acampamento, às portas de Aquae Sulis. Todavia, era um escudo defensivo fraco, parco e grosseiro, e vi um cavaleiro acenar para que os seus homens se afastassem. À nossa esquerda vi que os homens de Cerdic eram mais rápidos a formar as suas fileiras, mas estavam ainda a mais de três quilómetros das tropas avançadas de Artur, o que significava que os homens de Aelle teriam de suster a força do ataque. Por detrás desse ataque, andrajosas e indistintas na distância, as nossas tropas recrutadas avançavam com gadanhas, machados, picaretas e mocas.

 

Vi o estandarte de Aelle erguido no meio das sepulturas do cemitério romano, e reparei que os seus lanceiros se apressavam a voltar para se reagruparem sob a sua caveira ensanguentada. Os saxões haviam já abandonado Aquae Sulis, o seu acampamento a oeste e a sua bagagem reunida fora da cidade, e talvez tivessem esperança que os homens de Artur parassem para pilhar as carroças e os cavalos de carga. Mas Artur apercebera-se desse perigo e, por isso, conduziu os seus homens bem para norte da muralha da cidade. Lanceiros gwentianos haviam guarnecido a ponte, aliviando do seu peso os aprestados cavaleiros para poderem subir por detrás daquela linha dourada e carmesim. Tudo parecia acontecer demasiado devagar. De Mynydd Baddon tínhamos uma panorâmica geral e víamos os últimos saxões fugindo por cima da muralha danificada de Aquae Sulis, o escudo defensivo de Aelle finalmente a engrossar e os homens de Cerdic apressando-se ao longo da estrada para os reforçar.

 

Em silêncio, instigámos Artur e Tewdric, desejando que ambos esmagassem os homens de Aelle antes de Cerdic conseguir entrar na batalha, mas pareceu-nos que o ataque abrandava até ao passo de caracol. Mensageiros a cavalo lançavam-se entre as tropas de lanceiros, mas mais ninguém parecia apressar-se.

 

As forças de Aelle haviam recuado até cerca de setecentos e cinquenta metros de Aquae Sulis antes de formarem a sua linha e, agora, aguardavam o ataque de Artur. Os seus feiticeiros saltavam no campo de batalha por entre os exércitos, mas eu não via nenhum druida diante dos homens de Tewdric. Eles avançavam à guarda do seu Deus cristão e, por fim, depois de estreitarem o seu escudo defensivo, aproximaram-se do inimigo. Eu esperava assistir a um confronto entre as linhas enquanto os comandantes dos exércitos trocavam os tradicionais insultos e os dois escudos defensivos se avaliavam mutuamente. Constara-me que havia escudos defensivos que ficavam a olhar-se fixamente durante horas enquanto os homens se enchiam de coragem para atacar, mas aqueles cristãos de Gwent não avaliavam a sua velocidade. Não haveria qualquer confronto de comandantes de facções opostas e não havia tempo para os feiticeiros saxões rogarem as suas pragas, porque os cristãos baixaram simplesmente as suas lanças, tomaram o peso dos seus escudos oblongos, pintados com a cruz, e avançaram a direito por entre as sepulturas romanas e em direcção aos escudos inimigos.

 

Na colina, ouvimos o entrechocar dos escudos. Era um som monótono e rouco, como um trovão vindo debaixo da terra, o som de centenas de escudos e lanças a entrechocarem-se como dois imensos exércitos esmagando-se um de encontro ao outro. Os homens de Gwent foram impedidos de prosseguir, contidos pelo peso dos saxões que se lançaram sobre eles, e eu percebi que naquele instante morriam ali homens. Estavam a ser trespassados por lanças, cortados por machados, esmagados pelos pés dos outros soldados. Homens gritavam e falavam iradamente por cima dos rebordos dos seus escudos, e a sua pressão era tão grande que uma espada dificilmente seria levantada naquele aperto.

 

Então, os guerreiros de Sagramor atacaram do flanco norte. O númida havia sem dúvida desejado flanquear Aelle, mas o rei saxão calculara esse perigo e ordenara às suas tropas de reserva que formassem uma linha que, com os seus escudos e lanças, deteve a carga de Sagramor. Soou novamente o entrechocar estilhaçado de escudos, e depois, para nós que tínhamos uma visão panorâmica, estranhamente, a batalha deixou de progredir. Dois aglomerados de homens haviam-se emaranhado, e os da retaguarda empurravam os da zona avançada e estes debatiam-se para libertar as suas lanças e golpeá-las de novo para diante; e durante todo esse tempo, os homens de Cerdic corriam pelo Caminho Valado por baixo de nós. Assim que esses homens conseguissem chegar ao campo de batalha facilmente conseguiriam flanquear Sagramor. Podiam contornar o seu flanco e atacar o seu escudo defensivo por trás, e fora por essa razão que Artur nos mantivera na colina.

 

Cerdic deverá ter calculado que nós ainda ali nos encontrávamos. Do vale ele não conseguia ver nada, já que os nossos homens se escondiam por detrás dos baixos taludes de Mynydd Baddon, mas eu vi-o galopar em direcção a um grupo de homens e apontar-lhes o cimo da encosta. Chegara a altura, calculei, de nós descermos, e olhei para Cuneglas. Ao mesmo tempo, ele olhou para mim e dirigiu-me um sorriso.

 

Que os Deuses estejam contigo, Derfel.

 

E convosco também, meu Rei e Senhor.

 

Toquei na sua mão estendida, depois apertei a palma da minha mão de encontro à minha cota de malha para sentir a protuberância apaziguadora do broche de Ceinwyn por baixo dela.

 

Cuneglas desceu do talude e virou-se, encarando-me.

 

Não sou homem de discursos gritou ele, mas ali em baixo estão saxões, e vocês são conhecidos como os melhores destruidores de saxões da Bretanha. Por isso, vinde e provai-o! E lembrai-vos! Quando chegarem ao vale, mantenham o escudo defensivo bem firme! Mantenham-no firme! Agora, vinde!

 

Ele animou-nos enquanto nós transpúnhamos a orla da colina. Os homens de Cerdic, que haviam sido mandados ao cume para o examinar, detiveram-se e depois retiraram, à medida que cada vez mais lanceiros nossos surgiam acima deles. Éramos quinhentos homens a descer aquela colina, e fizemo-lo depressa, dirigindo-nos para oeste para atacar as tropas dianteiras dos reforços de Cerdic.

 

O chão tinha tufos, era íngreme e irregular. Não descemos por nenhuma ordem, correndo apenas velozmente para chegarmos ao vale, e aí, depois de atravessarmos o campo de trigo pisado e de treparmos duas sebes enleadas com espinheiros, formámos o nosso escudo defensivo. Eu tomei o lado esquerdo da linha, Cuneglas o direito, e depois de estarmos correctamente formados e de os nossos escudos estarem bem juntos, gritei aos meus homens para que avançassem. Um escudo defensivo saxão formava-se no campo diante de nós, enquanto outros homens se apressavam a sair da estrada para virem barrar-nos o caminho. Olhei para a minha direita enquanto avançávamos e vi que havia uma enorme distância entre nós e os homens de Sagramor, e tão grande ela era que eu nem conseguia ver a sua bandeira. Odiava a ideia daquele espaço vazio, odiava pensar no horror que poderia assolá-lo e, deste modo, surgir por detrás de nós, mas Artur fora inflexível. Não hesitem, disse ele, não esperem que Sagramor se junte a vós, ataquem. Deveria ter sido Artur, pensei, que convencera os cristãos de Gwent a atacar sem delonga. Ao não dar tempo aos saxões, ele tentava que entrassem em pânico e, agora, chegara a nossa vez de entrar rapidamente na batalha.

 

O escudo defensivo saxão era improvisado e pequeno, talvez com duzentos homens de Cerdic que não haviam contado lutar naquele local, pensando pelo contrário juntar a sua força às fileiras mais recuadas de Aelle. Além disso, estavam nervosos. Nós também estávamos, mas não era altura para deixar que o medo suplantasse a bravura. Tínhamos de fazer o que os homens de Tewdric haviam feito, teríamos de carregar sem hesitar para apanhar o inimigo desequilibrado e, por isso, brami um grito de guerra e apressei o passo. Desembainhara a Hywelbane e segurava-a pela parte superior do punho na minha mão esquerda, deixando que o escudo pendesse, preso pelas correias, do meu antebraço. A minha pesada lança estava na minha mão direita. O inimigo avançava arrastando os pés numa massa compacta, escudo contra escudo, lanças levantadas, e algures à minha esquerda um enorme cão de guerra foi liberto e começou a correr na nossa direcção. Ouvi o uivo do animal, depois a fúria da batalha fez-me pensar apenas nos rostos barbudos que estavam diante de mim.

 

Um ódio terrível irrompeu no campo de batalha, um ódio que surge do mais recôndito da alma e invade um homem com uma raiva feroz e sangrenta. Prazer também. Eu sabia que o escudo defensivo saxão se quebraria. Sabia-o muito antes de o atacar. Era pouco compacto, fora feito à pressa, e os homens estavam demasiado nervosos, por isso irrompi da nossa fileira da frente e gritei o meu ódio ao mesmo tempo que corria para o inimigo. Nesse instante, tudo o que eu queria era matar. Não, queria mais do que isso, queria que os bardos cantassem os feitos de Derfel Cadarn em Mynydd Baddon. Queria que os homens olhassem para mim e dissessem, aqui está o guerreiro que quebrou o escudo defensivo em Mynydd Baddon, desejei o poder que advém da fama. Na Bretanha, apenas uma dúzia de homens detinha esse poder; Artur, Sagramor e Culhwuch contavam-se entre eles, e era um poder que suplantava todos os outros excepto a soberania. O nosso era um mundo onde as espadas conferiam estatuto, e fugir à peleja era perder a honra, por isso corri adiante, com a raiva a transbordar-me do coração e a exultação a dar-me um terrível poder, enquanto escolhia as minhas vítimas. Eram dois jovens, ambos mais baixos do que eu, ambos nervosos, ambos com barbas ainda curtas e ambos se encolheram mesmo antes de eu lhes acertar. Viram um senhor da guerra britânico, resplandecente, e eu vi dois saxões mortos.

 

A minha lança apanhou um pelo pescoço. Larguei a lança assim que um machado se cravou no meu escudo; mas eu vira-o dirigir-se a mim e desviei o golpe, depois bati com o escudo no segundo homem e empurrei o ombro de encontro à cavidade do escudo enquanto agarrava a Hywelbane com a mão direita. Golpeei-a e vi uma lasca a voar da haste da lança saxã, depois senti os meus homens chegarem em torrentes atrás de mim. Rodopiei a Hywelbane por cima da cabeça, voltei a golpeá-la, voltei a gritar, serpenteei-a para o lado, e de repente diante de mim nada mais havia do que terreno vazio, rainúnculo amarelo, a estrada e as campinas para lá do rio. Eu havia transposto o escudo defensivo e gritava a minha vitória. Virei-me, enterrei a Hywelbane nos rins de um homem, libertei-a torcendo-a, vi o sangue escorrer da sua ponta, e de repente deixou de haver inimigos. O escudo defensivo saxão desaparecera, ou melhor, transformara-se em mortos ou carne moribunda que se esvaía em sangue sobre a relva. Lembro-me de erguer o escudo e a lança em direcção ao sol e lançar bem alto um grito de agradecimento a Mitras.

 

Escudo defensivo! ouvi Issa bradar a ordem enquanto eu festejava. Inclinei-me para apanhar a minha lança, depois virei-me e vi mais saxões vindo de leste, na nossa direcção.

 

Escudo defensivo! repeti o grito de Issa.

 

Cuneglas formava o seu próprio escudo defensivo, virando-se para oeste, para nos defender dos homens da retaguarda de Aelle, enquanto eu formava a nossa linha virada para leste de onde surgiam os homens de Cerdic. Os meus homens gritavam-lhes e insultavam-nos. Haviam transformado um escudo defensivo em destroços e agora queriam mais. Atrás de mim, no espaço entre os homens de Cuneglas e os meus, alguns saxões feridos ainda viviam, mas três dos meus homens acabavam com eles. Cortaram-lhes as gargantas, porque não era altura de fazer prisioneiros. Reparei que Guinevere os ajudava.

 

Senhor, Senhor!

 

Era Eachern, a gritar da orla direita do nosso pequeno escudo defensivo, eu olhei, vendo-o a apontar para uma massa de saxões que corria pelo imenso espaço vazio entre nós e o rio. Mas os saxões não nos ameaçavam, já que iam em auxílio de Aelle.

 

Deixa-os estar! gritei.

 

Preocupava-me mais com os saxões que estavam diante de nós, porque haviam parado para formar fileiras. Eles tinham visto o que acabáramos de fazer, e não nos deixariam fazer-lhes o mesmo, por isso juntaram-se em quatro ou cinco grandes fileiras, depois aplaudiram quando um dos seus feiticeiros caminhou empertigado, rogando-nos pragas. Era um dos feiticeiros loucos, porque o seu rosto se contorcia descontroladamente enquanto nos gritava obscenidades. Os saxões estimavam muito homens semelhantes, julgando que eles tinham poder sobre os ouvidos dos Deuses, e que estes empalideciam ao ouvir as suas pragas.

 

Mato-o? perguntou-me Guinevere. Ela aprestava o dedo no arco.

 

Eu preferia que não estivésseis aqui, Senhora afirmei.

 

É um pouco tarde para expressar tal desejo, Derfel disse ela.

 

Deixai-o estar respondi.

 

As pragas do feiticeiro não perturbavam os meus homens, que gritavam aos saxões que se aproximassem e experimentassem as suas lâminas, mas os saxões não estavam com vontade de avançar. Aguardavam reforços, que já vinham próximo.

 

Meu Rei e Senhor! gritei a Cuneglas. Ele virou-se.

 

Conseguis ver Sagramor? perguntei-lhe.

 

Ainda não.

 

Eu também não via Oengus mac Airem, cujos Escudos Negros era suposto irromperem das colinas para penetrar ainda mais o flanco dos saxões. Comecei a temer a possibilidade de termos atacado demasiado cedo, e de estarmos agora cercados pelas tropas de Aelle, que recobravam do pânico inicial, e pelos lanceiros de Cerdic, que engrossavam cuidadosamente o seu escudo defensivo antes de virem derrotar-nos.

 

Depois, Eachern voltou a gritar e eu olhei para sul e vi que os saxões corriam agora para leste, em vez de se dirigirem para oeste. Os campos entre o nosso escudo defensivo e o rio estavam cheios de homens em pânico e, por instantes, senti-me demasiado confuso para perceber o que via. Depois ouvi o barulho. Um barulho semelhante a um trovão. Barulho de cascos.

 

Os cavalos de Artur eram grandes. Certa vez, Sagramor dissera-me que Artur capturara os cavalos de Clovis, o Rei dos Francos, e que antes de pertencer a Clovis aquela manada fora criada pelos romanos e que nenhuns outros cavalos da Bretanha se assemelhavam ao seu tamanho. Para os montar, Artur escolheu os seus homens mais corpulentos. Haviam-lhe sido roubados por Lancelote muitos dos grandes cavalos de guerra, e eu quase esperara ver aqueles enormes animais no meio das fileiras inimigas. Todavia, Artur zombara desse meu receio. Dissera-me que Lancelote capturara, sobretudo, éguas jovens e cavalos com um ano não adestrados, e seriam necessários tantos anos para treinar um cavalo como para ensinar um homem a lutar no dorso de um cavalo, armado com uma pesada lança. Lancelote não tinha tais homens, mas Artur possuía alguns, e agora liderava-os desde a encosta norte em direcção aos homens de Aelle, que lutavam contra Sagramor.

 

Havia apenas sessenta dos enormes cavalos, e estavam cansados, porque haviam galopado primeiro para defender a ponte a sul e depois haviam-se deslocado para o campo de batalha, no flanco oposto. Mas Artur fê-los galopar, levando-os rapidamente para a retaguarda da linha de batalha de Aelle. Esses homens da retaguarda haviam-se lançado para diante, na tentativa de empurrarem as suas fileiras avançadas sobre o escudo defensivo de Sagramor, mas o aparecimento de Artur foi tão repentino que eles não tiveram tempo de se virar e formar, eles próprios, um escudo defensivo. Os cavalos quebraram as suas fileiras abrindo-as por completo, e como os saxões dispersavam em todas as direcções, os guerreiros de Sagramor fizeram avançar novamente as fileiras da frente e, de repente, o flanco direito do exército de Aelle fendeu-se. Alguns saxões correram para sul, buscando segurança no meio do restante exército de Aelle. Outros, no entanto fugiram para leste, em direcção a Cerdic, sendo esses os homens que víamos nas campinas junto ao rio. Artur e os seus cavaleiros espezinharam esses fugitivos sem misericórdia. A cavalaria usou as suas longas espadas para derrubar os homens que fugiam até a campina junto ao rio estar juncada de corpos e cheia de escudos e espadas abandonados. Vi Artur passar a galope pela minha linha, com a sua capa branca cheia de sangue, com a Excalibur ensanguentada na mão e um olhar de imensa satisfação no seu rosto magro. Hygwydd, o seu servo, transportava o estandarte do urso que tinha agora uma cruz vermelha no canto inferior. Hygwydd, normalmente o mais taciturno dos homens, lançou-me um largo sorriso ao passar, seguindo novamente Artur até ao cimo da colina onde os cavalos podiam recuperar o fôlego e ameaçar o flanco de Cerdic. Morfans, o Feio, fora morto no primeiro ataque pelos homens de Aelle, mas era a única baixa de Artur.

 

A carga de Artur quebrara o flanco direito de Aelle, e Sagramor conduzia agora os seus homens ao longo do Caminho Valado para juntar os seus escudos aos meus. Ele ainda não cercara o exército de Aelle, mas nós havíamo-lo encurralado entre a estrada e o rio, e os disciplinados cristãos de Tewdric avançavam, subindo por essa passagem e matando os que encontravam no seu caminho. Cerdic encontrava-se ainda fora do cerco, e deve ter-lhe ocorrido deixar Aelle ali e, desse modo, deixar o seu rival saxão ser destruído. Contudo, ao invés, ele achou que a vitória era ainda possível. Vencer nesse dia e toda a Bretanha tornar-se-ia Lloegyr.

 

Cerdic ignorou a ameaça dos cavalos de Artur. Ele devia saber que eles tinham derrubado os homens de Aelle, onde reinava a maior desordem. E aqueles disciplinados lanceiros, num escudo defensivo como uma massa densa, não teriam nada a recear quanto à cavalaria, por isso ordenou aos seus homens que cerrassem os escudos, baixassem as lanças e avançassem.

 

Fechem! Fechem! gritei, e abri caminho para a fileira da frente, onde me certifiquei que o meu escudo se sobrepunha aos dos meus vizinhos. Os saxões arrastavam-se para diante, tentando manter os escudos encostados uns aos outros, os seus olhos buscando na nossa linha uma zona enfraquecida, enquanto toda a massa caminhava na nossa direcção. Eu não via nenhum feiticeiro, mas o estandarte de Cerdic estava no centro da grande formação. Avaliava barbas e elmos com chifres, ouvia um toque contínuo e monótono de um chifre de carneiro e observava as lâminas das lanças e dos machados. O próprio Cerdic estava algures, no meio daquela massa de homens, uma vez que eu ouvia a sua voz a gritar aos seus homens.

 

Escudos cerrados! Escudos cerrados! gritava o Rei.

 

Dois enormes cães de guerra foram largados na nossa direcção e, ao ouvir gritos, pressenti um alvoroço algures à minha direita, enquanto os cães atacavam a linha. Os saxões deviam ter visto o meu escudo defensivo vacilar no local onde os cães haviam atacado porque, de repente, gritaram vivas e avançaram mais depressa.

 

Fechem! gritei, depois tomei o peso da minha lança acima da cabeça. Pelo menos três saxões olhavam para mim ao mesmo tempo que se apressavam a avançar. Eu era um senhor, pois adornava-me com ouro, e se eles conseguissem enviar a minha alma para o Outro Mundo conseguiriam fama e riqueza. Dado à glória, um deles correu adiante dos seus companheiros com a lança apontada ao meu escudo, e eu calculei que ele baixasse a ponta no último instante para me apanhar pelo tornozelo. Depois, deixou de haver tempo para tais pensamentos, apenas para lutar. Bati com a minha lança no rosto do homem e empurrei o meu escudo para diante e para baixo, para aparar o seu golpe. A sua lança raspou ainda no meu tornozelo, cortando o cabedal da minha bota direita por baixo da caneleira que eu retirara a Wulfger. Todavia, a minha lança atingiu cruelmente o seu rosto e ele caiu para trás quando a retirei. Os outros homens avançaram para me matar.

 

Fizeram-no no exacto instante em que os escudos das duas linhas bateram uns nos outros com um barulho semelhante ao som de mundos a colidirem. Agora, eu conseguia sentir o cheiro dos saxões, o cheiro a couro, a suor e a excrementos, todavia não me cheirava a cerveja. Esta batalha travava-se bem cedo pela manhã, os saxões haviam sido surpreendidos e não haviam tido tempo para beber até ganharem coragem. Atrás de mim, os homens precipitavam-se, esmagando-me de encontro ao meu escudo que, por sua vez, empurrava um escudo saxão. Cuspi no rosto barbudo, volteei a lança sobre os seus ombros e senti-a agarrada por uma mão inimiga. Larguei-a e, com um enorme puxão, libertei-me apenas o suficiente para desembainhar a Hywelbane. Desferi um golpe com a espada no homem que estava à minha frente, o seu elmo tinha apenas um gorro de couro atulhado com bocados de tecido e a ponta da Hywelbane, acabada de afiar, enterrou-se nele até ao cérebro. Estacou aí um instante e eu debati-me com o peso do homem morto. Enquanto tentava libertar a minha espada, um saxão serpenteou um machado em direcção à minha cabeça.

 

O meu elmo aparou o golpe. Ouvi um barulho metálico que encheu o universo, e no interior da minha cabeça fez-se uma súbita escuridão entrecortada por raios de luz. Mais tarde, os meus homens disseram-me que eu ficara sem sentidos por momentos, mas não caí porque a pressão dos corpos me manteve de pé. Não me recordo de nada, mas poucos são os homens que se recordam de mais alguma coisa para além do choque dos escudos. Empurra-se, amaldiçoa-se, cospe-se e luta-se quando se consegue fazê-lo. Um dos homens que estava ao meu lado contou-me que eu vacilei depois do golpe do machado e quase tropecei nos corpos dos homens que havia morto. Contudo, o homem que se encontrava atrás de mim agarrou-me com firmeza pelo cinto da espada e ergueu-me, e as minhas caudas de lobo fecharam um círculo à minha volta para me protegerem. O inimigo percebeu que eu estava ferido e lutou com mais afinco. Machados desferiam cutiladas em escudos já muito usados e em lâminas de espadas com brechas já abertas, mas aos poucos fui-me recompondo, deparando-me na segunda fileira, ainda a salvo pela abençoada protecção dos escudos e com a Hywelbane ainda na mão. Doía-me a cabeça, mas ignorava-o, preocupando-me apenas com a urgência de estocar, cutilar, gritar e matar. Issa defendia o espaço vazio que os cães haviam provocado, matando iradamente os saxões que tinham irrompido pela nossa fileira da frente, cerrando, desse modo, a nossa linha com os seus corpos.

 

Cerdic suplantava-nos em número, mas não podia flanquear-nos pelo norte, já que os aprestados cavaleiros ali se encontravam e ele não queria lançar os seus homens pela colina acima, de encontro à sua carga. Deste modo, enviou homens que nos flanqueassem a sul. Todavia, Sagramor antecipou-se-lhe e conduziu os seus lanceiros para o interior do espaço vazio. Recordo-me de ouvir aquele entrechocar de escudos. A minha bota direita encheu-se com tanto sangue que fazia um ruído áspero quando assentava o peso do corpo sobre o pé, o meu crânio latejava com dores e a minha boca mantinha-se aberta e imóvel mostrando os dentes. O homem que tomara o meu lugar na fileira da frente não mo devolveria.

 

Eles estão a ceder, Senhor gritou-me ele, estão a ceder!

 

E, sem dúvida, que a pressão do inimigo diminuía. Não estavam derrotados, apenas retiravam e, de repente, um grito inimigo chamou-os e eles desferiram um último golpe de lança ou cutilada com os machados e recuaram rigidamente. Não os seguimos. Estávamos demasiado ensanguentados, amachucados e cansados para perseguições, e a obstruir-nos a passagem tínhamos uma pilha de corpos que marcava o compacto limite de uma batalha com lanças e escudos. Nessa pilha, alguns estavam mortos, outros estremeciam em agonia e rogavam para que os matássemos.

 

Cerdic fizera recuar os seus homens para formar um novo escudo defensivo suficientemente grande para irromper por entre os homens de Aelle, agora em perigo, graças às tropas de Sagramor que haviam preenchido a maior parte do espaço vazio entre os meus homens e o rio. Soube mais tarde que os homens de Aelle eram empurrados em direcção ao rio pelos lanceiros de Tewdric, e que Artur deixara apenas homens suficientes para manter aqueles saxões cercados, enviando os restantes para reforçar os homens de Sagramor.

 

O meu elmo tinha uma mossa a todo o comprimento do lado esquerdo e uma fenda na base da mossa, que atravessava o ferro e o forro de cabedal. Quando retirei o elmo repuxei o coágulo de sangue do meu cabelo. Fui tacteando aos poucos o couro cabeludo, mas não senti nenhum osso lascado, apenas uma ferida e uma dor intermitente. Tinha uma ferida irregular no meu antebraço esquerdo, o peito pisado e o meu tornozelo direito ainda sangrava. Issa coxeava, mas afirmava que era apenas a pele ferida. Niall, o chefe dos Escudos Negros, morrera. Uma lança trespassara a sua armadura e ele jazia de costas com a lança apontada para o céu e a boca aberta a transbordar de sangue. Eachern perdera um olho. Tapou a cavidade aberta com um pedaço de tecido, que amarrou em volta da cabeça, depois comprimiu o elmo por cima da ligadura grosseira e jurou vingar o olho cem vezes.

 

Artur desceu a colina para incitar os meus homens.

 

Detenham-nos de novo! gritou-nos ele, detenham-nos até Oengus chegar e depois acabem com eles para sempre!

 

Mordred cavalgava atrás de Artur com a sua grande bandeira ao lado do estandarte do urso. O nosso Rei trazia uma espada desembainhada e os seus olhos estavam arregalados com a excitação desse dia. Ao longo dos três quilómetros que se estendiam pela margem do rio havia pó, sangue, mortos e gente moribunda, ferro espetado em carne.

 

As fileiras douradas e escarlate de Tewdric circundavam os sobreviventes de Aelle. Aqueles homens ainda lutavam, e agora Cerdic fazia nova tentativa para irromper pelo meio deles. Artur conduziu Mordred de novo pela colina acima, enquanto nós voltávamos a cerrar os escudos.

 

Eles estão impacientes comentou Cuneglas, quando viu as fileiras saxãs avançarem novamente.

 

É por não estarem ébrios afirmei.

 

Cuneglas não estava ferido e parecia possuir o júbilo do homem que acredita que é intocável. Ele lutara na frente de batalha, matara, e não sofrera um só arranhão. Nunca tivera fama como guerreiro, não como seu pai, e naquele instante acreditava que devia tentar merecer a coroa.

 

Tende cuidado, meu Rei e Senhor disse eu, enquanto ele voltava para junto dos seus homens.

 

Estamos a vencer, Derfel! gritou, e apressou-se a defrontar o ataque. Desta vez, o ataque seria bem maior do que o primeiro assalto saxão,

 

já que Cerdic colocara a sua guarda pessoal no centro da nova linha, e esses homens soltavam enormes cães-de-guerra que corriam velozmente para Sagramor, cujos homens formavam o centro da nossa linha. Instantes depois, os lanceiros saxões atacaram, estocando do interior dos espaços vazios que os cães haviam aberto na nossa linha. Ouvi os escudos entrechocarem, depois deixei de pensar em Sagramor, porque a ala direita saxã carregava sobre os meus homens.

 

De novo, os escudos bateram ruidosamente uns nos outros. Depois golpeámos com lanças ou desferimos golpes furiosos com espadas, e ficámos novamente esmagados uns de encontro aos outros. O saxão que me defrontava abandonara a sua lança e tentava enfiar a sua pequena faca abaixo das minhas costelas. A faca não conseguia furar a minha armadura de malha e ele resmoneava, empurrava e rangia os dentes, ao mesmo tempo que torcia a lâmina de encontro aos anéis de ferro. Eu não tinha espaço para baixar o braço direito e agarrar o seu pulso, por isso desferi um golpe no seu elmo com o punho da Hywelbane e continuei a bater-lhe até o afundar junto aos meus pés e conseguir pôr-me em cima dele. Ainda tentou cortar-me com a faca, mas o homem que estava atrás de mim cravou-lhe uma lança e bateu-me com o seu escudo nas minhas costas para me forçar a avançar para o inimigo. À minha esquerda, um herói saxão varria violentamente o seu machado à esquerda e à direita, abrindo uma clareira no nosso escudo defensivo, mas alguém o rasteirou com a haste de uma lança e meia-dúzia de homens precipitaram-se com espadas e lanças sobre o homem caído. Morreu no meio dos corpos das suas vítimas.

 

Cerdic cavalgava para cima e para baixo por detrás da sua linha, gritando aos seus homens que empurrassem e matassem. Eu chamei-o, desafiando-o a desmontar e a vir lutar como um homem, contudo ou não me ouviu ou ignorou os meus motejos. Esporeou o cavalo para sul, até ao local onde Artur lutava ao lado de Sagramor. Artur apercebera-se da pressão sobre os homens de Sagramor e conduzira os seus cavaleiros por detrás da linha para reforçar o númida e, agora, a nossa cavalaria empurrava os seus cavalos para cima dos homens e estocava as cabeças dos homens da fileira da frente com as suas longas lanças. Mordred encontrava-se entre eles, e os homens disseram mais tarde que ele lutou como um demónio. Ao nosso Rei nunca faltou força bruta no campo de batalha, apenas senso e decência na vida. Não era um soldado de cavalaria, por isso desmontara e tomara lugar na fileira da frente. Vi-o mais tarde e estava coberto de sangue, mas não era seu. Guinevere estava atrás da nossa linha. Ela vira o cavalo abandonado de Mordred, montara-o e puxara algumas setas das suas costas. Vi uma bater e estremecer no próprio escudo de Cerdic, que ele varreu com a mão como se fosse uma mosca.

 

A completa exaustão terminou com aquele segundo entrechocar dos escudos defensivos. Chegou uma altura em que estávamos demasiado cansados para voltar a levantar uma espada, sendo apenas capazes de nos inclinar sobre os escudos do nosso inimigo e gritar-lhe insultos. Ocasionalmente, um homem reunia forças para erguer um machado ou desferir um golpe de lança e, por breves instantes, a fúria da batalha reavivava-se, diminuindo apenas quando os escudos consumiam todas as forças. Todos sangrávamos, estávamos feridos e tínhamos a boca seca, e assim que o inimigo se afastou ficámos satisfeitos por termos tréguas.

 

Também nós recuámos, libertando-nos dos mortos que jaziam numa pilha onde os escudos defensivos se haviam encontrado. Recolhemos os nossos feridos. Entre os mortos do nosso lado havia alguns cujas testas tinham sido marcadas com a lâmina de uma lança incandescente, mostrando serem os homens que se haviam juntado à rebelião de Lancelote no ano anterior, mas que agora haviam morrido por Artur. Também encontrei Bors ferido. Ele tremia e queixava-se com frio. O seu ventre fora de tal modo rasgado que mal o levantei as entranhas caíram-lhe no chão. Fez um barulho semelhante a um miado quando o deitei e lhe disse que o Outro Mundo o esperava com extraordinárias fogueiras, bons companheiros e muito hidromel, e ele agarrou-me a mão esquerda com força enquanto eu lhe cortava a garganta com uma única e rápida cutilada da Hywelbane. Um saxão rastejava com dificuldade e de forma deplorável por entre os mortos, com sangue a pingar-lhe da boca até que Issa apanhou um machado caído e com ele desferiu um golpe na coluna do homem. Vi um dos meus lanceiros mais jovens vomitar e cambalear, antes de um companheiro o amparar e segurar. O jovem chorava, porque se esvaíra em dejectos e estava com vergonha de si próprio, mas não fora o único. O campo de batalha fedia a excrementos e a sangue.

 

Os homens de Aelle, bem atrás de nós, estavam de costas voltadas para o rio num escudo defensivo bem cerrado. Os homens de Tewdric estavam voltados para eles, mas contentavam-se em manter aqueles saxões dóceis em vez de os atacar, uma vez que homens encurralados são terríveis inimigos. E Cerdic continuava a não abandonar o seu aliado. Continuava a achar que podia irromper pelo meio dos lanceiros de Artur para se juntar a Aelle e depois atacar a norte, dividindo as nossas forças em duas. Ele tentara-o por duas vezes e, agora, reunia o que restava do seu exército para a última grande investida. Ainda tinha homens frescos, alguns deles guerreiros mercenários do exército dos Francos de Clóvis, e esses homens eram agora levados para a linha da frente. Nós observávamo-los, enquanto os feiticeiros discursavam diante deles e depois se viravam, rogando-nos as suas pragas aos gritos. Nada havia que forçasse o desencadeamento desse ataque. Não era necessário apressá-lo, porque o dia mal havia começado. Nem era ainda meio-dia e Cerdic tinha tempo para deixar os seus homens comer, beber e aprontar-se. Um dos seus tambores de guerra fez soar o seu batuque soturno, à medida que ainda mais saxões formavam os flancos do seu exército, alguns segurando cães pela trela. Nós estávamos todos exaustos. Ordenei que alguns homens fossem ao rio e trouxessem água; distribuímo-la, bebendo dos elmos dos mortos em longos tragos. Artur veio ao meu encontro e fez uma careta ao ver o meu estado.

 

Consegues detê-los uma terceira vez? perguntou-me.

 

Temos de o fazer, Senhor respondi, embora fosse difícil. Perdêramos um grande número de homens e o nosso escudo defensivo

 

seria pouco cerrado. Nesse momento, as nossas lanças e espadas estavam embotadas e não havia suficientes pedras aguçadas para as afiar novamente, enquanto o inimigo era reforçado com homens frescos cujas armas estavam intactas. Artur deslizou do dorso de Llamrei, atirou as suas rédeas a Hygwydd, depois caminhou comigo até à compacta e extensa fileira de mortos. Ele sabia o nome de alguns homens e franziu as sobrancelhas quando viu jovens lanceiros mortos, que mal tinham tido tempo de viver antes de se defrontarem com o inimigo. Deteve-se e tocou com um dedo na fronte de Bors, depois prosseguiu, parando mais adiante ao lado de um saxão que jazia com uma seta cravada na boca aberta. Por instantes, julguei que dissesse alguma coisa, depois limitou-se a sorrir. Ele sabia que Guinevere estava com os meus homens, na verdade deveria tê-la visto a cavalo bem como à sua bandeira, que agora esvoaçava junto à minha com estrelas. Voltou a olhar para a seta e reparei num vislumbre de felicidade no seu rosto. Tocou-me no braço e conduziu-me novamente para junto dos nossos homens, que estavam sentados ou apoiados nas suas lanças.

 

Um homem que se encontrava nas fileiras saxãs reconhecera Artur e caminhava, agora, a passos largos para o amplo espaço entre os dois exércitos, desafiando-me aos gritos. Era Liofa, o esgrimista que eu defrontara em Thunreslea, e chamava a Artur cobarde e menina. Eu não traduzi o que ouvia e Artur não me pediu para o fazer. Liofa aproximou-se mais. Vinha sem escudo e sem armadura e tão-pouco usava o elmo, empunhando apenas a sua espada, embainhando-a naquele instante como que para nos mostrar que não nos temia. Eu conseguia ver-lhe a cicatriz no rosto, e estive tentado a avançar e a fazer-lhe outra ainda maior, que o atirasse para o túmulo. Todavia, Artur deteve-me.

 

Deixa-o disse ele.

 

Liofa continuou a insultar-nos. Ele falava com afectação, como uma mulher, sugerindo que era isso que nós éramos, e permaneceu de pé de costas voltadas para nós, provocando um qualquer homem a atacá-lo. Ainda assim, ninguém se mexeu. Voltou-se novamente para nós, abanou a cabeça lamentando a nossa cobardia, depois avançou em largas passadas para a compacta fileira de mortos. Os saxões aplaudiram-no, enquanto os meus homens observavam em silêncio. Passei a palavra à nossa linha, dizendo que ele era o paladino de Cerdic, que era perigoso e devia ser ignorado. Os nossos homens sentiam-se vexados por verem um saxão tão altivo, mas naquele instante seria melhor deixar Liofa viver do que conceder-lhes a oportunidade de humilharem um dos nossos fatigados lanceiros. Artur tentou dar alento aos nossos homens ao voltar a montar Llamrei, ignorando os insultos de Liofa, e ao galopar ao longo da fileira de cadáveres. Dispersou os feiticeiros saxões, depois desembainhou a Excalibur e esporeou o seu cavalo ainda para mais próximo da linha saxã, exibindo as suas plumas brancas e a capa ensanguentada. O seu escudo com a cruz vermelha reluziu e os meus homens ovacionaram-no ao vê-lo. Os saxões esquivaram-se dele, ao mesmo tempo que Liofa, deixado indefeso sob a vigilância de Artur, lhe dizia que tinha coração de mulher. Artur volteou o cavalo e esporeou-o de novo até junto de mim. O seu gesto significava que Liofa não era um opositor à altura, o que deverá ter ferido o orgulho do paladino saxão, já que ele se aproximou ainda mais da nossa linha em busca de um adversário.

 

Liofa deteve-se junto a uma pilha de cadáveres. Avançou, pisando uma poça de sangue, depois agarrou num escudo caído, libertando-o com um puxão. Segurou-o no ar para que todos pudéssemos ver a águia de Powys, e depois de ter a certeza que víramos o símbolo, atirou o escudo ao chão, abriu as calças e urinou sobre a insígnia de Powys. Mexeu-se, fazendo agora pontaria para que a urina caísse em cima do dono do escudo que jazia morto, o que foi para nós um enorme insulto.

 

Cuneglas murmurou a sua ira e correu para o exterior da linha.

 

Não! gritei e avancei na direcção de Cuneglas.

 

Seria melhor, pensei, lutar eu com Liofa, porque pelo menos eu conhecia os seus truques e a sua velocidade, mas era demasiado tarde. Cuneglas tinha a sua espada desembainhada e ignorou-me. Nesse dia, julgava-se invulnerável. Ele era o rei da batalha, um homem que tivera necessidade de se revelar um herói, e conseguira-o. Agora, acreditava que tudo era possível. Ele mataria aquele saxão insolente diante dos seus homens e, durante anos, os bardos cantariam os feitos do rei Cuneglas, o Grandioso, do rei Cuneglas, o Assassino de saxões, do rei Cuneglas, o Guerreiro.

 

Não podia detê-lo, porque sofreria uma humilhação se se arrependesse ou se outro homem tomasse o seu lugar, por isso observei tudo aquilo, horrorizado, enquanto ele avançava confiante, a passos largos, em direcção ao esguio saxão sem armadura. Cuneglas estava aprestado com o velho equipamento de guerra de seu pai, com ferro entrelaçado a ouro, e um elmo encimado por uma asa de águia. Sorria. Nesse instante, sentia-se acima de tudo, cheio do heroísmo do dia e acreditava estar próximo dos deuses. Não hesitou e desferiu um golpe em Liofa, e todos jurámos que aquele golpe o atingira. Contudo, Liofa esquivou-se da estocada, afastou-se para o lado, riu, depois voltou a afastar-se enquanto a espada de Cuneglas silvava no ar uma segunda vez.

 

Tanto os nossos homens como os saxões gritavam encorajamentos. Apenas Artur e eu estávamos em silêncio. Eu assistia à morte do irmão de Ceinwyn e nada havia que pudesse fazer para o impedir. Ou algo honroso, já que se acorresse em auxílio de Cuneglas, desonrá-lo-ia. Da sua sela, Artur baixou os olhos para mim, preocupado.

 

Eu não podia aliviar a preocupação de Artur.

 

Lutei com ele afirmei amargamente, e é um assassino.

 

Tu sobreviveste.

 

Eu sou um guerreiro, Senhor afirmei.

 

Cuneglas nunca fora um guerreiro, razão pela qual quis hoje mostrar que pode sê-lo. Contudo, Liofa troçava dele. Cuneglas atacava, tentando atingir Liofa com a sua espada, e de todas as vezes o saxão fez simples esquivas ou deslizes para o lado, e nem uma só vez contra-atacou. Aos poucos, os nossos homens foram ficando em silêncio, porque viram que o Rei estava a ficar cansado e Liofa se divertia com ele.

 

Então, um grupo de homens de Powys apressou-se a avançar para salvar o seu Rei, e Liofa deu três passos rápidos atrás e em silêncio gesticulou-lhes com a espada. Cuneglas virou-se e viu os seus homens.

 

Recuai! gritou-lhes ele. Recuai! repetiu, mais irado.

 

Ele devia saber que estava condenado, mas não estava disposto a sofrer a humilhação. A honra é tudo.

 

Os homens de Powys detiveram-se. Cuneglas virou-se novamente para Liofa e, desta vez, não se apressou a avançar, sendo mais cauteloso. Pela primeira vez, a sua espada tocou, de facto, na lâmina de Liofa e vi-o escorregar na relva. Cuneglas deu um grito de vitória e ergueu a espada para matar o seu carrasco, mas Liofa fez um movimento giratório, deu deliberadamente um passo em falso e o serpentear da sua oscilação fez com que a sua espada ficasse apenas um pouco acima da relva e, desse modo, retalhasse a perna direita de Cuneglas. Por instantes, Cuneglas manteve-se de pé com a espada a vacilar, depois, enquanto Liofa se endireitava, fraquejou. O saxão aguardou enquanto o Rei caía, depois deu um pontapé no escudo de Cuneglas atirando-o para o lado e deu uma única estocada com a ponta da sua espada.

 

Os saxões aplaudiram, estrondosamente, porque o triunfo de Liofa era um prenúncio da sua vitória. O próprio Liofa apenas teve tempo de apanhar a espada de Cuneglas e fugir com agilidade dos homens que o perseguiam para se vingarem. Deixou-os para trás sem dificuldade, depois virou-se e insultou-os. Não precisaria de lutar com eles, uma vez que vencera o seu desafio. Ele matara um rei inimigo, e não tive dúvidas de que os bardos saxões cantariam o feito de Liofa, o Terrível, o assassino de reis. Ele havia dado aos saxões a sua primeira vitória do dia.

 

Artur desmontou e ambos insistimos em levar o corpo de Cuneglas para junto dos seus homens. Ambos chorávamos. Ao longo de todos aqueles anos, não havíamos tido nenhum outro aliado tão leal como Cuneglas Gorfyddyd, Rei de Powys. Ele nunca se opusera a Artur e nem uma única vez o decepcionara, enquanto para mim fora como um irmão. Era um homem bom, que distribuía riquezas, um amante da justiça e, agora, estava morto. Os guerreiros de Powys pegaram no seu Rei morto e levaram-no para trás do escudo defensivo.

 

O nome do seu assassino informei-os, é Liofa, e darei cem moedas de ouro ao homem que me trouxer a sua cabeça.

 

Depois, um grito fez-me virar. Os saxões, seguros da vitória, haviam iniciado o seu avanço.

 

Os meus homens levantaram-se. Limparam o suor dos olhos. Coloquei o meu elmo amolgado e ensanguentado, fechei as protecções do rosto e peguei numa lança caída.

 

Chegara a altura de lutar, novamente.

 

Este foi o maior dos ataques saxões naquele dia, e foi empreendido por uma vaga de lanceiros confiantes que haviam recuperado do último ataque-surpresa e que agora vinham fraccionar as nossas linhas para resgatar Aelle. Bramiam os seus cânticos de guerra enquanto se aproximavam, batiam com as lanças nos escudos e prometiam uns aos outros um grande número de mortes britânicas para cada um. Os saxões sabiam que tinham vencido. Eles haviam conseguido o pior que Artur podia fazer-lhes, tinham combatido até nos fazerem paralisar, haviam visto o seu paladino matar um Rei e, agora, com as suas tropas refrescadas na dianteira, avançavam para acabar connosco. Os francos retiraram as suas leves lanças de arremesso, preparando-se para fazer cair sobre o nosso escudo defensivo uma chuva de ferros aguçados.

 

Quando, de repente, soou um lur vindo de Mynydd Baddon.

 

Primeiramente, poucos fomos os que ouvimos o lur, tão sonoros eram os gritos e tamanho era o barulho da marcha e dos gemidos dos moribundos; mas depois o lur voltou a soar, e ainda uma terceira vez, e ao terceiro chamamento os homens viraram-se e levantaram os olhos, fitando os taludes abandonados de Mynydd Baddon. Até os francos e os saxões se detiveram. Estavam apenas a cinquenta passos de nós quando o lur os deteve e eles, tal como nós, se viraram e levantaram os olhos para a vasta encosta verde da colina.

 

Vendo um único cavaleiro e um estandarte.

 

Era uma única bandeira, mas era enorme; um pano branco descomunal onde se via bordado o dragão vermelho da Dumnónia, ondulando ao vento. O animal, todo ele garras, cauda e fogo, empinava-se na bandeira serpenteante quase derrubando o cavaleiro que a empunhava. Até mesmo àquela distância conseguíamos ver que o cavaleiro montava de forma hirta e estranha, como se não conseguisse dominar o seu cavalo preto nem segurar a grande bandeira com firmeza. Então, surgiram atrás de si dois lanceiros, com cujas armas picaram o seu cavalo. O animal deu um salto descendo a colina a correr, velozmente, e o cavaleiro foi sacudido com força para trás pelo movimento repentino. Voltou a oscilar para diante, ao mesmo tempo que o cavalo descia pela encosta a correr e a sua capa preta voava para trás e para cima. Reparei que a sua armadura, por baixo da capa, era de um branco tão alvo como o tecido da sua bandeira flutuante. Por trás dele emergiu em torrente, vinda de Mynydd Baddon, tal como nós havíamos surgido logo pela manhã, uma massa de homens a gritar. Uns traziam escudos negros e outros varrões com dentes de elefante nos seus escudos. Oengus mac Airem e Culhwuch haviam chegado. Em vez de atacarem pela estrada de Corinium, primeiro abriram caminho por Mynydd Baddon, para que os seus homens se juntassem aos nossos.

 

Contudo, era o cavaleiro que eu observava. Cavalgava de modo estranho, e eu percebia agora que ele vinha amarrado ao cavalo. Os seus tornozelos estavam presos com uma corda, por baixo da barriga do garanhão preto, e o seu corpo havia sido fixado à sela por aquilo que teriam de ser tábuas de madeira presas à armação da sela. Ele não tinha elmo, de modo que o seu longo cabelo esvoaçava solto ao vento e, por baixo do cabelo, o rosto do cavaleiro mais não era do que uma caveira com um largo sorriso, coberta com pele amarela ressequida. Era Gawain, o defunto Gawain, lábios e gengivas contraídos para trás dos dentes, as narinas duas fendas negras e as suas órbitas buracos ocos.

 

A cabeça pendia-lhe balanceando, enquanto o corpo, ao qual o estandarte do dragão da Bretanha estava preso, oscilava de um lado para o outro.

 

Era a morte num cavalo preto chamado Anbarr, e com a visão daquele espírito a dirigir-se ao seu flanco, a confiança dos saxões esmoreceu. Os Escudos Negros gritavam atrás de Gawain, conduzindo o cavalo e o cavaleiro morto para lá das sebes e directamente para o flanco dos saxões. Os Escudos Negros não atacavam em linha, surgindo numa massa vociferante. Este era o modo de ataque irlandês, um terrível assalto de homens enfurecidos que se dirigiam ao inimigo como loucos.

 

Por instantes, o campo de batalha ficou em grande agitação. Os saxões haviam estado próximo da vitória, mas ao ver a sua hesitação Artur gritou inesperadamente para que avançássemos.

 

Preparar! gritou ele. Avançai! Mordred acrescentou a sua ordem à de Artur: Avançai!

 

Deste modo se iniciou a matança de Mynydd Baddon. Todos os bardos cantam o feito e, pela primeira vez, não exageraram. Transpusemos a nossa cerrada fileira de mortos e empunhámos as nossas lanças em direcção ao exército saxão, enquanto os Escudos Negros e os homens de Culhwuch batiam os seus flancos. Por breves instantes, ouviu-se o clangor de espadas a entrechocarem-se, as pancadas surdas dos machados nos escudos, o resmoneio, a agitação e o esforço da luta dos escudos defensivos bem cerrados; mas depois, o exército saxão separou-se e lutámos por entre as suas fileiras retalhadas em campos tornados escorregadios com sangue franco e saxão. Os saxões fugiram, divididos por uma carga selvática conduzida por um homem morto num cavalo preto, e nós matámo-los até não pensarmos em mais nada senão em matar. Enchemos a ponte das espadas com sais mortos. Estocámo-los, estripámo-los, e foram poucos os que afogámos no rio. No início, não fizemos prisioneiros, descarregando apenas anos de ódio sobre os nossos odiosos inimigos. O exército de Cerdic ficara destruído neste duplo assalto, e nós bramíamos por entre as suas fileiras quebradas e competíamos uns com os outros para ver quem mais matava. Era uma orgia de morte, um tumulto de carnificina. Havia alguns saxões tão aterrorizados que não conseguiam mexer-se, ficando literalmente de pé de olhos esbugalhados a aguardar a sua vez de morrer, enquanto outros lutavam como demónios, outros ainda morriam a correr e outros mais tentavam fugir para o rio. Nós havíamos perdido toda a semelhança com um escudo defensivo, tendo-nos tornado apenas uma matilha de cães-de-guerra enraivecidos que despedaçava o inimigo. Vi Mordred a coxear sobre o seu pé defeituoso enquanto matava saxões, vi Artur no seu cavalo a perseguir os fugitivos, vi os homens de Powys a vingarem o seu Rei milhares de vezes. Vi Galaad a cutilar à direita e à esquerda do dorso do seu cavalo, com a mesma expressão calma de sempre. Vi Tewdric, em trajos de sacerdote, esqueleticamente magro e mostrando a sua tonsura, golpeando selvaticamente com uma enorme espada. O velho bispo Emrys estava presente, com uma enorme cruz pendurada ao pescoço e uma velha armadura presa em volta da sua túnica com uma corda feita de crina.

 

Ide para o inferno! resmungava ele, enquanto trespassava com uma lança os desesperados saxões. Consome-te no fogo purificador para sempre!

 

Vi Oengus mac Airem, com a barba ensopada de sangue saxão, a trespassar ainda mais sais. Vi Guinevere montada no cavalo de Mordred dando estocadas com a espada que lhe havíamos oferecido. Vi Gawain, com a cabeça quase a desprender-se do corpo, a sumir-se bruscamente com o seu cavalo quando este caiu pesadamente sobre a relva, no meio de cadáveres saxões. Finalmente, vi Merlim, pois fora ele quem acompanhara o corpo de Gawain, e apesar de já estar velho, batia nos saxões com o seu bastão e amaldiçoava-os chamando-os vermes miseráveis. Ele tinha uma escolta de Escudos Negros. Viu-me, sorriu, e acenou-me para a carnificina.

 

Invadimos a aldeia de Cerdic, onde as mulheres e as crianças se refugiavam em cabanas. Culhwuch e um bom número de homens abriam um frio caminho de terror por entre os poucos lanceiros saxões que tentavam proteger as suas famílias e a bagagem abandonada de Cerdic. Os guardas saxões morreram e o ouro pilhado foi espalhado como algo sem valor. Recordo-me da poeira elevando-se como nevoeiro, dos gritos aterrorizados e da fuga das mulheres, dos homens, das crianças e dos cães, das cabanas em chamas vomitando fumo e dos enormes cavalos de Artur troando por entre aquele pânico e oscilando as lanças rapidamente, para cima e para baixo, para atacarem os lanceiros inimigos pela retaguarda. Não existe maior felicidade do que a destruição de um exército vencido. O escudo defensivo quebrou-se e reinou a morte e, deste modo, matámos até os nossos braços estarem demasiado fatigados para levantar uma espada. Depois de terminada a matança, vímo-nos num lago de sangue e foi, então, que os nossos homens descobriram a cerveja e o hidromel na bagagem saxã e começaram a beber. Algumas mulheres saxãs encontraram protecção entre os poucos de nós que permaneciam sóbrios, que transportavam água do rio para os nossos feridos. Procurámos amigos vivos e abraçámo-los, vimos amigos mortos e chorámos por eles. Conhecemos o delírio da vitória absoluta, partilhámos lágrimas e risos, e alguns homens, cansados como estavam, dançaram de pura felicidade.

 

Cerdic fugiu. Ele e a sua escolta atravessaram o caos e subiram as colinas, a leste. Alguns saxões atravessaram o rio a nado para sul, enquanto outros seguiam Cerdic; poucos fingiram-se mortos fugindo durante a noite, mas a maioria permaneceu no vale abaixo de Mynydd Baddon e aí permaneceu até hoje.

 

Porque nós havíamos vencido. Transformáramos os campos junto ao rio num matadouro. Havíamos salvo a Bretanha e tornado real o sonho de Artur. Éramos os reis da carnificina e os senhores da morte, e gritámos para o céu o nosso triunfo sanguinário.

 

Porque o poder dos Sais fora destruído.

 

             A Maldição de Nimue

 

A rainha Igraine sentou-se junto à minha janela e leu as últimas folhas de pergaminho, perguntando-me, por vezes, o significado de uma palavra saxã mas sem dizer mais nada. Passou os olhos pela história da batalha e depois atirou o pergaminho ao chão, descontente.

 

O que aconteceu a Aelle? perguntou-me, indignada, ou a Lancelote?

 

A bom tempo chegarei à sua sorte, Senhora afirmei. Eu tinha uma pena presa na escrivaninha com o coto do meu braço esquerdo e aparava a sua ponta com uma faca. Assoprei as aparas para o chão. Tudo a seu tempo.

 

Tudo a seu tempo! zombou ela. Não podes deixar uma tutoria sem um fim, Derfel!

 

Terá um final prometi.

 

Precisa de um aqui e agora, insistiu a minha Rainha. É essa a razão de ser das histórias. A vida não tem finais ordenados, por isso as histórias têm de os ter.

 

Agora ela está muito inchada, porque a criança está prestes a nascer. Rezarei por ela, e bem precisará das minhas orações, porque muitas mulheres morrem ao dar à luz. As vacas não sofrem tanto, nem as gatas, as cadelas, as porcas, as ovelhas, as raposas, nem nenhuma outra criatura que não pertença à humanidade. Sansum afirma que isso se deve ao facto de Eva ter comido a maçã no Jardim do Éden e, desse modo, ter tornado amargo o nosso paraíso. As mulheres, prega o santo, são o castigo de Deus sobre os homens, e as crianças o seu castigo sobre as mulheres.

 

Então, o que aconteceu a Aelle? perguntou Igraine com aspereza, como eu não respondesse às suas perguntas.

 

Ele foi morto afirmei, com um golpe de lança. Atingiu-o exactamente aqui, bati ao de leve nas minhas costelas, mesmo abaixo do coração.

 

Claro que a história era mais longa do que aquilo, mas não me ocorrera contar-lha nessa altura, uma vez que não tenho prazer em recordar a morte de meu pai, embora creia que deva pô-la por escrito já que esta será a história completa. Artur deixara os seus homens pilhando o acampamento de Cerdic e havia voltado para ver se os cristãos de Tewdric tinham acabado com o exército sitiado de Aelle. Descobriu alguns daqueles saxões derrotados, ensanguentados e agonizantes, mas ainda provocadores. O próprio Aelle fora ferido e já nem um escudo era capaz de segurar, contudo não se dava por vencido. Pelo contrário, rodeado pela sua escolta e os seus últimos lanceiros, aguardava que os soldados de Tewdric viessem ao seu encontro e o matassem.

 

Os lanceiros de Gwent mostraram-se relutantes em atacar. Um inimigo cercado é perigoso, e se ainda possui um escudo defensivo, como acontecia com os homens de Aelle, então é duplamente perigoso. Já tinham morrido demasiados lanceiros de Gwent, entre eles o bom velho Agrícola, e os sobreviventes não queriam fazer nova investida sobre os escudos saxões. Artur não insistiu para que tentassem fazê-lo. Em vez disso, falou com Aelle, e assim que este recusou render-se, Artur chamou-me. Ao chegar junto de Artur, pensei que ele trocara a sua capa branca por outra de cor vermelha-escura; todavia, era o mesmo trajo que trazia vestido, simplesmente de tão manchada de sangue parecia vermelha. Ele saudou-me com um abraço, depois, com o braço em volta dos meus ombros, conduziu-me para o espaço vazio entre os dois escudos defensivos inimigos. Recordo-me de aí estar um cavalo moribundo, homens mortos, escudos abandonados e armas partidas.

 

O teu pai não quer render-se disse Artur, mas creio que ele te ouvirá. Diz-lhe que terá de ficar nosso prisioneiro, mas que viverá com honrarias e poderá passar os seus dias com todas as comodidades. Garanto igualmente a vida dos seus homens. Tudo o que ele tem de fazer é entregar-me a sua espada.

 

Ele olhou para os saxões derrotados, em escasso número e cercados. Estavam em silêncio. No seu lugar estaríamos a cantar, mas aqueles lanceiros aguardavam a morte envoltos num silêncio sepulcral.

 

Diz-lhes que já houve mortes suficientes, Derfel pediu-me Artur. Desfivelei a Hywelbane, pousei-a juntamente com o meu escudo e a minha lança, depois caminhei ao encontro de meu pai. Aelle estava abatido, vencido e ferido, mas avançou com dificuldade para vir ao meu encontro de cabeça bem erguida. Não trazia o seu escudo, segurando apenas uma espada na sua mão direita mutilada.

 

Achei que te chamariam disse ele, com uma voz rouca. A ponta da sua espada estava bastante amolgada e a lâmina incrustada de sangue. Fez um gesto repentino com a arma assim que comecei a falar-lhe na proposta de Artur.

 

Eu sei que o que ele pretende de mim interrompeu-me, é a minha espada, mas eu sou Aelle, o Bretwalda da Bretanha, e não entregarei a minha espada.

 

Pai voltei a insistir.

 

Trata-me por Rei! disse ele, com rispidez.

 

Sorri diante do desafio e fiz uma vénia com a cabeça.

 

Meu Rei e Senhor, devolvemos aos vossos homens as suas vidas, e nós...

 

Voltou a cortar-me a palavra.

 

Quando um homem morre no campo de batalha disse-me ele, vai para um refúgio abençoado no céu. Todavia, para chegar a esse enorme salão de banquetes tem de morrer de pé com a espada na mão e as feridas bem visíveis fez uma pausa e, ao voltar a falar, o seu tom de voz era bem mais suave. Nada me deves, meu filho, todavia tomá-lo-ia como uma gentileza, se me concedesses o meu lugar nesse salão de banquetes.

 

Meu Rei e Senhor afirmei, mas ele interrompeu-me uma quarta vez.

 

Eu seria sepultado aqui continuou como se eu nada tivesse dito, com os pés virados para norte e a minha espada na mão. Nada mais te peço voltou-se para os seus homens, e reparei que tinha dificuldade em se manter direito. Devia estar gravemente ferido, contudo a sua enorme capa de pêlo de urso escondia-lhe a ferida.

 

Hrothgar! chamou um dos seus lanceiros.

 

Entrega a tua lança a meu filho. Um jovem e alto saxão saiu do escudo defensivo e, obediente, entregou-me a sua lança.

 

Pega nela! ordenou-me Aelle, asperamente, e eu obedeci. Hrothgar lançou-me um olhar nervoso, depois recuou rapidamente para junto dos seus companheiros.

 

Aelle fechou os olhos por breves instantes e vi um esgar perpassar-lhe o rosto severo. A sua palidez era visível por baixo da sujidade e do suor. De repente, rangeu os dentes quando outra dor lancinante o percorreu, contudo resistiu-lhe, tentando mesmo sorrir enquanto avançava para me abraçar. Inclinou-se, apoiando todo o seu peso nos meus ombros, e eu ouvi-lhe a respiração a arranhar-lhe a garganta.

 

Creio disse-me ao ouvido, que és o melhor dos meus filhos. Agora, concede-me uma coisa. Uma boa morte, Derfel, porque muito me agradaria ir para o salão de banquetes dos verdadeiros guerreiros.

 

Deu pesadamente um passo atrás e encostou a espada ao seu corpo, depois cuidadosamente desapertou as fitas de cabedal da sua capa de pêlo. Esta soltou-se e vi que todo o lado esquerdo do seu corpo estava ensopado em sangue. Sofrera um golpe de lança por baixo da armadura, enquanto outro golpe o atingira no ombro, deixando o seu braço esquerdo a pender, inerte. Por isso, fora forçado a utilizar a mão direita estropiada para desapertar as correias de cabedal que lhe seguravam a armadura à cintura e aos ombros. Atrapalhou-se com as fivelas, mas assim que dei um passo em frente para o ajudar, afastou-me com um aceno da mão.

 

Estou a facilitar-te a tarefa disse-me ele, mas quando estiver morto, volta a colocar a armadura no meu cadáver. Precisarei da armadura no salão de banquetes, porque muito por lá se peleja. Peleja, festeja e... inclinou-se, torturado novamente pela dor. Rangeu os dentes, gemeu, depois endireitou-se para me encarar.

 

Agora mata-me ordenou-me.

 

Não posso matar-vos respondi, recordando-me, no entanto, da profecia de minha mãe de que seria o filho de Aelle que o mataria.

 

Então, terei de te matar disse ele, e meneou desajeitadamente a sua espada na minha direcção.

 

Afastei-me, e ele tropeçou quase caindo ao tentar seguir-me. Parou, arfou e olhou-me fixamente.

 

Pela saúde da tua mãe, Derfel rogou-me, vais deixar-me morrer estendido no chão como um cão? Não podes conceder-me nada?

 

Meneou novamente a espada para mim e, desta vez, o esforço foi demasiado, começando a vacilar. Vi-lhe lágrimas nos olhos, percebendo então que a forma como iria morrer era para ele importante. Determinou-se a manter-se direito e fez um enorme esforço para levantar a espada. Sangue vivo brilhou no seu lado esquerdo, os seus olhos estavam vidrados, mas mantinha-se a olhar para mim enquanto dava um último passo em frente e me dava uma fraca estocada no diafragma.

 

Deus me perdoe, mas nessa altura golpeei a lança para diante. Pus todo o meu peso e força naquele golpe, e a pesada lâmina trespassou-o e manteve-o direito mesmo quando lhe quebrou as costelas e se lhe enterrou bem fundo no coração. Teve uma enorme convulsão e no seu rosto moribundo surgiu um olhar de terrível determinação. Por instantes, julguei que desejava erguer a espada para um último golpe, mas depois reparei que apenas se certificava de que a sua mão direita ferida agarrava, rapidamente e com força, o punho da sua espada. Depois, caiu, morrendo antes de chegar ao chão, mas agarrando ainda a sua espada romba e ensanguentada. Soou um murmúrio vindo dos seus homens. Alguns choravam.

 

Derfel? disse Igraine. Derfel!

 

Senhora?

 

Dormias acusou-me ela.

 

A idade, querida Senhora respondi, apenas a idade.

 

Então, Aelle morreu no campo de batalha disse ela, com vivacidade, e Lancelote?

 

Isso será mais tarde disse eu, com firmeza.

 

Conta-me agora! insistiu ela.

 

Disse-vos afirmei, que a seu tempo virá e odeio histórias que revelam o final antes de começarem.

 

Por instantes, julguei que ela iria protestar, mas limitou-se a suspirar diante da minha obstinação e prosseguiu com a sua lista de assuntos inacabados.

 

O que aconteceu ao paladino saxão, Liofa?

 

Morreu afirmei, de forma bem horrível.

 

Excelente! disse ela, parecendo interessada. Conta-me.

 

Foi uma doença, Senhora. Algo que lhe cresceu na virilha, fazendo com que não conseguisse sentar-se nem deitar-se, e até mesmo de pé agonizava. Foi ficando cada vez mais magro e, por fim, morreu, suando e tremendo. Ou assim constou.

 

Igraine estava indignada.

 

Então, não foi morto em Mynydd Baddon?

 

Fugiu com Cerdic.

 

Igraine encolheu os ombros, pouco satisfeita, como se de algum modo tivéssemos falhado ao deixar que o paladino saxão fugisse.

 

Mas os bardos disse ela, e eu deixei escapar um gemido, porque sempre que a minha Rainha menciona os bardos sei que estarei prestes a ser confrontado com a sua versão da história que, inevitavelmente, Igraine prefere, ainda que eu tivesse estado presente à medida que os acontecimentos decorriam e os bardos nem sequer fossem nascidos.

 

Os bardos disse ela com firmeza, ignorando o meu gemido de protesto, todos eles afirmam que a batalha de Cuneglas com Liofa durou grande parte de uma manhã, e que Cuneglas matou seis paladinos antes de ser abatido pelas costas.

 

Eu ouvi essas canções afirmei, com prudência.

 

Ela olhou-me, irritada. Cuneglas fora o avô do seu marido e estava em questão o orgulho familiar. Então?

 

Eu estava lá, Senhora afirmei, simplesmente.

 

Tu tens a memória de um velho, Derfel disse ela, de forma desaprovadora, e não tenho dúvidas de que quando Dafydd, o escriba que transcreve a tradução inglesa dos meus pergaminhos, chegar à passagem sobre a morte de Cuneglas far-lhe-á alterações, ajustando-a à vontade da minha Senhora. E porque não? Cuneglas fora um herói e não fará mal algum se a história o recordar como um grande guerreiro, apesar de, na verdade, ele não ser sequer um soldado. Sempre fora um homem bom, sensível e sensato, mas não era um homem que se envaidecia quando agarrava na haste de uma lança. A sua morte foi a nossa tragédia de Mynydd Baddon, mas uma tragédia de que nenhum de nós se apercebeu no delírio da vitória. Queimámo-lo no campo de batalha e a sua pira funerária ardeu durante três dias e três noites e, na última alvorada, quando havia apenas brasas por entre as quais estavam os restos derretidos da armadura de Cuneglas, reunimo-nos em volta da pira e cantámos o Cântico da Morte de Werlinna. Também matámos um número considerável de prisioneiros saxões, enviando as suas almas para escoltarem Cuneglas honrosamente para o Outro Mundo, e recordo-me de pensar que era bom para a minha querida Dian o facto de o seu tio atravessar a ponte das espadas para lhe fazer companhia no etéreo mundo de Annwn.

 

E Artur perguntou Igraine, impaciente, correu para Guinevere?

 

Não testemunhei a sua reconciliação afirmei.

 

Não importa o que tu viste disse Igraine severamente, precisamos de incluir isso agora moveu, com o pé, o monte dos pergaminhos que estavam já terminados. Devias ter descrito o seu encontro, Derfel.

 

Disse-vos já, não o presenciei.

 

O que importa isso? Teria dado um belíssimo final à batalha. Nem toda a gente gosta de ouvir falar em lanças e mortes, Derfel. Após algum tempo, as histórias sobre as lutas travadas entre os homens podem tornar-se muito aborrecidas e uma história de amor pode tornar tudo muito mais interessante.

 

E não há dúvida que a batalha ficará cheia de romance quando ela e Dafydd alterarem a minha história. Por vezes, gostaria de escrever esta história na língua inglesa, mas dois dos monges sabem ler e qualquer um deles podia trair-me perante Sansum; por isso, tenho de escrever em saxão e esperar que Igraine não altere a história quando Dafydd a traduzir. Sei que aquilo que Igraine pretende é que Artur corra por entre os cadáveres e que Guinevere espere por ele de braços abertos, e que os dois tenham um encontro arrebatador. Talvez tenha sido assim que as coisas, na verdade, se passaram, mas não creio porque ela era demasiado orgulhosa e ele demasiado tímido. Imagino que choraram quando se encontraram, mas nunca nenhum deles mo disse, por isso não inventarei nada. Sei como Artur se tornou um homem feliz depois de Mynydd Baddon, e que não foi apenas a vitória sobre os saxões que lhe deu essa felicidade.

 

E em relação a Argante? Igraine quis saber. Deixas tanta coisa de fora, Derfel!

 

A bom tempo chegarei a Argante.

 

Mas o seu pai estava presente. Oengus não ficou zangado por Artur voltar para Guinevere?

 

Contar-vos-ei tudo sobre Argante prometi, a seu devido tempo.

 

E Amhar e Loholt? Não os esqueceste?

 

Eles fugiram respondi. Encontraram um barco e atravessaram o rio, remando. Receio que venhamos a encontrá-los novamente nesta história.

 

Igraine tentou arrancar de mim mais alguns pormenores, mas insisti que contaria a história de acordo com o meu ritmo e seguindo a minha própria ordem. Finalmente, ela desistiu das perguntas e inclinou-se para colocar os pergaminhos escritos no saco de cabedal que usava para os levar para o Caer; teve dificuldade em se inclinar, recusando, no entanto, o meu auxílio.

 

Ficarei muito aliviada quando o bebé nascer disse ela. Os meus seios estão doridos, doem-me as pernas e as costas e já nem consigo andar, apenas me bamboleio como um ganso. Brochvael também se aborrece com isto.

 

Os maridos nunca se sentem bem quando as suas esposas estão grávidas respondi.

 

Então, não deviam tentar com tanto afinco encher-lhes as barrigas disse Igraine, com mordacidade.

 

Fez uma pausa ao ouvir Sansum a gritar com o irmão Llewellyn por ter deixado a sua selha de leite na passagem. Pobre Llewellyn. É um noviço do nosso mosteiro e ninguém trabalha tanto por tão pouco reconhecimento e agora, por causa de um alcatruz, será condenado a uma semana de vergastadas diárias pelo Santo Tudwal, o jovem de facto, pouco mais é do que uma criança que está a ser preparado para suceder a Sansum. Todo o nosso mosteiro vive com medo de Tudwal, e apenas eu escapo ao pior do seu ressentimento, graças à amizade de Igraine. Sansum precisa demasiado da protecção do seu marido para arriscar o desagrado de Igraine.

 

Esta manhã disse-me ela, vi um veado apenas com um chifre. É um mau presságio, Derfel.

 

Nós, cristãos disse-lhe eu, não acreditamos em presságios.

 

No entanto, vejo-te tocar nesse prego que tens na tua escrivaninha disse ela.

 

Nem sempre somos bons cristãos. Fez uma pausa.

 

Estou preocupada com o nascimento.

 

Todos rezamos por vós respondi, e apercebi-me que aquela fora uma resposta inadequada.

 

Todavia, eu fizera mais do que simplesmente orar na capela do nosso pequeno mosteiro. Encontrara uma pedra-d’águia, gravara o seu nome na superfície e enterrara-a junto a um freixo. Se Sansum soubesse que eu praticara este antigo sortilégio, esquecer-se-ia da necessidade da protecção de Brochvael e entregar-me-ia ao Santo Tudwal para que me batesse, durante um mês, até sangrar. Mas, então, se o santo soubesse que eu escrevia esta história de Artur faria o mesmo.

 

Todavia, escrevê-la-ei, e durante algum tempo fá-lo-ei sem dificuldade, porque agora seguem-se os tempos felizes, os anos de paz. Contudo, foram também os anos das trevas invasoras, mas não nos apercebemos disso, porque vimos apenas a luz do Sol e nunca cuidámos da obscuridade. Pensámos que havíamos vencido as trevas e que o Sol iluminaria a Bretanha para sempre. Mynydd Baddon era a vitória de Artur, a sua maior conquista, e talvez a história devesse terminar ali; no entanto, Igraine tem razão, a vida não tem fins ordenados, por isso tenho de continuar esta história de Artur, do meu Senhor, do meu amigo e do libertador da Bretanha.

 

Artur deixou que os homens de Aelle vivessem. Depuseram as suas lanças e foram distribuídos pelos vencedores como escravos. Utilizei alguns para ajudarem a cavar a sepultura de meu pai. Escavámos bem fundo, naquela terra mole e pantanosa junto ao rio e nela depositámos Aelle com os pés virados a norte, a sua espada na mão, a armadura por cima do seu coração trespassado, o escudo atravessado sobre a sua barriga e a lança que o havia morto ao longo do seu cadáver. Depois enchemos a sepultura e eu orei a Mitras, enquanto os saxões rezavam ao seu deus de Thunder.

 

Ao cair da noite, foram ateadas as primeiras piras funerárias. Ajudei a deitar os corpos dos meus homens nas suas piras, depois deixei que os seus companheiros entoassem cânticos às suas almas, que se dirigiam já para o Outro Mundo, enquanto eu volteava o meu cavalo e rumava para norte, por entre as longas e indefinidas sombras. Cavalguei em direcção à aldeia onde as nossas mulheres haviam encontrado abrigo, e enquanto subia as colinas pelo lado norte, o barulho do campo de batalha foi ficando para trás. Agora, ouvia o som do crepitar de fogueiras, do choro de mulheres, de elegias cantadas e de homens bêbados que vaiavam selvaticamente.

 

Dei a Ceinwyn a notícia da morte de Cuneglas. Ela fitou-me quando lho disse e, por instantes, não reagiu; mas depois os seus olhos ficaram marejados de lágrimas. Puxou a sua capa para cima da cabeça.

 

Pobre Perddel disse ela, referindo-se ao filho de Cuneglas, que era agora o Rei de Powys.

 

Contei-lhe como o seu irmão morrera, e depois retirou-se para a choupana onde ela e as nossas filhas estavam instaladas. Quis ligar-me a ferida da cabeça, que parecia ser mais grave do que, de facto, era, mas não podia fazê-lo porque tanto ela como as suas filhas tinham de estar de luto por Cuneglas, e isso significava que tinham de se recolher durante três dias e três noites, durante os quais tinham de se esconder do sol e não podiam ver nem tocar em nenhum homem.

 

Nessa altura, já caíra a noite. Eu podia ter permanecido na aldeia, mas estava impaciente. Por isso, sob a luz de uma lua ténue, voltei de novo para sul. Inicialmente, dirigi-me a Aquae Sulis, julgando que encontraria Artur na cidade, contudo, deparei apenas com os restos das tochas da carnificina. A nossa tropa recrutada havia atacado em grande número o escudo defensivo pouco compacto e havia morto todos quantos estavam no seu interior. O horror terminara quando as tropas de Tewdric ocuparam a cidade. Esses cristãos esvaziaram o templo de Minerva, espalhando as entranhas de três touros sacrificados, que os saxões haviam deixado a pingar barbaramente pelas telhas, e assim que o santuário foi reparado os cristãos praticaram um rito de acção de graças. Ouvi os seus cânticos e fui em busca dos cânticos dos meus homens, mas eles haviam permanecido no acampamento em ruínas de Cerdic e Aquae Sulis cheio de estranhos. Não encontrei Artur, nem nenhum outro amigo, excepto Culhwuch, que murmurava, ébrio; por isso, na penumbra, rumei para leste ao longo do rio. O ar fedia a sangue e estava cheio de fantasmas, mas aventurei-me por entre os espectros, desesperado por encontrar um companheiro. Encontrei um grupo de homens de Sagramor a cantar em volta de uma fogueira, mas eles não sabiam onde estava o seu comandante, por isso continuei a dirigir-me ainda mais para leste, ao mesmo tempo que era observado pelos homens que dançavam em volta de uma fogueira.

 

Os dançarinos eram Escudos Negros e os seus passos eram pesados, porque dançavam por entre as cabeças decepadas dos seus inimigos. Preparava-me para circundar os Escudos Negros saltitantes quando me apercebi de duas figuras vestidas de branco, calmamente sentadas junto à fogueira no meio do círculo de dançarinos. Uma delas era Merlim.

 

Prendi as rédeas do meu cavalo ao tronco de um espinheiro e avancei, transpondo o círculo de dançarinos. Merlim e o seu companheiro faziam uma refeição de pão, queijo e cerveja e, ao olhar para mim, pela primeira vez, Merlim não me reconheceu.

 

Vai-te embora disse ele, com brusquidão, ou transformo-te em sapo. Ah, és tu, Derfel! Pareceu decepcionado. Eu sabia que se encontrasse comida, uma qualquer barriga vazia esperaria que a partilhasse. Suponho que estás com fome?

 

Assim é, Senhor.

 

Fez um gesto para que eu me sentasse ao seu lado.

 

Desconfio que o queijo é saxão disse ele, hesitante, e tinha bastante sangue quando o encontrei, mas lavei-o bem. Bom, de qualquer modo, esfreguei-o com um pano e é surpreendentemente comestível. Creio que há que chegue para ti.

 

Na verdade havia queijo em quantidade para uma dúzia de homens.

 

Este é Taliesin apresentou ele, com brevidade, o seu companheiro. É um conhecido bardo de Powys.

 

Olhei para o famoso bardo e vi um jovem com um rosto esperto e cheio de vivacidade. Ele rapara a parte da frente da cabeça como um druida, usava uma pequena barba preta, tinha maxilares compridos, faces encovadas e nariz afilado. A sua testa rapada era circundada por um fino fio de prata. Sorriu e fez uma vénia com a cabeça.

 

A vossa fama precede-vos, Lorde Derfel.

 

Bem como a vossa afirmei.

 

Oh, não! lamentou-se Merlim. Se vocês vão começar com mesuras um com o outro, então vão fazê-lo para outro sítio. Derfel combate disse ele a Taliesin, porque na verdade nunca chegou a crescer, e tu és famoso porque aconteceu teres uma voz sofrível.

 

Eu componho canções e também as canto disse Taliesin, modestamente.

 

E qualquer homem consegue compor uma canção, desde que esteja suficientemente bêbado disse Merlim, desaprovadoramente, depois olhou-me de soslaio. Isso é sangue, o que tens no cabelo?

 

É sim, Senhor.

 

Devias estar agradecido por não teres sido ferido em nenhum sítio vital riu com o que disse, depois gesticulou para os Escudos Negros. O que achas da minha escolta?

 

Dançam bem.

 

Têm muitas razões para dançar. Que dia excepcional disse Merlim. E Gawain, não representou bem o seu papel? É tão gratificante quando um pateta prova ser de alguma utilidade, e que pateta era Gawain! Um rapaz entediante! Constantemente a tentar melhorar o mundo. Por que razão os jovens acreditam sempre que sabem mais do que os mais velhos? Tu, Taliesin, não sofres desse entediante equívoco. Taliesin explicou-me Merlim, então veio para aprender com a minha sabedoria.

 

Tenho muito para aprender murmurou Taliesin.

 

É bem verdade, bem verdade disse Merlim. Empurrou um pote de cerveja na minha direcção. Gostaste da tua batalhazinha, Derfel?

 

Não na verdade, sentia-me estranhamente abatido. Cuneglas morreu expliquei.

 

Eu soube o que aconteceu a Cuneglas afirmou Merlim. Que tolo! Devia ter deixado os heroísmos para patetas como tu. Em todo o caso, é uma pena ter morrido. Não era propriamente um homem esperto, pelo menos não era aquilo a que chamo esperto, mas não era nenhum pateta, o que é raro nos tristes dias que correm. E ele sempre foi bom para mim.

 

Para mim, ele era a bondade em pessoa acrescentou Taliesin.

 

Então, agora terás de encontrar um novo protector disse Merlim ao bardo, e não olhes para Derfel. Ele não sabe distinguir uma boa canção do peido de um boi castrado. O segredo para uma vida de sucesso, agora dava uma lição a Taliesin é nascer com pais ricos. Eu vivi muito confortavelmente das minhas rendas, apesar de, a propósito, não as receber há anos. Tens-me pago a renda, Derfel?

 

Devia, Senhor, mas nunca sei para onde enviá-la.

 

Não que isso agora tenha importância disse Merlim. Estou velho e fraco. Sem dúvida que, em breve, estarei morto.

 

Que tolice afirmei, estais em perfeita forma.

 

Claro que ele estava velho, mas havia um vislumbre de travessura nos seus olhos e uma vivacidade no seu rosto enrugado de ancião. O seu cabelo e a sua barba estavam cuidadosamente penteados e presos com fitas pretas, enquanto a sua túnica, à excepção do sangue seco, estava limpa. Ele também estava feliz; julgo não apenas por termos conseguido a vitória, mas porque apreciava a companhia de Taliesin.

 

A vitória dá vida disse ele, desaprovador. Todavia, muito em breve esqueceremos a vitória. Onde está Artur?

 

Ninguém sabe afirmei. Constou-me que passou longo tempo a falar com Tewdric, mas já não está com ele. Presumo que encontrou Guinevere.

 

Merlim fez um sorriso escarninho.

 

Um cão volta ao seu vómito.

 

Começo a gostar dela afirmei, defensivamente.

 

Sim disse ele, com desprezo, e atrevo-me a dizer que agora ela não fará mal algum. Ela seria uma boa protectora para ti disse ele a Taliesin, tem um respeito absurdo por poetas. Apenas uma coisa, não subas para a sua cama.

 

Não há qualquer perigo de isso acontecer, Senhor disse Taliesin. Merlim riu.

 

Aqui o nosso jovem bardo disse-me ele é celibatário. É uma cotovia castrada. Ele renegou o maior prazer que um homem pode ter para preservar o seu dom.

 

Taliesin viu a minha curiosidade e sorriu.

 

Não a minha voz, Lorde Derfel, mas o dom da profecia.

 

E é um dom genuíno! afirmou Merlim, com efectiva admiração. Embora eu duvide que mereça o celibato. Se alguma vez me fosse pedido para pagar esse preço teria abandonado o bastão de druida! Em vez disso, teria aceite uma humilde actividade, como tornar-me bardo ou lanceiro.

 

Conheceis o futuro? perguntei a Taliesin.

 

Hoje, ele previu a vitória disse Merlim e soube da morte de Cuneglas há um mês atrás, embora não tivesse adivinhado que um inútil e inchado saxão viria roubar todo o meu queijo. Arrancou-me o queijo das mãos. Creio que agora afirmou, pretenderás que ele preveja o teu futuro, Derfel?

 

Não, Senhor.

 

Tens razão disse Merlim, é sempre melhor desconhecer o futuro. Tudo termina em lágrimas, é sempre assim.

 

Todavia, a alegria é renovada disse Taliesin, suavemente.

 

Valha-me Deus, não! gritou Merlim. A alegria é renovada! Raia o dia! A árvore floresce! As nuvens dissipam-se! O gelo derrete-se! Consegues dizer coisas melhores do que esse tipo de disparate sentimental. Permaneceu em silêncio. A sua escolta havia terminado a sua dança e tinha ido divertir-se com algumas mulheres saxãs feitas prisioneiras. As mulheres tinham filhos, e os seus gritos soavam suficientemente alto para aborrecer Merlim, que franziu as sobrancelhas. O destino é inexorável afirmou, irritado, e tudo termina em lágrimas.

 

Nimue está convosco? perguntei-lhe, e percebi de imediato, pela expressão de advertência de Taliesin, que fizera a pergunta errada.

 

Merlim olhou, fixamente, para a fogueira. As chamas cuspiram brasas à sua volta e ele cuspiu-lhes, devolvendo, assim, a malícia ao fogo.

 

Não me fales de Nimue disse ele, depois de cuspir. A sua boa disposição tinha desaparecido e eu senti-me embaraçado por ter feito a pergunta.

 

Ele tocou no seu bastão negro, depois suspirou. Ela está zangada comigo explicou ele.

 

Porquê, Senhor?

 

Porque não consegue fazer as coisas à sua maneira, claro. É isso o que normalmente faz com que as pessoas se zanguem. Outro cepo estalou na fogueira, espalhando fagulhas que ele sacudiu da sua túnica, irritado, depois de cuspir para as chamas. Madeira de larício. disse ele. O larício acabado de cortar odeia ser queimado. Fitou-me, pensativo. Nimue não concordou que eu trouxesse Gawain para esta batalha. Ela acha que foi um desperdício e creio que, possivelmente, terá razão.

 

Deu-nos a vitória, Senhor afirmei.

 

Ele fechou os olhos e pareceu suspirar, insinuando que eu era demasiado tolo para entender.

 

Dediquei toda a minha vida disse ele, após algum tempo a uma coisa. A uma única coisa. Pretendi revigorar os Deuses. É isto assim tão difícil de entender? Porém, fazer alguma coisa bem feita, Derfel, leva uma vida inteira. Oh, para tolos como tu está tudo bem, vocês podem desperdiçar o vosso tempo sendo um dia magistrados, e lanceiros no dia seguinte. E quando tudo terminar, o que terás conseguido alcançar? Nada! Para mudares o mundo, Derfel, tens de ter um único objectivo. Artur está próximo dele, sem dúvida. Ele pretende fazer com que a Bretanha fique a salvo dos saxões e, provavelmente, consegui-lo-á por algum tempo, mas eles continuam a existir e voltarão. Talvez já não durante o tempo que me resta de vida, talvez também não no que vos resta, mas os vossos filhos e os filhos dos vossos filhos terão de voltar a travar esta batalha. Existe apenas um caminho para a verdadeira vitória.

 

O caminho dos Deuses afirmei.

 

O caminho dos Deuses concordou ele, e essa foi a tarefa da minha vida. Baixou os olhos fitando por instantes o seu bastão negro de druida e Taliesin permaneceu muito quieto, observando-o. Quando era criança tive um sonho disse Merlim, brandamente. Fui para a gruta de Carn Ingli e sonhei que tinha asas e conseguia voar suficientemente alto para ver a ilha da Bretanha. E ela era tão bela. Bela, verde e rodeada por uma imensa bruma que mantinha todos os nossos inimigos afastados. A ilha abençoada, Derfel, a ilha dos Deuses, o único sítio na terra que era digno deles. E desde esse sonho, Derfel, é tudo o que sempre tenho querido. Reaver essa ilha abençoada. Reaver os Deuses.

 

Mas, tentei interromper.

 

Não sejas absurdo! gritou ele, provocando o sorriso de Taliesin. Pensa! pediu-me Merlim. A tarefa da minha vida, Derfel!

 

Mai Dun afirmei, suavemente.

 

Ele assentiu e depois, por instantes, ficou calado. Os homens cantavam ao longe e por toda a parte havia fogueiras. Os feridos gritavam na escuridão, onde cães e necróforos devoravam os mortos o os moribundos. Ao amanhecer, aquele exército acordaria ébrio, deparando-se com o horror de um campo depois da batalha, mas por enquanto cantavam e saciavam-se com a cerveja roubada.

 

Em Mai Dun Merlim quebrou o seu silêncio, cheguei tão próximo. Muito próximo. Mas eu estava tão fraco, Derfel, tão fraco. Gosto demasiado de Artur. Porquê? Ele não é espirituoso, as suas conversas podem ser tão entediantes como as de Gawain e ele tem uma absurda devoção à virtude, mas gosto muito dele. Por acaso, de ti também. Uma fraqueza, bem sei. Posso apreciar homens flexíveis, mas gosto de homens honestos. Admiro a força simples, entendes, e em Mai Dun deixei que essa admiração me enfraquecesse.

 

Gwydre afirmei. Ele assentiu.

 

Devíamos tê-lo morto, mas senti que não conseguia fazê-lo. Não ao filho de Artur. Essa foi uma terrível fraqueza.

 

Não.

 

Não sejas absurdo! disse ele, penosamente. O que é a vida de Gwydre para os Deuses? Ou para a perspectiva de revigorar a Bretanha? Nada! Mas eu não consegui fazê-lo. Ah, tenho desculpas. O pergaminho de Caleddin é bem claro, quando diz que ”o filho do Rei da região” tem de ser sacrificado, e Artur não é Rei, mas isso é um mero trocadilho. O rito precisava da morte de Gwydre e eu não consegui forçar-me a obtê-la. Não tive qualquer dificuldade em matar Gawain, foi até um prazer roubar a tagarelice àquele tolo virgem, mas não Gwydre, e, desse modo, o rito ficou inacabado. Agora ele estava infeliz, de costas arqueadas e infeliz.

 

Falhei acrescentou, amargamente.

 

E Nimue não vos perdoa? perguntei, hesitante.

 

Perdoar? Ela não conhece o significado da palavra! Para Nimue, o perdão é uma fraqueza! E agora ela irá representar os ritos, e não falhará, Derfel. Se isso significar matar todos os filhos de mães bretãs, ela fá-lo-á. Colocá-los-á a todos no caldeirão e avivará o fogo com o atiçador! Esboçou um sorriso, depois encolheu os ombros. Porém, desta vez complicar-lhe-ei muito mais as coisas. Como o velho tolo sentimental que sou, tinha de ajudar Artur a vencer esta contenda. Usei Gawain para o fazer e agora, segundo creio, ela odeia-me.

 

Porquê?

 

Levantou os olhos para o céu cheio de fumo, como se apelasse aos Deuses para que me concedessem um pouco, que fosse, de inteligência.

 

Achas, seu tolo perguntou-me, que o cadáver de um jovem príncipe está tão prontamente disponível? Levei anos a encher a cabeça daquele pateta com disparates até ele estar pronto para o sacrifício! E o que fiz eu hoje? Desperdicei Gawain! Apenas para ajudar Artur.

 

Mas nós vencemos!

 

Não sejas absurdo. Ele olhou para mim, irado. Tu venceste? O que é aquela coisa revoltante no teu escudo?

 

Voltei-me e olhei para o meu escudo.

 

A cruz.

 

Merlim esfregou os olhos.

 

Há uma guerra entre os Deuses, Derfel, e hoje ofereci a vitória a Yahweh.

 

Quem?

 

É o nome do Deus cristão. Por vezes, chamam-lhe Jehovah. Tanto quanto pude saber, não passa de um humilde Deus do fogo de um qualquer país distante e desditoso, que está agora empenhado em suplantar todos os outros Deuses. Deve ser um sapinho ambicioso, porque vence, e fui eu quem hoje lhe consagrou a vitória. O que achas tu que os homens recordarão desta batalha?

 

A vitória de Artur afirmei, convicto.

 

Dentro de cem anos, Derfel disse Merlim, eles não se lembrarão se foi uma vitória ou uma derrota.

 

Fiz uma pausa. A morte de Cuneglas? aventei.

 

Quem quer saber de Cuneglas? Apenas mais um rei esquecido.

 

A morte de Aelle? sugeri.

 

Um cão moribundo mereceria mais atenção.

 

Então, o quê?

 

Ele fez uma careta diante da minha tacanhez.

 

Eles recordar-se-ão, Derfel, que essa cruz estava nos vossos escudos. Hoje, seu tolo, entregámos a Bretanha aos cristãos, e fui eu quem o fez. Dei a Artur aquilo que ele pretendia, mas o preço, Derfel, fui eu que o estipulei Compreendes agora?

 

Sim, Senhor.

 

E, por isso, dificulto muito mais a tarefa de Nimue. Todavia, ela tentará, Derfel, e ela não é como eu. Não é fraca. Existe uma dureza dentro de Nimue, uma dureza tão grande.

 

Sorri.

 

Ela não matará Gwydre afirmei, confiante, porque nem Artur nem eu o permitiremos, e não lhe sendo dada a Excalibur, como pode ela vencer?

 

Ele olhou-me fixamente.

 

Julgas, idiota, que tu ou Artur são suficientemente fortes para resistirem a Nimue? Ela é uma mulher, e o que as mulheres querem, conseguem, e se para o conseguirem tiverem de destruir o mundo e os seus senhores, fazem-no. Primeiro, ela conseguirá vergar-me, depois virar-se-á para vocês. Não é esta a verdade, meu jovem profeta? perguntou ele a Taliesin, mas o bardo fechara os olhos. Merlim encolheu os ombros. Levar-lhe-ei as cinzas de Gawain e auxiliá-la-ei no que puder afirmou, porque lho prometi. Mas tudo terminará em lágrimas, Derfel, tudo terminará em lágrimas. Que confusão criei. Que terrível confusão colocou a sua capa em volta dos ombros. Agora vou dormir anunciou.

 

Para lá da fogueira, os Escudos Negros violavam as suas prisioneiras e eu sentei-me, olhando fixamente para as chamas. Eu ajudara a construir uma grande vitória e sentia-me inexplicavelmente triste.

 

Nessa noite não vi Artur, encontrando-o apenas por breves instantes na penumbra enevoada, quase ao amanhecer. Ele saudou-me com toda a sua antiga vivacidade, atirando um braço em volta dos meus ombros.

 

Quero agradecer-te disse ele, por olhares por Guinevere nestas últimas semanas estava aprestado com a sua armadura e fazia um pequeno-almoço rápido com uma fatia de pão com bolor.

 

Se há algo a dizer respondi, é que foi Guinevere quem olhou por mim.

 

Referes-te às carroças! Gostava de ter visto aquilo! Atirou o pão para o chão quando Hygwydd, o seu servo, passou levando Llamrei para a claridade. Talvez nos encontremos esta noite, Derfel disse-me Artur, enquanto deixava que Hygwydd o ajudasse a subir para a sela, ou talvez amanhã.

 

Onde ides, Senhor?

 

Atrás de Cerdic, claro.

 

Instalou-se no dorso de Llamrei, juntou as rédeas e pegou no seu escudo e na lança que Hygwydd lhe entregava. Bateu com os calcanhares no cavalo, indo juntar-se aos seus cavaleiros, que se assemelhavam a formas sombreadas no nevoeiro. Mordred também montou com Artur, já não sob escolta, mas sendo aceite como um soldado útil à sua direita. Observei-o a pôr freio ao seu cavalo e lembrei-me do ouro saxão que encontrara em Lindinis. Ter-nos-ia Mordred traído? Se o tivesse feito, eu não podia prová-lo, e o resultado da batalha negava a sua traição; ainda assim senti ódio pelo meu Rei. Ele apercebeu-se do meu olhar fixo e malevolente e afastou-se no seu cavalo. Artur gritou aos seus homens para que avançassem e escutei o retumbar dos seus cascos que marcava a sua partida.

 

Acordei os meus homens, que dormiam, espicaçando-os com a extremidade de uma lança, e ordenei-lhes que trouxessem prisioneiros saxões para cavarem mais sepulturas e construirem outras tantas piras funerárias. Calculei que iria passar o dia ocupado com esta penosa tarefa, mas a meio da manhã Sagramor enviou um mensageiro a pedir-me que levasse um destacamento de lanceiros para Aquae Sulis, onde haviam irrompido tumultos. Os distúrbios tinham começado com o rumor entre os lanceiros de Tewdric de que fora descoberto o tesouro de Cerdic e que Artur ficara com tudo para si. A prova era o desaparecimento de Artur e, como vingança, propunham destruir o santuário do centro da cidade, porque outrora fora um templo pagão. Consegui acalmar aquele furor, anunciando que aqueles dois cofres com ouro haviam, de facto, sido descobertos, mas que estavam a ser vigiados por guardas, e o seu conteúdo seria repartido com justiça assim que Artur voltasse. Seguindo a sugestão de Tewdric, enviámos meia-dúzia dos seus soldados para ajudar a guardar os cofres, que ainda permaneciam no que restava do acampamento de Cerdic.

 

Os cristãos de Gwent acalmaram, mas depois os lanceiros de Powys causaram novo alvoroço ao culparem Oengus mac Airem pela morte de Cuneglas. A animosidade entre Powys e Demétia remontava a longa data, já que era bem conhecido o gosto de Oengus mac Airem por empreender ataques súbitos às colheitas dos seus vizinhos mais abastados; de facto, Powys era conhecida na Demétia como ”a nossa despensa”; no entanto, naquele dia, eram os homens de Powys quem iniciava a disputa, ao insistirem que Cuneglas nunca teria morrido se os Escudos Negros não se tivessem atrasado a chegar ao campo de batalha. Os Irlandeses nunca se mostravam relutantes em entrar numa batalha, e ninguém foi capaz de acalmar os homens de Tewdric enquanto não se ouviu o entrechocar de espadas e lanças fora do tribunal, altura em que powysianos e Escudos Negros se defrontaram numa escaramuça sangrenta. Sagramor trouxe uma paz inquieta, recorrendo, simplesmente, à morte dos líderes das duas facções. No entanto, durante o resto do dia houve distúrbios entre as duas nações. A discórdia aumentou sobremaneira quando se soube que Tewdric enviara um destacamento de soldados para ocupar Lactodurum, uma fortaleza a norte, que há dezenas de anos não estava em mãos britânicas, mas que os homens sem chefe de Powys reclamavam por sempre ter estado no seu território, e não no de Gwent. Então, um grupo de lanceiros powysianos, que rapidamente se formou, correu atrás dos homens de Tewdric desafiando a sua pretensão. Os Escudos Negros, que não haviam testemunhado a luta de Lactodurum, insistiram no entanto que os homens de Gwent tinham razão, apenas porque sabiam que essa opinião iria enfurecer os powysianos, ocorrendo, deste modo, mais batalhas. Envolveram-se em rixas por causa de uma cidade sobre a qual muitos combatentes nunca tinham ouvido falar e que, em todo o caso, podia ainda estar guardada com uma guarnição saxã.

 

Nós, dumnonianos, conseguimos evitar aquelas batalhas e, deste modo, foram os nossos lanceiros que guardaram as estradas, confinando assim a luta às tabernas. No entanto, à tarde, fomos arrastados para as disputas quando Argante, acompanhada de um grande séquito, chegou de Glevum e descobriu que Guinevere ocupara a casa do bispo, construída por detrás do templo de Minerva. O palácio do bispo não era o maior nem o mais confortável de Aquae Sulis, pertencendo essa distinção ao palácio de Cildydd, o magistrado. No entanto, Lancelote usara a casa de Cildydd enquanto estivera em Aquae Sulis e, por essa razão, Guinevere evitara ficar nela. Contudo, Argante insistiu que a casa do bispo devia pertencer-lhe, uma vez que ficava no interior do recinto sagrado, e uma facção entusiástica de Escudos Negros foi expulsar Guinevere, travada apenas por um grande número dos meus homens, que pretendeu defendê-la. Dois homens morreram antes de Guinevere anunciar que não se importava com a casa onde iria ficar, e de se mudar para os aposentos dos sacerdotes, construídos ao lado dos amplos banhos públicos. Saindo vitoriosa daquele encontro inesperado, Argante declarou que os novos aposentos de Guinevere eram apropriados, porque, afirmava ela, os aposentos dos sacerdotes haviam sido outrora um bordel, e Fergal, o druida de Argante, conduziu uma multidão de Escudos Negros até aos banhos públicos onde se divertiram a perguntar pelos preços do bordel e a gritarem a Guinevere para que lhes mostrasse o corpo. Outro contingente de Escudos Negros ocupara o templo e deitara fora a cruz erecta que Tewdric colocara por cima do altar, e agora inúmeros lanceiros de Gwent vestidos de vermelho juntavam-se para lutar à sua maneira e voltarem a colocar a cruz no seu sítio.

 

Sagramor e eu trouxemos alguns lanceiros para o recinto sagrado, que, ao fim da tarde, prometia transformar-se num mar de sangue. Os meus homens montaram guarda às portas do templo, os de Sagramor protegeram Guinevere, mas éramos suplantados em número pelos guerreiros embriagados de Demétia e Gwent, enquanto os powysianos, satisfeitos por terem um motivo para arreliar os Escudos Negros, gritavam o seu apoio a Guinevere. Avancei pelo meio da multidão encharcada em hidromel, empurrando-a e agredindo os piores causadores dos distúrbios. Contudo, temi que a violência aumentasse de forma ainda mais ameaçadora à medida que o Sol se escondia. Foi Sagramor quem, por fim, trouxe uma paz pouco tranquila ao fim de tarde. Subiu para o telhado dos banhos públicos e aí, de pé entre duas estátuas, bradou para que se fizesse silêncio. Despira-se até à cintura de modo que, em contraste com o mármore branco dos dois guerreiros que o ladeavam, a sua pele escura parecia mais admirável ainda.

 

Se algum de vocês tiver alguma questão anunciou ele, na sua estranha pronúncia britânica, resolvê-la-á primeiro comigo. De homem para homem! Com espada ou lança, escolha. Desembainhou a sua espada comprida e curva e olhou, irritado e com ferocidade, para os homens que se encontravam em baixo.

 

Desembaraça-te da prostituta! gritou uma voz anónima do meio dos Escudos Negros.

 

És contra as prostitutas? perguntou-lhe Sagramor. Que espécie de guerreiro és tu? Casto? Se é grande o teu desígnio de seres virtuoso, atreve-te a vir aqui acima que te castro, esta troca de palavras provocou gargalhadas e, deste modo, passou o perigo imediato.

 

Argante amuou no seu palácio. Apelidou-se Imperatriz da Dumnónia e exigiu que Sagramor e eu lhe concedêssemos guardas dumnonianos. Todavia, ela tinha já a servi-la uma tão grande quantidade de Escudos Negros de seu pai que nenhum de nós obedeceu. Ao invés, despimo-nos por completo e descemos para os amplos banhos romanos para recuperarmos da exaustão. A água quente era maravilhosamente repousante. O vapor saía em pequenos rolos pelas telhas partidas do telhado.

 

Disseram-me comunicou-me Sagramor, que este é o maior edifício da Bretanha.

 

Levantei os olhos para o imenso tecto.

 

Provavelmente, é verdade.

 

Mas em criança disse Sagramor, fui escravo numa casa ainda maior do que esta.

 

Na Numídia?

 

Ele assentiu com a cabeça.

 

Apesar de eu ter vindo de uma região ainda mais a sul. Fui vendido como escravo quando era muito jovem. Nem tão-pouco me recordo dos meus pais.

 

Quando partiste da Numídia? perguntei-lhe.

 

Quando, pela primeira vez, tirei a vida a alguém. Foi a um camareiro. Tinha eu dez ou onze anos. Fugi e juntei-me ao exército romano como fundibulário. Ainda consigo acertar com uma pedra entre os olhos de um homem a cinquenta passos de distância. Depois, aprendi a montar. Pelejei em Itália, na Trácia e no Egipto, e aceitei dinheiro para me juntar ao exército franco. Foi aí que Artur me fez prisioneiro.

 

Raramente era tão falador. Na verdade, o silêncio era uma das armas mais eficazes de Sagramor, isso, o seu rosto de falcão e a sua temível reputação. Em privado, no entanto, ele era uma alma gentil e franca.

 

De que lado estamos? perguntou-me então, com um olhar confuso.

 

O que queres dizer?

 

Guinevere? Argante? Encolhi os ombros.

 

Diz-mo tu.

 

Mergulhou a cabeça na água, depois veio à tona e limpou os olhos.

 

Creio que do lado de Guinevere respondeu, se os rumores forem verdadeiros.

 

Que rumores?

 

Que Artur e ela estiveram juntos ontem à noite afirmou, embora, tratando-se de Artur, o mais certo é que tenham passado a noite a conversar. Ele gastará bem mais depressa a língua do que a espada.

 

Não corres qualquer perigo de o mesmo te acontecer.

 

Não disse ele com um sorriso, que se rasgou à medida que demorava o seu olhar em mim.

 

Constou-me que quebraste um escudo defensivo.

 

Era pouco compacto afirmei, e era composto apenas por jovens.

 

Eu quebrei um compacto disse-me ele, com um esgar, um bem compacto e cheio de guerreiros experientes, e, por vingança, afundei-o na água. Depois fugi, salpicando tudo antes de ele conseguir fazer-me o mesmo. Os banhos públicos caíam na penumbra, porque as tochas estavam apagadas e os últimos raios de Sol que passavam pelos buracos do telhado não chegavam até nós. O vapor toldava a grande sala, e apesar de eu pressentir que outras pessoas usavam os amplos banhos, não reconhecera ninguém. Contudo, naquele instante, ao atravessar a piscina a nado, vi uma figura de vestes brancas inclinar-se para um homem que estava sentado num dos degraus imersos. Reconheci os tufos de cabelo de cada um dos lados da testa calva do homem curvado e, instantes depois, captei as suas palavras.

 

Quanto a isso, confiai em mim dizia ele, com um fervor discreto, deixai isso comigo, meu Rei e Senhor.

 

Nesse instante levantou os olhos e viu-me. Era o bispo Sansum, recentemente liberto do seu cativeiro e a quem haviam sido conferidas novamente todas as anteriores honrarias, devido às promessas que Artur fizera a Tewdric. Pareceu surpreendido por me ver, mas, conseguiu dirigir-me um sorriso enjoado.

 

Lorde Derfel disse ele, recuando cautelosamente e afastando-se da borda da piscina, um dos nossos heróis!

 

Derfel. O homem que se encontrava na piscina levantou-se em grande alvoroço, e vi que se tratava de Oengus mac Airem, que agora avançava na minha direcção para me dar um abraço tão forte como o de um urso. Foi a primeira vez que abracei um homem nu disse o Rei dos Escudos Negros, e não posso dizer que perceba o encanto disso. Também é a primeira vez que tomo banho. Achas que me matará?

 

Não respondi, depois olhei de relance na direcção de Sansum. Fazeis-vos acompanhar de gentes estranhas, meu Rei e Senhor.

 

Os lobos têm pulgas, Derfel, os lobos têm pulgas resmungou Oengus.

 

Então, em que questão perguntei a Sansum, deverá o meu Rei e Senhor confiar em vós?

 

Sansum não respondeu, e o próprio Oengus pareceu estranhamente envergonhado.

 

O santuário por fim, deu uma resposta. O bom bispo dizia que, por algum tempo, conseguia que os meus homens o usassem como templo. Não é assim, Bispo?

 

Efectivamente, meu Rei e Senhor disse Sansum.

 

Sois ambos péssimos mentirosos afirmei, e Oengus deu uma gargalhada. Sansum lançou-me um olhar hostil, depois retirou-se apressadamente descendo os degraus de laje. Estava em liberdade apenas há algumas horas, porém já conspirava. O que vos dizia ele, meu Rei e Senhor? pressionei Oengus, que era um homem de quem eu gostava. Um homem simples, forte, um malandro, mas um amigo excepcional.

 

O que te parece?

 

Falava-vos da vossa filha adivinhei.

 

É uma coisinha adorável, não é? disse Oengus. Demasiado magra, sem dúvida, e com um espírito igual ao de uma loba manhosa. Este é um mundo estranho, Derfel. Gerei filhos lerdos como touros e filhas astutas como lobos fez uma pausa para saudar Sagramor, que me seguira pela piscina. Então, o que irá acontecer a Argante? perguntou-me Oengus.

 

Desconheço, Senhor.

 

Artur desposou-a, não foi?

 

Nem tão-pouco tenho a certeza disso afirmei.

 

Ele lançou-me um olhar penetrante, depois sorriu quando percebeu a minha intenção.

 

Ela afirma que eles casaram devidamente, mas só podia ser assim. Eu não tinha a certeza que Artur quisesse, de facto, desposá-la, mas forcei-o a fazê-lo. Compreendes, era menos uma boca para alimentar fez uma pausa por breves instantes.

 

A questão, Derfel prosseguiu, é que Artur não pode enviá-la simplesmente de volta! Será um insulto, e para mais, eu não a quero lá novamente. Tenho já bastantes filhas para além dela. Muitas vezes, nem tão-pouco sei quais são minhas e quais não são. Se alguma vez precisares de uma esposa, vem a Demétia e escolhe a que quiseres, mas aviso-te que são todas como ela. Bonitas, mas com dentes bem aguçados. Então, o que irá fazer Artur?

 

O que sugere Sansum? inquiri.

 

Oengus fingiu ignorar a pergunta, mas sabia que, por fim, nos diria porque não era homem que guardasse segredos.

 

Ele apenas me recordava acabou por confessar, que em tempos Argante esteve prometida a Mordred.

 

Esteve? perguntou Sagramor, surpreendido.

 

Falou-se disso afirmei, há algum tempo.

 

E quem levantara a questão fora o próprio Oengus, que procurava desesperado qualquer coisa que pudesse reforçar a sua aliança com a Dumnónia, a sua principal protecção contra Powys.

 

E se Artur não a desposou conforme devia continuou Oengus, então Mordred será uma esperança, não é verdade?

 

Bela esperança disse Sagramor, com azedume.

 

Ela será Rainha afirmou Oengus.

 

Sim concordei.

 

Então, não é má ideia afirmou Oengus de modo frívolo, embora eu desconfiasse que era uma ideia que ele apoiaria com grande entusiasmo.

 

Um casamento com Mordred compensaria o orgulho ferido da Demétia, mas também conferiria à Dumnónia a obrigação de proteger o país da Rainha. Pensei para comigo que a proposta de Sansum era a pior das ideias que eu ouvira em todo o dia, porque imaginava já o infortúnio que a junção de Mordred e Argante podia gerar, mas nada disse. Sabes o que falta nestes banhos públicos? perguntou-me Oengus.

 

Dizei-me, meu Rei e Senhor.

 

Mulheres soltou um riso abafado. Então, onde está a tua mulher, Derfel?

 

De luto respondi.

 

Ah, por Cuneglas, claro! O Rei dos Escudos Negros encolheu os ombros. Ele nunca gostou de mim, mas eu até gostava dele. Era dos poucos em cujas promessas se podia acreditar! Oengus deu uma gargalhada, porque ele próprio nunca tivera intenções de cumprir nenhuma. Contudo, não posso dizer que lamento a sua morte. O seu filho é apenas um garoto e gosta demasiado da mãe. Ela e aquelas horríveis tias dela governarão por algum tempo. Três bruxas! Riu de novo. Creio que podemos apossar-nos de umas quantas porções de terra daquelas três senhoras lentamente, baixou o rosto para a piscina. Vou apanhar os piolhos a subirem explicou, depois apertou entre os dedos um dos pequenos insectos cinzentos que subiam pela sua barba em desalinho, para fugirem da água que a humedecia.

 

Durante todo aquele dia não vi Merlim e, nessa noite, Galaad informou-me que o druida já abandonara o vale e se dirigira para norte. Encontrei Galaad, de pé, junto à pira funerária de Cuneglas.

 

Sei que Cuneglas não gostava dos cristãos explicou-me Galaad, mas creio que ele não faria objecções a uma oração cristã convidei-o a dormir junto aos meus homens, e ele caminhou a meu lado até ao sítio onde eles estavam acampados. Merlim pediu-me que te entregasse uma mensagem da sua parte disse-me Galaad. Ele diz que encontrarás o que buscas por entre as árvores que estão mortas.

 

Não estou bem certo de procurar alguma coisa afirmei.

 

Então, revista as árvores mortas disse Galaad, e encontrarás o que quer que seja que não andas à procura.

 

Nessa noite, não fui à procura de nada e dormi enrolado na minha capa, no meio dos meus homens, no campo de batalha. Acordei cedo com dores de cabeça e as articulações doridas. O bom tempo terminara e caía um chuvisco vindo de oeste. A chuva ameaçava extinguir as piras funerárias, pelo que, começámos a apanhar madeira para alimentar as chamas, e isso recordou-me a estranha mensagem de Merlim. No entanto, não via nenhumas árvores mortas. Usámos machados de guerra saxões para cortar carvalhos, olmeiros e faias poupando apenas os freixos sagrados, e todas as árvores que cortámos estavam de perfeita saúde. Perguntei a Issa se havia reparado em algumas árvores mortas e ele abanou a cabeça, mas Eachern afirmou ter visto algumas, em baixo, junto à margem do rio.

 

Mostra-mas.

 

Eachern conduziu um grupo enorme até ao talude e, no local onde o rio fazia uma curva apertada para oeste, encontrámos uma enorme massa de árvores mortas, feridas pelas raízes semiexpostas de um salgueiro. Os ramos secos estavam emaranhados num labirinto de outros detritos que haviam sido trazidos pelo rio, mas nada havia de valor no meio deles.

 

Se Merlim diz que há aqui alguma coisa disse Galaad, então devemos procurar.

 

Ele podia não estar a referir-se a estas árvores afirmei.

 

Servem tão bem como quaisquer outras disse Issa. Desembainhou a espada para que não se molhasse e saltou para o emaranhado. Partiu os frágeis ramos superiores e saltou para a margem baixa do rio. Dai-me uma lança! gritou ele.

 

Galaad estendeu-lhe uma lança, e Issa enterrou-a entre os ramos. Num certo sítio, o bocado de uma rede de pesca puída fora desimpedida de troncos, adquirindo a forma de uma tenda cheia de folhas mortas, e Issa teve de usar toda a sua força para içar aquela massa emaranhada para o lado.

 

Foi então que um fugitivo irrompeu do meio dos arbustos. Escondera-se por baixo da rede, equilibrara-se desconfortavelmente num tronco quase submerso, mas agora, como uma lontra afugentada pelos cães, fugia da lança de Issa aos tropeções e tentava escapar rio acima. Tropeçava nas árvores mortas e o peso da sua armadura retardou-o, e os meus homens, aplaudindo no talude, apanharam-no com facilidade. Se o fugitivo não estivesse com armadura podia ter-se atirado ao rio e nadado para a outra margem, mas agora restava-lhe apenas render-se. Durante duas noites e um dia, o homem devia ter planeado a forma de subir o rio, mas depois terá descoberto o esconderijo e pensado que conseguiria ali permanecer até nós termos abandonado o campo de batalha. Agora, fora apanhado.

 

Era Lancelote. Fui o primeiro a reconhecê-lo por causa do seu longo cabelo preto, no qual tinha tanto orgulho. Então, por entre a lama e os galhos, vi o famoso esmalte branco da sua armadura. O seu rosto apenas expressava terror. Afastou os olhos de nós e deteve-os no rio, como se avaliasse a hipótese de se atirar para a corrente, depois voltou a olhar para nós e viu o seu meio-irmão.

 

Galaad! gritou ele. Galaad!

 

Galaad olhou para mim, por breves instantes, depois fez o sinal da cruz, virou-se e afastou-se.

 

Galaad! gritou, novamente, Lancelote ao seu irmão que agora desaparecia pelo talude mais acima.

 

Galaad continuou, simplesmente, a caminhar.

 

Trazei-o para cima ordenei.

 

Issa feriu Lancelote com a lança e o aterrorizado homem subiu aos tropeções por entre as urtigas que cresciam no talude. Segurava ainda a sua espada, apesar da lâmina dever estar ferrugenta depois de ter estado imersa no rio. Encarei-o, assim que conseguiu libertar-se das urtigas.

 

Bater-vos-eis comigo aqui e agora, meu Rei e Senhor? perguntei-lhe, desembainhando a Hywelbane.

 

Deixa-me partir, Derfel! Enviar-te-ei dinheiro, prometo! Continuou a balbuciar, prometendo-me mais ouro do aquele com que eu alguma vez sonhara, mas só desembainhou a espada quando dei uma forte estocada no seu peito com a ponta da Hywelbane. Nesse instante, percebeu que tinha de morrer. Cuspiu-me, deu um passo atrás e desembainhou a espada. Certa vez, haviam-lhe chamado Tanlladwr, que significa Destemida Assassina, mas ele mudara-lhe o nome para a Lâmina de Cristo quando Sansum o baptizara. Agora, a Lâmina de Cristo estava enferrujada, mas era ainda uma excelente arma e, para surpresa minha, Lancelote não era mau esgrimista. Eu sempre o tomara por cobarde, mas nesse dia lutou com bastante bravura. Estava desesperado, e o desespero revelou-se numa série de ataques rápidos e violentos que me forçaram a recuar. Contudo, também estava cansado, molhado e com frio, e o cansaço adveio-lhe tão depressa que, depois de eu aparar a sua primeira grande quantidade de golpes, consegui ganhar tempo enquanto decidia a forma como iria matá-lo. Ficou ainda mais desesperado e os seus golpes tornaram-se mais ferozes, mas eu terminei o combate quando diante de um desses golpes violentos me baixei, esquivando-me, e segurei de tal modo em Hywelbane que a sua ponta o apanhou no braço. O ímpeto da oscilação abriu-lhe as veias do pulso ao cotovelo. Ele gemeu assim que o sangue jorrou, depois a sua espada caiu-lhe da mão inerte e ele aguardou, num terror abjecto, o golpe misericordioso.

 

Limpei a lâmina da Hywelbane com uma mão-cheia de relva, sequei-a na minha capa e depois embainhei-a.

 

Não quero a tua alma na minha espada disse eu a Lancelote e, por instantes, ele pareceu reconhecido, mas sem delonga deitei por terra as suas esperanças. Os teus homens mataram a minha filha disse-lhe eu, os mesmos que enviaste para levarem Ceinwyn para a tua cama. Julgas que posso perdoar-te por qualquer uma destas coisas?

 

Não fui eu quem deu essas ordens disse ele, desesperado. Acredita em mim!

 

Cuspi-lhe no rosto.

 

Devo entregar-vos a Artur, meu Rei e Senhor?

 

Não, Derfel, peço-te! Juntou as mãos. Tremia. Peço-te!

 

Dai-lhe a morte das mulheres sugeriu Issa, apressadamente, querendo dizer que devíamos despi-lo, castrá-lo e deixá-lo esvair-se em sangue até morrer.

 

Estive tentado, mas receei sentir prazer com a morte de Lancelote. Existe um certo prazer na vingança, e eu havia dado aos assassinos de Dian uma morte terrível, não sentindo nenhum rebate de consciência por sentir gozo no seu sofrimento. Contudo, não tinha coragem de torturar aquele homem que tremia à minha frente. Tremia de tal modo que senti pena dele, e dei comigo a pensar se havia ou não de o deixar vivo. Eu sabia que ele era um traidor e um cobarde, e que merecia ser morto, contudo o seu terror era tão abjecto que, na verdade, senti pena dele. Sempre fora meu inimigo, sempre me desprezara, todavia ao cair de joelhos diante de mim com as lágrimas a rolarem-lhe pelo rosto, senti o impulso de lhe conceder misericórdia, e percebi então que havia tanto prazer nesse exercício de poder como na ordenação da sua morte. Por instantes desejei a sua gratidão, mas depois recordei-me do rosto moribundo da minha filha e uma raiva intensa fez-me estremecer. Artur era conhecido por perdoar aos seus inimigos, mas este era um inimigo a quem eu nunca poderia perdoar.

 

A morte das mulheres voltou a sugerir Issa.

 

Não respondi, e Lancelote levantou os olhos para mim com uma esperança renovada. Enforcamo-lo como um pobre coitado afirmei.

 

Lancelote gritou, mas eu endureci o meu coração aos seus lamentos.

 

Enforcamo-lo voltei a ordenar, e assim fizemos.

 

Encontrámos um bocado de corda de crina, enlaçámo-la em volta do ramo de um carvalho e içámo-lo. Baloiçou no ar, estremecendo, e assim continuou até Galaad voltar e dar um puxão nos calcanhares do seu meio-irmão para acabar com o seu sofrimento.

 

Tirei toda a roupa a Lancelote. Atirei a espada e a sua bela armadura de lâminas metálicas para o rio, queimei as suas vestes, depois usei um grande machado de guerra saxão para cortar o seu cadáver. Não o queimámos, lançando-o antes aos peixes, para que a sua alma negra não conspurcasse o Outro Mundo com a sua presença. Obliterámo-lo da face da terra e guardei apenas o cinturão da sua espada, como uma oferenda para Artur.

 

Encontrei Artur a meio do dia. Regressava com os seus homens da perseguição a Cerdic, e desciam agora para o vale montados nos cavalos cansados.

 

Não apanhámos Cerdic disse-me ele, mas outros fez uma festa no pescoço de Llamrei, que brilhava com o suor.

 

Cerdic está vivo, Derfel disse ele, mas está tão enfraquecido que durante muito tempo não teremos problemas, sorriu, depois apercebeu-se de que eu não estava com a sua boa disposição. O que foi? perguntou.

 

Apenas isto, Senhor respondi, e ergui o caro cinturão de esmalte. Por momentos, julgou que eu lhe mostrava um produto do saque, depois reconheceu o cinturão da espada, que ele próprio oferecera a Lancelote. Por instantes, do seu rosto transpareceu o olhar que surgira há tantos meses atrás, antes de Mynydd Baddon: o olhar secreto e duro da amargura. Depois levantou os olhos, fitando-me.

 

O seu dono?

 

Morto, Senhor. Enforcado para sua vergonha.

 

Óptimo disse ele, em voz baixa. E isso, Derfel, podes deitar fora atirei o cinturão para o rio.

 

E, deste modo, morreu Lancelote, ao contrário do que dizem as canções pelas quais pagou para que continuassem a ser cantadas, sendo até hoje celebrado como um herói que se iguala a Artur. Artur é recordado como um governante, mas Lancelote é lembrado como guerreiro. Na verdade, ele era um Rei sem reino, um cobarde, e o maior traidor da Bretanha, e a sua alma vagueia até hoje por Lloegyr, gritando pelo seu corpo-sombra que nunca poderá existir, porque esquartejámos o seu cadáver e com ele alimentámos o rio. Se os cristãos tiverem razão, e o inferno existir, que ele sofra nele para sempre.

 

Galaad e eu seguimos Artur até à cidade, passando pela pira funerária onde Cuneglas ardia, e abrindo caminho por entre as sepulturas romanas, no meio das quais tantos homens de Aelle haviam perecido. Eu avisara Artur do que o esperava, mas ele não se mostrou receoso ao ouvir que Argante viera para a cidade.

 

A sua chegada a Aquae Sulis instigou um grande número de ansiosos suplicantes a chamarem a sua atenção. Uns pediam reconhecimento por actos de bravura durante a batalha, outros, grandes quantidades de escravos ou de ouro, e outros ainda pediam justiça por disputas muito anteriores à invasão saxã. Artur disse a todos que o aguardassem no templo, apesar de depois de lá estar os ignorar. Chamou, então, Galaad para uma antecâmara do templo e, após algum tempo, mandou chamar Sansum. O Bispo foi escarnecido pelos lanceiros dumnonianos ao apressar-se a atravessar os domínios. Falou com Artur durante bastante tempo, e depois Oengus mac Airem e Mordred foram chamados à presença de Artur. Os lanceiros que se encontravam na zona cercada faziam apostas sobre se Artur iria ter com Argante à casa do Bispo, ou com Guinevere aos aposentos dos sacerdotes.

 

Artur prescindira do meu conselho. Em vez de o fazer, ao convocar Oengus e Mordred, pediu-me que fosse dizer a Guinevere que ele voltara. Deste modo, atravessei o pátio, dirigindo-me aos aposentos dos sacerdotes, e encontrei Guinevere com Taliesin num dos aposentos mais elevados. O bardo, com uma túnica branca alva e o fio de prata em volta do seu cabelo preto, levantou-se e fez-me uma vénia quando entrei. Segurava uma pequena harpa, mas percebi que ambos haviam estado a conversar e não a tocar. Ele sorriu e saiu, recuando até à porta do quarto, deixando o pesado reposteiro cair em frente à entrada.

 

Um homem muito esperto disse Guinevere, levantando-se para me saudar.

 

Ela tinha um vestido creme bordado com um debrum de fitas azuis, usava o cordão saxão que eu lhe dera em Mynydd Baddon, e o seu cabelo ruivo estava enrolado no alto da cabeça com uma corrente de prata. Não era tão elegante como a Guinevere de que eu me lembrava antes dos tempos conturbados, mas estava bem longe da mulher de armadura que cavalgara tão entusiasticamente pelo campo de batalha. Ela sorriu e eu aproximei-me.

 

Estás limpo, Derfel!

 

Tomei banho, Senhora.

 

E não morreste! Motejou com delicadeza, depois beijou-me no rosto e segurou-me nos ombros por um instante. Devo-te muito disse ela, em voz baixa.

 

Não, Senhora, não afirmei, corando e afastando-me.

 

Ela riu do meu embaraço e depois foi sentar-se à janela, de onde avistava os vastos domínios. A chuva caía por entre as pedras e gotejava diante da fachada manchada do templo, onde o cavalo de Artur estava preso a um aro fixo a um dos pilares. Quase não precisava que eu lhe dissesse que Artur voltara, já que ela própria deveria tê-lo visto a chegar.

 

Quem está com ele? perguntou-me.

 

Galaad, Sansum, Mordred e Oengus.

 

E tu não foste convocado para o conselho de Artur? perguntou, com laivos do seu antigo escárnio.

 

Não, Senhora afirmei, tentando esconder a minha decepção.

 

Tenho a certeza de que não se esqueceu de ti.

 

Assim o espero, Senhora respondi e depois, de forma muito mais hesitante, disse-lhe que Lancelote morrera.

 

Taliesin já mo disse afirmou, baixando os olhos e fitando as mãos.

 

Como soube ele? perguntei, porque a morte de Lancelote ocorrera havia pouco tempo e Taliesin não estivera presente.

 

Sonhou com isso esta noite disse Guinevere, e depois fez um gesto brusco como que a dar o assunto por terminado. Então, o que estão eles ali a discutir? inquiriu, olhando de relance para o templo. A jovem noiva?

 

Imagino que sim, Senhora afirmei, depois contei-lhe que o bispo Sansum havia sugerido a Oengus mac Airem que Argante desposasse Mordred. Creio que é a pior ideia que já alguma vez ouvi protestei, indignado.

 

Achas mesmo isso?

 

É uma ideia absurda afirmei.

 

Não foi uma ideia de Sansum disse Guinevere, com um sorriso, foi minha.

 

Fitei-a de olhos esbugalhados, demasiado surpreendido para conseguir falar por alguns instantes.

 

Vossa, Senhora? perguntei, por fim.

 

Não digas a ninguém que a ideia foi minha advertiu-me. Argante não a consideraria nem por um instante, se soubesse que a ideia foi minha. Ela preferia casar-se com um guardador de porcos do que com alguém que eu sugerisse. Foi por isso que mandei chamar o mesquinho Sansum e pedi-lhe que me confirmasse o rumor sobre Argante e Mordred. Depois, disse-lhe o quanto abominava essa ideia e, claro, fi-lo sentir-se ainda mais entusiasmado com isso, embora ele fingisse o contrário. Cheguei mesmo a chorar um pouco e a pedi-lhe que nunca dissesse a Argante o quanto eu detestava essa ideia. Aliás, Derfel, nada melhor do que casarem um com o outro sorriu, triunfante.

 

Mas porquê? inquiri. Mordred e Argante? Eles apenas causarão problemas!

 

Independentemente de casarem um com o outro, causarão sempre problemas. E Mordred tem de se casar, Derfel, se quiser ter um herdeiro, o que significa que ele tem de se casar como um Rei fez uma pausa, percorrendo o colar com os dedos. Confesso que preferia que ele não tivesse herdeiros, porque deixaria o trono livre quando morresse, não deu continuidade a esta ideia e eu olhei-a de forma curiosa.

 

Ela retorquiu-me com uma simulação de inocência. Julgaria ela que Artur podia subir ao trono de um Mordred sem filhos? Mas Artur nunca quisera governar. Percebi, então, que se Mordred morresse, Gwydre, o filho de Guinevere, teria tanto direito como qualquer homem. Esta percepção deverá ter transparecido no meu rosto, porque Guinevere sorriu.

 

Não que devamos especular sobre a sucessão continuou ela, antes de eu conseguir dizer alguma coisa, porque Artur insiste que deve deixar que Mordred case, se assim o desejar, e parece que o desprezível rapaz sente-se atraído por Argante. Talvez eles até se ajustem bem um ao outro. Como duas víboras num ninho infecto.

 

E Artur terá dois inimigos unidos na maldade afirmei.

 

Não disse Guinevere, depois suspirou e olhou pela janela. Não, se lhes dermos o que pretendem e se eu conceder a Artur aquilo que ele quer. E tu sabes do que se trata, não é?

 

Reflecti por um instante, depois percebi tudo. Percebi sobre o que Artur e ela haviam falado durante toda a noite a seguir à batalha. Percebi, também, o que Artur preparava agora no templo de Minerva.

 

Não! protestei. Guinevere sorriu.

 

Também não o quero, Derfel, mas quero Artur. E tenho de lhe dar aquilo que ele pretende. Devo-lhe alguma felicidade, não te parece? perguntou-me.

 

Ele quer desistir do seu poder? perguntei, e ela assentiu.

 

Artur sempre falara do seu sonho de levar uma vida simples com a esposa, a sua família e um pedaço de terra. Ele queria um palácio, uma paliçada, um ferreiro e terrenos. Imaginava-se um proprietário rural, sem outras preocupações que não os pássaros que lhe roubavam as sementes, os veados que lhe comiam as colheitas e a chuva que lhe estragava as culturas.

 

Ele acalentara este sonho durante anos e agora, depois de derrotar os saxões, parecia que chegara a altura de transformar esse sonho em realidade.

 

Meurig pretende, igualmente, que Artur desista do seu poder disse Guinevere.

 

Meurig! gritei. Porque havemos de nos preocupar com o que Meurig pretende?

 

Foi o preço que Meurig reclamou antes de concordar em deixar o seu pai conduzir o exército de Gwent para nos ajudar disse Guinevere. Artur nada te disse antes da batalha, porque sabia que tentarias dissuadi-lo.

 

Mas por que razão havia Meurig de querer que Artur desistisse do seu poder?

 

Porque ele acha que Mordred é cristão disse Guinevere, estremecendo com um arrepio, e porque ele quer que a Dumnónia seja mal governada. Desse modo, Derfel, Meurig terá a oportunidade de um dia ascender ao trono da Dumnónia. Ele é um sapinho ambicioso.

 

Eu chamei-lhe algo pior, e Guinevere sorriu.

 

Isso também disse ela, mas o que ele exigiu, tem de receber, por isso Artur e eu iremos viver para Isca, na Silúria, onde Meurig poderá vigiar-nos. Não me importo de viver em Isca. Terei uma vida melhor do que num qualquer palácio decadente. Existem belos palácios romanos em Isca e esplêndidos sítios para caçar. Levaremos connosco alguns lanceiros. Artur pensa que não precisamos de nenhuns, mas ele tem inimigos e precisa de um grupo de guerra.

 

Percorri o aposento de um lado para o outro.

 

Mas Mordred! queixei-me, amargamente. Ser-lhe-á restituído o poder?

 

Foi o preço que tivemos de pagar pelo exército de Gwent disse Guinevere, e se Argante desposar Mordred, ele terá de ter novamente poder, caso contrário Oengus nunca concordará com o casamento. Ou, pelo menos, Mordred terá de ter algum poder, e ela terá de o partilhar.

 

E tudo o que Artur conseguiu será deitado por terra! afirmei.

 

Artur libertou a Dumnónia dos Saxões disse Guinevere, e não pretende ser Rei. Tu e eu sabemo-lo. Não é o que eu pretendo, Derfel. Eu sempre quis que Artur fosse o Monarca e que Gwydre lhe sucedesse, mas ele não o quer e não lutará por isso. Disse-me que quer sossego. E se ele não governar a Dumnónia, então Mordred tem de fazê-lo. A insistência de Gwent e o juramento de Artur a Uther garantem-no.

 

Então ele, abandonará simplesmente a Dumnónia à injustiça e à tirania! protestei.

 

Não disse Guinevere, porque Mordred não deterá todo o poder. Olhei para ela de olhos esbugalhados e calculei, pela sua voz, que eu não percebera tudo.

 

Continuai pedi, com prudência.

 

Sagramor ficará. Os saxões foram derrotados, mas continua a haver uma fronteira, e ninguém melhor do que Sagramor para a defender. O restante exército da Dumnónia jurará lealdade a outro homem. Mordred poderá governar, porque ele é o Rei, mas não comandará os lanceiros, e um homem sem lanceiros é um homem sem poder real. Tu e Sagramor terão isso a vosso cargo.

 

- Não! Guinevere sorriu.

 

Artur sabia que dirias isso, razão pela qual eu lhe disse que te convenceria.

 

Senhora iniciei o protesto, mas ela levantou uma mão para me silenciar.

 

Tu vais governar a Dumnónia, Derfel. Mordred será Rei, mas tu terás os lanceiros, e o homem que comandar os lanceiros governará. Tens de o fazer por Artur, porque só com a tua concordância ele poderá deixar a Dumnónia com a consciência tranquila. Por isso, para lhe dares sossego, fá-lo por ele e, também ela hesitou, quem sabe, por mim? Peço-te?

 

Merlim tinha razão. Quando uma mulher quer alguma coisa, consegue-o. E eu devia governar a Dumnónia.

 

Taliesin compôs uma canção a propósito de Mynydd Baddon. Propositadamente, compô-la no estilo antigo, com um ritmo que vibrava com drama e heroísmo. Era uma canção bem longa, já que era importante que todos os guerreiros que haviam bravamente pelejado lhes vissem dedicada meia linha de enaltecimento, enquanto a cada um dos nossos comandantes foram dedicados versos inteiros. Após a batalha, Taliesin recolheu-se à casa de Guinevere e, sensibilizado, cantou os feitos da sua protectora, descrevendo de modo muito belo as ruidosas carroças com as suas pilhas de fogo, mas evitando qualquer menção ao feiticeiro saxão que ela matara com o arco e a flecha. Usou o seu cabelo ruivo como imagem da cevada ensanguentada, no meio da qual alguns saxões morreram, e apesar de eu não ter visto cevada a crescer no campo de batalha, notava uma inteligente sensibilidade. Cantou a morte do seu antigo patrono, Cuneglas, num arrastado lamento, onde o nome do Rei morto surgia repetido como o batuque de um tambor, e transformou a carga de Gawain num relato arrepiante de como os espectros dos nossos lanceiros mortos vinham da ponte das espadas para atacar o flanco do inimigo. Enalteceu Tewdric, foi simpático para comigo e honrou Sagramor, mas acima de tudo a sua canção era uma celebração de Artur. Na canção de Taliesin, fora Artur quem inundara o vale com o sangue do inimigo, e Artur quem derrotara o Rei inimigo, e ainda Artur quem fizera toda a Lloegyr fugir aterrorizada.

 

Os Cristãos odiaram a canção de Taliesin. Eles criaram as suas próprias canções, nas quais era Tewdric quem derrotava os Saxões. O Deus Todo-Poderoso, diziam as canções saxãs, ouvira as preces de Tewdric e reunira os exércitos do céu, levando-os até ao campo de batalha, e foi aí que os Seus anjos pelejaram contra os sais com espadas de fogo. Artur não foi mencionado nas suas canções, de facto, não foram atribuídos quaisquer méritos aos pagãos pela vitória, e até hoje há quem afirme que Artur nem tão-pouco esteve em Mynydd Baddon. Na verdade, uma canção cristã chega a atribuir a Meurig o mérito pela morte de Aelle, e ele não esteve presente em Mynydd Baddon, encontrando-se nessa altura em Gwent. Depois da batalha foi devolvido a Meurig o seu trono, tendo Tewdric regressado ao seu mosteiro, onde foi declarado santo pelos bispos de Gwent.

 

Nesse Verão, Artur esteve demasiado ocupado para se importar com canções e santos. Nas semanas que se seguiram à batalha, conseguimos reaver várias regiões de Lloegyr, apesar de não conseguirmos reavê-la toda, porque muitos saxões haviam permanecido na Bretanha. Quanto mais para leste fôssemos, mais feroz se tornava a sua resistência. Contudo, no Outono, o inimigo foi escorraçado para um território apenas com metade do tamanho do que havia anteriormente governado. Nesse ano, Cerdic chegou mesmo a pagar-nos um tributo, prometendo pagá-lo durante os dez anos seguintes, apesar de não mais o ter feito. Ao invés, acolheu todos os barcos que atravessaram o mar e, aos poucos, reconstruiu as suas forças destruídas.

 

O reino de Aelle estava dividido. A parte sul voltara para as mãos de Cerdic, ao passo que a zona norte fora dividida em três ou quatro pequenos reinos, que sofriam incessantes ataques de grupos de guerra de Elmet, Powys e Gwent. Milhares de saxões ficaram sob a governação britânica; de facto, todas as novas terras da Dumnónia, a leste, eram habitadas por eles. Artur queria que voltássemos a instalar-nos naquelas zonas, mas poucos britânicos quiseram ocupá-las, sendo por essa razão que aí permaneceram os saxões, cultivando-as e sonhando com o dia em que os seus Reis regressariam. Sagramor tornou-se o governante virtual das terras reclamadas da Dumnónia. Os chefes de tribo saxões sabiam que o seu Rei era Mordred, mas, naqueles primeiros anos depois de Mynydd Baddon, foi a Sagramor que eles pagaram a sua renda e os seus impostos, e era a sua resoluta bandeira preta que serpenteava acima do velho forte do rio, em Pontes, de onde os seus guerreiros partiam para manter a paz.

 

Artur liderou a campanha para reconquistar a região roubada, mas, uma vez fortificada e depois de os saxões terem concordado com as nossas novas fronteiras, ele deixou a Dumnónia. Alguns de nós tinham esperança que, por fim, ele quebrasse a promessa que havia feito a Meurig e a Tewdric. Mas ele não desejava ficar. Nunca quisera deter o poder. Assumira-o como um dever, numa época em que a Dumnónia tinha um Rei ainda criança e um grande número de senhores da guerra ambiciosos, cujas rivalidades teriam levado o país ao tumulto. No entanto, ao longo dos anos ele sempre se manteve fiel ao seu sonho de levar uma vida simples, e uma vez os saxões derrotados sentiu-se livre para tornar o seu sonho realidade. Roguei-lhe para que reconsiderasse, mas ele abanou a cabeça.

 

Estou velho, Derfel.

 

Não mais do que eu, Senhor.

 

Então, tu estás velho respondeu-me, com um sorriso. Mais de quarenta! Quantos homens vivem quarenta anos?

 

Na verdade, poucos. Ainda assim, creio que Artur teria desejado permanecer na Dumnónia, se tivesse recebido o que queria, gratidão. Ele era um homem orgulhoso, e sabia o que fizera pelo país. Porém, o país recompensou-o com um descontentamento geral. Primeiro, os cristãos quebraram a sua paz, depois, a seguir às fogueiras de Mai Dun, os pagãos haviam-se revoltado contra ele. Conseguira que houvesse justiça na Dumnónia, recuperara muito do seu território perdido, assegurara as suas novas fronteiras e governara honestamente. E a recompensa que tivera fora ser escarnecido como o inimigo dos Deuses. Além disso, prometera a Meurig que deixaria a Dumnónia, e essa promessa reforçara o juramento prestado a Uther de fazer de Mordred rei, e agora declarava que cumpriria totalmente as duas promessas.

 

Não me sentirei feliz enquanto as promessas estiverem por cumprir disse-me ele, e ninguém seria capaz de o convencer do contrário, por isso, quando a nova fronteira com os saxões ficou decidida e o primeiro tributo de Cerdic foi pago, ele partiu.

 

Levou consigo sessenta cavaleiros e cem lanceiros e foi para a cidade de Isca, na Silúria, situada ao norte, do outro lado do mar Severn, para lá da Dumnónia. Inicialmente, propusera não ficar com nenhum lanceiro, mas o conselho de Guinevere prevaleceu. Artur, disse ela, tem inimigos e necessita de protecção. Além disso, os seus cavaleiros contavam-se entre os mais poderosos guerreiros da Bretanha e ela não queria que eles passassem para o comando de outro homem. Artur deixou-se convencer, apesar de, na verdade, eu não julgar que precisasse de grande persuasão. Ele podia sonhar tornar-se um simples proprietário rural, vivendo numa região pacífica sem outras preocupações para além da abundância dos seus víveres e do estado das suas colheitas, mas sabia que a única paz que alguma vez teria seria à sua custa, e que um senhor que vive sem guerreiros não permanecerá em paz por muito tempo.

 

A Silúria era um reino pequeno, pobre e quase esquecido. O último Rei da sua velha dinastia fora Gundleus, que morrera no Vale do Lugg. Depois disso, Lancelote fora aclamado Rei, mas não gostava de Silúria e trocou-a de bom grado pelo abastado trono do país belga. Novamente sem Rei, a Silúria fora dividida em dois reinos subservientes a Gwent e a Powys. Cuneglas autodenominara-se Rei da Silúria Ocidental, enquanto Meurig se proclamara Rei da Silúria Oriental. No entanto, na verdade, nenhum dos monarcas demonstrara grande valor nos seus vales profundos e estreitos que corriam para o mar a partir das montanhas escarpadas a norte. Cuneglas recrutara lanceiros dos vales, ao passo que, de Gwent, Meurig pouco mais fizera do que enviar missionários para o território, e o único Rei que alguma vez se interessara pela Silúria fora Oengus mac Airem, que empreendia ataques súbitos aos vales em busca de mantimentos e escravos. De outro modo, a Silúria teria sido ignorada. Os seus chefes de tribo arranjavam questiúnculas entre si e, de má vontade, pagavam os seus impostos a Gwent ou a Powys, mas a vinda de Artur alterou tudo isto. Quer ele pretendesse quer não, tornou-se o habitante mais importante da Silúria e, deste modo, o seu governante efectivo e, embora expressasse a sua vontade de ser um homem comum, não conseguia resistir a usar os seus lanceiros para pôr fim às querelas ruinosas dos chefes de tribo. Um ano depois de Mynydd Baddon, quando visitámos Artur e Guinevere em Isca, pela primeira vez, ele apelidava-se perversamente o Governador, um título romano, que lhe agradava por não ter nenhuma conotação de reinado.

 

Isca era uma bonita cidade. Inicialmente aí os romanos haviam construído um forte para vigiarem a travessia do rio, mas ao empurrarem as suas legiões mais para oeste e para norte, a necessidade do forte diminuíra, e eles viraram-se então para Isca, um sítio não muito diferente de Aquae Sulis: uma cidade onde os romanos se iam divertir. Tinha um anfiteatro e, apesar de lhe faltarem as nascentes quentes, Isca possuía ainda seis banhos públicos, três palácios e tantos templos quantos os deuses romanos que havia. Agora, a cidade estava bastante decadente, mas Artur recuperava os tribunais e os palácios, um trabalho que sempre lhe agradou. O maior dos palácios, aquele onde Lancelote habitara, foi dado a Culhwuch, agora nomeado comandante da escolta de Artur, e a maioria dos guardas partilhava o grande palácio com Culhwuch. O segundo maior palácio era agora a casa de Emrys, outrora Bispo de Dumnónia e agora Bispo de Isca.

 

Ele podia ficar na Dumnónia disse-me Artur, enquanto me mostrava a cidade.

 

Passara um ano sobre Mynydd Baddon, e Ceinwyn e eu fazíamos a primeira visita à nova residência de Artur.

 

Na Dumnónia não há espaço para ambos, Emrys e Sansum explicou-me Artur por isso Emrys ajuda-me aqui. Ele tem um apetite insaciável pela administração e, melhor ainda, mantém os cristãos de Meurig à distância.

 

Todos? perguntei.

 

A maior parte afirmou, com um sorriso e, depois, é um belo sítio, Derfel continuou, admirando as ruas pavimentadas de Isca, um belo sítio! estava verdadeiramente orgulhoso da sua nova residência, afirmando que a chuva caía com menor intensidade em Isca do que na região periférica.

 

Vi já as colinas cheias de neve disse-me ele e o Sol a brilhar aqui sobre a relva verdejante.

 

Sim, Senhor respondi, com um sorriso.

 

É verdade, Derfel! É verdade! Quando saio da cidade levo uma capa e chega uma altura em que, de repente, arrefece e tenho de a colocar. Verás quando amanhã formos caçar.

 

Parece magia afirmei, espicaçando-o com delicadeza, porque, normalmente, ele desprezava toda e qualquer conversa sobre magia.

 

Creio que bem pode ser! afirmou, com toda a seriedade e conduziu-me pela álea que descia junto ao santuário cristão até um curioso monte que se erguia no centro da cidade. Um caminho em espiral subia até ao cume do monte, onde os antigos haviam feito um fosso pouco profundo. Este fosso tinha inúmeras oferendas pequenas deixadas aos Deuses: pedaços de fita, tufos de velo, botões, todas elas provas de que os missionários de Meurig, ocupados como deviam andar, não haviam vencido por completo a antiga religião.

 

Se aqui houver magia disse-me Artur, enquanto subíamos para o cume do monte e olhávamos fixamente para o fosso com relva que se encontrava em baixo é daqui que ela emana. Dizem os nativos que é uma entrada para o Outro Mundo.

 

E acreditais neles?

 

Apenas sei que é um local sagrado disse ele, satisfeito.

 

E assim era Isca, nesse final de um dia de Verão. O fluxo da maré aumentara o volume do rio, provocando a inundação dos verdes taludes, o Sol brilhava nos edifícios caiados de branco e nas árvores cheias de folhas que cresciam nos seus pátios, enquanto para norte as pequenas colinas, com as suas herdades em grande bulício, se estendiam serenamente pelas montanhas. Era difícil acreditar que, não muitos anos antes, uma facção saxã tivesse alcançado aquelas colinas e morto lavradores, feito escravos e queimado as suas searas. Esse ataque súbito tivera lugar durante o reinado de Uther, e a proeza de Artur fora rechaçar o inimigo para tão longe que, nesse Verão bem como durante muitos Verões a partir de então, parecia que nenhum saxão livre jamais voltaria a aproximar-se de Isca.

 

O palácio mais pequeno da cidade situava-se a oeste do monte e era aí que Artur e Guinevere viviam. Do nosso ponto alto, no misterioso monte, avistávamos, em baixo, o pátio onde Guinevere e Ceinwyn caminhavam, sendo evidente que era Guinevere quem mais falava.

 

Ela planeia o casamento de Gwydre disse-me Artur com Morwenna, claro acrescentou com um breve sorriso.

 

Ela está preparada disse eu, fervoroso.

 

Morwenna era uma boa rapariga, mas com o tempo tornara-se taciturna e irascível. Ceinwyn assegurou-me que o comportamento de Morwenna era um mero sintoma de uma rapariga que está preparada para casar, e desde há muito que eu aguardava a cura com ansiedade.

 

Artur sentou-se no buraco relvado do monte e olhou, fixamente, para oeste. Reparei que as suas mãos estavam salpicadas com pequenas cicatrizes escuras, por causa da fornalha do ferrador que ele próprio construíra no pátio do estábulo do seu palácio. Sempre o intrigara o trabalho dos ferreiros e conseguia falar com entusiasmo durante horas sobre as suas habilidades. Todavia, agora tinha outros assuntos a ocuparem-lhe o espírito.

 

Importas-te perguntou-me, com acanhamento que o bispo Emrys abençoe o casamento?

 

Porque me importaria? perguntei. Eu gostava de Emrys.

 

Apenas o bispo Emrys disse Artur. Sem druidas. Tens de compreender, Derfel, que vivo aqui de acordo com a vontade de Meurig. Afinal, ele é o Rei desta região.

 

Senhor iniciei o meu protesto, mas ele silenciou-me erguendo a mão e não me deixou prosseguir com a minha indignação. Eu sabia que o jovem rei Meurig não era um vizinho pacífico. Ele melindrara-se com o facto de, temporariamente, o pai lhe ter retirado o poder, ofendera-se por ele não ter partilhado consigo a glória de Mynydd Baddon e por, obstinadamente, ter inveja de Artur. O território gwentiano de Meurig começava apenas a alguns metros deste monte, na extremidade mais distante da ponte romana, que atravessava o rio Usk, e esta parte leste da Silúria era, legalmente, outra das possessões de Meurig.

 

Foi Meurig quem quis que eu aqui vivesse como seu locatário explicou-me Artur mas foi Tewdric quem me concedeu os privilégios de todas as antigas rendas. Ele, pelo menos, está reconhecido por tudo o que alcançámos em Mynydd Baddon, mas tenho sérias dúvidas de que o jovem Meurig aprove a combinação, por isso apaziguo-o mostrando submissão ao Cristianismo simulou o sinal da cruz e dirigiu-me uma careta desaprovadora.

 

Não precisais de apaziguar Meurig afirmei, zangado. Dai-me um mês e arrastarei até aqui, de joelhos, o cão miserável.

 

Artur deu uma gargalhada.

 

Outra guerra? Abanou a cabeça. Meurig pode ser um tolo, mas nunca foi homem que buscasse a guerra, portanto não pode desagradar-me. Deixar-me-á em paz, desde que eu não o ofenda. Além disso, tenho preocupações que cheguem sem ter de me preocupar com Gwent.

 

As suas lutas eram de pouca monta. Os Escudos Negros de Oengus ainda faziam ataques à fronteira oeste da Silúria, e Artur colocara aí pequenas guarnições de lanceiros para impedirem aquelas incursões. Ele não estava zangado com Oengus, a quem via, na verdade, como um amigo, mas Oengus não conseguia resistir aos devastadores raides, tal como um cão não consegue deixar de coçar as pulgas. A fronteira norte da Silúria causava mais problemas, porque se juntara a Powys, e, desde a morte de Cuneglas, Powys caíra no caos. Perddel, o filho de Cuneglas, fora aclamado Rei, mas pelo menos meia dúzia de poderosos chefes de tribo acreditavam que tinham maior direito à coroa do que Perddel ou, pelo menos, tinham poder para tomar a coroa e, deste modo, o outrora poderoso reino de Powys degenerara num esquálido campo de batalha. Gwynedd, o país empobrecido a norte de Powys, era assaltado à vontade de cada um. Grupos de guerra digladeavam-se, faziam alianças temporárias, quebravam-nas, massacravam as famílias uns dos outros e, sempre que corriam o risco de serem massacrados, recuavam para as montanhas. Lanceiros em número suficiente haviam permanecido fiéis a Perddel, para garantir que ele se mantivesse no trono. Porém, eram em número bastante reduzido para conseguirem derrotar os chefes de tribo revoltosos.

 

Creio que seremos forçados a intervir disse-me Artur.

 

Nós, Senhor?

 

Meurig e eu. Oh, sei que ele odeia a guerra, mas mais cedo ou mais tarde alguns dos seus missionários serão mortos em Powys, e suspeito que essas mortes o convencerão a enviar lanceiros para auxiliar Perdell. Desde que, é certo, Perdell concorde em estabelecer o Cristianismo em Powys, coisa que sem dúvida fará, se isso lhe devolver o seu reino. E se Meurig entrar em guerra, possivelmente pedir-me-á para ir com ele. Ele deverá preferir que morram os meus homens em vez dos dele.

 

Sob o estandarte cristão? perguntei, com azedume.

 

Duvido que ele queira outro disse Artur, calmamente. Tornei-me o seu cobrador de impostos na Silúria, então por que razão não seria eu o seu senhor da guerra em Powys? Sorriu com um motejo diante da perspectiva, depois fez um ar acanhado. Existe outra razão para fazer a Gwydre e Morwenna um casamento cristão disse ele, algum tempo depois.

 

Que é? Eu tinha de o preparar, porque era evidente que esta segunda razão o embaraçava.

 

Creio que Mordred e Argante não têm filhos? perguntou-me. Por breves instantes, nada respondi. Guinevere aventara a mesma hipótese

 

quando conversáramos em Aquae Sulis, mas parecia uma suposição improvável. Pelo menos, assim me parecia.

 

Mas se eles não tiverem filhos insistiu Artur, quem estaria em melhor posição para suceder ao trono da Dumnónia?

 

Vós, sem dúvida insisti.

 

Artur era filho de Uther, ainda que bastardo, e não havia outros filhos que pudessem reclamar o seu trono.

 

Não, não disse ele, rapidamente. Eu não o quero. Nunca o quis! Baixei os olhos para Guinevere, suspeitando que fora ela quem levantara a questão da sucessão de Mordred.

 

Então, seria Gwydre? perguntei.

 

Seria Gwydre concordou.

 

Ele quere-o? perguntei.

 

Creio que sim. Ele ouve mais a sua mãe do que a mim.

 

Quereis que Gwydre venha a ser Rei?

 

Quero que Gwydre seja aquilo que desejar ser disse Artur, e se Mordred não tiver nenhum herdeiro e Gwydre desejar proclamar-se rei, apoiá-lo-ei.

 

Ele fitava Guinevere enquanto falava, e calculei que ela fosse a verdadeira força que estava por detrás da sua ambição. Ela sempre desejara ser casada com um Rei, mas aceitaria ser simplesmente a mãe de um Rei, se Artur recusasse o trono.

 

No entanto, conforme afirmas prosseguiu Artur, é uma suposição improvável. Espero que Mordred tenha muitos filhos, mas se assim não acontecer, e no caso de Gwydre ser chamado a governar, então precisará do apoio cristão. Agora os cristãos governam na Dumnónia, não é?

 

Assim é, Senhor afirmei, soturnamente.

 

Então, seria uma estratégia política da nossa parte respeitar os ritos cristãos no casamento de Gwydre disse Artur, depois dirigiu-me um sorriso dissimulado. Vês como a tua filha está prestes a tornar-se Rainha?

 

Sinceramente, tal coisa nunca me ocorrera, e o meu rosto deverá tê-lo espelhado, porque Artur deu uma gargalhada.

 

Um casamento cristão não é o que eu desejaria para Gwydre e Morwenna admitiu. Se dependesse de mim, Derfel, seriam casados por Merlim.

 

Tendes novas dele, Senhor? perguntei-lhe, com um ar sério.

 

Nada sei. Esperava que tu tivesses.

 

Apenas rumores afirmei.

 

Há um ano que Merlim não era visto. Deixara Mynydd Baddon levando consigo as cinzas de Gawain ou, pelo menos, uma trouxa que continha os ossos chamuscados e quebradiços de Gawain, e algumas cinzas que talvez pertencessem ao Príncipe defunto ou que bem podiam ser cinzas de madeira. E desde esse dia Merlim não mais fora visto. Afirmavam alguns rumores que estava no Outro Mundo, outros diziam que se encontrava na Irlanda ou nas montanhas a oeste, mas ao certo ninguém sabia. Ele havia-me dito que ia ajudar Nimue, mas onde ela estava também ninguém sabia.

 

Artur levantou-se e sacudiu a relva das calças.

 

Está na hora do jantar afirmou, e aviso-te que Taliesin comprometeu-se a cantar uma canção extremamente entediante sobre Mynydd Baddon. Pior, ainda está inacabada! Ele não deixa de lhe acrescentar versos. Guinevere afirma que é uma obra-prima, e creio que deverá ser, se ela o diz, mas por que razão terei de a suportar em todos os jantares?

 

Foi a primeira vez que ouvi Taliesin cantar e fiquei fascinado. Tal como Guinevere me diria mais tarde, era como se ele conseguisse fazer a música descer das estrelas até à terra. Tinha uma voz maravilhosamente pura e conseguia suster uma nota por mais tempo do que qualquer outro bardo que eu ouvira. Mais tarde, ele disse-me que fazia exercícios de respiração, algo que eu nunca supusera que necessitava de exercícios, mas isso significava que ele conseguia demorar-se numa nota final enquanto a fazia vibrar até à sua extinção aguda com notas cadenciadas da sua harpa; ou então conseguia fazer o som ecoar por toda a sala e estremecê-la com a sua voz triunfante, e juro que nessa noite de Verão em Isca, ele deu de novo vida à batalha de Mynydd Baddon.

 

Ouvi Taliesin cantar muitas vezes, e sempre que o ouvia era com o mesmo assombro.

 

Contudo, ele era um homem modesto. Conhecia o seu poder e sentia-se bem com ele. Agradava-lhe ter Guinevere como sua protectora, porque ela era generosa, apreciava a sua arte e permitia-lhe que, de vez em quando, passasse algumas semanas fora do palácio. Perguntei-lhe onde ia durante essas ausências, e ele disse-me que gostava de visitar as colinas e os vales e cantar para as gentes humildes.

 

E não apenas cantar disse-me ele, mas também ouvir. Aprecio as velhas canções. Por vezes, elas apenas se lembram de excertos e eu tento reconstitui-las novamente.

 

Era importante, afirmava ele, ouvir as canções das gentes do povo, porque isso lhe dava a conhecer os seus gostos, mas ele também queria cantar-lhes as suas canções.

 

É fácil divertir os Lordes disse ele, porque precisam de diversões, mas um agricultor prefere dormir a ouvir canções, e se eu conseguir mantê-lo acordado, então sei que as minhas canções têm mérito. E, por vezes, disse-me ele, cantava apenas para si próprio. Sento-me sob as estrelas e canto confessou-me, com um sorriso forçado.

 

Prevês mesmo o futuro? perguntei-lhe, durante esta conversa.

 

Sonho com ele respondeu-me, como se não fosse um dom excepcional. Mas prever o futuro é como espreitar por entre o nevoeiro e a recompensa quase não vale o esforço. Além disso, Senhor, nunca consigo dizer se as minhas visões do futuro vêm dos Deuses ou provêm dos meus próprios temores. Afinal, sou um simples bardo.

 

Creio que ele estava a ser evasivo. Merlim dissera-me que Taliesin permanecera celibatário para preservar o seu dom da profecia, por isso ele devia tê-lo em maior conta do que insinuava, mas depreciava o seu dom para desencorajar os homens a fazerem-lhe perguntas a esse propósito. Creio que Taliesin previu o nosso futuro bem antes de qualquer um de nós ter sequer um vislumbre de como seria, e não quis revelá-lo. Era um homem muito reservado.

 

Um simples bardo? perguntei, repetindo as suas últimas palavras. As pessoas afirmam que és o maior de todos os bardos.

 

Abanou a cabeça, rejeitando a minha lisonja.

 

Um simples bardo insistiu, apesar de ter sido sujeito à instrução druida. Aprendi os mistérios de Celafydd, em Comovia. Estudei durante sete anos e três meses e, no último dia, quando podia ter recebido o bastão de druida, saí da gruta de Celafydd e apelidei-me bardo.

 

Porquê?

 

Porque disse ele, após uma longa pausa um druida tem responsabilidades, e eu não queria tê-las. Gosto de observar, Lorde Derfel, e de narrar.

 

O tempo é uma história, e eu seria o seu narrador, não o seu autor. Merlim quis mudar a história e falhou. Eu não me atrevo a aspirar a tão altos desígnios.

 

Merlim falhou? perguntei-lhe.

 

Não em pequenas coisas disse Taliesin, calmamente mas, nas grandes? Sim. Os Deuses afastaram-se ainda mais e desconfio que nenhuma das minhas canções, nem todas as fogueiras de Merlim conseguirão agora fazer com que os Deuses regressem. Senhor, o mundo vira-se para o novo Deus, e talvez isso não seja mau. Um Deus é um Deus, e por que razão havemos nós de nos importar com qual governa? Apenas o orgulho e o hábito nos mantêm presos aos velhos Deuses.

 

Sugeres que todos devíamos tornar-nos cristãos? perguntei-lhe, com severidade.

 

Que Deus venerais não tem para mim qualquer importância, Senhor disse ele. Estou aqui apenas para observar, ouvir e cantar.

 

E, deste modo, Taliesin cantou, enquanto Artur governava na Silúria com Guinevere a seu lado. A minha tarefa era ser um freio das velhacarias de Mordred na Dumnónia. Merlim desaparecera, possivelmente no meio do nevoeiro obsidiante do profundo Ocidente. Os Saxões acobardavam-se, mas ainda ansiavam pelas nossas terras e, nos céus, onde não há freios para as suas velhacarias, uma vez mais os Deuses lançavam os dados.

 

Naqueles anos que se seguiram à batalha de Mynydd Baddon, Mordred andava feliz. A batalha deixara-lhe um desejo pelo estado de guerra, e ele perseguia-o avidamente. Durante algum tempo, contentara-se em pelejar sob o comando de Sagramor, perpretando ataques súbitos na diminuta Lloegyr ou derrotando grupos de guerra saxões, que vinham saquear as nossas colheitas e o nosso gado; contudo, após algum tempo sentiu-se frustado com a prudência de Sagramor. O númida não desejava iniciar uma guerra em grande escala com a conquista do território que Cerdic ainda possuía e onde os saxões continuavam fortalecidos. Mordred, porém, desejava desesperadamente outro recontro entre escudos defensivos. Certa vez, ordenou aos lanceiros de Sagramor que o seguissem até ao território de Cerdic, mas os homens recusaram-se a avançar sem ordens expressas de Sagramor, e este proibiu a invasão. Mordred amuou por algum tempo, mas depois chegou de Broceliande, o reino britânico na Armórica, um pedido de auxílio, e Mordred comandou um grupo de guerra composto de voluntários para lutar contra os Francos, que atacavam as fronteiras do rei Budic. Permaneceu na Armórica por mais de cinco anos, e, durante todo esse tempo, tornou-se célebre. No campo de batalha, disseram-me os homens, era destemido, e as suas vitórias atraíam cada vez mais homens para combater sob o estandarte do dragão. Eram homens sem amo; vagabundos e fora-da-lei que podiam tornar-se ricos com as pilhagens. Mordred dera-lhes um propósito e confiança. Ele reconquistou uma boa parte do antigo reino de Benoic e os bardos começaram a compor canções em sua honra como um Uther renascido, até mesmo como um segundo Artur, apesar de outras histórias, nunca cantadas pelos bardos, também terem chegado até nós através das águas cinzentas; e essas histórias falavam de violações e assassínios, bem como de homens cruéis a quem havia sido permitida uma vida dissoluta.

 

O próprio Artur pelejou durante esses anos, porque, tal como ele próprio havia previsto, alguns dos missionários de Meurig foram massacrados em Powys. Meurig pediu o auxílio de Artur, para que punisse os rebeldes que haviam morto os sacerdotes e, desse modo, Artur rumou para norte numa das suas maiores campanhas. Eu não estive presente para o ajudar, uma vez que tinha responsabilidades na Dumnónia, mas todos ouvimos as histórias que então se contava. Artur convenceu Oengus mac Airem a atacar os rebeldes fora da Demétia, e enquanto os Escudos Negros de Oengus atacavam de oeste, os homens de Artur surgiram do sul. Saindo dois dias depois de Artur, o exército de Meurig encontrou já a rebelião dominada e a maior parte dos assassinos capturada. Todavia, alguns dos assassinos dos sacerdotes haviam conseguido refúgio em Gwynedd, onde Byrthig, o Rei da região montanhosa, se recusou a entregá-los. Byrthig esperara, deste modo, usar os rebeldes para conquistar mais terras em Powys e, por isso, ignorando o conselho de Meurig para que tivesse cuidado, Artur atacou a norte. Derrotou Byrthig em Caer Gei e, depois, sem interrupção e usando ainda a desculpa de que alguns dos assassinos dos sacerdotes haviam fugido mais para norte, conduziu o seu grupo de guerra pela Estrada Sombria, introduzindo-se no temido reino de Lleyn. Oengus seguiu-o, e nas areias de Foryd, onde o rio Gwyrfair corre para o mar, Oengus e Artur cercaram o rei Diwrnach com as duas forças, dominando, deste modo, os Escudos Sanguinários de Lleyn. Diwrnach foi assim subjugado, tendo sido massacrados mais de cem lanceiros seus, e tendo os restantes fugido em pânico. Em dois meses de Verão, Artur terminara com a rebelião em Powys, intimidara Byrthig e destruira Diwrnach, e com este último cumprira o juramento feito a Guinevere de vingar a perda do reino de seu pai. Leodegan, o seu pai, fora Rei de Henis-Wyren, mas Diwrnach viera da Irlanda, tomara Henis-Wyren de assalto, chamara-lhe Lleyn e, deste modo, transformara Guinevere numa exilada arruinada. Agora, Diwrnach estava morto e julguei que Guinevere insistisse para que o seu reino capturado fosse entregue ao seu filho. Contudo, não levantou objecções quando Artur deixou Lleyn à guarda de Oengus, na esperança de que isso mantivesse os seus Escudos Negros demasiado ocupados para empreenderem ataques súbitos a Powys. Melhor era, disse-me mais tarde Artur, que Lleyn tivesse um governante irlandês, já que a grande maioria da sua população era irlandesa, e Gwydre seria sempre um estrangeiro para eles. Deste modo, o filho mais velho de Oengus governou em Lleyn e Artur levou para Isca, e para Guinevere, a espada de Diwrnach como troféu.

Não presenciei nada disto, porque governava a Dumnónia onde os meus lanceiros cobravam os impostos de Mordred e faziam cumprir a sua justiça. Issa fazia a maior parte do trabalho, já que agora era Lorde por direito próprio, e eu entregara-lhe metade dos meus lanceiros. Também já era pai, e Scarach, a sua esposa, esperava outro filho. Ela vivia connosco em Dun Carie, de onde Issa partia para ir patrulhar o país, e de onde, todos os meses e agora cada vez com mais relutância, eu saía dirigindo-me a sul para assistir ao Conselho Real em Durnovária. Argante presidia a essas reuniões, já que Mordred ordenara que a sua rainha assumisse o seu alto cargo no conselho. Nem Guinevere assistira jamais às reuniões do conselho, mas Mordred insistira e, deste modo, Argante convocava o conselho, tendo como seu principal aliado o bispo Sansum. Tinham-lhe sido destinados bons aposentos no palácio e sussurrava continuamente ao ouvido de Argante, enquanto Fergal, o seu Druida, lhe sussurrava no outro. Sansum declamou ódio a todos os pagãos, porém, ao perceber que não teria qualquer poder a menos que o partilhasse com Fergal, o seu ódio desvaneceu-se numa sinistra aliança. Morgana, a esposa de Sansum, regressara para Ynys Wydryn depois da batalha de Mynydd Baddon, mas Sansum permanecera em Durnovária, preferindo as confidências da Rainha à companhia da mulher.

 

Argante apreciava o exercício do poder real. Não creio que ela sentisse um grande amor por Mordred, mas tinha de facto, uma paixão por dinheiro, e ao permanecer na Dumnónia garantia que a maior parte dos impostos do país lhe passasse pelas mãos. Ela pouco fez com a fortuna. Não construiu, como Artur e Guinevere haviam feito, não se importou com o restauro de pontes ou de fortes, limitando-se a vender os impostos, quer fossem pagos em sal, cereais ou peles, em troca de ouro. Enviava algum do ouro ao seu esposo, que pedia continuamente mais dinheiro para o seu grupo de guerra, mas a maior parte ela empilhava nas caves do palácio até o povo de Durnovária crer que a sua cidade estava construída sobre alicerces de ouro. Há muito que Argante recuperara o tesouro que eu escondera junto ao Caminho Valado, e a esse juntava ela agora mais e mais, sendo encorajada no entesouramento pelo bispo Sansum que, também na qualidade de Bispo de toda a Dumnónia, fora nessa altura nomeado Primeiro Conselheiro e Tesoureiro Real. Eu não tinha dúvidas de que ele usava o último cargo para retirar pequenas somas do tesouro para o seu próprio armazenamento oculto. Certo dia, acusei-o disso e, de imediato, ele fez uma expressão ofendida.

 

Não me interessa o ouro, Senhor disse ele piamente. Não nos ordena nosso Senhor que não juntemos tesouros na terra, mas no céu?

 

Fiz uma careta.

 

Ele pode ordenar o que bem lhe aprouver afirmei, que continuarás a vender a tua alma por ouro, Bispo, e assim deverás fazer, porque é um bom negócio.

 

Ele lançou-me um olhar desconfiado.

 

Um bom negócio? Porquê?

 

Porque trocarias imundície por ouro, claro respondi.

 

Eu não conseguia fingir que não gostava de Sansum, nem ele que não gostava de mim. O Lorde Rato acusava-me, continuamente, de falsear os impostos dos homens em troca de favores e, como prova desta acusação, ele referia o facto de, em cada ano consecutivo, menos dinheiro chegar aos cofres do tesouro. Essa quebra, porém, nada tinha que ver comigo. Sansum convencera Mordred a assinar um decreto que isentava todos os cristãos do pagamento de impostos, e atrevo-me a dizer que a Igreja nunca encontrou melhor forma de conseguir tantos convertidos, apesar de Mordred ter revogado a lei assim que se apercebeu do grande número de almas cristãs e do pouco ouro que amealhava. Então, Sansum convenceu o Rei de que a Igreja, e apenas ela, devia ficar responsável pela colecta dos impostos dos cristãos. Isto aumentou o lucro durante um ano, mas fê-lo decrescer daí em diante, quando os cristãos descobriram que pagavam menos subornando Sansum do que pagando ao seu Rei. Então, Sansum propôs duplicar os impostos de todos os pagãos, mas Argante e Fergal opuseram-se a essa medida. Por sua vez, Argante sugeriu que todos os impostos dos saxões duplicassem, mas Sagramor recusou-se a colectar o aumento, afirmando que isso apenas provocaria a rebelião nas regiões de Lloengyr, onde nos havíamos instalado. Não admirava que eu odiasse comparecer a essas reuniões do conselho, e ao cabo de um ano ou dois de semelhantes altercações infrutíferas, abandonei definitivamente as reuniões. Issa continuou a colectar os impostos, mas apenas os homens honestos pagavam, e em cada ano que passava o número destes também parecia diminuir, por isso Mordred queixava-se continuamente de estar cada vez mais pobre, enquanto Sansum e Argante enriqueciam.

 

Argante ficou rica, mas continuava sem procriar. Por vezes, visitava Broceliande e, muito espaçadamente, Mordred regressava a Dumnónia. Todavia, o seu ventre não adquiria volume depois de tais visitas. Ela orava, fazia sacrifícios e visitas a nascentes sagradas na tentativa de ter um filho, mas continuava estéril. Recordo-me do fedor nas reuniões do conselho quando ela andava com uma faixa suja com as fezes de um recém-nascido, supostamente um qualquer tratamento para a esterilidade. No entanto, aquilo não resultou melhor do que as infusões de briónio e mandrágora que bebia diariamente. Talvez Sansum a tenha convencido que apenas o Cristianismo podia conceder-lhe esse milagre, já que, dois anos depois de Mordred ter partido a primeira vez para Broceliande, Argante escorraçou o seu druida, Fergal, do palácio e foi publicamente baptizada no rio Ffraw, que corre ao longo da orla norte de Durnovária. Durante seis meses, ela assistiu diariamente ao serviço religioso na enorme igreja que Sansum construira no centro da cidade, mas ao cabo desse tempo o seu ventre continuava tão liso como estivera antes de ter entrado no rio. Foi, então, ordenado a Fergal que voltasse para o palácio e trouxesse consigo novas misturas de excrementos de morcego e sangue de doninha, que supostamente tornariam Argante fértil.

 

Por essa altura, Gwydre e Morwenna estavam casados e tinham tido o seu primeiro filho, um rapaz, ao qual haviam posto o nome de Artur, que, desde então, ficara conhecido por Artur-bach, Artur, o Pequeno. A criança foi baptizada pelo bispo Emrys e Argante viu a cerimónia como uma provocação. Ela sabia que, nem Artur nem Guinevere eram devotos fervorosos do Cristianismo e que, ao baptizarem o seu neto, estavam apenas a tentar conquistar os cristãos da Dumnónia, cujo apoio seria necessário caso Gwydre viesse a ser pretendente ao trono. Além disso, a simples existência de Artur-bach era um vexame para Mordred. Um Rei devia ser fecundo, era seu dever, e Mordred falhava nesse dever. Não importava que tivesse gerado bastardos de uma ponta à outra da Dumnónia e da Armórica, ele não conseguia gerar um herdeiro no ventre de Argante e a Rainha falava, sombriamente, do seu pé aleijado, recordava-se dos maus presságios do seu nascimento e olhava com azedume para a Silúria, onde a sua rival, a minha filha, mostrava ser capaz de dar à luz novos príncipes. O desespero da Rainha aumentou ainda mais, chegando mesmo a gastar, abundantemente o seu tesouro para pagar com ouro a todos os impostores que lhe prometessem um ventre dilatado. Todavia, nenhuma das feiticeiras da Bretanha conseguiu ajudá-la a conceber e os rumores eram verdadeiros, nem metade dos lanceiros da guarda do seu palácio. E, durante todo esse tempo, Gwydre aguardava na Silúria, e Argante sabia que se Mordred morresse, Gwydre governaria na Dumnónia a menos que ela conseguisse gerar um herdeiro.

 

Naqueles primeiros anos da governação de Mordred, fiz os possíveis por preservar a paz na Dumnónia e, durante algum tempo, os meus esforços foram auxiliados pela ausência do Rei. Nomeei os magistrados e, desse modo, garanti que a justiça de Artur continuasse. Artur sempre gostara de boas leis, afirmando que elas uniam um país como as tábuas de salgueiro de um escudo são mantidas fixas pela sua cobertura de cabedal; e ele tivera uma tarefa árdua a nomear magistrados em quem podia confiar pela sua imparcialidade. Na sua maioria, eram proprietários rurais, mercadores e sacerdotes, e quase todos eram suficientemente abastados para resistirem aos efeitos corrosivos do ouro. Se os homens conseguirem comprar a lei, sempre dissera Artur, então a lei torna-se desnecessária. Os seus magistrados eram famosos pela sua honestidade, mas não demorou muito até as gentes da Dumnónia descobrirem que os magistrados podiam ser contornados. Ao entregarem quantias em dinheiro a Sansum ou a Argante, eles tinham garantias de que Mordred escreveria da Armórica ordenando que uma decisão fosse alterada e, deste modo, ano após ano, dei comigo a lutar contra uma onda crescente de pequenas injustiças. Os magistrados honestos preferiram demitir-se a verem as suas decisões serem continuamente alteradas, ao passo que homens que podiam submeter as suas questões à avaliação de um tribunal preferiam resolvê-las com as lanças. Esta erosão da lei foi um processo lento, mas não consegui travá-la. Era suposto ser um freio para o temperamento caprichoso de Mordred, mas Argante e Sansum eram esporas gémeas, e as esporas triunfavam sobre o freio.

 

No entanto, em geral, foram tempos felizes. Poucos viviam mais de quarenta anos, todavia Ceinwyn e eu passáramos essa idade e, graças aos Deuses, ambos de perfeita saúde. O casamento de Morwenna encheu-nos de alegria, e o nascimento de Artur-bach ainda mais; um ano mais tarde, a nossa filha Seren desposou Ederyn, o Herdeiro de Elmet. Foi um casamento dinástico, porque Seren era prima direita de Perddel, Rei de Powys, e o casamento não foi contraído por amor, mas para fortalecer a aliança entre Elmet e Powys. Apesar de Ceinwyn se opor ao casamento, por não ver sinais de afecto entre Seren e Ederyn, Seren preparou o seu coração para ser Rainha e, deste modo, desposou o herdeiro, indo viver para bem longe de nós. Pobre Seren, nunca chegou a ser Rainha, porque morreu ao dar à luz o seu primeiro filho, uma menina que viveria apenas mais meio dia do que a sua mãe. Foi assim que a segunda das minhas três filhas entrou no Outro Mundo. Chorámos por Seren, apesar de estas lágrimas não serem tão amargas como as que havíamos derramado pela morte de Dian, que morrera tão cruelmente jovem. No entanto, apenas um mês após a morte de Seren, Morwenna deu à luz o seu segundo filho, uma menina, a quem ela e Gwydre chamaram Seren, e aqueles netos enchiam as nossas vidas de uma vivacidade crescente. Não vinham à Dumnónia, por poderem aí correr o perigo de serem alvo dos ciúmes de Argante, mas Ceinwyn e eu íamos com bastante frequência à Silúria. Na verdade, as nossas visitas tornaram-se tão frequentes que Guinevere manteve no palácio aposentos exclusivamente destinados à nossa utilização, e, passado algum tempo, passávamos mais tempo em Isca do que em Dun Carie. A minha barba e o meu cabelo tornavam-se grisalhos e eu contentava-me em deixar que Issa lutasse com Argante, enquanto eu brincava com os meus netos. Construí uma casa para a minha mãe na costa da Silúria, todavia nessa altura estava já tão demente que não sabia o que se passava e não deixava de tentar regressar ao seu casebre de madeira, na falésia acima do mar. Morreu no Inverno, vitimada por uma peste e, tal como prometera a Aelle, enterrei-a como uma saxã com os pés virados para norte.

 

A Dumnónia ficou enfraquecida e parecia haver pouco que eu pudesse fazer para impedir aquela decadência, uma vez que Mordred tinha poder suficiente para me contornar. Issa, porém, preservou a ordem e a justiça que conseguiu, enquanto Ceinwyn e eu passávamos cada vez mais tempo na Silúria. Que doces recordações conservo de Isca; memórias de dias solarengos com Taliesin entoando canções de embalar e Guinevere motejando com afabilidade da minha felicidade, quando elevava Artur-bach e Seren num escudo virado ao contrário e caminhava pela relva. Artur entrava nos jogos, porque sempre adorara crianças e, por vezes, Galaad estava presente, pois juntara-se a Artur e a Guinevere no seu confortável exílio.

 

Galaad ainda não se casara, apesar de, nessa altura, ter uma criança a seu cargo, o seu sobrinho, o Príncipe Peredur, filho de Lancelote, que fora encontrado vagueando, desfeito em lágrimas, por entre os mortos de Mynydd Baddon. À medida que crescia, Peredur ia-se tornando cada vez mais parecido com o seu pai, com a mesma pele escura, o mesmo rosto magro e esbelto e o mesmo cabelo preto; mas em carácter saía a Galaad, não a Lancelote. Era um rapaz esperto, sério e sincero e estava ansioso por se tornar um bom cristão. Não sei quanto da história de seu pai ele sabia, mas Peredur sentia-se sempre intimidado na presença de Artur e de Guinevere, e creio que ambos o achavam perturbador. Não era por culpa sua, mas antes porque o seu rosto lhes recordava aquilo que todos preferíamos esquecer, e ambos ficaram satisfeitos quando, aos doze anos, Peredur foi enviado para a corte de Meurig, em Gwent, para aprender as artes de guerreiro. Era um bom rapazinho, porém, com a sua partida, foi como se uma sombra se dissipasse de Isca. Anos mais tarde, bem depois da história de Artur ter terminado, cheguei a conhecer bem Peredur e a reconhecer-lhe o valor que reconheceria em qualquer outro homem.

 

Peredur pode ter perturbado Artur, mas pouco mais sombras houve que o perturbassem. Naqueles dias sombrios, em que as gentes olhavam para trás e se recordavam do que haviam perdido com a partida de Artur, normalmente falavam da Dumnónia; mas outros também choravam pela Silúria, porque durante aqueles anos ele concedeu àquele reino abandonado uma época de paz e justiça. No entanto, continuava a haver doença e pobreza, e os homens não cessavam de se embriagar e de matar-se uns aos outros apenas porque Artur governava. As viúvas, porém, sabiam que os seus tribunais as compensariam, e os esfomeados sabiam que os seus celeiros tinham mantimentos para um Inverno inteiro. Nenhum inimigo empreendeu ataques súbitos à fronteira da Silúria, e apesar de a religião cristã se espalhar rapidamente pelos vales, Artur não deixou que os seus sacerdotes profanassem os santuários pagãos, nem permitiu que os pagãos atacassem as igrejas cristãs. Nesses anos, ele transformou a Silúria naquilo com que sonhara para toda a Bretanha: num céu. Não havia crianças escravizadas, as colheitas não eram queimadas e os grupos de guerra não devastavam as herdades.

 

Todavia, para lá das fronteiras marítimas, coisas sombrias agigantavam-se. A ausência de Merlim era uma delas. Passavam os anos, e continuava a não haver notícias, e após algum tempo as gentes presumiram que o druida teria morrido, porque seguramente nenhum homem, nem mesmo Merlim, conseguia viver tanto tempo. Meurig era um vizinho incómodo e irascível, pedindo continuamente impostos mais elevados ou uma expurgação dos druidas que viviam nos vales da Silúria, apesar de Tewdric, o seu pai, ser uma influência moderada quando se conseguia despertá-lo da sua auto-imposta existência próxima da inanição. Powys permaneceu enfraquecida, e a Dumnónia tornou-se, de forma sempre crescente, um reino sem lei, apesar de ser poupado ao pior da governação de Mordred devido à sua ausência. Apenas na Silúria, conforme parecia, reinava a felicidade, e Ceinwyn e eu começámos a pensar que viveríamos o resto dos nossos dias em Isca. Tínhamos riqueza, amigos, uma família, e éramos felizes.

 

Em suma, estávamos satisfeitos connosco, e o destino nunca fora inimigo do comprazimento, e o destino, tal como Merlim sempre me disse, é inexorável.

 

Eu caçava com Guinevere nas colinas a norte de Isca quando, pela primeira vez, ouvi falar da calamidade de Mordred. Estávamos no Inverno, as árvores não tinham folhas, e os estimados galgos escoceses de Guinevere haviam acabado de perseguir um enorme veado vermelho, quando um mensageiro de Dumnónia me encontrou. O homem entregou-me uma carta, depois ficou a observar, de olhos arregalados, enquanto Guinevere avançava com dificuldade por entre os cães, que rosnavam, para libertar o animal do seu (Sofrimento com uma estocada misericordiosa da sua pequena lança. Os seus batedores afastaram os cães de cima da carcaça com chibatadas e, depois, agarraram nas suas facas para retirarem as vísceras do veado. Desenrolei o pergaminho, li a breve mensagem e olhei para o mensageiro.

 

Mostraste isto a Artur?

 

Não, Senhor respondeu o homem. A carta era-vos dirigida.

 

Leva-lha, então ordenei, estendendo-lhe a folha de pergaminho. Feliz, salpicada de sangue, Guinevere afastou-se da carcaça.

 

Pareces ter recebido más notícias, Derfel.

 

Pelo contrário afirmei, são boas notícias. Mordred foi ferido.

 

Óptimo! exultou Guinevere. Com gravidade, espero?

 

Assim parece. Um golpe de machado na perna.

 

Pena é que não tenha sido no coração. Onde está ele?

 

Ainda na Armórica afirmei.

 

A mensagem fora ditada por Sansum, e afirmava que Mordred fora surpreendido e derrotado por um exército chefiado por Clóvis, sua Magestade, o Rei dos Francos, e que o nosso Rei fora ferido com gravidade numa perna, no campo de batalha. Ele fugira, e estava agora cercado por Clóvis num dos antigos fortes, no topo de uma colina da antiga Benoic. Presumi que Mordred teria passado o Inverno no território que conquistara aos Francos e do qual pensara, sem dúvida, fazer um segundo reino para lá do mar, mas Clóvis conduzira o seu exército franco para oeste numa surpreendente campanha de Inverno. Mordred fora derrotado e, apesar de ainda viver, estava cercado.

 

Quão fidedignas podem ser as notícias? perguntou Guinevere.

 

Bastante. respondi. O rei Budic enviou um mensageiro a Argante.

 

Excelente! disse Guinevere. Excelente! Façamos votos para que os francos o matem recuou até à volumosa pilha de restos escorregadios, à procura de um pedaço pequeno para um dos seus adorados cães. Eles matá-lo-ão, não é? perguntou-me ela.

 

Os Francos não são conhecidos pela sua misericórdia afirmei.

 

Espero que dancem em cima dos seus ossos disse ela. Autodenominar-se segundo Uther!

 

Ele pelejou bem por algum tempo, Senhora.

 

O que importa não é que pelejes bem, Derfel, é se vences ou não a última batalha atirou pedaços das entranhas do veado aos seus cães, limpou a lâmina da faca à sua túnica, depois atirou-a para o interior do estojo. Então, o que pretende Argante de ti? inquiriu-me. Um resgate? Argante pedia exactamente isso, bem como Sansum, razão pela qual ele me escrevera. A sua mensagem ordenava-me que marchasse com todos os meus homens para a costa sul, que nos metêssemos em barcos e fôssemos resgatar Mordred. Disse isto a Guinevere e ela lançou-me um olhar breve e motejador.

 

E vais-me dizer que o teu juramento para com o estuporzinho te forçará a obedecer?

 

Não prestei nenhum juramento a Argante afirmei, e seguramente nenhum a Sansum.

 

O Lorde Rato bem podia ordenar-me aquilo que quisesse, mas eu não precisava de lhe obedecer nem ao desejo de ninguém de salvar Mordred. Para além disso, tive dúvidas que um exército pudesse ser embarcado para Armórica no Inverno e, ainda que os meus lanceiros sobrevivessem à agitada travessia, estariam em número muito reduzido para defrontarem os Francos. O único auxílio com que Mordred podia contar era o do velho rei Budic de Broceliande, casado com Anna, a irmã mais velha de Artur. Mas enquanto Budic podia sentir-se feliz por ter Mordred a matar os francos na região que outrora fora Benoic, não desejaria, por certo, atrair a atenção de Clóvis ao enviar lanceiros para salvarem Mordred. Pensei que Mordred estava condenado. Se a sua ferida não o matasse, Clóvis fá-lo-ia.

 

Até ao final do Inverno, Argante não deixou de me enviar mensagens, para que levasse os meus lanceiros para lá do oceano, mas eu permaneci na Silúria e ignorei-a. A Issa chegaram as mesmas exigências, mas ele recusou-se liminarmente a obedecer, enquanto Sagramor atirou simplesmente as mensagens de Argante para a fogueira. Ao ver o seu poder fugir-lhe com a diminuta vida do seu esposo, o desespero de Argante foi aumentando, chegando a oferecer ouro aos lanceiros que navegassem para a Armórica. Apesar de muitos receberem o ouro, preferiram rumar para oeste, para Kernow, ou apressarem-se para norte, penetrando em Gwent, em vez de navegarem para sul, onde o cruel exército de Clóvis aguardava. E enquanto Argante desesperava, as nossas esperanças aumentavam. Mordred estava cercado e doente e, mais cedo ou mais tarde, chegariam as notícias da sua morte, e quando isso acontecesse, planeávamos dirigir-nos para a Dumnónia sob o estandarte de Artur com Gwydre como nosso pretendente ao trono. Sagramor viria da fronteira saxã para nos apoiar, e nenhum homem na Dumnónia teria poder suficiente para nos fazer frente.

 

Porém, outros homens pensavam igualmente no trono da Dumnónia. Constara-me isso no início da Primavera, quando o Santo Tewdric morrera. Artur espirrava e tremia com a última das constipações daquele Inverno, e pediu a Galaad que fosse assistir aos ritos fúnebres do velho Rei, em Burrium, a capital de Gwent, situada a pouca distância de Isca. Galaad, por sua vez, pediu-me que o acompanhasse. Senti grande pesar por Tewdric, que provara ser para nós um bom amigo, mas, não desejava assistir ao seu funeral para não ser forçado a suportar a interminável monotonia dos ritos cristãos. Artur, no entanto, juntou os seus rogos aos de Galaad.

 

Nós vivemos aqui por vontade de Meurig recordou-me ele e devemos fazer os possíveis por lhe mostrar respeito. Eu iria, se pudesse fez uma pausa para espirrar, mas Guinevere diz que será a minha morte. Então, Galaad e eu fomos no lugar de Artur e, na verdade, o serviço fúnebre pareceu não ter fim. Realizou-se numa enorme igreja semelhante a um celeiro, que Meurig construíra no ano que marcava o suposto quinto centenário do aparecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo nesta terra cheia de pecado. Depois de os crentes, no interior da igreja, estarem todos a rezar ou a cantar, tivemos de suportar ainda mais crentes junto à sepultura de Tewdric. Não havia pira funerária nem lanceiros a cantar, apenas um buraco frio no chão, um grande número de sacerdotes de cabelo bem curto, e uma pressa pouco digna para regressarem à cidade e às suas tabernas depois de Tewdric ter sido, finalmente, enterrado.

 

Meurig ordenou-nos, a Galaad e a mim, que jantássemos com ele. Peredur, o sobrinho de Galaad, acompanhou-nos, bem como o Bispo de Burrium, uma alma sombria de nome Lladarn, que fora responsável pela mais entediante das orações do dia, e que iniciou o jantar com outra oração igualmente demorada, depois da qual fez um solene inquérito sobre o estado da minha alma, ficando ofendido quando lhe assegurei que estava salva à guarda de Mitras. Respostas semelhantes teriam normalmente irritado Meurig, mas ele estava demasiado distraído para reparar na provocação. Sei que não estava indevidamente perturbado com a morte de seu pai, porque Meurig ainda estava sentido por Tewdric lhe ter retirado o poder na altura de Mynydd Baddon, mas pelo menos simulou estar destroçado, e enfastiou-nos com falsos elogios à santidade e sagacidade de seu pai. Expressei o desejo de que a morte de Tewdric tivesse sido misericordiosa e Meurig disse-me que o seu pai jejuara até morrer, na tentativa de imitar os anjos.

 

No final, nada restou dele enfatuou o bispo Lladarn, era apenas pele e osso, pele e osso! Mas os monges dizem que a sua pele estava inundada com uma luz celestial, louvado seja Deus!

 

E, agora, o santo está sentado à direita de Deus Pai disse Meurig, fazendo o sinal da cruz onde um dia me encontrarei com ele. Provai uma ostra, Senhor.

 

Empurrou uma travessa de prata na minha direcção, depois serviu-se de vinho. Era um jovem pálido com olhos protuberantes, uma barba fina e uns modos irritantemente pedantes. Tal como seu pai, imitava os modos romanos. Usava uma grinalda de bronze no cabelo curto, vestia uma toga e comia deitado num canapé. Os canapés eram, imensamente desconfortáveis. Desposara uma Princesa de Rheged, triste e parecida com um boi, que chegara a Gwent pagã, gerara gémeos masculinos e depois deixara que o Cristianismo penetrasse na sua alma teimosa. Ela apareceu por breves instantes na sala de jantar debilmente iluminada, olhou-nos de soslaio, não comeu nem disse nada, depois desapareceu tão misteriosamente como chegara.

 

Tendes novas de Mordred? perguntou-nos Meurig, depois da breve visita da sua esposa.

 

Nada ouvimos de novo, meu Rei e Senhor disse Galaad. Ele está cercado por Clóvis, mas não sabemos se vive ou não.

 

Eu tenho novas disse Meurig, satisfeito por as ter ouvido antes de nós. Chegou ontem de Broceliande um mercador e disse-nos que Mordred está prestes a morrer. A sua ferida está a ulcerar o Rei, palitou os dentes com uma lasca de marfim. Tem de ser o castigo de Deus, príncipe Galaad, o castigo de Deus.

 

Louvado seja o Seu nome interveio o bispo Lladarn.

 

A barba grisalha do Bispo era tão comprida que desaparecia por detrás do seu canapé. Ele usava a barba como uma toalha, limpando a gordura que lhe pingava das mãos às suas compridas e imundas tranças.

 

Ouvimos já tais rumores antes, meu Rei e Senhor afirmei. Meurig encolheu os ombros.

 

O mercador parecia estar muito seguro de si disse ele, depois enfiou com dois dedos uma ostra pela boca abaixo. Então, se Mordred ainda não estiver morto prosseguiu, certamente o estará em breve, e sem deixar filhos!

 

Assim é disse Galaad.

 

E Perddel de Powys também não tem filhos continuou Meurig.

 

Perddel não é casado, meu Rei e Senhor chamei eu a atenção.

 

Mas parece-vos que ele irá casar? quis Meurig saber.

 

Tem-se dito que ele casará com uma Princesa de Kernow afirmei e alguns dos Reis irlandeses ofereceram as suas filhas, mas a sua mãe pretende que ele aguarde um ano ou dois.

 

Ele é orientado pela mãe, não é? Não admira que seja fraco disse Meurig, na sua voz petulante e num tom bastante alto, fraco. Constou-me que as colinas a oeste de Powys estão cheias de homens fora-da-lei?

 

Também eu ouvi o mesmo, meu Rei e Senhor afirmei.

 

As montanhas junto ao mar Irlandês haviam sido infestadas por homens sem amo desde a morte de Cuneglas, e depois da campanha de Artur em Powys, Gwynedd e Lleyn nada mais haviam feito senão aumentar o seu número. Alguns desses refugiados eram lanceiros dos Escudos Sanguinários de Diwrnach e, agregados aos homens descontentes de Powys, podiam mostrar-se uma nova ameaça para o trono de Perddel. Todavia, até então eles pouco mais haviam sido do que um incómodo. Empreendiam ataques súbitos ao gado e às colheitas, raptavam crianças para fazerem delas escravos, depois retiravam-se rapidamente para os seus esconderijos na colina para evitarem retaliações.

 

E Artur? inquiriu Meurig. Como o tendes deixado?

 

Não muito bem, meu Rei e Senhor disse Galaad. Ele teria preferido estar aqui, mas, infelizmente, está com uma febre de Inverno.

 

Não é coisa séria? inquiriu Meurig, com uma expressão de quem sugeria que preferia que a constipação de Artur fosse fatal. Esperemos que não, claro acrescentou apressadamente, mas ele está velho, e os velhos sucumbem a coisas insignificantes da qual um jovem se libertaria facilmente.

 

Não creio que Artur seja velho afirmei.

 

Deverá estar próximo dos cinquenta anos! notou Meurig, indignado.

 

Apenas dentro de um ou dois anos respondi.

 

Mas está velho insistiu Meurig, velho.

 

Ficou calado e eu lancei um olhar furtivo pelos aposentos do palácio, iluminados por mechas acesas em suportes de bronze achatados e cheios de óleo. Para além dos cinco canapés e de uma mesa baixa, não havia outra mobília e a única decoração era uma escultura de Cristo na cruz, pendurada bem alto numa parede. O Bispo roía uma costeleta de porco, Peredur estava sentado em silêncio, enquanto Galaad observava o Rei com um olhar de vago divertimento. Meurig voltou a palitar os dentes, depois apontou-me a lasca de marfim.

 

O que acontece se Mordred morrer? Pestanejou, rapidamente, algo que sempre fazia quando estava nervoso.

 

Terá de ser encontrado um novo rei, meu Rei e Senhor afirmei, casualmente, como se a pergunta não tivesse para mim grande importância.

 

Sei bem que assim terá de ser disse ele, com azedume mas quem?

 

Os Lordes da Dumnónia decidirão afirmei, evasivamente.

 

E escolherão Gwydre? Voltou a pestanejar, como se me desafiasse. É isso que me consta, eles escolherão Gwydre! Não estou certo?

 

Eu nada lhe disse e, por fim, Galaad respondeu ao Rei.

 

Certamente que Gwydre tem direito, meu Rei e Senhor disse ele, cauteloso.

 

Ele não tem direito nenhum, nenhum! Nenhum! Meurig guinchava, iradamente. O seu pai, tenho de vos recordar, é um bastardo!

 

Tal como eu, meu Rei e Senhor intervim. Meurig ignorou esta minha observação.

 

”Um bastardo não deverá entrar para a congregação do Senhor!” insistiu. Assim o dizem as Escrituras. Não é assim, Bispo?

 

”Até à décima geração, o bastardo não deverá entrar para a congregação do Senhor”, meu Rei e Senhor salmodiou Lladarn, depois fez o sinal da cruz. Graças à Sua sabedoria e orientação, meu Rei e Senhor.

 

Aí tendes! afirmou Meurig, como se toda a sua argumentação estivesse deste modo provada.

 

Sorri.

 

Meu Rei e Senhor chamei a atenção, com delicadeza, se devêssemos negar o reinado aos descendentes de bastardos, não teríamos reis.

 

Ele fitou-me com os seus olhos mortiços e salientes, tentando perceber se eu insultava a sua própria linhagem, mas deverá ter decidido não iniciar uma contenda.

 

Gwydre é um jovem disse ele, e não o filho de um rei. Os saxões estão a ficar cada vez mais fortes e Powys é mal governada. À Bretanha faltam chefes, Lorde Derfel, faltam reis fortes!

 

Diariamente damos graças ao Senhor, porque a vossa estremosa Pessoa prova o contrário, meu Rei e Senhor afirmou Lladarn, untuosamente.

 

Pensei que a lisonja do Bispo nada mais fosse do que uma réplica elegante, o tipo de frase cortês sem sentido que se diz sempre aos reis, mas Meurig tomou-a como uma verdade contida nos Evangelhos.

 

Justamente! disse o Rei com entusiasmo, depois fitou-me com os olhos bem abertos como se esperasse que eu ecoasse os sentimentos do Bispo.

 

Em vez de o fazer, perguntei-lhe.

 

Quem gostaríeis de ver no trono da Dumnónia, meu Rei e Senhor? O seu pestanejo repentino e rápido mostrou que ficara desconcertado com

 

a pergunta. A resposta era óbvia: Meurig queria o trono para si mesmo. Antes dos acontecimentos de Mynydd Baddon, ele tentara, afincadamente, conquistá-lo, e a sua insistência para que o exército de Gwent não ajudasse Artur a combater os Saxões a menos que Artur renunciasse ao seu próprio poder fora um esforço sagaz para enfraquecer o trono da Dumnónia, na esperança de que este, um dia, ficasse vago. No entanto, pelo menos agora, ele via a sua oportunidade, embora não se atrevesse a anunciar abertamente a sua própria candidatura até as notícias definitivas sobre a morte de Mordred chegarem à Bretanha.

 

Eu apoiarei disse ele qualquer pretendente que mostre ser um discípulo de nosso Senhor Jesus Cristo fez o sinal da cruz. Não posso apoiar nenhum outro, porque sirvo Deus Todo-Poderoso.

 

Nosso Senhor seja louvado! disse o Bispo, rapidamente.

 

E eu estou seguramente informado, Lorde Derfel prosseguiu Meurig, seriamente que os cristãos da Dumnónia reclamam um bom governante cristão. Reclamam!

 

E quem vos informou dessa reclamação, meu Rei e Senhor? perguntei num tom de voz de tal modo ácido que o pobre Peredur pareceu alarmado. Meurig não respondeu, mas eu também não esperava que ele o fizesse, por isso, eu próprio a dei. O Bispo Sansum? sugeri, e vi pela expressão de indignação de Meurig que estava certo.

 

Porque pensas tu que Sansum tem alguma coisa a dizer em relação a este assunto? perguntou-me Meurig, corado.

 

Sansum vem de Gwent, não é assim, meu Rei e Senhor? inquiri-lhe, e Meurig ruboresceu ainda mais, tornando óbvio que Sansum, de facto, conspirava para o colocar no trono da Dumnónia. E Meurig, Sansum podia estar tranquilo, não se escusaria a recompensá-lo ainda com mais poder.

 

Mas não creio que os cristãos da Dumnónia necessitem da vossa protecção, meu Rei e Senhor prossegui nem da de Sansum. Tal como seu pai, Gwydre é um amigo da vossa religião.

 

Um amigo! Artur, um amigo de Cristo! gritou-me, irado, o bispo Ladarn. Existem santuários pagãos na Silúria, animais são oferecidos em sacrifícios aos velhos Deuses, as mulheres dançam nuas ao luar, são passadas crianças através das chamas, os druidas tagarelam! Gotas de saliva saltaram da boca do Bispo enquanto enumerava, rapidamente, esta lista de iniquidades.

 

Sem a bênção da governação de Cristo Meurig inclinou-se para mim, não poderá haver paz.

 

Não poderá haver paz, meu Rei e Senhor afirmei, directamente enquanto dois homens pretenderem o mesmo reino. O que desejais que eu comunique ao meu genro?

 

Meurig estava de novo desconcertado com a minha frontalidade. Ele dedilhava a concha de uma ostra, ao mesmo tempo que considerava a sua resposta. Depois encolheu os ombros.

 

Podes garantir a Gwydre que ele terá terras, honra, posição e a minha protecção afirmou, pestanejando rapidamente, mas não o verei tornar-se rei da Dumnónia.

 

Agora ruborescia, de facto, enquanto proferia as últimas palavras. Era um homem inteligente, mas um cobarde, e deveria estar a fazer um enorme esforço para se expressar de forma tão rude.

 

Talvez ele temesse a minha ira, mas devolvi-lhe uma resposta cortês.

 

Dir-lhe-ei, meu Rei e Senhor afirmei, apesar de, na verdade, a mensagem não se dirigir a Gwydre, mas a Artur. Meurig não só declarava a sua intenção de governar a Dumnónia, como avisava Artur que o formidável exército de Gwent se oporia a que Gwydre se apresentasse como pretendente ao trono.

 

O bispo Lladarn fez uma vénia a Meurig e proferiu um sussurro apressado. Falou em latim, confiante que nem Galaad nem eu compreenderíamos as suas palavras.

 

Planeais manter Artur encurralado na Silúria? acusou Lladarn na língua britânica.

 

Lladarn corou. Desde que era o Bispo de Burrium, Lladarn tornara-se o principal conselheiro do rei e, deste modo, um homem de poder.

 

O meu Rei e Senhor afirmou, arqueando a cabeça na direcção de Meurig não poderá permitir que Artur movimente lanceiros pelo território de Gwent.

 

É isto verdade, meu Rei e Senhor? perguntou Galaad, educadamente.

 

Sou um homem de paz irrompeu Meurig e uma forma de assegurar a paz é manter os lanceiros em casa.

 

Eu nada disse, temendo que da minha ira irrompesse algum insulto, o que complicaria as coisas. Se Meurig insistisse que não podíamos movimentar lanceiros pelas suas estradas, consegui-lo-ia, dividindo as forças que apoiariam Gwydre. Significava que Artur não podia avançar para se juntar a Sagramor, nem este ir ao seu encontro, e se Meurig conseguisse manter as duas forças divididas, então era bem provável que se tornasse o próximo Rei da Dumnónia.

 

Mas Meurig não pelejará afirmou Galaad, com desdém, enquanto descíamos o rio em direcção a Isca, no dia seguinte. Os salgueiros estavam toldados com os primeiros vestígios de folhas da Primavera, mas o dia lembrava o Inverno com um vento frio e neblinas arrastadas pelo vento.

 

É provável afirmei, se a contrapartida for suficientemente grande. E a contrapartida era enorme, já que se Meurig governasse tanto Gwent como a Dumnónia, conseguiria o controlo da parte mais rica da Bretanha. Tudo dependerá disse eu do número de lanceiros que lhe fizer frente.

 

Os teus, os de Issa, os de Artur e os de Sagramor enumerou Galaad.

 

Talvez quinhentos homens? aventei. Os de Sagramor estão bem longe e os de Artur teriam de atravessar o território de Gwent para chegar à Dumnónia. E quantos homens comanda Meurig? Mil?

 

Ele não correrá o risco de provocar uma guerra insistiu Galaad. Quer a contrapartida, mas tem um medo terrível do risco que corre.

 

Ele parara o seu cavalo para observar um homem que pescava num barco, no meio do rio. O pescador lançou a sua rede com uma habilidade descuidada e, enquanto Galaad admirava a sua destreza, eu combinava cada lançamento com um presságio. Se este lançamento apanhar um salmão, disse para comigo, então Mordred morrerá. O lançamento trouxe, de facto, um enorme peixe que se debatia, e então pensei que o augúrio era um disparate, porque todos haveríamos de morrer; por isso, disse para comigo que o lançamento seguinte teria de apanhar um peixe, se Mordred morresse antes do Beltain. A rede veio vazia e toquei no copo da Hywelbane. O pescador vendeu-nos uma parte da sua pesca e empurrámos os salmões para o interior dos nossos alforges e prosseguimos o nosso caminho. Orei a Mitras, para que os meus patéticos presságios estivessem errados, depois rezei para que Galaad tivesse razão e para que Meurig nunca se atrevesse a enviar as suas tropas. Todavia, e em relação à Dumnónia? À rica Dumnónia? Esse era um risco que valia a pena correr, até mesmo para um homem cauteloso como Meurig.

 

Reis fracos são uma maldição na terra. Contudo, os nossos juramentos são prestados aos reis, e se não prestássemos juramentos não teríamos leis, e se não tivéssemos leis, teríamos a mera anarquia, por isso tínhamos de nos unir pela lei e mantê-la através dos juramentos. E se um homem conseguisse mudar os reis a seu bel-prazer podia abandonar os seus juramentos para com os seus inconvenientes reis. Por isso, precisávamos de reis, porque tínhamos de ter uma lei imutável. Tudo isto é verdade, contudo, enquanto Galaad e eu caminhávamos para casa, através do nevoeiro invernoso, eu lamentava-me por o único homem que deveria ter sido rei nunca vir a sê-lo, e por aqueles que nunca deveriam ter sido reis o terem sido.

 

Encontrámos Artur no alpendre da sua oficina de ferreiro. Ele próprio a construíra e fizera uma fornalha coberta com tijolos romanos, depois adquirira uma bigorna e um conjunto de ferramentas de ferreiro. Sempre manifestara vontade de ser ferreiro, apesar de, como tantas vezes notava Guinevere, querer e ser não serem exactamente o mesmo. No entanto, Artur tentou, e, como o fez! Empregou um verdadeiro ferreiro, um homem lúgubre e taciturno, de nome Morridig, cuja tarefa era ensinar a Artur o engenho do ofício, mas Morridig há muito que desesperara de tentar ensinar a Artur qualquer coisa, que não entusiasmo. Todavia, todos nós possuíamos artigos feitos por Artur; suportes de velas em ferro com compridos e retorcidos cabos, recipientes de cozinha disformes com pegas mal soldadas ou espetos de ferro que arqueavam ao lume. No entanto, a oficina de ferreiro fazia-o feliz, e ele passava horas junto à sua fornalha incandescente, sempre convencido de que um pouco mais de prática o tornaria tão descontraidamente eficiente como Morridig.

 

Quando Galaad e eu regressámos de Burrium, ele estava sozinho na oficina de ferreiro. Resmungou uma saudação distraída, depois continuou a martelar um pedaço de ferro sem forma, que afirmou ser uma ferradura para um dos seus cavalos. Com relutância, largou o martelo quando lhe oferecemos um dos salmões que trouxéramos, depois interrompeu as nossas notícias, afirmando que já lhe constara que Mordred estava prestes a morrer.

 

Ontem chegou um bardo da Armórica disse-nos ele, e afirma que a perna do Rei está a apodrecer na anca. O bardo diz que ele fede como um sapo morto.

 

Como sabe o bardo disso? inquiri por julgar que Mordred estava cercado e separado de todos os outros bretões da Armórica.

 

Ele afirma que é voz corrente em Broceliande disse Artur e depois, satisfeito, acrescentou que esperava que o trono da Dumnónia ficasse vago numa questão de dias. Mas nós estragámos a sua boa-disposição ao contar-lhe a recusa de Meurig em permitir que qualquer lanceiro nosso atravessasse o território de Gwent, e eu aumentei a sua tristeza ao acrescentar a minha desconfiança em relação a Sansum. Por instantes, pensei que Artur ia praguejar, algo que raramente fazia, mas controlou o impulso e, em vez disso, afastou o salmão da fornalha. Não o quero demasiado passado afirmou. Então, Meurig barrou-nos todas as estradas?

 

Ele diz que quer paz, Senhor expliquei. Artur deu uma gargalhada amarga.

 

Ele quer revelar-se, é o que pretende fazer. O seu pai morreu e ele está desejoso por mostrar que é melhor homem do que Tewdric. A melhor forma de o fazer é tornar-se um herói no campo de batalha, e a segunda melhor é roubar um reino sem combater. Espirrou violentamente, depois abanou a cabeça zangado. Odeio estar constipado.

 

Devíeis estar a descansar, Senhor afirmei, não a trabalhar.

 

Isto não é trabalho, é deleite.

 

Devíeis tomar tussilagem com hidromel afirmou Galaad.

 

Não bebi outra coisa durante uma semana. Apenas duas coisas curam as constipações: a morte ou o tempo.

 

Agarrou no martelo e deu uma pancada vibrante no pedaço de ferro já arrefecido, depois comprimiu o fole com revestimento de cabedal espevitando, deste modo, a fornalha. O Inverno chegara ao fim, mas apesar da insistência de Artur de que o tempo era sempre ameno em Isca, aquele era um dia gelado.

 

O que anda o teu Lorde Rato a aprontar? perguntou-me ele, enquanto comprimia o fole até a fornalha lançar um calor tremeluzente.

 

Ele não é o meu Lorde Rato objectei.

 

Mas faz maquinações, não é assim? Ele quer colocar no trono o seu próprio pretendente.

 

Mas Meurig não tem direito algum a ascender ao trono! protestou Galaad.

 

Absolutamente nenhum concordou Artur, mas tem imensos lanceiros. E teria parte desse direito se desposasse a viúva Argante.

 

Ele não pode desposá-la disse Galaad, já é casado.

 

Um cogumelo venenoso livrá-lo-á de uma rainha inconveniente afirmou Artur. Foi assim que Uther se livrou da sua primeira mulher. Um cogumelo venenoso num estufado de cogumelos. Reflectiu por breves instantes, depois empurrou a ferradura para o meio das chamas. Traz Gwydre até aqui pediu ele a Galaad.

 

Artur torturou o ferro incandescente, enquanto nós aguardávamos. Uma ferradura era um objecto bastante simples, uma mera chapa de ferro que protegia das pedras o vulnerável casco, e tudo o que era necessário era um arco de ferro que deslizasse desde a parte da frente do casco e duas saliências na parte de trás, onde eram atados os cordões de cabedal. Artur, porém, parecia não conseguir acertar bem com aquela. O arco era demasiado estreito e alto, a chapa rugosa e as saliências demasiado grandes.

 

Está quase bom disse ele, depois de a martelar por mais um frenético minuto.

 

Bom para quê? perguntei.

 

Ele voltou a atirar descuidadamente a ferradura para o interior da fornalha, depois retirou o seu avental com borrões de fogo quando Galaad entrou com Gwydre. Artur contou a Gwydre as novidades sobre a aguardada morte de Mordred, depois sobre a traição de Meurig, e terminou com uma pergunta simples.

 

Pretendes ser o rei da Dumnónia, Gwydre?

 

Gwydre pareceu surpreendido. Era um bonito homem, mas jovem, muito jovem. Creio que não era particularmente ambicioso, apesar de a sua mãe o ser por ele. Era parecido com Artur, com um rosto comprido e ossudo, embora fosse marcado por uma expressão vigilante, como se esperasse, a todo o momento, que o destino lhe pregasse uma partida. Era magro, mas eu praticara com ele esgrima suficiente para saber que o seu corpo ilusoriamente frágil tinha uma força vigorosa.

 

Tenho uma razão para ascender ao trono respondeu, cautelosamente.

 

Porque o teu avô se deitou com a minha mãe disse Artur, irritado, é essa a tua razão, Gwydre, mais nenhuma. O que pretendo saber é se queres, de facto, ser rei.

 

Gwydre olhou-me de relance em busca de auxílio, mas não o acudi, e voltou a olhar para seu pai.

 

Creio bem que sim.

 

Porquê?

 

Gwydre hesitou de novo, e creio que uma imensidão de razões lhe vieram à cabeça, mas, por fim, pareceu desafiador.

 

Porque nasci para sê-lo. Sou tanto herdeiro de Uther como Mordred.

 

Calculas que nasceste para sê-lo, ha? perguntou Artur, de forma sarcástica. Inclinou-se e comprimiu o fole, fazendo com que a fornalha troasse e lançasse fagulhas de encontro à cobertura de tijolo. Todos os homens que estão neste aposento são filhos de reis, à excepção de ti, Gwydre afirmou Artur, furiosamente, e dizes que nasceste para sê-lo?

 

Nesse caso, sede-lo vós, meu pai afirmou Gwydre, e então também eu serei filho de um rei.

 

Bem visto afirmei.

 

Artur lançou-me um olhar irado, depois retirou com um puxão um trapo de uma pilha colocada junto à sua bigorna e assoou-se a ele. Atirou o trapo para a fornalha. Todos nós nos assoávamos comprimindo, simplesmente, as narinas entre o indicador e o polegar, mas ele sempre fora minucioso.

 

Vamos admitir, Gwydre disse ele, que pertences a uma geração de reis. Que és neto de Uther e, por isso, tens razões para ascender ao trono da Dumnónia. Também eu tenho esse direito, como se reconhece, mas escolhi não o exercer. Estou demasiado velho. Mas por que haviam homens como Derfel e Galaad de lutar para te colocar no trono da Dumnónia? Diz-me.

 

Porque serei um bom rei afirmou Gwydre corando, depois olhou para mim. E Morwenna será uma boa rainha acrescentou.

 

Todo o homem que alguma vez foi rei afirmou que queria ser um bom rei resmungou Artur, e a maior parte revelou-se mau governante. Porque havias tu de ser diferente?

 

Dizei-mo, meu pai pediu Gwydre.

 

Sou eu quem to pergunta!

 

Mas se um pai não conhece o carácter de um filho ripostou Gwydre, quem conhecerá?

 

Artur dirigiu-se à porta da oficina, abriu-a e fitou o pátio do estábulo. Ali nada mexia, à excepção da habitual matilha de cães, por isso voltou para trás.

 

És um homem decente, filho disse ele, com ressentimento, um homem decente. Tenho orgulho em ti, mas julgas o mundo demasiado bem. Lá fora existe o mal, o verdadeiro mal, e tu não lhe dás valor.

 

Vós mesmo tende-lo feito perguntou Gwydre, quando éreis da minha idade?

 

Artur confirmou a pertinência da pergunta com um breve sorriso.

 

Quando eu tinha a tua idade afirmou, acreditava que conseguiria mudar o mundo. Acreditava que tudo o que este mundo precisava era de honestidade e de bondade. Acreditava que se tratasse bem as gentes, se lhes concedesse paz e lhes oferecesse justiça, elas responderiam com gratidão. Julguei que conseguiria suprimir o mal com o bem fez uma pausa. Creio que julguei as pessoas como cães continuou ele, pesarosamente, e que se lhes concedesse bastante afecto, então seriam dóceis. Mas elas não são cães, Gwydre, são lobos. Um rei tem de governar mil ambições, e todas elas pertencem a velhacos. Sentir-te-ás lisonjeado, e nas tuas costas, troçado. Os homens jurar-te-ão lealdade eterna num instante e conjurarão a tua morte no seguinte. E, caso sobrevivas às suas conspirações, um dia terás a barba grisalha como eu e reflectirás sobre a tua vida passada, e aperceber-te-ás de que não alcançaste nada. Nada. Os bebés que admiraste nos braços das suas mães crescerão e tornar-se-ão assassinos, a justiça que fizeste cumprir estará à venda, as pessoas que protegeste estarão ainda zangadas, e o inimigo que derrotaste ainda ameaçará as tuas fronteiras. À medida que fora falando a sua ira aumentara, mas neste instante aplacou a ira com um sorriso. É isto o que pretendes?

 

Gwydre devolveu o olhar fixo de seu pai. Por instantes, julguei que ele hesitaria, ou que talvez argumentasse com o pai, mas, em vez disso, deu a Artur uma resposta apropriada.

 

O que eu pretendo, meu pai afirmou, é tratar bem as pessoas, conceder-lhes paz e justiça.

 

Artur sorriu ao ouvir as suas próprias palavras.

 

Então, talvez o melhor seja tentarmos fazer de ti nosso rei, Gwydre. Mas como? Regressou à fornalha. Não podemos fazer os lanceiros passarem por Gwent, Meurig impedir-nos-ia de o fazer, contudo, sem lanceiros, não conseguiremos apoderar-nos do trono.

 

Barcos afirmou Gwydre.

 

Barcos? perguntou Artur.

 

Deverá haver duas frotas de barcos de pesca na nossa costa disse Gwydre, e cada uma poderá transportar dez ou uma dúzia de homens.

 

Mas não cavalos afirmou Galaad, duvido que consigam transportar cavalos.

 

Então, teremos de combater sem cavalos concluiu Gwydre.

 

Podemos nem sequer precisar de lutar aventou Artur. Se chegarmos primeiro à Dumnónia, e se Sagramor se juntar a nós, julgo que o jovem Meurig hesitará. E se Oengus mac Airem enviar para leste um grupo de guerra que passe por Gwent, isso assustará Meurig ainda mais. Provavelmente poderemos gelar a alma de Meurig se parecermos suficientemente ameaçadores.

 

Por que razão Oengus nos ajudaria a combater contra a sua própria filha? inquiri.

 

Porque ele não se importa com ela respondeu Artur. E nós não lutamos contra a sua filha, Derfel, mas contra Sansum. Argante pode ficar na Dumnónia, mas não pode ser rainha, não se Mordred morrer voltou a espirrar. E julgo que devias ir para a Dumnónia mais cedo, Derfel acrescentou.

 

Por que razão, Senhor?

 

Para desmascarar o Lorde Rato, é essa a razão. Ele anda a maquinar alguma coisa e precisa de um gato que lhe dê uma lição, e tu tens garras aguçadas. Além disso, podes exibir o estandarte de Gwydre. Eu não posso ir, porque seria uma provocação demasiado grande a Meurig, mas tu podes atravessar o Severn de barco sem levantar suspeitas, e quando chegarem as notícias da morte de Mordred, proclamas o nome de Gwydre em Caer Cadarn e garantes que nem Sansum nem Argante cheguem a Gwent. Põe-os a ambos sob escolta e diz-lhes que é para sua própria protecção.

 

Eu vou precisar de homens adverti-o.

 

Leva os que conseguires transportar e, depois, utiliza os homens de Issa afirmou Artur, revigorado com a necessidade de tomar decisões. Sagramor fornecer-te-á tropas acrescentou, e assim que eu ouvir anunciada a morte de Mordred, levarei Gwydre e todos os meus lanceiros. Se ainda estiver vivo, claro afirmou, voltando a espirrar.

 

Estareis vivo disse Galaad, de forma antipática.

 

Na próxima semana. Artur levantou os olhos vermelhos para mim, parte na próxima semana, Derfel.

 

Sim, Senhor.

 

Inclinou-se para atirar outra mão-cheia de carvão para o interior da fornalha incandescente.

 

Os Deuses sabem que eu nunca quis o trono afirmou, mas, de qualquer modo, gastei a minha vida a lutar por ele. Fungou. Vamos começar a arranjar barcos, Derfel, e tu reúnes lanceiros em Caer Cadarn. Se parecermos suficientemente fortes, Meurig pensará duas vezes.

 

E se não o fizer? perguntei.

 

Nesse caso, perdemos respondeu Artur, perdemos. A menos que nos defrontemos numa guerra, e não estou certo de o querer.

 

Nunca o quereis, Senhor disse-lhe eu, mas conseguis vencê-los sempre.

 

Até agora disse Artur, sombriamente. Até agora. Agarrou nas suas tenazes para retirar a ferradura do fogo, e eu fui à procura de um barco para arrebatar um reino.

 

Na manhã seguinte, durante a maré vazante, e com um vento que soprava de oeste e encapelava o rio Usk com pequenas e picadas ondas, embarquei no barco do meu cunhado. Balig era pescador, e desposara Linna, a minha meia-irmã, tendo achado divertido descobrir que era parente de um Lorde da Dumnónia. Aproveitou-se também do inesperado relacionamento, todavia merecia a boa-ventura, porque era um homem capaz e decente. Agora, ordenava a seis dos meus lanceiros que pegassem nos longos remos do barco e aos outros quatro que permanecessem no fundo do porão. Em Isca, eu tinha apenas doze dos meus lanceiros, estando os restantes com Issa, mas considerei que estes dez homens me levariam são e salvo até Dun Carie. Balig convidou-me a sentar num baú de madeira junto ao leme.

 

E vomitai pela borda fora, Senhor acrescentou ele, alegremente.

 

Não é o que sempre faço?

 

Não. Da última vez encheste os embornais com o teu pequeno-almoço. Foi um desperdício de peixe! Pára com isso, seu sapo comedor de vermes gritou ele a um dos da sua tripulação, um escravo saxão feito cativo em Mynydd Baddon, mas que agora tinha uma mulher britânica, dois filhos e mantinha uma amizade ruidosa com Balig. Ele conhece os seus batéis, lá isso garanto eu disse Balig a respeito do saxão, depois inclinou-se para a amarra da popa, que ainda segurava o barco à margem. Estava prestes a soltar a corda quando se ouviu um grito, e ambos olhámos para cima, vendo Taliesin a apressar-se na nossa direcção, descendo do monte relvado do anfiteatro de Isca. Balig manteve firme a amarra. Quereis que espere, Lorde?

 

Sim respondi, levantando-me ao mesmo tempo que Taliesin se aproximava.

 

Partirei convosco gritou Taliesin. Esperai! Ele trazia apenas uma pequena sacola de cabedal e uma harpa dourada. Esperai! voltou a gritar, depois, com um rápido e forte puxão, levantou as saias da túnica branca, tirou os sapatos e entrou como um chumaço na glutinosa lama da margem do Usk.

 

Não podemos esperar eternamente resmungou Balig, enquanto o bardo se debatia para passar pela lama espessa e mole. A maré está a baixar rapidamente.

 

Um momento, um momento gritou Taliesin. Atirou para bordo a sua harpa, a sacola e os sapatos, levantou ainda mais as saias e avançou com dificuldade dentro da água. Balig inclinou-se, agarrou com força na mão do bardo e puxou-o sem cerimónias para dentro do batel. Taliesin ficou estatelado no convés, procurou os sapatos, o saco e a harpa, depois torceu a água das saias da sua túnica. Não vos importais que venha, Senhor? perguntou-me com o fio de prata de esguelha no seu cabelo preto.

 

Por que havia de me importar?

 

Não que tenha intenções de vos acompanhar. Desejo apenas ir para a Dumnónia. Endireitou o fio de prata, depois franziu as sobrancelhas aos meus lanceiros que o observavam com largos sorrisos. Estes homens sabem remar?

 

Claro que não respondeu Balig por mim. São lanceiros, de nada servem quando se trata de fazer algo de útil. Todos ao mesmo tempo, seus cretinos! Prontos? Empurrem para diante! Remos para baixo! Puxem! Ele abanou a cabeça, simulando desespero. É como ensinar porcos a dançar.

 

Eram cerca de nove milhas de Isca ao alto mar, nove milhas que percorremos rapidamente porque o nosso barco era levado pela maré vazante e os redemoinhos da corrente do rio. O Usk corria por entre as margens lamacentas que subiam até aos terrenos de pousio, aos bosques cujas árvores não tinham agora folhas, e aos vastos pântanos. Armadilhas para peixes em vime haviam sido colocadas nas margens onde garças-reais e gaivotas debicavam os salmões que saltavam presos à margem pela maré-baixa. Fuselos piavam piedosamente, ao mesmo tempo que narcejas subiam às árvores e pousavam nos seus ninhos. Quase não precisávamos dos remos, porque tanto a maré como a corrente nos transportavam com rapidez, e assim que alcançámos a vastidão de água onde o rio mergulha no Severn, Balig e a sua tripulação içaram uma vela castanha esfarrapada que, ao apanhar o vento oeste, fez com que o barco avançasse depressa.

 

Recolhei esses remos agora ordenou ele aos meus homens, depois agarrou com firmeza o grande remo do leme e levantou-se, feliz, enquanto o pequeno barco afundava a sua proa embotada nas primeiras grandes vagas.

 

Hoje o mar está agitado, Senhor gritou, satisfeito. Vazem essa água!

 

gritou ele aos meus homens. As substâncias húmidas pertencem ao lado de fora do barco, não ao interior. Balig fez um largo sorriso diante do meu incipiente enjoo. Três horas, Senhor, é tudo, e ter-vos-emos na costa.

 

Não gostais de barcos? perguntou-me Taliesin.

 

Odeio-os.

 

Uma oração a Manawydan deverá prevenir o enjoo disse ele, calmamente. Puxara uma pilha de redes para junto do meu baú e sentava-se agora em cima delas. Ele estava absolutamente imperturbável com o violento movimento do barco; de facto, isso parecia diverti-lo.

 

A noite passada dormi no anfiteatro disse-me ele. Agradou-me, prosseguiu quando viu que eu estava demasiado enjoado para responder. Os assentos em taludes fazem lembrar uma torre de sonho.

 

Lancei-lhe um olhar de soslaio, sentindo a minha má disposição de algum modo atenuada por aquelas duas últimas palavras, por me recordarem Merlim, que em tempos possuíra uma torre de sonho no cume do Tor de Ynys Wydryn. A torre de sonho de Merlim fora uma estrutura oca em madeira, que ele afirmava enaltecer as mensagens dos Deuses, e percebi de que modo o anfiteatro romano de Isca, com os seus assentos em colinas elevadas colocados em volta da arena de areia alisada servia o mesmo propósito.

 

Consegues prever o futuro? consegui perguntar-lhe.

 

Algumas coisas admitiu ele, mas esta noite também vi Merlim nos meus sonhos.

 

A menção daquele nome afastou as últimas sensações de enjoo que tinha no estômago.

 

Falaste com Merlim? perguntei-lhe.

 

Foi ele que me falou corrigiu-me Taliesin, mas não conseguiu ouvir-me.

 

O que disse ele?

 

Mais do que vos posso contar, Senhor, e nada que desejais ouvir.

 

O quê? perguntei.

 

Ele agarrou-se ao pilar da popa quando o barco tombou, ao descer uma enorme vaga. A água salpicou dos arções e borrifou os feixes que seguravam as nossas armaduras. Taliesin certificou-se de que a sua harpa estava bem protegida por baixo da sua túnica, depois tocou no fio de prata que circundava a sua cabeça com tonsura para se certificar de que ainda estava no devido lugar.

 

Creio, Senhor, que viajais para o meio do perigo disse ele, calmamente.

 

É essa uma mensagem de Merlim perguntei-lhe, tocando no ferro do copo da Hywelbane, ou uma das tuas visões?

 

Apenas uma visão confessou ele, e tal como certa ocasião vos disse, Senhor, melhor é ver o presente com clareza do que tentar ver o futuro e discernir uma simples forma indefinida nas suas visões. Fez uma pausa, considerando, sem dúvida, com cautela as palavras que iria proferir. Creio que não ouvistes notícias definitivas sobre a morte de Mordred?

 

Não.

 

Se a minha visão estiver correcta disse ele, então, o vosso rei não está de todo doente, tendo já recuperado. Posso ter-me enganado; na verdade, rezo para que esteja errado, mas tivestes alguns presságios?

 

Sobre a morte de Mordred? perguntei.

 

Sobre o vosso próprio futuro, Senhor afirmou.

 

Reflecti por instantes. Houvera o pequeno presságio da rede de pesca do salmão, mas atribui-o mais aos meus antigos receios supersticiosos do que aos Deuses. Mais preocupante era o desaparecimento da pequena ágata azul-esverdeada do anel que Aelle dera a Ceinwyn, e o facto de uma das minhas velhas capas ter sido roubada. Contudo, apesar de os dois acontecimentos poderem ser interpretados como maus presságios, podiam bem ser meros contratempos. Era difícil de dizer, e nenhuma das perdas parecia suficientemente importante para as mencionar a Taliesin.

 

Nada me preocupou, ultimamente disse-lhe, então.

 

Óptimo afirmou, balouçando com o movimento do barco.

 

O seu longo cabelo preto esvoaçava ao vento, que enfunava as velas para que a nossa navegação se fizesse em boas condições, tremulando as suas extremidades. O vento também roçava as cristas brancas das ondas e arrastava os salpicos para bordo, apesar de eu achar que mais água vinha para bordo através das costuras abertas do navio do que pelo talabardão. Os meus lanceiros escoavam, energicamente, a água do barco.

 

Mas creio que Mordred ainda vive prosseguiu Taliesin, ignorando a frenética actividade no centro do barco, e que as notícias sobre a sua morte iminente é um ardil. Contudo, não vou jurar. Por vezes enganamo-nos e tomamos os nossos temores por profecias. Porém, Senhor, nem Merlim nem nenhuma das suas palavras nos meus sonhos foi imaginação minha.

 

Voltei a tocar no copo da Hywelbane. Sempre pensara que qualquer menção a Merlim seria apaziguadora, mas as calmas palavras de Taliesin gelavam.

 

Sonhei que Merlim se encontrava num denso bosque continuou Taliesin na sua voz meticulosa, e que não conseguia sair dele; na verdade, sempre que um caminho se abria à sua frente, crescia uma árvore e movia-se como se fosse uma enorme fera a deslocar-se para lhe barrar a passagem. Disse-me o sonho que Merlim está em apuros. Falei com ele no sonho, mas ele não conseguia ouvir-me. Creio que o que isto significa é que ninguém conseguirá chegar até ele. Se enviássemos homens à sua procura, não o encontrariam e talvez até morressem. Mas ele quer ajuda, isso eu sei, porque mo transmitiu no sonho.

 

Onde é o bosque? perguntei.

 

O bardo voltou os seus olhos negros e profundos para mim.

 

Pode não ser bosque nenhum, Senhor. Os sonhos são como as canções. A sua função não é dar uma imagem exacta do mundo, mas uma impressão dele. O bosque, creio, diz-me que Merlim está feito prisioneiro.

 

De Nimue afirmei, porque não me ocorria outra pessoa que se atrevesse a desafiar o druida.

 

Taliesin assentiu.

 

Penso que ela é o seu carcereiro. Ela quer o seu poder, e quando o possuir usá-lo-á para impor o seu sonho na Bretanha.

 

Eu achava aquilo difícil, mesmo tratando-se de Merlim e de Nimue. Durante anos vivêramos sem eles e, como resultado disso, as fronteiras do nosso mundo haviam adquirido uma determinada rigidez. Estávamos ligados pela existência de Mordred, pelas ambições de Meurig e pelas esperanças de Artur, não pelas incertezas nublosas e em torvelinho dos sonhos de Merlim.

 

Mas o sonho de Nimue objectei, é o mesmo de Merlim.

 

Não, Senhor disse Taliesin com delicadeza, não é.

 

Ela quer o mesmo que ele insisti. Restabelecer os Deuses!

 

No entanto disse Taliesin, Merlim entregou Excalibur a Artur. E não vedes que ele deu parte do seu poder a Artur com essa entrega? Há muito que eu meditava sobre essa entrega, porque Merlim nunca ma explicara, porém creio entendê-lo agora. Merlim sabia que se os Deuses falhassem, então Artur poderia ser bem sucedido. E Artur foi bem sucedido, mas a sua vitória em Mynydd Baddon não foi total. Conserva a ilha da Bretanha em mãos britânicas, mas não derrota os Cristãos, e isso é uma derrota para os antigos Deuses. Senhor, Nimue nunca aceitará essa meia vitória. Para Nimue, ou vencem os Deuses ou não existe vitória alguma. Ela não se importa com os horrores que assolam a Bretanha, desde que os Deuses regressem e destruam os seus inimigos. E, para o conseguir, Senhor, ela precisa da Excalibur. Ela quer todos os fragmentos de poder, para que quando voltar a acender as fogueiras os Deuses não tenham outra alternativa senão responder.

 

Nessa altura, compreendi.

 

E com a Excalibur afirmei, ela irá querer Gwydre.

 

Assim é, Senhor concordou Taliesin. O filho de um governante é uma fonte de poder, e Artur, quer ele queira quer não, ainda é o mais famoso líder da Bretanha. Se alguma vez tivesse escolhido ser rei, Senhor, ter-lhe-iam chamado Majestade. Por isso, sim, ela quer Gwydre.

 

Olhei fixamente para o perfil de Taliesin. Na verdade, parecia apreciar o aterrador movimento do barco.

 

Por que razão me contas isto? perguntei-lhe. A minha pergunta confundiu-o.

 

Por que motivo não havia de vos contar?

 

Porque ao contares-me respondi, avisas-me para eu proteger Gwydre, e se eu o fizer, então evito o regresso dos Deuses. E, se não estou enganado, gostarias de ver esses Deuses regressarem.

 

Gostaria reconheceu ele, mas Merlim pediu-me para vos contar.

 

Mas por que razão havia Merlim de querer que eu proteja Gwydre? perguntei. Ele quer que os Deuses voltem!

 

Esqueceis-vos, Senhor, que Merlim previu dois caminhos. Um, o caminho dos Deuses, o outro, o caminho do homem, e Artur é este segundo caminho. Se Artur for destruído, ficaremos apenas com os Deuses, e creio que Merlim sabe que os Deuses não mais nos escutarão. Lembrai-vos do que aconteceu a Gawain.

 

Morreu afirmei, tristemente, mas ele levou o seu estandarte para o campo de batalha.

 

Morreu corrigiu-me Taliesin, e foi então colocado no Caldeirão de Clyddno Eiddyn. Era suposto ele ter ressuscitado, mas isso não aconteceu. Não voltou a respirar e, sem dúvida, que isso significa que a antiga magia desapareceu. Não está extinta, mas suspeito que causará grande infortúnio antes de se extinguir. Todavia, creio que, para nossa ventura, Merlim nos diz para olharmos para o homem, e não para os Deuses.

 

Fechei os olhos quando uma enorme vaga se quebrou, alva, na elevada proa do barco.

 

Estás a dizer afirmei, quando a espuma desapareceu, que Merlim falhou?

 

Creio que Merlim soube que falhara quando o Caldeirão não ressuscitou Gawain. Por que outra razão levou ele o seu corpo para Mynydd Baddon? Se Merlim tivesse pensado, por um único instante, que podia usar o corpo de Gawain para invocar os Deuses, nunca teria dispersado a sua magia pelo campo de batalha.

 

Ainda assim, ele levou as cinzas a Nimue afirmei.

 

É verdade admitiu Taliesin, mas isso porque prometera ajudá-la, e até mesmo as cinzas de Gawain reteriam algum do poder do cadáver. Merlim pode saber que falhou, mas como qualquer homem, ele tem relutância em abandonar o seu sonho e talvez acreditasse que a energia de Nimue pudesse revelar-se verdadeira. Todavia, o que ele não previu, Senhor, foi o abuso que ela exerceria sobre ele.

 

Punindo-o afirmei, amargamente. Taliesin assentiu.

 

Ela despreza-o, porque ele falhou e julga que ele esconde alguns conhecimentos dela. Por isso, mesmo agora, Senhor, neste preciso instante, ela está a tentar que Merlim lhe revele os seus segredos. Ela sabe muito, mas não sabe tudo. Porém, se o meu sonho for verdadeiro, ela está a sugar-lhe os seus conhecimentos. Pode levar meses ou anos a aprender tudo o que precisa, mas ela aprenderá, Senhor, e quando o souber, usará o poder. E vós, creio, sereis o primeiro a sabê-lo. Agarrou nas redes quando o barco balouçou da popa à proa de modo alarmante. Merlim ordenou-me que vos avisasse, Senhor, e assim fiz, mas de quê? Não sei sorriu como que pedindo-me desculpa.

 

Desta viagem à Dumnónia? perguntei. Taliesin abanou a cabeça.

 

Creio que correreis perigo bem maior do que todo aquele que tenha sido planeado pelos vossos inimigos na Dumnónia. Na verdade, Senhor, é tamanho o vosso perigo, que Merlim chorava. Ele disse-me também que desejava morrer. Taliesin levantou os olhos fitando a vela. E, Senhor, se eu soubesse onde ele se encontra, e tivesse poder para tal, enviar-vos-ia até ele para que o matásseis. Contudo, em vez disso, temos de aguardar que Nimue se revele. Apertei na minha mão o copo frio da Hywelbane.

 

Então, o que me aconselhas a fazer? perguntei-lhe.

 

Não é a mim que cabe aconselhar os Lordes afirmou Taliesin. Virou-se para mim e sorriu-me, e, subitamente, vi que os seus olhos profundos eram frios. Para mim não é importante, Senhor, que vivais ou morrais, porque eu sou o cantor e vós sois a minha canção; mas por enquanto, admito-o, sigo-vos para descobrir a melodia e, se for necessário fazê-lo, modificá-la. Merlim pediu-me isso, e fá-lo-ei por ele. Todavia, creio que ele vos salva de um perigo apenas para vos expor a um outro ainda maior.

 

O que dizes não faz sentido afirmei, asperamente.

 

Faz, Senhor, mas nenhum de nós compreende ainda o seu significado. Estou certo que isso virá a tornar-se claro.

 

Ele pareceu tão calmo, mas os meus receios eram tão cinzentos como as nuvens que pairavam por cima de nós e tão tumultuosos como o mar que sulcávamos. Toquei na tranquilizadora haste da Hywelbane, rezei a Manawydan, e disse para comigo que a advertência de Taliesin era apenas um sonho e nada mais, e que os sonhos não conseguiam matar.

 

Mas conseguem, e matam. E algures na Bretanha, num sítio sinistro, Nimue tinha o Caldeirão de Clyddno Eiddyn e usava-o para desordenar os nossos sonhos e torná-los pesadelos.

 

Balig deixou-nos numa praia, algures na costa dumnoniana. Taliesin despediu-se de mim alegremente, depois, com as suas compridas pernas, caminhou a passos largos por entre as dunas.

 

Sabes onde vais? gritei-lhe.

 

Saberei quando chegar, Senhor respondeu-me, depois desapareceu.

 

Colocámos as nossas armaduras. Eu não trouxera o meu melhor equipamento, apenas uma velha mas útil armadura e um elmo gasto. Lancei o meu escudo para trás das costas, apanhei a minha lança e segui Taliesin para a península.

 

Sabeis onde estamos, Senhor? perguntou-me Eachern.

 

Bem próximo. respondi. Com a chuva a cair um pouco mais adiante consegui vislumbrar uma cordilheira de colinas. Vamos para sul daquelas colinas e chegaremos a Dun Carie.

 

Quereis que desfralde a bandeira, Senhor? perguntou-me Eachern. Além do meu estandarte das estrelas trazíamos o estandarte de Gwydre, que mostrava o urso de Artur entrelaçado com o dragão da Dumnónia, mas decidi não o transportar desfraldado. Um estandarte ao vento é arriscado e, além disso, onze lanceiros marchando sob uma enorme e garrida bandeira tinha uma aparência mais ridícula do que imponente. Por isso decidi aguardar até os homens de Issa reforçarem o meu pequeno grupo antes de desfraldar o estandarte no seu comprido mastro.

 

Encontrámos um caminho nas dunas e seguimos por ele, entrando num bosque de pequenos espinheiros e aveleiras até chegarmos a um minúsculo povoamento de seis choupanas. As gentes fugiram ao ver-nos, deixando apenas uma mulher idosa, demasiado curvada e manca para se movimentar com rapidez. Ela foi-se baixando e cuspiu, desafiadoramente, quando nos aproximámos.

 

Vocês não conseguirão levar nada daqui disse ela com uma voz rouca, porque nada mais temos do que estrumeiras. Muitas estrumeiras e fome, Senhores, é tudo o que conseguireis encontrar aqui.

 

Baixei-me ao seu lado.

 

Nada pretendemos de vós respondi-lhe, para além de notícias.

 

Notícias? Aquela palavra parecia ser-lhe estranha.

 

Sabeis quem é o vosso rei? perguntei-lhe com cortesia.

 

Uther, Senhor respondeu ela. Um homem grande, isso é, Senhor. Como um Deus!

 

Era evidente que não obteríamos quaisquer notícias daquela povoação, ou, pelo menos, nenhuma que fizesse sentido, pelo que prosseguimos, parando apenas para comer algum pão e carne seca que trazíamos nas nossas bolsas. Eu estava no meu próprio país, mas, curiosamente, sentia-me como se caminhasse em solo inimigo, e censurei-me por dar demasiada importância às vagas advertências de Taliesin. Ainda assim, prosseguimos pelos caminhos arborizados e escondidos e, ao cair da noite, levei a minha pequena companhia a atravessar um bosque de faias e a subir para um terreno mais elevado, de onde podíamos avistar quaisquer outros lanceiros. Não vimos nenhum. No entanto, bem para sul, uma ténua réstia do pôr-do-Sol atravessou um aglomerado de nuvens, tocando depois ao de leve o verde e luzidio Tor de Ynys Wydryn.

 

Não acendemos nenhuma fogueira e dormimos sob as faias, acordando gelados e rígidos pela manhã. Caminhámos para leste, permanecendo sob as árvores sem folhas, enquanto por baixo de nós, nos campos cobertos por uma densa neblina, homens abriam rígidos sulcos com charruas, mulheres semeavam os cereais e crianças de tenra idade corriam, gritando, para assustarem e afastarem os pássaros das preciosas sementeiras.

 

Eu costumava fazer aquilo na Irlanda. disse Eachern. Passei metade da minha infância a afugentar os pássaros.

 

Pregar um corvo à charrua é quanto basta sugeriu um dos outros lanceiros.

 

Pregar corvos em todas as árvores que estiverem próximo do terreno sugeriu outro.

 

Isso não os afasta opinou um terceiro homem, mas faz-nos sentir melhor.

 

Seguíamos um caminho estreito por entre as compridas áleas formadas pelas árvores. As folhas ainda não se haviam desenrolado para esconderem os ninhos, por isso pegas e gaios afadigavam-se a roubar os ovos, piando ruidosamente como protesto quando nos aproximámos.

 

As gentes saberão que estamos aqui, Senhor disse Eachern, podem não nos ver, mas saberão. Ouvirão os gaios.

 

Não importa respondi-lhe.

 

Nem eu sabia bem por que razão tomava tamanhas cautelas para nos mantermos escondidos, a não ser por sermos muito poucos e, tal como a maior parte dos guerreiros, por me preocupar com a segurança de um grande número de pessoas. Percebi, então, que me sentiria bem mais confortável quando os meus restantes homens estivessem connosco. Até lá esconder-nos-íamos o melhor que conseguíssemos, apesar de a meio da manhã a nossa estrada nos conduzir para fora do bosque e de nos vermos nos campos abertos que nos levavam ao Caminho Valado. Lebres machos dançavam nos prados e cotovias cantavam sobre as nossas cabeças. Não vimos ninguém, apesar de, sem dúvida, os aldeões nos terem visto, e de, sem dúvida também, as notícias da nossa passagem serem rapidamente sussurradas pelos campos. Homens armados sempre foram motivo de alarme, por isso fiz com que alguns dos meus homens colocassem os seus escudos à frente para que a sua insígnia tranquilizasse as gentes da região e lhes fizesse ver que éramos amistosos. Só depois de termos atravessado a estrada romana e de estarmos próximo de Dun Carie é que vimos outro ser humano. Era uma mulher que, devido à distância a que estávamos, não conseguiu ver as estrelas dos nossos escudos, fugindo para a mata por detrás da vila para se esconder por entre as árvores.

 

As gentes estão nervosas disse eu a Eachern.

 

Constou-lhes que Mordred estava a morrer disse ele, cuspindo, e temem o que possa acontecer a seguir, embora devessem estar contentes por o estupor morrer.

 

Quando Mordred era criança, Eachern fora um dos seus guardas, e essa experiência fizera crescer no lanceiro irlandês um profundo ódio pelo rei. Eu gostava de Eachern. Não era um homem esperto, mas era persistente, leal e combativo no campo de batalha.

 

Eles crêem que haverá guerra, Senhor afirmou.

 

Passámos com dificuldade o ribeiro situado abaixo de Dun Carie, contornámos as casas e chegámos ao íngreme caminho que nos levava à paliçada que circundava a pequena colina. Tudo estava calmo. Nem os cães se encontravam nas ruas da vila e, mais preocupante ainda, nenhum lanceiro guardava a paliçada.

 

Issa não está aqui afirmei, tocando no copo da Hywelbane. A ausência de Issa, por si só, não era invulgar, porque passava muito do seu tempo noutras partes da Dumnónia, mas tive dúvidas que tivesse deixado Dun Carie sem guardas. Lancei um olhar rápido pela vila, e vi que todas as portas estavam fechadas. Não havia fumo a sair dos telhados, nem da oficina do ferreiro.

 

Não há cães na colina disse Eachern, ominoso.

 

Usualmente havia uma matilha de cães em torno do palácio de Dun Carie e, por aquela altura, já alguns deviam estar a descer a colina a correr para virem receber-nos. Contudo, ao invés, víamos apenas corvos barulhentos no telhado do palácio e ainda outros piando na paliçada. Um pássaro sobrevoou os domínios com um longo e vermelho bocado de qualquer coisa rugosa no bico.

 

Nenhum de nós disse nada enquanto subíamos a colina. O silêncio fora o primeiro indicador do horror, depois os corvos, e a meio da subida sentimos o cheiro amargo e doce da morte que se aloja atrás da garganta. E esse cheiro, mais forte do que o silêncio e mais eloquente do que os corvos, avisou-nos do que nos aguardava para lá do portão aberto. Era a morte que nos esperava, nada mais do que a morte. Dun Carie tornara-se um local de morte. Os corpos de homens e mulheres estavam espalhados por todo o lado e apinhados no interior do palácio. Quarenta e seis corpos no total, e nem um conservava a sua cabeça. O chão estava ensopado em sangue. O palácio fora saqueado, todos os cestos e baús haviam sido virados, e os estábulos estavam vazios. Até mesmo os cães haviam sido mortos, embora esses, pelo menos, conservassem as cabeças. As únicas coisas vivas eram os gatos e os corvos, e todos fugiam de nós.

 

Caminhei pelo horror como se percorresse um labirinto. Só após alguns instantes percebi que havia apenas dez homens jovens entre os mortos. Deviam ser os guardas deixados por Issa, enquanto os restantes cadáveres pertenciam as famílias dos seus homens. Pyrlig encontrava-se entre eles. Pobre Pyrlig, que ficara em Dun Carie por saber que não conseguia competir com Taliesin, e agora estava morto com a sua túnica branca ensopada em sangue e as suas mãos de harpista com lenhos profundos por tentar defender-se dos golpes de espada. Issa não se encontrava ali, nem Scarach, a sua esposa, já que não havia mulheres jovens nem crianças naquele ossuário. Umas e outras deveriam ter sido levadas, para servirem de distracção, no caso das primeiras ou para serem feitas escravas, no das segundas, enquanto os anciãos, os bebés e os guardas haviam sido massacrados e as suas cabeças levadas como troféus. A carnificina fora recente, porque nenhum dos corpos começara ainda a inchar ou a apodrecer. Enxames de moscas cobriam o sangue, mas por enquanto não havia larvas de mosca a colearem nas feridas abertas pelas lanças e pelas espadas.

 

Vi que o portão fora arrancado dos gonzos, mas não havia sinais de luta e suspeitei que os autores daquela carnificina haviam entrado nestes domínios como convidados.

 

Quem fez isto, Senhor? perguntou-me um dos meus lanceiros.

 

Mordred afirmei com tristeza.

 

Mas ele está morto! Ou a morrer!

 

Ele quer que julguemos isso respondi, e não conseguia encontrar outra explicação.

 

Taliesin avisara-me, e agora eu temia que o bardo tivesse razão. Mordred não estava, de modo algum, a morrer, mas regressara e soltara o seu grupo de guerra no seu próprio país. O rumor sobre a sua morte deveria ter sido conjurado para que as gentes se sentissem seguras, e entretanto ele planeara o seu regresso e a morte de todos os lanceiros que pudessem fazer-lhe frente. Mordred libertara-se do seu freio, e isso significava, sem dúvida, que após esta carnificina em Dun Carie ele deveria ter rumado para leste no encalço de Sagramor, ou então para oeste ao encontro de Issa. Se Issa ainda estivesse vivo.

 

Creio que a culpa fora nossa. Depois de Mynydd Baddon, quando Artur desistira do seu poder, pensáramos que a Dumnónia seria protegida pelas lanças de homens leais a Artur e às suas crenças, e que o poder de Mordred seria quartado, por não possuir lanceiros. Nenhum de nós previra que Mynydd Baddon daria ao nosso rei um especial gosto pela guerra, nem que o seu enorme sucesso no campo de batalha atrairia lanceiros para combaterem sob o seu estandarte. Agora, Mordred tinha lanceiros, e as lanças conferiam poder, e, nesse momento, eu via o primeiro exercício desse novo poder. Mordred (purgava o país das gentes que haviam sido destacadas para restringir o seu poder e que podiam apoiar a subida ao trono de Gwydre.

 

O que fazemos, Senhor? perguntou-me Eachern.

 

Vamos para casa, Eachern respondi, vamos para casa. E entendia eu por ”casa”, a Silúria. Nada havia ali que pudéssemos fazer. Éramos apenas onze e tive dúvidas que conseguíssemos alcançar Sagramor, cujas forças se encontravam bem distantes para leste. Além disso, Sagramor não precisava do nosso auxílio para o protegermos. A pequena guarnição de Dun Carie podia ter sido empresa fácil para Mordred, mas ele descobriria, sem dúvida, que cortar a cabeça do númida era tarefa bem mais difícil. Nem podia eu ter esperança de encontrar Issa, se estivesse vivo. Deste modo, nada mais podia fazer do que voltar para casa e mergulhar numa ira frustrada. É difícil descrever essa ira. No seu âmago havia um ódio frio por Mordred, mas era um ódio impotente, que doía, porque eu sabia que não podia fazer nada para vingar rapidamente estas gentes que haviam pertencido ao meu povo. Também senti como se os tivesse decepcionado. Senti culpa, ódio, compaixão e uma dolorosa tristeza.

 

Coloquei um homem a montar guarda ao portão aberto, enquanto os restantes, arrastavam os corpos para dentro do palácio. Teria preferido queimá-los, mas não havia madeira suficiente nestes domínios, nem tínhamos tempo para fazer desabar o telhado de colmo do palácio sobre os cadáveres, por isso contentámo-nos em colocá-los decentemente alinhados; e depois orei a Mitras, para que facultasse a oportunidade de eu dar a estas gentes uma vingança condigna.

 

Melhor será revistarmos a vila disse eu a Eachern, quando terminei a oração, mas não tivemos tempo. Nesse dia, os Deuses haviam-nos abandonado.

 

O homem que estava ao portão não o vigiara convenientemente. Não posso censurá-lo. Nenhum dos que estavam no topo daquela colina estava no seu perfeito juízo, e a sentinela devia ter estado a olhar para aqueles domínios ensopados em sangue, em vez de vigiar o portão. Por isso era já demasiado tarde quando viu os cavaleiros. Ouvi-o gritar, mas quando corri para fora do palácio a sentinela já estava morta e um cavaleiro de armadura negra arrancava uma lança do seu corpo.

 

Apanhai-o! gritei, e corri em direcção ao cavaleiro, esperando que ele virasse o cavalo e se afastasse, contudo abandonou a lança e esporeou o cavalo avançando pelos domínios e, de imediato, outros cavaleiros o seguiram.

 

Reagrupar! gritei, e os nove homens que me restavam amontoaram-se à minha volta, formando um pequeno círculo de escudos, apesar de a maior parte não possuir nenhum, porque os havíamos largado enquanto enterrávamos os mortos no palácio. Alguns de nós nem tão-pouco tinham lanças. Desembainhei Hywelbane, embora sabendo que não tínhamos hipóteses, porque havia mais de vinte cavaleiros nos domínios mais ainda subiam a colina esporeando energicamente os seus cavalos. Deviam ter estado a aguardar-nos nos bosques para lá da vila, esperando talvez o regresso de Issa. Eu próprio fizera o mesmo em Benoic. Havíamos morto os francos nalgum longínquo local elevado, depois havíamos aguardado para emboscar outros mais, e agora eu caminhara para uma cilada idêntica.

 

Não reconheci nenhum dos cavaleiros, e nenhum deles trazia qualquer insígnia nos seus escudos. Alguns haviam coberto a parte exterior de cabedal dos seus escudos com pez negra, mas aqueles homens não eram Escudos Negros de Oengus mac Airem. Era um grupo de guerreiros veteranos cheio de cicatrizes, barbudos, de cabelos entrançados e ameaçadoramente confiantes. O seu chefe montava um cavalo preto e trazia um belo elmo com protecções laterais com gravações. Deu uma gargalhada quando um dos seus homens desfraldou o estandarte de Gwydre, depois virou-se e esporeou o seu cavalo na minha direcção.

 

Lorde Derfel saudou-me ele.

 

Por instantes, ignorei-o, percorrendo os domínios com o olhar com a remota esperança de descobrir alguma forma de fugirmos; mas estávamos cercados pelos cavaleiros, que, empunhando lanças e espadas, aguardavam a ordem para nos matar.

 

Quem és tu? perguntei ao homem de elmo decorado.

 

Como resposta recuou, simplesmente, as suas protecções laterais. Depois sorriu-me.

 

Não era um sorriso prazenteiro, mas também ele não era um homem prazenteiro. Eu olhava fixamente para Amhar, um dos gémeos de Artur.

 

Amhar Artur saudei-o, depois cuspi.

 

Príncipe Amhar corrigiu-me ele.

 

Tal como acontecia com o seu irmão Loholt, Amhar sempre se ressentira do seu nascimento ilegítimo, e agora devia ter decidido adoptar o título de príncipe, apesar de seu pai não ser rei. Teria sido uma apresentação patética, caso Amhar não tivesse mudado tanto desde a última vez que o vira de relance, nas encostas de Mynydd Baddon. Parecia mais velho e muito mais imponente. A sua barba era cerrada, uma cicatriz marcava-lhe o nariz e as suas protecções laterais tinham vincados uma dúzia de golpes de lança. Parecia-me que Amhar crescera nos campos de batalha da Armórica, embora a maturidade não tivesse apaziguado o seu ressentimento amargo.

 

Não me esqueci dos insultos que me dirigiste em Mynydd Baddon disse-me ele, e ansiei pelo dia em que pudesse devolver-tos. Contudo, creio que o meu irmão ficará bem mais satisfeito por te ver. Fora eu quem segurara o braço de Loholt enquanto Artur lhe decepara a mão.

 

Onde está vosso irmão? perguntei.

 

Com o nosso rei.

 

E quem é o vosso rei? perguntei. Eu sabia a resposta, mas quis confirmá-la.

 

O mesmo que o teu, Derfel disse Amhar. O meu querido primo, Mordred.

 

E para que outro sítio haviam Amhar e Loholt de ir, depois da derrota de Mynydd Baddon? Tal como tantos homens da Bretanha sem senhor, eles haviam procurado refúgio junto de Mordred, que acolhera toda a espada desesperada que procurasse o seu estandarte. E como deverá ter agradado a Mordred ter a seu lado os filhos de Artur!

 

O rei está vivo? perguntei.

 

Ele prospera! afirmou Amhar. A sua rainha enviou dinheiro a Clóvis, que preferiu aceitar o ouro a combater-nos. Sorriu e gesticulou para os seus homens. Então, aqui estamos nós, Derfel. Para acabar o que iniciámos esta manhã.

 

Tomarei a tua alma pelo que fizeste a esta gente disse-lhe eu, gesticulando com a Hywelbane para o sangue que ainda continuava escuro no pátio de Dun Carie.

 

O que irás ter, Derfel disse Amhar, inclinando-se para diante na sua sela, é o que eu, o meu irmão e o nosso primo decidirmos dar-te.

 

Olhei para ele desafiadoramente.

 

Servi a teu primo com lealdade. Amhar sorriu.

 

Mas duvido que ele volte a querer os teus préstimos.

 

Então deixarei o seu reino afirmei.

 

Não creio disse Amhar, brandamente. Julgo que o meu rei gostará de te ver uma última vez, e sei que o meu irmão está ansioso por trocar algumas palavras contigo.

 

Eu preferia partir afirmei.

 

Não, insistiu Amhar. Virás comigo. Depõe a tua espada.

 

Tens de ma tirar, Amhar.

 

Se tenho de o fazer disse ele, e não pareceu preocupado com a situação. Mas, porque havia ele de se preocupar? Eles eram em maior número do que nós, e, pelo menos, metade dos meus homens não tinha escudos nem lanças.

 

Virei-me para os meus homens.

 

Se desejais render-vos disse-lhes eu, saí do círculo. Mas eu lutarei. Dois dos meus homens desarmados deram um passo hesitante em frente, mas Eachern resmungou-lhes e eles estacaram. Acenei-lhes para que saíssem. Ide disse eu, com tristeza. Não pretendo atravessar a ponte das espadas com companheiros que o fazem contrariados.

 

Os dois homens afastaram-se, mas Amhar assentiu simplesmente para os seus cavaleiros e estes circundaram o par, serpentearam as suas espadas e mais sangue correu no cume de Dun Carie.

 

Seu cretino! disse eu, e corri para Amhar.

 

Ele, contudo, limitou-se a torcer as rédeas e a esporear o seu cavalo saindo do meu alcance, e enquanto fugia de mim os seus homens avançaram na direcção dos meus lanceiros.

 

Foi outra carnificina, mas nada pude fazer para o impedir. Eachern matou um dos homens de Amhar, mas enquanto a sua espada ainda estava presa ao ventre do homem, outro cavaleiro abateu-o pelas costas. Todos os meus restantes homens morreram quase tão depressa. Pelo menos nisso os lanceiros de Amhar foram misericordiosos. Não deixaram que as almas dos meus homens se detivessem, cortando e golpeando com uma energia furiosa.

 

Pouco me apercebi disso, porque enquanto eu perseguia Amhar um dos seus homens passou por detrás de mim e desferiu um rude golpe na minha nuca. Caí, sentindo a cabeça a andar à roda e uma escuridão negra trespassada por raios de luz. Lembro-me de cair de joelhos, depois, um segundo golpe atingiu-me no elmo e julguei que morria. Porém, Amhar queria-me vivo, e quando recuperei os sentidos vi-me deitado numa das estrumeiras de Dun Carie com os pulsos amarrados por uma corda e a bainha de Hywelbane pendurada à cintura de Amhar. A minha armadura havia-me sido retirada, e um pequeno torc em ouro fora roubado do meu pescoço. Todavia, Amhar e os seus homens não haviam encontrado o broche de Ceinwyn, que ainda estava a salvo preso por baixo do meu justilho. Agora afadigavam-se a decepar as cabeças dos meus lanceiros com as suas espadas.

 

Estupor gritei o insulto a Amhar, mas ele limitou-se a fazer um largo sorriso e virou-me as costas, continuando o seu trabalho macabro. Golpeou a coluna de Eachern com a Hywelbane, depois agarrou na cabeça pelos cabelos e atirou-a para uma pilha de cabeças que crescia em cima de uma capa.

 

Uma bela espada disse-me ele, baloiçando a Hywelbane na mão.

 

Então, usa-a para me enviares para o Outro Mundo.

 

O meu irmão nunca me perdoaria por mostrar tamanha misericórdia disse ele, depois limpou a lâmina da Hywelbane à sua capa esfarrapada e empurrou-a para dentro da bainha. Acenou a três dos seus homens para que avançassem, depois retirou uma pequena faca do seu cinto.

 

Em Mynydd Baddon disse ele, virando-se para mim, chamaste-me bastardo desprezível e cachorrinho cheio de vermes. Pensas que sou homem de me esquecer dos insultos?

 

A verdade é sempre memorável disse-lhe eu, embora tivesse de forçar o tom de desafio na minha voz porque, no fundo, estava aterrorizado.

 

Sem dúvida que a tua morte será memorável disse Amhar, mas por enquanto tens de te contentar com as atenções de um barbeiro. Acenou para os seus homens.

 

Debati-me quando se aproximaram e me agarraram, mas com as mãos presas e a cabeça ainda a latejar, pouco podia fazer para lhes resistir. Dois dos homens seguraram-me de encontro à estrumeira, enquanto o terceiro agarrava a minha cabeça pelo cabelo, e Amhar, com o joelho direito cravado no meu peito, me cortava a barba. Fê-lo de forma tosca, cortando em porções desiguais até à pele, e atirou os novelos de pêlo cortado a um dos seus homens que fazia um largo sorriso, enquanto desmanchava as tranças e com elas fazia uma pequena corda. Uma vez acabada, foi-lhe feito um nó corredio e colocaram-na em volta do meu pescoço. Este era o insulto supremo para um guerreiro capturado, a humilhação de ter uma trela de escravo feita com a sua própria barba. Depois de terminarem esta tarefa troçaram de mim dando estrondosas gargalhadas, depois Amhar obrigou-me a levantar dando fortes puxões à trela feita de pêlo.

 

Fizemos o mesmo a Issa disse ele.

 

Liar retorqui debilmente.

 

E obrigámos a sua mulher a assistir disse Amhar com um sorriso, depois obrigámo-lo a observar-nos enquanto nos ocupávamos dela. Agora estão os dois mortos.

 

Cuspi no seu rosto, mas ele limitou-se a rir. Ter-lhe-ia chamado mentiroso, mas acreditava no que dizia. Conclui que Mordred planeara o seu regresso à Bretanha de forma bem eficiente. Ele espalhara a notícia da sua morte iminente, e, entretanto, Argante embarcara o seu ouro amealhado para Clóvis, que deste modo comprado, libertara Mordred. Por sua vez, Mordred regressara à Dumnónia por barco, e agora matava os seus inimigos. Issa estava morto, e eu não tinha dúvidas que a maior parte dos seus lanceiros, bem como aqueles que eu deixara na Dumnónia, haviam morrido com ele. Eu fora feito prisioneiro. Apenas restava Sagramor.

 

Amarraram a trela feita com a minha barba à cauda do cavalo de Amhar e dirigiram-se comigo para sul. Os quarenta lanceiros de Amhar formavam uma escolta escarnecedora, rindo sempre que eu tropeçava. Arrastaram o estandarte de Gwydre pela lama que ia preso à cauda de outro cavalo.

 

Levaram-me para Caer Cadarn, e uma vez aí, atiraram-me para o interior de uma cabana. Não era a mesma onde eu encarcerara Guinevere tantos anos antes, mas outra bem mais pequena, com uma porta tão baixa que me vi obrigado a rastejar para entrar, ajudado pelas botas e as hastes das lanças dos meus captores. Gatinhei pelas sombras da cabana e vi que também aí se encontrava outro prisioneiro, um homem trazido de Durnovária, cujo rosto estava vermelho de tanto chorar. Por instantes não me reconheceu sem barba, mas depois estremeceu de admiração.

 

Derfel!

 

Bispo disse eu penosamente, porque era Sansum, e ambos fôramos feitos prisioneiros de Mordred.

 

Há um engano! insistiu Sansum. Eu não devia aqui estar!

 

Diz-lhes isso, a eles afirmei, meneando a cabeça na direcção dos guardas que estavam do lado de fora da cabana. Não a mim.

 

Eu nada fiz. A não ser servir Argante! E vê como eles me recompensam!

 

Cala-te disse-lhe eu. Oh, bom Jesus!

 

Ele caiu de joelhos, afastou os braços e levantou os olhos fixos para as teias de aranha que estavam presas ao telhado de colmo.

 

Enviai-me um anjo! Levai-me para a Vossa doce companhia.

 

Fazes o favor de estar calado? resmunguei, mas ele continuou a rezar e a lamuriar-se, enquanto eu olhava fixa e longamente para o cume brumoso de Caer Cadarn, onde uma pilha de inúmeras cabeças estava a ser erguida. Entre elas estavam as cabeças dos meus homens, juntamente com inúmeras outras que haviam sido recolhidas por toda a Dumnónia. Uma cadeira revestida com uma túnica de um azul pálido foi colocada no cimo da pilha; o trono de Mordred. Mulheres e crianças, as famílias dos lanceiros de Mordred, olharam atentamente para a macabra pilha, e depois alguns vieram espreitar à porta da baixa cabana e riram do meu rosto sem barba.

 

Onde está Mordred? perguntei a Sansum.

 

Como hei-de eu saber? respondeu-me, interrompendo a sua oração.

 

Então o que estás tu a fazer? perguntei. Ele recuou até ao banco arrastando os pés. Prestara-me um pequeno favor ao desatar-me os pulsos, mas a liberdade pouco me reconfortava, porque via seis lanceiros a guardarem a cabana, e não tive dúvidas que haveria outros que não conseguia ver. Um homem sentou-se virado para a entrada aberta da cabana com uma lança, rogando-me que rastejasse pela porta baixa e, deste modo, lhe concedesse a oportunidade de me trespassar. Eu não tinha a mínima hipótese de derrotar qualquer um deles. O que sabes tu? perguntei, de novo, a Sansum.

 

O rei voltou há duas noites disse ele, com centenas de homens.

 

Quantos?

 

Ele encolheu os ombros.

 

Trezentos? Quatrocentos? Não consegui contá-los, eram tantos. Mataram Issa na Durnovária.

 

Fechei os olhos e rezei pelo pobre Issa e pela sua família.

 

Quando te prenderam eles? perguntei a Sansum.

 

Ontem. Pareceu indignado. E por nada! Saudei-o com boas-vindas! Não sabia que estava vivo, mas fiquei contente por vê-lo. Regozijei-me! E por isso, eles prenderam-me!

 

Então, qual a razão por que te prendem? perguntei-lhe.

 

Argante afirma que eu escrevia a Meurig, Senhor, mas isso não pode ser verdade! Não tenho habilidade para as letras. Tu sabes disso.

 

Os teus escribas sabem, Bispo. Sansum fez um olhar indignado.

 

E por que razão havia eu de falar a Meurig?

 

Porque conspiravas para lhe entregar o trono, Sansum afirmei, e não o negues. Eu falei com ele há duas semanas.

 

Eu não lhe escrevi disse ele com enfado.

 

Acreditei nele, porque Sansum nunca fora muito hábil a passar as suas maquinações para o papel, mas não tive dúvidas que ele enviara mensageiros. E um desses mensageiros, ou talvez um servidor da corte de Meurig, traíra-o, contando o que se passava a Argante, que, sem dúvida, ansiava pelo ouro amealhado de Sansum.

 

Mereces o que quer que venhas a ter disse-lhe eu.

 

Conspiraste contra todos os reis que sempre se mostraram bondosos para contigo.

 

Tudo o que sempre quis foi o melhor para o meu país, e para Cristo!

 

Seu sapo cheio de vermes disse eu, cuspindo no chão. Tu apenas desejas o poder.

 

Fez o sinal da cruz e fitou-me com repugnância.

 

É tudo por culpa de Fergal disse ele.

 

Porquê culpá-lo?

 

Porque ele quer ser tesoureiro!

 

Queres dizer que ele quer ser rico como tu?

 

Eu?

 

Sansum fitou-me com uma surpresa fingida.

 

Eu? Rico? Em nome do Senhor tudo o que sempre fiz foi colocar uma pitança de parte no caso do reino precisar! Fui prudente, Derfel, prudente.

 

Continuou a justificar-se, e, aos poucos, compreendi que ele acreditava em cada palavra que proferia. Sansum podia trair as pessoas, podia imaginar maquinações para as matar, como tentara fazer comigo e com Artur quando fomos prender Ligessac, e podia extorquir todo o tesouro, contudo, durante todo esse tempo, convencera-se de algum modo que as suas acções tinham uma justificação. O único princípio pelo qual se regia era a ambição, e à medida que aquele infeliz dia mergulhava na escuridão, ocorreu-me, que quando o mundo fosse privado de homens como Artur e reis como Cuneglas, então criaturas como Sansum governariam em toda a parte. Se Taliesin tinha razão, então os nossos Deuses haviam desaparecido, e com eles todos os druidas, e depois deles seriam os grandes reis, e então surgiria um clã de Lordes Ratos para nos governar.

 

O dia seguinte trouxe Sol e um vento incerto, que arrastava o cheiro pestilento do monte de cabeças para a nossa cabana. Não nos foi permitido sair da cabana, vendo-nos, assim, obrigados a fazer as necessidades num canto. Não nos foi dado qualquer alimento, apesar de uma bexiga de água fedorenta nos ter sido atirada. Os guardas eram outros, mas os novos homens eram tão vigilantes como os primeiros. Amhar veio à cabana uma vez, mas apenas para se deleitar a contemplar a nossa miséria. Desembainhou a Hywelbane, beijou a lâmina, poliu-a na sua capa, depois tocou com o dedo na ponta acabada de amolar.

 

Suficientemente afiada para te cortar as mãos, Derfel disse ele. Tenho a certeza que o meu irmão gostaria de ter uma mão tua. Podia com ela enfeitar o cimo do seu elmo! E eu podia ficar com a outra. Preciso de uma nova crista.

 

Fiquei calado, e passado algum tempo ele aborreceu-se de tentar provocar-me e afastou-se, ceifando os cardos com a Hywelbane.

 

Talvez Sagramor mate Mordred segredou-me Sansum.

 

Rezo para que isso aconteça.

 

Tenho a certeza que Mordred foi ao seu encontro. Ele veio aqui, enviou Amhar para Dun Carie, depois rumou para leste.

 

Quantos homens tem Sagramor?

 

Duzentos.

 

Não tem tantos afirmei.

 

Ou talvez Artur venha. sugeriu Sansum.

 

Nesta altura já deverá saber que Mordred voltou afirmei, mas ele não pode avançar sobre Gwent, porque Meurig não o deixará fazê-lo, o que significa que ele tem de transportar os seus homens por mar, e tenho dúvidas que o faça.

 

Porque não?

 

Porque Mordred é o rei legítimo, Bispo, e, por muito que odeie Mordred, Artur não lhe negará esse direito. Ele não quebrará o juramento que fez a Uther.

 

Não tentará salvar-te?

 

Como? perguntei-lhe. No preciso instante em que estes homens vissem Artur a aproximar-se, cortar-nos-iam imediatamente as gargantas.

 

Deus nos guarde rogou Sansum. Jesus, Maria e os Santos nos protejam.

 

Eu prefiro orar a Mitras afirmei.

 

Pagão! pronunciou Sansum numa voz sibilante, mas não tentou interromper a minha oração.

 

O dia avançou. Era um dia de Primavera de uma extrema beleza, mas para mim era um dia amargo como fel. Eu sabia que a minha cabeça aumentaria a pilha no cume de Caer Cadarn, mas esse não era o motivo mais forte do meu desespero; esse adivinha do conhecimento de que eu falhara diante da minha gente. Conduzira os meus lanceiros para uma cilada, vira-os morrer, falhara. Se no Outro Mundo me recebessem com censuras, era isso justamente o que eu merecia, mas eu sabia que me acolheriam com alegria, e isso apenas me faria sentir mais culpado. Porém, a perspectiva do Outro Mundo era para mim reconfortante. Tinha lá amigos e duas filhas, e quando terminasse a tortura e a minha alma fosse liberta para o seu corpo-sombra, eu sentiria a felicidade da reunião. Percebi que Sansum não conseguia encontrar consolo na sua religião. Durante todo esse dia ele lastimara-se, gemera, chorara e queixara-se, mas nada conseguiu com o barulho que fez. Apenas podíamos esperar durante mais uma noite e outro longo e esfomeado dia.

 

Mordred voltou ao fim da tarde desse segundo dia. Ele veio de leste, conduzindo uma longa coluna de lanceiros a pé, que gritaram saudações aos guerreiros de Amhar. Um grupo de cavaleiros acompanhava o rei, e entre eles estava o maneta Loholt. Confesso que fiquei aterrorizado ao vê-lo. Alguns dos homens de Mordred traziam trouxas, que suspeitei contivessem inúmeras cabeças, o que acontecia, de facto, mas eram em muito menor número do que eu temera. Talvez vinte ou trinta foram despejadas para a pilha coberta de moscas, e nem uma parecia ter pele escura. Calculei que Mordred tivesse surpreendido e chacinado uma das patrulhas de Sagramor, mas falhara o seu principal alvo. Sagramor estava em liberdade, e isso consolava-me. Ele era um magnífico amigo e um terrível inimigo. Artur era um bom inimigo, porque sempre fora propenso ao perdão, mas Sagramor era implacável. O númida perseguia um inimigo até ao fim do mundo.

 

Todavia, nessa noite, a fuga de Sagramor era para mim de pouca utilidade. Ao saber da minha captura, Mordred gritara de contentamento, depois mandou que lhe fosse mostrado o estandarte de Gwydre cheio de lama. Deu uma gargalhada ao ver o urso e o dragão, depois ordenou que se estendesse a bandeira na relva para que ele e os seus homens urinassem nela. Loholt chegou mesmo a dançar quando recebeu a notícia da minha captura, porque fora ali, no topo daquela mesma colina, que a sua mão fora decepada. A mutilação devera-se a um castigo por se atrever a rebeliar-se contra seu pai, e agora podia vingar-se no seu amigo.

 

Mordred chamou-me à sua presença, e Amhar foi buscar-me, trazendo consigo a trela feita com a minha barba. Estava acompanhado por um homem enorme, vesgo e sem dentes, que mergulhou no interior da cabana, me agarrou pelo cabelo e me forçou a pôr de gatas, empurrando-me depois pela porta baixa. Amhar colocou a trela em volta do meu pescoço e, quando tentei levantar-me, forçou-me a permanecer de gatas.

 

Rasteja ordenou-me ele. O bruto desdentado forçou-me a baixar a cabeça, Amhar puxou a trela, e fui, deste modo, obrigado a rastejar em direcção ao cume por entre filas de homens, mulheres e crianças que motejavam. Todos me cuspiram à minha passagem, alguns deram-me pontapés, outros açoitaram-me com a extremidade mais grossa de lanças, mas Amhar impediu-os de me mutilarem. Ele queria-me inteiro para aumentar o prazer do seu irmão.

 

Loholt aguardou junto à pilha de cabeças. O coto do seu braço direito estava revestido com prata, e na extremidade do revestimento, no sítio da mão, fora fixa a garra de um urso. Fez um sorriso rasgado quando me aproximei dele rastejando, mas a satisfação também o tornara demasiado incoerente para conseguir falar. Deste modo, balbuciou e cuspiu-me, e durante todo aquele tempo pontapeou-me no ventre e nas costelas. Os seus pontapés eram fortes, mas estava de tal modo furioso que batia cegamente e, por isso, pouco mais me fez do que nódoas negras. Mordred observava do seu trono colocado em cima da pilha de inúmeros crânios cheia de moscas.

 

Basta! gritou ele após algum tempo, e Loholt deu-me um último pontapé e afastou-se para o lado.

 

Lorde Derfel saudou-me Mordred com uma cortesia motejadora.

 

Meu Rei e Senhor respondi-lhe. Eu estava entre Loholt e Amhar, enquanto a toda a volta da pilha de cabeças uma multidão ávida se havia reunido para assistir à humilhação.

 

Erguei-vos, Lorde Derfel ordenou-me Mordred.

 

Levantei-me e olhei-o fixamente, mas não conseguia ver-lhe o rosto, porque o Sol punha-se a oeste atrás de si e encandeava-me. Conseguia ver Argante de pé junto à pilha de cabeças, e com ela estava Fergal, o seu druida. Deveriam ter seguido de Durnovária para norte, e cavalgado durante todo o dia, porque não os vira antes. Ela sorriu ao ver o meu rosto sem barba.

 

O que aconteceu à tua barba, Lorde Derfel? perguntou-me Mordred com uma preocupação fingida.

 

Permaneci calado.

 

Fala! ordenou-me Loholt, e socou-me o rosto com o seu coto. As garras de urso arranharam-me a pele.

 

Foi cortada, meu Rei e Senhor respondi.

 

Cortada! Ele deu uma gargalhada. E sabes por que motivo foi cortada, Derfel?

 

Não, Senhor.

 

Porque és meu inimigo afirmou.

 

Não é verdade, meu Rei e Senhor.

 

És meu inimigo! Gritou ele num repentino acesso de cólera, batendo num dos braços da cadeira e observando-me com atenção para ver se eu mostrava algum temor diante da sua ira.

 

Em criança anunciou ele à multidão, esta coisa criou-me. Sovou-me!

 

A multidão insultou-me até Mordred levantar uma mão para a silenciar.

 

E este homem disse ele, apontando-me um dedo para acrescentar má-fortuna às suas palavras, ajudou Artur a decepar a mão de Loholt.

 

De novo, a multidão gritou enfurecida.

 

E ontem prosseguiu Mordred, o Lorde Derfel foi encontrado no meu reino com um estandarte estrangeiro.

 

Fez sinal com a sua mão direita e dois homens acorreram com a bandeira de Gwydre encharcada em urina.

 

De quem é este estandarte, Lorde Derfel? perguntou-me Mordred.

 

Pertence a Gwydre ap Artur, Senhor.

 

E por que motivo está o estandarte de Gwydre na Dumnónia?

 

Por breves instantes pensei em mentir. Talvez eu pudesse afirmar que trazia o estandarte como uma forma de prestar tributo a Mordred, mas eu sabia que ele não iria acreditar em mim e, pior ainda, eu mesmo me desprezaria por essa mentira. Por isso, ergui a cabeça.

 

Esperava içá-la com a notícia da vossa morte, meu Rei e Senhor.

 

A minha verdade surpreendeu-o. A multidão murmurou, mas Mordred limitou-se a tamborilar os dedos no braço da cadeira.

 

Declaras-te traidor afirmou, algum tempo depois.

 

Não, meu Rei e Senhor afirmei, eu posso ter desejado a vossa morte, mas nada fiz para a consumar.

 

Tu não foste à Armórica salvar-me! gritou ele.

 

É verdade respondi.

 

Porquê? perguntou-me ameaçadoramente.

 

Porque isso significaria enviar homens bons salvarem homens maus afirmei, gesticulando para os seus guerreiros. Eles riram.

 

E tiveste esperança que Clóvis me matasse? perguntou-me Mordred depois de os risos esmorecerem.

 

Muitos o desejaram, meu Rei e Senhor afirmei, e de novo a minha honestidade pareceu surpreendê-lo.

 

Dá-me, então, uma boa razão, Lorde Derfel, para eu não te matar neste mesmo instante ordenou-me Mordred.

 

Permaneci em silêncio por breves instantes, depois encolhi os ombros.

 

Não me ocorre nenhum motivo, meu Rei e Senhor.

 

Mordred desembainhou a sua espada e atravessou-a sobre os joelhos, depois pousou sobre a lâmina as suas mãos abertas.

 

Derfel anunciou ele, condeno-te à morte.

 

É meu o privilégio, meu Rei e Senhor! pediu Loholt avidamente. Meu!

 

E a multidão latiu-lhe o seu apoio. Observar a minha morte lenta abrir-lhes-ia o apetite para a ceia que estava a ser preparada no cume da colina.

 

É teu privilégio cortares-lhe a mão, príncipe Loholt declarou Mordred.

 

Levantou-se e coxeou cautelosamente, enquanto descia da pilha de cabeças com a espada desembainhada na mão direita.

 

Mas é meu privilégio afirmou, quando estava já próximo de mim, tirar-lhe a vida.

 

Levantou a lâmina da espada entre as minhas pernas e lançou-me um sorriso matreiro.

 

Antes de morreres, Derfel disse ele, tirar-te-emos mais do que as mãos.

 

Mas não esta noite! gritou uma voz severa vinda detrás da multidão. Meu Rei e Senhor! Não esta noite!

 

Houve um murmúrio na multidão. Mordred pareceu mais

estarrecido do que ofendido com a interrupção e nada disse.

 

Não esta noite! voltou a gritar o homem, e ao virar-me vi Taliesin a caminhar calmamente por entre a multidão excitada, que se afastava para lhe dar passagem. Ele trazia a sua harpa e a pequena sacola de cabedal, mas agora segurava um bastão preto, parecendo um perfeito druida.

 

Posso dar-vos boas razões para que Derfel não morra esta noite, meu Rei e Senhor disse Taliesin, enquanto caminhava até ao espaço aberto junto às cabeças.

 

Quem és tu? inquiriu Mordred.

 

Taliesin ignorou a pergunta e caminhou até Fergal. Os dois homens abraçaram-se e beijaram-se, e só depois desta saudação formal ter terminado Taliesin voltou a olhar para Mordred.

 

Eu sou Taliesin, meu Rei e Senhor.

 

Uma coisa de Artur escarneceu Mordred.

 

Não pertenço a homem algum, meu Rei e Senhor disse Taliesin calmamente, e uma vez que haveis escolhido insultar-me, deixarei as minhas palavras por proferir. Para mim são todos um único.

 

Virou as costas a Mordred e começou a afastar-se.

 

Taliesin! gritou Mordred.

 

O bardo voltou-se para olhar o rei, mas sem nada dizer.

 

Não foi minha intenção ofender-te disse Mordred, não desejando a inimizade de um feiticeiro.

 

Taliesin hesitou, depois aceitou as desculpas do rei com um aceno de cabeça.

 

Meu Rei e Senhor disse ele, estou-vos grato.

 

Ele falou com um tom de voz grave e, como é próprio a um druida falar a um rei, sem deferência nem arrogância. Taliesin era famoso como bardo, não como druida, mas todos os presentes o trataram como se fosse um verdadeiro druida, e ele nada fez para alterar o seu juízo. Usava a tonsura druídica, transportava o bastão preto, falava com uma autoridade sonora e saudara Fergal como seu par. Sem dúvida que Taliesin queria que eles acreditassem na sua decepção, porque um druida não pode ser morto nem mal tratado, ainda que seja inimigo de druidas. Até mesmo no campo de batalha os druidas podem caminhar em segurança e, ao fazer passar-se por druida, Taliesin garantia a sua própria segurança. Um bardo não possuía a mesma imunidade.

 

Então, diz-me por que motivo esta coisa Mordred apontou para mim com a sua espada, não deverá morrer esta noite.

 

Há alguns anos, meu Rei e Senhor disse Taliesin, o Lorde Derfel deu-me ouro para que eu lançasse um feitiço sobre a vossa esposa. O feitiço levou-a a não ter filhos. Para o lançar, usei o ventre de uma corça, que enchi com as cinzas de uma criança morta.

 

Mordred olhou para Fergal, que assentiu com a cabeça.

 

Essa é, sem dúvida, uma das formas de o fazer, meu Rei e Senhor, confirmou o druida irlandês.

 

Não é verdade! gritei e, para aumentar o meu sofrimento, recebi outro rude golpe com as garras de urso do coto de prata de Loholt.

 

Posso anular o feitiço prosseguiu Taliesin calmamente, mas tem de ser anulado enquanto o Lorde Derfel estiver vivo, porque foi ele quem o pediu. Se eu o anular agora, enquanto o Sol se põe, não poderá ser feito devidamente. Tenho de o fazer, meu Rei e Senhor, ao amanhecer, porque o encantamento tem de ser anulado enquanto o Sol nasce, caso contrário, a vossa rainha ficará para sempre impossibilitada de dar à luz.

 

Mordred voltou a lançar um rápido olhar a Fergal, e os pequenos ossos balouçaram na barba do druida, provocando uma série de ruídos secos, enquanto ele anuía o seu assentimento.

 

Ele diz a verdade, meu Rei e Senhor.

 

Ele mente! protestei.

 

Mordred empurrou a sua espada para o interior da bainha.

 

Por que razão ofereces tu isto, Taliesin? perguntou ele. Taliesin encolheu os ombros.

 

Artur está velho, meu Rei e Senhor. O seu poder definha. Os druidas e os bardos têm de buscar patronos onde o poder ascende.

 

Fergal é o meu druida disse Mordred. Eu julgara que ele era cristão, mas não me admirava que se tivesse convertido ao paganismo. Mordred nunca fora um bom cristão, apesar de esse, suspeitava eu, ser o mais insignificante dos seus pecados.

 

Sentir-me-ei honrado por conseguir mais engenho com o meu irmão disse Taliesin, fazendo uma vénia a Fergal, e jurarei seguir a sua orientação. Nada busco, meu Rei e Senhor, para além de uma oportunidade de usar os meus parcos poderes para vossa imensa glória.

 

Ele era sereno. Falava de modo convincente. Eu não lhe dera ouro em troca de feitiço algum, mas todos os que ali se encontravam acreditaram nele, sobretudo Mordred e Argante. Foi deste modo que Taliesin me concedeu mais uma noite de vida. Loholt estava desiludido, mas Mordred prometeu-lhe a minha alma, bem como a minha mão ao amanhecer, e isso consolou-o um pouco.

 

Fui obrigado a rastejar de novo até à cabana. Nesse percurso voltaram a bater-me e a pontapear-me, mas sobrevivi.

 

Amhar retirou a trela de pêlo do meu pescoço, depois deu-me um pontapé para que entrasse na cabana.

 

Encontrar-nos-emos ao amanhecer, Derfel disse-me ele. Com o Sol a bater-me nos olhos e uma lâmina na garganta.

 

Nessa noite Taliesin cantou para os homens de Mordred. Haviam-se reunido na igreja por acabar, cuja construção Sansum iniciara em Caer Cadarn, e que agora se transformara simplesmente num palácio sem telhado e com paredes rachadas. Era aí que Taliesin os deleitava com a sua música. Nunca antes nem depois o ouvi cantar de forma tão maravilhosa. No início, como qualquer bardo que entretém guerreiros, ele teve de se debater com a troada de vozes, mas, aos poucos, a sua habilidade silenciou-os. Fez-se acompanhar da harpa e escolheu cantar elegias, mas de tamanha beleza eram que os lanceiros de Mordred o ouviram num silêncio aterrado. Até os cães deixaram de uivar e permaneceram em silêncio, enquanto Taliesin, o Bardo, cantava pela noite dentro. Quando fazia pausas mais longas entre cada canção os lanceiros pediam mais, e, deste modo, ele voltava a cantar, com a sua voz a esmorecer no final das melodias, depois surgindo, de novo, com os novos versos, mas sempre suaves. As gentes de Mordred beberam e escutaram, e a bebida e as canções fizeram com que chorassem, e ainda assim Taliesin continuava a cantar para elas. Sansum e eu também o ouvíamos, e também nós chorámos pela tristeza etérea das elegias. Contudo, à medida que a noite avançava, Taliesin começou a cantar canções de embalar, doces canções de embalar, delicadas canções de embalar, canções de embalar que adormecem também os ébrios, e enquanto cantava, o ar tornou-se mais frio e vi que se formava uma neblina por cima de Caer Cadarn.

 

A neblina adensou-se e Taliesin continuou a cantar. Se o mundo tiver de atravessar pelo reinado de mil reis, não creio que alguma vez os homens ouçam canções tão maravilhosamente cantadas. Entretanto, a bruma envolvia de tal modo o cume da colina que as fogueiras ficaram esbatidas no vapor e as canções encheram a escuridão como canções espectrais, ecoando da terra dos mortos.

 

Depois, na escuridão, as canções cessaram e nada mais ouvi do que doces acordes serem tirados da harpa, parecendo-me que se aproximavam cada vez mais da nossa cabana e dos guardas que haviam estado sentados na relva húmida a ouvirem a música.

 

O som da harpa aproximou-se mais ainda e, por fim, vi Taliesin na bruma.

 

Trouxe-vos hidromel disse ele aos meus guardas, dividi-o.

 

E, da sua sacola, retirou um frasco com rolha, entregando-o a um dos meus guardas. E, enquanto iam passando o frasco de um lado para o outro, ele cantava para eles. Entoou a canção mais suave da noite, uma canção de embalar que faria adormecer um mundo agitado, e o mesmo fizeram eles. Um a um, os guardas encostaram-se, e Taliesin continuou a cantar, encantando com a sua bela voz toda aquela fortaleza. Apenas quando um dos guardas começou a ressonar, ele deixou de cantar e retirou a mão da harpa.

 

Creio, Lorde Derfel, que podeis sair agora disse ele muito calmamente.

 

Eu também! afirmou Sansum, e puxou-me, passando por mim para ser o primeiro a sair, ao mesmo tempo que tropeçava para fora da cabana.

 

Taliesin sorriu quando ele surgiu.

 

Merlim ordenou-me que vos salvasse, Senhor disse ele, embora diga que não tendes de lhe agradecer por isto.

 

Claro que lhe agradecerei afirmei.

 

Vamos! latiu Sansum. Não há tempo para conversas. Vinde! Depressa!

 

Espera, miserável disse-lhe eu, depois inclinei-me e agarrei na lança de um dos guardas adormecidos.

 

Que feitiço usaste? perguntei a Taliesin.

 

Um homem quase não precisa de feitiço algum para adormecer gente embriagada disse ele, mas com estes guardas usei uma infusão de raízes de mandrágora.

 

Aguardai-me aqui pedi-lhes.

 

Derfel! Temos de ir! sussurrou-me Sansum alarmado.

 

Tens de esperar, Bispo ordenei-lhe, e esgueirei-me por entre o nevoeiro, dirigindo-me ao brilho enevoado das enormes fogueiras. Estas ardiam na igreja meia construída que nada mais era do que partes de altas paredes inacabadas com enormes fendas entre os barrotes. O espaço interior estava cheio de gente adormecida, embora agora alguns começassem a despertar e olhassem de olhos esbugalhados como gente que assiste a um encantamento.

 

Os cães fossavam por entre os adormecidos em busca de comida e a sua excitação acordava ainda mais gente. Alguns dos que acabavam de acordar observavam-me, mas nenhum me reconheceu. Para eles eu era mais um lanceiro que caminhava na noite.

 

Encontrei Amhar junto a uma das fogueiras. Dormia com a boca aberta, e morreu do mesmo modo. Estoquei a lança na sua boca aberta, detive-a o tempo suficiente para que ele abrisse os olhos e me reconhecesse, e depois, quando vi que isso acontecia, empurrei a lâmina trespassando-lhe o pescoço e a coluna para que ficasse preso ao chão. Ele estremeceu enquanto o matava, e a última coisa que a sua alma viu na terra, foi o meu sorriso. Depois, inclinei-me, agarrei na trela feita com a minha barba que estava no seu cinto, desprendi a Hywelbane, e afastei-me da igreja. Quis ir em busca de Mordred e de Loholt, mas agora mais adormecidos despertavam, e um homem gritou para me perguntar quem eu era, por isso limitei-me a mergulhar nas sombras nublosas, e apressei-me a subir a colina até ao local onde Taliesin e Sansum me aguardavam.

 

Temos de ir! baliu Sansum.

 

Tenho freios junto aos taludes, Senhor disse-me Taliesin.

 

Pensas em tudo afirmei admirado.

 

Detive-me para atirar os restos da minha barba para uma pequena fogueira que aquecera os nossos guardas, e quando vi que a última trança se retorcia e consumia em cinzas segui Taliesin para os taludes a norte. Ele encontrou os dois freios nas sombras, depois subimos para a plataforma de combate e aí, escondidos dos guardas pelo nevoeiro, trepámos e passámos o muro, rebolando depois pela encosta da colina. A meio da descida deixava de haver nevoeiro e nós apressámo-nos a dirigir-nos para a campina onde a maior parte dos cavalos de Mordred dormia. Taliesin acordou devagar dois dos animais, afagou-lhes os focinhos e cantou-lhes aos ouvidos, e, tranquilamente, deixaram que ele colocasse os freios por cima das suas cabeças.

 

Conseguis montar sem sela, Senhor? perguntou-me ele.

 

Esta noite, até sem cavalo, se necessário for.

 

E eu? perguntou Sansum, enquanto eu imprimia o impulso para subir para o dorso de um dos cavalos.

 

Baixei os olhos para ele. Senti-me tentado a deixá-lo na campina, porque durante toda a sua vida fora um traidor, e eu não tinha vontade de prolongar a sua existência, mas nessa noite também nos podia ser útil, e, desse modo, agarrei-o e içei-o para o dorso do meu cavalo.

 

Eu devia deixar-te aqui, Bispo afirmei, enquanto ele se compunha. Não me respondeu, apertando bem os braços em volta da minha cintura.

 

Taliesin dirigia o segundo cavalo para o portão da campina que abrira com um empurrão.

 

Merlim disse-te o que devíamos fazer agora? perguntei ao bardo, enquanto esporeava o meu cavalo para passar pelo portão aberto.

 

Não, Senhor, mas sugere a sensatez que devíamos ir para a costa e procurar um barco. E que nos apressemos, Senhor. No topo daquela colina o sono não se prolongará, e assim que descobrirem que haveis desaparecido, enviarão homens no nosso encalço.

 

Taliesin usou o portão como uma barreira.

 

O que fazemos? perguntou Sansum em pânico, agarrando-se a mim com toda a força.

 

Matamos-te? sugeri. Taliesin e eu poderemos avançar mais depressa.

 

Não, Senhor, não! Peço-vos, não!

 

Taliesin levantou os olhos para as estrelas toldadas pelas nuvens.

 

Seguimos para oeste? sugeriu ele.

 

Eu sei exactamente para onde vamos afirmei, dando um toque no cavalo com o calcanhar, e obrigando-o a seguir pelo caminho que nos conduziria a Lindinis.

 

Onde? perguntou Sansum.

 

Ter com a tua mulher, Bispo respondi. Ter com a tua mulher.

 

Foi por essa razão que, nessa noite, salvei a vida de Sansum, porque Morgana era, então, a nossa maior esperança. Tive dúvidas que ela me ajudasse, tinha a certeza que cuspiria no rosto de Taliesin se ele lhe pedisse auxílio, mas por Sansum ela faria tudo.

 

E, deste modo, rumámos para Ynys Wydryn.

 

Acordámos Morgana e ela veio à porta do seu palácio de mau humor, ou melhor, com pior humor do que era habitual. Não me reconheceu sem barba e não viu o marido que, dorido da caminhada, se arrastava atrás de nós; mas Morgana viu Taliesin como um druida que se atrevera a entrar nos domínios sagrados do seu santuário.

 

Pecador! guinchou-lhe ela, sem que o seu recente despertar enfraquecesse a imensa violência do seu vitupério.

 

Profanador! Idólatra! Em nome do santíssimo Deus e da Sua abençoada Mãe, ordeno-te que partas!

 

Morgana! gritei, e só nesse instante ela viu a figura suja de lama e coxa de Sansum. Soltou um pequeno gemido de satisfação e correu na sua direcção. O quarto-crescente brilhava na máscara de ouro com que ela cobria o rosto enraivecido.

 

Sansum! gritou ela. Meu querido!

 

Bem-amada! disse Sansum, e os dois agarraram-se na penumbra.

 

Meu Deus balbuciou Morgana, limpando-lhe o rosto, o que te fizeram eles?

 

Taliesin sorriu, e até eu, que odiava Sansum e não sentia afecto algum por Morgana, não consegui resistir a sorrir diante do seu evidente prazer. De todos os casamentos que eu conhecera, este era o mais estranho. Sansum era o homem mais desonesto que já existiu, e Morgana a mais honesta que alguma vez foi criada, contudo, era evidente que se adoravam, ou, pelo menos, que Morgana adorava Sansum. Ela nascera bela, mas o terrível fogo, que lhe matara o primeiro marido, desfigurara o seu corpo e marcara-lhe o rosto com cicatrizes horríveis. Nenhum homem teria conseguido amar Morgana pela sua beleza, nem pelo seu carácter, que fora tão retorcido pelo fogo e tornado amargo como o seu rosto fora consumido pela fealdade. Mas um homem conseguia amar Morgana pelas suas relações, porque ela era irmã de Artur, e isso, sempre acreditei, fora o que levara Sansum a aproximar-se dela. Todavia, se ele não a amava por aquilo que ela era, pelo menos, demonstrava de tal modo que a amava que a convencia e a fazia feliz, e por isso eu estava na disposição de perdoar ao Lorde Rato a sua dissimulação. Ele também a admirava, porque Morgana era uma mulher inteligente, e Sansum apreciava a inteligência. Deste modo, ambos lucravam com o casamento; Morgana recebia ternura, Sansum recebia protecção e conselho, e desde que nenhum deles experimentasse os prazeres da carne com outros, provava-se ser um casamento melhor do que a maioria.

 

Dentro de uma hora interrompi abruptamente o seu feliz encontro, os homens de Mordred estarão aqui. Nessa altura teremos de estar longe, e as vossas mulheres, Senhora disse eu a Morgana, deverão procurar segurança nos pântanos. Os homens de Mordred não quererão saber se as vossas mulheres são sagradas, serão todas violadas.

 

Morgana olhou-me fixamente com o seu único olho, que brilhava no interior da sua máscara.

 

Ficas melhor sem a barba, Derfel disse ela.

 

Ficarei pior sem cabeça, Senhora, e Mordred tem uma pilha de cabeças em Caer Cadarn.

 

Não sei por que razão Sansum e eu devemos salvar as vossas vidas pecaminosas resmungou ela, mas Deus diz-nos para sermos misericordiosos.

 

Ela abandonou os braços de Sansum e guinchou numa voz terrível para acordar as suas mulheres. A Taliesin e a mim foi ordenado que entrássemos para a igreja, foi-nos dado um cesto, e dito que o enchêssemos com o ouro do santuário, enquanto Morgana enviava mulheres à vila para acordarem os barqueiros. Ela era excepcionalmente eficiente. O santuário estava inundado de pânico, mas Morgana controlou tudo, levando apenas alguns minutos até as primeiras mulheres serem ajudadas a entrar para os barcos de fundo chato, que depois penetraram nos pântanos escondidos pela bruma.

 

Partimos no último, e jurei ouvir cascos a leste, enquanto os nossos barqueiros empurravam o barco de fundo chato para as águas escuras. Sentado na borda, Taliesin começou a entoar a elegia de Idfael, mas Morgana deu-lhe uma palmada para que não entoasse a sua música pagã. Ele retirou os dedos da sua pequena harpa.

 

A música não conhece fidelidade, Senhora, censurou-a ele com cortesia.

 

A tua é a música do diabo resmungou ela.

 

Nem toda disse Taliesin, e voltou a cantar, mas, desta vez, uma canção que eu nunca ouvira.

 

Junto às margens da Babilónia, cantou ele, onde nos sentámos, ela verteu lágrimas amargas ao lembrar-se da nossa terra, e reparei que Morgana deslizava um dedo por baixo da sua máscara como se estivesse a limpar as lágrimas. O bardo continuou a cantar e o elevado Tor ia desaparecendo à medida que a bruma dos pântanos nos envolvia, e que os nossos barqueiros nos levavam serpenteando por entre os canaviais pelas águas escuras. Quando Taliesin terminou a sua canção, ouvia-se apenas o barulho do lago a ondular no casco e o chapinhar da vara do barqueiro a entrar na água, surgindo de novo mais adiante.

 

Devias cantar por Cristo disse Sansum, reprovadoramente.

 

Canto para todos os Deuses afirmou Taliesin, e nos tempos vindouros precisaremos de todos eles.

 

Existe apenas um Deus! disse Morgana, iradamente.

 

Se o dizeis, Senhora disse Taliesin, humildemente, mas temo que, esta noite, Ele de pouco vos tenha servido, e apontou para trás para Ynys Wydryn. Todos nos voltámos vendo um brilho lívido a espalhar-se para lá do nevoeiro. Certa vez, eu vira aquele brilho a partir daqueles mesmos pântanos, naquele mesmo lago. Era o brilho de edifícios incendiados, o brilho do colmo a arder. Mordred seguira-nos, e o santuário do Espinheiro Sagrado, onde estava enterrada a sua mãe, estava a ser incendiado. Contudo, nós estávamos a salvo nos pântanos onde homem nenhum se atrevia a ir a menos que tivesse um guia.

 

O mal assolara de novo sobre a Dumnónia.

 

Mas nós estávamos a salvo, e ao amanhecer encontrámos um pescador que se prestou a ir a Silúria em troca de ouro. E, deste modo, voltei para casa, para Artur.

 

E para um novo horror.

 

Ceinwyn estava doente.

 

Guinevere disse-me que a doença surgira rapidamente, poucas horas depois de eu embarcar de Isca. Ceinwyn começara a tremer, depois a suar e, nessa mesma noite, deixara de ter forças para se levantar, por isso deitara-se, e Morwenna tratara dela. Uma curandeira dera-lhe a beber uma poção de tussilagem e arruda e colocara um amuleto de panaceia entre os seus seios. Contudo, pela manhã, a sua pele havia gretado com furúnculos. Doía-lhe as articulações, não conseguia engolir e a sua respiração ressoava-lhe na garganta. Foi então que começou a delirar, agitando-se violentamente na cama e gritando de forma horrível por Dian. Morwenna tentou preparar-me para a morte de Ceinwyn.

 

Ela crê que foi amaldiçoada, pai disse-me, porque no dia em que partiste veio aqui uma mulher pedir-nos comida. Demos-lhe grãos de cevada, mas depois de partir vimos que havia sangue na umbreira da porta.

 

Toquei no copo da Hywelbane.

 

As pragas podem ser anuladas.

 

Nós trouxemos o druida de Cefu-crib disse-me Morwenna, e ele raspou o sangue da porta e deu-nos uma pedra de feiticeira. Ela deteve-se, fitando com os olhos marejados de lágrimas a pedra furada, que estava agora pendurada por cima do leito de Ceinwyn. Mas a praga não desaparecerá! gritou ela. Ela vai morrer!

 

Ainda não consolei-a. Ainda não.

 

Eu não conseguia acreditar na morte iminente de Ceinwyn, porque ela sempre fora muito saudável. Nem um único cabelo seu estava grisalho, ainda conservava a maioria dos dentes, e era tão ágil como uma rapariguinha quando deixei Isca. Agora, de repente, ela parecia velha e gasta. E sofria com dores. Não nos falava nas dores que sentia, mas o seu rosto traía-a, e as lágrimas que lhe corriam pelo rosto gritavam-nas bem alto.

 

Taliesin passou longo tempo a olhar fixamente para ela, e concordou em como fora amaldiçoada. Todavia, Morgana cuspiu ao ouvir essa opinião.

 

Superstição pagã! resmungou ela, e afadigou-se a procurar novas ervas que ferveu em hidromel, molhando com uma colher os lábios de Ceinwyn. Vi como Morgana era muito delicada, apesar de, ao verter o líquido, acusar Ceinwyn de ser uma pecadora pagã.

 

Eu sentia-me impotente. Tudo o que podia fazer era sentar-me junto ao leito de Ceinwyn, segurar-lhe na mão e chorar. O seu cabelo tornou-se liso e, dois dias após o meu regresso, começou a cair às mãos-cheias. Os seus furúnculos rebentavam, ensopando a cama de pus e sangue. Morwenna e Morgana faziam a cama de novo com palha fresca e lençóis lavados, mas todos os dias Ceinwyn sujava a cama, e os lençóis tinham de ser fervidos numa tina. A dor persistia, e era tão forte que passado algum tempo eu próprio comecei a desejar que a morte a arrancasse ao seu sofrimento, mas Ceinwyn não morreu. Sofreu apenas, e, por vezes, gritava com dores, a sua mão apertava-me os dedos com uma força terrível, e a única coisa que eu podia fazer era limpar-lhe a fronte, pronunciar o seu nome e sentir o medo da solidão a crescer dentro de mim.

 

Eu amava tanto a minha Ceinwyn. Até mesmo agora, anos passados, sorrio ao pensar nela e, por vezes, acordo de noite com lágrimas no rosto e sei que são por ela. O nosso amor começara num ímpeto de paixão, e as gentes sensatas diziam que um semelhante ímpeto de paixão acabava sempre. O nosso, porém, nunca viu o fim, em vez disso, transformou-se num longo e pMfundo amor. Eu amava-a e admirava-a, os dias pareciam mais brilhantes na sua presença e, de repente, eu nada mais podia fazer do que observar os demónios a torturá-la e a dor a fazê-la estremecer, e os furúnculos a crescerem vermelhos e retesados e a rebentarem espalhando imundície. E, ainda assim, ela não morria.

 

Alguns dias, Galaad e Artur revesavam-me junto ao seu leito. Todos tentavam ajudar. Guinevere mandou chamar as mulheres mais afamadas das colinas da Silúria, e colocou ouro na palma das suas mãos para que trouxessem novas ervas ou frascos de água de uma qualquer nascente sagrada e remota. Culhwuch, agora calvo mas ainda rude e beligerante, chorou por Ceinwyn, e deu-me uma ponta de seta de sílex que encontrara nas colinas a oeste, apesar de Morgana a ter deitado fora quando encontrou o amuleto pagão no leito de Ceinwyn, tal como fizera com a pedra de feiticeira do druida e o amuleto que encontrara entre os seios de Ceinwyn. O bispo Emrys rezou por Ceinwyn, e até mesmo Sansum, antes de partir para Gwent, se lhe juntou em oração, apesar de eu ter dúvidas que as suas preces fossem tão sentidas como as que Emrys enviava a Deus. Morwenna era dedicada a sua mãe, e ninguém se debateu com mais afinco pela sua cura. Tratou-a, limpou-a, rezou e chorou por ela. Claro que Guinevere não conseguia suportar a doença de Ceinwyn, nem o cheiro a doença no quarto, mas caminhava comigo durante horas, enquanto Galaad ou Artur seguravam na mão de Ceinwyn. Recordo-me de, certa vez, ela caminhar até ao anfiteatro e, dando passadas pela arena de areia, tentar de forma desajeitada consolar-me.

 

Tu tens sorte, Derfel disse ela, porque experimentaste uma coisa rara. Um grande amor.

 

Também vós, Senhora afirmei.

 

Ela fez uma careta, e desejei não ter evocado o indizível, apesar do seu grande amor ter sido degradado, embora ambos, Artur e ela, tivessem sobrevivido a essa infelicidade. Creio que ainda deveria permanecer neles, surgindo, por vezes, como uma sombra profunda, quando ao longo desses anos um louco fazia referência ao nome de Lancelote e um silêncio repentino percorria o ar. Certa vez, um bardo que nos visitou cantou-nos ingenuamente a Elegia de Blodeuwedd, uma canção que fala da infidelidade de uma esposa, e o salão de festas ficou envolto em silêncio no final da canção. Porém, a maior parte do tempo, Artur e Guinevere foram verdadeiramente felizes.

 

Sim disse Guinevere, também eu tenho sorte.

 

Falou com brevidade, não por não concordar comigo, mas porque se sentia sempre incomodada com conversas íntimas. Apenas em Mynydd Baddon ela suplantara essa reserva e, nessa altura, eu e ela estivéramos bem próximo de nos tornarmos amigos. No entanto, desde então tínhamo-nos afastado, chegando não à antiga hostilidade, mas a uma relação circunspecta embora afectuosa.

 

Ficas bem sem barba disse ela, então, mudando de assunto. Faz-te mais novo.

 

Jurei deixá-la crescer de novo apenas depois da morte de Mordred afirmei.

 

Pode ser em breve. Como eu odiaria morrer antes de esse verme alimentar os seus desertos.

 

Ela proferiu estas palavras furiosamente, e com verdadeiro temor que a velhice pudesse matá-la antes de Mordred morrer. Nessa altura, estávamos todos nos quarenta, e eram poucas as pessoas que viviam mais tempo. Merlim, claro, durara duas vezes esses quarenta anos e talvez mais, e todos nós conhecíamos outros que haviam feito cinquenta, sessenta ou até mesmo setenta anos; porém, pensávamos em nós como pessoas idosas. O cabelo ruivo de Guinevere estava bastante raiado de cabelos grisalhos, mas ela ainda era bela, e o seu rosto forte olhava para o mundo com toda a sua antiga força e arrogância. Deteve-se para observar Gwydre, que montava um cavalo no interior da arena. Ele levantou-lhe a mão, depois obrigou o cavalo a andar a passo. Treinava o garanhão para se tornar um cavalo de guerra; a recuar, a bater com os cascos no chão, mantendo as pernas em movimento, mesmo estando parado, para que nenhum inimigo pudesse cortar-lhe os tendões dos jarretes. Guinevere observou-o por algum tempo.

 

Achas que alguma vez ele chegará a ser rei? perguntou-me ela, e notei-lhe um vago desejo na voz.

 

Creio bem que sim, Senhora respondi. Mais tarde ou mais cedo, Mordred cometerá um erro e, nessa altura, nós avançamos.

 

Assim o espero disse ela, retirando o seu braço do meu. Não creio que ela estivesse a tentar confortar-me, mas antes a alentar-se a si própria. Artur falou-te de Amhar? perguntou ela.

 

Brevemente, Senhora.

 

Ele não te censura. Sabes isso, não é?

 

Prefiro acreditar que sim afirmei.

 

Bom, bem podes acreditar disse ela, com brusquidão. O seu desgosto é por ter falhado como pai, não pela morte daquele bastardozinho.

 

Creio que Artur estava bem mais desgostoso pela Dumnónia do que por Amhar, já que ficara profundamente abalado com as notícias dos massacres. Tal como eu, ele desejava a vingança, mas Mordred comandava um exército e Artur tinha menos de duzentos homens, que teriam de atravessar o Severn de barco se quisessem combater Mordred. Com toda a sinceridade, ele não conseguia encontrar uma forma de o fazer. Chegara mesmo a preocupar-se com a legalidade de semelhante vingança.

 

Os homens que ele matou disse-me Artur, eram homens que lhe haviam prestado juramento. Ele tinha o direito de os matar.

 

E nós temos o direito de os vingar insisti, mas não tenho a certeza se Artur concordava inteiramente comigo. Ele sempre tentara colocar a lei acima das paixões privadas e, de acordo com a nossa lei de juramentos, que transforma o rei na fonte de todas as leis e, deste modo, de todos os juramentos, Mordred podia fazer o que desejasse no seu país. Essa era a lei, e Artur, sendo como era, tinha renitência em infringi-la, mas também ele chorava pelos homens e mulheres que haviam morrido e pelas crianças que haviam sido escravizadas, percebendo igualmente que mais ainda morreriam ou seriam colocadas a ferros enquanto Mordred vivesse. Segundo parecia, a lei teria de ser contornada, mas Artur não sabia como podia fazê-lo. Se conseguíssemos que os nossos homens atravessassem Gwent, e depois os levássemos o mais longe possível, para leste, que conseguíssemos penetrar nas regiões fronteiriças com Lloegyr e, deste modo, juntarmo-nos às forças de Sagramor, conseguiríamos reunir uma força suficiente para derrotar o feroz exército de Mordred, ou, pelo menos, defrontá-lo em igualdade de circunstâncias. Contudo, o rei Meurig, recusava-se obstinadamente a deixar-nos atravessar a sua região. Se atravessássemos o Severn de barco não poderíamos levar os cavalos, e depois teríamos um longo caminho a percorrer até nos juntarmos a Sagramor e teríamos a separar-nos dele o exército de Mordred. Ele podia derrotar-nos primeiro e depois, recuar para se defrontar com o númida.

 

Pelo menos Sagramor ainda estava vivo, mas isso pouco nos acalentava. Mordred havia morto alguns dos homens de Sagramor, mas não conseguira encontrá-lo, e expulsara os seus homens da região fronteiriça antes que Sagramor conseguisse empreender ferozes represálias. Agora, constava-nos, Sagramor e cento e vinte homens refugiavam-se num forte, na zona sul do país.

 

Mordred receava fazer um assalto ao forte, e Sagramor não tinha força suficiente para avançar e derrotar o exército de Mordred, por isso vigiavam-se mutuamente sem combaterem, enquanto os saxões de Cerdic, encorajados pela impotência de Sagramor, voltavam a espalhar-se pelas nossas regiões a oeste. Mordred destacou grupos de guerra para defrontarem esses saxões, esquecendo-se dos mensageiros que se atreviam a atravessar a sua região para unirem Artur a Sagramor. As mensagens reflectiam a frustração de Sagramor como podia ele desmobilizar os seus homens e levá-los para a Silúria? A distância era enorme e o inimigo, bem mais numeroso do que eles, barrava-lhes o caminho. Parecia que estávamos verdadeiramente impossibilitados de vingar aquelas mortes, mas depois, três semanas após o meu regresso da Dumnónia, chegaram notícias da corte de Meurig.

 

O rumor chegara-nos através de Sansum. Ele viera para Isca comigo, mas achara a companhia de Artur demasiado vexatória e, por isso, deixando Morgana ao cuidado do irmão, o Bispo partira para Gwent. Agora, talvez para nos mostrar quão próximo era do Rei, enviava-nos uma mensagem dizendo que Mordred pedia a autorização de Meurig para fazer o seu exército passar por Gwent, a fim de atacar a Silúria. Meurig, dizia Sansum, ainda não se decidira por uma resposta.

 

Artur repetiu-me a mensagem de Sansum.

 

Estará o Lorde Rato a conspirar de novo? perguntou-me ele.

 

Ele apoia-vos a ambos, Senhor, a vós e a Meurig afirmei, com amargura, para que ambos lhe fiquem reconhecidos.

 

Mas será isto verdade? conjecturou Artur. O seu desejo era, de facto, que fosse verdade, uma vez que se Mordred atacasse Artur, então, nenhuma lei poderia condená-lo por retaliar, e se Mordred fizesse o seu exército marchar para norte, por Gwent, nós poderíamos navegar para sul, pelo mar Severn, e juntar forças com os homens de Sagramor no sul da Dumnónia. Tanto Galaad como o bispo Emrys tinham dúvidas que Sansum dissesse a verdade, mas eu discordava deles. Mordred odiava Artur mais do que qualquer outro homem, e eu acreditava que ele seria incapaz de resistir à tentação de derrotar Artur no campo de batalha.

 

Por isso, durante alguns dias fizemos planos. Os nossos homens treinavam com lanças e espadas, e Artur enviava mensageiros a Sagramor, delineando a campanha onde ele esperava combater. Porém, ou Meurig negou a Mordred a autorização que ele necessitava, ou Mordred decidiu não atacar a Silúria, porque nada aconteceu. O exército de Mordred permaneceu entre nós e Sagramor, e não mais ouvimos rumores por parte de Sansum, e tudo o que podíamos fazer era aguardar.

 

Aguardar, e observar o sofrimento agonizante de Ceinwyn. Ver o seu rosto tornar-se macilento. Ouvir os seus delírios, sentir o horror quando nos apertava as mãos e sentir o cheiro da morte que não chegava.

 

Morgana experimentou novas ervas. Colocou uma cruz no corpo nu de Ceinwyn, mas ao toque da cruz Ceinwyn gritou. Certa noite, quando Morgana dormia, Taliesin fez um feitiço para anular a maldição, que ele ainda acreditava ser a causa do padecimento de Ceinwyn. Contudo, apesar de termos morto uma lebre e de termos pintado o rosto de Ceinwyn com o seu sangue, e apesar de tocarmos na sua pele crivada de furúnculos com a ponta queimada de uma varinha de condão e de rodearmos o seu leito com pedras-d’águia, pontas de setas de sílex e pedras de feiticeira, e apesar de pendurarmos um raminho de espinheiro e um ramo de visco-branco cortado de uma tília por cima do seu leito, e apesar de colocarmos a Excalibur, um dos Tesouros da Bretanha, ao seu lado, a enfermidade não foi curada. Orámos a Grannos, o Deus da panaceia, mas as nossas preces não obtiveram resposta e os nossos sacrifícios foram ignorados.

 

É uma magia demasiado poderosa disse Taliesin, com tristeza. Na noite seguinte, de novo enquanto Morgana dormia, trouxemos um druida do norte da Silúria para os aposentos da enferma. Era um druida do campo, fedorento e com uma longa barba. Entoou uma ladainha, depois esmigalhou os ossos de uma cotovia até ficarem reduzidos a pó, despejando-o numa infusão de artemísia que estava dentro de um cálice sagrado. Gotejou a mistura para a boca de Ceinwyn, mas o curativo nenhum resultado obteve. O druida tentou dar-lhe a comer pequenos pedaços de coração de gato preto assado, mas ela cuspiu-os e, por isso, ele usou o seu feitiço mais forte, o toque da mão de um cadáver. A mão, que me recordava o cimo do elmo de Cerdic, estava enegrecida. O druida tocou com ela na fronte, no nariz e na garganta de Ceinwyn, depois pressionou-a de encontro ao seu crânio, enquanto murmurava um encantamento, mas tudo o que conseguiu foi transferir um grande número dos seus piolhos para a cabeça dela, e quando tentámos afastá-los da sua cabeça com o pente, arrancámos-lhe o último cabelo. Paguei ao druida, depois segui-o até ao pátio, para fugir ao fumo das fogueiras onde Taliesin queimava ervas. Morwenna acompanhou-me.

 

Tendes de descansar, pai disse ela.

 

Haverá tempo para descansar, mais tarde respondi, observando o caminhar arrastado do druida dirigindo-se para a escuridão.

 

Morwenna colocou os seus braços em volta de mim e deitou a cabeça no meu ombro. O seu cabelo era tão dourado como fora o de Ceinwyn, e tinha o mesmo cheiro do dela.

 

Talvez não seja magia alguma disse ela.

 

Se não fosse magia disse-lhe eu, ela já teria morrido.

 

Dizem que, em Powys, há uma mulher que tem grande habilidade.

 

Então, manda-a chamar disse-lhe com seriedade, apesar de já não acreditar em nenhum feiticeiro. Haviam vindo muitos e levado ouro, mas nem um havia curado a enfermidade. Eu oferecera sacrifícios a Mitras, orara a Bei e a Don, e nada resultara.

 

Ceinwyn gemia, e os gemidos elevavam-se até ao grito. Estremeci ao ouvi-la, depois, com delicadeza afastei Morwenna.

 

Tenho de ir ter com ela.

 

Descansai, pai disse-me Morwenna. Irei eu ter com ela.

 

Foi, então, que vi a figura embrulhada numa capa, de pé no centro do pátio. Não conseguia dizer se era um homem ou uma mulher, nem há quanto tempo ali se encontrava. Parecia-me que apenas há instantes o pátio estava vazio, mas agora aquela figura estranha estava diante de mim com o rosto escondido da luminosidade da lua por um largo capuz; e senti um temor repentino, pressentindo que era a morte que me aparecia. Avancei para a figura.

 

Quem sois? perguntei-lhe.

 

Ninguém que conheceis, Lorde Derfel Cadarn.

 

Era uma mulher quem proferia tais palavras, e enquanto falava levantou o capuz, e vi que pintara o rosto de branco. Depois passou os dedos com fuligem em volta dos olhos, parecendo agora uma caveira viva. Morwenna arfou.

 

Quem sois? voltei a perguntar-lhe.

 

Sou a brisa do vento de oeste, Lorde Derfel disse ela, numa voz sibilante, e a chuva que cai em Cadair Idris, e a geada que cobre os cumes de Eryri. Eu sou a mensageira que vem do tempo anterior aos reis, sou a Dançarina.

 

Nessa altura ela riu, e o seu riso era semelhante ao da demência nas trevas. O seu som atraiu Taliesin e Galaad à porta dos aposentos da enferma, onde permaneceram de pé e de olhos fixos na mulher de rosto branco que ria. Galaad fez o sinal da cruz, enquanto Taliesin tocou no ferro dos gonzos da porta.

 

Aproximai-vos, Lorde Derfel! ordenou-me a mulher. Aproximai-vos de mim, Lorde Derfel.

 

Ide, Senhor encorajou-me Taliesin, e eu senti uma esperança repentina que os feitiços do druida cheio de piolhos tivessem, afinal, resultado, já que, apesar de não terem curado o mal de Ceinwyn, haviam, pelo menos, trazido esta aparição ao pátio. Por isso, avancei para o luar e aproximei-me da mulher envolta na capa.

 

Abraçai-me, Lorde Derfel disse a mulher, e algo soou na sua voz que revelou decadência e imundície, arrepiando-me. Todavia, dei outro passo em frente e coloquei os meus braços em volta dos seus magros ombros. Ela cheirava a mel e a cinzas.

 

Quereis que Ceinwyn viva? sussurrou-me ela ao ouvido.

 

Sim.

 

Então acompanhai-me agora retorquiu-me em surdina, e afastou-se do meu abraço. Agora repetiu ao ver a minha hesitação.

 

Deixai-me ir buscar uma capa e uma espada afirmei.

 

Onde ides não precisarás de espada alguma, Lorde Derfel, e podeis partilhar a minha capa. Agora vinde, ou deixareis que a vossa esposa sofra. Com estas palavras, ela virou-se e caminhou para fora do pátio.

 

Ide! apressou-me Taliesin. Ide!

 

Galaad tentou acompanhar-me, mas a mulher virou-se ao chegar ao portão e ordenou-lhe que voltasse para trás.

 

Lorde Derfel vem sozinho disse ela ou então não vem de todo. E, deste modo, parti, seguindo a morte na noite e dirigindo-me para norte.

 

Caminhámos de tal modo durante toda a noite que, ao amanhecer, estávamos no cume das altas colinas, e ela continuava a apressar-me, escolhendo caminhos que nos levavam para bem longe de qualquer povoação. A mulher, que se apelidava a Dançarina, caminhava descalça e, por vezes, pulava como se estivesse cheia de uma satisfação inextinguível. Uma hora depois do amanhecer, quando o Sol inundava as colinas com uma nova luz dourada, ela deteve-se junto a um pequeno lago e borrifou o rosto com água, esfregando, então, as bochechas com as mãos cheias de relva para limpar a mistura de mel e cinzas com que embranquecera a pele. Até esse instante, eu não percebera se ela era jovem ou idosa, mas agora via que era uma mulher com cerca de trinta anos, e muito bela. Tinha um rosto delicado, cheio de vida, com olhos felizes e um sorriso fácil. Sabia-se bela e riu ao ver que também eu reconhecia a sua beleza.

 

Deitar-vos-íeis comigo, Lorde Derfel? perguntou-me.

 

Não respondi.

 

Se isso curasse Ceinwyn inquiriu, deitar-vos-íeis comigo?

 

Sim.

 

Mas não o fará! informou-me. Não o fará! E deu uma gargalhada, correndo à minha frente e deixando cair a sua pesada capa para revelar um vestido de tecido leve, justo a um corpo ágil. Lembrais-vos de mim? perguntou ela, virando-se para me encarar.

 

Devia lembrar-me?

 

Eu lembro-me de vós, Lorde Derfel. Olhastes, estarrecido, para o meu corpo como um homem faminto, e estáveis faminto. Tão faminto. Recordais-vos?

 

E com estas palavras fechou os olhos e desceu o caminho de cabras na minha direcção, dando passos leves e precisos, apontando os seus dedos grandes para o chão a cada passo. Recordei-me dela, de imediato. Esta era a rapariga, cuja pele nua brilhara na escuridão de Merlim.

 

Sois Olwen afirmei, vindo-me à memória o seu nome, ao fim de tantos anos, Olwen, a Prateada.

 

Então, recordais-vos de mim. Agora estou mais velha. A Olwen velha deu uma gargalhada. Vinde, Lorde! Trazei a capa.

 

Onde vamos? perguntei.

 

Para longe, Senhor, para longe. Para onde os ventos surgem, as chuvas começam, as brumas se formam e nenhum rei governa.

 

Ela dançou no caminho com uma energia aparentemente interminável. Durante todo esse dia dançou e disse-me coisas sem sentido. Creio que estava demente. Certa vez, quando caminhávamos num pequeno vale, onde árvores com folhas de prata tremulavam sob a leve brisa, tirou o vestido e dançou nua pela relva, fazendo-o para me inflamar e tentar. E quando eu avancei, firme, mostrando que nada sentia por ela, limitou-se a rir, a atirar o vestido para cima dos ombros e a caminhar ao meu lado, como se a sua nudez não fosse uma coisa estranha.

 

Fui eu quem levou a praga para o vosso lar, confessou-me, orgulhosa.

 

Porquê?

 

Porque tinha de ser feito, claro disse ela com uma aparente sinceridade, tal como agora tem de ser anulada! Razão pela qual nos dirigimos para as montanhas, Senhor.

 

Ao encontro de Nimue? perguntei-lhe, sabendo já, tal como creio que sempre soubera assim que Olwen surgira no pátio, que era com Nimue que íamos ter.

 

Ao encontro de Nimue concordou Olwen, alegremente. Compreendeis, Senhor, chegou o momento.

 

Que momento?

 

O momento do fim de todas as coisas, claro afirmou Olwen, e atirou o vestido para os meus braços para que ficasse mais leve. Avançou à minha frente, voltando-se de vez em quando para me lançar um olhar matreiro e motejar da minha expressão inalterável.

 

Quando o Sol brilha disse-me ela, gosto de estar nua.

 

O que é o fim de todas as coisas? perguntei-lhe.

 

Faremos da Bretanha um local perfeito disse Olwen. Não haverá doença, nem fome, nem temores, nem guerras, nem tempestades, nem vestes. Tudo terminará, Senhor! As montanhas ruirão e os rios consumir-se-ão a si mesmos, os mares ferverão e os lobos uivarão, mas, no fim, o país ficará verde e dourado e deixará de haver anos e tempo, e todos seremos Deuses e Deusas. Eu serei uma Deusa-árvore. Governarei o larício e o álamo-branco, e todas as manhãs dançarei, e todas as noites deitar-me-ei com homens dourados.

 

Não tiveste intenção de te deitar com Gawain? perguntei-lhe. Quando ele veio do Caldeirão? Pensei que serias sua rainha.

 

Na verdade deitei-me com ele, Senhor, mas estava morto. Morto e rígido. Sabia a sal. Deu uma gargalhada. Morto, rígido e salgado. Durante uma noite inteira aqueci-o, mas ele não se mexeu. Não queria deitar-me com ele acrescentou ela, num tom confidente, mas desde essa noite, Senhor, apenas tenho conhecido a felicidade! Ela virou-se com leveza, dando um passo serpenteante sobre a relva primaveril.

 

Louca, pensei, louca e estonteantemente bela, tão bela como Ceinwyn fora outrora, apesar de esta rapariga, ao contrário da minha Ceinwyn de pele pálida e cabelo de ouro, ter cabelo preto e a sua pele estar queimada do sol.

 

Porque te chamam Olwen, a Prateada? perguntei-lhe.

 

Porque a minha alma é de prata, Senhor. O meu cabelo é escuro, mas a minha alma é prateada!

 

Ela correu velozmente pelo caminho, depois prosseguiu mais devagar. Detive-me alguns instantes para recuperar o fôlego e olhar fixamente para baixo, para o vale profundo onde via um homem a apascentar o seu rebanho. O cão do pastor subiu a encosta a correr, para fazer um dos animais reunir-se ao rebanho, e abaixo deste eu vi uma casa, junto à qual uma mulher estendia roupa molhada em cima de ramos de tojo. Pensei que aquela era a realidade, enquanto esta viagem pelas colinas era uma loucura, um sonho. Toquei na cicatriz da palma da minha mão esquerda, a cicatriz que me mantinha ligado a Nimue, e vi que ruborescera. Durante anos fora branca, agora estava lívida.

 

Temos de prosseguir, Senhor! gritou-me Olwen. Cada vez mais! Subir até às nuvens. Para meu alívio, ela agarrou de novo no vestido e vestiu-o pela cabeça, abanando-o e fazendo-o escorregar pelo corpo magro. Posso ter frio nas nuvens, Senhor explicou-me e, depois, voltou a dançar. Lancei ao pastor e ao seu cão um último olhar pesaroso e segui a dançarina Olwen, subindo um caminho estreito que passava por entre rochedos elevados.

 

À tarde descansámos. Parámos no vale de encostas íngremes, onde cresciam freixos, sorveiras-bravas e sicómoros, e onde um longo e estreito lago tremulava, escuro, sob a leve brisa. Encostei-me a um pedregulho e devo ter adormecido por algum tempo, porque quando acordei vi que Olwen estava novamente nua, mas desta vez nadava nas águas frias e escuras. Saiu do lago a tremer, esfregou-se com a sua capa até secar, depois vestiu o vestido.

 

Nimue disse-me afirmou, que se vos deitásseis comigo, Ceinwyn morreria.

 

Então, por que me pediste para me deitar contigo? perguntei-lhe, rispidamente.

 

Para ver se amáveis a vossa Ceinwyn, claro.

 

Amo afirmei.

 

Então, podeis salvá-la disse Olwen, satisfeita.

 

Como a amaldiçoou Nimue? inquiri.

 

Com uma maldição de fogo e outra de água, e com a maldição do espinheiro negro, afirmou Olwen, depois aninhou-se aos meus pés e fitou-me nos olhos, e com a sombria maldição do Outro Corpo acrescentou, ominosa.

 

Porquê? perguntei-lhe, zangado, sem me importar com os pormenores das maldições, apenas querendo saber a razão do mal lançado sobre Ceinwyn.

 

Porque não? disse Olwen, depois deu uma gargalhada. Colocou a capa em volta dos ombros e continuou a caminhar. Vinde, Senhor! Tendes fome?

 

Sim.

 

Comereis. Comereis, dormireis e falareis. Ela dançava novamente, e descalça, dando passos delicados no caminho pedregoso. Reparei que os seus pés sangravam, mas ela parecia não se incomodar com isso. Estamos a andar para trás disse-me ela.

 

O que quer isso dizer?

 

Ela virou-se, de forma a saltar para trás mas de frente para mim.

 

Recuar no tempo, Senhor. Nós enrolamos os anos. Os anos de ontem passam por nós a correr, mas tão depressa que não conseguireis ver as suas noites nem os seus dias. Ainda não haveis nascido, os vossos pais ainda não nasceram e continuamos a recuar, sempre a recuar, até ao tempo em que não existiam reis. É para aí, Senhor, que vamos. Para o tempo anterior aos reis.

 

Os vossos pés sangram disse-lhe eu.

 

Sararão e virou-se, saltando. Vinde! gritou ela. Vinde. Dará o tempo anterior aos reis!

 

Merlim aguarda-me lá? perguntei.

 

Este nome fez com que Olwen se detivesse. Voltou-se e franziu-me as sobrancelhas.

 

Deitei-me com Merlim, uma vez disse ela, passado algum tempo. Muitas vezes! acrescentou, num acesso de honestidade.

 

Aquilo não me surpreendeu. Ele era um lúbrico.

 

Ele aguarda-nos? perguntei-lhe.

 

Ele encontra-se no centro do tempo anterior aos reis disse Olwen, seriamente. Mesmo no seu centro, Senhor. Merlim é o frio da geada, a água da chuva, a chama do sol, a brisa do vento. Agora, vinde ela puxou-me pela manga com uma urgência repentina, agora não podemos conversar.

 

Merlim está prisioneiro? perguntei-lhe, mas Olwen não me respondeu. Ela corria diante de mim e esperava, impaciente, que eu subisse e a alcançasse, e assim que o conseguia, voltava a correr à minha frente. Seguiu por aqueles caminhos íngremes com ligeireza, ao mesmo tempo que eu me esforçava atrás dela, e durante todo esse tempo avançávamos cada vez mais para o interior das montanhas. Apercebi-me, nessa altura, que havíamos deixado a Silúria e entráramos em Powys, mas apenas numa parte desse triste país, onde a governação do jovem Perddel não chegava. Esta era a terra sem lei, o refúgio de salteadores, mas Olwen escapulia-se cautelosamente por entre os seus perigos.

 

Caiu a noite. Nuvens avolumaram-se vindas de oeste, de tal modo, que bem depressa ficámos na mais completa escuridão. Olhei à minha volta e não vi nada. Não havia luzes, nem tão-pouco o luzir de uma chama distante. Teria sido assim, imaginei, que Bei encontrara a Bretanha quando chegara para lhe trazer vida e luz.

 

Olwen colocou as suas mãos nas minhas.

 

Vinde, Senhor.

 

Não se consegue ver nada! protestei.

 

Eu vejo tudo afirmou. Confiai em mim, Senhor e com estas palavras conduziu-me, puxando-me para diante e, por vezes, avisando-me da existência de um obstáculo. Aqui temos de atravessar um ribeiro, Senhor. Pisai com cuidado.

 

Percebi que o caminho que subíamos era íngreme, mas pouco mais. Atravessámos uma zona de argila traiçoeira, mas a mão de Olwen agarrava a minha com firmeza e, certa vez, pareceu-me que caminhávamos ao longo da extremidade de um alto espinhaço, onde o vento me uivava nos ouvidos e Olwen entoava uma estranha cançoneta sobre duendes.

 

Ainda existem duendes, nestas colinas disse-me ela, quando deixou de cantar. Por toda a restante Bretanha eles foram mortos, mas aqui não. Já os vi. Ensinaram-me a dançar.

 

Ensinaram-te bem afirmei, não acreditando numa única palavra do que dizia, mas sentindo-me estranhamente confortado com o aperto forte da sua pequena mão.

 

Usam capas de um tecido muito leve disse-me ela.

 

Não dançam nus? perguntei, motejando.

 

Uma capa de tecido leve nada esconde, Senhor replicou, mas por que razão havíamos de esconder o que é belo?

 

Deitas-te com os duendes?

 

Um dia fá-lo-ei. Ainda não o fiz. No tempo depois dos reis, fá-lo-ei. Com eles e com os homens dourados. No entanto, primeiro tenho de me deitar com outro homem salgado. Ventre com ventre com outra coisa rígida vinda do Caldeirão.

 

Ela deu uma gargalhada e deu-me um puxão na mão. Deste modo, deixámos o espinhaço e subimos uma pequena encosta de erva até ao pico mais alto. Ali, pela primeira vez desde que as nuvens haviam escondido a Lua, vi luz.

 

Bem para lá da escura depressão oblonga de terra ficava uma colina, e aí devia haver um vale cheio de fogueiras, já que o cume da colina estava guarnecido com o seu brilho. Permaneci ali, de pé, inconscientemente com a minha mão na de Olwen, e ela riu com satisfação ao ver-me a olhar fixamente a luz que surgira de repente.

 

Aquela é a terra anterior aos reis, Senhor informou-me. Ali encontrareis amigos e alimento.

 

Retirei a minha mão da sua.

 

Que amigos lançariam um feitiço a Ceinwyn? Ela voltou a agarrar-me na mão.

 

Vinde, Senhor, já não estamos longe afirmou, e puxou-me pela encosta abaixo, tentando obrigar-me a correr, mas eu não o fazia. Continuei devagar, recordando-me do que Taliesin me dissera no meio da bruma mágica que lançara sobre Caer Cadarn; que Merlim lhe ordenara que me salvasse, mas que eu podia não lhe agradecer por isso e, à medida que me aproximava daquele buraco de fogo temi que fosse descobrir o que Merlim queria dizer. Olwen riu do meu receio, e os seus olhos faiscaram com o reflexo do brilho das fogueiras, mas eu subi em direcção à lívida linha do horizonte com o coração pesado.

 

Lanceiros vigiavam a orla do vale. Eram homens com um olhar selvagem, abafados em peles e com lanças de hastes ferrugentas e lâminas toscamente forjadas. Nada disseram ao passarmos, apesar de Olwen os saudar alegremente. Depois conduziu-me por um caminho que descia para o centro do vale fumegante. Havia um lago estreito no fundo do vale, e a toda a volta das margens do lago negro havia fogueiras, junto às quais se encontravam pequenas cabanas por entre choupanas feitas de árvores enfezadas. Um exército de pessoas estava aí acampado, já que havia duzentas ou mais fogueiras.

 

Vinde, Senhor disse-me Olwen, e puxou-me pela encosta abaixo. Isto é o passado disse-me ela, e isto é o futuro. É aqui que o círculo do tempo se fecha.

 

Isto é um vale, disse eu para comigo, nas terras altas de Powys. Um local escondido, onde um homem desesperado talvez encontre abrigo. Garanti a mim mesmo que o círculo do tempo nada fazia, ainda assim, senti um arrepio de apreensão quando Olwen me fez descer até às cabanas junto ao lago, onde o exército estava acampado. Julguei que as gentes que ali se encontravam estivessem a dormir, porque chegámos bastante tarde. Contudo, enquanto caminhávamos entre o lago e as cabanas uma multidão de homens e mulheres saiu das cabanas para nos observar, enquanto passávamos. Eram coisas estranhas, aquelas gentes. Alguns riam sem razão, outros balbuciavam coisas sem sentido, outros ainda estremeciam. Vi rostos com papeira, olhos cegos, lábios leporinos, massas de cabelo emaranhado e membros contorcidos.

 

Quem são eles? perguntei a Olwen.

 

O exército dos loucos, Senhor disse-me ela.

 

Cuspi na direcção do lago para afastar o mal. Nem todos eram dementes ou aleijados, pobres diabos, porque alguns eram lanceiros, e muito poucos, reparei, tinham escudos cobertos com pele humana, escurecida com sangue humano; os escudos dos Escudos Sanguinários da derrotada Diwrnach. Outros tinham a águia de Powys nos seus escudos, e um homem exibia até a raposa da Silúria, uma insígnia que não era levada para o campo de batalha desde o tempo de Gundleus. À semelhança do exército de Mordred, estes homens eram os vadios da Bretanha: homens derrotados, homens sem terra, homens que nada tinham a perder mas tudo a ganhar. O vale fedia a desperdícios humanos. Recordava-me a Ilha dos Mortos, o local para onde a Dumnónia enviava os seus terríveis loucos, e onde, em certa ocasião, eu fora buscar Nimue. Estas gentes tinham o mesmo olhar selvagem e davam a mesma sensação perturbadora de que a todo o momento podiam saltar e rastejar sem razão aparente.

 

Como os alimentais? perguntei.

 

Os soldados arranjam alimentos disse Olwen, os soldados certos. Nós comemos bastantes carneiros. Eu gosto de carneiro. Eis-nos, Senhor. Fim da viagem! E, com estas felizes palavras, ela retirou a sua mão da minha e esgueirou-se à minha frente. Havíamos alcançado o extremo do lago e diante de mim estava agora um bosque de enormes árvores, que cresciam ao abrigo de um elevado promontório rochoso.

 

Uma dúzia de fogueiras ardia sob as árvores, e vi que os seus troncos formavam duas linhas, conferindo ao bosque a aparência de um longo muro. No extremo mais distante do muro estavam duas pedras cinzentas de edifícios, como os altos pedregulhos que o antigo povo havia erguido, apesar de não conseguir dizer se estas eram pedras antigas, ou recentemente levantadas.

 

Entre as pedras, entronizada numa cadeira de madeira maciça, e segurando o bastão preto de Merlim numa das mãos, estava Nimue. Olwen correu para ela e atirou-se aos seus pés, colocando-lhe os braços em volta das pernas e deitando a cabeça nos seus joelhos.

 

Eu trouxe-o, Senhora! disse ela.

 

Ele deitou-se contigo? perguntou Nimue, falando com Olwen mas fitando-me. Duas caveiras encimavam as pedras erectas, cada uma delas coberta com uma espessa camada de cera derretida.

 

Não, Senhora afirmou Olwen.

 

Convidaste-o? O único olho de Nimue continuava a fitar-me.

 

Sim, Senhora.

 

Mostraste-te a ele?

 

Durante todo o dia mostrei-me a ele, Senhora.

 

Menina bonita disse Nimue, acariciando o cabelo de Olwen, e quase consegui imaginar a rapariga a ronronar por se sentir tão feliz aos pés de Nimue. Esta continuava a olhar-me fixamente, e eu, ao passar por entre aquelas duas altas pilhas de lenha e troncos de árvores, devolvi-lhe o mesmo olhar fixo.

 

Nimue tinha agora a mesma aparência que tinha quando eu a fora retirar à Ilha dos Mortos. Parecia que não se lavava, não se penteava nem cuidava de si havia anos. O buraco do seu olho estava sem a pala, e não tinha nenhum olho falso, vendo-se apenas uma cicatriz contraída e engelhada aparecer no seu rosto desvairado. A sua pele estava profundamente impregnada de imundície, o seu cabelo era um emaranhado oleoso e enriçado que lhe caía até à cintura. Outrora, o seu cabelo fora preto, mas agora era branco como osso. O seu vestido branco estava imundo, mas por cima dele ela usava uma capa sem mangas, disforme, demasiado grande para o seu tamanho, percebendo, de repente, que era a Capa de Padarn, um dos Tesouros da Bretanha, enquanto num dos dedos da sua mão esquerda usava o Anel de Eluned, em ferro e sem enfeites. As suas unhas eram longas e os poucos dentes que lhe restavam eram pretos. Parecia bem mais velha, ou talvez fosse apenas a sujidade que acentuasse as linhas severas do seu rosto. Ela nunca fora aquilo a que o mundo chama bela, todavia o seu rosto fora avivado pela inteligência e isso tornara-a atraente. Todavia, agora a sua aparência era repugnante e o seu rosto, outrora vivo, mostrava amargura, apesar de me oferecer laivos de um sorriso ao levantar a sua mão esquerda. Ela mostrava-me a cicatriz, a mesma cicatriz que eu tinha na minha mão esquerda e, como resposta, levantei a palma da minha mão e ela anuiu em sinal de satisfação.

 

Vieste, Derfel.

 

Tinha eu outra alternativa? perguntei-lhe com azedume, depois apontei para a cicatriz na minha mão. Não me obriga isto a fazê-lo? Porquê atacar Ceinwyn para me forçares a vir ao teu encontro, quando já tinhas isto?

 

Bati de novo na cicatriz.

 

Porque não terias vindo afirmou Nimue. As suas criaturas dementes amontoavam-se em volta do seu trono como cortesãos, outras ateavam as fogueiras, e uma cheirava-me os tornozelos como um cão. Nunca acreditaste acusou-me Nimue. Rezas aos Deuses, mas não acreditas verdadeiramente neles. Agora, ninguém acredita verdadeiramente neles, excepto nós. Acenou o bastão roubado para os estropiados, os semicegos, os aleijados e os loucos que a fitavam em adoração. Nós acreditamos, Derfel disse ela.

 

Também eu acredito retorqui.

 

Não! Nimue guinchou a palavra, fazendo com que algumas das criaturas que estavam debaixo das árvores gritassem aterrorizadas. Ela apontou-me o bastão. Tu estavas presente quando Artur salvou Gwydre das fogueiras.

 

Não podias esperar que Artur deixasse o seu filho morrer afirmei.

 

O que eu esperava, tolo, era ver Bei descer dos céus com o ar ressequido e crepitante atrás de si, e as estrelas a serem atiradas como folhas durante uma tempestade! Era isso o que eu esperava! Era isso que eu merecia! inclinou a cabeça para trás e guinchou para as nuvens, e todos os loucos aleijados uivaram com ela. Apenas Olwen, a Prateada, permaneceu em silêncio. Ela fitava-me com um parco sorriso, como se sugerisse que apenas ela e eu éramos sãos naquele refúgio de loucos. Era isso o que eu queria! Gritou-me Nimue, sobrepondo a sua voz à cacofonia de gemidos e latidos. E é isso que terei acrescentou, e com estas palavras levantou-se, libertou-se do abraço de Olwen e chamou-me com o seu bastão. Vem.

 

Segui-a, passando pelas pedras erectas até uma gruta que havia no promontório. Não era uma gruta funda, apenas com a largura suficiente para que um homem pudesse deitar-se de costas, e, no início, julguei ver um homem nu deitado nas sombras da gruta. Olwen viera para junto de mim e tentava tomar a minha mão, mas eu empurrei-a, ao mesmo tempo que, à minha volta, os loucos se comprimiam para bem perto de mim para verem o que estava deitado no chão de pedra da gruta.

 

Uma pequena fogueira tremeluzia na gruta, e à fraca luz vi que não era um homem que estava deitado na pedra, mas sim a figura em barro de um corpo de mulher. Era uma figura em tamanho natural com seios rudes, pernas abertas e um rosto rudimentar. Nimue curvou-se para entrar na gruta, acocorando-se ao lado da cabeça da figura de barro.

 

Observa, Derfel Cadarn disse ela. A tua mulher.

 

Olwen deu uma gargalhada e levantou os olhos para mim a sorrir.

 

A vossa mulher, Senhor! disse-me Olwen, caso eu não tivesse percebido.

 

Olhei fixamente a grotesca figura de mulher, depois fitei Nimue.

 

A minha mulher?

 

Este é o Outro Corpo de Ceinwyn, seu tolo! afirmou Nimue. E eu sou a causa da sua ruína.

 

Havia um cesto desfiado no extremo da gruta, o Cesto de Garanhir, outro ”Tesouro da Bretanha, e Nimue retirou do seu interior uma mão-cheia de bagas secas. Inclinou-se e enterrou uma delas no corpo da figura de mulher.

 

Mais um furúnculo, Derfel! disse ela, e vi que a superfície do corpo estava cheia de outras bagas.

 

E outro, e outro!

 

Deu uma gargalhada, enterrando as bagas secas no corpo vermelho.

 

Provocamos-lhe dor, Derfel? Fazemo-la gritar?

 

E com estas palavras retirou uma tosca faca do cinto, a Faca de Laufrodedd, e golpeou a cabeça da mulher com a sua lâmina romba.

 

Ah, agora ela grita! disse Nimue. Eles estão a tentar aquietá-la, mas a dor é tão forte, tão forte!

 

E com isto volteou a lâmina. De repente, enfurecido, inclinei-me para sair da gruta. De imediato, Nimue largou a faca e colocou dois dedos sobre os olhos da figura.

 

Devo cegá-la, Derfel? sibilou ela. É isso o que pretendes?

 

Porque fazes isto? perguntei-lhe.

 

Retirou a Faca de Laufrodedd do crânio torturado.

 

Deixemo-la dormir trauteou ela, ou não?

 

E com estas palavras deu uma gargalhada demente e, com um puxão, retirou uma concha de ferro do Cesto de Garanhir, encheu-a com algumas brasas incandescentes da fogueira fumegante e espalhou-as por cima do corpo. Imaginei Ceinwyn a estremecer e a gritar, com as costas a arquearem-se com a dor repentina, e Nimue ria ao ver a minha raiva impotente.

 

Porque estou a fazer isto? perguntou ela. Porque me impediste de matar Gwydre. E porque tu podes trazer os Deuses de volta à terra. É por isso.

 

Olhei-a fixamente.

 

Também tu estás louca disse-lhe eu em voz baixa.

 

O que sabes tu da demência? perguntou-me Nimue, bruscamente. Tu e a tua mente mesquinha, a tua mente mesquinha e patética. Podes tu julgar-me? Oh, dor! E enterrou a faca nos seios da figura.

 

Dor! Dor!

 

Os dementes atrás de mim juntavam-se aos seus gritos.

 

Dor! Dor! exultavam eles, alguns batendo palmas e outros rindo de satisfação.

 

Pára! gritei-lhe.

 

Nimue acocorou-se por cima da figura torturada com a faca no ar.

 

Quere-la de volta, Derfel?

 

Sim eu estava prestes a chorar.

 

Ela é-te muito querida?

 

Sabes que sim.

 

Preferias deitar-te com isto Nimue gesticulou para a grotesca figura de barro, do que com Olwen?

 

Deito-me apenas com Ceinwyn respondi-lhe.

 

Então, dar-ta-ei de novo afirmou Nimue, e bateu com ternura na fronte da figura de barro.

 

Curarei a tua Ceinwyn prometeu-me Nimue, mas primeiro tens de me dar o que para mim é mais precioso. É esse o meu tributo.

 

E o que é para ti mais precioso? perguntei-lhe, conhecendo a resposta mesmo antes de ela ma dar.

 

Tens de me trazer a Excalibur, Derfel afirmou Nimue, e tens, igualmente, de me trazer Gwydre.

 

Porquê Gwydre? perguntei-lhe. Ele não é filho de nenhum governante.

 

Porque foi prometido aos Deuses, e eles exigem o que lhes foi prometido. Tens de mo trazer antes da próxima Lua-cheia. Levarás Gwydre e a espada para onde as águas se encontram sob Nant Dduu. Conheces esse local?

 

Conheço-o afirmei, sombriamente.

 

E se não os levares, Derfel, juro-te que o sofrimento de Ceinwyn aumentará. Colocarei vermes no seu ventre, tornarei líquidos os seus olhos, farei com que a sua pele descame e a sua carne lhe apodreça nos ossos esboroados e, apesar de rogar pela morte, não lha enviarei, causando-lhe ainda mais dor.

 

Eu tinha vontade de dar um passo em frente e matar Nimue ali mesmo e naquele instante. Ela fora uma amiga e até mesmo, em certa ocasião, uma amante, mas agora distanciara-se tanto de mim para um mundo onde os espíritos eram reais e as pessoas eram fingimentos.

 

Traz-me Gwydre e a Excalibur prosseguiu Nimue com o seu único olho a luzir na obscuridade da gruta, e libertarei Ceinwyn do seu Outro Corpo, e a ti do juramento que me prestaste. Conceder-te-ei ambas.

 

Ela deu um passo atrás e agarrou num pedaço de tecido. Abriu-o com uma sacudidela e vi que era a velha capa que me fora roubada em Isca. Ela remexeu na capa, encontrou o que queria, e elevou-a entre o polegar e o indicador. Vi que segurava a pequena ágata desaparecida do anel de Ceinwyn.

 

Uma espada e um sacrifício disse ela, por uma capa e uma pedra. Fazes isso, Derfel? perguntou-me ela.

 

Sim afirmei, sem intenção de o fazer, mas desconhecendo o que mais podia dizer. Deixas-me com ela, agora? perguntei-lhe.

 

Não respondeu Nimue a sorrir. Mas queres que ela repouse esta noite? Então, apenas esta noite, Derfel, dar-lhe-ei um pouco de sossego.

 

Assoprou as cinzas de cima do corpo, apanhou as bagas e retirou com um puxão os amuletos que haviam sido pregados ao corpo.

 

Pela manhã informou-me Nimue, colocá-los-ei no mesmo sítio.

 

Não!

 

Nem todos disse ela, mas colocarei sempre mais um até ao dia em que me constar que te diriges para o local onde as águas se encontram em Nant Dduu. Ela puxou um fragmento de osso queimado do ventre da figura. E quando eu tiver a espada, continuou, o meu exército de dementes fará fogueiras tamanhas que a noite da Véspera do Samain se tornará dia. E Gwydre regressará para ti, Derfel. Ele repousará no Caldeirão e os Deuses beijá-lo-ão até viver de novo, Olwen deitar-se-á com ele, e depois cavalgará em glória com a Excalibur na mão.

 

Ela pegou num jarro de água e deitou um pouco na testa da figura de barro, depois amaceou com delicadeza o corpo reluzente.

 

Agora vai-te disse ela, a tua Ceinwyn dormirá e Olwen tem algo mais para te mostrar. Ao amanhecer partirás.

 

Cambaleei atrás de Olwen, empurrando a multidão de gente horrível que sorria e se amontoava em volta da gruta, e segui a rapariga que dançava ao longo do promontório até outra gruta. No seu interior vi uma segunda figura de barro de um corpo humano, desta vez de um homem, e Olwen gesticulou na sua direcção, depois deu um risinho abafado.

 

Sou eu? perguntei-lhe, porque reparei que o corpo estava liso e sem marcas, mas depois, ao examiná-la, vi que os olhos do corpo masculino haviam sido arrancados.

 

Não, Senhor afirmou Olwen, não sois vós. Ela deteve-se junto à figura e agarrou numa comprida agulha em osso que repousara ao lado das suas pernas. Vede disse ela, e enterrou a agulha no pé do corpo. Algures atrás de nós, um homem gritou de dor. Olwen fez um risinho. Novamente disse ela, e voltou a enterrar o osso no outro pé, ouvindo-se, de novo, a voz a gritar de dor. Olwen riu, depois agarrou-me na mão. Vinde disse ela, e levou-me a uma profunda fenda que dava para o promontório. A fenda estreitava-se mais, depois parecia terminar abruptamente à nossa frente, já que eu conseguia ver apenas a luminusidade esbatida de luzes de fogueiras reflectidas no elevado rochedo, mas depois vi que uma espécie de jaula fora construída no final do desfiladeiro. Cresciam ali dois espinheiros-alvar e rudes barrotes de madeira haviam sido pregados, atravessados sobre os barrotes, para formarem grosseiras grades de prisão. Olwen largou a minha mão e empurrou-me para diante. Virei ter convosco pela manhã, Senhor. Tendes mantimentos a aguardar-vos. Ela sorriu, virou-se e desapareceu a correr.

 

No início pensei que a rude prisão era uma espécie de abrigo, e que quando me aproximasse encontraria uma entrada por entre as grades, mas não havia nenhuma porta. A jaula barrava os últimos e escassos metros da fenda, e os prometidos mantimentos aguardavam-me por baixo de um dos espinheiros-alvar. Encontrei pão, carneiro seco e um jarro de água. Sentei-me, parti o pão, e, de repente, algo se mexeu no interior da jaula. Virei-me alarmado, enquanto algo se movia na minha direcção.

 

No início pensei que era um animal, depois vi que era um homem, e foi então que vi Merlim.

 

Serei bom disse-me Merlim, serei bom.

 

Nesse instante percebi de quem era o corpo da segunda figura de barro, porque Merlim estava cego. Não tinha olhos. Era apenas horror.

 

Espinheiros nos meus pés disse ele. Nos meus pés. Depois deixou-se cair no interior das grades e murmurou:

 

Serei bom, prometo! Inclinei-me.

 

Merlim? perguntei. Ele estremeceu.

 

Serei bom! repetiu desesperado, e quando coloquei uma mão por entre as grades tocando-lhe no cabelo emaranhado e imundo, ele recuou e arrepiou-se.

 

Merlim? repeti.

 

Sangue no corpo disse ele, tens de pôr sangue no corpo. Mexe-o bem. O sangue de uma criança resulta melhor, ou pelo menos assim me foi dito. Nunca o fiz, minha querida. Tanaburs fê-lo, eu sei, e, certa vez, falei com ele sobre isso.

 

Claro que ele estava louco, mas sabia ainda algumas coisas insignificantes. ”O sangue de uma criança ruiva”, disse-me, ”e de preferência de uma criança ruiva aleijada.” Qualquer criança servirá, claro, mas a ruiva aleijada será melhor.

 

Merlim disse eu. Sou Derfel.

 

Ele continuou a balbuciar, dando instruções sobre a melhor forma de fazer a figura de um corpo em barro para que o mal pudesse ser enviado de longe. Ele falou de sangue, de bagas e da necessidade de moldar o corpo durante o ribombar de um trovão. Não me ouvia, e quando me levantei e tentei afastar as grades das árvores, surgiram atrás de mim, vindos das sombras da fenda, dois lanceiros a sorrir. Eram Escudos de Sangue, e as suas lanças detiveram-me, interrompendo a minha tentativa de libertar o ansião. Voltei a inclinar-me.

 

Merlim! chamei.

 

Ele arrastou-se para mais perto, cheirando.

 

Derfel? perguntou ele.

 

Sim, Senhor.

 

Ele tacteou na minha direcção, e estendi-lhe a minha mão, que ele agarrou com bastante força. Depois, continuando a segurá-la, deixou-se cair.

 

Estou demente, sabes? disse-me ele numa voz sã.

 

Não, Senhor afirmei.

 

Tenho sido punido.

 

Por nada, Senhor.

 

Derfel? És mesmo tu?

 

Sou eu, Senhor. Quereis comer?

 

Tenho muito que te contar, Derfel.

 

Assim o espero, Senhor afirmei, mas ele parecia incapaz de ordenar os seus pensamentos, e durante os instantes que se seguiram, voltou a falar no corpo de barro, depois, de outros encantamentos, e esqueceu-se novamente de quem eu era, porque me chamava Artur, ficando depois durante bastante tempo em silêncio. Derfel? voltou, por fim, a perguntar.

 

Sim, Senhor.

 

Nada pode ser escrito, compreendes?

 

Tendes-mo dito tantas vezes, Senhor.

 

Todo o nosso saber tem de ser lembrado. Caleddin escreveu tudo, e foi então que os Deuses iniciaram a retirada. Mas está na minha cabeça. Estava. E ela tirou-mo. Tudo. Ou quase tudo. Sussurrou as três últimas palavras.

 

Nimue? perguntei, e ele apertou-me a mão com tamanha força à menção do seu nome, permanecendo depois, de novo, em silêncio.

 

Ela cegou-vos? perguntei-lhe.

 

Oh, ela foi obrigada a fazê-lo! respondeu, franzindo as sobrancelhas ao tom de desaprovação da minha voz. Não havia outra forma de o fazer, Derfel. Devia ter-me ocorrido, porque isso era evidente.

 

Não para mim afirmei, amargurado.

 

Bastante óbvio! É absurdo pensar o contrário disse ele, depois largou-me a mão e tentou compor a barba e o cabelo.

 

A sua tonsura havia desaparecido por baixo de um novelo de cabelo emaranhado e sujo, a sua barba estava desgrenhada e cheia de folhas, enquanto o seu manto branco estava da cor da lama.

 

Agora ela é um druida afirmou ele num tom maravilhado.

 

Julguei que as mulheres não pudessem ser druidas afirmei.

 

Não sejas absurdo, Derfel. Pela simples razão de as mulheres nunca serem druidas não significa que não possam sê-lo! Qualquer um pode ser druida! Tudo o que precisa é de memorizar as seiscentas e oitenta e quatro maldições de Beli Mawr e os duzentos e sessenta e nove feitiços de Lleu, e ter presente cerca de cem outras coisas úteis. Nimue, devo confessar, foi uma excelente pupila.

 

Mas porquê cegar-vos?

 

Temos entre nós um olho. Um olho e uma mente. Permaneceu de novo em silêncio.

 

Falai-me da figura em barro do corpo humano, Senhor pedi-lhe.

 

Não! Ele afastou-se de mim com terror na voz. Ela disse-me para não te contar acrescentou num sussurro rouco.

 

Como a venço? quis eu saber. Ele riu a esta minha pergunta.

 

Tu, Derfel? Tu enfrentarias a minha magia?

 

Diz-me como, insisti.

 

Afastou-se das grades e voltou os buracos dos seus olhos vazados para a esquerda e para a direita como se procurasse algum inimigo que pudesse estar a ouvir-nos escondido.

 

Por sete vezes disse ele, sonhei com Carn Ingli.

 

Ele regressara ao estado de demência, e, durante toda essa noite, descobri que se tentasse fazê-lo contar-me os segredos sobre a doença de Ceinwyn, ele faria o mesmo. Balbuciaria sobre os sonhos, sobre a rapariga de trigo que amara junto às águas de Claerwen ou sobre os cães de caça de Trygwylth que ele achava que o perseguiam.

 

É por essa razão que tenho estas grades, Derfel disse-me ele, pisando as ripas de madeira, para que os cães não consigam alcançar-me. E por que razão não tenho olhos. Para que eles não consigam ver-me. Sabes que os cães não conseguem ver-te se não tiveres olhos. Devias lembrar-te disso.

 

Nimue afirmei a dada altura, trará os Deuses de volta?

 

Foi por essa razão que ela se apoderou da minha mente, Derfel disse Merlim.

 

Porque conseguiu ela fazê-lo?

 

Uma boa questão! Uma excelente questão. Essa é uma questão que me coloco incessantemente. Sentou-se e abraçou os joelhos ossudos. Faltou-me força, não foi? Traí-me a mim mesmo. Mas Nimue não o fará. Ela irá até ao fim mais amargo, Derfel.

 

Todavia, terá ela êxito?

 

Muito me agradaria ter um gato confessou-me após algum tempo. Sinto verdadeiramente a falta dos gatos.

 

Falai-me da invocação.

 

Já sabes tudo sobre isso! disse ele indignado. Nimue conseguirá a Excalibur, apanhará o pobre Gwydre, e os ritos serão representados devidamente. Aqui, na montanha. Contudo, virão os Deuses? É essa a questão, não é? Tu veneras Mitras, não é?

 

Sim, Senhor.

 

E o que sabes tu sobre Mitras?

 

Que é o Deus dos soldados respondi, nascido numa gruta. Ele é o Deus do Sol.

 

Merlim deu uma gargalhada.

 

Sabes tão pouco! Ele é o Deus dos votos. Sabias isso? Ou tens os graus do mitraísmo? Quantos graus tens tu? Hesitei, não desejando revelar-lhe os segredos dos meus mistérios. Não sejas absurdo, Derfel! afirmou Merlim, com uma voz tão sã como sempre fora ao longo de toda a sua vida. Quantos? Dois? Três?

 

Dois, Senhor.

 

Então, esqueces-te dos outros cinco! Quais são os teus dois?

 

Soldado e Pai.

 

Miles e Pater, assim deviam ser nomeados. E, outrora, existiram ainda Leo, Corax, Perses, Nymphus e Heliodromus. Quão pouco sabes tu sobre o teu miserável Deus, mas então, a tua veneração é uma simples veneração-sombra. Sobes a escada dos sete degraus?

 

Não, Senhor.

 

Bebes o vinho e comes o pão?

 

Esse é o preceito cristão, Senhor protestei.

 

O preceito cristão! Que idiotas são todos vocês! A mãe de Mitras era virgem; pastores e sábios foram ver o seu filho recém-nascido, e o próprio Mitras cresceu para se tornar um curador e um pregador. Tinha doze discípulos, e, na véspera da sua morte, ofereceu-lhes uma última ceia de pão e vinho. Foi sepultado num túmulo de pedra e ressuscitou, e fez tudo isto antes de os cristãos pregarem o seu Deus a uma árvore. Vós deixastes que os cristãos roubassem as vestes do vosso Deus, Derfel!

 

Olhei-o com os olhos bem abertos.

 

É isso verdade? perguntei-lhe.

 

É verdade, Derfel afirmou Merlim, e ergueu o seu rosto destroçado para as rudes grades. Tu veneras um Deus-sombra. Ele passa, entendes, justamente como os nossos Deuses passam. Todos eles partirão, Derfel, partirão para o vazio. Olha! Apontou para as nuvens no céu. Os Deuses vêm e os Deuses vão, Derfel, e já não sei se eles nos ouvem nem se nos vêem. Eles passam na grande roda dos céus, e agora é o Deus cristão quem reina, e fá-lo-á durante algum tempo, mas a roda também o levará para o vazio, e, uma vez mais, a humanidade estremecerá nas trevas e buscará novos Deuses. E encontrá-los-á, porque os Deuses vêm e vão, Derfel, eles vão e vêm.

 

Mas, Nimue fará a roda girar ao contrário? perguntei-lhe.

 

Talvez o faça disse Merlim com tristeza, e isso muito me agradaria, Derfel. Eu gostaria de reaver os meus olhos, a minha juventude, e a minha alegria. Ele descansou a sua fronte nas grades. Não te ajudarei a quebrar o feitiço disse-me ele tão brandamente, que quase não o ouvi. Amo Ceinwyn, mas se ela tiver de sofrer pelos Deuses, estará a fazer algo de nobre.

 

Senhor iniciei o meu rogo.

 

Não! gritou ele tão alto que no acampamento por detrás de nós alguns cães uivaram em resposta. Não repetiu mais brandamente. Comprometi-me uma vez e não voltarei a fazê-lo, porque, qual seria o preço do compromisso? Sofrimento! Mas, se Nimue conseguir representar os ritos, então todo o nosso sofrimento terminará. Em breve, terminará. Os Deuses regressarão, Ceinwyn dançará e eu voltarei a ver.

 

Ele dormitou por breves instantes e eu fiz o mesmo. Contudo, após algum tempo, acordou-me, estendendo uma mão através das grades e agarrando-me no braço.

 

Os guardas estão a dormir? perguntou-me.

 

Creio que sim, Senhor.

 

Então busca a bruma prateada sussurrou-me.

 

Por instantes, julguei que ele regressara ao estado de demência.

 

Senhor? perguntei-lhe.

 

Por vezes, penso disse ele, e a sua voz parecia-me bastante lúcida, que no mundo não resta muito mais do que a magia. É como o destino dos Deuses. Todavia, não entreguei tudo a Nimue, Derfel. Ela julga que sim, mas guardei um último encantamento. E guardei-o para ti e para Artur, porque vos amo a ambos mais do que a qualquer homem. Se Nimue falhar, Derfel, então procura Caddwg. Lembras-te de Caddwg?

 

Caddwg era o barqueiro que nos havia salvo de Ynys Trebes muitos anos antes, e o homem que apanhara os bivalves de Merlim.

 

Recordo-me de Caddwg afirmei.

 

Agora vive em Camlann informou-me Merlim num sussurro. Procura-o, Derfel, a ele e à bruma prateada. Lembra-te disto. Se Nimue falhar e o horror advier, leva Artur para Camlann e procura Caddwg e a bruma prateada. É o encantamento final. A minha oferenda àqueles que foram meus amigos. Os seus dedos apertaram-se no meu braço. Promete-me que o farás.

 

Fá-lo-ei, Senhor prometi-lhe.

 

Ele pareceu aliviado. Sentou-se por breves instantes, agarrou-me no braço, depois suspirou.

 

Gostaria de te acompanhar. Mas não posso.

 

Podeis, Senhor, afirmei.

 

Não sejas absurdo, Derfel. Devo ficar aqui. Nimue usar-me-á uma última vez. Posso estar velho, cego, semilouco e quase morto, mas ainda detenho poder dentro de mim. Ela quere-o. Ele soltou um breve mas horrível lamento. Já nem sequer posso chorar afirmou, e há alturas em que aquilo que me apetece fazer é chorar. Mas, na bruma prateada, Derfel, nessa bruma prateada, não encontrarás choro algum, nem tempo, apenas alegria.

 

Voltou a adormecer, e quando acordou já amanhecera e Olwen vinha ter comigo. Acariciei o cabelo de Merlim, mas ele voltara ao estado de demência. Uivou como um cão, e Olwen riu ao ouvi-lo. Desejei poder dar-lhe alguma coisa, algo pequeno que o confortasse, mas eu não tinha nada. Por isso deixei-o, e parti com o seu último presente, apesar de não compreender o que era; o último encantamento.

 

Olwen não me levou pelo mesmo caminho que nos havia trazido ao acampamento de Nimue. Em vez desse, descemos uma comba íngreme, e depois entrámos num escuro bosque onde um ribeiro corria por entre as rochas. Começara a chover e o nosso caminho era traiçoeiro, mas Olwen dançava diante de mim na sua capa ensopada.

 

Gosto da chuva! gritou-me ela uma vez.

 

Julguei que gostasses do Sol disse-lhe, sombriamente.

 

Gosto de ambos, Senhor afirmou. Ela estava com a sua habitual disposição, mas eu quase não ouvia a maior parte do que dizia. Pensava em Ceinwyn e em Merlim, em Gwydre e em Excalibur. Pensava que estava numa ratoeira, e não encontrava forma de sair dela. Teria de escolher entre Ceinwyn e Gwydre? Olwen devia ter imaginado o que me ia no espírito, porque se aproximou de mim e enfiou o seu braço no meu. Os vossos tormentos em breve chegarão ao fim, Senhor disse-me ela, confortando-me.

 

Afastei o meu braço.

 

Ainda agora começaram afirmei, amargamente.

 

Mas Gwydre não permanecerá morto! afirmou, encorajadoramente. Ele jazerá no Caldeirão, mas o Caldeirão confere vida.

 

Ela acreditava nisso, mas eu não. Continuava a acreditar nos Deuses, mas já não acreditava que pudéssemos submetê-los à nossa vontade. Pensei que Artur tivera razão. É para nós próprios que devemos olhar, não para os Deuses. Eles têm os seus próprios divertimentos, e se não formos nós os seus brinquedos, então deveremos alegrar-nos.

 

Olwen deteve-se junto a um lago, sob as árvores.

 

Aqui há castores afirmou, olhando fixamente para a água que ondulava com a chuva, e como eu nada disse ela levantou os olhos e sorriu. Se continuardes a descer ao longo do ribeiro, Senhor, chegareis a um caminho. Segui-o, descendo a colina, e encontrareis uma estrada.

 

Segui o caminho e caminhei pela estrada, que surgia das colinas próximo do antigo forte romano de Cicucium. Este alojava, agora, um grupo de famílias nervosas. Os seus homens viram-me e irromperam do portão destruído do forte com lanças e cães, mas eu passei o ribeiro e subi a colina aos tropeções. Quando perceberam que não queria fazer-lhes mal, que não levava nenhuma arma e era evidente que não se tratava do batedor de nenhuma facção oposta à sua, contentaram-se em zombar de mim. Não me lembrava de ter andado tanto tempo desarmado, desde a minha infância. Isso fazia um homem sentir-se nu.

 

Levei dois dias a chegar a casa; dois dias de pensamentos sombrios, sem encontrar nenhuma resposta. Gwydre foi o primeiro a ver-me descer a rua principal de Isca e correu a saudar-me.

 

Ela está melhor do que estava, Senhor gritou ele.

 

Mas está a piorar novamente afirmei. Ele hesitou.

 

Sim. Mas há duas noites atrás julgámos que ela recuperava olhou-me com ansiedade, preocupado com a minha aparência soturna.

 

E desde então afirmei, ela tem piorado.

 

Contudo, temos de ter esperança. Gwydre tentou encorajar-me.

 

Talvez afirmei, embora já não tivesse nenhuma. Fui para junto do leito de Ceinwyn e ela reconheceu-me e tentou sorrir-me, mas a dor crescia novamente dentro de si e o sorriso surgiu como uma careta semelhante à de uma caveira. Ela tinha uma bela melena de cabelo novo, mas estava todo branco. Curvei-me, sujo como estava, e beijei-a na testa.

 

Mudei de roupa, lavei-me e escanhoei-me, prendi a Hywelbane à cintura e depois falei a Artur. Contei-lhe tudo o que Nimue me dissera, mas Artur não sabia o que dizer, ou não me disse nada. Ele não entregaria Gwydre, e isso condenaria Ceinwyn, mas não podia dizer-mo. Ao invés, pareceu irritado.

 

Estou farto destes disparates, Derfel.

 

Um disparate que está a agonizar Ceinwyn, Senhor censurei-o.

 

Então, temos de a sarar afirmou ele, contudo a consciência obrigou-o a fazer uma pausa. Franziu o sobrolho. Achas que Gwydre ressuscitará, se for colocado no Caldeirão?

 

Meditei na questão e não fui capaz de lhe mentir.

 

Não, Senhor.

 

Nem eu disse ele, e chamou Guinevere, mas a única sugestão que ela conseguiu dar foi que consultássemos Taliesin.

 

Taliesin escutou a minha história.

 

Dizei de novo o nome dos feitiços, Senhor pediu ele quando terminei.

 

O feitiço do fogo afirmei, o feitiço da água, o feitiço do espinheiro negro e o cruel feitiço do Outro Corpo.

 

Ele estremeceu quando pronunciei este último.

 

Os três primeiros consigo anular afirmou, mas o último? Não conheço ninguém que consiga anulá-lo.

 

Porque não? perguntou Guinevere, acutilante. Taliesin encolheu os ombros.

 

É o conhecimento mais elevado, Senhora. A aprendizagem de um druida não cessa com a sua prática, prosseguindo em novos mistérios. Eu não segui esse caminho. E suspeito que nenhum homem, à excepção de Merlim, o fez na Bretanha. O Outro Corpo é uma magia excepcional e para a anular precisamos de uma magia tão excepcional como ela. Infelizmente, não a possuo.

 

Olhei, fixamente, para as nuvens prenunciadoras de chuva, que pairavam sobre os telhados de Isca.

 

Se eu cortar a cabeça de Ceinwyn, Senhor perguntei a Artur, cortais a minha instantes depois?

 

Não disse ele, com repugnância.

 

Senhor! roguei-lhe.

 

Não! disse ele, irado. Estava ofendido com a conversa sobre a magia. Pretendia um mundo onde a razão governasse, não a magia, mas nenhum dos seus raciocínios nos ajudava agora.

 

Então, Guinevere falou em voz baixa.

 

Morgana disse ela.

 

O que tem ela? perguntou-lhe Artur.

 

Antes de Nimue foi ela a sacerdotisa de Merlim afirmou Guinevere. Se há alguém que conheça a magia de Merlim, é Morgana.

 

Então, Morgana foi mandada chamar. Ela coxeou pelo pátio, fazendo os possíveis por vir envolta numa aura de ira. A sua máscara dourada luzia ao movimentar a cabeça para olhar para cada um de nós e, ao ver que não estava nenhum cristão presente, fez o sinal da cruz. Artur arranjou-lhe uma cadeira, mas ela recusou-a, dizendo que tinha pouco tempo disponível para nós. Desde que o marido partira para Gwent, Morgana afadigava-se num santuário cristão a norte de Isca. Doentes deslocavam-se até lá para morrer, e ela alimentava-os, tratava deles e rezava por eles. As gentes dizem até hoje que o seu marido foi um santo, mas creio que a mulher é considerada santa pelo próprio Deus.

 

Artur contou-lhe a história e Morgana resmoneou a cada revelação, mas quando Artur falou no feitiço do Outro Corpo ela fez o sinal da cruz e, depois, cuspiu através da ranhura da máscara ao nível da boca.

 

Então, o que querem vocês de mim? perguntou ela, beligerante.

 

Consegues anular o feitiço? perguntou-lhe Guinevere.

 

Rezar pode anulá-lo! declarou Morgana.

 

Mas tendes rezado disse Artur, desesperado, e o bispo Emrys tem rezado. Todos os cristãos de Isca têm rezado e Ceinwyn continua doente.

 

Porque ela é pagã afirmou Morgana, vituperante. Por que razão havia Deus de desperdiçar a sua misericórdia com pagãos, quando tem o seu próprio rebanho para cuidar?

 

Não respondeste à minha pergunta disse Guinevere, friamente. Ela e Morgana odiavam-se, mas por causa de Artur fingiam uma cortesia fria quando se encontravam.

 

Morgana permaneceu em silêncio por algum tempo, depois, abruptamente, assentiu com a cabeça.

 

A praga pode ser anulada disse ela, se vocês acreditarem nessas superstições.

 

Eu acredito afirmei.

 

Mas até mesmo pensar nisso é pecado! gritou Morgana, e fez novamente o sinal da cruz.

 

O vosso Deus certamente vos perdoará afirmei.

 

O que sabes tu sobre o meu Deus, Derfel? perguntou-me amargamente.

 

Sei, Senhora afirmei, tentando lembrar-me de todas as coisas que Galaad me contara ao longo de anos, que o vosso Deus é um Deus que ama, um Deus que perdoa e um Deus que enviou o Seu próprio Filho à terra para que outros não sofressem fiz uma pausa, mas Morgana nada respondeu. Também sei continuei, devagar que Nimue prepara um imenso mal nas colinas.

 

A menção de Nimue deverá ter convencido Morgana, porque ela nunca se conformara com o facto de a jovem ter usurpado o seu lugar junto de Merlim.

 

É a figura de um corpo humano em barro? perguntou-me ela, feita com sangue de criança, orvalho, e moldada sob o ribombar do trovão?

 

Justamente afirmei.

 

Ela estremeceu, abriu os braços e orou em silêncio. Nenhum de nós disse nada. A sua oração decorreu por longo tempo, e talvez esperasse que a deixássemos sozinha, mas como nenhum de nós deixasse o pátio, ela deixou cair os braços e voltou-se de novo para nós.

 

Que amuletos usa a bruxa?

 

Bagas afirmei, lascas de osso, brasas.

 

Não, idiota! Que amuletos? Como chega ela a Ceinwyn?

 

Ela tem a pedra de um dos anéis de Ceinwyn e uma das minhas capas.

 

Ah! exclamou Morgana, interessada, apesar da sua repulsa pelas superstições pagãs. Porquê uma das tuas capas?

 

Não sei.

 

É simples, seu tolo disse ela, rispidamente, o mal circula através de ti!

 

De mim?

 

Não compreendes nada? perguntou ela, irada. Claro que é através de ti. Estiveste próximo de Nimue, não foi?

 

Sim afirmei, corando sem querer.

 

Então, o que significa isso? perguntou ela. Ela deu-te algum amuleto? Uma lasca de osso? Algum disparate pagão para colocares em volta do pescoço?

 

Ela deu-me isto respondi, e mostrei-lhe a cicatriz na minha mão esquerda.

 

Morgana examinou a cicatriz, depois estremeceu. Permaneceu calada.

 

Anula o feitiço, Morgana pediu-lhe Artur. Morgana continuou em silêncio.

 

É interdito disse ela, após alguns instantes praticar feitiçaria como passatempo. As Sagradas Escrituras dizem-nos que não devemos experimentar a feitiçaria.

 

Então diz-me como se faz pediu-lhe Taliesin.

 

Tu? gritou-lhe Morgana. Tu? Achas que consegues anular a magia de Merlim? Se tiver de ser feito, então que o seja com preceito.

 

Por ti? perguntou-lhe Artur e Morgana lamureou. A sua mão intacta fez o sinal da cruz e, depois, abanou a cabeça e pareceu não conseguir proferir nem uma única palavra. Artur franziu o sobrolho. O que pretende o teu Deus? perguntou ele

 

As vossas almas! gritou Morgana.

 

Pretendes que me torne cristão? perguntei-lhe.

 

A máscara de ouro com a sua cruz gravada elevou-se para me encarar.

 

Sim disse Morgana, simplesmente.

 

Fá-lo-ei afirmei com a mesma brevidade. Ela apontou-me a mão.

 

Serás baptizado, Derfel?

 

Sim, Senhora.

 

E juras obediência a meu esposo. Aquilo deteve-me. Olhei fixamente para ela.

 

A Sansum? perguntei, debilmente.

 

Ele é Bispo! insistiu Morgana. Ele tem a autoridade de Deus! Concordarás em jurar-lhe obediência, concordarás em ser baptizado, e só então anularei a maldição.

 

Artur olhava-me, fixamente. Por instantes, não consegui engolir a humilhação do pedido de Morgana, mas depois pensei em Ceinwyn e assenti.

 

Fá-lo-ei disse-lhe eu.

 

Então, Morgana arriscou-se à ira do seu Deus e anulou a praga.

 

Ela fê-lo nessa tarde. Chegou ao pátio do palácio vestida com uma túnica negra e sem máscara, para que o horror do seu rosto deformado pelo fogo, todo vermelho, com cicatrizes, hirto e retorcido fosse visível para todos nós. Estava enfurecida consigo mesma, mas cumpria a sua promessa e apressou-se a fazer o que tinha a fazer. Foi ateado um brazeiro e alimentado com carvão e, enquanto o lume espevitava, alguns escravos foram buscar cestos com corpos humanos em barro, que Morgana moldara na figura de uma mulher. Ela usou sangue de uma criança que morrera na cidade, nessa manhã, e água que um escravo trouxera do poço do pátio já com musgo, e misturou ambos com o corpo. Não havia trovões, mas Morgana afirmou que o contrafeitiço não necessitava de trovões. Cuspiu, horrorizada, para o que acabara de fazer. Era uma imagem grotesca, uma mulher com os seios enormes, de pernas abertas e com uma fenda a fazer de canal de nascimento. No ventre da figura, ela escavou um buraco, afirmando ser o ventre onde o mal se alojava. Artur, Taliesin e Guinevere observavam enfeitiçados, enquanto ela moldava a figura e, depois, quando caminhou três vezes em volta da figura obscena. Depois da terceira volta no sentido do sol ela deteve-se, levantou a cabeça para as nuvens e gemeu. Por instantes, julguei que sentisse tantas dores que não pudesse prosseguir, e que o seu Deus lhe ordenava que parasse a cerimónia, mas depois virou o seu rosto deformado para mim.

 

Preciso agora do mal disse ela.

 

Que é? perguntei.

 

A fenda que era agora a sua boca pareceu sorrir.

 

A tua mão, Derfel.

 

A minha mão?

 

Agora, eu via que a ranhura sem lábios era, de facto, um sorriso.

 

A mão que te liga a Nimue afirmou Morgana. De que outra forma pensas tu que o mal se propaga? Tens de a cortar, Derfel e entregar-ma.

 

Certamente Artur iniciou o seu protesto.

 

Vocês forçam-me a pecar, Morgana virou-se para o irmão com um guincho, e depois desafiam a minha sabedoria?

 

Não disse Artur, apressadamente.

 

Nada tenho com que me preocupar disse ela, despreocupadamente. Se Derfel quiser ficar com a sua mão, que seja. Ceinwyn pode sofrer.

 

Não afirmei. Não.

 

Mandámos chamar Galaad e Culhwuch, depois Artur levou-nos aos três para a sua oficina de ferreiro, onde a forja ardia dia e noite. Retirei o meu anel de amantes do dedo da minha mão esquerda e entreguei-o a Morridig, o ferreiro de Artur, pedindo-lhe que fundisse o anel em torno do botão da Hywelbane. O anel era de ferro vulgar, um anel de guerreiro, mas tinha uma cruz feita em ouro que eu roubara do Caldeirão de Clyddno Eiddyn, e era o par de um anel que Ceinwyn usava.

 

Colocámos um pesado toro de madeira na bigorna. Galaad segurou-me com força, colocando os seus braços à minha volta, e eu firmei o braço e coloquei a minha mão esquerda sobre a madeira. Culhwuch agarrou-me na testa, não para que eu me mantivesse quieto, mas para o que viria depois.

 

Artur levantou a Excalibur.

 

Tens a certeza, Derfel? perguntou-me ele.

 

Fazei-o, Senhor afirmei.

 

Morridig observou de olhos esbugalhados quando a lâmina brilhante tocou nos cepos acima da bigorna. Artur fez uma pausa, depois desferiu um único golpe. Fê-lo com força e, por segundos, não senti qualquer dor, nada. Contudo, em seguida Culhwuch agarrou-me no pulso, que jorrava sangue, e impeliu-o para o carvão incandescente da forja. Foi então que a dor me percorreu como o golpe de uma lança. Gritei, e não me recordo de mais nada.

 

Soube, mais tarde, que Morgana agarrou na mão decepada, com a sua cicatriz fatal, e a enterrou no ventre do corpo da mulher. Depois, como um cântico pagão, tão antigo como o tempo, retirou a mão ensanguentada pelo canal do nascimento e atirou-a para o brazeiro.

 

E foi deste modo que me tornei cristão.

 

               O Último Encantamento

 

A Primavera chegou a Dinnewrac. O mosteiro está mais quente e o silêncio das nossas orações é apenas quebrado pelos balidos dos carneiros e pelo canto das cotovias. Violetas brancas e morugem crescem em sítios onde, outrora, só havia neve. O melhor de tudo, porém, é a notícia de que Igraine deu à luz uma criança. É um rapaz, e mãe e filho estão ambos de perfeita saúde. Deus seja louvado por isso, e pela chegada do tempo quente. Para além disso, pouco mais há a agradecer. A Primavera deveria ser uma estação alegre, mas de todo o lado nos chegam rumores sinistros e assustadores.

 

Os saxões voltaram, embora ninguém saiba se foram os seus guerreiros quem ateou as fogueiras que vislumbrámos a noite passada, iluminando o horizonte, a leste daqui. E, no entanto, as fogueiras ardiam com intensidade, incendiando o céu nocturno como um prenúncio do inferno. De madrugada, recebemos a visita de um camponês, que nos trouxe alguns toros de tília com os quais podemos fazer uma nova batedeira de leite, e nos disse que as fogueiras tinham sido ateadas por bandos de salteadores irlandeses. Nós, todavia, duvidamos que assim seja, já que durante as últimas semanas têm circulado demasiadas histórias sobre bandos de guerreiros saxões. O grande feito de Arthur foi ter-nos mantido a salvo dos Saxões durante uma geração inteira e, para que isso fosse possível, ele ensinou os nossos reis a terem coragem. Mas quão fracos se tornaram os nossos governantes, desde então! E agora, os Sais estão de volta, como uma praga.

 

Dafydd, o escrivão encarregue de traduzir estes pergaminhos para a língua britânica, veio buscar as últimas peles, hoje, e confidenciou-me que era quase certo que as fogueiras eram obra dos Saxões. Depois informou-me que o novo filho de Igraine deverá chamar-se Artur. Artur ap Brochvael ap Perddel ap Cuneglas; um bom nome, embora fosse claro que Dafydd não o aprovava. A princípio, não consegui perceber porquê. É um homem pequeno, parecido com Sansum, com a mesma expressão atarefada e o mesmo cabelo hirsuto. Sentou-se no peitoril da minha janela enquanto lia os pergaminhos concluídos, soltando breves interjeições e abanando a cabeça de impaciência perante a minha caligrafia.

 

Porque é que Artur abandonou a Dumnónia? perguntou finalmente.

 

Porque Meurig insistiu em que o fizesse expliquei, e porque o próprio Artur nunca quis governar.

 

Mas foi uma irresponsabilidade da parte dele! afirmou Dafydd, implacável.

 

Artur não era rei retorqui, e as nossas leis são claras: só os reis podem governar.

 

As leis são maleáveis continuou Dafydd com uma fungadela, eu que o diga. E Artur deveria ter sido rei.

 

Concordo disse eu, mas não foi. Não nasceu para tal, ao contrário de Mordred.

 

Nesse caso, Gwydre tão-pouco nasceu para ser rei opôs Dafydd.

 

É verdade disse eu, mas se Mordred tivesse morrido, as pretensões de Gwydre seriam tão legítimas quanto as de outro qualquer, à excepção de Artur, claro. Artur, no entanto, não queria ser rei.

 

Pensei, atónito, nas vezes sem conta em que já explicara a mesma coisa.

 

Artur veio para a Bretanha continuei, porque jurou proteger Mordred, e no momento em que partiu para a Silúria já tinha alcançado tudo

 

aquilo a que se propusera. Unira os reinos da Bretanha, impusera a justiça na Dumnónia e derrotara os Saxões. Podia ter resistido às exigências de Meurig e ter-se dado por vencido, mas no fundo essa não era a sua vontade. Por isso devolveu a Dumnónia ao monarca a quem ela pertencia por direito e assistiu ao desmoronar de tudo aquilo que tinha construído.

 

Portanto, ele devia ter permanecido no poder contrapôs Dafydd. Dafydd, julgo eu, parece-se muito com São Sansum: um homem que nunca se pode enganar.

 

Pois devia disse eu, mas ele sentia-se cansado. Queria que fossem outros homens a carregar o fardo. Se houve algum culpado, esse fui eu! Eu deveria ter ficado na Dumnónia, em vez de passar tanto tempo em Isca. Mas naquela época, nenhum de nós foi capaz de perceber o que estava a passar-se. Nenhum de nós se apercebeu que Mordred viria a revelar-se um bom soldado, e quando nós tomámos consciência do facto convencemo-nos de que ele acabaria por morrer dentro de pouco tempo e Gwydre tornar-se-ia Rei. Então, tudo ficaria bem. Vivíamos com base na esperança e não no mundo real.

 

Continuo a achar que Artur nos deixou ficar mal disse Dafydd, e o tom das suas palavras explicava o motivo por que não aprovava o nome do Herdeiro.

 

Quantas vezes tenho sido obrigado a ouvir a mesma condenação de Artur? Se, ao menos, ele tivesse permanecido no poder, dizem eles, ainda hoje os Saxões nos prestariam vassalagem, e a Bretanha estender-se-ia de mar a mar. Todavia, no tempo em que a Bretanha tinha Artur, tudo o que fazia era queixar-se e resmungar contra ele. Quando ele dava ao povo aquilo que o povo queria, este queixava-se de que não era suficiente. Os cristãos acusavam-no de favorecer os pagãos, estes criticavam-no por tolerar os cristãos e os outros Reis, à excepção de Cuneglas e de Oengus mac Airem, invejavam-no. O apoio de Oengus de pouco valia, mas quando Cuneglas morreu, Artur perdeu o seu principal aliado real. Além do mais, Artur não abandonou ninguém. A Bretanha abandonou-se a si mesma. Foi a Bretanha que permitiu o regresso sorrateiro dos Saxões, foi a Bretanha que se envolveu em quezílias internas e, depois, arrependida, atribuiu as culpas a Artur. A Artur, que fora quem a fizera sair vitoriosa!

 

Dafydd passou os olhos pelas últimas páginas.

 

E Ceinwyn, ficou curada? perguntou-me.

 

Sim, louvado seja Deus respondi, e viveu ainda muitos anos depois disso.

 

Preparava-me para contar a Dafydd alguns pormenores sobre aqueles anos derradeiros, mas percebi que ele não estava interessado em ouvir-me e decidi guardar para mim todas aquelas recordações. Ceinwyn acabou por morrer em consequência de uma febre. Eu estava junto dela e queria queimar o seu cadáver, mas Sansum insistiu em sepultá-la à maneira cristã. Obedeci-lhe, mas passado um mês reuni um grupo de homens, filhos e netos do meus antigos lanceiros, e, juntos, desenterrámos o corpo dela e queimámo-lo numa pira, para que a sua alma pudesse juntar-se à das filhas no Outro Mundo. Não guardo quaisquer remorsos por este acto pecaminoso. Duvido que algum homem faça o mesmo por mim, embora Igraine, se alguma vez ler estas palavras, talvez mande construir uma pira funerária para mim. Rezo para que assim seja.

 

Alteras a história quando a traduzes? perguntei a Dafydd.

 

Alterá-la? ele soou indignado. A minha Rainha não me deixa alterar nem uma sílaba!

 

Estás a falar verdade? perguntei.

 

Posso, eventualmente, corrigir alguns deslizes gramaticais disse ele, juntando as peles, mas nada mais. Suponho que o fim da história esteja próximo, não?

 

Está, sim.

 

Nesse caso, regresso dentro de uma semana prometeu e, enfiando os pergaminhos dentro de um saco, apressou-se a sair.

 

Instantes mais tarde, o bispo Sansum entrou, precipitadamente, no meu aposento. Trazia um embrulho estranho que, a princípio, confundi com um pau enrolado numa velha capa.

 

Dafydd trouxe alguma novidade? perguntou.

 

A Rainha está bem disse eu, e a criança também.

 

Decidi não contar a Sansum que a criança iria chamar-se Artur, pois isso apenas deixaria o santo aborrecido, e a vida em Dinnewrac tornava-se muito mais fácil quando Sansum estava de bom humor.

 

Perguntei por novidades retorquiu Sansum, sem demora e não por coscuvilhices de mulheres acerca de crianças. E as fogueiras? Dafydd disse alguma coisa sobre as fogueiras?

 

Ele sabe tanto como nós, Bispo disse eu, mas o rei Brochvael julga que são saxões.

 

Deus nos proteja disse Sansum e caminhou até à minha janela, através da qual ainda era possível vislumbrar vestígios de fumo, a leste. Que Deus e os Santos nos protejam implorou ele, após o que voltou para junto da minha secretária e sobre esta pele depôs o estranho embrulho que trazia. Afastou a capa e, para meu espanto, os olhos quase marejados de lágrimas, vi que se tratava da Hywelbane. Não me atrevi a demonstrar o mais pequeno indício da emoção que me invadira e, em vez disso, benzi-me como se o aparecimento de uma arma dentro do nosso mosteiro me tivesse deixado chocado.

 

Há inimigos por perto disse Sansum, explicando a presença da espada.

 

Temo que tenhais razão, Bispo retorqui eu.

 

E a presença de inimigos dá lugar ao aparecimento de homens esfomeados por estas colinas continuou Sansum, pelo que durante a noite ficarás de guarda ao mosteiro.

 

Assim seja, Senhor aquiesci, humilde.

 

Mas eu? Ficar de guarda? Os meus cabelos embranqueceram, estou velho e fraco. Confiar em mim ou pedir a uma criança que fique de guarda é a mesma coisa. Eu, porém, não levantei qualquer objecção e depois de Sansum ter saído, desembainhei a Hywelbane e apercebi-me de quão pesada ela se tornara ao longo dos muitos anos em que permanecera no armário de tesouros do mosteiro. Era pesada e tosca, mas continuava a ser a minha espada. Procurei os ossos de porco amarelados, incrustados no seu copo, e depois o anel de noivado fixo perto do botão de punho da espada e, nesse anel achatado, distingui as minúsculas lascas de ouro que roubara do Caldeirão havia já tanto tempo. Aquela espada trazia-me à memória tantas histórias. Havia uma mancha de ferrugem na lâmina que eu raspei, cuidadosamente, com a faca que utilizo para afiar as minhas penas. Depois segurei-a nos braços durante muito tempo, imaginando que ainda era jovem e forte o suficiente para manejá-la.

 

Mas eu? Ficar de guarda? Na verdade, Sansum não queria que eu ficasse de guarda. O que ele pretendia, na realidade, era que eu me oferecesse em sacrifício, como um pateta, enquanto ele se esgueirava pela porta das traseiras levando São Tudwal numa mão e o ouro do mosteiro na outra. Todavia, se é esse o meu destino, que assim seja. Prefiro morrer como o meu pai, empunhando a espada, ainda que o meu braço seja frágil e a espada esteja romba. Não era este o destino que Merlim queria para mim, nem Artur, mas não é um mau fim para um soldado, e embora seja monge há muitos anos e um cristão há mais tempo ainda, no fundo da minha alma pecaminosa continuo a ser um lanceiro de Mitras. E, assim, beijei a minha Hywelbane, contente por tornar a vê-la ao fim de tantos anos.

 

E agora, redigirei o fim da história com a minha espada ao meu lado, esperando que me seja dado tempo para concluir a história de Artur, o meu Senhor, que foi traído, injuriado e cuja ausência foi mais sentida do que a de qualquer outro homem em toda a história da Bretanha.

 

Fui acometido por uma febre violenta depois de ter perdido a mão e quando acordei vi Ceinwyn sentada na cama, ao meu lado. De início, não a reconheci, pois tinha o cabelo curto e branco como a neve. Mas era a minha Ceinwyn, estava viva e quase de perfeita saúde, e quando viu um brilho nos meus olhos inclinou-se e encostou a sua face à minha. Coloquei o meu braço esquerdo em volta dela e descobri que já não tinha mão para poder acariciar-lhe as costas. Tudo o que me restava era um coto envolto num pano ensanguentado. Conseguia sentir a mão, conseguia até sentir o prurido, mas ela já não estava ali. Tinha sido queimada.

 

Uma semana mais tarde fui baptizado no rio Usk. O bispo Emrys presidiu à cerimónia e depois de ele me ter obrigado a mergulhar na água fria, Ceinwyn seguiu-me ao longo da margem lamacenta e insistiu em ser baptizada.

 

Seguirei o meu homem, para onde quer que ele vá disse ela ao bispo Emrys, que, fazendo-a dobrar os braços sobre o peito a obrigou a mergulhar no rio.

 

Fomos baptizados ao som de um coro de mulheres e, nessa noite, vestidos de branco, recebemos o pão e o vinho cristãos pela primeira vez. Depois da missa, Morgana apresentou-nos um pergaminho no qual escrevera a minha promessa de obediência ao marido dela, à luz da fé cristã, e exigiu que eu assinasse o meu nome.

 

Já te dei a minha palavra contrapuz.

 

Vais assinar, Derfel insistiu Morgana, e farás ainda um juramento sobre o crucifixo.

 

Suspirei e assinei. Os cristãos, segundo parecia, não confiavam na forma de juramento mais antiga, antes exigiam um pergaminho e tinta. E foi assim que reconheci Sansum como meu Senhor e que, depois de eu ter escrito o meu nome, Ceinwyn insistiu em acrescentar o dela. Assim começou a segunda metade da minha vida, a metade durante a qual cumpri o juramento feito a Sansum, embora não tão bem quanto Morgana esperaria. Se Sansum soubesse que estou a escrever esta história encararia o facto como a quebra do juramento e punir-me-ia em conformidade. Nada disso, porém, tem já importância para mim. Cometi inúmeros pecados, mas nunca quebrei um juramento.

 

Depois do meu baptismo, fiquei à espera de uma convocatória por parte de Sansum que permanecia em Gwent, junto do rei Meurig. O Lorde Rato, no entanto, manteve a minha promessa escrita sem nada exigir, nem sequer dinheiro. Nessa altura, pelo menos.

 

O coto à altura do pulso foi sarando, lentamente, e eu em nada ajudei à cura ao insistir em continuar a treinar com um escudo. Durante a batalha, o guerreiro enfia o braço esquerdo através das duas aselhas do escudo e agarra a pega de madeira que está do outro lado. Eu, no entanto, já não tinha dedos para agarrar o escudo, pelo que mandei transformar as aselhas em tiras de couro com fivelas que podiam ser apertadas em torno do meu antebraço. Não era tão seguro, mas sempre era melhor do que não ter escudo, e uma vez habituado às correias apertadas exercitei-me com a espada e o escudo defrontando Galaad, Culhwuch e Artur. O escudo era tosco, mas mesmo assim era capaz de combater, ainda que no final de cada sessão de treino, o coto começasse a sangrar fazendo com que Ceinwyn me repreendesse enquanto fazia uma nova ligadura.

 

A Lua cheia chegou e eu não empunhei a espada, nem fiz qualquer sacrifício em honra de Nant Dduu. Fiquei à espera da vingança de Nimue, mas nada aconteceu. O festival de Beltain realizava-se uma semana depois da Lua cheia e nem Ceinwyn nem eu, obedecendo às ordens de Morgana, extinguimos as nossas fogueiras ou ficámos acordados para assistir ao atear das novas. Culhwuch, no entanto, veio ter connosco na manhã seguinte com um tição da nova fogueira que atirou para dentro da nossa lareira.

 

Queres que vá até Gwent, Derfel? perguntou ele.

 

Gwent? perguntei. Porquê?

 

Para assassinar Sansum, aquele patife, é claro.

 

Ele não está a incomodar-me.

 

Ainda não resmungou Culhwuch, mas há-de criar. Não consigo imaginar-te como um cristão. Sentes-te diferente?

 

Não.

 

Pobre Culhwuch. Estava esfuziante por ver Ceinwyn de boa saúde, mas odiava o acordo que eu fizera com Morgana, para que ela se curasse. Ele, tal como muitos outros, perguntava-se porque é que eu, muito simplesmente, não quebrava a promessa feita a Sansum. Eu, porém, temia que a doença de Ceinwyn regressasse, se o fizesse e, por isso, mantinha-me fiel ao prometido. Com o passar do tempo, esta obediência tornou-se um hábito e depois da morte de Ceinwyn descobri que não tinha alento para quebrar a promessa, ainda que a morte dela me tivesse libertado do juramento.

 

Tudo isto, porém, fazia ainda parte de um futuro longínquo naquele dia em que novas fogueiras aqueciam lareiras geladas. Era um belo dia de sol e de árvores em flor. Lembro-me que, nessa manhã, comprámos alguns gansos jovens no mercado, julgando que os nossos netos haveriam de gostar de vê-los crescer no pequeno lago atrás de nossa casa. Mais tarde acompanhei Galaad até ao anfiteatro, para mais uma sessão de treino com o meu escudo desajeitado. Éramos os únicos lanceiros que ali estávamos, já que a maioria dos restantes estavam ainda a recuperar de uma noite de folia.

 

Os gansos não são uma boa ideia disse Galaad, atingindo o meu escudo com um golpe firme da sua lança.

 

Porque não?

 

Quando crescem tornam-se mal-humorados.

 

Disparate disse eu. Quando crescem transformam-se em comida.

 

Gwydre interrompeu-nos para nos comunicar que tínhamos sido chamados à presença de seu pai e nós regressámos à cidade para descobrir que Artur tinha ido até ao palácio do bispo Emrys. O Bispo estava sentado, enquanto Artur, em camisa e calças axadrezadas, se inclinava sobre uma mesa enorme coberta com aparas de madeira, onde o Bispo escrevera listas de lanceiros, armas e barcos. Artur ergueu os olhos para nós e durante uma fracção de segundo nada disse. Mas eu não esqueço que o seu rosto coberto por uma barba grisalha ostentava uma expressão bastante carregada. Em seguida, proferiu uma só palavra.

 

Guerra.

 

Galaad benzeu-se, enquanto eu, ainda preso aos meus velhos hábitos, levei a mão ao copo da Hywelbane.

 

Guerra? perguntei.

 

Mordred marcha ao nosso encontro disse Artur. Neste preciso momento! Meurig deu-lhe permissão para atravessar Gwent.

 

Com trezentos e cinquenta lanceiros, segundo consta acrescentou Emrys,

 

Até hoje acredito que Meurig traiu Artur instigado por Sansum. Não tenho provas disso, e Sansum negou-o sempre, mas todo o plano parecia ser um produto inequívoco da astúcia do Lorde Rato. É certo que Sansum nos advertira, em certa ocasião, sobre a possibilidade de um ataque semelhante, mas o Lorde Rato era sempre extremamente cauteloso no que dizia respeito às suas traições, e se Artur tivesse vencido a batalha que Sansum esperava fosse travada em Isca, ele teria exigido uma recompensa a Artur. Não restavam dúvidas de que ele não pretendia obter nenhuma recompensa de Mordred, já que o plano de Sansum, se é que foi ele de facto o seu autor, estava destinado a beneficiar Meurig. Deixai que Mordred e Artur lutem até à morte, já que depois Meurig poderia assumir o controlo da Dumnónia e o Lorde Rato governaria em nome de Meurig.

 

E Meurig queria muito ficar com a Dumnónia. Queria os seus campos férteis e as suas prósperas cidades e, por isso, instigara a guerra, embora o negasse fervorosamente. Se Mordred queria visitar o tio, dizia ele, quem era ele para o impedir de o fazer? E se Mordred quisesse uma escolta de trezentos e quinze lanceiros, quem era Meurig para negar tal séquito a um Rei? E, assim, deu a Mordred a autorização que este queria e quando as primeiras notícias do ataque chegaram até nós, já os cavaleiros do exército de Mordred tinham passado Glevum e avançavam rapidamente para oeste, na nossa direcção. E foi deste modo, por via de uma traição, e da ambição de um rei frouxo, que começou a última guerra de Artur.

 

Nós estávamos preparados para essa guerra. Esperávamos que o ataque ocorresse semanas antes, mas apesar de termos sido surpreendidos pelo sentido de oportunidade de Mordred, os nossos planos estavam já delineados. Navegaríamos para sul, através do mar Severn, e marcharíamos para Durnovária, onde, conforme esperávamos, os homens de Sagramor se juntariam a nós. Então, uma vez unidas as nossas forças, seguiríamos o urso de Artur para norte e defrontaríamos Mordred, que regressava da Silúria. Esperávamos uma batalha, esperávamos vencer e, mais tarde, aclamaríamos Gwydre como Rei da Dumnónia em Caer Cadarn. Era a velha história; mais uma batalha e tudo mudaria.

 

Foram enviados mensageiros até à costa, com a missão de persuadirem todos os silurianos a trazerem os seus barcos de pesca para Isca. E enquanto as embarcações avançavam rio acima, nós preparávamos a nossa apressada partida. Afiaram-se as lâminas de espadas e lanças, poliram-se as armaduras e encheram-se sacos e cestos com provisões. Guardámos os tesouros dos três palácios e as moedas do tesouro e prevenimos os habitantes de Isca para que estivessem preparados para fugir para oeste antes que os homens de Mordred chegassem.

 

Na manhã seguinte, tínhamos vinte e sete barcos de pesca ancorados no rio, por baixo da ponte romana de Isca. Cento e sessenta e três lanceiros estavam prontos para embarcar. A maior parte deles tinha família, mas os barcos não eram suficientemente grandes para transportar todos eles. Fomos forçados a deixar ficar os cavalos, pois Artur descobrira que os cavalos são maus marinheiros. Enquanto eu estava em viagem tentando encontrar-me com Nimue, ele tentara embarcar os cavalos num dos barcos de pesca. Os animais, porém, entraram em pânico, mesmo sobre a ondulação fraca, e um deles chegou até a abrir caminho aos coices através do casco da embarcação. Assim, na véspera da nossa partida levámos os animais até às pastagens de uma quinta distante e prometemos a nós próprios que viríamos buscá-los, logo que Gwydre fosse aclamado Rei. Só Morgana se recusou a partir connosco de barco e, em vez disso, foi juntar-se ao marido, em Gwent.

 

Começámos a carregar os barcos de madrugada. Começámos pelo ouro, que colocámos no fundo dos barcos. Por cima, empilhámos as nossas armaduras e a comida e, em seguida, sob um céu cinzento e fustigados por um vento agreste, demos início ao embarque. A maior parte dos barcos levava dez ou onze pessoas e, mal iam ficando cheios, iam deslizando até meio do rio, onde tornavam a lançar âncora e ficavam à espera que o resto da esquadra se juntasse a eles.

 

O inimigo chegou no exacto momento em que o último barco estava a ser carregado. Era o maior de todos e pertencia a Balig, o marido da minha irmã. Nele estavam Artur, Guinevere, Gwydre, Morwenna e os seus filhos, Galaad, Taliesin, Ceinwyn e eu, juntamente com Culhwuch, a esposa deste e dois dos filhos de ambos. O estandarte de Artur esvoaçava no alto da proa do barco, enquanto as insígnias de Gwydre flutuava à popa. Estávamos bem dispostos, pois partíamos com a missão de entregar a Gwydre o reino que lhe pertencia por direito. Todavia, exactamente no momento em que Balig gritava para Hygwydd, o criado de Artur, incitando-o a entrar a bordo, chegou o inimigo.

 

Hygwydd trazia o último pacote do palácio de Artur e estava a uns escassos cinquenta passos da margem quando se virou para trás e viu os cavaleiros passarem as portas da cidade. Teve tempo para deixar cair o pacote e conseguiu ainda sacar meia espada, mas nesse momento os cavalos alcançaram-no e uma lança atravessou-lhe o pescoço.

 

Balig atirou a prancha de embarque borda fora, sacou uma faca que tinha presa ao cinto e cortou as amarras que prendiam a popa do barco à margem do rio. O seu tripulante saxão soltou as amarras da proa e o nosso barco deslizou ao sabor da corrente no instante em que os cavaleiros alcançavam a margem. Artur permanecia de pé, fitando, horrorizado, o agonizante Hygwydd. Eu, porém, dirigi o meu olhar na direcção do anfiteatro, onde acabava de surgir uma horda de guerreiros.

 

Aquele não era o exército de Mordred. Era uma chusma de dementes; uma turba desordenada de criaturas arqueadas, estropiadas e amarguradas que se multiplicava em redor dos degraus de pedra do anfiteatro e corria na direcção da margem do rio soltando pequenos gritos. Estavam cobertos com andrajos, tinham os cabelos desgrenhados e os olhos carregados de uma ira fanática. Era o exército de loucos de Nimue. A maioria estava armada com simples paus, embora alguns deles empunhassem lanças. Os cavaleiros traziam lanças e escudos e não eram loucos. Eram foragidos dos Escudos Sanguinários de Diwrnach e ainda usavam os mesmos esfarrapados mantos negros e ostentavam os mesmos escudos pintados de sangue. À medida que iam avançando ao longo da margem, acompanhando-nos, iam dispersando o exército de loucos.

 

Alguns destes ficaram esmagados debaixo dos cascos dos cavalos, mas logo muitos mais se atiraram ao rio, nadando atabalhoadamente na direcção dos nossos barcos. Artur gritava aos barqueiros, ordenando-lhes que largassem as respectivas âncoras e, um após outro, os barcos atestados soltaram-se e começaram a deslizar. Algumas das tripulações mostraram-se relutantes em abandonar as pesadas pedras que serviam de âncoras e tentaram içá-las, pelo que as embarcações em movimento foram embater nas que ainda estavam paradas. Enquanto isso, aquelas criaturas desesperadas, tristes e loucas continuavam a avançar, desajeitadamente, na nossa direcção.

 

Cabos das Lanças! gritou Artur e, empunhando a sua própria lança, virou-a e atingiu com força a cabeça de um dos nadadores.

 

Remos! clamou Balig, mas ninguém lhe deu ouvidos. Estávamos demasiado atarefados empurrando os nadadores para longe

 

do casco dos barcos. Eu trabalhava com uma só mão, afundando os nossos atacantes. Um deles, porém, conseguiu agarrar o cabo da minha lança e por pouco não me atirou à água. Deixei-o ficar com a arma, desembainhei a Hywelbane e brandi-a com força. As primeiras manchas de sangue tingiram as águas do rio. A margem norte do rio encontrava-se agora pejada dos ruidosos e irrequietos seguidores de Nimue. Alguns deles atiravam lanças na nossa direcção, mas a maior parte limitava-se a gritar o seu ódio, enquanto outros corriam para o rio, no encalço dos restantes nadadores. Um homem de cabelos compridos e lábios-leporinos tentou trepar a bordo do nosso barco, mas o Saxão atingiu-o no rosto com um pontapé, continuando a agredi-lo até ele cair. Taliesin descobrira uma lança e usava a lâmina da mesma para atingir outros nadadores. Mais abaixo, a corrente arrastou um dos barcos até à margem lamacenta, onde a tripulação tentava desesperadamente libertar-se da lama. Agiam com demasiada lentidão, contudo, os guerreiros de Nimue conseguiram abordá-los. Eram liderados por Escudos Sanguinários, e estes assassinos experimentados rasgaram a embarcação encalhada a golpes de lança enquanto gritavam desafios e provocações. Era o barco do bispo Emrys e eu vi que o bispo de cabelos brancos ainda conseguiu deter o curso de uma lança com a espada antes de ser morto. Uma chusma de loucos seguiu, depois, os Escudos Sanguinários através do convés escorregadio. A mulher do bispo soltou um grito breve, antes de ser selvaticamente trespassada por uma lança. Facas cortavam, rasgavam e apunhalavam, e o sangue escorria dos embornais e corria em direcção ao mar. Um homem vestido com uma túnica feita de pele de veado tomou balanço na popa do barco abalroado e, no momento em que passávamos por ele, saltou para a borda do nosso barco. Gwydre ergueu a sua lança e o homem gritou quando o seu corpo se enfiou na longa haste. Ainda recordo as suas mãos agarrando o cabo da lança enquanto o seu corpo se contorcia na ponta da mesma. Depois, Gwydre deixou cair ambos, homem e lança, dentro do rio e desembainhou a espada. A sua mãe brandia uma lança por entre uma multidão de braços que se agitavam ao lado do barco. Várias mãos agarravam-se à borda do barco e nós pisávamo-las, ou cortávamo-las com as lâminas das espadas, até que, gradualmente, o nosso barco se foi distanciando dos seus atacantes. Todas as embarcações deslizavam, agora, algumas de lado, outras com a popa para a frente. Os barqueiros soltavam gritos e imprecações uns aos outros ou, então, ordenavam aos lanceiros que se agarrassem aos remos. Uma lança atravessou os ares, vinda da margem, e veio embater contra o casco do nosso barco; e foi então que surgiram as primeiras flechas. Eram flechas de caçador e passavam, zumbindo, sobre as nossas cabeças.

 

Escudos! gritou Artur e todos nós formámos uma barreira de escudos ao longo da borda do barco.

 

As flechas embatiam contra eles. Eu agachara-me, ao lado de Balig, protegendo-nos a ambos, e o meu escudo estremecia sempre que as pequenas flechas o atingiam.

 

Fomos salvos pela corrente rápida do rio e pela maré vazante, que arrastou o conjunto desordenado de barcos que seguia rio abaixo, colocando-se fora do alcance da ira dos archeiros. Fomos seguidos pela horda de loucos delirantes, mas a oeste do anfiteatro havia uma língua de terrenos pantanosos que fez abrandar a marcha dos nossos perseguidores e nos deu tempo para, finalmente, impor alguma ordem em todo o caos que se gerara. Os gritos dos nossos atacantes acompanhavam-nos, e os seus corpos deslizavam ao sabor da corrente, ao lado da nossa pequena frota. Nós, no entanto, já tínhamos remos o que nos permitiu virar a proa do barco e seguir os outros barcos em direcção ao mar. Os nossos dois estandartes estavam crivados de flechas.

 

Quem são eles? perguntou Artur, olhando para trás e observando a horda de dementes.

 

O exército de Nimue disse eu, com amargura.

 

Graças aos talentos de Morgana, os feitiços de Nimue tinham falhado, pelo que ela libertara os seus seguidores e ordenara-lhes que partissem em busca da Excalibur e de Gwydre.

 

Porque é que não os vimos chegar? quis saber Artur.

 

Um feitiço, Senhor? alvitrou Taliesin, e eu lembrei-me das inúmeras ocasiões em que Nimue recorrera a tais feitiços.

 

Galaad troçou daquela explicação pagã.

 

Marcharam durante a noite sugeriu ele e esconderam-se nos bosques até estarem prontos. E nós estávamos demasiado ocupados para ir à procura deles.

 

Agora, a cadela pode lutar contra Mordred, em vez de nós sugeriu Culhwuch.

 

Não o fará disse eu, juntar-se-á a ele.

 

Nimue, porém, ainda não se dera por vencida. Um grupo de cavaleiros galopava ao longo do caminho que seguia para norte, na direcção dos pântanos, perseguidos por uma horda de populares que os seguia a pé. O rio não corria directamente para o mar. Formava, antes, amplos meandros através da planície costeira, e eu sabia que depois de cada curva para oeste encontraríamos o inimigo à nossa espera.

 

Os cavaleiros estavam, de facto, à nossa espera. O rio, porém, alargava-se à medida que se ia aproximando do mar e a água corria, nervosa; assim, depois de cada curva éramos empurrados, velozmente, pela corrente que nos deixava a salvo e fora do alcance deles. Os cavaleiros soltavam imprecações e maldições na nossa direcção e, em seguida, cavalgavam até à curva seguinte, de onde poderiam atirar lanças e flechas contra nós. Precisamente antes da zona onde começava o oceano, havia um braço de rio longo e direito e enquanto o percorríamos os cavaleiros de Nimue nunca nos abandonaram. Foi então que vi Nimue. Montava um cavalo branco, trazia um vestido branco e tinha o cabelo cortado como um Druida. Carregava o bastão de Merlim e usava uma espada presa à cintura. Gritou na nossa direcção, mas o vento abafou as suas palavras, e depois o rio descreveu uma curva para leste e nós deslizámos para longe dela, por entre as margens sulcadas de juncos. Nimue virou-se e esporeou o cavalo, guiando-o até à embocadura do rio.

 

Estamos a salvo, agora disse Artur.

 

Sentíamos o cheiro a mar, ouvíamos o clamor das gaivotas por cima das nossas cabeças, diante de nós ecoava o som interminável das ondas quebrando-se numa praia, e enquanto isso Balig e o Saxão prendiam a verga da vela ao cordame que a içavam até ao mastro. Faltava ainda vencer o último meandro do rio, passar por um derradeiro encontro com os cavaleiros de Nimue, antes de sermos empurrados pela corrente para o mar Severn.

 

Quantos homens perdemos? quis saber Artur.

 

E nós gritámos perguntas e respostas entre as várias embarcações que constituíam a nossa pequena frota. Dois homens apenas tinham sido atingidos pelas flechas e o único barco encalhado tinha sido completamente abalroado. A maioria dos elementos do pequeno exército que seguia dentro dele, porém, encontrava-se sã e salva.

 

Pobre Emrys disse Artur, e depois calou-se durante algum tempo. Dentro de três dias continuou, afastando a melancolia, estaremos com Sagramor.

 

Ele enviara mensagens para leste, e agora que o exército de Mordred deixara a Dumnónia, nada havia que impedisse Sagramor de partir ao nosso encontro.

 

Teremos um pequeno exército disse Artur, mas um bom exército. Suficientemente bom para derrotar Mordred e, depois, começaremos tudo de novo.

 

Começaremos tudo de novo? perguntei eu.

 

Tornaremos a vencer Cerdic disse ele e a incutir algum juízo na cabeça de Meurig. Riu, amargamente. Há sempre mais uma batalha. Já reparaste? Quando pensas que tudo está acabado, logo a confusão começa de novo. Passou a mão pelo copo da Excalibur. Pobre Hygwydd. Vou sentir a falta dele.

 

E a minha também, Senhor disse eu, em tom sombrio.

 

O coto do meu pulso esquerdo latejava dolorosamente e a sensação de comichão na mão que me faltava era de tal forma real que nada me fazia desistir de tentar coçá-la.

 

Vou sentir a tua falta? perguntou Artur, erguendo uma sobrancelha.

 

Quando Sansum me chamar.

 

Ah! Lorde Rato. Esboçou um sorriso breve. Julgo que o nosso Lorde Rato desejará regressar a Dumnónia, não achas? Não consigo imaginá-lo tornando-se favorito em Gwent, já lá existem demasiados bispos. Não, ele vai querer regressar, e a pobre Morgana há-de voltar a querer o santuário em Ynys Wydryn e eu farei um acordo com eles. A tua alma em troca da autorização de Gwydre para que eles possam viver na Dumnónia. Libertar-te-emos do juramento, Derfel, não te preocupes.

 

Deu-me uma palmada no ombro e depois avançou, com esforço, para junto de Guinevere, que estava sentada debaixo do mastro.

 

Balig arrancou uma flecha do mastro da popa, torceu a sua ponta de ferro, que enfiou no bolso para que ficasse em segurança, e depois atirou a haste emplumada borda fora.

 

Não gosto nada daquilo disse-me, inclinando o queixo para oeste. Virei-me e vi uma massa de nuvens negras que se acumulava ao longe, no horizonte.

 

Chuva? perguntei.

 

Pode trazer vento também respondeu ele, em tom sinistro, cuspindo borda fora para afastar o azar. Mas como a nossa viagem não é longa, talvez possamos evitá-las.

 

Inclinou-se sobre o remo da cauda no momento em que o barco deslizava para lá da última grande curva do rio. Seguíamos para oeste, agora, de frente para o vento, e a superfície do rio era cortada pelas cristas brancas de pequenas ondas que vinham embater na proa do nosso barco e se quebravam ao longo do convés. A vela continuava por içar.

 

Força, agora! Balig incitava os nossos remadores.

 

O Saxão manobrava um dos remos, Galaad tomara conta do outro, Taliesin e Culhwuch ocupavam o banco do meio e os dois filhos de Culhwuch completavam a tripulação. Os seis homens remavam com força, lutando contra o vento, mas a corrente e a maré não deixaram de nos ajudar. Na proa e na popa, os estandartes esvoaçavam fustigados pelo vento, fazendo chocalhar as flechas que neles tinham ficado presas.

 

Diante de nós, o rio desviava-se para sul e eu sabia que seria aí que Balig hastearia a vela, para que o vento nos ajudasse a alcançar o mar. Uma vez no mar, seríamos forçados a manter-nos dentro dos limites do canal que atravessava os enormes baixios até alcançarmos as águas profundas, onde nos poderíamos desviar do vento e navegar rapidamente até às costas da Dumnónia.

 

A travessia não levará muito tempo disse Balig, incentivador, olhando de relance para as nuvens. Não levará muito tempo. Devemos conseguir escapar ao vento que aí vem.

 

E os barcos, podem manter-se juntos? perguntei.

 

O suficiente inclinou a cabeça na direcção do barco que seguia imediatamente à nossa frente. Aquela velha carcaça vai ficar para trás. Navega como uma porca prenhe, mas vai ficar suficientemente perto...

 

Os cavaleiros de Nimue aguardavam-nos numa língua de terra situada no local onde o rio se desviava para sul, na direcção do mar. À medida que nos fomos aproximando, ela destacou-se da massa de lanceiros e dirigiu o cavalo para a beira da água. E quando ficámos ainda mais perto vi dois dos seus cavaleiros arrastando um prisioneiro até à borda da água, junto dela.

 

De início julguei que fosse um dos nossos homens que tivesse sido retirado do barco encalhado, mas depois percebi que o prisioneiro era Merlim. A sua barba tinha sido cortada e o cabelo branco, despenteado, esvoaçava ao sabor do vento cada vez mais forte enquanto ele olhava inexpressivamente para nós, embora eu fosse capaz de jurar que estava a sorrir. Não conseguia distinguir o seu rosto com nitidez, pois a distância que nos separava era demasiado grande, mas juro que ele sorria à medida que era puxado para dentro das pequenas ondas. Ele sabia o que estava prestes a acontecer.

 

Então, subitamente, também eu fiquei a saber, e nada havia que pudesse fazer para impedi-lo.

 

Nimue fora levada deste mar, em criança. Fora capturada em Demétia por um bando de recrutadores de escravos e depois trazida para Dumnónia, através do mar Severn. Durante a viagem, porém, levantou-se uma tempestade e os barcos dos recrutadores afundaram-se. As tripulações e os respectivos prisioneiros afogaram-se, todos excepto Nimue que conseguiu alcançar, sã e salva, a costa rochosa de Ynys Wair. Ao salvar a criança, Merlim pusera-lhe o nome de Vivien, por ser tão obviamente amada por Manawydan, o Deus do mar, e por Vivien ser um nome pertencente a Manawydan. Dotada de um temperamento intratável, Nimue recusara-se desde sempre a usar o nome, mas eu lembrei-me dele naquele momento, tal como me lembrei que Manawydan a amava, e fiquei a saber que ela se preparava para recorrer à ajuda da divindade para lançar uma grande maldição sobre nós.

 

Que está ela a fazer? perguntou Artur.

 

Desviai os olhos, Senhor disse eu.

 

Os dois lanceiros tinham regressado a terra com esforço, deixando o cego Merlim sozinho, ao lado do cavalo de Nimue. Ele não esboçou qualquer tentativa para escapar. Ficou ali, apenas, os cabelos brancos ondulando sobre as águas, enquanto Nimue sacava uma faca da bainha da espada. Era a Faca de Laufrodedd.

 

Não! gritou Artur, mas o vento trouxe o seu protesto de volta ao barco, aos pântanos e aos juncos, de volta a sítio nenhum. Não! tornou a gritar.

 

Nimue apontou o seu bastão de Druida para oeste, ergueu a cabeça para o céu e uivou. Mesmo assim, Merlim continuou imóvel. A nossa esquadra passou por eles, veloz, e os barcos aproximaram-se dos baixios onde se encontrava o cavalo de Nimue antes de serem empurrados para sul, à medida que as tripulações içavam as respectivas velas. Nimue esperou até que o nosso barco, estandarte elevado, se aproximasse e depois baixou a cabeça e fitou-nos com o seu único olho. Sorria, tal como Merlim. Encontrava-me agora suficientemente perto para ver com clareza, e ele continuava a sorrir quando Nimue se inclinou na sela da sua montada, empunhando a faca. Um golpe único e firme era tudo o que era necessário.

 

E os longos cabelos brancos de Merlim, bem como as suas vestes alvas e compridas tingiram-se de vermelho.

 

Nimue tornou a uivar. Já a tinha ouvido uivar muitas vezes, mas nunca daquela forma, já que o seu uivo era um misto de agonia e triunfo. O seu feitiço estava lançado.

 

Deslizou do cavalo e largou o bastão. Merlim deve ter morrido rapidamente, embora o seu corpo ainda se agitasse no meio das ondas suaves; e durante uma fracção de segundo tive a impressão de que Nimue se debatia com o homem morto. O seu vestido branco estava manchado de vermelho, e esse vermelho foi instantaneamente diluído nas águas do mar à medida que ela ia puxando o cadáver de Merlim e o enterrava cada vez mais dentro de água. Por fim, liberto da lama, flutuou e ela puxou-o na direcção da corrente como uma oferenda a Manawydan, o seu Senhor.

 

E que oferenda ela lhe fez. O corpo de um Druida é uma magia poderosa, tão poderosa como qualquer uma das que este pobre mundo possui, e Merlim era o último e o maior dos Druidas. Outros lhe sucederam, claro, mas nenhum possuía o seu saber, nenhum tinha a sua sabedoria e nenhum detinha metade do seu poder. E todo esse poder era agora oferecido a um feitiço, um encantamento do Deus do mar que, havia já tantos anos, salvara a vida de Nimue. Ela pegou no bastão, que flutuava sobre as ondas e apontou-a na direcção do nosso barco. Depois riu-se. Atirou a cabeça para trás e riu-se como os loucos que a tinham seguido desde as montanhas até esta carnificina sobre as águas. Vivereis! gritou ela para nós, e havemos de tornar a encontrar-nos! Balig içou a vela e, empurrados pelo vento, navegámos em direcção ao mar. Nenhum de nós falou. Limitámo-nos a virar-nos para trás e a olhar fixamente para Nimue e para o sítio onde, uma mancha branca num torvelinho de águas cinzentas, o corpo de Merlim seguia atrás de nós, direito às profundezas do oceano.

 

Onde nos aguardava Manawydan.

 

Virámos o nosso barco para sudeste, a fim de permitir que o vento enfunasse o que restava da vela, e o meu estômago contraía-se num espasmo sempre que o barco era agitado por uma onda.

 

Balig debatia-se com o remo da cauda. Tínhamos recolhido os outros remos, deixando que o vento se encarregasse do resto, mas a maré estava contra nós e puxava sem cessar a cabeça do barco, virando-a para sul, onde o vento rasgaria a vela e o remo da cauda vergaria de modo alarmante. Lentamente, porém, o barco voltaria, a vela tornaria a enfunar-se com estrépito e as proas mergulhariam nas ondas, e a minha barriga contrair-se-ia e a bílis subiria na minha garganta.

 

O céu escureceu. Balig examinou as nuvens, cuspiu e tornou a elevar o remo da cauda. Caiu a primeira chuvada, grossas gotas que salpicaram o convés e escureceram a vela suja.

 

Recolham esses estandartes! gritou Balig, e Galaad desceu a bandeira dianteira enquanto eu lutava para soltar a da popa. Gwydre ajudou-me a descê-la, mas perdeu o equilíbrio quando o barco chocou com uma vaga. Caiu sobre a borda do navio quando a água passou por cima da popa.

 

Desaguar! gritou Balig. Desaguar!

 

O vento tornava-se agora mais forte. Vomitei sobre o convés de bombordo e quando levantei os olhos, vi o resto da esquadra balançando violentamente no meio de um pesadelo cinzento de trombas de água e espuma. Ouvi um estalido por cima da minha cabeça e quando olhei para cima percebi que a nossa vela se tinha rasgado em dois. Balig soltou uma imprecação. Atrás de nós, a costa era uma linha escura, e para além dela, iluminada pelos raios de sol, cintilavam verdes as colinas da Silúria. À nossa volta, porém, tudo estava escuro, húmido e assustador.

 

Desaguar! tornou a gritar Balig, e todos os que estavam no bojo do barco pegaram nos elmos e começaram a retirar a água que se acumulara em torno dos fardos do tesouro, das armaduras e da comida.

 

Foi então que a tempestade se abateu sobre nós. Até àquele momento, apenas sofrêramos os primeiros efeitos da tempestade, mas agora o vento varria, uivando, a superfície das águas e a chuva caía dura e cortante sobre a espuma branca das ondas. Deixei de ver os outros barcos, tão grossa era a chuva e tão escuro estava o céu. A costa desapareceu e tudo o que eu conseguia distinguir era um tormento povoado pelas cristas brancas das ondas, ora baixas ora altas, das quais jorravam litros e litros de água que alagavam o nosso barco. Fustigada pelo vento, a vela transformara-se num monte de farrapos que esvoaçavam no mastro como se fossem estandartes destruídos. Os trovões rasgavam os céus, e no momento em que o barco embateu contra a crista de uma vaga vi a água, verde e negra, subir e espalhar-se sobre o convés. Sem que eu percebesse como, Balig manobrou a proa na direcção da vaga e a água vacilou na borda do barco antes de desaparecer no instante em que a embarcação se elevou, pronta a enfrentar mais uma vaga torturada pelo vento.

 

Alijar! gritou Balig, erguendo a sua voz sobre o furor da tempestade.

 

Atirámos o tesouro borda fora. O tesouro de Artur, e o meu tesouro, e o tesouro de Gwydre e o tesouro de Culhwuch. Oferecemo-los todos a Manawydan, depondo moedas, cálices, candelabros e barras de ouro nas suas garras vorazes. Mas ele queria mais, e foi então que lançámos ao mar os cestos de comida e os estandartes enrolados. Artur, no entanto, não estava disposto a ceder-lhe a sua armadura, tal como eu; por isso, guardámos as armaduras e as armas na minúscula cabina, debaixo da coberta da popa e, em vez disso, lançámos ao mar uma parte do balastro de pedra. Cambaleávamos ao longo do barco como se estivéssemos ébrios, atirados de um lado para o outro pelo balanço das vagas, e os nossos pés escorregavam sobre uma superfície coberta por uma mistura líquida e imunda de vómitos e água. Morwenna agarrava-se aos filhos, Ceinwyn e Guinevere rezavam, Taliesin desaguava com a ajuda do elmo, enquanto Culhwuch e Galaad ajudavam Balig e o Saxão a baixar o que restava da vela. Atiraram a vela borda fora, mastro e tudo, mas ataram os destroços a uma longa corda feita de crina de cavalo, que enrolaram à volta do mastro da popa. O cabo do mastro e a vela viraram a cabeça do nosso barco na direcção do vento, posicionando-nos de frente para a tempestade e obrigando-nos a enfrentar a sua ira em guinadas imensas e violentas.

 

Nunca vi uma tempestade avançar tão depressa! Balig gritou na minha direcção.

 

Mas isso não era nenhuma surpresa. Aquela não era uma tempestade vulgar, era uma fúria convocada pela morte de um Druida, e o mundo gritava ar e mar nos nossos ouvidos à medida que o nosso barco subia e tornava a mergulhar nas vagas alterosas. A água entrava através das pranchas do casco, mas nós desaguávamos tão depressa quanto ela entrava.

 

Nesse momento vi os primeiros destroços na crista de uma onda, e um pouco mais tarde, vislumbrei um homem que nadava. Tentou chamar-nos, mas o mar arrastou-o para mais longe, ainda. A esquadra de Artur estava a ser destruída. Por vezes, quando as rajadas amainavam e o ar desanuviava por momentos, conseguíamos ouvir os homens gemendo desesperadamente e ver como os seus barcos mergulhavam bem fundo, nas águas revoltas do oceano. Logo de seguida, a tempestade tornava a cegar-nos e no momento de acalmia seguinte, já nenhum dos barcos era visível, apenas uma massa de madeiras flutuantes. Barco após barco, a frota de Artur foi afundada, e os homens e mulheres que a constituíam afogaram-se. Os homens de armadura foram os primeiros a perecer.

 

E durante todo esse tempo, logo atrás dos destroços da nossa vela, que deslizavam atrás do nosso atarefado barco, seguia-nos o corpo de Merlim. Surgira pouco depois de termos atirado a vela borda fora e ficou connosco desde esse momento; eu conseguia ver as suas vestes brancas no cimo de uma onda, depois via-o desaparecer para logo tornar a vislumbrá-lo acompanhando a ondulação da água. Uma vez, pareceu-me que ele erguia a cabeça sobre a água e eu vi que a ferida na garganta dele tinha sido lavada pelo oceano. Olhou para nós do fundo das órbitas vazias, mas pouco depois as águas submergiram-no e eu toquei um dos pregos de ferro do mastro da popa e implorei a Manawydan que arrastasse o Druida para as profundezas do oceano. Leva-o para o fundo, rezava eu, e envia a sua alma para o Outro Mundo. Todavia, sempre que olhava lá estava ele, os cabelos brancos espalhados em forma de leque em torno da cabeça, no mar revolto.

 

Merlim estava lá, mas os barcos tinham desaparecido. Espreitámos por entre a chuva e a espuma, mas não se via nada excepto um céu escuro e ameaçador, um oceano cinzento e branco-sujo, destroços e Merlim, sempre Merlim. Creio que ele estava a proteger-nos, não porque nos quisesse a salvo, mas porque Nimue ainda não desistira de nós. O nosso barco transportava o que ela mais desejava e, por isso, era o único que deveria atravessar ileso as águas de Manawydan.

 

Merlim só desapareceu quando a tempestade amainou. Vi o seu rosto uma última vez e depois ele afundou-se, apenas. Durante uma fracção de segundo,

 

ele nada mais foi do que uma forma branca de braços abertos, no coração verde

 

de uma vaga, e depois desapareceu. E com o seu desaparecimento, o furor do vento esmoreceu e a chuva parou.

 

O mar continuava agitado, mas o ar tornara-se límpido e as nuvens passaram de negras a cinzentas e depois a brancas, e à nossa volta estendia-se um oceano vazio. O nosso era o único barco sobrevivente e quando Artur olhou em volta, através das ondas cinzentas, vi as lágrimas assomarem aos seus olhos. Os seus homens tinham partido ao encontro de Manawydan, todos eles, todos os seus bravos guerreiros, à excepção do nosso grupo diminuto. Um exército inteiro tinha desaparecido.

 

E estávamos sós.

 

Recuperámos o mastro e o que restava da vela e depois remámos durante todo aquele longo dia. Todos os homens, excepto eu, tinham as mãos cheias de bolhas. Eu próprio tentei remar, mas descobri que a única mão que me restava não era suficiente para manejar um remo, por isso deixei-me ficar sentado e observei a nossa progressão para sul através das ondas até que, ao fim do dia, a quilha do nosso barco roçou a areia e com algum esforço e o pouco que ainda possuíamos alcançámos a costa.

 

Dormimos nas dunas e, na manhã seguinte, limpámos o sal que se acumulara nas nossas armas e contámos quantas moedas tínhamos. Balig e o seu saxão ficaram junto do barco deles, alegando que conseguiam salvá-lo. Entreguei-lhe a minha última peça de ouro, abracei-o e depois parti para sul atrás de Artur.

 

Encontrámos uma casa senhorial nas colinas sobranceiras à costa. O dono da casa revelou-se um apoiante de Artur e cedeu-nos um cavalo selado e duas mulas. Tentámos dar-lhe ouro, mas ele recusou a nossa oferta.

 

Quem dera disse ele, poder ceder-vos alguns guerreiros, mas infelizmente... encolheu os ombros.

 

Tinha uma casa modesta e já nos tinha dado mais do que podia. Comemos a sua comida, secámos as nossas roupas junto da sua lareira e, mais tarde, sentámo-nos juntamente com Artur à sombra da macieira, no pomar da propriedade.

 

Não podemos combater Mordred, agora disse Artur, num tom desolado.

 

Os exércitos de Mordred eram constituídos por trezentos e cinquenta lanceiros, pelo menos, e os seguidores de Nimue ajudá-lo-iam enquanto ele saísse em nossa perseguição. Sagramor, por seu lado, tinha menos de duzentos homens. A guerra estava perdida antes de ter sequer começado.

 

Oengus virá ajudar-nos sugeriu Culhwuch.

 

Tentará concordará Artur, mas Meurig nunca permitirá que os Escudos Sanguinários atravessem Gwent.

 

E Cerdic virá também disse Galaad em voz baixa. Mal ouça dizer que Mordred se prepara para lutar contra nós, marchará ao nosso encontro. E conseguiremos juntar duzentos homens.

 

Menos cortou Artur.

 

Para lutar contra quantos?

perguntou Galaad. Quatrocentos? Quinhentos? E os nossos sobreviventes, ainda que saiamos vitoriosos, terão de voltar e enfrentar Cerdic.

 

Então, o que é que fazemos? perguntou Guinevere. Artur sorriu.

 

Vamos para Armórica anunciou ele. Mordred não nos seguirá até lá.

 

Pode fazê-lo rugou Culhwuch.

 

Nesse caso, enfrentaremos esse problema quando ele surgir disse Artur, calmamente.

 

Estava amargo naquele dia, mas não zangado. O destino pregara-lhe um rude golpe, pelo que tudo o que podia fazer naquele momento era reformular os seus planos e tentar encher-nos de esperança. Recordou-nos que o rei Budic de Broceliande era casado com a sua irmã Anna, e estava certo de que o Rei nos acolheria.

 

Seremos pobres sorriu para Guinevere, de maneira apologética, mas temos amigos e eles hão-de ajudar-nos. E a Broceliande receberá os lanceiros de Sagramor. Não passaremos fome. E, quem sabe? sorriu para o filho. Talvez Mordred morra e nós possamos regressar.

 

Mas Nimue disse eu, há-de perseguir-nos até ao fim do mundo. Artur fez uma careta.

 

Então, Nimue tem de morrer disse ele. Esse problema, porém, terá de esperar até que a oportunidade certa se apresente. Agora temos de decidir como é que havemos de chegar a Broceliande.

 

Vamos para Camlann sugeri eu, e perguntamos por Caddwg, o barqueiro.

 

Artur olhou para mim, surpreendido com o tom decidido da minha voz.

 

Caddwg?

 

Merlim preparou tudo, Senhor informei, e contou-me. É a última oferenda dele para vós.

 

Artur fechou os olhos. Pensava em Merlim e durante alguns segundos julguei que ele fosse começar a chorar. Em vez disso, porém, estremeceu apenas.

 

Vamos, então, para Camlann disse, abrindo os olhos.

 

Einion, o filho de Culhwuch, montou um cavalo selado e cavalgou para leste, em busca de Sagramor. Levava novas ordens, que instruíam Sagramor a tentar encontrar barcos e a seguir para sul, por mar, para Armórica. Einion diria ao Númida que nós iríamos procurar o nosso próprio barco em Camlann e esperávamos reunir-nos a ele nas costas de Broceliande. Não haveria nenhuma batalha contra Mordred, nenhuma aclamação em Caer Cadarn, somente uma fuga ignóbil por mar.

 

Depois de Einion ter partido, instalámos Artur-bach e a pequena Seren ^numa das mulas, empilhámos as nossas armaduras na outra e seguimos para sul. Naquele momento, Artur sabia, Mordred já teria descoberto que nós tínhamos fugido da Silúria e o exército de Dumnónia estaria já no seu encalço. Os homens de Nimue estariam, com certeza, com eles e beneficiavam da vantagem de viajarem pelas sólidas estradas romanas, enquanto nós tínhamos de atravessar quilómetros de colinas. Por isso apressámo-nos.

 

Ou tentámos apressar-nos. Mas as colinas eram íngremes, a estrada era longa, Ceinwyn ainda estava fraca, as mulas viajavam devagar e Culhwuch coxeava desde a longínqua batalha que travara contra Aelle, às portas de Londres. Avançámos lentamente, mas Artur parecia agora resignado ao seu destino.

 

Mordred não saberá onde procurar-nos disse ele.

 

Mas Nimue talvez saiba sugeri eu. Quem sabe o que terá ela obrigado Merlim a contar-lhe no final?

 

Artur ficou calado durante alguns instantes. Caminhávamos num bosque povoado de jacintos e juncado de folhas do ano novo.

 

Sabes o que é que eu devia fazer? disse ele, algum tempo depois. Devia procurar um poço fundo e atirar a Excalibur lá para dentro e depois cobri-lo com pedras para que ninguém a encontrasse entre o momento presente e o fim do mundo.

 

E porque não o fazeis, Senhor? Ele sorriu e tocou o copo da espada.

 

Já estou habituado a ela. Vou guardá-la até já não precisar dela. Mas escondo-a, se for obrigado a isso. Mas não ainda, continuou a andar, pensativo. Estás zangado comigo? perguntou-me depois de algum tempo.

 

Convosco? Porquê?

 

Esboçou um gesto, como se assim quisesse abranger toda a Dumnónia, todo aquele triste país, repleto de flores tão vivas e brilhantes e de novas folhas naquela manhã primaveril.

 

Se eu tivesse ficado, Derfel disse ele, se eu tivesse negado a Mordred o seu poder, nada disto teria acontecido.

 

Soava pesaroso.

 

Mas quem poderia adivinhar perguntei eu, que Mordred se revelaria tão bom soldado? Ou que seria capaz de reunir um exército?

 

É verdade admitiu ele, e quando acedi em satisfazer a exigência de Meurig, julguei que Mordred iria apodrecer em Durnovária. Julguei que ele se embriagaria até morrer ou que se envolveria numa rixa e acabaria com uma faca espetada nas costas abanou a cabeça. Ele nunca deveria ter sido Rei. Mas que escolha tinha eu? Tinha feito um juramento a Uther.

 

Tudo se resumia àquele juramento e eu recordei o Conselho, o último que se realizara na Bretanha, em que Uther inventara o juramento que faria de Mordred rei. Uther era um homem velho nessa época, grosseiro, doente e moribundo, e eu era uma criança que não queria outra coisa senão tornar-se lanceiro. Tudo aconteceu há já tanto tempo. Nimue era minha amiga nesse tempo.

 

Uther nem sequer queria que vós fôsseis um dos ajuramentados disse eu.

 

Nunca pensei que quisesse disse Artur, mas eu fi-lo, mesmo assim. E um juramento é um juramento, e se quebrarmos um de propósito perderemos a fé em tudo.

 

”Havia mais juramentos quebrados do que honrados”, pensei eu, mas fiquei calado. Artur tentara ser fiel aos seus juramentos e retirava daí grande conforto. Sorriu, de repente, e eu percebi que os seus pensamentos seguiam um curso mais feliz.

 

Há muito tempo disse-me, vi um pedaço de terreno em Broceliande. Era um vale que ia dar à costa sul, e recordo-me que havia um ribeiro e alguns vidoeiros. Na altura lembro-me de ter pensado que se tratava de um excelente lugar onde um homem poderia construir uma casa e iniciar uma nova vida.

 

Ri-me. Ainda agora, tudo o que ele desejava era ter uma casa, um pedaço de terra e amigos à sua volta; tudo o que ele sempre desejara. Nunca gostara de palácios, nem rejubilara com o poder, embora gostasse da prática da guerra. Tentava negar esse amor, mas era um bom guerreiro e tinha um raciocínio rápido, e esta combinação fazia dele um soldado terrível. Fora a vida de soldado que o tornara famoso e que lhe permitira unir os Bretões e derrotar os Saxões. No entanto, a sua atitude tímida em relação ao poder, aliada à sua crença perversa na bondade inata do homem e à sua fervorosa lealdade ao carácter sagrado dos juramentos, tinham deixado que homens mais mesquinhos destruíssem o seu trabalho.

 

Uma casa de madeira disse ele, com ar sonhador, com uma arcaria assente numa colunata, de frente para o mar. Guinevere adora o mar. O terreno é inclinado a sul, na direcção de uma praia, e poderíamos construir a nossa casa sobre ele de forma que dia e noite pudéssemos ouvir o rumor das ondas quebrando-se na areia da praia. E atrás da casa continuou ele, construirei uma nova forja.

 

Para que possais torturar mais metal? perguntei.

 

Ars longa disse ele, em tom jovial, vita brevis.

 

Latim? perguntei. Ele aquiesceu.

 

A arte é longa, a vida é curta. Hei-de melhorar, Derfel. O meu defeito é a impaciência. Vejo a forma do metal que quero, apresso-o, mas o ferro não pode ser apressado pôs uma das mãos sobre o meu braço enfaixado. Ainda temos alguns anos pela frente, Derfel.

 

Espero que sim, Senhor.

 

Anos e anos disse ele, anos para envelhecer, para ouvir cantigas e contar histórias.

 

E sonhar com a Bretanha? perguntei.

 

Servimo-la bem disse ele, e agora é ela quem deve servir-se a si própria.

 

E se os Sais voltarem perguntei, e os homens chamarem novamente por vós, regressareis?

 

Sorriu.

 

Poderia voltar para entregar a Gwydre o trono que lhe pertence, mas sem ser por essa razão pendurarei a Excalibur no prego mais elevado do telhado da minha casa, Derfel, e deixarei que as teias de aranha a envolvam. Contemplarei o mar, semearei as minhas colheitas e verei crescer os meus netos. Tu e eu estamos acabados, meu amigo. Libertámo-nos dos nossos juramentos.

 

De todos menos de um disse eu. Ele fitou-me com olhos penetrantes.

 

Estás a referir-te ao meu juramento para ajudar Ban?

 

Eu já esquecera este juramento, o único que Artur não conseguira manter, um fracasso que jamais deixara de pesar na sua consciência. Benoic, o reino de Ban, caíra em poder dos Francos e embora Artur tivesse enviado um destacamento de homens, ele próprio não se deslocara a Benoic. Mas tudo isso eram coisas do passado, e quanto a mim nunca culpara Artur por esse fracasso. Ele quisera ajudar, mas a pressão exercida pelos saxões de Aelle era enorme, nessa altura, e ele nunca poderia ter lutado em duas guerras ao mesmo tempo.

 

Não, Senhor respondi, estava a pensar no juramento que fiz a Sansum.

 

Lorde Rato há-de esquecer-te disse Artur, em tom despreocupado.

 

Ele não se esquece de nada, Senhor.

 

Nesse caso teremos de obrigá-lo a mudar de ideias disse Artur, pois não creio que seja capaz de envelhecer sem ti.

 

Nem eu sem vós, Senhor.

 

Então vamos esconder-nos, tu e eu, e as pessoas hão-de perguntar, onde está Artur? E onde está Derfel? E onde está Galaad? Ou Ceinwyn? E ninguém saberá responder, pois estaremos escondidos sob os vidoeiros, à beira do oceano.

 

Riu, mas aquele sonho parecia-lhe agora tão próximo que a esperança de o tornar realidade lhe deu o alento necessário para percorrer as últimas milhas da nossa longa viagem.

 

Ao fim de quatro dias e quatro noites chegámos, finalmente, à costa sul da Dumnónia. Tínhamos contornado o grande morro e alcançámos o oceano caminhando ao longo da berma de uma alta colina. Detivemo-nos no alto da falésia enquanto a luz crepuscular se derramava sobre os nossos ombros e iluminava o vale imenso que desembocava no oceano, abaixo de nós. Estávamos em Camlann.

 

Já tinha estado aqui, antes. Esta era a região sul do país, abaixo da Isca dumnoniana, cujos habitantes eram conhecidos por cobrirem o rosto com tatuagens azuis. Eu tinha começado por servir Lorde Owain, logo após a minha chegada à região, e fora sob a sua liderança que participara no massacre ocorrido no cimo da charneca. Anos mais tarde, passara muito perto destas colinas, quando, juntamente com Artur, tentara salvar a vida de Tristão. A tentativa falhara, porém, e Tristão tinha morrido. E agora, ali estava eu de novo, pela terceira vez. Era uma região encantadora, tão bonita quanto todas as outras que me fora dado conhecer na Bretanha. No meu espírito, porém, despertava recordações de assassinatos e sabia que me sentiria satisfeito quando a visse desaparecer por detrás do barco de Caddwg.

 

Olhámos para baixo, para o ponto onde terminava a nossa viagem. O rio Exe corria em direcção ao mar, aos nossos pés. Antes de alcançar o oceano, porém, formava um vasto lago salgado, separado do mar por uma estreita língua de areia. Este pedaço de areal era conhecido como Camlann, e na ponta, pouco visível a partir do nosso elevado posto de observação, os romanos tinham construído uma pequena fortaleza. Dentro dela, tinham erigido uma enorme estrutura em ferro que, outrora, servira de suporte a uma fogueira nocturna, destinada a avisar as galeras que se aproximavam de que ali havia um perigoso banco de areia.

 

Contemplávamos agora o lago, o banco de areia e a costa verde. Não havia um único inimigo à vista. Nem uma lâmina reflectia o brilho dos últimos raios de sol, nenhum cavaleiro cavalgava ao longo da costa e nem um lanceiro escurecia a estreita língua de areia. Podíamos perfeitamente ser os únicos habitantes do universo.

 

Conheces Caddwg? perguntou-me Artur, rompendo o silêncio.

 

Encontrei-o uma vez, Senhor, há muitos anos atrás.

 

Então descobre-o, Derfel, e diz-lhe que estaremos à espera dele no forte.

 

Olhei para sul, na direcção do oceano. Vasto, vazio e cintilante, era aquele o caminho que nos conduziria para fora da Bretanha. Em seguida, desci a colina a fim de tornar possível essa viagem.

 

A última claridade vacilante do crepúsculo iluminava o percurso até à casa de Caddwg. Pedira indicações a várias pessoas e fora conduzido até uma pequena cabana, na costa a norte de Camlann. Naquele momento, uma vez que a maré estava apenas meio-cheia, a cabana tinha pela frente uma extensão reluzente de lama vazia. O barco de Caddwg não estava na água, mas sim empoleirado num local elevado e seco, a quilha apoiada sobre rodas e o casco assente em postes de madeira.

 

Prydwen, é como se chama disse Caddwg, sem qualquer saudação. Vira-me, de pé, junto ao barco e saía agora de casa. O velho tinha uma barba espessa, a pele bem curtida pelo sol e estava vestido com um justilho de lã, manchado com pez e brilhante de escamas de peixe.

 

Foi Merlim quem me enviou disse eu.

 

Calculei que o fizesse. Ele disse que o faria. E ele, não vem?

 

Está morto disse eu. Caddwg cuspiu.

 

Nunca pensei que fosse ouvir isso cuspiu uma segunda vez. Julguei que a morte lhe desse uma borla.

 

Foi assassinado informei eu.

 

Caddwg baixou-se e atirou alguns toros de madeira para a fogueira que ardia sob um tacho borbulhante. Dentro deste havia pez, e eu pude ver que ele tinha estado a calafetar as brechas entre as tábuas do casco de Prydwen. O barco parecia ser bonito. O casco de madeira fora raspado e o novo e reluzente revestimento de madeira contrastava com o negro escuro do pez usado na calafetagem, que impedia a água de penetrar por entre as tábuas de madeira do casco. A proa era alta, tal como o mastro de popa, e um longo mastro recém-acabado que agora assentava sobre um cavalete, ao lado do casco.

 

Vais querer usá-lo, nesse caso disse Caddwg.

 

Somos treze disse-lhe eu, e estamos à espera no forte.

 

Amanhã, a esta hora retorquiu ele.

 

Só? perguntei eu, alarmado com o atraso.

 

Não sabia que vinham resmungou, e não a posso lançar à água sem que a maré suba, o que só vai acontecer amanhã de manhã. Mas quando tiver embarcado o mastro e inclinado a vela e tiver colocado o leme a bordo, a maré terá baixado novamente. Tornará a flutuar a meio da tarde, ai isso é que vai, e eu irei ter convosco o mais depressa que puder, mas queiram ou não queiram estará já a anoitecer. Deviam ter-me avisado.

 

Era verdade, mas nenhum de nós se lembrara de enviar uma mensagem a Caddwg, pois nenhum de nós percebia fosse o que fosse sobre barcos. Tínhamos pensado em vir até aqui, descobrir um barco e zarpar, e nunca nos tinha passado pela cabeça que o barco pudesse estar fora de água.

 

E não há outros barcos? perguntei.

 

Não para treze pessoas respondeu ele, e nenhum que possa levar-vos até ao meu destino.

 

Para Broceliande acrescentei eu.

 

Levar-vos-ei até onde Merlim me disse para vos levar disse Caddwg, obstinadamente, e depois contornou a popa de Prydwen e apontou para uma pedra cinzenta do tamanho de uma maçã. A pedra nada tinha de extraordinário, a não ser o facto de ter sido habilmente incrustada na proa do barco, onde ficava apoiada no carvalho como uma pedra preciosa incrustada num engaste de ouro.

 

Ele deu-me aquele bocado de pedra disse Caddwg, referindo-se a Merlim. Uma pedra espectral.

 

Uma pedra espectral? perguntei eu, que nunca ouvira tal coisa.

 

Conduzirá Artur até onde Merlim queria que ele fosse, e nada mais levará até lá. E nenhum outro barco poderá transportá-lo até lá, apenas um barco que tenha sido baptizado por Merlim disse Caddwg.

 

Prydwen significava Bretanha.

 

Artur está contigo? perguntou ele, subitamente ansioso.

 

Está, sim.

 

Nesse caso, trarei também o ouro disse Caddwg.

 

O ouro?

 

O velho deixou-o para Artur. Acho que ele o queria. Para mim não serve. Não posso apanhar um peixe com ouro. Com ele comprei uma vela nova, lá isso é verdade, e Merlim disse-me que a comprasse e, para isso, teve que me dar ouro, mas com ouro não se apanha peixe. Apanha-se mulheres riu-se, mas peixe, não.

 

Olhei para o barco, que estava em doca seca.

 

Precisas de ajuda? inquiri. Caddwg soltou uma gargalhada sem humor.

 

E de que maneira é que me podes ajudar? Tu e o teu braço curto? Consegues calafetar um barco? Sabes encaixar um mastro ou dobrar uma vela cuspiu. Basta que assobie para ter uma vintena de homens para me ajudar. Hás-de ouvir-nos cantar de manhã e isso significará que estaremos a arreá-lo e a fazê-lo rolar até à água. Amanhã à noite meneou a cabeça num aceno seco. Irei procurar-te no forte.

 

Virou-se e desapareceu no interior da cabana.

 

E eu fui juntar-me a Artur. Já estava escuro e todas as estrelas celestes pontuavam o firmamento. A lua deixava um longo e cintilante rasto sobre o mar, iluminando as muralhas em ruínas do pequeno forte, onde esperaríamos por Prydwen.

 

«Restava-nos um último dia na Bretanha,» pensei eu. Uma última noite e um último dia, e depois zarparíamos na companhia de Artur, seguindo ao longo do trilho aberto pela lua, e então a Bretanha nada mais seria do que uma recordação.

 

O vento da noite soprava suavemente através da muralha arruinada do forte. Os restos enferrujados do farol de outrora oscilavam na extremidade do poste pálido, acima das nossas cabeças, enquanto pequenas vagas vinham quebrar-se na comprida praia, a Lua cedia lentamente ao abraço do oceano e a noite escurecia.

 

Dormimos abrigados pelas muralhas. Os romanos tinham construído as muralhas do forte com areia, que tinham coberto com turfa plantada com sargaço; depois tinham colocado uma paliçada ao longo do cimo da muralha. A estrutura devia ter sido frágil mesmo no momento da sua construção, mas o forte nunca fora mais do que um ponto de observação e um local onde uma pequena guarnição encontrara abrigo contra os ventos marítimos, enquanto guardava o farol. A paliçada de madeira estava, agora, praticamente em ruínas e a chuva e o vento tinham desgastado quase toda a muralha de areia, embora nalguns sítios ainda tivesse cerca de quatro ou cinco metros de altura.

 

O dia amanheceu claro e nós avistámos um grupo de pequenos barcos saindo para o mar, para mais um dia de trabalho. Depois da sua partida, apenas o Prydwen ficou à beira do lago. Artur-bach e Seren brincavam na areia à beira do lago, onde não havia rebentação, enquanto Galaad e o outro filho de Culhwuch percorriam a costa em busca de comida. Regressaram com pão, peixe seco e uma selha de madeira cheia de leite fresco, ainda morno. Sentíamo-nos todos estranhamente felizes naquela manhã. Lembro-me de como nos rimos enquanto víamos Seren rebolar ao longo de uma duna e de como aplaudimos quando Artur-bach tirou um monte de sargaço dos baixios e os atirou sobre a areia. A enorme massa verde devia pesar tanto quanto ele, mas ele puxava e sacudia e arrastava todo aquele pesado emaranhado até à arruinada muralha do forte. Gwydre e eu aplaudimos os seus esforços e, depois, começámos a conversar.

 

Se não estou destinado a ser rei disse Gwydre, que assim seja.

 

O destino é inexorável disse eu, e vendo-o olhar-me com uma expressão perplexa, sorri. Era uma das frases favoritas de Merlim. Esta e «Não digas tolices, Derfel.» Para ele, eu não dizia outra coisa que não fossem tolices.

 

Tenho a certeza que não o fazias disse ele, com lealdade.

 

Todos nós o fazíamos. Excepto Nimue e Morgana, talvez. Os restantes de nós, pura e simplesmente não éramos inteligentes o suficiente. A vossa mãe, talvez, mas eles nunca foram realmente amigos.

 

Gostava de o ter conhecido melhor.

 

Quando fordes velho, Gwydre disse eu, sempre podes dizer às pessoas que conheceste Merlim.

 

Ninguém acreditará em mim.

 

Não, é provável que não disse eu. E quando fordes velho, já terão inventado novas histórias acerca dele. E acerca do vosso pai também.

 

Atirei a lasca de uma concha contra a parede do forte. Ao longe, do outro lado da água, chegava-me o som agudo das vozes de homens cantando e soube que estava a ouvir o lançamento à água de Prydwen. Já falta pouco, disse para comigo, já falta pouco.

 

Talvez nunca venhamos a saber a verdade disse eu a Gwydre.

 

A verdade?

 

Acerca de vosso pai acrescentei, ou de Merlim.

 

Já se ouviam canções que atribuíam a Meurig os louros pela conquista de Mynydd Baddon, e muitos cânticos que louvavam Lancelote em detrimento de Artur. Olhei em volta, procurando Taliesin e perguntei a mim próprio se ele corrigiria essas canções. Nessa manhã, o bardo dissera-nos que não fazia tenções de nos acompanhar na travessia e que regressaria a Silúria ou a Powys. Creio que Taliesin só viera connosco até tão longe, para poder conversar com Artur e, assim, ficar a saber da boca dele a história da sua vida. Ou, talvez, Taliesin tivesse entrevisto o futuro. No entanto, fossem quais fossem as razões que o motivavam, o bardo conversava com Artur naquele preciso momento. Artur, porém, afastou-se subitamente de Taliesin e caminhou, apressado, em direcção à margem do lago. Ficou ali durante muito tempo, olhando para norte. Então, inesperadamente, virou-se e correu até à duna mais próxima. Trepou-a e depois, virando-se, tornou a olhar para norte.

 

Derfel! chamou Artur. Derfel!

 

Deslizei ao longo da muralha do forte, atravessei o areal e, apressado, subi a encosta da duna.

 

Que vês? perguntou-me Artur.

 

Olhei para norte, para além do lago cintilante. Conseguia ver Prydwen a meio caminho do seu percurso, e as fogueiras onde o sal era cozido e o peixe do dia era defumado, e podia ver, ainda, algumas redes de pesca suspensas em postes enterradas na areia. Só depois vi os cavaleiros.

 

A luz do sol reflectia-se na lâmina de uma lança, e depois noutra, até que, de súbito, consegui discernir uma vintena de homens, talvez mais, avançando ao longo de uma estrada que se perdia no interior da costa que bordejava o lago.

 

Escondam-se! gritou Artur, e nós deslizámos ao longo da duna, agarrámos em Seren e em Artur-bach e agachámo-nos como criaturas culpadas, no interior das muralhas arruinadas do forte.

 

Eles devem ter-nos visto, Senhor disse eu.

 

Talvez não.

 

Quantos são? perguntou Culhwuch.

 

Vinte sugeriu Artur, trinta? Talvez mais. Vinham a sair de detrás de umas árvores. Podem ser cem.

 

Ouvimos um arranhar suave e quando me virei vi que Culhwuch tinha desembainhado a espada. Sorriu para mim.

 

Tanto me faz que sejam duzentos homens, Derfel, não vão é cortar a minha barba.

 

E por que razão haveriam de querer cortar a tua barba? perguntou Galaad. Uma coisa malcheirosa, crivada de piolhos?

 

Culhwuch riu-se. Gostava de provocar Galaad, e de ser provocado em troca, e ainda estava a pensar no que haveria de responder quando Artur ergueu, cautelosamente, a cabeça acima da muralha e olhou para oeste, na direcção do local onde os soldados apareceriam. Ficou muito quieto, e a sua imobilidade teve o condão de nos obrigar a calar. Então levantou-se, de súbito, e acenou.

 

É Sagramor! anunciou, e a alegria na sua voz era inequívoca. É Sagramor! repetiu, e a sua excitação era tal que Artur-bach logo se apropriou daquele grito alegre.

 

É Sagramor! gritou o rapazinho, enquanto trepávamos pela muralha para ver a sinistra bandeira negra de Sagramor esvoaçando no alto da haste de uma lança, encimada por uma caveira. O próprio Sagramor, com o seu elmo negro em forma de cone, liderava o grupo e, ao ver Artur, esporeou o cavalo e avançou rapidamente ao longo do areal. Artur correu a saudá-lo, Sagramor apeou-se do cavalo, caiu de joelhos e abraçou Artur pela cintura.

 

Senhor! disse Sagramor, numa rara demonstração de sentimento. Senhor! Julguei que nunca mais vos veria.

 

Artur ergueu-o e, em seguida, abraçou-o.

 

Ter-nos-íamos encontrado em Broceliande, meu amigo.

 

Broceliande? disse Sagramor e depois cuspiu. Odeio o mar.

 

O seu rosto negro estava sulcado de lágrimas e lembrei-me de ele me ter falado, um dia, sobre os motivos por que seguia Artur. Porque, dissera ele, quando eu nada tinha, Artur deu-me tudo. Sagramor não viera até aqui por estar relutante em viajar de barco, mas sim porque Artur precisava de ajuda.

 

O Númida trouxera oitenta e três homens com ele, e Einion, o filho de Culhwuch, estava entre eles.

 

Tinha apenas noventa e dois cavalos, Senhor, Sagramor disse a Artur. Há meses que ando a reuni-los.

 

Ele esperara superar as forças de Mordred e, assim, trazer todos os seus homens de regresso à Silúria, em segurança. Em vez disso, porém, trouxera tantos quantos conseguira reunir até esta língua de areia ressequida, presa entre o lago e o oceano. Alguns dos cavalos tinham ficado pelo caminho, mas oitenta e três tinham conseguido completar a viagem.

 

Onde está o resto dos teus homens? perguntou Artur.

 

Zarparam ontem para oeste, com as nossas famílias disse Sagramor e depois afastou-se um pouco do abraço de Artur e olhou para nós.

 

Devemos ter parecido um grupo com um aspecto miserável, já que ele nos brindou com um dos seus raros sorrisos antes de se curvar perante Guinevere e Ceinwyn.

 

Temos apenas um barco disse Artur, preocupado.

 

Pois então, tereis de apanhar esse único barco, Senhor disse Sagramor, calmamente, enquanto nós cavalgaremos para oeste, até Kernow. Lá poderemos encontrar barcos e seguir-vos para sul. Eu queria encontrar-me convosco deste lado da água, não fossem os vossos inimigos encontrar-vos também.

 

Até agora não vimos nenhum disse Artur, tocando o copo da Excalibur, pelo menos não deste lado do mar Severn. E rezo para que não vejamos nenhum em todo o dia. O nosso barco chega ao anoitecer e depois partimos.

 

Nesse caso, guardar-vos-ei até ao anoitecer disse Sagramor, e dito isto os homens dele deslizaram ao longo das suas selas, soltaram os escudos que tinham presos às costas e enterraram as lanças na areia. Os cavalos, suados e ofegantes, ficaram de pé, enquanto os homens de Sagramor estiravam os braços e as pernas cansados. Éramos agora um grupo de guerra, quase um exército, e o nosso estandarte era a bandeira negra de Sagramor.

 

Foi então que, uma hora mais tarde, montado em cavalos tão cansados quanto os de Sagramor, o inimigo chegou a Camlann.

 

Ceinwyn ajudou-me a vestir a armadura, já que me era difícil manusear a pesada cota de malha com uma mão apenas e impossível afivelar as caneleiras que trouxera de Mynydd Baddon e que protegiam as minhas pernas das estocadas de lança que conseguiam perfurar a barreira dos escudos. Uma vez as caneleiras e a malha ajustadas e cinto da Hywelbane preso à minha cintura, deixei que Ceinwyn prendesse o escudo ao meu braço esquerdo.

 

Aperta mais pedi-lhe, instintivamente fazendo pressão contra a cota de malha até sentir o pequeno alto, onde o pregador dela estava preso à minha camisa. Estava em local seguro, ali, um talismã que me acompanhara durante inúmeras batalhas.

 

Talvez eles não ataquem disse ela, ajustando as tiras de couro do escudo e apertando-as tanto quanto possível.

 

Reza para que não o façam respondi eu.

 

Rezo a quem? perguntou ela, com um sorriso sardónico.

 

À divindade em quem depositares mais confiança, meu amor disse eu, e depois beijei-a.

 

Enfiei o elmo e ela apertou a tira debaixo do queixo. A amolgadela feita no cimo do elmo em Mynydd Baddon tinha sido endireitada a golpes de martelo e um novo banho de ferro tinha sido aplicado, a fim de cobrir e disfarçar a mossa. Tornei a beijar Ceinwyn e, em seguida, desci os protectores laterais. O vento agitou a pluma feita de cauda de lobo em frente ao visor do elmo e eu atirei a cabeça para trás, tentando afastar a longa massa de pêlos cinzentos. Eu era a última cauda de lobo. Todas as outras tinham sido massacradas por Mordred ou tinham sido feitas prisioneiras de Manawydan. Eu era o último, tal como era também o último guerreiro vivo que ostentava a estrela de Ceinwyn no meu escudo. Sopesei a minha lança de guerra, cuja haste era tão grossa como o pulso de Ceinwyn e cuja lâmina afiada era feita com o melhor aço de Morridig.

 

Em breve Caddwg juntar-se-á a nós disse-lhe eu, já não nos resta muito que esperar.

 

O dia todo, apenas disse Ceinwyn, olhando para o lago e fitando o local onde Prydwen flutuava, junto à margem lamacenta.

 

Alguns homens içavam o mastro da embarcação a fim de o colocar na posição vertical. Em breve, porém, a maré vazante tornaria a deixar o barco encalhado, forçando-nos a esperar que as águas subissem novamente. Mas, pelo menos, o inimigo não incomodara Caddwg e não tinha razões para o fazer. Para ele, ele era sem dúvida apenas mais um pescador e nada que lhe dissesse respeito. Quem lhe dizia respeito éramos nós.

 

O inimigo era constituído por cerca de sessenta ou setenta homens, todos eles cavaleiros, que deviam ter cavalgado duramente para nos alcançar. Agora, porém, esperava-nos no extremo interior da língua de areia, e todos nós sabíamos que outros lanceiros se lhes seguiriam. Ao anoitecer, teríamos pela frente um exército, talvez dois, já que os homens de Nimue certamente não demorariam muito tempo a chegar, na companhia dos soldados de Mordred.

 

Artur envergava o seu melhor equipamento de batalha. A armadura de escamas, onde se viam línguas de ouro por entre as lâminas de ferro, reluzia ao sol. Vi-o enfiar o elmo, encimado por penas de ganso brancas. Habitualmente, teria sido Hygwydd a vestir-lhe a armadura, mas Hygwydd estava morto. Por isso, fora Guinevere quem prendera a bainha entrançada da Excalibur à volta da cintura e colocara o manto branco sobre os seus ombros. Ele sorriu para ela, inclinou-se para escutar as palavras dela, riu-se e depois baixou os protectores laterais do elmo. Dois homens ajudaram-no a montar um dos cavalos de Sagramor e, em seguida, passaram-lhe a lança e o escudo forrado a prata, do qual há muito a cruz fora arrancada. Segurou as rédeas com a mesma mão onde tinha o escudo e esporeou o cavalo na nossa direcção.

 

Vamos agitá-los disse para Sagramor, que estava ao meu lado. Artur planeava comandar trinta cavaleiros e marchar sobre o inimigo,

 

depois simular uma retirada em pânico que, esperava ele, atrairia as forças adversárias para uma armadilha.

 

Deixámos uma vintena de homens no forte, de guarda às mulheres e crianças, enquanto os restantes seguiam Sagramor até uma depressão funda atrás de uma duna virada para o mar. O banco de areia a oeste do forte era uma confusão de dunas e depressões que formavam um labirinto de armadilhas e vias sem saída. Apenas os últimos duzentos passos de areal, a leste do forte, eram planos.

 

Artur esperou até estarmos todos escondidos e, depois, comandou os seus trinta homens para oeste, marchando ao longo da areia enrugada pela água do mar, junto à zona de rebentação. Agachámo-nos, abrigados pela duna alta. Eu deixara a minha lança no forte, preferindo lutar nesta batalha apenas com a ajuda da Hywelbane. Sagramor também planeava lutar somente com a espada. Neste momento, raspava uma mancha de ferrugem na lâmina curva com um punhado de areia.

 

Perdeste a barba rosnou para mim.

 

Troquei-a pela vida de Amhar.

 

Vi o cintilar dos seus dentes quando ele sorriu por detrás da sombra projectada pelos protectores laterais do seu elmo.

 

Boa troca disse ele. E a tua mão?

 

Magia.

 

Não é a mão com que empunhas a espada, pois não?

 

Segurou a lâmina de forma que a claridade se reflectisse nela, satisfeito pelo facto de a mancha de ferrugem ter desaparecido. Em seguida, inclinou a cabeça, à escuta, mas o único som que conseguíamos ouvir era o rumor da rebentação, na praia.

 

Não devia ter vindo disse ele, finalmente.

 

Porque não?

 

Nunca vira Sagramor esquivar-se a um combate.

 

Eles devem ter-me seguido tornou ele, com um movimento de cabeça para oeste, indicando o inimigo.

 

Eles podiam muito bem saber que vínhamos para cá disse eu, tentando reconfortá-lo.

 

Todavia, a menos que Merlim tivesse traído Camlann junto de Nimue, o mais provável era que Mordred tivesse, de facto, deixado ficar para trás alguns cavaleiros encarregues de vigiar Sagramor e que esses batedores tivessem revelado a localização do nosso esconderijo. Fosse como fosse, era demasiado tarde. Os homens de Mordred conheciam o nosso paradeiro e, naquele momento, Caddwg e o inimigo disputavam uma corrida entre si.

 

Ouviste? perguntou Gwydre.

 

Tinha vestido a armadura e, no escudo, exibia o urso de seu pai. Estava nervoso, o que não era de surpreender, já que esta seria, verdadeiramente, a sua primeira batalha.

 

Prestei atenção. O forro de pele do elmo abafava o som, mas ao fim de algum tempo consegui ouvir o som de cascos de cavalos sobre a areia.

 

Baixem-se! gritou Sagramor, dirigindo-se aos que se sentiam tentados a espreitar pelo topo da duna.

 

Os cavalos avançavam ao longo da praia. As dunas não deixavam que fôssemos vistos da praia. O som tornou-se mais próximo, crescendo até soar como um trovão formado por cascos de cavalos, enquanto nós pegávamos nas lanças e nas espadas. O elmo de Sagramor era encimado pela máscara de uma raposa uivando. O meu olhar estava fixo na raposa, mas eu apenas ouvia o som crescente produzido pelas patas dos cavalos. Estava calor e o suor escorria-me pelo rosto abaixo. A cota de malha pesava, mas era sempre assim até ao início do combate.

 

O som ritmado das primeiras patas de cavalos passou por nós e, em seguida, Artur gritou na praia.

 

Agora! clamou ele. Agora! Agora! Agora!

 

Avançar bradou Sagramor e todos nós trepámos pela duna acima. As nossas botas escorregavam sobre a areia e eu tive a sensação de que

 

jamais alcançaria o topo. Mas depois passámos para o outro lado da duna e corremos em direcção à praia, onde um bando de cavaleiros revolvia a areia espessa e húmida à beira-mar. Artur virara-se e os trinta homens que o acompanhavam tinham ido ao encontro dos seus perseguidores, duas vezes mais numerosos do que os soldados de Artur. Aqueles, porém, viam-nos, agora, correndo em direcção aos seus flancos e os mais prudentes voltaram-se e galoparam para oeste, procurando colocar-se em segurança. A maioria, porém, ficou para travar o combate.

 

Gritei um desafio, amparei a ponta de chumbo da lança de um dos cavaleiros com a parte central do meu escudo, passei a Hywelbane sobre a pata traseira do cavalo para paralisar o animal e, depois, quando o cavalo se inclinou na minha direcção, enterrei a Hywelbane bem fundo nas costas do cavaleiro. Ele gritou de dor e eu dei um salto para trás à medida que homem e cavalo sucumbiam, num tumulto de cascos de cavalo, areia e sangue. Agredi a pontapé o rosto do homem, que se contorcia no solo, atingi-o com mais um golpe da Hywelbane e, em seguida, descrevendo um movimento de rotação, ataquei um cavaleiro que, em pânico, tentava ferir-me com golpes fracos da sua lança. Sagramor entoava um grito de guerra medonho e Gwydre atacava um homem caído à beira-mar. O inimigo começara a fugir em debandada, esporeando os cavalos e conduzindo-os até local seguro, ao longo dos baixios, onde a maré vazante sugava um remoinho de areia e sangue juntamente com a rebentação. Vi Culhwuch instigar o cavalo de um soldado inimigo a aproximar-se e, com ambos os braços, içar o homem da sua sela. Este tentou pôr-se de pé, mas Culhwuch rodou a espada, virou o cavalo e tornou a golpeá-lo. Os poucos adversários que tinham sobrevivido estavam agora presos entre nós e o mar, e nós dizimámo-los feroz e implacavelmente. Os cavalos guinchavam e escoiceavam enquanto agonizavam. As ondas pequenas estavam tingidas de rosa e a areia estava negra de sangue.

 

Matámos vinte e fizemos dezasseis prisioneiros e depois de estes nos terem confessado tudo o que sabiam, matámo-los também. Artur fez uma careta ao dar a ordem de execução, pois não gostava de matar homens desarmados, mas não podíamos dispensar nenhum lanceiro para ficar de guarda aos prisioneiros, nem sentíamos qualquer tipo de misericórdia por inimigos como estes, que ostentavam escudos sem insígnia como marca da sua selvajeria. Matámo-los depressa, obrigando-os a ajoelharem-se na areia, onde a Hywelbane ou a lâmina afiada da espada de Sagramor lhes decepou as cabeças. Eram os homens de Mordred, e fora o próprio Mordred que os conduzira até à praia. O Rei, porém, fizera recuar o cavalo aos primeiros indícios da nossa emboscada, gritando aos seus homens que batessem em retirada.

 

Estive perto dele disse Artur, pesaroso, mas não o suficiente.

 

Mordred escapara, mas a primeira vitória era nossa, embora três dos nossos homens tivessem perecido em combate e outros sete estivessem gravemente feridos.

 

Como lutou Gwydre? perguntou-me Artur.

 

Com bravura, Senhor, com bravura respondi eu.

 

A minha espada estava coberta por uma espessa camada de sangue, que eu tentava limpar com um punhado de areia.

 

Ele gostou, Senhor tranquilizei Artur.

 

Ainda bem disse ele, indo ao encontro do filho e colocando-lhe a mão em volta dos ombros.

 

Usei a única mão que me restava para limpar o sangue da Hywelbane, desapertei a fivela que me prendia o elmo e tirei-o.

 

Matámos os cavalos feridos, conduzimos os animais que tinham escapado ilesos de volta ao forte e, em seguida, recolhemos as armas e os escudos inimigos.

 

Não voltarão disse eu a Ceinwyn, a não ser que obtenham reforços.

 

Ergui os olhos na direcção do Sol e vi que ele se elevava lentamente num céu sem nuvens.

 

Tínhamos muito pouca água, restando-nos apenas a provisão que os homens de Sagramor tinham trazido juntamente com os seus reduzidos haveres. Fomos obrigados a racionar os odres de água. Antevia-se um longo e sedento dia, sobretudo para os nossos feridos. Um deles tremia. O seu rosto estava pálido, quase amarelo, e quando Sagramor tentou enfiar um pouco de água na boca do homem, ele mordeu convulsivamente a pele do lábio. Começou a gemer, o som da sua agonia roçava as nossas almas e Sagramor apressou a morte do homem com um golpe da sua espada.

 

Temos de acender uma pira disse ele, no extremo da língua de areia.

 

Inclinou a cabeça na direcção da extensão de areia plana, onde o mar abandonara um emaranhado de madeira flutuante, amarelecida pelo sol. Artur pareceu não ouvir a sugestão.

 

Se quiseres disse ele a Sagramor, podes seguir para oeste, agora.

 

E deixar-vos aqui?

 

Se ficares disse Artur, calmamente, não sei como poderás sair daqui. Estamos à espera de um barco, apenas. E mais homens se juntarão a Mordred. Mas ninguém virá ao nosso encontro.

 

Mais homens para matar disse Sagramor secamente, mas creio que ele sabia que, se ficasse estaria a garantir a sua própria morte. O barco de Caddwg poderia transportar vinte pessoas em segurança, mas mais do que isso não.

 

Podemos nadar até à outra margem, Senhor disse ele, indicando com um movimento de cabeça a margem oriental do canal, que corria, fundo e rápido, ao longo do extremo da língua de areia.

 

Aqueles de nós que souberem nadar acrescentou.

 

Sabes?

 

Nunca é demasiado tarde para aprender disse Sagramor, depois cuspiu. Além disso, não estamos mortos ainda.

 

Nem estávamos vencidos, e cada minuto que passava deixava-nos mais perto da segurança. Eu via os homens de Caddwg transportando a vela até Prydwen, ancorado junto à orla das águas. O mastro estava agora na vertical, embora vários homens ainda montassem o cordame do calcês, e dentro de uma ou duas horas, a maré subiria e o barco voltaria a flutuar, pronto para iniciar a viagem. Apenas tínhamos de aguardar o anoitecer. Ocupámos o nosso tempo construindo uma enorme pira com a madeira flutuante. Quando estava, começou a arder, içámos o corpos dos nossos mortos e atirámo-los para o meio das chamas. Os seus cabelos brilharam e depois surgiu o odor a carne queimada. Atirámos mais tábuas de madeira até o fogo se tornar um inferno ensurdecedor e abrasador.

 

Uma vedação de espíritos poderia deter o inimigo observou Taliesin depois de ter entoado uma prece pelos quatro homens em chamas, cujas almas flutuavam, juntamente com o fumo, subindo ao encontro dos respectivos corpos-sombra.

 

Não via uma vedação de espíritos havia anos. Naquele dia, porém, construímos uma. Foi uma tarefa macabra. Tínhamos os cadáveres de trinta e seis inimigos, dos quais separámos trinta e seis cabeças, que enfiámos nas lâminas das lanças capturadas. Em seguida, enterrámos as lanças ao longo da língua de areia e Taliesin, conspícuo nas suas vestes brancas e empunhando a haste de uma lança por forma a parecer um Druida, caminhava de uma lança para outra para que o inimigo julgasse que estava a realizar um encantamento. Poucos seriam os homens que de boa vontade percorreriam uma vedação de espíritos sem a companhia de um Druida que afastasse o mal que deles se libertava. No entanto, uma vez terminada a vedação todos nós nos sentimos mais tranquilos. Partilhámos uma magra refeição, a meio do dia, e recordo-me de Artur contemplando, com uma expressão pesarosa, a vedação de espíritos enquanto comia.

 

De Isca para isto comentou ele, em voz baixa.

 

De Mynydd Baddon para isto retorqui eu. Encolheu os ombros.

 

Pobre Uther disse ele, e devia estar a pensar no juramento que fizera de Mordred Rei, o juramento que o trouxera até àquela língua de areia aquecida pelo Sol, à beira-mar.

 

Os reforços de Mordred chegaram ao início da tarde. Avançavam a pé, na sua maioria, formando uma longa coluna que se estendia ao longo da margem oeste do lago. Contámos mais de cem homens e sabíamos que muitos mais se lhes seguiriam.

 

Eles devem estar cansados disse-nos Artur, e nós temos a vedação de espíritos.

 

Agora, porém, o inimigo possuía um Druida. Fergal chegara juntamente com os reforços, e uma hora depois de termos avistado a coluna de lanceiros pela primeira vez, vimos o Druida aproximar-se da vedação e farejar o ar salgado como um cão. Atirou vários punhados de areia na direcção da cabeça mais próxima, apoiou-se numa perna durante alguns instantes e, depois, correu a apanhar uma lança e arremessou-a. A vedação partiu-se e Fergal virou’ a cabeça para o Sol e soltou um imenso grito de triunfo. Enfiámos os nossos elmos, recuperámos os escudos e passámos uns aos outros pedras de amolar.

 

A maré mudara, e os primeiros barcos de pesca regressavam a casa. Saudámo-los quando passaram a língua de areia, mas a maior parte ignorou o nosso chamamento, pois a gente simples tem com frequência boas razões para temer os lanceiros. Galaad, no entanto, acenou-lhes com uma moeda de ouro e este estratagema fez com que um dos barcos se aproximasse, de facto. A embarcação avançou com cautela até à margem e ancorou no areal, próximo da pira mortuária em chamas. Os dois tripulantes, os rostos cobertos de tatuagens, concordaram em levar as mulheres e as crianças para o barco de Caddwg, que praticamente já flutuava de novo. Demos ouro aos pescadores, instalámos mulheres e crianças dentro do barco e enviámos um dos soldados feridos para guardá-las.

 

Digam aos outros pescadores disse Artur aos homens tatuados, que haverá ouro para aquele que conduzir o seu barco juntamente com o de Caddwg.

 

Despediu-se rapidamente de Guinevere, tal como eu fiz com Ceinwyn. Abracei-a durante alguns instantes e descobri que me faltavam as palavras.

 

Vive disse-me ela.

 

Por ti disse eu, assim farei.

 

Em seguida ajudei a empurrar o barco de volta ao mar e vi-o afastar-se, lentamente, no canal.

 

Momentos mais tarde, um dos nossos batedores regressou, galopando, do local onde a vedação estava partida.

 

Eles vêm aí, Senhor gritou ele.

 

Deixei Galaad apertar a fivela do meu elmo. Ele entregou-me a minha lança.

 

Deus esteja contigo disse ele antes de pegar no seu próprio escudo, decorado com a cruz de Cristo.

 

Desta vez, não lutaríamos nas dunas, pois não tínhamos homens em número suficiente para formar um escudo defensivo que se estendesse ao longo da zona mais acidentada do banco de areia. Isto significava que os cavaleiros de Mordred poderiam ter avançado pelos nossos flancos, cercando-nos e condenando-nos a uma morte certa, encurralados num círculo de inimigos cada vez mais apertado. Tão-pouco combatemos no forte, já que também aí corríamos o risco de ser cercados e ficar, em consequência, impedidos de ter acesso à água quando Caddwg chegasse. Assim, recuámos para a extremidade estreita da língua de areia, onde o nosso escudo defensivo poderia cobrir a distância que mediava entre as duas margens. A pira ardia, ainda, logo acima da linha de ervas daninhas que assinalava os limites da maré alta. Enquanto aguardávamos a chegada do inimigo, Artur ordenou que mais madeira flutuante fosse lançada ao braseiro. Continuámos a alimentar a fogueira até vermos os homens de Mordred aproximando-se, e só então formámos o nosso escudo defensivo, a escassos passos das chamas. Colocámos o estandarte negro de Sagramor no centro da nossa linha de combate, unimos as extremidades dos nossos escudos e esperámos.

 

Éramos oitenta e quatro homens e Mordred trouxe consigo mais de cem para nos atacar. Todavia, quando viram o nosso escudo defensivo formado e a postos, pararam. Alguns dos cavaleiros de Mordred avançaram até à beira do lago, esperando poder cavalgar ao longo do nosso flanco, mas o nível da água tornava-se subitamente mais profundo, no sítio onde o canal acompanhava a margem sul, e eles descobriram que não podiam cavalgar à nossa volta. Desmontaram e carregaram escudos e lanças até se juntarem à longa frente de combate de Mordred. Olhei para cima e vi que o Sol deslizava, finalmente, na direcção das altas colinas a oeste. Prydwen já quase flutuava, embora alguns homens ainda se afadigassem, tentando lançá-lo à água. ”Caddwg”, pensei eu, ”não demoraria a aparecer”; no entanto, já outros soldados inimigos avançavam ao longo da estrada, a oeste. As forças de Mordred fortaleciam-se, enquanto nós só podíamos ficar mais fracos.

 

Fergal, cuja barba estava entrelaçada com pêlo de raposa e pequenos ossos pendentes, aproximou-se do areal em frente ao nosso escudo defensivo e aí, apoiado numa perna, ergueu uma das mãos no ar e manteve um olho fechado. Amaldiçoou as nossas almas, prometendo-as ao verme do fogo de Crom Dubh e à alcateia de lobos que assola o Desfiladeiros de Setas de Eryri. As nossas mulheres transformar-se-iam em joguetes nas mãos dos demónios de Annwn e as nossas crianças seriam presas por pregos aos carvalhos de Arddu. Amaldiçoou as nossas lanças e espadas e lançou um encantamento destinado a abalar os nossos escudos e a transformar as nossas entranhas em água. Gritou os seus feitiços, prometendo que para obter alimento, no Outro Mundo, teríamos de chafurdar nos excrementos dos cães de Arawn e que para conseguir matar a sede de água lamberíamos a bílis das serpentes de Cefydd.

 

Os vossos olhos serão sangue entoou ele, as vossas barrigas estarão cheias de vermes e as vossas línguas tornar-se-ão negras! Testemunhareis a violação das vossas mulheres e o assassínio dos vossos filhos!

 

Chamou alguns de nós pelo nome, ameaçando-nos com tormentos inimagináveis, enquanto nós, para combatermos os seus feitiços, cantávamos o Cântico de Guerra de Beli Mawr.

 

Desde aquele dia não mais tornei a escutar este cântico cantado por guerreiros, e jamais o ouvi ser tão bem cantado como naquela faixa de areia aquecida pelo sol e rodeada pelo mar. Éramos poucos, mas éramos os melhores guerreiros que Artur alguma vez comandara. Naquele escudo defensivo havia apenas um ou dois jovens; os restantes eram homens curtidos, endurecidos, que já tinham combatido e que já tinham sentido o cheiro a massacre e sabiam como matar. Éramos os senhores da guerra. Não havia ali um homem fraco, nem um a quem não se pudesse confiar a vida de um companheiro, nem um que fraquejasse ou a quem faltasse a coragem. E como nós cantámos, naquele dia! Abafámos as maldições de Fergal, e o som forte das nossas vozes deve ter atravessado as águas até ao local onde as nossas mulheres nos esperavam, a bordo do Prydwen. Cantámos a Beli Mawr, que atrelara o vento ao seu carro, e tinha uma árvore por haste de uma lança e cuja espada trespassava os seus inimigos como uma foice ceifando cardos. Entoámos cânticos sobre as suas vítimas, que jaziam espalhadas pelos campos de trigo e regozijámo-nos com as viúvas resultantes da sua ira. Cantámos que as suas botas eram como moldes, o seu escudo um penhasco de ferro e a pluma do seu elmo suficientemente alta para roçar as estrelas. Cantámos até enchermos de lágrimas os nossos olhos e de medo o coração dos nossos inimigos.

 

O cântico terminou com um uivo selvagem, e ainda antes de este ter chegado ao fim já Culhwuch se destacava do nosso escudo defensivo e brandia a sua lança na direcção do inimigo. Ridicularizou-os, chamando-os cobardes, cuspiu na sua linhagem e convidou-os a experimentarem a lâmina da sua lança. O inimigo observava-o, mas ninguém se mexia para aceitar o seu desafio. Formavam um grupo andrajoso, temível, tão endurecidos como nós, embora talvez não estivessem habituados a lutar em escudos defensivos. Eram a escumalha da Bretanha e da Armórica, os salteadores, foras-de-lei e homens sem dono, que tinham acorrido ao chamado de Mordred, atraídos pela promessa de pilhagem e violação. Minuto a minuto, as suas fileiras engrossavam, a medida que mais homens atravessavam a língua de areia. Os recém-chegados, porém, tinham os pés feridos e cansados e o estreitamento da faixa de areia restringia o número de homens que seriam capazes de avançar sobre as nossas lanças. Poderiam obrigar-nos a recuar, mas não conseguiriam flanquear-nos. Tão-pouco havia um deles que parecesse disposto a enfrentar Culhwuch. Este colocou-se mesmo em frente de Mordred, que estava no centro da linha inimiga.

 

Foste gerado por uma rã-meretriz gritou ele ao Rei, e o teu pai era um cobarde. Luta comigo! Eu coxeio! Estou velho! Calvo! Mas tu não te atreves a desafiar-me!

 

Cuspiu sobre Mordred, mas nem assim algum dos homens de Mordred se moveu.

 

Crianças! Culhwuch escarneceu e, em seguida, virou as costas ao inimigo, numa demonstração do desprezo que sentia por ele.

 

Foi então que um jovem irrompeu, correndo, por entre as fileiras inimigas. O seu elmo era demasiado grande para a sua cabeça rapada, a couraça uma coisa feita de couro e o escudo uma brecha entre duas tábuas de madeira. Era um jovem que precisava de matar um campeão para encontrar prosperidade e correu na direcção de Culhwuch, soltando gritos de ódio, incitado pelos restantes homens de Mordred.

 

Culhwuch virou-se, meio agachado, e apontou a sua lança na direcção do baixo-ventre do inimigo. O jovem ergueu, então, a sua lança, com intenção de a enfiar por cima do escudo baixo de Culhwuch e depois, com uma exclamação de triunfo, abateu-se ferozmente sobre ele. A sua exclamação, porém, transformou-se num grito sufocado quando a lança de Culhwuch rodopiou e arrancou a alma do jovem de dentro da sua boca aberta. Culhwuch, veterano na arte da guerra, recuou. O seu escudo nem sequer tinha sido tocado. O moribundo tropeçou, a lança enterrada na garganta. Virou-se de esguelha para Culhwuch e depois caiu. Com um pontapé, Culhwuch desarmou o guerreiro ferido, afastando a lança para longe da sua mão, libertou a sua arma e tornou a espetá-la no pescoço do jovem. Em seguida sorriu para os homens de Mordred.

 

Mais alguém? gritou.

 

Ninguém se moveu. Culhwuch cuspiu na direcção de Mordred e regressou para junto das nossas fileiras, que aplaudiam ruidosamente. Piscou-me o olho quando se aproximou.

 

Vês como se faz, Derfel? disse. Observa e aprende. E os homens ao meu lado desataram a rir.

 

Prydwen flutuava agora, o reflexo do seu casco pálido cintilando sobre as águas, cuja superfície era enrugada por uma brisa suave que soprava de oeste. O vento trazia até nós o fedor exalado pelos homens de Mordred; os cheiros combinados do couro com o suor e o hidromel. Muitos dos inimigos estariam bêbados e muitos outros jamais ousariam enfrentar as nossas lanças se não estivessem embriagados. Perguntei a mim próprio se o jovem, cuja boca e esófago estavam agora cobertos de moscas necessitara da coragem instilada pelo hidromel para enfrentar Culhwuch.

 

Mordred tentava convencer os seus homens a avançarem, e os mais bravos entre eles encorajavam os seus camaradas a fazerem o mesmo. Subitamente, o Sol parecia estar muito mais baixo, começando a encadear-nos; não me tinha apercebido do tempo que passara enquanto Fergal nos amaldiçoava e Culhwuch provocava o inimigo, sem que este conseguisse reunir coragem suficiente para atacar. Alguns dos guerreiros davam um passo em frente, mas o resto deixava-se ficar para trás, e Mordred amaldiçoava-os ao fechar o escudo defensivo, incitando-os novamente. Era sempre assim. É necessário uma grande coragem para cercar um escudo defensivo, e o nosso, embora pequeno, era muito compacto e estava repleto de guerreiros famosos. Olhei para Prydwen e vi-o sair do estaleiro. E vi, também, que a nova vela tinha sido tingida de vermelho-sangue e estava decorada com o urso negro de Artur. Caddwg gastara muito ouro naquela vela. Depois, deixei de ter vagar para contemplar a embarcação distante, pois os homens de Mordred aproximavam-se, finalmente, e os mais corajosos incitavam os restantes a correr.

 

Reunir forças! gritou Artur e nós ajoelhámo-nos, prontos a receber o impacte produzido pelo choque entre os dois escudos. O inimigo estava a uma dezena de passos de distância e preparava-se para atacar, gritando, quando Artur exclamou de novo.

 

Agora! clamou, e a sua voz fez com que o adversário se detivesse bruscamente, sem saber o que aquele grito de Artur significava. Então, Mordred gritou-lhes que atacassem a matar e eles, finalmente, chocaram connosco.

 

A minha lança embateu num escudo e foi atirada ao solo. Deixei-a ir e empunhei a Hywelbane, que tinha enterrado no areal, à minha frente. Segundos depois, os escudos de Mordred golpearam os nossos e uma espada curta passou, rasando, sobre a minha cabeça. Os meus ouvidos reverberaram depois de um golpe no meu elmo, no momento em que eu enfiava a Hywelbane debaixo do meu escudo, tentando encontrar a perna do meu agressor. Senti a lâmina morder, torci-a com força e vi o homem vacilar enquanto eu o mutilava. Ele estremeceu, mas manteve-se em pé. Tinha cabelo negro encaracolado, apertado debaixo de um elmo de ferro já danificado e cuspiu-me no momento em que consegui puxar a Hywelbane que estava escondida atrás do meu escudo. Esquivei-me a um golpe violento da sua espada curta e depois deixei cair a minha pesada lâmina sobre a cabeça dele. Caiu na areia.

 

À minha frente gritei eu para o homem que estava atrás de mim, que se serviu da sua lança para matar o adversário derrubado que, de outro modo, me teria esfaqueado as entranhas.

 

Foi então que ouvi homens gritando de dor e de pânico e olhei para a esquerda, o campo de visão obscurecido por espadas e machados, e vi enormes toros de madeira em chamas sendo içados por cima das nossas cabeças e lançados na direcção das linhas inimigas. Artur ia usar a pira funerária como arma, e a sua última palavra de comando antes do embate entre os dois escudos defensivos fora dirigida aos homens que se encontravam junto à fogueira, ordenando-lhes que segurassem nos toros de madeira e os lançassem para o meio das fileiras de Mordred. Os lanceiros inimigos afastaram-se, instintivamente, das chamas e Artur conduziu os homens para o espaço vazio que entretanto se formara.

 

Afastem-se! gritou uma voz atrás de mim, e eu desviei-me quando um lanceiro surgiu correndo ao longo das nossas fileiras, carregando uma enorme viga de madeira em chamas.

 

Atirou-a ao rosto dos adversários, que se contorceram para se esquivarem ao objecto incandescente, e nós precipitámo-nos para o espaço vazio.

 

O fogo queimava os nossos rostos enquanto trespassávamos e dilacerávamos corpos atrás de corpos. Outros pedaços de madeira em chamas voaram sobre as nossas cabeças. O inimigo que se encontrava mais próximo de mim tinha-se esquivado ao calor, expondo o seu flanco desprotegido ao meu vizinho, e eu ouvi as suas costelas estalarem quando a lança entrou no corpo e vi o sangue borbulhar-lhe nos lábios, quando ele caiu. Eu estava agora na segunda fila da linha inimiga, e a madeira caída no chão queimava-me a perna. Deixei que a dor se transformasse numa raiva que guiou a Hywelbane num golpe duro aplicado no rosto de um homem, até que o guerreiro que estava atrás de mim atirou areia para as chamas que avançavam na nossa direcção, obrigando-me a recuar até à terceira fila. Não tinha espaço suficiente para manejar a minha espada, pois estava esmagado, escudo contra escudo, contra um homem que, entre imprecações e cuspidelas, tentava passar a espada por baixo da borda do meu escudo. Por cima do meu ombro surgiu uma lança que atingiu a face do soldado fazendo com que a pressão do escudo dele abrandasse apenas o suficiente para que eu pudesse empurrar o meu próprio escudo para a frente e manejar a Hywelbane. Mais tarde, muito mais tarde, recordo-me de soltar um grito de raiva incoerente ao derrubar o homem, que sucumbiu na areia. Estávamos possuídos pela demência da batalha, a demência desesperada de lutar contra homens encurralados num espaço diminuto. No entanto, era o inimigo quem estava a ceder terreno. A raiva transformou-se em horror e nós lutámos como Deuses. O Sol ardia pouco acima da colina, a oeste dali.

 

Escudos! Escudos! Escudos! rugiu Sagramor, lembrando-nos que tínhamos de manter a barreira contínua, e o meu vizinho da direita bateu com o escudo dele no meu, sorriu e deu um passo em frente armado com a sua lança. Vi uma espada inimiga ganhar balanço, preparada para desferir um poderoso golpe e detive-a deixando cair a Hywelbane sobre o pulso do homem. A espada trespassou aquele pulso como se os ossos do inimigo fossem feitos de junco. A espada dele voou na direcção da nossa retaguarda, uma mão ensanguentada segurando ainda o seu copo. O guerreiro que se encontrava à minha esquerda caiu, a barriga perfurada por uma lança inimiga, mas o companheiro da segunda fila tomou o seu lugar e gritou um grande juramento enquanto empurrava o escudo para a frente e fazia rodopiar a espada.

 

Outro tronco incandescente voou sobre nós e abateu-se sobre dois soldados inimigos, desequilibrando-os. Aproveitámos a abertura e, de súbito, diante de nós surgiu o areal vazio.

 

Mantenham-se juntos! gritei. Mantenham-se juntos!

 

O inimigo estava a dividir-se. A fila da frente estava morta ou ferida, a segunda fila estava moribunda, e os homens da retaguarda eram os que menos vontade de lutar tinham tido, por isso, os mais fáceis de matar. A retaguarda estava cheia de homens hábeis no estupro e espertos na pilhagem, mas que nunca tinham enfrentado um escudo defensivo formado por assassinos endurecidos.

 

E como matávamos agora. A barreira adversária desmoronava-se, corroída pelo fogo e pelo medo, e nós gritávamos um cântico de vitória. Tropecei num corpo, caí para a frente e rebolei com o escudo sobre o rosto. Uma espada embateu no escudo, produzindo um eco ensurdecedor. Depois, os homens de Sagramor passaram por cima de mim e um lanceiro ajudou-me a levantar.

 

Ferido? perguntou.

 

Não.

 

Ele seguiu em frente. Olhei em volta tentando localizar os sítios onde o nosso escudo precisava ser reforçado, mas todas as posições estavam cobertas por três homens, pelo menos, e eram estas três filas que avançavam agora sobre os corpos trucidados dos nossos inimigos. Os homens resmungavam enquanto rodavam, apunhalavam e enterravam as lâminas em carne inimiga. É esta a sedutora e ilusória glória da guerra, o júbilo puro que vem de quebrar um escudo defensivo e de satisfazer um desejo de vingança enterrando a espada no corpo de um inimigo odiado. Observei Artur, o homem mais bondoso que conheci, e tudo o que consegui ver foi alegria nos seus olhos. Galaad, que rezava todos os dias, implorando a Deus que o ajudasse a cumprir os mandamentos de Cristo e a amar todos os homens, aniquilava-os agora com uma eficácia terrível. Culhwuch vociferava insultos. Livrara-se do escudo, a fim de poder ter as duas mãos livres para manejar a sua pesada lança. Gwydre ria, atrás dos protectores laterais do elmo, enquanto Taliesin cantava ao matar o inimigo ferido deixado para trás pelo nosso escudo defensivo, que avançava sem parar. Os combates no escudo defensivo não se ganham com sensatez e moderação, mas sim com um assomo divino de demência pontuado por um coro de terríveis vociferações. E o inimigo não era capaz de suportar a nossa demência, pelo que começou a dispersar e a pôr-se em fuga. Mordred tentou detê-los, mas nenhum deles ficou para lutar, e ele fugiu com eles na direcção do forte. Alguns dos nossos homens, ainda possuídos pelo furor da batalha, lançaram-se em sua perseguição, mas Sagramor ordenou-lhes que recuassem. Fora ferido no ombro, mas recusou todas as nossas tentativas para ajudá-lo e tornou a gritar aos seus homens que suspendessem a perseguição. Não nos atrevíamos a segui-los, embora eles estivessem batidos, pois nesse caso teríamos entrado na zona mais larga da língua de areia, convidando o inimigo a cercar-nos. Em vez disso, deixámo-nos ficar no sítio onde tínhamos lutado e zombámos dos nossos inimigos, chamando-os cobardes.

 

Uma gaivota debicava os olhos de um homem morto. Olhei para o lado e vi que Prydwen navegava agora na nossa direcção, livre de amarras, embora a sua vela cintilante mal se agitasse ao sabor da brisa suave. O barco, porém, movia-se quase imperceptivelmente, e o colorido da vela projectava o seu longo reflexo trémulo sobre a água transparente.

 

Mordred viu o barco, viu o enorme urso estampado na vela e percebeu que o seu inimigo poderia escapar por mar. Gritou, então, para os seus homens, ordenando-lhes que formassem um novo escudo. Novos reforços chegavam constantemente, e alguns dos recém-chegados eram homens de Nimue, pois vi dois Escudos Sanguinários tomarem o seu lugar na nova linha que se formava, preparando-se para nos atacar.

 

Retomámos as posições iniciais, formando o escudo defensivo sobre a areia empapada em sangue, em frente à fogueira que nos ajudara a vencer o primeiro ataque. Os corpos dos nossos primeiros quatro mortos estavam apenas meio queimados, e nos seus rostos calcinados, os lábios retesados abriam-se num sorriso ignóbil que punha a descoberto uma série de dentes descolorados. Deixámos ficar os corpos dos inimigos mortos na areia, a fim de servirem de obstáculos ao caminho dos vivos, mas recolhemos as nossas baixas, que reunimos junto à fogueira. Tínhamos dezasseis mortos e uma vintena de feridos graves; no entanto, possuíamos ainda homens suficientes para formar um escudo defensivo e ainda éramos capazes de combater.

 

Taliesin cantava para nós. Cantava a sua canção de Mynydd Baddon, e foi ao som do seu ritmo forte que os nossos escudos tornaram a chocar uns contra os outros. As nossas espadas e lanças estavam rombas e ensanguentadas, o inimigo estava fresco, mas nós soltámos gritos de triunfo quando ele se lançou sobre nós. Prydwen quase não se mexia. Fazia lembrar um navio pousado sobre um espelho, até que do seu casco saíram longos remos, como asas.

 

Matem-nos! gritou Mordred que, possuído pelo furor do combate, avançava agora na nossa direcção.

 

Um punhado de homens corajosos apoiavam-no, seguidos por algumas das almas dementes de Nimue. A primeira investida às nossas linhas foi protagonizada por um grupo de homens andrajosos. Entre eles, porém, estavam recém-chegados empenhados em mostrar o seu valor, pelo que nós, uma vez mais, ajoelhámos e baixámo-nos protegidos pelos nossos escudos. O sol era agora abrasador, mas instantes antes de a turba enlouquecida nos alcançar pude ver um reflexo luminoso nas colinas, a oeste, e fiquei a saber que mais lanceiros vinham a caminho. Tive a impressão de que um novo exército de lanceiros chegara ao cimo das colinas, mas de onde vinham ou quem os liderava não sabia. Depois disto deixei de ter tempo para pensar nos recém-chegados, pois já empurrava o meu escudo para a frente. O choque de escudo contra escudo fez com que o coto do meu braço latejasse de dor e eu soltei um lamento agonizante ao deixar cair a Hywelbane. Um Escudo Sanguinário fez-me frente, e eu golpeei-o duramente, encontrando espaço livre entre a couraça e o elmo. Depois de ter libertado a Hywelbane da pressão exercida pela carne dele, trucidei selvaticamente o inimigo seguinte, uma criatura enlouquecida, e fi-lo girar, faces, nariz e olhos jorrando sangue.

 

Estes primeiros inimigos tinham vindo à frente do escudo defensivo de Mordred e agora sofríamos o ataque do grosso das tropas adversárias. Baixámo-nos para receber o seu ataque e lançámos brados de desafio ao mergulhar vigorosamente as nossas espadas por entre os rebordos dos nossos escudos. Recordo a confusão e o ruído das espadas roçando noutras espadas e o clamor dos escudos chocando contra outros escudos. Uma batalha é uma questão de centímetros e não de metros. Os centímetros que separam um homem do seu inimigo. Sentimos o seu hálito a hidromel, ouvimos a respiração presa nas suas gargantas, escutamos os seus rugidos, sentimo-los equilibrar o seu peso, sentimos a saliva deles nos nossos olhos e procuramos o perigo, olhamos bem fundo nos olhos do homem que está mais próximo de nós e que devemos matar, descobrimos uma aberta, aproveitamo-la e tornamos a fechar o escudo, damos um passo em frente, sentimos a pressão dos homens nas nossas costas, quase tropeçamos nos corpos daqueles que matámos, recuperamos o equilíbrio, avançamos e, mais tarde, pouco mais recordamos para além dos golpes que quase nos tiraram a vida. Esforçamo-nos, empurramos e apunhalamos para abrir uma brecha no escudo defensivo do adversário, e depois resmungamos, golpeamos e despedaçamos para alargar essa brecha. E só então somos possuídos pela fúria, à medida que o inimigo verga e podemos começar a matar como Deuses, pois o inimigo está assustado e em fuga, ou assustado e petrificado, e tudo o que pode fazer é morrer enquanto nós vamos colhendo almas.

 

E, de novo, tornámos a batê-los. De novo usámos as chamas da nossa pira e de novo furámos o seu escudo. Ao fazê-lo, no entanto, desagregámos o nosso também. Lembro-me do brilho intenso do sol, atrás das altas colinas a oeste, e lembro-me de ter escorregado numa poça de sangue e de ter gritado aos homens pedindo-lhes que me ajudassem, e lembro-me de enterrar a Hywelbane na nuca exposta de um guerreiro inimigo e de ver o sangue jorrar profusamente através do cabelo cortado e de ver a cabeça dele cair para trás. Em seguida apercebi-me de que as duas linhas de batalha se tinham quebrado e que nós mais não éramos do que dois pequenos grupos de homens ensanguentados lutando numa faixa de areia tingida de sangue e juncada de madeira queimada.

 

Mas tínhamos vencido. A retaguarda do inimigo estava em fuga, em vez de tentar apoderar-se das nossas espadas. No centro, porém, onde lutava Mordred, e Artur também, ninguém fugia e a luta entre os dois chefes tornou-se feia. Tentámos cercar os homens de Mordred, mas eles ripostaram e vi como éramos poucos e quantos de nós não mais poderiam tornar a combater, já que tínhamos derramado o nosso sangue nas areias de Camlann. Uma multidão de inimigos observava-nos, nas dunas, mas não passavam de cobardes e não se dispunham a avançar para vir ajudar os companheiros. E, assim, o último dos nossos homens lutou contra o último homem de Mordred, e eu vi Artur manejar a Excalibur, tentando atingir o Rei. Sagramor estava lá, e Gwydre também, e eu juntei-me ao combate, lançando uma lança juntamente com o meu escudo, cortando o ar à minha frente com a Hywelbane, a garganta seca como fumo e a voz semelhante ao cacarejar de um corvo. Atingi outro homem, e a Hywelbane deixou uma marca ao longo do seu escudo. Ele recuou, vacilante, sem forças para tornar a avançar. Eu próprio sentia-me fraquejar, pelo que me deixei ficar ali, olhando-o com os olhos a arder por causa do suor. Ele deu um passo em frente, apunhalei-o, ele titubeou, desequilibrado por um golpe no seu escudo e arremessou uma lança na minha direcção. Desta vez fui eu quem recuou. Estava ofegante, e ao longo da língua de areia homens cansados lutavam contra homens cansados.

 

Galaad estava ferido, o braço com que empunhava a espada estava partido e o tinha o rosto coberto de sangue. Culhwuch estava morto. Não vi quando tudo aconteceu, mas mais tarde encontrei o corpo dele com duas lanças enterradas nas entranhas desprotegidas pela armadura. Sagramor coxeava, mas a sua espada rápida era ainda mortal. Ele tentava proteger Gwydre, que estava ferido numa das faces e tentava aproximar-se do pai. As plumas de ganso de Artur estavam tingidas de vermelho e o seu manto branco estava salpicado de sangue. Vi-o trespassar um homem alto, anular o assalto desesperado do inimigo com um pontapé certeiro e abater-se sobre ele, manejando ferozmente a Excalibur. Foi então que Loholt atacou. Eu ainda não o vira até àquele momento, mas ele viu o pai; esporeou o cavalo e, com a mão que lhe restava, colocou a sua lança em posição. Gritou um cântico de ódio quando avançou na direcção do emaranhado de homens cansados. O cavalo tinha os olhos esbugalhados e estava aterrorizado, mas as esporas incitavam-no a avançar enquanto Loholt continuava a apontar a sua lança a Artur. Então, Sagramor puxou de uma lança e arremessou-a com violência de forma que as pernas do cavalo ficaram presas na haste pesada e o animal caiu ao chão levantando uma nuvem de areia. Sagramor lançou-se sobre os cascos suspensos no ar e agitou a lâmina escura da sua espada e eu vi o sangue jorrar do pescoço de Loholt. Todavia, mal Sagramor tinha acabado de arrancar a alma de Loholt, um Escudo Sanguinário surgiu correndo e lançou-se sobre Sagramor armado com uma lança. Sagramor respondeu de imediato com um golpe de espada, espalhando o sangue de Loholt e o Escudo Sanguinário sucumbiu gritando. Foi então que outro grito anunciou que Artur tinha alcançado Mordred e nós, instintivamente, virámo-nos para assistir ao confronto entre os dois homens. Uma vida inteira de ódios e rancores erguia-se entre ambos.

 

Mordred levou a mão à espada, com gestos lentos, depois lançou-a para trás, a fim de mostrar aos seus homens que queria Artur só para si. O inimigo recuou, obediente. Mordred estava todo vestido de negro, tal como no dia em que fora aclamado em Caer Cadarn. Manto negro, couraça negra, calças negras, botas negras e um elmo negro. A armadura apresentava marcas nos sítios onde as lâminas de espadas e lanças tinham rasgado a pez seca expondo o metal. O seu escudo estava forrado a pez, e os únicos vestígios de cor eram um rebento de verbena amarfanhado, no pescoço, e as órbitas da caveira que encimava o elmo dele. ”O crânio de uma criança”, pensei eu, pois era tão pequeno; as suas órbitas tinham sido preenchidas com farrapos de um tecido vermelho. Avançou, coxeando e fazendo rodopiar a espada. Com um gesto, Artur pediu-nos que recuássemos e lhe déssemos espaço suficiente para combater. Ergueu a Excalibur e elevou o escudo prateado que estava retorcido e ensanguentado. Quantos de nós restavam nessa altura? Não sei. Quarenta? Talvez menos, e Prydwen chegara já à curva do canal do rio e deslizava na nossa direcção com a vela apenas agitada pela brisa suave. Os remos mergulhavam na água e tornavam a elevar-se. A maré estava quase cheia.

 

Mordred fez um movimento brusco para a frente, Artur esquivou-se, brandiu a sua própria espada e Mordred recuou. O Rei era rápido, e jovem, mas o pé aleijado e o ferimento profundo na coxa, contraído em Armórica, tornava-o menos ágil do que Artur. Humedeceu os lábios secos, tornou a dar um passo em frente, e as espadas de ambos encheram o ar da noite com os seus clamores metálicos. Um dos inimigos, que observava o confronto, vacilou inesperadamente e caiu sem razão aparente, mas não tornou a mexer-se quando Mordred passou por ele, rápido, e rodou a sua espada descrevendo um arco. Artur deteve o golpe com a ajuda da Excalibur e, em seguida, fez avançar o escudo para agredir o Rei. Mordred recuou, vacilante. Artur levou o braço atrás, preparando um novo avanço, mas Mordred conseguiu manter o equilíbrio e avançou com dificuldade contrariando o ataque do adversário com a sua espada e respondendo com um golpe curto e veloz.

 

Conseguia ver Guinevere, de pé, na proa do Prydwen, com Ceinwyn logo atrás dela. Iluminado pela bela luminosidade vespertina, o casco da embarcação parecia feito de prata e a vela parecia tecida com o melhor linho escarlate. Os longos remos mergulhavam e tornavam a elevar-se, mergulhavam e tornavam a elevar-se, e o barco ia progredindo lentamente até que, finalmente, uma rajada de vento quente enfunou o urso estampado na vela e a água se enrugou mais depressa ao longo dos seus flancos prateados. E nesse preciso momento, Mordred gritou e atacou, as espadas chocaram, os escudos ressoaram e a Excalibur decepou a sinistra caveira que encimava o elmo de Mordred. Este recuou violentamente e eu vi Artur dar um passo atrás quando a espada do seu inimigo se abateu sobre ele. Artur, no entanto, empurrou o Rei com o escudo e os dois homens separaram-se.

 

Artur pressionou a cintura com a mão com que empunhava a espada, no local onde fora atingido, e em seguida abanou a cabeça como negando que estava ferido. Sagramor, no entanto, estava ferido. Tinha estado a observar o combate, mas de súbito dobrou-se para a frente e caiu sobre a areia. Corri ao seu encontro.

 

Uma lança na barriga disse ele.

 

Vi que ele se agarrava ao estômago com as duas mãos para impedir que as entranhas se espalhassem sobre o areal. Do mesmo modo que ele matara Loholt, também o Escudo Sanguinário ferira Sagramor com a sua lança morrendo logo em seguida. Sagramor estava, agora, moribundo. Abracei-o com o meu único braço são e virei-o. Ele agarrou a minha mão com força. Os dentes tiritavam, e ele gemia. Depois, ergueu com esforço a cabeça ainda protegida pelo elmo para poder ver Artur avançar cautelosamente.

 

A cintura de Artur estava manchada de sangue. O último movimento de Mordred trespassara a armadura, furando por entre as lâminas de metal e ferindo seriamente o flanco de Artur. Sempre que Artur fazia um movimento em frente, o sangue jorrava no sítio onde a espada tinha rasgado a armadura. Inesperadamente, Artur deu um salto em frente e transformou o golpe inicialmente previsto numa estocada descendente que Mordred evitou com a ajuda do escudo. Mordred executou um movimento amplo com o escudo para afastar a Excalibur e arremessou a sua própria espada. Artur, porém, amparou este golpe com o escudo, puxou a Excalibur para trás e foi então que vi o escudo dele inclinar-se para trás e a espada de Mordred rasgar a cobertura prateada. Mordred gritou e empurrou a espada ainda com mais força e Artur só se apercebeu da ponta da espada até ela passar o rebordo do escudo e entrar pela viseira do seu elmo.

 

Vi sangue. Mas também vi Excalibur descer dos céus, pronta a desferir o golpe mais violento que jamais vi Artur executar.

 

Excalibur trespassou o elmo de Mordred. Rasgou o ferro negro como se este fosse pergaminho e, em seguida, partiu o crânio do Rei e furou-lhe o cérebro. E Artur, o sangue jorrando através da viseira, titubeou, recuperou o equilíbrio e depois libertou a Excalibur por entre uma chuva de gotas de sangue. Mordred, morto a partir do momento em que Excalibur rasgara o seu elmo, caiu para a frente, aos pés de Artur. O sangue escorria para a areia e sobre as botas de Artur, e os seus homens, ao ver que o seu Rei estava morto e que Artur ainda vivia, soltaram um gemido baixo e recuaram.

 

Soltei a mão de Sagramor.

 

Escudo defensivo! gritei. Escudo defensivo!

 

E, sobressaltados, os sobreviventes da nossa pequena força guerreira cerraram fileiras em frente de Artur. Os nossos escudos grosseiros tocaram uns nos outros e com um rugido, demos um passo em frente passando por cima do corpo inerte de Mordred. Pensei que o inimigo poderia voltar e exigir vingança, mas em vez disso recuou. Os seus chefes estavam mortos, e nós ainda nos mostrávamos desafiadores, e naquele momento eles já não tinham ânimo para suportar outras mortes.

 

Fiquem aqui! gritei para o escudo e depois fui ter com Artur. Galaad e eu retirámos-lhe o elmo e, com isso, deixámos sair um rio de sangue. A espada falhara o seu olho direito por pouco, mas partira o osso da face e a ferida sangrava profusamente.

 

Um pano! pedi, e um dos feridos rasgou uma faixa de linho da túnica de um dos guerreiros mortos, que usámos para tapar a ferida. Taliesin prendeu-a com um pedaço de tecido da sua túnica. Artur ergueu os olhos para mim quando Taliesin terminou o penso e tentou falar.

 

Silêncio, Senhor disse eu.

 

Mordred insistiu ele.

 

Está morto, Senhor disse eu, está morto.

 

Creio que ele sorriu. Nesse momento, a proa de Prydwen tocou a areia. O rosto de Artur estava pálido e a sua face estava manchada por fios de sangue.

 

Agora já podes deixar crescer a barba, Derfel disse ele.

 

Sim, Senhor concordei. Deixarei. Ficai calado, Senhor.

 

Tinha sangue na cintura, demasiado sangue, mas eu não conseguia tirar-lhe a armadura e procurar a ferida, ainda que receasse ser este o mais grave dos seus dois ferimentos.

 

Excalibur disse-me ele.

 

Ficai calado, Senhor pedi-lhe eu.

 

Leva a Excalibur disse ele. Leva-a e atira-a ao mar. Prometes?

 

Assim farei, Senhor. Prometo.

 

Tirei-lhe a espada ensanguentada da mão e depois afastei-me quando quatro homens levantaram Artur e o carregaram até ao barco. Passaram-no por cima da borda do barco e Guinevere ajudou a segurá-lo e a deitá-lo no convés de Prydwen.

 

Utilizou o manto ensanguentado para fazer uma almofada e, baixando-se junto dele, acariciou-lhe o rosto.

 

Vens, Derfel? perguntou-me ela.

 

Indiquei com um gesto os homens que continuavam no areal, formando um escudo defensivo.

 

Podem levá-los? perguntei. E os feridos, conseguem levá-los, também?

 

Mais doze homens disse Caddwg, que estava à popa. E não mais do que doze. Não há espaço para mais.

 

Nenhum dos barcos de pesca tinha aparecido. E porque deveriam tê-lo feito? Por que razão deveriam os homens envolver-se em mortandades, em derramamentos de sangue e em loucuras quando a sua missão é retirar do mar o seu sustento? Prydwen era tudo o que tínhamos e teria de partir sem mim. Sorri para Guinevere.

 

Não posso ir, Senhora disse eu, e depois virei-me e tornei a indicar o escudo defensivo com um gesto. Alguém tem de ficar para conduzi-los ao longo da ponte das espadas.

 

O sangue jorrava do coto do meu braço esquerdo, tinha uma equimose nas costelas, mas estava vivo. Sagramor estava a morrer, Culhwuch tinha morrido, Galaad e Artur estavam feridos. Eu era o único que restava. Eu era o último dos senhores da guerra de Artur.

 

Eu posso ficar! Galaad escutara a nossa conversa.

 

Não conseguis combater com um braço partido disse eu. Entrai no barco e levai Gwydre convosco. E apressai-vos! A maré está a descer.

 

Eu devia ficar disse Gwydre, nervoso. Segurei-o pelos ombros e empurrei-o para a água.

 

Ide com vosso pai pedi eu, fazei-o por mim. E dizei-lhe que eu me mantive fiel até ao fim.

 

Detive-o bruscamente, fi-lo virar-se de frente para mim e pude ver o seu rosto jovem sulcado de lágrimas.

 

Dizei a vosso pai pedi, que o amei até ao fim.

 

Ele aquiesceu com um movimento de cabeça e depois subiu a bordo na companhia de Galaad. Artur estava junto da sua família, agora. Recuei quando Caddwg usou um dos remos para manobrar o barco até ao canal. Olhei para Ceinwyn e sorri, e os meus olhos encheram-se de lágrimas, mas não consegui pensar em nada mais para lhe dizer a não ser que esperaria por ela à sombra das macieiras do Outro Mundo. No entanto, no momento em que me preparava para proferir estas palavras desajeitadas, e no mesmo instante em que o barco deslizava ao longo do areal, ela avançou rapidamente para a proa e saltou para a praia.

 

Não! gritei.

 

Sim disse ela e estendeu uma mão para que eu a ajudasse a alcançar a margem.

 

Sabes o que eles irão fazer contigo? perguntei.

 

Ela mostrou-me uma faca que segurava na mão esquerda, significando que se mataria antes de se deixar aprisionar pelos homens de Mordred.

 

Estamos juntos há demasiado tempo, meu amor, para que nos separemos agora disse ela e ficou ao meu lado vendo Prydwen deslizar para águas profundas. A nossa última filha e os filhos desta seguiam no barco. A maré mudara e a baixa-mar empurrava o barco prateado para o mar.

 

Fiquei junto de Sagramor até ele morrer. Amparei a sua cabeça, segurei-lhe na mão e acompanhei a sua alma na travessia da ponte das espadas. Então, com os olhos rasos de lágrimas, regressei para junto do nosso pequeno escudo defensivo e vi que Camlann estava agora povoada de lanceiros. Um exército inteiro chegara, entretanto; mas tinham chegado demasiado tarde para salvar o seu Rei, embora ainda tivessem tempo suficiente para acabar connosco. Finalmente, consegui ver Nimue, as suas vestes brancas e o seu cavalo branco cintilando entre as dunas envoltas na penumbra. A minha amiga e amante de outrora, era agora a minha última inimiga.

 

Arranja-me um cavalo pedi a um lanceiro.

 

Havia cavalos tresmalhados por toda a parte e ele correu atrás deles, agarrou uma rédea e trouxe-me uma égua. Pedi a Ceinwyn que desprendesse o meu escudo e, em seguida, os lanceiros ajudaram-me a montar. Uma vez instalado no dorso do cavalo enfiei a Excalibur debaixo do braço esquerdo e, com o direito, segurei as rédeas. Esporeei-o e a égua obedeceu dando um salto em frente, tornei a esporear, e ela espalhou um punhado de areia com a pressão dos cascos afugentando alguns homens do seu caminho. Cavalguei no meio das tropas de Mordred, mas a sua vontade de lutar desaparecera, pois tinham perdido o seu Senhor. Tinham ficado sem comandante e o exército de Nimue, composto por criaturas dementes, estava parado atrás deles; atrás das tropas andrajosas de Nimue havia um terceiro exército. Um novo exército viera até às areias de Camlann.

 

Era o mesmo exército que eu vira no alto da colina oeste e percebi que ele devia ter marchado para sul, no encalço de Mordred, decidido a conquistar a Dumnónia para si próprio. Era um exército que viera para observar Artur e Mordred destruirem-se um ao outro, e agora que o combate terminara, o exército de Gwent avançava lentamente, sob os estandartes da cruz. Vinham para governar a Dumnónia e para aclamar Meurig como o seu Rei. Os seus mantos vermelhos e as suas plumas escarlates pareciam negras à luz do crepúsculo e ao erguer os olhos vi as primeiras estrelas pálidas que despontavam no firmamento.

 

Cavalguei na direcção de Nimue, mas detive-me a cerca de cem passos da minha velha amiga. Olwen observava-me e Nimue fitava-me com o seu olhar maléfico. Então, sorri para ela e segurei a Excalibur com a minha mão direita e ergui o coto do meu braço esquerdo, para que ela soubesse o que eu tinha feito. E, depois, mostrei-lhe a Excalibur.

 

Nesse momento, ela percebeu o que eu planeara.

 

Não! gritou ela, e o seu exército de loucos juntou os seus gemidos aos dela e os seus lamentos fizeram estremecer o céu vespertino.

 

Tornei a colocar Excalibur debaixo do meu braço, segurei as rédeas e esporeei a égua enquanto a virava. Incitei-a, conduzindo-a rapidamente para o areal da praia. Ouvi o galope do cavalo de Nimue atrás de mim, mas era tarde de mais, tarde de mais.

 

Cavalguei na direcção de Prydwen. O vento fraco enfunava a vela, e ela estava já para além da língua de areia, ondulando suavemente ao sabor do incansável movimento das ondas. Tornei a esporear a égua, que inclinou a cabeça e, gritando, conduzia-a até ao mar cada vez mais perdido na escuridão, continuando a incitá-la até ela sentir as ondas geladas salpicarem-lhe o peito. Só então soltei as rédeas. Ela estremeceu debaixo de mim quando segurei a Excalibur com a minha mão direita.

 

Levei o braço atrás. A espada estava manchada de sangue, mas o seu gume parecia resplandecer. Merlim dissera, certa vez, que a Espada de Rhydderch consumir-se-ia em chamas, no final, e talvez assim fosse, ou talvez fossem as minhas lágrimas que me turvavam a vista.

 

Não! gemia Nimue.

 

E atirei Excalibur, atirei-a com força e bem alto para as águas profundas, onde a maré cavara um canal, rasgando as areias de Camlann.

 

Excalibur atravessou, rodopiando, o ar nocturno. Nenhuma outra espada jamais foi tão bela. Merlim jurava que ela tinha sido feita por Gofannon, na forja do Outro Mundo. Era a Espada de Rhydderch e um dos Tesouros da Bretanha. Era a espada de Artur, uma oferenda de um Druida, e rodopiava através do céu escuro, a sua lâmina refulgindo contra as estrelas resplandecentes. Durante uma fracção de segundo, foi uma centelha brilhante de uma chama azul pousada nos céus e depois caiu.

 

Caiu bem no meio do canal. O som do seu embate na água quase não se ouviu, apenas um reflexo de água branca, e depois ela desapareceu.

 

Nimue gritou. Virei a égua e conduzi-a de regresso à praia e através dos despojos da batalha, até onde o meu último grupo de guerra me esperava. E, aí, vi que o exército dos loucos dispersava. Partiam, e os homens de Mordred, os que tinham sobrevivido, esgueiravam-se agora ao longo da praia, decididos a escapar ao avanço das tropas de Meurig. A Dumnónia haveria de cair, um rei fraco haveria de governar e os Saxões haveriam de regressar. Mas nós viveríamos.

 

Desmontei, segurei o braço de Ceinwyn e levei-a para o cimo de uma duna próxima. A oeste, o céu estava tingido de vermelho-vivo, pois o Sol já tinha desaparecido, e juntos ali ficámos, envoltos nas sombras do mundo, vendo Prydwen elevando-se e descendo, embalado pelas ondas. A vela esta enfunada, pois o vento nocturno soprava de oeste e a proa de Prydwen cortava as águas brancas, enquanto a sua popa deixava uma esteira cada vez mais larga. Navegou para sul e depois virou para oeste. O vento, todavia, soprava de oeste e nenhum barco consegue navegar a direito, de frente para o vento. Mas juro que foi isso que aconteceu com aquele barco. Navegou para oeste, com o vento soprando de oeste, a vela enfunada e a proa alta cortando as águas brancas; ou talvez eu não tenha percebido o que tinha diante dos meus olhos, pois estes estavam rasos de lágrimas que escorriam ao longo do meu rosto.

 

E enquanto observávamos vimos uma neblina prateada elevar-se das águas.

 

Ceinwyn agarrou-me no braço. A neblina era apenas uma mancha, mas crescia e resplandecia. O Sol desaparecera, não havia Lua, apenas as estrelas, o céu crepuscular, o mar salpicado de prata e o barco de velas negras. E, no entanto, a neblina brilhava. Brilhava, como a poeira prateada das estrelas. Ou talvez fossem apenas as lágrimas que me queimavam os olhos.

 

Derfel! chamou Sansum. Ele viera com Meurig e agora caminhava a custo através do areal, ao nosso encontro. Derfel! tornou a chamar. Quero-te! Vem cá! Imediatamente!

 

Meu querido Senhor disse eu.

 

Não me referia a ele, no entanto. Falava com Artur. E, chorando, o braço em volta de Ceinwyn, vi o barco pálido ser engolido pela cintilante neblina prateada.

 

E foi assim que o meu Senhor partiu.

 

E nunca mais ninguém o viu desde então.


Nota Histórica

Gildas, o historiador, que terá redigido o seu De Excidio et Brittaniae (”Da Ruína e Conquista da Bretanha”) menos de uma geração após o período Arturiano, refere que a Batalha de Badonici Montis (habitualmente traduzida, nos nossos dias, por Mount Badon) foi na realidade um cerco. Infelizmente para nós, porém, o autor não menciona se Artur esteve presente no momento da grande vitória que, lamenta ele: ”foi a última derrota dos miseráveis”. A Historia Brittonum (”História dos Bretões”), cuja autoria pode, ou não, ser atribuída a um indivíduo chamado Nennius e que foi compilada pelo menos dois séculos depois do período Arturiano, é o primeiro documento onde se afirma que Artur era o comandante bretão em ”Mons Badonis”, onde ”num só dia, novecentos e sessenta homens pereceram na sequência de um ataque comandado por Artur, e em que ninguém a não ser ele os subjugou. No século x, alguns monges da região oeste do País de Gales compilaram os Annales Cambriae (”Os Anais de Gales”), onde registaram ”a Batalha de Badon, na qual Artur carregou sobre os seus ombros a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, durante três dias e três noites, e em que os Bretões saíram vencedores”. O Venerável Bede, um saxão cuja Historia Eclesiastica Gentis Anglorum (”História Eclesiástica dos Ingleses”) surgiu no século Viii, reconhece a derrota, mas não menciona o nome de Artur, o que não é de surpreender, já que Bede parece ter recorrido a Gildas como sua principal fonte de informação. Os quatro documentos acima referidos constituem as mais antigas (e três deles não são suficientemente antigos) fontes de informação sobre a batalha que temos à nossa disposição. Terá ela ocorrido, de facto?

Os historiadores, embora relutantes em admitir a existência do lendário Artur, parecem concordar em que próximo do final do ano 500 a.C, os Bretões travaram e venceram uma grande batalha contra os invasores saxões, num local chamado Mons Badonicus, ou Mons Badonis, ou Badonici Montis, ou Mynydd Baddon otrMount Badon ou, muito simplesmente, Badon. Além disso, ainda segundo eles, tratou-se de uma batalha importante, pois, aparentemente, atrasou a conquista de terras bretãs pelos Saxões durante uma geração. Parece ter constituído também, tal como lamenta Gildas, a ”última derrota dos miseráveis”, já que nos duzentos anos que se seguiram a esta derrota, os Saxões espalharam-se ao longo daquilo que é, hoje, designado por Inglaterra, espoliando assim as populações autóctones, isto é, os Bretões. Durante todo o período negro da mais terrível das eras da história da Bretanha, esta batalha destaca-se como um acontecimento importante. Infelizmente, porém, não fazemos ideia do local onde ela se realizou. Têm surgido inúmeras sugestões. Liddington Castle, em Wiltshire, e Bradbury Rings, em Dorset, são algumas das localizações apontadas. Geoffrey de Monmouth, que escreve no século Xiii, situa a batalha em Bath, provavelmente porque Nennius descreve as fontes de águas quentes de Bath, designando-as por balnea Badonis. Mais tarde, outros historiadores propuseram Little Solsbury Hill, a oeste de Batheaston, no vale do Avon próximo de Bath, como campo de batalha, sugestão esta que adoptei para o local descrito no romance. Terá sido um cerco? Ninguém sabe ao certo, do mesmo modo que ignoramos quem cercou quem. Parece, apenas, existir um consenso generalizado no que diz respeito à probabilidade de ter sido travada uma batalha em Mount Badon, à hipótese de ter sido um cerco e de o acontecimento se ter verificado muito perto do ano 500 a.C. Todavia, nenhum historiador estaria disposto a arriscar a sua reputação, afirmando que os Saxões foram derrotados e que, possivelmente, Artur foi o estratega dessa grande vitória.

Nennius, assumindo que ele é, de facto, o autor de Historia Brittonum, atribui doze batalhas a Artur, a maioria delas em sítios impossíveis de identificar, e não menciona Camlann, a batalha que tradicionalmente conclui a saga de Artur. Os Annales Cambrme são a fonte mais antiga no que diz respeito à batalha e foram redigidos demasiado tarde para que possam ser considerados fontes autorizadas. A Batalha de Camlann é, pois, um mistério ainda maior do que a de Mount Badon, sendo impossível identificar qualquer local onde ela possa ter ocorrido, se é que realmente ocorreu. Geoffrey de Monmouth afirmou que a mesma foi travada nas margens do rio Camel, na Cornualha, enquanto, no século Xv, Sir Thomas Malory situou-a na Planície de Salisbury. Outros escritores sugeriram Camlan, em Merioneth, Gales, o rio Cam, que passa próximo de South Cadbury (”Caer Cadarn”), a Muralha de Adriano ou até localidades situadas na Irlanda. Quanto a mim, situei-a em Dawlish Warren, no sul de Devon, pela simples razão de, em tempos, ter possuído um barco ancorado no estuário do Exe no qual navegava até ao mar, passando por Warren. O nome Camlann pode significar ”rio curvo”, e o canal do estuário do Exe é tão curvo como qualquer outro. A minha escolha, porém, foi um mero capricho da minha parte.

Os Annales Cambrme incluem uma única referência a Camlann: ”a batalha de Camlann, na qual Artur e Medraut (Mordred) pereceram”. E é provável que assim tenha sido, embora a lenda tenha desde sempre insistido que Artur sobreviveu aos ferimentos e foi transportado para a ilha mágica de Avalon, onde ainda hoje dorme na companhia dos seus guerreiros. Ultrapassámos já, claramente, os limites que nenhum historiador digno desse nome se atreveria a pisar. Resta-nos apenas acrescentar que a crença na sobrevivência de Artur reflecte uma profunda nostalgia popular pela perda de um herói, e em toda a ilha da Bretanha nenhuma outra lenda é tão persistente como a de que Artur vive ainda. ”Um túmulo para Mark”, regista o Livro Negro de Carmarthen, ”um túmulo para Gwythur, um túmulo para Gwgawn da espada vermelha, mas jamais um túmulo para Artur.” É provável que Artur nunca tenha sido rei, pode até nem ter existido, mas apesar de todos os esforços dos historiadores para negarem a sua existência ele continua a ser, para milhões de pessoas de todo o mundo, aquilo que um copista lhe chamou no século Xiv: Arturus Rex Quondam, Rexque Futurus Artur, o nosso Rei de Outrora e do Futuro.

 

                                                                                Bernard Cornwell  

 

                      

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