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Series & Trilogias Literarias
Eu conhecia um garoto. O nome dele era Alex Sawyer.
Ele era o garoto que me encarava do espelho, uma criança como qualquer outra. Não era feio, só um pouco magrinho. Se alguém o visse na rua, não olharia duas vezes.
Agora o garoto está morto. Eu o deixei morrer. Mas quero contar a você a história dele. Preciso contar.
Não me lembro muito da vida de Alex — da minha vida — antes de Furnace. É um borrão de pessoas sem rosto e lugares enevoados. Ele tinha uma família, eu acho, uma mãe e um pai. E amigos também. Mas não era um bom garoto, pelo menos disso eu me lembro. Era um valentão, além de ladrão. Roubava de quem amava, e tudo o que dava em troca era sofrimento. Não lembro como tudo começou; apenas que ele queria coisas como um sapato novo, uma bicicleta, um computador.
É nisso que acho mais difícil acreditar — não na verdade sobre Furnace, nem na prole de monstros dentro da prisão, mas no fato de que a vida de Alex foi destruída só porque ele estava doido para conseguir um novo par de tênis.
Não bastava intimidar os outros no playground nem roubar uma nota de cinco pratas na hora do almoço de vez em quando. Alex e seu melhor amigo, Toby, começaram a invadir casas, roubando dinheiro e coisas de valor em qualquer oportunidade que surgisse. Um dia, entraram em um lugar que parecia estar vazio. Não estava. Foram pegos no flagra por gigantes de olhos prateados vestidos com terno preto e por uma figura de corpo murcho com uma máscara de gás grudada no rosto. Toby levou um tiro, e Alex foi acusado do seu assassinato — e condenado à prisão perpétua, sem possibilidade de liberdade condicional, na Penitenciária de Furnace.
Furnace. A prisão. Saí há menos de 24 horas, mas minhas lembranças de lá de dentro já estão se esvaindo. Enterrada a centenas de metros da superfície da Terra, cercada apenas por rochas em todas as direções, era um lugar onde a sociedade colocava as crianças que não queria mais, um lugar onde até mesmo seus pais as esqueceriam. Um lugar onde garotos como Alex eram enterrados vivos.
Mas também era bem pior que isso. Os Ofegantes com suas máscaras de gás ficavam à espreita nas celas, arrastando os internos para os túneis ensopados de sangue na parte mais funda da prisão. Criaturas deformadas emergiam dos mortos na calada da noite, dilacerando suas vítimas. E, observando tudo, estava o diretor Cross, um homem tão cruel e perigoso quanto o próprio diabo; um homem cujos olhos eram tão cheios de loucura, ódio e alegria perversa que encará-los era como enxergar a própria morte um milhão de vezes.
Junto com os amigos — Donovan e Zê —, Alex elaborou um plano de fuga, trazendo às escondidas da cozinha luvas cheias de gás e abrindo um buraco na superfície, saltando depois em um rio subterrâneo. Tinham feito o que ninguém jamais havia conseguido: encontrar uma saída de Furnace. Mas o rio só os levara aos túneis mais abaixo, e aos horrores impensáveis da solitária.
Foi aí que eu — não, eu não, Alex — descobri a verdade sobre Furnace.
Os prisioneiros estavam sendo transformados em monstros, suas mentes e seus corpos sendo despedaçados e depois costurados para formar uma criatura nova, um monstro terrível. Sob o olhar sempre atento do diretor, um líquido negro com flocos que pareciam galáxias, conhecido como néctar, era bombeado para dentro daqueles garotos. O fluido preparava o corpo deles, deixando-os mais fortes do que poderiam se tornar por meios naturais, capazes de suportar qualquer ferimento. Então os Ofegantes os abriam, os enchiam de músculos, davam a eles olhos prateados e os soltavam no mundo.
Os que tinham sorte morriam na mesa de operação. Outros se tornavam ternos-pretos — guardas brutamontes que não se lembravam das crianças que tinham sido, que desejavam somente mais e mais poder. Alguns ficavam tão destruídos por dentro que era impossível qualquer tipo de reparo; perdiam a razão de vez, tornando-se ratos — ferozes máquinas mortíferas que perambulavam pelos túneis subterrâneos de Furnace, matando cruelmente quem quer que encontrassem.
E alguns viravam algo ainda pior. Seus genes evoluíam, deixando os garotos maiores, mais rápidos, mais velozes e mais fortes do que a natureza planejara — bestas com uma fúria inimaginável, parecendo mais alienígenas do que humanos. Vikings.
Alex e Zê tinham sido resgatados da solitária por um garoto chamado Simon — um rapaz que fora semitransformado na cirurgia. Seu tronco e um de seus braços eram de um terno-preto, e seus olhos, prateados. Eles — nós — tentaram conquistar a liberdade escalando a chaminé do incinerador da prisão, mas foram descobertos, recapturados, e dessa vez o diretor não perdeu um segundo sequer antes de colocar Alex sob seu bisturi.
Não me lembro da dor, só da força que aquilo me trouxe. Meu corpo foi retalhado e remontado. Foi aprimorado. Eu não era mais o Alex; era algo melhor, algo maior. O diretor encheu minha cabeça com ideias de poder; falou da guerra que estava prestes a começar entre fortes e fracos, entre monstros e humanos; falou da nova Pátria que surgiria das cinzas do velho mundo. Quase me esqueci de quem eu era; quase me tornei um dos garotos do diretor, um soldado de Furnace.
E foi então que pela primeira vez escutei o próprio Alfredo Furnace, a misteriosa força por trás de toda essa loucura. Furnace não morava na prisão, mas sua presença sombria preenchia cada criatura que vivia ali; ela se agarrava a todos os pensamentos, determinava todas as ações. Ele era o comandante deles, o deus deles, e seu poder era absoluto.
Mas parte de mim resistia a ele, lembrando-me do meu nome e da minha antiga vida. Zê, Simon e eu lutamos para voltar ao corpo central da prisão e, junto com os outros presos, quebramos os portões e escapamos de Furnace.
Achamos então que tínhamos conseguido. Que estávamos livres. Mas a fuga era justamente o que Alfredo Furnace queria. Suas forças aguardavam nas sombras — um exército de ternos-pretos e vikings. E, com a cidade distraída com a fuga dos prisioneiros, ele deu sua grande cartada. Começou sua guerra contra a humanidade.
Ele também tinha uma arma secreta, um novo tipo de néctar — um veneno de flocos vermelhos que se espalhava como praga. Qualquer criança que fosse mordida, que fosse preenchida por aquele néctar aperfeiçoado, tornava-se um super-rato, movido pela fúria e dedicado a nada mais do que matar. Poucas horas após a fuga, a cidade sucumbiu sob uma nova raça de ratos descontrolados e violentos. Chamaram o exército, declararam estado de emergência, mas era tarde demais: era impossível deter a força catastrófica de Furnace.
Meu papel nisso tudo?
Não sei muito bem. Fui mordido por um viking logo antes de escaparmos, meu sangue foi contaminado pelo novo néctar. Mas foi uma mordida leve, não o suficiente para me transformar em um deles. Depois disso, tive algumas visões que vinham do próprio Furnace, infiltrando-se em minha mente através do néctar. Ele me mostrou uma torre, um arranha-céu no qual uma criatura estava sentada, uivando para o mundo lá embaixo. Achei que fosse ele, que a besta fosse Furnace, e sabia que precisava matá-lo. Elaborei um plano com Simon, Zê e Lucy — uma garota que conhecemos na cidade. Zê e Lucy partiram para tentar falar com o exército, para dizer a eles que deviam destruir a torre. E eu fui atrás de Furnace.
Não o encontrei lá. Encontrei o diretor. Ele tinha enchido o próprio corpo com o novo néctar, tornando-se mais forte que qualquer humano mereceria ser. Depois nós dois lutamos, e quase morremos. Só sobrevivi porque bebi o sangue das veias dele, drenando todo o néctar de seu corpo. Foi o que salvou a minha vida, mas custou o que restava da minha sanidade. Matei o diretor — e entreguei seu corpo a suas próprias criações horrendas —, mas, ao fazer isso, tornei-me algo pior. Porque também era isso que Furnace queria — o diretor tinha fracassado, e ele queria um novo general. Ele queria que eu me tornasse seu braço direito.
O diretor Cross podia ter perdido, mas Alfredo Furnace vencera.
Subi até o topo da torre — agora engolida pelas chamas enquanto aviões militares a bombardeavam com mísseis — e parei no pináculo, vendo a cidade abaixo desmoronar. Gritei, percebendo que a criatura que tinha enxergado em minha visão não era Furnace.
Era eu.
Não fico surpreso por não ter me reconhecido. Eu havia perdido minhas duas mãos — meu braço direito virara uma lâmina de ônix, e a explosão de uma granada quase fizera meu braço esquerdo sumir por completo, tendo restado pouca coisa antes do cotovelo. Meu corpo fora transformado pelo novo néctar. Eu estava mais alto do que nunca, e ainda mais forte. Mas não era só isso. O veneno de Furnace também tinha invadido minha mente, arrancando os últimos vestígios de minhas lembranças, tudo o que sobrara do garoto que eu havia sido um dia.
Fiz uma promessa bem ali na torre. Encontraria Alfredo Furnace e o mataria. E, se o mundo ficasse na minha frente, que Deus o ajudasse, porque eu o despedaçaria, o veria queimar.
Nada me impediria de conquistar a minha vingança.
Aquele garoto, aquele menino chamado Alex Sawyer, não teria desejado isso. Mas a opinião dele não importa mais. Ele morreu.
Ainda assim, preciso contar a história dele. Contar como ela termina.
Porque é a única chance que tenho de resgatá-lo.
FISGADO
Os portões do inferno tinham se aberto. Monstros espreitavam pelas ruas, bestas de uma fúria inimaginável que transformavam vida em morte.
E eu era o novo príncipe deles.
Estava sentado em meu trono incandescente, assistindo à raiva devorar o mundo. Do topo daquela torre, vi o horror se espalhar pelo chão fumegante, agarrando a cidade com um punho de ira fundida. Fileiras de ternos-pretos pisoteavam ossos de soldados contra o asfalto, rápidos e poderosos demais para aqueles pobres mortais camuflados. Vi suas vítimas fugirem para dentro de becos e encontrarem coisas bem piores: pesadelos em carne e osso; bestas que antes eram crianças mas que agora espreitavam pelas sombras com ódio no sangue e um brilho assassino no olhar.
E mais criaturas uivavam de telhados, feras de tamanho e força inacreditáveis, os corpos deformados e as mentes destroçadas. Os vikings faziam jus ao nome, lançando-se sobre os humanos apavorados como demônios na porta do inferno dando boas-vindas aos condenados — dilacerando, retalhando, devorando.
Era um exército que o mundo jamais tinha visto, e no comando dele estava um homem cujo riso tinia em meus ouvidos; um homem cuja presença sombria guiava cada uma daquelas aberrações lá embaixo; um homem cuja visão de mundo era composta apenas de fúria.
Alfredo Furnace.
A pessoa que eu tinha ido ali para matar, a criatura que eu achava ter enxergado em minhas visões — uma besta sentada no topo de seu reino, observando o antigo mundo ser expurgado pelo novo amanhecer. Mas aquela criatura na verdade não era Furnace, era eu... Tão transformado pelas batalhas que tinham me despedaçado e pelo néctar que remendara meu corpo que fora impossível me reconhecer. Agora eu entendia por que precisava ter ido até ali; por que tivera que lutar contra o diretor; por que havia me transformado daquele jeito.
Só assim eu poderia ter alguma esperança de derrotar Furnace.
Alguma coisa explodiu lá embaixo, e a explosão fez o telhado do prédio balançar. A enorme antena de rádio fixada no pico da torre se quebrou com um estalido que lembrou uma chicotada, cortando o ar ao se dirigir ao chão, desaparecendo em um pilar de fumaça. Uma segunda explosão ocorreu, seguida de uma terceira, mais barulhenta que as duas anteriores juntas, e dessa vez uma parte do pináculo cedeu, tragada para o inferno cujas chamas se espalhavam logo abaixo do telhado. Afastei-me para a beirada, tentando inspirar algum ar fresco, pensando em uma maneira de escapar.
Mas não havia nenhuma. Uma parede de fogo cercava o pináculo, quente o suficiente para derreter o esqueleto de aço reforçado da torre. Os arranha-céus ao redor estavam longe demais para que eu os alcançasse, mesmo com minha força e minha velocidade recém-descobertas. Só tinha uma maneira de escapar, e, apesar de eu ter o néctar correndo dentro de mim — o novo néctar, um milhão de vezes mais poderoso que o antigo —, não sobreviveria a uma queda de cinquenta andares de jeito nenhum.
O pânico começou a se esgueirar em meio à adrenalina, a sensação do calor do fogo em minha pele deformada deixando bem claro quanto seria doloroso morrer ali em cima. Usei o que restava do meu braço esquerdo — a lâmina curta que se projetava cotovelo abaixo e ainda crescia enquanto o néctar realizava seu trabalho — para afastar a fumaça do rosto, e o braço direito para tatear a lateral inclinada do pináculo.
Os aviões que haviam atacado a torre tinham desaparecido fazia muito tempo, após terem cumprido seu dever. Mas havia outras coisas no céu: helicópteros negros que pairavam como falcões, os vidros fumê encarando minha iminente condenação às chamas. Essa imagem trouxe à tona uma lembrança distante: eu na frente de um júri, sendo considerado culpado por um crime que não cometi, recebendo a pena de morte em vida. Mas era outra vida, a vida de outra pessoa. Eu não era mais aquele garoto. Agora eu era muito mais.
Fiquei parado, ignorando a vertigem que fazia a cidade rodopiar sob mim, e ergui a lâmina da mão direita, soltando mais um rugido abafado de ódio.
— Vocês não podem me matar! — gritei quando recuperei o fôlego, sabendo que ninguém dentro dos helicópteros conseguiria me escutar. — Eu não vou deixar!
Mais uma explosão, dessa vez na cidade. Uma fumaça preta saía de um posto de gasolina e se agitava para cima, tão escura e densa que mais parecia uma montanha de granito abrindo caminho no solo. Dois dos helicópteros se separaram, cada um seguindo para um lado graciosamente. Consegui avistar os rostos sombreados atrás do vidro fumê, e da porta aberta de uma das aeronaves projetava-se uma metralhadora. Eles continuaram subindo, aproximando-se de mim, vindo em minha direção.
Eu me afastei, usando a fumaça da torre para me proteger. Mas, quando fiz isso, escutei aquela voz na minha mente, aquele sussurro que era ao mesmo tempo um grito, mais alto até do que o uivo do vento e o estrondo das chamas.
Deixe que eles o levem, disse Alfredo Furnace, falando comigo através do néctar. Bati o arruinado braço esquerdo na cabeça, tentando me livrar daquela voz desagradável. Seus dedos imundos penetravam meu crânio desde o começo; desde o instante em que tínhamos tentado escapar pelos túneis subterrâneos da prisão, provocando, manipulando e controlando com a facilidade de um titereiro puxando as cordas de um marionete.
Ainda não sei por que ele se interessou tanto por mim; por que me guiou até a torre só para lutar contra o diretor; por que me disse aquelas últimas e vitais palavras de incentivo que me fizeram derrotar seu general; tampouco por que queria que eu fosse seu braço direito enquanto apresentava ao mundo seu novo reino. Não fazia nenhum sentido.
— Não — grunhi, falando com ele dessa vez. — Não vou escutá-lo. Vou te encontrar e acabar com você.
Você vai morrer, respondeu a voz, um sussurro que faria chacoalhar os ossos. E todo o nosso trabalho terá sido em vão. Deixe que eles o levem, e prometo que descobrirá a resposta para a última das suas perguntas.
Os dois helicópteros aproximavam-se rapidamente. Desceram até a altura do topo da torre e pararam a cerca de vinte metros de mim, as hélices fazendo a fumaça dançar e assumir a forma de grandes plumas majestosas. Me perguntei qual seria minha aparência para as pessoas lá dentro — mais monstruoso que humano, duas lâminas assimétricas e denteadas no lugar dos braços e olhos parecidos com vórtices agitados. Conhecia o terror que meu novo corpo devia suscitar, o que me dava uma sensação agradável, de poder, como se eu pudesse acabar com todos aqueles soldados e controlar o mundo.
Dava para escutar a risada de Furnace, mas saber que eu agia como ele queria não diminuía o entusiasmo feroz que serpenteava pelos meus pensamentos.
Um dos helicópteros fez uma curva, deixando o lado da porta aberta virado para mim. Em meio ao ar quente, ele ganhava uma aura reluzente e surreal, mas ainda dava para distinguir a metralhadora lá dentro, apontada na minha direção.
— Manda ver! — gritei.
Eu já tinha tomado tiros antes e sobrevivido. Nada que eles pudessem fazer seria capaz de me matar. Se tentassem, eu lhes mostraria o que era a verdadeira força.
— Manda ver!
Quando a metralhadora abriu fogo, eu já me movia, avançando pelo pináculo, um manto de fumaça me cobrindo. Esperei as balas martelarem o telhado, a tempestade de estilhaços, mas tudo o que escutei foi um tinido surdo. Me virei e vi o helicóptero subindo novamente, usando os rotores para acabar com minha proteção. Na mesma hora, o atirador cortava uma corda e carregava outra.
No fim das contas, não era uma metralhadora; era um arpão.
Ele disparou, surpreendendo-me. Tentei desviar, mas um pedaço de aço me atingiu e perfurou minha barriga, arrastando atrás dele uma corda negra. Ele retiniu na cúpula de concreto, abrindo como um guarda-chuva. Tentei agarrar a corda, mas, com lâminas no lugar de mãos, não consegui. O gancho que tinha me rasgado bateu em minhas costas, suas extremidades prendendo-o lá, e, antes mesmo que eu soubesse o que acontecia, fui arrancado da torre.
O universo se desfez, céu e terra tornando-se um borrão sem fim enquanto eu girava no ar, meu estômago revirando tanto que, por um segundo, pensei ter saído completamente do meu corpo. Percebi que gritava, ou pelo menos era o mais próximo de um grito que meus pulmões privados de ar conseguiam dar. Então a corda se esticou, o gancho entranhado em minha carne, e fiquei balançando sob o helicóptero como um peixe em um anzol.
Eles começaram a me puxar, e eu não podia fazer nada para impedi-los. A única coisa que eu podia fazer era cortar a corda, mas, se fizesse isso, eu cairia e morreria. O outro helicóptero estava longe demais para que eu o alcançasse, distanciando-se e arqueando-se rumo ao chão. A aeronave acima de mim fez a mesma coisa, com o mundo se inclinando em um movimento nauseante mais uma vez enquanto mergulhávamos para o solo. A torre reluzia a meu lado, todas as janelas jorrando fumaça, crateras imensas em suas laterais, onde os mísseis a tinham atingido. O prédio inteiro grunhia como uma besta mítica abatida por lanças e flechas.
Eu aguardaria; esperaria até que me puxassem para perto o suficiente. Então atacaria, com tal força e rapidez que seria impossível me deter. Passei os olhos pela corda negra que subia de minha barriga e foquei a base no helicóptero, a aeronave ficando maior à medida que eu me aproximava. Chegaria até ela em segundos.
Uma silhueta apareceu na porta do helicóptero, um soldado inclinado para fora, logo acima de mim, com uma correia prendendo-o à aeronave. Trazia uma arma na mão e mirou para baixo, por não mais que um segundo, antes de puxar o gatilho.
Algo atingiu meu braço, sem causar dor maior que uma picada de inseto. Olhei para o local, um rugido já escapando dos meus lábios. Não era uma bala. Parecia mais uma pena, uma pluma vermelha que se projetava logo abaixo do meu ombro. O soldado disparou de novo, e de novo, e de novo, deixando brotar uma floresta carmim em meu tronco e meu pescoço.
A fumaça começou a enevoar minha visão. Na verdade, eu sabia que não era a fumaça. Também não era o néctar. Era alguma outra coisa, uma penumbra sorrateira que interrompia o brilho impiedoso do sol, que manchava a cidade, deixando à vista apenas o rosto sorridente do soldado que era puxado de volta para dentro do helicóptero.
Deixe que eles o levem, disse a voz de Furnace de novo, e até ela ficou muda devido ao inescapável e inacreditável cansaço que havia tomado conta dos meus pensamentos, dos meus ossos.
Você vai ter sua oportunidade de vingança, prometo.
Então os últimos resquícios de luz do sol crepitaram e se apagaram como velas, e o mundo deixou de existir.
OBSERVAÇÃO
Meus sonhos me levaram a um lugar de quietude infinita.
Estava no meio de uma floresta, com nada além de árvores ao meu redor. Os galhos pareciam dedos retorcidos, entrelaçando-se acima de minha cabeça. Eram tantos que quase bloqueavam o céu que escurecia. Apenas um feixe de luar frio conseguia penetrar essa camada, e sob seu toque prateado pude avistar pilhas de frutas apodrecendo no chão úmido. Maçãs, milhares delas, com corvos de olhos negros bicando-as como se fossem cadáveres, larvas se retorcendo em meio à carne em decomposição.
Então não era uma floresta. Era um jardim.
Eu conhecia aquele lugar. Já o tinha visto antes; não assim, mas entalhado em pedra. Era o jardim que fora reproduzido no topo da torre de Furnace, de onde eu acabara de ser retirado. Mas lá ele tinha a escultura de um garoto pregado a um tronco, o jovem Alfredo Furnace, com as entranhas para fora. Dei uma olhada nas árvores à frente — que se estendiam como um exército de esqueletos —, mas não vi nenhum sinal dele.
Tentei me virar, mas minha cabeça estava travada e meu corpo, paralisado, como costuma acontecer durante os sonhos. O pânico, em forma de náusea, surgiu em meu estômago, mas me obriguei a engoli-lo. É apenas um sonho, disse a mim mesmo, apesar de saber que era mais do que isso.
O manto de silêncio que cobria o jardim era tão imenso que era quase um som por si só, um rugido abafado que eu podia sentir contra os meus ouvidos, como se estivesse debaixo d’água, bem lá no fundo. Os galhos sem vida balançavam ao sabor da brisa, e os pássaros brigavam e batiam asas enquanto saboreavam seu banquete, mas sem fazer barulho nenhum. Eu não conseguia ouvir minha própria respiração nem sentir meu pulso.
Foi o fogo que me alertou sobre a presença deles. Vultos escuros e aveludados começaram a se mover delicadamente entre as árvores, em uma dança fantasmagórica de luz e escuridão contra os troncos. Aos poucos, os vultos se solidificaram em formas que marchavam pelo jardim, uma procissão de homens e mulheres, todos segurando tochas acesas. Suas roupas pareciam ter vindo de um filme antigo, o tipo de coisa que camponeses teriam vestido centenas de anos atrás. Seus rostos estavam transformados pela emoção — talvez medo, talvez raiva, talvez as duas coisas. E seguravam as tochas contra a noite que chegava como se fossem a única coisa entre eles e o próprio demônio.
Marchavam na minha frente, da direita para a esquerda, e foi apenas quando estavam bem diante de mim que percebi mais duas silhuetas na penumbra. Ambas estavam sendo carregadas — uma delas em uma tábua de madeira, com uma coroa sobre o abdômen imóvel, e a outra se debatendo e gritando entre dois homens enormes, com as mãos e os pés amarrados. Reconheci o segundo garoto imediatamente, apesar de o rosto cheio de horror ser exatamente o oposto da expressão calma talhada na escultura da cobertura da torre.
Era Alfredo Furnace, e ele não era mais velho do que eu.
Vários membros da multidão pareceram fazer uma busca na área antes de escolherem uma grande árvore à minha esquerda. Correram para ela, fixando suas tochas no solo úmido e acenando para que o restante do grupo se aproximasse. Os dois homens lançaram Furnace ao solo, e o garoto se contorceu em uma tentativa de fuga, revirando a terra como se pudesse cavar um túnel em busca de segurança. Uma das mulheres usou uma faca para cortar a corda ao redor de seus pulsos e seus tornozelos, mas, antes que ele pudesse fugir, os homens já o tinham erguido novamente. Colocaram-no em pé, e um deles o atacou, dando-lhe uma bofetada. Mesmo assim, não houve nenhum barulho, embora minha imaginação tenha ficado feliz em inventar um.
Eu queria me mover, tentar impedir o que estava acontecendo. Sabia que o garoto era Furnace, mas a maneira como ele gritava por socorro, com lágrimas escorrendo pelas bochechas imundas, os braços finos estendidos para um salvador inexistente... aquelas não eram as ações de um psicopata enlouquecido, e sim de uma criança apavorada. No entanto, meu corpo continuava paralisado. Era como se eu fosse uma das árvores do jardim, enraizada na terra e presa pelos galhos de meus irmãos da natureza.
O maior homem de todos ergueu o garoto contra a árvore, prendendo-o lá enquanto mais pessoas da multidão avançavam na direção dele. Duas mulheres agarraram um dos braços de Furnace, dobrando-o ao redor do tronco, enquanto outra fincava um enorme prego de ferro na palma da mão do garoto. Tudo o que pude fazer quando deram o primeiro golpe foi fechar os olhos.
Quando me atrevi a olhar novamente, vi a multidão dar um passo para trás, deixando Furnace suspenso no tronco da árvore, crucificado. Ele estava pendurado, agonizando, as pernas procurando algum ponto de apoio, sem conseguir encontrar o chão, sangue escorrendo pelos braços e respingando nas frutas esmagadas.
Com delicadeza, homens e mulheres colocaram o cadáver do outro garoto entre eles e a árvore. O garoto morto era mais novo do que Furnace, com talvez nove ou dez anos, mas o rosto de ambos era parecido o bastante para que eu soubesse que eram irmãos. Uma mulher ajoelhou-se ao lado dele, uivando no peito do garoto, e, quando olhou para Alfredo Furnace, sua expressão se distorceu, ficando quase inumana. Ela sibilou para ele, como um gato sibilaria para um inimigo, e, apesar de eu não conseguir escutá-la nem tampouco entender a palavra que seus lábios formavam, o sonho fez a interpretação para mim.
Assassino.
A comoção da multidão se intensificou, com dúzias de pessoas bradando a mesma acusação. Alguém atirou algo em Furnace, que bateu em seu ombro, deixando uma mancha lamacenta. Segundos depois, o odor de fruta podre tomou conta do ambiente, uma tempestade de maçãs atingindo cada centímetro do corpo do garoto. Ele soluçava, fungava, implorava, mas suas palavras eram tão silenciosas para a multidão quanto para mim.
Não sei quanto tempo durou aquilo. O tempo não significa nada nos sonhos. No entanto, quando os homens e as mulheres cansaram, a montanha de frutas estava quase na altura dos pés do garoto, que acabara de gastar os últimos resquícios de energia. Seu corpo estava agora flácido contra a árvore, imóvel, a pele com pontos escuros devido aos ferimentos. Apenas os olhos piscavam lentamente, indicando que ele não tinha perdido a consciência.
Um homem vestido de preto e segurando um livro encadernado deu um passo à frente. Ele colocou uma das mãos na cabeça da mulher, para consolá-la, enquanto falava com o jovem Alfredo Furnace.
Você cometeu um crime de ódio e malícia inconcebíveis, disse ele, as palavras passando pela minha cabeça sem nenhum som de voz. Matar tua própria carne é o mais grave dos pecados, e tu foste julgado culpado. O homem abriu o livro — a Bíblia, percebi — e começou a ler. “Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu o guarda do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra.” O padre, se é que ele era mesmo um padre, fechou o livro bruscamente. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a boca dela para receber da tua mão o sangue do teu irmão.
Dava para ver a multidão murmurando, balançando a cabeça em concordância; algumas pessoas cuspiam no chão. O padre caminhou lentamente até a árvore, colocando o dedo indicador sob o queixo do garoto e erguendo sua cabeça até que os olhos de ambos se encontrassem.
O Senhor pôs um sinal em Caim para garantir que ele não morreria. Pois seu castigo seria perambular pelo mundo, atormentado por saber o pecado que tinha cometido. Mas tu não poderás perambular. Teu destino está aqui, nesta floresta. Teu castigo será a morte. Tens algo mais a dizer?
Alfredo Furnace abriu a boca, e uma espiral de sangue deslizou por seu queixo. Seu rosto estava inchando, os olhos parecendo duas poças azuis de água no meio da cabeça. Mesmo no tempo que passei em Furnace, entre garotos que choravam, uivavam e grunhiam durante todas as horas de todos os dias, nunca vi ninguém tão frágil, tão apavorado. Os lábios dele formaram uma palavra, talvez duas ou três, mas não consegui entendê-las. O padre deixou a cabeça do garoto pender e se afastou, estendendo as mãos para a multidão.
Ele não protesta, disse. Que se faça justiça. Vamos abandoná-lo para os lobos.
Aparentemente satisfeita, a multidão começou a se afastar, embrenhando-se na mata com suas tochas. Os últimos a ir embora levantaram o garoto morto à altura dos ombros com cuidado e desapareceram em meio às árvores, deixando para trás apenas Furnace e a mulher. Ela estava diante dele, os ombros subindo e descendo enquanto chorava. De alguma maneira, o garoto encontrou forças para olhá-la e, mais uma vez, formou aquelas palavras que não consegui entender.
A reação dela foi tão chocante quanto brutal. Ela tirou uma faca da bainha da saia, a lâmina iluminada pelo luar, e, em um rastro prateado e vermelho, deslizou-a ao longo da barriga do garoto, de um lado a outro. O garoto olhou para o ferimento, com mais choque que dor, e dessa vez, quando ele falou, escutei a palavra com bastante clareza.
Mãe?
Cambaleante, a mulher jogou a faca no chão, como se não conseguisse acreditar no que tinha acabado de fazer. Cruzou os dedos em cima do peito, se virou e saiu correndo.
Por mais impossível que fosse, o jardim parecia ainda mais quieto que antes, tão inerte e silencioso quanto uma fotografia. Mas eu podia ver o sangue jorrando para o solo, o vapor subindo no ar frio, a pulsação no pescoço do garoto enfraquecendo. Não sei como encontrou forças, mas ele conseguiu levantar a cabeça de novo, e dessa vez olhou diretamente para mim.
Não fui eu, disse ele, as palavras bem nítidas, apesar de eu saber que não era na minha língua que ele falava. Aqueles olhos azul-claros foram iluminados pelas tochas restantes, ardendo com intensidade, apesar de ele próprio estar à beira da morte. Desejei me aproximar dele, estender minha mão, confortá-lo de alguma forma, mas era inútil. A única coisa que eu podia fazer era escutar sua negação muda, acreditar nele.
Isso eu podia fazer; isso eu ia fazer.
— Eu sei — falei, as palavras apenas na minha cabeça. E eu sabia. Aquele garoto, Alfredo Furnace, estava contando a verdade. Ele fez menção de abrir um sorriso, um mero tremor dos lábios finos e azulados, com uma palavra final saindo junto com seu último suspiro.
Obrigado.
O HOSPITAL
Por um segundo — um único e aterrorizante segundo —, achei que tinha acordado na Penitenciária de Furnace.
Estava deitado em uma cela, com paredes de concreto pintadas de branco e uma porta de ferro maciço trancada. Tinha uma única lâmpada pendurada no teto, enchendo o cômodo de uma luz ofuscante. Meu corpo havia sido enrolado dos pés à cabeça com um fio preto, dando a impressão de que eu estava em um casulo. Tentei me mover, mas, assim como no meu sonho, não obtive sucesso, já que o fio me prendia a uma mesa ou cama. Cabos saíam de debaixo de várias partes do meu corpo, conectados a meia dúzia de máquinas ao longo da parede esquerda da cela, emitindo bipes suaves como se discutissem o fato de me ver acordado.
Demorei um instante para perceber que não estava na enfermaria da prisão — um instante que pareceu eterno. Olhei para cima e para trás e avistei uma janela na parede atrás de minha cabeça. Ela tinha grades, mas o brilho com fragmentos de poeira que se infiltrava por ela vinha do sol, postado do lado de fora. Sua presença dourada me encheu de alívio; meu coração se acalmou e meus músculos relaxaram. Eu estava acima do nível da superfície da Terra, e não em Furnace. Estava em segurança.
Havia uma câmera montada em um canto da sala, e ela devia estar ligada, pois uma série de estrondos ecoou além da porta, ferrolhos deslizando e trancas sendo abertas. A porta foi empurrada para dentro, e fiquei esperando ver ternos-pretos ou soldados armados até os dentes e prontos para atacar. Em vez disso, quem entrou cuidadosamente no local foi uma mulher na casa dos quarenta anos, vestida de médica, com uma delicada corrente prateada balançando no pescoço. Os cabelos loiros e curtos tinham alguns fios grisalhos, e seus olhos azuis, contornados por rugas finas, eram daqueles que fazem qualquer pessoa se sentir acolhida imediatamente. Ela carregava uma cadeira de lona e desdobrou-a ao lado da minha cama, sentando-se na beirada, sem desgrudar os olhos de mim nem por um instante.
Ela abriu a boca para falar, mas hesitou, as mãos se dirigindo ao colar. Abriu o fecho, inclinando-se para a frente, e eu vi um medalhão preso a ele: um homem carregando uma pessoa ao longo de um rio. Eu devia saber o que é isso, pensei comigo, mas as lembranças simplesmente não surgiam. Habilmente, ela prendeu a corrente ao redor do meu pescoço, deslizando o medalhão pelo fio até a prata fria encostar no meu peito.
— Encontramos isto no seu bolso — disse ela, e percebi que seu sotaque era o mesmo de outra pessoa que eu conhecia, um garoto chamado Zê.
Tentei soltar um dos braços, mas o fio me apertou como um milhão de dedos, não deixando que me movesse nem um centímetro sequer. A frustração subiu garganta acima, e me peguei grunhindo, um rosnado vibrante que preencheu o cômodo como um líquido. A mulher não demonstrou nenhuma reação.
— Tudo bem — prosseguiu ela, apoiando a mão no meu ombro. — Por favor, relaxe, não precisa ter medo de nada. Queria devolvê-lo para você pessoalmente, em sinal de boa-fé. Queria também que soubesse que está em segurança aqui.
Eu estava confuso e furioso demais para assimilar o que ela dizia. Que direito tinha de me manter ali? Será que ela não sabia quem eu era, do que eu era capaz? O néctar era uma tempestade que só aumentava dentro de mim; dava para senti-lo nas minhas veias, dando-me mais força do que aquela mulher seria capaz de imaginar. Mas, quando tentei me mover, não consegui. Agitei a cabeça para a frente e para trás, uma baba suja escorrendo por entre meus lábios. A mulher balançou a cabeça em uma negativa, franzindo o rosto, como se minha dor também fosse dela. Fazia tanto tempo que ninguém me olhava assim, com bondade, que fiquei confuso.
— Seu nome é Sawyer, não é?
Sawyer não me parecia correto. Mergulhei dentro do caos em minha cabeça, tentando puxar algo além do néctar.
— Alex — sussurrei, tossindo.
A palavra me pareceu estranha, retendo-se em minha língua de uma maneira nada confortável.
A mulher tirou algo do bolso, um pequeno cantil. Desenroscou a tampa e o colocou nos meus lábios, deixando um líquido gotejar em minha boca. Engoli apressadamente, deleitando-me com a sensação.
— Meu nome é coronel Alice Panettierre — disse ela enquanto recolocava a tampa do cantil e voltava a se sentar. — Sou do exército, como já deve ter imaginado, mas também sou médica. Estou aqui para ajudá-lo.
Sua voz era afetuosa, tranquilizadora, quase hipnotizante.
— Você tem sorte de estar vivo, Alex. A Força Aérea tinha recebido ordens para destruir aquela torre e tudo o que estivesse nela. Tudo. Foi só quando vimos você gritando com a gente... berrando palavras para a gente, lá da cúpula, que lançamos uma ordem de captura. Tivemos sorte de resgatá-lo antes que o prédio desmoronasse.
Puxei as amarras novamente, cansado de escutá-la. Tinha um trabalho a fazer. Precisava encontrar Furnace e matá-lo, e ela era apenas mais um obstáculo no meu caminho. Mais um obstáculo sacrificável. Ela apoiou a mão em meu braço, segurou-o com força e balançou novamente a cabeça.
— Não se debata — disse ela. — Esta é uma fita de transporte. É o que segura os contêineres quando estão sendo transportados para fora dos navios. Ela aguenta mais de cem toneladas, e você está bem amarrado. É para sua própria segurança. Seus pobres membros são armas muito perigosas. Nós o amarramos para que você não se machucasse acidentalmente. — Tentei me mexer de novo, e ela olhou para mim como uma mãe olha para uma criança malcriada. — Mas, se continuar se debatendo assim, não vai dar para garantir.
Ela se levantou, contornou a cama até uma das máquinas e ficou encarando a tela.
— Sua saúde está boa — informou ela. — O que é realmente incrível, quando se para pra pensar. Você tinha um buraco enorme no peito, outro atravessando o estômago, e o raio X mostrou inacreditáveis catorze balas no seu corpo. Todos os seus órgãos principais foram atingidos, mas mesmo assim continuam funcionando. Na verdade, nunca vimos nada trabalhando em ritmo tão acelerado assim. — Ela se voltou para mim, sentando na beirada da minha cama, as mãos no colo. — O que queremos é que nos explique como isso é possível.
Demorei um tempo para conseguir desenterrar as palavras certas; formar uma simples frase pareceu a tarefa mais difícil que já havia precisado realizar.
— Acho que tenho sorte, só isso.
Panettierre sorriu com os olhos, mas dava para sentir algo mais neles. Um brilho de impaciência, talvez.
— Bom saber que ainda tem senso de humor — ela respondeu após um instante. — Só Deus sabe quanto a gente precisa disso, especialmente agora. — Ela se inclinou para a frente, colocando a mão em minha testa. Sua pele estava fria; seu toque era relaxante. — A gente conversou com seus amigos; eles já nos contaram muita coisa.
— Amigos? — perguntei, procurando alguma lembrança. Mas elas estavam perdidas sob o néctar, como fotos submersas em piche.
— Zê Hatcher — explicou ela. — E a garota, Lucy Wells. Foram eles que nos encontraram, que contaram sobre a torre. Também resgatamos o outro, Simon Rojo-Flores. Todos eles nos contaram a mesma história, e estou me perguntando se você também vai contá-la.
— Furnace — disse eu, vomitando a palavra como se estivesse com a boca cheia de carne podre. — Foi ele que fez tudo isso.
— Alfredo Furnace? — perguntou a mulher. — O homem que deu nome à prisão, não é? — Assenti, observando-a cruzar o cômodo. Ela conferiu o funcionamento de uma máquina enquanto falava. — Bem, é isso que estamos achando difícil de acreditar. Porque não existe nenhum Alfredo Furnace, pelo menos nos nossos registros. Claro que existe a Fundação Furnace, as pessoas que criaram a Penitenciária e que eram donas da torre, além de outros prédios espalhados pela cidade. Mas o homem em si? Ele não pode estar vivo, Alex. Pelo que a gente sabe, Alfredo Furnace nasceu séculos atrás.
— Ele ainda está vivo — disse eu. — Eu falei com ele. — Nem tentei explicar como.
— Não, você falou com alguém que alega ser Alfredo Furnace — disse Panettierre. — E é ele que estamos tentando encontrar.
— Então somos dois — respondi. — Não me importo com o que você acha, porque você não sabe a verdade. Eu estive lá, na prisão. Foi isso que eles fizeram comigo, o diretor e suas aberrações. — Meu corpo estava coberto, mas eu sabia a aparência dele; era grande demais para ser confundido com um corpo humano, com marcas de ferimentos espalhadas por todo canto, causadas pela minha luta com o diretor, sem mencionar os braços com duas lâminas mais afiadas do que um bisturi. — Alfredo Furnace está por trás de tudo isso. Ele nunca esteve de corpo presente lá, mas era ele quem estava no comando, quem dava as ordens. É o exército dele que está na cidade, e seus homens não vão parar. Ele não vai parar, não até o mundo inteiro se render a ele. — Minha fúria aumentou, e dessa vez, quando contraí os músculos, as amarras ao redor do meu peito rangeram. — Mas ele não contava comigo; não estava em seus planos que eu fosse atrás dele para matá-lo.
Desisti, respirando fundo para me livrar da frustração.
— E eu vou matá-lo — falei, dessa vez em um tom mais baixo. — Assim que encontrá-lo.
— Sabe onde procurar? — perguntou Panettierre.
Neguei com um balanço de cabeça.
— Tudo bem, é bom saber que estamos do mesmo lado — disse ela após uma pausa. — E agora este lado é o que está perdendo. Cerca de um terço do batalhão foi morto em combate, e não conseguimos deslocar os reservistas com rapidez suficiente. Sessenta por cento das nossas tropas estão em outros países. Os serviços de emergência estão abarrotados, e a coisa toda está se espalhando mais rápido do que conseguimos acompanhar. Já ultrapassou a linha do condado, a oeste e ao norte. Temos sorte de estarmos com a costa leste, caso contrário tudo já estaria fora de nosso controle. Se não encontrarmos uma maneira de deter isso... essa praga, o país inteiro vai estar inteiramente dominado em alguns dias, talvez uma semana.
Ela voltou a atenção para as máquinas, para uma em particular — uma grande e vazia redoma de vidro ligada a mim por um tubo plástico grosso e transparente.
— Precisamos encontrar quem quer que seja o responsável por isso — disse ela. — No momento, a pessoa no topo da nossa lista é o diretor Cross. Você sabe onde ele está?
— Morto — falei, lembrando-me de seu rosto destruído, um dos olhos piscando para mim enquanto os Ofegantes o dominavam. — Eu o matei.
Panettierre não disse nada, apenas passou a mão na redoma.
— Bom, é uma pista a menos para seguir — respondeu ela, após uma pausa momentânea. — Tudo bem. Agora me conte sobre o líquido, o sangue negro que está dentro de você, dentro dessas criaturas... Como vocês o chamam? Néctar?
— É assim que Furnace o chama — disse eu com calma, tentando recordar o que sabia. — Eles nunca nos disseram o que era, só o que ele faz. Ele modifica os genes, deixando a pessoa maior e mais forte. E também mantém a pessoa viva quando ela está ferida. Cura ferimentos, refaz ossos quebrados. Torna a pessoa imortal. É assim que ele ainda está vivo, Furnace. — O veneno no meu sangue parecia saber que eu falava dele, pois minha pulsação se acelerou, explodindo em meu sistema. Eu era um animal à espera da liberdade. — Mas é mais do que isso. Ele altera nossa mente. Remove todas as fraquezas. E, na maioria das pessoas, no fim das contas, é só isso que se acha lá no fundo: fraquezas. Quando elas desaparecem, quando todas as emoções ridículas somem, tudo o que sobra é raiva, ódio. É isso que aquelas criaturas são; elas são o que resta quando todo o lado humano é removido.
— Mas você é diferente — disse Panettierre. — Consegue falar e sabe o que aconteceu com você. Por quê?
Tentei dar de ombros, mas foi impossível.
— Eu me recusei a esquecer o meu nome — respondi. Não tinha outra maneira de explicar.
Nós dois passamos o que podia muito bem ter sido um minuto inteiro sem dizer nada, e fui eu que interrompi o silêncio, mesmo que fosse apenas para me certificar de que o tempo não tinha parado.
— Deixe eu sair daqui — pedi. — Posso ajudar você. Nós dois queremos a mesma coisa. Vou encontrar Alfredo Furnace e matá-lo. É a única chance de acabar com isso tudo.
Os ombros da coronel pareceram afundar no próprio corpo, e escutei seu suspiro. Ela ergueu a mão para a máquina, hesitou por um instante, mas depois apertou um botão. Escutei um motor ser ligado, a redoma de vidro rangendo como uma dentadura de brinquedo. Algo puxou a pele do meu braço, o desconforto de uma agulha enterrando-se bem no fundo da minha carne. Eu me debati, mas é bem possível que estivesse paralisado do pescoço para baixo — assim como no meu sonho.
— Temo não poder fazer isso — disse ela por cima do estrépito. — É perigoso demais libertá-lo agora. Estamos aqui para cuidar de você, Alex. Garantir seu bem-estar é minha prioridade.
Aquele sorriso constrangedor apareceu no rosto dela mais uma vez. Eram dentes demais à mostra. Ela deu um tapinha no topo da minha cabeça, como se eu fosse um cachorrinho.
— E, neste momento, o melhor lugar para você é aqui, na cama.
Ouvi um barulho de sucção, e de repente o tubo ligado à redoma ficou negro, bombeando néctar para fora do meu corpo. Ele jorrava dentro dela, aderindo às laterais, borbulhante, enchendo-a com rapidez.
— O que está fazendo? — perguntei, debatendo-me pateticamente.
— Não precisa se preocupar — respondeu Panettierre, alisando meu cabelo. Estamos apenas tirando de você uma amostra do néctar. Só queremos fazer uns testes com ele para tentar descobrir a melhor maneira de ajudar você, de curá-lo.
— Perder néctar vai me matar — grunhi.
O sorriso da mulher se alargou por um instante, e me perguntei se era uma tentativa de me tranquilizar. Não funcionou. Ele a deixava parecida com um tubarão, com todos aqueles dentes, e havia o brilho nos olhos, gravado em minha retina.
— Você vai melhorar — sussurrou ela enquanto andava até a porta. — Agora fique quieto, durma um pouco, recupere suas forças. Lembre que estamos aqui para cuidar de você. Agora você está em segurança, prometo. Não vamos deixar que nada de mal lhe aconteça.
Mesmo enquanto os vestígios de realidade começavam a se desvanecer, com o cômodo escurecendo como se soterrado por uma montanha de areia, dava para perceber quanto ela tinha achado difícil dizer aquelas últimas palavras.
Ela estava mentindo.
DRENADO
Eu morri naquele jardim.
A voz de Furnace soava em meus ouvidos enquanto o néctar era drenado de minhas artérias. Tudo o que eu podia fazer era ficar assistindo ao fluido cair em uma cascata na redoma, minha pulsação acelerada tirando do meu corpo a força vital que o abastecia.
Sombras começaram a se amontoar nos cantos daquele cômodo. Minha cabeça se agitava de um lado para o outro enquanto eu tentava me manter acordado. Sabia que, se deixasse a escuridão me levar agora, nunca mais veria a luz. Mas, quanto mais o néctar vertia para fora de mim, mais o mundo esvanecia. Tentei falar, implorar, mas Panettierre já tinha ido embora.
Eu morri, mas não foi o fim, prosseguiu ele, suas palavras parecendo levar o último resquício de luz para longe. O quarto tremeluziu, e o jardim do meu pesadelo iluminou-se acima da realidade por uma fração de segundo, deixando árvores esqueléticas gravadas em minha retina como veias.
Pisquei, e o cenário reapareceu, com todas as folhas, todas as maçãs apodrecendo, todas as penas de cada passarinho aparecendo nos mínimos detalhes, a ponto de a cena ser mais real do que o quarto em que eu estava. Dava até para sentir a brisa no rosto, um vento frio parecendo a respiração de um homem morto, e foi essa sensação que me fez, enfim, me render. Então pisquei de novo e voltei ao hospital. Virei o rosto, avistando a redoma quase cheia, e fechei os olhos, as palavras de Furnace ressoando através de mim como se meu corpo inteiro estivesse oco, seus sussurros guiando-me à inconsciência.
A morte nunca é o fim.
Foi como se eu tivesse acordado de um sono profundo — a cela, a cama, a mulher chamada Panettierre não passavam de uma memória desfocada que havia desaparecido após algumas piscadelas.
Mas eu sabia que este era o mundo de sonhos, o pesadelo.
O jardim ao meu redor estava inacreditavelmente nítido, ficando um pouco mais distinto toda vez que eu o revisitava. Agora também havia sons; os estalidos de galhos distantes, o farfalhar das folhas ao sabor da brisa e o grasnido áspero dos corvos que abandonavam o banquete de maçãs para se aglomerar gananciosamente ao redor do garoto na árvore.
Não tinha se passado nem um segundo desde que estivera ali pela última vez. Uma noite carregada sufocava o jardim iluminado pelo luar, tal como antes. Os olhos de Furnace mal se aguentavam abertos, olhando-me como se eu nunca tivesse saído dali. O sangue tinha parado de escorrer, deixando sua pele com a coloração de osso. Seu peito ofegava, tão fraco quanto um pássaro recém-nascido, lutando por cada respiração.
Eu não esperava conseguir me mexer, mas, quando tentei virar a cabeça, percebi que não estava mais paralisado. Minhas pernas estavam praticamente presas ao chão, como raízes, e meu peito, rígido como madeira, mas agora minhas mãos estavam livres, e, quando as ergui na frente do rosto, notei que as lâminas criadas pelo néctar haviam desaparecido. Minhas mãos estavam como eram antes de eu ser preso — mãos normais de um garoto normal. Estendi os braços para Alfredo Furnace, porém ele estava longe demais para que eu o alcançasse. Seus olhos pareciam ganhar e perder foco enquanto ele se esforçava para me ver.
— Onde estamos? — perguntei, minha voz assustando as aves e fazendo algumas delas voarem para a segurança dos galhos. As mais corajosas me ignoraram e olharam ao redor brevemente antes de mergulhar o bico de volta na terra encharcada de sangue. Mas, quando bati palmas, fazendo um ruído semelhante a um tiro, elas se espalharam com agitação, crocitando asperamente.
— Isto é um sonho, não é? — perguntei, tanto para mim quanto para Furnace.
O garoto balançou a cabeça, o esforço acabando com o resto de sua energia. Seus lábios se abriram, e as palavras se derramaram para fora de sua boca naquela linguagem gutural que, por alguma razão, eu compreendia.
Para você, é um sonho, disse ele. Para mim, é uma lembrança.
Mesmo ali, podia sentir meu corpo enfraquecendo, e me lembrei de que lá no mundo, no mundo real, o néctar que me mantinha vivo estava sendo drenado de mim. Mas, quase na mesma hora em que senti isso, o sonho entorpeceu meu pânico. O mundo real não importava ali. Tudo o que existia eram o jardim e Alfredo Furnace.
— Uma lembrança? — perguntei. — Quer dizer que isto realmente aconteceu? Quando?
Há muito, muito tempo. O garoto cuspiu uma bola de muco carmim, o corpo inteiro sofrendo um espasmo. Eles achavam que eu tinha matado meu irmão. Mas não matei. Foi ele quem matou — o desconhecido que mora no jardim.
— O desconhecido? — Lancei um olhar nervoso ao redor. — Como assim? Ele ainda está aqui?
Silêncio, sussurrou Furnace. Ele vai escutá-lo. E você não quer que isso aconteça. Talvez seja apenas um sonho pra você, mas ele ainda tem poder neste lugar.
— Então o jardim é real? — questionei.
Já foi real. Aqui é um lugar ruim, sempre foi. Houve muitas batalhas por aqui, séculos atrás, com inúmeras vidas perdidas, incontáveis almas destruídas. A terra aqui está contaminada, e os frutos destas árvores foram adubados com sangue. É por isso que ele está aqui. Ele fez uma pausa, revirando os olhos, como se esses pensamentos o tivessem levado para outro lugar. Disseram que a gente nunca devia vir ao jardim, que ele era amaldiçoado. Mas nós viemos mesmo assim, e meu irmão pagou o preço. Agora é minha vez. Eles me abandonaram aqui para os lobos, mas o desconhecido vai me encontrar primeiro. Não tenho muito tempo.
— Diga o que posso fazer — falei. — Posso tentar ajudar.
É tarde demais, respondeu Furnace. O garoto que eu era morreu há muito, muito tempo. Os eventos que já aconteceram não podem ser alterados. Mas é importante que você veja com os próprios olhos.
— Não é tarde demais...
De repente, Furnace arregalou os olhos, aterrorizado, e o resto da frase ficou preso na minha garganta.
Silêncio, sussurrou ele. Ele está aqui.
A temperatura no jardim despencou, como se a floresta tivesse afundado em água gelada. Mesmo sendo um sonho, o frio se infiltrou em meus ossos, causando-me a sensação de jamais ter experimentado o calor. O ar ficou rarefeito, sem oxigênio, e a escuridão tornou-se ainda mais opressiva, como se uma mão invisível me empurrasse para a terra. Enquanto eu tentava respirar, senti algo crescer dentro do meu peito, uma sensação mil vezes pior do que a morte, tão terrível que eu teria escolhido me desligar do mundo naquele instante a aguentá-la por mais tempo.
Era terror, percebi; o tipo de terror dos pesadelos, quando sua mente não tem mais nenhuma defesa contra a escuridão. É a emoção mais primitiva e poderosa de todas, e eu nunca a vivenciara com tamanho vigor. Não era apenas medo de perder minha vida; era medo de perder minha alma.
Dei uma olhada no jardim, procurando desesperadamente a fonte do meu pânico. Os troncos rugosos das macieiras nos cercavam como as barras de uma gaiola. Entre eles havia bolsões de noite, tão inacreditavelmente negros que era como se não existisse nada além dali; como se sair daquela área fosse o mesmo que sair da própria existência e entrar no abismo.
Meus olhos focalizaram o vazio que separava as duas árvores mais próximas de onde Furnace tinha sido crucificado. Não havia nada lá, pelo menos nada que eu pudesse ver. No entanto, eu sabia que tinha algo ali, revestido de sombras, observando a nós dois. Dava para sentir a frieza e a escuridão que estava irradiando, como um sol às avessas, olhos mortos espreitando pelo jardim.
Meu coração ficou acelerado, minha mente berrava, e todos os centímetros do meu corpo protestavam contra aquela coisa na floresta. É um sonho, uivou minha mente, mas não adiantava me enganar. Era real — completa e absolutamente real. Nunca tive tanta certeza de algo na vida. O que quer que estivesse ali era real, e perverso.
Além disso, percebi que aquela coisa estava presa ali, no meio do sangue e da podridão do jardim. Não me pergunte como eu sabia daquilo; apenas sabia. Algumas verdades são instintivas, absolutas. Elas têm que ser, porque, para sobreviver, você precisa ficar o mais longe possível delas.
Eu me obriguei a acordar. Precisava me distanciar daquela coisa, do terror indescritível que fazia o fim da minha vida parecer tão bem-vindo. Gritei comigo mesmo, tentando bombear adrenalina em meu metabolismo, numa tentativa de sair daquele pesadelo.
Estava funcionando. O topo das árvores começou a se dividir, dissolvendo-se em fragmentos que pairavam rumo ao céu. O jardim começou a se mexer e oscilar, despedaçando-se, com partes do mundo onírico espalhando-se como pedaços de papel em chamas.
Não me deixe, disse o garoto Alfredo Furnace. Por favor, não me deixe aqui com ele.
Mas nada no mundo seria capaz de me manter ali, não com aquela entidade impiedosa no meio das árvores, nos espreitando com seus olhos de piche — uma força tão maléfica que fazia o diretor Cross e Alfredo Furnace parecerem anjos. Afastei as súplicas do garoto da minha cabeça e me obriguei a sair do sonho, como um mergulhador livrando-se de águas profundas, louco para alcançar a superfície.
Tinha quase conseguido quando o desconhecido saiu do meio das árvores, trazendo a escuridão com ele — um vulto tremeluzente que estendeu um dos braços inacreditavelmente longos para Furnace e o outro para mim; que me dominou com um sorriso invisível enquanto eu tentava acordar do sonho; que me viu ir embora com uma expressão cruel de deleite; e cuja risada silenciosa e ensurdecedora me acompanhou de volta ao mundo desperto.
TESTES
Abri os olhos com o eco daquele uivo insano ainda reverberando em meus pensamentos fragmentados.
Pisquei para afastar o resto do sono e me vi em um cômodo grande e barulhento, com paredes e piso cobertos de azulejos impecavelmente brancos, tão límpidos que poderiam ter sido colocados ali naquele dia. Parecia uma sala de cirurgia, mas bem maior. Ainda estava deitado, fios e sensores fixados em quase todo centímetro do meu corpo, além de incontáveis agulhas espetadas em minha pele. Minhas pernas ainda estavam imobilizadas com fitas de transporte, e meu peito, preso a uma espécie de mesa metálica. Mesmo antes de tentar me debater, já sabia que não conseguiria me soltar.
Meus braços estavam expostos, presos a ambos os lados da mesa com ganchos parecidos com braçadeiras. Olhei para minha mão direita, a lâmina do braço enegrecido pelo néctar mais comprida e afiada do que nunca. Olhei para meu braço esquerdo e vi que o néctar ainda trabalhava nele. O que restou do braço tinha se dividido em três protuberâncias. Não eram dedos; pelo menos não pareciam. Eram mais como brotos de uma planta surgindo da carne carbonizada. Não eram maiores que o comprimento de um dedão, mas, quando tentei mexê-los, todos obedeceram.
Não fazia sentido. Será que o néctar estava tentando criar uma nova mão? Será que era capaz de fazer isso? Por que então não tinha acontecido o mesmo com meu braço direito? Eram perguntas demais, e todas sem resposta. Aquela transformação devia ter começado enquanto eu estava inconsciente, antes de drenarem o néctar do meu corpo. Talvez o néctar se comportasse de maneira diferente quando a pessoa estava dormindo; quando não estava lutando pela própria vida.
Tentei observar melhor, mas não adiantou. Me senti como o garoto do meu sonho, Alfredo Furnace, amarrado e abandonado para morrer esvaindo-se em sangue. Era como se meu corpo tivesse sido drenado quase até a morte e agora eu estivesse no limite. Não conseguia mais ver as veias escurecidas e cheias de néctar sob minha pele, e a carne havia empalidecido até ganhar um tom repugnante de cinza. Havia apenas um restinho de sangue dentro de mim, o suficiente para manter meu coração batendo. Cada pulsação parecia ser a última.
Virei a cabeça, tentando descobrir onde estava. Só enxerguei caos ao meu redor. Fileiras de mesas metálicas como a minha, em todas as direções. Talvez cem ou mais. Metade delas estava ocupada, a maioria por ratos vestidos com o que sobrara do macacão da prisão. Não restava nos garotos nada do que haviam sido antigamente — antes de serem contaminados pelo novo néctar de Furnace. Debatiam-se contra as amarras, o olhar cheio de ódio e fome — era tanta a fome de sangue que os dentes mordiscavam os próprios lábios e a língua, poças de veneno escorrendo sob eles.
Escutei um grito gutural e virei a cabeça na direção do lado oposto da sala. Havia um viking acorrentado à parede. Ele era bem mais alto do que os soldados a seu redor, e raiva emanava dele como ondas de calor, apesar do rosto de traços infantis. Assim como eu — como todos nós —, estava bem amarrado, mumificado em um casulo de fita de transporte. Tinha apenas a voz em sua defesa.
Na mesa a meu lado estava outro ser, um terno-preto, embora não usasse mais o uniforme designado por seu mestre. Cabos subiam de seu peito exposto, dezenas deles, enquanto os olhos prateados encaravam, sem piscar, as claraboias acima dele, pelas quais a luz do sol gotejava como mel.
Desviei a atenção das aberrações para as outras pessoas, as que não estavam amarradas. Eram cerca de trinta. Algumas vestiam uniforme preto de combate e estavam armadas com metralhadoras, mas a maioria vestia um longo jaleco branco ou roupa de cirurgia. E eram todos esses homens e mulheres, não os monstros, que me enchiam de medo, deixando-me com vontade de arrebentar minhas amarras e sair correndo.
Porque todos usavam uma máscara de gás.
Alguns dos cientistas monitoravam equipamentos cujos visores piscavam, tingindo as paredes de luz. Outros passavam entre as empilhadeiras enfileiradas em um dos lados da sala ou supervisionavam cubas transparentes com fluido negro borbulhante, os flocos vermelhos e flamejantes brilhando em suas profundezas. Tubos se estendiam das cubas, ligando-se a vários dos ratos e drenando seus corpos até secá-los, sem deixar nada, apenas a casca. A maioria dos cientistas com máscaras de gás movia-se entre as mesas, segurando os equipamentos cirúrgicos com as mãos enluvadas, os olhos reluzindo atrás dos visores enevoados.
Senti um movimento acima de mim e percebi que aquela sala possuía uma área para observação — uma passarela com paredes de vidro que percorria os quatro cantos do lugar. Lá em cima tinha mais gente observando, uma mescla de ternos e uniformes militares — não eram camuflados, mas cobertos de acessórios, como medalhas e insígnias. A expressão “altas patentes” surgiu na minha cabeça do nada, embora eu não soubesse o significado. Consegui abrir a boca e chamá-los:
— Ei — disse, minha voz soando mais como um grunhido do que uma palavra, mas obviamente funcionou, porque um interfone crepitou e uma voz fraca sussurrou através dele.
— O catorze está acordado — ouvi. E, após uma pausa, com vozes indistintas ao fundo, prosseguiu: — Comecem o procedimento.
Me senti uma marionete cujas cordas tinham sido cortadas. As únicas partes do meu corpo que ainda pareciam funcionar eram meus olhos, que se enfiaram ainda mais nas cavidades oculares enquanto a multidão presente na sala se aproximava. Dava para escutar respirações entrecortadas e ofegantes de entusiasmo, os passos hesitantes e ansiosos. A sensação de déjà vu criou um nó no meu estômago.
A pessoa mais próxima me alcançou, e atrás da máscara consegui perceber que não era um Ofegante. Era a coronel Panettierre, que estendeu a mão de luva branca em minha direção, apoiando-a no meu peito.
— Não entre em pânico — disse ela, a voz abafada. — As máscaras são para a sua proteção, não nossa. Como drenamos cerca de noventa por cento do seu suprimento de sangue, estamos preocupados de que, sem o néctar, você tenha ficado praticamente sem imunidade contra infecções. Esta sala é parte do hospital. É aqui que vamos tentar fazê-lo se sentir melhor.
Eu sabia exatamente que tipo de sala era aquela. A enfermaria da prisão também era um hospital.
— Zê — disse Panettierre, apontando o indicador para a passarela acima. — Quer falar com ele?
O interfone foi ligado novamente, e ouvi apenas estática por um segundo. Depois, uma voz.
— Alex? — disse o interfone. — Faça o que estão dizendo, não lute contra eles. Acho que estão tentando ajudar mesmo. Não lute contra eles, ou vão matar...
Ouvi um tinido, um grito, e depois a comunicação foi interrompida. Tentei olhar para cima e avistei, mesmo com a visão embaçada, uma silhueta atrás do vidro acima de mim, um garoto no meio dos soldados. Pisquei algumas vezes, as pálpebras tão pesadas que quase não abriram de novo, e por um segundo vi um garoto que reconheci. Aquele que Panettierre havia chamado de Zê. Eu tinha lembranças relacionadas a ele, mas estavam soterradas demais para que fizessem algum sentido. No entanto, elas existiam, disso eu tinha certeza.
Ele bateu no vidro à prova de som, gritando em silêncio comigo. Quando minha cabeça se abaixou de novo, ele já estava sendo levado embora.
— Ele sabe o que é melhor para você, Alex; o que é melhor para você e seu amigo Simon.
Corri o olhar pela sala, procurando algum rosto que combinasse com o nome Simon, mas não me lembrava da aparência dele. Panettierre tirou a mão do meu peito e a estendeu para alguém a seu lado. Um dos outros mascarados passou-lhe algo metálico, que reluziu à luz do sol.
No silêncio que se seguiu, quase peguei no sono mais uma vez, árvores escuras parecendo brotar dos corpos à minha frente, espalhando-se como uma teia de artérias cancerosas pelo teto. Tive um rápido vislumbre do jovem Alfredo Furnace e da silhueta escura que estava em pleno passo, saindo de sua cavidade na penumbra, e aquilo bombeou adrenalina suficiente no meu coração para afugentar o sonho de vez. Melhor aqui do que lá. Qualquer lugar é melhor do que aquele jardim.
— Vai doer, Alex — disse Panettierre. — E peço desculpas por isso. Mas às vezes a cura é mais dolorosa do que a doença; é assim que as coisas funcionam.
Os cientistas se aproximaram, me encarando como se eu fosse o prato principal em um banquete. Eu mesmo me sentia assim: um porco assado no espeto, amarrado e pronto para ser fatiado. Queria uivar para eles, bater neles, mostrar que eu não era nenhuma aberração de circo, mas o mero ato de me movimentar parecia tão impossível quanto saltar um oceano.
— Pronto? — perguntou Panettierre, colocando no meu ombro o objeto que estava em sua mão. Era um bisturi. Balancei a cabeça, abrindo a boca para protestar, mas, antes que eu pudesse responder, ela empurrou o instrumento cirúrgico carne adentro. Não doeu, pelo menos não mais que uma picada de abelha. Já tinha sentido dores bem piores, sofrido ferimentos mais sérios. Mas ao menos, nesses momentos, eu ainda era capaz de me defender. Ficar amarrado ali, impotente, era infinitamente pior. Era exatamente como se eu estivesse de volta aos túneis subterrâneos de Furnace.
— Fique de olho nos batimentos cardíacos dele — disse Panettierre para um dos cientistas enquanto fazia um círculo firme com a lâmina no meu ombro. Eu conseguia movimentar a cabeça o suficiente para ver o ferimento, bem aberto, mas sem sangue. A mulher sorriu para mim, mas, pelo visor da máscara, parecia mais um olhar malicioso, os lábios muito repuxados para trás. — Você está se saindo muito bem, Alex. Não vai demorar muito. — Ela virou-se para o grupo de cientistas que monitorava com ansiedade as máquinas a meu lado. — Alguma mudança?
Alguém murmurou algo para ela, que assentiu, nitidamente satisfeita. Ela enterrou o bisturi mais fundo, tão fundo que o senti triturando os ossos do meu ombro. Eu me contorci, mais pela ideia do que pela dor. Ela pôs a outra mão no meu peito e pediu que eu fizesse silêncio.
— Está doendo? — perguntou ela.
— Sim — retruquei. — Vocês não podiam ter feito isso enquanto eu estava dormindo?
— Precisamos verificar sua reação — disse ela. — Fisiológica e psicológica. Além disso, não deve estar doendo tanto assim. Seja corajoso; vai dar tudo certo.
Ela tirou o bisturi do meu corpo e o entregou a alguém. Os cientistas estavam aglomerados a meu redor, todos encarando o ferimento, os olhos tão cheios de ânsia que nem piscavam. Não olhavam para um garoto, um humano. Para eles eu era apenas um experimento científico. Um espécime.
Ouviu-se um grito do outro lado da sala, e o barulho soou como um coelho sendo preso em uma armadilha. Virei a cabeça o máximo que consegui e, mesmo com tudo de cabeça para baixo, vi outro grupo de cientistas cercando um rato a umas seis ou sete mesas de distância. A criatura se contorcia loucamente, néctar escorrendo de seus lábios. Não era mais um humano. Nem animal — não tinha sequer vontade de comer ou dormir. Teria uma breve existência regada a violência antes que o néctar o abandonasse, depois simplesmente deixaria de existir. Ratos eram como um vírus: viviam apenas para contaminar outro hospedeiro. Ele vestia o macacão da prisão, rasgado e ensanguentado, mas ainda assim reconhecível. Apenas alguns dias antes, aquele rato era um prisioneiro da Penitenciária de Furnace, um garoto como eu, que desejava apenas sobreviver, que desejava encontrar uma saída para sua situação.
Cuidado com o que deseja, pensei.
Os cientistas ao redor dele se viraram e assentiram um para o outro, chamando em seguida um soldado. Uma das pessoas de roupa camuflada aproximou-se, falou rapidamente com um deles e, sem hesitar, posicionou a pistola na têmpora do rato e puxou o gatilho. Houve uma erupção de um líquido escuro, o jato borrifando nos visores das máscaras enquanto os movimentos da criatura iam se tornando menos frenéticos, transformando-se em espasmos esporádicos.
— Não se preocupe com aquilo — disse Panettierre, forçando minha cabeça de volta para a posição original, para que eu não pudesse mais ver a cena. — Há coisas que estão quebradas demais e não têm conserto. — Ela murmurou uma ordem, e alguém passou um instrumento para ela. O objeto reluziu, deixando um fragmento de luz solar gravado no meu olho, e por um instante achei que fosse mais uma lâmina. — Certo, vou aplicar dois mililitros diretamente na ferida. Fiquem atentos à pressão sanguínea. Tudo pronto?
Então não era uma lâmina... era uma seringa.
Escutei murmúrios de aprovação, e Panettierre deslizou a agulha para dentro da minha pele. Assim que o líquido entrou no meu corpo, percebi o que era. Néctar. Não muito — apenas um pouco —, mas o suficiente para transformar meus pensamentos em trovões. Observei o veneno com flocos vermelhos desaparecer no orifício que Panettierre tinha feito em meu ombro, uma solitária bolha negra estourando na minha carne.
Foi então que me atingiu: meus pensamentos viraram fogo, e todas as células do meu corpo despertaram novamente. Eu rugi, o som fazendo a sala chacoalhar e os cientistas voarem para trás como pinos de boliche. Apenas Panettierre manteve-se firme, os olhos brilhando, como se refletissem as chamas dentro de mim.
— Continuem prestando atenção nas leituras — gritou ela. — Não quero perder nada.
Meu rugido se amenizou, tornando-se um grunhido e depois um ronronar latejante que se acomodou em minha garganta. Tentei movimentar o braço, pensando em como seria fácil retalhar a mulher à minha frente, e todos os demais, com minha mão de lâmina. E era o que eu teria feito. Se estivesse livre, teria matado todos eles bem ali onde estavam.
— Calminha, calminha — disse Panettierre para mim. — Agora fique calmo, seja corajoso. Não precisa ficar chateado. Logo mais tudo isso vai acabar. — Depois ela falou para outra pessoa. — Oh, meu Deus, está funcionando, veja.
Empurrei os dedos dela, vendo o ferimento feito com o bisturi já coagulado com néctar endurecido. Não entendi por que tanto alarde; já havia me recuperado de coisas bem piores. No entanto, os cientistas obviamente estavam impressionados e praticamente se estapeando para conseguir um ângulo de observação melhor.
— Fairhurst, pegue uma amostra disto — disse Panettierre, cutucando a casca do ferimento com o dedo enluvado. Tentei grunhir de novo, mas o pouco de néctar que tinha sido bombeado em meu metabolismo já fora consumido. Alguém abriu caminho até mim e usou outro bisturi para fazer um corte na ferida coagulada antes de fugir com o prêmio. — Estão vendo? — prosseguiu Panettierre. — As leituras mostram números altíssimos. A temperatura dele está em cinquenta e oito graus centígrados.
Eles ficaram a meu redor pelo que pareceu uma eternidade, medindo, aferindo, espetando. Tudo o que eu podia fazer era ficar ali parado, esperando que estivessem me dizendo a verdade, que estivessem mesmo procurando uma cura. Não sei quanto tempo se passou até que Panettierre ergueu o bisturi novamente, segurando-o a alguns centímetros do primeiro orifício que fizera.
— Só mais alguns — disse ela. — Precisamos fazer isso porque temos que entender como seu corpo funciona. Precisamos descobrir a verdade sobre sua mutação genética. Você tem que entender que, se não conseguirmos, se fracassarmos, o país todo vai ser destruído.
Protestei, mas, enquanto as palavras saíam de minha boca, a lâmina já cortava minha pele, separando-a como se fosse papel.
— Deixe de ser criança, Alex — disse ela. — Sei que você é mais corajoso do que isso. Apenas ranja os dentes, que em um minuto isso acaba.
Mas não acabou. Não sei quanto tempo durou, com minha consciência indo e voltando como a maré de uma noite sem luar. Talvez horas, embora parecessem dias. Os cientistas chegavam e iam embora, anônimos por trás de suas máscaras. Apenas Panettierre ficava no mesmo lugar, abrindo um orifício atrás do outro, depois curando-o com uma gota de néctar. Todas as vezes ela sussurrava palavras de consolo em meu ouvido, alisando minha testa. Mas seus olhos nunca encontravam os meus. Eles nunca abandonavam a porção de pele dilacerada bem à sua frente.
Em algum momento, perdi a força para manter a cabeça erguida, e ela pendeu para o lado. Atrás do oceano agitado de máscaras de gás, avistei na mesa a meu lado um terno-preto. No fim das contas, ele não estava morto, pois me encarava, os olhos mais cor de chumbo do que prata, um fio de sangue negro vazando de seus lábios e escorrendo por sua bochecha.
Não desviei o olhar, nem ele. Ficamos assim parados, um observando o outro. Éramos inimigos, é verdade, mas agora estávamos unidos pelo mesmo horror, pela mesma impotência, pelo mesmo medo. Todos nós estávamos, assim como tudo naquela sala: ternos-pretos, ratos, vikings, eu. Éramos inimigos, mas nunca tinha me sentido tão próximo deles. Éramos inimigos, mas também irmãos com um objetivo em comum.
Precisávamos dar o fora dali.
NO BURACO
Era noite quando terminaram o trabalho em mim. As claraboias tinham escurecido e se tornado olhos que espiavam meu interior, como observadores de uma autópsia.
Perdi e recobrei a consciência durante horas, cada mínima dose de néctar revigorando meu metabolismo por apenas alguns segundos. Cada vez que caía no sono, o jardim surgia ao meu redor, árvores brotando do chão, galhos se curvando por cima da minha cama como se fossem os tentáculos de algum monstro marinho. Depois eu piscava algumas vezes e estava de volta ao hospital, com Panettierre cortando mais algum pedaço meu enquanto seus médicos me encaravam atrás dos visores. Mas eu sabia que o sonho ainda estava lá, aguardando meu retorno. Não conseguiria me esconder dele para sempre.
Em algum momento, o terno-preto a meu lado morreu. Vi quando aconteceu; notei o brilho em seus olhos enfraquecer, então reacender com força por uma fração de segundo e, depois, esvanecer. Um tempo depois, alguns soldados soltaram o corpo dele da mesa e o arrastaram dali, imagino que para algum incinerador. Logo em seguida, Panettierre jogou o bisturi em um recipiente e limpou as mãos cobertas de néctar em seu jaleco branco.
— Acho que acabamos — ofegou ela através da máscara de gás. — Mandem os resultados para as minhas instalações; preciso conferi-los novamente. — Os cientistas começaram a se afastar, e restou apenas a coronel. Ela apoiou a mão na mesa e passou o outro braço por cima da máscara, fingindo enxugar suor da testa. — Ufa — disse ela para mim. — Foi duro. Mas você se saiu bem, Alex. A gente aprendeu muito hoje, sobre você e essa doença. Está se sentindo bem?
Não precisava ver meu corpo para saber a aparência dele — esburacado com os novos ferimentos, crateras em minha pele, como a superfície da lua. Quando ela percebeu que não conseguiria nenhuma resposta, prosseguiu:
— O néctar é incrível — disse ela. — Nunca vimos nada parecido. É quase como se tivesse... não sei... inteligência própria, pela maneira como se dirige para os ferimentos. É como um agente de coagulação sobrecarregado, mas é mais do que isso. Ele funciona com bem mais eficiência do que o sangue, carregando vinte, talvez trinta vezes mais oxigênio. E faz a fisiologia do corpo enlouquecer; parece agir como uma droga neurológica, deixando dormentes as transmissões emocionais, o medo, qualquer tipo de racionalidade. — Ela balançou a cabeça, como se não acreditasse nas palavras que saíam de sua boca. — Não é de surpreender a surra que estamos levando lá fora. Um exército cheio disso é capaz de vencer qualquer guerra e ponto-final.
Ela parou, distraída pela própria imaginação, e a maneira como seus olhos brilharam fez minha pele se arrepiar. Foi só depois de um tempo que ela lembrou que eu estava ali.
— Mas temos muito a fazer antes de realmente entendermos o que é este líquido. Por exemplo, por que ele afeta pessoas diferentes de maneiras diferentes, fazendo algumas virarem assassinos psicóticos e irracionais, aqueles que vocês chamam de ratos, e outras virarem monstros? Aqueles vikings, por exemplo, mudaram completamente; não há mais nada humano neles. E por que alguns de vocês conseguem falar, como aqueles de terno?
Ela olhou para mim como se esperasse uma explicação, aguardando por apenas um ou dois segundos antes de continuar sua enxurrada de perguntas:
— E quanto a você? Você parece ser um meio-termo. Tem o corpo de um monstro, de um viking, mas parece ter a mente de um adolescente normal. Não faz muito sentido. Você se lembra de alguma coisa sobre isso? O diretor explicou?
Minha vida na prisão parecia ter acontecido há tanto tempo que, mesmo que o diretor tivesse me contado a verdade sobre o néctar, duvido que me lembraria.
— Bem, não importa — continuou ela. — Entendo que está cansado demais para falar. O dia foi longo. Mas temo que ainda não tenha acabado. Precisamos que faça uma coisinha por nós. Não vai demorar, e depois você vai poder dormir, prometo.
Ela fez um gesto de cabeça para alguém atrás de mim, e escutei um motor ser ligado, o ruído de marchas rangendo, o lamento de um veículo se aproximando. Panettierre ficou parada enquanto uma pequena empilhadeira se aproximou, deslizando por sob minha mesa. Eu a senti sacolejar ao ser erguida do chão, a sala rodopiando como um carrossel.
— Não se preocupe, Alex — disse Panettierre. Ela caminhou a meu lado enquanto a empilhadeira me transportava pela sala rumo a uma enorme porta de carga. Dúzias de criaturas nos observaram passar pelas mesas de cirurgia, e o movimento constante delas se debatendo e resistindo me fez sentir como se estivesse em um barco navegando por um oceano de carne dilacerada. — Não deve ser perigoso, não para você. A gente só precisa ver como o néctar funciona em... acho que é o que você chamaria de situação de combate.
Não tive tempo de perguntar do que ela estava falando. Alguns soldados abriram a porta, e a empilhadeira passou por ela, entrando em um túnel com toldos que escondiam o céu noturno durante a jornada de cinquenta metros através de um jardim de concreto, até chegarmos a um segundo prédio de tijolos. Deslizamos em direção a ele, entrando por uma porta ampla.
No início, achei que era outra enorme sala de cirurgia com azulejos brancos, como aquela em que eu estava antes. Depois percebi o buraco gigantesco no chão. Não, não era um buraco, era uma piscina, mas toda a água tinha sido drenada. Uma jaula de metal havia sido colocada para fechar a piscina. Dei uma olhada por entre as grades reluzentes enquanto a empilhadeira me carregava mais para perto, quase esperando ver uma dupla de lutadores na jaula, como se aquilo fosse uma competição de algum programa bizarro de televisão. Mas tudo o que vi foi um piso inclinado surgindo no meio de um pântano carmim, como se alguém tentasse encher a piscina de sangue. Havia soldados e cientistas cercando a jaula, todos usando máscaras de gás, e eram tantos que nem dava para contar.
Minhas entranhas começaram a se revirar, e me perguntei se não deveria tentar me soltar, tentar fugir dali. Mas fiquei quieto e parado. Meu instinto dizia que eu devia guardar minha fraca reserva de forças para o que quer que estivesse prestes a acontecer.
— Podem colocá-lo lá dentro — gritou Panettierre. — Preparem os outros.
Uma porta na lateral da jaula foi aberta, e a empilhadeira me levou para a frente até que eu ficasse pendurado em cima da parte mais funda. Do outro lado, escutei um rugido, quando duas motosserras soaram nas caixas de som. Ouvi alguém berrando uma contagem regressiva e então fui inundado pela luz, o cômodo inteiro se acendendo. Antes que eu pudesse entender o que acontecia, as amarras da fita de transporte que me prendiam à mesa se afrouxaram, a empilhadeira se inclinou, e percebi que estava em queda livre. Caí numa pilha de algo úmido e macio, a mesa de cirurgia atingindo a superfície a meu lado e se quebrando. Escutei a porta da jaula rangendo e se fechando sobre mim, e olhei para cima a tempo de ver os médicos se aglomerarem ao redor dela, com Panettierre abrindo caminho até chegar à frente.
Consegui me manter agachado, mas não mais que isso. Quando tentei ficar em pé, o cômodo inteiro virou de cabeça para baixo, minhas pernas fracas demais para aguentar meu peso. Eu me agachei, tentando inspirar, e meu corpo inteiro estremeceu com o esforço. Percebi que estava com uma camisola de hospital, agulhas e sensores ainda colados por toda a minha pele.
— Está me escutando aí embaixo, Alex? — perguntou Panettierre. — Esses sensores em você vão nos dizer tudo o que precisamos saber, não precisa se preocupar com nada disso. Só queremos que nos ajude um pouco. Pode ser?
Alguma coisa uivou, o som ecoando nos azulejos e arrepiando minha espinha.
— Fique bem longe — disse alguém. — Solte-a bem lá dentro.
Mais uma empilhadeira surgiu rolando até a borda da piscina, segurando uma gaiola, e dentro dela, espremido, estava um viking. Era diferente de todos os que eu já tinha visto, seu corpo era revestido com uma pele amarelada, cheia de protuberâncias e deformações, como se tivesse sido entalhada no próprio osso. Seu crânio era gigantesco e cônico, arqueando-se para trás como um capacete de motociclista. Eu tinha visto fotos de tribos africanas que apertavam o crânio para que ficasse longo e pontiagudo, e isso me fez lembrar delas. A testa da criatura era tão projetada para a frente que criava uma sombra no rosto, sendo possível vê-lo melhor apenas quando ela se inclinava para trás.
Seus olhos, nariz e boca eram agrupados bem no meio da cabeça, amassados e bem juntos, como se a criatura tivesse levado uma pancada de frigideira no rosto, igual acontece nos desenhos animados. Não conseguia entender como um rosto como aquele podia estar funcionando, mas estava, porque o viking virou os olhos na minha direção, farejando o ar, uma língua minúscula surgindo do orifício parecido com um apontador de lápis que era sua boca, lambendo os lábios inexistentes.
A jaula do viking foi empurrada até encostar na porta acima de mim, e num único movimento as duas comportas se abriram, deslizando. A criatura saltou na piscina, formando um tsunami carmim. Tateei as imediações, a adrenalina aproveitando ao máximo o pouco do néctar que ainda restava em meu metabolismo. O viking não atacou; apenas inclinou a cabeça, como se quisesse dar uma bela olhada em mim com seus olhos atrofiados. Dessa distância, dava para ver que seus olhos eram granulosos e amarelados, como ovos fritos com a gema quebrada.
A empilhadeira rolou para trás, emitindo um bipe, mas assim que ela se afastou apareceu outra, também carregando uma jaula. Esta com uma criatura menor, mas mais selvagem. Um rato. Por um instante, achei que a roupa que ele usava — praticamente um babador ensopado de sangue negro — fosse um macacão da prisão. Mas eu estava errado. Ele vestia uma calça de combate bege, e quando se mexeu alguma coisa reluziu em seu pescoço.
Plaquetas de identificação.
O rato golpeava as grades, socava-as com tanta força que seus dedos, parecendo sem unha há um bom tempo, estavam feridos e ensanguentados. Mas ele não se importava. Claro que não. Não tinha cérebro nem emoções; era apenas um veículo de carne controlado pelo néctar que estava dentro de si; pelo néctar que jorrava de suas mandíbulas distendidas.
Mais uma vez a jaula foi empurrada contra a cerca de metal ao redor da piscina, as duas comportas deslizando para se abrir simultaneamente. Num piscar de olhos, o rato tinha saído, balançando no interior da jaula da piscina como um macaco no zoológico. Os cientistas se afastaram, mas um foi lento demais. O rato estendeu o braço pela abertura e agarrou sua máscara, puxando-o para a frente com tanta força que sua cabeça ricocheteou nas barras de metal. Uma dúzia de braços cercaram o cientista ferido, puxando-o para longe da jaula antes que o rato causasse mais danos.
Eu me afastei, arrastando os joelhos para o lado oposto da piscina, a roupa ensopada de sangue. O viking me estudava, sem mostrar nenhuma intenção de se movimentar. Já tinha lutado contra criaturas como ele antes — lá na prisão — e vencido. Mas agora, destituído de néctar, eu não tinha nenhuma chance. Principalmente com um rato ali dentro também. Nesse instante, a criatura menor se virou para mim, os olhos parecendo pedaços de carvão no meio da cabeça, e um berro de raiva animalesca borbulhou em seus lábios.
Senti os azulejos frios às minhas costas e percebi que não tinha mais para onde fugir. Acima de mim, os cientistas tinham se aproximado das grades, o desejo de observar falando mais alto do que qualquer preocupação com a própria segurança. Apontei a mão esquerda para eles — até mesmo este simples gesto parecendo um movimento impossível —, silenciosamente implorando por misericórdia. Mas não havia nenhuma compaixão naqueles olhos, apenas ganância.
Com mais um uivo gorgolejante, o rato deu um salto na piscina, os pés descalços besuntados de gosma enquanto partia para cima de mim. Suas mãos esfoladas se estenderam para a minha garganta, os dentes rangendo. Talvez ele só quisesse me morder para me infectar com o néctar. Se fosse isso, eu permitiria — assim ganharia forças, algo que me ajudasse a sobreviver. Mas ele podia muito bem abrir minha garganta com facilidade e acabar comigo de uma vez. Era um risco que eu realmente não estava a fim de correr.
Um terror genuíno me fez levantar, a parede da piscina sendo a única coisa a me impedir de cair. O rato estava quase em cima de mim, lançando-se no ar com tanta rapidez que era apenas um borrão contra os azulejos. Fiz a única coisa em que consegui pensar, estendendo a lâmina da minha mão direita, na esperança de atingi-lo. Fechei os olhos e fiquei esperando o impacto, mas ele não aconteceu.
Escutei um grito engasgado e o barulho de um osso se quebrando. Olhei para além da lâmina estendida de minha mão e vi o rato caído, a perna em um ângulo bizarro. De pé ao lado dele estava o viking. O rato soltou um berro agudo, porém sem nenhuma emoção transparecendo no rosto deformado, e, sem prestar nenhuma atenção à criatura a seu lado, se lançou para cima de mim mais uma vez. Dessa vez, vi o que aconteceu: o viking atacou o rato com um de seus braços, agarrando-o pelas costelas e fazendo-o voar. A criatura se debateu, atingindo a lateral da piscina com tanta força que chegou a quebrar alguns azulejos antes de cair na gosma.
Apesar dos ferimentos, o rato parecia prestes a tentar uma nova empreitada; porém, antes que pudesse se mover, o viking já estava em cima dele. Com suas mãos gigantescas, ele ergueu a criatura que se contorcia e, depois, com um grunhido vigoroso, dobrou-a ao meio, quebrando sua espinha. Fiquei encarando o viking, sem conseguir acreditar no que tinha acabado de ver. Ele me olhou de volta, gotas de sangue cor de petróleo pingando da pele marfim. Então, curiosamente, caminhou até mim e colocou o rato morto a meus pés. Depois se afastou, sem desviar os olhos de ovos fritos dos meus. Fiquei encarando-o, perguntando-me no que ele estaria pensando — e se esses pensamentos seriam realmente dele. Será que era um viking que me encarava, apontando o cadáver com a cabeça em um gesto ansioso, ou será que era Alfredo Furnace?
— O que ele está fazendo, Alex? — gritou Panettierre.
O viking virou-se para a direção de onde vinha a voz, soltando um uivo parecido com o de um gorila: uma advertência. Não respondi nem me mexi; estava confuso demais. A besta gigante empurrou o cadáver para mim, como uma leoa ofereceria uma gazela morta aos filhotes, um gemido agudo escapando da minúscula boca. Entendi o que ele queria dizer — ele queria que eu comesse a presa.
Me movi com dificuldade e por fim consegui me agachar perto do rato. Alguém bateu nas grades acima de mim.
— Ei! — gritou um dos cientistas. — Isso não é parte do experimento. Deixa ele em paz!
Mas, assim que ele falou, escutei Panettierre anulando sua ordem.
— Deixem que façam o que quiserem. Vamos ver o que acontece.
Ignorei todos eles, já baixando minha boca para o rato. Dava para ver o néctar ainda jorrando dele, os flocos cor de carmim em seu interior brilhando como lava derretida. Minha força esmoreceu, mas o viking pressionou o cadáver, empurrando-o contra os meus lábios.
— Parem com isso — ouvi a voz do homem. — Separem as criaturas agora.
— Não! — gritou Panettierre, mas, assim que disse isso, um tiro foi disparado, e algo colidiu contra o viking com força suficiente para desequilibrá-lo.
Ele grunhiu, mas se manteve onde estava, perto do rato à minha frente. Olhei para Panettierre mais uma vez, com seu deleite visível, mesmo por trás da máscara, e em seguida abri a boca e deixei o néctar fluir para dentro dela. O sabor nojento e familiar invadiu minha língua, um gosto de podridão insuportável, mas me esqueci disso no segundo em que o veneno alcançou meu metabolismo. Ele queimava dentro de mim, sua força percorrendo meus músculos como chamas em um incêndio. Engoli o máximo que pude, mesmo quando o peito do viking levou outro tiro, e depois mais um, fazendo a criatura finalmente se afastar.
Não importava. Não precisava mais de nenhum tipo de ajuda. Já estava em pé e me movimentando antes mesmo de perceber, e lancei o cadáver para longe de mim enquanto escalava a lateral da piscina e agarrava as grades com os dedos mutantes que haviam crescido na extremidade do meu braço esquerdo. Todos cambalearam para trás, exceto Panettierre, que nem pestanejou. Enfiei minha mão em forma de lâmina na abertura, tentando esfaquear, exterminar a coronel, mas ela estava fora do meu alcance. Ela ficou me observando por um instante enquanto eu tentava sair dali à força, mas depois se virou e deu sua ordem:
— Já basta. Podem sedá-lo; livrem-se do outro.
Meia dúzia de soldados abriram caminho em meio aos cientistas, os rifles apontados para meu peito. Soltei a grade, mas era tarde demais. Uma enxurrada de dardos de penas vermelhas zuniu no ar, cravando-se em minha pele. Tentei resistir à sonolência, correndo para o outro lado da piscina, para tentar minha sorte por lá. Não cheguei sequer a subir na parede; meus pés escorregaram, e caí na imundície.
A piscina estava se enchendo, não de líquido, mas de escuridão — as mesmas árvores do pesadelo surgiam por entre os azulejos, crescendo até chegarem ao tamanho normal num piscar de olhos. Meus pensamentos viraram pó com o efeito do néctar e dos dardos tranquilizantes. Não havia mais nada em minha mente, apenas um vazio negro de extrema quietude. Dei uma olhada na piscina, e meus olhos focalizaram o viking. Ele cambaleava para trás, os buracos de bala surgindo em seu tronco como olhos vermelhos e inchados. Ele caiu de joelhos, a boca aberta, soltando um único gemido.
Não sei por quê, mas usei o resto de minhas forças para engatinhar pela gosma na piscina e me aproximar do viking. Não que eu quisesse salvá-lo — era tarde demais para isso, agora que pelo menos vinte balas capazes de perfurar armaduras estavam dentro dele. Não, era outra coisa. Acho que, quando um ser está preso em uma jaula, com centenas de olhos observando-o agonizar, ele só deseja saber que não está sozinho.
O viking agora estava de lado, um lago de néctar escorrendo de sua barriga e seu peito. Ele piscou os olhos amarelados para mim, e talvez tenha sido imaginação, mas juro que ele ergueu a mão, deixando que eu engatinhasse para mais perto, antes de colocá-la protetoramente em meus ombros. Foi a última coisa que ele fez, porque, depois de um espasmo de quebrar os ossos, seu corpo ficou imóvel, para nunca mais se mexer.
Olhei para além daquele braço repleto de protuberâncias e notei que Panettierre me observava da borda da piscina. Ela sorria, as luzes escaldantes da sala refletindo no visor da máscara de gás e dando a impressão de que o sorriso se estendia por todo o rosto, fazendo seus olhos reluzirem também.
E a última coisa que pensei, antes de o meu tempo acabar, foi que ela era igualzinha ao diretor.
O DESCONHECIDO
O pesadelo me esperava, como se eu nunca tivesse ido embora.
E estava mais real do que nunca.
Minha visão estava embaçada, como quando a pessoa acorda de um sono profundo, mas, apesar de não conseguir enxergar o jardim, eu sabia que ele estava ali. Dava para sentir as frutas estragadas e amassadas entre os dedos dos meus pés descalços e as minhocas se contorcendo debaixo do meu corpo. Aquele vento frio ainda roçava meu couro cabeludo como se fossem dedos, mas agora carregava o odor do lugar — o fedor de madeira apodrecendo, de sangue rançoso e cocô de passarinho e, por trás de tudo isso, alguma outra coisa, algo pior.
Senti ânsia de vômito e me curvei, conseguindo movimentar meu corpo, mas meus pés continuaram fincados no mesmo lugar, como raízes, como se mãos de cadáveres tivessem se erguido da terra para reclamar meu corpo. Lágrimas escorriam por meu rosto enquanto eu me esforçava para respirar. Tossi tanto que algo se arrastou traqueia acima, passando com rapidez pela minha boca e meu rosto, depois desaparecendo entre os fios do meu cabelo. Gemi, emitindo um ruído de puro desespero. Era demais — o mundo real e o mundo dos sonhos eram extremidades opostas de um mesmo inferno.
E eu nem tinha aberto os olhos ainda. Não dava, porque eu sabia que ele estava ali. O desconhecido. Talvez, se eu não o visse, ele não fosse capaz de me ver.
Foram os soluços de choro que enfim me fizeram abrir os olhos; um choro de dar pena, que podia muito bem ter sido o meu, mas que vinha do outro lado do terreno. Esfreguei os olhos e vi que o garoto, Alfredo Furnace, ainda estava pregado à árvore, o corpo pendurado como um galho quebrado. A princípio, achei que estivesse sozinho, mas depois vi o desconhecido. Ele estava bem na frente do garoto, o corpo não passando de uma silhueta, um buraco que sugava para dentro de si a luz doentia do jardim e devolvia apenas ondas frias de escuridão. Era como se a imagem diante de mim fosse uma fotografia e o contorno do homem tivesse sido recortado dela — ele não era humano; era a ausência de humanidade.
O desconhecido era alto, mais de um metro maior que o garoto. Além de alto, era também esquelético, com braços e pernas longos demais, com muitas articulações, os dedos parecendo sombras alongadas. Sua espinha era arqueada como a de um idoso, mas aquela coisa, fosse o que fosse, exalava poder. Ele olhava para o garoto, sem se mexer, apenas encarando-o. E, por mais que os gritos de Furnace partissem meu coração, estava contente por ouvi-los, pois significava que o desconhecido não olhava para mim.
Algo caiu de um galho mais acima, um corpo macio e com penas que atingiu o chão, batendo as asas algumas vezes antes de parar de vez. Outro fez o mesmo, e depois um terceiro — dessa vez tão perto de mim que quase me atingiu. Observei o olhar selvagem do corvo se apagar. Sete, talvez mais oito pássaros despencaram, caindo das árvores e morrendo, e, onde despencavam, a grama e as ervas daninhas ficavam marrons, se retraindo para dentro da terra. Até mesmo o movimento das minhocas tornou-se mais urgente, seus corpos se contorcendo enquanto lutavam para escapar da putrefação que tomava o jardim.
Os gritos de Furnace atingiram um crescendo, uma sinfonia de terror, enquanto ele se debatia para tentar se soltar da árvore. O desconhecido andava a seu redor, analisando-o, e, apesar de eu não conseguir distinguir nem olhos nem boca naquela porção de escuridão que era o rosto dele, sabia que ele sorria. A tormenta parecia não ter fim, e me perguntei se o sofrimento de Furnace seria eterno; se eu ficaria preso com ele naquele lugar onde a noção de tempo fora estilhaçada.
Mas o garoto foi enfraquecendo com o tempo, seus gritos foram diminuindo, o corpo estremecendo como uma folha morta. A cabeça pendeu sobre o peito, e por um instante achei que ele enfim tivesse morrido. Então sua boca se abriu, e ele sussurrou:
O que você quer?
O desconhecido não respondeu. Em vez disso, apontou para a poça de sangue que se formara embaixo de Furnace. Ele não se curvou; era como se seu braço tivesse aumentado, se esticado como alcaçuz. Um dedo se desenrolou de seu punho frouxo, a unha do tamanho da palma da minha mão, e ele a usou para pegar um fragmento de solo carmim. O braço prescreveu um arco lento, contraindo-se antes de voltar ao comprimento normal. Uma rachadura se abriu na cabeça dele, e ele colocou o fragmento de solo dentro dela, o corpo inteiro estremecendo em um deleite perverso.
E então o desconhecido falou. Ou, melhor, se comunicou, o contorno do seu rosto-que-não-era-rosto abrindo e fechando abas, como uma dobradura, uma máscara de origami. Nenhuma palavra foi dita, mas havia significado. E ele emanava do desconhecido em ondas, fazendo as árvores e o vento sussurrarem, fazendo o chão tremer e o ar acima trovejar — o jardim inteiro transformou-se em uma voz que mudava de tom e volume, o efeito deixando-me nauseado.
A morte está quase chegando para você, Alfredo. Mas a morte não precisa ser o fim.
O garoto não respondeu, limitando-se a ficar pendurado. Eu sabia que ele já havia aceitado a própria morte, que rezava para que o fim chegasse logo. Porque era melhor ser levado pela morte do que por aquela coisa. Eu o entendi, porque o mesmo pensamento passava por minha cabeça. O desconhecido estendeu o braço novamente, uma sombra escura que se deslocou até alcançar o queixo de Furnace, erguendo sua cabeça. Seus dedos eram tão longos que davam a impressão de que uma aranha enorme tinha parado no rosto do garoto.
Seu crime valeu a pena, garoto?
Dessa vez, Furnace respondeu:
Você sabe que não fui eu. Você matou József; você é o assassino do meu irmão.
A mão do desconhecido recuou, lembrando-me da maneira como as antenas de um caracol se retraem quando são tocados. Seu não-rosto abriu as abas e as fechou, uma miríade de fragmentos de sombra entrando e saindo um do outro, e mais uma vez sua mensagem sem palavras ficou bem clara.
Eu matei seu irmão para salvar você.
Eu sabia que era mentira, e Furnace também, porque ele lançou para o homem um olhar de puro ódio. O não-rosto do desconhecido se moveu impiedosamente, fazendo-me lembrar das rodas dentadas e lâminas de um motor, e, de alguma maneira, pude enxergar um sorriso ali. Um ruído surgiu dele, um ronronado gorgolejante que fez o terreno pulsar, e mais uma vez ele estendeu o braço, os dedos afastando o cabelo do rosto de Furnace e se apoiando na testa dele.
Assim que o contato foi feito, sombra contra carne, uma imagem surgiu em minha mente — Furnace liberto da árvore, os olhos negros brilhando e irradiando força. Outra imagem se seguiu, a do mesmo garoto agachado por cima dos corpos de seus acusadores, as pessoas que o haviam crucificado, entre elas sua mãe; o vapor subindo dos cadáveres. Ele de novo, agora mais velho, liderando um exército, os soldados atrás dele metade homens, metade bestas. Vikings. As visões surgiam e desapareciam, cada uma mais nítida do que a anterior. Ao fundo, podia ver Furnace debatendo-se contra o toque do homem, e sabia que ele estava vendo as mesmas coisas que eu; que testemunhava o próprio futuro.
— Não o escute! — gritei, meu medo falando mais alto do que minha paralisia. — As coisas não precisam ser assim.
Sem olhar para mim, o desconhecido estendeu a outra mão, a sombra se esticando por uma distância inacreditável e agarrando meu rosto. Foi como se minha cabeça tivesse sido imersa em água gelada, a sensação me deixando sem ar. Antes que eu pudesse me recuperar, mais imagens surgiram à força no meu cérebro — dessa vez, mostravam Furnace e eu, nós dois juntos, abatendo nossos inimigos, liderando o mundo todo.
Lutei para bloquear as imagens, da mesma maneira como tinha lutado séculos atrás na sala de projeção do diretor; da mesma maneira como lutava toda vez que o néctar fervilhava dentro de mim — mas era impossível negar aquele acesso de entusiasmo. Quando a pessoa não tem mais forças, não existe tentação maior do que a promessa de onipotência.
Sua vez também vai chegar, Alex.
Furnace lutava tanto quanto eu, mas dava para ver que sua determinação já estava enfraquecendo. Tinha recebido uma alternativa para a morte; tinha vislumbrado um mundo em que ele era mais do que um mero garoto, mais do que uma mera vítima da injustiça. Tinha vislumbrado um futuro em que seria capaz de se vingar. Eu tinha passado por aquilo; sabia exatamente como era.
A mão do desconhecido me soltou e se afastou. Ele se aproximou ainda mais de Furnace, ninando a cabeça do garoto contra o peito quase carinhosamente.
Aceita minha dádiva, Alfredo?
A cabeça de Furnace tombou contra o corpo do desconhecido. Estava quase morto. Mais um minuto talvez, e a morte o tomaria. Fiquei impressionado por ele ter aguentado o tanto que aguentou, com o corpo cortado ao meio pela lâmina da própria mãe.
Você matou meu irmão, sussurrou Furnace. Vou matar você por causa disso.
Só vai conseguir me matar se aceitar minha oferta.
Furnace ergueu a cabeça o máximo que pôde, os olhos reluzindo ao pensar em vingança. O desconhecido continuou alisando o cabelo do garoto com os dedos que pareciam galhos, o mesmo ronronado vibrando em sua garganta.
József morreu por você, Alfredo. Ele deu a vida para que você pudesse viver para sempre. Se não aceitar, a morte dele terá sido em vão. Se não aceitar, continuarei vivendo para matar novamente.
Agora os olhos do garoto estavam fechados. Ele podia sentir a morte; nós dois podíamos. E imaginei que tivesse sido por isso que ele tomou sua decisão — não por causa do irmão, não para viver para sempre, mas porque, quando a pessoa está à beira do nada, quando está prestes a entrar na incomensurável e impensável escuridão da morte, ela faz de tudo para impedi-la. Queria que ele recusasse, mas não adiantava. Afinal, eu já conhecia a história de Furnace. Já sabia qual seria sua resposta. Ele assentiu uma única vez, um movimento de cabeça quase imperceptível.
Aceito.
O rosto do estranho se desdobrou, pétalas de sombra florescendo, se contraindo e florescendo novamente. Em seguida ele jogou a cabeça para trás e riu — uma pulsação sônica explodiu pelo jardim, partindo árvores e fazendo galhos despencarem na terra. Depois se afastou, mantendo o braço esquerdo estendido para Alfredo Furnace, a mão inclinada para trás. Então arrastou as unhas da outra mão por sobre o punho.
Um sangue negro começou a cair na terra, lentamente no início, mas depois jorrando como um poço de petróleo. Meu coração reconheceu o que era antes mesmo do meu cérebro, minha pulsação se acelerando furiosamente. Néctar. O desconhecido puxou a cabeça do garoto para trás com a mão livre e aproximou o ferimento da boca de Furnace. O garoto engasgou quando o líquido fluiu para dentro dele, desaparecendo garganta abaixo. O néctar jorrou por entre seus lábios, mas não por muito tempo — logo ele o engolia ansiosamente, o corpo pedindo mais, como um esfomeado diante de um banquete.
O rosto de Furnace se modificava, as bochechas inchando à medida que o sangue cheio de impurezas vertia para dentro dele, afluindo para sua garganta. Ele soltou um grito e puxou a mão direita até que se soltasse do prego, unindo os dedos ao redor do braço do desconhecido e deixando-os lá. Fez o mesmo com a esquerda, o esforço dividindo a palma da mão em duas e fazendo-o cair de joelhos. Mas ele não parecia se dar conta da dor. Importava-se apenas com o sangue da criatura, o néctar.
Minha mente estava aceleradíssima, sem conseguir acreditar no que eu via. Sabia que era um sonho, que aquilo se passava apenas dentro da minha cabeça, mas, se Furnace tivesse razão, se para ele aquilo era uma lembrança, significava que realmente havia acontecido.
O desconhecido enfraquecia, e a nuvem densa de escuridão que o cercava foi ficando cada vez menos opaca. Seu braço direito começou a enrugar, secando como um ramo de planta em chamas. Uma de suas pernas cedeu, depois a outra, e ele caiu de joelhos. Era como se estivesse afundando em um vasto fosso marítimo, com a pressão da água comprimindo seu corpo. Sua cabeça, com uma fenda aberta, começou a encolher, desinflando, esmagada por uma força invisível, sendo tragada para dentro do pescoço.
Furnace continuou bebendo, consumindo até a última gota do sangue do desconhecido, até que restasse apenas uma carcaça seca no solo do jardim.
O garoto estava agachado, mais fera do que homem. Ele sacudiu a cabeça, o sangue cor de piche borrifando de seus lábios, e, ao abrir a boca, um rugido escapou dela, fazendo o jardim pulsar com a mesma força que o fizera tremer diante da risada do desconhecido. Ele inclinou a cabeça para mim, e, quando abriu os olhos, havia neles vórtices de escuridão, tão profundos e selvagens que ameaçavam me tragar para dentro de si.
Somos todos marionetes pendurados em cima de um oceano de loucura, disse o garoto, e não era mais o lamento de um garoto, e sim a voz que eu conhecia tão bem, o sussurro trovejante de Alfredo Furnace. Basta um breve corte, e caímos.
Ele ergueu as mãos deformadas diante do rosto, e pude ver a carne se refazendo, o sangue do desconhecido curando-o. Quando ele se virou de novo para mim, sua boca tinha se aberto numa imitação cruel de um sorriso.
Agora você sabe.
Ele se lançou sobre o terreno, correndo de quatro. Os olhos negros pareciam emanar uma luminosidade própria, inacreditável, corrompendo tudo em que pousavam. Vi árvores se quebrando, a casca do tronco se rachando, maçãs desaparecendo por sob um manto crescente de mofo, pássaros mortos se decompondo e se tornando esqueletos despedaçados, tudo num piscar do horripilante olhar do garoto.
Com uma risada, ele desapareceu em meio às árvores, mas sua voz flutuou até mim levada pela brisa, tão nítida, como se estivesse bem do meu lado, sussurrando em meu ouvido:
Agora você sabe como tudo começou.
HISTÓRIA
Acordei ouvindo meu nome.
Pelo menos, achei que tivesse acordado. Quase completamente destituído de sangue e néctar, oscilando entre insanidade e morte, não sabia mais dizer o que era real e o que era sonho. Estava sentado em uma cadeira de uma pequena cela, quase idêntica àquela em que havia acordado pela primeira vez. Meu peito estava mais uma vez ligado a fios, e meu corpo parecia dormente — exceto pela memória da terra do jardim contra meus pés, do toque do desconhecido no meu rosto.
Era como se o mundo estivesse se apagando lentamente, dissolvendo-se em minha imaginação, transformando-se em sonho.
Também havia outra coisa, uma leve dor em minha cabeça. Eu a balancei de um lado para o outro, e o fraco latejar pareceu mudar de posição, deslizando para a frente e para trás no meu cérebro, como se houvesse algo preso lá dentro.
Meu nome de novo, pronunciado com sotaque. Abri os olhos e vi uma silhueta embaçada a meu lado. Será que era Panettierre? Alguma coisa tinha acontecido antes de eu cair no sono, não tinha? Algo a ver com uma piscina, e um viking. Será que tinha sido outro teste, como aquele que o diretor tinha me dado lá na prisão? Não conseguia me lembrar de jeito nenhum.
— Ei, Alex, está acordado?
Pisquei algumas vezes, tentando me concentrar, e percebi que a pessoa na cela não era Panettierre. Era um garoto. Mais lembranças, mas tinha tão pouco néctar dentro de mim que elas pareciam peixes à beira da morte no fundo de um barril com água vazando. Um dos peixes conseguiu saltar acima dos outros, ficando no alto tempo suficiente para que eu conseguisse agarrá-lo.
— Zê?
O rosto do garoto se iluminou com um sorriso deslumbrante. Ele parecia diferente desde a última vez em que o tinha visto — algo que parecia ter acontecido eras atrás —, estava mais limpo, com o cabelo lavado e penteado. Vestia um macacão, e por um instante achei que fosse o uniforme de Furnace. Mas era verde, e não aquele branco nojento. Roupa de exército. Senti sua mão no meu ombro, um aperto tranquilizador. Foi só então que percebi que meus braços estavam estendidos na mesa, presos. Movi as estranhas protrusões da minha mão esquerda. Os tocos enegrecidos não tinham passado por nenhuma mudança. Acho que não possuía néctar suficiente para isso.
— Que bom que acordou, Alex — disse ele. — Estava ficando preocupado. Parecia que você ia morrer enquanto dormia.
— Estava sonhando — murmurei, balançando a cabeça e tentando acordar para entender o que estava acontecendo. — O que está fazendo aqui?
O sorriso de Zê diminuiu.
— É assim que você fala com seu melhor amigo? — perguntou ele, e seu sorriso desapareceu completamente. Ele olhou por cima do ombro, para a porta fechada da cela, e depois para a câmera na parede, apontada diretamente para nós dois. — Vamos ver se consigo deixar você um pouco mais confortável. — Ele se levantou e se inclinou por cima de mim, ajeitando minha roupa, de costas para a câmera. Quando falou em seguida, foi um sussurro: — Eles estão escutando, então não diga nada que eles, você sabe... não aprovariam. — Comecei a protestar, mas ele me interrompeu: — Este lugar aqui é assustador, sério mesmo. É quase tão ruim quanto Furnace, mas o pessoal daqui não sabe o que está fazendo. Você só está vivo porque ainda consegue falar. Mas isso não vai proteger você por muito tempo.
Ele se sentou de novo, a voz voltando ao normal.
— Pronto, melhorou. Eu avisei a eles que você me escutaria, que nos contaria como encontrar as pessoas responsáveis pela invasão.
— Mas eu não...
— Você não se lembra, eu sei — interrompeu Zê. — Mas vai terminar lembrando, não vai? — Ele piscou para mim, fazendo que sim com veemência. — Se eles tiverem paciência por mais alguns dias, você vai lembrar.
Entendi a indireta e assenti em resposta. Zê pareceu relaxar, recostando-se de volta na cadeira. Fez-se um momento de silêncio, preenchido apenas pelo grunhido do motor de um caminhão do outro lado da janela e pelo distante ruído das hélices de um helicóptero. Ele lançou outro olhar para a porta, aproximando-se e baixando a voz mais uma vez.
— Eu contei tudo sobre a prisão, sobre o que acontecia lá. Eles acreditaram em mim. Não que tivessem escolha. Quero dizer, eles estão perdendo essa guerra. Na verdade, estão sendo feitos em pedaços. A única coisa que não querem aceitar é essa história sobre Alfredo Furnace. Eles acham que quem construiu a prisão, seja quem for, é outra pessoa, alguém usando o nome dele.
Contei a Zê sobre o pesadelo, as palavras jorrando da minha boca como um monte de frutas podres despencando de um galho, a descrição parecendo mais louca até do que o próprio sonho. Zê ficou sentado pacientemente, a cabeça inclinada.
— É mesmo Furnace — disse eu quando terminei.
Dizem que a criança é o pai do homem, e, se alguém era capaz de criar um monstro atrás dos muros de uma prisão, uma criatura cujos pensamentos sombrios floresciam em minha cabeça, esse alguém era aquele garoto.
— Eu sei — respondeu Zê. — Também o escutei, lembra? O telefone na sala do diretor. — Ele estremeceu tanto que sua cadeira chacoalhou. — Mas temos um problema. Eles pesquisaram, e o único Alfredo Furnace que encontraram nasceu, tipo, no século XVIII ou algo assim. Na Hungria.
— O quê? — perguntei, pensando no jardim e imaginando onde seria. Não era capaz sequer de localizar a Hungria em um mapa. — Sério? Hungria?
— Não, obrigado, odeio sangria — respondeu Zê, seu sorriso contagiante reaparecendo no rosto, fazendo a sala parecer dobrar de tamanho. — Desculpe, não resisti. Bom, contei que ele nasceu há mais de trezentos anos, e é na parte da Hungria que você não acredita?
Entendi o que ele queria dizer, mas para mim fazia muito sentido. Se o diretor tinha lutado na Segunda Guerra Mundial, ele devia ter cerca de cem anos, e seria normal o chefe dele ser ainda mais velho. E o que é um século ou dois quando a pessoa tem néctar nas veias? Dei de ombros o mais alto que pude, e Zê prosseguiu:
— Impostor ou não, Alfredo Furnace é a única dica que eles têm. E desenterraram um monte de coisas sobre ele. Estamos falando da Inteligência militar, e não só a nossa; o mundo inteiro está nisso. Não descobriram muito sobre o início da vida dele, mas aparentemente na virada do século, o XIX, ele possuía uma fortuna, tinha virado duque ou algo assim. Era famoso por seu exército, e o liderou no Levante de Novembro contra o Império Russo em 1830, na Revolução Húngara de 1848 e na Revolta de Janeiro quinze anos depois. — Ele parou, engolindo em seco, os olhos indo até a janela acima da minha cabeça. — Sabe, já ouvi falar disso tudo. A gente aprendeu nas aulas de História. É real.
— Ele fez várias coisas, então? — perguntei. — E por que não virou rei nem nada do tipo?
— Na época, a Hungria ainda fazia parte do Império Austríaco. Eles não tinham rei. Além disso, Alfredo Furnace era um camponês. Até onde a gente sabe, pelo menos. Mas ele com certeza tinha o mesmo poder de um rei. Seus soldados eram temidos por toda a Europa, pelo mundo todo.
— Deixa eu adivinhar: super-rápido, superforte, mais fera do que homem.
— Isso mesmo — disse Zê. — E famoso por se vestir de preto no campo de batalha. Mas era um grupo de elite, sempre muito poucos.
— Não me lembro de ter ouvido o nome dele na escola — falei.
— É porque ele não se chamava Furnace, não naquela época. Alfredo Furnace é tradução do seu nome húngaro, Alfréd Kazán.
— Kazán? Parece nome de mágico.
— Pois é, e as pessoas também achavam isso. Magia negra e tal. Enfim, ele teve uma reputação terrível ligada a banhos de sangue e assassinatos no campo de batalha durante todo o século XIX, e depois simplesmente sumiu, desapareceu no ar. Os registros, os poucos que existem, presumem que ele tenha morrido.
— Mas ele não morreu.
— Não, não morreu. Apenas se mudou.
— Para onde? — perguntei, tentando alongar os músculos das pernas com cãibras, a fita me prendendo com firmeza. — Para cá?
— Não, para Viena, na Áustria. Mas ele disse às autoridades que era o próprio neto, Heinrich.
— Complicado — falei.
— Pois é, dá pra dizer isso. — Zê sorriu. — Enfim, ele tinha contatos com a universidade e construiu a própria faculdade por lá. Alguma coisa parece familiar?
— E deveria? — perguntei.
O sorriso de Zê reapareceu por um segundo, incerto.
— É o enredo de Frankenstein — disse ele. — Furnace se meteu em encrenca, sendo acusado de se envolver com coisas com as quais não deveria. Eles achavam que era algum tipo de eugenia, de reprodução seletiva. Mas não era, era o néctar. Não tem nada específico nos documentos, só dizem que ele foi praticamente forçado a sair da cidade. Acho que foi em Viena que ele tentou criar o néctar artificialmente, em vez de apenas deixar as pessoas tomarem o sangue dele ou algo do tipo. Acho que não dava pra criar tantos soldados dando o próprio néctar para eles, então Furnace quis reproduzi-lo, quis encontrar uma maneira de criá-lo e até torná-lo mais poderoso.
Fiquei imaginando a quantidade de suprimento dele que seria necessária para construir um exército. Devia ser algo que o drenava constantemente.
— Acho que foi por isso que ele foi pra lá, para começo de conversa — prosseguiu Zê. — Porque era a capital científica do mundo.
— E o que aconteceu depois?
Zê balançou a cabeça.
— É aí que as pistas esfriam. Alguns documentos mencionam um tal de Kazán durante a Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, mas são vagos demais para se poder confirmar alguma coisa. Mas ele devia estar na Alemanha durante a ascensão nazista. O nome dele não é mencionado nos livros de História, mas acho que Hitler e aqueles outros loucos deram a Furnace a oportunidade de trabalhar com o néctar. Acho até que o recrutaram e o encarregaram de criar um supersoldado supremo.
— Sim, faz sentido — falei, lembrando o que o diretor havia me dito, o que tinha me mostrado. — E, quando perderam a guerra, Furnace veio para cá, mudou de nome, virou um homem de negócios, abriu a prisão, construiu sua torre e continuou aperfeiçoando o néctar.
— Bingo — disse Zê. — Mas, claro, eles não acreditam que ele tem trezentos anos de idade. Estão trabalhando na teoria de que o homem que criou a prisão, o homem por trás dos ataques, é um parente distante de Alfréd Kazán. Os documentos mostram uma ligação entre a propriedade de Furnace com fundos depositados nas contas da família Kazán pelo mundo afora. Mas, aparentemente, os verdadeiros registros da empresa são tão desorganizados e complexos que acho que nunca terão certeza disso. Para resumir, eles não fazem ideia de quem estão procurando; a única coisa de que têm certeza é que não é o Alfredo Furnace original, quero dizer, o Kázan original. Irônico, não acha?
Fez-se um momento de silêncio enquanto eu tentava assimilar o que acabara de escutar.
— Eles conseguiram descobrir tudo isso em algumas horas? — perguntei. — Muito bom.
Zê olhou para a janela novamente, depois para a câmera por cima do ombro, o tempo inteiro pensando em alguma coisa.
— O que foi? — perguntei.
— Não se passaram algumas horas, Alex — disse ele. — Você está nessa de acordar e dormir há quatro dias.
— Quatro dias? — repeti. — Como é possível?
— Eles drenaram quase todo o seu néctar. Tentar descobrir o que ele é faz parte do plano deles, e também como seu corpo reage sem ele. Você só tem uns pinguinhos. — Ele apontou para a lateral do quarto, para uma bolsa de soro cheia de líquido carmim. — E um monte disso.
— Sangue?
— Sim. Eles querem ver o que acontece quando trocam o néctar por sangue normal.
— Isso vai me matar — falei.
Não tinha certeza, mas era o que eu sentia. Meu corpo estava acostumado ao néctar, e colocar sangue nas minhas veias seria como colocar água no tanque de combustível de um carro. O motor ia terminar rangendo e fundindo.
— Eu sei — disse Zê, assentindo lentamente. E sussurrou: — Eles já mataram dúzias de ratos, vikings também, fazendo isso. São todos assassinos aqui, e aquela Panettierre é a pior de todos. Eles os dissecaram, ferveram, queimaram vivos, jogaram no ácido, cortaram seus membros. Eu vi, Alex. Eles me fizeram ver, porque eu estava na prisão; porque vi com meus próprios olhos o que o diretor fazia.
Ele lançou outro olhar para a câmera e voltou os olhos cansados e tristes para mim.
— Logo mais, também vão me cortar em pedacinhos. Cometi o erro de dizer que sou imune ao néctar. — Lembrei que, nos túneis subterrâneos da prisão, o diretor quase havia jogado Zê no incinerador porque o metabolismo dele não reagia ao néctar. — Devia ter visto como os olhos deles brilharam; parecia Natal. Eles disseram que eu estava em segurança por ser humano, mas sei quando escuto uma mentira.
Zê soltou um palavrão, encostou-se de novo na cadeira e ficou encarando a parede.
— Eles também pegaram Simon — disse ele baixinho. — Ele está na mesma ala que eu, numa cela. Eles não chamam de cela, dizem que é nosso alojamento, mas deixam as portas trancadas. Panettierre mantém ele vivo pela mesma razão que você, porque ele consegue falar e tal, e ainda é, você sabe... humano. Mas ele está na lista dela, eu vi.
— Lista? — perguntei, tentando associar um rosto ao nome Simon, buscando lembranças perdidas e vagas na confusão da minha cabeça: um garoto de olhos prateados e um dos braços maior que o normal; um garoto que havia salvado minha vida na torre quando eu lutava com o diretor. Zê assentiu em concordância.
— Sim, eles têm uma lista de cobaias, a maioria ratos e vikings, mas você também está nela, e Simon. Os dois estão marcados como dispensáveis. Não se importam se vocês morrerem.
— Não me diga — murmurei.
— Tá certo — disse Zê, inclinando-se para a frente novamente. — Aposto que não sabe por que estão querendo dominar o poder do néctar.
— Para deter Furnace — respondi. — Para descobrir uma cura e salvar o mundo.
— Depois de tudo pelo que passamos, de tudo o que vimos, acha mesmo que é essa a razão?
Franzi a testa, dando de ombros imperceptivelmente por sob as amarras. A dor na minha cabeça estava aumentando. Ouvimos um barulho lá fora, a porta rangeu ao se abrir, e dois guardas armados e um homem magro e ruivo, vestido em um terno, entraram.
— Seu tempo acabou — disse o homem. Zê olhou dele para mim, estendendo o braço e apertando o meu enquanto se levantava.
— Mas eles ainda estão procurando Furnace, não estão? — perguntei.
— Acho que desistiram; estão achando que é um beco sem saída — ele respondeu. — Já disse: eles só se importam com o néctar. E se importam porque eles querem usá-lo.
— Eles? — repeti. — Como assim? Usá-lo em quê?
Zê balançou a cabeça em um gesto melancólico.
— Eles querem criar o próprio exército.
AGUENTANDO FIRME
A porta se fechou, e os mecanismos de tranca deslizaram. Nunca me senti tão sozinho na vida.
Era pior do que quando eu estava na solitária, com quilômetros de rocha em todas as direções exceto uma, onde havia um gigantesco alçapão de aço. Apesar de haver um feixe de luz natural entrando no lugar; apesar de eu conseguir escutar pássaros cantando em algum lugar lá fora; apesar de eu saber que havia pessoas a meu redor, me senti verdadeira e extremamente isolado.
Pelo menos na prisão, soterrado sob o solo com ternos-pretos, ratos e Ofegantes, era bem evidente que éramos nós contra eles. Nós éramos os mocinhos; o diretor e suas aberrações, os vilões. Mas ali eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Soldados, cientistas... Eles deviam ficar do nosso lado. Devíamos estar trabalhando juntos, tentando encontrar Furnace e destruir seu exército.
Em vez disso, tinha me tornado um prisioneiro mais uma vez, acorrentado e preso em uma cela. Além disso, eu era uma amostra, apenas um pedaço de carne para cortarem e estudarem. O diretor tinha me fatiado, mas pelo menos queria me remendar de novo e me transformar em algo melhor. Ali eles iriam me matar e dizer que tinha sido em nome da ciência. E, se Zê tivesse razão, não me matariam para descobrir uma cura. Também não me matariam para encontrar uma maneira de deter as aberrações de Furnace.
Não, eles me matariam para criar os próprios monstros.
Imaginei o que aconteceria se as forças militares do mundo todo conseguissem o néctar; se começassem a usá-lo nos soldados mais jovens. Todos aqueles garotos cheios de veneno, insanos, transformados em máquinas mortíferas. Seria o inferno na terra, com dezenas de milhares de ratos soltos nos campos de batalha, rasgando em pedacinhos o mundo todo. Generais e políticos achariam que era possível controlá-los, dominar o poder deles, mas estariam errados. Eles destruiriam o mundo com muito mais rapidez do que o próprio Alfredo Furnace.
Talvez esse tivesse sido o plano de Furnace desde o início. Talvez ele soubesse que o exército capturaria alguns de seus ratos e vikings, que descobririam sobre o néctar. E não precisava ser um gênio para concluir que tentariam usá-lo. A natureza humana é a natureza humana. Se isso acontecesse, se o néctar se tornasse uma arma de guerra oficial, então Furnace poderia relaxar e ver as superpotências mundiais fazerem todo o trabalho por ele.
Puxei as amarras, a frustração fervilhando em minhas veias, todos os músculos gritando em silêncio. A cadeira balançou, mas a fita de transporte nem se mexeu. Analisei a bolsa que mandava sangue para dentro de mim. Não conseguia perceber nenhum efeito dela, apenas uma sensação dolorosa de fraqueza que tomava conta do meu corpo inteiro. O sangue não me manteria vivo. Pelo contrário.
No entanto, a morte também não era uma opção. Agora não; ainda não. Apesar de a ideia de cair num sono infinito e sem sonhos parecer quase maravilhosa demais para resistir. Porém, antes, muitas coisas precisavam ser feitas. Se o exército não acreditava que Furnace estava vivo, se não iriam atrás dele, eu mesmo precisava fazer isso. Tinha feito uma promessa. Eu o encontraria e o mataria. E, depois, teria o resto da eternidade para dormir.
Estiquei as protuberâncias da mão esquerda, os dedos chamuscados abrindo e fechando. Pareciam monstruosos, mas pelo menos o néctar tentava me refazer, estudando minha arquitetura genética e construindo um novo membro para mim. Por que dessa vez eram dedos que cresciam, se antes tinha sido uma lâmina? Talvez o néctar tivesse certa inteligência, provendo o que fosse mais útil. Antes, quando havia perdido o braço direito naquele estacionamento, estava em meio a um combate — lutando com todas as minhas forças contra os ternos-pretos e os helicópteros que atiravam sem parar lá de cima. Naquele momento, eu precisava exatamente de uma lâmina, uma arma quando estava indefeso.
Agora, no entanto, não me encontrava mais em perigo imediato — pelo menos, não vivia uma situação de vida ou morte. Talvez o néctar tivesse presumido que o que eu mais precisava agora não era uma arma, e sim uma ferramenta: uma mão. É verdade que não podia chamar aqueles tocos de perfeitos; jamais poderia tocar piano — mas eu nunca soube tocar piano mesmo. Ainda assim, talvez conseguisse segurar uma xícara de chá.
Se saísse dali com vida.
Escutei um motor ser ligado do outro lado da janela, acelerando até eu não poder mais escutá-lo. Me perguntei onde exatamente eu estaria. Ou era um hospital sendo usado como base militar, ou era uma base militar sendo utilizada como hospital, disso eu sabia. Fosse como fosse, significava centenas de soldados, todos armados com metralhadoras, e helicópteros, caminhões, provavelmente até tanques. Mas, em comparação à Penitenciária de Furnace, aquele lugar parecia mais um asilo para idosos com paredes de isopor e cercas de seda. Afinal, eu estava acima da terra, e os soldados eram apenas humanos — cinco litros de sangue envoltos em uma pele com consistência de papel, tão frágeis e quebradiços que eram quase uma piada.
Respirei fundo, tentando relaxar os músculos com cãibra. Depois olhei para a câmera, sua luz vermelha piscando, e pensei nos homens e mulheres me observando, em como seria fácil despedaçá-los. Tudo o que eu precisaria fazer era me livrar daquelas amarras e encontrar outra dose de néctar; assim, nem mesmo as forças de elite do mundo seriam capazes de me deter.
No silêncio daquela sala, eu não sabia se era minha imaginação ou se a voz de Alfredo Furnace sussurrou para mim — foi uma mensagem que pareceu reverberar em minha mente como ecos de uma explosão, fazendo a dor martelar com ainda mais força.
Posso ajudá-lo a fazer isso, Alex.
Fiquei naquele quarto como uma estátua, os minutos passando de modo monótono, cada hora uma enorme golfada de tempo em que eu me afundava no poço do tédio. Não tinha relógio ali dentro, mas as sombras nas grades da janela moviam-se preguiçosamente pela parede à minha frente, indo da esquerda para a direita, no que pareceu ser uma semana. Não podia sequer conversar com Zê batendo na privada — como eu tinha feito na solitária. Tudo o que eu podia fazer era ficar vendo as sombras enquanto a raiva ardia dentro de mim.
No entanto, sem o néctar, aquela centelha não se acenderia. Era o mesmo que tentar começar uma fogueira com madeira úmida.
Sem ninguém com quem conversar, até mesmo a voz de Furnace seria bem-vinda, mas depois daquela breve mensagem ele também pareceu ter desaparecido. Imaginei que, quase sem nenhum néctar no meu metabolismo, ficaria difícil para ele se comunicar comigo. Ou talvez ele não estivesse mais interessado em mim. Panettierre havia me dito que eu morreria ali, mais cedo ou mais tarde, então por que ele ligaria para mim? Eu continuava sem saber o verdadeiro motivo pelo qual ele tinha interesse em mim, se me queria mesmo morto ou se me queria como seu braço direito — mas, de qualquer modo, agora eu era inútil para ele.
Pensar em Furnace me fez lembrar de meus sonhos, o jardim irrompendo à superfície como uma baleia aparecendo no meio do oceano. Será que ele tinha mesmo me mostrado tudo aquilo ou teria sido apenas uma alucinação causada pela falta de néctar? Tinha parecido tão real... Mas, se havia sido real, o que era aquela coisa, o desconhecido? E por que ele tinha néctar no lugar do sangue? Imagens e explicações reviravam-se em minha cabeça, rápidas e confusas demais para fazer sentido. Fiquei observando a sombra se mexer, imperceptível mas inexoravelmente, a passagem do sol sendo a única certeza em minha vida.
Em algum momento — deve ter sido mais para o fim do dia, porque a sombra tinha crescido, acumulando-se nos cantos do quarto —, Panettierre apareceu para conversar comigo. Ela parecia cansada, a pele pálida como cera estava quase cinza, olheiras enormes abaixo dos olhos. Ela não olhou para mim; apenas se dirigiu às máquinas perto da cadeira, analisando as leituras e apertando botões. Foi só depois de uns dez minutos ou mais que ela se virou.
— Alguma sorte com as suas lembranças? — perguntou, embora ela sorrisse, seus olhos pareciam de pedra. — Nosso tempo está se esgotando.
Ela me viu balançar a cabeça em uma negativa, e seu olhar se deteve em minhas mãos.
— Pensamos que reinserir sangue humano em seu metabolismo seria uma maneira de combater os efeitos do néctar, talvez até revertê-los, mas não deu em nada. Seu sistema imunológico melhorou, mas, fora isso, as leituras estão exatamente iguais às anteriores. Está se sentindo diferente?
— Mais fraco — consegui dizer.
— O diretor Cross contou para você o que tinha no néctar? — prosseguiu ela.
— Ele disse que era algo que vinha da guerra — respondi, tentando me lembrar do que o diretor me dissera na prisão. Eram apenas flashes, pensamentos fragmentados e sem sentido. — Da Segunda Guerra Mundial. De homens, pessoas que estavam assustadas. Ele me disse que veio deles.
— Mentira — disse Panettierre. — Ou ele estava tentando enganá-lo ou não sabia a verdade.
— Como assim? — perguntei.
Ela olhou para os monitores ao lado da minha cadeira e depois para mim. Demorou um instante para responder:
— O que quero dizer é que, seja lá o que for o néctar, não é algo humano. Nunca foi.
— Como ele pode não ser...
Ela me interrompeu, levantando a mão, e deu alguns passos até a cadeira.
— Não importa.
— Não importa? — retruquei.
— Para você, não. — Ela apoiou a mão na minha testa, acariciando meu cabelo com seus dedos. — Alex, a gente precisa dar uma olhada dentro de você — ela murmurou.
O pânico explodiu em minha garganta como um jato de vômito, e tentei mover minhas mãos, minhas pernas, meu corpo, qualquer coisa. Ela segurou minha cabeça com delicadeza, embora em um gesto firme, me aquietando como uma mãe faz com uma criança desapontada.
— Vou contar quem está por trás disso — disse eu. — Agora me lembrei e posso contar tudo, até onde encontrá-los. Estou falando a verdade.
Ela ficou me encarando; tinha percebido que era mentira. Sua outra mão apareceu, segurando uma seringa, e meu coração despencou até o estômago.
— Valorizamos tudo o que você fez, de verdade — disse ela. — Quando isso acabar, quando vencermos, o mundo vai honrá-lo; o mundo vai conhecer seu nome. Você será um herói. Mas, no momento, não temos escolha. Me desculpe.
— Espere! — gritei, e então a seringa atingiu minha garganta. Escutei um sibilo sutil e senti uma dor aguda, e mais uma vez comecei a despencar naquele oceano de escuridão, com ondas aveludadas me engolfando, puxando-me para baixo. — Por favor, não.
— Você vai para um bom lugar — disse ela, suas palavras contendo uma doçura rançosa. Percebi que aquela era a última voz que eu escutaria; que seu rosto era o último que eu veria, e, por razões que não consigo explicar, aquilo me pareceu um milhão de vezes pior do que morrer em Furnace com o diretor cuidando de mim. — Um lugar para garotos corajosos como você, que salvarão a todos nós.
Tentei resistir, mas a mão dela — aqueles dedos que ainda acariciavam meus cabelos — me empurrou para as águas da inconsciência, mantendo-me lá até minha visão começar a escurecer e eu não conseguir mais respirar.
— Todos nós amamos você, Alex — disse ela do outro lado do tempo. — Agora não existirão mais pesadelos, nem dor. Só preciso que entenda uma coisa, algo muito importante. — Ela sorriu, mas havia uma tristeza genuína em seus olhos. — Preciso que entenda que você nos ajudou a ganhar esta guerra. Preciso que entenda que não morreu em vão.
Ela ergueu a mão, e continuei sentindo o peso dos seus dedos enquanto ela falava suas últimas e aterrorizantes palavras:
— Boa noite.
Meu corpo cedeu ao tranquilizante de imediato, mas minha mente lutou contra ele o máximo que conseguiu.
Centenas, talvez milhares de imagens e lembranças trovejavam em minha cabeça, uma explosão tão intensa e vigorosa que não consegui compreender quase nada. Era como se meu cérebro soubesse que a morte me esperava e quisesse uma última chance para me lembrar da minha vida antes que a escuridão chegasse para me tomar — assim como uma vela brilha com mais força antes de se apagar por completo.
Vi o garoto que eu era no campo de uma escola, chutando uma bola de futebol, sem nenhuma preocupação na cabeça; eu o vi de novo, roubando vinte pratas da carteira de um garoto chamado Daniel Richards. Dessa vez, gritei para que ele não fizesse isso, mas as lembranças não são como a vida; você já tomou suas decisões, e elas estão petrificadas no tempo. Não existe absolutamente nada que você possa fazer para mudá-las.
Mais visões: todas as vezes em que descumpri a lei; todas as vezes em que magoei pessoas, dúzias delas, cada uma como uma bofetada no rosto, até estar no elevador, descendo para a Penitenciária de Furnace. Foi naquele dia que o garoto chamado Alex Sawyer morreu de verdade.
Meus sentidos ainda deviam estar em alerta, porque, mesmo soterrado sob todas aquelas lembranças, senti uma movimentação: a cadeira se mexendo, e eu sendo empurrado para algum lugar. Também pude ouvir vozes: era Panettierre falando com outras pessoas. Não consegui acompanhar o que diziam, mas dava para pegar uma coisa ou outra... fluido cerebrospinal... contagem de células... comece pelo coração. E era mesmo uma risada ecoando a meu redor?
A inundação de recordações afastou o burburinho, jorrando na minha cabeça com tanta força que achei que minha mente fosse se partir. Minha vida dentro da prisão, todos os dias aparentemente mostrados por completo — as surras, o desespero, o terror. Mas nem tudo tinha sido ruim. Vi Donovan, meu antigo companheiro de cela, seu sorriso trespassando o terror como raios de um amanhecer. Também vi Zê, e nós três dentro da nossa cela rindo como loucos.
A imagem desapareceu com a mesma rapidez com que surgiu, sendo encoberta por tudo o que aconteceu depois: a explosão na sala de escavação da prisão, o tempo na solitária, o aparecimento de Simon, a tentativa de escalar a chaminé do incinerador, as cirurgias para me transformar em um terno-preto, o sorriso impiedoso do diretor, a vingança contra as pessoas que tinham me abandonado no jardim para morrer...
Mesmo em meu torpor semiconsciente, tão perto da morte, sabia que aquilo não parecia muito certo. Essa última lembrança não era minha... E, no entanto, eu era capaz de visualizá-la claramente, como se estivesse acontecendo comigo naquele momento. Tinha corrido em meio às árvores, com mais rapidez do que os animais que lutavam para sair do meu caminho; com mais rapidez até mesmo do que os corvos que pairavam acima de mim. Havia atravessado campos, rios, colheitas que iam murchando em meu rastro, o solo se dividindo à minha passagem, a terra vomitando dejetos putrefatos — uma trilha de decomposição que ia ficando atrás de mim.
Então estava em uma vila, com casas parecidas com cabanas de madeira e fumaça subindo de chaminés rudimentares. Havia animais ali, vacas e porcos, e todos tentavam se soltar das cordas, os olhos arregalados de terror ao me ver. Algumas pessoas corriam de mim, como se seu pesadelo houvesse se tornado real. E tinham razão. Eu era mesmo um pesadelo, em carne e osso. Eu os atacava como uma raposa no meio de galinhas, rasgando, dilacerando, mordendo, esmurrando, fraturando, refestelando-me em um banquete até o ar ficar pesado com uma névoa escarlate e nenhum homem, mulher ou criança ter restado com vida.
Na minha lembrança, analisei meu reflexo em uma poça de sangue fresco, tentando me lembrar se aquele era meu rosto; se aquilo tinha sido real, parte de minha vida. O garoto era da minha idade, fora acusado de um crime que não havia cometido e sido condenado à morte. E agora ele estava cheio de raiva e néctar. Sim, aquela era a minha história, não era? Aquele era eu. Tinha que ser.
Depois das visões, senti que me erguiam e me colocavam em uma cama, as amarras se prendendo ao redor de meus braços, minhas pernas e meu peito. Senti a picada de outra agulha, e por um instante meu coração se animou, esperando a invasão do néctar. Mas a injeção só me levou para mais perto da morte, arrastando-me ainda mais para o fundo do vazio. Escutei vozes que pareciam ter um tom urgente, porém não sabia se eram da vida real ou do meu sonho.
Até as lembranças se esvaneciam agora, as imagens perdendo as cores e o brilho. Lutei para retê-las, tentando me concentrar em alguma delas — qualquer uma —, porque percebi que seria a última.
Demorei um instante para identificá-la: dentro de Furnace, Donovan na minha frente, morto, e um travesseiro em minhas mãos. Não, espere, eu estava agachado na vila, os corpos esfriando ao meu redor, o corpo de meu irmão, József, em meus braços. As duas recordações se alternavam, uniam-se, misturavam-se, entrelaçavam-se, formando uma cena que eu nunca testemunhara antes, mas que me parecia extremamente familiar.
Em algum lugar perto de mim, escutei o barulho de uma serra elétrica e as palavras pode abri-lo. Ouvi protestos, talvez gritos, outra coisa acontecendo, mas não fez a mínima diferença para mim. Entreguei-me à lembrança, ou ilusão, ou o que quer que fosse. Tentei me embrenhar nela como se, ao fazer isso, pudesse saltar desta vida para entrar naquela.
A pessoa que era Donovan, e também era meu irmão, abriu os olhos e falou comigo:
Aguente, disse ele. Aguente só mais um pouquinho.
— Não aguento — falei. Ou será que não falei?
Tente.
Não adiantou. Senti alguma coisa deslizando no meu peito, e a sensação de cubos de gelo na minha pele. Então a última lembrança começou a surgir e desaparecer, fragmentando-se aos poucos, separando-se.
Por favor, disse o garoto, que não estava mais visível em meio àquele turbilhão. Apenas aguente.
Mas era demais. Inspirei, o ar invadido pelo cheiro do meu próprio sangue. E foi com alívio, em vez de tristeza, que enfim me deixei morrer.
MORTE
Foi exatamente como eu esperava, mas diferente, de certa forma. Dava para sentir meu cérebro desligando, desativando várias partes da minha mente, assim como um piloto desliga interruptores do avião após o pouso. A primeira coisa a desaparecer foram meus sentidos, o pouco que restava deles. As lembranças partiram em seguida, até a última, como se alguém segurasse uma borracha gigante em cima do meu passado, esfregando-o até virar farelo, deletando tudo o que fazia de mim quem eu era. No fim, sobrou apenas um único pensamento. Um bilhão de ações, sonhos e sentimentos levaram a duas únicas palavras finais:
Não dói.
Então a morte chegou. Foi como estar em uma praia à noite, com uma enorme onda negra precipitando-se sobre mim, sem ser vista nem ouvida, embora sentida em todos os milímetros do meu ser. Parecia fazer o universo inteiro gemer enquanto se agigantava acima de minha cabeça, com força suficiente para fazer despencar as estrelas do céu.
Ela caiu, tragando-me em seu coração turbulento. Um momento de terror seguido de uma eternidade de paz.
* * *
Não, não uma eternidade. A paz não durou. Houve uma explosão de fogo no oceano escuro, uma explosão subaquática. Ela iluminou o mundo ao redor por um instante, e percebi que eu afundava. Senti a pressão aumentar, fazendo meus ouvidos estalarem. Tentei respirar e não consegui.
Não era para a morte ser assim, era? Não sei exatamente o que eu esperava, mas, sobretudo, eu pensava que ela fosse o fim de tudo — do medo, da dor, da raiva. Mas aquilo...
Escutei mais uma explosão ondulante, o fogo preso dentro de bolhas de ar tingindo o oceano de tons dourados e azuis. O fogo parecia emanar de mim; as chamas irrompiam do meu peito, dando-me a impressão de ter levado um murro ali. Eu ainda afundava, como se houvesse pesos ao redor dos tornozelos, incapaz de respirar. O pânico fazia meu cérebro se reiniciar, palavras e pensamentos se acendendo nele.
Eu me perguntei se não estaria indo para o inferno. Eu não merecia a paz. Como poderia merecer? Tinha cometido crimes terríveis: contra minha família, contra meus amigos. Tinha matado pessoas. Era isso que estava acontecendo: eu estava a caminho do inferno. Talvez essa fosse a minha eternidade — afundar para sempre nas profundezas, com fogo a meu redor, incapaz de respirar, incapaz de me desligar, uma queda sem fim em plena loucura.
O mundo explodiu de novo, as chamas tão fortes que iluminaram algo acima de mim — será que havia rostos ali? Uma mescla de monstros e homens? A luminosidade se dissipou antes que eu pudesse compreender a visão, mas achei ter visto vikings, olhos de ônix em rostos deformados. Ou talvez fossem demônios assistindo à minha queda.
Afundei nas profundezas sem ar, o universo inteiro esmagando meu peito, me empurrando para baixo. Eu me contorci, lutando contra ele, tentando voltar à superfície, mas aquelas águas escuras eram tão resistentes quanto as amarras que me prenderam no mundo dos vivos.
Mais uma explosão, e dessa vez ela trouxe consigo outra coisa: dor. Eu a senti no peito, no braço, como se fosse um ataque cardíaco. Mas não era possível, porque eu já estava morto. Algo correu pelo meu braço, algo frio como água gelada, e, quando olhei para baixo, percebi que tinha sobrado luz suficiente da explosão para que eu visse um tubo grudado em minha pele. Ele parecia captar as águas escuras e mandá-las para dentro de mim, uma bomba que sugava o oceano para minhas veias, enchendo-me de morte.
No entanto, aquilo não parecia morte. Na verdade, parecia vida; era como se a escuridão houvesse reiniciado meu sistema. Não estava mais afundando, percebi. Estava subindo, e o oceano clareava, como se toda a água estagnada houvesse sido sugada para dentro de mim, deixando apenas frescor e luminosidade. Subi ainda mais rapidamente, rumo ao brilho ofuscante da superfície, o sol pairando bem acima da minha cabeça. Eu me lancei para cima, pronto para emergir das profundezas e deparar com um dia glorioso. Não sabia o que havia lá em cima, mas dava para adivinhar. Talvez eu não estivesse destinado ao inferno no fim das contas. Talvez o destino houvesse ficado com pena de mim e me concedido misericórdia.
Tudo o que importava era que havia deixado a escuridão para trás, seguindo em direção à luz. Não importava para onde estava indo, contanto que fosse um lugar bom.
Não era.
Cheguei à superfície da morte como se renascesse para o mundo, arfando como se nunca houvesse respirado antes e gritando como um bebê. Nos primeiros segundos, só havia um brilho ofuscante, tão ofuscante que meus olhos pareciam estar pegando fogo. Resisti, esforçando-me para me mexer, e senti mãos me prendendo enquanto escutava palavras que não faziam sentido.
Escutei um rugido, parecido com um trovão, depois mais vozes e gritos. O brilho sumiu, depois voltou e em seguida foi embora de novo: chegando e partindo. Pisquei algumas vezes, a visão tentando ganhar foco, e vi uma lâmpada acima da minha cabeça balançando de um lado para o outro. Notei pó caindo do teto rachado e observei os fragmentos de poeira espiralando na luminosidade, até meus olhos pousarem nas silhuetas paradas na sala, cercando a mesa onde eu estava deitado.
Havia dois vikings, os que antes eu havia achado serem demônios. Ambos enormes, corpulentos e robustos, como o que eu havia matado na prisão. Eram tão altos que precisavam se abaixar para que a cabeça desfigurada não tocasse o teto. Entre as criaturas havia um terno-preto, embora não vestisse preto. Aliás, não vestia muita coisa, apenas uma camisola hospitalar como a minha, os braços e as pernas cheios de cicatrizes chamando a atenção por sob o tecido de má qualidade. A cena poderia ser risível, não fosse o fato de ele segurar um bisturi, a lâmina encostada na garganta da última pessoa da sala.
Essa pessoa ainda era um humano, pelo jeito um cientista, ou talvez um médico. Estava de jaleco branco, o rosto machucado e um olho fechado de tão inchado. Ele soluçava, as lágrimas manchadas de sangue. Suas mãos seguravam dois objetos, ambos fumegantes, e demorei um instante para perceber que eram pás de desfibriladores usados por médicos para ressuscitar alguém cujo coração tivesse parado. Pus a mão esquerda no peito, sentindo o calor dele, e percebi que havia sido por isso que o oceano tinha parecido explodir.
Haviam me trazido de volta à vida.
Além disso, haviam me dado néctar. Vi a agulha intravenosa no meu braço, a bolsa acima dela quase vazia, e dava para sentir a força voltando a meus músculos. Olhei para o cientista, e ele também deve ter se dado conta do efeito do veneno, pois cambaleou para trás, colidindo com o peito largo de um dos vikings. As pás caíram ruidosamente no chão, mas o barulho foi abafado por outra explosão gigantesca em algum lugar próximo, tão forte que fez a sala tremer.
Abri a boca, tentando perguntar o que estava acontecendo, mas tudo o que saiu foi saliva. O terno-preto se aproximou, segurou meu rosto entre as mãos e o inclinou para um lado, depois para o outro.
— Você vai se sentir mal por um tempo — grunhiu ele, os olhos prateados reluzindo. — Passou uns cinco minutos morto. Não achei que fosse voltar.
Ouvi uma série de tiros lá fora, e o terno-preto franziu a testa.
— Não temos muito tempo — disse ele. — Você já consegue andar. Precisamos dar o fora.
Confuso demais para argumentar, lancei as pernas para a lateral da mesa de cirurgia, percebendo que o piso da sala estava encharcado de sangue. Havia três cadáveres nele, todos médicos com máscaras de gás e jalecos brancos. Fiz o que pude para saltar sobre eles, quase perdendo o equilíbrio ao pisar no chão. O terno-preto me amparou. Demorei um instante para perceber que era meio metro mais alto que ele, minha cabeça quase alcançando o teto. Ele se virou para o único cientista restante, que se espremia em um canto da sala, entre os cadáveres dos colegas.
— Por favor — choramingou ele. — Fiz o que você pediu.
— Então não preciso mais de você, não é mesmo? — retrucou o terno-preto, avançando com o bisturi. O néctar dentro de mim queria ver o que ia acontecer em seguida, mas não permiti, desviando o olhar e tentando reorganizar meus pensamentos. Não entendia por que aquelas aberrações tinham me ressuscitado, assim como não compreendia por que um viking havia se comportado praticamente como meu guarda-costas na piscina. Furnace sabia que eu queria matá-lo. Então por que não me queria morto?
— Fique perto de mim! — ordenou o terno-preto enquanto caminhava até a porta, abrindo-a um pouco e dando uma olhada do lado de fora.
O fedor de fumaça e pólvora passou por ele, infestando minhas narinas, e escutamos outra rajada de tiros, agora mais altos. Um dos vikings estava atrás do terno-preto, a pele pendurada em dobras rosadas e os braços do tamanho de troncos de árvore. O outro me observava, piscando os olhinhos negros. Encarei aquelas duas poças de nanquim, tão profundas que a criatura parecia ter duas cavidades ocas no meio da cabeça, e por um instante eu o senti lá dentro: Alfredo Furnace.
Percebi que ainda sentia um pouco de dor, a mesma sensação desagradável que parecia se deslocar na cabeça, embora sempre convergindo para o mesmo ponto. Não sabia como nem por quê, mas tinha certeza de que aquela dor tinha a ver com Furnace.
— O que quer de mim? — perguntei, massageando a têmpora com meus dedos deformados, as palavras saindo em um tom tão grave que poderia muito bem ter sido o som de um trovão distante.
O viking inclinou a cabeça, uma expressão ausente e ao mesmo tempo infantil estampada no rosto. Seus punhos estavam cerrados, tão grandes quanto bigornas. No entanto, eu sabia que ele não me machucaria. Na verdade, achava até que aquele monstro se sacrificaria para me manter vivo.
— Está pronto? — perguntou o terno-preto. Não era uma ordem, e sim uma pergunta. Assim como o viking, o terno-preto estava ali para me ajudar.
— Vamos dar o fora daqui, não é? — perguntei. O terno-preto fez que sim, desviando sua atenção para a porta e depois voltando a me olhar. Ainda dava para ouvir tiros, centenas deles, como em um show de fogos de artifício. — Isso aqui é uma missão de resgate?
— Temos que ir — disse ele, e deu para sentir ansiedade em sua voz.
Tinha néctar em meu metabolismo, mas não o suficiente para apagar todas as minhas lembranças. No vórtice intenso dos meus pensamentos, vi Zê, Simon e também a garota Lucy.
— Não vou sem meus amigos — falei.
O terno-preto abriu a boca para protestar, mas nada saiu dela. Ele balançou a cabeça, olhando para o chão com resignação. Pareceu ter passado uma eternidade antes que ele enfim respondesse, e suas palavras quase fizeram meu coração parar outra vez.
— Como quiser, senhor — disse ele abrindo a porta. — É você quem está no comando.
ORDENS
— Eu, no comando? — gritei, sem conseguir acreditar no que ouvia. — Como assim?
Mas o terno-preto já tinha saído, com o primeiro viking em sua cola. O segundo me deu um leve empurrão, e corri atrás deles, escutando o barulho dos passos da criatura atrás de mim. Fora da sala havia um corredor longo e sem janelas, com uma ligeira névoa de fumaça suspensa perto do teto. Havia cerca de uma dúzia de portas ali, metade delas aberta, mas o terno-preto as ignorou, passou correndo por todas elas e seguiu em direção a uma bifurcação à frente.
— Isto aqui era um hospital — disse o terno-preto quando chegamos ao fim do corredor. Ele se dividia para a esquerda e para a direita, ambos os lados idênticos, ainda sem nenhum sinal de janelas. O chão estremeceu com mais uma explosão, e as lâmpadas tubulares do teto pararam de funcionar. Meus olhos tingiram os corredores de um tom escuro de prata segundos antes de as luzes se reacenderem. — St. Margaret’s. O exército construiu isto aqui depois que a guerra começou. É por aqui.
Ele seguiu para a esquerda, as portas transformando-se em borrões à medida que passávamos. Dei uma olhada para dentro de algumas delas e vi vislumbres de vermelho e branco-amarelado, e algo rosa que parecia se mover. Não parei para olhar melhor. Tinha a sensação de que precisava seguir em frente, ou o caos e a confusão me alcançariam, me consumindo. Havia uma porta no final do corredor, maior do que as outras, pendurada pelas dobradiças. Passei por ela e vi o terno-preto entrar em outro corredor. O som de tiros ecoava mais forte. Também dava para ouvir gritos. Não apenas alguns, mas um coro inteiro.
O terno-preto se agachou subitamente ao lado de uma porta entreaberta. Pela fresta, o mundo inteiro parecia estar pegando fogo. Estendi minha mão de dedos deformados e o detive antes que ele voltasse a correr novamente.
— Me conte o que está acontecendo — falei, estreitando os olhos e fulminando-o, até que ele desviasse o olhar.
— Não tenho cem por cento de certeza — ele respondeu. — Só sei que eu era um prisioneiro daqui, assim como você. Furnace deve ter mandado reforços, porque todo esse caos começou, e logo depois dois vikings me tiraram da cela. Furnace ordenou que eu cuidasse de você. Você é o novo braço direito dele. — A amargura em sua voz era inconfundível, e também o ódio logo abaixo da superfície. O terno-preto olhou para mim, cuspindo as palavras como se estivesse com a boca cheia de ácido. — Fico surpreso por ele não ter dito nada pra você, já que agora é o general dele.
— Não sou o general dele — sussurrei, agarrando a roupa do terno-preto com os tocos deformados da mão esquerda, a direita estendida ao lado do meu corpo, pronta para cortá-lo. — Não sei o que ele acha que está fazendo, mas não estou do lado dele, nem do seu lado. Entendeu?
Ouvi um grunhido atrás de mim; eram os dois vikings juntando-se a nós. Achei que tivessem se aproximado para me atacar, mas, pelo olhar nervoso que o terno-preto lançou a eles, deu para perceber a quem eles protegeriam no caso de uma briga.
— Como quiser, Sawyer — respondeu ele, afastando minha mão e se concentrando na porta. Engoli minha raiva, a sensação descendo garganta abaixo como uma bola de espinhos. Mais tarde eu me preocuparia com o que estava acontecendo. O importante agora era encontrar Zê, Simon e Lucy e dar o fora daquele hospício.
— Eles estão em alguma dessas celas — falei, lembrando-me do que Zê tinha me contado.
— Eu sei — respondeu o terno-preto. — O prédio principal do hospital fica passando esta porta. Está tudo lotado, com o nosso pessoal e o deles. Pelo menos estava quando passei por aqui alguns minutos atrás. Se dermos sorte, haverá distração suficiente pra conseguirmos atravessar o pátio e chegar ao átrio e à ala psiquiátrica. É lá que eles estão presos, os seus amigos. Se é que ainda estão vivos. — Ele estendeu a mão e abriu a porta mais um pouquinho, revelando um hall de entrada. Estava o maior inferno lá fora, mas parecia estar concentrado junto às paredes da esquerda, com a luz do fogo se unindo ao brilho avermelhado do sol que se punha. — Se eu fosse você, mandaria um dos vikings primeiro, para garantir que a barra esteja limpa.
Olhei para ele, arqueando as sobrancelhas, e ele me encarou com impaciência.
— Não posso...
Foi tudo o que consegui dizer antes que fosse interrompido. Não pelo terno-preto, mas pela voz em minha cabeça.
Pode, sim.
Os vikings estavam atrás de mim, ombro a ombro, praticamente ocupando a escada inteira. Pareciam gêmeos, caricaturas horrendas de Tweedledum e Tweedledee. Só de vê-los, meu estômago já revirava, o coração acelerando em descompasso, e todos os instintos do meu corpo me diziam para correr e fugir deles antes que se virassem contra mim. Mas eles estavam apenas parados ali, como soldados à espera de um comando.
— Ok — falei para eles, tendo certeza de que nada aconteceria. — Podem ir.
Eles não se mexeram; ficaram congelados como Golens feitos de argila rosa. Tentei novamente, mas o resultado foi o mesmo.
Não é apenas dizer, disse Furnace, sussurrando mais alto do que o crepitar das chamas; mais alto do que o zunido dos tiros. Tem que acreditar no que diz.
— É melhor se apressar — disse o terno-preto. — Tem alguma coisa vindo pra cá.
Ele tinha razão. Escutei passos se aproximando, muitos. Olhei para os vikings atrás de mim, mas dessa vez não falei. Esvaziei a mente e imaginei a porta e o cômodo do outro lado dela. Imaginei um dos vikings se lançando em meio às chamas, encontrando uma passagem segura para nós.
Ele se moveu com tanta rapidez que quase não consegui sair da sua frente. A besta bateu contra a porta com força, arrombando-a por completo. Ele arqueou as costas para trás e soltou seu grito de guerra. Escutei o estalo de um rifle e o estrondo encorpado da bala atingindo uma das pernas da criatura. Em seguida, ela atacou, desaparecendo com rapidez, enquanto tornados de fumaça espiralavam-se do lado de fora da porta.
— Ótimo — ronronou o terno-preto, o sorriso malicioso de volta ao rosto. — Talvez você não tenha sido uma escolha tão ruim assim no fim das contas.
Escutamos mais um estalo acima do crepitar das chamas. Não era uma arma — talvez madeira se partindo, ou um osso se quebrando. Algo passou voando pela porta, um monte de trapos úmidos que foram engolidos pelo fogo antes que eu pudesse identificá-los. Será que eu tinha mesmo dado aquela ordem ao viking? Não parecia possível, mas havia tanta coisa impossível que tinha se tornado real de alguma maneira... As regras que governavam o universo pareciam não existir mais.
— Vamos — disse o terno-preto, lançando-se porta adentro.
Eu o segui, uma golfada de calor proveniente do fogo à esquerda me atingindo. A sala era maior do que eu pensava, um hall imenso que se estendia por uns cinquenta metros de uma extremidade à outra. O viking já tinha chegado ao lado oposto, onde uma dúzia de soldados uniformizados fazia o que podia para sair do caminho dele. A criatura deu uma chave de braço em um deles, e escutei um ruído repulsivo de carne sendo esmagada antes que o viking se livrasse do corpo sem vida, partindo para o próximo.
Lembrei-me do último dia na prisão, do dia em que escapamos, quando Furnace libertou os vikings — a maneira como saltavam de um prisioneiro para outro, dilacerando carne e derramando sangue. Naquela época, eu teria arriscado tudo, minha vida e minha sanidade, para matar essas aberrações. E agora era eu quem provocava aquele inferno; eu é que tinha comandado aquelas figuras de pesadelo.
No entanto, fazia isso apenas para escapar. Precisava sair dali para poder encontrar Furnace e matá-lo. Não estava fazendo nada errado, estava?
Um dos soldados deu uma olhada na sala, mal acreditando no que via. Brandiu a metralhadora e puxou o gatilho, e o ambiente de súbito ganhou vida com o som de vespas furiosas. Eu me abaixei, mas o viking foi mais rápido e pulou no soldado, arrancando-lhe a arma enquanto começávamos a correr de novo.
— Por aqui! — gritou o terno-preto, saltando a mesa da recepção e derrubando no chão um monitor de computador.
Ele correu para a esquerda, dirigindo-se ao que parecia ser uma camada sólida de fogo. Cobrindo o rosto com as mãos, lançou-se nas chamas, desaparecendo com o estrondo de vidro quebrado. Alguém atirava aleatoriamente em nós, e, sem nem olhar direito para ver quem era, saltei também através da parede de fogo.
Passei para o outro lado antes mesmo que as chamas percebessem minha presença, atingindo o chão e rolando uma vez antes de me equilibrar. Ouvi o grunhido do viking que restava atrás da gente batendo na própria pele com o punho gigante a fim de apagar as chamas de seu corpo.
Estávamos ao ar livre, o sol que se punha, ofuscante. Estreitei os olhos e me vi num pátio do tamanho de um ginásio. Duas carcaças queimadas de caminhão ocupavam o local, e silhuetas enegrecidas se espalhavam pelo chão entre eles como dominós derrubados, ainda fumegantes. Lá em cima, a certa distância, dois helicópteros valsavam juntos no céu, mas fora isso não havia nenhum sinal de vida.
O terno-preto já se movia novamente, apenas um borrão no meio do pátio. Havia um prédio de dois andares bem à nossa frente, com todas as janelas estouradas, e, sem parar para olhar, o terno-preto se lançou em seu interior escuro. Estava na metade do caminho para fazer o mesmo quando escutei o rugido de um motor, um Humvee que vinha derrapando pela lateral do prédio. Ele atingiu os destroços de um dos caminhões, lançando metal queimado por todo o local, e em seguida acelerou em nossa direção.
Imaginei um viking correndo até ele, desejando que aquilo acontecesse, e de fato uma silhueta rosada passou voando por mim, dirigindo-se para o Humvee. Não sei a que velocidade estavam quando se chocaram — em torno de oitenta, cem quilômetros por hora —, mas o som da colisão fez meus ouvidos apitarem. O viking manteve-se firme, as dobras carnudas de pele balançando com tanta força que achei que fossem cair. Ele girou o corpo, e seus braços gigantescos enlaçaram o capô. Com um uivo de esforço, ele lançou o veículo no ar.
Três toneladas de metal vieram rodopiando em minha direção, os rostos lá dentro petrificados com o choque. O veículo atingiu o chão bem na minha frente, e o movimento o fez quicar e passar assobiando sobre minha cabeça, perto o suficiente para roçar nela. Depois, ele capotou em direção ao prédio em chamas logo atrás. Uma bola de calor ruidosa atingiu minhas costas quando o tanque de combustível rachado explodiu, lançando meu corpo para a frente. Olhei para o viking ao passar por ele, e sua expressão era quase um pedido de desculpas.
Passamos pela janela e fomos cercados pela escuridão fria do átrio. O local onde estávamos era pequeno, do tamanho de uma sala de aula, e não vi nenhum sinal do terno-preto até ele colocar a cabeça pela porta à nossa frente.
— Vamos, não temos muito tempo — sussurrou ele.
Alcancei-o, seguindo-o por outro corredor e atravessando portas duplas, com o viking logo atrás. Até ali, nenhum sinal de seu companheiro, o que ficara com os soldados. Devíamos estar em uma espécie de ala de segurança, pois todos os cômodos tinham grades nas portas, como lá na prisão, e em cada cela havia uma cama e um vaso sanitário. Era quase como estar em casa. A porta de uma das celas tinha sido completamente arrancada, parecendo um esqueleto metálico no chão.
— É aqui que Zê está? — perguntei. O terno-preto percorria as celas, olhando por entre as grades, falando enquanto andávamos.
— Não sei. Provavelmente. Era aqui que eu estava preso.
Ele parou na frente de uma cela, fechando os dedos ao redor da grade. Corri até ele, ansioso — rezando — para ver um rosto familiar lá dentro. Mas só tinha outro terno-preto ali, apenas de cueca, sentado em um banco com as costas arqueadas. Estava coberto de ferimentos recentes, a pele parecendo um conjunto de retalhos ornamentados com cicatrizes e néctar coagulado. Estava morto.
— Canalhas — disse o terno-preto a meu lado, e acreditei que sua emoção fosse genuína. Ele piscou os olhos prateados algumas vezes, murmurando algo que não consegui escutar, e depois seguiu em frente.
— Zê? — gritei em seu encalço. — Simon, você está aqui?
Mais celas, a maioria vazia, algumas, não. Ratos agitados uivavam para nós de uma ou outra cela, o som de dentes roendo as grades fazendo meu estômago revirar. Cruzamos dois corredores e estávamos quase desistindo quando alguém respondeu ao meu chamado, uma voz tão fraca que quase não ouvi.
— Zê? — gritei, correndo na direção da voz. — É você?
Ele emitiu um novo som, e, mal o eco tinha desaparecido, eu já olhava por entre as grades de uma cela. Tinha um garoto lá dentro, mas não era Zê, e a onda de alívio que tomou conta de mim foi agridoce.
— Simon — falei, agarrando as grades com minha mão de tocos deformados.
Seu sorriso durou um ou dois segundos, até o terno-preto aparecer do meu lado, o viking posicionando-se atrás de nós. O garoto se espremeu contra a parede oposta da cela.
— Alex? — ele falou, lançando-nos um olhar nervoso. — O que está acontecendo?
— Explicar vai demorar demais — respondi, dando um puxão na grade da cela com a mão esquerda. — E acho que nem sei direito. Vamos dar o fora daqui, depois a gente conversa.
— Não vou a lugar nenhum com esses dois — disse ele, erguendo o braço mutante em defesa. Antes aquele membro era algo monstruoso, mas agora, comparado com o meu, parecia extremamente humano. Olhei para ele com certa inveja, tentando desviar o olhar da lâmina afiada como um bisturi na minha mão direita, ao lado do meu corpo.
— Você tem uma escolha a fazer, Simon — respondi, repetindo uma frase que ele havia me dito certa vez. — Não sei como nem por quê, mas, por enquanto, esses dois aqui estão do nosso lado. Eles vão nos manter em segurança. — Simon tentou retrucar, mas não deixei. — Ou vem com a gente, ou a gente deixa você aqui pra eles te cortarem ao meio e estudarem suas tripas. A escolha é sua, e tem que ser feita já.
Ele ficou em silêncio, e juro que pude ver uma engrenagem funcionando atrás daqueles olhos prateados. Em seguida ele assentiu, endireitando as costas. Mais uma vez, esvaziei a mente e visualizei o viking arrancando as grades da cela. De fato, a criatura avançou, agarrou a porta e a puxou da parede, causando um redemoinho de pó e estilhaços. Lançou-a para o lado, o tinido metálico tão alto que poderia ter acordado os mortos. Simon saiu correndo da cela, ficando o mais longe possível do viking e se protegendo a meu lado.
— Acho bom essa coisa não se aproximar — disse ele, dando uma espiada atrás do meu cotovelo. Ele parecia ter encolhido desde a última vez em que o vira, na torre de Furnace. Também parecia mais magro, o corpo definhado fazendo o braço inchado parecer maior do que nunca. Ele devia estar pensando algo semelhante, porque olhou para mim e franziu a testa. — Estão alimentando você com suplemento de proteínas?
— Algo assim — respondi, sentindo um sorriso brotar no canto da minha boca, o que pareceu deixá-lo relaxado. Ele se afastou e ajeitou o capuz, ainda vestia a mesma roupa que havia adquirido no shopping um milhão de anos atrás.
— E então, qual é o plano? — perguntou ele. — Vocês conhecem alguma saída?
— Ele conhece — falei, indicando o terno-preto com a cabeça. — Mas primeiro precisamos achar Zê. Ele também está em algum lugar por aqui. Não vou deixá-lo para trás.
O rosto de Simon exprimiu uma careta de desânimo.
— O que foi? — perguntei. — Você o viu?
Ele olhou para mim, depois para o terno-preto, e em seguida por cima do ombro, para a cela do outro lado do corredor. Estava vazia, a porta aberta.
— Ele estava bem ali — disse Simon. — Estava ali desde que a gente chegou aqui.
— E onde ele está agora? — perguntei, sentindo-me tentado a erguer o garoto e sacudi-lo para arrancar as respostas mais rápido. Consegui morder a língua e conter a raiva.
— Não sei — disse ele depois de um tempo. — Eles vieram uns vinte minutos atrás, assim que essa loucura começou. Soldados e aquela mulher, Panettierre. — Ele deu de ombros, olhando os próprios pés como se a localização de Zê estivesse gravada neles. — Vieram e o levaram. Ele sumiu.
DUELO
Voltamos pelo mesmo caminho, na esperança de elaborar algum plano enquanto prosseguíamos. Estava achando que o terno-preto ia tentar me convencer a ir embora sem Zê, a abandoná-lo para que pudéssemos escapar, mas, para minha surpresa, foi ele quem teve uma ideia.
— Eu acho — disse ele, enquanto saíamos da ala de segurança, seguindo apressadamente pelo corredor — que toda a equipe militar vai evacuar.
— Como? — perguntei, tentando ignorar a dor latejante que deslizava pelo meu cérebro enquanto virávamos num corredor. — A pé?
— Muito perigoso — ele respondeu. — Somos numerosos demais na cidade. A maioria dos soldados vai de caminhão, mas as pessoas no comando devem escapar pelo ar, tenho certeza disso.
— Helicópteros — falei, lembrando dos que havia visto sobrevoando o hospital, rezando para que ainda não fosse tarde demais. — Deve ter um heliporto por aqui.
— Sim — disse o terno-preto. — Tem, sim, lá atrás, perto do estacionamento. Vi quando eles me trouxeram. Aposto que, se pegaram Zê, vão levá-lo com eles.
— Por que Zê? — perguntou Simon, o ombro roçando a parede ao dar uma olhadela inquieta para o viking atrás de nós. O terno-preto deu de ombros, desacelerando o passo ao chegarmos a uma enorme porta dupla contra incêndio. Percebi que estávamos de volta ao prédio principal do hospital.
— Porque ele é imune ao néctar — respondi, de repente dando-me conta dessa verdade.
— Ele é imune? — perguntou o terno-preto. — Então não vale arriscar sua vida por ele. Mais cedo ou mais tarde, ele será erradicado. Não tem lugar para gente como ele no...
— ...novo mundo — completei por ele. — Sim, já ouvi falar de tudo isso. Agora cale a boca e continue andando.
Senti a raiva fervilhar dentro do terno-preto, o calor praticamente irradiando de seu corpo, mas ele ficou calado. Balançou a cabeça e se virou. Olhei para Simon, seu queixo estava quase no chão. Ele articulou algo com a boca para mim — Hã? —, e senti mais um sorriso despontar em meu rosto.
O terno-preto nos guiou através de portas e mais portas, em um labirinto que continuava à nossa frente. Dava para escutar o rugido do incêndio nas proximidades, e também gritos de pessoas. Seguimos apressados por mais um corredor, fazendo o máximo de silêncio possível, virando à direita no entroncamento ao final. Ali estava mais claro, já que metade do corredor tinha janelas. Olhei através delas e imaginei, a princípio, que lá fora fosse um campo, a grama ondulante devido à brisa. Demorei um instante para perceber que, na verdade, era um estacionamento, coberto de uma extremidade a outra por soldados e caminhões de exército com camuflagem verde. Também havia um tanque lá fora.
E, atrás de todos eles, estava o gigantesco helicóptero de transporte Chinook, com seus dois rotores girando lentamente.
Todos nos agachamos para ficar abaixo da linha das janelas. Todos, menos o viking, que pairava na penumbra, apenas aguardando uma ordem. Por um instante, nenhum de nós disse nada; apenas escutamos o murmúrio dos motores e a torrente infinita de gritos lá fora. Após um tempo, o terno-preto começou a avançar para as janelas.
— Esperem aqui — disse ele. — Vou dar uma olhada lá fora.
— Bom — disse Simon quando ficamos a sós —, e agora?
Não respondi.
— Porque, pelo que estou entendendo — prosseguiu ele —, a gente vai lutar contra os soldados que deviam nos salvar, é isso? Agora estamos do mesmo lado dos ternos-pretos e dos vikings... Do mesmo lado de Furnace?
— Não estamos do lado deles — retruquei. — A gente só está atrás de Zê.
— Isso tudo é muito louco — disse ele, batendo a cabeça na parede. — Era pra gente estar matando essas aberrações. — Ele apontou para o viking a nosso lado. — Não aquelas pessoas lá fora. Os soldados são os mocinhos, Alex. São eles que sempre tentam salvar o mundo.
— Mas não estão fazendo isso agora — respondi, lembrando o que Zê havia me contado. — Pelo menos esses aqui, não. Vão usar o néctar para fazer os próprios vikings. Você viu o que Panettierre estava fazendo. Ela sacrificaria o mundo inteiro para desvendar os segredos do néctar. Deu pra ver nos olhos dela, Simon. Ela é tão louca quanto o diretor.
— Tem certeza absoluta disso? — perguntou ele. — Já pensou que talvez Zê esteja mais seguro com eles do que conosco? — Contudo, percebi que ele já sabia a resposta. Eles despedaçariam Zê, membro a membro, célula a célula, matando-o lentamente, para descobrir por que o néctar não surtia efeito nele. Seria pior do que a morte; pior que qualquer tipo de tortura. — Já parou pra pensar que talvez essa seja a única chance de se descobrir uma cura? A única maneira de fazer a gente ficar normal de novo?
Eu não tinha uma resposta para isso. E se Simon tivesse razão? E se Zê fosse a chave para descobrir algum tipo de antídoto para o néctar? E se matá-lo significasse curar todos os outros garotos do mundo? Será que eu realmente sacrificaria o futuro da humanidade só para salvar um único garoto — um garoto que eu nem conhecia havia tanto tempo assim no fim das contas? Será que eu trocaria bilhões de vidas por uma?
A resposta era tão inevitável quanto ilógica: sim, claro que eu trocaria.
— Sim, mas é o Zê — respondi.
Simon suspirou, balançando a cabeça. Depois tentou abrir um sorriso cansado.
— Tá bom. Mas depois que a gente tirar ele daqui, eu mesmo vou matá-lo, tudo bem?
— Combinado — respondi. Estendi a mão esquerda mutante, e Simon colocou a dele em cima da minha delicadamente. Não sei por que a gente fez isso, mas foi bom sentir aquele contato, e nós dois parecíamos não querer nos separar. Foi só quando escutamos uma risadinha do terno-preto que nos afastamos.
— Os mariquinhas aí já terminaram? — grunhiu ele. — Se vamos fazer isso, tem que ser agora. — Ele apontou para o estacionamento. — Tem gente demais lá fora para que a gente ataque sozinho. Vou atacar de flanco, tentando atrair a atenção deles para a lateral. Alex, você precisa trazer os vikings para cá, quantos puder. É a única maneira de sair vivo disso aqui.
Ele começou a engatinhar pelo corredor, sua aparência muito bizarra por causa da camisola hospitalar. Olhou para trás apenas uma vez e disse:
— Só não deixe o helicóptero decolar.
Em seguida, o terno-preto atravessou a porta na outra extremidade, entrando no inferno do prédio principal do hospital.
Eu me ergui e dei uma espiada pelo vidro. Vi que o número de tropas lá fora tinha aumentado; pareciam chegar de todas as direções, tendo se retirado do caos no interior do hospital. Vários foram para o helicóptero, mas nenhum arrastava Zê consigo. As hélices rodavam, mas por enquanto não havia sinal de que estava prestes a decolar. Sentei de novo, tentando organizar os pensamentos.
— O que aquele terno-preto quis dizer? — perguntou Simon. — Trazer os vikings para cá?
Não respondi, só fechei os olhos e tentei me concentrar. Não sabia quantos vikings estavam pelo hospital, tampouco se era capaz de me comunicar com todos eles, mas fiz o que pude para visualizar nossa localização, imaginando as máquinas de guerra de Furnace vindo em nossa direção, preparando-se para o ataque ao exército do outro lado da janela, protegendo-nos ali e também dos telhados. A besta ao nosso lado grunhiu, o chão tremendo enquanto ela seguia pesadamente pelo corredor.
— Alex — disse Simon, a voz trêmula —, se é você quem está fazendo isso, pare agora.
Era tarde demais. Abri os olhos a tempo de ver o viking se lançar contra o vidro, numa explosão de cacos reluzindo ao sol como gotas d’água. Ele rugiu, o som lembrando um tigre, e depois começou a correr, as dobras de carne se estendendo até adquirir a aparência de uma rocha sólida rolando em direção à multidão.
A reação dos soldados foi imediata, e as janelas que restavam no corredor se estilhaçaram quando uma chuva de balas chegou até nós. Joguei-me no chão, levando Simon comigo, enquanto as balas rasgavam o ar, cápsulas derretidas caindo ao nosso redor. Era como se estivéssemos no meio de um tornado, com um barulho ensurdecedor e o mundo de cabeça para baixo. Pressionei o rosto contra o piso com tanta força que chegou a doer, esperando sentir a dor de uma bala marcando minha carne.
Mas não senti nada. A tempestade passou — ainda dava para escutar o trovejar de tiros, mas estavam voltados para o lado onde estava o viking. Prendi a respiração, o coração batendo forte demais ao olhar por cima da alvenaria destruída, e avistei a criatura no meio das tropas. Estava marcada com buracos de bala, mas não demonstrava nenhum sinal de ter diminuído seu ritmo de trabalho.
— Diga que não foi você que o obrigou a fazer aquilo — disse Simon, o rosto perto do meu, encarando de olhos arregalados a carnificina.
Escutamos um uivo gorgolejante, e um borrão rosado e negro despencou de uma janela acima de nós, correndo para se juntar a seu companheiro. Reconheci o viking: era aquele que eu tinha visto pela última vez lutando contra as tropas no prédio principal do hospital. Ele se jogou em cima de um grupo de soldados fazendo um barulho que só pode ser descrito como uma risada infantil.
— Que escolha nós temos? — retruquei. — A única maneira de acabar com isso é encontrar Alfredo Furnace e matá-lo. Se o exército não quer nos ajudar, a gente precisa se virar sozinho. Se eles não nos ajudam, são nossos inimigos. Então, que vão para o inferno.
Sentia o néctar dentro de mim falando mais alto. Não sei quanto dele eu ainda tinha — perdi a conta de quantas vezes meu corpo fora drenado e reabastecido —, mas era o suficiente para acabar com aquilo.
No entanto, o fim não precisava ser um banho de sangue.
Enviei mais uma chamada de trombeta, um grito de guerra silencioso, para os vikings de Furnace, e esperava que assim eles chegassem até ali. Então o néctar me fez levantar e saltar da janela para o canteiro de flores logo abaixo.
— Alex! — Simon gritou para mim. — Está maluco? Volte logo pra cá!
Eu estava maluco, sem dúvida. Mas, se a pessoa passou por tudo o que passei, dá para entender muito bem. Com os vikings ainda abrindo caminho em meio às fileiras, os soldados estavam ocupados demais para perceber minha presença. Aproximei-me com passos casuais, o néctar mantendo o medo a distância. Quando pude sentir o cheiro de sangue no ar, parei, ergui as mãos, inspirei o máximo possível e libertei uma única palavra, com volume suficiente para que todo o campo de batalha escutasse:
— Basta!
Ordenei que os vikings parassem, e eles obedeceram. Claro que obedeceram: afinal, eu era o general deles. Um largou o cadáver de um soldado no chão, sacudindo os dedos gigantescos para se livrar do sangue. Outro saltou no teto de um caminhão, resfolegando como um gorila. Assustados, os soldados continuaram atirando, alguns nos vikings, outros em mim. Escutei uma bala passar perto do meu ouvido, zunindo como uma abelha e deixando um rastro de calor no ar. Outra fez um pedaço de concreto voar perto dos meus pés, enchendo-me de pó.
— Eu disse basta! — gritei, a raiva fazendo minha voz reverberar por todo o estacionamento, o eco parecendo demorar um século para sumir. — Parem de atirar, e pouparemos a vida de vocês. Só preciso falar com Panettierre.
Homens e mulheres uniformizados se afastaram, aproveitando o tempo para se reagruparem perto do helicóptero. Tinham sobrado cerca de trinta soldados, a maioria recarregando suas munições, alguns berrando ordens, outros arrastando corpos mortos para longe dos vikings imóveis. Mantive a postura firme, os braços abertos e para cima, tentando mostrar que não era uma ameaça; tentando não dar nenhuma desculpa para que começassem a disparar de novo.
— Panettierre! — gritei, direcionando as palavras para a porta aberta do helicóptero. Os rotores giravam com mais rapidez, o gemido do motor ficando cada vez mais alto. — Sei que está aí dentro.
Nenhuma resposta, mas vi vários soldados virarem a cabeça para a porta, esperando alguma reação. Foi a confirmação de que eu precisava.
— Coronel Panettierre, não vou pedir de novo.
Ela apareceu vestida com o jaleco branco, pequenina diante do enorme helicóptero. Segurava um rádio na mão, e quando falou sua voz foi transmitida pelo alto-falante do helicóptero. Eu estava perto o suficiente para ver aquele mesmo sorriso em seu rosto, uma meia-lua de dentes tão brancos quanto o jaleco.
— Alex — disse ela, os alto-falantes crepitando —, que surpresa.
— O que fizeram com Zê? — perguntei. O som dos rotores continuava aumentando, e me perguntei se ela havia me escutado. Fiz menção de repetir a pergunta, mas ela me interrompeu.
— Ele está aqui — disse ela. — Em segurança, conosco.
— Não vou deixar que o levem.
Dei um passo para a frente, e trinta metralhadoras brandiram em minha direção, todas a postos. Curiosamente, o sorriso de Panettierre pareceu ficar ainda maior, como se houvesse ganchos nas laterais de sua boca.
— Ele quer vir com a gente, Alex. Ele não é como você. Zê quer que tudo isso acabe e vai nos ajudar a vencer esta guerra. — Eu a vi desligar o rádio e berrar algo para a cabine do helicóptero antes de levar o aparelho de novo à boca. — Uma pena saber que está trabalhando para o outro lado. Esperava que tivesse compreendido; que tivesse percebido quem está buscando o bem maior.
Senti uma presença, e não precisei olhar para saber que havia um viking no telhado acima de mim. Tinha outro se aproximando pela lateral do prédio; percebi sua presença intuitivamente, do mesmo modo que alguém sente quando está sendo observado. Não dava para vê-lo, mas sabia que estava lá.
— Não estou trabalhando para eles — repliquei. — Eu contei a verdade pra você. Vou acabar com isso tudo. Estamos do mesmo lado.
— Não, Alex — respondeu Panettierre, a voz em meio à estática. — Não estamos. Não sei no que você realmente acredita, o que acha que está acontecendo. Mas entenda meu ponto de vista. Você é um criminoso condenado. Deu início à fuga da prisão. Soltou monstros nas ruas. Achei que fosse uma vítima, mas aí está você, um monstro, com essas aberrações sob seu comando. Não, não sei o que você é, mas com certeza não é um de nós.
Ela ainda exibia aquele sorriso condescendente que me deixava furioso. Concentrei-me no viking perto de mim, e o imaginei agarrando um dos soldados. Meu controle sobre eles devia ter aumentado, porque, no mesmo instante, a fera se lançou para a frente, puxando a vítima da multidão e segurando-a pelo pescoço. Os demais soldados mudaram a direção da mira, mas não dispararam. Não conseguiriam acertá-lo sem atingir o próprio colega.
— Vamos fazer uma troca! — gritei. — A vida deste homem pela de Zê. Entregue-o, e eu liberto o soldado. Depois daremos o fora daqui e poderemos esquecer tudo isso.
O soldado se debatia como um homem sendo enforcado, batendo pateticamente na mão do viking, e uma pontada repentina de culpa atravessou a tempestade de néctar. O que diabos eu estava fazendo? A criatura olhou para mim, obviamente confusa, e me obriguei a me concentrar novamente. Não queria matá-lo; só queria que me entregassem Zê. Eu estava mesmo fazendo aquilo pelos motivos certos.
Panettierre olhou para o soldado, e pelo menos dessa vez seu sorriso diminuiu. Ela aproximou o aparelho da boca.
— Alex, parece que você não entendeu o que está acontecendo. Este homem, este soldado, está disposto a morrer pelo próprio país, pelo planeta, pelo seu modo de vida. Ele se sacrificaria porque sabe que é o certo. Ele entende isso. Todos esses homens e mulheres corajosos entendem. Até Zê entende. A única pessoa aqui que não entende é você, e é por isso que sei que não está do nosso lado.
— Estou avisando — falei, quase gritando. — Entregue Zê ou esse homem vai morrer.
Uma onda de raiva irrompeu do meu estômago, tão poderosa que minha visão ficou turva, como se uma nuvem escura tivesse encoberto o sol. Os vikings atrás de mim uivaram um para o outro em resposta, como macacos na selva, e Panettierre recuou alguns passos para dentro do helicóptero. Seus olhos pareciam reluzir à meia-luz.
— Se soubesse que estava no comando durante todo esse tempo, teria deixado você morrer naquela torre — disse ela. — É uma pena. Mas não vai ter troca nenhuma hoje, Alex. Nem em nenhum outro dia. Não negociamos com terroristas, nem agora, nem nunca.
A raiva falou mais alto, sendo forte demais para controlar. Antes que eu soubesse o que fazia, vi os punhos do viking fazerem força, os músculos se contraindo. O soldado foi esmagado como uma lata de cerveja vazia, e seu corpo, em espasmos, caiu no chão.
— Não! — falei, dando um passo em sua direção. Queria correr até lá, curá-lo, devolver-lhe a vida, desfazer o que o viking, o que eu, tinha feito. Mas era tarde demais.
Panettierre gritou algo para o interior da cabine, virando-se depois para mim.
— Zê vai com a gente.
O som do motor do helicóptero atingiu um crescendo, e o vi se afastar, trêmulo, do solo. Comecei a avançar, movido pela fúria, imaginando os vikings em ataque, bradando ordens para eles dentro de minha cabeça.
As aberrações gêmeas gritaram, mas, antes que pudessem se mover, escutamos um estrondo ensurdecedor, tão intenso que uma onda de terra e pó invadiu o estacionamento. O caminhão que estava sob o viking desapareceu numa bola de fogo, e a criatura explodiu junto, fazendo suas entranhas negras voarem como uma chuva de fogos de artifício.
Estreitei os olhos por causa do calor, observando o estacionamento. Avistei a torre de tiro de um tanque girar lentamente à procura de outro alvo. O canhão escancarado, ainda fumegante, mirou em mim. O Chinook postou-se acima dele e se inclinou, a voz de Panettierre chegando até mim lá dos alto-falantes:
— O inferno tem um lugar especial para pessoas como você, Alex. Aproveite.
E sua risada amplificada quase abafou o estrondo do tanque que disparava novamente.
MEDIDAS EXTREMAS
Desviei para o lado instintivamente, sentindo o calor da bala do tamanho de uma bola de futebol quando ela rugiu sobre minha cabeça. Deve ter atingido o hospital, porque foi como se os portões do inferno tivessem se aberto atrás de mim, o fogo me engolindo. Meus pensamentos estavam a todo o vapor, milhares deles pisoteando meu cérebro antes que eu sucumbisse. A imensa quantidade deles parecia desacelerar o mundo ao redor, como se tivessem mexido com as leis do tempo.
Imaginei o viking que estava no telhado saltando no helicóptero e agarrando os rotores. De fato, quando olhei para cima, eu o avistei no ar incandescente, em pleno salto, os braços longos se agitando. Escutei mais um violento estrondo quando uma segunda bala do tanque atingiu o hospital, a explosão fazendo o chão tremer. O barulho foi tão alto que nem escutei a metralhadora disparar em seguida; ouvi apenas o zunir das balas e o concreto em polvorosa me avisando que elas tentavam me atingir.
Mais pensamentos, gritando para que os vikings avançassem, para que atacassem. Não pensava mais no que fazia; meu cérebro estava no piloto automático, no modo de sobrevivência. Eram eles ou eu, e eu não iria morrer, não naquele dia, não antes de terminar o que tinha prometido fazer.
Me levantei com dificuldade, o calor, os ruídos e o solo instável fazendo-me sentir como se estivesse em um giroscópio. Mas mantive o equilíbrio e ordenei que os vikings destruíssem tudo o que encontrassem pela frente. Depois comecei a correr, afastando-me da fumaça com tanta rapidez que nenhum dos soldados foi capaz de me acompanhar. Desviei para um dos lados e saltei por cima de um caminhão, caindo no capô de um Hummer militar, que usei como trampolim para me lançar em direção ao tanque. A torre de tiro girou lenta e confusamente, e, quando apontou para a direção em que eu estava, eu já tinha passado por ela e subido no tanque.
De lá, dava para ter uma ideia melhor do que estava acontecendo. Outro viking — uma fera que parecia um minotauro, com a cabeça grande demais para o corpo e a pele chamuscada e fumegante, da cor de carvão — tinha surgido do nada. Estava no meio de um grupo de soldados e parecia estar brincando com eles, como um gato brinca com um passarinho. Sua pele reluzia a cada bala que o atingia, mas, assim como meu braço, ela estava repleta de néctar, impenetrável. A maioria dos militares estava fugindo, mas alguns tinham caído de joelhos, os olhos sem nenhuma emoção, o cérebro parecendo ter sido desligado.
O helicóptero estava em apuros, a trinta metros do solo e girando descontroladamente. Estreitei os olhos para o sol poente e avistei um viking que agarrava as laterais da aeronave, esmurrando o rotor da frente com o punho. Vi a fumaça subindo agitada e escutei as hélices gemendo. Toda vez que o helicóptero descrevia um círculo completo, eu avistava os pilotos atrás do para-brisa e imaginava Panettierre lá dentro, o terror que devia estar sentindo. Só de pensar naquilo eu gargalhei, uma risada insana que subiu pela minha garganta feito bile. Tinha me esquecido completamente de que Zê também estava lá dentro.
Escutei um rangido quando o tanque começou a se mover para a frente, a torre girando lentamente de um lado para outro, tentando em vão me derrubar. Ergui a mão direita, a lâmina reluzindo — metade por causa do sol, metade por causa do fogo —, e depois a lancei para baixo, no espaço entre o teto e a escotilha. Ela deslizou como uma faca na manteiga, e eu a puxei de volta, o ruído do aço cortante invadindo o ar. A escotilha redonda se abriu, revelando dois rostos que piscavam para mim lá de dentro.
A visão despertou uma lembrança distante de quando fiquei na solitária, na prisão, e por um instante hesitei. Os soldados dentro do tanque eram apenas adolescentes, alguns anos mais velhos do que eu. Estavam só seguindo ordens, como Panettierre dissera. Lutavam para salvar o mundo das aberrações que Furnace tinha soltado.
Desviei o olhar e vi o viking cor de carvão com um jovem soldado na boca, bombeando néctar nas veias dele e transformando-o em um rato; vi o helicóptero acertar o telhado do hospital e traçar uma espiral em meio à fumaça; vi cadáveres jogados ao chão; a maioria nem podia mais ser reconhecida como humanos...
Aquilo estava errado, muito errado.
Escutei um estalo, parecido plástico-bolha sendo estourado, quando uma bala atingiu minha lâmina e ricocheteou. Depois mais uma, a cápsula acertando minha barriga. Dentro do tanque, um dos soldados apontava uma arma para mim, pronto para disparar mais uma vez.
Uma visão surgiu contra a realidade — um grupo de pessoas em um jardim condenando um garoto à morte, um garoto como eu. Assim como aquele garoto, eu também tinha sido abandonado e me vingaria.
Mais uma vez, o néctar reagiu antes que eu tivesse tempo de detê-lo, e minha mão se projetou para dentro do tanque, espetando o homem. Puxei-o para fora como se estivesse recheado de penas e sacudi o braço, fazendo-o pairar graciosamente no ar. Nem olhei para ver onde ele caiu. Depois, estendi o braço para dentro do tanque mais uma vez e agarrei o segundo soldado pela cabeça.
Meus dedos ainda não estavam completamente formados, ainda faltava muito, mas consegui agarrá-lo e depois jogá-lo no chão. Ele fugiu rapidamente, e deixei que fosse embora. Não chegaria muito longe.
As tropas tinham recebido ordem de marcha, e alguns sobreviventes batiam em retirada em todas as direções. Eu teria ordenado que os vikings fossem atrás deles, mas não foi preciso. Estavam bem à vontade, soltando gritos chilreantes de prazer enquanto pulavam entre as vítimas até não sobrar nenhuma viva.
Saltei do tanque, a cabeça latejando, cada martelada frenética do meu coração pintando uma rede de veias negras através do mundo. Dava para sentir as emoções além do néctar, acumulando-se como água contra uma barragem prestes a desmoronar. Balancei a cabeça como se assim pudesse afastá-las. Não havia tempo para pensar no que eu estava fazendo, apenas no porquê. Os motivos não importavam, somente o fim. O fim dele.
Estava a meio caminho do hospital quando escutei alguém tossir com tanta força que parecia estar vomitando um pulmão. Ergui a mão, preparando-me para atacar, mas a silhueta arqueada que vi cambalear fumaça afora era com certeza Simon. Corri até ele, guiando-o para longe daquele inferno.
— O que aconteceu? — perguntou ele, massageando um ferimento na testa. — Num instante, você pulou da janela; no outro, acordei em um quarto em algum lugar e o hospital inteiro estava pegando fogo.
— Está tudo bem — falei, e por alguma razão senti-me aliviado por ele não ter visto o que aconteceu. Era melhor assim. Aceleramos o ritmo, andando pela lateral do prédio, e minha habilidade de linguagem ia voltando à medida que o rugido do néctar esvanecia. — O helicóptero de Zê foi parar em algum canto por ali. Parece que sofreu uma queda feia.
— Era uma aeronave grande. — Simon soltou uma tossidela. — Mas ele deve estar bem, a não ser que aquelas coisas tenham pegado ele primeiro.
Ele apontou o viking cor de carvão com a cabeça. A criatura parecia sem ter mais o que matar, porque estava agachado no meio dos mortos, lambendo o sangue dos dedos, semelhante, mais do que nunca, a alguma espécie de gato monstruoso. Entrei em pânico e sem querer imaginei o helicóptero no solo, as aberrações de Furnace despedaçando-o e matando todos lá dentro. A fera deve ter interpretado esse pensamento como uma ordem, porque se levantou e começou a correr de quatro em direção ao hospital.
— Não! — gritei, fazendo Simon pular de susto.
Parei, fechei os olhos e chamei o viking de volta; aliás, chamei todos eles de volta. Não encostem nele, falei, mostrando-lhes o rosto de Zê. Não se atrevam a encostar nele. O monstro parou, olhando para mim com a cabeça inclinada. Esperou que nos aproximássemos e se juntou a nós, andando ao nosso lado como um bicho de estimação. Seu gêmeo rosado também veio correndo até nós, com uma dúzia de orifícios no peito e sem um dos braços. No entanto, ele não parecia estar sentindo nem um pingo de dor e, curioso, farejou o outro viking antes de nos acompanhar. Simon ficou colado em mim como uma criança que caminha ao lado da mãe em um beco escuro, tão grudado que achei que fôssemos tropeçar um no outro.
Chegamos ao final do estacionamento, seguindo pela lateral do hospital rumo à entrada principal. Havia ali espessas colunas de fumaça subindo de todas as direções, e rezei em silêncio, pedindo que não fossem do helicóptero. E se a queda tivesse sido muito feia? E se todos tivessem morrido? Se Zê estivesse morto; se eu o tivesse assassinado, enfiaria minha lâmina no meu próprio crânio bem ali, não importava minha promessa de acabar com Furnace.
A meio caminho do prédio principal, encontramos o terno-preto. Ele também estava coberto de sangue, e não era o dele. Esfregava as mãos como se comemorasse um trabalho bem-feito.
— Vi você passar por cima da minha cabeça — disse ele, quando contei para onde íamos.
Ele assumiu a liderança, correndo, e completamos o restante do caminho em um segundo. Escutamos o helicóptero antes mesmo de vê-lo, os bipes abafados do alarme parecendo um monitor cardíaco, indicando que ainda estava vivo. Derrapei perto dele, tamanha a velocidade com que escorreguei no cascalho, e caí. Simon me ajudou a levantar, e corremos juntos para o jardim bem cuidado onde a aeronave tinha caído.
Jorrava fumaça dos rotores — que ainda tentavam girar apesar de o helicóptero estar de lado, com as hélices quebradas —, mas por sorte ele não tinha pegado fogo. A porta estava aberta e virada para o céu, um soldado de cada lado ajudando as pessoas a sair. Um terceiro estava de sentinela no chão e, quando nos viu, ergueu a arma.
— Lá vêm eles! — gritou, apontando o rifle em nossa direção.
Quando fiz menção de reagir, o terno-preto já estava em ação, percorrendo os últimos vinte metros antes mesmo que o soldado pensasse em puxar o gatilho. Com um murro, fez o soldado sair voando e a arma caiu ruidosamente no chão, fora de seu alcance. Passei correndo pelo terno-preto e saltei na base tombada do helicóptero, com Simon a meu lado. O viking cor de carvão nos seguiu, tão pesado que as paredes de metal do helicóptero rangeram, curvando-se para dentro. Ordenei que ficasse parado, e ele obedeceu, observando-me com seus olhos prateados.
Os soldados estavam armados, mas sabiam que tinham sido derrotados. Jogaram as armas no chão e ergueram as mãos. Dava para ver, pelo olhar deles, que sabiam estar à beira da morte. Estavam com medo, mas também com uma expressão desafiadora estampada no rosto.
— Não quero que mais ninguém se machuque — falei, levantando meus próprios braços. — Isso já foi longe demais. — Os homens não responderam, apenas me fulminaram com o olhar. Se olhares matassem, eu já estaria morto havia muito tempo. Empurrei-os para trás, olhando para a porta aberta do helicóptero. Alguns recuaram ao ver meu rosto. Virei-me para Simon. — Vou entrar.
— Vou com você — gaguejou ele em resposta. — Não vou ficar aqui fora sozinho de jeito nenhum.
Assenti e falei para os soldados:
— Se algum de vocês se mexer, aquela coisa vai comê-los. Entendido?
O viking grunhiu na mesma hora, e os homens balançaram a cabeça em concordância. Dei uma olhada para ver se o terno-preto ainda estava lá vigiando e saltei para a porta aberta.
Era difícil enxergar em meio a tanta fumaça, e meus olhos lacrimejaram assim que entrei. Dava para ver silhuetas embaçadas de umas dez ou quinze pessoas aglomeradas no fundo do helicóptero, uma mistura de uniformes médicos e militares. Esperei os disparos começarem, a lâmina da mão erguida para proteger o rosto, mas nada aconteceu.
— Alex? — alguém perguntou.
— Espere! Zê! — disse outra voz, de mulher.
Então um vulto minúsculo de roupa militar começou a correr em minha direção. Os braços de Zê envolveram minha cintura, e ele lançou um sorriso radiante para mim. Outra pessoa se separou do grupo, também de roupa camuflada. Ela deu alguns passos hesitantes para a frente, seguindo Zê. Demorei um pouco para reconhecer a garota, a mesma que me dera o medalhão de São Cristóvão. Seus olhos se arregalaram ao ver quanto eu tinha mudado, o que eu havia me tornado, mas ela não se afastou.
— Lucy — falei. — Zê. Vocês estão bem?
Outra voz respondeu por eles, a de Panettierre. Ela estava parada no meio do grupo, finalmente sem aquele sorrisinho.
— Você não desiste, não é? — retrucou ela. Escutei um estrépito lá em cima, e depois um grito sufocado quando Simon caiu dentro do helicóptero. Ele viu Zê, e os dois se abraçaram rapidamente, dando tapinhas nas costas um do outro. Panettierre esperou que terminassem antes de prosseguir: — Está contente agora, Alex? Está contente com o sangue de meus homens e mulheres em suas mãos; contente por ter obrigado o mundo a admitir sua derrota?
— Não — respondi. — Ainda não. Tem mais uma coisa que preciso fazer antes de poder sorrir. — Ergui a mão direita, estendendo-a a Panettierre. Ela contraiu o corpo, mas não se mexeu. Não tinha para onde ir. Escutei uma chuva de gritos e súplicas sutis das pessoas ao redor dela, algumas ajoelhando-se no chão. Mas, quando Panettierre falou, seu tom era firme:
— Então é melhor fazer logo. É melhor me matar. Porque vou continuar perseguindo você, Alex. Precisamos dele. Se ele é imune ao néctar, podemos encontrar uma maneira de tornar os outros imunes também. Precisamos dele para encontrar uma cura.
— Vocês precisam despedaçá-lo, é o que está dizendo — retrucou Lucy, apontando o dedo para a coronel, como se desejasse que suas mãos fossem armas também. — Era pra você nos ajudar, não nos matar.
— Já conversamos sobre isso — respondeu Panettierre, o vigor em seu tom de voz diminuindo. — Você concordou, Zê. Entendeu que às vezes sacrifícios precisam ser feitos; que algumas pessoas precisam morrer para que outras possam viver.
Olhei para Zê, que deu de ombros.
— É bem difícil discordar quando se tem uma arma apontada pra você — disse ele. — Sou totalmente a favor de acabar com a guerra, para as coisas voltarem ao normal. Mas, sabe, prefiro encontrar uma maneira que não envolva ficar em pedacinhos numa mesa de cirurgia.
— É isso aí — disse Simon, afastando a fumaça do rosto. — Vamos dar o fora daqui enquanto ainda podemos.
— Só um segundo — falei, dando um passo à frente e estendendo o braço como uma lança, a ponta na garganta de Panettierre.
Só um golpe, era tudo de que eu precisava. Alguém como Panettierre não merecia sobreviver. Ela era uma assassina, pior do que todos os outros; era um monstro, prestes a se transformar num diretor Cross. Dentro de sua cabeça, ela provavelmente achava que estava salvando o mundo. No fundo, ela queria poder; queria o néctar. Apostaria meu olho direito que, se ela tivesse tido a oportunidade de trocar de lugar com Alfredo Furnace, de liderar o exército dele, teria aceitado sem pestanejar. Ela merecia morrer.
Senti uma mão no meu braço.
— Pare, Alex, não vale a pena fazer isso por causa dela — disse Zê. Ele me segurava com seus dedos fracos, mas para mim eles pareciam mais uma âncora de aço, era como se seus dedos atravessassem a carne deformada do meu novo corpo e tocassem meu antigo eu, meu eu humano. — Muito sangue já foi derramado hoje. Vamos, deixe ela pra lá.
Encontrei os olhos de Panettierre, dois poços de escuridão no interior sem luz do helicóptero.
— Estou falando sério — sussurrou ela. — Não vou parar de persegui-lo, Alex. Você entende muito bem de promessas, e esta é a minha. Não vou desistir.
Olhei de novo para Zê, que balançava a cabeça em uma negativa. Depois olhei para Lucy e Simon. Os dois me encaravam, e eu sabia o que viam: um monstro ensopado de sangue que, de tão deformado e retorcido, era quase irreconhecível. Abaixei a mão ao me ver pelos olhos deles: uma aberração, um assassino. E de repente me senti tão tomado pela vergonha que não consegui respirar. Era como se a barreira enfim tivesse se rompido, a muralha de néctar desmoronando e as emoções escorrendo em meio aos destroços. Teria chorado, eu acho, se me lembrasse de como era chorar. Em vez disso, fiquei apenas parado ali, sentindo-me vazio.
Zê deve ter percebido meu estado, pois segurou meu braço com mais força e me puxou para trás, afastando-me dali.
— Deixe que ela venha atrás da gente — ele murmurou. — Pessoas piores do que ela já tentaram fazer isso.
— Não vale a pena ter mais uma morte pesando em sua consciência — acrescentou Lucy.
Ela tinha razão. Sentia que, com mais um assassinato, eu poderia perder a cabeça de vez, os últimos fragmentos de mim mesmo afundando dentro do néctar, desaparecendo para sempre.
— Bom, se ela tentar nos impedir de sair deste hospital, você tem minha total permissão para matá-la de uma vez por todas — disse Simon, olhando para Panettierre. — Estamos combinados?
Ela estendeu as mãos, fingindo se render, o sorriso parecendo o de uma boneca mal pintada. Simon foi o primeiro a deixar o helicóptero, estendendo a mão para ajudar Zê e depois Lucy. Parei e olhei para Panettierre. Era loucura, não era? Deixá-la viver? Todos os meus instintos diziam para matá-la, não só como vingança pelo que tinha feito, mas também para me proteger do que ela prometera fazer.
Porém, não a matei, apesar de parte de mim saber que aquela decisão me assombraria novamente. Deixei-a lá, parada, encoberta pelas sombras, seu ódio e sua raiva formando uma maré invisível que pareceu fazer a temperatura do helicóptero cair uns dez graus. Projetei-me para cima, agarrando a extremidade da porta com a mão de tocos deformados, ficando pendurado por um instante.
No meio da escuridão, Panettierre falou. E não sei se foi coincidência ou destino, mas eu já tinha ouvido aquelas palavras antes, muito tempo atrás, talvez em outra vida, na casa de um desconhecido, depois que Toby levara um tiro, quando fui incriminado pelo assassinato dele e empurrado rua afora pelos ternos-pretos. De qualquer maneira, aquilo fez meu sangue congelar, e calafrios subiram pelo meu corpo junto com o eco enquanto eu me lançava à luz do sol:
— Boa sorte, Alex. Corra o mais que puder. De todo modo, logo vamos nos ver de novo.
DECISÕES
Quando saí do helicóptero, achei que estivéssemos sob ataque novamente. Lucy gritava, Zê também, e os dois pareciam prestes a voltar para dentro da aeronave.
Demorei um instante para identificar a origem do pânico — o viking que estava em cima do helicóptero tombado. Ele mostrava toda a sua agressividade, e um grunhido indefinido emanou de sua garganta, apesar de eu estar no controle da criatura. Demorei bem mais que um instante — talvez mais que um minuto — para acalmar a dupla e conseguir explicar o que estava acontecendo.
— Está dizendo que consegue controlá-lo? — perguntou Zê, o rosto transformado pela descrença. Eu me concentrei, ordenando em silêncio que a fera mantivesse distância e nos desse espaço. Ela obedeceu, saltando para o chão e se retirando para um canteiro de flores, onde ficou encarando o sol poente sem nenhum motivo aparente. Zê abriu a boca, mas eu já sabia o que ele ia perguntar.
— Não sei como — respondi. — Consigo, e pronto. Os vikings salvaram minha vida. E a de vocês também.
— Está falando daquele lá no helicóptero? — perguntou Lucy. — O que nos derrubou?
— Sim.
— Você disse para ele pular no helicóptero, e ele obedeceu? — perguntou Zê. — Achei que eles não entendessem nossa língua...
— E não entendem. — Eu me esforcei, mas não sabia como explicar. — É como se pudessem escutar meus pensamentos; como se eu pudesse enviar mensagens pra eles. Não palavras, apenas imagens; como se eu conseguisse transmitir coisas para a cabeça deles.
— Assim como Furnace faz? — perguntou Zê, e as palavras dele fizeram minha pele se arrepiar.
— N-não — gaguejei, desviando o olhar e tentando não pensar nas consequências do que Zê sugeria. — Não é a mesma coisa. Não sou como ele.
— Então agora os vikings são seus bichinhos de estimação? — perguntou Lucy.
— Tem um terno-preto com a gente também — respondi, tentando ignorar o tom irônico na voz dela. — Aceitem esse fato, tá? Ele pode nos ajudar a sair daqui. — Abaixei o tom de voz, para que o terno-preto lá embaixo não nos escutasse. — Ele pode nos levar até Alfredo Furnace.
Senti certa movimentação no Chinook e escutei vozes. Saltei para o chão, oferecendo minhas mãos para ajudar Zê e Lucy. Eles olharam bem para o meu braço, uma lança afiada apontada para cima, e claro que balançaram a cabeça em recusa, preferindo descer sozinhos. Simon os seguiu, aterrissando a meu lado. Ele olhou para Zê, depois para Lucy, e franziu a testa.
— Por que vocês estão com esses uniformes legais? — murmurou ele, olhando para as próprias roupas esfarrapadas. — Não é justo.
O terno-preto apareceu do outro lado do helicóptero, e por um instante nós todos ficamos parados, constrangidos, sem saber o que dizer. Foi o terno-preto que acabou com o silêncio.
— Que comovente — murmurou ele. — Amigos reunidos. Querem um tempinho para dar uns amassos ou podemos ir?
— Achei que não tivessem inteligência suficiente para ser sarcásticos — disse Zê, embora estivesse escondido atrás de mim, olhando o terno-preto por trás da dobra do meu cotovelo.
O terno-preto sorriu com desdém, virou-se e começou a correr para longe do prédio em chamas. Fomos em seu encalço, os dois vikings saltando a nosso lado.
Atravessamos o jardim e chegamos a uma pequena rotatória — um indício de que a saída era por ali. Devo ter olhado para trás umas cem vezes enquanto caminhávamos, conferindo a porta do helicóptero e esperando Panettierre aparecer com um lançador de foguetes nas mãos, pronta para nos atacar até o mundo enfim se acabar. Mas não vi nenhum sinal dela, e cinco minutos depois o hospital já estava fora do meu campo de visão, atrás de um monte de árvores.
— Eles deviam ter me deixado matá-la — murmurei baixinho enquanto corria para alcançar os outros.
Chegamos a uma rua principal, suas quatro faixas desertas. O único veículo à vista era um caminhão militar estacionado perto dos portões do hospital, e o terno-preto correu até ele, a roupa esvoaçando enquanto desaparecia cabine adentro.
Olhei para a esquerda, onde uma enorme nuvem negra pairava acima da cidade, como em um daqueles filmes de terror em que forças estranhas são enviadas dos céus. No entanto, a nuvem não passava de fumaça — tanta que parecia ter anoitecido dentro daqueles quilômetros quadrados, muros de escuridão se erguendo e ameaçando nunca mais permitir a entrada do sol. Não importava para onde eu me virasse, a dor em minha cabeça apontava para aquele lugar. Era como se houvesse uma guia dentro do meu crânio, um fio que me puxasse naquela direção. Era exatamente essa sensação: uma guia dentro de mim.
— E aí, qual é o plano? — perguntou Zê, arregalando os olhos ao avistar o horizonte doentio.
— Você sabe qual é — respondi. — O de sempre.
— Você vai atrás dele — disse Lucy, do meu outro lado. — Vai atrás de Furnace.
— E eu tenho escolha? — perguntei. — Olhem para esta cidade! Ela virou um cemitério. Até onde será que isso se espalhou?
— Até bem longe — disse Zê. — Vimos o noticiário enquanto você estava inconsciente. Quando o noticiário ainda era transmitido. Já atingiu o país inteiro, e ultrapassou as fronteiras também. O país está em quarentena.
— Disseram que milhões já morreram — acrescentou Lucy, quase chorando ao dizer aquelas palavras. — E isso sem contar... as crianças que foram transformadas.
Ela olhou para mim, e vi ódio em seu olhar, que desapareceu em menos de um segundo, após ela conseguir controlá-lo, mas lá no fundo ele ainda fervilhava. Ela baixou a cabeça e engoliu em seco, e fiquei com a impressão de que estava mordendo a língua. Zê se aproximou, enroscando sua mão na dela, e a apertou. Lucy não a soltou. Uma pontada de ciúme doeu em meu peito, e pensei em como as coisas seriam diferentes se fosse Zê que tivesse sido transformado e eu ainda fosse normal. A fantasia era dolorosa demais, e tentei me desvencilhar daqueles pensamentos, voltando a prestar atenção na cidade.
— Só tem uma coisa que a gente pode fazer — disse eu. — Ir atrás da polícia ou do exército não vai dar certo. Agora a gente sabe disso; eles só vão tentar nos matar. E para quê? Para criar os próprios monstros. — Ninguém contra-argumentou. Como poderiam? Todos nós tínhamos visto com nossos próprios olhos. — A gente também não pode se esconder. Não para sempre. O país já era, sucumbiu. Pra onde a gente vai, não importa mais; nunca estaremos em segurança.
— A gente pode tentar achar um barco — disse Lucy. — Tentar ir para outro país.
Percebi alguma coisa reluzindo, lançando luz contra a pele dela, e lembrei do medalhão de São Cristóvão em meu pescoço. Fiquei impressionado por ele ainda estar ali depois de tudo por que tinha passado. Esperava que fosse um bom presságio.
— Você me fez prometer uma coisa quando me deu isso — falei, tocando carinhosamente o medalhão com meus dedos recém-criados. — Você me fez prometer que eu faria tudo voltar ao normal. E é o que vou fazer: farei isso matando Furnace. Foi o que prometi pra você e todos os outros. Não vou desistir agora.
Ela olhou para o medalhão, hipnotizada, e assentiu.
— Mas você pode ir embora — falei. — Eu entenderia.
Zê, Lucy e Simon se entreolharam, e os três deviam estar lendo a mente um do outro, porque todos balançaram a cabeça em negativa ao mesmo tempo.
— E deixar você levar todo o crédito? — disse Simon. — De jeito nenhum, cara. Também quero minha medalha.
— Mesmo que tiver de arriscar a vida por ela? — perguntei. Ele soltou um resmungo, balançando o braço maior para afastar aquelas palavras.
— Está brincando? Escapamos da pior prisão do mundo, matamos o diretor, lutamos contra os vikings dele e sobrevivemos, enfrentamos o exército e vencemos. Não dá pra ficar muito mais perigoso do que isso. Aposto que, comparado com a gente, Furnace é o maior maricas. Vamos encontrá-lo e resolver logo isso.
Era impossível resistir ao entusiasmo dele, e, antes mesmo de ele terminar de falar, nós quatro já estávamos rindo.
— O maior maricas, é? — falei, o peito ofegando.
Me perguntei se Furnace não estaria ouvindo a conversa, como parecia acontecer sempre, e tentei imaginar o que ele acharia do insulto. Me senti tentado a lhe perguntar, mas não me atrevi. Nossa risada era apenas um barco a remo boiando em um lago de medo, pronto para ser sugado pela água a qualquer momento. A ideia de encontrar Furnace ainda me deixava apavorado, ainda mais depois das visões que eu tivera — o garoto com o sangue do desconhecido. Eu me contentei em responder:
— Espero que tenha razão.
— Claro que tenho — disse Simon. — Dá pra sentir. Ele vai cagar nas calças quando vir a gente, quando vir o que você consegue fazer com os vikings dele.
— Pois é — disse Lucy, rindo. — Acho bom ele ter um monte de papel higiênico, onde quer que esteja.
Então caímos na gargalhada, rimos tanto que eu mal conseguia ficar em pé; tanto que só percebemos que o terno-preto tinha ligado o motor do caminhão quando ele se aproximou da gente. Ele deu uma olhadinha pela janela, levantando as sobrancelhas, e vê-lo nos encarando como um pai rigoroso me fez gargalhar ainda mais, até me curvar e achar que nunca mais seria capaz de respirar normalmente. Me encostei na lateral do caminhão, ofegante, lágrimas escorrendo por meu rosto, enquanto os vikings nos observavam com muita curiosidade, soltando os próprios grunhidos bizarros, semelhantes a risadas.
Não sei quanto tempo demoramos para nos recompor e entrar no caminhão. Me sentei no banco do passageiro, encolhendo meu corpo mutante naquele espaço, a cabeça roçando o teto. Estendi o braço, mexi em uma alavanca e deslizei o banco para trás, fazendo Zê soltar um grito enquanto ele, Lucy e Simon entravam no caminhão.
— Deixe um espacinho pra mim — resmungou Zê. — Estou sendo esmagado aqui.
— Pare de reclamar — falei. — Suas pernas são minúsculas.
Mas ele não parou de se queixar, e, suspirando, estendi o braço novamente, mexendo no banco até ele enfim deslizar para a frente alguns centímetros. Quase caímos na gargalhada de novo.
— Está confortável aí? — perguntou o terno-preto, a voz com um traço de sarcasmo.
— Acho que sim — respondi. O acesso de riso tinha me deixado completamente exausto, mais do que a luta, mais do que o medo e a raiva. Mas não era de surpreender. Quer dizer, a pessoa se entrega mais rindo do que fazendo qualquer outra coisa, eu acho. Olhei pelo para-brisa, a cidade nublada à nossa frente, tão escura que alguém parecia ter jogado uma lona sobre o caminhão. — E então, para onde vamos?
O terno-preto ficou me encarando.
— Que foi? — perguntei.
— Como diabos eu vou saber? — disse ele após um tempo. — É você que está no comando. É com você que ele tem falado. Ele não disse para onde quer que você vá?
Ele tinha dito, percebi. Aliás, estava me dizendo bem naquele instante, com a dor latejante no meio da minha testa, a guia que arrastava meu cérebro, puxando-me para a frente.
— Vá para o sul, pelo meio da cidade — falei.
— Tem certeza? — perguntou o terno-preto, colocando o caminhão em movimento.
Uma imagem surgiu bruscamente, cobrindo a realidade como uma camada de sujeira: uma ilha, com ondas batendo nos rochedos. Mas, em menos de um segundo, ela desapareceu. E, se já não tivesse certeza antes daquela visão, certamente teria depois de tê-la visto.
— Tenho, sim — disse, piscando para que os vestígios da imagem desaparecessem. — Para o sul. O litoral. É lá que Furnace está.
E eu também sabia de outra coisa, algo tão inacreditável, mas ao mesmo tempo tão incontestável:
— Ele está nos esperando.
CIDADE DOS MORTOS
A cidade era um lugar de fantasmas e coisas mortas, e passamos por ela em silêncio.
Não conseguia acreditar no que via pelo vidro imundo das janelas do caminhão. Era como se todo ser vivo tivesse sido sugado das ruas e dos prédios, deixando uma casca vazia, uma estrutura seca que murchava e desmoronava em todas as direções. Seguimos pela autoestrada rumo ao sul, em direção ao centro da cidade, ladeados por um subúrbio deserto. Então os prédios começaram a aparecer em meio à névoa, alguns ainda em chamas. Pareciam tochas, e as colunas de fumaça, barras de uma cela que tornava a cidade prisioneira.
Os dois vikings acompanhavam o avanço do caminhão, apesar de nos movermos a mais de oitenta quilômetros por hora pelos breves trechos de estrada que estavam livres. Caminhavam ao nosso lado, apoiando-se nos quatro membros — ou em três, no caso da fera sem um dos braços — e desaparecendo de nosso campo de visão de vez em quando, toda vez que sentiam o cheiro de algo que pudesse estar vivo, no entanto sempre voltavam a nos alcançar.
Tivemos que desacelerar à medida que nos embrenhávamos mais na cidade, pois as ruas estavam lotadas de carros e cadáveres. A maioria dos prédios tinha queimado por completo, parecendo tocos enegrecidos de dentes se soltando do concreto. Reconheci alguns, ou pelo menos achei ter reconhecido. A maior parte era apenas uma sombra do que tinha sido.
O chão estava chamuscado, ainda irradiando tanto calor que achei que corríamos o risco de entrar em combustão espontânea. O cheiro era o pior de tudo, uma mistura de borracha queimada, concreto superaquecido e o odor putrefato inconfundível de carne se decompondo. Ele arranhava minha garganta, formando um punho cerrado em minhas entranhas. Se eu estivesse com algo na barriga, teria vomitado.
O caminhão era grande o suficiente para abrir caminho entre os carros parados. Quando encontrávamos algo maior, eu chamava os vikings e ordenava que liberassem a estrada. Era difícil, e nem sempre eles queriam — era como se só cumprissem com facilidade as ordens que envolvessem banho de sangue. Mas, com um pouco de paciência, obedeciam, e até trabalharam juntos para tirar um enorme caminhão de combustível da rua.
— Talvez até consiga domesticá-los — disse Zê enquanto víamos o cilindro reluzente de metal quicar ladeira abaixo, derramando gaso-lina ao colidir com um prédio empresarial. Ele detonou alguns minutos após retomarmos o caminho, a onda causada pela explosão nos lançando para a frente. Olhei para a bola de fogo no retrovisor, perguntando-me se havia alguém vivo para ver aquilo.
— Isso não pode ser real — disse Lucy enquanto o caminhão rugia pelo que eu lembrava vagamente ser o bairro dos teatros. O enorme obelisco de pedra do lado de fora da estação de metrô tinha sido ceifado pela metade, jazendo agora no meio da rua principal. Desaceleramos e, quando estávamos quase no obelisco, percebemos que havia cadáveres ao longo dele, como bonecas numa prateleira. — Eu estive aqui, tipo, umas três semanas atrás. Com minha mãe. A gente veio ver Grease Revival. Agora parece que foi, sei lá, há um milhão de anos. Não sei nem se ela está...
Ela cobriu a boca com a mão e fechou os olhos. Não estava chorando. Parecia que suas lágrimas já tinham se esgotado. Talvez não tivessem sobrado lágrimas em nenhum de nós. Pelo menos, era o que eu achava.
— Sua mãe está bem — disse Zê. — A gente vai encontrar ela.
Lucy o ignorou, inclinando-se para a frente e segurando o encosto do banco do motorista, falando com o terno-preto enquanto nos aproximávamos do gigantesco pilar.
— Está gostando do que está vendo? — perguntou ela. — Era isso que queria? Olhe só estas pessoas. Olhe para elas!
Ele olhou, virando a cabeça e analisando os corpos cujos olhos não piscavam mais, a cena me fazendo lembrar de corvos em cima de um fio telefônico. E, quando ele riu, sua risada estrondosa e profunda em harmonia com o tom do motor do caminhão, Lucy o atingiu, esbofeteando-o sem parar, gritando com ele. O caminhão deu uma guinada enquanto ele tentava afastá-la, e Zê e Simon tiveram que obrigá-la a se sentar de novo.
— Acho bom tomarem conta dela — disse o terno-preto, pisando no pedal e virando à direita. — A não ser que ela queira terminar morta como esse pessoal aí fora.
No entanto, tinha algo na voz dele, não exatamente um tremor, mas algo semelhante. Quando ele virou na esquina seguinte, percebi que segurava o volante com tanta força que suas juntas tinham ficado da cor de uma folha de papel velho.
— Filho da mãe — sussurrou Lucy lá de trás, batendo os punhos no colo. — Sua hora vai chegar. A gente não vai precisar de você pra sempre, sabia?
Depois de alguns minutos, vimos o primeiro rato. Ele apareceu do nada, se lançando por cima de uma pilha de lixo e atingindo a lateral do caminhão com tanta força que ricocheteou, caindo estatelado no chão como um inseto de ponta-cabeça. Parecia não se lembrar do que devia fazer para levantar, e ficamos observando a criatura se debater e remexer enquanto o caminhão seguia em frente. No entanto, a imagem do rosto do rato ficou comigo por muito tempo depois de ele ter sumido de nosso campo de visão — era uma garota que não devia ter mais do que dez anos, o rabo de cavalo ainda feito e óculos vermelhos pendurados em um cordão ao redor do pescoço.
Também vimos outros, seus olhos escuros nos observando dos prédios destruídos. Mais alguns atacaram, porém estavam fracos e lentos, e os vikings acabaram com eles rapidamente. Imaginei que já deviam estar à beira da morte, caso contrário teriam saído dali havia muito tempo para seguir o som da trombeta de Furnace quando ele ordenara que se espalhassem e atacassem novas vilas e cidades.
Ou talvez não tivessem saído dali porque parte deles lembrava que já havia sido feliz naquela cidade; porque lá no fundo, por trás da força dominante do néctar, todos se lembravam de quem eram. Não pela primeira vez, pensei no fato insuportavelmente cruel de o néctar só funcionar em crianças, no fato de os adultos serem poupados de seu poder. Vi o rosto das crianças de Furnace enrijecer depois que os vikings acabavam com elas e rezei para um deus no qual não acreditava, pedindo que elas fossem para um lugar bom.
Quando chegamos à Ponte do Monumento, o sol empalidecido pela fumaça desaparecia atrás dos poucos arranha-céus que ainda restavam. O terno-preto ligou os faróis do caminhão, tingindo as ruínas da cidade com uma luminosidade sinistra e tremeluzente, como se os fantasmas dos mortos estivessem ressurgindo do asfalto fumegante. Ele seguiu à mesma velocidade lenta mas constante enquanto atravessávamos aquele trecho, o ruído dos pneus mudando de tom. Embaixo de nós, o rio estava tão negro quanto piche, mas havia movimento na água, silhuetas inchadas que subiam e desciam com a maré.
— Pare aqui um instante — falei para o terno-preto.
Ele murmurou algo mas obedeceu, parando o caminhão no meio da ponte. Lutei para destravar a porta, pois meus dedos ainda não davam conta de uma tarefa tão delicada, mas acabei conseguindo abri-la. Caminhei até o muro de proteção da ponte e dei uma olhada por cima dele.
— Que foi? — perguntou Zê, correndo para o meu lado. — É melhor a gente não parar aqui. Não é... — Então ele olhou para baixo, e as palavras secaram em sua garganta.
O rio estava cheio de cadáveres; centenas, talvez milhares deles, todos boiando lentamente por sob a ponte, como troncos. O aglomerado de mortos era tão intenso que mal dava para ver a superfície do rio, a carne dos corpos e as roupas esfarrapadas ondulando, numa imitação cruel do movimento da água. Havia inúmeras gaivotas e outras aves em cima dos corpos, pegando carona no banquete móvel rio abaixo — davam gritos tão altos, tão parecidos com gritos humanos que por um instante terrível achei que fossem os mortos nos chamando.
— São tantos — sussurrou Zê. — Como isso aconteceu?
Balancei a cabeça. Não tinha nenhuma resposta para dar. Virei-me, os ombros caídos, mas Zê agarrou meu braço e apontou para alguma coisa na água.
— O que é aquilo? — perguntou ele. — Ali, olhe.
Acompanhei o dedo dele, tentando ver sobre o que ele estava falando. Então vi uma silhueta tentando se erguer entre dois cadáveres, um corpo da cor de ossos úmidos, dois braços de aranha se lançaram para cima, envolvendo o que fora uma mulher de vestido vermelho e puxando o corpo lentamente para debaixo d’água. A cabeça da criatura foi a última coisa a submergir, e ela pareceu olhar para nós com seus olhos enegrecidos pelo néctar. Depois desapareceu, uma cabeça inchada preenchendo o espaço onde ela estava antes.
— Será que era um viking? — perguntou Zê, puxando o casaco militar para mais perto do pescoço. — Eles também estão na água?
Voltei para o caminhão, o cérebro tentando, ao mesmo tempo, entender e esquecer o que tinha acabado de ver. Lucy e Simon olhavam pela janela, observando-me com ansiedade.
— Não é nada — disse eu, antes que perguntassem. — Deixem pra lá. Vamos embora.
Pulei de volta para dentro do caminhão e bati a porta. O terno-preto tinha deixado o motor em ponto morto e, depois que Zê entrou, ele colocou o caminhão em movimento novamente. Os faróis eram bem claros, mas a fumaça amenizava o brilho deles; era como se estivéssemos dirigindo em meio à névoa. Então o sol quase invisível enfim se pôs no horizonte, e anoiteceu imediatamente, como se alguém tivesse desligado um interruptor. Percebi que os postes de iluminação estavam funcionando. Do lado de fora do caminhão, os vikings uivavam um para o outro, e também ouvimos outros ruídos, berros e uivos distantes, criaturas comemorando a escuridão. Era óbvio que a cidade estava menos deserta do que eu havia pensado.
— Por onde vamos agora? — perguntou o terno-preto quando chegamos ao fim da ponte, parando no semáforo, apesar de este não estar funcionando.
— Continue indo para o sul — respondi, pensando na ilha.
— É seguro ficar aqui fora no escuro? — perguntou Lucy, deslizando mais para a frente no banco. — Talvez a gente deva achar um lugar para se proteger.
Estava tão escuro que o mundo do outro lado do para-brisa parecia ter sido apagado. O terno-preto semicerrou os olhos para conseguir enxergar, aumentando a velocidade do motor aos poucos. Algum tipo de ser gritou, o barulho vindo de algum lugar acima de nós. Imaginei os prédios da região, ratos se arrastando lá dentro, esperando para atacar. O terno-preto devia estar pensando a mesma coisa, pois assentiu.
— Vamos dar logo o fora desta cidade — disse ele. — Vai ser mais seguro do outro lado.
Ele nos levou em frente, contornando a imensa carcaça de um tanque que havia aparecido no meio da rua, ocupando um trecho que se inclinava em diagonal à esquerda. Um dos vikings que nos escoltava — aquele parecido com um minotauro — lançou-se para o lado, e seus punhos gigantes golpearam um vulto, mas não consegui ver o que era.
— Por que os ratos ainda estão nos atacando? — perguntei ao terno-preto.
— Porque o cérebro deles virou papa — respondeu ele sem hesitar. — Eles são a versão de Furnace de uma arma biológica, uma medida de curto prazo para dominar e conquistar o inimigo. Eles só pensam em violência, em atacar, morder e injetar o néctar em suas vítimas.
— Como um vírus — falei.
— Sim, como um vírus. Não se importam com quem vão infectar. Os adultos morrem porque o néctar não funciona neles. O líquido os corrói de dentro para fora. A maioria das crianças se torna um rato, mas algumas vão além.
— Vikings.
O terno-preto fez que sim com a cabeça, acelerando à medida que as ruas ficavam mais livres. O barulho do motor fazia o caminhão todo vibrar, e precisei me aproximar para escutar o que ele falou em seguida:
— Aqueles que a gente conseguir pegar a tempo, que conseguirmos programar, operar, vão se tornar ternos-pretos. Mas eles ainda são poucos; não tivemos tempo. Estamos na fase um: choque e pavor. Os ratos não foram criados para viver muito tempo, só alguns dias, uma semana no máximo, isso se lembrarem de se alimentar e se perceberem que beber mais néctar é o que os mantém vivos. Mas é algo improvável. O excesso de néctar os torna selvagens, rachando a mente deles ao meio. Eles nem vão saber que ainda estão vivos.
— Mas são apenas crianças — falei, sem conseguir acreditar no que escutava, apesar de já saber que era a verdade. — Como eu, como você.
— Eles não são como eu de jeito nenhum — grunhiu ele. — Não são animais, são armas. Você não se compadece de uma bala depois que ela é disparada de uma arma, então por que se compadecer de um rato depois que ele cumpriu seu propósito? Apenas alguns poucos escolhidos se tornam ternos-pretos.
— Você não se lembra de nada do seu passado? — perguntei. — Antes de ser transformado.
O terno-preto lançou um olhar de advertência para mim, os olhos parecendo aço afiado.
— Eu não tinha vida antes da torre — ele respondeu. Devia ser um dos soldados de Furnace, não do diretor; transformado na torre da cidade, aquela que quase fora destruída comigo dentro. — Furnace é meu pai. Foi ele que criou as forças de elite; não somos como aquela prole mestiça e patética de Cross, de dentro da prisão. — Ele voltou a atenção para o volante. — É por isso que fico surpreso por Furnace ter escolhido você, um prisioneiro; você não é um verdadeiro terno-preto nem um verdadeiro viking, é um verdadeiro nada.
Pegamos a autoestrada que conduzia ao sul, usando o acostamento para evitar carros e vans que haviam sido abandonados na pista principal. A estrada me parecia familiar, mas não sabia por quê.
— Então por que é que ele me quer? — perguntei, observando o velocímetro se mover delicadamente, atingindo os 95 quilômetros por hora. O terno-preto deu de ombros, abrindo a boca como se fosse cuspir, mas acabou falando:
— Não sei mesmo. Talvez seja porque você é a maior aberração de todas. Normalmente, quando as pessoas ficam do tamanho de um viking, elas perdem a cabeça, mas isso não aconteceu com você. Você é um erro de produção, e talvez ele queira vê-lo com os próprios olhos, aprender com os próprios erros, antes de matá-lo.
— Ele não vai conseguir fazer isso — disse eu.
O terno-preto sorriu, dentes e olhos brilhando mais do que qualquer coisa do outro lado do para-brisa.
— Certo, vá pensando assim...
Senti algo revirar no estômago, mas não sabia se era raiva ou medo, ou os dois juntos. Engoli em seco, tentando enterrar aquela sensação antes que ela despertasse o néctar novamente. Dava para sentir o veneno em minhas veias, mas ele não deu nenhum sinal de que estava acordando. Ou quem sabe eu houvesse aprendido a controlá-lo melhor. Alguma coisa piscou lá fora, um sinal verde, e, sem saber bem o motivo, instruí:
— Pegue o acesso de saída.
O terno-preto saiu da autoestrada e acelerou pelo aclive, chegando a uma rotatória e pegando a saída que eu tinha mostrado. A dor na minha testa se deslocou para a têmpora, dizendo que eu estava indo na direção errada. Alguém gritou alguma coisa do banco de trás, e precisei me virar e pedir que repetisse.
— Eu disse: onde a gente está? — gritou Simon.
Não sabia, mas algo me dizia para seguir por aquele caminho. Não era Furnace; era algo diferente, um instinto indefinível que me fez dizer ao terno-preto que seguisse por uma rua residencial longa e sinuosa, passando por uma fileira de lojas e uma segunda rotatória menor.
— Num lugar seguro — falei após um tempo. — Num lugar onde a gente vai poder passar a noite.
— Mas onde? — perguntou Simon novamente.
Viramos à direita, a rua ladeada por casas, mas sem nenhum sinal de vida, exceto algum gato faminto que aparecia de vez em quando em meio à penumbra. Guiei o terno-preto por mais três ruas, cada uma mais curta e estreita do que a anterior, e foi só quando ele entrou em uma rua cheia de casas geminadas que as recordações inundaram minha mente. Elas atravessaram o ruído límpido e constante do néctar, como sempre conseguiam fazer após um tempo, e enfim compreendi para onde eu havia nos levado.
O caminhão parou por completo bem na frente dela, quase encostando o para-choque no pequeno carro azul que eu conhecia tão bem e que havia batizado de Humphrey quando tinha oito anos. Perto dele havia um pequeno jardim, um tanto malcuidado, mas repleto de flores da primavera, e um caminho de cascalho que levava até a porta da casa. Ela estava aberta, dando-me as boas-vindas.
— É a minha casa — disse eu, virando-me para eles com lágrimas nos olhos. — Estou em casa.
LAR
O terno-preto encontrou uma lanterna no caminhão para Zê e Lucy usarem, mas, com a lua cheia, o objeto era quase uma redundância. Olhei para a casa, banhada por um suave brilho prateado. Era exatamente como eu lembrava, mas, ao mesmo tempo, não. Era como se alguém tivesse estudado minhas lembranças e as usado para criar uma réplica, deixando-a quase perfeita, mas se equivocando em pequenas coisas, nos detalhes.
O jardim parecia abandonado, com a grama na altura do tornozelo. Meu pai sempre insistia nisso — em manter aquele pequeno pedaço verdejante em bom estado, para que os vizinhos não reclamassem. Uma recordação veio à tona, tão dolorosa que podia muito bem ter farpas — eu, criança, com metade da idade que tenho agora, ajudando ele e minha mãe a plantar a roseira que continuava perto do muro baixo próximo à rua; daquela vez, não tinham reclamado por eu sujar minha calça de lama.
O pensamento foi como levar um murro no estômago, e precisei me controlar para não me curvar para a frente. De repente, me perguntei que bem faria ficar ali. Talvez a gente devesse apenas voltar para o caminhão, continuar dirigindo e encontrar outro lugar para nos proteger. Mas Zê e Lucy já estavam na porta da casa, dando uma olhada lá dentro.
Segui a passos lentos, prestando um pouco mais de atenção nos detalhes que pareciam diferentes do que eu me lembrava. Algumas janelas estavam quebradas, deixando cacos de vidro no canteiro de flores. Pelos buracos, dava para ver que o varão da cortina tinha caído; posicionado em diagonal, escondia o interior com seu veludo amassado. Outra recordação atravessou a superfície do meu cérebro — a maneira como minha mãe puxava aquelas cortinas todo dia ao anoitecer, o cheiro de pó se espalhando pela sala de estar enquanto a gente se sentava para jantar na frente da televisão.
— Acho que não tem ninguém em casa — disse Zê.
Esperei sentir alívio, mas na verdade foi tristeza o que tomou conta do meu peito. Acho que parte de mim esperava que eles ainda estivessem ali, minha mãe e meu pai, mesmo sabendo que eles não me reconheceriam; mesmo sabendo que me veriam como um monstro. Eu só queria enterrar a cabeça no peito da minha mãe, como fazia toda vez que me machucava, e sentir os braços do meu pai ao redor dos meus ombros. Os dois faziam com que tudo de ruim desaparecesse.
Mas aquilo tinha sido há muito, muito tempo.
— Tem certeza de que quer entrar? — perguntou Lucy enquanto eu me aproximava da porta. Ela estendeu o braço e tocou o meu com a ponta dos seus dedos, deixando-os imóveis por um instante. — Não sabe o que vai encontrar lá dentro.
— Não tem problema — menti. — Vamos sair logo da rua, antes que alguma coisa nos veja.
Zê e Lucy entraram primeiro, a lanterna cortando a escuridão. Entrei depois deles, precisando me arquear para não bater no topo da porta. Antigamente, eu precisava ficar na ponta dos pés para encostar nele. A porta tinha sido arrombada, e a madeira, quebrada por um pé de cabra. Havia respingos de tinta vermelha, parecendo sangue ressecado, no capacho da entrada. Provavelmente ladrões, pensei, tentando ignorar a ironia. No entanto, quem quer que tivesse sido, fora embora havia muito tempo. Dava para sentir que a casa estava vazia no momento em que entrei, o ar frio e inerte, sereno.
Inspirei, e de repente a casa se encheu. Eram os cheiros, aqueles que achei que nunca mais sentiria, despertando a criança dentro de mim, como se tivessem sido deixados ali para me ajudar a lembrar; como se tivessem sido deixados ali para que eu pudesse imaginar meus pais e fazê-los voltar à vida: a cera do casaco Barbour do meu pai, pendurado em um gancho no corredor, lembrando-me das férias no interior, escalando muros de pedra e perambulando por campos lamacentos; o incenso do banheiro, que minha mãe sempre insistia para que acendêssemos depois de terminarmos nossa “atividade”; as ervas na cozinha, o aroma de manjericão enchendo a casa de lembranças de quando eu ajudava minha mãe a cozinhar, pegando as folhas e passando o resto do dia sentindo o cheiro delas em minhas mãos.
E o cheiro de amora-preta, mais forte do que qualquer outra coisa, tão marcante e fresco que podia estar vertendo da própria casa. Minha mãe usava todo dia; era um hidratante ou algo do tipo, e eu nunca tinha percebido a fragrância antes. Com aquele perfume, ela se fazia presente ali, os dois se faziam, parados no corredor, sorrindo para mim como não sorriam desde que tinha me tornado um criminoso; desde que havia partido o coração deles.
Fechei os olhos, mantendo a imagem ali dentro, rezando, rezando, rezando, para que, quem sabe, se eu desejasse com força suficiente, se realmente acreditasse, aquele pesadelo desaparecesse. Talvez eu fosse abrir os olhos e realmente encontrá-los ali, sem nunca ter roubado aquelas vinte pratas tantos anos atrás; sem nunca ter arrombado aquela casa com Toby; sem nunca ter sido enterrado vivo na Penitenciária de Furnace. Poderia apenas acordar e ser aquela criança novamente; a que ajudava a mãe a cozinhar e o pai a plantar roseiras, só querendo aprender truques de mágica.
Por favor, falei para eles, e não sei se as palavras foram ditas em voz alta ou se ficaram apenas na minha cabeça. Por favor, me deixem voltar. Estou arrependido, vocês sabem que estou. Não pareço mais ser eu, mas ainda sou, sou eu. Por favor, mãe, tudo o que quero é voltar para casa.
Era demais; meu estômago revirava, a cabeça rodopiando. Meu luto era como um motor sendo ligado ruidosamente dentro de mim, as lágrimas escorrendo por minhas bochechas, meu corpo sendo tomado por fortes soluços agridoces que me deixavam ofegante.
Meus pais estenderam as mãos para mim, e eu caí de joelhos perto deles, sentindo como se pudesse abandonar este corpo, saindo de dentro dele como um caranguejo sairia de dentro da carapaça, voltando assim à minha antiga vida.
Escutei um estrondo, o ruído de algo sendo rasgado, e, ao abrir os olhos, percebi que a lâmina de minha mão tinha dilacerado os casacos no corredor, derrubado a mesa do telefone e feito o vaso de vidro onde deixávamos as chaves sair voando. A rajada de adrenalina me fez tremer, e olhei de novo para meu pai, pronto para lhe pedir desculpas e dizer que havia sido um acidente, que eu pagaria por novas coisas.
Mas claro que eles tinham desaparecido. O motor do meu luto enguiçou, e fiquei parado no corredor, piscando para que as lágrimas desaparecessem, boquiaberto, sentindo-me totalmente atormentado, como se tudo o que restasse de minhas forças houvesse se esvaído pelos meus poros.
Senti uma mão no meu braço. Olhei para baixo e vi Zê, os olhos marejados. Ele mordia o lábio inferior, tentando conter as próprias emoções, mas ainda assim conseguiu dar um meio sorriso. Percebi que todos os outros me olhavam com tristeza. Até o terno-preto parecia não ter nenhum comentário cruel para acrescentar.
— Vamos — disse Zê. — Vamos encontrar um lugar para você sentar antes que desabe no chão.
Não respondi; apenas deixei que ele me guiasse pela porta, virando à esquerda até nossa pequena sala de estar. Sabia o que esperar: tentaria construir um muro para proteger meus sentimentos, mas ainda assim dava para sentir as lembranças lá dentro, martelando, pedindo para entrar. Desabei no sofá, o braço esparramado até o chão, e fiquei imóvel, tentando não pensar, tentando não existir, tentando não inspirar aromas nem ouvir ecos fantasmagóricos — as únicas coisas que restavam da minha mãe e do meu pai.
Não sei quanto tempo depois despertei, saindo de minha exaustão e percebendo que estava sozinho na sala de estar tomada pela noite. Dava para escutar vozes em algum lugar, e com muita dificuldade consegui me erguer do sofá para ir ao encontro delas.
A luz do fogo tremeluzia suavemente na cozinha, e, ao entrar, encontrei Zê, Simon e Lucy. Estavam sentados ao redor da mesa de café da manhã, as velas entre eles enchendo o cômodo de calor. Eles olharam para mim assim que me escutaram entrar, recebendo-me com um desfile de sorrisos compadecidos. Todos pareciam exaustos, e me perguntei se não estariam conversando sobre a própria casa, a própria família.
— Oi — disse Simon. — Como você está?
— Achamos melhor deixá-lo sozinho — disse Zê, antes que eu pudesse responder. — Você parecia estar precisando de um tempinho.
Ergui a mão esquerda para puxar uma cadeira e me sentei.
— Valeu, pessoal — falei, estremecendo. — É que, sabe... foi estranho. Estar de volta.
Eles assentiram.
— Estou só fazendo um chazinho — disse Lucy.
Dava para ouvir algo borbulhando, e percebi que tinha uma caneca com água no fogão. A eletricidade tinha acabado, mas obviamente o gás ainda funcionava.
— Bom ver que o gás não está sendo usado apenas para explodir coisas — comentei.
Zê sorriu, e, pelo brilho de seu olhar, percebi que ele se lembrava de quando tínhamos usado gás para explodir a sala de escavação na Penitenciária de Furnace, um século atrás. Lucy franziu a testa, com cara de quem ia pedir uma explicação, mas depois decidiu deixar pra lá. Levantou-se, colocando mais uma xícara junto às que já estavam no balcão.
— Consegue tomar chá ou acha que vai vomitar? — perguntou ela.
De verdade, eu não tinha a menor ideia. Meu metabolismo não conseguia mais ingerir comida normal por causa do néctar — e Lucy sabia muito bem disso, pois tinha me visto vomitar um hambúrguer no dia em que a conheci —, mas ainda conseguia tomar água.
— Só temos um jeito de descobrir — falei.
— Vai ter que conseguir tomar um chá, sim — disse Zê, enfatizando as palavras com um balançar de cabeça. — Se não conseguir, é melhor se matar logo de uma vez.
— Cadê o terno-preto? — perguntei.
— Lá fora — respondeu Simon. — Disse que está de vigia, mas acho que ele foi procurar alguma roupa nova. E é melhor mesmo. Viu a camisola de hospital que ele está vestindo? Toda vez que ele se mexe, acho que as coisas dele vão ficar à mostra.
— Simon! — disse Lucy, fingindo indignação e dando um tapinha na nuca dele, fazendo as risadas aumentarem.
Era estranho — um estranho bom — estar sentado ao redor da mesa, fazendo piadas. Era como ter amigos em casa depois do colégio ou algo do tipo.
— Que foi? — disse Simon, erguendo as mãos. — É verdade. Se ainda tivesse algum policial na cidade, ele teria sido preso por atentado ao pudor. Por falar nisso... — Ele apontou a cabeça para mim, e percebi que eu também continuava com minha camisola de hospital.
— Não tem nada nesta casa que ainda caiba em mim — disse eu, resignado.
A caneca começou a chacoalhar, e Lucy colocou um pano ao redor da alça, erguendo-a e dividindo a água cuidadosamente entre as xícaras. O vapor com aroma de chá também me trouxe várias recordações, e permiti que ressurgissem. Era melhor abrir a porta para elas agora, mesmo que fossem tristes, do que deixar que elas a derrubassem. Eu me imaginei bem no lugar onde Lucy estava, anos atrás, fazendo minha primeira xícara de chá, uma surpresa para o meu pai. Metade leite, metade água morna, com um mero saquinho de chá mergulhado; ele disse que havia sido o melhor chá que já tinha tomado.
— Encontraram algo para comer? — perguntei. — Deve ter algo nos armários.
— Zê já comeu uma caixa inteira de barras de cereal — disse Lucy, abrindo a geladeira sem luz e tirando de lá uma garrafa de leite. Ela cheirou e fez uma careta. — Não está tão fresco, mas vai ter que servir.
— Ele também comeu uma lata de feijão frio e um pacote de queijo fatiado — acrescentou Simon.
— Eu estava com fome — protestou Zê.
— Você está sempre com fome — murmurou Simon, sorrindo. — Ah, e encontramos algo na geladeira, não sabemos muito bem o que é, mas parece ser prova de um novo monstro, algo verdadeiramente terrível que Furnace estava guardando. Não sei nem se devo mostrar pra você, de tão horrível que é.
— O quê? — perguntei, genuinamente confuso.
Simon me entregou uma fotografia, e quando a virei vi um garoto de uns seis anos olhando alegremente para a câmera, sem metade dos dentes e com o cabelo bagunçado, os óculos pretos desalinhados em cima do pequeno nariz. Não o reconheci a princípio, mas então olhei para aqueles olhos, os mesmos que me encararam do espelho durante catorze anos da minha vida, antes que os bisturis do diretor os removessem.
Por um instante, voltei para dentro da cabeça daquele garotinho, na escola, para a foto do ano, com a turma inteira lá comigo. Eu me lembrei daquele dia, do flash da câmera deixando um brilho esquisito na minha visão durante todo o almoço. Parecia impossível que aquele garoto tivesse se transformado em mim, essa fera deformada de carne dilacerada. Simon tinha razão: aquele garoto havia se tornado um dos monstros de Furnace, algo verdadeiramente terrível. Coloquei a foto na mesa e a empurrei para longe, engolindo a bile com esforço.
— Puxa, foi mal, cara — disse Simon. — Foi só uma brincadeira; não tive a intenção...
— Tudo bem — respondi. — Só estou me sentindo um pouco sensível. Não se preocupe.
— Tome — disse Lucy, colocando uma xícara de chá na minha frente. — Isso deve ajudar.
Olhei para o chá, achando que, se o tomasse, cairia em prantos novamente. Levantei, usando a mão da lâmina como apoio.
— Já volto — falei. — Só quero dar uma olhada na casa, pra garantir que não tem ninguém aqui.
— Já fizemos isso — disse Zê. — Procuramos pela casa inteira.
Assenti para eles, seguindo para o corredor mesmo assim. Era uma casa pequena, e o único outro cômodo no andar de baixo era a sala de jantar. Meu pai a usava como escritório, e, quando coloquei a cabeça lá dentro, vi que ainda estava repleta de documentos e livros, recibos e contas e outras coisas empilhadas em todas as superfícies disponíveis. Deixei tudo como estava e subi a escada lentamente. Eu estava tão alto agora que precisei me abaixar sob o patamar da escada, e só o tamanho do meu braço já me deixava todo desajeitado para lidar com o espaço. Mas consegui subir, e dei uma olhada no banheiro e no quarto dos meus pais, e também no pequeno depósito, que estava atulhado de coisas.
Meu quarto ficava no fim do corredor. Eu tinha arrancado da porta os adesivos com a palavra “Alex” havia um tempo, mas o contorno deles ainda estava lá, na tinta descascada. Coloquei a mão com dedos em cima da marca, sendo atacado pelo passado, e a maré não dava nenhum sinal de que se deteria. Doeu, mas recebi a dor de braços abertos, porque significava minha recuperação. Era a mesma dor da cirurgia, porém dessa vez eu não estava sendo despedaçado por bisturis; estava sendo recomposto por lembranças. Cada uma delas desfazia um pouco do trabalho do diretor, transformando-me de novo no garoto que eu era antes.
Dei uma espiada lá dentro, meus olhos prateados desbravando a escuridão. Fazia séculos que tinha estado ali pela última vez, mas me lembrava como se tivesse sido ontem. Claro que lembrava. Havia sido meu último dia de liberdade. Tinha acordado naquela manhã sabendo que roubaria uma casa, curtindo a ideia sem nenhuma razão aparente. Minha cama havia sido arrumada depois disso, e as roupas usadas que tinha deixado espalhadas pelo chão tinham sido lavadas e dobradas, mas, fora isso, tudo estava intocado. Os mesmos pôsteres na parede, os mesmos DVDs e jogos de videogame aglomerados em minha escrivaninha, as mesmas gavetas abertas.
Entrei, mal conseguindo ficar em pé sem bater no teto. Estava tão alto que conseguia ver o topo do guarda-roupa. Tinha uma pilha de kits de mágica ali, caixas de papelão rasgadas e cobertas de pó, uma casa para aranhas. Nunca havia conseguido me desfazer dessas coisas.
Pensei em jogá-las fora naquele momento, e peguei um truque de cartas para mostrar aos outros lá embaixo. Provavelmente ainda me lembraria dos mais simples. Mas, ao erguer o braço e ver minhas mãos, percebi que nunca mais faria um truque de mágica na vida. Os dedos da minha mão esquerda pareciam mais longos agora, mais bem formados — as mudanças eram lentas demais para notar, como uma planta em crescimento. Suspirei, o braço da lâmina batendo no carpete.
Já estava de saída quando a vi, na minha escrivaninha. Era uma foto, e só notei porque me lembrei que nunca deixava fotos no meu quarto; tinha vergonha demais da minha família e não queria mostrá-la a meus amigos. Fui até ela e a peguei com meus dedos recém-criados.
Eram minha mãe e meu pai num píer durante um dia de verão, os dois tomando sorvete e sorrindo com os lábios lambuzados. A casquinha do meu pai estava sem sorvete porque ele tinha acabado de cair, despencando nas ondas. Entre eles estava eu, mais velho do que na foto lá de baixo, com uns dez ou onze anos. Não, eu tinha doze. Sabia porque tinha sido na última semana das férias, antes de eu voltar ao colégio, antes de roubar aquelas vinte pratas de Daniel Richards. Antes de eu mudar.
A gente parecia tão feliz que era quase artificial, quase como se alguém tivesse usado Photoshop. Mas a gente era mesmo feliz naquela época. Aquele verão, aquele dia na praia, foi um dos melhores dias da minha vida. Senti as lágrimas se formando novamente, aquela pressão desagradável na garganta, como se tivesse algo enorme arranhando e subindo por ela, tentando sair. Meus pais tinham deixado a foto ali para mim.
Sob ela, havia uma pilha de papéis — documentos legais, pelo jeito. Li o título da primeira página: Alex Sawyer — Audiência de recurso negada. O segundo papel dizia o mesmo, e o terceiro também. Eram sete no total. Meus pais tinham tentado sete vezes contestar minha condenação; tentado me tirar de Furnace, e todas as solicitações haviam sido rejeitadas. Eu não podia acreditar.
Coloquei a foto na mesa com a mão trêmula, mas depois pensei melhor e a virei. Atrás, vi três linhas escritas com tinta azul e reconheci a pequena e inclinada letra maiúscula do meu pai. Li uma vez, as pernas bambas, caindo de joelhos. Li de novo, com tantas lágrimas que não conseguia mais distinguir as palavras, perguntando-me se eram mesmo reais. Mas lá estavam elas; não precisava ver para saber o que diziam. Aquelas três linhas de texto ficariam gravadas em minha mente, em meu coração. Eu nunca, jamais as esqueceria.
ALEX, NOS DESCULPE.
PERDOAMOS VOCÊ E ESPERAMOS QUE NOS PERDOE TAMBÉM.
NÓS O AMAMOS DEMAIS.
MAMÃE E PAPAI
CHÁ
Escutei uma leve tossidela no patamar da escada e percebi que não estava mais sozinho.
Deixei os últimos soluços de choro escapar, os olhos ardendo com a pressão de tantas lágrimas. Usei a manga para enxugá-las e, quando olhei para cima, vi uma silhueta embaçada na porta. Senti vergonha de repente e me levantei com uma tossidela constrangida.
— Desculpe — falei, piscando até a pessoa entrar em foco. Era o terno-preto, seus olhos prateados parecendo duas moedas suspensas na escuridão. Esperava que ele fosse fazer algum comentário sarcástico, dizer que eu era fraco e ridículo, mas em vez disso ele só ficou parado ali, ainda mais constrangido do que eu. Percebi que ele usava um folgado agasalho de ginástica que devia ter encontrado em alguma casa na rua. Ainda estava descalço. Não era fácil encontrar sapatos que coubessem em um terno-preto. — Tudo bem com você? — perguntei.
— Sim — ele respondeu, a voz fraca.
Mas continuou imóvel. Dei um passo para a frente, aproximando-me mais para tentar enxergar sua expressão.
— Não parece — disse eu. — O que foi?
Ele passou a mão pelo cabelo.
— É que... — ele começou, e percebi quanto aquilo era difícil para ele. — Acho que me lembrei de uma coisa.
— Sobre sua vida? — perguntei. Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, mas não era uma negação; era mais como se tentasse se livrar do pensamento. Seu olhar focou algo na minha escrivaninha.
— Aquele computador — disse ele. — É para jogos, não é? Acho que me lembro de jogar... mas... não era eu. Impossível ter sido eu.
— Não resista — falei. — Deixe as memórias surgirem. Só elas podem salvar você.
Obviamente aquela tinha sido a coisa errada a dizer, pois o rosto do terno-preto enrijeceu, e seu sorriso sarcástico voltou. Ele passou a manga por cima da boca, mostrando os dentes.
— Me salvar? — ele repetiu, sua voz preenchendo o quarto como um trovão distante. — Acredita mesmo nisso? Furnace já me salvou; ele me salvou de uma vida fraca e sem sentido como esta. Me transformou de criança em um soldado, em um super-humano. Acha que eu gostaria de abandonar esta guerra e voltar a viver como um inseto?
Ele cuspiu no carpete, mas ainda havia incerteza em sua expressão, na maneira como piscava rápido demais; na maneira como seu pomo-de-adão se movia. Tinha alguma coisa crescendo nele, a semente de uma lembrança se libertando do néctar que envolvia sua mente. Mais cedo ou mais tarde, ela floresceria.
— Partiremos ao amanhecer — disse ele. — Então, se quiser descansar, tem que ser agora.
Empurrei-o para trás, desci a escada e voltei para a cozinha. Lucy e Zê dividiam um pacote de uvas-passas que haviam encontrado, tomando chá para acompanhar. Os dois pareciam semimortos, com olheiras enormes. Simon já tinha se entregado ao sono: estava apoiado na mesa, a cabeça nas mãos, roncando baixinho.
— Encontrou o que estava procurando? — perguntou Zê. Eu me sentei, lembrando-me da foto em minhas mãos e deslizando-a pela mesa. Lucy a pegou.
— É mesmo você? — perguntou ela, sorrindo ao ver a imagem de nós três.
— Olhe atrás — disse eu.
Ela virou a foto, a mão indo até a boca enquanto lia as palavras em voz alta.
Zê sorriu para mim.
— Sabia que você não era tão ruim quanto aparentava — ele comentou. — Pode agradecer a eles quando encontrá-los.
Pensei no rio de cadáveres. Sabia que nunca mais os veria. Pelo menos, não nesta vida. Escutei o som de passos, e em seguida o terno-preto apareceu, encostando-se no balcão.
— Belos trapos — disse Zê, assentindo em aprovação. — Significa que agora você é um “esporte-preto”?
O terno-preto franziu a testa.
— Falando sério... — prosseguiu Zê. — Se vai passar um tempo com a gente, seria bom sabermos pelo menos seu nome. Você lembra dele?
— Não precisamos de nomes — respondeu o terno-preto.
— Tudo bem — disse Zê. — Então vamos ter que inventar um pra você. Que tal Bob? Não? Norman? Talvez Algernon. — Todos nós sentimos a raiva do terno-preto fervilhando como água, a temperatura aumentando no ambiente. Zê decidiu não arriscar a sorte e terminou murmurando: — Pode ser Bob mesmo.
— E por que você está com a gente? — perguntou Lucy. — Dias atrás vocês estavam tentando nos matar, e agora você está aqui. Qual é seu papel exatamente? De guarda-costas?
— Só estou seguindo ordens — disse ele, e seu desdém era inconfundível. — Alfredo Furnace deixou claro que o camarada aqui é o novo general dele. Isso significa que temos que fazer o que ele mandar.
Lucy olhou para mim, erguendo as sobrancelhas.
— Você é o novo o quê dele? — perguntou ela.
— Não sou — respondi. — É porque matei o diretor. Não sei o que está acontecendo, mas uma coisa eu posso dizer: não sou o general de Furnace. Nunca serei. Ainda quero encontrá-lo e matá-lo — respondi. — E é só assim que isso tudo vai acabar.
Olhei para o terno-preto, preocupado, achando que tinha falado demais.
— Ah, não se preocupe. — Ele abriu um sorriso. — Furnace me contou tudo sobre o seu planinho.
— Então ele fala com você também? — perguntei, genuinamente curioso. Peguei o chá e tomei um longo gole. Já estava morno, mas o gosto era celestial. Esperei sentir uma torção na barriga ou vontade de vomitar, mas meu metabolismo devia ter achado que era apenas água, porque o líquido se acomodou agradavelmente em meu estômago. — Assim como ele fala comigo, dentro da sua cabeça?
— Ele me dá ordens — respondeu ele. — É só isso. Devo manter você vivo; todos nós devemos mantê-lo vivo, e depois levá-lo até ele.
— E o que vai acontecer depois? — perguntei.
— Furnace é quem sabe — respondeu o terno-preto.
— Então deixa eu ver se entendi — disse Lucy, falando comigo. — Furnace sabe que você quer matá-lo, e por alguma razão escolhe você como general dele e faz o que pode para que você o encontre. Tem alguma coisa errada aí.
Ela tinha razão, mas, quando eu tentava pensar sobre isso, algo esquisito acontecia com minha cabeça, como se eu não pudesse colocá-la para trabalhar. Parecia estranho que Furnace estivesse tão desesperado para me encontrar pessoalmente, apesar da minha promessa de matá-lo. Era melhor não pensar nisso. Pensar muito podia acabar matando a pessoa. Bebi o resto do chá de uma só vez, e o sabor agradável pareceu afastar um pouco da confusão.
— Sabe, Lucy tem razão — disse Zê, enrugando a testa. — Furnace queria que você fosse até a torre, lá na cidade. Você achou que estivesse indo atrás dele, mas terminou enfrentando o diretor. Ele queria que você derrotasse Cross. Era exatamente o plano dele.
— E daí? — perguntei.
— Furnace é inteligente. Ele sabe o que está fazendo. Se está facilitando sua aproximação, é porque tem um motivo, faz parte do plano dele. Ele não estava na torre, e talvez nem esteja esperando você agora. Talvez ele esteja levando você até lá para lutar contra alguma outra coisa, algo pior do que Cross.
— Ele está lá — respondi, e queria ter me sentido tão confiante quanto pareci.
— Só estou comentando... — Zê acomodou-se de novo na cadeira.
— Já disse que a gente não tem escolha.
— Eu sei — respondeu Zê. — Eu sei. Mas tome cuidado, Alex. As coisas nem sempre são o que parecem.
O silêncio dominou o ambiente por um momento enquanto todos tentavam entender o que estava acontecendo. Olhei pela janela e vi o pequeno quintal banhado pela noite, e depois dele a rua onde eu tinha sido capturado pela polícia. Naquela noite, tanto tempo atrás, eu havia achado que, se conseguisse fugir dos policiais e entrar ali na cozinha, tudo ficaria bem. Eu esqueceria o que tinha acontecido e voltaria para a minha vida. Bem, ali estava eu. Agora com certeza os pesadelos desapareceriam. Tudo o que eu precisava era de um plano. Mas, toda vez que tentava agarrar uma ideia, ela afundava de novo na névoa dos meus pensamentos.
— Vamos dormir um pouco — falei, desistindo. — Talvez tudo isso fique mais claro pela manhã.
— Sairemos ao amanhecer — disse o terno-preto novamente. — Não temos tempo a perder. Vou ficar vigiando.
— Obrigada — disse Lucy, e percebi que estava sendo sincera. — Aqui tem uma xícara de chá pra você, se quiser.
O terno-preto olhou para a xícara fumegante no balcão, depois para Lucy. Percebi a surpresa surgindo em sua expressão. Só durou um instante, escondida de Lucy e Zê, que saíam da cozinha para a sala de estar, mas tinha sido inconfundível. Simon continuou onde estava, adormecido.
— Boa noite, Bob — arriscou Zê. — Bom chá pra você.
— Não preciso de chá! — gritou o terno-preto.
Balancei a cabeça para desejar boa-noite a ele e fui ao encontro dos meus amigos, tentando não sorrir enquanto escutava o barulho de cerâmica e os goles rápidos e profundos que ecoaram atrás de mim no corredor.
CRUELDADE
Não me lembro de ter pego no sono — não me lembro sequer de onde tinha me sentado para descansar —, mas devo ter feito isso, porque estava sonhando de novo.
Sonhando com o garoto.
Ele olhou para mim de um trono de cadáveres, os corpos empilhados a uma altura tão grande que quase não o via lá em cima. Os mortos estavam com roupas que deviam pertencer a algum museu, e percebi que alguns usavam armadura, olhos cegos espreitando por sob capacetes cônicos. Todos tinham ferimentos horrendos, e sangue se acumulava ao redor da pilha como um fosso. Quando olhei para a esquerda e para a direita, vi um campo de batalha cheio de pilhas iguais àquela, dólmens de incontáveis mortos.
O próprio garoto, Alfredo Furnace, parecia ter tomado um banho de sangue. O líquido cobria todos os centímetros de sua pele, seu cabelo estava espetado, endurecido com o sangue coagulado, e, quando ele sorriu para mim, deu para ver que seus dentes também estavam avermelhados. Seus olhos eram poços vazios, de uma profundeza sem fim, feridas no meio da cabeça. No entanto, sabia que ele olhava para mim.
— Foi você que fez isso? — perguntei, a voz levada pelo vento. Tentei me mexer, só para ver se seria capaz, mas, assim como nos outros sonhos, estava paralisado, enraizado à lama ensanguentada do campo. — Você matou essas pessoas?
Elas me mataram primeiro, respondeu ele, e foi como se todos os mortos falassem juntos, as vozes tão altas que a terra poderia muito bem se rachar. Ele inclinou a cabeça, e senti como se um demônio me observasse.
— Isso também é uma lembrança? — perguntei, pensando nas visões que eu tivera do jardim. Furnace fez que sim. Passou a mão no rosto, limpando o sangue, e por um segundo ele parecia uma criança novamente, as feições contraídas. Depois, seus olhos ficaram aparentes de novo, irradiando escuridão.
Esta era a minha vida, disse ele, fazendo meus ouvidos tinirem.
— Como você pôde fazer isso? — perguntei. Não que eu precisasse. Já sabia. Dava para ver o sangue do desconhecido trabalhando dentro dele, as veias tão escuras que pareciam tatuadas. Ele acompanhou minha linha de visão.
Ele sacrificou o próprio sangue para que eu pudesse viver, disse ele, e sabia que se referia ao desconhecido do jardim. Mas agora ele vive dentro de mim. Eu consigo senti-lo.
— Mas o que era aquilo, aquela coisa? — perguntei.
Furnace riu, e era o som de uma alma se partindo ao meio.
Não preciso responder.
Balancei a cabeça, mais perplexo do que nunca, tentando entender o que ele dizia. Mas tudo o que eu conseguia ver eram rostos de pessoas mortas, as pessoas que Furnace havia assassinado.
— São... são tantos — sussurrei.
Não, ainda não, mas serão.
Senti o chão começar a tremer, como em um terremoto. Me virei o máximo que consegui, olhando por cima do ombro e observando o que achei ser uma onda de maré avançando pelo campo. Então distingui vultos, e percebi que não era uma onda, mas um exército, com centenas de homens atacando nessa direção. Escutei um barulho, e era Furnace saltando do monte de corpos, parando a meu lado e segurando meu rosto entre as mãos. Seus dedos ardiam, com sangue fumegando da carne superaquecida, e eu não tinha como escapar da força de suas mãos, que pareciam uma armadilha de urso. Ele me obrigou a ficar olhando o exército se aproximar, agora a cem metros de distância, chegando com rapidez. A maioria segurava lanças, alguns, espadas. Outros deviam estar com arcos, pois uma flecha atingiu o solo perto de onde estávamos, e depois outras, transformando o dia em crepúsculo.
Tentei me mexer. Sabia que era um sonho, mas parecia bem real. Se não me movesse agora, seria pisoteado até a morte, ou empalado por uma centena de lâminas.
— O que está fazendo? — gritei, e agora os homens estavam a cinquenta metros de distância, tão próximos que dava para ver gotículas de cuspe voando de suas mandíbulas uivantes. — Me solte!
Eles não vão conseguir nos machucar, disse Furnace. Não vou deixar.
E então ele partiu, correndo em direção ao exército, saltando para cima dele com um grito que ameaçava derrubar os céus. Uma fonte de sangue jorrou do meio da multidão, deixando o ar vermelho. O cenário todo parecia sangrar, inundando o mundo de cor. O fato de não poder enxergar direito o que acontecia não importava. Eu estava em segurança, agora que Furnace estava aqui.
O mundo ficou em silêncio, e eu abri os olhos novamente. Ainda estava dentro do sonho, mas o lugar tinha mudado. Estava em uma espécie de celeiro, com palha no chão e equipamentos antigos de fazenda pendurados nas paredes. O luar entrava pela única claraboia. E eu não estava sozinho. Tinha um grupo de pessoas ali, três homens e uma mulher. Passavam uma jarra entre eles, e todos pareciam bêbados. Os rostos corados e sorrisos sem dentes focavam uma silhueta no chão, uma pequena criatura que ficara em posição fetal enquanto eles a chutavam e cuspiam nela.
Era um garoto, acho que da minha idade, a carne pálida coberta de ferimentos. Era dolorosamente magro, os ossos frágeis pressionando a pele cor de papel, os ombros, que pareciam as asas de um pássaro, se sacudindo enquanto chorava. Tentei ajudá-lo, sentindo a força do néctar dentro de mim. Mas continuava sem poder me mexer.
Somos tão cruéis, disse Furnace, e, quando virei a cabeça, eu o vi parado a meu lado, o corpo sem nenhum vestígio de sangue, observando o ataque com um olhar vazio. Machucamos e matamos, e pra quê?
— Salve o garoto — falei, esperando que os homens e a mulher se virassem ao escutar minha voz, ao me verem. Mas eles apenas continuaram uivando um para o outro como banshees, deleitando-se com a própria brutalidade.
Você o salvaria?, perguntou Furnace.
— Claro! — gritei em resposta. E teria salvo mesmo. Eu o teria salvo naquele instante, se o sonho não me impedisse.
E se for tarde demais?
— Não é tarde demais!
Os quatro adultos continuaram o ataque regado a embriaguez, mesmo após o garoto ter ficado imóvel. A raiva irrompeu tão forte dentro de mim que quase consegui mover um dos meus pés, a força do néctar despedaçando a imobilidade do sonho. Mas Furnace já seguia em frente, um rosnado canino escapando de sua garganta. Os homens e a mulher escutaram e se afastaram do corpo no chão. A jarra foi derrubada, quebrando-se, enquanto o grupo recuava. Mas não tinham para onde ir.
Furnace se ajoelhou ao lado do garoto, erguendo seu rosto com as mãos. Ainda estava vivo, mas não duraria muito tempo. Não havia mais como ajudá-lo.
De repente, entendi o que Furnace queria dizer quando me perguntou se eu o salvaria. Ele não falava de protegê-lo dos agressores, e sim de trazê-lo de volta à vida. Vi Furnace tirar uma faca do cinto, enfiando-a em uma das veias cor de carvão de seu punho. Uma gota de sangue infectado apareceu, depois outra, e, quando o fluxo começou, ele pressionou o braço contra a boca do garoto. O menino sorveu avidamente, talvez sentindo que só sobreviveria às feridas daquele jeito. Queria dizer para ele parar. Mas que escolha ele tinha? Será que a morte era mesmo melhor do que aquilo?
Furnace se virou para mim enquanto o garoto sugava seu punho, o vórtice de seu olhar brilhando com um calor gélido.
Você o salvaria?, ele perguntou de novo, e, apesar de eu ter entendido o verdadeiro significado da pergunta, assenti ainda assim.
— Claro — sussurrei. Furnace sorriu, sem nenhuma malícia. Depois olhou para o garoto, cujas veias começavam a pulsar de novo.
Ele me lembra József, disse ele. Afastou seu pulso, e uma casca de néctar já se formava no ferimento. No entanto, o garoto tinha bebido muito e se debatia no chão coberto de palha enquanto o veneno assumia o controle de seu metabolismo. Furnace segurou-o com firmeza, acariciando seu cabelo, afastando a palha de seu rosto. Por isso fiz ele virar meu novo irmão.
A mulher bêbada tentou fugir, os olhos do tamanho de um pires enquanto se lançava rumo à porta atrás de mim. Mas não tinha nenhuma chance. O garoto sentiu sua movimentação, levantou-se e se jogou em cima dela. Arrancou suas pernas com um único golpe, afundando os dentes em sua garganta. Ele começou a se mover de novo antes que o primeiro esguicho de sangue atingisse o chão, destruindo os três homens com uma velocidade feroz e apavorante.
Depois de tudo terminado, correu até onde Furnace estava, encarando-o como um cachorro olha para o dono, um olhar que ainda era arrasadoramente humano. Furnace envolveu o garoto novamente, abraçando-o, o sangue esfriando ao redor dos dois. Depois ele me olhou mais uma vez, estendendo a outra mão e me chamando para um abraço. Que bom que eu não podia me mexer, porque teria ido.
Furnace sorriu, e, mesmo enquanto o sonho começava a esvanecer, eu o escutei.
Ele foi o primeiro.
Mais um abismo de escuridão silenciosa e sono profundo. E então eu estava sonhando novamente.
Dessa vez, com a ilha.
Eu pairava acima do oceano, as águas sendo levantadas pelo vento em um furor de agitadas lâminas prateadas. Lá em cima, o céu estava tão nublado que parecia ter sido esculpido em pedra, e eu tinha a sensação de que ele descia, prestes a me esmagar. A ilha ficava entre o mar e o céu, um bloco de pedra com penhascos que a protegiam contra o ataque climático. No alto das muralhas de rocha, havia uma mansão cujas torres tortas pareciam dedos fraturados apontados para as nuvens que a invadiam. A mansão lembrava demais o Forte Negro, o edifício que constituía a única entrada da Penitenciária de Furnace. Ao redor dela, silhuetas articuladas e inacreditavelmente grandes espreitavam dos rochedos, observando-me com seus olhos prateados e negros. Seus gritos angustiantes eram tão altos quanto a rebentação estrondosa.
Olhei para o lado, sabendo que veria Furnace. Agora ele estava mais velho, bem mais velho, o rosto enrugado e uma longa barba com pontos grisalhos. No entanto, eu ainda conseguia ver o garoto por baixo da carne envelhecida. Não tinha como não ver ali o garoto que ele havia sido antigamente.
Pensei no meu último sonho, que já se desenrolava como fios de algodão na água.
— Quantos foram? — perguntei, recordando-me do garoto do celeiro. Os olhos escuros de Furnace não desgrudavam da ilha, como se esperasse algo aparecer nela.
Demais para contar, disse ele, a voz mais alta do que as ondas e ao mesmo tempo sussurrante. Demais para lembrar.
— Todos eram como ele? — perguntei. — Como aquele primeiro garoto?
Não, disse Furnace. Mas a maioria era como ele: tinha uma escolha entre a morte e algo maravilhoso. Você era como ele. Refleti, tentando analisar minhas próprias lembranças, mas já tinha me esquecido dos detalhes do que havia acontecido comigo. Será que eu teria morrido na prisão se o diretor não tivesse me escolhido e me transformado? Provavelmente. As palavras de Furnace fizeram meu raciocínio se pulverizar. Outros, não. Outros gostavam de sua antiga vida e não queriam mudar.
— E você os obrigou?
Obriguei, como uma criança é obrigada a crescer e aceitar suas responsabilidades.
O oceano pareceu dilatar ao ouvir a voz dele, as ondas gigantescas quebrando contra os rochedos da ilha, inundando a mansão de névoa.
— Onde estamos? — perguntei.
Na minha casa, ele respondeu. Olhei para ele, para o garoto preso dentro daquela pele de idoso.
— Por que está me mostrando isso? Sabe o que vou fazer quando chegar aqui. Vou matá-lo.
Furnace inspirou e se virou para mim. Aqueles olhos, ou pelo menos o lugar onde os olhos deveriam estar, reluziram em sua escuridão, dois enormes buracos em meio ao mundo real. Quando ele sorriu, foi com certa tristeza.
Eu sei, Alex.
— Como assim? — perguntei, tentando me virar para ele, mas sem conseguir mover a metade inferior do corpo. Minha mente estava tão enraizada quanto meu corpo, sem conseguir compreender o que eu escutava. — Me conte o que está acontecendo.
Não temos tempo, disse ele. Você precisa ir.
— Ir para onde? — perguntei, a frustração me deixando à beira das lágrimas. — Não estou entendendo.
Vá embora; não é seguro aqui. Eles estão atrás de você.
— Quem? — perguntei, olhando ao redor. — Não estou vendo ninguém.
Furnace estendeu o braço, colocando as mãos ao redor do meu rosto mais uma vez. Agora, a dor de sua carne ardente atingiu minha cabeça dormente, afugentando meu sonho. As águas da baía subiram, desafiando a gravidade, até só restarem no meio do vazio turbulento os dois olhos de redemoinho e aquela voz atemporal.
Eles chegaram.
REENCONTRO
— Eles chegaram.
Cuspi essas palavras enquanto acordava, ainda sentindo a umidade da névoa em minha pele e escutando o rugido do oceano. Estava sentado na poltrona da sala de estar. Zê e Lucy dormiam um ao lado do outro no sofá, as roupas militares idênticas, a cabeça dele no ombro dela. Os sonhos já se esvaneciam, escorrendo pelos cantos da minha mente, mas tinham atingido meu coração como se alguém houvesse dado corda nele, liberando um milhão de batidas por minuto. Esfreguei a mão no peito, tentando acalmá-lo antes que ele saltasse garganta afora.
Zê soltou um ronco baixinho e abriu um dos olhos.
— Falou alguma coisa? — disse ele, a voz enrolada.
Me recostei na poltrona, balançando a cabeça, minha pulsação voltando ao normal aos poucos. Eram só pesadelos, temores que cruzavam o limite entre sonho e realidade. Uma luz fraca e fumacenta entrava pela janela, passando pelo emaranhado de cortinas. Estava amanhecendo. Não havia ninguém ali, exceto a gente.
Então, por que eu ainda ouvia o oceano?
Levantei e fui até o corredor, dirigindo-me até a porta da casa. O rugido aumentava, parecendo mais uma tempestade distante alcançando o horizonte do que o mar. Lá fora o ruído estava ainda mais nítido, fazendo o vidro que restava na janela chacoalhar. Também escutei alarmes de carro, ativados pelos tremores.
Mal tinha amanhecido, e metade do mundo parecia escondida sob uma meia-luz cinzenta e sinistra, mas dava para ver o disco do sol por cima de um telhado do outro lado da rua, tão coberto de fumaça e nuvens que o encarei diretamente sem precisar apertar os olhos.
— Tá tudo bem? — Zê tinha me acompanhado até o lado de fora da casa e estava na porta, parecendo semiadormecido. Esfregou os olhos e bocejou. — Ei, sua mão parece melhor.
Ergui o braço esquerdo e vi que meus dedos — pelo menos aqueles três pedacinhos de carne chamuscada que estavam se tornando dedos — tinham crescido cerca de um centímetro enquanto eu dormia. Abaixei o braço. Havia coisas mais importantes no momento.
— Está escutando? — perguntei. Zê inclinou a cabeça para um lado, depois para o outro.
— Sim, o que é isso? Parece o ronco do Simon.
— Vá acordá-lo — falei. — Lucy também. É melhor a gente dar o fora daqui.
— Por quê? — perguntou Zê, e tive que me segurar para não responder: porque Furnace mandou.
— Apenas faça isso — disse eu.
Ele viu meu olhar e correu lá para dentro sem perguntar mais nada. O viking carnudo e rosado estava empoleirado num carro do outro lado da rua, examinando o toco que antes era seu braço. Não vi nenhum sinal do viking que parecia um minotauro. Saí do jardim à procura do terno-preto e o encontrei dentro do caminhão. Ele também estava dormindo. Abri a porta, e o rangido do metal o fez pular e bater a cabeça com força no teto.
— O que está acontecendo? — perguntou ele, massageando o couro cabelo. Depois escutou o estrondo distante e endireitou as costas no banco do motorista. — O que é isso?
— Encrenca — respondi.
Ele concordou, virando a chave na ignição e ligando o caminhão com um solavanco. O motor era barulhento, mas não conseguiu abafar o som externo. O viking desceu ruidosamente do teto do carro, sentindo que estávamos prestes a partir. Ordenei que ficasse alerta, à procura de algum sinal de perigo.
— Pronto para partir? — perguntou o terno-preto, investigando o céu e o sol encoberto. — Estamos bem atrasados.
— Os outros já estão vindo — falei, desejando que se apressassem. Olhei para o terno-preto e percebi que seu olhar estava distante.
— Você está bem? — perguntei. Ele pareceu sair do transe.
— Estava sonhando — respondeu ele. — Não sonho desde... desde a torre.
— Era com Furnace? — perguntei, pensando em meus próprios pesadelos inspirados pelo néctar. Mas o terno-preto balançou a cabeça em uma negativa.
— Não, sonhei com uma casa — disse ele. — Com uma família. Acho que estava sonhando com a minha família.
Vi a confusão em seu olhar, o sofrimento, o medo, e senti um aperto no coração — porque eu também sentia aquilo, o cabo de guerra entre o néctar e as lembranças, entre a promessa de poder de Furnace e aqueles vislumbres passageiros de uma vida que havia praticamente esquecido. Me perguntei quantos ternos-pretos teriam sentido sua nova máscara escorregar. Ele agarrou o volante como se segurasse a própria vida, como se soltá-lo significasse despencar em um abismo.
— Sonhei com meu nome — disse ele, parecendo emocionado com as palavras.
Escutamos um barulho na casa quando Zê, Lucy e Simon bateram a porta e atravessaram o jardim rumo ao caminhão. Os três subiram nele, todos fazendo perguntas. Não desviei o olhar do terno-preto.
— Com seu nome? — perguntei. — Você se lembrou dele?
Ele fez que sim, os olhos prateados brilhando.
— É Sam — disse ele, a voz rouca, embargada. — Não sei como pude me esquecer dele por tanto tempo.
— Bem-vindo de volta, Sam — falei, dando um tapinha no ombro dele e depois me virando para os outros. — Todos prontos?
— Vamos nessa — disse Zê, afivelando o cinto.
Sam colocou o caminhão em marcha e ganhou a rua. O viking nos acompanhou aos saltos pela calçada, enrugando o nariz enquanto farejava o ar. Quando chegamos ao final da rua, o barulho se tornou mais intenso. Parecia uma debandada, o ruído de um milhão de animais correndo ao mesmo tempo. Ou o rugido de um exército se aproximando. Pensei no meu sonho, na lembrança das tropas que tentavam atacar Furnace, os olhos cintilando com um brilho homicida.
— Sabe para onde estamos indo? — perguntou Sam. Qualquer traço de emoção que restasse havia desaparecido, e seu olhar gélido concentrava-se na rua enquanto desviava de um enorme caminhão na esquina.
— Vamos voltar para a autoestrada — respondi, sentindo uma ardência na cabeça, como se a dor nos puxasse fisicamente para algum lugar o tempo inteiro. — Temos que seguir na direção sul.
— Sem prob... — disse ele, mas a palavra morreu em sua boca quando ele virou em um cruzamento e quase bateu de frente com um tanque.
O veículo se aproximava de nós, as esteiras chiando e fazendo crateras gigantescas no asfalto, esmagando os carros que encontrava. A arma, que parecia um enorme buraco negro, estava apontada bem em nossa direção. Sam soltou um palavrão, girando o volante e nos conduzindo para o meio-fio. Avistei o viking voando, indo direto para cima do tanque, e o chamei de volta. Viking ou não, ele não duraria muito tempo se o canhão fosse disparado.
— Segurem-se! — gritou Sam, virando o caminhão tão repentinamente que as rodas do lado direito saíram do chão, quase nos fazendo capotar. O caminhão demoliu um muro e invadiu um jardim, e depois saímos, acelerados, por onde tínhamos entrado; a velocidade era tanta que achei que minhas entranhas tinham ficado para trás.
— Como eles nos encontraram? — perguntou Simon, e todos nós, menos Sam, encaramos o tanque.
Estávamos na mira dele, mas o tanque não disparou, só continuou a nos perseguir enquanto derrapávamos em uma curva, tentando encontrar outra rota. Não tínhamos chegado muito longe quando Sam pisou no freio novamente, com tanta força que quase fui decapitado na janela aberta. Virei a tempo de ver um caminhão do exército do mesmo tamanho que o nosso aparecendo no cruzamento pelo qual havíamos passado instantes antes, os pneus fumegando e deslizando até parar.
— Não pare! — gritei, apontando para a rua.
Como se a gente tivesse escolha. Sam pisou fundo, cada lombada ameaçando arrancar o chassi do caminhão e nos lançar no ar. Olhei para trás e vi o viking arrancar a cabine do outro caminhão, fazendo o que sabia fazer de melhor. Depois de alguns segundos, ele voltou a nos seguir, deixando um rastro de pegadas cor de carmim na rua.
O segundo tanque não apareceu tão de surpresa. Dava para vê-lo no final da rua, a torre apontada para nós. Ele disparou, mas o tiro passou longe e atingiu uma casa próxima, com tamanha força que as paredes internas desmoronaram e a construção inteira desabou, como se fosse feita de cartas de baralho. Sam virou o volante para a esquerda, guiando o veículo por uma estreita rua lateral. O caminhão produzia faíscas, como uma rebarbadora, ao arranhar os carros estacionados dos dois lados.
Havia um cruzamento mais à frente, com mais um caminhão militar à direita. Viramos à esquerda, numa rua bem mais larga, e foi só quando um terceiro tanque apareceu, obrigando-nos a pegar a direita, que percebi o que acontecia.
— Estamos sendo encurralados — falei.
— Encurralados? — perguntou Zê, inclinando-se para a frente o máximo que o cinto de segurança permitia.
— Como ovelhas sendo pastoreadas — disse eu. — Vire à direita aqui.
Apontei para o cruzamento seguinte, onde um caminhão militar estava estacionado na faixa da direita, deixando a esquerda vazia. Sam balançou a cabeça.
— Não acredito — grunhiu ele, usando o peso do corpo para puxar o caminhão para a esquerda.
Ele percebeu seu erro assim que o cometeu. Mais à frente não havia passagem, pois um caminhão militar gigantesco ocupava o espaço entre as lojas dos dois lados da rua. Três Hummers estavam estacionados na frente dele, todos equipados com canhões.
E, em cima do veículo do meio, estava a coronel Alice Panettierre.
MISERICÓRDIA
Sam puxou o freio de mão, fazendo-nos parar desajeitadamente a vinte metros de Panettierre. Ele engatou a ré, mas eu sabia que não adiantaria. Dava para escutar um ronco de motor se aproximando de nós. E de fato, quando olhei pela janela, vi um tanque bloqueando nosso caminho. Não tínhamos por onde escapar.
Sam soltou um palavrão, esmurrando o volante. Escutei o viking subir no caminhão, seu peso fazendo o teto afundar e a suspensão gemer. Todos nós fulminamos Panettierre com o olhar. Ela agora trajava uma roupa militar, com calça bege, e segurava o canhão com tanta força que, de onde estávamos, dava para ver que as juntas de seus dedos estavam brancas. Nos veículos ao lado dela havia homens e mulheres, todos armados.
— Eu avisei que a gente devia ter matado ela — falei, o néctar transformando minha voz em um grunhido.
— Talvez você ainda vá ter essa chance — respondeu Simon.
Não tinha tanta certeza. Já tínhamos derrotado a coronel antes, é verdade, mas naquela vez eu tinha três vikings comigo. Mandei uma mensagem para eles, chamando qualquer criatura de Furnace que estivesse nos arredores, mas eu não conseguia sentir nem ver ninguém, a não ser o viking perto de nós. Não, dessa vez Panettierre estava com a vantagem e devia saber disso, pois exibia aquele sorriso que parecia amigável até você perceber que tinha dentes demais à mostra.
— Desculpe, Alex! — gritou Panettierre, agarrando ainda mais a arma. — Eu avisei que não o deixaria ir embora.
Ao ouvir a voz da coronel, o viking saltou do teto e se lançou para cima dela. Mas Panettierre foi mais rápida, puxando o gatilho enquanto ele ainda estava no ar. Eu tinha me enganado. Não era um canhão, era outro arpão. Escutei um estalo de pneumática, e em seguida o projétil atingiu a barriga do viking, a corda logo atrás, fazendo a criatura rodopiar quase graciosamente.
Ele caiu sobre um monte de escombros, o sangue preto jorrando do ferimento enquanto tentava se levantar. Mas seu braço não conseguia aguentar o peso do corpo, e, depois de um ou dois segundos, ele sucumbiu. Voltou os olhos para mim, piscando, e uma dúzia de ferimentos foi se abrindo em sua pele à medida que os soldados disparavam.
A raiva fervilhou em minha garganta e ficou ainda pior porque eu sabia que não podia fazer nada. A criatura ainda me encarava em desespero, um dos olhos ocultos pelo néctar que escorria. No entanto, se eu fosse até ela, também seria despedaçado. Panettierre aparentemente conseguia interpretar minhas emoções, porque começou a rir.
— Não é tão divertido assim, não é mesmo? — ela me perguntou. — Ver sua própria tropa ser massacrada.
Ela desceu do teto do Hummer, saltando no capô e tirando uma arma do cinto.
— Não se atreva — falei, baixo demais para que ela escutasse.
Ela mirou no viking e disparou duas vezes, os tiros atravessando a parte de trás da cabeça dele. A criatura abriu a boca, e um gemido baixinho escapou dali, junto com uma torrente de néctar. Panettierre atirou de novo, atingindo o pescoço da fera. Dessa vez, estendi o braço para a maçaneta da porta, sentindo uma fúria grande demais para conter. Zê agarrou meus ombros, impedindo-me de me mexer.
— E pensar que você valoriza mais essa monstruosidade do que uma vida humana — disse Panettierre. — Essa aberração irracional, pior que um animal. Pensar que você sacrificou todos aqueles homens e mulheres, todos os meus soldados, por isso...
Ela disparou mais uma vez, o tiro arrancando a orelha do viking. Ele ainda olhava para mim, suplicante, os dedos estendidos para o caminhão.
— Precisamos ajudá-lo — falei.
— Como? — perguntou Simon. — Se a gente sair daqui de dentro, vamos morrer. Deixe pra lá, Alex. É apenas um viking.
Mas era mais do que aquilo. Era uma criança. Despedaçada e remendada tantas vezes que tinha ficado irreconhecível, mas antigamente ela era como eu, como qualquer um de nós. Agora, seu rosto mutante parecia quase alienígena, mas eu nunca havia visto uma expressão de medo e dor tão humana. Era a expressão de uma criança que só queria voltar para casa.
Foi esse pensamento que me fez perceber o que eu devia fazer em seguida. Olhei nos olhos do viking, penetrando seus pensamentos e tentando acalmá-lo. Dava para sentir uma emoção lá dentro, uma tempestade turbulenta dentro de sua cabeça, um raio de sol por trás de nuvens escuras, como se o céu tivesse se aberto por um instante. Percebi que atrás daquela fresta estavam suas lembranças. Naquele feixe de luz dourada morava a criança que o viking era antigamente.
— Está tudo bem — falei. Mal dava para escutar minha voz, mas eu sabia que ele me escutava. — Não tenha medo.
Guiei o viking para a luz e consegui sentir seu coração se abrindo enquanto ele caminhava em meio à escuridão, enquanto se lembrava. Ele pareceu se desprender de seu corpo novo, saindo do espaço mental que Furnace criara para ele.
Tem certeza?, escutei Furnace perguntar. Ele vai morrer.
— Tenho — disse eu, prendendo a criatura dentro da minha cabeça, prendendo-a até que o viking, a criança, partisse com um último suspiro trêmulo. Lá fora do caminhão, na rua, os olhos da criatura tinham perdido a vida, ficando da cor de chumbo, e seu peito estava imóvel.
— O que você fez? — perguntou Sam.
— O que precisava fazer — respondi, empurrando a tristeza e a confusão para o fundo da minha mente, onde não pudessem mais me machucar.
— Ops — disse Panettierre desdenhosamente, abaixando a arma. Ela virou-se para o veículo a seu lado, para um homem que segurava o maior rifle que eu já tinha visto. Ele o apontou para nós.
— E agora? — perguntou Lucy.
— Se batermos naquelas lojas com força suficiente, talvez a gente consiga atravessá-las — sugeriu Sam.
— Ou talvez a gente termine explodindo — respondeu Simon. — Além disso, tem mais gente chegando.
Escutei os helicópteros no espaço acima de nós, o ruído das hélices parecendo uma pulsação sônica em minha cabeça. Duvidava que fôssemos capazes de fugir deles, pois éramos o único veículo em movimento na cidade inteira que não estava sob controle de Panettierre.
— Talvez a gente consiga negociar com ela — sugeriu Zê. — Sabemos onde Furnace está, não sabemos? Talvez a gente possa dizer a localização dele, ou levá-la até lá, algo assim. Vamos ver o que ela quer.
— É só nos entregarem Zê que deixaremos vocês partirem! — gritou Panettierre bem na hora.
— Tá, talvez não seja uma boa ideia — respondeu Zê, rindo sem achar graça nenhuma.
— A gente precisa de você, Zê — prosseguiu Panettierre. — Precisamos de sua resistência ao néctar. Entregue-se, e deixaremos seus amigos com vida, prometo.
— Cansamos de suas promessas no hospital! — gritei em resposta.
— Admito que comecei com o pé esquerdo — disse Panettierre logo em seguida. — Mas não precisamos recorrer à cirurgia. Temos outros recursos. Por favor, Zê, pelo menos converse comigo.
— Algum de vocês sabe dirigir? — perguntou Sam.
— Eu — disse Zê.
— Eu também — disse Lucy. — Por quê?
— Ela não vai deixar a gente ir embora — prosseguiu ele. — Nenhum de nós, mesmo se a gente obedecer.
— Acha mesmo? — perguntou Simon, a voz cheia de sarcasmo.
— A única coisa que importa é levar Alex até Furnace — disse o terno-preto. — Não sei por quê, mas é a coisa certa a fazer.
— Tem certeza, Sam? — perguntei, olhando-o nos olhos.
— Não sei se ele vai matar você, ou se você vai matá-lo. Só sei que, por alguma razão, esta guerra só acaba quando vocês dois se encontrarem. Se isso não acontecer, se ela levá-lo agora, ninguém ganha, e todos morreremos.
— Zê? — gritou Panettierre. — Vou contar até cinco, e depois vamos pegá-lo. Acredite em mim: você não quer que a gente vá aí. Podemos fazer isso da maneira fácil ou da maneira difícil, Zê. Se for da maneira difícil, nem precisamos de você vivo.
— Talvez eu deva ir com ela — disse Zê. — Quem sabe aí ela deixe vocês irem embora. Daí vocês podem encontrar Furnace, acabar com essa história toda e voltar a tempo de me salvar. O que acham?
Vou voltar para buscar você. Eu tinha dito aquelas palavras um século atrás, para Donovan, na noite em que a vigília sangrenta o levara. Eu tinha deixado que o levassem, e agora ele estava morto. Não ia permitir que o mesmo acontecesse com Zê. E eu não era o único.
— De jeito nenhum — disse Lucy. — Não vou deixar eles encostarem as facas em você.
Ignoramos o assobio baixinho de Simon.
— Um! — gritou Panettierre. O homem com o rifle nos olhou pela enorme mira telescópica. Os outros soldados fizeram o mesmo, uma enxurrada de pontos de laser dançando pelo caminhão, fazendo-me lembrar dos flocos vermelhos dentro do néctar de Furnace. O pensamento fez meu sangue se agitar, meu corpo ganhando força e ficando pronto para o combate.
— E então, o que faremos? — perguntei. — Atacamos?
— Não — sussurrou Sam. — Não dá para arriscar. Vou sair e criar uma distração. Um de vocês dois precisa assumir o volante.
— Dois — disse Panettierre.
— Vão em direção àquela loja ali — prosseguiu Sam. — A loja de carros. A vitrine não deve ser problema, e, se forem rápido o suficiente, vão conseguir abrir o caminho à força. Depois, é pé no acelerador, sair da cidade e escapar dessa mulher.
Assenti. Não era bem um plano, mas não tinha conseguido pensar em nada melhor. Era provável que a gente estivesse prestes a levar uma chuva de tiros, mas a alternativa era voltar ao hospital para ser cortado em pedacinhos. Imaginei Zê na mesa de cirurgia, o bisturi em sua pele, os cientistas de Panettierre coletando amostras. Era quase insuportável imaginar aquilo. Estendi o braço e o toquei com a mão esquerda.
— Vamos conseguir — falei.
— Três.
— Por que você não vem com a gente? — perguntei a Sam. — Vai terminar morrendo lá fora.
— Se eu não os distrair, todos nós vamos morrer — disse ele. — Pelo menos assim vocês ainda têm uma chance.
Zê segurou a mão de Lucy, que pegou a de Simon. Então Simon estendeu o braço e agarrou o ombro de Sam. O terno-preto colocou sua mão sobre a de Simon, apertando-a de leve.
— Boa sorte — disse Simon. — Cara, nunca achei que fosse dizer isso.
— Quatro! — gritou Panettierre. — Vamos lá, Zê, o tempo está acabando.
— Para vocês também — respondeu Sam. Então ele colocou o caminhão em movimento, estendendo a mão para fora da janela. Zê já estava indo para a frente, pronto para assumir o volante. Sam ergueu a voz, falando com Panettierre. — Ok, você venceu. Espere um pouco que ele já está saindo.
Não sei como perceberam que era mentira. Acho que fomos inocentes demais subestimando Panettierre. Assim que Sam abriu a porta, girando o corpo para sair do caminhão, o para-brisa explodiu.
Sam caiu de volta no banco, a bala atravessando sua cabeça e desviando de Lucy por milímetros, deixando um rombo enorme na parte de trás do caminhão. Uma névoa de néctar floresceu, tingindo o interior do veículo de negro. Percebi que alguém gritava no banco de atrás — eram Lucy e Simon dizendo para eu me abaixar. Me encolhi no momento em que o homem disparou de novo, a bala arrancando o topo do banco, onde antes estava minha cabeça.
Zê se jogou em cima do corpo morto de Sam, os punhos cerrados apertando os pedais. O motor grunhiu, parecendo prestes a morrer, mas depois deu um solavanco, indo em direção aos veículos.
— O volante! — gritou Zê.
Estendi o braço e o girei, tentando lembrar onde ficava a loja. Escutei o ruído de um tiro sendo disparando e senti o veículo resistir quando outra bala nos atingiu. Arrisquei levantar a cabeça; um vendaval uivava pelo para-brisa estilhaçado, fazendo meus olhos lacrimejarem. A loja estava bem à nossa frente, e nem tive tempo de gritar para avisá-los antes que a gente se lançasse contra a vitrine. O vidro quebrado entrou na cabine, o caminhão ainda em movimento pela ação dos punhos de Zê. Batemos em um carro, e fui jogado contra o painel enquanto nos projetávamos para o outro lado da loja.
O caminhão desacelerou mas não parou por completo, arrastando-se por cima da pilha de entulho que antes era a parede dos fundos da loja. Soltei o volante, tirando Zê lá de baixo e ajudando-o a se endireitar ao lado do que tinha sobrado de Sam. O caminhão estrebuchou quando ele soltou os pedais, mas ele logo pisou no acelerador, e acabamos em um pequeno parque.
Olhamos para trás, espiando pelos rombos feitos no fundo do caminhão, e avistamos um tanque que abria caminho em meio às ruínas da loja. Mas ele era lento demais e bloqueava o resto da frota de Panettierre enquanto saltávamos por cima de um canteiro com grama, ganhando a rua. Zê virou na primeira esquina que apareceu, depois na próxima e na seguinte, e, quando derrapamos ao virar na quarta esquina, com todos já nauseados, não dava mais para escutar o trovejar do exército atrás de nós.
Estendi o braço na frente de Zê e abri a porta do motorista.
— Sinto muito, Sam — falei, empurrando-o para fora. Não parecia certo abandoná-lo assim. Mas o que mais eu poderia fazer? Encontrar um lugar bonito e enterrá-lo? Ele caiu na rua com um baque surdo, rolando para longe de nós. O caminhão parecia bem vazio sem ele, e por um ou dois minutos ficamos em silêncio.
— A autoestrada, não é? — perguntou Zê ao passarmos por uma placa. Ele pegou uma rotatória, a mesma do dia anterior, e, alguns segundos depois, desacelerávamos em um acostamento, a dor na minha testa voltando a se manifestar. — A gente despistou eles? — Zê perguntou.
Olhei pela janela, a estrada livre atrás de nós. Mas vi pontos negros no céu nublado: os helicópteros, provavelmente nos seguindo.
— Ela nunca vai desistir — disse Simon, tendo percebido o mesmo que eu.
— Ótimo — falei, ajeitando-me no banco. O vento frio no meu rosto não acalmava o fervilhar do meu sangue.
— Ótimo? — perguntou Simon. — Como isso pode ser ótimo? Ela vai nos seguir até o fim do mundo se precisar.
— Ela não precisa nos seguir até o fim do mundo — falei. — Só até a ilha.
Pensei na ilha, nas criaturas que tinha visto, nos vikings que patrulhavam os desfiladeiros. E pensei em Furnace, que me aguardava lá. Ele não deixaria que Panettierre nos machucasse. Ele soltaria todas as suas forças, que transformariam os soldados dela em uma massa de carne, esmurrando seus ossos para dentro da terra. Que ela viesse atrás de nós. Da próxima vez, não haveria misericórdia.
— E o que vai acontecer quando a gente chegar na ilha? — perguntou Lucy.
Abri um sorriso tão grande que minhas bochechas chegaram a doer.
— É lá que está o meu exército.
ESTÁTICA
A autoestrada parecia não acabar nunca, uma cicatriz infinita que se estendia da cidade até as regiões mais distantes. Depois de dez minutos, os prédios empresariais começaram a diminuir, de trinta andares para vinte, e de vinte para dez, até os edifícios passarem a ser só um pouco mais altos do que casas. Dirigimos pelos bairros do sul sem ver um único sinal de vida; era como se algo invisível houvesse removido todos os homens, mulheres e crianças do perímetro inteiro. Também não vimos muitos cadáveres, mas dava para sentir o cheiro deles, o ar pesado com o fedor dos mortos.
O caminhão também estava com um péssimo odor, e seu interior estava pegajoso devido ao néctar. Depois de uns vinte minutos, Zê saiu da autoestrada, e paramos em um posto de gasolina.
— Não estou mais aguentando — disse ele, com ânsia de vômito. — Parece que estou sentado em cima dos miolos do terno-preto.
Ele abriu a porta e saiu, dando uma inspirada profunda, o corpo estremecendo.
— Espere — eu o chamei. — A gente não sabe se isso aqui é seguro.
Saí do caminhão e dei uma olhada nos arredores à procura de ratos. Vi centenas de pegadas cor de sangue, como se marcassem uma espécie de coreografia mórbida. Farrapos de roupas pareciam valsar em um canto ou outro, levados pela brisa. Era assustador, mas não vi nenhum sinal de perigo.
— Seja rápido, ok?
Zê acenou, dispensando meu comentário e dirigindo-se às pressas para um pequeno grupo de carros estacionados ao lado da loja de conveniência do posto. Eu o vi dando uma olhada dentro deles, procurando as chaves.
— Vou ver se tem alguma roupa lá dentro — disse Lucy, saltando do banco de trás e correndo para onde Zê estava. Simon foi atrás dela, alongando as pernas e as costas enquanto olhava para o céu.
— Eles ainda estão seguindo a gente, sabia? — falou ele, semicerrando os olhos prateados. — Dá para escutá-los.
Eu também os escutava; era a mesma cadência infinita do ruído dos helicópteros. Ergui o braço esquerdo, tentando estender meu novo dedo médio, mas o toco não quis se levantar. Simon viu o que eu tentava fazer e levantou os dois dedos médios para os céus, mexendo-os para cima e para baixo. Me perguntei se os pilotos dos helicópteros estariam nos observando; se dava para nos enxergar lá de cima. Vi o olhar de deleite no rosto de Simon quando ele ensaiou alguns passos de dança, os dedos no ar, e torci para que Panettierre estivesse vendo.
— Acha que estão muito atrás? — perguntei quando ele se acalmou.
— Não muito — disse ele. — Acho que já podiam ter nos alcançado; os helicópteros não são o que podemos chamar de lentos. Devem estar dando um tempo, querendo ver pra onde a gente vai. Eles podem pegar Zê a qualquer momento, mas acho que estão esperando que você os leve até Furnace.
Eu estava pensando a mesma coisa. Na verdade, estava contando com aquilo.
— Quer comida ou alguma coisa assim? — perguntei a ele. — A oportunidade é agora.
— Sim, senhor — disse ele, fazendo uma continência. Depois, saiu correndo para a loja de conveniência do posto.
Fui até onde estava Zê. Ele tinha conseguido abrir a porta de uma simpática van e mexia em alguns fios que tinha puxado da coluna de direção.
— Quanto tempo? — perguntei. Ele soltou um grunhido.
— Cinco minutos, no máximo — disse ele. — Depois mais uns dois para colocar combustível.
Assenti, deixando-o trabalhar, e segui para a loja. Apesar da porta aberta, o lugar estava deserto. Era muito maior do que aparentava de fora. Simon enchia uma sacola com doces e garrafas de Coca-Cola, e Lucy estava no fundo da loja, vendo a pequena seção de roupas. Me juntei a ela, me perguntando se teria algo ali que coubesse em mim. Ainda estava com a camisola do hospital, ensopada de sangue, néctar e suor.
— Acho que isso cabe — disse ela, lendo minha mente e erguendo uma capa de chuva verde que parecia um poncho. Peguei a peça das mãos dela. Não era exatamente algo que estivesse na moda, mas com certeza era melhor do que o que eu estava usando. Ela se agachou, revirando uma pilha de calças coloridas e, depois de um tempo, tirou uma que ficaria folgada até mesmo em um elefante. — Ainda bem que temos uma epidemia de obesidade — prosseguiu ela, sorrindo. — Acho que vai caber direitinho em você.
— Puxa, valeu — respondi. — Estou prestes a enfrentar o líder de um exército de monstros que destruíram o país, talvez o mundo, e você quer que eu vá usando uma legging laranja neon e uma capa de chuva verde-limão?
Lucy deu de ombros, pegando as próprias roupas e indo para o banheiro.
— Poderia ser pior. Imagine se você tivesse que enfrentá-lo de vestido.
Sua risada ecoou, contagiante, e também fiquei rindo enquanto carregava minhas roupas até onde Simon estava. Ele enchia a boca de jujubas, observando Zê pela janela. Não queria pedir a ajuda dele, mas não tinha escolha. Minhas novas mãos não tinham sido feitas para vestir roupas. Joguei a pilha em uma prateleira a meu lado e usei a lâmina de meu braço para rasgar minha roupa, sacudindo o corpo para os pedaços caírem no chão, e dei uma tossidela.
— Hum... — disse Simon, olhando para mim ali parado, a boca cheia de açúcar. — Tem alguma coisa para me dizer?
As palavras trouxeram à tona outra lembrança — eu e Donovan parados na sala de escavação da Penitenciária de Furnace, apenas de cueca, usando nossos macacões para contrabandear as luvas cheias de gás pela caverna. Aquilo me fez sorrir, o que provavelmente passou uma impressão errada, porque minha expressão pareceu deixar Simon ainda mais nervoso.
— Rápido — falei, olhando para os banheiros. — Não quero que Lucy saia e me veja pelado.
— Pois é — disse Simon, largando seu pacote de doces. — Eu também não estava muito a fim de ver você pelado.
Ele me ajudou a vestir a legging primeiro, tentando não olhar para as cicatrizes e feridas que atravessavam meu corpo retalhado. Eu também não queria vê-las, mas era impossível não fazê-lo. Em alguns lugares, especialmente na barriga e no peito, onde os ferimentos eram mais profundos, minha pele tinha endurecido tanto que parecia Kevlar. Em outros, veias negras pulsavam visivelmente, o néctar sendo bombeado para dentro delas, a carne tão esticada que parecia prestes a se rasgar a qualquer momento, derramando todo o meu interior no chão da loja. Meus membros estavam irreconhecíveis, as pernas parecendo troncos de árvore. Mas fiquei aliviado ao ver que todo o resto lá embaixo parecia estar exatamente como o esperado. Simon percebeu a mesma coisa e comentou, enquanto puxava a legging por cima da minha cintura:
— Achava que o néctar ia aumentar o seu... — Ele não completou a frase porque a porta do banheiro se abriu e Lucy saiu de lá. Ela vestia um agasalho esportivo preto e tênis novos em folha, e ao nos ver parados ali cobriu os olhos.
— Um aviso teria sido legal, né? — disse ela, atravessando a loja rapidamente para sair.
Nós rimos, e Simon pegou a capa de chuva na prateleira, fazendo-me inclinar enquanto a passava por minha cabeça. Ele teve que fazer buracos no tecido para eu passar os braços, mas, fora isso, serviu com perfeição.
— Como estou? — perguntei, mexendo os dedos dos pés, desejando ter encontrado sapatos também. Mas pelo menos eu estava com roupas limpas, que não fediam com o sangue de outras pessoas. Era preciso ser grato pelas pequenas ações de misericórdia, minha avó sempre dizia.
— Parece uma cenoura que acordou com o cabelo rebelde — comentou Simon.
— Valeu — respondi, indo em direção à saída.
— Ou um duende que tomou hormônios de crescimento.
— Tá bom, já entendi.
— Cujas roupas foram desenhadas por um Muppet e costuradas por um macaco cego.
Lancei um olhar para ele, que ergueu os braços em rendição, rindo como um maluco. Lá fora, Zê tinha conseguido ligar a van e transferia para ela o combustível de um carro estacionado ao lado. Lucy estava sentada no banco do passageiro, tentando a sorte com o rádio. Os dois sorriram ao ver minha roupa nova, mas ninguém comentou nada. Entrei no banco de trás, tentando colocar meu braço para dentro sem matar ninguém. Terminei tendo que deixá-lo no colo, a lâmina ocupando o banco inteiro. Ainda bem que tinha outra fileira de bancos atrás de mim, e Simon acomodou-se nela. A estática tomou o veículo.
— Não tem nada no rádio — disse Lucy. — Nem uma transmissão de emergência, nem nada do tipo. Só estática, em qualquer estação.
Ficamos parados escutando, o ruído límpido parecendo o sussurrar de um milhão de mortos. De vez em quando, achava ter distinguido uma palavra em meio ao rumor persistente, mas ela sempre era engolida antes que pudesse fazer algum sentido. Parecia estar ficando mais alto, aliás, como se os mortos soubessem que a gente escutava; como se quisessem voltar para o mundo real pelo nosso rádio. Fiquei contente quando Lucy enfim o desligou. Escutamos uma série de tinidos lá fora enquanto Zê terminava de encher o tanque com o combustível roubado. Em seguida, sentou-se no banco do motorista e falou para colocarmos o cinto.
— Fico na autoestrada? — perguntou ele.
— Sim, a autoestrada — respondi.
Mas não seria assim por muito tempo. Dava para sentir o gancho dentro de meus miolos, a dor mais intensa, e eu sabia que era porque estávamos mais perto. Mais uma hora, talvez duas ou três, e chegaríamos lá.
Ficamos em silêncio por um tempo. Era o que a paisagem lá fora parecia pedir.
Achei que, quando saíssemos da cidade, a fumaça começaria a esvanecer, mas ela continuava pairando por cima do mundo inteiro como um cobertor imundo. Não vimos muitas vilas nem cidades pelo caminho, mas mesmo assim eram inúmeros os lembretes do apocalipse. Havia literalmente milhares de carros abandonados no asfalto, alguns soltando fumaça, outros com malas e corpos se esparramando para fora. Alguns tinham mensagens pintadas no para-brisa ou no teto, todas dizendo mais ou menos a mesma coisa:
Ainda vivos. Socorro.
No entanto, apesar de a gente desacelerar toda vez que passávamos por uma, todas as mensagens estavam equivocadas. Não tinha mais ninguém respirando.
Em certo momento, passamos por uma placa do Museu de Guerra, outro lugar de que lembrava adorar quando era criança. Me recordava de tanques e aviões, das exposições de armas lá dentro, com bazucas e granadas. Nós nos entreolhamos, pensando a mesma coisa, mas também já sabíamos a verdade: armas não nos ajudariam, mesmo que fossem inúmeras e enormes. Seriam inúteis no lugar para onde estávamos indo.
Depois de cerca de meia hora, senti as agulhas no meu cérebro se moverem, a dor de cabeça deslizando da frente do crânio para a esquerda.
— Hora de sair da autoestrada — falei. — Pegue a próxima saída; estamos perto.
Zê seguiu minhas instruções, pegando a via de acesso seguinte e acompanhando as placas. Passamos por mais meia dúzia de vilas, todas desertas.
— Não entendo — disse Lucy. — Eles não podem ter matado todo mundo. Como isso é possível?
Ninguém respondeu, mas todos sabíamos. O néctar. Ele tinha acabado com aquelas comunidades como uma praga. Tentei imaginar como devia ter sido para as pessoas dali — ver monstros e vikings pelas ruas, assistindo-os atacar as pessoas, transformando crianças em bestas ferozes e sanguinárias. Eu tinha visto amigos meus se tornarem assassinos irracionais sob o efeito do veneno de Furnace, mas não conseguia imaginar como devia ser ver isso acontecer com seus próprios filhos, tampouco o terror de tentar consolá-los enquanto procuravam me matar, tendo de fazer uma escolha impossível: deixar que eles me devorassem ou matá-los primeiro? Era algo impensável.
De todas, a pior coisa que vimos, foi quando passamos por uma escola. Dava para ver uma movimentação do outro lado dos portões, e Zê desacelerou para darmos uma olhada.
— Tem crianças lá dentro — disse ele. — Está vendo?
Eu vi. Não eram crianças. Estavam todos de uniforme, mas com o rosto deformado, sangue ao redor da boca, buracos negros no lugar dos olhos. Eram tantos que não dava nem para contar, todos se jogando contra os portões trancados, estendendo os dedos mutilados em direção ao carro. Alguns tentaram escalar os enormes portões, porém não tinham força e terminavam caindo de costas, debatendo-se na terra úmida. Pareciam fracos — ferozes, mas esfomeados. Eu me lembrei do que Sam tinha dito: que o néctar só mantinha os ratos vivos por certo tempo. Concluí que aquela era mais uma pequena ação de misericórdia — o fato de aqueles ratos, aquelas crianças, não precisarem sofrer aquele pesadelo por muito mais tempo.
— O que a gente faz com eles? — perguntou Lucy do banco do passageiro.
— O que a gente pode fazer? — respondeu Simon. — Soltá-los?
Olhei para o rosto dos ratos, vendo as crianças por debaixo da máscara de néctar. Parecia o gesto mais bondoso a fazer, o mais humano. Pelo menos não morreriam como animais em uma jaula. Mas era perigoso demais. No momento em que aquela corrente ao redor dos portões se rompesse, eles se lançariam pra cima de nós, sem se importar com o fato de termos sido os responsáveis por tê-los libertado. Só queriam espalhar o néctar, disseminar a doença, e nos dominariam em segundos.
— Se abandonarmos eles ali, ela vai pegá-los — retrucou Lucy. — Aquela mulher. Vai abrir todos eles, coitadinhos.
— Vamos embora — falei. — Quanto mais rápido encontrarmos Furnace, mais rápido o mundo voltará ao normal.
Faltou convicção em minha voz. Não importava o que aconteceria quando chegássemos à ilha. Não tínhamos como salvar aquelas crianças, nem os milhões que já tinham sido massacrados. As coisas nunca voltariam ao normal. Continuamos na estrada, a mão de Lucy pressionando tanto o vidro que as juntas de seus dedos estavam brancas, e os soluços do seu choro escondiam os mortos e os moribundos atrás de um véu de condensação.
Depois de três cidades e noventa quilômetros rodados, o mar apareceu por sobre os telhados. O efeito foi tão dramático que, no início, achei que estivesse subindo; que o oceano cor de ardósia estivesse pronto para invadir a terra e acabar com toda a loucura que encontrasse pela frente. Teria achado bom, mesmo que significasse ser arrastado para suas profundezas junto com todo o resto.
Zê seguiu pela rua principal até o porto. Não havia quase nenhum barco ali, o que interpretei como um bom sinal — significava que talvez algumas pessoas tivessem escapado. A bússola de dor na minha cabeça havia mudado de posição novamente, e instruí Zê a seguir para o litoral. Ele obedeceu, e todos ficamos olhando o oceano, todos pensando a mesma coisa: poderíamos apenas seguir adiante, estaríamos mais seguros do outro lado do horizonte. Mas ninguém falou isso em voz alta.
Depois de quinze minutos na cidade portuária, a dor veio à tona, parecendo uma granada de luz explodindo em minha cabeça. Fechei os olhos e vi a ilha emergir em meio ao brilho infinito de minha mente.
— Pare o carro! — gritei, quando lembrei como se falava. Pisquei algumas vezes para afastar os pontos luminosos de minha visão enquanto Zê parava no meio-fio. — Acho que é aqui.
— Não brinca — respondeu Simon, os olhos pousando em um banco. Acompanhei seu olhar e vi dois ternos-pretos sentados em um banco perto do penhasco, parecendo um casal de turistas. Eles nos olharam quando perceberam nossa aproximação, os olhos prateados brilhando mais do que o sol encoberto. Um deles carregava algo na mão direita.
— Não estou vendo nenhuma ilha — disse Zê.
Pela janela lateral, não conseguia ver nada além de água. Mas não tinha como negar que havíamos chegado, nem como escapar disso. Eu ouvia a gargalhada de Furnace em minha cabeça; mais alta do que o ruído do motor; mais alta do que a explosão das ondas que atingiam o penhasco lá embaixo; mais alta do que as marteladas do meu coração.
Tínhamos chegado.
A ILHA
Quando Zê desligou o motor, os ternos-pretos já vinham em nossa direção. Os dois tinham braçadeiras vermelhas com o logotipo de Furnace — três círculos dispostos em um triângulo, um ponto no meio de cada um e linhas finas unindo-os — estampado nelas como uma suástica. Nenhum dos dois parecia estar armado.
Abri a porta, saindo com dificuldade e me alongando totalmente. Agora eu era bem mais alto que os ternos-pretos. Pensei na noite em que os tinha conhecido, dentro da casa onde Toby levara um tiro, em como eles pareciam gigantes. Engraçado como a perspectiva da pessoa pode mudar.
Abaixei a mão com a lâmina, deixando-a ao lado do corpo, a pele de ônix parecendo refletir as nuvens lá em cima. Os dois ternos-pretos hesitaram ao ver quanto eu era grande e diminuíram o ritmo dos passos.
— Alex Sawyer — disse um deles, e, comparada ao eco da risada de Furnace, a voz dele era pouco mais alta do que um sussurro. Diferentemente dos outros ternos-pretos, aqueles dois não me olhavam com desdém ou desrespeito. Na verdade, o rosto deles parecia expressar reverência. — É um prazer enfim conhecê-lo, senhor. Isto é pra você.
Ele estendeu o que carregava, deixando a encomenda pender do punho repleto de cicatrizes. Era um terno, um terno preto, e obviamente tinha sido feito sob medida para mim, porque parecia grande o suficiente para um urso-polar.
— De jeito nenhum — respondi enquanto os outros saíam do carro atrás de mim. — Querem que eu vista isto? De jeito nenhum.
— Não vai se encontrar com ele sem isso — avisou o terno-preto. — Pode até ser o novo general, mas mesmo você precisa seguir as regras dele.
Pensei em discutir, mas decidi que não adiantaria. Afinal, era apenas um terno. Não era grande coisa. Além disso, com certeza era melhor do que o que eu estava vestindo. Não queria enfrentar Furnace de legging laranja e capa de chuva verde-limão. Peguei o terno, fui ao lado oposto do carro e pedi a ajuda de Simon.
— De novo? — perguntou ele, incrédulo, mas se aproximou a passos rápidos. Demoramos alguns minutos, mas juntos conseguimos me vestir enquanto as gaivotas voavam em cima da gente, os gritos me fazendo lembrar o rio da cidade, aquela maré de cadáveres.
— Pronto — falei para a dupla de ternos-pretos, sentindo o olhar de aprovação deles. Na verdade, me sentia bem com o terno, apesar de ter sido um presente do homem que eu estava prestes a matar. Era macio, o tecido cortado exatamente para o tamanho do meu corpo — embora não fizesse ideia de como haviam conseguido fazer aquilo. A lâmina do meu braço direito se projetava para fora, no mesmo tom de preto do tecido. — Estão contentes? Agora me levem até Furnace.
— É para isso que estamos aqui — disse um deles. — Está pronto?
Não, pensei, mas a palavra não saiu pela minha boca. E os ternos-pretos não esperavam que eu respondesse, pois se viraram e atravessaram uma pequena faixa de grama rumo à extremidade do penhasco. Lá havia uma grade e o que parecia ser uma escada de ferro conduzindo para baixo.
— Meus amigos virão comigo — disse eu.
Os ternos-pretos deram de ombros.
— Problema deles.
Olhei para Zê, depois para Simon, e por último para Lucy.
— Não precisam me acompanhar — falei. — Não sei o que tem lá embaixo; não sei o que vai acontecer. Depois que chegarmos à ilha, a chance de algum de nós sair dela é bem pequena.
— Não era inexistente? — disse Simon.
— Uma em um bilhão — acrescentou Zê.
— Então é a mesma probabilidade de a gente sobreviver se você nos deixar neste penhasco — disse Lucy.
Assenti, olhando ao redor. Do outro lado da rua, havia uma loja de suvenires e um restaurante de peixe com batatas fritas, e mais adiante um bar. Tudo parecia calmo, mas não havia como garantir que as coisas ficariam assim. Por enquanto, contudo, aquela poderia ser qualquer cidade litorânea do país, e, quando pensei nisso, lembrei-me daquele dia que passei na praia com minha mãe e meu pai, o dia em que tiraram aquela foto que haviam deixado para mim. Eu me perguntei se não estariam me vendo agora, de onde quer que estivessem.
— Pois é, dá no mesmo — disse eu após um instante, virando-me para eles. Os ternos-pretos aguardavam perto da escada, sem nenhuma indicação de que deveríamos nos apressar.
— Além disso, não sei como acha que vai derrotar Furnace sem suas maiores armas — disse Zê, flexionando os braços magrelos.
Soltei uma gargalhada. Não sabia por quê, mas tinha rido mais nas últimas 24 horas do que nos últimos anos. Acho que se a pessoa perde o senso de humor é melhor se entregar logo para o ceifador e resolver tudo de uma vez. Quanto pior o pesadelo, mais altas precisam ser as risadas para a pessoa continuar viva.
— E então, o que estamos esperando? — disse Simon. — Um abraço em grupo?
Sorrindo, balancei a cabeça para rejeitar a sugestão e me aproximei dos ternos-pretos. Cada um estava a um lado da escada, e me deixaram passar. Assim que cheguei à extremidade do penhasco, a altura fez meu estômago revirar, a cabeça rodando. Mais adiante, o mar parecia calmo, mas, embaixo de mim, ele se debatia e golpeava o rochedo com uma ferocidade que me fez lembrar dos ratos. Cada onda detonada tinha o som de uma explosão de bomba, os estilhaços da arrebentação alcançando vinte metros de altura e gotas de água do mar reluzindo em meu terno.
A escada descia pelo penhasco em diagonal, presa à rocha, parecendo demais as escadas da prisão para o meu gosto. Dava para ver que terminava em uma pequena baía. Tinha um barco lá, oscilando ao sabor da maré. Olhei para os ternos-pretos, pensando na dor que tinham me causado na noite em que haviam atirado em Toby, e em como nos tratavam na Penitenciária de Furnace. No entanto, eu não os odiava. Eles tinham sido transformados, assim como eu. Também eram vítimas. Estava sendo sincero quando falara para Zê no hospital que não estava do lado dos soldados de Furnace, mas que também não era inimigo deles.
— Um de vocês me salvou — disse para eles enquanto descia o primeiro degrau, o metal rangendo. Eu me segurei no corrimão com a mão de dedos recém-formados, e o ferro descascado estava frio. — No hospital. O nome dele era Sam. Vocês o conheciam?
— Se ele tinha nome, não era mais um de nós — respondeu um deles.
Segui pelos degraus abaixo, bem devagar, sabendo que bastava uma escorregada para despencar por cima do corrimão. E eu não seria o primeiro, percebi. O perímetro da praia que o mar não havia coberto estava cheio de cadáveres, de gente que não havia conseguido lidar com o terror; de gente que tinha procurado a saída mais fácil. Estavam por cima do cascalho, como algas marinhas. Tentei ignorá-los, concentrando-me em meus próprios pés enquanto descia rumo à praia.
— Onde fica a ilha? — perguntou Zê atrás de mim, o vento arrancando as palavras de sua boca.
— A uns oito quilômetros daqui — respondeu um dos ternos-pretos. — Não vai demorar.
Pisei na praia pedregosa, caminhando até o pequeno barco a motor que subia e descia com as ondas. Tinha um terceiro terno-preto sentado dentro dele, e ele franziu a testa quando viu nosso grupo se aproximar.
— Vai ficar apertado — disse ele.
Entrei na água congelante. As ondas eram menores, mas igualmente agressivas, puxando meus tornozelos e tentando me arrastar para dentro do mar. A água estava na altura dos meus joelhos quando cheguei ao barco, e o terno-preto segurou minha mão esquerda, me ajudando a subir. O barco balançava assustadoramente, e me sentei logo no pequeno banco da proa, antes que terminasse caindo.
— Bem-vindo a bordo, senhor — disse o piloto, ajustando orgulhosamente a braçadeira vermelha para que ficasse bem aparente. — Estávamos esperando por você.
Quis dizer a ele que não era seu general, mas não pareceu valer a pena. Além disso, não podia negar que eu sentia uma coisa, um ímpeto de entusiasmo, ao escutar aquelas palavras, ao ser chamado de senhor. Já tinha passado por isso antes, parado na frente do diretor lá na prisão, vestido com outro terno preto novinho em folha. Fora uma das únicas vezes na minha vida que havia sentido pertencer verdadeiramente a alguma coisa; que sentira fazer parte de algo maior. Tinha sido maravilhoso e terrível ao mesmo tempo.
— Podia ter estacionado esta coisa um pouquinho mais perto da praia — disse Zê, com água na cintura. O terno-preto o puxou para bordo, fazendo o mesmo com Lucy e Simon. Os três se espremeram no banco do meio, tremendo. Os outros dois ternos-pretos ficaram parados na praia, vendo a gente partir.
— Eles não vêm? — perguntei, sentindo gosto de sal na língua.
— Recebemos notícias de que o exército está vindo para cá — respondeu o terno-preto. — Furnace ordenou que todas as unidades impedissem o avanço deles para que você conseguisse chegar à ilha.
— E onde estão todos eles? — perguntou Simon. — Vão precisar de mais do que dois caras se aquela maluca da Panettierre estiver vindo pra cá.
Dessa vez, o terno-preto franziu a testa, usando os braços imensos para dar a partida. O motor ganhou vida com um gemido, lançando um tufo de fumaça negra e espessa no ar. Olhei para a praia, vendo os desfiladeiros, e me perguntei se voltaria a ver terra firme ou se realmente sentiria falta dela. Com meus pais mortos e minha antiga vida praticamente esquecida, as únicas pessoas que tinham importância para mim estavam naquele barco. Zê e Simon — e Lucy, eu imaginava; eram eles que realmente importavam. Enquanto estivessem comigo, não importava onde eu estivesse.
E havia Donovan também, claro. Quando fechei os olhos, eu o vi, aquele seu sorriso resplandecente trazendo luz e vida de volta ao mundo.
O terno-preto acelerou o barco, que ganhou velocidade no mar aberto. Podia ter virado para trás, dando uma última olhada no país onde havia passado todos os segundos de minha vida. Mas não fiz isso. Só olhei para a frente, esperando a ilha aparecer, o lugar onde tudo aquilo acabaria, de um jeito ou de outro.
O terno-preto tinha razão. Não demoramos para chegar à ilha.
Zê foi o primeiro a avistá-la, apontando para uma mancha escura no horizonte. O oceano e o céu estavam quase da mesma cor, parecendo duas chapas de ardósia com a ilha presa no meio. Parecíamos estar entrando em uma tumba.
Aceleramos, o barco enfrentando as ondas oscilantes, a ilha parecendo um tumor no oceano. Ela parecia crescer e inflar, a superfície negra e irregular expandindo-se até dominar o horizonte. Era idêntica à do meu sonho, os penhascos cancerosos de rocha escura emergindo da água como se fossem muros de algum castelo antigo. E, no topo dela, havia uma mansão gótica, as torres tortas parecendo dedos fraturados apontados para o céu. Avistei silhuetas se movendo lá em cima, espreitando na extremidade, observando nossa aproximação. Estavam longe demais para que os distinguisse, mas tinha visto aquelas criaturas em meus sonhos, as piores criações de Furnace.
Ele também nos observava. Furnace. Dava para sentir os pensamentos dele dentro de minha cabeça, uma mensagem de boas-vindas silenciosa que fez meus ouvidos tinirem.
— Caramba! — exclamou Zê. — É enorme.
Era mesmo, e ainda estava aumentando, até parecer tão grande que sugou o que restava da luminosidade do mundo, lançando-nos no anoitecer. O terno-preto continuou se aproximando, seguindo por um dos lados daquela monstruosa construção natural. Os penhascos ali pareciam mais altos, tão escarpados que, quando olhei para cima, tive a impressão de que se curvavam sobre a água, prontos para baixar sobre nós como a arma de um algoz. Precisei desviar o olhar, senão vomitaria no barco.
— Não sabia que tinha ilhas por aqui — disse Simon, o rosto tão pálido que parecia quase verde.
— Está brincando? — respondeu Zê. — Tem milhares. A maioria é pequena demais para uma pessoa morar, mas tem várias como esta. Vi num documentário. — Ele pareceu desaparecer dentro de si mesmo por um instante, mas depois seu rosto se iluminou, como se tivesse acabado de ter a melhor ideia de todos os tempos. — Ei, acha que vão fazer um documentário sobre a gente?
Rimos baixinho. Desconfiávamos que aquela poderia ser nossa última risada.
A lateral da ilha não parecia terminar nunca — uma fortaleza infinita de obsidiana que subia das profundezas. Dei uma olhada na água e vi vultos sob a superfície, criaturas que se moviam a nosso lado, seus membros de aracnídeos entrelaçados em uma espécie de balé subaquático horrendo. Um deles emergiu, encostando a cabeça esquelética no casco do barco e fazendo com que nos encolhêssemos. Consegui ver seu rosto, que parecia o de um cadáver com a boca aberta, em uma expressão de terror permanente. Bolhas emergiam de um orifício sem dentes, mas imaginei que, se eu enfiasse a cabeça no meio das ondas, escutaria seu grito. Escutaria o grito de todos eles.
— Ignore-os — disse o terno-preto. — Não vão nos machucar, a não ser que Furnace queira.
— O que são essas criaturas? — perguntou Simon.
— Eles os chama de leviatãs — respondeu o homem. — Não devem chegar perto demais nem olhar nos olhos deles. Eles interpretam isso como um sinal de agressão. E, vá por mim, é melhor não irritar essas coisas aí.
O ser sob nós desapareceu na água turva, reaparecendo mais à frente. Um braço esquelético esticou-se para cima, os dedos longos demais acariciando o ar salgado como se nos chamassem. Dava para ver o final da ilha mais à frente, e o terno-preto diminuiu a velocidade do barco. Os penhascos dali se inclinavam até o nível do mar, mas havia também muralhas de pedra construídas pelo homem, escorregadias devido às algas e com canhões no topo.
— É um antigo posto naval — disse Zê. — De séculos atrás, não é? Da época das guerras.
— Isso aqui fazia parte de uma das principais rotas de navegação do país, de saída e chegada — explicou o terno-preto, assentindo. — Mas não é mais. Ninguém dá as caras aqui desde que Furnace comprou a ilha.
Havia uma passagem em arco nas muralhas, e o terno-preto dirigiu-se a uma pequena doca rochosa. Ele conduziu o barco com familiaridade até o ancoradouro, jogando uma corda ao redor de um gancho de metal enferrujado. O barco subia e descia lentamente, o som da madeira arranhando a pedra parecendo o ruído mais barulhento do mundo. Toda vez que o barco subia, podíamos ver o caminho estreito que ia da doca até os penhascos fragmentados, a rocha negra transformada pelas intempéries climáticas em torres serpenteantes, como se estivéssemos em uma antiga catedral. Vi sombras se mexendo lá em cima, movendo-se entre os pilares, uma constelação de olhos prateados que iluminavam a escuridão. Escutamos um grito, desesperado e apavorante, e não eu sabia se a enxurrada de respostas que o seguiram tinha sido um eco ou um coro.
De qualquer modo, foi algo que me fez ter vontade de ficar na praia.
— Quando quiserem — disse o terno-preto, esperando com ansiedade.
— Você não vem? — perguntei.
Ele balançou a cabeça em uma negativa, e achei ter visto um lampejo de emoção na prata derretida de seus olhos. Ele estava com medo.
— Não temos permissão para entrar na ilha — respondeu ele. — Nenhum dos ternos-pretos tem. Este lugar é só para Furnace e seus bichos de estimação. — Ele olhou para mim, para todos nós. — E agora para vocês.
— Ótimo — murmurei. Agarrei o gancho de metal com a mão esquerda, subindo na pedra com dificuldade. Assim que pisei nela, uma onda bateu nas rochas do exterior da baía, parecendo sacudir a ilha inteira e causando uma explosão ensurdecedora. Não sei por quê, mas aquele barulho me fez pensar em um prego sendo martelado em um caixão. Estendi o braço e segurei a mão de Lucy, ajudando-a, e depois fiz o mesmo com Simon e Zê.
— Boa sorte — disse o terno-preto sem perder tempo, já ligando o motor e voltando com o barco pela passagem em arco. Ele não olhou para trás.
Por um instante, nós quatro ficamos parados, encarando o oceano visível pela passagem, encarando o horizonte distante. Dava para sentir a ilha atrás de mim, seu volume imenso parecendo uma horrenda aranha esperando para nos injetar seu veneno. Não queria me virar; queria me jogar de volta na água e nadar até o litoral. Mas não podia, não com aquelas coisas lá fora, os leviatãs, com a promessa de seus dedos de bruxa me cercando e me puxando para as profundezas.
Não, estávamos encurralados. Só tínhamos um caminho.
Virei-me, olhando para o trajeto que serpenteava até o topo da ilha. Depois comecei a andar.
— Vamos lá.
ENTRE A CRUZ E A ESPADA
— E aí? — perguntou Zê enquanto a gente subia. — Você tem um plano, não tem?
O caminho era íngreme, e em alguns lugares havia degraus em meio às rochas. Passamos por apenas uma construção, uma ruína, e Zê comentou que antigamente ela devia servir para armazenar pólvora. Agora estava vazia, o que era uma pena. Talvez a pólvora acabasse sendo útil. Ao redor, rochas espiraladas ascendiam, erodidas por séculos de vento e ondas. Era impossível não pensar nelas como dedos, como se algum gigante subterrâneo estivesse prestes a nos esmagar na palma da mão. Ou grades... Quando olhei para trás, em direção à doca, e vi aquelas colunas altas bloqueando meu campo de visão, senti como se estivesse novamente em minha cela na prisão. De um jeito ou de outro, elas deixavam bem claro que ninguém ia sair dali.
Só quando cumprisse meu dever. Só quando cumprisse minha promessa.
— Alex? — disse Zê. — Não gosto quando você fica em silêncio desse jeito. Por favor, diga que sabe o que está fazendo.
— Não — respondi. — Não tenho nenhum plano.
O rosto de Zê evidenciou uma expressão de desânimo, e ele lançou um olhar nervoso para a ladeira. Silhuetas dançavam lá em cima em meio às rochas, movendo-se ao mesmo tempo que a gente, embora mantendo distância. Tudo o que eu conseguia enxergar eram membros ondulantes, longos demais, finos demais, e olhos que não piscavam.
— Sabe que pode ser uma armadilha, não sabe? — disse Simon. — Talvez Furnace nem esteja aqui.
Furnace não falava comigo desde que tínhamos chegado, mas eu sabia que ele estava na ilha. Não era como na torre, na cidade, quando achei que fosse enfrentá-lo. Quando não tinha ainda sentido seus dedos em meu crânio, manipulando meus pensamentos. Agora dava para senti-lo como se estivesse a nosso lado. Não era uma dor, pois a bússola no meu crânio tinha desaparecido. Eu simplesmente sabia.
— Ah, meu Deus — disse Lucy, agarrando o braço de Zê. — Eu sabia! Ele trouxe a gente aqui para nos matar.
— Se ele quisesse nos matar, teria feito isso em terra firme — respondi. — Ou na água.
— Então me explique de novo por que ele convidou você para tomar um chazinho? — perguntou Simon.
Não respondi. Não sabia o que responder. Mas logo descobriria.
— Acha que Panettierre ainda está seguindo a gente? — disse Zê, mudando de assunto.
— Ela não me parece o tipo de pessoa que desiste facilmente — respondeu Lucy. — Ela está vindo, não tenho nenhuma dúvida.
Seguimos o resto do caminho em silêncio e, depois de um tempo, chegamos ao topo da ladeira. Mais uma fortificação tinha sido construída ali, o portão enferrujado parecendo ter dentes quebrados. Escutei aqueles mesmos gritos distantes, metade humanos, metade animalescos, que me deixaram nervoso.
— Tem alguém aí pensando no doutor Moreau? — perguntou Zê.
Não fazia a menor ideia do que ele estava falando.
— H. G. Wells? A ilha do doutor... Ah, deixa pra lá, esquece — disse Zê, obviamente ofendido por ter companheiros tão iletrados.
Dei uma olhada através do portão em formato de boca e vi uma floresta adiante. As árvores eram grossas e baixas, mal chegando ao dobro da minha altura, e todas pareciam estar à beira da morte. Não era de surpreender, pois quase não havia terra ali em cima, e o manto permanente de névoa tinha gosto de sal puro.
Assim que passei pelos dentes de ferro e entrei na floresta, a cacofonia de gritos e gemidos se intensificou. Minha pulsação se acelerou, meu coração se transformando em um motor que bombeava néctar pelo meu corpo. Ergui a mão direita, pronto para me defender caso alguma coisa atacasse, mas, tirando os sons e as sombras distantes e disformes, não vi nenhum sinal de perigo.
Seguimos em meio às árvores, os galhos se unindo acima da gente, bloqueando o pouco que restava de luz. Meus olhos prateados espreitaram a escuridão, distinguindo troncos com saliências irregulares e galhos retorcidos. A vegetação rasteira deixava o solo fofo; eram séculos de raízes não aparadas e ervas fazendo o que podiam para tropeçarmos e darmos o fora dali. Apesar de eu saber que não era o jardim dos meus sonhos — o das lembranças de Furnace —, os dois lugares se pareciam demais para o meu gosto.
— Este lugar é assustador — comentou Lucy. — Eu não...
Ela foi interrompida pelo ruído de passos apressados, a madeira estalando como se algo forçasse passagem em meio às árvores.
Algo grande, que se aproximava.
Entramos em formação, unindo nossas costas e sentindo o chão tremer. Foi então que vimos a silhueta na floresta, grande demais para ser humana, maior até do que um viking. Ela abriu caminho em meio aos grossos troncos como se corresse entre palitos de dente, quebrando a madeira, vindo bem em nossa direção.
— Abaixem-se! — ordenei, empurrando os outros para o chão e me jogando em cima deles, rezando para não sermos pisoteados.
No entanto, quando a criatura nos alcançou, ela parou completamente, demolindo uma última árvore com seu tamanho imenso.
Fiquei encarando-a, sem acreditar no que via. A besta era humana, ou pelo menos um dia havia sido. Tinha quatro metros de altura e um corpo de largura proporcional, formado de dobras carnudas de pele acinzentada. A cabeça parecia um punho com inúmeras juntas. Duas das juntas se abriam e se fechavam, os olhos negros piscando para a gente. Depois a cabeça pareceu se dividir em duas, e um rugido escapou de sua boca escancarada, borrifando gotas de néctar em todos nós.
Mas isso não foi o pior.
No início, achei que houvesse pessoas montadas na besta, vultos amarrados na lateral do corpo dela com alguma espécie de arreio. Porém, quando olhei mais atentamente, percebi que as silhuetas faziam parte da besta. Membros projetavam-se de sua carne como botões em uma planta, dúzias de braços e pernas deformados agitando-se por todo lado. E também havia rostos sob a pele da criatura. Dava para vê-los pressionando-se para fora, as bocas abrindo e fechando, como se nos chamassem, implorando para que os soltássemos.
Escutei um gemido baixo e desesperado, um grito de puro terror, e não demorei para perceber que tinha saído de mim.
A criatura pisoteou o solo com força, farejando o ar e bufando pelas cicatrizes gêmeas que eram suas narinas. Então recuou, pronta para lançar as pernas gigantes sobre nós — não, não eram pernas, percebi, mas mãos —, pronta para nos esmagar contra a superfície da floresta. Obriguei-me a me concentrar, fechando os olhos. Conseguia controlar os vikings, então talvez também conseguisse enviar ordens para essa aberração. Era bem improvável, mas o que mais eu podia fazer? Enfiar a lâmina da minha mão naquela coisa seria como tentar matar um rinoceronte com uma faca de cozinha.
Enviei uma mensagem, imaginando o monstro se retirando para o interior da floresta e nos deixando em paz. Naqueles segundos, devo ter imaginado aquilo uma dúzia de vezes, gritando-lhe ordens silenciosas. Senti o chão tremer quando ele o esmurrou e, ao abrir os olhos, percebi que ele recuava desajeitadamente. Ele balançou a cabeça, como se tentasse afastar uma mosca de dentro do crânio, sem desgrudar os olhos de mim. As formas sob sua pele se contorceram.
Eu me levantei, o néctar criando uma tempestade interior, fazendo todas as minhas células cantarem.
Leve-nos até ele, grunhi dentro de minha cabeça. Leve-nos até Furnace.
Imaginei a mansão e a besta nos mostrando o caminho. Ela abriu a boca de novo e se lamentou como uma vaca sendo levada para o abate. Mas a criatura não tinha escolha. Eu era o general dela, e ela me obedeceria. Balançando a cabeça mais uma vez, fazendo galhos do tamanho de homens caírem no chão, ela começou a se movimentar.
— O que diabos era aquela coisa? — perguntou Lucy quando começamos a segui-la. — Tinha... gente dentro dela.
— Era só mais um monstro, deixe pra lá — retrucou Zê. Ele se virou para mim. — O que você disse pra ela? Essa coisa vai levar a gente até Furnace?
— Acho que estamos prestes a descobrir — falei.
Depois de alguns minutos, o viking saiu bruscamente do meio da floresta, fazendo folhas e galhos caírem atrás de si. Seguimos seu rastro, indo parar em uma área aberta e ampla, do tamanho de um campo de futebol. Ali a superfície era rochosa e irregular, repleta de crateras e fissuras. Poderia até ser a superfície da lua, não fosse a mansão do outro lado. Ela surgia no meio da ilha como se tivesse sido criada ali e construída com a mesma rocha negra, suas muralhas e torres tão aleatoriamente distribuídas que pareciam naturais. O viking avançava para ela com determinação, as dobras de gordura e os membros excedentes balançando para cima e para baixo enquanto atravessava o terreno desnivelado.
E ela não estava só.
Outras criaturas também estavam lá, dezenas delas, aglomerando-se nas crateras de pedra como se fossem formigas. Algumas pareciam até insetos gigantes — tinham o corpo enrijecido pelo néctar, a pele com a mesma cor e textura de uma carapaça de besouro, os lábios que se curvavam em mandíbulas irregulares. Algumas assemelhavam-se mais às crianças que tinham sido antigamente, ainda feitas de carne. Mas a semelhança parava por aí. O corpo era uma caricatura cruel, como se houvesse sido moldado com massinha por uma criança entediada e depois deixado ao sol para murchar.
Cada uma era diferente da outra, e todas corriam, saltavam e mancavam por cima das rochas para nos ver melhor. Chamavam-se enquanto se moviam, algumas parecendo criancinhas choramingando, outras, porcos grunhindo. Também ouvi algumas palavras, mas nada que fizesse sentido. Os vikings haviam sofrido uma transformação intensa demais para se lembrar de como era falar.
Notei que algumas das aberrações aproximavam-se, o rosto curioso, ou talvez zangado. Perto da extremidade do penhasco, duas criaturas brigavam, os braços gigantescos arrancando pedaços uma da outra, até uma delas se afastar gemendo.
— Vamos — disse eu. — É melhor a gente continuar andando.
— Não consegue controlá-los? — perguntou Lucy.
Achava difícil, pois estávamos perto demais de Furnace. Duas ou três eu talvez até conseguisse, mas trinta, quarenta, ou mesmo cinquenta de uma vez só, com a voz do mestre delas saindo da mansão? De jeito nenhum. Começamos a andar de novo, lentamente, com medo de que qualquer movimento repentino desse início a uma debandada. O caminho era difícil, e algumas das fendas na pedra deviam se infiltrar por todo o centro da ilha, porque dava para escutar o mar lá embaixo, golpeando a rocha. O som me fez pensar em quando estava dentro da sala de escavação na prisão, após a explosão, prestes a pular no rio.
— Está pensando o mesmo que eu? — perguntou Zê, e, pelo seu olhar, percebi que estava. — Pelo menos a gente tem uma rota de fuga se essas coisas decidirem que não gostam da gente.
Saltei por cima de uma fissura estreita, escutando o estrondo das ondas lá embaixo. Não duraríamos um segundo lá, se pulássemos. O rio sob a prisão havia quase nos matado, e o oceano era um milhão de vezes mais poderoso.
Quanto mais perto chegávamos da mansão, mais estranha ela parecia. Duas alas amplas de três andares ladeavam a torre central, com várias torres e espirais menores se erguendo de outras partes. Pelo menos vinte janelas escuras assistiram à nossa aproximação. O viking da floresta tentava se espremer pela porta da casa, mas seu volume o impedia de entrar. Ele nos escutou chegando, balançou a cabeça e me olhou tristemente.
— Este lugar devia ser um quartel ou algo assim — disse Zê, a mansão se agigantando diante de nós. — Provavelmente instalaram uma divisão naval inteira aqui, para ficar vigiando e...
— Escutaram isso? — interrompeu Lucy.
Inclinei a cabeça, tentando ouvir alguma coisa por cima do rugido do oceano. E, de fato, lá estava ele, o fraco rumor do helicóptero. Simon saiu correndo da frente da construção para a extremidade do penhasco, a cinquenta metros de distância, e deu uma olhada para cima, protegendo os olhos com a mão, apesar de o sol continuar encoberto pelas nuvens. Depois se virou, colocou as mãos ao redor da boca e gritou em meio ao vento:
— Barcos!
— Panettierre — constatei. Corri até Simon, tomando cuidado para não chegar perto demais da beirada do penhasco. E realmente havia umas duas dúzias de embarcações da marinha, de diferentes tamanhos e formatos, vindo em nossa direção, deixando o oceano agitado e furioso. Cerca de uma dúzia de helicópteros as acompanhavam no céu.
— Como chegaram aqui tão rápido? — perguntou Lucy, que se postara a meu lado e agora segurava meu cotovelo, temendo ser derrubada do penhasco pelo vento.
— Já deviam estar a postos — respondeu Zê assim que chegou, ofegante. — É bem provável que só estivessem esperando Panettierre dar as coordenadas. Tem uma base mais ao norte do litoral, não é? Suttermouth. Não, Colvermouth, é isso. Teriam despistado as tropas de Furnace se saíssem de lá. Isso é como se fosse a Normandia. São muitos.
Eram mesmo, todos com soldados. Mas não estava sendo fácil para eles. Um barco já estava afundando, a fumaça subindo do motor. Mais dois tinham colidido um com o outro, e vi uma silhueta do outro lado do para-brisa, uma besta com rosto de cadáver que atacava a tropa. Os leviatãs faziam seu trabalho com dedicação, mas não seriam capazes de deter todos eles.
— Caramba — murmurou Zê. — O exército lá fora, Furnace aqui. Estamos mesmo entre a cruz e a espada.
Voltei correndo para a porta da mansão, e todos me seguiram. O viking agigantava-se a nosso lado, olhando-nos com curiosidade. Ele se abaixou enquanto eu passava, tentando atravessar a porta à força, conforme eu tinha lhe ordenado. Mandei uma mensagem mental para que ficasse parado, e ele obedeceu. Manteve a cabeça na mesma altura que a minha, apoiando o peso nos punhos imensos. Seus olhos piscaram para mim, e gemidos baixinhos vieram de sua garganta. Estendi minha mão com dedos, colocando-a em sua bochecha. Ele pareceu apreciar o toque, pressionando o rosto contra minha mão. Poderia muito bem ser um cachorro gigantesco, não fossem as cabeças a mais que esticavam sua pele, abrindo e fechando as bocas em gritos silenciosos, e se seu rosto, por mais deformado e retorcido que fosse, não pertencesse tão claramente a uma criança.
— Obrigado — falei para ele.
Depois, passei pela porta, entrando na mansão fria e escura. Meus olhos mal tiveram tempo de se adaptar à escuridão — vendo uma grande sala de recepção, com móveis e pinturas antigos, e idênticas escadarias grandiosas de cada lado —, antes que eu escutasse o viking soltar um uivo ensurdecedor atrás de mim. Quando me virei, vi que ele tinha se posicionado em frente à porta, o corpo imenso bloqueando praticamente toda a luz.
— Ei! — gritei.
— Alex? — gritou Zê do outro lado, a voz abafada. — Faça ele se mover; a gente não está conseguindo entrar.
Tentei me concentrar, ordenando que a criatura saísse do caminho e imaginando-a se afastar da porta. Nada aconteceu, nem quando tentei de novo, gritando mentalmente para que obedecesse.
— Saia daí! — gritei, batendo no viking com a mão esquerda. Ele inclinou a cabeça e me fulminou com o olhar, e um uivo de banshee explodiu de sua mandíbula escancarada, mas nada de ele sair da porta. Ia bater nele de novo, mas escutei a voz de Furnace irromper dentro de minha cabeça, tão alta que meus pensamentos viraram farpas.
Precisa fazer essa jornada final sozinho, Alex.
Percebi que as palavras tinham me feito cair de joelhos, deixando-me sem voz e sem fôlego. Levantei com dificuldade, parecendo ter sido atingido por um trem de carga. O néctar gotejava de meu nariz. Senti seu gosto horrível na boca e cuspi.
— Me esperem aqui — falei para os outros, ofegante, as palavras apenas sussurradas. Respirei com dificuldade e repeti a frase.
— Alex, não pode ir sozinho, ele vai matá-lo!
Não consegui distinguir quem tinha falado isso, pois o corpo do viking abafava o som e meus ouvidos tinham um zumbido muito alto. Encostei a mão esquerda na porta, despedindo-me em silêncio de meus amigos, rezando para que ficassem em segurança; rezando para que eu sobrevivesse e os visse novamente. Depois entrei na mansão.
De agora em diante, seria só eu.
Eu e Alfredo Furnace.
CALMARIA ANTES DA TEMPESTADE
A mansão era um labirinto de quartos e corredores, mas eu sabia exatamente aonde ir.
Caminhei pelo hall de recepção, passei pela escadaria e atravessei as portas duplas. Ninguém parecia entrar ali havia anos, talvez até mesmo décadas, com tudo coberto por uma camada de pó. As pinturas nas paredes eram todas de líderes militares, suas medalhas ofuscadas pelo pó e seus olhos me acompanhando. Do teto pendia um candelabro gigante que balançava, como se algo houvesse acabado de perturbá-lo, contudo as minhas pegadas eram as únicas no chão imundo.
Um enorme corredor se estendia do saguão, com portas abertas dos dois lados. Dei uma olhada no interior de alguns quartos, quase todos vazios; alguns tinham apenas sucata de maquinaria velha e uma ou outra escrivaninha. Um tinha beliches, os mesmos usados na Penitenciária de Furnace, os lençóis esvoaçando sob a brisa que entrava por uma janela quebrada.
Pensei em voltar até a porta da mansão e dizer a Zê, Simon e Lucy que havia outra maneira de entrar. Mas de que adiantaria? Se Furnace me queria ali sozinho, era isso que aconteceria. Não tinha como discutir com ele, não dentro de sua própria casa.
Caminhei até o fim do corredor e empurrei mais uma porta dupla, chegando aos fundos da mansão. Uma escada conduzia ao porão, o piso rachado e manchado. Tinha uma janela ali também, e através do vidro sujo dava para ver o oceano lá embaixo e uma batalha em andamento. Depois que os soldados passassem pelos leviatãs, não demorariam a chegar à ilha. Se não quisesse que as mãos nojentas de Panettierre encostassem em meus amigos, eu teria que ser rápido.
Meus passos pareciam ocos enquanto eu descia os degraus, o eco parecendo durar bem mais que o normal — como se a casa tivesse passado tantos anos em silêncio que não soubesse mais lidar com barulho. Não tinha nenhum cômodo ali, mas, na metade da passagem, havia uma alcova com um banco de madeira. Uma boneca de plástico com um vestido florido jazia encostada em uma parede de azulejos brancos rachados, sem os cílios de um olho. Ao lado dela estava uma máscara de gás toda suja, o tubo sobre as pernas da boneca.
Segui em frente e cheguei a outra escada, ainda mais estreita, que também descia. Ela levava à parte central da ilha, fazendo-me mergulhar em trevas tão profundas que nem meus olhos prateados conseguiam distinguir onde ela acabava. Depois de um tempo, vi o contorno de mais uma porta dupla; a luz que passava pela fresta era tão forte que parecia haver um incêndio atrás dela.
Hesitei, a lâmina da mão a postos. Não sabia no que Alfredo Furnace havia se transformado, que tipo de poderes tinha. Estava vivo havia tanto tempo que era impossível que ainda fosse humano. Pensei no diretor, em quando havia lutado contra ele na torre. Pensei no que ele se tornara ao beber o novo néctar — um ser que vivia no limiar da realidade, metade vida real, metade sonho, capaz de manipular a física como bem entendesse.
Mas eu tinha derrotado o diretor; fizera ele admitir a derrota e deixara que os Ofegantes terminassem o trabalho. Se ele podia morrer, seu chefe também poderia. Poucas criaturas sobreviviam a uma facada no coração. Não importava o que Furnace dissesse, as mentiras distorcidas que tentasse contar, os poderes que me oferecesse... eu o mataria.
Ou morreria tentando.
As portas pesadas se abriram em silêncio, deixando à mostra um mundo que era o oposto da mansão abandonada lá em cima. Um felpudo tapete vermelho se estendia pelo corredor, e as paredes tinham reluzentes painéis de madeira. O teto era constituído de arcos abobadados, e em cada um havia um candelabro de cristal com brilho impecável. A luminosidade deles era dourada, banindo todas as sombras de uma só vez.
Escutei ruídos e os segui, chegando à porta mais próxima, o coração batendo tão forte na garganta que dava para sentir o néctar na língua.
Dentro do cômodo enorme, havia sete fileiras de camas de madeira. Duas camas estavam ocupadas. Em uma havia um bebê envolto em um pano e dormindo profundamente. Na outra, do outro lado do quarto, estava um garoto de uns dois anos. Ele se segurava nas grades de madeira da cama, sorrindo, e saltava no colchão. Ao me ver, ele se deteve, o sorriso desaparecendo e a testa se franzindo.
Fiquei tão chocado ao vê-lo que quase não notei o Ofegante ali dentro. Mas não era um Ofegante. Ele usava as mesmas roupas, o mesmo casaco longo, com uma bandoleira de seringas. Também tinha o mesmo rosto, a carne pálida, e os olhos parecendo blocos de carvão.
Só que não usava a máscara de gás.
Ele ficou me encarando, a boca sem lábios formando uma caricatura horrenda de sorriso, a língua preta se movendo lá dentro como uma enguia. Ele se contorceu, assim como os Ofegantes da prisão faziam, jogando a cabeça para trás enquanto o corpo inteiro se sacudia. O garoto ficou observando e começou a rir, batendo palmas com as mãos rechonchudas. Eu me virei e voltei para o corredor. Precisei fazer aquilo — o que vi ali dentro quase destruiu o que tinha sobrado de minha sanidade.
Continuei pelo corredor e passei por mais uma dúzia de quartos semelhantes. Tentei não olhar, mas foi inevitável. Vi outras crianças, mais velhas, presas a máquinas ou deitadas em mesas de cirurgia. Algumas não eram mais humanas, percebi, o corpo tão retorcido e remendado que só podiam ser vikings. Os Ofegantes me viram passar, dando seus sorrisinhos de cadáver, soltando os mesmos ruídos de pesadelo, os guinchos ensurdecedores que eu conhecia tão bem.
Queria correr lá para dentro e matar todos eles, mas não havia tempo. Panettierre podia muito bem já estar na ilha, capturando Zê e matando os outros. Além disso, meu medo de ser pego pelos Ofegantes, de terminar sendo operado por eles mais uma vez, falou mais alto. A ideia de ver aqueles olhinhos enquanto sorriam para mim me deixou com saudade da versão antiga dos Ofegantes, aqueles familiares, que usavam máscaras de gás.
Continuei andando, sentindo a raiva provocada pelo néctar, mas seu ímpeto era abafado pelo medo, e a cada ciclo eu ficava mais exausto. Tudo bem. Não precisaria mais de minhas forças por muito tempo. Só era preciso fazer mais uma coisa; só tinha mais uma promessa a cumprir, depois poderia descansar por toda a eternidade.
O corredor terminou em mais uma porta dupla. Em uma delas havia um brasão pintado — um escudo vermelho e branco, com uma macieira crescendo em cada lado e um animal no centro. Não sabia que animal era aquele, talvez um chacal, mas reconheci os olhos prateados. Pareciam reluzir sob a luz do corredor, como se a criatura estivesse prestes a saltar do desenho e me devorar. A outra porta tinha o logotipo de Furnace que eu conhecia tão bem, decorando uma bandeira vermelha.
Mesmo que não houvesse nenhuma indicação, eu saberia que ali eram as instalações de Furnace. Dava para senti-lo no ar; sua presença era uma pulsação infinita que parecia reverberar por todo o meu corpo. Parei, rezando para quem quer que estivesse escutando. Depois estendi a mão, girei a maçaneta e abri a porta.
ALFREDO FURNACE
Não sei mesmo o que eu estava esperando. Mas não era o que encontrei na minha frente.
Estava na entrada de um grande aposento, o teto coberto de sombras. Colunas de tijolos em ruínas pareciam brotar do chão e, apesar de não estarem enraizadas como árvores — como as colunas da torre —, pareciam-se com elas, seus galhos abobadados se entrelaçando lá em cima. Nas paredes havia algumas lâmpadas tremeluzentes, e a luz inquieta iluminava pouco os arredores.
Havia um viking empoleirado em cada lado do quarto, aproveitando a escuridão. Não dava para vê-los tão bem por trás dos pilares, mas consegui distinguir os membros de ônix com lâminas, as mandíbulas de onde pingava saliva suja e os olhinhos que me observavam com receio. Um deles grunhiu quando entrei, contudo nenhum parecia me considerar uma ameaça.
Porém, não foram eles que me fascinaram e me apavoraram ao mesmo tempo. Foi a máquina. Ela dominava o cômodo inteiro, um aglomerado monstruoso de cobre, vidro e aço. Várias partes se moviam, dançando para a frente e para trás e produzindo uma pulsação baixinha que fazia meus ossos tremer. Mas ela também parecia orgânica, como se tivesse brotado de uma rocha úmida, seus diversos canos lembrando as gavinhas espinhosas de uma planta. Era enorme, indo de um lado a outro do quarto, perdendo-se nas poças de escuridão do teto. Seu design era tão complexo e seu movimento, tão hipnotizante que demorei um instante para perceber a silhueta presa a ela, quase como se estivesse crucificada.
Era Alfredo Furnace.
Ele era humano, mas ao mesmo tempo não era. Seu corpo tinha sido arruinado pela idade, a pele tão apodrecida que havia pedaços dela pendendo de alguns lugares, parecendo carne morta. Algumas partes dele nem existiam mais — a parte superior do braço direito e todo o lado esquerdo da garganta —, e no lugar delas havia uma rede de tubos e cânulas, carregando o néctar por seu corpo todo. Estava tão definhado que podia muito bem ser um cadáver, as costelas esqueléticas proeminentes, deixando à mostra os órgãos sob elas. A maioria deles parecia ter sido substituída por partes da máquina, porém seu coração continuava no lugar, enrugado e negro como um figo podre, mas ainda batendo.
Foi seu rosto, no entanto, que quase me fez cambalear; que fez um grito ser vomitado de minha barriga, sendo contido apenas porque não havia nenhum ar nos pulmões para alimentá-lo.
Era como se Furnace fosse três pessoas ao mesmo tempo. Dava para ver a criança lá dentro, a das minhas visões, um garoto que não era mais velho do que eu. Mas também era um idoso, o rosto tão murcho quanto o corpo, a pele da cor e da textura de uma maçã podre. Os dois pareciam se alternar com tanta rapidez que davam a impressão de se fundir.
Mas também tinha outra coisa, uma silhueta em cima do corpo e da cabeça de Furnace, como um negativo de fotografia, que não conseguia ficar parada por tempo suficiente para que eu me concentrasse nela. E eu sabia o que era. Já tinha visto essa coisa antes.
Era o desconhecido, a criatura do jardim.
Era como se a pele de Furnace irradiasse uma maldade ativa, vinda de um vulto incontrolável, que se debatia, se agitava e lutava como um prisioneiro tentando se livrar das correntes. Reconheci seu rosto, ou o vazio onde seu rosto deveria estar, abrindo-se e fechando-se como se formado por um milhão de abas móveis. Os olhos do desconhecido — não, o lugar onde deveriam estar seus olhos — me observavam, dois portais escancarados e enormes no meio da cabeça, infinitamente mais escuros que a penumbra ao redor deles, como orifícios queimados na pele da realidade. Pareciam sugar toda a luz e calor do quarto, devorando-os, e devolvendo apenas uma noite fria. Sabia que, se encarasse aqueles olhos por tempo demais, eu perderia a sanidade e também sucumbiria.
Caí de joelhos, o pilar a meu lado sendo a única coisa que me impediu de dar com a cara no chão. O mesmo medo que me agarrara no sonho do jardim havia me encontrado novamente, aquele medo inominável, impensável, insuportável. Tudo no quarto parecia estar se desemaranhando, como se a superfície do mundo estivesse sendo descascada para revelar um abismo. O vazio ilimitado era infinitamente silencioso e, ao mesmo tempo, ensurdecedor. Dava para sentir gotas de néctar pingando de meus ouvidos, sendo espremidas dos canais auditivos, e do meu nariz. Eu também estava sendo desemaranhado, todas as células do meu corpo se contorcendo e virando um pó que desafiava a gravidade, subindo em direção ao teto.
Alex, disse Furnace, e suas palavras acabaram com o caos, trazendo-me de volta para o quarto. Sua voz era o som de continentes em movimento, mas também era possível escutar o tom de voz rouco e suave de um idoso, além da voz aguda de um garoto, os dois falando as mesmas palavras de maneira sutilmente dessincronizada. Não precisa ter medo de mim.
— O que você é? — perguntei. Não sabia se as palavras tinham saído de minha boca, mas não importava. Ele conseguia ver o interior de minha mente como se fosse a dele.
Sou um velho, ele respondeu.
Ele era, e não eram apenas anos ou décadas, e sim séculos. Aquele fato estava dentro da minha cabeça, impossível mas inegável. O néctar tinha impedido sua morte enquanto gerações viviam e morriam; enquanto bilhões viravam pó e cinzas ao redor dele.
Não é o néctar, corrigiu Furnace, lendo minha mente. O que corre em minhas veias é algo bem mais poderoso.
Eu me lembrei das visões, do desconhecido no jardim, aquele que havia obrigado Furnace a tomar seu sangue. O que era, então, se não fosse o néctar?
Na sua alma, você já sabe, respondeu ele. Esse sangue é a eternidade, a imortalidade. Existe desde antes de a humanidade pisar na Terra, e vai existir bem depois que os últimos de nós forem enterrados. É a mais pura essência da qual o néctar foi feito. Eu morri, mas olhe só: estou vivo para todo o sempre, e tenho as chaves da morte e do meu túmulo.
Meus pensamentos eram uma tempestade. Tentei lembrar por que estava ali. Mas tudo o que existia eram perguntas. Perguntas, e um terror impiedoso.
— O que era aquela coisa? A criatura no jardim?
Os dois rostos — o do idoso e o do garoto — pareceram uivar, sofrendo em silêncio com a pergunta, as bocas abertas demais enquanto as cabeças se debatiam para a frente e para trás. Mas o ser que os ofuscava sorriu sem nenhum sorriso, o lugar onde deviam estar seus olhos parecendo brilhar com mais força, mas ficar mais trevosos ao mesmo tempo.
Ele não tem nome, e ao mesmo tempo tem vários, disse Furnace. Ele me salvou, e agora vai fazer o mesmo com você.
As mãos de Furnace se moviam enquanto ele falava. Os dois dedos menores da mão esquerda estavam faltando, e o polegar da direita. Os dedos restantes eram magros e longos demais, com três ou quatro juntas em cada um. Eles se desdobraram, fazendo um ruído de estalo, até as duas palmas ficarem viradas para mim. Cânulas e válvulas perfuravam sua velha carne, prendendo-o à máquina. Duvidava que ele fosse capaz de se mover mesmo que quisesse, e tenho certeza de que se despedaçaria se tentasse se soltar.
Esse pensamento me trouxe de volta à realidade, suprimindo um pouco do medo e me fazendo lembrar por que eu estava ali. Tentei me levantar, pronto para o ataque. Furnace estava tão definhado, tão acabado que matá-lo seria o mesmo que sufocar um idoso na própria cama. Eu era bem mais forte do que ele. Convoquei os vikings do quarto, imaginando-os chegando perto de Furnace e arrancando-o de seu aparelho, dilacerando-o membro a membro.
— Matem ele! — ordenei ofegante a eles. — Matem-no!
Os vikings não se mexeram; apenas ficaram piscando seus olhos de poço de petróleo para mim. Um deles mudou de posição como um gato inquieto, e deu para ver o corpo imenso e os montes infindáveis de músculos que mal se mantinham unidos sob a pele retalhada. Ele ficou agachado, e seu rosto era a coisa mais humana daquele lugar.
— Matem-no! — repeti, mas aquelas breves palavras fizeram o resto de minha força acabar.
Furnace começou a rir, um som que mais senti do que ouvi. Parecia estar sentado na minha espinha, agarrando minha vértebra com suas mãos sujas. Tentei ficar de pé novamente, pronto para enfiar a mão de lâmina em seu peito aberto, mas meu corpo não me obedeceu.
Achou mesmo que ia ser tão fácil?, perguntou Furnace, os olhos reluzindo com um brilho negro, rugindo como maçaricos. Achava mesmo que conseguia controlá-los?
Eu tinha controlado os vikings. Eu os comandava desde a saída do hospital, não? Mais uma vez, Furnace arrancou a pergunta de minha mente.
Você não tinha esse poder, disse ele, a voz parecendo um trovão liquefeito. Eu lia sua mente, Alex, e passava os comandos para minhas criações. Não era você quem dava as ordens, era eu.
Não queria acreditar nele, mas sabia que era verdade. Senti o pânico arranhar meu corpo mais uma vez, tirando o vigor do néctar como um cobertor em cima do fogo. O que diabos eu estava fazendo? Será que tinha acreditado mesmo que ia entrar na casa de Furnace e matá-lo? Eu ia morrer ali; seria executado.
Não, disse Furnace, o tom de sua voz surpreendentemente calmo. Sou eu que não vou viver até amanhã.
Ergui a cabeça, sentindo o peso do mundo inteiro pressionando-a. Por um segundo, a silhueta embaçada e tremeluzente do desconhecido desapareceu, e pude ver as duas outras pessoas ali: o garoto e o homem. Os dois pareciam extremamente exaustos, especialmente o garoto. Seu rosto fino me lembrava o dos presidiários da Penitenciária de Furnace, aqueles que davam a impressão de que não suportariam mais um dia sequer atrás das grades. O rosto desapareceu mais uma vez atrás do sorriso invisível do desconhecido.
— Como assim? — perguntei.
Por que acha que eu o trouxe até aqui, Alex?, disse Furnace.
Abri a boca para responder, percebendo que não sabia o que dizer. Achei que soubesse a resposta. Tinha ido até ali por um motivo, um motivo que achei que seria fácil. Tinha ido matar Furnace. Meus pensamentos estavam se desintegrando, caindo um em cima do outro. Consegui distinguir um em meio à confusão e o agarrei antes que pudesse desaparecer.
— Você não me trouxe até aqui — disse eu, hesitante. — Eu... eu vim atrás de você.
Foi mesmo? Mais risadas, e o efeito delas era como ter insetos correndo sob minha pele. Tem certeza disso, Alex?
Eu não tinha mais certeza de nada. O peso em minha cabeça havia ficado grande demais, e eu a deixei pender, como se rezasse diante de um altar.
Por que acha que mostrei tudo o que lhe mostrei?, prosseguiu Furnace. Por que acha que deixei você escapar da prisão?
— Você não deixou — retruquei.
Furnace riu, gesticulando para o lado onde havia um telefone antigo em uma reentrância da máquina. Eu me lembrei do telefone do escritório do diretor, lá na prisão, e percebi na mesma hora que eram conectados. Não sabia por que ele precisava de um, pois conseguia falar com o diretor através do néctar, mas ver aquilo me fez lembrar de quando escutei Furnace pela primeira vez, da maneira como sua voz praticamente fez meus ouvidos sangrarem pelo telefone. Ele sabia de tudo o que estávamos fazendo; tinha visto tudo e havia permitido que acontecesse.
Não deixei?, prosseguiu ele. Por que não o detive, Alex? Por que não mandei cem, mil vikings? Por que não fiz com que seu amigo Simon se virasse contra você? Ele riu, e o som fez o sangue fervilhar em minha cabeça. Por que acha que o levei até a torre e lhe dei força suficiente para derrotar meu antigo general, Cross? Por que lhe dei poderes para lutar contra o exército humano? E por que lhe mostrei o caminho até aqui, até o meu reino?
— Não foi você!
Mas ele tinha feito tudo aquilo. Tudo o que havia acontecido fora orquestrado pela criatura diante de mim, por aquela insanidade composta de homem, máquina e monstro. Balancei a cabeça, sem conseguir aceitar, recusando várias e várias vezes.
Isso faz parte da beleza do néctar. Transforma mortais em marionetes. É algo que você vai descobrir em breve, se quiser.
— Se eu quiser? — consegui dizer, com um fio de sangue negro escorrendo com a palavra.
Você precisa querer, disse Furnace. Só vai funcionar assim. Mas você vai querer. Estou velho, Alex, muito velho, e nem o néctar pode me manter vivo para sempre. Fazendo isso, você cumprirá sua promessa. Só vai conseguir me matar se tomar meu lugar. Preciso de um herdeiro, mas essa dádiva tem que ser levada a sério.
Balancei a cabeça de novo, a fúria explodindo dentro de mim. Nunca faria o que ele me pedia. Estava ali para matá-lo, para detê-lo, não para substituí-lo.
— Por que eu? — perguntei.
Poupe suas palavras, Alex, disse-me ele. Tudo vai se esclarecer. Deixe-me mostrar uma coisa pra você.
O cômodo se separou, as colunas e o teto abobadado girando para longe do chão com tanta velocidade que senti vertigem. Percebi que estava do lado de fora da mansão de novo, no topo da ilha, cercado por vikings. Tentei olhar ao redor, mas não tinha nenhum controle sobre mim, como acontecia em meu sonho. Então minha visão se moveu de um lado para o outro, e percebi que observava o mundo pelos olhos de outra pessoa.
Eles estão aqui, disse Furnace. E vieram sem nenhuma misericórdia. Veja.
Escutei os soldados antes de vê-los, saindo aos grupos do meio da floresta e disparando suas armas. Balas atravessaram os primeiros vikings com tanta potência de fogo que seus corpos imensos saíram voando, desmembrados pela enxurrada de chumbo. Fiquei esperando os outros revidarem, mas todos pareciam presos ao solo, entre eles aquele cuja cabeça eu ocupava. Quase era possível sentir as emoções dele, uma mistura de raiva e pânico que parecia bile em minha boca.
— Revide! — eu disse para ele, para todos eles, mas não adiantou.
Um soldado disparou um foguete de uma bazuca, o míssil atingindo uma das aberrações de Furnace e criando uma bola de fogo tão grande que pude senti-la ali embaixo, na abóbada. Uma chuva rosada e negra despencou sobre a ilha, mas mesmo assim nenhum dos vikings se mexeu.
A criatura cuja cabeça eu ocupava se movimentou, mostrando a frente da mansão para mim. Consegui ver a criatura monstruosa que tínhamos encontrado na floresta, seu corpo fazendo as pessoas a seu lado parecerem anões: Zê, Lucy e Simon. No ritmo em que as coisas aconteciam ali, logo eles estariam mortos. E, mesmo que sobrevivessem ao tiroteio, eu sabia que Panettierre estava na ilha, liderando suas tropas e querendo nos transformar em amostras de um experimento.
A vista da ilha desapareceu na mesma velocidade nauseante com que tinha surgido, sugando-me de volta para o porão. Tive ânsia de vômito, e um fio de saliva negra ficou pendurado em meus lábios. Parecia que o cômodo ainda girava, a confusão fazendo minha vista escurecer e meu corpo tremer incontrolavelmente.
— Por que está me mostrando isso? — perguntei, a raiva devolvendo certa força a meu corpo. Consegui ficar de joelhos, apoiando a mão no pilar. — Por que não está revidando?
Estou velho, repetiu Furnace, erguendo as mãos deformadas em um gesto de rendição. Minha época de lutas está chegando ao fim. É sua vez de assumir o controle, Alex. Só você pode salvá-los; só você pode vencer esta guerra. Venha até mim, filho; aceite o que estou lhe oferecendo.
As mãos de Furnace ergueram-se e apontaram uma parte da máquina que eu não tinha percebido. Um espaço na forma de um corpo humano, com faixas para os braços e as pernas e uma armação de metal para a cabeça.
Vai ser fácil, filho. E rápido.
Eu tinha consciência de que até mesmo naquele momento eu seguia o plano de Furnace, sendo apenas uma marionete dançando de acordo com o movimento dos seus dedos. Mas o que mais eu poderia fazer? Se ficasse ali, de joelhos, o exército venceria. Panettierre teria sua vitória, criaria seus monstros, e o mundo seria enterrado sob uma maré de néctar. Zê morreria, e Lucy e Simon também, provavelmente. E quanto a mim? Não tinha grandes expectativas sobre o meu destino. Eles me mandariam de volta ao hospital e fariam mais testes comigo, até que eu desse meu último suspiro. Ou então me executariam ali mesmo.
Pelo menos, se obedecesse a Furnace, se aceitasse sua oferta, eu teria uma chance. Estaria no controle, pelo menos. Se aceitasse, eu me tornaria o algoz. E não é sempre melhor ser aquele que mata do que aquele que morre? Uma semente de dúvida serpenteou em meio à raiva e ao medo, mas ela era lenta demais. Eu já tinha tomado minha decisão.
— O que preciso fazer? — perguntei, erguendo-me, as pernas quase fracas demais para aguentar meu peso. Me arrastei até Furnace, tentando não olhar para sua carne despedaçada, para as cânulas que passavam pelo seu corpo.
Aceita minha dádiva?, perguntou ele. Era a mesma pergunta que tinha sido feita a ele séculos atrás, no jardim. E ele sabia que eu daria a mesma resposta. Vi o sangue que era bombeado no corpo de Furnace, o poder genuíno e não diluído de onde o néctar fora destilado, e a verdade era que eu queria aquilo mais do que qualquer outra coisa na vida.
— Aceito — respondi.
O rosto do desconhecido se abriu, pétalas sombrias florescendo, contraindo-se e florescendo de novo.
Sabia que aceitaria, disse Furnace.
Ele estendeu o braço para mim, os dedos em minha cabeça, afastando o cabelo de minha testa. Sua carne era tão fria quanto gelo.
Obrigado.
VIDA
No instante em que entrei em contato com a máquina, ela já parecia saber o que fazer. A pulsação dentro dela aumentou, em ritmo e volume, vibrando tanto que meus ossos chacoalharam. Duas silhuetas adentraram o aposento: eram os Ofegantes sem máscara, seus sorrisos de cadáver tão largos que passavam a impressão de que alguém havia cortado o rosto deles de orelha a orelha. Arrastaram-se em minha direção, as agulhas ao redor do corpo tinindo, e vê-los me fez sentir que estava de novo na prisão, vendo a vigília sangrenta atacando as celas. Entrei em pânico, e todos os músculos do meu corpo se contraíram, meus pulmões incapazes de inspirar.
O que diabos eu estava fazendo?
Não tema, disse Furnace, e era impossível desobedecer à voz dele — metade sussurro, metade trovão. Ela afugentava o medo. Eles não vão machucá-lo.
Ele tinha razão. Os Ofegantes eram delicados e bondosos. Um deles colocou minhas mãos nas tiras antes de prender minhas pernas. O outro segurou minha cabeça carinhosamente entre as mãos enrugadas e coriáceas, puxando a armação por cima do meu couro cabeludo e prendendo-a sob meu queixo. Trabalharam juntos para afivelar um enorme cinto ao redor do meu peito, deixando-o frouxo o suficiente para que eu conseguisse respirar. Quando se afastaram, os corpos em espasmos e as línguas negras se debatendo na poça úmida de suas bocas, eu estava preso. Mas não sentia dor.
Quando fui transformado, tudo o que precisei fazer foi beber, disse Furnace. Eu me lembrei da visão, do garoto que tinha sido pregado à árvore, tomando o sangue do desconhecido. Mas agora somos um povo mais civilizado. Confiamos na ciência e também na magia.
Inclinei a cabeça para poder vê-lo, nós dois presos lado a lado, como se estivéssemos no Calvário. A cabeça dele se virou, as três faces ainda brigando para sobressair, movendo-se tão rapidamente que minha cabeça doía só de olhar. Mas não me virei.
Comecem, disse Furnace. Os Ofegantes se separaram e caminharam até a lateral da máquina, onde se ocuparam com rodas e alavancas. Não me importei. O método que seria usado não me importava, o importante era o resultado.
Alguma coisa deslizou da estrutura a meu redor, meia dúzia de agulhas ligadas a um tubo de plástico. Elas se afundaram na carne do meu braço, mas não senti dor, apenas um leve desconforto. Com um barulho de revirar o estômago, três das agulhas começaram a bombear algo, e vi o néctar de flocos vermelhos ser sugado para fora do meu corpo.
Esse néctar, o novo néctar, é o mais poderoso que já conseguimos criar, explicou Furnace enquanto observava o fluxo. Mas até mesmo a força dele diminui em comparação ao sangue. Precisamos drená-lo para fora de você antes que eu possa passar adiante minha dádiva.
Dava para sentir meu corpo enfraquecendo à medida que o néctar saía dele, assim como tinha acontecido no hospital. Mas era diferente, pois eu estava prestes a receber algo bem melhor, algo que me transformaria em um ser de poder inimaginável.
Um ser?, comentou Furnace, mais uma vez lendo meus pensamentos. Você vai se tornar nada menos que um deus.
Olhei para a silhueta a meu lado, o garoto que devia ter morrido centenas de anos atrás, o homem que construíra um império e vivera para vê-lo mudar o mundo, uma criatura que era mais velha do que o próprio tempo. Sorri, sabendo que também teria essa mesma dádiva.
O sorriso durou pouco. O aposento escurecia à medida que as últimas gotas de néctar eram tiradas de meu corpo. Uma sensação de pavor começou a tomar conta de mim, como se eu afundasse em água gelada. Sem o néctar, eu morreria. Será que era apenas mais um truque cruel de Furnace, que me atraíra para minha própria morte com a promessa de vida eterna? Escutei outro ruído, como o gorgolejo de um canudo em um copo vazio, com o fluido de flocos vermelhos dos tubos desaparecendo. Minha visão se turvara por completo, e minha audição estava no mesmo caminho. Furnace disse alguma coisa, mas suas palavras não passaram de um barulho incompreensível para mim, como se meus ouvidos estivessem tampados com algodão.
Então, pelo que pareceu uma eternidade, nada existiu.
A distância, senti a máquina mudar de tom, com seu rosnado pulsante diminuindo. Meu corpo começou a arder imediatamente, um ataque de fogo e gelo em todas as células. Nem mesmo uma rajada de néctar se comparava àquilo. Era como se o próprio material do universo fosse um brinquedo que eu pudesse usar — ou destruir — como bem entendesse. Fiquei alerta na mesma hora, mais vivo do que nunca. Meus olhos se abriram de repente, e vi que os outros três tubos tinham ficado negros à medida que o sangue do desconhecido era bombeado de Furnace para mim. Escutei minha risada, tão alta quanto a dele era, uma explosão que fez o aposento tremer, inundando o mundo lá fora, fazendo-se sentir na alma de todos os seres vivos do planeta.
Pensar naquilo me fez chorar de alegria. Senti meu corpo mutante ser descartado; senti eu mesmo saindo da carne retalhada e deformada; senti o medo e a raiva escoando de mim, sabendo que nunca mais seria castigado pela mais fraca das emoções humanas.
Continuei gargalhando como um louco, apesar de alguma parte de mim, do garoto que eu costumava ser, perceber o horror do que acontecia. Havia sobrado quase o suficiente dele para que eu compreendesse o pesadelo que se desenrolava; para saber que, de todos os destinos pelos quais eu poderia ter rezado, esse era de longe o pior. Mas aquela parte de mim estava quase inteiramente perdida; era uma voz solitária sussurrando em meio a um furacão.
E depois ela desapareceu. Só sobrou o sangue do desconhecido.
— Por que eu? — perguntei de novo, cada palavra causando um estrondo sônico.
Porque você está aqui, disse Furnace, a voz mais branda, mais humana. Vi seu corpo começando a se despedaçar à medida que o sangue saía dele, sua pele virando pó, os ossos quebrando, os membros se tornando arcos espiralados. A silhueta do desconhecido esvanecia, e eu sabia o motivo. Ele estava abandonando Furnace, desertando o antigo hospedeiro. Movia-se agora para dentro de mim. Por um segundo, vi apenas dois rostos humanos, e, em um piscar de olhos, só o rosto do garoto sobrou. Ele inspirou, como se fosse pela primeira vez, e seus olhos opacos foram invadidos pela tristeza. Se era por mim ou por ele mesmo, não sabia.
É você, porque você se lembrou, disse ele.
Então, com um estrondo fortíssimo, a cabeça dele se despedaçou para dentro de si mesma, o rosto se transformando em uma centena de pedaços que se projetaram sobre a rocha, parecendo flocos de neve e cinzas. Com suas palavras finais, vi o resto da história dele, e suas lembranças agora eram minhas, infiltrando-se em mim com as últimas gotas de sangue.
Naquele segundo, eu vivi uma vida inteira, a vida de Alfredo Furnace.
Estava de volta ao jardim e senti o que o jovem Alfredo Furnace sentiu ao tomar o sangue do desconhecido: preenchido com um poder que ele mal tinha idade para compreender. Avancei com ele em meio às árvores, de volta à sua vila, com a mente de um animal e a força de um deus. Aquela nuvem de energia sombria o cercava, o desconhecido se sobrepondo ao corpo de Furnace, parecendo sofrer de uma hemorragia de névoa negra lançada ao ar. Ele dilacerou o próprio povo com uma ferocidade tão grande que senti a bile subir à minha garganta. Sua maldade deixava para trás apenas uma ilha de membros decepados em meio a um oceano de sangue.
Foi apenas quando enfim encontrou o cadáver de seu irmão, József, que ele pareceu acordar daquele torpor de desejo por sangue. Observei-o cair de joelhos ao lado do garoto, sentindo seu terror e seu choque ao perceber que agora o sangue do assassino de seu irmão corria em suas veias. Ele estendeu o braço e ninou o garoto morto, balançando-se para a frente e para trás, chorando tão alto que sua respiração ameaçava extinguir os incêndios que tinham começado na vila.
Ele não quer a raiva, escutei a voz de Furnace na minha cabeça, a voz do garoto, como se ele estivesse comigo ali, vendo aquela cena de sua vida se repetir. Não é suficiente ter uma criatura irracional que só quer saber de destruição. Ele precisa de alguém que se lembre, de alguém que nunca se esqueça da criança que costumava ser. Ele precisa que você seja capaz de se controlar.
— Não entendo — disse eu.
No instante em que vi József, eu lembrei, disse Furnace. Lembrei quem eu era. József nunca teria desejado que eu fosse assim; foi a lembrança dele que me impediu de me tornar um viking ou algo pior. O sangue do desconhecido me deu poder, mas foram as lembranças de József, da minha antiga vida, que me permitiram controlá-lo por tanto tempo, tornando-o ainda mais forte com o passar dos séculos. Você é assim também, não é?
— Como assim?
A vida de Furnace se acelerou tanto que mal consegui acompanhar — eu o vi escondido em uma floresta, os anos que passou sozinho enquanto tentava entender o que acontecia com ele; eu o vi sendo rejeitado e banido pelas pessoas que encontrava, homens e mulheres que o atacavam sem pensar, sentindo o mal dentro dele, e depois exércitos que declararam guerra contra o que achavam ser um demônio. Era a batalha que eu vira antes, nos meus sonhos, uma de muitas, percebi. Dezenas de milhares haviam tentado matar Furnace, e todos tiveram de pagar com a própria vida.
Vi o celeiro, o garoto sendo chutado até a morte pelo grupo de adultos barulhentos. Vi Furnace compartilhar seu sangue com o garoto mais uma vez, e o menino se vingando dos agressores. Aquele foi o primeiro filho de Furnace, com aquelas poucas gotas da veia do mestre fazendo a força do garoto se multiplicar por cem. Vi quando dois dias depois o mesmo garoto morreu, o veneno não diluído destruindo sua carne.
A maioria das pessoas não sabe lidar com o sangue, disse Furnace. Era demais para elas; ele as destruía. Sobrevivi porque não era apenas um pouco do sangue do desconhecido dentro de mim, mas ele todo — o próprio desconhecido no meu corpo, na minha mente. E foi porque eu me lembrava do meu nome, porque eu tinha continuado com minha mente ativa, que ele pôde me usar. É isso que ele quer, Alex, porque, se o hospedeiro não se lembra de nada do mundo de onde veio, ele é tão útil para o desconhecido quanto um cachorro.
Mais avanços no tempo — agora Furnace estava mais velho, tentando encontrar uma maneira de compartilhar seu sangue com outras crianças sem matá-las. Vi inúmeras vítimas se tornarem ratos. Furnace os comandava como seu exército pessoal, os corpos deformados escondidos atrás de armaduras e cotas de malha, incontroláveis na batalha, mas sem viver mais de uma semana. Alguns sobreviviam, continuavam crescendo e começavam a se transformar em vikings, mas até eles terminavam se despedaçando antes que o processo se completasse, o corpo inchando de maneira descontrolada até simplesmente explodir.
Décadas se passaram, e Furnace enriqueceu à medida que conquistava inimigos, reduzindo cidades inteiras a pó. Depois a cena mudou, e eu estava em um laboratório antiquado, vendo um homem barbado trabalhar com provetas cheias de sangue negro. O desconhecido estava lá, era parte de Furnace, seu rosto sem feições sorrindo e não sorrindo ao mesmo tempo, observando atentamente enquanto o homem trabalhava.
Foi em Viena, mais de um século atrás, que criei o néctar, disse Furnace. Encontrei uma maneira de diluir o sangue e duplicar seus efeitos sem causar a morte certa.
Observei o homem na minha visão furar o dedo com uma agulha, uma pequena gota de sangue caindo em um recipiente com um líquido transparente. Imediatamente, o fluido começou a escurecer, até ficar parecendo um tonel de petróleo com minúsculos flocos dourados. Eu o reconheci; era o néctar que o diretor e seus Ofegantes usavam na prisão.
Ele encheu uma seringa do recipiente e a injetou em uma criança. O garoto, a cobaia, resistiu e se debateu enquanto o veneno entrava em suas veias, mas permaneceu humano. Dias se passaram, e o garoto ficou mais forte, maior. Quando seu corpo em expansão ameaçou rasgar sua pele, Furnace fez uma cirurgia e o remendou com enxertos e músculos de um cadáver, até que, uma semana depois, ele se tornou um terno-preto. Um soldado de Furnace.
Foi a primeira vez que consegui controlar o poder do néctar com sucesso, escutei Furnace dizer. Meus soldados eram fortes, sim, e rápidos, capazes de se curar da maioria dos ferimentos. Mas só tinham o néctar, só uma fração do poder do sangue do desconhecido. Mais um pouco, e teriam se tornado monstros. Perderiam a cabeça. Eram bons soldados, mas nenhum deles seria capaz de se tornar meu herdeiro. O sangue os mataria.
Mais um salto nauseante no tempo, e Furnace estava bem mais velho, o rosto tão definhado por sob a barba que podia muito bem ser um cadáver ambulante. Estava em pé dentro de um bunker, cercado por homens jovens, adolescentes, todos vestidos com longos casacos negros, suásticas vermelhas nas braçadeiras, com uma bandoleira de agulhas ao redor do corpo, máscaras de gás cobrindo o rosto. Quem quer que fossem aqueles homens, tinham consumido o néctar que já os deixara viver por bem mais tempo do que mereciam.
À medida que meus experimentos progrediam, descobri que alguns eram imunes ao néctar, contou ele. Ou quase. O sangue novo deles processava a atmosfera de um jeito diferente, o ar que respiravam iniciando uma reação química que se mostrou fatal. Muitos morreram antes que eu descobrisse a causa e a solução: isolar quase todo o oxigênio usando máscaras de gás modificadas. Fiz deles meus cientistas. Eles envelheceram comigo, e envelheceram tanto que esqueceram tudo, menos o desejo de fazer experimentos, de criar. Escutei você chamando-os de “Ofegantes”. Seu amigo Zê seria um candidato ideal...
O cômodo estava cheio de jaulas, e percebi que já estivera lá, nos sonhos que havia tido na prisão. Garotos encolhidos nas sombras dentro de cada jaula, os olhos fixos nos homens ao redor e na pilha de cadáveres a um canto.
O problema era que eu só tinha uma quantidade limitada de sangue dentro de mim, então só podia fazer um pouco de néctar. Um ou dois soldados por semana. Quase desenvolvemos um novo néctar durante a época de Hitler, mas ele fracassou antes que a gente pudesse terminar. Hitler queria usá-lo em si próprio, mas claro que aquilo o teria matado; ele era velho demais. Além disso, era um homem fraco, Alex. Bem mais fraco do que você.
Mais uma cena que reconheci: homens com máscaras de gás atravessando a lama com dificuldade e carregando uma maca, procurando soldados feridos ou em estado agonizante. Eu os vi carregarem dúzias de homens, todos gritando, pedindo para voltar para o campo de batalha, implorando para morrer. Vi o próprio Furnace tirando um adolescente do meio do sangue e da imundície. Reconheci o diretor.
Era para ele ser meu herdeiro, disse ele, e vi os dois trabalhando juntos, com Furnace dando o néctar a Cross até os olhos do diretor refletirem seus próprios vórtices gêmeos. Ele tomou o néctar, consumiu mais do que eu achava ser possível, e mesmo assim continuou se lembrando de quem era, de quem costumava ser e de onde tinha vindo. Sabia que um dia eu passaria adiante minha dádiva, meu sangue, para ele.
Mais imagens, mudando tão rapidamente que não dava para compreendê-las, com o tempo se desfazendo. Vi a construção da torre na cidade, e depois a prisão sendo erguida para criar um suprimento infinito de cobaias, com o diretor lá dentro dando continuidade aos mesmos experimentos, todos sob a supervisão de seu mestre. Agora Furnace já se encontrava preso ali na ilha, grudado à sua máquina infernal, o corpo desgastado, putrefato, embora a mente afiada como nunca. Testemunhei ele e os Ofegantes criarem uma nova espécie de néctar, que poderia ser passada de mortal para mortal com apenas uma mordida, uma com o poder de criar vikings na terra e leviatãs na água.
Por fim, Cross me decepcionou. Ele não conseguiu manter a casa em ordem. Onde um fracassava, entretanto, outro obtinha sucesso. Encontrei outra pessoa, alguém mais merecedor. Alguém que, como Cross, consumira bem mais néctar do que eu achava ser possível, mas mesmo assim ainda se lembrava de quem era.
Eu me vi, o garoto que era antigamente — tão humano que era quase irreconhecível —, no dia em que desci de elevador para a Penitenciária de Furnace. Vi as portas se abrindo e mostrando o inferno onde achei que passaria o resto da vida, o lugar onde achei que morreria. Donovan estava lá, guiando-me pela escada, franzindo a testa. Depois eu estava dentro da minha cela, quando o rosto dele se alegrou e de repente a prisão não pareceu tão sombria, tão subterrânea. Eu vi tudo, tudo o que tinha acontecido: nossas tentativas de fuga, o dia em que voltamos para as ruas, minha luta contra o diretor na torre, tudo até aquele segundo infinito e perene.
Somos a mesma coisa, você e eu, disse Furnace. Nós dois fomos acusados de um assassinato que não cometemos, nós dois fomos condenados à morte por esse crime, e nós dois tivemos a chance de corrigir esse erro, de nos vingar do mundo que havia nos condenado. Seu amigo Toby precisou morrer para que você sentisse o que eu senti. Foram essas semelhanças que nos uniram. Claro que, se eu tivesse escolha, nunca passaria adiante esta dádiva. Mas não sei quanto tempo eu ainda tenho — talvez mais cem anos, talvez mais uma hora —, e, se eu morrer sem transmitir o sangue, tudo terá sido em vão.
Tive uma visão de mim mesmo como estava agora, preso à máquina, o sangue do desconhecido sendo bombeado para dentro de mim. Meu corpo inteiro parecia irradiar escuridão, ondas de ausência vazando de meus poros. Meus olhos eram portais vastos, buracos negros de um nada infinito.
Mas não estava com medo. Tampouco entusiasmado. Não tinha nenhuma emoção, apenas a sensação de que aquilo era certo, de que era o meu lugar. Outro garoto também tinha estado ali, Alfredo Furnace, um garoto bom, um garoto inocente, e eu devia substituí-lo. Nada em minha vida parecia mais lógico nem fazia mais sentido.
Queria construir um mundo onde não houvesse mais fraqueza, disse Furnace. Ainda quero. Um mundo onde um garoto como eu nunca será pregado a uma árvore e massacrado; onde um garoto como você possa lutar contra aqueles que o atacaram. Um lugar onde só exista força; onde todos sejam iguais; onde todos lutem do mesmo lado. Faça isso por mim, Alex. Termine essa tarefa.
O garoto que eu tinha sido e o garoto que Furnace tinha sido teriam percebido a lógica distorcida daquele argumento; teriam entendido que o que realmente motivava Furnace era o desconhecido em suas veias, uma criatura do mal que só queria causar destruição à humanidade, transformar a vida de todos em ruínas. Mas o sangue do desconhecido era poderoso demais, seu grito por poder, alto demais, e a capacidade dessa compreensão havia desaparecido de minha mente.
— Vou terminar — disse eu. — Prometo.
E, mesmo enquanto fazia essa promessa, eu honrava outra. Dava para sentir Alfredo Furnace em algum lugar dentro de mim, algum traço dele que sobrara no sangue que me dera — apenas um garoto agonizante com medo do fim, do que viria em seguida. Então eu o senti indo embora, meu corpo estremecendo quando o último vestígio de sua consciência se foi. Tinha visto sua vida inteira, séculos dela, passar em um segundo, e ela acabara com a mesma rapidez.
Furnace estava morto. Eu o havia matado.
E tinha assumido seu lugar.
A DÁDIVA
Furnace se fora, deixando-me sozinho com a criatura do jardim.
Eu o sentia como um peso dentro da cabeça, seu sangue em minhas veias parecendo cordas de marionete, como se ele fosse capaz de me obrigar a fazer o que quisesse. Furnace havia discursado contra a injustiça, mas o desconhecido não se importava com o certo e o errado. Ele me disse isso sem usar palavras. Tudo o que queria era ver o mundo em chamas.
E você também, disse ele.
Eu me concentrei na força do sangue do desconhecido. Ele jorrava dentro de mim, agitando todas as minhas terminações nervosas, fazendo-me sentir capaz de parar o tempo com um estalar de dedos, de arrancar estrelas dos céus. Ainda estava preso à máquina dentro de uma sala, isso eu sabia, mas também estava em vários outros lugares. Via milhares de coisas diferentes, sentia aromas distintos, escutava o mundo todo de uma vez só e compreendia tudo.
Eu sabia o que estava acontecendo. Estava dentro da cabeça de todos os seres que tinham néctar nas veias, desde os Ofegantes naquela sala até os ternos-pretos que guerreavam em terra firme; desde os vikings na ilha acima até os leviatãs no oceano; e até mesmo dos ratos, que eram muitos. Também senti Simon, seu medo, sua histeria, enquanto o exército continuava a atacar.
Essa era a verdadeira dádiva, percebi. Eu não era apenas capaz de ver essas coisas — ternos-pretos, vikings, Ofegantes; eu era elas. O sangue do desconhecido era o meu sangue agora e fluía dentro deles. Eram meus, e com eles eu faria o que bem entendesse.
— Está tudo bem — disse eu, direcionando essa mensagem a Simon. Senti que suas emoções mudaram ao me escutar, primeiro foi descrença, depois uma esperança que atravessou seu desespero como uma explosão estelar. Ele respondeu, mas eu já tinha partido para outra. Dava para ver a ilha de vários lugares ao mesmo tempo, e o efeito causava vertigem; era como olhar por um caleidoscópio. Os soldados tinham saído do meio das árvores e continuavam dizimando os vikings imóveis com suas armas. Senti aquelas balas como se eu mesmo levasse os tiros, e uma dor repentina atravessou o torpor de minha mente, enchendo-me de ódio.
Eles pagariam por aquilo.
Ordenei que os vikings atacassem, sentindo o néctar começar a pulsar no coração deles, seus pensamentos se transformando em desejos homicidas à medida que a paralisia passava. Segui um deles e o observei de dentro de sua mente, enquanto ele saltava sobre uma rocha, lançando-se contra dois marinheiros camuflados. Eles viram o viking se aproximar e dispararam, mas era tarde demais. Senti a força da criatura enquanto ela atacava, as garras atravessando o peito de um dos soldados e a mandíbula cercando o braço do outro; era como se ela esmagasse cubos de gelo.
Ao mesmo tempo, mandei mais seis vikings para o meio das árvores, enxergando pelos olhos de todos ao mesmo tempo e sentindo que seus pés eram os meus enquanto avançavam. Um deles caiu depois de ser atingido por um morteiro, e sua visão escureceu repentinamente. Seus pensamentos tornaram-se um vácuo, o que me confundiu por um instante. Mas os outros compensaram pelo irmão caído, lançando-se sobre os inimigos com uma ferocidade que fazia o chão tremer.
Os soldados entraram em pânico com o ataque repentino e recuaram, o rosto distorcido pelo medo. Dei uma olhada na multidão que se afastava, à procura de Panettierre, mas não a vi em lugar algum. Não importava. Ela podia esperar. Não tinha onde se esconder, não agora.
Um jato rugiu no céu, e de repente a ilha ficou em chamas quando um míssil a atingiu, parecendo um vulcão entrando em erupção. O inferno dominou o rochedo entre as árvores e a mansão, erradicando tudo o que havia lá. Escutei os vikings gritando dentro de minha cabeça, a voz sendo a das crianças que tinham sido. Dava para sentir o toque insuportável do calor.
— Não tenham medo! — ordenei, tentando afugentar o temor da mente deles, tentando absorver seu sofrimento à medida que a vida se esvaía daquelas criaturas. Conversei com eles enquanto morriam, dizendo que iriam para um lugar bom, que lá estariam em segurança, livres. Acho que não entenderam minhas palavras, mas deu para perceber o alívio que sentiam ao ouvir minha voz, dando-se conta de que não estavam sozinhos e que existia algo melhor do que aquilo. Senti a dor deles como se fosse a minha, porém a aceitei, sabendo que estava em segurança dentro daquele aposento, apesar de sentir que morria várias e várias vezes.
Revidei imediatamente, ordenando que o resto dos vikings se embrenhasse em meio às árvores e não tivesse misericórdia. Sangue voava para todo lado, membros caíam como galhos cortados, crânios se fraturavam, peitos e estômagos eram perfurados, gargantas eram dilaceradas com os dentes. Era uma visão do círculo mais íntimo do inferno, uma visão que teria enlouquecido qualquer mortal. Mas eu não era mais um mortal. Escutei minha risada sombria enquanto assistia à carnificina, seu som silencioso e ao mesmo tempo ensurdecedor, os uivos inacreditáveis sendo uma trilha sonora perfeita para aquela loucura.
Alguns dos soldados tinham fugido e desciam os degraus rumo à doca. Havia alguns barcos parados lá, balançando ao sabor da maré, que subia com rapidez. Mas eles não proveriam um porto seguro. Entrei na cabeça de um leviatã, sentindo a água fria fluir contra sua pele enquanto ele mergulhava e dava cambalhotas sob as ondas. Ele me recebeu com alegria, aproveitando a oportunidade de atacar, e enxerguei através de seus olhos escuros enquanto se projetava para cima, ganhava velocidade e batia o crânio com tanta força em um dos barcos que o casco quebrou.
Vi os corpos caindo no mar como se enxergasse do fundo de uma piscina, as silhuetas que se debatiam recortadas contra o céu, seus gritos abafados pela água. Tudo parecia acontecer em câmera lenta. O leviatã desenrolou seus braços de aracnídeo e cercou as pessoas que se moviam, puxando-as para as profundezas, onde passariam toda a eternidade.
Mais tropas se aproximavam, e dois helicópteros Chinook desceram do lado da ilha onde ficava a mansão, com um Apache os acompanhando, seus canhões destruindo tudo o que se movia. Havia certa escassez de vikings agora, pois a potência de fogo do exército era grande demais.
Eu me lembrei de que o viking grandalhão, o que tínhamos encontrado na floresta, ainda estava parado à porta da mansão, e ordenei que atacasse. Enxerguei através de seus olhos enquanto ele corria para onde os helicópteros aterrissavam, balas atingindo sua carne, embora causando a mesma dor que uma picada de pernilongo. Um dos helicópteros viu o viking se aproximar e tentou decolar, mas ele foi mais rápido e se jogou na rampa de carga aberta enquanto a aeronave saía do solo, os soldados ainda tentando disparar. Em questão de segundos, o viking tinha massacrado todos e se espremido para entrar na cabine, deixando-a parecida com um açougue. O helicóptero girou, despencando em queda livre, e o viking saltou para fora dele momentos antes de o Chinook desaparecer à beira do penhasco. A besta nem parou para respirar e já saltava para o segundo helicóptero, enquanto uma coluna de fogo subia atrás dele, a explosão fazendo uma parte do desfiladeiro desmoronar.
O viking não conseguiu chegar muito longe, um míssil do Apache o reduziu a pedaços de carne úmida. Eu o chamei, lembrando-me da maneira como ele havia se encostado em minha mão, apenas uma criança desesperada por contato. Mas não obtive resposta; agora ele não passava de uma ausência enorme em minha cabeça.
Mais uma erupção de fogo fez a ilha estremecer quando um jato gritou no céu, mas dessa vez o ataque aéreo errou o alvo. Isso pareceu confundir o exército, e as tropas se dividiram em todas as direções, tentando se proteger em meio à fumaça superaquecida. Abatê-los era tão fácil quanto roubar doce de criança.
O caos tomou conta da ilha, que foi envolvida por medo e chamas. Em todos os olhos eu via morte e assassinato, garras e balas voando. Um dos vikings foi atingido no olho e morreu na mesma hora. Outro viu o que aconteceu, e senti seu sofrimento e sua fúria por ter perdido um dos irmãos. Não precisei lhe dizer o que fazer; ele foi atrás de vingança na mesma hora, jogando o soldado assassino contra uma rocha.
Na água estava a mesma confusão, com mais quatro leviatãs tendo se juntado ao primeiro. Tinham destruído a maioria dos barcos menores, e ordenei que atacassem os navios. Pareciam grandes caranguejos escalando as laterais dos navios de guerra, arrancando os soldados do convés. O oceano ao redor da ilha se agitava, avermelhado. Alguns dos barcos faziam manobras, tentando voltar à terra firme, mas eu tinha decidido que nenhum deles se aproximaria, e ordenei que meus soldados fossem até eles.
Tudo isso se dava enquanto eu sentia o sangue do desconhecido fluir em minhas veias, o sangue que havia tornado aquilo tudo possível. Ele não falava, não dava um pio sequer, mas eu conseguia sentir sua detestável alegria em todas as células do meu corpo. Ele estava contente comigo, com seu novo hospedeiro. Eu nunca havia sentido uma felicidade tão maléfica, uma satisfação tão cruel e sádica.
Fui distraído pelos pensamentos de Simon e vi através de seus olhos quando ele, Zê e Lucy atravessaram a porta desprotegida da mansão.
— Estou no andar de baixo — disse, mostrando a Simon a imagem mental do aposento. — Aqui vocês estarão seguros.
Eu o escutei repetir a mensagem aos outros, sua voz me parecendo estranha ao ecoar dentro de minha cabeça. Ele liderou o caminho pela entrada e ao longo do corredor. Zê e Lucy o bombardeavam com perguntas, mas não parei para escutá-las, voltando a atenção para minhas tropas enquanto a ilha era atacada mais uma vez.
O segundo Chinook tinha conseguido pousar, fazendo os soldados se espalharem em meio à fumaça. Metade encarregou-se de acabar com o incêndio e lançou uma onda de balas que matou mais dois vikings. O restante se aproveitou da fumaça para invadir a casa, alguns pela porta, outros se jogando janelas adentro. Depois de se posicionarem, começaram a atirar por toda a ilha, permitindo que o resto dos soldados entrasse.
Era impossível identificar os homens e mulheres por trás das máscaras, mas, de alguma maneira, eu sabia que ela estava ali, Panettierre. Senti minha pulsação acelerar, bombeando o sangue do desconhecido, que fazia tanto barulho que era como se a própria terra tivesse batimentos cardíacos. Convoquei os vikings restantes e disse para irem até a mansão e encontrá-la.
Ainda havia dois vikings ali no aposento, e ordenei que a capturassem. Panettierre e seu exército ficariam presos entre duas hordas invencíveis. As criaturas saltaram a meu lado, fazendo com que eu me avistasse em um vislumbre: um demônio crucificado a uma máquina. Em segundos, já tinham chegado ao topo dos degraus e seguiam pelo corredor, de quatro. Por um estranho instante passaram por Simon, e eu vi o mesmo acontecimento de duas perspectivas diferentes. Meus amigos se encostaram à parede, Lucy chegando a derrubar um quadro, mas claro que os vikings não estavam interessados neles e continuaram correndo.
Vi o que aconteceu em seguida por seis pares de olhos, com três criaturas lá de fora entrando pelas janelas e se lançando sobre os soldados. Uma quarta tentou entrar também, mas terminou detonando um explosivo, e a explosão a fez voar para trás, morrendo antes mesmo de atingir a superfície rochosa.
Mesmo assim, o que aconteceu em seguida foi um massacre, com os cinco vikings sobreviventes atacando de todos os ângulos e deixando o exército sem escolha. Os soldados não sabiam para onde ir, e alguns dispararam em círculos, matando os próprios amigos. Depois se espalharam, alguns desaparecendo por portas ou se jogando de novo lá para fora. A maioria, no entanto, era lenta demais e gritou pedindo misericórdia.
Não receberam nenhuma.
— Ninguém deve sobreviver — disse eu aos vikings, deleitando-me com o entusiasmo deles.
Eram uma extensão do meu próprio corpo — quando sentiam o gosto de sangue, eu também sentia, o calor escorrendo pela minha garganta. Quando agitavam seus membros monstruosos, meus próprios braços se contorciam e meus novos dedos agarravam o ar, com minha lâmina cortando-o. Nunca tinha sentido um poder assim. Eu era mesmo um deus. Meu deleite ecoava o júbilo do desconhecido, nossa força incomparável e insuperável.
Só tinham sobrado alguns homens e mulheres, tanto dentro quanto fora da mansão. Praticamente todos os barcos também haviam sido destruídos, e o restante já estava fora do campo de visão no horizonte. Ainda havia helicópteros no ar e o reflexo de um feixe de luz a distância, mas, fora isso, a única evidência de que o exército estivera ali eram os cadáveres que cobriam a superfície fumegante.
Fiquei vendo os vikings dentro da casa perseguirem os últimos sobreviventes, matando-os de maneiras que nunca imaginei serem possíveis. Vi um deles se aproximar de uma mulher. Meu coração martelou, achando que era Panettierre, mas, quando ela tirou a máscara de gás em um ato de rebeldia, vi que não era. Era uma garota só um pouco mais velha do que Lucy, as feições distorcidas de tanto terror.
O viking se preparou para o ataque, mas eu o detive, meu deleite se esvaindo. Aquela garota não era Panettierre, não era má. Estava apenas cumprindo ordens. Seus olhos estavam tão esbugalhados que pareciam pires, as pupilas dilatadas de horror. Eles iam de um viking a outro conforme as criaturas a cercavam, mas era como se estivessem cravados em mim.
— Vão pro inferno — disse ela, as lágrimas escorrendo pelas bochechas. — Todos vocês.
Era tarde demais quando percebi que ela carregava uma bolsa e que havia colocado a mão dentro dela. Fiz os vikings avançarem na direção da garota, mas nem aqueles golias à base de músculos e néctar seriam capazes de alcançá-la a tempo. Ela fechou os olhos e sua mão se movimentou, o C4 detonando tão ruidosamente que fez chover pó do teto do aposento em mim.
A percepção daquelas criaturas foi arrancada de mim com tanta rapidez que parte de minha alma pareceu se rasgar. A escuridão que inundou o vácuo onde aqueles seres vivos estavam foi tão marcante que, por um instante, achei que tivesse ficado surdo e cego, o corpo inteiro dormente. Aos poucos, no entanto, a luz e o ruído voltaram. Deixei minha mente vagar e encontrar os vikings remanescentes. Só três tinham sobrado em toda a ilha, sendo que dois haviam recebido golpes fatais. Fiz o que pude para amenizar a dor deles, mas não dava para consertar seu corpo, e eles pareciam saber disso.
Senti a raiva aumentar, o novo sangue fervilhando dentro de mim. Não era certo aqueles vikings morrerem; eram apenas crianças. Panettierre pagaria por aquilo. Todos pagariam por aquilo.
Lancei minha mente ainda mais longe, além do oceano, até chegar a terra firme. Alguns ternos-pretos ainda estavam no litoral, na cidade costeira onde havíamos pegado o barco, e lutavam contra outros soldados. Senti vikings nos arredores e os guiei até a batalha, lançando-os sobre homens e mulheres camuflados. Dava para sentir todos eles, milhares de vikings e ternos-pretos por todo o país, um diferente do outro, todos sob meu controle. Era possível até mesmo entrar na mente dos ratos, mas não havia quase nada lá — apenas um tornado de violência que os agitava inteiramente —, e tudo o que eu podia fazer era guiá-los na direção certa.
Enviei uma mensagem, convocando as tropas para a batalha. E escutei a resposta delas, um grito de guerra que saiu de cada um dos soldados que restavam. Eles nunca parariam de lutar, nem eu.
Eu tinha feito uma promessa a Furnace. Faria suas criações vencerem a guerra e erradicaria todos os seres inferiores para que pudéssemos começar novamente; para que criássemos um mundo de iguais, um mundo povoado apenas pelos filhos do néctar, um mundo onde a maldade da natureza humana não existiria mais. Seria o nosso planeta, só nosso, uma Pátria para os soldados de Furnace.
Seria um paraíso.
CONTROLE
Não sei quantas pessoas vi morrendo, quantas matei. Milhares? Dezenas de milhares? Um milhão?
O massacre não tinha fim; ondas de vikings trabalhando juntos sob meu comando, lançando toda a sua fúria contra meus inimigos. Era como se eu assistisse a inúmeras televisões de uma só vez, centenas de atos de violência a cada segundo, todos eles com um apelo pessoal, como se eu mesmo os tivesse cometido — e, de certa maneira, tinha.
Sobretudo, aquilo me lembrava da sala de projeção da prisão, de quando tinha visto rolos e rolos de filmes que mostravam os piores pecados que a humanidade cometera contra a própria espécie. Mas, em vez de ter que passar dias amarrado àquela cadeira, as pálpebras presas, eu via tudo em um vislumbre, cada batida de meu coração contendo terror suficiente para cem horas de filme.
E a verdade era que eu estava gostando.
Minha raiva era tão forte que quase me dominava por completo. Toda vez que sentia um viking ou um terno-preto, ou mesmo um rato morrer, minha sede de vingança ficava mais forte. Eram meus filhos, e ver a escuridão e o abismo dentro de minha cabeça, no espaço que antes eles ocupavam, era insuportável. Toda vez que um soldado era despedaçado, no entanto, eu caía na gargalhada, feliz por saber que tínhamos um humano a menos em nosso caminho.
Apesar de minha mente estar com minhas tropas, devia haver ainda uma parte de mim dentro daquela sala na ilha, pois percebi que não estava sozinho. Meus amigos haviam chegado, e me vi pelos olhos de Simon — uma criatura inacreditável cujo olhar os fulminava. Não fosse pelo fato de um de meus braços ser uma lâmina, e de a corrente de Lucy reluzir em meu pescoço, eu mesmo não teria me reconhecido.
— Alex? — perguntou Zê, dando um passo à frente, o rosto tomado pela tristeza, lágrimas escorrendo pelas bochechas. Os Ofegantes no quarto se moveram para detê-los, mas eu os contive. — O que fizeram com você? Cadê Furnace?
Olhei para a pilha de carne ressecada e ossos quebrados de Alfredo Furnace a meu lado. Sem o sangue do desconhecido dentro dele, o tempo tinha agido em seu cadáver com rapidez, reduzindo-o a pouco mais do que cinzas. Porções dele se soltavam das tiras que o seguravam, caindo lentamente ao chão. Apenas nos lugares onde seu corpo tinha tubos e fios, que lhe prendiam a carne, é que ele parecia humano.
— Ele está morto — falei, e minha voz não parecia sair de minha garganta, mas de tudo ao redor, como se o quarto inteiro estivesse falando. Meus amigos deram um passo para trás, boquiabertos. — Eu o matei.
Mesmo enquanto falava, eu ainda lutava, no comando dos vikings e dos ternos-pretos em batalha. Parecia viver mil vidas de uma só vez. Ainda caçava Panettierre, mas, como só tinha um par de olhos na ilha, não estava tendo sorte. Esperava que ela já estivesse morta, que tivesse morrido durante o massacre na mansão.
— Mas o que aconteceu com você? — perguntou Zê.
Uma onda de irritação me atingiu ao escutar a voz dele, o ruído de uma mosca. Não tinha tempo para aquilo. Queria mandar os Ofegantes agirem e cuidarem de Zê e Lucy. Afinal, eles eram inimigos. Humanos. Ou talvez eu conseguisse me infiltrar nos pensamentos de Simon e forçá-lo a matar os próprios amigos. Manipulá-lo seria tão fácil quanto respirar.
Uma coisa me deteve: saber que eu tinha compartilhado minha vida com aquelas pessoas. Mas a lembrança deles se esvaía de mim, sendo empurrada para longe sob o efeito do sangue do desconhecido. Aquela vida parecia ser de um século atrás, tão distante agora que nem sequer podia acreditar que tinha realmente acontecido. O passado não importava mais.
— Era a única maneira — respondi, as paredes e o chão tremendo com o som da minha voz. — Para matá-lo, precisei aceitar seu sangue.
Zê balançou a cabeça, engolindo o medo e se aproximando. Ele parou bem na minha frente.
— Você não é ele, Alex — disse ele. — As coisas não precisam ser assim.
— A gente precisa dar o fora daqui antes que aquelas coisas descubram onde estamos — falou Lucy.
— Eu não me preocuparia com isso — respondeu Simon, lançando um olhar nervoso para os Ofegantes. — Alex está controlando todos eles.
— É verdade? — perguntou Zê. — É você que está fazendo isso?
Meu último viking na ilha caçava os últimos soldados, os poucos sobreviventes que tentavam se esconder na floresta. Um deles se jogou do penhasco, preferindo morrer por um ato próprio a cair nas mãos dos inimigos. Outro usou o último suspiro para disparar um foguete, o míssil errando o viking e atingindo a ala leste da mansão. Sentimos a explosão no aposento, o impacto fazendo os restos de Furnace se desintegrarem ainda mais. Choveu pó de tijolo do teto abobadado, e Zê o limpou dos olhos.
— Os poderes dele são agora os meus poderes — respondi. — A guerra dele é agora a minha guerra.
Zê olhou para os outros, perplexo, mas ninguém conseguiu ajudá-lo.
— Precisa parar com isso — disse Zê, virando-se de novo para mim. — Não é certo. Furnace era o inimigo, suas criaturas, os Ofegantes, os ternos-pretos... Eles disseram que estão do seu lado, mas é mentira. Pense, Alex. Lembre-se da prisão, lembre-se da sua antiga vida. Se fizer isso, não vai ter mais volta, para nenhum de nós. Vamos todos morrer.
— Eu não posso morrer — disse eu, sentindo o sangue do desconhecido ficar mais intenso dentro de mim. Ele me manteria vivo por séculos, muito depois que o último humano tivesse sido devorado pelos vermes. Pensar nisso fez minha pulsação se acelerar, mas também tinha outra coisa, algo ruim na parte de trás da minha cabeça, alguma coisa que o sangue não me permitia compreender.
— Você pode morrer — disse Lucy, postando-se ao lado de Zê. — Talvez não o seu corpo, mas seu verdadeiro eu pode. — Ela ficou na ponta dos pés e colocou a mão no meu peito, em cima do meu coração. — Isso pode morrer.
Tentei ignorar as palavras dela, concentrando minha mente nas criaturas, encorajando-as a mais destruição.
— Alex? — disse Zê de novo, trazendo-me de volta para a sala. — Por favor, dê um fim nisso.
— Por quê? — perguntei. — Por que deixar os humanos viver? Você sabe tanto quanto eu que eles vão usar o néctar e criar os próprios demônios. Mais cedo ou mais tarde, este mundo vai acabar; a humanidade é má demais para sobreviver. É melhor que eles cheguem ao fim agora, com a nossa vitória. Assim, quando o novo dia amanhecer; quando a nova Pátria surgir, não vai existir mais guerra. Quando só os fortes existirem, quando todos formos soldados de Furnace, quem teremos para enfrentar?
— Não é você quem está falando isso — disse Zê. — É Furnace. Ele ainda está aqui, em algum lugar dentro de você. Ele o está obrigando a dizer isso.
— Não — respondi. — Furnace está morto. Este sou eu.
Furnace estava morto, eu não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Aquelas eram minhas palavras, meus pensamentos, não eram? Sem saber por quê, tive dificuldade para organizá-los, o estrondo do sangue do desconhecido tornando-se alto demais.
— Você se lembra da prisão? — prosseguiu Zê.
Suas palavras despertaram lembranças — nós dois dentro de um elevador, sendo carregados para o interior da terra, prometendo um ao outro que encontraríamos uma saída.
— Você se lembra de Donovan?
Claro, como me esqueceria dele? Dava para vê-lo naquele exato instante, sentado a meu lado no beliche, sua risada ecoando longe, fazendo-me sentir que talvez desse para sobreviver ali dentro, que aquilo não precisava ser o fim. Dava para escutá-la, aquela risada, infinitamente diferente da minha, porque era tão humana...
— Você se lembra dos nossos trabalhos, da escavação, da lavanderia? — perguntou Zê.
— Do fedor? — acrescentou Simon.
Eu me vi junto a Donovan e Zê, nós três sentados na cantina, o rosto de Zê totalmente enojado enquanto descrevia como era limpar os banheiros: Bem, da próxima vez que fizer isso, pode tentar dar um tempo para a privada? Balancei a cabeça, tentando afugentar aquelas imagens. Elas não eram importantes, nada daquilo era importante. Como poderia ser? Eu nem era mais um garoto, não era mais Alex Sawyer; era um deus criando os fundamentos de uma nova raça.
— Você se lembra da lavagem? — prosseguiu Zê, sua voz atravessando a tempestade. — As sobras que a gente tinha que comer. E a refeição de Monty, naquela vez que ele cozinhou para nós dois e Donovan?
Dava para ver aquilo como se eu estivesse lá, devorando aquele ensopado divino de cubos de carne, pimenta e tomate; acho que foi a melhor refeição da minha vida. Lembrei que Donovan tinha chorado, porque fazia tempo demais que ele não sentia o gosto de comida de verdade. Uma lembrança escorreu para dentro de outra: eu e Donovan parados na cozinha em uma discussão, ele enfiando uma porção de carne de galinha nojenta em uma luva e atirando-a em mim. Fora então que havia tido a ideia de fugir, de encher as luvas com gás e usá-las para explodir a sala de escavação.
— E Toby — disse Zê. — Você o impediu de se matar.
Ele ia pular do último nível da Penitenciária de Furnace, e eu o detive contando nosso plano. Ele terminou morrendo durante a fuga, o calor da explosão destruindo seu corpo e o frio cruel do rio acabando com ele de vez. Mas estava livre. As lembranças pareciam se multiplicar, com outros pensamentos brotando um em cima do outro, parecendo flores na primavera. Eu nos vi na extremidade da abertura, a rocha ainda fumegante, o rio se agitando embaixo da gente, nossa própria via expressa para fora de Furnace. Eu me vi sorrindo enquanto pulava, sem me importar se ia ou não sobreviver, pensando apenas que eu tinha vencido aquela prisão.
Zê olhou para Simon, pedindo sua ajuda.
— A solitária — disse o garoto maior. — Você se lembra da primeira vez que o tirei da cela, quando quebrou meu nariz?
Lançando a cabeça para trás com toda a força, porque achei que fosse um rato.
— E quando a gente conversava um com o outro batendo na privada? — acrescentou Zê, e, surpreendentemente, ele sorria. — Quando brincamos de I Spy, apesar de não conseguirmos enxergar nada.
Dragão e detritos.
— Brincamos de pedra, papel e tesoura para ver quem seria a isca dos ratos — disse Simon, soltando uma risada. — E roubamos todo aquele equipamento. Como se a gente realmente fosse conseguir usar bisturis para escalar. Mas quase conseguimos, não foi, escalando a chaminé? Se aquele filho da mãe do Cross não tivesse ligado o incinerador, a gente teria escapado.
— Pois é, o diretor Cross — retrucou Zê, o sorriso desaparecendo. — O diretor, não se esqueça dele, Alex.
Não dava, nem se eu quisesse. Seu rosto demoníaco apareceu na minha frente, e me lembrei da primeira vez que o vi, saindo pela porta abobadada com seu séquito doentio de ternos-pretos, Ofegantes e cachorros sem pele. Não dava para olhá-lo nos olhos, ninguém conseguia. Toda vez que eu tentava, parecia ter mergulhado em um lago de água negra, toda a alegria e felicidade do mundo desaparecendo. Agora sabia por que aqueles olhos pareciam vórtices enfiados em um rosto; por que nenhum de nós conseguia encará-lo. Ele tinha consumido tanto néctar que o sangue do desconhecido estava dentro dele — não tanto, só o suficiente para que vivesse mais do que merecia e removesse praticamente toda a humanidade de seu ser.
Ele tinha sido escolhido para se tornar o herdeiro de Furnace. Devia ser ele ali no meu lugar, preso àquela máquina, comandando suas tropas para matar. Pensar que éramos irmãos, que tínhamos o mesmo sangue, o mesmo desejo de matar, deixou-me nauseado.
— Você sabe quanto a gente odiava ele — continuou Zê. — Tudo o que ele fazia com a gente: a vigília sangrenta, os Ofegantes. Pense no que aconteceu com Monty, que virou uma aberração e depois um terno-preto. Pense no que aconteceu com Donovan.
Eu me vi na enfermaria, segurando um travesseiro em cima do rosto daquela coisa que tinha sido Donovan, matando-o antes que ele se tornasse mais um dos vigias impiedosos do diretor. Senti uma pressão no peito que subiu até minha garganta e ficou lá, parada, como uma bola de ferro.
— Pense no que aconteceu com você — prosseguiu Zê, tocando no meu braço, na lâmina. — O diretor e Furnace o despedaçaram e tentaram transformá-lo em um monstro. Pense em quanto você resistiu. Não queria deixar que eles o levassem. Você nos tirou de lá e salvou a todos nós.
Não queria ver as lembranças, mas não tinha como impedi-las. Eu tinha odiado de verdade o diretor, mais do que qualquer outra coisa no planeta. Odiava o que ele tinha feito comigo e com meus amigos. Também havia odiado Alfredo Furnace, o homem que ficava nas sombras, que orquestrava aquela loucura. Tinha sido por isso que havia jurado matá-lo, não? Para que tudo aquilo acabasse. Não para que eu assumisse o comando. Era tudo confuso demais; não conseguiria entender nada enquanto o sangue do desconhecido continuasse se agitando dentro de mim.
— Lembre-se mais: pense em quando estava na prisão — disse Zê, implacável. — Você não teria desejado isso. Teria se matado para não ficar igual a ele.
E eu estava igual a ele. Eu era a força por trás da escuridão, a mente por trás do caos. Eu era aquilo que eu desprezava tão vigorosamente. Eu era Alfredo Furnace.
Aquele pensamento me encheu de um horror tão extremo que gritei. O ruído foi tão alto que choveu mais pó do teto, um berro que perfurou o coração de todas as criaturas que tinham néctar no sangue.
— Sei que ainda está aí dentro, Alex — falou Zê, as mãos nos ouvidos enquanto meu grito ia desaparecendo. — Você é meu melhor amigo. Não se entregue a ele, não sem lutar.
Olhei para Zê, para o pequeno garoto à minha frente. Seria tão fácil matá-lo, matar todos eles, mas, assim como eu, eles nunca poderiam morrer de verdade. Continuariam vivos em minha cabeça, em minhas lembranças, e nunca me abandonariam: Zê, Simon, Lucy, Donovan, e Alex também, o garoto que eu tinha sido, o garoto que eu ainda era. Eu o via agora, o corpo tão diferente do meu, o rosto sem cicatrizes quase irreconhecível, os olhos azuis em vez de prateados. Ele estava lá parado na minha mente, usando o macacão da prisão e sorrindo com tristeza.
— Alex? — chamei. — Me diga o que fazer.
— Você sabe o que fazer — respondeu ele. — Você sempre soube.
E então ele desapareceu, tornando-se apenas mais uma lembrança que se esvaía. Os outros estavam parados no lugar dele. Não podiam fazer mais nada. Só esperar para ver o que eu faria em seguida.
Pensei nas criaturas sob meu controle, crianças iguais a mim. Tinham sido criadas por uma razão: para serem soldados em um exército de ódio; para virarem o mundo de cabeça para baixo. Assim como eu, tinham sido obrigadas a participar de uma guerra por tempo demais. Eu não os obrigaria a lutar, não mais. Eu lhes daria a paz.
— Eu sei o que fazer — falei, sentindo o sangue do desconhecido rugir como um furacão dentro de mim, furioso ao pensar no que aconteceria. — Vou acabar com isso.
PODER
Tinha tomado minha decisão, mas a criatura cujo sangue fluía dentro de minhas artérias ainda precisava fazer o mesmo.
Ele sentiu o que eu estava prestes a fazer e me convocou, obrigando-me a escutá-lo. Seu poder inundou meu cérebro como um milhão de vozes, todas sem palavras, mas que diziam a mesma coisa.
NÃO SE ATREVA A ME DESAFIAR.
Zê puxava as tiras que me prendiam, tentando me soltar, mas balancei a cabeça. Não tínhamos tempo. Deixei minha mente ir embora, ocupando mais uma vez os incontáveis monstros cheios de néctar que perambulavam pela terra. Consegui ler o pensamento deles, ver o que viam, sentir suas emoções enquanto lutavam. Eram centenas — ternos-pretos, ratos e vikings —, todos com o mesmo objetivo sanguinário. Aguardavam minhas ordens, e me preparei para transmiti-las, um último comando que daria fim àquela guerra de uma vez por todas.
No entanto, antes que pudesse fazer isso, senti algo me dominar. Não era uma sensação física, mas algo muito pior — como se um punho tivesse se fechado ao redor de minha alma, arrancando-a deste mundo, da realidade. O aposento desapareceu, sendo substituído por um vazio, como se eu tivesse sido arrastado para o fundo de um oceano vasto e sem luz. Foi a mesma sensação que tive no hospital, na mesa de cirurgia, quando morri. Mas, dessa vez, eu não estava sozinho.
Claro que não estava. Como poderia? Agora eram dois naquele corpo, eu e algo eterno, algo de um mal infinito, algo que nunca tinha sido e que nunca poderia ser humano.
Formas começaram a aparecer na escuridão, pilares de madeira queimada. Não demorei para perceber que eram árvores. Aos poucos, a paisagem se assentou a meu redor, um teto de galhos bloqueando a luz do sol e deixando o tapete de frutas podres coberto de sombras. Corvos dançavam para longe de mim, batendo as asas enquanto se banqueteavam com coisas mortas.
Estava de volta ao jardim.
Não vi nenhum sinal de Furnace, do garoto. Mas o desconhecido estava ali. Estava em meio às sombras das árvores, assim como no meu sonho. Eu sabia que aquilo também era um sonho, uma visão, apesar de conseguir sentir o cheiro das maçãs apodrecendo sob mim, esmagadas entre meus dedos, e escutar o assobio do vento e o farfalhar desamparado das árvores esqueléticas.
— Por que me trouxe aqui? — perguntei, a voz fraca, mais uma vez a de um garoto. O desconhecido não falou, mas escutei sua resposta.
NÃO VOU DEIXAR VOCÊ ACABAR COM MEU TRABALHO.
— Seu trabalho? — perguntei, tentando dar um passo à frente. Devia ter percebido que era melhor nem tentar, porque sempre era prisioneiro em meus sonhos. Percebi que ele falava sobre o néctar, os ternos-pretos, os vikings e os ratos; falava sobre o fim do mundo. Ele me mostrou essas coisas com um orgulho que emanava de seu vulto invisível. — Esse trabalho não foi seu — retruquei. — Foi de Furnace.
Ele se lançou para fora das árvores, e seu rosto era uma coleção fantasmagórica de partes indistintas que se dobravam e se desdobravam pelo infinito afora. Só de vê-lo tive vontade de correr, de entregar a ele meu corpo e minha mente e nunca mais olhar para trás. Essa coisa, o que quer que fosse, era algo que nunca devia ter existido; algo que devia ter sobrado dos momentos mais sombrios da criação. Ele era o oposto de tudo o que era bom, de tudo o que era vida. Mais uma vez, ele falou comigo sem falar.
TRABALHEI COM FURNACE, TRABALHEI POR ELE. E AGORA VOU FAZER O MESMO POR VOCÊ. ESSE É O NOSSO ACORDO — VOU LHE CONCEDER PODER, UMA VIDA ETERNA, E EM TROCA VOCÊ ME OBEDECERÁ E ESPALHARÁ MINHA DÁDIVA PARA AS CRIANÇAS DO MUNDO.
— Por quê? — perguntei.
PORQUE É ISSO QUE SEMPRE FIZ, DESDE QUE SUA ESPÉCIE DEU OS PRIMEIROS PASSOS. É ISSO QUE SEMPRE QUIS. ANTIGAMENTE, MUITO TEMPO ATRÁS, TUDO O QUE EXISTIA ERA EU E MEU APETITE POR SANGUE. MAS SUA ESPÉCIE E SUA CIÊNCIA FACILITARAM TUDO; TORNARAM TUDO BEM MAIS DIVERTIDO.
— E se eu disser não? — perguntei.
Ele ergueu a mão, o braço varrendo o jardim como uma sombra noturna. Mesmo que eu pudesse me mover, não teria sido capaz de fugir dos dedos longos do desconhecido, que agarraram minha garganta. Ele os pressionou mais um pouco, esmagando minha traqueia, e, quando tentei respirar, meus pulmões continuaram vazios.
Furnace também tentou dizer não no começo. Mas esta não é uma opção. E por que você faria isso? Eu já o transformei num deus, e ainda há muito mais pela frente, muito mais.
Minhas entranhas se reviraram, animando-se com a possibilidade de ter o mundo inteiro em minhas mãos, mas aquilo durou pouco. Tudo o que eu conseguia sentir era a carne fria dos dedos do desconhecido ao redor da minha garganta, o pânico de tentar respirar e não conseguir, a consciência de que talvez eu morresse ali, naquele jardim.
Isso não é real, disse a mim mesmo. Nada disso é real.
Eu me debati, conseguindo soltar uma das mãos das correntes do sonho. Agarrei os dedos do desconhecido, puxando-os para trás, para longe de minha traqueia. Apesar de ele não ter rosto nem expressão, deu para sentir seu choque. Ele pareceu deslizar em minha direção sem caminhar, agigantando-se à minha frente. A maneira como seu corpo se movia, como um motor monstruoso de lâminas, era apavorante. Sabia que, se aquele rosto encostasse em mim, mesmo no sonho, minha alma se despedaçaria.
EU JÁ SOU SEU DONO. VOCÊ JÁ É UM MONSTRO. OLHE...
Mais figuras começaram a surgir entre as árvores, centenas delas, arrastando-se para o jardim. A maioria estava com roupas camufladas, o tecido queimado e rasgado, e alguns vestiam os macacões da Penitenciária de Furnace. Alguns estavam sem braços ou pernas, outros com ferimentos imensos no peito e na barriga.
Todos mortos.
Eles marchavam em minha direção, estendendo as mãos, e senti aqueles olhos de cadáver deslizando sobre mim como insetos.
Esses são os seus mortos, os que você matou.
Balancei a cabeça, tentando negar, mas era verdade: todos aqueles homens e mulheres — e crianças também — que cambaleavam pelo chão irregular estavam mortos por minha causa. Eu não os tinha assassinado pessoalmente — não todos, pelo menos —, mas causara a morte deles através das mãos de minhas aberrações. O primeiro me alcançou e encostou suas mãos em decomposição em mim.
ELES QUEREM VINGANÇA, disse o desconhecido. DEVO ENTREGÁ-LO A ELES?
— Não — grunhi, sentindo o peso dos mortos, sabendo que eles me pisoteariam para dentro da terra, milhares empilhados em cima de mim, prendendo-me, enterrando-me vivo sob uma montanha de putrefação que se contorcia.
SÓ EU POSSO MANTÊ-LO VIVO. SÓ EU POSSO MANTÊ-LO LONGE DOS MORTOS.
É mentira!, gritou alguém na multidão. Eu conhecia aquela voz, e procurei entre os rostos até encontrá-lo. Era Donovan, como ele era na prisão, antes que os Ofegantes enfiassem seus bisturis em sua carne, em seus olhos; antes que eu o sufocasse com um travesseiro para acabar com seu sofrimento. A enorme onda de cadáveres se moveu e se pressionou contra mim, e por um instante eu o perdi de vista. Mas depois ele apareceu de novo, seu sorriso iluminando vigorosamente a escuridão. É mentira, repetiu ele. Ele não pode machucá-lo porque você não está realmente aqui.
Ele tinha razão. Aquilo parecia mais real do que tudo o que eu já tinha sentido — a carne fria dos mortos contra minha pele, o cheiro dos corpos em decomposição, o ruído de corvos devorando olhos e órgãos —, mas era uma ilusão. Me imaginei preso à máquina naquela sala na ilha. Lá eu estava em segurança; lá estavam meus amigos. Isso tudo só estava acontecendo dentro da minha cabeça.
Sua cabeça, suas regras, garoto, disse Donovan. Era como o tempo que tinha passado na solitária. Donovan também tinha estado lá; apenas uma invenção da minha imaginação, e eu sabia; mas tinha bastado. Ele havia salvado minha vida naquela época, e fazia o mesmo agora.
— Minha cabeça, minhas regras — repeti, e seu sorriso aumentou.
Isso, Alex. Agora, pelo amor de Deus, acabe logo com isso e tire a gente daqui. Nunca mais quero ver uma maçã de novo.
Eu ri, e o som pareceu afastar o desconhecido, como se ele não soubesse o que era aquele ruído. O movimento de seu rosto ficou mais agitado, o vulto tremeluzindo como uma lâmpada prestes a queimar.
VOCÊ NÃO VAI ME DESAFIAR. NÃO SERÁ POSSÍVEL.
— Minha cabeça, minhas regras — falei de novo. Dessa vez, quando tentei me mover, o sonho permitiu. Libertei os braços, que estavam presos ao lado do corpo, com um safanão. Olhei para minhas mãos. Estavam normais de novo. Cerrei os punhos e, com um grito rebelde, eu o golpeei, atingindo a têmpora do desconhecido. Não houve dor. Tudo o que aconteceu foi que a besta cambaleou para trás, as mãos distendidas se encolhendo, subindo até a cabeça. Ele rugiu com um barulho ensurdecedor, cheio de ódio. Mas aquilo não era nada. Inspirei de novo, eu mesmo soltando um grito tão forte que a legião de mortos saiu voando, os corpos explodindo e virando pó à medida que desapareciam em meio às árvores. Vi Donovan entre eles, e seu sorriso foi a última coisa a sumir, pairando acima do chão como uma lua crescente.
— Obrigado — disse eu, quando minha voz voltou. E ele respondeu rindo.
O desconhecido parecia prestes a atacar de novo, mas eu me movi primeiro. Meu corpo pareceu se expandir, ficando do tamanho das árvores e bem maior do que a criatura. Agarrei seu pescoço magro, sua pele tão úmida e fria quanto a de uma enguia, e a ergui do chão. Quase era capaz de sentir a indignação emanando de seu corpo como uma névoa escura, mas o que ele poderia fazer? Podia ser o sangue dele pulsando em meu corpo, mas era minha mente que o controlava.
Vou matá-lo!, gritou ele, sem falar as palavras. Vou assassiná-lo um milhão de vezes.
— Não — respondi. — Não vai. Porque, se me matar, também vai morrer. É o que acontece com parasitas; eles precisam de um hospedeiro vivo.
O desconhecido sabia que eu estava falando a verdade, e mais um grunhido estrangulado saiu dele. Ele se debateu contra minha mão, assim como eu tinha feito com ele apenas alguns momentos antes. Mas ele não tinha mais nenhum poder ali; nenhum poder sobre mim.
— Você é um prisioneiro — retruquei. — Dentro da minha cabeça. Nunca vou deixá-lo sair.
Não sabia se conseguiria concretizar aquela ameaça, mas o desconhecido acreditou em mim. Ele pareceu encolher, uma substância vertendo dele como tinta, respingando no solo do jardim. Eu o soltei, enojado, vendo-o encolher e se transformar no que verdadeiramente era: uma carcaça seca; tudo o que sobrara depois de ter derramado seu sangue dentro do jovem Alfredo Furnace. Ele não tinha um corpo no mundo real. Não podia causar nenhum mal, não mais. As raízes das árvores se contorceram, saindo da terra embaixo dele e forjando uma jaula ao seu redor. Um único dedo aracnídeo apareceu em meio às barras, com um último grito agudo e desesperado rastejando pela escuridão. E então o último espaço se fechou, encaixotando sua alma — se é que aquela coisa era capaz de ter uma — em um caixão de madeira viva.
Olhei o jardim uma última vez, sabendo que nunca voltaria. Então me lancei para fora do sonho, saindo dele como se nadasse de volta das profundezas, deixando o desconhecido lá embaixo apenas com corvos e larvas como companhia.
PROMESSAS
Emergi do sonho arfando, tossindo e ofegando tanto que a máquina inteira chacoalhava e tremia. Simon, Zê e Lucy caíram para trás, chocados.
— Caramba! — disse Zê, após se recuperar. — Quase me fez molhar as calças. O que diabos foi isso?
Respirei com dificuldade, tossindo uma bola de cuspe que tinha gosto de terra e fruta podre. Demorei um instante para lembrar o que havia acontecido no sonho. Os eventos do jardim desapareciam com rapidez. Mas podia sentir o desconhecido lá dentro, preso em meus pensamentos, sem conseguir escapar. Seu sangue ainda bombeava em mim, mas, por ora, sua voz sem palavras tinha sido silenciada.
— Minha cabeça, minhas regras — disse eu, minha voz um furacão sonoro.
Zê franziu a testa, olhando para mim como se eu tivesse enlouquecido. Mas não era de surpreender, já que meus olhos ainda eram redemoinhos de nada no meio do meu rosto.
— Tá bom, não precisa gritar. Tudo bem com você? — perguntou ele.
Assenti, transformando minha voz em um sussurro.
— Só precisava cuidar de uma coisa — respondi. — Mas agora está resolvido.
Dava para escutar o barulho abafado do tiroteio lá fora, e eu sabia que ainda tinha trabalho a fazer. Mas agora não havia mais dúvida. Os ternos-pretos e os vikings eram crianças, mas tinham sido arrancados do mundo onde viviam e transformados em monstros. Só pensavam em raiva, ódio, assassinato, implacavelmente, e isso não era maneira de viver. Pelo menos mortos eles ficariam em paz.
— O que vamos fazer? — perguntou Simon.
— O que é certo — disse eu. — É hora de essa guerra acabar.
— Como assim? — perguntou Zê. — Vai simplesmente se render?
— Vou tentar.
Fechei os olhos, minha mente se dividindo em mil fragmentos enquanto entrava na cabeça das criações de Furnace. Elas me receberam bem, mas dava para sentir a fúria delas lá dentro, uma fome insaciável de caos e sangue. A batalha em terra firme ainda estava no auge, com ternos-pretos e vikings vencendo. Eu via as pilhas sem fim de cadáveres nas ruas, jazendo como sacos de areia. O sangue do desconhecido começou a fervilhar dentro de mim quando vi aquilo, e por um segundo quase sucumbi a seu chamado. Mas foi apenas por um segundo, e o chamado desapareceu na mesma velocidade com que surgiu.
Foquei meus pensamentos, tentando tornar meu comando o mais claro possível. Depois enviei uma mensagem, direcionando-a como uma lâmina para dentro da cabeça de cada um dos ternos-pretos, vikings e ratos.
Parem de lutar.
A resposta deles ecoou para mim, a confusão virando descrença rapidamente, o que por sua vez causou ainda mais raiva. Alguns obedeceram, mesmo estando no meio de uma batalha. Simplesmente congelaram, e vi a consciência deles ficando negra, substância tornando-se ausência à medida que morriam. Era insuportável. Eu parecia sentir a morte de cada um, e cada nova morte era mais dolorosa do que a anterior.
Mas os que se renderam eram a minoria, apenas alguns. A maioria ignorou minha ordem. Não era de surpreender. Eu não tinha o controle que Furnace tinha, a convicção dele. Eles não haviam me obedecido porque sentiam que eu não sabia direito o que estava fazendo; que não acreditava em minhas habilidades. Como um cachorro descobrindo que seu dono é covarde. Mesmo com o sangue do desconhecido dentro de mim, eu tinha apenas uma fração da autoridade de Furnace. Ele, sim, havia sido capaz de impedir as criaturas de lutar na ilha, mesmo quando estavam sob ataque. Mas o instinto de autopreservação havia falado mais alto do que meu comando infantil. Isso e o fato de que as criaturas eram máquinas construídas para a guerra, para a destruição. Elas não conheciam nenhum outro jeito de viver.
Abri os olhos, voltando ao aposento. Zê, Lucy e Simon ainda estavam lá e me olhavam com ansiedade.
— Teve sorte? — perguntou Lucy.
— Eles não estão me escutando — respondi. — Não querem parar de lutar.
Zê passou as mãos no cabelo, refletindo.
— Se eles não querem desistir... — disse ele, sem completar o final da frase. Nem precisava. Eu sabia o que ele queria dizer.
Pensei no viking da cidade, aquele cheio de dobras carnudas que Panettierre tinha torturado, no qual ela havia atirado depois de termos fugido da minha casa. Preso, com medo, sozinho. Fora necessário acabar com o sofrimento dele, guiando-o para fora da vida. E ele tinha achado aquilo bom; tinha se lembrado de quem era por um rápido segundo; tinha se livrado da carapaça terrível que Furnace lhe dera. Ele tinha se libertado. Morrera como um garoto, não como um monstro. Aquele garoto havia morrido como ele mesmo. Esperava que aquilo fosse melhor do que nunca se lembrar. Tinha que ser melhor.
Zê pareceu ler minha mente, pois assentiu com um gesto de cabeça.
— Consegue fazer isso? — perguntou ele. — Consegue fazer isso por todos eles?
Não tinha certeza. Da última vez tinha sido um viking só, à beira da morte. Mas milhares deles, ternos-pretos, vikings e ratos? Talvez aqueles soldados achassem impossível se render, mas a ideia de liberdade era bem mais poderosa.
Estava prestes a responder quando uma risada baixinha me interrompeu. Olhei para Simon, encostado em um pilar, e de repente percebi o que aconteceria se eu concretizasse meu plano. Zê também se deu conta, soltando um palavrão.
— Mas é diferente com você, não é? — perguntou ele a Simon. — Você é... humano demais.
Simon deu de ombros.
— Não acho que as coisas funcionem assim — falou ele, olhando para mim. — Não é, Alex?
— Não sei. Quero dizer, Furnace nunca conseguiu controlá-lo quando a gente estava na prisão, nem depois que escapamos, não foi?
Simon pareceu incerto, perdido nas próprias memórias.
— Eu... não sei — gaguejou ele. — Acho que não. Mas...
— Mas o quê? — perguntou Zê. Simon olhou para ele, quase envergonhado.
— Alguma coisa me dizia que vocês estavam na solitária — confessou ele. — Eu não tinha visto vocês sendo levados até lá. Apenas sabia. Nunca entendi como eu sabia, mas acho que faz sentido. Acho que ele estava me dizendo.
— Por quê? — perguntei.
— Porque ele queria que você escapasse — prosseguiu Simon. — E queria que ficasse vivo. E é isso que tenho feito, Alex, ajudado você a escapar e continuar vivo.
Não adiantava discutir. Simon tinha sido uma marionete de Furnace, assim como eu. Ele tinha chegado até ali achando que agia por conta própria, mas a verdade era que nós dois tínhamos sido controlados e manipulados da mesma maneira.
— Não significa que você vai morrer — disse eu, tentando de tudo. — Você não foi tão transformado.
Tentei parecer convincente, mas no fundo eu sabia que, se mandasse um comando para as criações de Furnace abdicarem da vida, a mera escala que aquela ordem poderia atingir afetaria todos os seres vivos que possuíam o néctar dentro de si: ternos-pretos, vikings, ratos e, provavelmente, Simon. Era um risco que eu não estava disposto a correr.
— A gente encontra outra maneira — eu disse. — Tem que existir outra coisa que a gente possa fazer para acabar com isso.
Mas o silêncio que se seguiu revelou que minha afirmação era falsa. Simon riu de novo, balançando a cabeça.
— Não tem outra maneira — falou ele. — Eu sei disso, você sabe disso. Furnace também sabia, lembra?
— Como assim? — perguntou Lucy, enxugando uma lágrima da bochecha.
Simon olhou para mim novamente, sem conseguir se concentrar em meus vórtices brilhantes por mais de um segundo.
— A visão — disse ele. — Na estação de metrô, quando o viking agarrou a gente.
Eu tinha visto a torre, Furnace me chamando, pedindo para eu ser seu soldado no novo mundo. Era estranho pensar que ele havia falado dali, assim como eu me comunicava agora com suas criações.
No entanto, Simon não tinha recebido aquela mensagem. A dele havia sido diferente.
— Furnace disse que eu não tinha lugar no futuro. Lembra? Disse que, se eu ajudasse você, acabaria morrendo. Que, se eu o ajudasse, mais cedo ou mais tarde, você é que iria me matar.
Balancei a cabeça, meus pensamentos se misturando. Furnace obviamente presumira que, quando chegássemos à torre da cidade, o papel de Simon no plano dele chegaria ao fim. Furnace queria que eu enfrentasse o diretor sozinho — mas no fim das contas tinha precisado da ajuda de Simon. Será que Furnace havia mudado de ideia quando me vira perdendo a briga? Será que ele conduzira Simon até ali, fazendo-o enfiar uma granada na boca do diretor para salvar minha vida? Era impossível saber.
Acho que Furnace também acreditava que, depois que eu chegasse ali, depois que tomasse conhecimento de seu grande plano, sua visão de mundo onde apenas seus filhos sobreviveriam, eu não toleraria uma amostra híbrida como Simon. Agora isso não importava mais; tudo o que importava era que a profecia de Furnace parecia estar se tornando realidade.
— Sério? — perguntou Zê, o choque evidente em seu rosto. — Furnace disse mesmo isso pra você?
Simon fez que sim, e o local ficou em silêncio de novo, apenas os dois Ofegantes no canto dando algum sinal de vida, contorcendo-se sutilmente.
— Mas ele estava errado — disse eu após um tempo. — Porque isso não precisa acontecer assim. Vamos pensar em outro plano.
— Que outro plano? — retrucou Simon. — Ir lá fora e matar todas aquelas coisas com as nossas mãos? Torcer para que Panettierre vença a guerra e não comece outra? Isso não vai acabar por si só, Alex. Aquelas aberrações ainda estão lá fora, e estão vencendo. Os ratos continuam infectando as pessoas, o exército de Furnace continua ficando maior, mais forte. — Ele parou, soltando um suspiro exausto. — E quando isso começar a se espalhar? Quando os ternos-pretos atravessarem a fronteira, atravessarem os oceanos? Pode ser que isso já tenha acontecido. Não tem a ver só com o nosso país, tem a ver com a humanidade inteira. — Ele balançou a cabeça, e ninguém se atreveu a falar. — Você tem a oportunidade de acabar com isso agora. Se aproveitá-la, talvez eu morra, o que será péssimo. Mas, se não, é como se estivesse autorizando a pena de morte para todos os outros.
— Simon — disse Zê, os olhos úmidos de lágrimas —, não dá, não vou permitir uma coisa dessas. — Ele olhou para mim. — Não é, Alex? A gente pensa em outra coisa. Não é?
— Esse é o seu problema, Zê — disse Simon, sorrindo com suavidade. — Você sempre pensa demais.
Agora Zê estava aos prantos, alternando seu olhar entre mim e Simon. Lucy também chorava, enxugando os olhos na manga o tempo todo. Eu mesmo teria caído no choro se o sangue do desconhecido permitisse. Mas não significava que não sentisse a tristeza subindo de minha barriga e se alojando em minha garganta.
Zê correu até Simon e jogou os braços magros ao redor do garoto maior, enterrando o rosto em seu pescoço. Simon retribuiu o gesto com tanta força que escutei algo estalar, os dois se abraçando e as lágrimas escorrendo livremente, como se não fosse preciso se despedir se nunca mais se afastassem.
Deixei a cabeça pender, tentando desesperadamente pensar em outro plano. Meus pensamentos circulavam como pássaros em bando, numerosos e rápidos demais para que eu os agarrasse.
Simon encolheu os ombros para fazer Zê se afastar, e cada um deu um tapinha no ombro do outro, ambos constrangidos. As lágrimas de Zê tinham deixado um rastro no ombro de Simon, no moletom que ele tinha conseguido no shopping na manhã em que fugimos, quando achávamos que tudo ficaria bem. Lucy aproximou-se e abraçou o garoto maior. Foi um abraço breve, mas sincero.
— Fique com a gente — disse ela. — A gente garante que nada vai acontecer com você.
— A gente pode acorrentar você a um desses pilares — disse Zê. — Assim você não vai poder fazer nenhuma idiotice.
Simon balançou a cabeça em uma negativa.
— O que quer que aconteça de agora em diante, não quero que vocês vejam — disse ele. — Quero que se lembrem de mim assim.
— Simon... — disse eu, sem saber mais o que falar.
Ele olhou para mim, seu sorriso meio torto ainda no rosto. Pensei na solitária, quando seu sorriso bobo era a única coisa boa que nos aguardava quando o alçapão era aberto. Lá embaixo, bem nos confins do mundo, aquilo era a única coisa que me fazia seguir em frente. O nó em minha garganta pareceu aumentar, como se algo estivesse prestes a explodir.
— Obrigado — disse Simon. — Obrigado por tirar a gente de lá. A morte não parece tão assustadora, sabia? Não quando tenho o céu acima de mim e o vento no meu rosto. Prefiro um milhão de vezes morrer aqui fora a dentro da Penitenciária de Furnace.
— Não é certeza que você vai morrer — falei, a voz falhando. — Talvez fique tudo bem.
— Então por que todo mundo está chorando? — ele perguntou.
— Vai ficar tudo bem — disse eu de novo, tentando mais me convencer que qualquer outra coisa.
Simon virou-se, como se fosse sair da sala, depois pensou duas vezes e veio correndo até mim.
— Não vou explodir nem nada do tipo se encostar em você, vou? — perguntou ele.
Fiz que não com a cabeça, e ele estendeu os braços a meu redor o máximo que podia, apertando meu corpo. Desejei poder sair daquela máquina infernal e retribuir o gesto. Talvez eu fosse capaz de compartilhar minha mente com mil criaturas, mas o único grupo do qual eu verdadeiramente fazia parte era o daquelas pessoas ali comigo. Tínhamos compartilhado tanto, coisas boas, ruins e mais ou menos, e nossa ligação era bem mais forte do que o néctar. Perder Zê ou Simon seria como perder uma parte de mim mesmo.
Ele se afastou e parou, as bochechas úmidas de lágrimas.
— Agora também comecei a chorar. Culpa sua — disse ele, enxugando o rosto. — A gente viveu umas aventuras e tanto, né? — Ele sorriu.
— E teremos outras — disse Zê. — Prometo.
Simon fez que sim, soltando um suspiro trêmulo. Passou a manga no nariz, fungando, e depois começou a andar.
— A gente se vê de novo do outro lado — disse ele. Dessa vez, ninguém o corrigiu.
— Prometo! — disse Zê. Mas aquela era uma promessa que ele não iria, não poderia cumprir.
Simon parou ao atravessar a porta e olhou para nós com seus olhos parecendo diamantes. Deu uma piscadela, sorriu e desapareceu de nosso campo de visão, como fazia na solitária, quando precisava nos trancar nas celas. Imaginei-o correndo pelos corredores subterrâneos da prisão, fugindo de ternos-pretos e ratos, mantendo-se vivo. Ele nunca havia nos abandonado. Sempre tinha voltado.
Mas não dessa vez.
Nunca mais vimos Simon.
LIBERDADE
O único ruído na sala, além da pulsação profunda e sem fim da máquina, era a sinfonia de tristeza. Zê e Lucy estavam na minha frente, abraçados, os soluços de choro quase no mesmo tom. Atrás deles, escutamos os últimos ecos dos passos no corredor lá fora, e depois o clique final de uma porta se fechando.
Não sei quanto tempo demorou para Zê levantar a cabeça do ombro de Lucy, os olhos vermelhos.
— Também vamos perder você? — perguntou ele, a voz rouca.
Eu não sabia o que aconteceria comigo. Afinal, eu era apenas mais uma das criaturas de Furnace. Não havia néctar dentro de mim, não mais, mas meu corpo estava cheio de sangue do desconhecido. Se eu enviasse uma ordem a meus soldados para que se matassem, será que eu também não seria vítima dela?
E, se eu fosse, isso realmente importava? Quero dizer, se eu morresse, com certeza os últimos vestígios do desconhecido também morreriam dentro de mim. Nenhum parasita vive por muito tempo sem um hospedeiro. Talvez essa fosse a única maneira de garantir que ele nunca mais infectasse outro garoto.
— Alex? — chamou Zê.
— Vai ficar tudo bem — menti. — Vamos, vamos fazer logo isso, antes que seja tarde demais.
— Boa sorte — disse Lucy. — Seja forte, tá?
— E não se atreva a não voltar — acrescentou Zê. — Ou vou dar a maior surra em você.
Sorri, meus lábios se erguendo por uma fração de segundo antes de despencarem novamente. Então fechei os olhos, inspirei profundamente e conduzi minha mente para fora dali.
Dessa vez, não havia palavras. O que eu poderia dizer?
Ocupei a cabeça deles como um fantasma, e meus pensamentos se tornaram os deles. Mais uma vez, me receberam com alegria, porque me viam como um pai, como o criador deles. E eu era mesmo. Tinha o sangue do desconhecido dentro de mim, mantendo-me vivo, dando-me poderes. Agora, ternos-pretos, vikings e ratos eram minha prole. Eram meus filhos.
A culpa ardia dentro de mim, eu sabia o que estava prestes a fazer. Meu coração martelava, cada batida parecendo forte o suficiente para lançá-lo para fora de meu peito. E dava para sentir o desconhecido lá dentro, como se cada pulsação fosse ele batendo nas grades de sua cela de prisão, sua fúria parecendo ser suficiente para fazer estremecer o universo e transformá-lo em pó. Mas as correntes dentro de minha cabeça estavam firmes. Ele não escaparia, não a tempo de me deter.
No mundo lá fora, a guerra estava no auge, e a maré de sangue não tinha fim. De todos os pares de olhos — agora eram menos, mas ainda eram milhares —, eu via apenas carnificina e caos. O chão tinha sido tingido de carne destruída, montanhas de ossos quebrados subiam da terra úmida, com fumaça da cor das rochas mais acima. Era uma tapeçaria feita de assassinato e destruição, e eu nunca tinha visto nada parecido. Estávamos mesmo no inferno.
Não sabia como ainda havia gente para ser morta, mas a força de resistência continuava lutando. Soldados camuflados escondiam-se atrás dos companheiros mortos, disparando as últimas munições. Outros atacavam com baionetas, gritando em rebeldia, recusando-se a se render, mesmo sabendo que a morte era inevitável. Também havia civis ali, juntando-se ao exército e se lançando à batalha armados com martelos, facas de cozinha e tacos de sinuca. Não tinham esperança, mas dava para ver no rosto deles que estavam lutando pela própria existência e que nunca parariam.
Também os vi nos oceanos, vikings e ratos em barcos sendo puxados por leviatãs, espalhando a praga deles em outras costas.
Então me concentrei nos filhos de Furnace — meus filhos. A mente deles fervilhava, irreparável de tão arruinada, cada pensamento gritando matar várias e várias vezes, um comando ininterrupto que vinha do próprio sangue deles; que não os deixava descansar.
No entanto, sob aquela fúria, em uma parte de sua mente, tão profunda que nem eles sabiam de sua existência, dava para ver as crianças que tinham sido antes que Furnace os pegasse, antes de serem transformados. Aqueles garotos tinham sido afogados em um lago de néctar; tinham mudado demais para conseguir se lembrar dos nomes e das vidas antigas, mas mesmo assim aguentavam. Todos queriam a mesma coisa. Queriam paz.
Simon também estava lá, ainda andando, o sol no rosto e o vento no cabelo. Havia medo dentro dele, sim, mas também alguma outra coisa que não consegui identificar direito, alguma coisa boa.
Não, agora não havia palavras. Chamei meus filhos, não com linguagem, mas com sentimento. Pensei na minha própria história, nas poucas recordações positivas que restavam, nas raras joias que reluziam do meio da terra. Vi minha vida de antigamente — futebol no recreio, a alegria de comemorar um gol com meus amigos; no jardim com minha mãe; construindo modelos com meu pai; assoprando velas nos meus bolos de aniversário; andando de bicicleta na chuva; brincando com novos brinquedos no Natal, à luz tremeluzente da lareira. E pensei naquele dia na praia, no dia com minha mãe e meu pai, os dois gargalhando quando o sorvete da casquinha do meu pai caiu do outro lado do píer. Foi muito bom escutar a risada deles.
Pensava naquele som agora, naquela dupla de risos atravessando os gritos, os grunhidos, o horror de carne dilacerada. Amplifiquei-o, projetando-o na mente dos meus filhos. Eles hesitaram, todos eles, confusos com o barulho. Mas devem tê-lo reconhecido. Talvez eles próprios não conseguissem mais rir, mas, não importava a quantidade de néctar dentro da pessoa, o som de uma risada — uma risada genuína, bela e humana — era inesquecível.
Não foi o suficiente. As bestas ficaram distraídas, mas não por muito tempo, e a violência continuou.
Eu me concentrei, isolando tudo o mais, exceto as lembranças boas. Pensei na Penitenciária de Furnace, nos amigos que tinha feito lá. Pensei nos momentos na prisão em que não conseguia parar de rir, apesar de a gente estar preso dentro de um pesadelo. Pensei em Zê com seus documentários sem fim, em Simon com seu sorriso torto.
E pensei em Donovan.
Donovan, com aquele sorriso que parecia o sol, afugentando a escuridão, até restar apenas bondade e luz. Donovan, com sua risada surgindo junto com a dos meus pais, incontrolável, inesquecível, até aquele som baixo e grave ser o único do mundo. Donovan. Ele sempre estivera a meu lado, mesmo depois de ter sido levado pela vigília sangrenta. Havia estado a meu lado na solitária, não mais que uma lembrança, mas ainda assim me mantendo vivo. Estivera a meu lado mesmo depois de morrer, recusando-se a me deixar, mantendo o néctar a distância, ajudando-me a lembrar, impedindo-me de perder a cabeça.
E ele estava ali agora, a pele reluzindo, do jeito que eu o imaginava nas celas subterrâneas de Furnace, como uma espécie de anjo natalino brega, tão brilhante que até em minha mente eu precisava semicerrar os olhos para vê-lo. Seu sorriso irradiava luz, pulsando pelos meus pensamentos e entrando na mente dos vikings, ternos-pretos e ratos, afastando o néctar e clareando a escuridão. Foi apenas por um segundo, mas bastou.
Não precisa ser assim. Tem que existir algo além do ódio, da raiva. Essa não é a vida de vocês; não é preciso vivê-la. Sem palavras, apenas esses pensamentos. Apenas Donovan, um pastor de almas perdidas, uma prova de que existia uma saída, de que existia uma maneira de escapar. Ele os guiou, alçando-os para fora do néctar, atraindo-os para a luz.
Os vikings foram os primeiros, as mentes se partindo, as recordações vertendo delas. Senti o ímpeto de milhares de garotos se lembrando, os pensamentos repentinos deles me dominando. Era demais, e minha própria mente fulgurava como se tivesse entrado em curto-circuito; como se estivesse prestes a explodir. Mas não parei, concentrando-me em Donovan, transmitindo a imagem dele para meus filhos, mostrando-lhes o caminho para fora da prisão, o caminho para a liberdade. Senti os ternos-pretos soltando as armas, largando a própria carne mutilada e se movendo em direção à luz. Felizes, muito felizes por estarem se reunindo a si próprios, com as crianças que achavam estar perdidas para sempre. Agora minha cabeça tinia, o vidro prestes a estourar, mas não havia mais como parar. Senti os Ofegantes, o alívio total e extremo quando se livraram de suas formas distorcidas depois de tantas décadas encerrados dentro delas. Os ratos demoraram mais, sua personalidade tão destruída que eu não sabia se tinha sobrado alguma coisa. Mas com o tempo eles também sucumbiram, entregando-se à medida que a alma dentro de seu corpo alquebrado pairava acima deles. Eu os observei partindo, concentrando-me ao máximo, sentindo minha própria mente começar a se desapegar do mundo real, também levado pela maré. Agora a luz estava em todo canto, tão brilhante, tão morna. Ela atraiu todos nós para seu interior, com Donovan bem no centro, dando-nos as boas-vindas. Fui até ele. Meu sorriso era um reflexo do dele, seus braços me amparando e me abraçando, impedindo que eu caísse.
Havia apenas luz, apenas silêncio, apenas ele.
Estávamos livres.
FIM
Em algum momento, a luz começou a esvanecer.
Minha cabeça tinia, um zunido constante, como se eu tivesse ficado perto demais de uma explosão. Meu corpo inteiro estava dormente, tanto que me perguntei se não teria saído dele; se não teria de alguma maneira ido junto com Donovan. A luz parecia tão tentadora — uma promessa de paz, descanso, liberdade — que a ideia de não estar lá, de voltar para minha carne destruída, era apavorante. Rezei para que a luz me deixasse ficar; para que não fosse lançado de volta à escuridão, à vida.
Mas ela continuou se esvaindo, fluindo como a última arfada desesperadora do crepúsculo até só restar a noite. Um barulho começou a emergir em meio ao tinido, uma pulsação fraca. Demorei um tempo para reconhecer meu próprio coração e, quando fiz isso, eu o senti se apertar. Eu ainda estava vivo, ainda estava preso à pele, à cartilagem e aos velhos músculos. E o sangue do desconhecido ainda corria dentro de mim.
Minhas pálpebras estavam tão pesadas que achei que não seria possível abri-las de novo, mas, depois de tentar algumas vezes, consegui. Olhei pela fresta da escuridão e avistei Zê e Lucy. Quando viram que eu ainda estava vivo, os dois abriram sorrisos idênticos.
— Caramba, Alex! — exclamou Zê. — Bem-vindo de volta. A gente não sabia se você ia conseguir voltar.
— Achamos que estava morto — falou Lucy. — Passou, tipo, minutos sem respirar, e estava congelando.
— O que aconteceu? — perguntei. Zê apontou a cabeça para o canto do quarto, e eu acompanhei seu olhar. Vi os dois Ofegantes arqueados, os membros entrelaçados como amantes suicidas. — Estão mortos?
— Acabaram de bater as botas — disse Zê. — A gente não foi conferir a pulsação nem nada, mas parecem bem mortos pra mim.
E estavam mesmo. Não sei exatamente o que aconteceu, mas era evidente que não existia mais vida dentro daqueles corpos imóveis. Eu me concentrei, tentando levar meus pensamentos para o interior da mente de ternos-pretos, vikings, ratos, porém não encontrei mais nada; era como se todos tivessem sido simultaneamente desligados. Claro que eu podia apenas ter perdido meus poderes, mas no fundo sabia que não era o caso. Não havia mais ninguém com quem pudesse me comunicar. Todos os meus filhos estavam mortos.
— O que aconteceu com Simon? — perguntou Zê.
Fiquei encarando o chão. Não consegui olhar nos olhos dele. Simon havia partido. Eu o tinha matado. Assim como acabara de matar centenas, ou melhor, milhares de seres vivos.
— Você fez a coisa certa — disse Lucy, percebendo a aflição em meu rosto. Ela olhou para o meu pescoço, para o medalhão prateado de São Cristóvão que ainda estava lá. — Era a única maneira.
— E pode ser que ele esteja bem — disse Zê. — Ele pode estar bem.
Não respondi. As sensações voltavam aos poucos para o meu corpo, as faixas ferindo minha pele, meus músculos rígidos por terem ficado tanto tempo na mesma posição. Olhei para minha mão esquerda e percebi que ela tinha mudado completamente. Aqueles três dedos agora estavam longos e magros, com articulações e juntas demais, lembrando a mão de Furnace. Senti um arrepio na pele só de olhar para ela. Ergui a lâmina do outro braço, perguntando se não devia tentar me soltar. Mas ainda tinha agulhas e tubos alojados em minha carne, e não sabia o que aconteceria se eles fossem removidos. A última coisa que desejava depois de tudo aquilo era sangrar até a morte no chão daquele lugar.
Ou será que desejava aquilo? Aqueles pensamentos circularam em minha cabeça — as criações de Furnace podiam estar mortas, mas o desconhecido ainda estava preso em minha mente. Não demoraria para que ele encontrasse uma maneira de escapar e voltar a meus pensamentos, e o que aconteceria então? Não poderia mantê-lo afastado para sempre. Talvez demorassem anos, décadas, talvez até séculos, mas eu terminaria cedendo. Ele me obrigaria a criar outro exército, a declarar guerra contra o mundo mais uma vez. Sabia disso, assim como sabia que meu plano tinha funcionado; que meus filhos estavam mortos. A verdade era inegável.
— E agora, o que vai acontecer? — perguntou Lucy. — Não estou escutando tiros nem nada. Acha que é seguro lá em cima?
Ela tinha razão. O rugido abafado lá de cima tinha parado, e aquela sala estava estranhamente silenciosa.
— Vocês deviam dar o fora daqui — sugeri. — Sair da ilha. Deve estar tudo bem em terra firme agora, é só ficarem longe do exército. Aposto que ainda querem vocês.
— Mas e quanto a você? — perguntou Zê. — Você sabe muito bem que não vou abandoná-lo aqui.
— Não posso ir — respondi. — Pelo que sei, é esta máquina que está me mantendo vivo.
Eu podia ter contado a eles sobre o sangue do desconhecido, sobre a coisa que morava dentro de mim, mas preferi deixar pra lá. Nem eu entendia direito.
— Não vou abandonar você aqui — disse Zê em um tom de voz firme. E percebi que ele estava falando sério. — Ou você me deixa soltar você daí e corre o risco, ou vou me mudar pra cá.
— Nós dois vamos — acrescentou Lucy.
— Isso. A gente pendura uns quadros, pega um sofá legal ou algo assim. Tem espaço para uma cama.
— Duas camas — acrescentou ela, erguendo a sobrancelha com seriedade.
Zê ficou vermelho.
— Duas camas — disse ele. — Três camas, na verdade, para quando Simon voltar. De qualquer maneira, a escolha é sua. Ficamos juntos ou vamos embora juntos, você decide.
— Que tal morrerem juntos?
A voz veio da porta, assustando a todos nós. Olhei para a porta e vi a silhueta iluminada pela luz que vinha do corredor, a boina militar, a camuflagem, o emblema do uniforme refletindo a mesma luminosidade existente no olhar feroz.
Era a coronel Alice Panettierre.
Panettierre parecia possuída. Foi a primeira coisa que percebi quando ela enfim entrou no aposento. Seus olhos estavam arregalados, com um brilho selvagem e sem piscar. Parecia ter perdido metade do peso desde a última vez em que eu a vira. Seu rosto definhava, as maçãs do rosto quase perfurando a pele. E seus lábios finos estavam puxados para trás, criando a caricatura de um sorriso, que parecia preso naquela posição por alfinetes.
Ela segurava uma arma, e até de onde eu estava era possível ver que estava pronta para disparar. Mais duas pessoas apareceram atrás dela, dois jovens camuflados e com capacetes de combate. Um parecia ter levado um tiro ou um arranhão no braço; suas roupas estavam ensopadas de sangue, o rosto retorcido de dor. Os dois carregavam metralhadoras e as ergueram em minha direção.
— Achou que a gente não encontraria você? — disse Panettierre, indo até o meio da sala.
Zê e Lucy saíram do caminho da coronel, que nem os olhou, ela não desgrudava os olhos de mim. Sabia que meus olhos ainda pareciam os de Furnace, aqueles poços de escuridão que seriam capazes de roubar a sanidade até do ser humano mais são de todos. Mas ela não se deteve, tampouco desviou o olhar. Tinha perdido a cabeça havia muito tempo.
— Senhora — disse um dos homens, o que não estava machucado, tocando um receptor de rádio alojado no ouvido. Ele não conseguiu olhar para mim, seu corpo inteiro tremia. — Estamos recebendo informações de que o inimigo foi neutralizado.
Panettierre o ignorou, caminhando até ficar bem na minha frente. Ergui o braço direito, brandindo a lâmina em sua direção, mas não consegui alcançar a coronel. As tiras da máquina me prendiam com firmeza, o que me impedia de me lançar em mais um ataque.
— Achei que estivesse morta — falei, minha voz parecendo emanar de todas as pedras da sala. Ela me encarava com aquele sorriso congelado.
— Achou errado — ela respondeu, ainda sem piscar. Seus olhos estavam esbugalhados, com tantas veias que pareciam cheios de sangue. — Foi quase, lá em cima na mansão, mas nós três conseguimos nos esconder dos seus bichinhos de estimação. Achou mesmo que ia conseguir fazer isso e se safar, Alex?
— Acabou — sussurrou Lucy. — Ele matou todos eles, matou os monstros. Ele nos salvou, a todos nós.
A cabeça de Panettierre não se mexeu, mas seus olhos arregalados se viraram lentamente nas órbitas, como os de uma grotesca marionete, olhando para Lucy e Zê como se só tivesse percebido a presença deles naquele momento.
— É verdade — disse Zê, apontando para os Ofegantes. — Está vendo? Dê uma olhada lá fora também; estão todos mortos. Acabou.
A coronel ergueu a pistola e a apontou para Zê. Seu braço estava duro como pedra, sem o mínimo tremor, seu dedo encostado firmemente no gatilho.
— Não faça isso — disse eu. Panettierre desviou o olhar para mim, mas a arma não se moveu.
— Sabe quantos soldados eu perdi? — perguntou ela, a voz estranhamente inexpressiva. — Quantos homens e mulheres corajosos morreram? Milhares. Dezenas de milhares. Acha que ligo para os seus amiguinhos aqui? Acha que não os mataria bem onde estão, só para ver a expressão no seu rosto?
— Senhora — repetiu o soldado. — Eles têm razão, todas as divisões estão informando que o inimigo está caindo e morrendo sem nenhuma razão aparente. Acho que acabou.
— Não acabou — retrucou Panettierre, e eu pude ver a emoção borbulhando vigorosamente por trás da expressão mascarada dela. Seus olhos pareciam ter aumentado, as pupilas parecendo uma marca de agulha num oceano de fogo. — Só acaba quando eu decidir que acabou.
Ela voltou a atenção para a máquina, para os restos de Alfredo Furnace bem ali a meu lado. Esquecido por ora, seu braço armado pendeu ao lado do corpo.
— O que é esta coisa? — perguntou ela. — É assim que consegue seus poderes? Que controla o néctar?
Fiquei de boca calada. Mesmo que eu soubesse o que era a máquina e como ela funcionava, não teria respondido. Ela inclinou a cabeça para trás e falou com um dos soldados.
— Venha aqui, Bates. Descubra como essa coisa funciona.
— Senhora — respondeu o homem ferido —, recebemos ordens para deixar isso...
— Que se danem as ordens! — vociferou ela. — Venha até aqui, sargento, e faça o que estou mandando.
Os dois homens se entreolharam, hesitantes, mas não iam desobedecê-la. Bates caminhou a passos nervosos até a máquina, ficando a uma boa distância do meu braço, e começou a examiná-la. O sangue de seu ferimento pingava na superfície de pedra, o som como o tique-taque de um relógio. Não falei nada. Uma ideia se formava no fundo de minha mente, algo que ainda não conseguia identificar direito. Me esforcei para distingui-la, mas o rugido do sangue do desconhecido em minhas veias a ocultava.
— Você sabe que perdeu — disse Panettierre. — Mas podemos fazer um acordo. Você me diz como isso funciona, esta máquina, e eu deixo seus amigos viverem. Acha justo?
Eu me virei para Zê e Lucy. Os dois balançaram a cabeça em uma negativa. Sabiam, assim como eu, que Panettierre aprender a usar a máquina não resultaria em nada de bom. Pelo que eu sabia, ela havia sido construída apenas para manter Alfredo Furnace vivo depois que seu corpo começou a se desfazer, bombeando o sangue do desconhecido por áreas onde não existiam mais veias nem carne. E, para fazer a troca de sangue, o mecanismo havia drenado o néctar do meu corpo antes de transferir o sangue de Furnace — o sangue do desconhecido — para mim.
A ideia veio de novo, um ponto de luz reluzindo no fundo de um oceano de escuridão, mas sumiu com a mesma rapidez com que apareceu. Panettierre começou a falar novamente antes que eu pudesse compreendê-la:
— Posso tornar a morte deles bem dolorosa. Pode durar dias, semanas. Posso mantê-los vivos só para que sintam dor, só para que sofram. A gente tem pessoas para isso, e elas são muito, muito boas no que fazem.
— Não escute o que ela está dizendo, Alex — disse Zê. Ele e Lucy se apoiavam um no outro, assustados, mas de um jeito desafiador. Prefeririam morrer ali a dar a Panettierre o que ela queria. Eu esperava que não chegasse a tanto.
— Tem razão — disse eu, sem saber se estava mentindo ou não. — Esta é a máquina que permite ter controle sobre o néctar.
— E aquele é Furnace? — perguntou ela, apontando a cabeça para a carcaça de pele ressecada e osso pulverizado a meu lado.
— A máquina permite que ele passe seus poderes para mim — disse eu. Ela olhou para Bates, o soldado que agora estava ajoelhado, usando uma faca de combate para mexer nas engrenagens e nas cânulas expostas. Ele sentiu o olhar dela e olhou para cima.
— Nunca vi nada parecido — disse ele. — Mas parece uma bomba gigante, criada para deixar algo circulando. — Ele parou, dando de ombros. — Pode ser também uma máquina de transfusão. Tem uns pedaços aqui que estou reconhecendo da sala de cirurgia.
— Transfusão? — perguntou Panettierre. Seus olhos pareceram se alegrar, e foi isso que fez a ideia emergir da superfície escura do meu sangue como uma baleia irrompendo na superfície do oceano. Sabia o que Panettierre queria. Era a única coisa que ela sempre quisera, mesmo no começo, quando a conheci no hospital. Ela queria controle.
— O sangue significa poder — falei. — É o sangue, não a máquina, que permite à pessoa manipular o néctar e tudo em que ele encosta.
— Alex, o que está fazendo? — disse Zê. — Não conte tudo a ela.
Mas nem Panettierre nem eu o escutamos. Nós nos encarávamos, sem desviar o olhar.
— O seu sangue? — perguntou ela, a pequena língua movendo-se por cima dos lábios, parecendo um lagarto.
— O sangue não é meu — respondi. — Ele pertence a outra coisa, a algo mais ancestral que o tempo, a algo ruim.
— E acha que vou acreditar nisso? — perguntou ela, sem tirar o sorriso pintado do rosto.
— Não me importo se acredita ou não — disse eu com minha voz reverberante. — É a verdade.
Como ela duvidaria daquilo, depois de tudo o que tinha visto? A entidade que estava vendo agora, aquela com quem falava, não era um garoto; era um deus cujos olhos eram portais giratórios, buracos negros na estrutura do espaço-tempo; um deus cuja voz ecoava de todas as células e de todas as partículas daquela sala. Era visível o desejo ardente dentro dela, sua fome de poder.
— Ele vai matá-la — disse eu, imaginando seus pensamentos. — O sangue não sobrevive em todos, apenas em crianças.
Não sabia se era verdade, mas o néctar só funcionava em crianças, e o desconhecido escolhera Alfredo Furnace — e eu — quando ainda era jovem. Panettierre balançou a cabeça, soltando uma risada que pareceu mais animalesca do que humana.
— Vocês conseguem mexer nela? — Demorei um instante para perceber que ela falava com os soldados.
— Coronel — disse o que não estava ferido —, não é uma boa ideia.
— Conseguem mexer nela? — ela repetiu.
— Senhora, por favor... — disse Bates.
Panettierre foi até o jovem e colocou o cano de sua arma na boca dele. Escutei o estalo de dentes se quebrando quando a cabeça dele colidiu com a máquina. O dedo dela ficou mais firme, e por um segundo achei que realmente fosse atirar. Depois ela se inclinou e sussurrou no ouvido dele:
— Faça o que estou mandando, soldado, ou mato você. Estamos em guerra, e a punição por desobedecer a uma ordem direta é a morte, entendeu?
Ele fez que sim, os dentes batendo na arma.
— Consegue mexer nela? — perguntou ela, e ele mexeu a cabeça para cima e depois para baixo o mais delicadamente possível. Ela se deteve por mais um momento antes de afastar a arma, limpando o sangue e a saliva em sua calça.
Bates se virou, o rosto pálido. Chamou o outro homem para ajudá-lo, e os dois soldados pareciam crianças assustadas enquanto examinavam as alavancas e os visores embutidos na máquina. Panettierre parou novamente diante de mim, o rosto tão retorcido de entusiasmo e insanidade que parecia um boneco assassino de filme de terror.
— O que está fazendo? — perguntou Zê, mas já devia saber.
— Vou acabar com esta guerra — respondeu Panettierre. — Vou controlar as tropas inimigas. E, depois que comandá-las, tudo vai acabar.
— Mas elas já estão... — disse Lucy.
Lancei um olhar para eles, balançando a cabeça, e Zê deve ter entendido, porque pôs a mão no braço de Lucy, impedindo-a de completar a frase. Panettierre não viu aquilo, atenta às tiras a meu lado, aquelas que prendiam os restos de Furnace. Ela estendeu o braço e puxou pedaços dele, o corpo se desfazendo ao menor toque, enchendo o ar de carne pulverizada.
— O sangue vai matá-la — disse eu novamente. Mas não havia como detê-la. Seus últimos vestígios de sanidade tinham sido destruídos. Havia apenas a fome.
— Vai matá-lo também — disse Zê para mim. Não respondi.
Panettierre tinha se colocado no espaço que antes era ocupado por Furnace, chamando um dos soldados para fixá-la no lugar. O homem não discutiu, apertando as tiras em seus braços e pernas, passando o cinto em sua cintura e acomodando a armação por cima da cabeça. A pulsação da máquina pareceu acelerar, como se sentisse um corpo novo dentro de si.
— A máquina está pronta? — perguntou ela.
Bates fez que sim, mas sua expressão dizia outra coisa.
— Acho que é só uma questão de puxar essas alavancas — disse ele. — O sistema de transfusão é bem simples. Mas não sei o que vai acontecer.
— Eu sei — disse Panettierre, as feições evidenciando todo o seu descontrole.
Senti meu sangue acelerar; era o entusiasmo do desconhecido com a possibilidade de um novo hospedeiro. Eu o havia desapontado; não tinha cedido a seus pedidos e o aprisionara dentro de meus pensamentos. Agora ele se deparava com sua liberdade e a possibilidade de vingança. Pensei no que acontecera com Furnace quando o sangue saíra dele — seu corpo tinha virado pó. Tentei não imaginar a mesma coisa acontecendo comigo. Mas, se eu tivesse que correr o risco de me sacrificar para matar o desconhecido, então eu topava. Nem tinha tantos motivos assim para viver.
Me virei para Zê. Eu parecia um monstro, e não queria que ele se lembrasse de mim dessa maneira, mas o mínimo que eu podia fazer depois de tudo o que havíamos passado juntos era lhe dar um sorriso.
— Alex — disse ele, estendendo o braço para mim. Mas era tarde demais para despedidas.
— Faça! — ordenou Panettierre.
Bates puxou a primeira alavanca, os mecanismos dentro da máquina ganhando força. Ela sabia o que fazer, as agulhas deslizando da estrutura e perfurando a pele da coronel, ela fez uma careta, os olhos reluzindo, parecendo as coisas mais brilhantes à meia-luz do quarto. Escutamos um barulho de sucção, e depois os tubos ficaram vermelhos quando o sangue dela jorrou para dentro deles.
— Jesus Cristo — disse o outro soldado, cambaleando para trás. Panettierre estava ficando branca, a pele enrugando como invólucros de salsicha vazios à medida que o sangue era drenado. Deu para perceber seu pânico, as mãos forçando as tiras, mas estava fraca demais para resistir. Bates soltou um palavrão, esperando as cânulas começarem a gorgolejar antes de acionar a segunda alavanca.
A máquina mudou de tom, e uma agulha deslizou para dentro da minha espinha, indo tão fundo que senti dor, mesmo por trás da tempestade de sangue do desconhecido. Senti uma rajada gélida dentro de mim à medida que o veneno começava a deixar minhas artérias. Podia vê-lo dentro do tubo, sendo bombeado para Panettierre. Ela estava inconsciente, totalmente drenada, mas, quando ele passou pelas agulhas e entrou no braço dela, ela renasceu, jogando a cabeça para trás e gritando de prazer. Eu conhecia aquela sensação, o sangue despertando todas as células, explodindo dentro de sua cabeça com promessas de poder nunca antes imaginados. A resposta do desconhecido foi a mesma: senti sua euforia enquanto ele controlava a nova hospedeira.
As duas reações duraram apenas um instante.
A alegria no rosto de Panettierre virou terror. Ela olhou para mim, os olhos negros, como se simplesmente houvessem desaparecido de seu rosto. Mas sua expressão agora era de horror e compreensão. Senti a mesma coisa vindo do desconhecido — ele tinha percebido que seu sangue não estava sendo vertido em uma criança, mas sim em um adulto. Fez-se um momento de silêncio, e depois os dois começaram a gritar.
Era um som diferente de tudo o que eu já tinha escutado, e podia muito bem ser o do fim do universo. Tornava-se cada vez mais alto, dentro e fora de minha cabeça, prometendo transformar meus ouvidos em papa e demolir os últimos pensamentos sãos de minha cabeça. Ele continuava e persistia, durando tanto tempo que achei que nunca acabaria; que aquele seria meu inferno — e que seria eterno.
Escutei o desconhecido, e o senti tentando reverter o fluxo, para continuar dentro de mim. Mas não havia nada que ele pudesse fazer. A máquina fora criada para fazer uma única tarefa, que ela desempenhara muito bem, sugando até a última gota de sangue do meu corpo e bombeando-a para o de Panettierre.
O mundo escurecia, mas não entrei em pânico. Já tinha estado naquele lugar muitas vezes, sendo drenado e reabastecido. Mas dessa vez não havia salvação. Não sobrara nada para ser colocado de volta. Minha visão se tornou uma profusão de centelhas, como se houvesse um show de fogos de artifício dentro da sala. Atrás dos fragmentos de poeira estelar, vi Zê com lágrimas nos olhos, lágrimas que mais pareciam joias. Lucy estava ajoelhada perto de um dos Ofegantes mortos, revirando o casaco dele. Minha cabeça pendeu para trás, o mundo parecendo se dissolver como papel em água, separando-se, desaparecendo. Mas ainda conseguia ver Panettierre pendurada a meu lado, a boca tão escancarada com seus gritos que seu rosto parecia desdobrado.
Não, ele estava mesmo se desdobrando. Sua mandíbula afrouxou, os ossos sob a pele parecendo se retorcer, como se fossem de borracha. Seus dentes caíram, tinindo no chão como contas. Algo borbulhava em sua bochecha, como se ela tivesse ácido nas veias, a carne chiando enquanto nacos dela caíam do corpo. Manchas escuras apareceram sob seu uniforme — era sangue vertendo por orifícios de sua barriga, braços e pernas. Sua garganta começara a se dissolver, e seu grito terminou virando um gemido gorgolejante.
No entanto, o grito do desconhecido estava mais alto agora, um rugido de puro ódio tão forte que seria capaz de rachar o planeta no meio. Mas era uma canção de desespero, e era inútil. Ele sabia que sua hora tinha chegado.
Os dois soldados tentavam soltar Panettierre o mais rápido possível, cortando as tiras e a removendo da máquina. Colocaram-na no chão, um de seus braços se quebrando, o osso despontando manga afora, pulverizando-se ao atingir a superfície de pedra. O mesmo aconteceu com uma das pernas, amputada na altura do joelho, a pele cheia de bolhas. Os homens a soltaram, enojados, e ela caiu no chão como um saco cheio de carne úmida, um saco de lixo de um açougueiro, com um lago negro espalhando-se sob ela. De alguma maneira, a coronel encontrou forças para me olhar, aqueles olhos sem fundo com um brilho trêmulo num rosto derretido quase até os ossos. Ela começou a ter espasmos, e um jato de sangue da cor de petróleo jorrou de sua traqueia dilacerada. Então a escuridão dos olhos também se foi, deixando no lugar duas bolsas de pus borbulhante no meio do crânio.
Panettierre estava morta. O desconhecido, também. Os dois estavam juntos agora, em silêncio.
Tive tempo para compreender isso antes que a escuridão viesse me buscar. Tive tempo para entender que eu tinha vencido; para entender que, apesar de ser o fim, tudo tinha terminado bem.
Um último suspiro. Todos nós temos de dá-lo no fim das contas.
Estava tudo acabado.
COMEÇOS
Se eu estava morto, por que ainda escutava Zê?
A voz dele parecia estar a quilômetros de distância, abafada como se estivesse debaixo d’água, mas com certeza era ele. Ninguém conseguia dar aquele grito agudo de pânico como Zê.
Não consegui entender o que ele dizia. Eu estava preso num vazio de nada absoluto; não era escuridão, não era luz, era apenas ausência. Tentei lembrar por que estava ali, o que acabara de acontecer. Todas as minhas recordações estavam turvas, os detalhes desaparecendo, mas a essência delas permanecia na forma de um único pensamento maravilhoso:
Estava tudo acabado.
Aquilo era a morte, então? Eu a imaginara tantas vezes, tentando visualizar como ela seria. Mas nunca havia pensado nela assim, como uma consciência fixa e paralisada à medida que a eternidade transcorria, um prisioneiro até o fim dos tempos.
Uma eternidade escutando Zê tagarelar? Acho que preferia ter acordado no inferno.
Senti algo agudo perfurar a pele do meu braço, embora nem soubesse se realmente tinha algum membro. Agora Zê gritava, e com suas palavras senti o jato familiar. Era o néctar. Mas estava diferente de alguma maneira. Dava para senti-lo fluir por minhas artérias sedentas, percorrendo meu metabolismo e reparando a carne danificada. Mas não senti aquela raiva que normalmente acompanhava o veneno de Furnace; não senti ódio nenhum. Acho que nunca tinha me sentido tão calmo, tão em paz.
Mais um golpe, mais um jato de néctar. Esse fez os ruídos a meu redor ficarem mais nítidos, como se meus ouvidos tivessem sido destampados.
— Encontre mais! — gritou Zê, a voz uma oitava acima do que deveria.
— Este é o último — alguém respondeu.
Era Lucy, e escutei o barulho de seus sapatos enquanto ela corria pelo aposento. Uma terceira dor leve, como uma picada de inseto, mais néctar entrando em mim, ligando partes do meu cérebro que eu achava terem sido apagadas para sempre. Minha visão foi voltando devagar, como uma tela de computador quando é ligada, oscilando um pouco, tudo brilhante demais para assimilar. E depois ela se estabilizou, dois rostos se agigantando diante de mim, as expressões tão preocupadas que a primeira coisa que fiz foi rir. O riso simplesmente jorrou para fora de mim, irreconhecível, parecendo um motor lutando para funcionar em uma manhã fria. Percebi que estava deitado no chão.
— Ele está acordando — disse Zê, os olhos se acendendo. — Alex? É você?
Quem mais poderia ser? Tentei dizer isso em voz alta, mas as palavras pareciam embaralhadas na minha boca, saindo como um longo grunhido. Vi Lucy tirar algo do meu braço, uma seringa vazia e reluzente. Ela a jogou no chão, pressionando delicadamente um pedaço de pano contra o buraco que a agulha tinha deixado no meu braço. Colocou a outra mão em minha testa, afastando o cabelo dos meus olhos.
— Precisamos encontrar mais — disse Zê. — Deve ter mais no corredor, em algum dos quartos que a gente viu.
Ele se levantou rapidamente, mas o agarrei com a mão esquerda antes que pudesse sair. Zê se agachou de novo, apertando meus dedos com tanta força que senti dor. Mas não me incomodei. A dor era boa, ela me prendia dentro do meu corpo e me impedia de flutuar para longe.
— Não se mexa — disse Lucy. — Não fale, apenas descanse. Aqueles soldados foram buscar ajuda. Você vai ficar bem, tá?
— Mas e se isso não for suficiente? — perguntou Zê. — E se isso não o mantiver vivo? Ele pode morrer se a gente não encontrar mais.
Seu tom de voz agitado me fez rir novamente, e dessa vez deve ter sido de maneira mais clara, porque ele franziu a testa.
— Que foi? — perguntou ele.
— Você — respondi, conseguindo colocar a maior parte da palavra para fora. Tossi, minha garganta parecendo uma lixa. Pelo menos minha voz tinha voltado ao normal. — Tagarelando. Eu estava morto, e mesmo assim dava pra escutar sua voz.
Lucy riu, e o ruído era semelhante ao tinido de cristais. Zê franziu a testa para ela, depois para mim, cruzando os braços.
— Que gentil — disse ele. — A gente salva sua vida, e tudo o que você consegue fazer é me insultar.
O bico dele só me fez rir ainda mais, até eu ter um acesso de tosse. Lucy também ria, e devia ser contagiante, porque, depois de um momento, o rosto de Zê se alegrou.
— É que é bom ver você — disse ele, apertando meu ombro.
Minha força estava voltando, minha pulsação tornando-se constante enquanto distribuía o néctar por meu corpo. Eu me encolhi, conseguindo me apoiar nos cotovelos.
— Calminha — disse Lucy. — Não exagere.
— Vou ficar bem.
Olhei ao redor e vi a bagunça da sala. O lago de sangue cor de petróleo congelado no meio do aposento. Não tinha sobrado nada de Panettierre além de alguns pedaços de roupa e o que parecia uma mandíbula dissolvida pela metade no chão. O desconhecido também não existia mais. Ele e Panettierre tinham sido tão consumidos pelo próprio desejo de poder que haviam terminado se matando. Só de pensar naquilo, ri mais ainda.
— Como me trouxeram de volta? — perguntei assim que recuperei o fôlego.
Zê apontou a cabeça para os Ofegantes, os casacos abertos e as bandoleiras com seringas à mostra. Devia haver uma dúzia de seringas vazias espalhadas a meu redor.
— Foi ideia de Lucy. A gente não sabia se ia funcionar. Mas tinha que tentar alguma coisa. Está se sentindo bem?
— Nunca me senti melhor — disse eu. E era verdade. Talvez ainda tivesse néctar dentro de mim, mas ele não continha mais a maldade do desconhecido. Sem seu mestre, o néctar parecia funcionar como sangue normal. Olhei para Lucy. — Obrigado.
— Eu é que agradeço — respondeu ela, alisando minha testa.
— Por que você não explodiu, como Furnace? — perguntou Zê.
Eu não sabia a resposta. Furnace era muito velho quando finalmente morreu; tinha existido por séculos. Sem o sangue, sua carne não passava de pó. Eu só havia tido o sangue do desconhecido nas veias por pouco tempo. E ainda era um garoto.
— Acho que foi sorte — respondi.
— Pelo menos seus olhos voltaram ao normal — disse Zê. — Se é que posso chamar prateado de normal.
Escutei passos no corredor lá fora e vi sombras florescerem nas paredes rochosas. Zê e Lucy viraram-se na hora em que o sargento Bates e seu parceiro entravam no aposento. Os dois pararam em posição de sentido enquanto um terceiro homem, com roupa de combate bege e estrelas prateadas reluzindo na gola, entrou atrás deles. Era bem mais velho do que os outros, o cabelo grisalho e o rosto enrugado. Ao me ver, sua mão foi até a arma na cintura, mas, depois de um segundo, ele a afastou de lá.
— Aqui estão eles, senhor — disse o soldado ferido, Bates.
Eu me sentei, pronto para me defender. O desconhecido podia ter morrido, mas isso não impediria o exército de tentar controlar os poderes dele; de me cortar ao meio para aprender os segredos de minhas mutações.
O homem mais velho ergueu a mão, franzindo a testa. Não era exatamente um sorriso — ele parecia o tipo de homem que não sabia sorrir —, mas havia bondade em seu olhar.
— Está tudo bem — disse ele. — Não estou aqui para machucá-lo. Meu nome é general Hamilton, e quero ajudar.
Eu tinha escutado aquilo antes, mas dessa vez pude sentir que era verdade. O homem passou os olhos pelo quarto e focou a poça de sangue preto.
— Era a coronel Panettierre? — perguntou ele.
Bates fez que sim com a cabeça, o rosto empalidecendo enquanto olhava os restos dela. Hamilton fez que sim também, cobrindo a boca com a mão.
— Já vai tarde — murmurou antes de se virar para mim. — Não sei o que está acontecendo, mas meus homens aqui me disseram que você teve algo a ver com a morte de todos aqueles monstros.
— Teve, sim — disse Zê. — Foi ele que...
— Não preciso saber agora — interrompeu o general, erguendo a mão de novo. — Poupem suas forças, crianças. Quando voltarmos à base, vocês me contam tudo. — Ele deve ter visto o pânico em nosso rosto quando nos lembramos do hospital, porque pôs a mão no peito. — Escutem, sei que foi complicado com Panettierre, mas nem todos nós somos como ela. Juro por Deus e pelo meu país que não vai acontecer de novo o que aconteceu com vocês. Estão em segurança comigo. Consegue andar?
— Posso tentar — respondi.
O general fez um gesto de cabeça para os dois soldados, que soltaram as armas, aproximaram-se de mim e me ajudaram. Demorei um pouco para ficar de pé — ainda tinha um metro a mais do que a pessoa mais alta ali —, mas eles ficaram do meu lado e me ampararam. Coloquei as mãos nos ombros deles, com cuidado para não ferir ninguém com minha lâmina. Zê se espremeu entre mim e o homem à minha direita, colocando as mãos ao redor de minha cintura e fazendo o que podia para me impedir de cair. Lucy estendeu o braço, pegando minha mão esquerda com delicadeza.
— Tem um helicóptero lá fora — disse o general. — Ele vai nos levar até o quartel-general. Depois, se não se importarem, eu adoraria fazer algumas perguntas.
— Claro — disse eu, mancando lentamente pela sala. O general passou pela porta, liderando o caminho. O resto de nós seguiu com dificuldade, parecendo uma aranha bizarra enquanto fazíamos o possível para não tropeçar um no outro. Olhei para trás somente uma vez, avistando a máquina encostada na parede oposta, ela ainda zunia baixinho, e senti sua pulsação em todas as pedras sob meus pés. Vi o espaço onde Alfredo Furnace estivera, seu corpo crucificado da mesma maneira que centenas de anos atrás, no jardim.
— Pode esquecer — disse Zê, os olhos se voltando para mim. — Acabou.
— Eu sei — disse eu. — Mas e agora? O que vai acontecer?
Zê riu, mudando os braços de posição para me segurar melhor.
— Todos por um... — disse ele.
Aquilo trouxe tantas lembranças, algumas felizes, outras tristes, uma mistura agridoce que fez o sorriso no meu rosto se tornar quase dolorido. Sabia que essa seria mais uma lembrança que me acompanharia até os meus últimos dias. Percebi que Zê esperava que eu terminasse a frase e não o desapontei, as palavras brotando de meu sorriso que aumentava:
— ...e para fora deste inferno.
Escutamos os helicópteros antes que os víssemos, o estrondo audível do topo da escada. O interior da mansão estava uma bagunça, as paredes despedaçadas, o teto desabando, mal conseguindo aguentar o próprio peso. Cadáveres cobriam o chão, mas desviamos deles e passamos por cima dos escombros da porta da frente. Havia dois helicópteros no céu e um terceiro no solo, a uns cinquenta metros de distância. Soldados se aglomeravam ao redor dele e correram até nós assim que nos viram, dois deles segurando uma maca. Eles se ofereceram para me carregar, mas balancei a cabeça dizendo que não. Da maneira como meu corpo estava agora, eles provavelmente precisariam do exército inteiro para aguentar meu peso.
O sol estava baixo no horizonte, ofuscantemente forte. Sua luz intensa deixava tudo à mostra, revelando cada cadáver queimado, cada membro decepado, cada rosto sem vida em seus detalhes mais horrendos. Mas apenas os mortos humanos pareciam se ressentir da própria morte. Vi um viking — eu o reconheci como o último a tombar —, e ele tinha uma expressão de serenidade, como se o final tivesse sido um alívio. Honestamente, não sei o que aconteceu com ele, com seus irmãos, nem onde estavam agora. Esperava que estivessem em um bom lugar. E, se não tivessem ido a lugar nenhum, se apenas tivessem deixado de viver, esperava que ao menos houvessem acreditado que iriam para um lugar bom. Esperava ter dado isso a eles.
— Está pronto? — perguntou o general Hamilton. Fiz que sim, mas não me mexi, semicerrando os olhos por causa do brilho do sol que se punha. Havia duas silhuetas paradas na beirada do penhasco, turvas, mas parecendo familiares por alguma razão. Ergui a mão para proteger os olhos, tentando distinguir quem eram. Uma delas tinha um braço enorme, um corpo que parecia derretido em seu contorno tremeluzente e trazia no rosto um sorriso meio torto. Antes que conseguisse esboçar qualquer reação, reconheci o outro garoto, alguém que eu conhecia igualmente bem, que também estava morto.
Donovan colocou o braço ao redor de Simon, e os dois acenaram para mim.
— Obrigado — disse eu, acenando em resposta.
— Pelo quê? — perguntou Zê, achando que eu estava falando com ele.
Seguimos para o helicóptero mais uma vez, e vi as silhuetas sumirem dentro da luz do sol, se transformando no nevoeiro de calor que subia da terra chamuscada.
— Por tudo.
O general não estava mentindo. Estávamos em segurança.
O helicóptero nos levou até uma pequena base militar escondida nas montanhas, um lugar que não tinha sido atingido pelos vikings nem pelos ternos-pretos. Estava bem deserta quando aterrissamos, com pouca gente para nos receber no heliporto. Dessa vez, tinha um carrinho à nossa espera, um daqueles usados para carregar equipamentos pesados, e os soldados ajudaram nós três a subir nele. Fizemos o percurso em silêncio, e todos nós percebemos a paz no ar — sem explosões, sem tiroteio, sem gritos. Até os pássaros estavam cantando novamente, os piados de anoitecer baixos e cautelosos, mas belos.
Fomos levados para o edifício principal, um bunker de concreto incrustado na encosta. Uma cama tinha sido preparada para mim, e era tão grande que ocupava quase o cômodo inteiro. Alguns médicos estavam lá dentro, vestindo o mesmo jaleco branco que Panettierre, mas tinham sorrisos genuínos no rosto em vez de máscaras de gás e seguravam estetoscópios em vez de agulhas. Eles me ajudaram a deitar, afofando os travesseiros debaixo da minha cabeça e puxando um lençol até o meu queixo.
— Primeiro o mais importante — disse o general Hamilton da porta. — Eles vão se certificar de que você está saudável, de que não vai morrer. Tudo bem?
Eu concordei, vendo-o dar um passo para o lado enquanto Zê e Lucy entravam.
— Vocês dois podem vir comigo se quiserem — disse ele para os dois. — Tomar um banho, comer algo quente. Talvez a gente até consiga um chazinho.
— Não, obrigado — disse Zê, indo para o lado oposto do quarto. Tinha um sofá embaixo de uma larga janela, e ele desmoronou em cima dele, com Lucy sentando a seu lado e apoiando a cabeça em seu ombro.
— Vamos ficar juntos — disse ela.
— Entendo — disse o general. — Vou pedir para alguém trazer comida lá da cantina pra vocês. — Ele veio até a minha cama e alisou o lençol. — Pelo que a gente sabe, todos os combatentes inimigos estão mortos. Acha que existem mais deles, que vai ter outro ataque?
Balancei a cabeça em uma negativa e vi o alívio na expressão do homem.
— Que bom — prosseguiu ele. — Então não precisamos ter pressa. Pode conversar com a gente sobre isso quando estiver pronto. Quando estiver descansado.
Tentei refletir; tentei me lembrar de tudo o que tinha acontecido comigo. Eu parecia ter vivido um milhão de vidas, com dias incontáveis, mas já sentia aquelas recordações desaparecendo como esculturas de areia perto de uma maré que sobe. Se não as agarrasse agora, desapareceriam para sempre.
— Estou pronto para conversar — falei. — Só queria alguns minutos antes.
— Sem problema — disse o general. Ele ficou parado, fez uma continência e não esperou uma resposta antes de sair do quarto. Os médicos foram embora com ele, fechando a porta ao sair. O silêncio que se seguiu foi tão intenso que não pareceu real.
Os olhos de Zê já se fechavam, e eu sabia que ele apagaria de vez em alguns minutos. Lucy estava ao lado dele, as mãos enfiadas dentro das mangas. Chamei o nome dela baixinho, indicando que viesse até a cama. Ela sentou na beirada do colchão, observando com curiosidade enquanto eu erguia a mão esquerda e apoiava os dedos longos e estranhos no medalhão de São Cristóvão em meu pescoço.
— Prometi que devolveria isso quando as coisas voltassem ao normal — disse eu. — Acho que não vou ser capaz de cumprir essa promessa. Acho que as coisas não vão voltar ao normal, não depois disso.
— Você cumpriu sua promessa — respondeu Lucy, colocando a mão em cima da minha e apertando-a delicadamente. — Você fez o certo.
Coloquei a mão na parte de trás da cabeça, tentando encontrar o gancho, mas Lucy me fez abaixar o braço.
— Fique com ele por mais um ou dois dias — disse ela. — Acho que você merece.
Ela se levantou, inclinou-se e beijou minha testa, o calor de seus lábios permanecendo ali até ela se sentar de novo no sofá. O movimento despertou Zê, que piscou os olhos, chocado.
— Acabou mesmo? — perguntou ele, as palavras arrastadas, quando lembrou onde estava.
— Acabou mesmo — disse eu.
Ele ficou quieto por um longo instante. Achei que tinha pegado no sono de novo, e percebi que estava prestes a fazer o mesmo, com o silêncio e a calma do quarto me carregando em uma onda de cansaço que quase me levou. Lutei contra a corrente e mantive os olhos abertos.
— Você se lembra daquele primeiro dia? — perguntou Zê, os olhos ainda fechados. — Do dia em que chegamos em Furnace, na prisão.
— Sim, claro — falei, visualizando o percurso de caminhão, as portas do elevador se abrindo em um pesadelo.
— Parece ter sido há um bilhão de anos. — Ele abriu o olho a tempo de me ver assentindo. — Gostei de ficar lá — disse ele, as palavras quase incompreensíveis agora.
— Sério? — perguntei.
— Gostei de ficar lá. Com você. — E depois ele apagou, roncando baixinho, a cabeça encostada na de Lucy.
— Eu também — respondi. Sabia que, se não fosse por Zê, eu teria morrido havia muito tempo. Ele salvara minha vida, mas acho que era mais que isso. Ele tinha me dado um motivo pelo qual viver.
Estava quase pegando no sono de novo quando escutei alguém bater à porta delicadamente. Ela se entreabriu, e o rosto amigável do general apareceu. Ele deve ter visto quanto eu parecia exausto, porque fez menção de recuar, mas eu acenei com minha mão de lâmina para que entrasse.
— Temos cirurgiões aqui que podem resolver isso — disse ele, apontando para o meu braço mutante. — E os outros ferimentos também. Vamos fazer o que pudermos para curá-los.
— Obrigado — falei, olhando para o meu corpo distorcido e me perguntando se eu um dia seria capaz de comprar roupas em um shopping novamente.
— Tenha fé — disse ele, sorrindo com o olhar. — Bom, vamos aos negócios. Tem certeza de que quer fazer isso agora? A história deve ser longa.
Era, mas eu precisava contá-la. Precisava me lembrar de tudo. Tinha passado por tanta coisa que mal sabia quem eu era, mas contar minha história e reviver tudo iria me curar. Era o que traria o garoto de volta; era o que me permitiria ser Alex Sawyer novamente. Mais do que isso, no entanto, contar minha história era a única maneira de manter todos eles vivos — Donovan, Simon e os outros também. Eles podiam ter morrido, mas assim continuariam vivos. O mundo inteiro saberia quem tinham sido e o que haviam feito.
O general sentou na beirada da minha cama e colocou um gravador entre nós.
— Pode começar quando quiser, garoto — disse ele. — Sabe por onde começar?
Pensei em coisas anteriores à ilha, anteriores à cidade, anteriores à fuga, anteriores à solitária, anteriores à prisão, anteriores à noite em que Toby tinha sido assassinado; anteriores a eu começar a arrombar casas. E vi o instante onde tudo havia mudado, onde tudo isso tinha começado — um dia normal em uma escola normal, quando roubei vinte pratas de um garoto chamado Daniel Richards.
Olhei para Zê e Lucy adormecidos no sofá e depois para além deles, através da janela, onde um resto de luz do sol pairava sobre o mundo. Estávamos em segurança. Estávamos livres. Sentia minha história subindo do estômago, uma maré que só se acalmaria quando a última palavra tivesse sido dita; uma maré que me levaria para casa.
— Sim, sei por onde começar — falei. Virei-me para o general, esperando que ligasse o gravador. Então respirei fundo. Ia precisar daquele fôlego extra. — Sei exatamente quando foi que minha vida virou um inferno.
EPÍLOGO
Levou cinco dias para que eu contasse minha história.
Bem, levou cinco dias para que a minha história se contasse. Fiquei lá deitado, naquela cama enorme dentro da base do exército nas montanhas, e as palavras simplesmente jorraram. Elas borbulhavam de meu estômago como um gêiser; não teria sido capaz de detê-las nem se quisesse. Estava tão exausto que nem sei se estava ciente do que dizia. Acho que poderia ter pegado no sono, e a história continuaria. Dizer aquelas palavras era como respirar. Depois de tudo pelo que eu tinha passado, de tudo o que tinha acontecido, precisava continuar falando ou seria levado pela noite. Minha história me mantinha vivo.
O general Hamilton falou apenas algumas palavras durante aqueles cinco dias. Ficou sentado ao lado da minha cama, o gravador entre a gente, apoiado nos lençóis macios com cheiro de lavanda. A expressão do general mal se modificava, mas em alguns momentos ele não conseguia esconder sua surpresa, os olhos arregalados e uma camada de suor brotando da testa bronzeada. Uma ou duas vezes, quando hesitei, ele estendeu a mão e a colocou sobre o meu braço, apertando-o delicadamente até eu me encontrar de novo.
Zê e Lucy ficaram escutando em silêncio também, dormindo e acordando no sofá ao lado da janela. Os dois tiveram pesadelos; percebi pela maneira como o rosto se franzia e o corpo se contorcia. Mas sorriam para mim toda vez que acordavam e lembravam onde estavam. Foram aqueles sorrisos, sobretudo, que me fizeram seguir em frente.
Também peguei no sono naquela primeira noite, mas não sonhei. Pelo menos acho que não. Quando acordei e vi tudo escuro, achei que estivesse de novo na Penitenciária de Furnace, no dia em que cheguei, pressionado contra as grades enquanto a sinfonia de gritos e berros se erguia a meu redor. E por um segundo achei ter visto um Ofegante, o rosto enrugado se contraindo e os olhos gulosos me devorando. Eu me debati com tanta força que arranquei o soro do meu braço e, mesmo com as luzes se acendendo e os médicos entrando às pressas, demorei um pouco para me acalmar.
— Tem certeza de que quer continuar? — perguntou o general Hamilton. — Ninguém vai culpá-lo se você simplesmente preferir esquecer.
Eu não queria esquecer. Esquecer era a saída mais fácil. E, se eu me esquecesse dos Ofegantes, do diretor, de Alfredo Furnace e do desconhecido, também me esqueceria de Donovan, Simon e todos os outros. Não era uma troca que estivesse disposto a fazer. Simplesmente abri a boca e recomecei de onde tinha parado — logo depois de ter deixado bem claro que nunca mais queria que as luzes fossem apagadas.
Para ser honesto, acho que nunca mais dormi no escuro.
Acho que nunca mais vou dormir.
Cada um daqueles cinco dias parecia mais claro do que o anterior, a luz do sol parecendo mel atravessando a única janela do quarto. A cada dia, os barulhos aumentavam também, à medida que os pássaros iam encontrando a voz, cantando como se fosse a primeira semana de sua existência. E imagino que era mesmo, de certa maneira.
Com as pessoas acontecia a mesma coisa. Elas pararam de falar aos sussurros, assustadas, à medida que as notícias melhoravam. Entravam bruscamente com avisos do tipo “Tivemos notícia do segundo pelotão” e “O governo se comunicou conosco, e há mais sobreviventes do que achávamos”. No fim do quinto dia, as pessoas já estavam até cantando.
Não assimilei aquilo. Estava perdido em meu próprio mundo, em minha própria história. E contá-la era muito bom. Não deixei de contar nada — cada acontecimento, cada emoção, cada palavra e cada ação. Contei tudo para Hamilton. Mas na verdade eu não estava conversando com ele. Estava contando a história porque precisava; porque era a única maneira de me encontrar novamente. Meu corpo estava muito alquebrado e remendado, coberto de uma camada de néctar tão dura quanto Kevlar, e minha mente também parecia imersa em escuridão, soterrada sob as ruínas de tudo o que tinha acontecido. Mas cada palavra que eu dizia afastava um pouco aquela sujeira, tirava mais uma camada do pesadelo. Ao contar minha história, eu me livrava dela. Sabia que, quando chegasse ao fim, teria voltado a ser eu mesmo.
Não foi fácil. Não queria contar tudo. Em alguns momentos — como quando Donovan morreu, e Simon também; não, vamos ser honestos, quando eu os matei —, tive dificuldade de falar. As palavras ficaram presas em minha garganta e simplesmente não saíam. Nas duas ocasiões, Lucy se sentou na cama comigo, segurou minha cabeça entre as mãos e acariciou o que tinha sobrado do meu cabelo. Acho que não teria aguentado sem ela.
Lembrar as partes boas foi quase tão ruim quanto lembrar as más. Partia meu coração. Ainda parte. É o único desejo que eu tenho. Não que nada disso tivesse acontecido; não que meus pais ainda estivessem vivos, nem meus amigos de antes da prisão, mas que Donovan e Simon tivessem sobrevivido, que estivessem aqui comigo. Sinto muita falta deles. Achei que ainda os veria, assim como os vi na ilha logo antes de partirmos, assim como vi Donovan quando estava preso na solitária. Mas eles tinham partido. Estavam em outro lugar agora. Esperava que fosse um lugar bom.
Deus sabe quanto eles mereciam.
A única coisa que me fazia parar de falar naqueles cinco dias eram os médicos que vinham ver como eu estava. Eles entravam de repente, afastando o general Hamilton e puxando os lençóis para dar uma boa olhada em mim. Odiava aqueles momentos, porque eu também olhava; era inevitável. Meu corpo estava destroçado, cada centímetro coberto de cicatrizes e cascas negras de néctar. Meu braço direito era uma lâmina de ônix que eu não me atrevia a mexer, com medo de atingir alguém no quarto. Meu braço esquerdo também estava deformado, os dedos longos e com juntas demais parecendo gorduchas pernas de aranha. Eles me lembravam dos dedos do desconhecido, e toda vez que se contraíam eu tinha vontade de gritar.
Nos primeiros dias, os médicos não disseram muita coisa. Mal falaram comigo, a não ser quando pediam para eu mexer isso ou contrair aquilo. Tiraram fotos, raios X e tomografias com suas enormes máquinas brilhantes, que deslizavam para dentro e para fora do quarto. Desenharam em meu corpo com canetas hidrográficas, como se estivessem brincando de ligar os pontos entre as diversas feridas grotescas. Alguns até tiraram pedaços de mim com bisturis reluzentes, fazendo-me lembrar da coronel Panettierre, da assassina que ela era. Mas nenhum deles tinha aquele brilho nauseante de entusiasmo nos olhos. Eles olhavam para mim com compaixão, e com gratidão também, eu acho.
Foi no quarto dia, quando contava a Hamilton do hambúrguer que a gente tinha comido na cidade depois de termos escapado dos ternos-pretos, que uma das médicas entrou e sentou a meu lado na cama. Ela era idosa e frágil, e seu cabelo grisalho estava preso em um rabo de cavalo, mas seu rosto enrugado exibia um sorriso terno. Ela me disse que seu nome era Lorna.
— Achamos que podemos dar um jeito em você — disse ela. — Não tudo, claro, mas o suficiente.
Eu me senti mais leve na hora, como se flutuasse para fora daquele corpo retalhado e retorcido, e ri tanto que achei que teriam que me puxar lá do teto.
— Obrigado — disse eu. Ela pegou minha mão, a que tinha os dedos, e a segurou.
— De nada, Alex. É o mínimo que podemos fazer. Você salvou a todos nós.
E a minha história continuava, impossível de ser interrompida. Quando acordei no quinto dia, depois de mais um sono sem sonhos, Hamilton aguardava, andando de um lado para o outro e roendo as unhas com impaciência. Zê e Lucy tinham recebido um quarto, mas ainda não haviam me deixado. Acho que queriam esperar até eu terminar; até a última palavra ser dita.
O último dia foi o mais fácil. Não me lembro de ter falado nada. Estava em transe, as palavras subindo sozinhas por minha garganta. Quando cheguei à parte em que tínhamos alcançado a ilha, Zê e Lucy dividiam o sofá com meia dúzia de médicos, e havia pelo menos o dobro disso aglomerado ao redor do general, parecendo sardinhas. Todos me observavam boquiabertos e com olhos que pareciam ovos fritos, esperando para ouvir o que eu diria em seguida. Eu os ignorei, fechei os olhos e revivi tudo o que havia acontecido com Furnace e o desconhecido, até a última parte da história sair de meus lábios e eu ficar em silêncio.
Foi só então que me dei conta da improbabilidade do que havia acontecido. Naqueles segundos após minhas palavras finais, senti a escuridão ir embora, a luz dourada infiltrando-se até o centro do meu corpo, tão brilhante e tão quente que achei que fosse derreter. Era uma sensação incrível, tão forte que comecei a chorar sem nem mesmo perceber — eram soluços entrecortados, intensos, metade lágrimas e metade risadas.
Quando me acalmei, já escurecia lá fora. Zê e Lucy estavam ao lado da minha cama, mas, exceto por eles, o quarto estava vazio.
— Me desculpem — falei envergonhado, enxugando as bochechas nos ombros. — Para onde foi todo mundo?
— Ficaram constrangidos em ver você chorar como um bebê — esclareceu Zê. Lucy estendeu o braço e deu um tapa na barriga dele.
— Cale a boca, Zê — disse ela em um tom de voz alegre. — Eles queriam dar privacidade a você. Você passou por muita coisa.
— Duas vezes — falei. E realmente parecia que tinha vivido tudo de novo. Ao contar minha história, havia me trancado de novo na prisão, na solitária, lutado nas ruas e na ilha. Senti cada golpe, cada ferida, uma segunda vez. Senti o terror, o ódio, a tristeza, o desespero e a esperança, tudo, tal como no momento em que as coisas tinham acontecido. Então não era de surpreender que eu mal conseguisse manter os olhos abertos no fim do quinto dia.
Aquela noite foi a única em que me lembro de ter sonhado. Estava na Penitenciária de Furnace, sentado em meu beliche com Donovan, Zê e Toby. Simon e Lucy também estavam lá, e Ozzie, Pete, Monty, Jimmy, Bodie e Sam, o terno-preto, e até mesmo o jovem Alfredo Furnace.
— Não quer ir agora? — perguntou Donovan, e eu sabia que tínhamos colocado as luvas com gás no lugar; que estávamos prestes a explodir a sala de escavação. Até mesmo no sonho eu sabia que Donovan tinha me perguntado aquilo antes, de verdade, na noite em que fora capturado pela vigília sangrenta. No dia eu havia dito não, e aquela decisão o tinha matado. Não negaria a liberdade a ele mais uma vez de jeito nenhum.
— Todos por um... — eu disse.
— Ah, meu Deus, essa besteira dos Três Mosqueteiros de novo — disse Simon, rindo. Mas isso não o impediu de responder com todos os outros:
— ...e para fora deste inferno.
As paredes começaram a se expandir, as rochas avermelhadas se fragmentando, desmoronando até a cela virar um túnel. Um rio agitado corria ao longo dele, carregando-nos por mais de um quilômetro de pedra maciça, até nos conduzir ao luar. Estávamos descalços na grama, o vento nos cabelos, e havia uma extensão sem fim de estrelas no céu. Gritamos de alegria diante da liberdade.
Dormi profundamente dentro daquele sonho por quase quatro dias.
Já se passaram três meses desde a ilha. Três meses desde que tudo acabou.
Está uma bagunça lá fora. Ninguém sabe quantos morreram, mas dizem por aí coisas como “dois terços” e “dezenas de milhões”. A maioria era de pessoas comuns que foram destruídas pela fúria incessante de ratos, ternos-pretos e vikings. Ou crianças que foram mordidas e infectadas com o néctar, crianças que tinham sido transformadas. Algumas foram mortas pelo exército, mas o resto fui eu que matei. Eu as executei sem nenhum julgamento, sem lhes dar nenhuma esperança de cura. E, nos dias ruins, eu as via por todo canto, uma legião de rostos zangados como aqueles no sonho do jardim. Meus mortos. O olhar repleto de ódio deles era uma promessa de que nunca me deixariam em paz.
Mas estou aprendendo a lidar com isso, com a culpa. O que posso fazer além de me desculpar? Tirar uma vida para salvar outra. Não foi a primeira vez que fiz isso.
Os sobreviventes também estão aprendendo; aprendendo uma nova maneira de viver. Tudo mudou. Estamos sem escolas, hospitais, polícia, televisão, lojas, internet, telefones... mas lentamente, muito lentamente, estamos nos curando. Escutamos uma transmissão de rádio do governo no outro dia, a primeira desde que a guerra acabou. Zê, Lucy e eu nos reunimos no meu quarto e os escutamos falar sobre recuperação, força e perseverança. Iam fazer outra transmissão na semana seguinte e queriam que eu falasse sobre o que tinha acontecido — não tudo, só as partes boas. Para ser honesto, meu medo de falar com a nação é maior do que o medo que tive de enfrentar Furnace e suas aberrações.
Mas, se tem uma coisa sobre a qual sei falar, é a esperança.
Alguns dias são ruins, outros são bons.
Nos dias bons, quase consigo esquecer. Quase consigo fingir que nada aconteceu.
Nos dias ruins, não consigo parar de pensar nisso.
Não consigo parar de pensar nele. No desconhecido.
Nunca entenderei o que ele era. Ele era uma fenda na realidade, um buraco escancarado no mundo por onde algo ancestral e maléfico se infiltrou. Agora ele se foi, digo a mim mesmo. Ele morreu. Mas, nos dias ruins, nos dias muito ruins, eu me pergunto se não existem mais criaturas como ele; se um desconhecido diferente não vai aparecer, enfiando as mãos no chão e arrancando mais um pedaço de inferno.
Hamilton disse que há gente estudando os restos do desconhecido e o néctar, tentando entender o que eram. Estão procurando o jardim também, o lugar onde tudo começou. Mas acho que nunca vão descobrir a verdade. Há coisas que a gente não deve saber.
Fico grato por ter recebido algumas transfusões. Os últimos traços do sangue do desconhecido e do néctar que Zê e Lucy usaram para me trazer de volta à vida desapareceram. O que flui nas minhas veias agora é cem por cento humano.
Mesmo assim, quando tenho dias ruins, parece que o mundo tem a finura de um papel, que tudo dentro dele — o chão, o céu, as pessoas — é apenas uma pele frágil colada em cima de uma massa de escuridão agitada, fervilhante, aos gritos. Quando tenho dias ruins, vejo essa pele desaparecendo e loucura escorrendo como uma água imunda, afogando todos nós no caos e na dor. Quando tenho dias ruins, sinto como se eu fosse o único que segura essa massa; que, se eu parar de pensar nela por um segundo, tudo vai se perder. Quando tenho dias ruins, fico deitado acordado, vendo o fim do mundo se repetir várias e várias vezes, e grito no meu travesseiro. Quando tenho dias ruins, me pergunto como pode valer a pena viver a vida quando coisas como o desconhecido existem; quando tudo o que uma pessoa ama pode ser tomado dela a qualquer momento. Para que lutar?
Mas existe, sim, um motivo pelo qual lutar, pelo qual vale a pena aguentar firme. Existem os dias bons.
E sempre haverá mais deles.
* * *
Meus pais nunca apareceram. Eu sabia que isso aconteceria. Sinto falta deles, especialmente depois do que encontrei no meu quarto lá em casa, a mensagem que deixaram para mim. Qualquer dia desses, vou voltar para minha antiga casa e revirar as coisas deles, mas não agora. Ainda não estou pronto para isso.
Mas eu os perdoo. Devo meu perdão a eles.
Lucy teve sorte; a mãe dela sobreviveu. Um helicóptero do exército a trouxe para as montanhas no mês passado. Ela tinha se escondido em uma igreja em algum lugar perto de um lago. Vi o reencontro pela janela do meu quarto. Pelo menos a primeira metade. Meu coração ficou tão pesado que tive que me virar depois de um minuto, minhas lágrimas embaçando o vidro. Não que não estivesse feliz por ela, eu realmente estava. Acho apenas que eu queria sentir a mesma coisa, sabe, ver alguém que eu achava estar morto saindo de um helicóptero e vindo me abraçar.
Os pais de Zê chegaram cerca de uma semana depois. O pai dele estava bem machucado, ele perdeu uma perna em uma luta, mas acham que vai sobreviver. Desde que eles chegaram, tenho visto Zê com menos frequência, já que ele passa todo o tempo na enfermaria — não, no hospital; nunca mais quero falar a palavra enfermaria — falando sobre o documentário que quer fazer sobre a nossa história. Zê e seus malditos documentários. Ele parece realmente feliz. Ele merece ser feliz. Mais do que qualquer outra pessoa, foi Zê quem me deu forças para seguir em frente, que me salvou. Na verdade, nem fui eu que acabei com a guerra. Foi ele.
Ver Zê tagarelando a cem quilômetros por hora e escutar a risada de Lucy me faz pensar que um dia, se nos esforçarmos, as coisas poderão voltar ao normal.
Os pais de Simon também foram encontrados, mas eles não quiseram vir para a base. Pelo que soube, preferiram ficar a postos, ajudando a limpar as ruas e tirar sobreviventes dos escombros. Não sei o que contaram a eles sobre o filho, mas espero que saibam que ele foi um herói; que, sem ele, a guerra e o mundo estariam perdidos. Espero que entendam que o sacrifício dele valeu a pena.
O exército voltou à ilha para procurar o corpo dele, mas não o encontrou. Também vou voltar lá qualquer dia desses. Ainda temos chance de achá-lo.
Mas penso que talvez ainda não esteja pronto para isso.
O general Hamilton me contou que, quando as coisas melhorarem, eles vão fazer uma cerimônia em homenagem aos mortos, e que Simon e Donovan terão um lugar em meio às baixas heroicas. Eles vão demarcar um quilômetro quadrado de terreno na cidade — um memorial, como chamam. Não vão ter o que colocar no túmulo dos dois, mas é bom saber que não serão esquecidos. É bom saber que vou ter um lugar onde poderei conversar com eles.
Espero que coloquem um carrinho de hambúrguer lá perto para Donovan.
Eu? Também sou chamado de herói, por onde quer que passe. Querem apertar minha mão — a que tem dedos — e me abraçar, e pedem que eu conte minha história.
Não me sinto um herói. O que as pessoas não sabem é que sou um assassino e um covarde. Como já falei, não sou uma pessoa boa. Fiz coisas terríveis antes de Furnace, e desde então tenho sido culpado de coisas muito, muito piores. É possível fazer coisas ruins e ainda ser uma boa pessoa. Como falei antes, às vezes é melhor fazer coisas ruins pelos motivos certos do que coisas certas pelos motivos errados. Não é?
Então talvez eu tenha um pouco de heroísmo dentro de mim. Só um pouco já é suficiente. A pessoa precisa de um pouco de heroísmo dentro de si para existir.
Minha primeira cirurgia já aconteceu. Foi duas semanas atrás; tiraram meu braço direito, a lâmina. Nem sei dizer quanto é bom não ter que arrastar aquela coisa — sem o néctar no meu metabolismo, ela pesava uma tonelada. É um pouco estranho ter um braço que acaba no cotovelo, mas vão fazer uma prótese militar para mim, o que é bem legal.
— Cara, espero que ela tenha laser e coisas desse tipo — Zê comentou quando lhe contei. — Foguetes, tipo o Homem de Ferro.
Eu ficaria feliz com dedos falsos que me permitissem segurar uma xícara de chá.
Eles me perguntaram se eu queria que tirassem a outra mão, mas falei para a deixarem como estava. Por mais horrorosa que seja, e por mais que esteja associada a péssimas recordações, ainda é bem útil, especialmente para coçar as costas.
E o melhor de tudo é que posso comer de novo. Não muito, só comida de bebê na verdade, tudo transformado em papa. Mas eles me disseram que, com o tempo, vou poder devorar hambúrgueres, macarronada, chocolate e tudo o que eu achava que nunca mais comeria. Cara, não vejo a hora. Estou salivando só de pensar.
Vou ser operado de novo na quinta. Eles vão tentar tirar um pouco do tecido muscular que foi costurado em mim dentro da prisão. Vou gostar de não parecer mais o Incrível Hulk. Também estão tentando descobrir uma maneira de fazer meus olhos voltarem ao normal. É o que quero mais do que tudo, principalmente porque, sem o néctar, eles não funcionam mais no escuro. Não vejo a hora de enxergar o mundo da maneira certa, não em tons de cinza. Passei a achar prata uma cor muito, muito ruim.
Aos poucos, estou voltando a ser eu mesmo, estou voltando a ser Alex Sawyer. Meu corpo está sendo reparado, assim como minha mente foi quando contei minha história. Nunca fui perfeito, estava bem longe de ser perfeito, mas é bom ser eu mesmo de novo. Acho que agora eu posso ser feliz comigo mesmo.
Nunca vou ser bonito, não com todas essas cicatrizes. Mas aconteceu uma coisa boa no outro dia. Uma das enfermeiras voluntárias, que se chama Mia e deve ter uns dois anos a mais que eu, veio me visitar enquanto eu me recuperava da cirurgia. Ela não estava trabalhando nem nada, mas ficou sentada na beirada da minha cama, e a gente conversou — não sobre o que tinha acontecido, mas sobre televisão, videogames e sobre como ela sentia muita falta de futebol, de Banco Imobiliário e do seu Nintendo DS. Quando foi embora, ela me deu um beijo na bochecha, e juro que ainda consigo sentir os lábios dela na minha pele.
Depois que contei a Zê e Lucy, eles não me deixaram mais em paz.
— Com quem será, com quem será que o Alex vai casar? — cantarolou Zê.
— Vai depender, vai depender se a Mia vai querer... — acrescentou Lucy.
— Não era o que eu ia dizer — disse Zê, franzindo a testa.
— Eu sei; sua mente é suja.
— Não é nada disso, gente — falei quando parei de rir. E não acho mesmo que vá acontecer algo entre a gente. Mas é bom, é tão bom saber que tenho um futuro; que tem alguém lá fora para mim; é bom saber que não preciso ficar sozinho. Assim os dias ficam um pouco mais alegres.
Às vezes, eu saio para dar uma caminhada. Estamos no meio do nada aqui, e eu gosto de sair, de ficar no meio das colinas, onde o ar é exatamente como a gente sonhava quando estava na prisão. Lembro de ter parado na frente da entrada da Sala Dois, sentindo a brisa e pensando nas montanhas, percebendo pela primeira vez que talvez houvesse uma saída. Esperança. É a coisa mais importante deste mundo. Hoje eu acredito mais nisso do que nunca. Foi a esperança que salvou minha vida; foi a esperança que me deu coragem e força para seguir em frente. É por causa da esperança — aquela crença valiosa e inabalável de que as coisas podem melhorar — que estou aqui falando com você agora. Sem ela, não somos nada.
Eu tenho esperança. Quando sento aqui no topo do mundo e olho para baixo, simplesmente sei que vamos superar tudo isso. Muitas mortes aconteceram, é verdade, mas com a esperança a gente pode dar um jeito nas coisas. Com a esperança, podemos construir um mundo melhor. Como alguém pode sentir o toque morno do sol no rosto e o vento suave no cabelo e não pensar que vai dar tudo certo?
Vai dar tudo certo.
Na prisão, eu tinha aquele raio de luz que me levava rumo à liberdade. Ainda o vejo, mas agora ele parece me levar para todo canto. Acho que é um bom sinal. Agora eu posso seguir esse raio para qualquer lugar e fazer qualquer coisa. Com ele, sinto que ainda tenho uma vida a viver.
Ah, e eu devolvi o medalhão de São Cristóvão para a Lucy hoje de manhã. Achei que estava na hora.
Então, acho que é aqui que nos despedimos. É um bom lugar para isso. Zê encontrou uma bola de futebol em um dos armários do quartel e organizou uma partida para mais tarde. Não sei quem vai jogar, acho que vários soldados, e o general Hamilton disse que participaria se conseguisse sair da central de comando. Zê quer que eu seja zagueiro, e sei que minha atuação será péssima — sou grande demais, desengonçado demais e só tenho um braço —, mas não me importo. Só quero ir até lá e me divertir com meus companheiros. Tenho a impressão de que vai ser o melhor jogo da minha vida.
Perdi muito. Todos perdemos. Mas ainda tenho muito pelo que ser grato. Tenho Zê e Lucy. Tenho minha vida e meu futuro. Tenho meu coração, minha alma e meu sorriso também, e quero usar todos eles agora para dizer algo importante: obrigado. Porque, sem você, acho que não teria sido capaz de contar minha história, muito menos de vivê-la.
E também tenho outra coisa. Tenho meu nome. Foi o que me manteve humano. Foi o que me manteve vivo. Não esqueça seu nome, Monty havia dito para mim, muito tempo atrás. E eu não esqueci. Jamais. Mesmo agora, nos dias ruins, é ele que me impede de cair de volta no abismo.
Então, daqui de cima das montanhas, eu me despeço.
Meu nome é Alex Sawyer.
E eu estou livre.
Alexander Gordon Smith
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