Biblio VT
Foram utilizados nomes reais de nações, organizações e instituições, mas este livro é um romance, e os indivíduos e acontecimentos nele referidos são fictícios. Nos casos em que foram utilizados títulos oficiais, não está implícita qualquer referência às pessoas que ocupam esse cargos actualmente, nem devem ser inferidas essas referências. Os nomes e as personagens são absolutamente imaginários.
1
O clube nocturno tinha começado por ser um celeiro. As baias tinham sido convertidas em compartimentos com mesas. O chão do sótão tinha sido arrancado, deixando ver um telhado de vigas não aparadas, donde pendiam résteas de cebolas e pimentões. Nas cubas para a ração dos animais tinham sido plantadas orquídeas de plástico em cascas de árvores. Havia um balcão de contraplacado sem pintura a todo o comprimento da parede do fundo, voltado para a pista de dança e para as mesas. O cheiro acre do esterco ainda não tinha desaparecido e misturava-se com os odores penetrantes do haxixe, do suor dos pares que dançavam, dos perfumes fortes.
Yakubu era o único cliente ao balcão. Usava um lenço vermelho atado em volta da cabeça. Do lóbulo da sua orelha esquerda pendia uma pequena argola de ouro. Tinha a camisa de trabalho azul aberta até ao umbigo. Sobre a pele negra e lisa brilhava um colar de dentes de tubarão amarelados.
Ergueu o olhar para observar os outros clientes do clube: dois negros sentados a uma mesa afastada. Usavam camisas brancas, gravatas berrantes, fatos sóbrios de corte europeu. Estavam sentados tranquilamente, a beber uma garrafa de vinho tinto argelino.
Yakubu fez um sinal ao barman. O homem aproximou-se lentamente, polindo um copo com um pano feito de uma saca de farinha. Tinha um olho estrábico que se voltava para as vigas do telhado. Yakubu teve que fazer um esforço para não olhar também para cima, para ver o que estava a suceder.
- Deseja mais uma cerveja? - perguntou o barman. Falara em Twi. Yakubu respondeu na mesma língua.
- Não, obrigado - disse. -Aquele homem sentado àmesa... O gordo de costas para a parede... Já o vi em qualquer lado. Por acaso sabe quem é?
- Ah, aquele - disse o barman. - O senhor não é do Togo?
- Não tenho essa sorte. Mas tenho a impressão de conhecer aquele homem.
- Talvez tenha visto a fotografia dele no jornal do Lomé - disse o barman. - É Nwabala. Um político.
- Oh, sim - disse Yakubu, acenando afirmativamente com a
cabeça. - É ele mesmo. Li uma notícia sobre ele. Quer unir a terra do Benim ao Togo. Tem um bando de seguidores.
- É o que dizem. O homem que está com ele é o guarda-costas. É um sujeito muito mal-humorado, aquele.
Yakubu sorriu. Terminou a sua cerveja, deixou uma pequena gorjeta ao barman e saiu do botequim. Os dois homens da mesa do fundo seguiram-no com o olhar, mas ele não olhou na sua direcção.
Dez minutos depois entrou no clube uma mulher branca. Dete-ve-se, olhou curiosamente em volta e depois dirigiu-se ao bar. Tinha os longos cabelos louros atados numa única trança, enrolada e presa no alto da cabeça. Usava uma túnica castanha que tinha sido tingida com o pano atado e cuja fralda ficava acima dos joelhos. Tinha as pernas nuas, sem pêlos, pálidas.
- Uísque e Perrier, por favor - disse ela ao barman, falando em francês.
- É para já, madame. A senhora deseja gelo? Temos gelo.
- Não, obrigada. Sem gelo.
Na mesa do fundo, os dois homens endireitaram-se lentamente nas suas cadeiras. Nwabala levou o copo de vinho aos lábios, olhando a loura por cima do rebordo.
- Uma mulher simpática - disse ao seu companheiro. - Será turista? - Falava em hausa.
O guarda-costas encolheu os ombros. Era mais novo, mais magro, mais duro.
- É sem dúvida uma turista - disse. - Deve estar a pensar: será verdade o que dizem dos pretos? Por isso vem a África para saber.
O gordo riu-se.
- Talvez eu a possa ajudar. Vai até ao bar. Pergunta-lhe se quer vir tomar uma bebida connosco. Fala-lhe delicadamente em francês.
O jovem fitou-o iradamente e empurrou a cadeira para trás com estrondo. Dirigiu-se ao bar em grandes passadas, falou por um momento com a mulher e depois regressou à mesa.
- Ela não quer vir beber connosco - disse. Nwabala fitou-o por momentos.
- Idiota! - disse. - Não sabes falar com uma branca. Falaste-lhe sem educação.
Nwabala pôs-se de pé. Era alto, pesado e tinha uns longos braços pendentes e mãos grandes.
- Ela terá uma arma? - perguntou.
O guarda-costas olhou para ele e depois voltou-se, sem responder.
Nwabala dirigiu-se ao bar, fez uma vénia à mulher. Daí a pouco estavam ambos a sorrir e a apertar as mãos. Conversaram anima-
damente, rindo-se de vez em quando. O barman estrábico tinha-se retirado para o outro extremo do bar, deixando-os sós.
Ao fim de alguns minutos, Nwabala sorriu, pegou na mão da mulher e beijou-lhe os dedos. Depois regressou à mesa, sentou-se e pegou no seu copo.
- É francesa - disse em voz baixa. - Parisienne. Chama-se Yvonne. Fica duas semanas num bangaló que alugou. Vou ter com ela daqui a meia hora. Vês como é fácil, se se falar com educação?
Beberricaram o vinho lentamente. Viram a branca pagar a sua bebida, deixar uma gorjeta e sair. Pouco depois, terminaram o seu vinho e dirigiram-se ao bar para pagar a conta.
Nwabala deteve-se junto da porta.
- Dá uma olhadela - disse. - Uma boa olhadela.
O jovem saiu sozinho. Olhou para uma e para outra direcção da rua deserta. Eram quase 02.00. As nuvens finas deslizavam oleosamente sobre uma lua aguada. O guarda-costas avançou até à esquina, olhando em volta. Inspeccionou o beco ao lado do botequim. Espreitou para as sombras. Depois regressou ao clube.
- Terreno limpo - comunicou.
Partiram num Peugeot preto, com as portas e as janelas fechadas, apesar de a noite estar abafada. Havia gotas de humidade na capota.
O bangaló situava-se, isolado, num pequeno campo a meio caminho de Porto-Seguro. A terra à sua volta estava dura, sem árvores. O terreno nu brilhava, esbranquiçado.
O guarda-costas fez o Peugeot sair da estrada e parou junto do pequeno alpendre. Havia luzes no bangaló, que passavam através das estreitas frinchas dos estores corridos.
- Vai dar uma olhadela - ordenou Nwabala.
O guarda-costas saiu do carro. Meteu a mão no bolso direito do casaco. Deu uma volta completa à casa e depois voltou ao carro.
- Tudo limpo - disse.
- Lá dentro também, meu idiota - disse Nwabala.
O jovem subiu os degraus do alpendre e bateu na porta de rede. Momentos depois a porta interior abria-se. A mulher branca apareceu. Vestia umpeignoir1 azul por cima de uma camisa de noite azul mais clara. Estava descalça.
- Tenho de fazer uma busca na sua casa - disse o guarda-costas com firmeza. Falava um francês áspero.
Ela olhou para o Peugeot estacionado. Por detrás do vidro fechado, Nwabala acenou-lhe e sorriu. Ela acenou-lhe também e abriu o
1 Peignoir: palavra francesa que pode ser traduzida por "penteador". (N. da T.)
12
fecho da porta de rede, deixando entrar o guarda-costas. Depois foi sentar-se num sofá. Cruzou as pernas e ajeitou opeignoir cuidadosamente, de modo a cobrir os joelhos.
O guarda-costas não olhou para ela. Atravessou lentamente a sala, a cozinha, a casa de banho. Afastou cortinados e abriu as portas dos armários. Depois dirigiu-se ao quarto. Continha uma cómoda, um sofá, uma mesinha-de-cabeceira, um banco e a cama. Havia um roupeiro com porta de tabuinhas, com uma argola de guita suja pendurada no buraco onde deveria estar a maçaneta.
O guarda-costas puxou lentamente a guita. A porta abriu-se. Yakubu estava de pé, lá dentro, com os braços cruzados. Os dois homens fitaram-se por um momento. Depois Yakubu entregou ao outro um envelope fechado. O guarda-costas recebeu-o, abriu-o e contou lentamente os francos com os dedos grossos. Acenou afirmativamente com a cabeça, meteu o envelope no bolso interior do casaco e fechou a porta com Yakubu lá dentro. Depois saiu da casa.
- Tudo limpo - disse. Nwabala saiu do carro.
- Espera aqui por mim - disse. - Uma hora. Talvez duas ou três. Depende...
Entrou no bangaló. A mulher fechou a porta atrás dele. Tinha uma garrafa de aguardente italiana já aberta e dois copos de papel junto dela.
- Yvonne! - disse Nwabala. - Mas que simpático!
Vinte minutos depois estavam nus na cama. Ela tinha soltado os cabelos. Caíam-lhe em volta dos ombros. Ele ficou encantado por ver que os pêlos púbicos dela também eram louros.
Deitou-se sobre ela.
- Sou pesado de mais? - perguntou, solícito.
- Não, não - arquejou ela. - Oh, não.
Ele afastou-lhe as coxas lisas, fê-la flectir as pernas.
- Oh, és tão grande - debitou ela. - Oh, és tão homem. Nunca tinha tido um amante como tu.
E assim por diante. Ele sorria de prazer.
Ela passou os braços em volta das suas costas largas e balofas. Fixou os tornozelos e os pés por detrás dos joelhos dele.
- Abraça-me - sussurrou intensamente. - Aperta-me com força!
Obedientemente, ele passou os braços em volta dela. O peso dela prendeu-os. Os seus braços e os seus joelhos conservavam-no preso.
- Oh! - exclamou. - Agora!
A porta do roupeiro abriu-se silenciosamente. Yakubu atravessou o quarto sem ruído, como se flutuasse, empunhando a faca. Não foi um golpe pesado, o seu gesto foi mesmo gracioso, com a lâmina
deslizando ao lado da coluna, num ângulo oblíquo. Penetrando, penetrando, até o indicador e o polegar tocarem na carne mole. Yvonne pôde ver o olhar de Nwabala quando se apercebeu de que era um homem morto.
Yakubu ajudou-a a retirar o corpo de cima de si, fazendo-o rolar para o lado. O morto caiu no chão com um estrondo. Depois Yakubu saiu e instalou-se no assento da frente do Peugeot, ao lado do condutor.
- Correu tudo bem? - perguntou o guarda-costas. Yakubu acenou afirmativamente com a cabeça e ofereceu-lhe
um Gitane. Ambos acenderam os seus cigarros e ficaram a fumar lentamente, em silêncio. As janelas do carro estavam abertas, agora. O ar da noite parecia começar a refrescar, soprava um vento leve de oeste.
Vinte minutos depois, Yvonne saiu da casa. Envergava a túnica castanha e trazia uma maleta na mão. Apagou a última luz, fechou a porta à chave e deixou a chave numa saliência por cima da janela do alpendre. Em seguida dirigiu-se para o carro. Sentou-se sozinha no banco de trás. Ninguém falou. Seguiram directamente para o aeroporto. O guarda-costas deixou-os lá e partiu com o carro.
Uma hora depois, o Piper Aztec aterrava no Aeroporto Internacional de Mokodi no Achanti. Rolou até uma pista afastada do campo usado pela Força Aérea Nacional de Achanti. O Sargento Sene Yeboa veio ao encontro de Yvonne, pegou-lhe na mala e levou-a até um Land-Rover que aguardava perto. Yakubu desceu do avião e olhou em volta. Havia um Volkswagen vermelho estacionado sob a fraca luz que provinha do hangar de chapa ondulada. Um braço nu saiu pelo tecto aberto e fez-lhe sinal. Dirigiu-se ao carro e sentou-se ao lado de Sam Leiberman.
O mercenário tinha uma garrafa de uísque americano. Estendeu-a a Yakubu e esperou pacientemente que o negro bebesse três golos. Depois Leiberman bebeu um longo trago e arrotou.
- Que tal correu? - perguntou.
- Tal como planeou - disse Yakubu.
- Ele morreu feliz - disse Leiberman. - E agora? Vais voltar a ser chulo em Abidjan?
- Ah... bem, não - disse Yakubu. Abidjan não. Tenho lá um pequeno problema.
- Um pequeno problema? - troçou Leiberman. - Comparado com isso, a morte é um pequeno inconveniente. Em nome de Deus, que te fez meteres-te com uma muçulmana?
- Não fui eu que a procurei. Foi ela que veio ter comigo.
- Se os irmãos dela te apanham, espetam-te uma cavilha da tenda pelo eu acima.
14
- Eu sei - disse Yakubu tristemente.
- Queres ficar em Mokodi? - perguntou Leiberman.
- Posso?
-Eu trato disso-disse Leiberman, acenando afirmativamente com a cabeça. - Mas temos de arranjar-te um emprego respeitável. Que tal ires tomar conta de um bordel?
2
O Exército Nacional de Achanti estava em revista no pátio da parada do aquartelamento de Mokodi. Recém-armadas com espingardas automáticas M16A1 de fabrico americano, três brigadas de soldados negros passaram a marchar junto do estrado, de arma ao ombro. As bandeiras e estandartes ondulavam ao forte vento matinal. Atrás delas, o rosnido dos motores transformou-se num rugido à aproximação do estrado: era o Corpo Nacional de Tanques de Achanti. Dez tanques AMX-30 novos, com as escotilhas abertas e os tripulantes em continência.
No estrado encontrava-se o convidado de honra, o General Ku-mayo Songo do Exército togolês. À sua esquerda encontrava-se o seu filho e ajudante-de-campo, o Capitão Jere Songo. À sua direita estava o Presidente de Achanti, Obiri Anokye, envergando um uniforme do Exército sem condecorações nem divisas.
Enquanto os tanques passavam, Anokye disse ao General Songo que o seu comandante, o homem alto, de barba, no primeiro tanque,-era o Coronel Jim Nkomo.
- Muito capaz - disse Anokye.
O Presidente falava francês, como os seus convidados.
- Um homem impressionante - disse o general, sorrindo. - Um veterano do seu golpe?
- Sim. Esteve comigo.
Surgiu, por último, uma companhia de artilheiros, transportando as suas pesadas metralhadorasBrowningM2.50 sobre carros de duas rodas, e a parada chegou ao fim.
- Muito impressionante, Sr. Presidente - disse o General Songo. - Fez maravilhas em tão curto tempo. Felicito-o.
- Muito obrigado. Mas ainda há muito para fazer. Especialmente quanto a treino de armamento.
- E o moral?
- Excelente - disse o Presidente Anokye. - Ser soldado de
15
Achanti é um motivo de orgulho. O nosso povo está grato ao Exército por ter acabado com a tirania do Rei Prempeh.
- Evidentemente - disse Songo, acenando afirmativamente com a cabeça. - E, sem dúvida, as novas espingardas ajudam a elevar o moral das tropas, não é assim?
- Isso é verdade - disse Anokye. - Ainda tem as MAS?
- Ainda - disse Songo, desgostoso. - E as velhas Garands e Mannlichers, até mesmo algumas Lebels. O meu país tem dinheiro para tudo menos para novas armas.
- Eu sei - disse o Presidente com simpatia. - É um problema. Vamos para a sombra?
Desceu as escadas de madeira com os dois oficiais. O estrado estava rodeado por um cordão da guarda pessoal do Presidente, comandada pelo Sargento Sene Yeboa. Os guardas usavam fardas de caqui com polainas brancas e lenços de seda branca ao pescoço. Empunhavam metralhadoras ligeiras Thompson e usavam Colts .45 em coldres de cabedal brancos, de lado.
- Capitão - disse Anokye -, importa-se de pedir ao sargento que chame os carros?
- Com certeza, Sr. Presidente. Imediatamente.
O jovem Songo afastou-se rapidamente. O Presidente conduziu o general para a sombra, por baixo do estrado. Anokye, a quem os Achantis ainda chamavam "o Capitãozinho", media apenas 1,60 m. Podia manter-se facilmente de pé por baixo da plataforma de madeira. Songo, um homem taciturno e curvado, com o seu cinturão de cabedal castanho apertado por baixo de um ventre pesado, teve de baixar a cabeça. Parecia estar em posição de obediência diante do Capitãozinho.
- General, lamento profundamente que tenha de interromper a sua visita.
- Também eu. Este caso do Nwabala... O meu governo está muito preocupado.
- Compreendo - disse Anokye gravemente. - Teria sido uma questão pessoal? Consta que era muito mulherengo.
- Pode ter sido - disse Songo, irritado. - Mas não foi um marido ou um amante ciumento que o matou. Tratou-se de um assassinato político.
- Político? - disse o Presidente. - Tem a certeza disso?
- O guarda-costas dele fugiu para o Benim - disse Songo, sombriamente. - Exigimos a sua extradição, mas eles recusam-se. A fronteira foi fechada. De ambos os lados.
Anokye abanou a cabeça, penalizado.
- Não gosto de ver vizinhos em disputa. Somos todos irmãos, todos africanos.
16
- Sr. Presidente, não é a primeira vez que eles nos afrontam - disse Songo.-Têm de responder por muita coisa. Só existe uma maneira de reagir a um provocador, é enfrentá-lo. Temos de pôr fim a estes insultos e provocações contra o povo e o governo do Togo.
- E pensa que o assassinato de Nwabala foi uma conspiração do Benim?
- Sei que foi - disse o general, raivosamente. - Ele falava de paz entre o Togo e o Benim, uma relação mais estreita, talvez mesmo uma fusão dos dois países. A sua morte foi a resposta deles. Muito bem. Se eles não desejam a paz, terão de sofrer as consequências.
- Pode contar com a minha compreensão - disse gentilmente o Presidente Anokye. - Estou pronto a ajudá-lo em tudo o que puder. Importa-se de transmitir a minha simpatia ao seu governo?
- Terei muito prazer em fazê-lo, Sr. Presidente - disse o General Songo. - Ah, cá estão os carros...
- Só mais um momento, por favor, general. Gostei muito de saber da promoção do seu filho. Um belo rapaz!
- Muito obrigado.
- Está ao corrente do interesse dele pela minha irmã mais nova Sara?
- Ao corrente e muito satisfeito, Sr. Presidente - disse Songo.
- Uma rapariga encantadora.
- Obrigado. Espero que as nossas famílias venham a conhecer-se melhor. Quem sabe...
Saíram do abrigo da plataforma para o sol brilhante e dirigiram -se aos carros que os aguardavam. Os guardas estavam em sentido junto das portas abertas.
- Com o sorriso de Deus, vá de boa saúde e regresse de boa saúde
- disse o Presidente Anokye, falando em akan.
- Que Alá abençoe os seus dias e a sua família - respondeu o General Songo em twi. Depois mudou para o francês. - Obrigado, senhor Presidente, pela sua generosa hospitalidade. Fiquei muito impressionado com a disciplina e o treino do seu magnífico Exército.
- Vamos progredindo - disse Anokye gravemente. - Espero ter quatro brigadas totalmente armadas dentro de seis meses. Uma dificuldade apenas...
- Oh? - disse Songo. - Qual é?
- Uma terrível escassez de oficiais-de-campo e generais dignos de confiança. Eu, evidentemente, sou Comandante-Chefe das Forças Armadas. Planeei e dirigi pessoalmente a reorganização do Exército após a queda do regime de Prempeh. Mas cada vez estou mais ocupado pelos assuntos de Estado. Política doméstica, relações com o estrangeiro, questões financeiras, etc. Contudo, não tenho generais com educação, treino e experiência a quem possa confiar com
17
segurança este novo Exército. O senhor formou-se em St.-Cyr, não foi, general?
- Foi, sim - disse Songo, endireitando os ombros e encolhendo o ventre -, é verdade, Sr. Presidente.
- Ah - disse suavemente Obiri Anokye -, se Achanti tivesse um comandante como o senhor...
A limusina de Songo partiu em direcção ao aeroporto momentos depois, mas não antes de um Capitão Songo, corado e gaguejante, ter pedido ao Presidente de Achanti que entregasse um bilhete dobrado à sua irmã Sara.
- Mas eu já sou velho de mais para fazer de Cupido - dissera Anokye com ar solene. - Mas talvez seja suficientemente anafado. - Depois, com o jovem capitão ainda mais corado, Anokye riu-se e disse: - Entrego-o com muito prazer, capitão. Sei que falo por Sara... e toda a minha família, evidentemente... ao dizer-lhe que espero que volte em breve para uma visita mais longa.
Depois da partida dos togoleses, o Presidente Anokye entrou na sua limusina Mercedes-Benz negra. O carro atravessou o terreno da parada até ao portão do aquartelamento, conduzido pelo Sargento Sene Yeboa. Precedia-os um Land-Rover militar com quatro guardas. Ambos os veículos ostentavam bandeirinhas de Achanti nos guarda-lamas da frente.
Os carros avançaram lentamente para sul, pela Estrada Nacional N.21 de Achanti, a única estrada pavimentada do país, e depois voltaram para oeste, metendo por uma estrada lateral, para evitar a área habitada de Mokodi. Descreveram uma ampla curva e voltaram a aproximar-se da cidade, passando por uma área de grandes propriedades rodeadas por sebes de buganvíleas. Num local deserto da estrada, os carros pararam e fez-se uma troca. Os quatro guardas levaram a limusina para o Palácio Nacional de Achanti, com as bandeirinhas a esvoaçar. O Presidente Anokye e o Sargento Yeboa entraram no Land-Rover, depois de retirarem as bandeirinhas.
Percorreram alguns quilómetros e pararam no caminho de acesso coberto de seixos de uma elegante casa particular. Estava revestida a estuque pintado de cor-de-rosa claro, e tinha um só andar, estendendo-se graciosamente para os lados, em diversas pequenas alas. Yeboa fez o Land-Rover dar a volta à casa, entrando pela porta aberta de uma garagem de chapas de zinco. Ambos os homens saíram, e dirigiram-se à porta das traseiras. Entraram sem bater. O sargento permaneceu na cozinha. O Presidente Anokye percorreu um corredor que levava à sala. Yvonne Mayer estava à sua espera, envergando um peignoir azul sobre uma camisa de noite azul mais clara. Estava descalça. Tinha os cabelos soltos.
- Bibi! - disse ela, abrindo os braços.
18
Mais tarde, saciados e cobertos de suor, ficaram deitados de costas, na cama, a observar a louca dança dos grãos de poeira. Certa vez, quando estavam assim deitados, Anokye tinha olhado para os seus corpos nus e observado: "Somos a noite e o dia." Era verdade; os padrões abstractos produzidos quando o preto e o branco se entrelaçavam nunca deixavam de os surpreender.
A pele dele era negra como cordovão, com um brilho rosado. Era um homem forte, já com tendência para a corpulência: cintura grossa, uma camada macia sobre os músculos do peito, dos ombros e das coxas. O poder da juventude ainda existia, mas por baixo de uma almofada de camurça. Os pêlos negros das axilas, do peito, do baixo ventre, eram rijos como molas de arame.
A mulher, mais alta do que ele, tinha um corpo elástico como as barbatanas de baleia. Cabelos louros, pele clara. Braços e pernas esguios e sinuosos. Mãos fortes e longas, pés preênseis. Um rosto curioso: feições de camafeu com uma expressão dura e desconfiada. Os seus seios eram pequenos escudos com bossas rijas, cor-de-rosa. Tudo nela era sinuoso como uma videira.
- Bibi - disse ela preguiçosamente -, como correram as coisas... o caso Nwabala?
- Como eu esperava - disse ele. - O General Songo está furioso. O Togo pediu a extradição do guarda-costas. O Benim recusa. As fronteiras foram fechadas.
- O guarda-costas pode falar.
- E revelar a sua cumplicidade? Não acredito. Yvonne, há uma longa história de inimizade entre aqueles dois países. As fronteiras já foram fechadas uma dúzia de vezes. Recordo-me de quando era preciso ir a Lagos, na Nigéria, para chegar ao Benim. Não se conseguiam vistos para partir do Togo. Não, o guarda-costas vai ficar no Benim. Eles vão rejeitar as exigências do Togo.
- Estou satisfeita... por aquilo que eu fiz te ter sido útil.
- Sim, foi útil. Custou-te muito?
- Nwabala? Não. Já fiz coisas piores.
Ele voltou a cabeça lentamente sobre a almofada, para olhar para ela.
- Gozaste com aquilo? - perguntou suavemente.
- Gozar? - Ela encolheu os ombros. - Foi só trabalho. Yakubu foi muito bom: rápido e sem conversas inúteis depois.
- Ele foi para o Bezerro de Ouro?
- Sim, para o meu antigo apartamento. Acho que vai trabalhar bem. As raparigas gostam dele. É duro com elas, mas não pede favores especiais. Compreendes? Traz-me os livros de contabilidade todas as semanas. Penso que está a roubar cerca de cinco por cento. Não me parece de mais; que achas, Bibi?
19
- Não, deixa-o continuar. Mas não mais de cinco.
- Ele quer aumentar os preços. Com tantos texanos do petróleo na cidade, diz que pode pedir mais.
- Que é que tu achas? O Bezerro de Ouro é teu.
- Sim, acho que ele pode aumentar os preços. O negócio tem sido muito bom.
- Faz como achares melhor. Chegaram homens de Londres para falar com Willi Abraham. Querem construir um casino na praia, a oeste do Mokodi Hilton, perto do Restaurante Zabarian. Sam Lei-berman diz que estes homens estão ligados ao sindicato do crime. Mas diz que são honestos em questões de dinheiro. Que te parece?
Ela pensou por uns momentos.
- Achanti recebe a sua parte? - perguntou.
- Sim. Uma percentagem do resultado líquido, ainda a negociar.
- Não - disse ela -, não faças isso. Eles vão ocultar todas as despesas e os grandes salários e extras do lucro líquido. Pede uma percentagem sobre o bruto.
- Então achas que devemos conceder uma licença?
- Sim, se Achanti receber uma percentagem do lucro bruto. E as mesas de jogo devem estar absolutamente limpas. A percentagem da banca já é bastante grande com jogos honestos e tômbolas. E todos os empregados, incluindo os croupiers1, deverão ser achantis. Insiste nesse ponto.
- Sim - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça. - Óptimo. Posso sempre contar com os teus excelentes conselhos. Yvonne, tenho de ir-me embora; tenho uma reunião no palácio. Mas primeiro quero falar-te a nosso respeito, a teu respeito.
Foi a vez de ela voltar a cabeça para ele. Os seus olhares cravaram-se um no outro.
- Que queres dizer, Bibi?
- Estás satisfeita com esta casa?
- Oh, sim, é muito boa. Contratei uma governanta, uma cozinheira, uma criada e um homem para tratar do terreno.
- Óptimo. E, como te prometi, o Bezerro de Ouro é inteiramente teu. Mas não deixes de pagar os impostos!
- Eu pago - disse ela, sorrindo.
- Agora... o petróleo dos poços de Zabarian começa a jorrar de sexta-feira a uma semana. Na verdade já começou a jorrar, mas nesse dia faremos uma cerimónia oficial e uma festa. O homem das relações públicas de Monróvia está a tratar disso. Eu carrego num
' Croupier é um empregado de uma casa de jogos. (N. da T.)
20
botão e toda a gente vai ver o petróleo a correr por um tubo de plástico transparente. Os executivos da Starrett vêm da América. Peter Tangent já tratou disso. Vou ter oportunidade de os conhecer e falar com eles dos meus planos. Além disso, vou convidar o Primeiro-Ministro Da Silva do Benim.
- Ah - disse ela, ainda fitando-o nos olhos. - E a sua filha Beatriz?
- Sim. E a sua filha Beatriz. E vou pedi-la em casamento quando estiverem aqui. Vou pedir-lhe a ele e a ela.
Ela estremeceu. Os seus olhos afastaram-se dos dele. Olhou para o vazio, por cima do ombro dele.
- Tão depressa, Bibi? - murmurou.
- Tem de ser feito - disse ele. - Conheces os meus planos. Concordaste.
- Com o casamento - disse ela com relutância. - Mas eu disse-te o que faria se me deixasses... Dou cabo de mim e rogo-te uma praga, a ti e aos teus planos.
Foi a vez de ele estremecer.
- Não gosto de te ouvir dizer essas coisas - disse ele. - Eu não te deixo; já te jurei isso. Mas Da Silva sabe da tua existência, conhece a nossa ligação, e a única forma de eu conquistar a sua amizade, e a da filha dele, é dar a impressão que desisti de ti. Por isso te tirei do Bezerro de Ouro e te dei esta casa. Mas não basta. Sabes que há pouca coisa que eu faça em Mokodi, no Achanti, que possa ficar escondido por muito tempo. Da Silva saberá que eu venho visitar-te. Não posso permitir que isso aconteça, portanto...
- Portanto? - perguntou ela.
- Quero fazer uma sugestão. Só uma sugestão. Quero que penses bem nela. Quero que te cases com Sene Yeboa. Então, esta passará a ser a casa dele. E eu posso vir até cá sem que haja mexericos. Ele é o comandante da minha guarda e o meu mais antigo amigo pessoal. É meu irmão. Seria perfeitamente natural verem-me...
Os olhos dela voltaram a cravar-se nos dele e abriram-se mais.
- Não - disse. - Não, não e não. Arranja outra maneira. Não quero casar-me com Sene Yeboa ou com qualquer outro homem. Quero-te só a ti. Quero amar-te só a ti.
- Por favor, escuta o que eu digo - disse ele pacientemente. - Sene é um bom homem. Ainda não lhe sugeri a ideia, sem falar contigo primeiro, mas tenho a certeza de que ele fará o que eu quiser. Ele segue-me em tudo. Desde os tempos em que éramos crianças. Ele concordará em casar contigo. Ele...
- Não - disse ela ferozmente. - Não, não, não.
- Ele não vai querer fazer amor contigo - disse Anokye calma-
21
mente. - Tem muitas outras mulheres. É um touro. Ele vai compreender que se trata de um casamento de... de conveniência.
- Tua conveniência!
- Sim - concordou ele. - Mas o que é bom para mim também é bom para ti, para todos. Tu juraste-me fidelidade, a mim e ao meu destino.
- Não faço isso! - exclamou ela. - Não, não, não!
- Então o amor de que falas não significa nada - disse ele, começando a irritar-se. - "Bibi, tudo o que tu quiseres. Bibi, eu faço tudo por ti. Bibi, sou capaz de morrer por ti." E assim por diante; Mas quando eu peço alguma coisa, só sabes dizer "Não, não, não". E isso o que vale o teu amor.
Ela deu-lhe um murro no peito.
- E tu? - bradou. - Que significa o teu amor? Que eu me case com outro homem?
A discussão foi subindo de intensidade. As pancadas dela no peito e nos ombros dele foram-se tornando mais fortes, mais frenéticas. Ele tentou prender-lhe os braços. Ela retorceu-se para lhe fugir. O homem fez rolar o corpo para cima do dela. Yvonne chorava de raiva, sacudindo a cabeça dum lado para o outro, agitando os cabelos. Ele prendeu as suas pernas agitadas entre as suas. Esmagou-lhe o torso com os braços.
E lentamente, pouco a pouco, a fúria desordenada de ambos transformou-se num frenesim diferente. Ele bateu-lhe no queixo com a mão em cutelo, enterrou os dentes na sua carne, caiu violentamente sobre ela e penetrou-a à força, enquanto as pancadas dela se transformavam num cravar de unhas e o seu corpo sinuoso se erguia ao encontro da fúria dele, e voltou a chamar-lhe "Meu capitão!", "Meu rei!", "Meu senhor!", e o que principiara como uma violação acabou... se não como amor, pelo menos como desejo.
Quando finalmente terminaram e se deixaram cair, exaustos, doridos e inchados, dirigiram um ao outro um olhar amortecido. Não querendo separar-se zangados, moviam-se ambos inquietos no leito, cada um deles na esperança de que o outro falasse primeiro. Ou fizesse um sinal. Foi ela que o fez, agarrando os dedos dele entre os seus, mudando de posição para se encostar a ele, deitando-lhe a cabeça no ombro, misturando o seu belo cabelo cor de linho com o pêlo de arame negro dele. Ele suspirou e apertou-a contra si, e as suas peles lustrosas uniram-se, húmidas.
- Bibi... - murmurou ela, mas interrompeu o que ia dizer, e disse apenas:
- Bibi, esse General Songo... tu confias nele?
- É um homem simples - disse o Capitãozinho. - Um bom soldado, mas um homem simples. Pode ser valioso.
- E Sene Yeboa... é um homem simples?
22
Ele fitou-a durante um longo momento.
- Muita gente pensa que sim. É essa a impressão que ele dá. Mas Sene Yeboa não é um homem simples. Sene é profundo e tem anseios.
- Anseios? De quê?
- Pergunta-lhe depois de se casarem.
- Vou pensar nisso - disse ela, e deixaram ficar o assunto por ali.
O Land-Rover, com as bandeirinhas novamente colocadas nos guarda-lamas, dirigiu-se para o Palácio Nacional do Achanti. O Presidente Obiri Anokye ia sentado no banco da frente, com as pernas abertas, ao lado do Sargento Sene Yeboa. O braço esquerdo do Capitãozinho estava estendido sobre as costas do banco do condutor, tocando nos largos ombros do sargento.
- Sene - perguntou -, como vão as coisas com o mercenário? Não há problemas?
Como habitualmente, quando estavam sós, falavam akan.
- Não há problemas, Bibi - respondeu o sargento. - Lei-berman diz muitas piadas. Tenho que rir com ele. Mas é um homem prudente. E valente. Faz bons planos.
- Faz muito bons planos - concordou Anokye. - Mas é branco. Sene, segundo os meus planos, teremos de escolher homens especiais.
- Especiais?
- Prempeh tinha a sua polícia secreta. Matámos todos, mas agora percebo por que é que esses homens são necessários.
- Queres ter uma polícia secreta, Bibi?
- Não podemos chamar-lhe assim, evidentemente. Mas preciso de homens em quem confie. Esses homens dar-me-iam informações sobre o que sucede em Achanti, coisas que, de outra forma, eu não saberia. Estás a compreender? Quem diz isto ou aquilo. Quem conspira contra mim. Quem anda a juntar armas. E assim por diante. Mas também preciso de homens noutros países, homens meus que se informem e me digam aquilo que eu preciso de saber. Esses homens têm de ser pretos. Os brancos não poderiam falar, ouvir, fazer amigos e ir a certos locais em África. Leiberman não podia.
- Estás a falar verdade, Capitãozinho.
- Sene, quero que me arranjes homens capazes de fazer essas coisas e que estejam dispostos a servir-me. Pagar-lhes-emos generosamente, porque a sua tarefa não vai ser fácil. Talvez perigosa.
- Yakubu é um desses homens.
- É certo. Mata bem e não tem medo. Podes encontrar outros homens assim?
23
- Hei-de de encontrá-los, Capitãozinho. Tenho alguns na guarda. Homens rápidos que não temem a morte.
- Óptimo. E depois tens de ir a Lomé, a Cotonou, e encontrar lá homens desses. E talvez noutros lugares.
Yeboa pensou cuidadosamente no assunto, durante um longo momento. Finalmente disse:
- Eu acho que seria melhor escolher achantis para essa tarefa e mandá-los para outros lugares do que escolher homens nesses países. Assim, podemos confiar nos homens que nos servem. Serão do nosso sangue.
- Irmão - disse Anokye, apertando o ombro maciço do sargento. - Falas com sensatez.
Seguiram em silêncio. Depois Yeboa falou de novo:
- Falaste com a mulher, Bibi?
- Falei - disse Anokye. - Disse-lhe que ainda não tinha falado contigo do assunto.
- Que é que ela respondeu?
- Vai pensar. Sene, tens a certeza de que não te importas de fazer isto por mim?
- Não me importo, Capitãozinho.
Voltaram para o Boulevard Voltaire, passaram pela Embaixada Americana, circundaram o largo do palácio e pararam no acesso das traseiras. O Presidente Anokye olhou de soslaio para o sargento. O robusto soldado, com o pescoço maciço e os músculos dos ombros de quem maneja uma metralhadora, estava inclinado sobre o volante, com as feições grossas e sensuais absortas e solenes.
- Estás preocupado, Sene? - perguntou suavemente Anokye.
- Capitãozinho - disse Yeboa com um ar sério -, essa mulher é tua. Se eu casar com ela, eu não a procuro. Sabes isso?
- Sei.
- Mas, e se ela me procurar?
- Há-de procurar-te - disse Anokye. - A seu tempo.
- Então, que é que eu hei-de fazer?
O Presidente Obiri Anokye deu uma palmada no largo joelho do outro.
- Nós não somos irmãos? - disse.
- Somos, pois! - disse o Sargento Yeboa.
O palácio e os terrenos circundantes tinham sido reparados e restaurados após o violento golpe de Estado de 5 de Agosto. Ainda havia guardas armados nas entradas e a patrulhar o largo, mas o rés-do-chão do palácio e certos aposentos dos andares superiores estavam abertos desde as 10.00 às 15.00 para todos os achantis e turistas. Havia uma exposição de arte Achanti no salão de baile principal e, uma vez por semana, a Companhia Nacional de Bailado
24
achanti fazia um espectáculo grátis, apresentando as danças mais famosas.
O Presidente Obiri Anokye tinha transferido os seus idosos pais e o seu irmão mais novo Adebayo e a sua irmã Sara para os aposentos do terceiro andar. O seu irmão mais velho Zuni e a sua mulher tinham preferido ficar, com os filhos, na casa original dos Anokye na ilha de Zabar, diante da costa achanti, ligada a Mokodi por um ferry três vezes por dia.
Nessa manhã, o palácio já estava aberto ao público; os corredores do andar principal encontravam-se apinhados de achantis e turistas. O Presidente Anokye foi reconhecido e saudado com aplausos. Sorria e parava frequentemente para dirigir algumas palavras aos visitantes, apertar mãos, trocar saudações muçulmanas, fazer vénias. Anokye falava francês e akan fluentemente, Inglês cuidadosamente, um pouco de alemão e italiano e diversas línguas africanas.
Deu as boas-vindas a um grupo de altos suecos, falando-lhes em inglês. Tomou a sua posição favorita: os pés afastados e firmemente plantados no chão, o dorso curto levemente inclinado para trás, erecto, o peito inchado, o queixo elevado e projectado para a frente, as mãos nas ancas.
Falou-lhes do seu prazer por os ver em Achanti. Disse que esperava que eles visitassem toda a sua nação, incluindo a região montanhosa, mais fresca, e insistiu com eles para que procurassem a oportunidade de conversar com o amistoso povo achanti, para vir a conhecê-lo melhor. Disse que, com os lucros dos novos poços de petróleo submarinos ao largo de Zabar, tinham sido planeadas maiores atracções para os turistas. Disse que esperava fazer de Achanti um modelo para toda a África, onde os cidadãos pudessem gozar as bênçãos da liberdade e da prosperidade, com liberdade para criar os seus próprios destinos, fossem quais fossem os seus desejos. Os turistas ficaram impressionados.
- Sr. Presidente - perguntou um dos suecos -, pensa que haverá guerra entre o Togo e o Benim?
O rosto de Anokye tornou-se grave.
- Peço a Deus que tal não aconteça - disse. - Somos todos africanos, todos irmãos, e temos de aprender a viver em paz uns com os outros. Mais uma vez muito obrigado por nos terem vindo visitar, e espero que regressem a casa com boas recordações do nosso belo país.
Depois deixou-os e subiu a ampla escadaria de mogno até à sala de conferências do segundo andar. Era seguido de perto pelo Sargento Sene Yeboa, que estava sempre a olhar em volta, com a mão a pouca distância do coldre da pistola.
25
Estavam todos à espera dele: o círculo íntimo, os homens que o tinham acompanhado durante os sangrentos acontecimentos de 5 de Agosto e que tinham demonstrado a sua lealdade. Os pretos eram o Primeiro-Ministro Willi Abraham, o Ministro de Estado Professor Jean-Louis Duelos, o Procurador-Geral Mai Fante e o Coronel Jim Nkomo. Eram todos achantis, excepto Duelos, um martinicano castanho-claro. Os dois brancos na sala eram Sam Leiberman e Peter A. Tangent. Leiberman era um mercenário, contratado pelo Achanti como "consultor militar". Tangent ainda recebia salário da Starrett Petroleum Corp., sediada em Tulsa, Oklahoma, e Nova Iorque. Era o seu chefe de Operações Africanas, trabalhando com base no escritório de Londres da Starrett.
O Capitãozinho saudou os seus amigos e insistiu em apertar as mãos a todos. Pediu desculpa por os ter feito esperar, e depois instalou-se na cadeira de espaldar alto por detrás da ampla secretária. As pernas da cadeira tinham sido alongadas, para ele ficar ao nível dos visitantes. Todos se sentaram excepto o Sargento Yeboa, que ficou de costas para a única porta.
Os pesados cortinados das altas janelas tinham sido corridos, impedindo a entrada do ardente sol achanti. O ar condicionado funcionava a toda a força, uma ventoinha de quatro pás, suspensa do tecto, fazia circular uma brisa fresca. As ventoinhas tinham sido instaladas pelo governador francês que construíra o palácio. Depois de Achanti ter alcançado a independência em 1958, o Rei Prempeh IV tinha mandado instalar ar condicionado no palácio, mas, por uma das suas muitas extravagâncias, conservara as antiquadas ventoinhas. Obiri Anokye tinha-as mantido.
Pegou num dos ornamentos da secretária, um modelo em chumbo de um oficial negro, envergando a farda de gala de capitão achanti. Juntamente com nove modelos de soldados achantis, tinha sido a prenda pessoal de Peter Tangent ao Presidente Obiri Anokye, para comemorar a sua nomeação. A oferta tinha agradado imenso ao antigo capitão do Exército. Acariciava o soldadinho enquanto falava.
- Quanto ao projecto do casino - principiou abruptamente, falando francês.
- Willi, vamos extrair a nossa percentagem do lucro bruto e não do líquido. Aprovas?
O Primeiro-Ministro Abraham, um homem pequeno, de ossos finos e cabelos grisalhos, que vestia um fato escuro de lã tropical, muito bem cortado em estilo europeu, acenou imediatamente com a cabeça, concordando.
- Óptimo, Bibi. Eles vão objectar, mas acabarão por concordar.
- Mais lucros para os brancos - disse o ministro de Estado em tom agastado.
O Capitãozinho tinha o hábito de voltar a cabeça por inteiro, num
26
jeito dominador, em vez de apenas desviar os olhos. Voltou-se para olhar para Duelos.
- Nós sabemos o que sentes, Jean - disse com voz suave. - Mas há um ditado inglês que fala em aprender a andar antes de começar a correr. Não é assim, Peter?
- Mais ou menos - disse Tangent.
- Além disso - prosseguiu Anokye -, vamos insistir em que todos os empregados do casino, incluindo oscroupiers, sejam achantis. Isso vai ajudar o desemprego aqui e vai dar-nos informações acerca dos lucros brutos deles.
- Não sei se eles aceitarão isso, Bibi - disse Willi Abraham, duvidoso. - São gente dura.
- Leiberman? - perguntou Anokye.
- Provavelmente concordarão em ter achantis como criados, porteiros, barmen, guardas, cozinheiros, etc. - disse Sam Leiberman. - E talvez estejam dispostos a treinar achantis como croupiers. Mas hão-de querer os seus próprios homens na camada superior: os chefões, os papões por detrás das paredes com óculos, caixeiros, contabilistas, gerentes, etc.
- Está bem - disse Anokye. - Contentamo-nos com isso. Estou ansioso por que esse casino seja construído. Acho que vai ajudar o turismo e a nossa balança de pagamentos. Alguma coisa mais, antes de ouvirmos o relatório de Peter?
- Os carros de transporte de pessoal? - sugeriu o Coronel Jim Nkomo.
- Tratarei disso pessoalmente contigo - disse o Presidente. - É uma questão militar. Mais alguma coisa?
- Aquela questão Togo-Benim - disse lentamente Mai Fante.
- Sim.
- Fala-se de eles submeterem as suas diferenças à Organização da Unidade Africana, para que sirva de árbitro.
- Fala-se? - disse Anokye bruscamente. - Donde vem isso? Quem é que fala?
- Recebi um telefonema do Benim - disse Mai Fante. - Um amigo. Diz que o caso está em discussão. Perguntou qual era a nossa reacção. O telefonema era para nos sondar.
- Nós aprovamos qualquer movimento que assegure a paz - disse o Presidente Anokye. - Todos os actos que ajudem a afastar os motivos de disputa entre o Togo e o Benim. É essa a nossa reacção oficial. A nossa posição pública. Entenderam todos? Óptimo. Mais alguma coisa? Não? Muito bem, Peter; é a sua vez. Dê-nos as más notícias.
- Não são totalmente más - disse Peter Tangent. Pôs-se de pé a toda a altura do seu metro e noventa e três, parecendo que o seu
27
corpo magro se desdobrava à medida que se ia endireitando. Foi passeando pelo escritório apainelado, enquanto falava. A certa altura parou para tirar um maço de Players do bolso interior do casaco e distribuiu cigarros por todos. Fante, Nkomo, Leiberman e o Sargento Yeboa aceitaram. O Presidente Anokye abanou a cabeça, tirando um maço de Gauloise Blue da gaveta da secretária, e ficou a escutá-lo com um cigarro por acender entre os lábios.
Tangent vestia um fato de seda azul-escura, uma camisa de algodão branca com colarinho de botões e uma gravata Countess Mara granada. Usava um cronómetro Omega de ouro com a correia pouco apertada, no pulso esquerdo. Os seus sapatos pretos, sem atacadores, não estavam brilhantes. A pele de Tangent era pálida, tinha leves sardas nas maçãs do rosto. Havia uma marca vermelha discernível na testa alta: o panamá que geralmente usava muito apertado.
- A reunião realizou-se em Tulsa - principiou, falando rapidamente. - Havia cinco homens além de mim. O vice-presidente e o administrador do escritório de Tulsa. Ocupam-se das operações domésticas. E o vice-presidente e o administrador do escritório de Nova Iorque, responsáveis pelas operações no ultramar. O quinto homem era nada menos que o velho Ross Starrett, presidente do conselho de administração. E filho do fundador da companhia, Sherm Starrett, que morreu há cerca de vinte anos. O próprio Ross já não é uma criança. Está perto dos oitenta, penso eu. Não o via há bastantes anos, e pareceu-me a morte requentada. Sofre terrivelmente de artrite reumática. Mas o cérebro continua alerta. Surpreendentemente, achei que ele era o mais interessado. Foi a impressão que eu tive. Deixou os outros trocarem a bola e concordou com a opinião deles. Mas notei um decidido interesse da parte dele. Sou muito perceptivo quanto a vibrações na classe executiva, e fiquei com a sensação de que Ross Starrett estava curioso e interessado. Talvez mesmo fascinado.
"De qualquer forma, fiz a minha apresentação, servindo-me de um grande mapa de África. Tinha mandado o departamento de investigação do nosso escritório de Londres procurar alguns números, e atirei-lhes rapidamente com eles: população de África, área territorial, PNB actual e previsto, depósitos minerais existentes e estimados, campos de petróleo descobertos e previstos, cereais, tudo. Depois passámos aos pormenores: exactamente aquilo que eu pretendia.
"Aí tive dificuldades por causa das suas instruções, Sr. Presidente. Queria que eu mencionasse Togo e Benim e nada mais. Eles não são estúpidos, e o administrador do escritório de Nova Iorque tinha feito o seu trabalho de casa e tinha todas as respostas. A volatilidade tribal dos dois países, as suas frequentes mudanças de
28
Governo, a sua falta de uma base económica sólida: sem petróleo, sem ouro, sem diamantes, sem fosfatos. Só óleo de palma e mandioca. Como ele disse, ambos os países já teriam ido por água abaixo há muito tempo se não fossem os subsídios da França. Isso é indiscutível.
"Para abreviar isto o mais possível, eles não estão interessados no Togo e no Benim. Como disse o vice de Tulsa, a Shell tinha grandes esperanças nos poços offshore do Benim, mas não tem nada para mostrar a não ser uma série de buracos secos e um jorro de tinta vermelha. Portanto, nem pensar em investimentos da parte da Starrett. Mas, como se esperava, estão perfeitamente dispostos a avançar somas limitadas contra os lucros previstos dos poços de Zabar no Achanti."
- O mesmo negócio que propuseram na altura do golpe - disse amargamente o Professor Jean-Louis Duelos. - Têm a gentileza de nos emprestar o nosso próprio dinheiro!
- Não estamos assim tão mal - disse Willi Abraham. - Nãp precisamos de empréstimos da Starrett. Com a produção de petróleo prestes a iniciar-se, abrem-se-nos muitas fontes de crédito imediato.
- Eu disse tudo isso - disse Tangent pacientemente - e expliquei-lhes tudo isso. Disse-lhes que aquilo que desejavam era uma espécie de sociedade: um subsídio directo contra futuras licenças para explorar petróleo e fazer a prospecção de minerais em terras que viessem a ficar sob a hegemonia de Achanti. Mas dado que só podia oferecer Togo e Benim, eles disseram que não. Pobres de mais. Não havia provas de um potencial retorno que justificasse o risco. Então o velho Ross Starrett disse uma coisa que me deu a perceber que estava interessado, e mais adiantado que os outros. Disse que a resposta poderia ser diferente se tivesse outros países em vista.
O Presidente Anokye ergueu rapidamente o olhar.
- Ele mencionou países específicos, Peter? - Sim, senhor. Nigéria e Zaire.
Os homens da sala enteolharam-se, sorrindo. O Capitãozinho recostou-se na sua cadeira. Finalmente acendeu o cigarro e começou a fumá-lo lentamente, soprando o fumo para o tecto.
- Sene - disse sonhadoramente -, que achas tu disto? - Endireitou-se, inclinou-se para a frente, sobre a secretária, e disse aos outros: - Eu confio na opinião de Sene. Tem experiência da vida. Talvez não perceba de economia, mas conhece os homens e os motivos por que eles agem. Sene, o que é que dizes?
- Não lhes peças dinheiro emprestado - disse Yeboa imediatamente. - Se precisares dele, arranja-o noutro lado. Se rastejarmos,
29
de chapéu na mão, eles julgam-se nossos donos. Se não estão dispostos a correr o risco, não devem partilhar os lucros.
- Muito bem, Sene - disse Anokye aprovativamente. - Exactamente o que eu penso. E os senhores?
Todos acenaram afirmativamente com a cabeça.
- E como ficaram as coisas? - perguntou o presidente a Tangent.
- Disse-lhes que a decisão deles iria irritá-lo, que poderia causar complicações. Foi essa a palavra que eu usei: "complicações". Dei a entender que, depois de saber da decisão deles, o senhor poderia pensar melhor quanto aos acordos de aluguer dos poços de Zabar.
- Óptimo - disse Willi Abraham. - Qual foi a reacção deles?
- Preocupação - disse Tangent. - Ficaram nitidamente preocupados. Foi nessa altura que eu sugeri que um homem de Tulsa e outro de Nova Iorque viessem assistir à cerimónia da inauguração oficial dos poços. Sugeri-lhes que falassem pessoalmente consigo. Concordaram imediatamente. Ross Starrett mostrou-se muito ansioso em que eles viessem. Disse: "Talvez se possa conseguir alguma coisa." Cito as suas palavras exactas.
- Esse parece-me cá dos meus - disse Leiberman.
- Tem quase o dobro da idade dos outros - disse Tangent - e o dobro da coragem. Já é um velho, mas continua a ser um explorador de poços, no seu íntimo.
- Que sugere que façamos agora? - perguntou o Capitãozinho. - Qual seria o curso de acção mais sensato?
- Vejo diversas opções - disse Tangent, acendendo outro cigarro. - Uma: podemos ir procurar noutro lado os fundos necessários para a campanha Togo-Benim. Willi diz que seria fácil obtê-los.
- Seria, realmente - disse Abraham, acenando afirmativamente com a cabeça. - Não para esse propósito, evidentemente, mas podemos dizer que o dinheiro era necessário para escolas ou hospitais ou seja o que for.
- Segunda - prosseguiu Tangent: - quando os homens da Starrett chegarem para a cerimónia, poderá dizer-lhes confiden-cialmente, Sr. Presidente, que o nosso objectivo é, na verdade, a Nigéria. Se decidir fazer isso, posso garantir-lhe confiadamente que os fundos virão sem mais exigências.
- Por que não haviam de vir? - interrompeu Duelos. - A Nigéria... a nação mais rica de África!
- Não - disse Anokye. - Não acho que fosse prudente revelar os nossos planos a outrem nesta altura. Basta que nós saibamos deles.
- Existe uma outra opção - disse Tangent. - Não sei dizer até que ponto é viável, visto que não serei consultado quanto à decisão,
30
mas aqui vai... Quando estava no escritório de Tulsa, fui cumprimentar alguns velhos amigos da produção e desenvolvimento. Falámos de assuntos de trabalho, evidentemente, e fiquei a saber que as operações da Starrett fora do país estão a ficar cada vez mais apertadas por uma falta de capacidade de refinação. Simplificando as coisas, o petróleo extraído das águas de Achanti vai ser enviado em petroleiros para a refinaria da Starrett na Irlanda. Aí, o petróleo é fraccionado em gasolina, nafta, querosene, produtos petroquímicos, etc, e é expedido de novo para os mercados finais. Por outras palavras, se a África quiser comprar à Starrett gasolina ou óleo die-sel, o crude de Achanti tem que percorrer milhares de milhas e depois ser reenviado na forma de produtos acabados. É muito pouco económico. Por isso, a Starrett está a investigar diversos locais onde poderia construir uma refinaria que servisse toda a África, um mercado lucrativo e crescente. Achanti é uma das áreas em consideração como possível lugar para a refinaria. Não tenho forma de influenciar a decisão. Todos os dados pertinentes são enviados a um computador, para que ele descubra o local capaz de produzir maiores lucros. Mas, uma vez que as licenças da Starrett com o Achanti e outras nações africanas produtoras de petróleo só se referem à perfuração e bombeamento de petróleo, não à refinação, ocorre-me que a oferta de condições generosas à Starrett, oferecendo-lhe uma licença para refinaria, poderia produzir um subsídio sem ónus para Achanti, para a campanha Togo-Benim.
- Para quem está a trabalhar, afinal? - exclamou o ministro de Estado Duelos. - Para o Achanti ou para a Starrett?
Tangent voltou-se e fitou-o friamente. O jovem professor tinha-se posto de pé. A sua pequena figura estremecia de raiva. Apontou um dedo trémulo ao homem do petróleo.
- Como é que sabemos... - tentou falar, mas a raiva embargou-lhe a voz e teve de recomeçar. - Como é que sabemos que não se trata de uma conspiração do seu patrão? Uma coisa que ele lhe sugeriu que oferecesse? Para conseguir condições mais favoráveis para a sua refinaria? Que vai poluir o nosso ar e a nossa água... Como sabemos isso? Hem? Hem?
- Eu sou leal ao Achanti e a Obiri Anokye - disse Tangent num tom tenso. Voltou-se para a secretária. - Sr. Presidente, se não acredita nisto, o meu valor para si está terminado. Juro-lhe que ninguém da Starrett levantou a questão da refinaria em relação com o seu pedido de fundos. Foi inteiramente uma ideia minha. Se pensa que estou a fazer jogo duplo, retiro-me imediatamente.
- Peter, Peter - disse Obiri Anokye em tom apaziguador. - Não acredito nisso nem por sombras. Não tenho dúvidas quanto à sua lealdade. Para comigo e para com o meu sonho de uma África
31
unida. Jean! - disse asperamente ao ministro de Estado. - Senta-te e fica calado. Envergonhas-me a mim e à minha casa com essas falsas acusações. Peter disse que a decisão quanto à localização da refinaria ainda não foi tomada e ele não pode influenciar essa decisão. Talvez seja montada na Guiné ou na Libéria ou no Gana ou no Gabão. Não é assim, Peter?
'- Exactamente, Sr. Presidente. O computador ainda não determinou. Mas achei que devia ter conhecimento da possibilidade de Achanti ser escolhido, para que, se for, possa tirar todas as vantagens do caso.
- Uma refinaria em Achanti - disse Willi Abraham, com os olhos a brilhar. - Ajudaria imensamente o desemprego.
':- Só durante a construção - avisou Tangent. - Quando estiver em funcionamento, é quase totalmente automática, exigindo apenas um mínimo de pessoal.
- No entanto - disse Mai Fante com entusiasmo -, seria uma dádiva para a nossa balança comercial. Talvez o porto fosse dragado e alargado.
- Indubitavelmente - disse Tangent. - Mas ainda é muito cedo para falar dessas coisas. De momento, as nossas únicas opções viáveis são pedir o empréstimo à Starrett ou procurá-lo noutro lado ou revelar o plano de conquista da Nigéria e pedir um subsídio em dinheiro.
- Obrigado, Peter - disse o Presidente Anokye. - Agiu bem, prestou um valioso serviço a Achanti e a mim pessoalmente. Vou pensar muito no assunto. Provavelmente, não tomarei uma decisão até à visita dos homens da Starrett durante a cerimónia do petróleo. Se eles trouxerem à conversa a questão da refinaria, voltaremos a reunir-nos e discutiremos novamente o caso. Obrigado a todos. Esta reunião terminou. Peter, agradecia que ficasse um momento mais.
Todos saíram da sala, excitados e a conversar. Duelos ainda estava congestionado de ira. Quando a sala se esvaziou, Anokye fez um gesto com a cabeça, e o Sargento Sene Yeboa saiu também, para tomar o seu posto no exterior. Fechou a porta, ao sair.
- Peter, sente-se e acalme-se - disse o Capitãozinho. - Aqui, ao lado da secretária. Dê-me um dos seus cigarros, por favor. Como é que um americano fuma cigarros ingleses?
- Um gosto adquirido. - Tangent encolheu os ombros, ainda tenso. Inclinou-se para a frente e acendeu o cigarro de Anokye. - Este isqueiro é francês. Os meus sapatos são feitos em Espanha. O fato é italiano.
- Mas o seu coração pertence a África? - disse Anokye, fitando-o de lado.
33
- Sim - Tangent riu-se, já descontraído -, o meu coração pertence a África. Por acaso, até é verdade. Quando vi a África pela primeira vez, há dez anos, apaixonei-me por ela. Ainda não mudei de opinião.
- Que é que vê nela?
- Primeiro foram as coisas físicas. Um espaço incrível. Um céu inacreditável. A própria terra. Depois as pessoas. A sua humanidade. Mais recentemente, foi a forma de viver africana que começou a atrair-me. A alma da África. A cultura falada, visual, instintiva, sentida. Uma agradável alternativa para o meu mundo sombrio, mecânico, despido de sentimentos. A emoção calorosa contra o raciocínio frio. Estou a fazer-me entender?
- Oh, sim - disse Anokye, acenando afirmativamente com a cabeça. - Muito bem. Peter, quero pedir-lhe desculpa pela explosão de Jean-Louis. Não foi a si, pessoalmente, que ele atacou. Aos olhos dele, nenhum branco é capaz de lealdade, de sacrifício ou, na realidade, de qualquer sentimento altruísta.
- Eu compreendo o que ele sente.
- Acha que sim? Duvido. Compreender na sua mente, talvez compreenda, mas não no seu coração. Posso garantir-lhe que eu não compreendo os sentimentos de Jean. Eu nunca odiei os brancos. Nunca. Talvez porque nunca encontrei um branco que não conseguisse enganar.
- Não posso esquecer-me disso - disse Tangent, rindo.
- Sim - disse Anokye, mostrando os dentes -, faça isso. - Recostou-se por um momento na sua cadeira, a pensar. - Pobre Jean. Não se apercebe de como o seu ódio pelos brancos o limita. Mas pode ser-me útil. Em certos locais. Há nações em África onde os líderes africanos pensam como ele, com melhores motivos. Na Rodésia, por exemplo. Na África do Sul. No Zaire, talvez. No Quénia. Será um bom representante meu nesses locais. Diga-me uma coisa, Peter... Uma coisa que está a intrigar-me... Quando defendeu a minha causa diante dos seus patrões em Tulsa, eles não suspeitaram de que a sua lealdade ia agora para mim e já não era para eles?
- Nunca lhes ocorreria uma coisa dessas.
- Oh? Por que não?
- Porque nunca poderiam acreditar que um branco ligasse o seu futuro ao de um negro, trabalhasse para um negro.
- Ahh - fez Anokye. Abanou a cabeça com mais incredulidade que desgosto. - O motivo por que lhe faço esta pergunta é porque quero ter a certeza de que sabe que, no caso de deixar de trabalhar para a Starrett, quero que trabalhe para o Achanti a tempo inteiro. Será um "consultor". Com um salário muito generoso, garanto-lhe. Confesso que, neste momento, é mais valioso para mim como repre-
sentante da Starrett Petroleum em Achanti. Mas o seu valor não termina se alguma vez acabar a sua ligação com a Starrett. Compreende isso?
- Sim, Sr. Presidente, e agradeço-lhe.
- Acha que há uma hipótese de a refinaria vir para Achanti?
- Acho que há muito boas hipóteses. Achanti fica mais ou menos a meio da costa ocidental de África. A Starrett vende derivados do petróleo de Marrocos ao Botswana. Se o tal computador for lógico, escolherá Achanti para local da refinaria.
- Sim, a geografia é tudo, não é verdade? Olhe para isto... Pôs-se de pé e conduziu Tangent até à parede em frente, onde um
mapa tinha sido colado com fita adesiva ao painel liso de madeira. Era o Michelin N.2 153, "Afrique Nord et Ouest". As fronteiras do Togo e do Benim tinham sido avivadas com um lápis vermelho. Anokye apontou para eles.
- Por que julga que escolhi estes dois países como os primeiros alvos para a minha avançada para sul?
Tangent encolheu os ombros.
- Porque são os mais próximos do Achanti? Porque são pequenos e relativamente fracos?
- Só em parte. Se eu tivesse força militar, atacaria directamente a Nigéria ou o Zaire. Onde estão as riquezas. São prémios por que vale a pena arriscar. Mas conquistar esses países exigiria invasões maciças. Talvez em breve tenha soldados suficientes, bem armados e treinados, mas não tenho meios de invasão. Precisaria de navios para transporte de tropas e carros anfíbios para invadir a Nigéria a partir do Achanti, e provavelmente uma grande força aérea para tomar o Zaire. Como conquistas, o Togo e o Benim nada significam, economicamente. São nações pobres. Os seus homens de Tulsa têm toda a razão. Mas, se eu tomar Togo e Benim, com que é que fico? Aqui... está a ver? Uma fronteira com a Nigéria. Há estradas que atravessam essa fronteira. Posso ir por terra, a pé ou em carros. Posso usar tanques. Não preciso de navios ou de aviões. Togo leva ao Benim, que leva à Nigéria. Logo que isso seja nosso, toda a metade austral de África se abre para nós. Talvez, com a riqueza da Nigéria, eu possa saltar logo para o Zaire ou Angola.
- Mas, Sr. Presidente - protestou Tangent -, Angola está em estado de rebelião.
-Peter - disse suavemente Obiri Anokye -, toda a África está em estado de rebelião
34
3
O Mokodi Hilton, situado na praia a ocidente da área portuária, era o edifício mais alto de Achanti. A Starrett Petroleum tinha alugado todo o último andar. Tinha sido convertido em escritórios e aposentos para J. Tom Petty, administrador da operação da Starrett no Zabar, e o seu pessoal. Além disso, havia diversas suites para VIP de visita. Era ali que Peter Tangent ficava durante as suas frequentes visitas a Mokodi.
Tinha regressado aos escritórios da Starrett após a conferência no palácio e tinha mergulhado imediatamente numa série de reuniões com Petty e os engenheiros-chefes das duas plataformas de perfuração offshore que se situavam no oceano a sudoeste de Zabar, como duas aranhas de aço. Tomaram parte nas conversações os técnicos responsáveis pelo pipeline temporário que levava a uma doca flutuante no porto de Mokodi. De momento, serviria de local de abastecimento para os petroleiros da Starrett que já flutuavam, muito acima da linha de água, a algumas milhas ao largo, à espera da cerimónia oficial antes de principiar o carregamento.
Tangent escutou os relatórios dos progressos feitos, na sua maior parte com o sotaque áspero do Oeste do Texas ou com a fala arrastada, mais suave, de Oklahoma. Depois escutou as reclamações cheias de indignação: a pouca fiabilidade dos empreiteiros de Achanti, a preguiça dos negros, o elevado custo do uísque americano, a falta de matériel, a roubalheira dos taxistas, o calor africano, a impossibilidade de se conseguir um bom prato de chili...
- A AOGDN - disse finalmente Tangent, e todos o fitaram com espanto. Explicou: - "A África Ocidental Ganha De Novo." Não lutem contra ela; naveguem ao sabor da maré. Eles são boa gente. A forma de viver deles não é como a nossa, mas avançaremos mais depressa se respeitarmos o seu método de fazer as coisas. Estão muito longe de Tulsa e de Houston. Descontraiam-se. Obterão melhores resultados se os tratarem como iguais. Eles têm muito sentido de humor. Uma boa piada levá-los-á mais longe do que a irritação. Lembrem-se de que estão no país deles. Estão aqui porque eles o permitem. Todos estão a ganhar bom dinheiro. A Starrett espera que cumpram a vossa missão, com um sorriso nos lábios, e depois voltem para casa. Toda a gente percebeu?
Depois de eles saírem, a resmungar, Tangent passou o resto da tarde a mexer na sua papelada. Mandou vir sanduíches de galinha do serviço de quartos, e foi mastigando enquanto travalhava, com a ajuda de duas garrafas de água mineral de Evian. Finalmente, por
volta das 20.30, meteu os documentos numa pasta de diplomata para os levar para Londres, e foi até à sua suite fazer a mala.
De repente viu-se diante de algumas horas vazias, uma conclusão tão abrupta e tão dolorosa que sentiu vontade de chorar. Não sabia porquê. Estava profundamente envolvido nos planos de Obiri Anokye e eles representavam muito para ele. Mas a sua força provinha da paixão dos outros. As horas que passava sozinho pareciam não ter mais significado do que o tiquetaque dum relógio, a lenta passagem do tempo.
Diante da grande janela panorâmica, com os cortinados corridos para os lados, olhou para fora e para baixo, para o terraço iluminado. Os turistas jantavam e ele podia imaginar conversas calorosas, mentiras astutas, gargalhadas. Vida. E, para além deles, ficava o mar negro, franzido pelas cristas brancas das ondas. E, para além delas havia as luzes cintilantes das plataformas do petróleo e a ilha de Zabar. Tudo era alegre. Então, porquê aquela depressão?
Quando o telefone tocou, foi atendê-lo lentamente, ainda a meditar na sua tristeza. Quase a saboreá-la. Um sofrimento agridoce que não conseguia definir.
- Tangent - disse.
- Fala Leiberman. Venha tomar uma bebida connosco. Comigo e com Dele. Vamos ao Zabarian. Têm uma cantora nova. Uma gaja de Acera.
- Obrigado, mas não posso - disse Tangent. - Parto de avião amanhã de manhã, e tenho muito trabalho para fazer.
- Deixe-se de merdas - disse Leiberman. - A vida não é só barris de petróleo e pijamas Sulka. Encontramo-nos no Zabarian daqui a uma hora.
- Está bem - disse Tangent.
Dele era a rapariga de Leiberman. Era da Costa do Marfim, uma mulherzinha cheia de risinhos maliciosos. Estava sentada entre Tangent e o mercenário no bar do Zabarian e roçava os joelhos por ambos. Ela, Leiberman e Felah, o barman, estavam a travar uma conversa hilariante em Boulé, rindo continuamente. Tangent não percebia uma palavra, mas já se sentia melhor.
Algum tempo depois as luzes baixaram, a multidão ficou em silêncio, acendeu-se um projector e apareceu a cantora. Trazia um bandolim. Ouviram-se alguns aplausos delicados.
Parecia muitíssimo alta - Tangent calculou que tivesse um metro e oitenta - e era magra como um pau. Sem seios. Sem traseiro. Envergava um vestido de seda cinzento-prateado, preso aos ombros ossudos por tiras de pedras falsas. O tecido brilhante caía solto, mas delineava os mamilos rijos, as ancas estreitas. Os seus braços nus pareciam enguias.
36
A cor dela era de um negro-acastanhado, escuro, sem meias tintas. Sem brilho. A carapinha negra ajustava-se ao crânio longo como uma touca justa. Um grande nariz achatado, lábios grossos voltados para fora. Maçãs do rosto altas, um queixo que parecia um cotovelo. Olhos grandes, um pouco oblíquos. O rosto de uma máscara africana. Tangent procurou tatuagens tribais, mas não as encontrou. Grandes argolas de ouro pendiam das orelhas perfuradas.
Leiberman inclinou-se para Tangent.
- A rainha de espadas - murmurou em inglês.
Ela tangeu algumas cordas, e depois começou a cantar. Tangent escutou, por um momento, e depois inclinou-se para Leiberman:
- Que é?
- Yoruba. Fala do homem dela que foi para a guerra e ficou tramado. Muito triste. Meu Deus, que voz péssima. Um grande corpo, mas uma voz horrível.
Tinha razão, concluiu Tangent; a voz dela era má: esganiçada, tão mecânica como uma velha vitrola. Mas sabia mover-se. O seu corpo sinuoso ondulava. Com os braços erguidos. A longa garganta era ébano musculado. Retesada. Havia nela qualquer coisa, qualquer coisa... Mas não era a voz.
Ao fim de algum tempo, as pessoas recomeçaram a falar e a pedir bebidas. Ela continuava a cantar e Tangent sentiu pena dela.
- Como é o nome dela? - perguntou a Felah, em francês.
- Amina Dunama, Mr. Tangent.
- Donde é?
- Daqui, d'além, de toda a parte, Mr. Tangent. Esteve no Gana antes de vir para aqui. Acho qu'ela nasceu no Lagos.
- Vamos convidá-la para uma bebida - disse Leiberman.
- Não - disse Tangent. Leiberman disse:
- Felah, apesar de eu te ter dado com um cinto e com um chicote...
- É verdade que já fez isso tudo... - disse Felah.
- Vai buscar aquela magrizelas para aqui - disse Leiberman.
- As suas ordens são um prazer, bwana - disse Felah, solenemente.
- Vai levar no eu - disse Leiberman -, e bebe um copo por minha conta.
- Oh, isso já foi há muito tempo, Mr. Leiberman - disse Felah, e, quando a cantora terminou, sob delicados aplausos, foi buscá-la.
Leiberman e Tangent puseram-se de pé quando ela chegou. Felah fez as apresentações. Dele mudou de lugar para a cantora ficar ao lado de Tangent. Mas, por um momento, ele e Amina Dunama ficaram de pé lado a lado.
37
- Olha para eles - disse Sam Leiberman. - Podia enfiar os dois numa agulha. Que é que bebes, filha? Sangue de cabra quente?
Ela riu-se e pediu um Beefeater Gibson seco, cheio. A falar, a sua voz era melhor do que a cantar: suave, natural, doce. O seu francês era fluente. Com muito calão parisiense.
- Gostei das suas canções, Miss Dunama - disse Tangent delicadamente.
- Obrigada - disse ela.
- Tens uma voz péssima - disse Leiberman. - Foste uma desgraça.
Tangent sentiu-se embaraçado, mas Amina Dunama olhou para Leiberman com interesse.
- Tens razão - disse. - Se não fossem os turistas, morria de fome.
- E a carcaça que os atrai, querida - disse o mercenário, acenando afirmativamente com a cabeça.
Ela olhou para dentro do decote.
- Achas que devo pôr silicone? - perguntou.
- Ná - disse Leiberman. - Aquela porcaria muda de sítio. Ainda acabas armada em Babinga.
Ela projectou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada longa e forte. A sua garganta era grossa, muito maior do que a parte superior do braço. Uma garganta que mais parecia um fémur.
Tangent olhou para um e para outro sem compreender o que os fazia rir.
- Babinga? - perguntou.
- Pigmeus - explicou Leiberman. - Alguns têm esteatopigia. Uns rabos enormes. Nem imaginas.
- Oh - fez Tangent.
Dele descobriu que Amina falava boulé. As duas mulheres começaram a tagarelar. Leiberman desceu do seu banco alto e foi colocar-se ao lado de Tangent. Passou um braço gordo por cima dos ombros de Tangent.
- Estás bêbado? - disse Tangent, afastando o braço.
- É claro que estou - disse Leiberman alegremente. - E encantado da vida. Por acaso, beber faz-me sentir bem. - Depois mudou para inglês. - Estás interessado naquela linda pega? - perguntou.
Amina Dunama voltou-se lentamente e olhou para o mercenário.
- Eu também falo inglês - disse, nessa língua.
- E então? - disse Leiberman. - Eu só lhe fiz uma pergunta inocente.
A cantora voltou o olhar para Tangent.
- Por que não lhe dá uma resposta inocente? - disse.
38
- Sim - disse Tangent -, aquela linda senhora agrada-me. Amina inclinou-se para a frente e introduziu a língua húmida na
orelha esquerda dele.
- Mazel tov!1 - gritou Leiberman. - Que todos os teus problemas sejam insignificantes. Felah!
- Senhor? - exclamou o barman.
- "Mas quando chegar a altura da matança..." - recitou Leiberman.
- "Farás o teu trabalho sobre a água..." - respondeu Felah.
- "E lamberás as botas brilhantes daqueles que têm tomates" - terminaram em uníssono, e Leiberman disse:
- Salvo seja. Outra rodada, rapaz, e que a alegria se deixe de requintes.
- Receio que ele esteja bêbado, Miss Dunama - disse Tangent. Ela fitou-o nos olhos.
- Receia porquê? - perguntou suavemente.
Deixaram Leiberman e a sua rapariga da Costa do Marfim no bar. O barulhento mercenário de rosto avermelhado tinha atraído um grupo admirativo de turistas, que estavam a pagar-lhe bebidas. Sam regalava-os com velhas anedotas coloniais ("Quando chegamos a África, tiramos a mosca que caiu dentro da nossa cerveja. Ao fim de seis meses de África, bebemos a cerveja com mosca e tudo. Ao fim de um ano em África, metemos uma mosca na cerveja, por causa das proteínas!").
Ámina estava no Mokodi Hilton. Caminharam juntos, lentamente, pelo passeio. No céu brilhava uma lua quase cheia. Projectava uma luz prateada sobre o mar que rolava suavemente. Ela tinha colocado uma écharpe de rede sobre os ombros nus, mas a suave brisa nocturna era quente e perfumada.
Tangent sentiu vontade de lhe fazer perguntas sobre a sua vida, as suas canções, a casa, a infância, gostos, antipatias, tudo... Mas estava satisfeito de mais para falar, e ela conservava-se em silêncio.
Chegaram ao hall iluminado do hotel, pararam e olharam um para o outro. Ele não tinha que inclinar-se para a fitar nos olhos.
- Eu gostaria de a convidar para almoço ou para jantar, Miss Dunama - disse -, mas tenho de voltar para Londres amanhã de manhã.
- Oh? - fez ela.
- Mas volto daqui a uma semana - apressou-se ele a dizer. - Talvez menos. Estará aqui?
- Durante duas semanas - disse ela. - Depois vou para Lomé.
- Podemos jantar quando eu voltar?
1 "Parabéns!" (iídiche). (N. da T.
39
- Com certeza.
- Quer que lhe traga alguma coisa de Londres? Não tenho problemas com a alfândega.
- Só a si próprio - disse ela. Tinham estado a falar francês. Ela mudou então para akan: - Vá em boa saúde e regresse em boa saúde.
- A recordação da sua beleza manter-me-á jovem e feliz - respondeu ele, e ambos sorriram. Depois ele disse em francês: - Posso acompanhá-la até à sua porta?
- Por favor - disse ela. - Quarto andar. Junto da porta, ele estendeu-lhe a mão.
- Obrigado por esta noite tão agradável, Miss Dunama.
Ela olhou, com surpresa, para a mão estendida, e depois para os olhos dele.
- Não vai entrar? - disse.
- Bom... an - disse ele. E depois: - Não fui convidado - disse, rindo.
- Gostaria de entrar, Mr. Tangent?
- Bom... sim. Por um momento.
O quarto dela estava completamente desarrumado. Havia roupas caídas por toda a parte. Cosméticos. Perfumes. Pontas de cigarros. Lenços de papel usados. Copos semi-vazios. Uma sanduíche só com uma dentada, com uma marca de bâton vermelho em volta da meia-lua. A cama estava em desordem. Ela não se desculpou.
-Vamos lá ver... - disse. - Acho que tenho licor de banana. Ou podemos ligar para o serviço de quartos.
- Não, não - apressou-se ele a dizer. - Nada, obrigado.
- Tenho charutos.
- Charutos?
- Sim. Eu fumo charutos. Fica chocado?
- É claro que não - disse ele.
- Quer um charuto?
- Está bem - disse ele corajosamente. - Fumo um charuto.
Eram, na realidade, cigarrilhas espanholas, longas, finas, negras. Acenderam-nas solenemente. Não eram más. Ela atirou roupas para o chão e sentaram-se nas cadeiras, fumando com um ar muito sério. Ao fim de algum tempo, ela estendeu a mão e apagou a luz. Mas a varanda dava para o terraço iluminado; podiam ver-se um ao outro, em silhueta. Pontos mais visíveis: os ombros nus dela, a cabeça inclinada dele.
- O que Leiberman disse... - principiou ele. - É realmente uma boa cantora, Miss Dunama.
- Não sou - disse ela, sem rancor. - Ele disse a verdade. Gosto dele. Está vivo.
40
- Então por que é que...
- Por que é que eu continuo? Porque me dá independência.
- Mas que é que vai...?
- Que vai ser de mim? Que vai acontecer-me? Nunca tenho medo disso. Conhece algum africano que planeie o futuro, Mr. Tan-gent?
- Conheço - disse ele.
- Bom, eu não.
- Gostaria de chamar-lhe Amina, se me permite.
- Claro.
- E o meu nome é Peter.
- Eu sei. Mas posso chamar-lhe Mr. Tangent?
- Pode, evidentemente. Mas por que há de ser tão formal?
- Prefiro Mr. Tangent.
- Está bem - disse ele tranquilamente. - Se prefere.
- Em inglês, "tangent" significa que se afasta da linha recta, não é?
- É um dos significados - disse ele sumariamente.
Ela pôs-se de pé, com a cigarrilha entre os dentes, despiu a saia cinzenta-prateada e sentou-se no colo dele. Ele ajeitou-se para suportar o peso dela.
- Tem mulher, Mr. Tangent? - perguntou ela. - Em Londres?
- Não.
- Em África?
- Não.
- Em algum lado?
- Não. Não tenho mulher em parte nenhuma.
- Isso é triste.
- Sim - disse ele. - É triste.
- Gostava que eu fosse a sua mulher?
A sua resposta surpreendeu-o. Não tanto o que disse como a rapidez com que o disse.
- Sim - disse. - Gostava que fosse a minha mulher.
- Está bem, Mr. Tangent - disse ela. Ela atordoava-o.
- Olhe lá... - disse ele.
- Olho para quê? - perguntou ela inocentemente.
- Não compreendo - disse ele.
- Não compreendes o quê?
- Não te compreendo. O que tu disseste. Não compreendo por que queres ser a minha mulher.
- Tu pagas? - perguntou ela.
Ele respirou fundo, e ficou a pensar durante um longo momento.
- Sim - disse.
41
Ela riu-se.
- Não quero que me pagues - disse.
- És perversa - disse ele.
- Sim - disse ela. - Sou. Mas posso salvar-te.
- Salvar-me? - disse ele com indignação. Abanou a cabeça. - Estás a brincar comigo? Salvar-me como? De quê? Que te faz pensar que eu preciso de ser salvo?
- Não precisas?
- É claro que não. De nada.
- Óptimo - disse ela.
Pôs-se de pé e voltou as costas para ele.
- O fecho - disse.
Obedientemente, ele correu o fecho, que sussurrou zombeteira-mente.
- Apagamos os nossos charutos? - perguntou ele nervosamente.
- Porquê? - disse ela.
Ele despiu-se acanhadamente. Não queria olhar para a onda nua sobre o lençol amarrotado. Pendurou o casaco e a camisa nas costas das cadeiras. Sacudiu as calças e dobrou-as sobre a beira de uma mesa.
- As meias - disse ela. - Enroladas e metidas nos sapatos. Ele voltou-se para ela, furioso.
- Tomas-me por um idiota! - exclamou.
- Sim - disse ela. - Um idiota amoroso. Agora vem cá. Ele aproximou-se, cautelosamente.
- Meu Deus! - disse ela. - Tão branco.
- Sim - disse ele.
- Com sardas.
- Algumas - disse ele. - Não posso apanhar sol. A minha pele não aguenta. Eu costumava apanhar sol, mas tinha alergias. Os médicos disseram-me que se eu insistisse em apanhar sol...
- Cala-te - disse ela.
- Está bem - disse ele humildemente. Ao fim de algum tempo, ele disse:
- Não vou conseguir.
- É assim tão importante? - perguntou ela.
- Não - disse ele. - Não é - disse. Com assombro.
42
4
Tangent seguiu a bordo de um avião da Air Afrique para Paris, tencionando mudar para a Air France no percurso até Londres. Serviam comida e bebidas durante todo o voo Mokodi-Paris, mas ele não estava interessado. Preso pelo cinto de segurança ao seu assento, numa cabina semi-vazia, tirou um bloco em branco da mala e ficou a olhar para ele.
Reviu tudo o que tinha dito e feito em Mokodi. A conferência no palácio. Tinha cometido um erro ao afirmar que não tinha poderes para influenciar a decisão da Starrett quanto ao local da refinaria. Nunca se devia confessar publicamente uma fraqueza. No máximo, deveria ter dito "Vou ver o que posso fazer". Não tinha pensado bem no caso. Agora, ao pensar melhor, via que talvez pudesse moldar os acontecimentos. Grunhiu, satisfeito, e tomou algumas notas crípticas.
Depois, como a mão que escrevia lhe lembrasse uma lula branca, algo morto e separado de si próprio, pôs a esferográfica de parte. Fechou os olhos. Pensou em Amina Dunama. Uma onda negra sobre o lençol amarrotado. Também aí tinha confessado a sua fraqueza. Tinha-a revelado. Mas isso era uma coisa inteiramente diferente. Aí não havia um jogo de poderes. Ou, se havia, era de um tipo diferente. E Amina não se tinha importado. Tinha dito que não se importava. Parecia não se ter importado. Era difícil de dizer. Suspirou e passou pelo sono.
A limusina da companhia foi buscá-lo a Heathrow. Dirigiu-se imediatamente à sede da Starrett, num prédio eduardino em May-fair. Só estava de serviço um mínimo de pessoal no turno da noite, na sua maior parte no centro de comunicações. Mas havia café a ferver numa grande máquina e uma lata de biscoitos velhos. Tangent serviu-se de ambos e depois fez uma chamada para Ed Gianelli em Tulsa. A hora era perfeita: cerca de 21.00 em Londres, 15.00 em Oklahoma. A chamada foi imediatamente atendida.
- Ed? Peter Tangent de Londres.
- Ei, Peter! Bom peixe-com-batatas-fritas1!
- Como estás tu, Ed? E a mulher e os banbinos?
- Tudo óptimo. E tu?
-Bom, obrigado. Ed, um pequeno problema... Recordas-te daquela coisa de que falámos quando estive aí... a refinaria?
- Sim.
- Já é público. Um jornalista do Times de Londres andou atrás
1 "Fish-and-chips", uma comida característica de Londres. (N. da T.)
43
de mim. Diz que ouviu dizer, cito, de uma fonte fidedigna, fechar aspas, que vai para a Libéria. Sabes alguma coisa disso?
- Nem pensar. A escolha, neste momento, é entre o Gabão e o Achanti. Não está ainda decidido. Pelo menos foi o que ouvi dizer.
- Óptimo. Vou negar a informação. Melhor ainda, vou só dizer "Sem comentários".
- Fazes muito bem. Quando não há a certeza, o melhor é calar a boca.
- Obrigado, Ed. Beijos para todos.
Tangent desligou, sorrindo. Gabão ou Achanti. Interessante. Ligou para a Schwarzkopf s Adventure Tours, a agência de viagens que servia de cobertura a Tony Malcolm. Atenderam ao primeiro toque: uma voz fanhosa começou a dizer: "Isto é uma gravação. Não há ninguém no escritório de momento. Mas se..."
Tangent desligou e ligou para o número da casa de Malcolm, que não vinha na lista. Não obteve resposta. Depois ligou para o Brindleys. Mr. Malcolm já tinha chegado: "Só um momento, por favor. Vamos tentar localizá-lo." Finalmente ligaram para o bar, e Malcolm atendeu o telefone.
- Quem fala? - disse.
- Tangent. Viva, Tony.
- Peter! Já voltaste. Ou estás a ligar da África negra?
- Voltei. Que estás a beber?
- Uma garrafa de Ácido Tânico Château, colheita de ontem.
- Se eu levar uma garrafa de Latour cinquenta e três, vais ter comigo à biblioteca daqui a uma hora?
- Latour cinquenta e três? Até vou ter contigo ao telhado.
O Brindleys era um clube privado para cavalheiros, numa casa reconstruída em Park Lane. Era pequeno e caro, embora as contas da maior parte dos membros fossem pagas pelas suas companhias, embaixadas, organizações comerciais, etc, como despesas de representação legítimas. Era verdade que os negócios mundiais eram frequentemente discutidos e por vezes fechados no Brindleys. Mas também proporcionava uma excelente cozinha e dizia-se que tinha a terceira maior adega de Londres. Os preços não eram razoáveis.
Havia quatro homens ao balcão revestido de cobre quando Peter Tangent entrou: Tony Malcolm ao fundo; os irmãos Stavros ao centro, beberricando pequenos copos de ouzo; e, perto da entrada, Julien Ricard, carrancudo, curvado sobre um pequeno balão de brande. Tangent esperava conseguir passar pelo francês sem ser visto, mas a mão de Ricard estendeu-se e agarrou o braço de Tangent.
- Pague a sua bebida - disse com voz pastosa.
- Era o que faltava - disse Tangent, esforçando-se por sorrir
44
simpaticamente. - Tenho de tratar de negócios com TonyMal-colm.
Geralmente, no Brindleys, a palavra "negócios" era desculpa suficiente. Para tudo. Mas Ricard não se deixou levar; não largou o barco de Tangent. O americano pensou, como já pensara diversas vezes, que o seu captor era um homem muito pouco atraente: moreno, mal-humorado, com um grande sinal de nascença que lhe percorria a face direita até ao pescoço.
- O seu negócio é plásticos, não é, Tangent? - disse Ricard, apesar de saber que não.
- De certo modo - disse Tangent. - Na realidade, petróleo. O seu são caracóis, não são, Ricard?
- Importação e Exportação - disse Ricard, furioso.
- Oh, sim - disse Tangent. - Caracóis e preservativos. Soltou o braço, com um esticão, e dirigiu-se a Tony Malcolm.
Acenou com a cabeça aos irmãos Stavros, ao passar por eles. Só Deus sabia qual era o negócio deles. Tudo, provavelmente.
- Tony - disse. - Vamos para a biblioteca. Não suporto aquele homem!
- É difícil de aguentar - disse Tony compreensivamente. - Penso que seja o sinal de nascença que o torna tão desagradável.
- Não é desculpa - disse Tangent, recuperando o bom humor. - Eu tenho a picha mais curta do mundo, mas sou a pessoa mais simpática que pode haver.
Malcolm riu-se e seguiu à sua frente.
Havia apenas um outro membro na biblioteca do Brindleys: um velho gaga enterrado num sofá de cabedal diante da lareira. Estava a olhar para as chamas e a rir-se. Tangent e Tony Malcolm sentaram-se num canto afastado. Observaram Harold, que extraía reverentemente a rolha ao Latour.
- Devemos deixá-lo respirar, meus senhores - disse o velho criado. Deitou um pouco num copo e ficou na expectativa, enquanto Tangent o aspirava e bebia um golo.
- Magnífico - disse Tangent.
- Tem um belo aroma - disse Harold, enchendo os copos de ambos até meio. - Por favor, dêem-lhe um pouco de tempo, meus senhores. Estamos no último caixote deste lote.
Malcolm saboreou o vinho.
- Veludo - disse. - Luar. Rembrandt. Mozart.
- Que tal Pato Donald? - perguntou Tangent.
- Filisteu. Quando voltaste?
- Há poucas horas.
- Viste os jornais?
- Ainda não.
45
- A Starrett subiu mais três pontos - disse Malcolm. -Achas que devo aguentar?
- Com certeza-disse Tangent. - Eu aguento. Ainda vão subir mais numa semana ou duas. Estamos a pensar em abrir uma refinaria em África.
- Sim? Onde?
- Ah! - disse Tangent. - Essa é a razão do vinho.
- Nunca pensei que fosse o meu belo corpinho branco - disse Malcolm. - O que há?
Não valia a pena tentar enganá-lo; a Virginia tinha bons homens no Togo e no Benim, e Malcolm viria a perceber o que estava a passar-se. Parecia um vendedor de calçado, anafado e afável. Mas o seu cérebro, como Tangent certa vez observara, era "Bórgia puro".
Falou a Malcolm dos planos do Presidente Obiri Anokye para tomar o Togo e Benim. Não falou da Nigéria. Descreveu a refinaria projectada da Starrett em África e a forma por que ela poderia afectar a falta de fundos de Anokye.
- Penso que eles lhe darão o dinheiro que ele quer - disse Tangent - se ele concordar em conceder uma licença em boas condições para a refinaria.
- Como sabes que eles vão construí-la em Achanti?
- Confirmei com um amigo de Tulsa. Há cerca de uma hora. A escolha já foi reduzida a Achanti ou Gabão. É aí que tu entras.
- Ai é? - disse Malcolm arrastadamente. Ergueu o copo à luz fraca da sala, espreitou para dentro dele, fê-lo rodar lentamente. - Estás mesmo entusiasmado com o Capitãozinho, não estás?
- Oh, sim - confessou Tangent. - Encheu-me as medidas. Metaforicamente falando, claro. Escuta, Tony, aquele homem tem um grande sonho. Uma visão. Quer unir toda a África. Todos aqueles sessenta e tal países pobres, sofredores, subdesenvolvidos, numa grande nação, desde o Mediterrâneo ao Cabo, do Atlântico até ao Índico. É qualquer coisa, não te parece?
- Achas que ele consegue fazer isso?
- Acho que ele consegue fazer isso - disse Tangent, acenando afirmativamente com a cabeça. - Ficaste impressionado, não ficaste, quando o conheceste na tomada de poder?
- Fiquei - confessou Malcolm -, mas eu impressiono-me facilmente.
- Quando as galinhas tiverem dentes - zombou Tangent. - Tu és o homem mais realista que eu conheço. E achas que ele tem hipóteses... não achas?
- Há muitos "ses", Peter - disse Malcolm com um suspiro. - Se ele arranjar o dinheiro. Se ele conseguir o apoio de um amigo
46
poderoso. Se ele ganhar as guerras. Se não o fizerem ir pelos ares. É uma coisa longe de ser segura.
- Eu não disse que era. Mas existe a possibilidade, e o jogo vale a aposta. Não vou tentar impressionar-te com um recital de todas as coisas boas que o Capitãozinho pode fazer pelos povos africanos. Alimentação decente, habitação, saúde, educação. Tudo isso. Olha só para as coisas dum ponto de vista de folha de balanço. Os minerais e o petróleo descobertos ou ainda não encontrados. Milhões de acres de terra subaproveitada ou mal utilizada. Grandes florestas. Rios e quedas-d'água para barragens hidroeléctricas. Que manancial de matérias-primas e mão-de-obra barata! Que mercado potencial! Neste momento, a África está onde os Estados Unidos estavam em 1850. Começa a abrir-se...
- Não tenho a certeza de que a Virginia se queira envolver nisso - disse Malcolm lentamente.
- Vão estar envolvidos, mais tarde ou mais cedo, quer queiram quer não. Eu vejo os EUA como o tal amigo poderoso que tu referiste e que vai levar a África para o século xxi. Quando chegar a altura, eu começo a fazer soar os tantas em Washington. Tu sabes que a Starrett tem lá contactos muito valiosos. Penso que, se o Capitãozinho sair vencedor, poderemos conseguir que o Estado preste mais atenção a África e apoie Anokye política e economicamente. Podemos vir a ser uma potência mundial.
- "Podemos"?
- Refiro-me a África e ao Presidente Anokye, e aos homens que o apoiarem. Incluindo eu próprio. O problema imediato é dinheiro. Para armas, subornos, etc. Por isso a refinaria da Starrett é importante.
- E que queres que a Virginia faça?
-A escolha é entre Achanti e Gabão... certo? Bom, o Gabão é tão francês como os Champs-Elysées. Quero dizer, eles são donos do país. Oh, eu sei que o Gabão é uma república independente, mas são os franceses que dirigem tudo. Há consultores deles por toda a parte, e garanto-te que nada se constrói no Gabão, nenhum investimento importante se faz, sem a aprovação do Quai d'Orsay.
- Oh-oh - disse Malcolm. - Começo a ver a tua mãozinha à italiana.
- Tony, tu sabes como isso se faz. Basta que a Virginia deixe escapar aos...
- Está bem, Peter, está bem. Não precisas de explicar.
- Vale a pena tentar, não achas?
- Vou pensar nisso.
- Faz isso - disse Tangent. - E não te esqueças de que o vinho era de 53.
47
- Filho da mãe! - disse Malcolm, rindo. Tangent queixou-se de que estava cansado.
- Só quatro horas de sono nas últimas trinta e seis - e deixou Malcolm sozinho na biblioteca. Ainda restava um terço de vinho na preciosa garrafa. Quando o velho se arrastou para fora da biblioteca, ainda a rir-se, Malcolm foi sentar-se no seu lugar, no sofá aquecido diante da lareira. Beberricou o vinho lentamente, a olhar para as chamas.
Anthony Malcolm era um homem anafado e rosado, que cultivava um grande sentido de humor. Sincero, aberto, um tipo jovial que tinha sempre prazer em oferecer uma bebida, dizer uma piada, oferecer um empréstimo. Poucos dos seus camaradas do Brindleys acreditariam que já tinha morto um homem com um chapéu de chuva. Um chapéu de chuva especial.
Finalmente, suspirando, pôs-se de pé e levou o seu último copo para o bar. Os irmãos Stavros tinham partido, mas Julien Ricard continuava sentado a um dos extremos do balcão, curvado sobre o seu brande. Ergueu o olhar quando Malcolm entrou no bar, vindo do corredor da biblioteca. Malcolm olhou para ele e, como mais ninguém estava presente e o barman se encontrava ocupado a fazer contas, fez um leve trejeito com a cabeça. Bebeu o resto do vinho, deixou o copo sobre o balcão e dirigiu-se às portas de balanço da casa de banho dos homens.
Enquanto esperava, Malcolm espreitou por baixo das portas dos três compartimentos. Depois, para ter a certeza, abriu as três portas e espreitou para dentro. Era uma casa de banho à antiga, com paredes de azulejo brancas e acessórios de esmalte estalado: urinóis como altares, lavatórios como fontes baptismais. Malcolm colocou-se junto de um dos urinóis, correu o fecho da braguilha e acendeu um cigarro.
Momentos depois, Julien Ricard entrou vagarosamente. Olhou em volta, dirigiu-se a um dos enormes lavatórios e começou a lavar as mãos.
- Pobre Tangent - disse. - Chateio-o bestialmente.
- Continua assim - disse Malcolm. -Vais muito bem. Tens alguma coisa para mim?
- Nada, desde a minha última carta - disse Ricard. - Recebeste-a? O novo actuário?
- Sim, recebi-a. Já conhecíamos o actuário, mas é sempre reconfortante ter uma confirmação. Mais nada?
- Não. Nada.
- Desvalorização?
- Não, nada a esse respeito, por enquanto. Está pendente.
48
- Em França está sempre tudo pendente - disse Malcolm tranquilamente.
- É verdade, meu amigo, é verdade - disse Ricard, rindo. - Apressamo-nos lentamente. - Enxugou as mãos na toalha de rolo. Olhou para o espelho e começou a pentear cuidadosamente o seu longo cabelo negro, com a palma da mão a seguir o pente. Malcolm subiu o fecho da braguilha, dirigiu-se ao lavatório e começou a lavar as mãos.
- Eu tenho uma coisa para ti - disse.
- Oh? - fez Ricard.
-Jí Starrett Petroleum está a pensar construir uma refinaria no Gabão.
- Ah! - fez Ricard. E depois: - Tangent disse-te isso?
- Confidencialmente. Ao que parece, já foram feitas as abordagens preliminares em Libreville. Em segredo.
- Interessante - disse Ricard.
- Calculei que achasses - disse Malcolm. - A tua gente também deve achar interessante. Vai ajudar-te a marcar pontos de escuteiro.
- Pontos de escuteiro
- "Uma expressão americana. Significa crédito por uma realização.
- Pontos de escuteiro - repetiu Ricard. - Incrível.
5
Em Paris, na Avenida Montaigne, situa-se L'Escargot d'Or, um restaurante referido tanto nos livros de História ("Ostenta na sua fachada as cicatrizes das balas de mosquete disparadas durante a Revolução Francesa") como pelo Guide Michelin (duas estrelas).
L'Escargot d'Or serve o público na sala do nível da rua. A sala de jantar mais pequena no segundo andar só está disponível para grupos privados, conferências, discretas reuniões de políticos publicamente antagonizados, industriais, líderes sindicalistas, banqueiros, dignitários da igreja, etc. A sala de jantar do segundo andar é igualmente o local onde se realiza o banquete mensal de Le Club des Gourmets, uma prestigiosa associação de conhecedores de boa cozinha e "vinhos.
Duas noites após o encontro de Tony Malcolm e Julien Ricard nos urinóis do Brindleys, teve lugar no Escargot d'Or um jantar não muito bem sucedido do Club des Gourmets. O caviar Beluga não
49
estava devidamente gelado, o soufflé de homard à Vaméricaine estava decididamente elástico, encontraram-se fragmentos de cascas no Mont Blanc aux marrons. Quanto aos vinhos... ouviram-se sussurros de "Merde!". O infeliz bispo que tinha proporcionado o jantar - os vinte e quatro membros do Club des Gourmets tinham planeado e pago o banquete mensal, um de cada vez - desfez-se em desculpas quando os membros do clube começaram a partir. Eles tentaram ser educados para com o monsenhor, mas era indubitável que tão cedo não esqueceriam aquela afronta aos seus paladares.
Para trás, no salão mal iluminado, ficaram Julien Ricard, o Homem do Palácio e o Homem da Bolsa. Estes dois últimos eram homens corpulentos, que usavam pesados fatos escuros com coletes enfeitados com correntes de ouro. O Homem da Bolsa usava a fita da Legião de Honra. O Homem do Palácio tinha sido um herói da Resistência. Tinha uma pala preta sobre um olho e um aparelho de aço em vez da mão. O cabelo branco e ralo não conseguia ocultar uma chapa de metal implantada no crânio.
Os três demoravam-se a beber minúsculos cálices de kirschwas-ser e chávenas de café espresso. Ficaram sentados placidamente até a mesa ter sido levantada e os criados se terem ido embora. Então Ricard pôs-se de pé e começou a falar. Andava de um lado para o outro do salão pouco iluminado, parando de vez em quando para olhar para as cabeças de veados que decoravam as paredes, ou para tocar na sua marca de nascença como outros homens cofiariam um bigode em crescimento.
- A informação inicial veio de um amigo de Londres - disse aos outros. - Ele tem um contacto valioso dentro da própria Starrett. Estou inclinado a acreditar na informação por esses motivos. Mas, para confirmar, mandei o Anatole Garde ao Gabão. Fala Fang e alguns dialectos bantus. Até agora, não conseguiu nem confirmar nem negar. As pessoas do governo com quem falou juram que não foram abordadas, nem secreta nem abertamente, por representantes da Starrett. O que, evidentemente, não quer dizer nada.
- Que é que recomenda, Julien? - disse, com a sua voz grossa, o Homem do Palácio, com a mão e o gancho confortavelmente pousados sobre o ventre.
- Penso que devemos tratar isto como um assunto de certa importância-disse Ricard. - Depois do que aconteceu em Achanti, não podemos tolerar mais intrusões dos Americanos na nossa esfera de acção.
- Que sucedeu em Achanti? - perguntou brandamente o Homem da Bolsa. -Apenas uma mudança de governo. Nem sequer foi um acontecimento que abalasse o mundo. Foi uma mudança que, na realidade, não nos causou prejuízos.
50
Ricard estava indignado.
- Pensa que o Presidente Anokye vai cumprir o voto de Prempeh de expropriar os poços de petróleo?
- Pode cumprir ou não - disse o Homem do Palácio, encolhendo os ombros. - Entretanto, Achanti está a tornar-se próspero, o que nos traz benefícios. Os subsídios deixarão de ser necessários.
•- Mas estamos a perder cacifo - exclamou Ricard, irritado.
- "Cacifo." - O Homem da Bolsa sorriu. - Para um homem que detesta os Americanos tanto como afirma, meu caro Julien, adopta muito rapidamente os americanismos. Mas vamos ao que interessa... voltemos ao Gabão. Presumindo o pior, que a Starrett está a tentar manobrar secretamente, que é que propõe?
- Em primeiro lugar, que façamos ver com a maior força possível a Libreville que não nos agradaria mesmo nada qualquer acção unilateral da parte deles quanto a negociar essa refinaria da Starrett. Em segundo lugar, que façamos ver com a maior força possível aos Americanos que não nos agradaria mesmo nada qualquer tentativa da parte de uma das suas grotescas corporações de interferir sem consultas num círculo que é reconhecidamente nosso.
O Homem da Bolsa suspirou.
- Julien, isso é uma quantidade formidável de "a maior força possível".
- Além disso - acrescentou o Homem do Palácio -, uma quantidade formidável de afirmações de que "não nos agradaria mesmo nada". Todavia...
Os dois homens entreolharam-se.
- Não vejo inconveniente... - principiou cautelosamente o Homem da Bolsa.
- Mesmo que a informação não tenha substância... - sugeriu o Homem do Palácio.
- Certo. Os americanos desejam muito que nada atrase a conferência de Genebra.
- De momento, desejam ser amáveis e cooperativos em todos os aspectos.
- Que melhor altura para expressarmos o nosso desejo, delicadamente, é claro, de que a Starrett Petroleum não tome acções precipitadas no nosso círculo legítimo?
- ... Isso poderá, possivelmente, afectar os nossos interesses e comprometer o actual espírito de compreensão e amizade que existe entre a França e os Estados Unidos.
Ricard passava freneticamente a mão pela marca de nascença.
- Então? - perguntou. - Então?
- Sim - disse judiciosamente o Homem do Palácio. - Penso que podem ser apresentadas certas reivindicações discretas.
51
- Sim - disse pensativamente o Homem da Bolsa. - Temos de tratar todo o assunto de uma forma despreocupada, com naturalidade. Mas sem deixar dúvidas da nossa preocupação e das nossas intenções.
Ricard suspirou.
- Obrigado, meus senhores - disse, perguntando a si mesmo se teria marcado pontos de escuteiro.
6
Peter Tangent registou-se no Mokodi Hilton por volta das 16.00 e dirigiu-se imediatamente aos escritórios da Starrett no último andar. Aí recebeu uma mensagem de que Jonathan Wilson tinha telefonado, às 13.30 desse dia, pedindo que Tangent lhe telefonasse. Wilson era o adido cultural da Embaixada dos EUA, tendo ido substituir o pouco eficiente Bob Curtin. Era o homem da Virginia em Achanti.
Tangent ligou imediatamente.
- Wilson? Fala Peter Tangent.
- Viva. A viagem foi boa?
- Razoável. Um atraso de uma hora em Conacri, sem motivo aparente.
- Vamos tomar um copo?
Tangent fez uma pausa, de um segundo. Depois disse:
- Claro. Onde e quando?
- Çleópatra. No exterior. Daqui a uma hora?
- Óptimo. Até já.
O Çleópatra, do outro lado do palácio, no Boulevard Voltaire, era um restaurante de preços razoáveis. "Poder-se-á apreciar", diziam os manuais de turismo, "a sua decoração egípcia." Com ou sem esfinges de gesso, a esplanada do café proporcionava um agradabilíssimo panorama de Mokodi. Belos homens e lindas mulheres de uma dúzia de tribos, envergando trajos que iam desde as fúnebres roupas europeias, passando pelos jeans e T-shirts, até aos berrantes trajos nativos: vivosgbariyes, flutuantes saparas, enfeitados guriles. Nas cabeças viam-se adornos que iam das boinas aos fezes, dos turbantes às labarikas. As cores das peles iam do branco barriga-de-peixe até ao negro túnel. Dentes brilhantes. Olhos penetrantes. Pessoas que se moviam com um ritmo interior. Odores que assaltavam o olfacto, o cativavam, o enjoavam, o enamoravam. Vozes calorosas, risos calorosos.
52
- Wilson - disse Tangent, sorrindo, estendendo-lhe a mão, sentando-se numa cadeira à mesa ao ar livre do adido. - Está a admirar a parada?
- Nunca me farto dela - disse Wilson, com respeito.
- Percebo perfeitamente o que sente - disse Tangent. - Que está a beber?
- Gin sling. ( Nota 1 ) 1
- Óptimo - aprovou Tangent. - Não cura todos os males, mas torna-os mais suportáveis. É o que dizem. - Fez sinal ao criado que esperava perto, apontou para o copo de Wilson e ergueu dois dedos. Depois olhou para o adido cultural. - Da última vez que o vi, tinha a pele a cair.
- Sim - disse Wilson, rindo. - Uma desgraça. Agora estou a ficar bronzeado. Finalmente.
- Está mesmo. Tem gostado de Achanti?
- Muito - disse Wilson, parando a tempo de acrescentar "senhor".
Tangent compreendeu. Aquele jovem magro e ansioso não estava bem certo de qual era a posição de Tangent. Seria apenas mais um homem de negócios ianque? Ou um agente da Virginia disfarçado? Ou um executivo americano que oferecia uma estreita colaboração? Um homem de negócios? Um aventureiro? Um correio? Um espião? Que seria ele exactamente? E, não o sabendo, Wilson não podia saber o que deveria dizer - ou mesmo perguntar.
- Recebi uma mensagem - disse finalmente. - De Malcolm. Para si.
- Oh? - fez Tangent. - Quando?
- Ao meio-dia. Hoje.
Ficaram em silêncio enquanto lhes serviam as bebidas. Ergueram os copos, num brinde silencioso, e começaram a beber em pequenos golos.
, - Ainda bem que sugeriu isto - disse Tangent jovialmente. - É muito agradável.
- Malcolm pediu-me que lhe dissesse que o vinho está a resultar - disse Wilson. - Isto faz sentido?
- "O vinho está a resultar" - repetiu Tangent. - Sim. Obrigado.
- Boas notícias? Espero que sim.
Tangent agitou a mão para um lado e para o outro, sem responder.
- Foi só o que ele mandou - disse Wilson. - Para si. - Olhou
Nota 1- Uma mistura de gim com água, açúcar e limão. (N. da T.)
53
de novo para a rua onde circulava tanta gente no meio do Boulevard como no passeio pavimentado. - Que país! - disse. - Maravilhoso!
- É, não é? - disse Tangent. - Ainda bem que gosta dele. Está a habituar-se, não está?
- Acho que sim - disse Wilson. - Mas lentamente.
-Ah, sim - disse Tangent. -Aqui o ritmo é diferente. Onde esteve antes?
- Copenhaga.
- Meu Deus! - disse Tangent, rindo. - Totalmente diferente. Há alguma coisa em que eu possa ajudá-lo?
- Não - disse Wilson, perturbado. Por não saber até onde poderia ir. - O Presidente Anokye. Conhece-o, não conhece?
- Oh, sim. Tenho uma reunião com ele amanhã de manhã.
- Já estive com ele uma ou duas vezes - disse Wilson. - Coisas oficiais. Recepções na Embaixada, etc... - Inclinou-se sobre a mesa, com um ar sério, ingénuo. - Pode dizer-me alguma coisa acerca dele?
- Muito ambicioso - disse imediatamente Tangent. - Muito talentoso. Um orador incrível. Consegue arrebatar-nos. É corajoso, como demonstrou durante o golpe. O povo adora-o. O Capitãozinho. Tem um amplo suporte das bases. Está a aprender a governar à medida que vai avançando.
- E está a aprender português.
- Está?
- Não sei onde é que isso se ajusta - disse Wilson, inseguro. - Compreende o motivo?
- Não, não compreendo.
- Marxista?
- Anokye? Nem pensar. A Starrett não estaria aqui se ele o fosse. Não, pode-se trabalhar com ele. Um homem pragmático.
- Sabe alguma coisa da sua vida pessoal?
- Muito pouco. Fuma, de vez em quando. Bebe um copo, de vez em quando. Nunca em excesso, que eu saiba.
- Mulheres?
- Disso não sei - disse Tangent.
- Ouvi dizer que ele dorme com uma branca - disse Wilson, corando levemente por baixo do seu tom bronzeado. - Ela dirigia um bordel local. O Bezerro de Ouro. Mas agora deixou-se disso. Está um preto a dirigir a casa.
- Já lá esteve?
- O quê? Onde?
- No Bezerro de Ouro.
- Oh! - fez Wilson, corando ainda mais. -Ah... não. Ainda não.
- Que lhe sucedeu? - perguntou Tangent. - À tal mulher.
54
- Está a viver numa grande casa, das caras, no bairro de Evogu. Consta que vai casar-se com um soldado, um sargento. O comandante da guarda pessoal do presidente.
- Está bem informado - disse Tangent lentamente. - Vai mais um?
- Está bem. Mais um. Sabe alguma coisa a este respeito?
- Não - disse Tangent. - Nada.
- Consta que Anokye largou a mulher branca (Yvonne Mayer, é o nome dela) para se poder casar com a filha do primeiro-ministro do Benim.
- Interessante - disse Tangent.
- Fascinante - disse Wilson com entusiasmo. - Melhor do que a vida. Ópera italiana.
Tangent riu-se e pagou as bebidas.
- Que mais coisas soube? - perguntou ao ávido jovem.
- Bom... - disse Jonathan Wilson, inclinando-se novamente para a frente, entusiasmado com a sua própria presciência. - Há provas de que Anokye está a organizar uma espécie de polícia secreta.
- Oh?
- Não é propriamente uma polícia secreta. São espiões domésticos. Para saber das coisas. Ninguém foi preso ou torturado. Nada desse género. Por enquanto. Apenas alguns homens. Sem uniformes. Andam por aí, sabe como é, a fazer perguntas. De momento, é tudo muito vago.
Tangent acenou afirmativamente com a cabeça. - Está a comunicar tudo isso à Virginia, não está? - perguntou com naturalidade.
- Evidentemente.
- Óptimo - disse Tangent, reflectindo, com pesar, que Tony Malcolm sabia mais do que se passava em Achanti do que ele.
Passou o princípio da tarde com J. Tom Petty, a rever os planos para a cerimónia do petróleo. Haveria um almoço ao meio-dia - a Starrett tinha reservado todo o Zabarian - a que assistiriam o Presidente Anokye e outros convidados importantes. Depois da cerimónia e discursos da tarde, os convidados seriam recebidos num salão aberto, no palácio, culminando numa noite de gala com música, dança e fogo de artifício.
- Vai ser uma farra das boas - disse Petty com entusiasmo. - Os meus rapazes estão ansiosos.
- Tenta mantê-los sob controlo - disse Tangent, um pouco preocupado.
55
- Que diabo, Pete, sabes como são os homens do petróleo. Se se portarem mal, corremos com eles para as plataformas a pontapé. Vou ter barcos a postos. Aquele sargento... como é que ele se chama? Aquele negro do palácio?
- Yeboa?
- Pois, Yeboa. Prometeu que os seus guardas iam ser complacentes. Ninguém fica preso a menos que comece a destruir coisas.
- Óptimo - disse Tangent. - É importante que corra tudo bem. E as bebidas?
- Não vão ser em excesso - garantiu-lhe Petty. E, se forem, o gerente do hotel disse que contássemos com ele. Meu Deus, isto vai ser um estoiro!
Era um homem grande com o rosto avermelhado pelo bourbon. Músculos que começavam a ficar flácidos. Roupas perpetuamente amarrotadas e manchadas de suor. Nas plataformas, ou a bordo do Starrett Explorer ancorado ao largo, era um tigre, e muito necessário. Na suite dos executivos, era grande de mais, barulhento de mais, tudo de mais, incluindo os charutos que mastigava.
- Olha lá, Peter - disse ele, franzindo a testa com um ar significativo -, aqueles tipos importantes que vêm de Tulsa e Nova Iorque...
- Sim?
- Achas que eles querem companhia? Tangent deteve-se um pouco.
- Não tinha pensado nisso. Acho que sim.
- Achas que gostariam delas cor de caramelo? Tangent reflectiu durante um longo momento.
- Acho que sim - disse finalmente, com certo desagrado. - A África exótica. Algo para contar aos amigos no regresso. Consegues arranjá-las?
- É claro que consigo.
- Não muito escuras - apressou-se a dizer Tangent. - Mais para o amarelo. Limpas, pelo amor de Deus. A última coisa que a gente quer é que... - deixou a frase por acabar.
- Topei - disse Petty. - Vou ter umas coisinhas fofas à espera deles quando voltarem do palácio. Dessa forma não serão vistos em público com as gajas.
- Acho bem - disse Tangent debilmente. - Trata disso. Mas seria, pensou tristemente, pior do que aquilo que ele tinha
feito quando o Homem de Tulsa e o Homem de Nova Iorque tinham visitado Londres? Recordava-se de ouvir a sua mãe dizer: "Toda a gente tem de engolir uma dose de porcaria antes de morrer." Por vezes, tinha a impressão de que a sua dose não tinha fundo.
Finalmente, voltou para a sua suite, despiu o casaco, desapertou
56
LAWRENCE SANDERS
FACTOR TANGENT
57
a gravata, atirou fora os sapatos. Preparou umgin sling no pequeno bar e levou-o para a cama. Ligou para o quarto dela.
- Amina? Peter Tangent.
- Mr. Tangent! Já voltou! Que bom. ;';
- Trabalhas esta noite? •: '¦
- Trabalho. 't
- Tens tempo para comer qualquer coisa? Antes ou depois?
- Depois seria óptimo - disse ela. - Mas trabalho até tarde. Só acabo por volta da uma hora. É tarde de mais para ti?
- Oh, não. Que tal se nos encontrássemos no Zabarian?
- Comemos lá?
- Se quiseres - disse ele. - Ou podemos vir para aqui. O terraço serve até às quatro. Ou qualquer outro sítio que tu prefiras.
- Então, Mr. Tangent - disse ela, troçando -, quer dizer que não se importa de ser visto comigo em público?
- Não - disse ele alegremente. - Não me importo. Passou pelo sono, acordou, tomou um duche, vestiu-se cuidadosamente e, por volta da meia-noite, seguia pelo passeio de tábuas
em direcção ao Zabarian. Poderia ter chegado mais cedo e assistido ao número dela. Sentiu-se culpado por isso - mas não muito; na verdade, ela não tinha grande voz.
Amina estava a terminar a sua última canção quando ele entrou. Sentou-se no bar, cumprimentou Felah, pediu mais um gin sling. Pegou numa mão-cheia de amêndoas salgadas e voltou-se para a ver.
Naquela noite ela envergava um vestido sem alças verde garrafa. Muitos folhos. De mais para o seu corpo magro. No entanto, aqueles braços maravilhosos estavam nus. E, quando ela se voltou lentamente, ao compasso das cordas, revelou as costas nuas. Abaixo da cintura. Umas costas rijas e sinuosas. Polidas. Musculadas. ¦
- Muito mulher - sussurrou Felah.
- Sim - disse Peter Tangent.
Ela terminou no meio de aplausos apáticos. Viu Tangent junto do bar, foi ao encontro dele e entregou o bandolim a Felah.
- Esta noite entusiasmei-os - disse, pegando na bebida de Tangent e bebendo um grande golo. - Como vais, Mr. Tangent?
- Bem, obrigado. E tu, Amina?
- Brutalmente bem - disse ela.
- Bestialmente bem - corrigiu ele.
- Brutalmente bem está errado?
- Não se usa.
- Hi, Mr. Tangent - disse ela -, o senhor sabe tudo. Vais dar-me de comer?
- Vou - disse ele. - Onde?
- Diz tu - disse ela. - Estou cansada de mais para pensar. Posso tomar uma bebida aqui?
- Claro.
- O que tu estás a beber. Gostei disso.
Tangent fez o pedido e perguntou a Felah se Sam Leiberman tinha aparecido ultimamente. Felah disse que não, que Mr. Leiberman quase não aparecera. Provavelmente, andava ocupado com a mudança. Mudança para onde?, quis Tangent saber. Felah disse que Mr. Leiberman achava que as suas instalações por cima do Les Trois Chats não eram apropriadas para um consultor do governo nacional do Achanti, de modo que tinha alugado um apartamento maior por cima de Le Café du Place, um botequim ligeiramente menos ordinário situado por detrás da Embaixada francesa, perto do palácio.
- Ele foi viver por cima de outro botequim? - espantou-se Tangent.
- Foi o que ele disse - respondeu Felah, a rir. - Disse: "Se tenho uma nova vida para viver, quero vivê-la por cima de um bar."
- Isso é mesmo do Leiberman - disse Tangent, sorrindo.
- Podemos fazer uma festa? - perguntou Amina Dunama. Tinha a mão sobre o braço de Tangent. - Com ele e a Dele? Gostei deles.
- Claro - disse ele. - Amanhã procuro-o. Estás cá para a cerimónia do petróleo?
- Não - disse ela. - Vou para Lomé.
- Que pena - disse ele. - Mas voltas?
- Talvez - respondeu ela. Fitou-o nos olhos. - Ou talvez tu vás a Lomé, Mr. Tangent.
- Talvez - disse ele, sentindo um arrepio.
Sentia-se muito bem com ela, muito descontraído. Alguns turistas estavam a olhar para eles, a murmurar. Mas não houve disputas. Conversaram sobre... Mais tarde, não conseguiu recordar-se. Só se recordava de que ela queria que ele metesse dois cigarros na boca, acendesse os dois com o mesmo fósforo e depois lhe desse um. Como fazia a estrela de um filme americano que ela tinha visto. Ele não conseguia fazer isso, disse-lhe, simplesmente não conseguia; era estúpido de mais. Mas satisfê-la acendendo um cigarro entre os seus lábios e colocando-o depois entre os dela.
Regressaram lentamente ao Mokodi Hilton, e ele ficou a saber um pouco mais acerca dela. Era uma hausa nigeriana, mas provinha de uma família rural animista, não era muçulmana. Falava hausa, naturalmente, e também yoruba, um pouco de akan e ewe, e um pouco menos de fon, dende, mina, edo e outros. Falava igualmente francês e inglês.
58
- E amor, Mr. Tangent - disse ela.-Também falo a linguagem do amor.
- Falas mesmo? - disse ele.
Jantaram no terraço de mosaicos do Mokodi Hilton e viram um lagarto geco a escapar-se por entre as mesas vazias. Um velho e lento criado, cujos pés descalços obviamente o faziam sofrer, escutou a encomenda deles em silêncio e depois trouxe-lhes o que havia àquela hora tardia: um tacho de frango picante, uma salada de verduras com azeite, uma garrafa de espumante Asti. Havia mais algumas pessoas a jantar, mas o terraço estava pouco cheio, tão silencioso que eles podiam ouvir a rebentação do mar na areia por baixo do terraço.
- Por que é que não há luar? - perguntou ele, irritado.
No entanto, a brisa estava morna e perfumada, e o oceano ondulava suavemente, as folhas das palmeiras agitavam-se um pouco. A temperatura devia ser de uns 27°C, pensou ele, e havia um cheiro a chuva no ar. As luzes das plataformas de petróleo e da ilha de Zabar cintilavam, ao longe. Um barco de pesca passou pela praia. Que mais quero eu?, perguntou ele a si próprio. Que mais'?
Ela atacou a comida. Tangent observou-a, fascinado. Os seus dentes brancos e fortes arrancavam a carne e, a certa altura, chegaram a quebrar os ossos. Depois sugou o tutano.
- Ainda bem que estás sem fome - disse. Ela riu-se, mas não parou. Ele não podia compreender para onde ia toda aquela comida; ela era tão magra como ele, ou mais ainda. Ela acabou de comer, ensopando o resto do molho da galinha com fufu frio. Depois suspirou, levou o guardanapo aos lábios, bebeu um golo de vinho e arrotou.
- Leva-me - disse ela. - Sou toda tua.
- Não se comeres sempre dessa forma - disse ele. - Não tenho dinheiro que chegue para te sustentar.
- Estar contigo deixa-me esfomeada - disse ela.
Ele ia perguntar-lhe o que queria dizer com aquilo, mas achou melhor não o fazer.
Ficou a saber mais algumas coisas. Ela vinha de uma família grande: três irmãs e quatro irmãos. Muitos, muitos tios e primos. Todos a viver na Nigéria. Na parte ocidental. Fizera o equivalente nigeriano à instrução primária e depois tinha ido trabalhar para a cozinha de um bar-botequim-restaurante da aldeia.
- E depois foi sempre em frente e para cima? - perguntou ele.
- Principalmente para fora - disse ela, rindo. - Queria ver o mundo. O mundo inteiro.
- E conseguiste?
- Vi a África ocidental. Já estiveste em Paris, Mr. Tangent?
- Sim. Muitas vezes.
- Fala-me dela.
Ele falou, dizendo-lhe as coisas que achava que ela queria ouvir. Os olhos da mulher cintilavam, ao ouvi-lo; os seus lábios entreabriram-se.
- Oh - fez ela. - Oh. Um dia:..
- Sim - disse ele.
Tomaram um licor, uma atrocidade de mentol, e depois levantaram-se para partir. Ela conversou um pouco com o velho criado.
- Em que língua falaram? - perguntou Tangent, enquanto se dirigiam para o hotel.
- Twi - disse ela. - Doem-lhe os pés. Está cansado.
- Foi o que eu pensei - disse ele.
- Também estou cansada - disse ela. - Doem-me os pés.
- Então eu despeço-me, Amina - disse ele, pegando-lhe na mão.
Ela fitou-o.
- Mr. Tangent - disse ela -, eu só disse que estava cansada. Não disse que te fosses embora.
- Oh! - fez ele, sentindo-se idiota. - Pensei...
- Deixa os pensamentos para mim - disse ela. - Tu cantas. Ele achou a frase divertidíssima, e ainda estava a rir quando
entraram no quarto e ela fechou a porta à chave. A mulher atirou os sapatos para um canto e caminhou descalça no meio da confusão reinante.
- Vou desligar o ar condicionado e abrir a janela da varanda - disse. - Óki-dóki?1
- Óki-dóki - disse ele.
- Alguma coisa errada? - disse ela.
- Nada.
- A tua voz soou estranha.
- Percebes tudo muito depressa, Amina - disse ele. - É que... an... bem, "óki-dóki" já... já não se usa.
- Eu gosto - disse ela.
- Eu também - apressou-se ele a dizer. - Não tem nada de errado.
- Óki-dóki - disse ela. - Diz lá.
- Óki-dóki - repetiu ele, obedientemente.
Ela despiu-se na semiobscuridade, puxando um fecho de correr algures no meio daqueles folhos ridículos.
- Um vestido piroso - disse ela. - "Piroso" é óki-dóki?
- Aplicado a esse vestido, "piroso" é decididamente óki-dóki.
1 Okey-dokey: uma forma de dizer "Ok.". (N. da T.)
60
Ela estava nua agora, absolutamente à vontade. Uma sombra brilhante,' movendo-se graciosamente. Saiu para a pequena varanda e ele seguiu-a. Nervoso. Hesitante. Ela deixou-se cair numa cadeira com o assento em palhinha em plástico.
- Vais ficar com o desenho de uma bolacha no rabo - disse ele, rindo.
A mulher não respondeu, limitou-se a fechar os olhos. Ele ficou de pé, por um momento, e depois ajoelhou-se diante dela, totalmente vestido, e começou a massajar suavemente os seus longos pés ossudos.
- Gosto disso, Mr. Tangent - murmurou ela.
- Tens de chamar-me "Mr. Tangent"?
- Tenho.
A varanda dava para o terraço, e era impossível ver para cima e para os lados. Flutuavam no espaço. Sozinhos na noite. Ao fim de algum tempo, ele pôs os pés dela de parte e sentou-se ao lado dela. Encostou o rosto ao veludo quente do joelho e da coxa dela. Os dedos da mulher penetraram distraidamente nos seus cabelos.
- Pensei em ti - disse ele. - Amina.
- Pensaste mesmo?
- Estás quase a dormir?
- Não.
- Pensei em ti.
- A sério?
- Levanta os joelhos.
- Está bem.
Ela levantou os joelhos, afastou-os lentamente e fixou os calcanhares no rebordo da cadeira. Os seus braços longos e magros apoiaram-se nas costas da cadeira e os antebraços ficaram molemente suspensos. Lembrava um grande morcego negro a pairar. Olhou para ele gravemente.
- Oh, Mr. Tangent - disse.
- Cala-te - disse ele.
- Sim, senhor.
Ela tinha um sabor a fumo, escuro e salgado. Um sabor que ele nunca tinha experimentado. Nem a vinho nem a comida, nem nada que se parecesse com isso. Quase metálico, pensou ele. Quase a cortiça. Quase o sabor do barro. Quase uma série de coisas. Mas nenhuma delas. Diferente.
A coluna dela retesou-se de prazer, a sua cabeça descaiu para trás, revelando a larga garganta. Ficou a olhar, sonhadora, para os reflexos ondulados do mar no tecto da varanda. O seu corpo começou a mover-se, a retorcer-se, a ondular. A língua dele continuava a mover-se, e ele sentiu o fluxo dela, o suco que escorria dela, num
61
ritmo fácil que terminou num paroxismo profundo, muito profundo, estendendo-se para diante, para cima, para fora, para o vasto mundo inteiro. Ergueu o olhar e ela baixou o dela, vendo os mamilos endurecidos e os seios lisos tensos e brilhantes.
- Mr. Tangent - suspirou. - Mr. Tangent.
- Sim - disse ele. - Oh, sim.
A secretária da recepção ficava no hall de entrada, flanqueada por dois robustos guardas do palácio. A recepcionista era uma anafada senhora achanti, de meia idade, que usava um elegante vestido preto com gola e punhos brancos. O seu cabelo estava penteado em tranças com as riscas abertas com grande precisão.
- Bom dia, Mr. Tangent - disse ela. O seu sorriso revelou-lhe três dentes de ouro e um intervalo, à espera.
- Bom dia, Mrs. Odunsi - disse ele. Em Akan, perguntou: - Tem boa saúde?
- Tenho boa saúde - respondeu ela, e perguntou: - Tem desgostos?
- Não tenho desgostos - disse ele, completando o ritual, e passando a falar em francês: - E como tem passado o seu pai?
- Vai melhor, graças a Alá.
- Fico satisfeito por saber isso. Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Talvez algum remédio de Londres?
- Obrigada, Mr. Tangent, mas ele tem tudo aquilo de que precisa. Agora é só uma questão de esperar.
- É a parte mais difícil - disse ele. - E, por falar em esperar, posso ver o Presidente? Tenho uma audiência marcada.
- Só um momento, por favor. - Ergueu o auscultador do telefone da secretária e falou em voz baixa; depois pousou o auscultador. - Pode subir, Mr. Tangent. Segundo andar, sala das conferências.
O Sargento Sene Yeboa abriu a porta quando ele bateu, sorriu-lhe e apertou-lhe formalmente a mão. Fez sinal a Tangent para que se sentasse numa cadeira perto da porta. O Presidente Anokye e Sam Leiberman estavam de pé, por detrás da grande secretária de mogno. Ergueram as mãos, numa saudação.
- Daqui a um momento - disse Anokye.
- Não há pressa - respondeu Tangent.
Yeboa voltou para junto da secretária. Os três homens inclinavam-se atentamente sobre algo que pareceu a Tangent uma pilha de mapas. Conversavam em voz baixa. A certa altura, pareceu-lhe que discutiam. Finalmente, o Capitãozinho começou a falar num tom mais alto, traçando com o indicador uma rota no mapa de cima. Os outros dois escutavam-no atentamente. Quando o presidente
62
parou de falar e os olhou, um de cada vez, de Yeboa para Leiberman, ambos acenaram afirmativamente. Mais do que anuência, pensou Tangent; davam a sua aprovação.
Anokye endireitou-se e começou a falar num tom de voz normal; Tangent podia ouvi-lo.
- A coordenação é muito importante - disse Anokye. Depois dobrou os mapas e guardou-os na gaveta de cima da sua secretária. Apertou a mão de Sam Leiberman. O mercenário pegou num chapéu mole de linho, dirigiu-se para a porta e parou junto da cadeira de Tangent.
- Bailes de golf! - disse. - Estás com o ar do gato que comeu o canário.
- Mais ou menos isso - disse Tangent. - Ficas por aí, Sam?
- Porquê?
- Pensei que pudéssemos juntar-nos e fazer uma farra.
-Antes da cerimónia, não - disse Leiberman. - Talvez depois.
- Tarde de mais - disse Tangent. Depois, em voz mais baixa: - Nessa altura já ela se foi embora.
Leiberman ficou a olhar para ele.
- A cantora? - disse finalmente.
Tangent acenou afirmativamente com a cabeça, sentindo-se ridiculamente orgulhoso.
Leiberman riu-se e deu-lhe uma palmada no ombro, com a mão gorda.
- Meu sacana pagão e manhoso - disse. -Agora já sabes o que quer dizer "o fardo do homem branco".
Continuou a rir, abanando a cabeça. Tangent pôs-se de pé e, quando Anokye lhe fez sinal, foi sentar-se no sofá em frente da secretária. O Presidente murmurou qualquer coisa a Yeboa, e o sargento foi-se embora - para tomar o seu posto, pensou Tangent, do lado de fora da porta. Anokye sentou-se no seu cadeirão de pernas altas e respirou fundo.
- Talvez eu fosse mais feliz quando era apenas capitão do Exército - disse.
- Não acredito, Sr. Presidente - disse Tangent, sorrindo.
- Não, é claro que não é verdade - disse Anokye. - É que, muito simplesmente, as horas do dia não me chegam para fazer tudo o que preciso de fazer.
- Talvez precise de mais gente - sugeriu Tangent. - Um pessoal maior.
- Isso, sem dúvida. Mas gente em quem eu possa confiar.
- Compreendo a dificuldade - disse Tangent. - Mas deve ser possível resolvê-la. Além disso, talvez a sua administração precise de ser reorganizada. Não estou a falar do governo; refiro-me apenas
63
às suas próprias actividades. Talvez necessitem de reestruturação, melhor organização.
Anokye mostrou-se interessado.
- Não tinha pensado nisso. Como é que hei-de fazer isso?
- Chame profissionais - disse imediatamente Tangent. - Há bons consultores de gestão em Londres e Nova Iorque. Têm experiência em trabalhos desse género. Podem vir, estudar a situação, recomendar modificações que achem que podem produzir uma maior eficiência.
- Gosto disso - disse o Presidente Anokye, acenando afirmativamente com a cabeça. - Sim, muito mesmo. Eles levam dinheiro, claro.
- Claro. Mas não creio que a operação aqui seja muito extensa, por enquanto, e lhes exija muito tempo e honorários muito elevados. Talvez seja esta a altura própria para mandar fazer isso. Assim poderá expandir as suas actividades de uma maneira ordenada. Quer que ponha alguém em contacto consigo?
- Agradeço que o faça. Qual é a palavra que me falta? Modernizar? Sim, vou modernizar a minha administração.
- Segundo conceitos de gestão já experimentados - disse Tangent.
- Sim. Excelente ideia. Agradeço-lhe. E agora... de que queria falar comigo?
- Espero que venham a ser boas notícias, Sr. Presidente - disse Tangent. - Referem-se à refinaria que a Starrett tenciona construir em África.
Contou ao Capitãozinho como tinha sabido que as alternativas da Starrett se tinham estreitado a Achanti e ao Gabão. Disse-lhe que tinha falado com um amigo acerca do assunto, um amigo em posição de alertar os franceses para as fictícias negociações secretas entre a Starrett e os dirigentes do Gabão.
- Pode imaginar a reacção dos franceses a essa informação - disse Tangent. - Achei que eles iriam tomar medidas imediatas para dar a conhecer o seu desagrado tanto a Libreville como à Starrett, através das vias diplomáticas. Recebi uma mensagem de Londres, ontem, dizendo que é efectivamente isso que os franceses estão a fazer. Não posso garantir, Sr. Presidente, mas acho provável que, quando os executivos da Starrett cá vierem para a cerimónia do petróleo, queiram já sondá-lo acerca da possibilidade de se construir a refinaria em Achanti. Se isso acontecer, o senhor ficará numa posição mais forte, por saber que eles já foram afastados do Gabão. Nessas circunstâncias, as suas hipóteses de conseguir um subsídio sem condições para a operação Togo-Benim aumentam consideravelmente.
64
65
Obiri Anokye escutou esta dissertação sem alterar a sua expressão. Mas, quando Tangent terminou, pôs-se de pé, sorridente. Tangent também se pôs de pé. Os dois homens apertaram calorosamente as mãos e sentaram-se de novo.
- Reconheço e declaro a minha dívida para consigo - disse Anokye. - Mas quem o ajudou?
- Um certo amigo - disse Tangent.
O Capitãozinho pensou, por um momento.
- O cavalheiro de Londres que assistiu à minha tomada de posse? - perguntou.
- Não pensei que se lembrasse dele - disse Tangent.
- Lembro-me - disse Anokye. - Pensei, na altura, que ele não fosse o que parecia ser, mas algo mais. Gostaria de o recompensar.
- Ele não aceita dinheiro - disse Tangent.
- O quê, então? - Bom... ele colecciona arte africana.
- Ah - fez o presidente. - Vou escolher uma coisa boa. Importa-se de a entregar?
- De forma alguma.
- Diga-lhe que é apenas uma pequena prova de amizade. Continuo a considerar-me em dívida. Ele pode cobrá-la.
- Ele vai compreender.
- E quero felicitá-lo a si pelo seu elegante plano.
- Obrigado, Sr. Presidente. E, por falar de felicitações... também posso apresentar-lhe as minhas?
Anokye ficou a olhar para ele.
- Porquê? - perguntou.
- Talvez eu esteja a ser prematuro, Sr. Presidente. Mas ouvi boatos acerca do seu iminente casamento com a filha do primeiro-ministro do Benim.
Surgiu uma expressão diferente nos olhos de Obiri Anokye. Mais profunda. Mais sombria. Depois o seu olhar aclarou-se e o presidente exibiu um sorriso frio. Ergueu-se lentamente e dirigiu-se à longa janela que dava para a praça do palácio. Levou as mãos às ancas e olhou para fora. Estava de costas para Tangent.
- Felicitações? - disse. - Bom... possivelmente. O Primeiro-Ministro Da Silva vem à cerimónia do petróleo. Depois se verá.
- Que todos os seus desejos sejam satisfeitos - disse Tangent em akan.
- E que os seus mínimos sonhos se tornem realidades - respondeu Anokye solenemente, na mesma língua. Depois voltou ao inglês. - É muito difícil manter um segredo pessoal em Achanti.
- É verdade, Sr. Presidente - disse Tangent.
- Por exemplo - disse Anokye, num jeito quase preguiçoso -, aquela cantora... Amina Dunama? Aprecia a companhia dela, Peter?
Tangent engoliu em seco.
- Sim, senhor - disse.
- Nigeriana?
- Sim, Sr. Presidente. Hausa. Mas não muçulmana. Anokye acenou afirmativamente com a cabeça, ainda a olhar
para fora da janela.
- Estou a olhar para o local exacto donde saímos a correr pela praça - disse, em tom sonhador. - A gritar e a disparar as nossas armas. Recordo-me de que fiquei surpreendido quando olhei em volta e dei consigo mesmo atrás de mim. Tinha-o mandado ficar na central telefónica.
- Peço desculpa por ter desobedecido às suas ordens, Sr. Presidente.
- Estou-lhe grato por o ter feito - disse Anokye. Riu-se suavemente. - Nunca teria conquistado o terraço se não me tivesse oferecido o seu apoio. Por que nos acompanhou na carga? A guerra não era sua.
- Já fiz a mim mesmo essa pergunta diversas vezes - disse Tangent. - Francamente, não sei.
- Para provar alguma coisa?
- Em parte isso, talvez. Em parte por causa do ruído e da excitação e da loucura do momento.
-Talvez quisesse saber que espécie de homem é - disse Anokye pensativamente.
- Talvez também tenha sido isso, Sr. Presidente.
Anokye voltou-se lentamente, regressou à secretária e voltou a sentar-se. Inclinou-se para a frente, com os cotovelos sobre a secretária, o queixo pesado apoiado na palma da mão. Olhou para Tangent, cravando os olhos profundamente nos seus, como se os atravessasse.
Ficou em silêncio, e o americano maravilhou-se com o facto de aquele jovem (Anokye tinha vinte e sete anos; Tangent era dez anos mais velho) possuir uma tal gravidade, um peso tão profundo. A sua seriedade, de certo modo, investia a vida de significado. Ela não se destinava a ser gasta em vinho e flores, devia ser gravemente medida com o conhecimento das consequências dos actos de cada um.
- A coragem física é uma coisa curiosa - ponderou Obiri Anokye. -Aqueles cuja coragem física nunca foi posta à prova pensam que não é muito importante. Já li as palavras de homens, homens sensatos e dignos, que disseram que a coragem moral é igual ou superior à coragem física. Isso não é verdade, Peter. A coragem física é a raiz de tudo o mais. E, por certo, a raiz do meu sucesso. Tudo
66
o que eu fiz, e que farei, resulta da coragem física. É por isso que eu tenho de conduzir os meus homens. Sempre. Em pessoa. No campo de batalha. Não posso governar atrás de uma secretária. Nessa altura, o meu poder acabaria por desaparecer, e eles voltar-se-iam para um líder mais valente. E todos os meus sonhos políticos e económicos para África ficariam desfeitos. Os homens respeitam a coragem física, e eu tenho de exibi-la.
Fez uma pausa, mas Tangent ficou em silêncio.
- Eu acho que é um homem corajoso, Peter - disse Anokye subitamente.
- Obrigado, Sr. Presidente. Vindo de si, é um elogio, sem dúvida.
- Mas coragem e temeridade são coisas diferentes - disse suavemente o Capitãozinho. O seu olhar que alcançava a distância encurtou-se até os seus olhos ficarem cravados nos de Tangent. - Não deve ser temerário.
- Não tenciono sê-lo - disse Tangent com veemência.
- Óptimo - disse o presidente de Achanti, ainda com a mesma voz suave e sedosa. - Folgo em ouvir isso.
A reunião estava terminada, e Tangent saiu com a indefinível sensação de ter sido avisado. Mas não saberia dizer de quê.
7
A fronteira entre o Togo e o Benim permanecia fechada. Apesar de possuir um passaporte diplomático que o identificava como consultor oficial da República de Achanti, Sam Leiberman achou preferível entrar no Benim através da Nigéria. Por isso partiu de Mokodi para Lagos a bordo do bimotor Piper Aztec, orgulho da Força Aérea Nacional de Achanti. Os seus dois outros aviões eram Brous-sards antigos. Capazes de voar, mas pouco mais.
Em Lagos, alugou um Citroen 2-CV. Não era um transporte muito elegante, mas era resistente. Achou que o carro poeirento se misturaria perfeitamente com a frota de táxis de Cotonou. Atravessou a floresta tropical nigeriana por uma estrada recuperada e cruzou a fronteira do Benim sem incidentes. Não levava armas, nem qualquer outra coisa que pudesse pôr em perigo a sua missão. Desceu a estrada costeira até Porto-Novo. Atravessou a capital adormecida sem parar e chegou a Cotonou antes do meio-dia. A hora da sesta tinha principiado; a maior cidade do Benim parecia tão sonolenta como a capital.
67
Leiberman tinha um vago plano em mente, não pormenorizado mas suficiente para ser posto em acção. Dirigiu-se para Akpapa, do outro lado da lagoa de Nokoue. Registou-se num hotel miserável onde se tinha outrora instalado numa época em que não tinha outra alternativa. Alugou um quarto de pessoa só e não ficou surpreendido por ter de o partilhar com moscas, mosquitos, baratas, percevejos, lagartos, aranhas e uma boa série de outros espécimes da fauna africana. A casa de banho suja ficava ao fundo do corredor, e era preciso levar o papel. Leiberman tinha vindo preparado. O hotel tinha uma vantagem: os outros residentes eram ladrões, chulos, prostitutas e bêbados. Ninguém fazia perguntas.
Vestiu uma camisa de mangas curtas com um desenho em batik. Deixou-a solta por cima das calças granadas. Pendurou ao pescoço uma máquina fotográfica japonesa barata. Colocou uns grande óculos de sol verdes com armações de plástico branco. Substituiu os sapatos por sandálias de tiras por cima de meias de algodão brancas.
Levou consigo todos os seus pertences e documentos de identificação. No quarto deixou apenas uma mala de cartão barata, algumas peças de roupa e artigos de toilette. A porta tinha fechadura, mas ele sabia que um empurrão decidido a abriria.
Voltou de carro a Cotonou e dirigiu-se ao porto. Depois de algumas voltas em vão, achou aquilo que procurava. Estacionou o carro a poucos quarteirões de distância e seguiu a pé. A hora da sesta estava a terminar; os cães começavam a levantar-se, a bocejar, do meio das ruas.
Outrora tinha sido um aprovisionador de navios. O letreiro original, sumido, lascado, ainda pendia sobre a porta, suspenso por correntes de ferro enferrujadas. Dizia Armand Dubois et Cie. Mas por toda a costa da África Ocidental, de Dakar a Douala, a casa era conhecida como a loja de Harry Chime.
O nome do proprietário não estava indicado em parte alguma, mas as montras cobertas de poeira e de bichos mortos ostentavam muitos cartazes escritos à mão que diziam: diga o que quer, que nós temos; compramos velharias e vendemos antiguidades; se não encontrar AQUI, NÃO ENCONTRA EM PARTE ALGUMA.
Esta última frase não era uma gabarolice; o armazém de Harry Chime estava a transbordar de roupas e ferragens, utensílios de cozinha e de campismo, acessórios para barcos e artigos para canalizações, cordames e arames, ferramentas e talheres... e tudo o mais. Tudo empilhado ao acaso, numa confusão que só o proprietário entendia. Nada era novo; tudo tinha passado pelas mãos de um, de três, de uma dúzia de donos, e estava agora rasgado, podre, partido, amolgado, enferrujado ou dobrado. Não importava. Algumas daquelas coisas não podiam ser encontradas em parte alguma na África
68
69
Ocidental. Harry comprava a toda a gente e vendia a toda a gente. E fazia um bom negócio.
Quando Sam Leiberman entrou, a porta bateu num sino, cujo som ecoou pelo barracão apinhado. Mas o dono, sentado atrás de um balcão cheio de cicatrizes, nem ergueu o olhar. Estava ocupado a arrancar pedras azuis de uma velha pulseira de cobre, com a ponta de uma sovela.
- Viva, merda de inglês fedorento - gritou Leiberman. Sobressaltado, o homem ergueu o olhar, a sovela caiu ruidosamente sobre o balcão e ele fitou o mercenário.
- Viva, sacana de judeu piolhoso - disse finalmente. - Onde estão os meus cem francos?
-Aqui mesmo - disse Leiberman. Avançou até ao balcão. Tirou um rolo de notas do bolso de trás das calças e contou 100 francos da África Central. Harry Chime pegou nas notas mas não conseguia afastar os seus olhos, muito pequenos, do rolo. Ficou pesaroso quando o viu desaparecer no bolso de Leiberman.
- Próspero? - perguntou.
- Claro. Estou a ser sustentado por uma condessa rica do Mon-tenegro.
- Isso é que era bom - disse Harry Chime. - Para que é essa roupa de palhaço?
- Queres dizer que Tailor & Cutter não aprovariam? Eu sou de Terre Haute, pelo amor de Deus. Não se nota? Fecha a loja e vamos para as traseiras falar de negócios.
- Claro - disse Chime. Fechou a porta que dava para a rua e colocou um letreiro: fechado por falecimento de pessoa de família. Depois conduziu o outro até às traseiras, abrindo caminho por entre pilhas de mercadorias velhas.
Era tão alto como Leiberman, mas cerca de cinquenta quilos mais pesado. Usava umasjeans de caqui sujos, com os botões da braguilha quase a saltar. Os fundilhos tinham sido remendados com um pedaço de ganga azul em forma de cunha. Tinha os pés descalços enfiados em botas rotas de combate do Exército Norte-Americano, do tempo da segunda guerra mundial. As correias de cima estavam desabotoadas e agitavam-se quando Chime andava, deixando ver os tornozelos feridos. Também usava uma camisola azul escura suada, que revelava um ventre proeminente e umas mamas volumosas.
Levou Leiberman para uma pequena sala nas traseiras, que usava para dormir e cozinhar. Percebia-se pelo cheiro. Leiberman sentou-se à mesa de madeira periclitante e esperou que Harry Chime procurasse dois boiões de geleia e um pequeno garrafão de vinho envolvido em palha. Este tinha por fora a etiqueta de um bom volpolicella italiano, mas continha vinho de palma do Benim.
Leiberman não ficou surpreendido. Chime sentou-se pesadamente, encheu os dois boiões e ambos beberam.
- Perdeste um pouco de peso, não perdeste? - disse Leiberman.
- Talvez alguns quilos - respondeu Chime.
Leiberman estendeu a mão por cima da mesa e espetou um dedo cruel na barriga de Chime.
- Quando foi a última vez que viste a tua picha, Harry? - perguntou.
- 21 de Junho de 1958-respondeu Chime.-Vieste cá para me apalpar ou para falar de negócios?
Falavam uma gíria muito própria, uma mistura de diversas línguas. "Donnez-moi the fucking botella ofvino, mein imbecile." ( Nota 1 ). Conversaram acerca de antigos mercenários. Quem tinha morrido e como. Quem estava atacado pela bilharziose. Quem tinha desaparecido. Quem estava a lutar onde e por quanto. A maior parte dos seus camaradas da desastrosa campanha do Biafra estavam agora a matar-se uns aos outros em Angola.
- Tens alguma coisa além deste mijo? - perguntou Leiberman, esvaziando o seu boião de geleia.
- Talvez tenha rum - disse Chime com relutância.
- Ho-ho-ho - disse Leiberman. - Trá-lo para aqui, Harry, se não levo os meus negócios ao Monoprix.
- Até podes levá-los ao Harrod's, que eu estou-me nas tintas - disse Chime, mas conseguiu desencantar uma garrafa meio-cheia de rum escuro Meyers que estava por baixo do lava-louças atravancado, e trouxe-a para a mesa. Leiberman encheu o seu boião. Cheime deitou algum no que restava do seu vinho de palma.
- Que é que se está a passar por cá? - quis saber Leiberman.
- Aagh, arranjaram aquela coisa com o Togo - disse Chime, desgostoso. - Desde que aquele escarumba foi esfaqueado em Lomé. A fronteira está fechada. Como raio conseguiste entrar?
- Andei às voltinhas - disse Leiberman. - E que mais?
- Aagh, o raio dos Vermelhos estão por toda a parte.
- Ai, sim? - disse Leiberman. - Julguei que os franceses tivessem a primeira hipoteca.
- Ainda têm - disse Chime -, mas há russos e chinas aos montes.
- Interessante, mas não muito - disse Leiberman. - Bom, já chega de conversa fiada. Harry, preciso de material. De umas coisinhas.
- Tais como?
- Um pouco de tudo.
( Nota 1 )-"Passa-me o raio da garrafa de vinho, meu imbecil."(N. da T.)
70
- Escolhe o que quiseres - disse Chime, que o rum começava a afectar. - De borla. Para ti, Sam, é tudo de borla.
- Obrigado, Harry.
Leiberman encolheu o ventre, abriu as calças e correu o fecho de um cinto de dinheiro de seda. Extraiu cuidadosamente um pequeno quadrado de papel da espessura de uma casca de cebola. Estendeu-o a Chime, sobre a mesa.
- Aqui está a minha lista.
Chime rebuscou na gaveta da mesa e acabou por encontrar uns óculos com armações de arame curvas. Pô-los e observou a lista de Leiberman. Depois ergueu o olhar, pestanejando por trás das grossas lentes.
- Isto vai custar-te dinheiro - disse, e, quando Leiberman se riu, Chime disse: - Que diabo. - Releu a lista. - Para que é a térmite?
- Vou fazer saltar o banco - disse Leiberman.
- Uma treta - disse Chime. - O governo tomou conta dele. Está cheio de soldados descalços.
- Adeus, banco - disse Leiberman. - Num mês, sugam-no todo. Tens esse material?
- A maior parte dele.
- A térmite também?
- Bom... não é nova.
- Quantos anos?
- Trinta, talvez quarenta anos.
- Valha-nos Deus, Harry!
- E o melhor que posso arranjar.
- Como é? - perguntou Leiberman.
- Granadas incendiárias. Ananases da Wehrmacht. Parte do material abandonado quando Montgomery e Rommel andavam um atrás do outro pelo deserto.
- Não tem fugas, pois não? - perguntou Leiberman.
- Talvez esteja um pouco corroído. Muito pouco. Ofereço-te um par de luvas.
- Que amável - disse Leiberman. - Obrigadinho, mas não estou interessado.
Ficaram a olhar um para o outro. Chime voltou a olhar para a lista, ergueu o olhar e disse:
- Rastilho?
- Era nisso que eu estava a pensar-disse Leiberman. - Tens?
- Milhas dele - garantiu Chime.
- Rápido ou lento? Chine encolheu os ombros.
- Sabe-se lá? Corta um bocado e mede o tempo.
FACTOR TANCENT
71
- Ok. - disse Leiberman. - Agora uma coisa que não está na lista... Preciso de uma arma.
- Aagh, isso é difícil - disse Harry Chime. - Não estamos em Nova Iorque, sabes? Queres alugá-la ou comprá-la?
Leiberman pensou por um momento.
- Compro-a, acho eu-disse finalmente. - Que é que arranjas?
- Uma Beretta trinta e quatro.
- Má colheita. Que tal cinquenta e um?
- Não tenho.
- Essa Beretta trinta e quatro... funciona?
- Sam, eu ia vender-te material defeituoso?
- É claro que ias - disse Leiberman com boa disposição.
- Bom... talvez se encrave um pouco.
- Lindo.
- Mas basta que batas na coronha com a parte de trás da mão que ela desencrava.
- E rebenta-me com os tomates - disse Leiberman. - Está bem. E dois carregadores cheios.
- Quando?
Leiberman disse-lhe que iria buscar tudo nessa noite às 21.00. Nessa altura inspeccionaria o que estava a comprar e combinariam um preço.
- Ao contado - disse Harry Chime. - Nada de cheques, nada de crédito.
Sam Leiberman meteu-se no carro e seguiu para norte pela estrada beneficiada que acompanhava o Benim como uma espinha dorsal. Estava alcatroada até Bohicon, cerca de 150 quilómetros a norte de Cotonou. Mas, antes de Bohicon, e do desvio para Abomey, ficava a aldeia de Ighobo. E o Musée Ethnographique. Talvez não tão grande como o de Porto-Novo. Mas o museu de Ighobo possuía uma colecção mais antiga e mais valiosa. E, como dissera o Capitãozinho, era uma aldeia pequena e provavelmente mal guardada.
O museu estava situado numa casa feita de tijolos de lama caiados, apenas com um andar, que se dizia ter sido um centro de recolha de escravos, antes de serem levados a pé para sul, para serem vendidos aos traficantes europeus em Porto-Novo. Ainda havia correntes e grilhetas penduradas dos postes mal aparados que suportavam o telhado de colmo. Nos tempos modernos havia sido adicionado um chão de madeira.
Tinha chegado um autocarro de turismo pouco antes de Leiberman estacionar o seu carro na área de terra batida. Havia pelo menos trinta turistas, na sua maioria canadianos, e o mercenário notou, com satisfação, que muitos dos homens envergavam trajos muito semelhantes ao seu: camisas com desenhos loucos, calças gra-
72
LAWRENCE SANDERS
nadas, sandálias de tiras, máquinas fotográficas ao pescoço. Introduziu-se no final do grupo que seguia, pelo museu, o seu guia do Benim que ia dando explicações em Francês.
O edifício, em forma de L, tinha divisórias de madeira, formando Uma dúzia de pequenas galerias, cada uma delas dedicada ao artesanato de uma das muitas tribos do Benim: Fulani, Bariba, Fon, Yoruba, Adj, etc. Os objectos estavam pendurados nas paredes e nas divisórias, encontravam-se de pé sobre o chão de madeira ou estavam expostos em caixas abertas.
Acompanhando o grupo embasbacado de turistas, escutando o entusiástico discurso do guia do Benim, Sam Leiberman compreendeu por que motivo Obiri Anokye o tinha enviado a ele naquela missão e não um negro. O Musée Ethnographique abrigava um impressionante tesouro de cultura africana. Máscaras de Geled maravilhosamente trabalhadas. Esculturas de madeira e de bronze. Túnicas cerimoniais de conchas e penas. Complicados trabalhos em ferro. Brilhantes tapeçarias Grélé. Armas para rituais da corte e armas de combate. Tronos trabalhados num só bloco de mogno. Banquetas reais. Pulseiras e colares de marfim, cobre, ouro. Ornamentos de sepulturas. Bastões fálicos. Monolitos e deidades.
Mas eram os feitiços e os amuletos que conservavam aquele lugar sagrado isento de saques por parte dos Africanos negros. Os espíritos dos antepassados habitavam ali. Estavam lá as suas roupas, as suas jóias, armas, marcas das sepulturas, as imagens dos deuses que eles adoravam. Desafiar os amuletos, troçar dos fetiches seria enfrentar a condenação neste mundo, no próximo, em todos os mundos que haviam de vir. Por isso tinha sido enviado Sam Leiberman, mercenário, descrente. Compreendia o raciocínio do Capi-taozinho.
Mas ele não estava totalmente imune ao encanto arrepiante daquela arte. Provocava-lhe o mesmo medo e devoção que sentira, em rapaz, ao assistir à cerimónia solene do templo do seu país, ao ver os objectos sagrados e ouvir os cânticos de exaltação. Mas isso tinha sido noutro tempo, num outro mundo, e agora a sua fé estava morta e enterrada. Nem sequer restava um cadáver.
Saiu para o sol brilhante e dirigiu-se às traseiras do museu. Erguia a máquina fotográfica à altura do queixo, como se estivesse à procura de um bom cenário para uma fotografia. Havia uma casa de banho ao ar livre, muito semelhante a uma Chie Sale. E havia uma espécie de telheiro aberto, não mais do que um telhado de colmo inclinado apoiado por quatro postos mal desbastados. Na sombra, acocorava-se um único soldado do Benim, descalço, ateando um fogo de carvão dentro de um fogareiro de barro. Apoiava-se confortavelmente nas coxas, soprando as brasas do seu fogareiro. No chão de
73
terra, ao seu lado, estavam três inhames pequenos e uma perna de galinha, ainda com a maior parte das penas. Encostada a um dos postes estava a espingarda do soldado. Leiberman achou que era uma MAS 49. Aproximou-se mais, e o soldado ergueu o olhar.
Leiberman sorriu, levantou a máquina, apontou-a ao soldado e acenou esperançosamente com a cabeça. O soldado franziu as sobracelhas e abanou a cabeça, a dizer que não. Não queria que a sua alma fosse capturada na película e levada para longe dele. Era um jovem, com pouco mais de vinte anos. Os seus shorts e a camisa de mangas curtas de caqui estavam limpos. Usava uma etiqueta qualquer no ombro que Leiberman não conseguiu identificar. Não trazia armas à cintura. Apenas a espingarda.
Leiberman deu a volta ao museu. Tanto quanto podia ver, não havia sistema de alarme. Diversos vidros das janelas estavam partidos. Havia uma porta lateral, mas tinha sido fechada no exterior com um cadeado. Tanto a argola como a fechadura estavam enferrujados. Leiberman terminou o seu circuito e regressou à área de estacionamento. Os turistas estavam a empilhar-se de novo nos seus autocarros. Esperou alguns momentos e depois seguiu lentamente para Cotonou atrás do autocarro. Pensou que o jovem soldado, ou outro qualquer, estaria provavelmente de guarda durante toda a noite. Tentou imaginar uma forma de evitar matá-lo, mas não a descobriu.
Seguiu o autocarro até Cotonou. Quando viu onde os turistas estavam instalados, estacionou o Citroen e dirigiu-se a pé à sala de jantar do hotel. Foi saudado por um maitre d'hôtel inglês que reconhecia logo alguém de Terre Haute. Leiberman manteve-se fiel ao seu personagem, pedindo bifteck aux pommes frites com uma garrafa de Lõwenbrãu escura. Demorou-se a beber uma segunda cerveja, mas eram apenas 18.00 quando terminou; tinha de preencher três horas.
Passeou ao longo dos passeios de terra, observando os risonhos habitantes da cidade correrem para casa para os seus quartiers. Parou no bar da piscina do Hotel du Port e bebeu um arak duplo. Não o ajudou muito. Continuava a pensar na arte africana, em todo o seu solitário esplendor, dentro do museu fechado. Suficientemente brilhante para iluminar a noite. Pensou nisso e no jovem soldado de guarda.
Voltou para o Citroen e dirigiu-se ao seu sujo hotel em Akpapa, para mudar de roupa e fazer a mala. Havia um pequeno restaurante e um pequeno bar ao lado. O local estava quase vazio: alguns delinquentes a beber cerveja de milho, uma elegante fegela negra a comer uma salada de arroz fria, uma mulher branca sentada junto do bar. Devia ter perto de cinquenta anos, calculou Leiberman. Tinha todo
74
o aspecto de ser uma prostituta francesa. Sentou-se no outro extremo do balcão e evitou olhar na direcção dela. Não precisava dela. Fá-lo-ia sentir-se como aqueles homens que só conseguem entrar em acção quando estão meio bêbados.
Meia hora depois, ele e a prostituta francesa estavam nus por baixo do mosquiteiro do desconfortável quarto dele. Ela tinha rapado os pêlos púbicos e tinha tatuado sobre a virilha hirsuta, em Francês, vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança1. Leiber-man riu-se ao pensar que Harry Chime deixava as suas loucas marcas por toda a parte.
Estava na loja de Chime às 21.00, novamente de caquis. Tinha dado à mulher dez dólares americanos, e ela tinha ficado grata. Não tinha chegado a saber o seu nome, não pensou mais nela, e não tencionava pensar - a menos que, dentro de dias, tivesse um es-quentamento.
Os estores de bambu estavam corridos sobre as montras. Lei-berman bateu e ficou à espera. Algum tempo depois, o seu gordo amigo abriu a porta, fê-lo entrar, fechou novamente a porta e encaminhou-o para a sala das traseiras. Tinha tudo pronto. Leiberman sentou-se à mesa para inspeccionar o que ia comprar.
Desmontou a Beretta.
- Só para me certificar de que não tem pontas de cigarro lá dentro.
As peças da pistola pareciam gastas mas utilizáveis. O cano estava limpo. Leiberman tinha vivido com armas durante a maior parte da sua vida de adulto e sentia respeito por elas, achando que tudo o que podia fazer com que uma onça de chumbo destruísse noventa quilos de carne merecia respeito.
Voltou a montar a pistola. Desmontou os dois carregadores e experimentou as molas. Não eram tão fortes como ele teria gostado, mas pensou que haviam de servir. Voltou a montar os carregadores, introduziu um na coronha da pistola, meteu uma bala na câmara e guardou a pistola carregada e o carregador extra no bolso do seu casaco de campanha.
- Uma merda - resmungou.
- A cavalo dado não se olha o dente - disse Chime presunçosamente.
- E vale mais uma foda na cama que duas no mato - disse Leiberman.
Pegou no rolo de rastilho e mediu um comprimento desde o pulso ao cotovelo, cortando-o. Colocou o pedaço no chão, acendeu uma das
1 "Lasciate ogni speranza voi ch'entrate!" - Divina Comédia de Dante (inscrição à entrada do Inferno). (N. da T.
75
pontas e olhou para o relógio. Ele e Chime ficaram a ver o rastilho arder até ao fim. Levou cinquenta segundos a arder. E deixou uma marca no chão da cozinha-quarto. Chime não pôs objecções.
- Cinquenta segundos - disse Leiberman. - É lento.
- É? - disse Chime.
- É suficientemente lento - disse Leiberman. - Preciso de, digamos, sete metros e meio.
Depois inspeccionou as três latas de gasolina amachucadas. Um galão em cada uma. Agitou-as, desenroscou as tampas, cheirou cuidadosamente o conteúdo.
- Não é que eu pense que tu ias vender-me água domar - disse Leiberman.
- Aagh - fez Chime.
Leiberman examinou o distintivo de metal do Exército togolês. Parecia autêntico; teria que jogar nessa hipótese. O bastão era bom: um tubo de lona com cerca de trinta centímetros de comprimento, cheio de areia e cosido com fio forte e encerado. A lona estava manchada de suor. Uma das extremidades parecia ter sido mergulhada em tinta castanha. Mas não era tinta.
Leiberman agitou-o experimentalmente algumas vezes.
- Muito bom - disse. - Lembra-me os meus tempos de escuteiro. Ok., Harry, quanto é tudo?
- Ora bem... - principiou Chime.
- Esquece isso - disse Leiberman. - Dou-te metade.
Ao fim de dez minutos de apimentada discussão, concordaram em 875 francos franceses, e Leiberman pagou. Chime ajudou-o a transportar o material para o carro, depois de ter observado cuidadosamente a rua.
- Obrigado, Harry - disse Leiberman. - Ajudaste-me muito.
- Conta aos teus amigos - disse Chime.
- Nem pensar - disse Leiberman. - Outra coisa: há anos que não me vês, não é verdade?
Chime fitou-o.
- Nem sequer te estou a ver agora - disse.
- Muito bem - aprovou Leiberman. - Continua assim. Para entrar no carro teve que roçar por Chime.
- Diz-me uma coisa, Harry - disse. - Nunca tomas banho?
- Para quê? - perguntou Chime. - Eu durmo sozinho.
Dirigiu-se lentamente para norte, em direcção a Ighobo. Escuridão quase total. Um lua em quarto minguante encoberta por grossas nuvens. Humidade sobre a estrada alcatroada. Chuva prestes a cair; talvez muito em breve. Não cedo demais, segundo ele esperava. Voltou na direcção do Musée Ethnographique. Faróis apagados. Um brilho leve por trás do edifício: o fogareiro do guarda.
76
Voltou o carro, recuou. Nada para ver. Tudo tranquilo. Estacionou a uns cem metros de distância, na estrada para Cotonou. Saiu da berma, meteu-se no mato. Saiu do carro. Fechou a porta. Tudo lá dentro. Levou apenas a Beretta e o carregador extra.
Avançou a pé pela estrada. Depois meteu pelo mato. Movia-se lentamente. Fez um amplo círculo. Apareceu pelas traseiras. Acocorou-se. Viu o alpendre em silhueta contra a luz do pequeno fogareiro que eles tinham acendido. Eles. Dois. Dois guardas, duas espingardas. Devia ter-se lembrado: os soldados africanos não gostam da noite. Lutam mal de noite. Logo, dois guardas, para fazer companhia um ao outro quando as sombras se fecham.
Recuou. Voltou ao carro. Pegou no bastão de lona. Regressou ao museu. Bastão na algibeira das calças, pistola na mão. Novamente, aproximação silenciosa, em círculo, rastejando nos últimos metros. Parou a pouca distância da clareira de terra batida.
Que estavam aquelas crianças a fazer? Ajoelhado, ergueu a cabeça para ver. Aos saltos à luz da fogueira. Fazendo poses. Gritando. O quê? Depois correndo para voltar as páginas de uma revista meio rasgada, junto do fogareiro. Olhando para as imagens. Depois punham-se numa posição. " IIIAH!" O outro respondia: " IIIIÂ!" Depois as mãos em cutelo a tocar um no outro. Pontapés. Risos e gargalhadas. Aquele que tinha visto de dia e outro igualzinho a ele. Dois garotos.
- IIIAH!
- IIIIÂ!
Depois uma rajada de palavras em Fon.
Tinha percebido. Estavam a praticar karate ou judo. Revista de artes marciais. Desatavam a rir quando assumiam poses rígidas, faziam os movimentos formais. Estavam a divertir-se.
Estudou a cena. Duas espingardas encostadas aos postes do telheiro. Fogo no fogareiro. Garrafa de água ou vinho de palma. Nem metralhadoras nem machetes. Moveu-se cautelosamente. Aproximando-se do telheiro de colmo. Mas longe demais para usar aBeret-ta. Separá-los. Apanhar um de cada vez. Como?
Deteve-se. Observou. Esperou, esperou. O karate acabara. Ficaram parados. Silêncio. Ambos junto do fogareiro. Deitados na terra batida. Conversando baixinho. Sorrindo. Uma boa conversa. Trinta minutos. Uma hora. Nada. Nenhuma visita de inspecção ao museu. Dormir? Adormeçam, pelo amor de Deus. Para vosso bem.
Finalmente um deles levanta-se. Espreguiça-se. Diz qualquer coisa. O outro ri-se. O soldado de pé dirige-se à casa de banho. Construída para os turistas. Um luxo para os soldados. Leiberman está de pé, agacha-se, excitado. Avança até à beira da terra batida. O soldado entra na casa de banho. A porta fecha-se.
77
Oportunidade, agora. Boa oportunidade. Move-se rapidamente. Com leveza. Atravessa a clareira a correr. Pistola em riste. Um pontapé nas espingardas. Volta-se para o soldado estupefacto, que está a pôr-se de pé.
O soldado corre para ele. Olhos inchados. Dentes húmidos. Mão levantada em cutelo.
- IIIAH!
- Filho, filho - geme tristemente Leiberman. Dispara. Três tiros na cara. Rápidos. O rapaz cai para trás. Por cima do fogareiro. Leiberman corre para a casa de banho. Espera junto da porta. Acocorado. O suor a escorrer. A porta abre-se bruscamente. O soldado sai aos tropeções. A puxar os calções. Olhos muito abertos. Boca aberta. Não vê Leiberman. O bastão silva no ar. Em cheio na base do crânio. O soldado cai. Não se move. Vivo, mas inconsciente.
Então Leiberman começou a trabalhar depressa, assobiando uma melodia alegre. Deixou os soldados onde estavam. Correu pela estrada até ao carro. Recuou até à área do museu. Estacionou na estrada em frente. Depressa, agora. Encontrou a porta da frente fechada. Boa fechadura. Nova. Voltou ao carro para ir buscar a alavanca para os pneus. Arrancar o cadeado velho da porta lateral. Quando deu um puxão, toda a porta se soltou das dobradiças enferrujadas.
Entrou com a primeira lata de gasolina. Começou a entornar um fio de líquido pelo chão, entrando e saindo das galerias. A gasolina era absorvida pela madeira seca. Nunca ergueu os olhos para os ícones nas paredes. A segunda lata completou o rasto líquido em volta das paredes interiores. A terceira lata deixou uma marca escura no exterior da porta lateral.
Uma depressão aberta com o calcanhar na terra batida. Cheia com o resto da gasolina. Extremidade do rastilho apoiada entre duas pedras. Suspensa sobre os vapores da poça de gasolina. Rastilho cuidadosamente desenrolado em direcção à estrada. As três latas da gasolina dentro do museu. Insígnia do exército togolês colocada junto da mão estendida do soldado morto. O vivo ainda estava desmaiado. Não se mexia.
Verificar os bolsos. Pistola, carregador extra, bastão. Olhadela final em volta. Acendeu a extremidade do rastilho com um fósforo de cozinha de madeira raspado na unha do polegar. Rastilho aceso. Começa a crepitar. A chama principia a rastejar. Consultou o relógio.
Meteu-se no carro e conduziu lentamente em direcção a Cotonou durante cinco minutos. Parou junto à berma da estrada. Saiu do carro. Acendeu um cigarro. Gauloises. Olhou para trás. A espera.
78
Muito paciente. Sem pânico. À espera. Então ouviu um distante bum! Viu uma bola de fogo vermelha subir no céu da noite.
Voltou para o Citroen e continuou a guiar, à velocidade legal, atravessando Cotonou e Porto-Novo. Pouco antes de chegar à fronteira nigeriana, parou numa área deserta da estrada, no meio da floresta tropical, e atirou para o mato a Beretta, o carregador extra e o bastão. Depois continuou em frente e atravessou a fronteira nigeriana sem problemas. Quando chegou a Lagos, começou a chover, violentamente. Mas era tarde de mais.
8
O falecido Rei Prempeh IV tinha sido muçulmano, com quatro mulheres, uma multidão de filhos, um excesso de parentes pobres. Para acomodar toda essa gente nos aposentos do terceiro e quarto andares do palácio de Mokodi, tinham sido acrescentadas paredes finas e divisórias mal construídas. Destruíam as magníficas proporções dos quartos de dormir originais e das salas familiares desenhadas por um arquitecto francês para o primeiro governador do Achanti.
Quando Obiri Anokye depôs o rei e se tornou presidente da República, um dos seus primeiros actos foi ordenar a remoção das modificações de Prempeh; as antigas salas espaçosas recuperaram, na medida do possível, o seu esplendor original. Apenas um dos aditamentos do Rei Prempeh tinha sido conservado: um enorme frigorífico eléctrico instalado a um canto da sala de jantar familiar. O seu enorme bojo branco e brilhante contrastava estranhamente com o soalho de parquet de carvalho e as paredes forradas de damasco. Mas a cozinha do palácio ficava no andar de baixo, junto da sala de jantar oficial, e as refeições eram transportadas para a área habitada por meio de um elevador accionado por cordas. Era um sistema incómodo; a conveniência do frigorífico da General Electric era inegável.
Sempre que possível, o Presidente Obiri Anokye jantava com a sua família. Era quase certo estar sempre presente para a refeição da manhã, partilhada com os seus pais, Judith e Josiah, a sua irmã mais nova, Sara, e o irmão mais novo, Adebayo. Um irmão mais velho, Zuni, e a sua mulher, Magira, e os seus filhos tinham preferido ficar na antiga casa dos Anokye, perto de Porto-Chonin, na ilha de Zabar.
Na manhã de sexta-feira, destinada à cerimónia do petróleo, o
79
pequeno-almoço no palácio foi umarefeição ligeira: melão, croissants frescos da novapâtisserie da Place de Ia Concorde e café de chicória misturado com leite condensado. A família Anokye, em robes e pijamas, era servida por um mordomo magro, grave, de pele cor de ébano. Era um fulani, um muçulmano, e usava um colarinho postiço engomado com uma casaca preta um pouco desbotada. Os Anokye não estranhavam que os seus longos pés estivessem descalços. E, sendo fulani, o homem usava diversos anéis e um bonito colar de conchas olho-de-gato. O seu nome era Ajaka.
O Capitãozinho esperou até terem sido servidas as segundas chávenas de café e Ajaka ter feito uma vénia e saído graciosamente da sala, fechando a porta sem ruído.
- O almoço no Zabarian começa ao meio-dia - disse o presidente aos outros. - Por favor, desçam trinta minutos antes. Terão um carro à espera.
- Que é que eu devo vestir, Obiri? - perguntou Sara timidamente. - É preciso trajo de cerimónia?
- Veste o que te apetecer - disse ele. - Uma coisa leve, sugiro eu. O Zabarian tem ar condicionado, mas depois temos de ir para a zona do porto, para ligar o petróleo. Vai haver discursos. E não há sombra.
- Tu vais falar, Obiri? - perguntou a mãe.
- Oh, sim - disse ele. - O mínimo possível - acrescentou, sorrindo. - Depois voltamos para aqui. A festa de gala é só à noite, de modo que teremos oportunidade de descansar e mudar de roupa. Se quiserem.
- Zuni? - perguntou o velho com um ar confuso. - Onde está o Zuni?
- Zuni vai ter connosco ao Zabarian, pai - explicou Anokye pacientemente. - E depois da cerimónia volta connosco para o palácio. Ele e Magira.
- O barco está bem? - perguntou Josiah, ansiosamente. - Que é que Zuni disse do barco?
- O barco está óptimo - garantiu-lhe o presidente de Achanti. - Zuni sai todos os dias de madrugada.
Depois, vendo a tristeza estampada no rosto enrugado do velho, Anokye disse:
- Não é melhor dormir até tarde? - E censurou-se imediatamente pela sua estupidez, por não ter denunciado o erro anterior.
Algo tinha mudado no seu relacionamento com a sua família. Ele não tinha mudado, tinha a certeza disso. Mas, desde que ele se tornara presidente do Achanti, a maneira de eles tratarem com ele tinha mudado. Já não era "Bibi", passara a ser "Obiri". E evitavam frequentemente dirigir-se-lhe pelo nome, como se achassem "Obiri"
80
excessivamente familiar, mas "Sr. Presidente" excessivamente formal para os membros da família.
Olhavam para ele de maneira diferente, também; ele tinha consciência disso. Havia amor, evidentemente, mas agora havia também respeito e temor. Por vezes, perguntava a si mesmo se não haveria mesmo medo nos seus olhos, também. E, se alguém tivesse sugerido que era mais terror do que medo, teria ficado triste, mas não surpreendido.
Falaram durante algum tempo das actividades de Zuni. O irmão mais velho continuava a trabalhar como pescador, como Josiah fizera, e o seu pai antes dele. Zuni era chefe do Departamento de Zabar dos Irmãos da Independência de Achanti, uma organização de veteranos que tinha auxiliado o golpe de Estado do Capitãozinho. E Zuni também era chefe da Liga da Liberdade em Zabar. A Liga era o maior partido político de Achanti, fundado por Obiri Anokye, subserviente aos seus desejos, dependente da sua popularidade pessoal para o seu sucesso nas urnas.
- Obiri - disse Judith lentamente, com os olhos baixos -, talvez nós, o teu pai e eu, devêssemos voltar para casa de Zuni. Para Zabar.
- Para o visitar?
Ela ergueu então o olhar.
- Acho que deveríamos voltar a viver lá - disse ela.
Ele pousou cuidadosamente a chávena de café e olhou com ternura para os pais. A idade, uma vida inteira de trabalho duro, um casamento de mais de cinquenta anos, tinham feito deles irmãos, quase gémeos. Ambos tinham rostos enrugados como conchas. Ambos tinham a pele esticada sobre os tendões encordoados e os músculos distendidos. Ambos aparentemente encolhidos, como se estivessem a regressar ao seu tamanho de crianças e a recuperar os desejos irracionais e as petulâncias das crianças.
- Não são felizes aqui? - perguntou suavemente.
- O palácio é muito bonito - disse a mãe, com um suspiro. - No entanto...
- Alguém lhes mostrou desrespeito?
-Não, não - apressou-se ela a dizer.-Mas o teu pai sente saudades do barco. Eu tenho saudades da minha cozinha e dos filhos de Zuni. De toda a família. Dos nossos amigos. Da igreja. Não somos precisos aqui, Obiri.
A sala ficou em silêncio. Ouvia-se o zumbido das moscas. O ruído distante do trânsito no Boulevard Voltaire. O rugido distante de um avião que aterrava no aeroporto. Algo a desaparecer...
- Eu preciso dos dois - disse ele suavemente.
Ela fez um gesto, um pequeno aceno que dizia que ele falara como
81
um filho respeitoso. Mas ela sabia que ele não precisava deles. Nem de qualquer outra pessoa.
- Se não se sentem felizes - disse ele finalmente - façam o que quiserem. Voltem para Zabar. Talvez ao fim de algum tempo queiram voltar para aqui. Eu ficaria muito feliz com isso.
Josiah estava radiante.
- Vou mandar-te o melhor peixe - disse.
O Capitãozinho sorriu e voltou-se para a sua irmã.
- E tu, Sara? Também queres voltar para Zabar?
- Oh, não - apressou-se ela a dizer. - Eu gosto de viver aqui.
- E tu, Adebayo?
- Eu gostaria de ficar contigo, Obiri.
- Eu quero que fiques - disse o presidente. - Têm ambos que prosseguir os estudos. Mas também podem ajudar-me. Talvez seja melhor irmos todos agora vestir-nos para o almoço.
Os seus pais ergueram-se tão ansiosamente, moveram-se tão agilmente em direcção à porta, que ele perguntou a si mesmo se não se sentiriam aliviados por ficarem longe dele. Mas as coisas nunca mais poderiam ser como eram anteriormente, e ele não conseguia lamentá-lo.
Chamou Sara e Adebayo de novo para a mesa. Esperou que os pais tivessem saído da sala de jantar.
- Quero que vão ambos ao Togo - disse-lhes. - Que fiquem alguns dias em Lomé. Vou mandar fazer os preparativos. Sara - disse, sorrindo -, telefona ao Capitão Songo e diz-lhe que tu e o teu irmão vão visitá-lo.
Ela emitiu uma risada, enquanto olhava para os dedos das mãos e os retorcia. Era uma rapariga alta, flexível, com os cabelos entrançados e cada trança atada com uma fita amarela de cor viva. O seu sorriso foi tão radiante que iluminou a sala.
- Telefona-lhe já - sugeriu ele. - Estarás lá na segunda-feira de manhã.
Ela encostou a face à dele e depois correu a telefonar ao seu pretendente.
- Adebayo - disse o Capitãozinho -, tenho uma missão para ti. Uma coisa importante para tu fazeres.
Olhou fixamente para o jovem. Adebayo era já tão alto como Obiri, tinha quase a mesma largura de ombros. O seu rosto era mais escuro, as suas feições mais nítidas. Porque desejava imitar o seu irmão mais velho, mostrava-se prematuramente grave, quase solene. Tentava pensar e falar profundamente. Só de vez em quando alguma alegria juvenil vinha alterar aquele semblante sóbrio. O riso parecia envergonhá-lo e reprimia-o.
- Que é que eu devo fazer, Obiri?
82
- Escoltar a tua irmã ao Togo. Ocupar-te da segurança e do conforto dela. É altura de aprenderes como deves comportar-te longe de casa. Além disso, vou dar-te um envelope selado, uma carta, que deverás entregar ao General Kumayo Songo, pai do Jere. Deverás entregar-lha pessoalmente. Preferia que lha desses em particular. Se isso não for possível, bastará que lha entregues pessoalmente. Compreendes?
- Sim, Obiri.
- Se perderes a carta, se cair noutras mãos, os resultados serão prejudiciais. Para mim e para Achanti. Confio em ti, Adebayo.
- Entregarei a carta apenas ao General Songo. Não vou perdê-la. Juro-te. Ele vai mandar resposta?
- Talvez sim, talvez não. Segue as suas instruções.
- Farei o que dizes, Obiri.
O presidente pôs-se de pé, envolveu Adebayo nos seus braços e apertou-o num abraço.
- Irmão - disse.
No exterior, no corredor do segundo andar, havia dois guardas em sentido diante da porta fechada da sala de conferências. Lá dentro, o Presidente Obiri Anokye estava sentado à sua ampla secretária, atentamente inclinado para a frente, com as mãos crispadas no mata-borrão. À sua frente, num semicírculo de sofás de cabedal, encontravam-se o ministro de Estado Jean-Louis Duelos, o primeiro-ministro do Benim Benedicto da Silva e o ajudante-de-campo e secretário executivo do Primeiro-Ministro, Christophe Michaux.
Duelos e Michaux estavam sentados ao lado um do outro, tendo descoberto, durante as apresentações, que ambos eram martinica-nos, Duelos de St.-Pierre e Michaux de Trinité. Nenhum deles tinha regressado ao seu país depois da primeira viagem a Paris.
O Presidente Anokye suspirou, as suas mãos perderam a crispação, e reclinou-se na sua cadeira.
-Não pode haver dúvidas de que foi obra do Togo?-perguntou. A pergunta era dirigida a Da Silva, mas, quando o primeiro-ministro respondeu, o olhar de Anokye desviou-se para Michaux.
- Não pode haver dúvida alguma, Sr. Presidente - disse Da Silva num tom inflexível. - Foi encontrada no local uma insígnia do Exército togolês. O assassinato e o incêndio foram, obviamente, uma retaliação pela morte de Nwabala. Caso de que, asseguro-lhe, Sr. Presidente, estamos absolutamente inocentes.
- Custa-me a crer que africanos negros sejam culpados de tal
83
sacrilégio - disse Anokye. - O museu era um local sagrado para todos os Africanos. Séculos da nossa História e da nossa cultura...
- Exactamente, Sr. Presidente - interrompeu Michaux, excitado. - Na minha opinião, também não posso acreditar que isso fosse um acto de vandalismo cometido por pretos contra pretos.
Anokye fitou-o.
- Mas por que... - principiou, e depois ficou em silêncio.
- Porquê? - disse Da Silva amargamente. - Exactamente... Porquê? A quem aproveita esse insulto? Quem, se não os togoleses, teria um motivo para destruir a herança nacional do Benim? Quem poderia beneficiar de uma tal profanação? Não, não, meus senhores. O Togo fê-lo como uma provocação deliberada. Não existe outra explicação.
O Professor Duelos abanou a cabeça tristemente.
- Pensar que os pretos pudessem cometer uma tal agressão contra outros pretos... Deveríamos estar a forjar laços mais fortes contra o inimigo comum.
- Com o devido respeito, primeiro-ministro - disse Christophe Michaux -, tenho de concordar com o Ministro Duelos. Acho que deveríamos mover-nos mais cautelosamente neste caso, com grande deliberação. Não temos provas da cumplicidade do Togo no ataque. Devemos esperar para conhecer a sua reacção. Talvez o incêndio fosse obra de um psicopata. Ou de alguém que pretenda causar o mal-estar entre o Benim e o Togo.
- Para quê? - perguntou Anokye.
- A isso não sei responder, Sr. Presidente. Mas estou longe de ter a certeza, em minha opinião, de que isto foi obra do Togo. A descoberta da insígnia do Exército no local é demasiado oportuna. Cheira a maquinação. Tenho quase a certeza, na minha opinião, de que o Togo está inocente neste caso.
Michaux era quase tão claro como Duelos. Era mais alto do que o ministro do Estado, esbelto, com umas mãos longas e moles que usava frequentemente enquanto falava. O seu cabelo, descolorado quimicamente ou por efeito do sol, estava disposto em ondas oleosas, esculpidas e perfumadas. Era ainda jovem, mas ostentava uma pequena pêra. As sobrancelhas arqueadas e a pêra em bico davam ao seu rosto triangular um ar mefistofélico. Procuravam-se os cascos, e deparava-se com sapatos Gucci.
- Na minha opinião... - principiou.
- Por favor, Christophe - disse o Primeiro-Ministro Da Silva, erguendo a palma da mão -, não quero ser injusto, mas a sua opinião tem menos interesse para mim, neste momento, do que as realidades políticas. O Benim e o Togo já se encontravam em rota de colisão antes do incêndio do museu. Se o Togo é ou
não culpado tem
84
menos importância do que o facto de a maior parte das pessoas do Benim estarem firmemente convencidas de que o é. Já se fala em represálias. Até mesmo numa guerra.
- Isso não - protestou Duelos. - Existem outras opções. A Organização da Unidade Africana. As Nações Unidas. A arbitragem de um terceiro país que goze da confiança tanto do Benim como do Togo. Por certo todas essas hipóteses serão exploradas antes de falarmos da possibilidade de guerra.
- Há, no meu país, quem estivesse pronto a partir esta noite para a guerra, se a ordem fosse dada - disse Da Silva sombriamente. - Quantos insultos provocatórios teremos de aceitar? Meus senhores, há apenas uma forma de enfrentar um provocador: fazer-lhe frente. É esse o conselho que tenciono dar ao meu governo, nos termos mais seguros que é possível.
- Há alguma forma de eu poder ser-lhe útil nesta infeliz situação? - perguntou gravemente o Presidente Anokye.
- Sr. Presidente - disse o Primeiro-Ministro -, asseguro-lhe que serão feitos todos os esforços no sentido de resolver este conflito entre o meu país e o Togo sem recorrer ao combate. Mas se falharem todos os meios pacíficos e se se tornar inevitável uma guerra declarada, em que posição fica o Achanti? Qual será a sua reacção?
O Capitãozinho respirou fundo.
- Uma pergunta difícil - disse lentamente. - À qual não posso dar uma resposta neste momento. Preciso de estudar o assunto muito cuidadosamente. Meus senhores, estamos perto do meio-dia. Sugiro que adiemos o assunto e partamos para o Zabarian o mais depressa possível. Talvez tenhamos oportunidade de falar do assunto esta tarde. Primeiro-ministro, posso dar-lhe uma palavrinha em particular? Não demoro muito. Jean, importa-se de esperar junto dos carros com Mr. Michaux?
Quando os dois martinicanos partiram e a porta se fechou atrás deles, Obiri Anokye pôs-se de pé e foi colocar-se à frente da secretária.
- Primeiro-Ministro - disse abruptamente, quase bruscamente -, há alguns meses, nesta mesma sala, por altura da minha tomada de poder, falei-lhe do afecto que sinto pela sua filha Beatriz e do meu desejo de a ver com maior frequência, de saber mais a respeito dela e de lhe dar uma oportunidade de saber mais a meu respeito.
O Primeiro-Ministro Benedicto da Silva movia-se, inquieto, cruzando e descruzando as pernas. Era um homem escuro, dotado de uma pele lustrosa, com um brilho avermelhado subjacente. Os cabelos e a barba prateados estavam elegantemente aparados, usava
uma camisa de um branco-deslumbrante, todo ele brilhava, no seu fato cuidadosamente passado a ferro e vincado. Apenas os olhos de aço o salvavam da afectação.
- Recordo-me dessa conversa, Sr. Presidente - disse inexpressivamente.
- Sim. Desde essa altura, como sabe, encontrei-me algumas vezes com Beatriz, em Cotonou e Mokodi. De cada vez que estive com ela, fiquei a apreciá-la mais. É adorável, encantadora e... e inteligente. Com a sua permissão, primeiro-ministro, gostaria de pedir a Beatriz que fosse minha mulher. De lho pedir esta noite.
Da Silva suspirou levemente.
- Ela é tão nova - disse.
- Sim - concordou Anokye. - Mais nova que eu, por certo. Mas já tem idade para se casar.
- Penso que sim - disse Da Silva. - Embora seja difícil para um pai aceitar isso. Desde a morte da minha mulher, Beatriz tem governado a minha casa. Sei que estou a ser egoísta ao desejar que isso continuasse a suceder por mais tempo, mas...
Anokye ficou em silêncio.
- E há a questão da religião - disse o primeiro-ministro, quase com desespero.
- Estou pronto a permitir que os meus filhos sejam criados na fé católica - disse Anokye. - Se insistir nisso - acrescentou -, eu próprio me farei católico.
Da Silva suspirou profundamente.
- Ah, Sr. Presidente - disse, com hesitação -, durante a nossa conversa, aquando da sua tomada de posse, levantei a questão do seu relacionamento com uma certa mulher pública. Uma mulher branca.
- É certo. Fiz-lhe uma promessa, nessa altura, uma promessa que posso agora afirmar que foi cumprida. O problema não pôde ser resolvido imediatamente. Essas coisas raramente podem. Tenho a certeza de que compreende isso. Mas a mulher em questão já não trabalha num... numa casa pública. Terminei a minha relação com ela. Na realidade, ela vai casar-se com o comandante da minha guarda pessoal.
- Oh?
- Por isso, como vê, as suas condições foram satisfeitas. Tenho agora a sua permissão para me casar com a sua filha?
- Pensa que Beatriz o aceitará?
- Penso, sim. Mas não respondeu à minha pergunta, primeiro-ministro. O senhor aceita-me?
Da Silva pôs-se de pé, alisou as rugas do casaco, começou a andar lentamente de um lado para o outro, em frente da secretária de
86
Anokye. Tinha a cabeça curvada, os seus olhos pareciam estudar o desenho do sarouk vermelho de sangue. Deteve-se subitamente, com os ombros curvados, as mãos enfiadas nos bolsos.
- Sr. Presidente - disse, em voz baixa -, posso sugerir um noivado de, digamos, um ano? Para permitir que as famílias se conheçam melhor, para permitir...?
- não - disse Obiri Anokye. - Um noivado curto. Não mais de três meses. Desejo casar-me com Beatriz o mais depressa possível.
- Três meses? - disse Da Silva. Ergueu a cabeça. Olhou directamente para Anokye. - Não há motivo nenhum para tanta pressa, Sr. Presidente. Estou tão preocupado com este assunto do Togo que preferia que...
- Este assunto do Togo - disse Anokye. - Ah, sim. Primeiro-ministro, o Benim tem uma fronteira oriental com o Togo. Achanti fica na fronteira ocidental do Togo. Se, realmente, como receia, chegar a haver guerra, podíamos unir-nos. Poderíamos ser irmãos. Talvez...
Fez-se silêncio. Os dois homens ficaram a olhar um para o outro.
- Três meses? - disse o primeiro-ministro com voz rouca. - De acordo.
Obiri Anokye acompanhou Da Silva ao corredor. Ordenou a um dos guardas que escoltasse o primeiro-ministro ao seu carro. Depois o presidente do Achanti regressou sozinho ao seu gabinete.
Do fundo da gaveta de cima da secretária, extraiu cuidadosamente um pequeno embrulho de papel de seda. Desdobrou-o cuidadosamente. Uma moeda, uma moeda de ouro que tinha sido perfurada e enfiada num fio. Tinha-lhe sido dada pela tia Tal. Ela contara-lhe a sua história. Como lhe havia sido contada a ela. E a quem lha contara.
Muitos séculos antes, talvez dois milénios, tinha aparecido naquela faixa da costa ocidental africana uma armada de seis navios com velas triangulares, que tinham atravessado o golfo da Guiné, vindos do norte. Os homens que viajavam nesses navios era brancos, queimados pelo sol, emagrecidos pela fome. Tinham desembarcado. Falavam uma língua desconhecida. Por meio de gestos, pediram comida e bebida. Estas foram-lhes trazidas, e, como era o costume antigo, iniciou-se o mudo sistema de trocas.
Os Achantis tinham depositado cereais e vinho de palma no chão e depois recuado e ficado a alguma distância. Os estrangeiros tinham avançado e inspeccionado os víveres. Tinham depositado moeda£ de ouro, barras de cobre, facas de bronze, enfiadas de contas vermelhas e brilhantes. Tudo isto havia sido colocado ao lado das provisões. Depois, os brancos recuaram. Os Achantis avançaram para inspeccionar o que havia sido deixado. Não era suficiente.
87
Recuaram em silêncio. Os estranhos avançaram de novo e juntaram mais moedas de ouro, mais facas de bronze, e recuaram outra vez.
A cena repetiu-se ainda uma vez mais. Finalmente, os Achantis, satisfeitos com o negócio, pegaram nas suas mercadorias e partiram. Os homens brancos carregaram os seus cereais e o seu vinho de palma e partiram nos barcos. Nunca mais voltaram a vê-los. Eram homens pequenos, vigorosos e fortes, com lábios salientes e longos narizes curvados.
Uma dessas moedas de ouro deixada pelos viajantes tantos séculos antes era o amuleto que a tia Tal dera a Obiri Anokye. Tinha sido alisada pelos inúmeros dedos que a haviam esfregado, séculos de dedos, mas as imagens gravadas ainda eram discerníveis. De um dos lados havia um cabrito montês a saltar. Do outro, a cabeça de um homem. Tinha um nariz grande e curvo como uma cimitarra. O seu cabelo era encaracolado, com fileiras de caracóis presas por uma coroa de louros. A barba também era encaracolada, mas cortada a direito em baixo. Parecia uma pá. A tia Tal dissera que aquele homem era um grande rei, que governava o mundo inteiro.
Obiri Anokye desabotoou a camisa, enfiou o fio pela cabeça, encostando o amuleto ao peito nu, e depois voltou a abotoar a camisa. Não acreditava naquelas coisas: feitiços, amuletos, grisgris, talismãs. Mas também não deixava de acreditar.
- Prezados convidados - disse Peter A. Tangent, em francês. - Minhas senhoras e meus senhores. Tenho a grande honra, e também o maior prazer, em dar a palavra ao Presidente do Achanti, Obiri Anokye.
Os convidados para o almoço no restaurante Zabarian puseram-se de pé, aplaudindo entusiasticamente. O Capitãozinho ergueu-se lentamente, apertou a mão de Tangent e depois voltou-se para receber as aclamações, com um leve sorriso. Ficou de pé, em silêncio, olhando em volta para a sala cheia de gente, esperando pacientemente que a ovação terminasse; os convidados sentaram-se, voltando as cadeiras de modo a ficarem voltados para ele. Rostos negros, rostos brancos. De todos os tons, de todos os matizes. Aguardando...
- Amigos - disse Obiri Anokye. - Irmãos e irmãs. Agradeço a todos o vosso respeito e o vosso afecto. Dou-vos em troca o meu amor e a minha gratidão. Plena de regozijo e ilimitada. - Depois repetiu a sua saudação em inglês e em akan.
Todos se inclinaram para a frente, já conquistados pelas suas palavras solenes, pelas suas maneiras graves. Ele tinha o dom de fazer que cada momento, para aqueles que o partilhavam, parecesse
intenso e cheio de significado. Até mesmo o Homem de Tulsa e o Homem de Nova Iorque ficaram impressionados. Inclinaram-se na direcção dele tão avidamente como os outros, não desejando perder uma palavra, um gesto, uma expressão, hipnotizados por aquele homem baixo e forte que envergava o trajo de caqui dum soldado do Achanti, sem condecorações nem divisas.
- Dentro em breve assistiremos ao início da produção comercial do petróleo extraído das águas do Achanti. É o fim de um longo e difícil período de exploração, pesquisa e desenvolvimento. Ó êxito alcançado não teria sido possível sem a decisão e a dedicação de Mr. Peter Tangent e dos seus colaboradores da Starrett Petroleum Corporation. Todos os Achantis lhes estão gratos pelo que fizeram.
Houve uma erupção de aplausos. Os homens do petróleo presentes entreolharam-se e sorriram, radiantes.
- Mas, se a cerimónia de hoje marca o final de um período, assinala também o início de outro. Um princípio. Um nascimento. De um novo dia para o nosso amado país. Fomos abençoados com um grande recurso nacional. Ele vai permitir-nos proporcionar uma melhor vida a todos os Achantis. Vermos o nosso povo alimentado, vestido e abrigado. As nossas crianças educadas até ao limite da sua capacidade e do seu talento. O próprio país respeitado, acarinhado e embelezado. Se planearmos com sensatez e trabalharmos diligentemente com amor e compreensão, poderemos criar um achanti que sei-virá de modelo a toda a África e que provará ao mundo que a África possui a fé e a determinação capazes de criarem uma civilização do futuro capaz de rivalizar com as maiores do passado.
Lentamente, o Capitãozinho foi assumindo a sua postura habitual de orador: os pés afastados e bem plantados no chão, as mãos nos quadris, o dorso levemente arqueado para trás, o peito inchado, o queixo levantado de modo que parecia estar a olhar para os convidados mal-humoradamente, por debaixo das sobrancelhas grossas. A Sua voz de baixo ganhou maior potência:
- A África... A minha África... A nossa África! Tão perseguida por provações e problemas. Pobre e enferma. Os povos e a terra empobrecidos. Despojados por outros das nossas riquezas durante tantos anos. Mas agora a lutar para criar um novo continente, livre dos medos do passado. E, no entanto, acorrentada ao passado. É a grilheta do separatismo, uma grilheta cruel que nos impede de realizar o nosso verdadeiro destino.
"Família contra família. Tribo contra tribo. Credo contra credo. Raça contra raça. Nação contra nação, eu vos digo que esta infâmia tern de terminar! Nunca chegaremos a parte alguma enquanto não reconhecermos que somos africanos. Antes de mais, africanos! A raça nada significa. O credo, nada. A tribo, nada. As fronteiras,
nada. Mas a nossa terra sagrada é tudo, exigindo a nossa total lealdade, os nossos corações, as nossas mentes e, se necessário, o nosso sangue.
"Encontro-me diante de vós, hoje, não como um achanti, um cristão ou um negro. Eu sou um africano! E suplico a todos que renunciem aos males do separatismo que enfraquecem o nosso solo sagrado. Peço a todos que entregueis o vosso talento, o vosso amor, a vossa alma, cada minuto da vida que existe em vós, ao futuro da Pan-África: um belo continente, uma nação forte, um povo magnífico, um futuro glorioso!"
Com a aprovação do Presidente Anokye, os empregados da PR Afrique, a firma de relações públicas liberiana, ao serviço da República de Achanti, tinham planeado a noite de gala como uma festa informal e alegre. O palácio de Mokodi, inundado de luzes, tinha sido enfeitado com grinaldas de flores frescas e com panos com as cores nacionais. As fontes iluminadas da praça projectavam jorros de luz para o céu nocturno. Havia bandas a tocar jazz e o rock-and-roll pelas ruas. Os vendedores tinham tido permissão para montar as suas bancas no Boulevard Voltaire, vendendo vinho de palma, cerveja de milho, galinha picante efufu. Os polícias em patrulha até sorriam indulgentemente ao verem os jogos de azar que proliferavam nas ruas laterais.
O ar ardente da noite fervilhava com o perfume de peles cozidas ao sol, fogos-de-artifício que explodiam, água perfumada lançada por seringas sobre os passeantes inocentes. Era uma multidão ruidosa e bem-disposta que celebrava a nova riqueza do Achanti. Havia danças nas ruas, e cantos e risos, uma mistura de nativos negros e turistas brancos, todos dedicados a gozar o clima carnavalesco daquela noite memorável. Muitos,na verdade, usavam máscaras, e os seus fatos estrangeiros eram ofuscados pelas cores vivas dos trajos tribais.
O mesmo ambiente de alegria informal prevalecia no interior do palácio. Em vez de um jantar formal e sentado, tinha sido disposto um abundante buffet no principal salão de baile do rés-do-chão. Três bandas tocavam em três salas, os criados apressavam-se a servir todas as bebidas desejadas e, o que era melhor que tudo, não havia um programa formal nem discursos planeados.
No entanto, foi um discurso que dominou a alegre reunião - o curto discurso do Presidente Obiri Anokye no Zabarian. O almoço tinha sido coberto por representantes da Reuter e da Agence France-Presse. Ambas tinham anotado em estenografia as palavras do Capitãozinho. Melhor ainda, a PR Afrique tinha gravado o discurso.
90
Com permissão de Anokye, foi feita uma transcrição, cujas cópias eram distribuídas a quem as pedia. A única modificação que o Presidente fez foi classificar as suas palavras de "observações improvisadas" em vez de "discurso formal".
Fosse qual fosse o nome que ele lhes dava, as ideias e as frases de Anokye suscitaram o mais intenso interesse entre a comunidade diplomática de Achanti. Foram enviadas imediatamente cópias do discurso para todos os países, com análises dos embaixadores e cônsules colocados em Mokodi.
Foi o significado das observações do Presidente que provocou uma discussão tão animada na festa de gala do palácio. Toda a gente afirmava que ele parecia ter incluído os brancos - "todas as raças, todas as cores, todos os credos" - naquela defesa da Pan-África. No entanto, tinha feito uma óbvia referência aos males do capitalismo branco. E estaria a falar a sério na sua sugestão de "um continente, uma nação, um povo, um futuro"? Na sua condenação do separatismo, ultrapassava os planos dos outros que pediam uma unidade africana baseada numa federação de Estados soberanos. Pretenderia realmente eliminar as fronteiras nacionais da África? Que queria ele dizer exactamente - e como propunha que isso fosse realizado?
Estas perguntas, e outras, eram acaloradamente debatidas, não só pelos representantes de outros países africanos como pelos diplomatas das Am eriças, da Europa ocidental, do Bloco Soviético, do Extremo Oriente. Na realidade, por toda a gente. E, quando pediam directamente ao autor deste surpreendente discurso uma explicação ou amplificação, ele limitava-se a sorrir levemente e a dizer: "O significado é, por certo, evidente através das palavras." O único consenso a que chegaram foi que Obiri Anokye tinha expressado novas ideias importantes para a África e para o mundo e, com aquele curto discurso, tinha-se classificado como um jovem estadista com que havia que contar. O representante do PR estava ocupado a fornecer exemplares da biografia oficial do Presidente aos meios de comunicação das capitais do mundo.
A sala de baile estava apinhada, pulsando com uma vida própria, com a multidão a aumentar e a diminuir, consoante os convidados se deslocavam para outras salas do palácio ou saíam para o terraço. Acabavam todos por regressar, atraídos pela presença magnética do próprio Presidente Anokye. Ele conservava-se a um canto da enorme sala, com o Sargento Sene Yeboa e dois outros guardas à paisana por detrás dele. Cumprimentava afavelmente os convidados, agradecia-lhes gentilmente os seus bons votos e as suas felicitações pelo seu discurso. De vez em quando, beberricava um pouco de champanhe da sua taça. Apesar de se encontrar de pé, havia quase
91
duas horas, no mesmo local, não revelava fadiga. E, apesar de o seu tempo e a sua atenção estarem constantemente a ser exigidos, parecia absolutamente consciente do que se passava na sala apinhada. A certa altura, deu instruções, em voz baixa, a um dos guardas para que pedisse à orquestra que moderasse o volume da sua música. E, em determinada altura, fez sinal a Beatriz da Silva para que se aproximasse e murmurou ao ouvido algumas palavras que a fizeram corar de prazer.
Perto dele, o Ministro de Estado Jean-Louis Duelos, a sua mulher, Mboa, e Christophe Michaux do Benim observavam com admiração a actuação do Presidente.
- Pobre Bibi - disse Mboa. - Deve estar cansadíssimo.
- Bibi? - perguntou Michaux, muito divertido. - Chamam-lhe assim?
Mboa cobriu a boca com a palma da mão..'
- Não devia ter dito isso - confessou. - Mas Jean e eu conhecíamo-lo tão bem antes do golpe. Penso sempre nele como um bom amigo, como o Bibi.
- Deves dirigir-te a ele como "Sr. Presidente" - disse severamente Duelos.
- Sim, Jean - disse ela, baixando os olhos.
Era uma mulher pequena, negra como carvão, que envergava uma túnica azul tingida com o tecido atado. Apesar das objecções do seu marido, usava o cabelo em pequenas tranças separadas por riscas. As suas experiências com maquilhagem (por insistência dele) tinham terminado de forma tão desastrosa que agora não a usava. Tinha feito o curso do liceu de Mokodi, onde Duelos dera aulas antes do golpe, mas não partilhava os seus interesses políticos, e parecia satisfeita.
Ele tinha casado com ela depois da sua tentativa de suicídio. Quando pensara que ela ia morrer, o professor tinha-se apercebido do seu amor por ela e declarara-lho quando ela se recuperara. Mas agora, por vezes, perguntava a si mesmo se aquela tentativa de suicídio não teria sido um truque, como outras mulheres se fingem grávidas, para conseguir casar. Mboa - ou Maria, como ele lhe chamava - podia não ser intelectual, mas tinha, era preciso confessá-lo, a sabedoria da selva, a esperteza do mato. Se ao menos não fosse tão negra!
Ele também era preto, evidentemente. Mas a sua cor era tão clara que algumas mulheres em Paris lhe tinham dito que poderia passar facilmente por branco. Era coisa que ele nunca faria. Sentia, dizia-o a si próprio, orgulho do seu sangue. Mas, ao conhecer as esposas brancas elegantemente vestidas dos diplomatas estrangeiros, mulheres imponentes, capazes de conversar sobre teorias sociais,
92
políticas e económicas com entusiasmo e conhecimento, perguntava a si mesmo, por vezes, se não teria cometido um erro terrível ao acorrentar-se àquela mulher pequena, de um negro-retinto, com enormes olhos e dentes brilhantes, a quem bastaria um prato no lábio inferior ou aros de latão em volta do pescoço alongado para merecer um retrato de página inteira na National Geographic. Com os seios descobertos, evidentemente.
- Que tal achou o discurso do presidente, Mme. Duelos? - perguntou Christophe Michaux.
Ela ficou confusa, por um momento.
- Ele só quer o melhor para todos nós - disse em voz baixa. - Tenho confiança nele.
- Tem? - Nos lábios dele surgiu um sorriso arrogante, um sorriso dirigido ao Ministro de Estado, um sorriso de compreensão e de cumplicidade. Duelos deu consigo a corresponder a esse sorriso. Ali estava um homem que o entendia.
- Qual foi a sua reacção ao discurso? - perguntou a Michaux. O ajudante do Primeiro-Ministro do Benim ficou imediatamente
sóbrio, as suas feições transformaram-se numa máscara de inexpressiva diplomacia.
- Há algumas coisas que me perturbaram - disse, pensativamente. - Em minha opinião, não consigo resolver certas contradições. Aparentemente, ele estava a dizer "África para os Africanos". Todavia, disse que a raça não importava. Ele pensará que os colonos brancos são Africanos?-- Isso também me perturbou - confessou Duelos.
- Ele nunca falou consigo, ministro, da ideia da Pan-África?
- Bom, hum... não. Pelo menos, não nos termos em que se expressou hoje.
- Concorda com ele?
- Bom... compreendo a sua visão, Mr. Michaux, mas...
- Christophe, por favor.
- Christophe. Obrigado. Como dizia, compreendo a sua visão, o seu sonho, mas acho que ele erra ao incluir a raça como um pecado do separatismo. Não consigo conceber uma nova África que não seja baseada nos mais elevados ideais da negritude.
Michaux olhou-o com interesse.
- Talvez - disse suavemente - o senhor e eu tenhamos as mesmas crenças. Não idênticas, por certo, mas semelhantes. Eu, por exemplo, em minha opinião, creio que a tirania da classe é, mais do que o separatismo, o principal obstáculo ao progresso africano.
- Classe? - disse Duelos. - É marxista, Christophe?
- Oh, não - disse Michaux, rindo alegremente. - Não, não, não. Simplesmente, acho que a hegemonia branca em África, a he-
93
gemonia económica, deve terminar para que nós, os Africanos, possamos sentir-nos donos de nós próprios.
- Mas são ambos martinicanos - disse Mboa corajosamente. - Como podem ser africanos?
Eles fitaram-na, surpreendidos.
- Não sejas estúpida, Maria - disse Duelos, irado.
- Todos os negros são Africanos - disse Michaux. O sorriso arrogante. - Originalmente. Independentemente do local de nascimento.
- Jean - disse Mboa muito seriamente -, não há pretos na Austrália? Nas ilhas do Pacífico? Foi o que tu nos ensinaste no liceu. Eles também vieram de África?
- Não confundas as coisas - disse ele, furioso. - Não tens inteligência para discutir estes assuntos.
Ficaram em silêncio durante alguns momentos, embaraçados. A festa continuava, em volta deles. Música. Gente a dançar. Risos cristalinos como vidros estilhaçados.
- Diga-me, Ministro - disse Michaux -, como supõe que o Presidente Anokye tenciona implementar o seu plano?
- Plano?
- A sua sugestão da Pan-África. Como vai ser realizada?
- Creio que o Presidente se referia a um ideal, a uma esperança para o futuro. Não creio que se trate de um programa concreto.
- Oh? Pensei que talvez ele tivesse um plano...
- Um plano, Christophe? Oh, não. Nada disso, tenho a certeza.
- O senhor deveria saber - disse Michaux secamente. - Quem poderia saber melhor que o Ministro de Estado do Achanti? Não acha algumas das ideias dele... bom... perigosas?
- Perigosas como? Para quem? Michaux abanou a cabeça.
- Não sei dizer. Mas, na minha opinião, sinto um vago receio de que o óbvio amor do Presidente pela África, a sua simpatia e interesse pelas massas o possam extraviar. Ele é um homem tão persuasivo. Que presença! Seria uma tristeza se ele utilizasse os seus imensos dons apenas para prolongar a servidão da África à infra-estrutura do poder branco.
- Ele nunca faria isso.
- Deliberadamente não, Ministro. É claro que não. Essa implicação estava muito longe dos meus pensamentos. Mas a sua grande popularidade pessoal e a nova riqueza do Achanti podem cegá-lo para as realidades da situação racial da África actual. Não gostaria de vê-lo transformado numa marioneta dos brancos.
- Nem eu.
Michaux pousou uma mão mole no braço de Duelos.
94
- Como me sinto feliz por encontrar um homem com o seu talento em Achanti, capaz de ver as coisas tão claramente. Temos de falar disto novamente. Consideraria uma grande honra e um grande prazer, Ministro, que fosse visitar-me a Cotonou. A sua agenda tão ocupada permitir-lhe-ia que o fizesse?
- Obrigado, Christophe - disse Duelos, corando de prazer. - Penso que poderei consegui-lo.
- Excelente, excelente! Há algumas pessoas que gostaria que
conhecesse Homens inteligentes com ideias novas e originais. Tenho a certeza de que gostaria de falar com eles. Mme. Duelos, espero que possa acompanhar o seu marido ao Benim.
- Não - disse Duelos firmemente. - Infelizmente, isso é impossível. Maria não gosta de viajar de avião.
- Podíamos ir de carro, Jean - disse ela timidamente.
- Não - disse ele de novo. - Ah... o Presidente está a olhar para
nós.
Os outros voltaram-se para ver. O Presidente Obiri Anokye estava, efectivamente, a olhar para eles. Mas depois aperceberam-se de que não estava propriamente a vê-los. Estava embrenhado numa profunda conversa com o embaixador francês e limitava-se a olhar naquela direcção, sem estar a vê-los. Ou, pelo menos, era o que lhes parecia.
Trinta minutos antes da meia-noite, o Capitãozinho fez sinal a Beatriz da Silva para que viesse ao seu encontro. Pedindo desculpa aos diplomatas e homens do petróleo que o rodeavam, afastou-se da multidão, conduzindo Beatriz com um leve toque no cotovelo. O Sargento Sene Yeboa seguia-os, alguns passos atrás deles.
O Presidente Anokye fê-la sair da sala de baile, avançar por um corredor até às traseiras do palácio, atravessando uma série de gabinetes, e depois sair pelas portas que davam para o terraço. Yeboa postou-se junto da porta aberta, enquanto Obiri e Beatriz avançavam até à balaustrada que dava para a praça.
Dado o calor das suas maneiras e o ardor dos seus olhares, a mulher tinha a certeza, no seu íntimo, de que ele iria pedi-la em casamento nessa noite. E, quando viu que ele tinha escolhido o local exacto onde se haviam conhecido - no terraço, durante uma recepção oferecida pelo falecido Rei Prempeh IV -, sentiu-se cheia de amor. Pela sua atenção, pela sua percepção, por ele.
Na realidade, ele tinha escolhido aquele local por outros motivos. Era uma posição que podia facilmente ser observada pelo Sargento Yeboa e pelos guardas postados nos terrenos do palácio, lá em baixo. E ele não sabia ao certo como as jovens modernas reagiam a pro-
95
postas de casamento; a natureza semipública do local, com outros convidados a aparecerem de vez em quando, impedia qualquer violência romântica menos educada da parte dela.
- Espero que esteja a gostar da festa, Beatriz - disse delicadamente. - Deseja alguma coisa? Talvez uma taça de champanhe? Um pouco de frango?
- Oh, não - disse ela, com uma risadinha nervosa. - Já comi de mais. É bom estar longe da multidão. Por uns minutos.
- Os seus aposentos estão ao seu gosto?
- Maravilhosos - disse ela. - Uma suite inteira para mim e para o papá. Já lhe agradeci as flores? São lindas.
Ele calculou que tivessem sido enviadas pelo gerente do Mokodi Hilton, mas fez um gesto natural; nada a agradecer.
- Gostei muito do seu discurso no Zabarian - disse ela. - Achei lindo, lindo, lindo.
Ele fez o mesmo gesto, apercebendo-se subitamente de como seria a sua vida casado com aquela mulherzinha tola e bem humorada. Mas ocultou o seu receio e pegou nos dedos dela. Nos seus dedos macios, quentes, invertebrados.
Ela tinha, pensou, ganho alguns quilos desde a última vez em que a vira; não era um bom presságio para o que os anos iriam trazer-lhe. Mas, naquele momento, a carne dela ainda era rija e jovem, a sua pele escura brilhava. O rosto dela, sem rugas, intocado, estava cheio de excitação, de um pouco de receio, de uma sensualidade que prometia ceder. Teve consciência do odor excitante dela. Todo o corpo da mulher parecia prestes a explodir de expectativa e esperança, encostando-se ao dele. Amou-a mais porque sabia o sofrimento que iria causar-lhe. Se não sofrimento, pelo menos desapontamento. Mas haveria compensações. Para ela e para ele. Haviam de superar aquilo. E, além disso, ela tinha umas belas pernas.
- Que noite maravilhosa - disse ela. - A noite mais maravilhosa da minha vida.
Como sempre, nos seus superlativos, borbulhava a sua juventude. Ele pensou que aquela alegria impensada seria boa para ele. Talvez tornasse a sua vida mais leve, diluísse a sua gravidade, o completasse. Teve uma súbita e suculenta fantasia, imaginando o cheiro de pão acabado de cozer, uma mulher e mãe de seios fartos, , crianças de dedos pegajosos a gritar e a rir, agarradas às suas pernas. Um lar.
- Beatriz, há uma coisa que devo dizer-lhe. Pedir-lhe.
- Diga.
- Falei com o seu pai, e ele deu-me a sua permissão.
- Para quê, Bibi?
- Quero que...
96
Deteve-se. Subitamente, fitando os olhos dele, ela viu que a sua profundidade se alterara. Naquele momento, ele não estava junto dela.
- Tenho de a deixar por um momento - disse ele. - Por favor, fique aqui. Volto dentro de um minuto ou dois.
Voltou-se e afastou-se dela. A jovem viu-o partir, chocada e surpreendida. Ele teria perdido a coragem? Precisaria de ir aliviar-se? Que lhe teria sucedido? Por que a abandonara num momento daqueles?
O Presidente arrastou o Sargento Yeboa para um dos gabinetes.
- Traz-me o Sam Leiberman - disse. - Imediatamente. Aqui. Yeboa olhou-o, com insegurança.
- Capitãozinho, vais ficar só.
- Vai, Sene - disse Anokye com um sorriso tenso. - Por uns momentos, sei defender-me. Tu sabes que eu sei.
Aguardou pacientemente, quase cinco minutos. Sem passear nem fumar. Finalmente, Yeboa regressou, seguido de Leiberman. Anokye fez sinal ao mercenário para que se aproximasse.
- Senhor Presidente - disse ele.
- O ajudante do Primeiro-Ministro do Benim - disse o Presidente Anokye. - Christophe Michaux. Já falou com ele?
- Sim - disse Leiberman. - Foi-me apresentado.
- Que pensa dele?
- Uma doninha astuta - disse Leiberman. - Ou talvez uma borboleta. Quem sabe se não uma doninha e uma borboleta?
- Quero saber coisas dele - disse Anokye. - Não tenho ninguém na Embaixada em quem possa confiar. Pode tratar disso?
Leiberman pensou um pouco e depois acenou afirmativamente com a cabeça.
- Eu, pessoalmente, não - disse -, mas posso conseguir isso.
- Óptimo - disse Anokye. - Quero saber tudo.
- Evidentemente - disse Leiberman.
O Capitãozinho foi ao encontro de Beatriz da Silva, que estava junto à balaustrada do terraço. A jovem estava quase a chorar de aflição. Ele pegou-lhe na mão.
- Peço que me desculpe - disse suavemente. - Como ia dizendo, falei com o seu pai, e ele deu-me permissão para lhe pedir.
- Para me pedir o quê?
- Que se case comigo. Que seja minha mulher. Quer?
- Oh, sim, Bibi! Sim, sim, sim!
A jovem envolveu-o nos seus braços, apertou-o contra ela, cheia de amor. Como se tivesse sido preparado pelo homem das PR de Monróvia, nesse preciso momento, ouviu-se uma explosão no céu, e uma coroa de luzes de múltiplas cores começou a cair em curva,
97
numa chuva graciosa. A exibição de fogo-de-artifício tinha principiado, e os lábios de ambos separaram-se, enquanto os seus olhos surpreendidos seguiam a brilhante sucessão de foguetes vermelhos, serpentinas verdes, chuveiros brancos, estrelas cadentes amarelas, círculos rotativos azuis, a explodir, a estoirar, a estreluzir, a detonar, a ribombar, a troar, a rugir no céu nocturno de Mokodi.
Do exterior, das ruas de Mokodi, vinha o estouro ocasional de um foguete, uma canção, o grito de alegria de um bêbado. Mas a cidade estava a ir para a cama, para fazer amor ou para dormir. Os papelinhos eram projectados para as sarjetas pelo vento quente da noite. Farrapos de nuvens deslizavam diante duma lua cor de limão. Vinda de algures, a voz de barítono da sirene de um barco, interrompida a meio do seu gemido. E o ruído vago, longínquo, interminável da rebentação.
Por volta das 02.00, a multidão que enchera o salão de baile do palácio estava reduzida a uma dúzia de casais de olhos sonhadores. A rodopiar lentamente ao som de melodias de Edith Piaf. Tocadas por uma banda sonolenta. Os criados arrastavam fatigadamente os pés, limpando o buffet, os cinzeiros a abarrotar, as bebidas derramadas e os copos partidos. Antigos varredores, movendo-se ao som da música lenta, arrastavam as suas vassouras de pano pelo parquet do chão.
Na sala de audiências do primeiro andar, o descalço Ajaka colocou uma bandeja de prata com café e brande sobre a longa mesa de mogno e depois saiu a fazer vénias e a bocejar, direito à cama. Eles reuniram-se em volta da bandeja, para se servirem.
- Uma festa magnífica, Sr. Presidente - disse o Homem de Tulsa.
- Não me recordo de outra melhor - disse o Homem de Nova Iorque.
- Fico feliz por terem gostado - disse Anokye. - Espero que voltem frequentemente para verem melhor o nosso belo país.
Não se sentou na cadeira à cabeceira da mesa, escolhendo uma a meio da parte lateral. O Primeiro-Ministro Willi Abraham sentou-se à sua direita, o Ministro da Justiça Mai Fante à sua esquerda. Os homens do petróleo sentaram-se diante deles, com Peter Tangent entre o Homem de Tulsa e o Homem de Nova Iorque. Por momentos, nenhum deles falou; beberam cautelosamente o café quente e forte ou levaram o brande aos lábios.
- Espero que não estejamos a incomodá-lo, Sr. Presidente - disse o Homem de Nova Iorque.
- Mas vamos apanhar o avião de manhã - disse o Homem de
98
Tulsa. - E esta pareceu-me a única altura para termos uma conversa.
- Não me incomodam nada - garantiu o Capitãozinho. - Trabalho muitas vezes durante a noite. Acho o trabalho mais produtivo quando todos estão a dormir.
Eles olharam-no atentamente, mas nada havia nas suas maneiras que sugerisse que estava a implicar algo para além do que dissera.
Tangent tinha avisado Obiri Anokye acerca daqueles dois executivos da Starrett Petroleum.
-A mim parecem-me gémeos - tinha ele dito ao Presidente. - Um fala com o sotaque de Oklahoma, o outro com o de Nova Iorque. Mas são quase idênticos no aspecto e no estilo. Devem trazer fatos de seda pretos, camisas azul-claras e gravatas prateadas ou às riscas. Se forem às riscas, são gravatas dos regimentos do Exército britânico. Mas se eu lhes sugerisse que era uma vergonha usarem as cores de um regimento militar a que nunca pertenceram, olhariam para mim como se eu fosse doido. As gravatas vêm de Inglaterra, não vêm? Os Ingleses ajudam a sua balança de pagamento vendendo as suas riscas regimentais e o xadrez dos clãs pelo mundo inteiro, não ajudam? E daí? Só estou a dizer-lhe isto, Sr. Presidente, porque revela a mentalidade deles. A Mentalidade Básica deles. O lucro é bom, o prejuízo é mau. O lucro é esperteza, o prejuízo é estupidez. Por isso, sugiro-lhe que lide com eles nestes termos. Como a maior parte dos homens de negócios internacionais, são apolíticos. Mas não os subestime; são homens duros, muito práticos. Astutos como mercadores de tapetes libaneses ou negociantes de diamantes de Amesterdão. Pretendem servir-se de si.
O Capitãozinho olhara curiosamente para Tangent.
- É assim tão estranho? - perguntara.
Agora, sentado diante deles, Anokye compreendia por que motivo Tangent os via como gémeos. Ambos os executivos americanos tinham um brilho polido, rostos em que a idade e a experiência não tinham, aparentemente, deixado marcas interpretáveis. Apesar das longas festividades do dia, estavam sóbrios, impecavelmente limpos, com os fatos sem rugas, alerta e penetrantes. O Capitãozinho deu consigo a desejar ter homens como aqueles a trabalhar para si. Eram homens de segunda fileira, mas dos bons.
- Sr. Presidente - principiou Tangent -, pedimos esta audiência para conhecer a sua reacção a um projecto que a Starrett está a explorar.
- Ainda bem que o Peter disse "explorar" - observou o Homem de Nova Iorque. - Ainda está em fase de conversações.
99
- O fumo branco vem longe - disse o Homem de Tulsa. - Mas é uma possibilidade. Para o futuro.
- O que a Starrett tem em vista - prosseguiu Tangent - é construir uma refinaria de petróleo algures na costa ocidental de África, de modo que o crude extraído dos poços do Achanti seja fraccionado em produtos comerciáveis nesta área, em vez de ser enviado para a nossa refinaria da Irlanda.
- Faz sentido economicamente - disse o Homem de Tulsa. - Poupa os custos de transporte.
- E aproxima-nos mais dos nossos mercados finais em África - disse o Homem de Nova Iorque. - É bom para toda a gente. Para nós, evidentemente, mas também, graças à economia assim obtida, para os consumidores. Eventualmente. .
- Mas as refinarias não são baratas - disse o Homem de Tulsa.
- Longe disso - disse o Homem de Nova Iorque.
- Compreendo - disse Anokye lentamente. - E onde vai ser construída essa refinaria?
- É esse o propósito desta reunião - apressou-se a dizer Tangent. - Tanto quanto sei, há diversos locais excelentes em consideração. Não é verdade?
Olhou para a direita e para a esquerda, e ambos os executivos da Starrett acenaram afirmativamente.
- Diversos locais excelentes - repetiu Tangent. - Estamos agora a falar com os respectivos governos. Naturalmente, pretendemos as condições de concessão mais vantajosas que conseguirmos obter. Por certo compreende isso, Sr. Presidente.
- Com certeza.
- Um dos locais que temos em vista é Achanti, tenho o prazer de lhe dizer. Portanto, a natureza desta conversa é exploratória. Se conseguirmos chegar a um acordo justo, é possível que a refinaria seja construída aqui, e Achanti beneficiará das vantagens de ter uma das mais modernas, produtivas e lucrativas instalações do seu género em África.
- Sem dúvida - disse o Homem de Nova Iorque. - Exigindo uma grande quantidade de mão-de-obra local durante a construção, naturalmente. Isso seria bom para aliviar o desemprego.
- Com os técnicos vindos do exterior a gastar o seu dihero aqui em Achanti - disse o Homem de Tulsa. - Para não falar das novas estradas, instalações portuárias e outras vantagens.
- Compreendo - disse Anokye pensativamente. - E diz que têm diversos locais em consideração?
- Exactamente, Sr. Presidente - disse animadamente o Homem de Tulsa. - Não há garantias de Achanti ser contemplado.
- Ficará onde conseguirmos as melhores condições, como Peter
100
disse - disse o Homem de Nova Iorque, acenando afirmativamente com a cabeça. - É negócio.
- Bem... - disse o Capitãozinho com ar duvidoso - Embora eu aprecie o facto de a Starrett estar a pensar em Achanti, não estou bem certo... Willi, qual é a tua reacção?
- Receio não poder manifestar grande entusiasmo, Sr. Presidente - disse o bem preparado Abraham. - Embora a industrialização de Achanti viesse a ter alguns benefícios óbvios, receio que isso afectasse adversamente o turismo, que constitui uma fatia muito substancial do nosso produto anual. Os turistas vêm a Achanti à procura de uma forma de vida mais simples, não poluída. Querem ver as verdes colinas de África, as nossas aldeias, um estilo de vida que existiu outrora, talvez, nos seus próprios países, mas desapareceu para sempre. Receio que não conseguíssemos atrair visitantes se a nossa principal atracção fosse uma refinaria de petróleo. É exactamente o tipo de coisas de que eles querem livrar-se, deixar para trás, quando vêm a Achanti.
- Dizes bem - disse Anokye, acenando afirmativamente com a cabeça, com um ar muito grave. - Mai, que pensas tu?
- Praticamente o mesmo que o Primeiro-Ministro Abraham, Sr. Presidente. Devo acrescentar que a construção de uma refinaria em solo achanti teria repercussões sociais e políticas muito graves. Temos uma organização crescente de ambientalistas em Achanti, sempre pronta a manifestar-se, e que reagiria, sem dúvida, com indignação, à proposta de construção de uma refinaria. Chamaria a atenção para os seus esfeitos poluentes sobre o ar e a água puros. Por certo se juntariam à sua oposição os pescadores e proprietários de hotéis junto à costa. Tenho muitas dúvidas quanto a esse projecto para o Achanti, Sr. Presidente.
Anokye suspirou.
- O que dizem consubstancia a minha própria opinião. - Olhou para os três homens do petróleo, um a um. - Agradeço a vossa amável oferta, meus senhores, mas devo pedir que Achanti seja excluído como um local possível para a vossa nova refinaria de petróleo.
Depois de se recuperarem do choque inicial, os dois executivos da Starrett passaram rapidamente ao ataque. Tangent disse pouco, satisfeito - satisfeito? -, encantado, a observar e a escutar aquele vivo diálogo.
Eles persuadem. Anokye despreza. Eles bradam. Ele troveja. Eles ameaçam. Ele encolhe os ombros. Eles imploram. Ele rejeita. Tangent vê a cena como um ballet verbal - aproximações e recuos, piruetas e saltos. Terminando numa graciosa vénia de todos os intérpretes, enquanto as rosas chovem da escuridão.
101
Consciente da experiência profissional do Homem de Nova Iorque e do Homem de Tulsa, Tangent estava divertidíssimo com a implacabilidade do Capitãozinho. Foi apanhado na maré, no fluxo, no impacte, no recuo, e mal se apercebeu de quando, ou por que meio, Obiri Anokye introduziu a sua exigência de um subsídio incondicional para "expansão nacional".
A batalha recrudesceu, com os visitantes do ultramar a porem-se de pé e a passearem iradamente pela sala. Até que a firmeza de Anokye acabou por os desgastar, física e emocionalmente, e deixaram-se cair novamente nas suas cadeiras e perguntaram-lhe quanto queria, e Tangent apercebeu-se, com espanto e respeito, que o Capitãozinho tinha ganho: tinha conseguido o seu subsídio incondicional e os ambientalistas de Achanti tinham desaparecido tão depressa quanto tinham sido inventados.
O vencedor recostou-se na sua cadeira, solene, sem jactâncias, e deixou que Willi Abraham e Mai Fante moldassem as condições: a Starrett conseguia o local para a refinaria de Achanti por três milhões e meio de dólares americanos, a pagar em seis prestações durante um período de dezoito meses, sendo os pagamentos em dinheiro encobertos de diversas maneiras: adiantamentos sobre os lucros previstos, investimentos em propriedades sem valor do Achanti, contribuições para escolas e hospitais, a criação de uma fundação de Amigos da África Ocidental nos EUA. Abraham e Fante tinham estudado bem a lição.
Quando o acordo final foi alcançado, perto das 04.00, os dois executivos da Starrett, vencidos, apertaram cerimoniosamente a mão do Presidente Obiri Anokye.
- Sr. Presidente - disse o Homem de Nova Iorque -, se alguma vez se fartar de governar o Achanti, há um lugar para si na Starrett Petroleum.
- Em qualquer altura - disse o Homem de Tulsa. - Em qualquer parte do mundo. Basta dizer-nos quanto quer ganhar. Não peça... imponha!
Sorrindo suavemente, o Capitãozinho desejou-lhes boa noite e uma viagem segura e rápida de regresso.
Tangent levou-os de carro até às suas suites para VIP no Mokodi Hilton, perguntando a si mesmo, com selvagem satisfação, se ainda lhes restaria energia suficiente para gozarem os prazeres que J. Tom Petty lhes tinha reservado.
Yvonne Mayer estava sentada na almofada central de um sofá de vime. Estava forrado com uma sarja grossa com um desenho em ba-tik em tons vivos de amarelo, laranja e castanho, contrastando com
102
o peignoir cor de pêssego que ela usava. Tinha as pernas cruzadas; espreitou para baixo, pelos óculos de meia-lua, enquanto limava as unhas com uma lixa fina. Tinha ao seu lado a edição da noite do New Times de Mokodi, o único jornal do Achanti. Trazia na primeira página o discurso do Presidente no Zabarian.
- Foi transmitido de hora a hora pela rádio assim que a estação entrou no ar - disse ela. - Bibi, foi sensato?
- Sensato, insensato. - Ele encolheu os ombros. - Penso que muitos africanos vão reagir favoravelmente. É altura de me tornar conhecido noutros países, de fazer amigos. Não posso fazer tudo sozinho, do Achanti. Preciso de ter homens noutros países que me conheçam, que conheçam as minhas ideias, que acreditem em mim.
Ele e o Sargento Sene Yeboa tinham descalçado os sapatos e tirado as meias. Estavam sentados, à vontade, em cadeirões de braços de vime, bebendo cerveja Star. Havia um único candeeiro aceso que projectava uma fraca luz. Mas, através das janelas voltadas a oriente, via-se o céu negro a clarear.
-: Sene, já tens homens prontos?
- Três, Capitãozinho. E mais dois dentro de uma semana.
- Óptimo. Vamos mandar dois para Lomé, dois para Cotonou, um para Lagos. Vamos dar-lhes instruções e entregar-lhes fundos.
- Já a pediste? - disse Yvonne, sem erguer o olhar das unhas.
- Já - disse Anokye. - Já a pedi.
- Ela disse que sim, evidentemente...?
- Disse que sim.
- Pedi que ma apontassem durante a cerimónia do petróleo - disse Yvonne, erguendo finalmente os olhos e fitando-o por cima dos óculos. - É gorda.
Anokye não falou.
- Daqui a alguns anos, parece uma porca.
Ele olhou-a friamente. O peignoir tinha-se entraberto. Viu os seus joelhos macios, as pernas lustrosas. Recordou-se do seu corpo. Parecia uma cobra rapada. Sene Yeboa conservava os olhos na cerveja.
- O casamento será daqui a três meses - disse ele. - O meu casamento. O teu será mais cedo.
Ela fez um gesto de amuo e começou a tratar da outra mão.
- Conseguimos o dinheiro - disse-lhe ele. - Da Starrett.
- Quanto?
- Bastante. Nkomo e eu vamos começar a examinar armas imediatamente. Quando se souber que queremos comprar e temos fundos, não haverá problemas.
Falava tanto para si próprio como para ela.
- Talvez pudesses ir a Gotonou - disse ele. - Não, ainda não.
103
Há um certo homem, o ajudante do Primeiro-Ministro. Mas vou esperar pelo relatório de Leiberman; depois decido. Estou cansado. Foi um longo dia.
- Vais dormir aqui?
- Sim. Não. Bom, talvez uma hora ou duas. Só passar pelo sono. Depois volto para o palácio. Há muito que fazer. Muito...
Fez-se silêncio, e, quando ela ergueu o olhar das unhas, viu que ele tinha adormecido no cadeirão, com o queixo caído sobre o peito.
- Pobre Bibi - disse ela, com um suspiro suave. - Sene, ajuda-me a levá-lo para o quarto.
Entre ambos, levaram para o quarto o Presidente do Achanti, meio adormecido, a tropeçar e a murmurar palavras ininteligíveis, e depositaram-no suavemente sobre a cama, deitado de costas.
- Obrigada, Sene - murmurou Yvonne. - Vou deixá-lo dormir algumas horas. Vais esperar por ele?
- Oh, sim. Tenho de o levar de volta ao palácio.
- Se quiseres dormir, vai para o quarto de hóspedes. Acordo-te quando ele acordar.
- Não tenho sono.
- Há cerveja na cozinha, e comida, se tiveres fome. Serve-te à vontade.
- Obrigado, Yvonne.
Ela pôs-se de pé, descalça, e deu-lhe um rápido beijo na face. O homem ficou paralisado por momentos, e depois sorriu-lhe, tímido e intrigado. Voltou-se e saiu da sala. Ela fechou a porta atrás dele.
O quarto não estava iluminado, mas os estores de bambu estavam subidos e os cortinados corridos para os lados. Havia luz suficiente para ela poder desabotoar a camisa e as calças de Anokye e despi-lo. Ele emitia gemidos e sons de protesto, enquanto ela puxava as roupas, tentando libertá-lo delas. Finalmente, ficou nu, deitado de costas, com as pernas afastadas, os braços abertos. O seu grande peito peludo subia e descia lentamente. Ela quase podia ver a sua força tensa a escapar-se dos membros enquanto a sua carne se descontraía, mergulhava no sono. Ainda se mexeu algumas vezes e gemeu um pouco. Depois ficou imóvel. Quase, pensou ela, com a imobilidade da morte.
Sentou-se ao lado dele, na beira da cama, olhando para a sua negra majestade. Pousou a palma da mão, levemente, com os dedos afastados, na sua coxa. A pele estava quente. A mão branca dela lembrava um sol fulgente, com os dedos como raios.
A mão dela moveu-se; tocou cuidadosamente na sua haste negra. Ele não se moveu. Ela ergueu-a delicadamente, como quem segura no pé de um copo de vinho. Ao mesmo tempo, a sua outra mão
104
LAWRENCE SANDERS
desapareceu por debaixo do peignoir, entre as pernas. Tocou em si própria. Sentiu imediatamente brotar uma humidade pegajosa.
Perdida, inclinou-se lentamente sobre ele, tocando-lhe os lábios com os seus. Conservava os olhos voltados para cima; observava ansiosamente o rosto dele. Era importante que ele não acordasse. Todos os seus movimentos, nele e em si própria, eram pequenos, disfarçados, isentos de paixão. O momento parecia-lhe agridoce, de uma forma que não entendia. Tão pungente como uma despedida.
Quando o pénis dele começou a endurecer, ela parou imediatamente. Retirou os dedos, dele e de si própria. Ergueu-se cuidadosamente, dirigiu-se em silêncio para a porta e fechou-a suavemente atrás de si. Na sala, acendeu um dos Gauloises dele e saiu para o alpendre. O céu a oriente estava a ficar acinzentado, alterando-se a cada momento. Um novo sol, um novo dia. O ar cheirava a isso mesmo. Fresco e orvalhado. Um ar que cheirava a flores, um mundo perfumado. Abraçando os cotovelos, com o cigarro pendente dos lábios, deu a volta até às traseiras da casa, sentindo a erva húmida por debaixo dos pés descalços, pisando um emaranhado de ervas baixas e molhadas cujo nome desconhecia e um canteiro de flores altas cujo nome não conseguia recordar.
Quando voltou a entrar em casa, pela porta das traseiras que dava para a cozinha, Sene Yeboa estava acocorado, com uma Smith & Wesson .38 engolida pelo seu punho enorme, apontada para a porta. Quando a viu, introduziu facilmente o revólver no coldre preto que tinha à cintura e foi sentar-se, pegando novamente na cerveja e na sanduíche.
- Desculpa - disse ela humildemente.
Ele mastigou, sorriu e fez-lhe sinal para se sentar na cadeira à sua frente. A mulher foi buscar uma garrafa de Star ao frigorífico e fez-lhe companhia.
Ele engoliu rapidamente, com a ajuda da cerveja.
- O Capitãozinho está a dormir?
Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
- Óptimo. Foi um longo dia. Teve de sorrir para muita gente. Eu não aguentava.
Ela observou-o atentamente. Era um homem grosseiro e pesado, não tão escuro como Anokye. Tinha, dissera Obiri, sido "feito no mato": pai branco, mãe negra. Embora não soubessem quem eles eram. Tinha sido criado numa missão cristã. Um rapaz silencioso e fechado. Mas, quando fora enviado para o lycée de Mokody, tinha conhecido Obiri Anokye, e a sua vida tinha então principiado. Uma amizade de juventude e depois juntos no exército. Tinha matado pelo Capitãozinho e morreria de boa vontade por ele.
Era da idade de Bibi, mas faltava-lhe a majestade do Capitão-
105
zinho. Havia sensualidade nas suas feições grosseiras, quase abruta-lhadas. As narinas largas fremiam. Os lábios grossos estavam voltados para fora, deixando ver a pele interior vermelha e húmida. O queixo liso parecia nunca precisar de ser barbeado. Olhos pequenos e apertados. Pescoço largo. Ombros arredondados, volumosos. Um corpo forte. "Um touro", chamara-lhe Anokye. Ali estava ele, na inclinação truculenta da cabeça e do tronco. Pronto a marrar.
- E tu, Sene? - perguntou ela. - Não estás cansado? - Falavam akan, agora. Anteriormente, na sala, com Anokye, tinham falado inglês. O presidente insistia nisso, querendo melhorar a sua proficiência.
Yeboa encolheu os ombros maciços.
- Durmo amanhã - disse. - Quando puder. Yvonne, o casamento do Capitãozinho incomoda-te?
Foi a vez de ela encolher os ombros.
- Aceito-o - disse.
- Óptimo - disse ele animadamente, como se isso encerrasse o assunto. - Ele vai arranjar tudo para a tua felicidade; tu verás.
- A minha felicidade?
- Evidentemente - disse ele. Fez um gesto com a mão. - Tens esta bela casa. Criados. Agora és dona do Bezerro de Ouro. Não achas tudo isto melhor?
Ela ficou em silêncio, mas algo nos olhos dela o fez fitá-la, com espanto.
- Sentes a falta da vida? - perguntou.
Ela poupava a simpatia e a bondade como as outras pessoas punham dinheiro no Banco. Para um dia difícil.
- Como soubeste? - perguntou ela. - A minha família veio para África, vinda do Saar. Não veio. Foi empurrada. O meu pai era um ladrão, a minha mãe uma alcoólica. Só consigo recordar-me de fome e de maus tratos. Por isso, fugi.
Nada daquilo era verdade, e perguntou a si mesma por que estava a dizer-lho.
- Sim, sinto a falta da vida - disse. - Não dos homens. Das raparigas. Das amigas. Éramos como uma família, um lar. Nunca tive um lar.
Tinha dito as palavras devidas. Brilharam lágrimas nos olhos dele. A sua mão deslizou pela mesa e cobriu a dela.
- Também eu - disse. Com voz baixa e embargada. - Não tive lar, não tive família. Até conhecer o Bibi. Depois tive a família dele, a casa dele. Mas não a minha.
Ela acenou com a cabeça, sem falar.
- Que homens vais mandar para Lomé e Cotonou? - perguntou.
106
- O Capitãozinho quer ter noutros países homens em quem possa confiar. Para saber coisas. E também aqui em Achanti tenho homens para escutar e saber o que se passa. Como a polícia secreta de Prempeh.
- Bibi pôs-te a comandar tudo isso? - perguntou ela.
- Oh, sim - disse ele, com orgulho. - Quer que eu recrute e treine esses homens. Eles responderão perante mim. É uma tarefa muito importante. E difícil. Não sei se conseguirei fazê-la.
- Vais fazê-la - disse ela, voltando a mão para apertar a dele.
- Eu ajudo-te.
9
Em Mokodi, a Rua Dumas é paralela ao Boulevard Voltaire, um quarteirão para oeste. É, ao longo de quatro quarteirões, um popular centro comercial, especialmente para os turistas. É dominada pelo Monoprix, o equivalente francês do Woolworth, e pelos escritórios do American Express e diversos consulados estrangeiros.
À esquina de uma rua estreita de leste para oeste, chamada Beco da Canela, fica a loja de curiosidades de Lum Fong. Nas suas pequenas montras vêem-se magníficos exemplares do Renascimento de Hong-Kong: saladeiras laçadas, transístores, flores de seda, árvores bonsai de arame, conchas pintadas, mãozinhas de bambu para coçar as costas, caixas para tabaco com a forma de crânios humanos, jóias de latão, amuletos "africanos", cortinados de contas e cinzeiros com a forma de mãos de negros com as palavras Recordação de Achanti.
Quando Sam Leiberman entrou na loja perfumada com incenso, uma sinuosa rapariga chinesa aproximou-se avidamente. Envergava um cheongsam de seda azul-eléctrico.
- Bom dia, senhor - disse ela alegremente. - Posso mostrar-lhe alguma coisa?
- Pode - disse Leiberman. - Está a falar a sério? Ela desviou o olhar.
- Em que posso servi-lo, senhor?
- Quero falar com Lum Fong.
- Vou dizer ao mestre que está aqui - disse ela.
- Mestre de quê? - gritou-lhe ele. - Dos pauzinhos de plástico?
Lum Fong veio atrás dela do gabinete interior. Era um chinês mirrado com uma barbicha rala. Usava uma bela túnica de brocado com uma gola alta e alamares. Os seus pés minúsculos estavam
enfiados em chinelas de veludo sem salto. Fez tocar as longas unhas das mãos e curvou-se numa vénia profunda.
- Ahh, Reiberman - disse. - A minha insignificante loja fica muito honrada com a sua augusta presença.
- Deixa-te dessas tretas de mandarim e fala como gente - disse Leiberman. - Vamos lá para o fundo.
Fong conduziu-o, através de uma cortina de contas, para um amplo escritório. Maior do que a loja. Leiberman disse:
- Podes começar por me oferecer um dedal daquela aguardente de ameixa que guardas no armário vermelho laçado.
O chinês produziu um som profundo na garganta, como o ronronar de um gato. Leiberman supôs que significaria uma risada divertida.
- Não esquece nada - disse Fong.
- É verdade, não esqueço nada do que é importante - concordou Leiberman.
Sentou-se numa cadeira de braços em madeira muito trabalhada, diante da secretária, a ver o chinês encher cuidadosamente minúsculas chávenas de chá com a aguardente. Leiberman pegou na sua, cheirou-a e bebeu um pequeno golo, apreciativamente.
- Isto dá vida a um morto - disse. Recostou-se e passou um joelho por cima do braço da cadeira.
O mercenário era um homem pesado, carnudo. Tinha uns braços grossos, peludos, com pulsos fortes. O seu casaco de safari, de mangas curtas, deixava ver uma cicatriz esbranquiçada que ia desde o bíceps direito até ao antebraço, passando pelo cotovelo. O sol dera-lhe um bronzeado cor de tijolo-escuro. Usava os cabelos grisalhos e espetados cortados à escovinha. Olhos apertados. Orelhas pequenas e lisas. O nariz era largo, os lábios protuberantes. Um rosto grosseiro. Uma voz arenosa. Um riso grumoso.
- Como vão os negócios? - perguntou. Lum Fong encolheu os ombros.
- Vou vivendo.
- Como todos nós-disse Leiberman. - A heroína está a chegar com regularidade?
A expressão do outro não se modificou.
- Não sei de que está a falar, Reiberman - disse com voz suave.
- É claro que sabes - disse Leiberman jovialmente. - Estou a trabalhar fora do palácio, agora; tu sabes disso. Estou-me nas tintas para o teu biscate, mas não me parece que El Presidente gostasse muito. Até era capaz de mandar aquele sargento bruto dele meter-te a mão no eu e virar-te do avesso. Acho que não ias gostar muito, Lummy.
108
O chinês endireitou-se e suspirou.
- Que quer, Reiberman?
- Um pequeno favor. Muy poço. Tens primos no Benim? Lum Fong acenou afirmativamente com a cabeça.
- Cotonou ou Porto-Novo? - perguntou Leiberman.
- Ambos.
- Óptimo - disse Leiberman.-Há um político chamado Chris-tophe Michaux. Alto, magro, cor de areia. Cabelo untado e penteado no cabeleireiro. Para mim, é pintado. Barbicha de bode. É secretário ou ajudante do Primeiro-Ministro. Quero um relatório acerca dele. Coisas que o Quem é Quem não se interessaria em imprimir. Capi-che?
Lum Fong voltou a acenar afirmativamente com a cabeça.
- Só isso? - perguntou.
- Só isso - disse Leiberman. - O mais depressa possível. Não foi assim tão mau, pois não?
Bebeu o resto da aguardente, tirou a perna do braço da cadeira e pôs-se de pé. Lum Fong pôs-se também de pé, por detrás da secretária. Tocou com as longas unhas umas nas outras e fez uma vénia tão profunda que a barbicha rala tocou na túnica de brocado.
- A minha humilde morada foi honrada pela sua sublime presença - disse.
- Ai, ai - disse Liberman, suspirando. - Fu Manchu ataca de novo.
10
- É linda - disse Tony Malcolm. - Viste-a?
- Não - disse Peter Tangent. - Já estava encaixotada quando a fui buscar.
- Um bronze do Benim - disse Malcolm. - Um excelente trabalho. Dez mil. No mínimo. Talvez vinte mil.
- Um pequeno sinal da estima do Presidente - disse Tangent, sorrindo. - Pela tua ajuda na história da refinaria. Pediu-me que te dissesse que continua a sentir-se obrigado.
- Começo a ver o Capitãozinho a uma nova luz - disse Malcolm. Tangent riu-se.
- Já calculava - disse. - Queres pedir a comida? Estavam sentados à sua mesa de canto favorita no Brindleys.
Envergavam smokings, faziam parte da multidão que iria ao teatro depois do jantar. Iam ver Ela fazia-o, se pudesse, uma peça musical
FACTOR TANGENT
109
americana baseada em António e Cleópatra, que um crítico de Londres tinha descrito como "Uma ave para o Bardo... um peru".
- Que é que comes? - perguntou Tangent, observando a ementa.
- Solha de Dover.
- Vou nisso. Queres um Moscatel?
- Por que não? Ajuda a suportar o sofrimento da peça. Dizem que é uma desgraça.
- Então por que vamos vê-la?
- Parece que, ultimamente, não temos muito mais coisas para fazer juntos, não achas?
- Acho - disse Tangent com certa tristeza. - Ah, bom... Transmitiu os pedidos a Harold, o idoso criado, e depois olhou em
volta, para a sala cheia. Homens e mulheres em trajos de noite. Na sua maior parte, jovens, elegantes, cintilantes. O ruído das conversas requintadas.
- Estou em África - disse a Malcolm -, a terra do caqui manchado de suor. E depois, poucas horas mais tarde, vejo-me no meio disto. Uma curiosa diferença de fusos. Chamemos-lhe diferença de cultura. É difícil ajustarmo-nos tão depressa.
- Estás a queixar-te?
- Meu Deus, não. Tony, não te perguntei se querias um aperitivo. Esta noite têm salmão fumado.
- Não, obrigado; passo. Tinha mais duas libras esta manhã.
- As nossas acções também.
Trocaram sorrisos, novamente à vontade um com o outro, e observaram Harold, que desenrolhava amorosamente o seu vinho.
- Este é muito bom, meus senhores - disse ele. - Terra na língua, ferro nos dentes.
- E ácido no fígado - disse Malcolm, provando a bebida. - Hum, óptimo. Então ele conseguiu a refinaria? E o dinheiro?
- Sem dúvida - disse Tangent. - Agora anda à procura de armas. O sistema Galíl de Israel. Conheces?
- Oh, sim. Excelente. Tão boas como as Uzi. Convertem-se em submetralhadoras, espingardas de longo alcance, lança-granadas, etc. Acho que lhe serve perfeitamente.
- Vai comprar mais tanques e carros para pessoal à França. Quer mantê-los satisfeitos.
- Muito sensato. Ele pensa em tudo, não pensa?
- Em tudo. E também quer material nosso.
- Nosso?
- Dos EUA. Material exótico.
- Por exemplo?
- Minas activadas pelo som, monitores electrónicos, espin-
110
111
gardas sem recuo, lança-mísseis. Especialmente os oitenta e sete. E alguns mísseis TOW.
•- Os TOW? São mísseis antitanques. Para que é que ele os quer?
- Sabe-se lá - disse Tangent. - Talvez goste de brinquedos. Ah, aqui estão eles. Têm bom aspecto, Harold.
- Pescados hoje, meus senhores.
- Nós ou os peixes? - perguntou Malcolm, e Harold encostou um dedo ao nariz.
- Óptimo - disse Tangent, depois de provar. - Como está o teu?
- Okay - disse Malcolm. -Apanhado ontem, se não tiver sido congelado.
- Eia, oui - disse Tangent com um suspiro. - Tu podes ajudar... se quiseres.
Malcolm não parou de comer.
- Ele não precisa da minha ajuda para comprar armas.
- Bom... tu sabes como é. Pode surgir quem pergunte para que é que uma pequena nação africana precisa de mísseis antitanques e helicópteros com metralhadoras equipadas.
Malcoím parou de comer.
- Helicópteros? - disse. - Não me tinhas falado disso.
- Não falei? - disse Tangent inocentemente. - Passou-me. Que te parece? Se a Virginia se ocupasse disso, as licenças de exportações seriam concedidas sem problemas.
- Oh, não sei - disse Malcolm. Levou o guardanapo aos lábios e endireitou-se. - Gostaria de conhecer o assunto um pouco melhor.
- Que queres saber?
- Para que precisa ele da artilharia pesada? Os planos dele.
- Já te disse o que sei.
- Duvido.
- Bom, o homem que lá tens, provavelmente, sabe mais do que eu.
- Alguma coisa. O Wilson é muito ávido.
- Então podes calcular o resto. - Tangent pousou os talheres, inclinou-se para a frente e olhou seriamente para Malcolm. - Tony, por favor, não me perguntes. Tenho uma obrigação para contigo, mas tenho uma maior para com ele. Eu sei que tu podes somar dois e dois sozinho. Com aquilo que eu te digo e o que Jonathan Wilson te manda. Não te basta?
- Aparentemente, vai ter de bastar - disse Malcolm. - Esta noite têm tortoni. Já experimentaste uma chávena grande de café expresso com uma colher de tortoni lá dentro?
- Nunca.
- É magnífico.
- E a tua dieta?
- Que se lixe a dieta. Vamos a isso.
Aguardaram em silêncio que a mesa fosse levantada. Harold trouxe o tortoni, chávenas, a cafeteira de cobre do expresso.
- Por favor, dêem-lhe uns minutos para filtrar, meus senhores - disse.
- Que é que eu ganho com isso? - perguntou Malcolm.
- Se a Virginia conseguir as licenças de importação?-perguntou Tangent. - Vejamos o que tenho para oferecer... - Pensou durante um minuto. - O Wilson está a fazer um bom trabalho por lá?
- Bastante bom. A cobertura da Embaixada foi ao ar, evidentemente.
- Gostarias de ter alguém lá dentro? Dentro do palácio? Malcolm endireitou-se.
- Como? - perguntou.
- O Capitãozinho queixou-se de que estava muito ocupado. Sugeri-lhe que mandasse vir um consultor de gestão para observar as suas funções e organizá-las por ele. Sabes como é... fazer recomendações para reorganização do pessoal, design dos escritórios, papelada, impressos, etc. Ele gostou da ideia. Quer modernizar a sua administração. Foi a sua palavra: "modernizar". A Virginia poderia enviar alguém sob a cobertura de uma firma legítima de Londres, não podia?
Malcolm experimentou a cafeteira de expresso, descobriu que o café estava pronto e encheu a chávena de Tangent e a sua.
- Só uma colher de tortoni - disse. - Deixa-a flutuar. Assim... Tangent experimentou.
- Tinhas razão - disse. - Magnífico.
- Os pequenos prazeres da vida - disse Malcolm. Se conseguirmos bastantes, eles somam-se e nós vamos aguentando. Uma ideia interessante. Essa do consultor de gestão no palácio. Eu podia conseguir isso. Vais dizer a Anokye que tem um espião da Virginia?
Tangent pensou durante um longo momento.
- É difícil saber onde reside a nossa lealdade - disse.
- Sempre foi - disse Malcolm.
- Não, não lhe digo-decidiu Tangent. - Por duas razões: uma, penso que ele é suficientemente inteligente para não revelar coisas importantes. Seja a quem for. Dois, quero a Virginia do lado dele. Não só agora, mas no futuro.
- Filho da mãe esperto - resmungou Malcolm. - Está bem. Eu envio uma recomendação à Virginia. Sem garantias. Pelo menos, vão saber quem ele é. O discurso dele levantou muita poeira.
Beberam alguns golos do seu café com tortoni. Tangent voltou a
112
olhar em volta. Numa mesa próxima estava uma ruiva jovem que usava um vestido de noite preto com um decote profundo. Em volta do pescoço tinha duas fileiras de grandes pérolas. Penetravam no rego entre os seus seios volumosos.
Tangent teve uma súbita e impressionante fantasia, imaginando Amina Dunama apenas com um colar de pérolas brancas. A brilhar contra a sua pele negra. A visão foi tão nítida, tão dolorosa, que teve de respirar fundo.
- Quê? - disse.
- Onde estavas? - perguntou Tony Malcolm. - Disse que era melhor pensarmos em ir andando. O pano vai subir.
- Sim - disse Peter Tangent. - O pano vai subir. Tony, diz-me uma coisa... Eu sei que tu trabalhas para a Virginia, e metade dos membros do Brindleys sabe disso. Não te incomoda que a tua cobertura seja tão transparente?
- Não, não me incomoda - disse Malcom. Teve um leve sorriso. - É de propósito.
- De propósito?
- Claro. Eu aguento o calor. Que te faz pensar que o meu grupo é o único em Inglaterra?
- Queres dizer que há outras... outras células sob disfarce?
- Evidentemente.
- Tu comunicas com elas?
- Não.
- Quem coordena?
- A Virginia.
- Queres dizer -*- repetiu Tangent incrédulo - que há outros grupos da Virginia aqui e talvez em África?
- É isso que eu quero dizer.
- Meu Deus. Nunca me tinha ocorrido. Poderá haver outro Tony Malcolm a actuar no Achanti, neste momento.
- Pode haver - confirmou Malcolm.
- Tens alguma ideia de quem possa ser? - perguntou Tangent. Malcolm fitou-o curiosamente.
- Talvez tu - disse
11
O Togo, como os seus vizinhos, Achanti e Benim, é uma faixa de terra norte-sul. Todos três ficam lado a lado, como postes de uma cerca na costa ocidental de África. E, como os seus vizinhos, o Togo
113
tem uma única auto-estrada principal, que vai de Lomé, na costa, até Dapango, no Norte. Muitas estradas cruzadas e caminhos ligam as três auto-estradas recuperadas de Achanti, Togo e Benim.
Nos pontos onde essas estradas leste-oeste atravessam fronteiras, há guardas fronteiriços postados. Nos outros locais, as fronteiras nacionais não têm cercas nem guardas - as "fronteiras verdes" atravessadas por contrabandistas com a sua própria rede de estradas não beneficiadas, caminhos e atalhos.
A carta do Presidente Obiri Anokye para o General Kumayo Songo, do Togo, entregue por Adebayo Anokye, solicitava uma reunião clandestina com o general, num local e hora à sua escolha. O general tinha enviado uma resposta por Adebayo: terça-feira ao meio-dia numa aldeia deserta chamada Alampa, a sul de Pagala, no Togo. Não ficava longe da fronteira togolesa. Anokye poderia partir de Achanti de carro por uma estrada não recuperada de uma só via e chegar lá trinta minutos depois. Ou, se preferisse ir a pé pelas rotas dos contrabandistas, chegaria lá dentro de duas horas.
- Vamos a pé - disse o Capitãozinho ao Sargento Sene Yeboa. - Estou perro de estar tanto tempo neste escritório. Preciso de andar pelos campos outra vez. Levamos o Land-Rover até Gonja e a partir daí seguimos a pé. Só nós os dois. Vai ser como nos velhos tempos.
- Sim, senhor! - disse o Sargento Yeboa, sorrindo. - Garrafas de água? Comida?
- Não. Nada. Vamos provar que a boa vida não nos amoleceu. Yeboa sorriu novamente.
- Armas, Capitãozinho?
- Oh, sim - disse Anokye, acenando afirmativamente com a cabeça. - Traz a Uzi.
Ter-se-ia sentido tão excitado quanto Yeboa com a ideia daquele "passeio", se não fosse a escolha da aldeia deserta de Alampa para o encontro. Conhecia o local e receava-o. Uma reunião mais ou menos circular de palhotas, em volta de um largo de terra batida. Ninguém sabia quando aquela aldeia tinha sido habitada, ou quando ou por que motivo tinha sido abandonada. Ficava perto da margem de um regato sossegado que ia alimentar o Rio Mono. Estava situada numa ligeira elevação: terra verde, brisa fresca.
Todavia, as pessoas que lá tinham vivido haviam-na abandonado, levando as suas vacas e as suas cabras, carregando os seus haveres pessoais, transportando galinhas cacarejantes em grandes sacos. Tinham deixado antigas pedras da fogueira, palhotas vazias, alguns trapos a adejar ao vento, silêncio. As ervas e as árvores tinham-se acercado. Os campos outrora arados tinham sido invadidos pelas ervas altas. As cabanas de cúpula, batidas pelas tem-
114
pestades, cozidas pelo sol, tinham-se abatido sobre si próprias, como velhos engelhados.
Talvez tivesse surgido uma peste. Talvez uma seca prolongada tivesse secado o regato e minguado as colheitas. Ou talvez, como diziam alguns na vizinha Pagala, o lugar tivesse sido amaldiçoado. Por um xamã, um deus hostil, ou talvez pelos pecados dos habitantes. Fosse pelo que fosse, Alampa estava abandonada. E, apesar da beleza do local, nunca pessoa alguma mostrou o mínimo desejo de ir morar novamente naquelas palhotas decadentes. O lugar estava amaldiçoado.
Mas Anokye tinha de reconhecer o seu valor como cenário de um encontro secreto. Não haveria visitantes casuais. Nenhum pastor se aventuraria por perto. Era, em África, uma terra-de-ninguém.
A rota dos contrabandistas levava às colinas e ultrapassava-as. A subida forçava os músculos das coxas e das barrigas das pernas. Mas as cãibras arrefeciam, naquele dia quente e suado, e, ao fim de algum tempo, a viagem transformou-se numa excursão. Acertaram as passadas regulares, com Yeboa à frente. Mas resolveram brincar um pouco no mato: correndo loucamente pelas encostas macias e livres, avançando silenciosamente até se aproximarem dos javalis que se alimentavam, tentando agarrar as patas das aves que comiam. Estavam no seu elemento; era como um regresso a casa.
Era perto do meio-dia quando chegaram a Alampa, com os fatos camuflados ensopados em suor. Tinham seguido em direcção a Pagala e depois voltado para sul. Tudo isto sem mapa nem bússola. Separaram-se então e deram a volta à aldeia deserta, partindo de direcções opostas. Não havia sinal de visitantes. Nada indicava uma armadilha. Acocoraram-se, apoiados nas coxas, à sombra de uma cabana em ruínas, fumando Gauloises amachucados, aguardando em silêncio. Não ouviram gritos de aves nem sons de pequenos animais a farejar no mato. Apenas o ar silencioso e vazio. Finalmente, o som de um carro que rodava pela estrada Pagala-Akaba. Ficaram à escuta. O motor parou.
- Vigia - disse Anokye.
Yeboa acenou com a cabeça, tirou a Uzi do ombro e desapareceu. Instantaneamente. Desapareceu no meio da verdura. O Capitãozi-nho abriu uma cova, com o calcanhar, para as pontas dos cigarros, na terra seca e poeirenta, e depois cobriu-os. Penetrou mais na sombra da palhota em ruínas. Desapertou o coldre do ombro onde tinha a sua Walther P^38.
O General Kumayo Songo vinha sozinho, a resfolegar por causa da ligeira subida da estrada até à aldeia. Usava um uniforme de caqui, boné, cinturão. O Presidente Anokye viu-o aproximar-se, sem qualquer expressão no rosto, reparando nos seus ombros arredonda-
115
dos, no ventre proeminente, no andar trôpego. O homem era uma desgraça; o mato não era lugar para ele. Chegou com a respiração sil-vante e parou, olhando em volta prudentemente. Estava, notou Anokye, assustado.
Saiu lentamente de detrás da cabana arruinada.
- Bom dia, general - disse brandamente.
Songo deu uma súbita meia volta, tirou o boné, passou a mão pela testa suada, voltou a pôr o boné, ajeitou o casaco da farda, tentou sorrir e fez uma ligeira vénia - tudo isto num movimento rápido e nervoso.
- Bom dia, Sr. Presidente - disse.
- Para a sombra? - Anokye fez um gesto. - Receio que tenhamos que ficar de pé. Mas o que eu tenho para dizer não deve levar muito tempo.
Obedientemente, Songo seguiu-o para a semiobscuridade. Ainda respirava pesadamente. Havia manchas semicirculares por debaixo das suas axilas, e mais manchas de suor em volta dos rebordos do cinturão muito apertado.
- Espero que esteja de boa saúde - disse Anokye delicadamente. Falava twi.
- Estou bem, Alá seja louvado - respondeu Songo. - Sente-se feliz?
- Graças a Deus - replicou Anokye, e depois passou a falar francês. - Espero que a sua família se encontre bem.
- Estão todos bem, obrigado. E os seus?
- De boa saúde. O seu filho... peço-lhe que lhe dê os meus cumprimentos.
- Assim farei.
- A minha irmã Sara fala dele com afecto. E frequentemente.
- E ele dela. - A respiração de Songo tinha-se regularizado. Tentou uma pequena risada. - Penso que talvez venhamos a ser parentes.
Anokye acompanhou a risada do general.
- Também me parece. Que acha dessa ideia, general?
- Gostaria muito - apressou-se Songo a afirmar. Observou Anokye, na semiobscuridade.
- Eu também - disse o Capitãozinho. - Há o problema da religião. Mas essas coisas arranjam-se, quando o único desejo é a felicidade de todos.
- É exactamente o que eu penso - disse Songo.
- Se o seu filho vier procurar-me - disse Anokye -, embora, na verdade, devesse antes falar com o meu pai, posso garantir-lhe que não ficará desapontado.
116
- Obrigado, Sr. Presidente - disse Songo num tom de gratidão. - É o meu filho mais velho; quero o melhor para ele.
- Evidentemente - disse o Capitãozinho. - E eu para Sara. Mas não foi esse o motivo por que pedi este encontro.
- Oh? - fez Songo.
, A escuridão incomodava o Presidente Anokye. Não podia ver as reacções do outro, as suas mudanças de expressão, os desvios do olhar. Encaminhou-o outra vez para o exterior, parando num local onde um telheiro de colmo desfiado proporcionava uma sombra irregular. Alguns raios de luz iluminavam as feições pesadas de Kumayo Songo, o seu bigode muito fino, as bochechas suadas.
- O que eu quero dizer-lhe - disse rapidamente Anokye - deverá ficar na mais estrita confidência.
- Evidentemente. Se assim o deseja, Sr. Presidente.
- Devo dizer-lhe que o senhor é o único homem no Togo em quem confio. Em todos os outros, nos políticos, nos diplomatas, nos civis - Anokye destilou desprezo nesta última palavra -, não tenho confiança.
Como esperava, o General Songo ficou impante de orgulho. O volume do ventre desapareceu, por debaixo do cinto, fazendo inchar o peito. Ergueu a cabeça, com o queixo elevado.
- Civis - repetiu. - Exactamente! - - General, com toda a sinceridade, devo dizer-lhe que acho que !< os líderes do seu Governo não estão conscientes da verdadeira situação. Falo, como deve ter compreendido, das relações entre o Togo e o Benim.
Songo gemeu levemente.
- Sr. Presidente, eu tenho tentado dizer-lhes. Muitas vezes...
- Tenho a certeza de que sim, general. O senhor é um militar. Avalia claramente a situação. Sem emoção e sem sentimentos. Mas devo dizer-lhe, general, que a situação é mais grave do que o senhor mesmo pensa. Como sabe, recebo relatórios secretos das minhas Embaixadas. Além disso, tenho tido, nas últimas semanas, certas conversas particulares com pessoas ao mais alto nível do Governo do Benim. Um dos propósitos deste encontro, general, é avisá-lo.
- Avisar-me? - quase gritou Songo. - De quê? De quê?
- Só estou a transmitir-lhe esta informação por causa da nossa estreita amizade pessoal, do grande apreço que sinto pelo seu patriotismo e da esperança que sei que ambos partilhamos de um relacionamento mais estreito ainda, no futuro, através do seu filho Jere ^ da minha irmã Sara.
- Avisar-me de quê? - disse Songo, agonizante.
- Durante as duas últimas semanas - disse Anokye solene-
mente -, um alto representante do Governo do Benim perguntou-me qual seria a reacção do Achanti, no caso de guerra aberta entre o Benim e o Togo.
Songo soltou um lento assobio.
- Não lhe dei uma resposta directa - prosseguiu Anokye. - Disse-lhe que Achanti só desejava a paz entre as duas nações. Entre todas as nações africanas. Mas achei que estaria a faltar às minhas obrigações para com a nossa amizade se não lhe dissesse isto. Sabendo que é o único homem no Togo com quem posso falar livremente. O único homem que posso ter a certeza de compreender a gravidade da situação. Os civis que controlam o seu Governo iriam... - Encolheu os ombros e deixou a frase por acabar.
O General Kumayo Songo respirou fundo. Estava a suar novamente, tinha a testa perlada de suor, as manchas do seu uniforme alargavam.
- Eles tencionam atacar? - perguntou com voz rouca.
- Isso não posso dizer. Mas a pergunta que me fizeram indica essa possibilidade.
- Oh, sim - disse Songo amargamente. - Eles estão a planear isso, estão a planear isso!
- Não sei o que poderá fazer - disse Anokye tristemente. - O senhor é um general, claro. Comanda as forças armadas. Mas...
- Não o exército todo - disse Songo iradamente. - Há unidades que não estão sob o meu comando.
- Evidentemente - disse Anokye. - Mas tem a zona norte. As suas forças, em número, são as maiores do Togo, não é assim?
- É verdade.
- Infelizmente, não tem voz activa na política externa. Não obstante, achei que era meu dever avisá-lo.
O General Songo deu um passo em frente e pousou a sua grande mão húmida no ombro do Capitãozinho.
- Pelo que lhe expresso os meus agradecimentos e os do meu povo - disse com ar importante.
Anokye acenou afirmativamente com a cabeça, gravemente.
- Era o meu dever - repetiu. - Um dever de soldado. Só gostaria de que houvesse uma forma de o senhor alertar o seu Governo para a gravidade da situação.
O General Songo soltou uma risada curta, que mais parecia um latido.
- Só se aperceberão da situação quando caírem mísseis do Benim em Lomé.
- Ahh - fez lentamente o Presidente Obiri, como se lhe tivesse acabado de ocorrer uma solução. - Isso apresenta uma possibilidade. Vamos falar dela.
118
Conduziu o general para a luz cruel do Sol, sabendo que o calor enfraqueceria o homem, o ensurdeceria à voz da razão, lhe daria a volta a cabeça e o poria ansioso por concluir qualquer acordo idiota só para poder procurar a sombra e o conforto
- Foi o incêndio do museu de Ighobo que agitou o Benim - disse Anokye - Pessoalmente, não acredito que o Togo seja culpado de uma tal profanação. Mas aquilo em que eu acredito não importa. O Benim acredita que o fizeram e prepara-se para a guerra. Um ataque semelhante do Benim dentro das vossas fronteiras não convenceria essas avestruzes dos civis que dirigem o seu Governo de que a vossa nação está em perigo?
Songo fitou-o, com as feições contorcidas, sem compreender
- Bom... com certeza, Sr. Presidente. Um ataque directo ao Togo faria, por certo, os nossos políticos compreenderem os perigos que enfrentamos. - Acredita que em caso de guerra, o Togo poderia derrotar o Benim ?
- Evidentemente.
- Também eu. - Nessa altura, Anokye deteve-se por um momento, estendeu a cabeça para a frente, olhou fixamente para Songo - Especialmente com a ajuda das tropas e das armas do Achanti.
O general reteve a respiração.
- Que está a sugerir, Sr. Presidente?
- Que nós, o senhor e eu, criemos um incidente que torne inevitável a guerra entre o Togo e o Benim. Que, quando a guerra principiar as tropas, os tanques e as armas de Achanti ficarão imediatamente disponíveis, sob o seu comando, evidentemente, para ajudar o Togo nessa guerra. Que, depois de terminadas as hostilidades com sucesso o senhor mesmo, novamente com a ajuda do Achanti, tome o controlo do Governo, da nação e do povo togolês. Eu fiz isso no Achanti; não ha motivo para o senhor não o poder fazer no Togo
Esta brilhante perspectiva não surpreendeu o General Kumayo Songo. Anokye estava certo de que o homem já tinha sonhado com ela. Muitas vezes.
Songo começou a andar de um lado para o outro, com o queixo na mão e a outra mão apoiada no cinturão. Não olhou para Anokye
- É possível - murmurou. - É possível. Não por mim, evidentemente. Mas para salvar o meu país bem-amado.
- Com certeza - disse o Capitãozinho.
- Os pobres - disse Songo. - Os esfomeados
- As massas empobrecidas - acrescentou o Presidente Obiri Anokye. - Com o dinheiro do petróleo de Achanti por detrás de si, muito se poderia fazer para forjar uma nação grande e forte. E,
119
depois de os militares terem estabilizado o país, ele podia voltar a ser governado por civis. Um Governo de civis limitado. Os militares continuariam fortes, uma força vital orientadora da política do Governo.
- Mas, Sr. Presidente - disse Songo, um pouco desorientado -, tudo isso se centra em convencermos os nossos actuais políticos de que a guerra com o Benim é inevitável. Falou em criar um incidente...?
O Presidente Anokye disse que tinha algumas ideias nesse sentido.
12
Peter Tangent telegrafou de Inglaterra ao Presidente Obiri Anokye, no Achanti, para que contactasse com a firma consultora de gestão Fisk, Twiggs & Sidebottom, Ltd., de Londres, e lhes sugerisse que enviasssem um representante pessoal a Mokodi, para saber directamente do Presidente quais os serviços necessários.
Divertido com os nomes, Anokye tinha esperanças de que aparecesse Mr. Sidebottom. Mas foi Mr. Samuel Fisk que apresentou as suas credenciais no palácio e solicitou uma audiência ao Presidente. Era um homem corpulento e imponente, que envergava um fato de linho branco, camisa branca, gravata branca, meias brancas, sapatos brancos. Lembrava o actor Sidney Greenstreet2. Bastava olhar para ele para se pensar em cadeirões de verga, cortinas de contas, criados de fez e cigarros turcos fumados em longas boquilhas de marfim.
Dirigiu-se a Anokye como "Meu caro senhor" e mostrou-se falador e confiante ao salientar o que Fisk, Twiggs & Sidebottom, Ltd., poderiam fazer pela República de Achanti e pelo Presidente Anokye pessoalmente. Uma observação completa in loco de todas as operações do Governo, da cadeia de comando, áreas de responsabilidade, fluxo de trabalho, papelada, normas de produção, necessidades futuras, etc. O estudo seria feito por um investigador experiente e pela sua assistente, exigiria um mínimo de quatro semanas e, de preferência, incluiria um estudo das actividades diárias do presidente.
1 "Fisk" é intraduzível, mas "Twigs" quer dizer "perucas" (apesar de a grafia não ser a mesma) e "Sidebottom" significa "traseiro de lado". (N. da T.)
2 O dono do café rival, no filme Casablanca. (N. da T.)
120
- Indispensavelmente necessário, meu caro senhor - disse Mr. Fisk. Era assim que ele falava. Os factores económicos eram "importantemente significativos". O investigador era "informadamente experiente". Até Achanti era "frutuosamente verdejante".
Quando o levantamento estivesse terminado, os investigadores regressariam a Paris com os dados em bruto. Aí, os analistas elaborariam um modelo em computador do actual Governo de Achanti, incluindo o papel do Presidente Anokye. Fornecendo sugestões ao computador, poderiam criar um modelo aperfeiçoado que optimizasse a eficiência, reduzisse os conflitos internos e futurizasse as necessidades de consumo e a produção requerida. Seriam fornecidas ao presidente recomendações que salientassem um programa específico de modificações na metodologia, de modo a alcançar um Achanti ideal, criado por computador.
Um tanto deslumbrado com tudo isto, Anokye assinou contratos, apertou a mão firme de Mr. Samuel Fisk e acompanhou-o à porta, reflectindo, esperançosamente, que a análise projectada não faria mal algum, mesmo que acabasse por se revelar inútil.
Uma semana mais tarde, o investigador da Fisk, Twiggs & Side-bottom, Ltd., apareceu no palácio de Mokodi, acompanhado pela sua assistente. Se Mr. Fisk tinha sido Sidney Greenstreet, Ian Quigley era Ronald Colman, e a sua assistente, Joan Livesay, Claudette Colbert. E se o Capitãozinho via todos estes personagens como artistas de cinema era porque, concluiu, todo o projecto tinha algo de ficção, de onírico, de teatral e vagamente ridículo.
Quigley era inglês, embora muito dado a americanismos - "raios e coriscos", "absolutamente estúpido", "separar os homens dos rapazes", "um diálogo significativo", "um cenário viável", e assim por diante. Era um homem magro e rápido, de altura média. Cabelos castanhos penteados para trás, formando um bico de viúva. Olhos castanhos inocentes. Um sorriso caloroso e maneiras afáveis. Usava sapatos de sola de borracha. E colete de escocês, e não parecia afectado pelo sol de Achanti.
A assistente, Joan Livesay, também era inglesa, embora a sua pronúncia fosse subtilmente diferente da de Quigley. (Tangent explicou posteriormente a Anokye que a pronúncia de Quigley era de classe elevada, mas a de Joan Livesay era "superior".) Era, talvez, Uns cinco centímetros mais alta do que o Capitãozinho. Depois da primeira reunião com ele, teve o cuidado de usar sempre sapatos de salto raso ou sandálias. Também usava luvas brancas. Constantemente. Era uma mulher jovem, tranquila e simpática, de aspecto discreto, mas com um humor agudo. Por vezes, fazia-o rir, pelo que Anokye lhe ficava grato. Gostava do cabelo dela: castanho mis-
121
turado com cinzento, cortado como o de um rapaz, com uma risca ao lado e encostado ao crânio.
Durante a reunião que tiveram inicialmente com o presidente, explicaram-lhe como pensavam actuar. Ian Quigley percorreria o palácio, inspeccionando os diversos gabinetes no seu interior e as instalações governamentais no exterior. Faria perguntas a toda a gente, munido de uma carta de autorização do presidente. Joan Livesay seguiria as pegadas de Obiri Anokye, anotando cuidadosamente as suas actividades diárias; os sítios aonde ia, o que fazia, os elementos com quem falava, etc.
- Por favor compreenda, Sr. Presidente - disse Ian Quigley vivamente. - Não pretendo intrometer-me nas áreas que estão fora de limites por razões de segurança nacional. Ou por quaisquer outras razões que o senhor considerar suficientes. E Miss Livesay não tem necessidade de escutar as conversas ou conferências de natureza confidencial. Meu Deus, três "cons" numa frase só. Há-de pensar que sou do contra. Ah! Mas, nos casos em que pretenda segredo, seria útil que nos dissesse qual a natureza geral do trabalho que está a fazer. Isto é, se diz respeito a relações com o estrangeiro ou a questões militares, sociais, políticas ou pessoais. Isso ajudar-nos-ia a completar o nosso relatório.
- Acho que isso se pode fazer - concordou Anokye. - Miss Livesay, receio que seguir-me vá ser uma boa maçada para si. Não é muito excitante.
- Tenho a certeza de que vai ser muito interessante, Sr. Presidente - disse ela, delicadamente. A sua voz era suave e agradável, e conservava geralmente os olhos baixos. Ele pensou que ela talvez fosse tímida. Ou talvez se tratasse de um truque profissional: misturando-se discretamente com as paredes, ele talvez viesse a esquecer ou a ignorar a sua presença, e a agir mais naturalmente, a falar mais livremente.
Assim, principiou o projecto. Ian Quigley estava aqui, além, em toda a parte. Andava com um gravador de bolso a que ditava comentários em voz baixa, enquanto se deslocava. De vez em quando, tirava do bolso uma máquina fotográfica japonesa miniatural e fazia fotografias dos escritórios, dos arquivos, do exterior dos aquartela-mentos de Mokodi, da frota de carros usada para o pessoal do palácio, e assim por diante.
Todas as manhãs, quando saía do seu quarto no terceiro andar e se dirigia ao seu gabinete no segundo, Obiri Anokye encontrava Joan Livesay à sua espera, com o bloco de estenografia a postos, a caneta em riste. Parecia ávida como um pardal, e, ao fim de alguns dias, ele deu consigo a acolher com prazer o seu vivo "Bom dia, Sr. Presidente!". Tinha pedido que ambos os investigadores falassem
122
inglês na sua presença. Mas, de vez em quando, Miss Livesay ensaiava uma palavra ou uma frase em Akan. Disse-lhe que estava fascinada com a língua e decidira aprendê-la.
Quando Peter Tangent regressou a Mokodi, os representantes da Fisk, Twiggs & Sidebottom, Ltd. tinham-se tornado figuras conhecidas em Mokodi, e a sua presença nas recepções do palácio tião provocava comentários, para além da curiosidade frequentemente manifestada quanto ao facto de dormirem ou não juntos. E, Se dormissem, ela tiraria as luvas brancas e ele o seu colete de escocês? Não havia muito mais de que falar em Mokodi.
Tangent apresentou-se a Ian Quigley no bar do Mokodi Hilton. A sua primeira reacção foi favorável; achou que Tony Malcolm tinha escolhido um bom homem. Quigley tinha maneiras fáceis, era inteligente, aberto. Nada havia nele qxie parecesse dúbio ou evasivo.
Tangent perguntou-lhe, só para fazer conversa, se ele já tinha conhecido Jonathan Wilson, o adido cultural americano. Quigley disse que não. Tangent propôs-se reuni-los num jantar informal.
- Vai gostar dele - disse a Quigley. - É do vosso tipo. - Não
houve reacção a esta frase, mas Tangent também não a esperava. - Èle conhece muita gente em Achanti, e o Governo em particular. Talvez o possa ajudar.
- Óptimo - disse Quigley. - Preciso de todas as ajudas que
Conseguir obter. É muito amável da sua parte. Por falar em ajuda, tenho possibilidade de ir ver as vossas plataformas de petróleo?
- Diga quando quer ir - disse Tangent. - Eu faço os preparativos.
- Obrigado. Neste momento, estou a tentar obter uma visão
global. O petróleo parece importante para a economia de Achanti.
- Essencial - disse Tangent. - Mas eu sou parcial - disse,
rindo. - Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si?
- Nããão, de momento não, obrigado. Talvez a Joan queira fazer-
-lhe algumas perguntas.
- Joan?
- Joan Livesay. A minha Sexta-Feira. Está a fazer um estudo do tempo das actividades do presidente. Pobrezinha... ele trabalha até tarde. Esteve a trabalhar até à meia-noite, na noite passada. E depois disso, pelo que sei, o presidente ainda levou trabalho para o
quarto.
- Bom, para aí não pode ela segui-lo! - disse Tangent.
- Não é provável - disse Quigley. Um sorriso divertido. - Não
é o género dela, de forma nenhuma. É um tanto recatada, a nossa
Joan.
Conversaram agradavelmente durante o tempo que levaram a
123
tomar duas bebidas. Depois Quigley pediu desculpa para ir ao seu quarto transcrever as notas gravadas.
- Espero que esteja a conseguir qualquer coisa útil - disse Tangent, fitando o investigador nos olhos.
- Não tenha dúvida - disse Quigley, fitando-o também. - Acho que a sede vai ficar satisfeita.
Na mesma altura em que Tangent e Ian Quigley estavam sentados no bar do Mokodi Hilton, Joan Livesay estava sentada numa cadeira de costas direitas no corredor do palácio, à porta do gabinete e sala de conferências do presidente no segundo andar. A cadeira tinha sido colocada ali para seu conforto durante as reuniões em que a sua presença, por muito silenciosa e discreta que fosse, não era desejável. Ela aceitava aquela rejeição como parte do seu trabalho; não ficava ofendida. A cadeira estava colocada a alguma distância dos dois soldados armados que guardavam a sala. Não era uma cadeira especialmente confortável, mas ela tinha paciência e o dom de saber descansar. Passava o seu tempo a estudar um dicionário de Akan, experimentando as sílabas líquidas em voz baixa.
Cerca de uma hora antes, o Coronel Jim Nkomo, Sam Leiberman e o Sargento Sene Yeboa tinham chegado, a intervalos de poucos minutos, e sido imediatamente conduzidos ao gabinete do presidente. Os visitantes já conheciam Joan Livesay e saudaram-na amistosamente, tendo sido tratada pelos dois pretos por "Miss Livesay" e por Leiberman por "Querida". Logo que os três entraram, Anokye pedira-lhe que saísse.
Quando os três finalmente emergiram da sala, nada havia nas suas expressões ou maneiras que revelasse se estavam satisfeitos ou insatisfeitos com a reunião. Deram-lhe as boas-noites e afastaram-se, conversando em voz baixa. Quando ela regressou ao gabinete, o Presidente Anokye estava a introduzir na gaveta da secretária o que lhe pareceu ser uma série de mapas multicores. Fez-lhe sinal para que ela se sentasse, não no seu habitual sofá de cabedal a um canto da sala, mas numa cadeira de braços ao lado da sua secretária.
- Peço desculpa pela duração da reunião - disse ele. - Mas tínhamos muita coisa a discutir. Dizia respeito à segurança nacional.
- Posso anotar que este tempo foi dedicado a questões militares, Sr. Presidente? - perguntou ela.
Ele pensou por um momento.
- Sim-disse.-Militares. Isso serve perfeitamente. Penso que o meu dia oficial terminou, Miss Livesay. Mas primeiro tenciono beber uma chávena de café. Quer fazer-me companhia?
- Obrigada - disse ela, satisfeita. - Gostaria muito.
Ele levantou o telefone e falou com alguém, pedindo café... e brioches, se houvesse.
124
- Aqui é necessário, com certeza, um melhoramento - disse ele,
sorrindo, depois de desligar. - Por favor anote na sua agenda que, quando o presidente de Achanti deseja que tragam uma chávena de café ao seu gabinete, tem que ligar à recepcionista do andar principal que depois transmite a ordem à cozinha. Não tenho contacto directo.
- Isso já foi anotado, Sr. Presidente - disse ela suavemente. -
O palácio necessita de um bom sistema de intercomunicações.
- É muito eficiente - disse ele com admiração. - Talvez algo
de bom venha a resultar de tudo isto, no final.
- Tenho a certeza disso - murmurou ela.
Ficou sentada, em silêncio, enquanto ele folheava a edição da noite do New Times de Mokodi. Era, pensou ela, um homem atraente. Não bonito, de forma convencional, mas... bom... excitante. Era bem evidente a sua força bruta. Grande parte era física; a sua energia parecia ilimitada. Mas havia algo mais. Psíquico. A segurança dele, a sua absoluta segurança. Tinha a mesma equanimidade que havia em Ajaka. Mas no mordomo era dandismo. Em Obiri Anokye era solenidade de propósitos e uma crença absoluta no seu próprio destino. Podia compreender a popularidade dele, por que motivo tinha toda a gente aos seus pés. Era completo.
O presidente pôs de lado o jornal quando Ajaka bateu à porta e entrou com uma bandeja com café e pastéis.
- Boa noite, Sr. Presidente - disse o mordomo em francês. - Boa noite, menina.
- Boa noite, Ajaka - disse Miss Livesay. De todas as pessoas
que conhecera desde a sua chegada a Achanti, Ajaka era uma das suas preferidas. Admirava a elegância com que ele se movia, a sua exibição natural e exagerada de jóias, a sua presença, a sua integridade como ser humano. Era óbvio que ele nada via de servil no seu trabalho, que sentia orgulho da sua suave perícia ao manejar as natas e a pinça do açúcar.
Depois de o mordomo sair com uma vénia, Anokye e Miss Livesay pegaram nas suas chávenas de café. Não havia brioches, mas Ajaka tinha trazidopetits fours frescos.
- Gosta dele? - perguntou Anokye, fitando-a astutamente.
- Do Ajaka? Oh, sim.
- Aquele homem é um actor - disse ele, rindo. - Todos os
Fulani são actores. Fulani é a tribo de Ajaka.
- Não consigo distinguir as tribos - confessou ela. - São
tantas.
- As tribos deixaram de ter importância - disse ele.
- Foi o que o senhor disse no seu discurso no Zabarian, Sr. Presidente.
125
- Oh? - fez ele. - Leu o meu discurso? Sinto-me honrado. O discurso foi notado em Londres? - Sabia bem que sim.
- É claro que foi - disse ela. - Foi publicado por inteiro no Times.
- Um discurso de um africano no Times - maravilhou-se ele.
- Só por ser tão curto - disse ela, com um sorriso que afastava a ironia das palavras, e ambos se riram.
- Sou um crente fervoroso em discursos curtos - disse ele. - Quando se fala durante muito tempo, há sempre o perigo de falarmos de mais.
- Ou de fazer adormecer a audiência - disse ela.
- Sim - concordou ele. - Também. Conhece o Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln?
- Já ouvi falar - disse ela secamente.
- Muito curto - disse ele. - Muito poderoso.
Ela inclinou-se para a frente para escolher um bolo da bandeja sobre a secretária. Estando sentado um pouco de lado em relação a ela, o homem pôde ver o volume do seu seio. Sentiu um choque. Nunca tinha reparado no corpo dela, nunca tinha pensado nela como uma mulher. Ela usava sempre vestidos discretos e fechados, de formas largas, ocultando o peito, as ancas, o traseiro. E aquelas luvas brancas eram o sinal da memsahib em toda a África, o Médio e o Extremo Oriente. Naquele momento, ele teve plena consciência do que poderia existir por debaixo de tudo aquilo. Não apenas por debaixo dos fatos largos, mas por debaixo das suas maneiras tímidas, discretas e distantes. Haveria alguma coisa?
- Nunca se casou? - perguntou-lhe abruptamente.
- Não, Sr. Presidente. Nunca.
- Mas é jovem. Há de casar-se.
- Hei-de? Não sei bem se isso me interessa. Há certas pessoas, acho eu, que não deveriam casar-se.
Ele meditou por um momento no que ela dissera.
- Sim - disse -, isso é verdade. Mas, por vezes, é necessário.
- Ainda não o felicitei pelo seu próximo casamento, Sr. Presidente.
- Obrigado. Espero que tenha oportunidade de conhecer a minha noiva. Uma rapariga encantadora.
-Tenho a certeza de que é. Esta noite ainda vai trabalhar no seu quarto, Sr. Presidente?
- Trabalhar? Bom, se ler é trabalhar, vou trabalhar. E talvez tratar de alguma correspondência. Cartas pessoais.
- Que é que está a ler? Isso não é para o meu livro de notas. Só curiosidade pessoal.
- Que é que eu estou a ler? Deixe-me pensar... Tenho o hábito
126
de ler dois ou três livros ao mesmo tempo. Esta noite acho que vou ler um pouco mais da história do antigo império persa. Gosta de História?
- Oh, sim. Muito.
- Qual é a sua época preferida?
- A Europa do século XVIII.
- Oh? Os meus interesses, de momento, vão muito mais para trás. Quase para a Pré-História. Miss Livesay, posso pedir-lhe que corra os cortinados?
Era um pedido tão estranho, tão pouco característico dele, que ela ficou sobressaltada. Mas, obedientemente, pousou a chávena vazia e o pires na secretária, pôs-se de pé, dirigiu-se à janela, estendeu os braços e correu os cortinados.
Ele via-a mover-se. A coxa a revelar-se por um momento sob o tecido da saia. Quando ela ergueu os braços, viu a força das suas costas, a marca da sua cintura. O seu belo cabelo agarrado ao crânio como um capacete.
- Obrigado - disse ele, levantando-se. - Já acabou o seu café. Então podemos terminar o nosso dia e despedir-nos. Voltaremos a ver-nos de manhã.
Ela tinha decorado uma bênção em akan.
- Que acorde mais forte e mais jovem - disse. Ele fitou-a, surpreendido e satisfeito.
-Muito bem, Miss Livesay - disse em inglês. Depois disse uma frase em akan.
Ela abanou a cabeça.
- Sinto muito. Não percebi uma palavra.
- Eu disse "Que os seus sonhos desta noite se transformem na felicidade de amanhã".
- Oh! - fez ela baixo, corando. - Obrigada.
13
- Ahh, isto é que é vida - disse Sam Leiberman com um suspiro. - Que estarão os pobres a fazer?
Recostou-se no assento do passageiro da limusina branca Mercedes-Benz com ar condicionado, pertencente à Starrett Petroleum Corp. Tangent estava ao volante. Com certo entusiasmo, tinha convidado Leiberman e Dele para irem com ele a Lomé jantar com Amina Dunama. Assistiriam à actuação dela e talvez tomassem algumas bebidas depois.
127
A rapariga da Costa do Marfim ia sentada atrás, muito satisfeita, de pernas cruzadas, no assento brocado, aninhando-se, enquanto Leiberman seguia, à vontade ao lado de Tangent. Fumava um charuto italiano, meio curvado, e observava o mundo passar, enquanto percorriam a grande velocidade a estrada costeira em direcção à fronteira togolesa.
- Achei que depois podíamos decidir - disse Tangent com naturalidade. - Se estivermos a divertir-nos, podemos ficar para amanhã. Não há necessidade de voltarmos hoje.
Leiberman voltou a cabeça para olhar para ele e depois riu-se.
- És tão fácil de ler como um cartaz a cinco passos. A gaja sabe que vais?
- Não a trates assim - disse Tangent vivamente.
- Peço imensa desculpa, bwana. Miss Amina Dunama sabe que tu vais chegar?
- Não - disse Tangent. - Quis fazer-lhe uma surpresa.
- Oh, vais surpreendê-la - disse Leiberman -, provavelmente, na cama com algum garanhão negro, foi para isso que me trouxeste, para o caso de haver sarilho?
- Não sejas parvo - disse Tangent. Perguntando a si mesmo se Leiberman não teria razão. - Que sarilhos? Se ela não quiser receber-me, não precisa de receber-me. Meu Deus, Sam, somos apenas amigos. Conhecidos, a falar verdade.
- Oh, claro - disse Leiberman. - E a Dele é a minha mãe. Eia, olhem para aquilo... aquilo é novo.
Apontou com o polegar para uma banca à beira da estrada a oferecer le hot dog e les hamburgeurs.
- Ainda não vi um McDonald - disse Leiberman -, mas é só uma questão de tempo. Meu Deus, é África está a mudar. E tão depressa. Diante do meu nariz.
- Há quanto tempo estás por cá, Sam?
- Desde a segunda guerra mundial. - Ficou em silêncio por um momento e depois prosseguiu, em tom sonhador: - Devias tê-la visto, nessa altura. Tudo aberto. Milhas, milhas e milhas. Nada. Mesmo nada. Era maravilhoso. Agora os feiticeiros já andam de motocicletas Honda. Bom, que diabo; tinha de acontecer. Havia muita merda nos velhos tempos. Ainda há, mas está a melhorar. Agora já têm poluição, drogas duras e anúncios de televisão, como todos os outros países civilizados. Sabes o que fez isto?
- Que foi? - perguntou Tangent.
- Os martinis secos - disse Leiberman. - Quando os barmen aprenderam a preparar martinis, vi logo que o fim estava próximo.
Tangent riu-se.
- Espera até eles conhecerem os Harvey Wallbangers.
128
- Nem me digas - disse Leiberman. - Nem quero saber. Munidos dos seus passaportes achantis (entregues dobrados sobre uma nota) e documentos oficiais, não tiveram problemas na fronteira.
- Tu gostas dessa g... dessa tal Amina? - perguntou Leiberman.
- Gosto da companhia dela - disse Tangent cuidadosamente.
- Diz-me uma coisa, sabes naquilo em que estás a meter-te?
- Não - disse Tangent.
- Ainda bem - disse Leiberman. - Talvez haja mais qualquer coisa nas tuas veias para além de petróleo número seis. Vou dizer-te uma coisa acerca das mulheres africanas...
- Diz lá, papá.
- Que se lixe - disse Leiberman. - Aprende à tua custa... como eu aprendi.
O trânsito obrigou-os a andar mais devagar, à chegada a Lomé.
- É cedo para jantar - disse Leiberman. - Mas podemos tomar umas bebidas em qualquer parte, enquanto tu telefonas à tua Cleópatra de ébano.
- Hum! - fez Tangent. - Por acaso, reservei uma suite no Europa. Achei que daria mais jeito.
- Meu filho da mãe sabido!
- Bom, eles podem tomar conta do carro enquanto nós nos refrescamos.
- Refrescamos. Lindo.
- Cala-te - disse Tangent. - Tem dois quartos e uma sala.
- Dois quartos - disse Leiberman. - Isso faz jeito. Um para a Dele e a Amina e outro para nós os dois.
- Lamento ter-te convidado - disse Tangent.
- Bom, espero que tenhas pedido flores para o meu quarto - disse Leiberman.
Mas, uma hora depois, estavam todos satisfeitos. Leiberman tinha dado uma olhadela à suite do hotel e declarado que a achava "eminentemente habitável" e tinha despido o casaco, tirado a gravata e os sapatos e ligado imediatamente para o serviço de quartos. Daí a pouco, estava confortavelmente instalado com uma garrafa de uísque de malte, um sifão de soda e um balde de gelo. Dele, enroscada no chão, comia freneticamente um litro de gelado de pistácio. E, depois de diversos telefonemas cada vez mais desesperados, Peter Tangent tinha conseguido localizar Amina Dunama, que desatara a rir, encantada, ao ouvir a voz dele e lhe prometera ir ao "encontro deles o mais depressa possível.
E cumpriu. Usando sandálias de tiras naqueles pés longos e elegantes de que Tangent se recordava tão bem. Vestia também algo
129
que se chamava "calças de boca de sino" - umas calças compridas, verdes, largas em baixo, que lhe davam simultaneamente um ar divertido, chique e sensual. E um top muito justo de algodão roxo-vivo. Argolas de ouro nas orelhas. Uma jóia falsa colada a uma das narinas. Era realmente uma Cleópatra de ébano! Um beijo a Dele, um beijo a Sam. Um beijo a Peter Tangent.
Risos. Música de dança de uma estação de rádio local. E - Tangent forçando a sua sorte - quatro garrafas de champanhe levadas ao quarto, com gelo, por um criado sorridente que se tornou escravo deles quando descobriu que Leiberman falava hausa. Ia correr tudo bem, pensou Tangent.
Levou-a para um canto, entregou-lhe uma taça de champanhe, deu-lhe um dos seus Players e pousou levemente a mão sobre o ombro nu dela.
- Pensei em ti - disse em voz baixa. - Tu pensaste em mim?
- Como é que tu te chamas?
- Mr. Tangent - disse ele.
- Não - disse ela, abanando a cabeça. - Sinto muito. Nunca ouvi esse nome.
Ele recordava-se perfeitamente dela: o seu corpo alto, ossudo, semelhante à haste de uma planta. O brilho da noite na sua pele castanha, na dobra do braço, na curva do pescoço. As maçãs-do-rosto elevadas, as sobrancelhas altas. Os caracóis negros justos à cabeça como uma touca de lã. Os olhos oblíquos e luminosos e um sorriso tão largo, tão rasgado, que se viam as gengivas cor-de-rosa por cima dos dentes perfeitos. E os seus braços de enguia. Não acreditava que fosse o exotismo dela que o impressionava. Mas não tinha a certeza.
- Tens estado bem? - perguntou ele.
- Oh, sim. Eu nunca adoeço. E tu?
- Óptimo. Viemos ouvir-te cantar.
- Uma viagem tão longa só para me ouvir cantar!
- Não foi assim tão longa. Podes jantar connosco primeiro?
- Evidentemente. Como sempre, estou com fome. Voltaram-se para Dele e Sam, que estavam a dançar, juntos mas
separadamente, ao ritmo da rumba.
- O hipopótamo e a gazela - disse Tangent.
- O branco dança coa música, co ritmo dança o preto -disse ela.
- E por isso nunca fazem um dueto - disse ele.
- Acreditas nisso?
- Achas que estaria aqui, se acreditasse? Muilo honi, imiltn. horas de jantar! Para onde vamos?
Mas o grupo parecia estar a apreciar o seu momento de prazer, e saírem dali estragaria tudo. Ou, pelo menos, tinham essa impre-
130
são. Jantar na suite seria a solução. A sua própria casa de jantar. Serviço particular. O sorridente criado hausa foi convocado.
Untaram-no com uísque de malte misturado com champanhe e ele planeou um jantar maravilhoso para eles: camarões em molho picante, cabrito assado inteiro com trufas brancas, inhames cozidos e puré de bananas, uma salada fria de espargos e endivas importados. Aquele banquete estaria pronto, garantiu ele, dentro de minutos. E saiu a correr.
Depois de terem passado trinta minutos e nem sequer terem aparecido os camarões, Tangent dirigiu-se ao telefone. Não só o jantar deles não estava preparado como não tinha sido encomendado à cozinha. De qualquer forma, o Hotel Europa não dispunha de um cabrito inteiro assado.
Tangent foi eleito, por aclamação, para ir investigar. Revestindo-se da dignidade do seu casaco de seda crua, desceu à cozinha e ficou a saber que o criado hausa tinha desaparecido. Acabou por ser encontrado a dormir pacificamente na lavandaria, com os lábios contorcidos num sorriso feliz. Depois de consultar o chef, Tangent encomendou quatro grandes costeletas de vitela grelhadas, inhames cozidos e uma salada de verduras diversas.
Quando regressou à suite, verificou que a fome não tinha conseguido diminuir a hilariedade. A sua descrição do criado inconsciente provocou novo paroxismo, e ainda estavam a rir e a beber quando lhes trouxeram o jantar.
Vinha escoltado pelo assistente do gerente do Hotel Europa, um suíço gordo, alvoroçado, que usava um casaco branco e calças às riscas. Como a suite tinha sido reservada em nome da Starrett Petroleum Corp., vinha apresentar as suas desculpas pessoais. Não podia ter sido mais simpático, e Sam Leiberman insistiu em beijá-lo para lhe demonstrar que não guardava rancor ao Hotel Europa pela perda do cabrito assado.
O jantar foi hilariante, um debate poliglota em inglês, francês, akan, yoruba e boulé. Leiberman recitou uns versos em swahili que disse serem tão obscenos que se tornavam intraduzíveis. Amina cantou uma cançoneta em fon. Dele entoou uma curta canção aprendida na escola em inglês com sotaque cerrado. E, para não ficar mal, Tangent recitou, em latim, o parágrafo inicial das Guerras Gálicas de César.
Finalmente, chegou a hora do espectáculo de Amina. Estava a fazer uma actuação por noite num clube nocturno de terceira classe para os lados de Porto-Seguro. Era, efectivamente, embora nem o próprio Leiberman soubesse disso, o mesmo clube nocturno onde Yakubu tinha localizado o político Nwabala e onde Yvonne o tinha convidado para a morte.
131
Estava cheio, nessa noite: o balcão de contraplacado estava apinhado, a maior parte das mesas ocupadas. O chão gemia e estalava por debaixo dos pés agitados dos dançarinos frenéticos. O ar estava leitoso de fumo e cheirava a haxixe.
- Cortam-se gargantas enquanto se espera-comentou Leiberman.
Tangent pagou uma generosa gorjeta, e foram levados para o que tinha sido inicialmente uma baía, com uma mesa cheia de cicatrizes e dois bancos periclitantes. Leiberman insistiu em que encomendassem qualquer coisa selada. Surpreendentemente, o estafado criado trouxe-lhes um garrafão de meio galão de vinho de uvas cali-fornianas.
- Como é que isto veio parar aqui? - perguntou Tangent, surpreendido.
- Provavelmente, uma remessa de mercadorias para auxílio a calamidades feita pelos Estados Unidos - disse Leiberman. - Quando eu estava no Biafra, chegou uma remessa de dez mil bisnagas de creme para barbear e dezasseis caixotes de lenços de papel.
Ao fim de algum tempo, a banda de três instrumentos parou de tocar e pegou nas suas garrafas de cerveja de milho. Alguns dos pares voltaram para o balcão ou para as mesas. Muitos começaram a passear pela casa, com as bebidas na mão, a saudar os amigos. A multidão era composta por negros, na sua maior parte, mas havia alguns turistas que falavam em voz alta e tinham o ar de esperarem ser enfiados num formigueiro a qualquer momento.
Um criado fez um esforço pouco entusiástico para esvaziar a pista de dança. Não o conseguiu, mas arranjou um pequeno círculo vazio para Amina Dunama, que se dirigiu lentamente para ele, com o seu bandolim. Envergava o mesmo vestido que tinha quando Tangent a vira pela primeira vez - o de seda cinzento-prateada, preso nos ombros ossudos com alças de pedrarias. A audiência acalmou. Ela tangeu algumas cordas e começou a cantar.
Algo tinha acontecido à sua voz desde a última vez em que Tangent a ouvira. Talvez fosse só naquela noite. Talvez fosse por causa dos cigarros que ela fumara na suite do hotel, por ter estado a falar, a gritar e a rir tanto. Fosse qual fosse a causa, a sua voz tinha perdido aquele som irritante de cana rachada, aquele fraseamento mecânico. Estava baixa, rouca, a voz que convinha a uma mulher do seu tamanho. Talvez ele o tivesse imaginado, visto que não compreendia a língua, mas teve a sensação de que havia nela um sentimento genuíno, algo profundamente sentido que impressionou a assistência. Terminou a canção no meio de entusiásticos aplausos.
- Filha da mãe - disse Leiberman. - Ela está melhor. Ouviste aquilo?
132
- É claro que ouvi - disse Tangent. - De que tratava?
- Uma canção de amor em ewe. Eia, ela está óptima. Se conseguir manter-se assim.
Conseguiu. A audiência que a aplaudia entusiasticamente obrigou-a a cantar durante mais de uma hora. Interpretou diversos tipos de canções: baladas, músicas de ritmo rápido, lamentos. Terminou com uma canção repetitiva, gutural, quase gritada, que levou a audiência ao rubro.
- Um cântico de guerra dendi - disse Leiberman. -Vamos cortar-lhes as cabeças... ou palavras no mesmo género. Ela está fantástica, não achas?
Ela veio para a mesa deles, ofegante e suada. Sentou-se ao lado de Tangent, acenando para a assistência que ainda estava a gritar e a erguer os copos na sua direcção.
Dele, excitadíssima, disse-lhe qualquer coisa em boulé. Amina respondeu-lhe na mesma língua, e ambas as mulheres começaram a rir.
- Eu só lhe disse que a minha voz tinha mudado por causa dos charutos que fumei - explicou ela a Tangent. - Que achaste?
- Maravilhoso - disse ele com entusiasmo. - Acho que devias agarrar-te mais aos blues. Coisas lentas e tristes. Edith Piaf.
- Sim - disse ela, acenando com a cabeça. - Também penso o mesmo. Estou tão seca. Vinho, por favor?
Ele encheu-lhe o copo. Antes de beber, ela derramou algumas gotas no chão poeirento.
-Já não via isso desde que fui corrido da Zâmbia-disse Leiberman. - É para os antepassados.
- E para dar sorte - disse Amina. Ergueu o copo: - Para todos nós, boa sorte.
- Bebo a isso - disse Leiberman. - E a qualquer outra coisa que quiserem.
Acabaram o meio galão de vinho e saíram do clube nocturno, com Amina ainda com o seu vestido de cena e Tangent com o bandolim na mão. Havia táxis à espera, e eles escolheram um Peugeot em que pudessem caber. O motorista, falando um francês rápido e sibilante, ofereceu-lhes marijuana, haxixe, heroína, cocaína, ópio, penicilina, quinacrina, absinto com losna, leite de magnésio ou poções do amor. Leiberman disse-lhe que se fosse lixar.
Tangent imaginara diversas desculpas astutas para fazer Amina regressar ao hotel. Ia tentar a menos fantástica quando ela disse:
- Vamos voltar para o hotel e comer qualquer coisa.
- Meu Deus, onde é que tu metes a comida? - disse Leiberman, espantado. - És tão magra que, se engolisses uma azeitona, parecias grávida. Por mim, quero café e brande. E tu, Pete?
133
- Para mim está bem - disse Tangent despreocupadamente. A cozinha do Hotel Europa estava fechada, mas um paquete, a
quem uma generosa gorjeta tornara simpático, foi procurar um café aberto e voltou com uma caixa de cartão com galinha picante, camarões fritos e algo a que Leiberman chamou "pão ázimo africano".
Beberam o café e comeram um pouco, mais por delicadeza do que por fome. Mas Amina foi abrindo firmemente caminho através do conteúdo da caixa manchada de gordura.
- Iámi - fez ela finalmente, limpando os lábios à ponta da toalha. Meteu os ossos chupados na caixa e colocou a tampa. - Agora já me sinto humana. Que há para beber?
- Café, champanhe, brande - disse Tangent. - Qual queres?
- Tudo - disse ela, e eles, fascinados, viram-na esvaziar primeiro uma chávena de café e depois uma taça com uma mistura de duas partes iguais de champanhe e brande.
- Não posso continuar a ver isto - disse Leiberman. - Detesto ver uma mulher chorar.
- Eu nunca choro - disse Amina.
- Amanhã hás-de chorar - garantiu-lhe ele. - A menos que te lembres de que a única prevenção segura contra uma ressaca é nunca parar de beber. - Ergueu a garrafa contra a luz e depois despejou brande para dentro de um grande copo de água. - Ficas com o copo - disse a Tangent - e eu fico com a garrafa. Podes ficar com o champanhe que resta.
- Onde vais?
- A Dele e eu vamos para o quarto discutir o Fundo Monetário Internacional. Querem vir?
- Não, obrigado.
- Tchau a todos - disse Leiberman. - Durmam bem; não deixem que os percevejos os mordam.
Ele e Dele beijaram Amina. Dirigiram-se lentamente, de mãos dadas, para um dos quartos. A porta fechou-se.
- Subitamente, toda a gente ficou sóbria - disse Tangent, perguntando a si mesmo se teriam chegado a estar bêbados. Não verdadeiramente, concluiu. Apenas embriagados de alegria e de riso.
Amina atirou fora as sandálias e foi buscar as suas longas cigarrilhas ao saco de batik. Ofereceu-lhe uma, mas ele abanou a cabeça negativamente. Ela acendeu a cigarrilha e instalou-se, de pernas abertas, num cadeirão almofadado. Estendeu-se mais para diante, sentada na beira da cadeira, com as longas pernas esticadas por debaixo da saia de seda.
- Cansada? - perguntou ele.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
134
- Só uma hora por noite, mas deixa-me estafada. É estranho.
- Para onde vais a seguir?
- Vou ficar aqui durante mais duas semanas. Depois vou para Cotonou. Um sítio melhor. Um salão de hotel. Vais ver-me?
- Vou - disse ele imediatamente.
- Óptimo. Quero que vás. Tu dás-me sorte.
- Dou? - disse ele, satisfeito.
Ela estendeu-lhe o copo. Ele dividiu entre ambos o que restava do champanhe.
- Brande? - perguntou.
- Depois - disse ela. - Mr. Tangent.
- Oh, lembras-te do nome?
Ela sorriu, com aquele sorriso amplo, mostrando os dentes todos, que iluminava todo o seu rosto.
- Tenho um presente para ti - disse ele. - Trouxe-to de Londres.
- Óptimo - disse ela. - Adoro presentes. Quando é que o recebo?
- Agora, se quiseres. :
- Não - disse ela. - Mais tarde. Depois.
- Depois de quê?
- Ho-ho - fez ela.
Ergueu preguiçosamente uma mão e apontou-lhe um longo indicador, com o polegar para cima, como uma pistola pronta a disparar. Tinha as unhas pintadas de verde. Como é que ele não tinha reparado antes nas mãos dela? Mãos esguias e articuladas. Unhas curvadas como garras. Mãos ossudas e flexíveis. Com os nós dos dedos brilhantes. As palmas cor-de-rosa pareciam mapas.
- Onde nasceste tu, nos Estados Unidos, Mr. Tangent?
- Indiana.
- É perto da Califórnia?
- Não muito. É mais para o meio do país.
- Como é?
- O sítio onde nasci? Terras de cultivo planas. Como a maior parte do Achanti e do Togo.
- Gostavas?
- Não.
- Por isso partiste para ver o mundo, o mundo inteiro - disse ela, rindo e batendo as palmas, encantada. - Tal como eu.
- Oh, sim - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça. - Primeiro fui para leste, para a escola. Dois anos no Exército. Regresso à escola por mais dois anos, para estudar gestão de negócios. Depois em frente e para cima. Tal e qual como tu.
Era a primeira vez que contava a uma mulher a história, a
história sem interesse, da sua vida. Tentou fazer uma descrição curta e divertida. Mas ela não sorriu, sequer. Limitou-se a escutar atentamente.
- O exército?-disse. - Estiveste na guerra? Tiveste de matar?
- Meu Deus, não. Só fazia listas dos prés.
- Mas lutaste, no golpe de Achanti.
- Como sabes disso?
- Toda a África ocidental sabe.
- Queres o teu presente agora?
- Não.
- Por que não?
- Porque, se mo deres agora, vais pensar que o que vou dar-te depois é o pagamento de uma dívida.
- Que disparate - disse ele, irritado. - Não vou pensar nada disso. Não tens obrigações nenhumas para comigo.
- Tu és um branco generoso que quer ser bondoso para com uma pobre pagã ignorante?
Ele grunhiu, pôs-se de pé, correu para a cadeira dela, inclinou-se e beijou-lhe os lábios revirados para fora.
- Oh, Mr. Tangent - disse ela, arquejante, e a sua língua parecia uma chama húmida.
No quarto, depois de ambos estarem nus, foi ela a oficiante, dizendo "sossega, sossega" aos gemidos dele, como uma mãe a acalmar um filho inquieto. O corpo dele era magro, liso, salpicado de sardas e minúsculos sinais negros. As costelas e as vértebras sobressaíam da pele, e ela arranhou os ossos com as suas garras, passou os dentes levemente pelo abdómen e pelo seu peito fremente.
- Tão magro - murmurou. - Tão branco.
A sua boca entreaberta esfregou-se por ele como uma pequena esponja. Quando percebeu que não conseguia aguentar mais, ele tentou afastar a cabeça dela, mas ela aprisionou-lhe as mãos, silvando levemente, e a sua língua percorreu-lhe o peito. Ele olhou para ela e viu um negativo de si próprio, abraçou-se a si próprio, amou-se a si próprio. Não conseguia compreender.
Deu-lhe então as pérolas e pensou que, pela primeira vez na sua vida, a realidade igualava as expectativas. Ela ficou encantada e dobrou a longa fileira, de modo que as frescas esferas brancas escorressem pelo seu pescoço, entre os seus seios musculados, enrolando-se nos mamilos arroxeados, e penetrassem no umbigo quente, tão grande como uma segunda boca.
Ele passou a língua pelas pérolas frescas e pela pele febril, com os olhos a brilhar. Desenrolou uma das fileiras do pescoço dela e o colar caiu como uma só enfiada, com comprimento suficiente para que brilhassem pálidas luas entre as suas pernas de noite. Introdu-
136
ziu tudo dentro de si, noite e lua, terra seca e mar ondulante. O sabor era ácido, apimentado, fazia-lhe arder a língua, mas ele não se importava.
De manhã, ela tinha partido. Nada restava dela a não ser um odor escuro na almofada, que ele beijou como um poeta.
Encontrou Dele e Leiberman no restaurante do hotel, a tomar o pequeno-almoço. Juntou-se a eles sem palavras e mandou vir o que eles estavam a comer: melão, croissants, café, conhaque.
- Podem ficar mais uns dias, se quiserem - disse Tangent. - Por conta da Starrett.
- Ná - disse Leiberman. - Agradeço na mesma. Mas vamo-nos embora. Eu tenho de ir.
- Oh? - fez Tangent, sem olhar para ele. - Que é que está a passar-se?
- Vamos começar a brincadeira - disse Leiberman.
14
Obiri Anokye ficaria surpreendido se alguém, conhecendo os seus actos, o acusasse de corromper o General Kumayo Songo do Togo. Pacientemente, o Capitãozinho teria explicado que não havia corrupção alguma; tinha simplesmente feito ver a Songo que os seus interesses e os de Anokye coincidiam, e de que forma o plano que estava a propor favoreceria esses interesses. Era simplesmente uma questão de benefício mútuo. O presidente não lhe mentira apenas para favorecer as suas próprias ambições; Songo iria efectivamente tornar-se uma figura proeminente no Togo, embora talvez não no papel que imaginava.
De qualquer forma, uma vez conseguida, a cooperação do General Songo foi entusiástica. Forneceu ao Capitãozinho excelentes mapas e revelou-lhe informações acerca das forças, da disposição, das armas e da preparação para o combate das forças armadas togo-lesas. Anokye não achou aconselhável nem necessário informar Songo acerca da táctica e da ocasião do "incidente provocado" .Dessa forma, garantiu ao general, ele poderia, sem mentir, negar um conhecimento detalhado do ataque. E, embora o Capitãozinho não mencionasse esse facto, a falta de conhecimentos detalhados impediria igualmente uma mudança de disposição no último minuto e uma traição por parte do general.
Em conjunto com o Coronel Nkomo, o Sargento Yeboa e Sam Leiberman, o Presidente Anokye tinha planeado a operação. A sua
137
primeira intenção tinha sido enviar Leiberman no comando de um grupo de assassinos civis, como Yakubu. Assim, se algum deles caísse nas mãos dos togoleses ou fosse morto ou ferido em solo togolês, não poderia ser estabelecida qualquer relação com o achanti. (Era certo que Leiberman era presentemente consultor oficial do Governo de Achanti, e, se fosse capturado, poderia falar. Mas era amplamente conhecido em África como um mercenário, à disposição de quem oferecesse mais. Além disso, era branco e, naturalmente, indigno de confiança.)
Mas, à medida que o plano foi evoluindo, tornou-se evidente que seria necessária uma operação militar. Por isso, Anokye decidiu enviar Nkomo, Yeboa e Leiberman, comandando cada um deles uma equipa de dois homens provenientes de uma companhia especial de assalto. Anokye tinha organizado a 4ª Brigada. Tinha sido concebida segundo o conceito dos Comandos-Rangers. O Capitãozinho esperava vir a dar-lhe as dimensões de um batalhão, com meios anfíbios e de desembarque aerotransportados.
Tendo decidido qual seria o pessoal, só restava planear a abordagem, o ataque e o regresso. Os nove homens usariam fatos civis de caqui sem etiquetas do país de origem. Não levariam qualquer identificação incriminatória. Obiri Anokye especificou as suas armas. Era o tipo de coisas que fazia bem e que mais gostava de fazer.
A meia-noite, as três equipas, de três homens cada, atravessaram furtivamente a "fronteira verde" desprovida de guardas e penetraram no Togo num local em que o país quase não tinha 100 km de largura. A hora do raid tinha sido planeada de forma a tirar proveito da luz da Lua cheia, e os homens levaram até de madrugada a caminhar em direcção a leste, subindo e descendo a cadeia norte-sul dos montes do Togo. Usaram rotas de contrabandistas, com a equipa do Sargento Yeboa a indicar o caminho, a de Leiberman no meio e a do Coronel Nkomo na retaguarda. Avançavam intervaladas, pois o luar era suficiente para manter o contacto visual. De madrugada, tinham alcançado a savana plana e puderam descansar um pouco, beber água, comer e aliviar-se no meio das ervas altas.
Dentro de pouco tempo, as três equipas tinham-se separado de novo e recomeçado a caminhar, transportando as suas armas em sacos de farinha, sacas de serapilheira ou malas de cartão baratas amarradas às costas. Esperavam passar por agricultores que voltavam do mercado, ou trabalhadores itinerantes em busca de emprego. Se fossem detidos e interrogados, Leiberman estava pronto para se fazer passar por um bêbado branco que "se tornara nativo", um papel que não precisava de ensaiar.
As ordens do Capitãozinho permitiam-lhes considerável latitude no seu método de viajar, e a sua única exigência fora a de
138
chegarem ao seu destino a tempo. Por isso, as três equipas, a certa altura, durante o dia, aproveitaram-se dos "carros das mamãs", um modo popular de transporte na África ocidental, especialmente preferido pelas mulheres que iam ao mercado e que, em algumas zonas, dominavam a economia local.
Os carros das mamãs eram camionetas desengonçadas com taipais de estacas e bancos de madeira. Funcionando geralmente sem horário fixo, parando onde e quando um passageiro quisesse entrar ou sair, as desconjuntadas camionetas constituíam um meio de transporte perfeitamente anónimo para as equipas de assalto de Achanti, que se misturavam com as multidões diversificadas que as enchiam. Os sacos com armas não atraíam as atenções; praticamente toda a gente levava cargas semelhantes.
Conforme planeado, as três equipas ultrapassaram o seu destino ao fim da tarde e aproximaram-se da fronteira do Benim. Aí, numa posição predeterminada no mapa, encontraram-se numa área arborizada, beberam água, comeram, dormiram e esperaram que caísse a noite.
O factor mais importante do assalto contra o posto do Exército togolês seleccionado era que fosse feito de leste, como se viesse do Benim. Era uma missão difícil, pois exigia que alguns dos defensores togoleses ficassem vivos, para poderem indicar de que direcção proviera o ataque.
O assalto estava previsto para as 02.00, pouco antes da rendição da guarda. Anokye calculou que, a essa hora, apesar de as unidades do Exército togolês estarem de prevenção desde que tinham começado os problemas com o Benim, muitas das sentinelas já se sentiriam fartas do seu período de guarda sem problemas, e estariam a cabecear no seu posto, se não estivessem mesmo a dormir.
A força de Achanti verificou as suas armas e materiais à meia-noite, e, novamente com Yeboa à frente, iniciaram a aproximação final. Avançaram lentamente em três colunas de três homens cada, numa formação mais ou menos em seta, com a ponta (Yeboa) a avançar à frente, por uma estrada não beneficiada que ia desde a fronteira do Benim até ao posto do Exército togolês situado a sul da aldeia de Kamina.
Segundo as informações fornecidas pelo General Kumayo Songo, a força normal da guarnição era de trinta a trinta e cinco homens, comandados por um capitão. As suas armas eram principalmente antigas espingardas de ferrolho, algumas pistolas e uma antiquada metralhadora Hotchkiss Modelo 1916. Esperava-se que o perímetro de defesa não ultrapassasse as cinco sentinelas. O posto não estava equipado com holofotes e os transportes eram tão velhos como as
armas: uma única camioneta Ford, de cerca de 1950, e o Citroen 2-CV particular do capitão.
Os seis soldados do Achanti estavam armados com espingardas de assalto Kalashnikov. Quanto aos chefes das equipas, Yeboa e Lei-berman levavam submetralhadoras Uzi e Nkomo uma Thompson. Toda a força atacante dispunha de pistolas Colt .45 em coldres suspensos dos cinturões e cada equipa levava um tipo de granadas específico: de fragmentação, incendiárias e de fumo. Os três chefes das equipas tinham facas de combate. Os seus homens iam armados com gládios, as curtas espadas tipo machete, cortantes como lâminas, fornecidas a todos os soldados do Achanti. Eram usadas em bainhas de lona (com rebordo de metal), geralmente atravessadas nas costas, com o punho a sair por cima do ombro esquerdo do homem, para serem facilmente desembainhadas.
O Capitãozinho tinha ordenado que a companhia de assalto da 4ª Brigada recebesse instrução especial em operações nocturnas - o que era invulgar em tropas africanas -, e aquele grupo movia-se no meio das sombras com confiança e num silêncio quase total. Mantinham o contacto visual e, como o papel de cada homem tinha sido demonstrado por Anokye num quadro de areia no quartel da 4ª Brigada, havia pouca necessidade de comunicação verbal durante a avançada final.
Numa situação táctica daquela natureza, as convenções exigiam que o posto adormecido fosse cercado ou que, pelo menos, se fizesse um ataque simultâneo de três lados. Mas, como observara o Capitãozinho, "a estratégia dita a táctica". (Gostava de citar aforismos militares.) Por isso, o ataque foi feito apenas de leste, da direcção da fronteira do Benim.
O Coronel Jim Nkomo era um homem enorme, alto e espadaúdo, com uma sólida crença na sua própria invencibilidade. Transformava essa crença em combate, numa coragem sorridente. Usava uma cerrada barba negra e um bigode que quase lhe escondia os lábios. Todo o seu corpo estava também coberto de pêlos espessos e rijos. Leiberman chamava-lhe "King Kong", um título que ele apreciava. O seu corpo de tanques tinha orgulho nele, embora o seu respeito se misturasse com o receio de que ele, um dia, disparasse sobre eles.
O Capitãozinho tinha escolhido Nkomo para chefiar o assalto, com Yeboa e Leiberman nos flancos.
A Lua estava encoberta. Quando eles se aproximaram silenciosamente do edifício, apenas a luz de uma pequena fogueira iluminava os contornos pouco nítidos do posto: um edifício baixo, feito de tijolos de lama com tecto de colmo. Dois edifícios exteriores mais pequenos. Os carros estacionados. Os achantis detiveram-se enquanto Nkomo
140
estudava o terreno. Dois homens fardados dormiam perto da fogueira. Alguns momentos depois, um terceiro soldado saiu de um dos edifícios mais pequenos e foi juntar-se a eles, sentando-se no chão, abraçado aos joelhos.
Nkomo mandou os seus homens para a direita, procurar mais sentinelas. Os outros achantis ficaram estendidos na erva alta, a pouca distância do edifício. Os homens de Nkomo regressaram cinco minutos depois. Abanaram as cabeças. Nkoma acocorou-se então e olhou para ambos os lados. Yeboa e Leiberman acenaram com as cabeças, assinalando a sua prontidão.
O coronel endireitou-se. Atirou uma granada de fragmentação para a fogueira das sentinelas. Lançou-a de uma forma curiosa, não da forma recomendada. Lançou-a meio por debaixo da mão, meio com o antebraço: um cruzamento entre um atirador americano de softball e um jogador de críquete inglês. A granada percorreu o ar. Explodiu praticamente em cima da fogueira.
Os dois homens adormecidos foram atingidos pelos fragmentos e morreram sem acordar; os seus corpos descontraídos absorveram o aço como molhos de trapos cortados à machadada. O que estava sentado foi atirado para trás e o seu coração ficou exposto por uma pequena secção da granada serrilhada, que o abriu tão acerada-mente como um gládio.
Todos os achantis estavam de pé, agora, com a equipa de Leiberman a atirar granadas incendiárias para cima do tecto do edifício principal, dos edifícios menores e dos veículos. Ordens de Anokye. Quando os homens meio vestidos e nus saíram aos tropeções para a noite, a equipa de Yeboa matou-os com rajadas curtas das armas automáticas.
Os primeiros soldados togoleses tinham saído sem armas. Mas os que saíram a correr, momentos depois, começaram a disparar as suas espingardas para a escuridão, apontando aos clarões das armas dos seus atacantes. Algumas armas começaram a disparar das janelas e portas do posto.
Nkomo atirou mais uma granada e, fazendo sinal aos seus homens, correu atrás dela, disparando a Thompson, sorridente. O telhado do posto estava em chamas, ambos os lados podiam ver claramente os seus alvos.
Leiberman conduziu os seus homens em corrida, disparando a sua Uzi em rajadas de staccato. Não se surpreendeu ao dar consigo a soltar gritos tão selvagens como os dos achantis. Pousou um joelho em terra e começou a pulverizar as janelas e as portas donde provinha a maior parte do fogo. Mais granadas de fragmentação explodiram dentro do edifício principal. O telhado pareceu elevar-se alguns centímetros e depois caiu entre as paredes.
141
Um soldado togolês muito gordo saiu, nas pontas dos pés, quase elegantemente, das ruínas em chamas, disparando a sua espingarda tão depressa quanto podia accionar o ferrolho. O seu rosto estava contorcido pelo choque e pelo medo. Estava nu. O seucorpo obeso brilhava; os poros pareciam exsudar gordura. Diversas espingardas achantis se voltaram para aquele alvo enorme, como se os atacantes receassem que uma única bala não conseguisse abater aquele volume enorme. Mas foi abatido, caindo de cara sobre a terra, com as vagas de sebo perfuradas pelos orifícios das balas, donde o sangue escorria lentamente.
Os achantis cerraram fileiras. Ordens de Anokye. Mas não sem baixas. Um dos homens de Nkomo caiu para trás, com o maxilar arrancado por um tiro. Um dos homens de Leiberman sentou-se, subitamente, com as mãos a comprimir o ventre, surpreendido. Mas eles continuaram a avançar, fazendo recuar os togoleses. Avermelhados pelas chamas, o sangue e a fúria.
Entraram no próprio edifício em chamas. Coxas com coxas, excitados e a gritar, com os olhos desorbitados. Alguns defensores abriram caminho pela parede das traseiras que se desmoronava. Os que decidiram ficar ergueram as espingardas vazias para tentarem defender-se dos gládios brilhantes. Uma cabeça saltou inteira e o tronco ficou de pé, por um momento, a jorrar sangue do pescoço cortado, antes de cair por terra. Um braço caído no chão, com os dedos a flectirêm-se lentamente. Uma orelha. Pedaços.
Todos os togoleses que tinham ficado no posto foram abatidos. Os achantis ouviram o som dos sobreviventes a correrem pelo mato, para oeste, escutaram um longo e pungente queixume que parecia nunca mais terminar.
Mataram todos os feridos, mutilaram todos os mortos. Ordens de Anokye. Depois reagruparam-se. O homem de Nkomo, cujo maxilar havia sido arrancado, estava morto. O soldado de Leiberman, o que tinha sido ferido no ventre, estava vivo e consciente. Olhava para eles humildemente. O Sargento Yeboa inclinou-se sobre ele, deu-lhe uma palmadinha na cara, encostou o seu Colt .45 à têmpora do homem e puxou o gatilho. Lançaram as suas duas baixas para dentro do edifício em chamas. Havia outros ferimentos, mas menores. Todos os vivos podiam mover-se sozinhos.
Fizeram um círculo com granadas de fumo, para o caso de sobreviventes mais corajosos tentarem persegui-los. Retiraram-se então para leste, para irem buscar os seus pertences, esconder as armas em sacos e em malas. Depois as equipas separaram-se, dirigindo-se para sul, conforme planeado, voltando para casa nos carros das mamãs.
142
15
Beatriz da Silva, senhora da casa do seu pai, estava sentada ao fundo da longa mesa de vidro e fez soar peremptoriamente um pequeno sino de cristal. Entraram imediatamente três criados - um ewe e dois cabrai - que começaram a levantar habilmente a mesa, retirando os pratos do jantar. Obiri Anokye olhou para Beatriz com admiração. Estava sentada no seu lugar, com um ar altivo, muito direita, observando atentamente os movimentos dos criados. Começava a ter uma nova visão do que ela poderia ser: uma escrava no quarto, uma tirana na cozinha. Isso não lhe desagradava.
Era anafada e alegre, mais menina do que mulher. Havia um brilho rosado por debaixo do castanho-escuro da sua pele. Um peito pesado, ancas largas, pernas lisas e excitantes. Um rosto sem as marcas da experiência ou da reflexão. Um riso abafado, os olhos muito abertos a tudo o que um homem pudesse dizer-lhe. Ao que ela respondia: "De verdade? Fantástico! Que maravilha! ", e assim por diante. Anokye acreditava que ela era uma virgem, e ardente.
O Primeiro-Ministro Benedicto da Silva estava majestosamente sentado à cabeceira da mesa. O Presidente Anokye sentava-se à sua direita. À direita de Anokye, o Ministro de Estado do Achanti, Jean-Louis Duelos. Em frente deles, sozinho, encontrava-se Christophe Michaux, o assistente do Primeiro-Ministro. De vez em quando cofiava a sua barbicha e, uma vez por outra, levava a mão ao cabelo oleoso e tratado pelo cabeleireiro. Os olhares significativos que lançava a Duelos não escapavam a Anokye. Mas ele já estava a vigiá-los desde o início, alertado pelo relatório de Sam Leiberman.
- Quanto a esse tal Michaux, Sr. Presidente - dissera Leiberman - ... tanto quanto sei, anda a fazer-se com os vermelhos. Os russos, não os chineses. Existem ambas as variedades no Benim, actualmente, aos montes, e estão sempre a chegar mais. Pelo que sei, Michaux é um Senhor Importante para Moscovo. Talvez estejam a industriá-lo para tomar o poder.
- Da Silva sabe disso?
- A minha fonte diz que não. Da Silva sabe que o seu secretário tem inclinações para a esquerda, mas pensa que Michaux é apenas um rapaz esperto que quer dar nas vistas. Quero dizer, Michaux não é um marxista declarado. Em público, não. Esconde-se por detrás do estilo "África para os Africanos". Solidariedade para sempre, e toca a matar todos os brancos. Conversas desse tipo.
- E a vida privada dele?
- Aí é que a porca torce o rabo. Nos Estados Unidos chamam-lhes "infanticidas". Quero dizer que ele gosta de miúdos. Toda a gente gosta de miúdos, Sr. Presidente, mas não da forma como Michaux gosta. Quero dizer que gosta mesmo de rapazinhos.
- Estou a ver - dissera Anokye. - Obrigado.
O Primeiro-Ministro Da Silva olhou para a sua filha, e ela pôs-se imediatamente de pé.
- Por favor, não se levantem, meus senhores - disse ela, com um sorriso gentil. Falava um francês muito parisiense. - Continuem a vossa conversa. Eu vou tratar do café.
- Talvez a aguardente portuguesa - disse o pai.
- Pois sim, papá - disse ela, acenando afirmativamente com a cabeça e saindo.
- Um excelente jantar, Primeiro-Ministro - disse o Presidente Anokye. - Muito obrigado.
Os outros também murmuraram o seu apreço. Falaram de generalidades sobre os problemas de Angola, enquanto o café era servido e a aguardente despejada nos balões próprios. Quando os criados saíram, com a porta fechada, o Primeiro-Ministro Da Silva dirigiu-se a Anokye directamente, com um ar preocupado e solene.
- Dou-lhe a minha palavra de honra, Sr. Presidente - disse, numa voz cava e trémula. - Nós não tivemos nada a ver com aquilo.
Falava, evidentemente, do cruel assalto ao posto do Exército togolês. Homens mutilados. Um massacre que colocara o Togo e o Benim muito perto da guerra.
Anokye fez um gesto, como a dizer que aceitava a palavra de Da Silva sem hesitação.
- Mas devo perguntar-lhe uma coisa, Primeiro-Ministro - disse. - Seria possível que o ataque tivesse sido planeado e executado pelos seus militares sem o seu conhecimento? Por indivíduos excitados a quem interessasse uma guerra declarada?
Da Silva ficou perturbado.
- Não digo que não tenhamos homens desses no nosso Exército - disse lentamente. - Que país não os tem? Mas não posso acreditar que chegassem a um tal extremo. Christophe?
- Concordo consigo, Primeiro-Ministro - disse imediatamente Michaux. - Em minha opinião, não posso conceber que alguém do nosso país tomasse parte num acto tão insano.
- Nacionalistas? - sugeriu Duelos. - Fanáticos? Terroristas? Michaux rejeitou a sugestão com um gesto.
- Alguns grupos pequenos - disse. - Ineficazes. Ridículos, na realidade. E constantemente vigiados. Não são capazes de um ataque daqueles.
144
145
Obiri Anokye fitou-o directamente.
- Então qual é a sua explicação?
- Simplesmente não sei, Sr. Presidente. Mas, na minha opinião, tenho um... um pressentimento de que estamos a ser manipulados. Por uma força externa. A CIA, talvez.
- Que disparate - cortou Da Silva. - A seguir, vai culpá-la pela falta de chuvas.
- É possível que eles tenham encenado o ataque, Primeiro-Ministro - disse Michaux obstinadamente. - Eles têm motivos ocultos. E, evidentemente, têm dinheiro para comprar estas coisas... o assassinato de Nwabala, o incêndio do nosso museu, o massacre de Kamina.
- Com que finalidade? - perguntou Anokye brandamente.
- Quem sabe, Sr. Presidente? Talvez só queiram causar confusão, provocar uma guerra que arruine ambos os países. Depois tomam o poder.
- O poder sobre as ruínas? - disse Anokye. - Para que é que os EUA, ou qualquer outra potência, quereriam controlar o Togo e o Benim? Com o devido respeito, Primeiro-Ministro, o seu país e o Togo não são economicamente seguros. Os vossos recursos naturais não são suficientes para atrair qualquer das grandes potências. Mas o senhor sabe disso...
- Infelizmente - disse Da Silva, acenando afirmativamente com a cabeça, com um ar triste. - Christophe, não consigo engolir a sua teoria. Como o Presidente Anokye disse, nós e o Togo, juntos, não somos um peixe suficientemente grande para tentar alguém a atirar-nos um isco. Não, não acredito que a CIA esteja metida nisto.
Michaux não cedia.
- Os motivos deles só depois se tornam claros - disse, e as suas palavras soaram ocas até mesmo aos seus ouvidos.
Ficaram todos em silêncio. Anokye estava satisfeito, deixando-o crescer. Conhecia a aflição dos homens do Benim. Finalmente, olhou para Duelos e para Michaux.
- Por favor - disse brandamente -, gostaria de ficar uns momentos a sós com o primeiro-ministro. Jean, vemo-nos no avião, de manhã.
Os dois homens levantaram-se, murmuraram algumas palavras delicadas e retiraram-se. Anokye esperou que a porta se fechasse atrás deles. Depois aproximou a sua cadeira da de Da Silva.
- Coragem, irmão - disse. -As coisas não são tão desesperadas como podem parecer.
- Não são desesperadas - disse Da Silva, agitando a mão. - Tristes. Deprimentes.
- Podemos falar francamente? Como irmãos?
- Evidentemente.
- Ouvi dizer, através de diversas fontes, que os agentes russos estão muito activos no seu país. Muito activos mesmo. Isso é verdade?
- É.
- Também ouvi dizer que poderá haver uma séria tentativa para subverter o Governo do Benim. Tem alguma informação a esse respeito?
- Pode... pode muito bem ser - confessou Da Silva. - Conquistaram muitos amigos em lugares importantes. Fizeram empréstimos, adquiriram quintas, fábricas, Bancos. São, actualmente, uma força com que é preciso contar.
- Que pensa a esse respeito?
- Precisa de perguntar, Sr. Presidente? Eu sou do Benim, só desejo a continuação da independência do meu país. E agora há este problema com o Togo. Para além dos nossos problemas económicos. É tudo muito complexo. Confuso.
- A vida é toda complexa e confusa, Primeiro-Ministro. Só encontramos a simplicidade no túmulo. Entretanto, temos que procurar soluções.
Da Silva olhou-o, esperançadamente.
- Tem uma solução, Sr. Presidente?
- Apenas uma sugestão. Uma sugestão que desejo que pondere cuidadosamente. O senhor e eu estamos próximos, e em breve estaremos mais próximos ainda, depois do meu casamento com a sua filha. Conhece a riqueza de Achanti, derivada do petróleo. Essa riqueza poderia ajudá-lo a resolver os seus problemas económicos. Também modernizei as forças armadas achantis. Fortalecem-se cada vez mais. Mais homens. Novas armas. Poderosas. As melhores do mundo. Esses homens e essas armas poderiam garantir a vitória do Benim no caso de uma guerra declarada com o Togo.
Da Silva começou a mostrar-se mais animado, como se crescesse aos olhos de Anokye. Endireitou-se na sua cadeira. Os seus olhos brilhavam. Até a barba prateada pareceu eriçar-se.
- Portanto, agora já resolvemos dois dos problemas que o afligiam - prosseguiu Anokye implacavelmente. - A riqueza do Achanti ajudará a tornar a sua economia viável. As armas do Achanti garantir-lhe-ão a vitória no caso de uma guerra com o Togo. E, agora, como poderemos assegurar a soberania do Benim contra a agressão dos marxistas?
O primeiro-ministro escutava fascinadamente aquele discurso. O Capitãozinho dizia tudo aquilo que ele queria ouvir. Parecia-lhe que aquela noite, aquela conversa, poderiam ser um ponto de viragem. Para o destino do país e para a sua carreira.
- Digo-lhe francamente - observou Anokye -, e estou a falar verdade, o senhor é o único homem em quem confio.
Disse estas últimas palavras em português. Da Silva ficou comovido.
- Excelente, Sr. Presidente - disse, em francês. - A sua pronúncia está a melhorar.
- Obrigado. Tenho estudado bastante. Mas, em qualquer língua, o significado é o mesmo: em si, confio. Nos outros, nos políticos, não confio. Não têm consciência da verdadeira situação.
- Não têm - disse Da Silva com voz rouca. - Concordo consigo. -Não vou empenhar a riqueza do Achanti e as armas do Achanti
num país em cujo Governo não tenha a mais completa confiança - disse Anokye severamente. - Condena-me por isso?
- É evidente que não, Sr. Presidente - apressou-se a dizer o primeiro-ministro. - É simples senso comum.
- Exactamente. Senso comum. E agora vou dizer-lhe qual será o meu preço pelos francos do Achanti para equilibrar a sua economia e pelos soldados e armas do Achanti para garantir a sua vitória sobre os Togoleses.
- O preço? - disse Da Silva. Receava o pior. Aquele homem poderia exigir... Só Deus sabia o que aquele homem decidido poderia exigir! - Qual é o seu preço, Sr. Presidente?
- Que se torne líder do Benim. É um homem em quem posso confiar. Em breve seremos parentes. Sei que, com o senhor no controlo, posso estar confiante de que o considerável investimento que estou disposto a fazer no Benim não será desperdiçado por tolos ou por aqueles que seguem ideologias estrangeiras.
Benedicto da Silva suspirou de alívio e satisfação. Mal podia acreditar na sua boa sorte. Ele sabia, sabia que poderia fazer muita coisa boa se fosse chefe do Estado. E, se concordasse em aceitar essa tarefa-por muito assustadora e onerosa que pudesse ser -, garantiria à sua nação o benefício de um amigo rico e poderoso.
- Sr. Presidente - disse, pondo-se de pé -, eu só quero o que for melhor para o meu país.
- Eu sabia que podia contar consigo - disse o Capitãozinho, levantando-se também. Os dois homens apertaram as mãos, fitando-se gravemente nos olhos. - E agora está a fazer-se tarde e eu tenho de partir. Agradeço a sua hospitalidade. Mas gostaria de também agradecer a Beatriz. Umas palavrinhas com ela antes de regressar a Mokodi. Penso que posso apreciar um último cigarro no vosso belo pátio. Importa-se de...?
- Eu vou mandar-lha, Sr. Presidente - disse rapidamente o Primeiro-Ministro Benedicto da Silva. - Imediatamente.
Anokye começou a passear para trás e para diante, fumando o
147
seu Gauloises e olhando para as estrelas. Elas pertenciam-lhe. Bastava dizer às pessoas aquilo que elas queriam ouvir; tão simples como isso. Mas nunca se devia dizer uma falsidade, isso era um pecado. Da Silva tornar-se-ia proeminente no Benim, tal como o General Songo no Togo. E ambos estariam ligados a ele por laços mais fortes do que os expedientes políticos. Pelo sangue. A família. Era da História, estava em todos os livros. Não as datas e os acontecimentos. A História eram as pessoas.
- Bibi! - disse ela, correndo para ele com os braços abertos. - Já te vais embora? Tão cedo!
- Tão tarde - disse ele, sorrindo, atirando fora o cigarro. Apertou-a contra ele.-Primeiro, o jantar... Foi um jantar memorável. Mas aviso-te de que, quando casarmos, não podemos comer assim todas as noites. Olha para isto...
Deu uma palmadinha no ventre que começava a crescer. Depois sorriu, quando ela também lhe deu uma pequena palmada.
-Eu prometo-disse. - Só verduras e talvez um pouco de arroz frio.
- Bom... - disse ele. - De vez em quando, a garoupa grelhada que serviste esta noite.
- Oh! - fez ela, encantada. - Eu sabia que tu ias gostar. E o frango?
- Magnífico - disse ele. - Levou vinho branco?
- Sim - disse ela, acenando afirmativamente com a cabeça. - E mais algumas coisas. Aprendi em Paris. Na escola.
Começaram a passear de um lado para o outro, ele com o braço em volta da cintura dela. A jovem envergava um vestido de chiffon. Largo. Verde. A cor preferida dela. O seu perfume era tão jovem, tão excitante. Lembrava-lhe sumos de fruta.
-Marca tu a data - disse-lhe. - O mais depressa possível. Daqui a dois meses.
- Tanta coisa a fazer - disse ela, estremecendo ligeiramente. Não tanto por causa dos planos a fazer como pela ideia de estar nua na cama com aquele homem. Aquele estranho. - Não sei onde deverá ser.
- Em Achanti - disse ele. - No palácio. - Riu-se. - Vou declarar feriado nacional. Vamos receber muitos presentes. Do mundo inteiro.
- Oh, Bibi - suspirou ela. - Amo-te tanto. Vamos ter uma vida fantástica.
Ele não respondeu, limitou-se a abraçá-la de novo. Beijou os seus lábios quentes. Aboca dela abriu-se, numa rendição. Enquanto os dedos dele comprimiam as costas dela, as suas costas macias, as
148
suas costas que cediam ao seu abraço. Toda ela cedia, terna e quente. Conquistada.
Para sua surpresa, Jean-Louis Duelos descobriu que Christophe Michaux conduzia um Renault 30TS. No regresso a Cotonou, depois de saírem da casa do Primeiro-Ministro Da Silva perto de Ouidah, Duelos expressou o seu prazer por viajar num carro tão luxuoso.
- Tão caro - murmurou, pensando que fosse um veículo do Governo que Michaux tivesse pedido emprestado para aquela noite.
- Estive para comprar um azul claro - disse Michaux com naturalidade. - Depois decidi-me pelo preto. É muito mais elegante, não lhe parece?
- Oh, sim.
- O negro é bonito - disse Michaux, rindo.
Guiava descontraidamente, com facilidade, mal tocando com os dedos no volante. Duelos sentia o seu perfume. Sândalo, talvez.
- Surpreendeu-me que o Presidente Anokye não desejasse a sua presença, durante a conferência com o primeiro-ministro - disse Michaux. Conservava os olhos postos na estrada.
Duelos mexeu-se, inquieto.
- Por vezes, consegue-se mais entre dois homens apenas, sem a presença de terceiros - disse.
- Evidentemente - disse Michaux. Riu-se, subitamente. - Vale mais não ter testemunhas, hem? - Como Duelos não fizesse comentários, Michaux prosseguiu: - Por vezes, o primeiro-ministro não quer a minha presença durante uma conversa. Mas eu sei geralmente o que está a passar-se. Imagino que a conversa deles, esta noite, diga respeito ao Togo. Não?
- Talvez - disse Duelos, pouco à vontade com aquela conversa. - Ou ao casamento do Presidente Anokye com a filha do primeiro-ministro.
- Ou isso - admitiu Michaux. - Ou ambas as coisas. Juntas. O Presidente Anokye é muito... ia usar a palavra "sinuoso", mas não é isso que eu quero dizer. Um homem muito complexo. Sim, assim é melhor. Não concorda que ele é complexo?
- Não, não concordo - disse sucintamente Duelos. - Parece-me que os seus objectivos são bastante claros. Tal como declarou no discurso do Zabarian.
- Ah, sim - disse Michaux. - Mas eu não estava a falar dos objectivos declarados. Estava a pensar nos seus motivos; nos seus desejos. Mas, evidentemente, conhece-os melhor do que eu. Disse que são amigos há muitos anos? Antes do golpe?
- É verdade. Ele ia frequentemente a minha casa.
149
- Um amigo da família, por assim dizer. Peço que me desculpe por não ter perguntado antes, mas como vai Mme. Duelos? Bem, espero.
- Sim, obrigado. De boa saúde.
- Fico muito satisfeito por saber disso. Concluí, pela nossa curta conversa, que ela não se interessa particularmente pelos assuntos do Governo. Estarei enganado?
- Não, tem toda a razão. Maria só se interessa pelas coisas domésticas. Pela nossa casa...
- Uma senhora encantadora. Devo felicitá-lo, ministro, por ter escolhido uma africana para sua esposa. Repugna-me ver tantos líderes africanos atrás dessas putas brancas. Peço que desculpe a rudeza da minha linguagem, mas devo dizer o que sinto. Para mim, a negritude é de importância primária.
- Para mim também - disse Duelos.
- Óptimo - disse Michaux. - Os homens com quem vamos encontrar-nos pensam o mesmo que nós. Acho que vai gostar deles. Já estamos perto.
Jean-Louis Duelos tinha o direito de se considerar "professor". Já o tinha sido, e agora era ministro de Estado da República de Achanti, abaixo apenas do Presidente Obiri Anokye e do Primeiro-Ministro Willi Abraham. O seu cargo era importante, notável para alguém de pele tão clara como a sua. Além disso, era um martinica-no, não um africano, por nascimento.
Por isso, em face dessas honras, por que motivo, perguntava a si mesmo, se sentiria tão inferiorizado perante Christophe Michaux? O homem era quase tão claro como ele, também martinicano, e não passava de um assistente do primeiro-ministro. Praticamente um secretário. Concluiu finalmente que se sentia intimidado pela auto-segurança quase insolente de Michaux. Ao falar de Obiri Anokye, o seu tom quase abeirava o desprezo. Como se soubesse algo que Duelos desconhecia.
Além disso, Duelos estava tão perturbado com certas partes do discurso do Capitãozinho no Zabarian quanto Michaux. O ministro de Estado sabia que Anokye era um homem de expedientes. O golpe teria podido não resultar se assim não fosse. Mas agora, numa posição de grande poder, presidente de um rico Estado africano, Anokye não tinha necessidade de compromissos com os seus inimigos. Os brancos. Todavia, no seu discurso, Anokye tinha publicamente defendido uma África unida, partilhada por todas as raças, cores, credos. Era perturbador. Tanto mais que Michaux não fazia esforço algum para esconder a sua desaprovação. E Duelos, em boa consciência, não podia defender o Capitãozinho.
Tinha pressuposto que o assistente do primeiro-ministro o
150
tivesse convidado para uma festa informal, uma reunião. Reconheceu quase imediatamente que ia assistir a uma espécie de comício.
Era realizado numa casa particular isolada, perto do mar, fora da estrada para Porto-Novo. Havia já diversos carros estacionados no caminho de acesso, quando lá chegaram. Alguns carros do Governo e dois veículos obviamente militares. Jean-Louis Duelos compreendeu que ele e Michaux eram aguardados; o comício principiou mal Duelos foi apresentado ao anfitrião; entregaram-lhe um copo de sumo de laranja morno e as luzes foram reduzidas.
O orador, um homem magro, ascético, apresentou-se aos vinte homens reunidos na sala como Sumaila Jakpa, um cidadão do Benim. Tinha, disse, regressado recentemente da União Soviética, onde passara dois anos, durante os quais havia frequentado as aulas de Ciência Política na Universidade de Moscovo. Em resposta a inúmeros pedidos, ia apresentar uma curta prelecção - mais um relatório pessoal, na realidade - sobre as suas experiências na Rússia.
A primeira parte da apresentação consistiu numa série de slides coloridos (de qualidade profissional), mostrando diversas vistas da União Soviética: o Kremlin, ruas, restaurantes e hotéis de Moscovo, uma fábrica de tractores, uma estância no mar Negro, retratos de alguns dos muitos tipos étnicos que compunham a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Depois as luzes acenderam-se de novo. O orador fez um fluente resumo das suas experiências na União Soviética: a alimentação (invulgar mas agradável), o tempo (extremamente frio mas revigo-rante), a hospitalidade do povo russo (superlativa), o racismo (não existente) e a simpatia pela causa africana (extraordinária). O comício foi então aberto às perguntas.
P: Como tinha sido financiada a sua estada de dois anos em Moscovo?
R: Por fundos pessoais e uma bolsa da União Soviética, à disposição de estudantes do mundo inteiro.
P: Durante os seus estudos de Ciência Política, tinham sido feitos esforços no sentido de o converter ao socialismo?
R: De forma alguma. As aulas eram de natureza histórica, e salientava-se frequentemente que os alunos deveriam regressar aos seus países nativos e colocar os seus novos conhecimentos ao dispor dos seus Governos, independentemente da sua posição no espectro político.
P: Tinham sido feitas tentativas no sentido de o recrutar pelos Serviços Secretos soviéticos?
R: Nunca. Nem nunca tinha sido, que soubesse, espiado, seguido,
151
nem o seu correio interceptado, nem tinha havido qualquer interferência nos seus direitos de livre movimentação e expressão.
Concluiu dizendo:
-Não quero deixar-lhes a impressão de que a URSS é um paraíso. É evidente que não é. Têm muitos problemas, problemas graves, dos quais o menor não é a constante ameaça militar apresentada pelos EUA e pela China. Isto faz que a Rússia dedique uma porção extraordinariamente grande do seu produto bruto à defesa nacional. É dinheiro que eles prefeririam gastar em coisas como escolas, hospitais, habitação, bens de consumo, etc. Tal como nós, os Africanos, gostaríamos de fazer.
"Uma palavra final: em altura alguma, durante a minha estada de dois anos, fui insultado ou me senti inferiorizado por causa da minha cor ou origem nacional. Numa festa final, em que todos os alunos pretos se reuniram com o nosso professor, ele reiterou, nos termos mais fortes que é possível, o interesse e a simpatia da URSS pela hegemonia negra, onde quer que, no mundo inteiro, os negros ainda fossem explorados e sofressem o peso do calcanhar do colonialismo branco. E disse, recordo-me muito bem, disse: 'Só pedimos que nos julguem pelos nossos actos, não pelas nossas palavras. A URSS estará sempre disposta a estender a mão para ajudar qualquer raça ou cor que sofra uma opressiva tirania. Esses povos, da África ou de qualquer outro lugar, encontrarão sempre em nós bons amigos que apenas desejam libertá-los do jugo dos tiranos e permitir-lhes que determinem o seu próprio destino, como nações livres e independentes.' Palavras impressionantes. Nunca as esquecerei."
O programa formal terminou então, e o comício dividiu-se em diversos pequenos grupos. Todos falavam excitadamente, e a maior parte dos convidados tentava aproximar-se do orador para lhe fazer mais perguntas. Duelos foi conduzido por Michaux até dois homens do Governo do Benim, a quem foi apresentado. Um deles era um funcionário da estatística ligado ao Ministério da Agricultura, o outro um assistente do Ministro dos Transportes e Comunicações. Como Duelos e Michaux, ambos os funcionários do Governo usavam fatos pretos, camisas brancas, gravatas discretas. Conversaram durante alguns momentos, falando das suas reacções ao discurso do estudante do Benim.
- Que lhe pareceu, ministro? - perguntou Michaux.
- Muito impressionante - disse Duelos, acenando afirmativamente com a cabeça. - Se pudermos acreditar no que eles dizem.
- Evidentemente - disse um dos outros. - Mas, como disse o professor dele: "Julguem-nos pelos nossos actos, não pelas nossas palavras." E vale a pena notar que a URSS não possui um metro de solo africano, nem mostrou qualquer desejo de o possuir. Pode ser
152
verdade que tenham pequenas instalações aqui e além, postos de reabastecimento para a sua Marinha, coisas desse género, mas apenas com o acordo da nação hospedeira.
- Fiquei especialmente interessado nos comentários sobre a opinião deles quanto à hegemonia africana - disse Michaux. - África para os Africanos. Não acha que é uma nota simpática Ministro? '
- Oh, sim - concordou Duelos. - Se pudermos confiar neles. Afinal, eles também são brancos.
Após o discurso do estudante, tinham sido distribuídas bebidas alcoólicas geladas, cocktails e vinho, em vez do sumo de laranja morno. E, depois de dois gins com bitter bastante carregados, Duelos sentiu-se muito mais à vontade, capaz de enfrentar todas as questões postas e todas as perguntas feitas por aqueles homens elegantes que mostravam um tão óbvio respeito pela sua posição e pareciam tão ansiosos por conhecer a sua opinião.
A conversa fervilhava. Havia anos que Jean-Louis Duelos não tomava parte numa conversa e num debate tão animados. Estava embriagado com as palavras, o choque de ideias, o brilho dos intelectos, a revelação de profundidades filosóficas. Sentia orgulho daqueles irmãos negros, orgulho da sua inteligência, da sua óbvia preocupação com o bem-estar e o futuro da África negra. E sentia-se orgulhoso de si próprio, ao receber mais um gim das mãos de Michaux, orgulhoso das coisas que dizia, da forma como respondia às perguntas deles, que refutava os pontos intelectualmente ilógicos. Era, sentia-o, superior a eles em História Política e Ciência Política. Sem saber como, a conversa recaiu no discurso de Obiri Anokye no Zabarian.
- Um excelente discurso - declarou um dos funcionários do Benim. - No entanto, teria preferido que o Presidente Anokye tivesse declarado mais claramente como pretende realizar o seu sonho da Pan-África.
- Ele há-de esclarecê-lo - disse Duelos prudentemente. - Na
devida altura.
- Mas, por certo, ministro, há-de compreender que os comentários dele provocaram certa preocupação em algumas áreas. Refiro-me especificamente ao seu acolhimento aos brancos. Ninguém pode argumentar contra o ideal de solidariedade no continente africano. Mas para quê incluir os brancos?
- É certo - disse Michaux. - E que brancos deseja ele incluir? Os brancos rodesianos? Os brancos sul-africanos? Os brancos que possuem os poços de petróleo do seu próprio país... os brancos americanos?
- Há aí um ponto a considerar - disse o outro funcionário do
153
Governo. - Não podemos condenar todos os "demónios brancos" e recusar-nos a aceitar a ajuda de alguns.
- No entanto - disse Michaux -, os escravos foram para a América, não para a Rússia. Mas não ponho objecção à ajuda branca, desde que ela não reduza a nossa independência. Concorda, Ministro?
- Absolutamente - disse Duelos, vagamente consciente do que estava a dizer. - Absolutamente. Todos nós sofremos já bastante com a barbárie branca. A barbárie económica. A selvajaria militar. Os insultos. A degradação. Degradação. Tem de se pôr fim a isso.
- Fico satisfeito por o ouvir dizer isso - disse calorosamente Christophe Michaux. Pousou as mãos sobre os ombros de Duelos e fitou-o solenemente nos olhos. - Possui um magnífico dom da palavra. Disse exactamente aquilo que nós todos sentimos. Somos irmãos.
- Irmãos! - disse Duelos. Tão alto que vários homens da sala pararam de falar e se voltaram para olhar para ele.
Michaux entregou-lhe mais um gin e ergueu o seu copo.
- Morte aos nossos inimigos - disse.
16
Os habitantes de Mokodi podiam encarar as actividades de Ian Quigley com divertimento (chamando-lhe "superbisbilhoteiro"), mas não havia dúvidas de que o investigador-chefe da Fisks, Twiggs & Sidebottom, Ltd. desempenhava a sua missão com todo o zelo e energia. Estava em toda a parte com o seu gravador e a sua pequena máquina fotográfica, cronometrando o fluxo de trânsito no Boule-vard Voltaire, inspeccionando as minas de fosfato, seguindo o percurso de um pedido de passaporte, cronometrando a descarga, armazenagem e venda de perecíveis dos mercados de Gonjan.
Munido da carta de autorização de Obiri Anokye, pôde mesmo inspeccionar instalações militares e paióis, subir a bordo de diversos pequenos barcos da Marinha Nacional de Achanti e observar operações da Força Aérea.
- Ele ainda vai acabar por saber mais do que eu acerca do Achanti - disse o Presidente Anokye a Joan Livesay. - Mr. Leiber-man diz-me que Quigley foi até ao Norte, quase até Quatro Pontos, para fazer qualquer coisa com o nome de estudo de movimentação dos pastores de cabras.
Joan riu-se. Anokye gostava do seu riso. Saudável e sonoro.
154
- Acho que Mr. Leiberman exagerou - disse ela. - Ian foi realmente até ao Norte, mas apenas para observar pessoalmente a economia da região. Suponho que a pastorícia faça parte dessa economia.
Foi a vez de Anokye se rir.
- Em certas áreas é a economia - disse. - Das cabras vem o leite, o queijo, a carne, a lã, as peles. É um activo nacional muito valioso. Quanto tempo mais ficam, a Joan e Mr. Quigley?
- Esperamos terminar dentro de duas semanas.
- Imagino que vai sentir-se feliz por se ver livre de Achanti.
- De maneira nenhuma, Sr. Presidente. Não posso falar por Ian, mas este foi um dos meses mais felizes da minha vida. Apreciei cada minuto.
- Agrada-me ouvir isso, Joan. Gosta de Achanti, não gosta?
- Muito, mesmo muito. Do sol. Do mar. Mas, sobretudo, da simpatia das pessoas.
- Sim. É boa gente.
Ela baixou os olhos para o livro de notas que tinha no colo, retorcendo os dedos.
- A sua simpatia, Sr. Presidente - disse em voz baixa. - Ajudou-me muito. Sei que não foi agradável ter-me sempre atrás de si. Foi muito amável.
Ele rejeitou os agradecimentos com um gesto da mão.
- Foi para meu próprio benefício - disse. - Irá ajudá-los a... como diz Mr. Quigley?... a optimizar o meu trabalho.
Falara de uma forma tão forçada, que ela ergueu o rosto para ele, sorrindo. Era fim de tarde, as luzes do escritório ainda não estavam acesas. Ele iria, segundo lhe dissera, ter uma reunião particular com Willi Abraham, Jean-Louis Duelos e Mai Fante, sobre as relações com o estrangeiro. Seguida de uma reunião com o ministro do Turismo acerca da publicidade no novo casino, que estava em construção - uma reunião a que ela poderia assistir. A esta se seguiria a sua lição semanal de Português, proporcionada por um funcionário da Embaixada portuguesa. Haveria, em seguida, uma conversa particular com Peter Tangent. Ela poderia anotar na sua agenda que diria respeito a assuntos económicos. Os lucros do petróleo. E, finalmente, seguiria de carro para os aquartelamentos de Mokodi, para assistir a uma operação nocturna da companhia especial de ataque da 4.B Brigada.
- Onde vai arranjar tanta energia? - espantou-se ela.
- Nasci forte - disse ele. - Isso é obra de Deus, não minha. Mas, além disso, eu tenho a... a determinação.
- Isso é obra sua - disse ela brandamente.
Ficaram sentados em silêncio, na semiobscuridade, sentindo-se
155
confortáveis na presença um do outro. Ele olhou para o elmo que era o cabelo dela. Tinha a pele perfeita de tantas inglesas, rosada agora pelo sol de Achanti. Viu as feições nítidas dela em silhueta. O queixo e a garganta pareceram-lhe tão tenros que, se lhes tocasse, mesmo muito levemente, conservariam a marca dos seus dedos. Perguntou a si mesmo que idade teria ela. Era mais velha que ele, pensou. Alguns anos.
- E que vai fazer quando regressar a Inglaterra, Joan?
- Terminar a minha parte do relatório. Fazer as minhas recomendações. Provavelmente farei umas férias, de alguns dias, antes da minha próxima missão.
- Tem família?
- Só o meu pai. E alguns primos afastados.
- Vive com o seu pai?
- Não - disse ela. Algo no seu olhar. - Ele está num lar. Uma espécie de clínica.
- Lamento saber disso. Deve sentir-se muito só.
- Tento manter-me ocupada.
- É o melhor - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça. - Mas tem amigos, evidentemente?
- Evidentemente.
- E que faz em Londres? Festas? Teatro?
- Oh, sim. E museus. Concertos. Coisas desse género.
- Então não está assim tão solitária.
- Por vezes - disse ela.
- Como todos nós - disse ele. - Por vezes.
Depois ficaram em silêncio, unidos, durante uns momentos mais. O seu devaneio terminou com a chegada de Abraham, Duelos e Fante. O ministro da Justiça trazia uma pequena mala preta, no género de uma maleta de médico. Quando Joan Livesay se dirigia para a sua cadeira no corredor, chegou o Sargento Sene Yeboa, que lhe sorriu. O homem entrou no gabinete do presidente e voltou a sair, trazendo a mala preta que Fante levara. Depois, a porta do gabinete foi fechada à chave por dentro. Joan Livesay abriu o dicionário e começou a murmurar verbos em akan.
O Presidente Anokye pediu aos seus convidados que se sentassem confortavelmente nos sofás voltados para a sua secretária. Ofereceu-lhes cigarros, uma caixa de charutos de Samatra, um garrafa de brande italiano. Recostou-se na sua cadeira giratória, pegou no modelo pintado do capitão do Exército achanti e começou a fazê-lo girar lentamente entre os dedos.
- A operação Togo-Benim está a correr bem - informou. - Peço-lhes que me desculpem por não os informar acerca do que foi feito, mas, até agora, todas as actividades têm sido de natureza
156
militar, e não desejava envolvê-los nelas. O vosso tempo é demasiado precioso para ser desperdiçado com detalhes que devem ser deixados aos militares profissionais.
É mesmo do Capitãozinho, pensou Willi Abraham. Dizer-lhes que não precisavam de saber das coisas edepois suavizar o rebaixamento implícito da sua posição, dizendo-lhes que eram demasiado importantes para se envolverem.
- Se tudo correr bem - prosseguiu Anokye -, podemos contar com o controlo de facto de ambos os países dentro de um mês, aproximadamente.
Ouviu-se um arquejo silvado. Anokye ergueu o olhar para ver quem tinha reagido. O seu olhar fixou-se em Fante.
- Mai - disse -, estás surpreendido?
- Apenas com o tempo, Sr. Presidente. Tão depressa?
- Oh, sim - disse Anokye, assentindo gravemente com a cabeça. - Tem de ser feito rapidamente. Estas coisas têm um ritmo próprio. Se hesitarmos, estamos perdidos.
- Partindo do princípio de que tudo corre conforme planeaste, Bibi - disse Abraham -, que vai seguir-se?
- Exactamente, Willi: que vai seguir-se? É esse o motivo por que os convoquei para aqui virem hoje. Jean, lembras-te de que, quando o golpe ainda estava na fase de planeamento, te pedi que começasses a elaborar o Governo do novo Achanti? Porisso, quando conseguimos derrubar Prempeh, pudemos apresentar imediatamente ao povo de Achanti uma constituição completa para a república, elaborada de acordo com as suas necessidades e desejos. Cometemos alguns erros, é certo, mas, de uma forma geral, acho que a constituição está a funcionar bem.
-Notavelmente bem, Sr. Presidente-disse Mai Fante. - Quase não se passa uma semana sem que eu receba um pedido de uma nação africana de uma cópia da nossa constituição, códigos civil e criminal, etc.
- Muito encorajador. Tens trabalhado bem, Mai. Todos têm trabalhado bem. Penso que a estabilidade do país prova que trabalharam bem.
- Obrigado, Sr. Presidente - disse o Ministro da Justiça com orgulho. - Ainda temos muito que fazer, mas o caminho em frente é mais curto do que a estrada já percorrida.
Era um homem idoso, de olhos claros, com cabelos prateados, que se movia agilmente, juvenilmente. Usava fatos de seda cinzento-brilhante, sempre à vontade, sempre elegantes. Dizia-se que estava aparentado, de perto ou de longe, por sangue ou por casamento, com metade dos cidadãos do Achanti. Não havia dúvidas de que possuía o dom natural dos políticos para recordar nomes, rostos, laços fami-
157
liares. Esse era um dos motivos por que Obiri Anolye o tinha nomeado presidente nacional da Liga da Liberdade, o partido político do Capitãozinho.
- Continuando... - disse o Presidente Anokye. - Penso que chegou a altura de pensarmos como vamos administrar os Governos do Togo e do Benim. E de outros países que fiquem sob a nossa hegemonia no futuro. Não apenas nos melhores interesses desses países, mas para alargar o nosso objectivo de uma Pan-África. São os três meus conselheiros em quem mais confio. Sabem que digo a verdade. Peço-lhes agora ideias sobre a natureza da união que deveremos formar com outras nações africanas. Jean?
- Uma... uma espécie de Estados Unidos de África? - disse Duelos lentamente. - Com base no modelo americano de vários Estados unidos numa sociedade por meio de um Governo federal?
- Outros EUA não - disse Willi Abraham sorrindo. - Teríamos de lhes chamar Estados Africanos Unidos. EAU, para evitar confusões. Mas não estou certo de que o modelo americano seja conveniente para África.
- Nem eu - disse Anokye.
- Talvez uma federação mais lata - sugeriu Mai Fante. - Semelhante à Commonwealth britânica.
- Lata de mais - disse Duelos. - Isso é apenas um clube sentimental de Estados soberanos.
- Penso - disse Anokye - que, em vez de tentarmos adoptar ou adaptar um sistema já existente, seria melhor decidirmos primeiro quais as características que desejamos que o nosso sistema possua, e depois o criemos com essas características em vista.
- Muito bem, Bibi - disse Abraham, acenando aprovado-ramente com a cabeça. - Como sempre, vais direito aos aspectos básicos. Vou começar por mim. A nossa federação, antes de mais, deverá ter um único sistema monetário.
- Óptimo - disse Anokye. - Concordo. Agora tu, Mai.
- Um único código legal - disse Fante imediatamente. Os outros ficaram em silêncio.
- Desejável - disse Abraham finalmente -, mas pouco realista, tendo em atenção os costumes tribais. Talvez um código básico, muito breve, de direito criminal e civil, mas suficientemente lato para permitir a interpretação local. Suficientemente elástico para cobrir as tradições e os hábitos de diferentes áreas e diferentes povos.
Era um homem pequeno, limpo, de trajos escuros, educado na Escola de Finanças de Wharton, muito duro, incorruptível. A sua calma coragem e fria segurança durante o golpe tinham contribuído
158
grandemente para o resultado. Fora a sua a mente de jogador de xadrez que estivera por detrás do financiamento do golpe de Anokye.
- Aceito isso, Willi - disse o Capitãozinho. - Jean, queres acrescentar alguma coisa?
Duelos esfregou a palma da mão na testa.
- Uma forma de participação democrática no Governo. Talvez legislaturas eleitas em cada país, mas com o executivo-chefe nomeado por si, Sr. Presidente. É um problema muito difícil, que exige muita ponderação e planeamento cuidadoso.
- É essa a razão por que eu quero que isto seja começado desde já-disse o Presidente Anokye.-Por isso nomeio um comité de três pessoas para elaborarem um plano para os novos... bom, de momento, chamemos-lhe Estados Africanos Unidos. Os EAU. Não é um mau nome. Gostaria que fizessem um estudo, tão detalhado quanto possível, de como essa união será constituída exactamente.
- E para quando queres isto, Bibi? - perguntou Abraham.
- Daqui a duas semanas - disse Anokye. - O mais tardar.
Sorriu ao ouvir os gemidos deles, e pôs-se de pé. Eles levantaram-se rapidamente e dirigiram-se para a porta. Mas detiveram-se quando ele falou.
- Nenhum dos senhores perguntou qual é a minha exigência para a nova união - disse.
- Que sugere, Sr. Presidente? - perguntou Mai Fante.
- Um exército - disse Obiri Anokye. - Um uniforme. Uma bandeira. Que o Exército dos Estados Africanos Unidos tenha quartel-general em Achanti. Sob o meu comando.
Yvonne Mayer e o Sargento Sene Yeboa tinham-se casado numa discreta cerimónia civil, presidida por um magistrado da Judiciária Nacional de Achanti. As únicas testemunhas tinham sido o Presidente Obiri Anokye, o padrinho, e Mboa Duelos, a madrinha. Após o breve casamento, os Yeboa regressaram a casa da noiva para uma curta e discreta recepção a que assistiu uma dúzia de amigos. Entre os convidados estavam algumas das raparigas do Bezerro de Ouro e alguns dos companheiros de armas do sargento. Toda a gente se comportou bem.
Yvonne e Sene tinham-se instalado numa vida matrimonial tranquila e satisfeita. Em todas as aparências. Ambos pareciam preocupados em agir da forma que os árbitros sociais de Achanti consideravam "uma forma educada". A esposa, com a ajuda dos criados, conservava a casa limpa e alegre para o seu marido. Havia comida quente à espera dele sempre que chegava, e cerveja gelada no frigorífico. Por seu turno, ele permitia-lhe que gerisse todas as
finanças do casal, falava-lhe num tom respeitoso, nunca lhe batia nem a tratava mal em momentos de ira ou embriaguês. Sabia-se em Mokodi, através do testemunho dos criados, que os Yeboa dormiam em quartos separados. Mas nunca houve dúvidas quanto à virilidade de Sene Yeboa. A experiência dizia que era apenas uma questão de tempo, até a porta entre os dois quartos adjacentes se abrir, ficar escancarada. Dizia-se que havia apostas, nos quartéis de Mokodi, sobre a altura em que esse facto teria lugar.
Na noite em que o Presidente Anokye se reuniu com os seus conselheiros para começar a planear os Estados Africanos Unidos, o Sargento Yeboa regressou a casa por volta das 21.30. Só tinha saído do palácio depois de, como era habitual, confirmar se os guardas destinados ao Capitãozinho durante o resto da noite eram adequados, estavam devidamente armados, sóbrios e conscientes da sua responsabilidade. "Mamã Yeboa", chamavam-lhe eles. Mas não à sua frente, evidentemente.
Quando entrou em casa, pela porta das traseiras que dava directamente para a cozinha, Yvonne estava à sua espera com um sorriso caloroso e uma garrafa de Star gelada. Foi-lhe difícil decidir qual lhe deu maior prazer, se a recepção amistosa, se a bebida gelada. Mas, quando Yvonne lhe tirou da mão a maleta que ele carregava, inclinou-se para beijar os cabelos louros e perfumados da mulher. Ela riu-se e deu-lhe uma palmadinha no rosto. Ele sentiu-se muito bem.
Apenas uma criada, Chantal, vivia com eles. Mas aquela era a noite de folga de Chantal. Passava-a a trabalhar no Bezerro de Ouro. Gostava da oportunidade de ganhar um dinheiro extra e de se divertir. E também servia de espia involuntária a Yvonne, permitindo à patroa calcular melhor os lucros e os desvios do matreiro Ya-kubu.
Por isso, nessa noite, tendo já jantado, Yvonne serviu, ela própria, o jantar ao marido. O prato principal era galinha picante, preparada de uma forma que ela sabia que agradava a Sene: especiarias suficientes para o fazerem suar. Mas havia cerveja fresca para arrefecer a língua e, se ele o desejasse, brande em seguida, na sala, e um bom charuto.
Ele desejou-o realmente, e ambos se sentaram descontraídos na sala, descalços. Sene tirava fumaças do seu charuto com um ar importante, levando, de vez em quando, o balão do brande aos lábios. Yvonne tinha-lhe ensinado que era pouco educado beber tudo de uma só vez.
Ela, com o seu próprio gin sling na mão, estava enroscada no outro extremo do maple. Observando-o com divertido afecto. Sentia realmente afecto por ele. Como se pode sentir afecto por um esplên-
160
dido garanhão. Ou mesmo por um grande urso, de pé nas patas traseiras.
- Que está naquela mala preta, Sene? - perguntou ela, com naturalidade.
- Dinheiro-disse ele, sorrindo-lhe. -Muito dinheiro. Francos franceses.
Ela percebeu logo.
- Vai para Togo e Benim?
- Vai - confessou ele. - Para os homens que favorecem a guerra. Compreendes?
- Evidentemente. O Capitãozinho planeia bem.
- É verdade - concordou Sene. - Tenho de reunir os maços esta noite. Amanhã atravesso as fronteiras e entrego-o.
- Vais sozinho?
- Bibi quer que o seu irmão Adebayo me acompanhe. Diz que o rapaz tem de aprender.
- Adebayo? - disse ela. - Uma criança.
- Já não é assim tão criança. Está mais alto que o Capitãozinho. Quando ganhar carne em volta dos ossos, vai ser um bom homem. Forte.
- Confias nele?
- Em Adebayo? Evidentemente. Bibi disse-lhe que seguisse as minhas ordens em tudo. Adebayo aprende depressa. Fala pouco, mas escuta com atenção. E nunca se queixa.
- Adebayo - repetiu ela. - Ainda penso nele como numa criança. Já tem mulher?
- Ho! - fez ele, rindo. - Dá tempo ao rapaz.
Na verdade, não lhe agradava muito o brande; era pequeno de mais, bebia-se depressa de mais, e nada fazia para acalmar o fogo que a galinha deixara dentro dele. Por isso, quando o balão ficou vazio, foi buscar mais uma cerveja gelada à cozinha e trouxe uma nova bebida a Yvonne.
- O Capitãozinho deixou a meu cargo decidir quanto dinheiro os homens do Togo e do Benim hão-de receber - disse-lhe ela. - É uma grande responsabilidade. Ajudas-me?
- Evidentemente - disse ela. - É preciso pedir? Mas... e os teus homens aqui no Achanti? Também lhes pagas?
- Eu pago-lhes pessoalmente, mas Bibi estabeleceu a quantia que cada um recebia.
- Tu pagas-lhes e eles respondem perante ti?
- Exactamente.
- Quantos homens tens, Sene? Aqui no Achanti e nos outros países? Em todo o teu exército privado?
- Agora? Hoje? Não sei dizer-te exactamente. Talvez uns cinquenta homens. E Bibi diz que devemos ter mais.
- Interessante - disse ela, pensativa. - Vou buscar os meus óculos e vamos decidir como o dinheiro deverá ser dividido.
Ela tinha vestido umãsapara de homem feita de musselina crua, com as volumosas dobras cingidas na cintura com uma estreita banda de seda vermelha. Tinha aprendido o jeito descuidado e provocador de vestir das mulheres africanas, a sua elegância de ancas largas. E tinha feito da simples sapara um vestido de baile. Mas, quando voltou do quarto, com os óculos postos, tinha envergado um peignoir azul por cima de uma camisa de noite azul mais clara. O mesmo trajo que usara para convidar Nwabala para a morte.
Sentaram-se juntos à mesa de teca no recanto das refeições, e ela começou a organizar as contas dele. Ele tinha os bolsos cheios de pedaços de papel, anotações, hieróglifos apressados que nem ele conseguia decifrar. Mas, gradualmente, à medida que iam trabalhando, ela conseguiu elaborar listas de nomes e missões.
Abriram um garrafão de vinho de palma, deitaram o vinho nos copos sobre cubos de gelo e foram bebendo ocasionalmente, enquanto trabalhavam. Ele deu-lhe pormenores, cerrando as sobrancelhas grossas ao tentar recordar-se das personalidades, virtudes e vícios dos homens que trabalhavam para ele. Não incluíam membros da guarda pessoal do presidente, que eram soldados do Achanti uniformizados. Só se ocuparam do exército secreto de Yeboa, dos espiões domésticos e dos agentes que tinham sido enviados para o estrangeiro, para o Togo e o Benim, a Nigéria, um para o Zaire, um para o Gabão, um para os Camarões.
Quando terminaram, olharam com espanto para as suas listas. Muito mais de cinquenta. Sene comandava pessoalmente quase cem homens em missões encobertas no Achanti e para além das fronteiras. A recolher informações. Transmitindo-as ao Sargento Yeboa.
- Não sabia - confessou ele, envergonhado da sua ineficiência. - Mas aconteceu tudo tão depressa. O Capitãozinho está sempre a pedir mais homens, mais homens, mais sítios. Quer saber tudo, em toda a parte.
- Ainda bem que me falaste disto - disse ela, pousando uma mão reconfortante no braço dele. - A partir de agora tens de me dizer tudo. Sempre que acrescentares mais um homem, ou enviares um homem de um sítio para outro, tens que me dizer, e eu faço um registo de tudo. Vou fazer uma ficha para cada homem.
- Óptimo - disse ele com gratidão. - Quem é cada homem, quanto recebe, se merece confiança, etc. Yvonne, fazes isso por mim?
162
- Evidentemente - disse ela. Riu-se levemente. - É exactamente aquilo de que preciso para me manter ocupada.
Ele olhou-a, compreensivamente. As primeiras semanas do casamento tinham sido difíceis para ela. Ele sabia disso. Quando se apercebeu, lentamente, de que Obiri Anokye não viria a casa deles, não voltaria à sua cama, nunca mais. Mas estava habituada ao sofrimento, físico ou emocional, e tinha os tendões em carne viva de uma sobrevivente.
- Mas tens de fazer uma coisa por mim - disse ela. - Diz a Bibi que precisas de mais homens. Homens gara recolher mais informações. Para irem para todas as partes da África. Se ele quer criar uma nação, tem de ter amigos em Angola, no Quénia, na África do Sul, no Mali e no Chade. Em toda a parte. Diz-lhe isto, que ele há-de concordar. Não tenhas medo. Ele há-de arranjar dinheiro para esses homens.
Ele fitou-a durante um longo, longo momento. Depois a sua mão deslizou sobre o tampo da mesa, um animal escuro a caminhar sobre dedos fortes. Agarrou no pulso dela.
- Eu digo-lhe isso - disse com voz gutural. - Eu faço o que tu dizes, Yvonne.
- Óptimo - disse ela. - Além disso, quero que tenhas um cargo superior ao de sargento. Sei que Bibi te ofereceu um posto de oficial. Quero que o aceites.
Os olhos dele ficaram opacos; ela sentiu algo próximo do medo. Talvez por não conseguir ler os pensamentos dele.
- Não, Yvonne - disse com voz suave, ainda a agarrar o pulso dela. - É importante ser-se sargento no Exército de Achanti. Chamam ao presidente Capitãozinho e ele tem orgulho disso. Não vou pedir-lhe um posto de oficial.
Ela não tinha sido em vão uma prostituta bem sucedida. Sabia quando devia ser dura e quando devia ser branda.
- Está bem - disse. - Não lhe peças. Mas, se Bibi voltar a sugerir, protesta mas aceita. Estás de acordo?
- Estou - disse ele com relutância. - Mas só se ele sugerir.
- Ele há-de sugerir - disse ela. - Eu conheço o Capitãozinho - acrescentou amargamente. Retorceu o pulso na mão dele, dobrou os dedos e tocou na palma cor-de-rosa da mão dele com as pontas dos dedos. Depois raspou-a com as unhas. - E agora vamos para a cama - disse, fitando-o nos olhos.
- Sim - disse ele.
Ela nunca o tinha visto nu, e conteve a respiração. O seu corpo forte era um mapa geográfico de cicatrizes: finos rios brancos, vales cavados, ravinas rasgadas e fendas retorcidas. Ferimentos de bala, facadas, golpes arroxeados. Mal podia acreditar que a carne dele
tivesse aguentado um tal castigo. Como ela, ele também era um sobrevivente.
Ele fez amor com ela como um magnífico garanhão excitado, um enorme urso enlouquecido, perdendo todo o seu jeito domesticado. Arreganhou os dentes, e ela rendeu-se voluntariamente ao seu feroz assalto. Não podia conter a sua força bruta, a sua fúria selvagem. Abriu-lhe as coxas pálidas e desprovidas de pêlos, perguntando a si mesma se aquele bastão pulsante que a rasgava, a penetrava, a excitava, iria matá-la.
- Meu senhor! - arquejou. - Meu dono! Meu rei!
- Não quero mostrar-me paranóico em relação aos Franceses - disse o Presidente Obiri a Peter Tangent. - No entanto, sei que eles têm consciência da situação entre o Togo e o Benim, e ela deve surpreendê-los.
- Não há dúvida, Sr. Presidente. Prevê alguma interferência? Por parte dos Franceses?
- Não - disse Anokye. - Acho que não. Mas... como é a palavra adequada em inglês?... incomoda-me a ideia. Sim. Incomoda-me. Pensei que talvez houvesse qualquer coisa que eu pudesse fazer. Que nós possamos fazer. Deixo o mínimo possível ao acaso. Não me agradava nada ver um milhar de pára-quedistas franceses a cair em Mokodi.
Pôs-se bruscamente de pé e começou a andar pelo escritório. Olhou diversas vezes para o Patek Philippe de ouro que tirara do pulso do falecido Rei Prempeh IV. A pulseira tinha sido encurtada, e o Capitãozinho usava o relógio - inicialmente uma prenda de Peter Tangent a Prempeh - com conforto e orgulho.
- Já estou atrasado para uma operação nocturna nos quartéis - disse, quase irritado. - Estão à minha espera. Temos de concluir isto rapidamente. Só tenho uma ideia sobre a matéria: os marxistas russos estão activos no Benim. E também um tanto no Togo. Mas, nos últimos meses, muito fortemente no Benim. Sei que isso é verdade. Pensa que os Franceses têm consciência disso?
- Indubitavelmente, Sr. Presidente.
- A minha ideia é esta: haverá alguma maneira de convencermos os Franceses de que a disputa Togo-Benim é resultado de uma conspiração comunista? Para dividir os dois países. Inflamar ódios que levarão a uma guerra declarada. Para que, na confusão resultante, os marxistas possam alcançar o poder, ou talvez actuar como árbitros, introduzindo as suas políticas, elevando os seus homens. Pode fazer-se que os Franceses acreditem nisto?
Peter Tangent sorriu lentamente.
164
- Um "arenque vermelho" ( Nota 1 ) - disse suavemente.
- Arenque vermelho? Não conheço essa expressão, Peter.
- No meu país, a frase tem dois significados, Sr. Presidente. Em primeiro lugar, significa uma pista falsa. Mas, nos círculos governamentais, também significa o uso da Ameaça Vermelha como meio de promover políticas... apropriações, etc... que doutra forma não teriam viabilidade. Compreende, Sr. Presidente?
- Evidentemente. Muito engenhoso. Vamos dar um arenque vermelho aos Franceses. O seu amigo de Londres poderia dar-nos uma ajuda?
Tangent pensou um pouco.
- Acho que sim - disse finalmente. - Mas não creio que ele esteja disposto a agir só com base nas minhas palavras, na minha garantia da cumplicidade dos Russos na disputa Togo-Benim. Se pudéssemos apresentar-lhe algumas provas...
- Provas? Quer dizer, talvez, uma declaração de terceiros? Uma confissão? Talvez um documento que tenha chegado ao nosso poder?
- Uma coisa nesse género.
- Eu trato disso - disse o Presidente Anokye.
- E talvez outra oferta de arte africana - disse Tangent.
- Trato disso também - disse o Capitãozinho.
17
A popular coluna do "Haut Monde" do New Times de Mokodi fazia o seguinte relato:
A sociedade de Mokodi, e mesmo os au courant do interior de Gonja e Kumasi, estão agitados com a visita ao Achanti do General e Sr.â Kumayo Songo e do seu filho mais velho, o Capitão Jere. Songo père comanda a zona norte do Exército togolês e Songo fils é Chefe do Estado-Maior do seu pai. A bela e graciosa Sr.9 Songo, em solteira Bakwa Bawo de Bassari, é grande frequentadora da sociedade de Lomé e famosa pelas suas muitas acções de caridade. Na época passada, os Songo realizaram o Baile do Society Club na sua encantadora casa perto de Ountivou.
Foi um acontecimento brilhante, que reuniu os mais importan-
( Nota 1 ) - "Red herring": uma expressão que significa "pista falsa". (N. da T.)
165
tes ornamentos da sociedade da África ocidental, com elegantes convidados provenientes de locais tão distantes como o Senegal e o Gabão.
O "Haut Monde" soube, através de uma fonte geralmente fidedigna, que a visita dos Songo a Mokodi nada tem a ver com questões militares ou relações estrangeiras. Nem por sombras! Consta que o belo Capitão Jere e Sara, a encantadora irmã mais nova do Presidente Obiri Anokye, estão apaixonados, e espera-se para breve a comunicação do seu noivado, talvez durante o jantar de gala que é oferecido esta noite no palácio em honra dos visitantes.
Felicidades para todos!
A "fonte geralmente fidedigna" mencionada pelo autor da "Haut Monde" era o homem das relações públicas do Governo de Achanti, e a coluna do jornalista era razoavelmente exacta. O jantar era uma questão de família, a que estariam presentes os três Songo e todo o clã Anokye, incluindo Judith e Josiah, e Zuni e a sua mulher Magira, que tinham vindo de Zabar no ferry da tarde. E, evidentemente, Sara e Adebayo.
Sara e o Capitão Jere estavam sentados lado a lado, à longa mesa da sala de jantar oficial. Constituíam o centro de atracção, alvos ruborizados de piadas leves, recebendo, embaraçados, terríveis avisos acerca das armadilhas do casamento.
Sara nunca tinha estado tão bela. Usava um vestido comprido de seda cor de ferrugem, com laços do mesmo tecido entraçados no cabelo. A exitação daquela noite dava brilho aos seus olhos, um clarão ao seu sorriso. Esforçava-se por se mostrar composta e madura, mas o seu espírito juvenil revelava-se em gargalhadas e ataques de riso. A certa altura, quando Zuni avisou o Capitão Jere de que a sua noiva não sabia ferver água sem a deixar transbordar, Sara cobriu o rosto com as palmas das mãos, num riso incontrolável.
O capitão ficava igualmente ruborizado. Era tímido, quase ao ponto de não conseguir falar. Mas o "Haut Monde" não tinha exagerado: era um belo homem e, no seu uniforme de gala, parecia um príncipe encantado, perfeitamente capaz de fazer Sara esquecer a fotografia de Alain Delon que estava pendurada sobre a sua cama.
Terminados a sobremesa e o café, o Presidente Anokye fez sinal a Ajaka, e foi servido champanhe. Os Songo eram muçulmanos, mas esqueceram com prazer a proibição do álcool em honra daquela ocasião festiva. O Capitãozinho pôs-se de pé, à cabeceira da mesa, o os outros calaram-se.
Falando em francês, disse:
166
- Peço a todos que se juntem a mim na celebração do noivado da
minha querida irmã Sara Anokye com o Capitão Jere Songo.
Ergueu a taça. - A este casal de jovens encantadores. Que eles conheçam a felicidade pelo resto dos seus dias e que a sua união seja abençoada por Alá, por Deus, por todos os deuses dos nossos antepassados. Sara e Jere, têm todo o nosso amor e todas as nossas esperanças de uma longa vida de felicidade.
Todos beberam a isso, com prazer, e depois foram abraçar e beijar Sara, que agora chorava de alegria, e apertar a mão do sorridente capitão, dar-lhe palmadas nas costas, felicitá-lo e desejar-lhe felicidades. Até os criados foram beijar a mão de Sara e a do capitão, e abençoá-los em diversos dialectos tribais. Ajaka fez um sinal cabalístico por cima do jovem casal e girou três vezes, rapidamente, sobre os pés descalços.
- Um momento do seu tempo, general? - murmurou o Presidente Anokye, tocando no cotovelo de Songo.
- Com certeza, Sr. Presidente.
O Capitãozinho conduziu-o pelo corredor até ao seu gabinete. Joan Livesay estava sentada à porta, com o seu dicionário de akan. Ergueu rapidamente o olhar quando os dois homens se aproximaram, e depois voltou ao seu livro. Anokye não fez qualquer tentativa de explicar a sua presença, e Songo não fez perguntas.
Dentro do gabinete, com a porta fechada à chave, o presidente retirou mapas da gaveta de cima da secretária, desenrolou-os e fez sinal ao general para que se aproximasse.
- Pode contar com a lealdade do Exército da Zona Norte? - perguntou abruptamente.
- Absolutamente, Sr. Presidente - disse Songo, um pouco chocado com a pergunta.
- E da Zona Sul? O general hesitou.
- Isso não posso afirmar com segurança. Penso que eles se manteriam neutrais.
- Ou esperariam até ver os seus progressos no Norte. Depois, se lhes parecesse que estava a ser bem sucedido, juntar-se-iam ao ataque.
- É possível, Sr. Presidente.
- Sim. Possível. Mas eu conto apenas com a neutralidade deles durante um curto período de tempo. Só peço que não façam nada. Compreende?
- Evidentemente, Sr. Presidente.
- Agora - prosseguiu o Capitãozinho, apontando para grandes setas vermelhas marcadas no mapa com lápis de cera -, gostaria que avançasse para esta área a sul dos montes. Um ataque de três
167
pontas, a partir de Sodoké, Kpessi e Atakpamé. As três colunas deverão avançar directamente para leste, entrando no Benim, seguindo por estas estradas, aqui, aqui e aqui. Alguma objecção?
- Será sensato dividir as minhas forças, Sr. Presidente?
- Não seria, se estivesse em posição de se lhe opor uma única e grande força do inimigo. Mas os serviços secretos indicam que há "penas alguns postos avançados dispersos nesta área do Benim. O único lugar que pode dar-lhe problemas é aqui, em Savalou. Se encontrar uma resistência determinada, aconselho-o a flanquear a aldeia e prosseguir a sua avançada. Tente sempre evitar uma confrontação. Avance o mais depressa que puder. O seu objectivo é cortar caminho até à fronteira da Nigéria. Corte a estrada norte-sul e divida o Benim em dois, de modo que não possam ser levadas tropas para sul para a costa a partir de Kandi e Parakou. Isto está claro?
- Sim, Sr. Presidente.
- Eu vou coordenar o meu ataque com o seu. Deslocando-me em veículos pela estrada costeira recuperada, deverei estar em Ouidah, Cotonou e Porto-Novo antes que o senhor esteja bem no interior do Benim. Está a ver o meu plano, general?
- A clássica tenaz - disse Songo com admiração. - O senhor ataca para norte vindo da costa e eu ataco na direcção da costa vindo do norte!
- Exactamente - disse o Capitãozinho. - Mas não inicie o seu movimento para sul antes de as suas tropas avançadas terem alcançado a fronteira da Nigéria. Eu mandar-lhe-ei dizer quando deverá voltar-se para sul. Posso contar consigo para esperar esse aviso?
- Pode.
- Óptimo. Prevejo uma luta renhida na área de Ouidah-Coto-nou-Porto-Novo. É onde está actualmente posicionado o grosso do Exército do Benim. Mas eu tenho homens e armas para os deslocar, para os empurrar para norte. Então, depois de o senhor ter cortado a estrada ao meio, fará a sua curva de noventa graus para sul. Teremos o inimigo encurralado entre nós. E esmagá-lo-emos.
- Excelente, Sr. Presidente! Um plano brilhante! Só há uma coisa...
- Qual é?
- Para alcançar o Benim, o seu exército terá de atravessar o Togo na estrada costeira. Disse-me que só pedia a neutralidade dos soldados e oficiais do Exército da Zona Sul. Mas, e se eles oferecerem resistência a essa invasão do Exército de Achanti?
- Não é bem uma invasão, general. Atravessamos simplesmente até ao Benim.
- Eu compreendo, Sr. Presidente, mas eles compreenderão?
168
Verão apenas homens armados que penetram no Togo saindo do Achanti. Podem entrar em luta. É preciso ter isso em consideração. Obiri Anokye endireitou-se. Atirou fora o lápis que tinha estado a usar como ponteiro. Ficou de pé, junto do mapa, com os pés firmemente plantados no chão, as mãos nas ancas, o peito inchado. Tinha a cabeça baixa; olhava para o mapa por debaixo das sobrancelhas.
- Eu já tomei isso em consideração - disse ao General Songo. - Contactei com certos oficiais do Exército da Zona Sul. Algum dinheiro mudou de mãos. Foram tomados compromissos. Eles vão manter-se neutros. Não será oferecida resistência às forças do Achanti que atravessem o Benim.
O General Kumayo Songo olhou com admiração para o Capitão-zinho.
- Pensa em tudo, Sr. Presidente.
Anokye não respondeu, e, após um momento de silêncio, Songo começou a sentir-se pouco à vontade.
- Tenciona chefiar pessoalmente as suas tropas, Sr. Presidente? - perguntou, nervoso.
- Tenciono. Seguirei com o corpo de tanques do Coronel Nkomo. Tentarei mantê-lo informado dos meus progressos. Durante as próximas duas semanas, receberá diversas mensagens particulares minhas. Dirão respeito à cronometragem, senhas, comprimentos de rádio, sinais luminosos, etc. As mensagens ser-lhe-ão entregues pessoalmente pelo meu irmão Adebayo. Se desejar responder, ele trará as respostas. Quando voltar para o Togo amanhã, sugiro que não tenhamos mais conversas por telefone ou pelo correio.
- Concordo, Sr. Presidente.
- Comece a organizar imediatamente as suas forças de ataque. Peço que me mantenha ao corrente dos seus progressos e disposições exactas. Espero que esteja pronto a avançar dentro de duas semanas.
- Duas semanas! - Pode fazer-se.
- Não tenho a certeza se posso...
A voz de Songo falhou. O Presidente Anokye ergueu a cabeça. Olhou friamente para o general, começando pelos pés e subindo lentamente pelo seu corpo com um olhar despido de expressão: pernas arqueadas, ventre proeminente, uniforme apertado no peito e nos braços, colarinho apertado, pescoço gordo, rosto afogueado a brilhar de suor, cabelos húmidos. Depois, baixou o seu olhar na direcção do de Songo, que pestanejava rapidamente.
- Mas tenho a certeza de que pode - disse suavemente. - Tenho grande confiança em si, general. Não gostaria de descobrir que essa confiança tinha sido mal colocada. Duas semanas. Depois disso,
169
esteja pronto para avançar em vinte e quatro horas após o meu aviso. Será informado da palavra de código que assinalará o ataque. E, vinte e quatro horas depois disso, o Benim terá sido esmagado e o senhor será o líder do Togo.
- Nada pode deter-nos! - disse o General Songo excitado, recuperando a coragem.
- Nada - disse Obiri Anokye gravemente. Voltou a guardar os mapas na secretária e começou a dirigir-se para a porta. Depois deteve-se. - Só mais uma pequena coisa - disse com naturalidade. - Preciso de um certo documento seu...
18
Estavam sentados como fidalgos rurais abastados na biblioteca do Brindleys em Londres. Afundados nos seus profundos sofás de cabedal. Beberricando os seus brandes. Com os pés pousados num quebra-fogo de latão diante da lareira. As chamas alegres dançavam, iluminando os seus rostos avermelhados na sala escura. Peter A. Tangent de Crawfordsville, Indiana. Anthony J. Malcolm de Altoona, Pensilvânia. E ali estavam ambos...
- Uma bela máscara do Congo - disse preguiçosamente Tony Malcolm. - Conchas e marfim, cabelo humano e outras coisas no género. Deve ter séculos. Estou embaraçado com a generosidade dele. E pensar que ele nada quer em troca.
Peter Tangent riu-se. Levemente.
- Filho da mãe cínico - disse. - Na verdade, ele quer que faças uma coisa por ele.
- A sério?
- Bom... uma coisa para os Franceses, na verdade. Mas achou que seria vantajoso para ti, se a levasses à atenção deles.
- Muita amabilidade do Capitãozinho.
- Ele não pode ir directamente aos Franceses com aquilo, compreendes?, porque receia que a Embaixada deles em Mokodi esteja invadida pelos marxistas. Faz sentido, não achas?
- Peter - disse Malcolm sonhadoramente, olhando, com os olhos apertados, para as chamas dançantes -, de que raio estás para aí a falar?
- Disto... - disse Tangent. Tirou um envelope do bolso interior do casaco e extraiu uma folha de papel dobrada. Desdobrou-a, sacudindo-a, e entregou-a a Malcolm. - Lê isto - disse.
- Tenho de ler? - murmurou Tony.
170
- Tens. Garanto-te que vais achar interessante.
Malcolm suspirou e endireitou-se no sofá. Tirou uns óculos sem aros do bolso do casaco e colocou-os tão lentamente como um meticuloso contabilista. Depois tirou o papel da mão de Tangent. Voltou-se de lado para o poder ler à luz das chamas.
- Lês francês? - perguntou Tangent.
- A minha língua mãe - disse Malcolm, e Tangent riu-se. Malcolm leu o papel de uma ponta à outra e depois releu-o.
Ergueu os olhos, fitando Tangent por cima deles.
- Vamos ver se eu entendi bem - disse. - Este documento é-me apresentado como sendo uma fotocópia da terceira página de um relatório Top Secret de três páginas enviado ao ministro da Defesa togolês em Lomé por um certo General Kumayo Songo, e assinado por ele. O relatório refere-se a uma investigação efectuada sob as ordens do general acerca das circunstâncias de um raid feito por pessoas desconhecidas a uma base militar togolesa perto da aldeia de Kamina. Durante a sua investigação do ataque não provocado, os homens do general descobriram o corpo de um dos atacantes. Estava identificado, por documentos encontrados no cadáver, como sendo de um tal Indris Obodum, um estudante do Benim que também era, aparentemente, um membro registado do Partido Comunista do Benim. Compreendi tudo devidamente?
- Compreendeste - disse Tangent com solenidade. - O documento chegou às mãos do Presidente Anokye por meios que não nos interessam. Tens conhecimento da actividade marxista no Benim?
- Tenho - disse Malcolm.
- O Presidente Anokye também. E está muito preocupado com ela. Nem é preciso dizer-to. Ele acha que esse documento é mais uma prova de que os Vermelhos estão a fomentar os problemas entre o Togo e o Benim. Pensou que esse documento deveria chegar à atenção dos Franceses, que ainda consideram o Togo e o Benim como pertencentes à sua esfera de influências. Pelos motivos que já apontei, Anokye prefere fazer as coisas desta forma... pedir-te que informes os Franceses da conspiração comunista.
Tony Malcolm tirou os óculos, dobrou-os lentamente e meteu-os outra vez no bolso superior do casaco.
- Malditos amadores - disse brandamente.
- O quê? - exclamou Tangent, endireitando-se. - Que queres dizer?
Malcolm inclinou-se para a frente e lançou o papel para as chamas.
- Que é que estás a fazer? - bradou Tangent.
O papel começou a arder, encaracolou-se, enegreceu. Em poucos
171
momentos, estava transformado em cinzas. Os dois homens recostaram-se nos seus sofás, com as cabeças voltadas de modo a poderem olhar um para o outro.
- Um pedaço de merda - disse Tony Malcolm calmamente. - Bastava aos Franceses fazerem uma chamada para descobrirem que era tão falso como uma nota de três dólares. Estou surpreendido contigo, Peter. É disso que tu pensas que se faz o meu trabalho? Documentos falsificados? Microfones microminiaturizados e máquinas fotográficas em isqueiros? Tortura indescritível e assassinatos diabolicamente astutos?
- Bom, eu... bem, e não é? - disse Tangent, um pouco confuso.
- Cerca de cinco por cento - disse Malcolm.
- E os outros noventa e cinco?
- Pessoas. Apenas pessoas. Fazer que elas nos digam o que queremos saber. Façam o que queremos que façam.
- Manipulá-las, por outras palavras?
- Que disparate. Na sua maior parte, sabem perfeitamente o que estão a fazer. Fazem-no voluntariamente, com satisfação.
- Mas... porquê?
- Por que é que o fazem? - perguntou Malcolm retoricamente. - Idealismo. O sonho de um mundo melhor. Pensam que podem aplicar um golpe contra as forças do mal e das trevas, fazer uma pequena contribuição para um futuro de liberdade, um mundo em que
o medo e a tirania política já não existam.
O seu discurso principiou a tomar o tom de cantilena de um evangelista. Tangent escutava-o, surpreendido, perguntando a si mesmo se (1) era um deliberado fingimento; (2) Malcolm realmente acreditava naquela treta; ou (3) o homem estava bêbado.
- Há boas pessoas neste mundo - prosseguiu Malcolm no que parecia ser um solilóquio. - Pessoas decididas a deixar esta vida um pouco melhor do que a encontraram. Se eu conseguir, duma pequena forma, impedir aquela alta resolução, fazê-la avançar, sinto que é meu dever moral fazer precisamente isso. Mas não ajudarei de Iorma alguma o avanço dessas sinistras forças do absolutismo po-
lítico que ameaçam tudo aquilo que eu prezo e que as pessoas que trabalham para mim também prezam.
Tangent, vendo uma faceta de Malcolm que não sabia que existia, estava absolutamente aturdido.
- Então concluo - disse - que tu sabes o que o Capitãozinho está a tentar fazer.
- Evidentemente - disse Malcolm. - Ele não quer que os Franceses descubram aquilo que pretende fazer. De modo que está a tentar vender-lhes os Russos como agents provocateurs por detrás da disputa Togo-Benim.
172
- É mais ou menos isso - disse Tangent sombriamente. - Outro copo? - perguntou, decidido a ser delicado.
- Por que não?
A garrafa de Remy-Martin estava no chão, ao lado do sofá de Tangent. Deitou um dedo ou dois em ambos os copos. Malcolm estava encarregado do sifão da soda. Deitou um pouco em cada copo. Voltaram a recostar-se, com as colunas curvadas.
- Oh, bem - disse Tangent, suspirando. - Não se pode ganhar sempre.
- Que é que te faz pensar que perdeste? - perguntou Malcolm. Tangent voltou rapidamente a cabeça para ele. Fitou Malcolm de
novo.
- Se pretendes fazer da confusão uma política deliberada - disse -, estás a consegui-lo de forma admirável. Quer dizer que, depois do discurso, estás disposto a...?
- Aquele documento era estúpido. Nunca teria convencido os Franceses. Só mostraria que Anokye tem o General Songo nas mãos.
- Mas agora dizes que vais...
- Que vou fazê-lo? Sim, vou ajudar o Capitãozinho. Podes dizer-lhe isso. Vou deixar os Franceses todos excitados com a ameaça Vermelha no Togo e no Benim.
- E como vais fazer isso?
- Segredos do ofício - disse Malcolm presunçosamente.
- Deixa-te disso, Tony, podes dizer-me. Como vais fazer isso? Malcolm pensou por um momento e depois exibiu um sorriso
doce.
- Vou dizer-lhes - respondeu. - Só isso. Vou dizer-lhes que se acautelem com os Russos.
Tangent olhou-o, espantado.
- E eles vão acreditar em ti? - perguntou. - Só assim?
- Só assim - disse Malcolm, acenando afirmativamente com a cabeça. - Eles sabem que eu sou um fulano muito honesto.
- Ho-ho - fez Tangent. - Diz-me lá, ó fulano honesto, por que estás disposto a fazer isto pelo Capitãozinho?
- Gosto das prendas que ele me manda - disse Tony Malcolm. - Estou a formar uma das melhores colecções particulares de arte africana do mundo.
- Tretas! - disse imediatamente Peter Tangent. - Há qualquer coisa mais...
Os dois homens ficaram em silêncio durante quase cinco minutos. A certa altura, entrou um empregado fardado na biblioteca, e eles retiraram os pés do quebra-fogo para lhe permitir que colocasse mais um toro na lareira. Depois, sem falarem, regressaram às suas posições anteriores, aos seus brandes com soda.
173
- Já percebi! - disse Tangent finalmente.
- Oh?
- Tiveste notícias de Ian Quigley. Ele trabalha para a Virginia. Pensas que o Capitãozinho vai ser bem sucedido e queres estar do lado do vencedor. Por isso, estás disposto a ajudá-lo.
- É isso que tu pensas? - disse Tony Malcolm em tom sonolento.
Pouco depois, terminada a bebida, Tangent pôs-se de pé, espreguiçou-se, bocejou. Murmurou qualquer coisa acerca de um dia seguinte muito ocupado, disse a Malcolm que se servisse à vontade do que restava do Remy-Martin e saiu. Tony Malcolm levantou uma mão mole em sinal de despedida.
Tangent saiu do clube passando pelo bar. Estavam diversos homens ao balcão, incluindo o francês Julien Ricard. Tangent conservou a cabeça baixa e passou rapidamente por ele. Desta vez, Ricard não lhe agarrou no braço para começar outra das suas conversas desagradáveis. O porteiro do clube apitou a chamar um táxi, e Tangent dirigiu-se para a sua suite no Connaught, preparando, na sua mente, a carta terna e divertida que iria escrever nessa noite a Amina Dunama.
- Ele já se foi? - disse Tony Malcolm quando Julian Ricard se deixou cair no sofá que Tangent abandonara.
- Partiu num táxi - disse Ricard. Soltou uma risada breve. - Passou por mim como um ladrão. Ficaste a saber alguma coisa?
- Sim - disse Tony Malcolm, olhando novamente para as chamas. - Diz à tua gente em Paris que os Russos estão a causar os problemas entre o Togo e o Benim.
- Não acredito nisso - disse Ricard, levando a mão à marca arroxeada que brilhava à luz das chamas.
Malcolm voltou-se lentamente para o olhar.
- Não precisas de acreditar - disse friamente. •- Jogaste no Canby na noite passada, não jogaste?
- Sabes bem que sim - disse Julien Ricard, carrancudo.
- E ganhaste, não foi?
- Ganhei - disse Ricard. - Mas não o suficiente.
- Não sejas ganancioso - disse Tony Malcolm.
19
A limusina veio directamente do aeroporto. Quando ela chegou, o Presidente Obiri Anokye estava à sua espera nos degraus do palácio. Flanqueavam-no o Primeiro-Ministro Willi Abraham, o Ministro de Estado Jean-Louis Duelos e o Coronel Jim Nkomo.
174
O longo Mercedes-Benz negro deteve-se lentamente. Os guardas correram a abrir as portas. Dele saíram o Primeiro-Ministro Benedicto da Silva do Benim, a sua filha Beatriz, o seu assistente Christopne Michaux e um oficial do Exército do Benim, o Coronel Kwasi Sitobo, cujas agulhetas denotavam o seu posto.
O Presidente Anokye desceu as escadas, a sorrir, estendendo os braços em sinal de boas-vindas. Abraçou primeiro Beatriz; um beijo casto na face.
- Bem-vinda à tua nova casa! - disse, e riu-se quando ela riu. Apertou formalmente as mãos a Da Silva e Michaux e depois foi
apresentado ao Coronel Sitobo, um homem escuro e magro, de olhos ferozes. Por sua vez, Anokye apresentou os seus ajudantes a todos os outros. Depois das apresentações, o grupo dividiu-se:
O Coronel Jim Nkomo ocupou-se da limusina e conduziu o Coronel Sitobo a uma revista do corpo de tanques de Achanti, planeada em honra do visitante.
O Primeiro-Ministro Abraham e o Ministro de Estado Duelos encarregaram-se de Da Silva e Michaux e conduziram-nos à sala de audiências do piso inferior para discussões preliminares acerca de um empréstimo em dinheiro que o Presidente Anokye tinha prometido fazer ao Benim.
O Capitãozinho escoltou Beatriz pela ampla escadaria de mogno até ao segundo andar, onde os esperava a sua irmã Sara, com Joan Livesay ao fundo da sala. As duas noivas, que já se tinham encontrado diversas vezes anteriormente, abraçaram-se e beijaram-se com expressões de juvenil alegria. Joan Livesay foi apresentada a Beatriz, e as três mulheres foram despachadas para as regiões superiores do palácio que, toda a gente concordava nesse ponto, precisavam de ser redecoradas - novos tapetes, novos cortinados, mobília nova - antes de ficarem em condições para um presidente casado.
- Vão lá gastar o dinheiro dos contribuintes - disse Anokye, de muito bom humor, e as três mulheres subiram as escadas a rir, já conversando acerca de conjuntos de cores e dos prós e contras de contratar um decorador profissional.
Obiri Anokye teve uma hora para si próprio no seu gabinete. Passou-a a rever, uma vez mais, os mapas e ordens de combate que tinha preparado para a campanha Togo-Benim.
Tinha havido um tempo, não muito afastado, em que ele não teria planeado uma operação militar de qualquer importância sem o conselho do inglês Alistair Greeley, contador-chefe do Banco Nacional de Achanti. Greeley, um homem estranho, um deficiente físico, tinha uma única paixão na vida: a História Militar e a sua colecção
de soldadinhos antigos. E tinha sido com a ajuda dessas miniaturas de cores vivas, deslocadas sobre mapas e diagramas, que o Capitão Anokye e Greeley tinham planeado os ataques aos rebeldes marxistas de Achanti.
Mas os rebeldes estavam destruídos ou, pelo menos, reduzidos a números insignificantes. E Greeley tinha partido, desaparecido, depois de a mulher e a irmã o abandonarem juntas. Havia quem dissesse que estava na África do Sul. Corriam boatos de que tinha sido visto nos bairros miseráveis de Durban, sujo e bêbado. Mas isso não interessava. Ninguém se importava.
Os seus conselhos já não eram necessários. Obiri Anokye, sozinho, tinha planeado e comandado o golpe de Estado vitorioso, que depusera o Rei Prempeh IV. O próprio Capitãozinho tinha imaginado as tácticas, enviado estes homens para ali, aqueles para além. E depois tinha comandado pessoalmente o assalto final ao palácio.
Essa vitória tinha-o tornado independente. Agora sabia o que devia saber e como o devia fazer. Se o seu estilo de combate seguia algum padrão era o do General americano Ulysses S. Grant: avançar com a maior força de que se podia dispor, arrasar, esmagar, aceitar as baixas sem hesitar e seguir em frente, implacável, imparável, um carro de Jagrená1.
Isto não queria dizer que não fosse preciso ser hábil no planeamento. Mas a esperteza só nos levava até ao momento em que era disparado o primeiro tiro. Nessa altura, os planos desapareciam e a vitória dependia da decisão, do instinto e de uma espécie de fúria. Tudo isso proveniente duma crença na própria invencibilidade. "Combato, logo existo." A filosofia de todos os generais vitoriosos.
Por isso, Obiri Anokye, o Capitãozinho, ponderava os seus mapas, diagramas, ordens. Consciente de que aquilo era apenas o arranque, o princípio. Suficientemente inteligente para questionar o que o impulsionava, o que o desencadeava. Era uma coisa estranha, reconhecia, um homem sentir respeito e medo de si mesmo. No entanto, ele sentia-os.
A África estava cheia de capitães, de coronéis, de generais. Alguns deles comandavam números de soldados ridículos aos olhos azuis dos líderes militares brancos. Um capitão africano podia comandar dez homens, um coronel cinquenta, um general algumas centenas. Por vezes, os soldados africanos usavam os desperdícios dos exércitos do mundo inteiro. As armas eram geralmente antiquadas e funcionavam mal. Um exército podia necessitar de uma dúzia
1 Jagannatha ou Jaggernaut: encarnação do deus hindu Vixnu, representada por uma estátua no grande templo de Puri na índia. Usa-se com o sentido de devoção cega ou sacrifício cruel. (N. da T.)
176
LAWRENCE SANDERS
de calibres de munições para as suas espingardas. Os treinos eram uma brincadeira. A disciplina durava até cair o primeiro morteiro. No entanto... No entanto...
Obiri Anokye sabia de tudo isto, trabalhava dentro destes limites. Conhecia os homens que serviam sob as suas ordens, as suas falhas e as suas capacidades. Conhecia todas essas coisas melhor do que os seus inimigos. Mas não via motivo para que um orgulhoso soldado africano bem treinado, bem alimentado, bem fardado, bem armado, não pudesse ser igual a qualquer outro soldado do mundo. Superior, talvez, se o homem da espingarda pudesse ser conquistado pelo sonho do Capitãozinho: uma nação, um povo, uma África.
Por isso, sentia temor e respeito pela sua própria ambição, a sua fome. Sabendo que não podia hesitar nem duvidar. Conhecia a frase de Shakespeare "Há uma maré..."1, e estava decidido a que a sua vida não fosse desperdiçada em baixios e desgraças. A tia Tal tinha deitado as pedras por ele e tinha visto um futuro glorioso. Não podia negar o seu destino.
O tanque pessoal do Coronel Jim Nkomo chamava-se Ami e tinha o nome pintado de lado em letras vermelhas. E era da torre aberta do Ami que o barbudo Nkomo e o visitante coronel do Benim, Kwasi Sitobo, passavam revista às manobras do corpo de tanques do Achanti. Depois da parada, tinham observado com binóculos de campanha uma formação em "V" dos novos tanques AMX-30 mergulhar numa ravina, subir a outra encosta e disparar com os seus canhões de 105 mm sobre alvos de papel, acertando um impressionante número de vezes.
O Coronel Sitobo rosnava baixinho.
- Aqui está uma coisa que deve interessar-lhe - disse Jim Nkomo com naturalidade. - O nosso primeiro míssil TOW da América. Conhece esta arma?
Sitobo acenou com a cabeça com insegurança.
- Guiado por arames - disse Nkomo. - Destinado a luta anti-tanque, mas útil para qualquer coisa num alcance de três mil e quinhentos metros. Especialmente para alvos em movimento. Equipa de quatro. O artilheiro só tem de manter as linhas cruzadas sobre o alvo. Um computador faz todas correcções em voo. O míssil não pode falhar. Cerca de quinze centímetros de diâmetro. A velocidade é de cerca de mil quilómetros por hora. A ogiva é perfilada. Perfuração de blindagem. Levamos este num tripé portátil. Os encomendados serão montados em jipes. Segundo sei, os Americanos também
1 "There is a tide in the affairs ofmen, I Which, taken atthe flood, leads onto for-tune." ["Há uma maré nos negócios dos homens, / Que, quando aproveitada, leva à fortuna."] - Júlio César, ni, 217.
177
tiveram bons resultados com os TOW usados em helicópteros. Veja isto.
Ficaram ambos na torre do Ami e, com os seus binóculos, observaram um esquadrão de soldados que arrastavam, um pouco apreensivos, a carcaça de um Volkswagen queimado, com uma longa corda, por um campo aberto. A mil metros de distância, a equipa do TOW trabalhava rapidamente.
- Três lançamentos em noventa segundos - murmurou Nkomo. - Se necessário...
O artilheiro do TOW apontou. Premiu o gatilho. Ouviu-se um silvo surpreendentemente suave quando o míssil partiu em direcção no alvo em movimento. O artilheiro ajustou a mira; o míssil, desenrolando o seu arame de dois rolos, curvou-se em direcção à carcaça do Volkswagen arrastada. Atingiu-a em cheio; a carcaça enferrujada dissolveu-se numa explosão de aço e terra. Os homens que arrastavam o alvo foram atirados ao chão, e depois puseram-se de pé, abalados.
O Coronel Kwasi Sitobo emitiu um som.
- Lindo - disse Nkomo. - Bom, assim termina o nosso espectáculo. Receio que a limusina tenha regressado ao palácio, mas posso levá-lo de volta num dos nossos blindados Berliet para transporte de pessoal. Uma boa máquina. Acho que vai gostar dela.
O Coronel Sitobo suspirou.
Os convidados chegaram cedo, entusiasmados por um convite para "uma noite portuguesa" em honra do visitante, o Primeiro-Ministro Benedicto da Silva do Benim. Reuniram-se para um aperitivo num dos extremos do grande salão de baile. Foi servido um ponche de rum com limão, e os aperitivos incluíam pimentões picantes, corações de palma marinados, azeitonas, pickles de cogumelos e minúsculos camarões em molho de alho. No outro extremo da sala, uma banda africana composta por cinco músicos tocava rumbas, sambas e mambos, com um ritmo execrável.
Como habitualmente, os convidados dividiram-se rapidamente em dois grupos: homens e mulheres. Apenas Joan Livesay e Ian Quigley permaneceram juntos, um pouco afastados dos outros.
- Não quer ponche, Ian? - perguntou ela. - Está muito bom.
- Passo - disse ele. - Penso trabalhar esta noite, e não me convém beber de mais. Onde está o manda-chuva?
- Lá em cima. Fechado no gabinete dele com o Primeiro-Ministro e aquele coronelzinho engraçado que nunca fala.
- Ah? - fez Quigley. - Isso é interessante. Que estarão eles a fazer?
178
- Relações externas - disse Livesay. - Pelo menos, foi o que o Presidente Anokye me disse. Vem jantar connosco.
- Foi decente da parte dele convidar-nos-disse ele. - Faz-me sentir menos intrometido. Está pronta para voltar para casa?
- Quando quiser.
- Uma semana, talvez. Talvez menos.
- Então já tem tudo o que pretendia?
- Mais ou menos. Só faltam alguns pormenores. Que pensa da noiva do Capitãozinho?
- Uma criança - disse Joan Livesay. - Ainda tem a gordura dum bebé.
- Talvez seja disso que ele gosta - disse Quigley, rindo.
- Não seja indecente, Ian.
- Desculpe, minha querida. Um destes dias há-de fazer-me uma fotocópia dessas suas elevadas regras de moral. Para eu ficar a saber...
- Oh, cale-se - disse ela.
- Onde está o Bibi? - perguntou Beatriz da Silva, olhando em volta ansiosamente. - Espero que ele não se demore.
- Está lá em cima com o teu pai - disse-lhe Sara Anokye. - Tenho a certeza de que não vão demorar. Mboa, estás linda. Adoro essa túnica. Foste tu que a fizeste?
Mrs. Duelos corou de prazer.
- Obrigada, Sara. Sim, fui eu que imprimi o tecido. Não achas muito. " muito disparatado?
- É claro que não. É engraçado!
- O Jean diz que é disparatado - disse Mboa com tristeza. - O amigo dele, aquele tal Michaux, concordou.
- Estão ambos muito inchados - disse Sara. Depois riu-se. - E hão-de ficar mais depois do jantar. Temos feijoada1.
- Feijoada! - exclamou Beatriz da Silva, batendo as palmas. - Que maravilha! Foi muito atencioso da parte do Bibi mandar fazer feijoada para nós.
- Onde está o presidente? - perguntou Christophe Michaux, olhando em volta, de testa franzida. - Desapareceu. E o Primeiro-Ministro Da Silva também.
- Acho que estão lá em cima - disse Jean-Louis Duelos. - Em conferência.
- Ah! E onde está o Coronel Sitobo? Também em conferência?
- Penso que sim.
1 Em português no original. (N. da T.)
179
- Interessante - disse Michaux. - Devo dizer que, em minha opinião, estou um pouco aborrecido por não nos terem pedido que assistíssemos à reunião. Não está aborrecido?
- Talvez seja um assunto particular, Christophe. O casamento...
- Um assunto particular na presença de Sitobo? Duvido. Devem ser questões militares. Eles estão a planear alguma coisa?
- Não sei.
- Não sabe ou não quer dizer? - disse Michaux, rindo levemente. - Receio que você não... - Mas deteve-se, e calou o que ia dizer.
- Qual é a sua opinião acerca do assistente do Primeiro-Ministro Da Silva? - perguntou Mai Fante a Willi Abraham em voz baixa.
- Michaux? - disse Abraham. - Um homem eficiente. - Voltou-se lentamente para olhar para Duelos e Michaux envolvidos numa animada conversa. - Muito informado. Mostrou-se astuto nas negociações, esta manhã. Mas há nele qualquer coisa...
- Exactamente - disse Mai Fante. - Qualquer coisa... É exactamente a mesma reacção que eu tive. Acha que ele pode significar problemas?
- Deixe-o andar - disse Abraham, encolhendo os ombros. Citou um provérbio akan: "Deixa a criança pegar numa brasa; não vais ter de dizer-lhe que a largue."
- Bom, espero que Jean saiba manter a boca fechada - disse Mai Fante.
- Espero que sim - disse Willi Graham sombriamente. - Já vi o Capitãozinho furioso. Mai, quer fazer-me a honra de trocar favores comigo?
- Que pretende de mim?
- Se eu conversar com a sua mulher, vai conversar com a minha?
- Combinado - disse Fante, rindo.
No seu gabinete privado, com a porta fechada à chave, o Presidente Obiri Anokye estava de pé diante da secretária e apontava posições num mapa com o indicador espetado. Não era o mesmo mapa que tinha mostrado ao General Kumayo Songo. Agora as setas vermelhas apontavam de leste para oeste, do Benim para o Togo.
- Um amplo ataque a norte - dizia ele. - Em direcção a Sokodé, Kpessi, Atakpamé. O vosso objectivo é cortar a estrada norte-sul, dividindo o país ao meio, de modo que não possam ser transportados reforços para o sul, para a costa, de Sansaime-Mango e Lama-Kara. Acham o plano claro até aqui?
180
LAWRENCE SANDERS
O Primeiro-Ministro Da Silva cofiou a sua barba prateada e olhou para o Coronel Kwasi Sitobo. O coronel, com os olhos no mapa, inclinou a cabeça e grunhiu. Anokye tomou aquele som por uma aquiescência.
~ Eu vou coordenar o meu ataque com o vosso - prosseguiu o Capitãozinho. - Vou pela estrada costeira até Lomé. Eu, pessoalmente, com o corpo de tanques do Coronel Nkomo, no comando. Creio que j á viu com os seus próprios olhos aquilo de que a força é capaz, coronel. A infantaria seguirá os tanques. Tenciono tomar Lomé e empurrar o inimigo para norte, ao longo da estrada recuperada. Quando tiver atingido o seu objectivo, coronel, e Togo estiver cortado ao meio, volte para sul, e teremos o que resta do Exército togolês entre nós, e esmagá-los-emos.
O Coronel Sitobo ergueu rapidamente o olhar, cm nos olhos a despedir clarões. Obiri Anokye tinha um relatório com o perfil dele, fornecido pela Embaixada de Achanti em Porto-Novo e pelos agentes do Sargento Yeboa em Cotonou. Com base nessa informação, tinha instruído o Primeiro-Ministro da Silva para que escolhesse Sitobo como seu chefe militar.
Aquele Sitobo era um jovem falcão, um homem feroz. Aparentemente, era apolítico, mas aliava um excessivo patriotismo com excessivo zelo pelos ideais militares: disciplina, disciplina e disciplina. Dizia-se que, certa vez, tinha morto a tiro um dos seus homens por ter desobedecido às suas ordens. Surpreendentemente, para uma pessoa cuja existência era dedicada ao comando, tinha uma voz ridiculamente aguda e falava o mínimo possível.
- Durante as próximas duas semanas - prosseguiu o Presidente Anokye -, vai receber uma série de mensagens, entregues pelo meu irmão Adebayo. Conterão indicações sobre horas, sinais de código, comprimentos de onda, etc. Quero que estejam prontos em duas semanas. Podem fazer isso?
Da Silva olhou novamente para Sitobo. O coronel acenou afirmativamente com a cabeça.
- Óptimo - disse Anokye. - Ao fim de duas semanas, esteja preparado para iniciar o ataque com um aviso de vinte e quatro horas de antecedência. Penso que levaremos apenas vinte e quatro horas para esmagar por completo o Togo e acabar com essa ameaça à vossa segurança nacional.
O Coronel Kwasi Sitobo falou pela primeira vez.
- Concordo - grasnou.
Os candelabros de cristal da sala de jantar oficial brilhavam intensamente. A mesa estava elegantemente posta com toalha e
FACTOR TANGENT
181
guardanapos engomados e talheres de prata polidos. Uma equipa de criados sorridentes, comandados pelo majestoso Ajaka, deslizava alegremente entre os convidados, para conservar os copos cheios de vinho português e trazer cada vez mais travessas, tigelas e recipientes diversos com a fabulosa feijoada.
Sendo um prato tão africano como brasileiro, a feijoada é uma orquestração de sabores pungentes: alho e rabo de porco, cebolas e toucinho fumado, couves e pernil, entrecosto e mandioca, orelha de porco e arroz, fufu e tabasco, feijão preto e chouriço. É um prato em que se deita de tudo. Preparado para tanta gente, os cozinheiros do palácio tinham levado quase dois dias a confeccioná-lo; o Piper Aztec da Força Aérea Nacional do Achanti foi enviado a Cotonou para comprar o paio e a Acra para comprar a língua de vaca fumada.
A feijoada é um prato festivo e estava de acordo com a disposição dos convidados, cujos apetites já tinham sido aguçados pelo ponche de rum e pelos aperitivos condimentados. As travessas passavam, metiam-se colheres nas tigelas, conchas nas molheiras, e grandes montes de feijoada cresciam nos pratos dos convidados, prontos a serem escavados, desbastados, demolidos, enquanto os criados radiantes acorriam com mais arroz fumegante, mais verduras, mais molho picante, mais pimentos e carne seca.
O Presidente Anokye olhava-os benignamente da cabeceira da mesa, verificando se todos os convidados estavam a ser bem servidos. O Primeiro-Ministro Da Silva estava sentado à sua direita, Beatriz à sua esquerda. As outras pessoas sentavam-se aos lados da mesa, homens e mulheres alternados, com Sara ao fundo da mesa, a aprender a agir como anfitriã.
Era grande o ruído que enchia a sala, com as palavras de apreço dos convidados, o entrechocar dos talheres, o tilintar das garrafas contra os copos, o ruído das colheres nas tigelas, das conchas nas molheiras.
- A melhor, Sr. Presidente - disse o Primeiro-Ministro Da Silva, revirando os olhos. Tinha molho de alho na barba prateada. Ergueu o copo na direcção de Anokye: - Juro-lhe que é a melhor que já comi. É uma noite inesquecível. - Inclinou-se sobre a mesa na direcção de Sitobo: - Então, coronel, que acha disto? Hein? Hein?
Sitobo grunhiu, sem parar para erguer o olhar, introduzindo na boca já à espera mais uma colher de feijões pretos.
Até mesmo as senhoras, que tinham começado por debicar elegantemente a comida, numa forma educada, não conseguiam resistir ao contraste dos sabores suculentos. Daí a pouco estavam a comer tão energicamente como os homens, pedindo mais carne de porco salgada, mais salada de laranja fria, mais malaguetas picantes. Tanto as mulheres como os homens suavam por causa das
182
183
especiarias picantes e do esforço feito a comer. Vieram Mateus e cerveja gelados e tigelas com cubos de gelo, que alguns dos convidados esfregavam nas testas febris.
Obiri Anokye escolhia cuidadosamente a comida, evitando os feijões e o arroz, enchendo-se com carne de vaca, língua e entrecosto.
- Não estás a comer, Bibi - queixou-se Beatriz.
- Estou a comer bastante - protestou ele. - Bom, talvez mais um pouco de entrecosto e de chouriço. Preciso de armazenar forças. Depois de nos casarmos, só arroz frio e saladas. Já combinámos!
- Evidentemente - disse ela, rindo. - Oh, é tão bom!
- Achas a tua suite no Mokodi Hilton satisfatória? - perguntou ele, inclinando-se para a jovem, afim de conseguir ouvi-la por cima do ruído.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça, de olhos muito abertos, com os dentes brancos demasiado ocupados a devorar um pedaço de chispe para poder responder.
- E o Coronel Sitobo e Christophe Michaux...? Estão confortáveis?
Ela fez uma pausa, levando um guardanapo engomado aos lábios engordurados.
- Tenho a certeza de que o coronel está - disse ela. - Mas ele nunca diz nada de nada!
Anokye sorriu, acenando compreensivamente com a cabeça.
- E Michaux? - perguntou.
- Oh, ele não quis ficar no Hilton. Disse que é demasiado americano. Está num bangaló para safaris no Hotel Africain. Conheces?
- Oh, sim - disse o Capitãozinho, acenando lentamente com a cabeça. - Conheço.
Depois, quando já não podiam comer mais, quando cada convidado jurava que uma dentada mais, por pequena que fosse, o faria rebentar, os pratos, as travessas, as tigelas e as molheiras foram levantados, a mesa ficou limpa e foram servidos montes de sorvete, em três sabores, com Madeira gelado, para reduzir as possibilidades de os seus palatos se incendiarem. Havia também champanhe, cerveja e brande, e café de chicória, chá e águaPerrier.
Como habitualmente, Obiri Anokye bebeu pouco, levando aos lábios um copo de cerveja Star gelada. Recostou-se confortavelmente na cadeira, escutando a conversa alegre dos seus convidados. Com um sorriso leve nos lábios. Os olhos pousados algures.
Mas não tão longe que não fosse o primeiro da sala a ver o Sargento Yeboa junto da porta da sala de jantar, subitamente aberta. O Capitãozinho pôs-se imediatamente de pé, murmurando desculpas à direita e à esquerda, e abandonou a mesa antes que a maior parte
dos convidados se apercebesse de que o seu anfitrião tinha partido. Puxou Yeboa para o corredor, fechando a porta para abafar o ruído.
- Que foi, Sene? - perguntou.
Mas os olhos do sargento estavam cheios de lágrimas. Os seus ombros maciços estavam descaídos. Os braços musculosos pendiam. O Capitãozinho agarrou-o, sacudindo-o levemente.
- Que foi, homem?
- O teu pai - murmurou Yeboa, baixando lentamente os olhos. - Perdoa-me, Bibi.
Anokye fitou-o.
- Morreu? - inquiriu.
Yeboa acenou afirmativamente com a cabeça, mudamente.
- Quando? - perguntou Anokye.
- Há pouco, Capitãozinho. Zuni telefonou para o oficial de dia. Eu estava no aquartelamento. Chamaram-me. Falei com Zuni. Ele disse-me que Josiah estava a ajudar a arrastar o barco para a areia. De repente, caiu morto. Bibi, eu...
Anokye acenou com a cabeça. Os dois homens abraçaram-se, apertando-se com força.
- Ele era meu pai também - disse Yeboa, com uma voz abafada e trémula.
- Eu sei, Sene, eu sei. Fizeste bem. Agora há mais coisas para fazeres. Telefona à Base Naval. Manda preparar uma lancha. Sara e eu iremos imediatamente.
- Posso ir também, Bibi?
- Evidentemente. Tu és da família. Agora vai mandar preparar a lancha. Eu aviso a Sara. Obrigado, irmão.
Abraçaram-se de novo. Depois Yeboa voltou-se e começou a correr. Anokye deteve um criado que ia entrar na sala de jantar e pediu-lhe que lhe mandasse a sua irmã Sara. Ela veio logo ao seu encontro. Disse-lhe o que sucedera. Ela caiu nos seus braços, abafando no ombro dele os soluços angustiados. Ele consolou-a o melhor que podia, dizendo-lhe que o pai já era velho, que aquilo seria de esperar, que ele tinha levado uma boa vida sem prejudicar ninguém, agora estava junto de Deus, e assim por diante.
Depois de ela acalmar, ele disse-lhe que fosse ao quarto preparar uma mala para levar para Zabar; a mãe iria precisar dela, e ninguém sabia por quanto tempo. Quando ela correu para cima, ele inspirou fundo e entrou de novo na sala de jantar. Os convidados, surpreendidos com a súbita e inesperada saída dos dois Anokye, olharam para ele, silenciosos e perturbados.
- Queridos amigos - disse ele, com voz firme. - Sinto muito que tenha surgido uma questão de família que exige a presença da minha irmã Sara e a minha. Peço desculpa pela nossa ausência. Por
184
favor, não se preocupem, terminem o vosso jantar e gozem o serão. Primeiro-Ministro Abraham, posso pedir-lhe que seja o anfitrião, na minha ausência?
- Com certeza, Sr. Presidente.
- Agradeço a todos a vossa companhia - disse Obiri Anokye, sorrindo tristemente. - Só desejo que esta lamentável interrupção não estrague o vosso prazer.
- Que tragédia - lamentou Jean-Louis Duelos. - O Capitão-zinho deve estar arrasado.
- Já era um velho, não era? - perguntou Christophe Michaux.
- Muito velho.
- Então?
Sentada sozinha no banco de trás do Simca de Duelos, Mboa escutou esta conversa, e concluiu que não gostava daquele Michaux. Esperava que ele ficasse em casa deles apenas o tempo suficiente para tomar uma bebida e se fosse logo embora. Podia ser preto, mas não era africano; não sentia a perda de Bibi.
- Há alguma loja de bebidas no caminho? - perguntou Michaux.
- Sim - respondeu Duelos -, mas não vale a pena pararmos. Eu tenho vinho, cerveja...
- Vou arranjar-lhe uma coisa boa - disse Michaux. Quando pararam em frente da loja iluminada, Michaux saltou do
carro e foi até lá.
- Jean... - principiou Mboa.
- Maria, não me digas que já bebi de mais - disse ele, furioso. Esta noite não estou com disposição para sermões.
- Eu alguma vez te fiz sermões? - perguntou ela.
- As tuas maneiras - disse ele, irado. - O teu silêncio, o teu ar de reprovação. São piores que um sermão.
- Não compreendo - disse ela debilmente.
Michaux chegou, a correr, trazendo um saco com garrafas embrulhadas em papel de jornal.
- Duas garrafas de gim Beefeater - disse ele - e uma de uís-que escocês Glenlivet. Devem chegar.
- Sem dúvida - disse Duelos, imitando a pronúncia inglesa, e ambos desataram a rir histericamente.
Estacionaram em frente da casa de Duelos, numa rua vulgar que dava para o Boulevard Voltaire. Naquela zona os passeios não eram pavimentados, e a estrada era de laterite ou de terra batida.
- Andamos à procura de uma casa nova - disse Duelos com naturalidade -, mas ainda não encontrámos uma coisa de jeito.
185
Com tantos homens do petróleo na cidade, as casas boas são escassas.
- Os americanos estragam tudo - disse Michaux.
Ao entrar, o assistente do primeiro-ministro olhou em volta, divertido.
- Estilo simples, hem? - disse, rindo. Tocou com a mão nas ondas do cabelo. - Têm gelo, espero.
- Evidentemente - disse Duelos, irritado. - Maria, dois copos com gelo.
- Se bem me recordo de Cotonou - disse Michaux languidamente -, gosta de gim com bitter. Tem bitter?
- Não - disse Duelos sucintamente. Depois o seu rosto animou-se. - Mas tenho duas limas frescas. Vamos beber gimlets.
- Excelente - disse Michaux com voz arrastada.
Mboa foi para o quarto. Fechou a porta. Sentou-se na beira da cama e olhou para os punhos fechados.
- Maria! - bradou Duelos da sala. - Onde estás? Copos! Gelo! Ela pôs-se de pé, despiu-se e vestiu um vestido caseiro vulgar,
uma túnica larga de musselina crua, lavada tantas vezes que estava fina como seda. Modelava-lhe as ancas, os seios. Saiu do quarto descalça, deliberadamente armada em africana desleixada.
Levou os copos aos dois homens. Entregou-lhes o gelo. Cortou uma lima em gomos e levou-lhos. Foi buscar uma pequena almofada para pôr por detrás das costas de Christophe Michaux, para ele se sentir mais confortável no seu cadeirão de braços. Depois retirou-se para a cozinha e ficou silenciosa na escuridão, à escuta.
Era uma mulher pequena. Seios chatos, ancas estreitas, negra como breu. Mas havia uma esbelta sinuosidade no seu corpo. Uma certa graça. As suas feições eram classicamente africanas, lábios revirados e narinas largas. Olhos líquidos, quase orientais. Nariz forte e quase semítico. Era uma hausa. Mulheres orgulhosas. E, quando necessário, duras como pedras. Nas trevas da cozinha, ficou sentada como uma pedra, imóvel, à escuta.
-Até que ponto a morte do pai vai afectar o Presidente Anokye? - perguntou Christophe Michaux.
- Afectá-lo?
- As suas actividades públicas - disse Michaux com impaciência. - Haverá um período de luto público? As conversações para o empréstimo serão adiadas?
- Oh, não, não - apressou-se a dizer Duelos. - É uma questão particular. Imagino que o presidente vai querer que as actividades quotidianas do governo prossigam sem interrupção.
Michaux soltou uma curta gargalhada.
186
- Imagina - disse ironicamente. - Duelos, até que ponto conhece exactamente o que Anokye pretende fazer?
- Conheço as intenções dele - disse Duelos calorosamente. - Estou tão próximo dele como qualquer outro membro do governo de Achanti.
- Evidentemente, evidentemente - acalmou-o Michaux. - Não pretendia implicar que não estivesse. Mas por certo admite que ele possa ter planos que não lhe revelou. Planos militares, por exemplo.
Duelos murmurou qualquer coisa ininteligível, bebendo grandes tragos de gim, amuado.
- Como eu gostava de ter uma audiência privada com o Capitão-zinho - disse Michaux pensativamente. - Uma audiência curta. Há tanta coisa que gostaria de lhe perguntar.
Duelos ergueu o olhar, interessado.
- Perguntar-lhe o quê?
- Oh... detalhes da sua filosofia política. Como é que ele tenciona conseguir a Pan-África do seu discurso do Zabarian. Se a inclusão de todas as raças é uma coisa em que ele realmente acredita ou apenas um expediente, relações públicas.
- O presidente é um homem de expedientes - reconheceu Duelos. -Mas isso é condenável? Todos os grandes líderes políticos do mundo têm sido pragmáticos.
- Estou inteiramente de acordo consigo - disse Michaux calorosamente. - Com o seu profundo conhecimento da História e da Ciência Política, quem ousaria discordar de si?
Soltou uma risada, e Duelos riu-se também, sentindo-se melhor. Serviu-se de outra bebida, depois de notar que o ajudante do primeiro-ministro ainda tinha metade da sua no copo.
- Expedientes - disse Michaux, acenando afirmativamente com a cabeça. - Isso revela sensatez. Acho que qualquer compromisso seria justificável para se atingir um objectivo. Os fins justificam os meios... não é?
- Oh, sim - concordou Duelos. - Mas nem sempre. Não há absolutos. Absolutos.
- Correcto, ministro! - exclamou Michaux. - Nem sempre, nada de absolutos. Por exemplo, se eu soubesse que, em minha opinião, a unificação da África podia ser realizada com a inclusão dos brancos em altas posições políticas e económicas, sentir-me-ia tentado. Confesso. Sentir-me-ia tentado.
- Não aconteceria isso com todos nós? - murmurou Duelos.
- Mas, conhecendo a história passada dos brancos em África, a sua crueldade e o seu racismo, poderíamos ousar incluí-los? Poderíamos, em boa consciência, incluí-los? Eu digo que não.
187
- Não - disse Duelos.
- É um dilema, não é? Concordamos em que os fins justificam os meios, mas há aqui um meio que temos de rejeitar. Que se há-de fazer? Sabe, Duelos, desejo de todo o meu coração que Obiri Anokye tenha conseguido resolver esse problema. Que tenha descoberto a forma de conseguir a solidariedade africana com a ajuda dos brancos sem o perigo de lhes dar uma força opressora para o futuro.
- Descobriu! - gritou Duelos, radiante. - Descobriu!
- Descobriu mesmo? - disse Michaux com voz suave. - Isso é encorajador. Acho que vou beber mais um copo.
Duelos serviu o gim com uma mão trémula. Michaux juntou-lhe gelo e espremeu um gomo de lima. Mexeu lentamente a bebida com um longo indicador de unha envernizada. Depois recostou-se, cofiando amorosamente a sua barbicha de bode.
- Não sei expressar-lhe o prazer que sinto - disse - em ter uma conversa tão estimulante com um homem tão sabedor. Só de ouvir as suas palavras, ministro, sinto renovar-se a minha fé no destino de África.
- Obrigado - disse Duelos, radiante. - 'Gradeço muito.
- África, África - suspirou Michaux. - Que havemos de fazer com ela? Mas fico satisfeito por saber que ao menos um homem conhece a resposta. Obiri Anokye é o homem capaz de unir este continente.
- Certo! - disse, com excitação, o ministro de Estado. - Ele não mo disse, repare... Trata-se, estritamente, de uma ideia minha...
- Evidentemente, ministro.
-Mas acredito que Bibi... o presidente, quero eu dizer... pressente inconscientemente uma evolução da forma política. Isto é, nenhum homem inteligente acredita que a democracia seja a forma ideal de governo para qualquer país, independentemente do seu estado político e económico de sotis... de sofisticação. Quero dizer, na índia, por exemplo, poderá ser necessário um governo autoritário, temporariamente. E depois, numa evolução, chega-se a uma monarquia limitada, uma monarquia constitucional, qualquer coisa nesse género. E depois, quando o eleitorado tiver sido educado e for capaz de compreender as questões envolvidas e escolher sensatamente os seus representantes capazes de se ocuparem dessas questões, nessa altura nós... compreende onde quero chegar?
- Evidentemente, evidentemente - disse Michaux com entusiasmo. - O governo não é estático, é um organismo em crescimento, evoluindo com a evolução do povo.
- Exactamente! - disse Duelos. - Christophe, apreendeu imediatamente a minha ideia. O Estado a crescer à medida que o povo
cresce. Digamos, a partir de uma ditadura militar até uma democracia totalmente participante. Num período de alguns anos, naturalmente.
- Naturalmente - disse Michaux. Inclinou-se para a frente, com as mãos nos joelhos, fitando intensamente Duelos. - E acha que é assim que o Presidente Anokye pensa? Inconscientemente, é claro.
-Induti... indubitavelmente - disse Duelos. - O Capitãozinho tem fé no bom senso inerente do homem comum.
- O homem comum - repetiu Michaux. - O seu bom senso inerente. Tem toda arazão! Mas, primeiro, é preciso um começo. Mesmo que seja uma ditadura militar. Certo?
- Certo - disse Duelos, olhando para o seu convidado com um olhar vidrado. - Apenas um começo. Um primeiro passo.
- Certo. Em direcção a algo muito melhor. Muitíssimo melhor. Concordo. Mas como vai ser dado esse primeiro passo? A África é um continente enorme. Mais de sessenta nações. Como se poderia dar o primeiro passo? Colocar todas essas nações e povos diversos sob um mesmo domínio?
- Ah! - exclamou Jean-Louis Duelos. Ergueu um dedo, agitando-o. - Impossível para qualquer outro homem. Mas Obiri Anokye pode fazê-lo. Ele tem um plano!
- Oh-oh - Christophe Michaux acenou afirmativamente com a cabeça, como se tivesse ficado satisfeito. - Um plano. E qual seria ele?
O ministro de Estado do Achanti começou a falar.
Mboa, encolhida na cozinha, escutava-o, aflita. Sabia pouco de História, nada de política. Mas sabia que o seu marido estava a beber de mais e a falar de mais com um homem de outro país. Um homem em quem ela não confiava. Não era preciso ser-se professor para perceber isso. Nem político. Bastava que se fosse um negro do mato - que, reconheceu, era precisamente o que ela era - para saber que o seu marido, a quem amava, estava a agir como um tolo. E os tolos em África não eram diferentes dos tolos da América, da França ou da terra dos esquimós. Os tolos podiam, em qualquer parte, destruir os aturados pensamentos e os planos cuidadosos dos homens sábios. Qualquer negro esperto do mato sabia isso desde os três anos de idade.
Por isso deixou o marido falar, e beber, e não o interrompeu. Limitou-se a ficar ali sentada, tensa, observando, sombriamente, como Michaux lisonjeava o seu tolo marido, acariciava o seu ego, concordava com ele em todas as coisas, e lhe ia arrancando, pouco a pouco, a história da forma por que Obiri Anokye tencionava tornar-se governante do Togo e do Benim dentro de duas semanas.
189
Finalmente, após outra bebida - Mboa já lhes tinha perdido a conta -, o seu marido adormeceu na cadeira, começando a ressonar baixinho. Christophe Michaux tirou-lhe cuidadosamente o copo vazio dos dedos moles.
- Maria! - disse imperiosamente.
Quando ela entrou na sala, ele espreguiçou-se preguiçosamente e fingiu que bocejava.
- Bela conversa - disse ele. - Como é que vocês dizem... belo palavreado. Gostei imenso. Como pode ver, o seu marido adormeceu.
- Riu-se.- Os cuidados de Estado - disse. - Tenho de voltar para o hotel. Chame-me um táxi.
- Não há táxis a esta hora-disse ela firmemente. - Eu levo-o. Ele olhou para os pés descalços dela.
- Bom, bom, bom - disse. - Os milagres nunca deixarão de existir?
Ela calçou as sandálias para conduzir o Simca. Michaux sentou-se junto dela. Pareceu-lhe que ele se sentara perto de mais.
- É uma maravilha ver uma mulher africana capaz de manejar a maquinaria moderna - disse ele. - Guia muito bem.
Como ela não respondesse, ele começou a apalpar as algibeiras e acabou por encontrar um maço de cigarros.
- Quer um? - perguntou. Ela abanou a cabeça, e ele riu-se, dizendo: - Não são suficientemente fortes para si?
O cigarro tinha um cheiro enjoativo, perfumado. Ela inclinou a cabeça para a janela aberta, para escapar ao cheiro.
- É uma mulherzinha curiosa, Maria - disse ele. - Ou prefere que eu lhe chame Mboa?
- Como lhe agradar - disse ela.
- Como me agradar? - disse ele. - É boa em agradar aos homens, Mboa? É perita nisso?
Subitamente, ela percebeu que aquele homem mau era um tolo tão grande como o seu marido. Maior ainda. Teve uma ideia peregrina de que talvez aqueles martinicanos de pele clara, aqueles homens pálidos, tivessem perdido o bom senso tal como haviam perdido a cor.
- Gosto de agradar aos homens - disse ousadamente, decidida a testar a profundidade da estupidez dele.
- Ah, sim? - disse ele, rindo. Pousou a mão sobre a coxa dela.
- Gostaria de me agradar, Mboa?
- Talvez - disse ela maliciosamente, e ele riu-se.
Ela conhecia o caminho. A sul do Boulevard Voltaire e depois para oeste, pela estrada costeira, passando pelo Mokodi Hilton. Era muito tarde; havia pouco trânsito.
Quando chegaram ao desvio para o Hotel Africain, ele indi-
190
cou-lhe a estrada de laterite até à fileira de bangalós de safari. O dele era o último, o mais afastado de todos. Ela tinha ouvido falar daquele hotel, mas não se recordava do que ouvira. Os mexericos não lhe interessavam.
A mão suave dele permanecia na sua coxa. Quando ela desligou o motor e apagou as luzes, a mão quente do homem subiu um pouco.
-Acho as mulheres africanas muito compreensivas - disse ele. - Muito simpáticas. Estou tão só, Mboa. Tão só.
- Um homem nunca deveria estar só - disse ela, sabendo que não corria riscos.
Então ele riu-se, acariciando os pequenos seios dela através do tecido fino.
- Puta negra! - disse, ainda a rir. - Não, Mboa, eu já tenho companhia. E não ia sujar-me contigo. Agora volta com cuidado para casa, minha filha. Mete-te na caminha e entretém-te contigo mesma.
Ainda a rir, saiu do carro, abriu a porta da vivenda e entrou. Ela ouviu a porta fechar-se à chave. Debruçou-se para fora da janela do carro, cuspiu no chão e murmurou uma praga em hausa.
Depois pôs o carro em movimento e dirigiu-se a casa de Yvonne e Sene Yeboa.
A mulher do morto, Judith, e a mulher de Zuni, Magira, tinham lavado e enxugado o cadáver. Tinham-no perfumado com cravo e especiarias habilmente dispostos. Tinham-lhe vestido roupa interior lavada e um brilhante fato preto. Naquele momento, o pequeno corpo do morto jazia sobre a mesa da cozinha, com os braços cruzados sobre o peito. Tinham-lhe fechado os olhos. Por baixo da camisa, sobre o coração, tinha sido colocado um pequeno molho de penas de galo branco atado com cabelos de Judith. O funeral baptista tinha sido marcado para a manhã seguinte, muito cedo. Com aquele clima, era uma medida sensata.
Obiri Anokye, Sara e Sene Yeboa tinham chegado. Tinham saído da lancha da Marinha Nacional de Achanti e caminhado pela água até à praia, A lancha ficou ancorada, às ordens, balançando-se a uns cem metros da praia de Zabar. Abraçaram Judith, Magira, Zuni. Depois beijaram a face enrugada do morto. A família estava sentada em volta do morto, na cozinha, a beber café e a conversar acerca das disposições para o funeral.
- Bibi, fazes o discurso junto da sepultura?-perguntou Judith. Obiri olhou para Zuni. Era o filho mais velho. Isso cabia-lhe a ele.
- Tu, Bibi - disse Zuni. - A honra será maior se for o presidente do Achanti a falar.
191
- Eu falo - disse Obiri, acenando afirmativamente com a cabeça. - Já trataram do carro? Da sepultura?
- O pastor Moeller prometeu tratar de tudo - disse Zuni. - Queríamos um funeral particular, mas ele disse que os amigos hão-de querer estar lá, e não podemos dizer que não.
- Deixa-os vir-disse o Capitãozinho. - Ele tinha muitos amigos. Deixa-os mostrar o seu desgosto.
- Bibi - disse Sene Yeboa em voz baixa -, uma guarda de honra? Disparos de espingardas?
- Não, Sene - disse Obiri brandamente. - Nada disso. Vamos fazer um enterro simples e tranquilo. Mãe, está cansada?
Ela encolheu os ombros.
- Eu fico de pé - disse ela.
- Não, não - apressou-se ele a dizer. - Estamos todos cansados. Já teve muito que fazer. Vá para a cama. Eu fico a velar.
- Eu também - disse Yeboa.
- E o Sene - disse o presidente. - Sene e eu ficamos a velar. Os outros podem ir para a cama.
- Eu não vou dormir - avisou Judith.
- Então descanse - disse Obiri, sorrindo. - Descanse apenas. Vai precisar de todas as suas forças amanhã.
Ela era tão velha, tão gasta e enrugada como o seu marido morto. As veias e os tendões sobressaíam da sua pele pergaminhada. Mas os seus olhos mantinham a vivacidade. Eram tão vivos como os de Sara. E os filhos conheciam a sua determinação. Segundo esperavam, ela poderia viver ainda uns dez anos ou mais, lutando contra a morte, como lutara toda a sua vida, nunca questionando as necessidades.
- Adebayo? - perguntou ela subitamente.
- Enviei-o ao Togo - disse Obiri Anokye. - Não posso fazê-lo voltar.
Ela olhou-o sem falar. Ergueu-se lentamente. Os outros seguiram-na. Obiri e Sene ficaram sozinhos com o corpo. Descalçaram os sapatos, despiram os casacos e desapertaram os colarinhos. O Capitãozinho serviu café a ambos.
- Sene, liga para o oficial de dia do palácio e diz-lhe onde estamos.
Quando tinha subido à presidência, tinha insistido em que fosse montado um telefone em casa de Zuni. Era o segundo telefone da aldeia de Porto-Chonin. O outro pertencia ao vendedor de peixe.
Yeboa falou rapidamente, e depois voltou a sentar-se ao lado do Capitãozinho, levemente atrás dele.
- O jantar terminou - informou ele. - Os convidados já
192
partiram. O Primeiro-Ministro Da Silva deseja apresentar as suas condolências. E os outros também.
Anokye acenou afirmativamente com a cabeça. Os dois homens instalaram-se num silêncio confortável. Ambos sabiam esperar, silenciosa e tranquilamente. Numa pista, numa emboscada, fossem quais fossem as circunstâncias. Esperar pacientemente era um dom tão importante como a fúria na batalha. A aceitação era o outro lado da decisão.
Obiri Anokye olhou para o corpo do seu falecido pai. Via o rosto do velho de perfil. As feições já começavam a suavizar-se. O brilho ceroso da corrente sanguínea cessara. Uma irónica expressão de repouso.
A morte não tinha sido novidade para ele. Nem a morte natural, entre parentes ou amigos, no campo ou na estrada, o rosto subitamente voltado para o sol, a terra quente por baixo das costas. Nem a morte violenta, o corpo rasgado e sobressaltado, arrancado à vida. O Capitãozinho sabia de tudo isso.
- Sene - disse lentamente -, tens medo da morte?
- Medo? - disse Yeboa, tão lentamente como ele. - Não, não tenho, Bibi. Vamos para um mundo melhor. O sol brilha. A chuva é suficiente e há sempre comida. Velhos amigos e risos. Como poderia ter medo? Cerveja de milho e vinho de palma. Todo o que um homem puder beber. E a caça de animais magníficos. A caça pode durar um dia inteiro, mas, no final, o animal é morto. É uma mulher bem humorada que cozinha bem e nunca se queixa. O mar também lá está. Peixe. Montes. Grandes savanas cobertas de erva e florestas de árvores verdes. Tudo aquilo que um homem possa desejar. No outro mundo. Falo verdade, Capitãozinho?
- Falas verdade - disse Anokye.
- É verdade que nem sempre fui um bom homem - prosseguiu Yeboa, de forma obstinada. - Já matei. Mas sempre com boas razões, Bibi.
- Acredito.
- Outras coisas que fiz, fi-las por maus sentimentos ou por bebedeira ou por fraqueza. Mas, Capitãozinho, se somos todos criaturas de Deus, como diz a nossa Igreja, então Deus deu-nos os maus sentimentos e as fraquezas. As bebedeiras, isso admito, podem ser defeito meu. Mas, se somos realmente criaturas de Deus, então temos de fazer o que temos de fazer, e a culpa não está em nós. Não é verdade?
- É verdade, Sene.
- Portanto, fazemos o que temos que fazer - disse Yeboa, acenando afirmativamente com a cabeça, satisfeito. - Eu sou sargento e tu és capitão. Mas Deus é o general que nos comanda a
todos. E nós obedecemos às Suas ordens porque somos bons soldados. É assim que eu vejo as coisas.
- És um homem sensato, Sene.
- Não, Bibi, nem por isso. Sou apenas um soldado.
A conversa cessou então. Nenhum deles dormiu, ficaram ambos sentados, direitos, perto do corpo de Josiah Anokye, porque não seria correcto o morto ficar sozinho antes de ser enterrado. Passava muito da meia-noite quando o novo telefone tocou. Nenhum dos dois homens se sobressaltou, mas voltaram-se ambos lentamente para olhar para o aparelho negro. Yeboa levantou-se para atender, e Anokye observou a sua expressão.
- Está? Sim, Yvonne, ele está aqui e acordado. Sim. Podes falar; eu escuto.
Escutou durante longo tempo, voltando a cabeça para olhar para o Presidente Anokye.
- Está bem, Yvonne - disse ele finalmente. - Agora tens de repetir o que me disseste a Bibi. Sim, é necessário. Quero que ele oiça com as tuas próprias palavras.
Os seus olhos estavam inexpressivos, o seu rosto gelado. Estendeu o telefone ao Capitãozinho.
- É a Yvonne - disse numa voz fria. - Da nossa casa. Anokye pôs-se de pé e atendeu o telefone.
- Diz, Yvonne - disse.
Em primeiro lugar, ela expressou as suas condolências pela morte do seu pai, pelo que ele lhe agradeceu. Depois contou-lhe o que tinha acabado de contar ao marido. Que Mboa tinha vindo a casa de Yeboa e a tinha acordado. Que Mboa lhe tinha dito que o Ministro de Estado Jean-Louis Duelos se tinha embebedado e falado de mais a Christophe Michaux. Que Duelos tinha revelado detalhes da campanha Togo-Benim ao assistente do primeiro-ministro. Que Mboa pensava que Michaux era um homem mau e inimigo de Obiri Anokye, e que Mboa desejava que Yvonne contasse tudo isto ao presidente.
- Obrigado, Yvonne - disse Anokye calmamente. - Tu e Mboa agiram bem. Não o esquecerei. Ela está aí ainda?
- Está. A chorar.
- Conserva-a aí. Sene e eu iremos ter convosco dentro de uma hora. Compreendes?
- Sim, Bibi.
Desligou e voltou-se para Yeboa.
O sargento olhou para ele e teve a sensação de ver, muito no fundo dos olhos escuros de Obiri Anokye, começar a arder uma chama vermelha. Não muito maior que uma vela num túnel, mas a arder, a arder...
194
- Telefona a Sam Leiberman - disse Anokye. Com voz dura e inexpressiva. - Diz-lhe que vá ter connosco à Base Naval. Um carro preto. Não um carro do governo. Com o tanque cheio de combustível.
O sargento acenou afirmativamente com a cabeça.
-Vou acordar Zuni para ficar a velar o nosso pai. Depois vou até à praia e faço sinal à lancha para vir buscar-nos. Encontramo-nos lá. Temos de fazer o mínimo de barulho possível. Não quero acordar as mulheres.
Começou a sair da cozinha, mas depois voltou atrás.
- Sene, estás armado?
- Tenho um revólver, Capitãozinho.
- Óptimo. Mas eu não tenho nada. Diz a Leiberman que me traga uma arma. Uma Uzi.
- Sim, senhor! - disse o Sargento Yeboa.
Sam Leiberman estava à espera deles no cimo da rampa. O carro que tinha trazido era um velho Buick volumoso. Tinha sido pintado uma dúzia de vezes. A última camada era um preto-baço e granu-loso, cobrindo antigas amolgadelas e cicatrizes. Até os cromados enferrujados tinham sido pintados. O Presidente Anokye e o Sargento Yeboa entraram para o banco de trás.
Leiberman voltou-se, com o braço sobre as costas do banco da frente.
- Oiça - disse rudemente ao Capitãozinho -, acerca do seu velho... Sinto muito.
Anokye deu uma palmada no braço grosso.
- Obrigado, Sam - disse. - O seu pai ainda vive?
- Sabe-se lá - disse Leiberman. - Pôs-se a mexer quando eu era miúdo. - Inclinou-se para a frente, pegou na Uzi que estava aos seus pés e entregou-a a Anokye. - Está travada - disse. - Limpei-a. Carregador cheio. Dispara um pouco alto e para a direita.
- Não me esqueço - disse Anokye. - Onde vamos?
- Primeiro para casa de Sene. Vou contar-lhe o que sucedeu... Mboa ainda lá estava, mas deixara de chorar. O Presidente
Anokye chamou-a à parte e falou brandamente com ela durante longo tempo. Segurando-lhe nas mãos, fitando-a nos olhos, enquanto a interrogava. Leiberman, Sene e Yvonne ficaram sentados na cozinha, a fumar Gauloises e a beber cerveja Star. Leiberman contou-lhes uma história divertida, de como, enquanto trabalhava para o Exército dos EUA na Sicília, tinha caído de um camião, perdido de bêbado, partido o braço e depois recebido o Coração de Púrpura. Depois disso, Mboa e o Capitãozinho chegaram à cozinha.
195
-Vamos precisar de dois carros - disse o presidente. - Sam irá no seu com o Sene e comigo. As mulheres seguem-nos no Simca de Mboa. Quando chegarmos ao desvio para o Hotel Africain, desliguem os faróis. Michaux está no último bangaló, do lado oeste.
Leiberman terminou a sua cerveja em dois grandes golos e arrotou. Pôs-se de pé, puxando as calças para cima.
- Vamos lá primeiro? - perguntou, conhecendo a resposta. -Não - disse Obiri Anokye. Voltou-se lentamente e olhou para
a figura trémula de Mboa. - Primeiro vamos a casa de Duelos buscar o Jean.
Ela deu um passo em frente, pousou uma mão hesitante no seu braço.
- Bibi - disse. - Por favor.
Ficaram a olhar um para o outro. Os outros não falaram. Nem se moveram.
Depois Obiri Anokye tocou na face da mulher e baixou a cabeça, num gesto afirmativo, apenas uma vez.
- Por tua causa - disse.
A porta da casa de Duelos não estava fechada à chave. Entraram rapidamente, agarraram o Ministro de Estado Jean-Louis Duelos no sítio onde se encontrava, ainda a ressonar levemente no seu cadeirão. Levaram-no dali, aos tropeções, a protestar, com as pernas a ceder por baixo do corpo. Atiraram-no para o banco de trás do Buick. Leiberman dirigiu-se a pouca velocidade para o Hotel Africain.
As janelas estavam fechadas. Soprava uma fresca brisa nocturna. Duelos engoliu em seco, acordou, sacudiu a cabeça, olhou em volta. Desorientado. Ainda sem medo.
- Sene - disse: - Bibi... Sr. Presidente?
- Sim - disse Anokye.
- O que... onde vamos?
- Visitar o teu bom amigo Christophe Michaux - disse o Capitãozinho. O fogo nos olhos escuros iluminou-se mais. Inclinou-se para Duelos. Face a face. - Compreendes?
Duelos fitou-o nos olhos. E sentiu medo.
-Agradece à tua mulher estares vivo-disse Anokye.-Faço-o por ela. Ela tem razão; não passas de um tolo.
- Um tolo - concordou Duelos, começando a chorar. - Sou um tolo!
Anokye afastou-o de si com um empurrão e voltou o rosto para o lado. Seguiram o resto do caminho sem falar; só se ouviam os soluços de Duelos. O Simca seguia-os de perto.
Chegaram ao desvio. Apagaram os faróis. Seguiram lentamente
196
pelo caminho entre os bangalós separados. Pararam silenciosamente junto do último.
- Esperem aqui - sussurrou Anokye.
Saiu do Buick e desapareceu nas sombras. Os outros esperaram pacientemente. Duelos tinha parado de chorar. Agora estava sentado com o rosto entre as mãos. Momentos depois, Anokye regressou.
- Luzes - disse em voz baixa. - Duas pessoas lá dentro. Mi-chaux e outro. Nas traseiras da casa. A porta está fechada, mas não é forte. Vou dizer-lhes o que vamos fazer: eu entro primeiro. Se não conseguir abrir a porta com um pontapé, dou um tiro na fechadura.
- Bibi... - principiou Yeboa.
- Não, Sene - disse Anokye severamente. - Eu vou à frente. Vocês trazem Duelos entre ambos. Mesmo atrás de mim. Vamos entrar muito depressa. Tudo entendido?
Saíram todos do carro. Arrastando Duelos. Ele estava outra vez incoerente. Mal conseguia manter-se de pé. Leiberman e Yeboa seguraram-no com força por baixo dos braços. Arrastaram-no atrás de Anokye, mal tocando com os pés no chão. Deram rapidamente a volta até à porta da frente.
Anokye olhou para trás. Nas trevas, o branco dos seus olhos parecia enorme. íris flamejantes. Todo o rosto enrugado e tenso.
- Prontos? - perguntou. Voz áspera.
Eles acenaram afirmativamente. Ele ergueu a porta direita. Com o joelho quase a tocar no queixo. Uzi em riste encostada ao peito. A pesada bota avançou. Madeira estilhaçada. Fechadura arrancada. Porta atirada com força para trás. Anokye correu para dentro, curvado. O cano da pistola procurava. Deu alguns passos curtos e rápidos para a casa de banho iluminada. Duelos, a gemer, era arrastado atrás dele.
A porta da casa de banho foi aberta de par em par. Entraram na sala perfumada. Um rapazinho negro, nu, de dez, talvez doze anos, dentro de água. Recostado. Com a cabeça acima do nível da água. Michaux por cima dele. A brilhar. A olhar por cima do ombro. Uma expressão de assombro no rosto. A banheira cheia de espuma e água fumegante. Bolhas de sais de banho. Perfume.
Anokye afastou-se para o lado. Duelos foi arrastado para a entrada. Yeboa agarrou-o pela cabeça. Puxou-lhe a cabeça para trás, para que visse tudo. Obiri Anokye abriu fogo.
A Uzi trovejou na pequena casa de banho. Ele manteve o gatilho premido e gastou todo o carregador de vinte e cinco balas. Para trás e para diante. Os corpos de ambos ficaram cosidos e recosidos um ao outro. Saltando, primeiro. Depois retorcendo-se. Voltando-se. Atirados para trás. Para baixo. Para dentro da água. A água cheia de
197
sabão transformou-se numa espuma sangrenta. Bocas abertas mas sem gritos. Apenas o som da trovoada. As balas de 9 mm atingiam, perfuravam, quebravam, martelavam, matavam.
Silêncio súbito. Christophe Michaux, com um braço suspenso do rebordo da banheira. A cabeça de fora. A barbicha sedosa a pingar sabão avermelhado. Olhos a fitar o chão. O rapaz totalmente debaixo de água. A oscilar. A flutuar em tinta.
Obiri Anokye voltou-se, fez sinal aos outros. Eles levaram para fora Jean-Louis Duelos, que se engasgava, que vomitava, e atiraram-no para o banco de trás do Simca. Mboa colocou-se ao lado dele, tomou-o nos seus braços.
- Obrigada - disse ela suavemente a Anokye. - O outro? Ele fitou-a por um momento, acalmando pouco a pouco. Depois
acenou afirmativamente com a cabeça.
- Óptimo - disse ela.
O Presidente Anokye voltou-se para Leiberman e Yeboa.
- Tratem disto - disse. - Para quem tenha ouvido os tiros, trata-se de um assunto de Polícia, que não deve ser questionado. Esqueçam os estragos. O gerente há-de querer conservar a licença deste pote de merda. Mas dêem-lhe dinheiro, também.
- Assim será, Bibi - disse o Sargento Yeboa. - Quanto aos corpos, há poços de fosfato desertos perto de Gonja.
- Eu conheço-os - assentiu o Capitãozinho. - Excelente. Melhor que o mar. Há-de haver perguntas quanto ao desaparecimento do assistente do primeiro-ministro e do rapaz. A Polícia deverá fazer uma investigação exaustiva. Ocupa-te disso, Sene. Sam, aqui tem a sua Uzi. Obrigado. Tinha razão; dispara alto e para a direita.
Entrou no banco da frente do Simca, sentando-se ao lado de Yvonne. Ela regressou à casa dos Yeboa. Ela e Anokye saíram. Depois Mboa levou o marido para casa. Yvonne e o Capitãozinho entraram no Land-Rover militar do sargento. Yvonne levou-o de novo à base naval.
- Estou em dívida para convosco - disse ele sucintamente. Tamborilou com os dedos no joelho. - Para contigo e com Sene. Há alguma coisa que desejem?
- Sim - disse ela imediatamente, e ele voltou-se, supreendido. - Sene deseja ser oficial.
- Ofereci-lhe um posto depois do golpe - disse-lhe ele. - Sene disse que quer continuar a ser sargento.
- Penso que ele sabe que cometeu um erro - disse ela. - Mas Sene é um homem orgulhoso. Terás de lhe perguntar de novo.
- Sim - concordou Anokye. - Sene é orgulhoso. Vou perguntar-lhe outra vez. Que te parece, Capitão Yeboa?
198
- Coronel Yeboa soa melhor - disse ela.
Ele riu-se da sua impudência e tocou-lhe levemente no braço.
- Muito bem - disse. - Coronel Yeboa. Agora será a senhora do coronel.
- É verdade - disse ela.
Seguiram em silêncio durante o resto do caminho. Ela parou na rampa da Base Naval. Anokye estendeu a mão, desligou o motor, as luzes.
- Yvonne - disse. - Entre ti e Sene... Corre tudo bem?
- Muito bem - disse ela. - Melhor do que eu esperava.
- Óptimo. Yvonne, tu continuas no meu coração. Eu não te abandonei. Sabes disso?
- Sei, sim, Bibi. Casas-te brevemente?
- Sim. Muito brevemente.
- Desejo que tu e a tua mulher sejam tão felizes como Sene e eu.
- Obrigado - disse ele. Tinham estado a falar em francês. Ele mudou para Akan: - Que tenhas felicidade em todos os dias da tua vida.
- Que tenhas boa saúde - respondeu ela na mesma língua. Fez urna pausa. - E que os deuses te concedam tudo aquilo que mereces - acrescentou.
Quando já estava a bordo da lancha, a caminho de Zabar, voltou-se para trás. O Land-Rover ainda estava estacionado no cimo da rampa. Teve a impressão de ver o rosto pálido dela. A olhá-lo pela janela aberta.
Mais uma vez saltou para a água para alcançar a praia. Quando chegou à cozinha da casa dos Anokye, o seu irmão mais velho estava sentado perto do cadáver. Mas a cabeça de Zuni estava apoiada nos braços cruzados sobre a mesa. Judith Anokye estava sentada perto, acordada e direita. Ergueu o olhar quando Obiri entrou.
- Houve problemas? - perguntou ansiosamente.
- Uma questão sem importância - disse ele. - Por favor, volte para a cama.
Ela pôs-se de pé, fatigadamente. Pareceu-lhe tão velha, tão gasta pela vida, que ele a abraçou, apertando-a com força. Recusando-se a chorar.
- Tu não és feliz, Bibi? - perguntou ela.
- Sou, sim. Conheço a felicidade. Tudo corre bem, mãe.
- Tu não és feliz - decidiu ela, e suspirou.
Ele não quis discutir, acariciou-lhe o rosto e empurrou-a brandamente para a cama. Depois acordou Zuni e disse-lhe que iria retomar a sua posição no velório. O irmão mais velho acenou com a cabeça, abraçou-o sonolentamente e saiu. Voltou-se, e os dois homens ficaram de pé, de lados opostos do cadáver do pai.
199
- Uma boa pescaria hoje, Bibi - disse Zuni estonteado. Obiri Anokye, filho de pescador, ficou imediatamente interessado.
- Ouvi dizer que a pesca anda boa - disse. - Que é que apanhaste?
- Percas, garoupas e três belos atuns gordos. Amanhã mando-te para o palácio o mais gordo dos atuns.
- Obrigado, irmão.
Zuni saiu, e Obiri sentou-se na cadeira ao lado do pai morto. Que, o Capitãozinho sabia-o bem, teria ficado satisfeito com esta curta conversa entre os seus dois filhos mais velhos. Tirou novamente os sapatos molhados e as meias também, e despiu o casaco. Voltou a olhar para as feições de Josiah Anokye já em dissolução. Na sua mente, principiou a compor o elogio que iria fazer no enterro daquele bom homem.
20
Alguém bateu com força na porta do escritório. Anokye franziu a testa, enfiou os mapas em que estava a trabalhar na gaveta da secretária e disse:
- Entre. - O guarda que estava no corredor entrou obedientemente e postou-se em sentido, fazendo continência. - Meu presidente - disse -, a senhora inglesa deseja falar consigo.
- Livesay? - disse o Capitãozinho. - Sim, está bem. Pode entrar.
Pôs-se de pé e saiu de trás da secretária. Ela entrou na sala perturbada e, segundo lhe pareceu, ruborizada. Trazia novamente as luvas brancas.
- Joan - disse ele, sorrindo. - Pensei que tivesse ido para o hotel fazer as malas.
- E fui, Sr. Presidente - disse ela, esforçando-se por sorrir. - Mas agora Ian diz-me que partimos no avião de manhã muito cedo e eu tive medo de não ter oportunidade de voltar a vê-lo, e queria despedir-me de si e agradecer-lhe a sua amabilidade. Tenho a certeza de que tudo isto foi muito incómodo para si.
Ele fez um gesto.
- Venha sentar-se um pouco, Joan - disse ele. - Tem um momento livre?
- Oh, sim.
- Óptimo. Sente-se aqui no sofá.
200
Atravessou a sala para fechar firmemente a porta, e depois dirigiu-se ao armário por detrás da sua secretária.
- Há aqui uma excelente aguardente italiana - disse. - Vamos tomar um copo juntos e brindar à nossa amizade e, talvez, a um novo encontro muito próximo?
- Obrigada - disse ela debilmente. - Gostaria muito.
Ele serviu um pouco em cada copo e sentou-se no sofá ao lado dela. Cada um deles se voltou de lado para poder ver o outro. Ergueram os copos.
- Vá em boa saúde e volte em boa saúde - disse ele em akan.
- Que conheça toda a felicidade - disse ela na mesma língua. Tocaram os copos e beberam um pequeno golo.
- O seu akan está muito bom - disse ele em inglês. - Espero que prossiga os seus estudos.
- Oh, sim - disse ela. - Tenciono fazê-lo.
- Óptimo - comentou ele. - Penso que descobrirá que, quando dominar o akan, todas as outras, twi, ewe, hausa, etc, virão muito mais facilmente. Mas, evidentemente, terá de voltar ao Achanti para praticar!
Ela sorriu, olhando para o copo.
- Espero não estar a interromper o seu trabalho, Sr. Presidente.
- De forma alguma. Estava já a acabar. É tarde, não é?
- Sim. Quase meia-noite. Mas não me parece que considere isso muito tarde.
- Não, nem por isso - disse ele, rindo. - Ainda tenho de ler um pouco. Lá em cima. No meu quarto.
- Oh! - fez ela. - Então só fico um momento.
- Fique o tempo que quiser - disse ele galantemente. - Diga-me, Joan, já decidiu quais as recomendações que vai fazer? Como vão melhorar as coisas em Achanti?
- Tenho algumas, Sr. Presidente - disse ela, acenando afirmativamente com a cabeça. - Na realidade não devia falar-lhe delas porque os analistas de Londres poderão cortá-las. Vão introduzi-las no computador, sabe, para determinar se são boas. Economicamente boas, compreende, ou justificáveis em face das prioridades de Achanti. A "supervisão". Estão sempre a falar em avaliar as sugestões em relação com a "supervisão".
- Compreendo - disse ele. - Mas que sugestões vai fazer?
- Principalmente, pequenas coisas - confessou ela. - Como sistemas de intercomunicação eficientes para o palácio e outros gabinetes e ministérios. Um sistema centralizado para o governo. Melhor organização do sistema escolar. Melhores estradas. E já pensou em fazer um caminho-de-ferro entre Mokodi e o Norte?
201
- É uma coisa que tem sido discutida durante muitos anos - disse ele. - Mas não parece muito necessária com a auto-estrada pavimentada que vai até Quatro Pontos. O transporte por camiões ocupa-se de todas as nossas necessidades.
- Actualmente - disse ela. - Mas a produção de fosfatos aumenta todos os anos, e o mesmo sucede com a expedição de madeiras dos montes. Talvez daqui a cinco ou dez anos venha a ser necessário um caminho-de-ferro. Por certo ajudaria a abrir a região norte. Novas aldeias. Novas fábricas.
Ele estava divertido com a insistência dela.
- Talvez tenha razão - disse, duvidoso. - Mas precisaria de ver os resultados de um estudo feito por especialistas de transportes. Projecção de necessidades futuras.
- E uma estação de televisão - disse ela. - Acho que o Achanti deveria ter televisão.
- Uma estação de televisão! Mas isso não seria muito caro?
- Muito - confessou ela. - Mas estava a pensar que talvez uma grande companhia inglesa, americana, francesa ou alemã pudesse construir-lha. Em troca de uma franchise exclusiva para vender os seus aparelhos em Achanti.
Ele fitou-a, com admiração.
- Bem pensado - disse. - Muito bem pensado, Joan.
- O senhor dispõe de tão pouco tempo para a política doméstica, Sr. Presidente. É uma área que, francamente, acho que está a negligenciar. Não porque não reconheça a sua importância, mas simplesmente porque não tem tempo para viajar por todo o país, fazendo discursos e conhecendo os votantes. A televisão poderia ser a resposta.
- Sim - disse ele pensativamente -, isso é verdade. E eu poderia aparecer também nos aparelhos de televisão dos países vizinhos? Por exemplo, no Gana e no Togo?
Ela abanou a cabeça, e o seu Cabelo curto e fino dançou em volta das orelhas.
- Não conheço a resposta a isso, Sr. Presidente. Teria que fazer essa pergunta aos técnicos. Mas os seus discursos poderiam ser sempre gravados em cassete para serem mostrados nos outros países africanos. E no ultramar também, é claro.
- Sim - disse ele. - Uma ideia interessante. Vai sugeri-la à sua companhia em Londres?
- Tenciono fazê-lo.
- Óptimo. Tem mais recomendações?
- Apenas para a organização do seu gabinete pessoal, Sr. Presidente. - Respirou fundo, bebeu um golo de brande, inspirou de novo, e lançou-se em frente. - Acho que precisa de uma assistente
202
pessoal. Uma secretária executiva. Alguém nesse género. Para supervisionar o seu pessoal particular. Aliviá-lo de todos os detalhes do dia-a-dia no seu gabinete. Há cerca de uma semana, passou uma boa parte da manhã a resolver uma disputa entre o seu cozinheiro e o homem que fornece legumes frescos ao palácio. Houve outras alturas em que teve de telefonar diversas vezes para conseguir um carro ou confirmar se o avião iria a Cotonou buscar o Primeiro-Ministro Da Silva e a sua noiva. O seu tempo é demasiado precioso para ser gasto nessas pequenas questões aborrecidas.
- Oh, que bênção isso seria! - exclamou ele. - Joan, é uma mulher muito inteligente, jovem, honesta e compreensiva. Penso que as suas sugestões são muito úteis, e agradeço-lhe por isso. Quer beber um pouco ríiais?
- Bom- está bem - disse ela, acanhada. - Um bocadinho apenas, obrigada. Eu vim apenas para lhe dizer adeus.
Ele serviu um pouco mais de bebida em ambos os copos. Depois recostou-se a um canto do sofá e cruzou as pernas. Ele aspirou a bebida, observando-a com certo assombro. A mulher estava sentada na beira do sofá de cabedal, com as costas direitas, os joelhos unidos, os cotovelos junto do corpo. Tinha a cabeça baixa. Ele podia ver a curva da sua nuca, um halo de cabelos finos à luz do candeeiro. Havia na mulher, naquela pose infantil, uma certa ternura, uma suave vulnerabilidade.
Como habitualmente, as suas roupas largas nada revelavam. O vestido caía em generosas pregas e dobras, ondas de tecido. Podia ser um espeto por baixo das roupas. Ou uma criança. Ou uma mulher nua- E, por baixo daqueles rubores, das suas hesitações, poderia estar. •• o quê?
Ele pôs-se subitamente de pé e pousou o copo. Aproximou-se e colocou-se diante dela. A mulher ergueu o olhar. Ele tirou-lhe o copo da mão e pousou-o também. Depois envolveu o rosto dela nas suas mãos, suavemente, sentindo a maciez dos seus cabelos. Apertou-a mais. Ela continuou a olhar para ele, rígida, mas sem mostrar medo. Lentamente, as suas mãos ergueram-se e agarraram os pulsos dele. Não para o afastar. Para o puxar mais para si.
Ele dobrou-se pela cintura, baixando a cabeça até os seus rostos quase se tocarem. Para poder olhar directamente para os seus olhos profundos, líquidos. Ela ergueu levemente o queixo e roçou os lábios pelos dele. Rapidamente. Uma pausa. Depois os lábios dela voltaram. Uma pausa. Roçaram-se de novo. E outra vez ainda. Até permanecerem sobre os dele. As mãos dela apertavam-lhe os pulsos com mais força, puxando-o. Depois saltaram subitamente para a nuca dele, para o seu pescoço. Apertando. Lábios... língua...
Ainda inclinado, ainda a beijá-la, ele desabotoou-lhe o vestido
203
de gola alta, introduziu uma mão no seu interior. Ouviu o som que ela produziu. Sentiu-a mover-se. Tocou um seio nu. Macio como seda. Grande, fresco, límpido, com um mamilo que endureceu imediatamente entre os dedos fortes dele que o retorciam. - A porta está fechada à chave? - perguntou ela.
21
O Achanti, uma antiga colónia francesa, alcançou a independência em 1958. O Rei Prempeh IV foi coroado como primeiro governante da nova monarquia, e, como gesto de boa vontade, os franceses ofereceram ao Achanti uma pequena corveta. Da classe Le Fouqueux, o barco tinha 52 m de comprimento e deslocava 3251. Era accionado por quatro motores Pielstick e tinha um alcance de 3000 milhas à velocidade de 12 nós. O armamento principal incluía dois canhões Bofors de 40 mm e dois canhões antiaéreos de 20 mm, além de morteiros e cargas de profundidade.
Esta oferta revelou-se um astuto investimento para os franceses. O pródigo Prempeh gastou quase cinco milhões de francos nos estaleiros de Toulon para converter o navio num iate de recreio com luxuosos quartos de dormir, um piano de cauda, banheiras de mármore e bidés com as cores nacionais do Achanti. Motivo de orgulho para a Marinha Real do Achanti, foi rebaptizado com o nome de La Liberte, e estava reservado para uso exclusivo do rei. Prempeh fez diversos curtos cruzeiros, perto da costa, mas, quando a conversão ficou terminada, a folha de balanço do Achanti encontrava-se num estado deplorável; havia pouco dinheiro disponível para combustível. Por isso, o La Liberte ficou ancorado na base naval de Mokodi, e era usado como local para recepções diplomáticas ou como uma espécie de clube privado para os parentes e amigos do rei, que, sendo todos muçulmanos, aproveitavam a oportunidade para escapar de vez em quando à presença sufocante das suas muitas esposas e às exigências da sua fé quanto ao uso do álcool.
Quando Obiri Anokye depusera e matara o Rei Prempeh iv e se tornara o primeiro presidente da República de Achanti, o La Liberte foi um dos despojos que caíram intactos nas mãos dos dissidentes. O Presidente Anokye estava mais interessado nos canhões do que nos bidés de cores, e, durante os primeiros meses do seu regime, o armamento do La Liberte voltou a ficar em condições de disparar. O mobiliário barroco, os quadros com molduras douradas, o piano de cauda, os painéis de tapeçarias e os tapetes orientais foram levados
204
para o palácio presidencial. Dado o custo da sua remoção, ficou decidido que as banheiras de mármore (e os famosos bidés) ficassem onde estavam. Mas, de uma forma geral, o La Liberte voltou a ficar em condições de combater. Vieram instrutores de Toulon para ensinar os marinheiros achantis a utilizar as baterias antiaéreas, a disparar os morteiros e as cargas de profundidade. Com o tesouro do Achanti a dar mostras de riqueza, havia dinheiro para munições para praticar. E havia dinheiro para o combustível.
Estava uma manhã de neblina, polvilhada de sol, quando a tripulação do La Liberte zarpou do cais de Mokodi e se dirigiu lentamente para o mar, sob o orgulhoso comando do jovem Capitão-de-Mar-e-Guerra Niblo Ojigi, o oficial de mais alta patente da Marinha do Achanti. (Só havia mais cinco oficiais, todos tenentes, três dos quais comandavam lanchas a motor.)
Abordo, além dos oficiais e da tripulação, encontravam-se o Presidente Obiri Anokye, o Coronel Sene Yeboa, o Coronel Jim Nkomo, Peter Tangent e Sam Leiberman. Apesar da beleza do dia e das provisões especiais levadas para bordo, não se tratava de uma viagem de recreio. Era, efectivamente, a sessão final de planeamento da campanha Togo-Benim.
No salão principal, onde outrora o falecido Rei Prempeh tinha projectado filmes do Bucha e Estica e comédias de Chaplin, os homens reuniram-se em volta de uma longa mesa de aço pregada ao convés. O Presidente Obiri Anokye estendeu os seus mapas e explicou o seu plano, que consistia em pôr os Exércitos do Togo e do Benim a combater-se nas áreas centrais de ambos os países, enquanto as forças do Achanti invadiam e ocupavam os centros de governo na costa.
Os homens escutaram-no com crescente espanto, à medida que o plano de Anokye se ia tornando claro para eles. Sam Leiberman, em especial, estava quase histérico de entusiasmo.
- Adoro isto - disse ele, tossindo e agarrando-se às costelas. - Vai ser uma espécie de treino com fogo-de-artifício chinês. Quanto tempo acha que eles vão levar para capice o que está a suceder?
- Quando eles perceberem - disse Anokye -Já será tarde de mais. Já teremos tomado Lomé, Cotonou e Porto-Novo.
- E depois? - perguntou o Coronel Nkomo. - Eles vão com certeza voltar-se para sul. Avançar sobre nós.
- Eles que venham - rosnou Sene Yeboa. Usava a sua nova folha de ouro com orgulho.
- Possivelmente, vão voltar-se para sul - concordou Anokye. - Provavelmente. Mas penso que virão ensanguentados. Desmoralizados por ter deparado com uma batalha dura, quando esperavam não ter oposição. E, se vierem para sul, teremos de lutar em duas
205
frentes. No Togo e no Benim. Vamos ter de dividir as nossas forças. Mas, com os novos tanques, camiões e carros de pessoal, temos mobilidade. Eles não. Vou deslocar os homens e as armas à medida que os acontecimentos se forem desenvolvendo. Agora, aqui está a nossa primeira ordem de batalha. Escutem atentamente e fiquem a conhecer as vossas missões. Façam perguntas quando não entenderem alguma coisa. É a sincronização que mais me preocupa. Temos de mover-nos rapidamente, atingir com força e voltar a deslocar-nos...
Passaram três horas em discussões preliminares enquanto o La Liberte continuava a navegar, abrindo suavemente caminho num mar calmo. A sul da ilha de Zabar, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Ojigi estabeleceu um novo curso, no segundo lado de um triângulo que acabaria por fazer regressar o seu navio à base de Mokodi.
Pouco depois do meio-dia, a sala de oficiais foi fechada à chave. O Presidente Anokye e os seus convidados subiram para um almoço ao ar livre no convés. A galinha fria, sanduíches, salada e frutas tinham sido preparadas na cozinha do palácio e embaladas em caixas individuais. O espaçoso frigorífico do La Liberte continha cervejas geladas.
Sentaram-se no convés de teca, entre morteiros e suportes de cargas de profundidade, e observaram aquele curioso dia. O céu estava cor de pérola, o mar leitoso. Misturavam-se no horizonte sem que se notasse qualquer separação. Por isso, o mundo parecia um globo brilhante e lustroso, levemente azulado, levemente brilhante, e o La Liberte encontrava-se no seu centro. Tudo o resto se movia lentamente, deslumbrante e misterioso. Ficaram todos em silêncio, bebendo as suas cervejas, sentindo-se entontecidos, transportados.
Finalmente, regressaram à sala dos oficiais, e, na fresca semiobs-curidade, recuperaram o seu propósito e determinação. Voltaram a inclinar-se sobre os mapas.
- Eu chefiarei pessoalmente o ataque, com o corpo de tanques de Nkomo - disse-lhes o Capitãozinho. - Seguem-nos a Quarta e a Sexta Brigadas em camiões e carros de pessoal. Vamos parar no Togo apenas o tempo suficiente para neutralizar Lomé. Depois atravessamos a fronteira para o Benim, para tomar Cotonou e Porto-Novo. Segundo espero, durante a hora da sesta. Sam e Sene, com a Terceira e a Quinta Brigadas, ficam no Togo. Quando a área costeira estiver segura, começam a deslocar-se para norte, para o caso de Songo descobrir o que sucedeu e voltar para sul, tentando recuperar Lomé. Jim e eu faremos o mesmo no Benim, para enfrentar o Coronel Sitobo. Não subestimo aquele homem. Distribuo-lhes a artilharia de campo e os mísseis TOW que estão operacionais. Vamos ficar em contacto constante pela rádio. Transmitam à vontade. Não me importo. Se depararem com uma situação que não consigam aguentar,
206
digam-me, e eu envio tanques. Além disso, o La Liberte vai estar ao largo de Lomé. Os Bofors também podem ser úteis no caso de ser preciso metralhar os edifícios perto da costa.
- Que é que deixa em Achanti? - perguntou Leiberman, por curiosidade.
- Pouca coisa - confessou Anokye. - O Corpo de Engenharia, a Guarda do palácio, a Polícia. Guarda fronteiriça. O país vai ficar praticamente desguarnecido, sem defesas durante, pelo menos, vinte e quatro horas. Um risco calculado. Com a ajuda de Peter e dos seus amigos, fizemos tudo o que podíamos para voltar a atenção dos franceses para outro lado. Mas, se eles decidirem lançar pára-quedistas ou desembarcar no país, conseguem tomar o palácio provavelmente sem disparar um tiro. Mas não podemos permitir que essa possibilidade afecte os nossos planos. Sene, tu e o Sam vão estudar o vosso ataque e movimento em direcção a norte esta noite. Amanhã de manhã quero ver os vossos mapas no palácio.
- Quando é que o balão sobe? - perguntou Leiberman. Depois, ao ver Anokye fitá-lo, sem compreender, o mercenário disse: - Quando é que começa a festa?
- Decidi, depois de estudar todos os factores implicados, que partamos na madrugada de sete de Agosto. Quase exactamente um ano depois do golpe. Uma data auspiciosa.
Perguntou a si mesmo qual seria a reacção deles (particularmente a dos brancos) se conhecessem que "todos os factores implicados" incluíam consultas secretas a certos astrólogos, necromantes, e à tia Tal, que tinha lançado as suas pedras mágicas para determinar a data mais favorável para lançar um empreendimento de grande vulto, importância e perigo.
- Quero que todos os soldados do Achanti usem fardas camufladas limpas - prosseguiu o Capitãozinho. - Botas engraxadas. Capacete regulamentar. Todas as armas devem ser inspeccionadas. Carregadores extra. Indicámos tudo numa ordem geral que vai ser distribuída a todos os oficiais e subalternos.
Continuou a falar num tom sempre igual, sem emoção, ainda mais dramático por isso, mas Peter Tangent já não estava a escutá-lo. Tinha sido o inesperado uso por parte de Anokye do "nós" real que captara a sua atenção e o pusera a pensar. Afastou-se silenciosamente da mesa dos mapas. Deixou os outros a discutir as logísticas e os ataques e dirigiu-se a uma das janelas. Prempeh tinha mandado instalar janelas na sala dos oficiais, em vez de portinholas. Tangent ficou a olhar para fora, levemente dobrado pela cintura. Via aproximar-se o Achanti à proa a estibordo.
Àquela distância, a terra erguia-se do mar como um sonho verde. Tufos de nuvens pendiam, quase imóveis, num céu translúcido.
207
As palmeiras ao longo da costa estavam tão nitidamente desenhadas como gravuras japonesas; e, por detrás delas, a fita branca da estrada costeira e a neblina sobre a cidade. Era uma fantasia flutuante, uma visão do que o mundo poderia ser, perfumado e verdejante.
- Uma bela terra - disse Obiri Anokye em voz baixa, perto do seu cotovelo. - Não concorda, Peter?
- Oh, sim. Linda.
- Mas não é a sua terra. Não espera ter de morrer por ela. Por isso não planeei a sua participação.
- Eu notei.
- Por certo que notou. Já fez muita coisa para tornar o nosso sonho possível. Estou em dívida para consigo; sabe disso. Não acho prudente que um cidadão americano, um representante da companhia de petróleo, se una ao Achanti nesta invasão de outras nações africanas.
- Provavelmente, tem razão - disse Tangent, suspirando. - No entanto...
- No entanto...
- Eu gostaria de estar lá. De tomar parte.
Voltou-se para Anokye. Os dois homens fitaram-se gravemente.
- Se é esse o seu desejo - disse brandamente o Capitãozinho. - Não posso dizer que não. - Pensou por um momento. - Onde está a sua rapariga? A cantora? Amina Dunama?
- Presentemente está em Cotonou, Sr. Presidente. Penso que está a actuar num hotel.
Anokye acenou afirmativamente com a cabeça.
- Talvez possa ir ter com ela. Um dia ou dois antes do ataque. Quando chegarmos a Cotonou, juntar-se-á a nós. Como observador. A ideia agrada-lhe?
- Muito, Sr. Presidente.
Anokye sorriu subitamente e deu uma palmada no ombro de Tangent.
- Óptimo. Já lhe disse uma vez que me traz sorte. Terei muito prazer em tê-lo comigo. Mas seja cauteloso. Não precisa de morrer para provar a sua virilidade. Há outras formas de o fazer.
- Ah? - fez Peter Tangent. - Ah! - concordou tristemente.
208
22
Ela ainda estava a dormir quando ele acordou. Ficou imóvel, olhando para o tecto. Pensou: este é o dia em que eu posso morrer. Aguardou um pouco, esperando sentir qualquer coisa significativa, mas nada sentiu. Deslizou cuidadosamente para fora da cama. O lençol tinha deslizado para o seu lado. Ela dormia nua, com as costas curvadas, os joelhos flectidos. Fazia um elegante Z. As pérolas ainda estavam em volta do pescoço e escondidas por debaixo do corpo.
Dirigiu-se silenciosamente, descalço, para a janela do hotel, afastou cuidadosamente os cortinados e espreitou para baixo. Uma poeirenta rua de Cotonou. Poucas pessoas a arrastar lentamente os pés do lado da sombra. Um carro de vez em quando. Cães. Uma mulher com um velho cesto de ir ao mercado equilibrado na cabeça. Dois soldados a rir e a empurrar-se um ao outro. Tangent escutou atentamente, mas nada ouviu. Não se ouviam disparos. Consultou o relógio. Era perto do meio-dia.
Dirigiu-se para a casa de banho. Recordava-se de ler algures que os homens que iam para a guerra deviam, se possível, lavar o corpo todo e usar roupa lavada. Para ajudar a evitar que os ferimentos se infectassem. Como, por exemplo, se lhes rebentassem com a cabeça, pensou de mau humor. No entanto, ensaboou-se e esfregou-se mais vigorosamente do que era habitual, lavou os dentes, barbeou-se cuidadosamente. O janota a preparar-se para um encontro.
Quando saiu, com uma toalha pudicamente atada em volta das ancas magras, Amina Dunama estava acordada. Estendida de costas, com as pernas abertas. Fumava uma das suas longas cigarrilhas. Ele inclinou-se para a beijar na face.
- Bom dia, querida - disse.
Ela resmungou, mas, quando ele começou a endireitar-se, agarrou-lhe na cabeça, puxou-a para baixo, beijou-o nos lábios.
- Tenho fome - disse ela.
- Ai, ai - suspirou ele. - Na noite passada, depois do meio boi que comeste, disseste que nunca mais ias voltar a ter fome.
- Isso foi na noite passada - disse ela. - Mr. Tangent.
- Julgava que tinhas concordado em acabar com essa coisa do "Mr. Tangent" - disse ele.
- Quando é que eu concordei com isso?
- Por volta das duas horas da madrugada.
- Não sabia o que estava a dizer - disse ela preguiçosamente. - Estava louca de desejo.
209
- Sim - disse ele, rindo. - Estavas mesmo. Recordas-te de ter feito o pino?
- Eu fiz o pino? - disse ela. - Julgava que tu é que estavas voltado ao contrário.
Ele voltou à janela, consultou novamente o relógio.
- Tens algum encontro marcado? - perguntou ela.
- Não, não. Estava só a ver como estava o dia.
- Como é que está?
- Como de costume. Quente, cheio de sol.
- O que há? - perguntou ela.
- Que queres dizer?
- Estás esquisito.
- Esquisito?
- Bom... diferente. Todo tenso.
- Que disparate. Sou o mesmo idiota amoroso, compreensivo, calmo, digno de confiança e encantador que sempre fui.
- Vem para a cama - disse ela -, Mr. Tangent idiota!
- Bom, hum... não - disse ele. - Acho que não. Nesta altura, não. Tenho de me vestir.
- Porquê?
- As pessoas geralmente vestem-se. Mais tarde ou mais cedo.
- Que mal tem em ser mais tarde?
- Deixa-te disso - respondeu ele. - Estás com fome; disseste que estavas. Vamos vestir-nos e comer um bom pequeno-almoço. Talvez bifteck aux pommes frites. Que te parece?
- Olha para mim - disse ela.
Ele voltou-se para a olhar. Ela estava a fazer a habilidade que ele preferia: sentada na cama, dobrada para a frente com os tornozelos em volta do pescoço. A sua vulva peluda projectava-se para diante como uma boca amuada. Ela olhava para ele ternamente. Tangent não conseguiu impedir-se de rir, foi sentar-se na beira da cama, beijou o interior das coxas dela.
- Um dia destes ficas presa nessa posição - disse ele. - Passas o resto da tua vida assim. Vai ser preciso um rapazinho empurrar-te num carro.
Ela desprendeu os tornozelos, enrolou-se e pôs a cabeça no regaço dele.
- Havia um leproso assim na minha aldeia - disse ela. - Não tinha pernas. Nem mãos, sequer. Nem orelhas. Uma criança andava a empurrá-lo num carrinho.
- Não quero ouvir coisas dessas - disse ele rigidamente. Ela ergueu lentamente a cabeça. Endireitou-se lentamente.
Olhou para ele.
- Não queres ouvir coisas destas? - disse ela. - Leprosos.
210
Pessoas com os corpos comidos. E também elefantíase. Já viste um homem a transportar os tomates num carrinho de mão?
- Por que estás a falar disso? - perguntou ele, irritado.
- Tu julgas que conheces África - disse ela.
- Eu disse alguma vez que conhecia África? - perguntou ele.
Estás com vontade de discutir, não é?
- Tu não conheces África - disse ela, com a testa franzida. - Nunca a conhecerás.
Ele pôs-se de pé, afastou-se, arrancou a toalha. Começou a vestir-se, tentou enfiar as cuecas, ficou com os dedos do pé presos, teve de se pôr aos saltos.
- Já chegámos aí - disse ele, furioso. - Os brancos nunca compreendem o coração secreto da África. Os ingleses nunca poderão compreender os italianos. Os Protestantes nunca poderão compreender os Católicos. Mas toda a gente neste mundo compreende os grosseiros, ordinários e gananciosos americanos. Certo?
- Vai-te lixar - disse ela friamente.
- Só que, na primeira oportunidade que têm, vão ver filmes americanos, lêem livros americanos, comem comida americana guiam carros americanos, bebem uísque americano. Só sentem desprezo pela cultura americana e têm a coragem de dizer o que sentem enquanto comem um cachorro quente e bebem uma coca-cola.
- Eu não disse uma palavra acerca dos americanos - disse ela.
- Só disse que nunca hás-de conhecer a África. Se ficas mai disposto só de ouvir falar de lepra. Só de ouvir falar. O que faria se saísses do Mokodi Hilton e tentasses ver como é realmente esta terra...
- Olhos nos olhos com uma mosca tsé-tsé? - disse ele. - Julgas que não conheço a doença e a fome e a pobreza? Queres que eu chafurde nelas, é isso? Que vá para as aldeias e chore pelos leprosos, chore porque as crianças têm os ventres inchados pela fome, me desespere porque algumas tribos comem os fígados dos inimigos que matam? Isso deixar-te-ia satisfeita?
- Tu não compreendes! - exclamou ela.
- Tu é que não compreendes - disse ele, excitadamente. - Eu estou a ajudar a trazer dólares para África. E o motivo por que não se faz mais com esses dólares é porque a África tem os líderes políticos mais pervertidos, mais venais, mais corruptos do mundo, e tu sabes muito bem que é assim mesmo!
Olharam um para o outro, tremendo de fúria. Com os olhos muito abertos. Os punhos cerrados. Ela sentada na cama, nua, a tremer. Ele com as longas cuecas de algodão branco, com os joelhos ossudos a tremer. Mas o momento era tenso de mais para poder aguentar-se. A corda esticou demasiado e quebrou-se.
211
- Por que é que estamos a discutir? - perguntou ela. Ele abanou a cabeça, desorientado.
- Não faço ideia - respondeu.
Ela saltou da cama, correu para ele, com as pérolas a saltar. Atirou-se a ele, pondo-lhe os braços em volta do pescoço, as longas pernas negras enroladas em volta das ancas dele. Ele cambaleou para trás, mas conseguiu manter o equilíbrio. Ela colou os lábios aos dele, e, no momento exacto em que as suas línguas se tocaram, ouviu-se um ruído de trovoada à distância, um silvo agudo por cima deles, e, na rua, lá em baixo, alguém começou a gritar e parecia que nunca mais parava.
Ela deslizou por ele abaixo, como se descesse por um pau ensebado, acabando por ficar sentada no chão aos seus pés. Olharam um para o outro, com as bocas ainda abertas, as línguas ainda de fora.
- Mas que diabo... - disse ela.
Ele dirigiu-se rapidamente à janela, olhou para baixo, viu a rua deserta. Voltou para trás, ergueu-a bruscamente. Puxou-a para si, fitando-a nos olhos.
- Escuta bem - disse ele. - Fica aqui. Fica dentro do quarto. Fecha a porta à chave quando eu sair e conserva-a fechada. Não saias. Percebeste?
Ela olhava para ele.
- É uma invasão - disse ele. - Os soldados do Achanti estão a chegar. Estão aqui. Pode haver luta em Cotonou. Não sei. Quero que fiques aqui.
- E tu, para onde vais? - perguntou ela em voz baixa.
- Vou até lá - disse ele. - Eu volto. Mas tu não vás a parte nenhuma. Fica aqui. Espera por mim.
Começou a vestir-se, envergando roupas que ela ainda não tinha visto, roupas que ela nem sabia que ele trazia na mala: calças de caqui, casaco de mato, boné de ganga, grossas meias de lã, botas. E uma automática Parabellum de 9 mm num coldre novo e brilhante. Enfiou a pistola e o coldre no cinto, por baixo do casaco.
Foi novamente à janela, afastou o cortinado, esquadrinhou a rua deserta. O grito tinha terminado. Já não se ouviam silvos por cima deles. Mas o trovejar dos canhões era mais forte agora, vindo de Oeste. Enquanto estava junto da janela, pensando que não tinha planeado uma forma de se juntar às forças de Anokye e perguntando a si mesmo como havia de ir ao encontro delas, Amina Dunama aproximou-se dele.
- Vais para a guerra, não vais? - perguntou.
- Ah, sim - disse ele, espreitando para fora. - Aproveitem a brecha, rapazes, por Harry e pela Inglaterra. Tiros e metralha. Essa conversa toda.
- Bem, bem, bem - disse ela. Agora ao lado dele. Espreitando com ele pela janela. - O meu herói conquistador. A enfrentar a morte. E a morrer com o meu nome nos lábios.
- Mais ou menos isso-disse ele desajeitadamente. -Tu sabes como é... machismo. Ou seja o que for.
Subitamente, ela agarrou-o pelo ombro, fê-lo voltar-se e agrediu-o no rosto com os punhos fechados. A cabeça dele foi projectada para trás, e ele pestanejou.
- Tu - disse ela. - Tu! E eu ?
Logo a seguir estava nos braços dele, e ambos choravam. Ele dizia "Tenho de ir, tenho de ir, tenho de ir" e ela "Eu sei, eu sei, eu sei".
Naquela área da África Ocidental, as distâncias entre as capitais nacionais eram curtas: pouco mais de 180 km entre Mokodi, no Achanti, e Porto-Novo, no Benim. A invasão poderia ter sido feita a pé. Mas o Capitãozinho insistiu nos tanques, carros de pessoal e camiões. Não por causa do conforto das suas tropas, mas para conseguir velocidade e surpresa. E para impressionar o inimigo com a abundância de novos veículos e armas do Achanti.
Eram quase 07.00 quando a longa coluna entrou em movimento. Mas Anokye tinha permitido algum atraso no seu horário; o atraso não era importante. Se tudo estivesse a correr bem, o General Ku-mayo Songo do Togo e o Coronel Kwasi Sitobo do Benim estariam a principiar os seus ataques mais ou menos na mesma altura.
O Presidente Obiri Anokye chefiava a invasão achanti, no banco da frente de um jipe que precedia o corpo de tanques do Coronel Jim Nkomo. Segundo as ordens dadas, os guardas da fronteira tinham fechado ao trânsito a estrada costeira que partia do Gana a oeste para o Togo a leste, à meia-noite do dia 6 de Agosto. Os únicos veículos com que depararam eram os carros de cidadãos achantis ou turistas que visitavam o Achanti. Foi-lhes ordenado que saíssem da estrada por polícias de Mokodi, em motocicletas, que actuavam como batedores da coluna militar.
Na fronteira, os guardas togoleses olharam para a trovejante fileira de tanques AMX-30, e apressaram-se a erguer as barricadas. Os tanques passaram ruidosamente. Uma brigada de infantaria, destacada para esse serviço, separou-se para se apoderar das instalações fronteiriças do Togo. Ainda não tinham sido disparados tiros.
No cruzamento com uma estrada secundária norte-sul antes da estrada para Lomé, uma companhia da 3.- Brigada saiu da coluna e tomou posições para prevenir um ataque de flanco. Esta força era
213
comandada pelo Tenente Salomon, a quem foram distribuídos howitzers M-50 de 105 mm e três morteiros de 60 mm.
A principal força de invasão continuou a rolar para leste, e, às 07.49, nos arredores de Lomé, ficou sob fogo intermitente de espingardas, com má pontaria. O Coronel Sene Yeboa chefiou então uma companhia de assalto da 5.~ Brigada que avançou em linha de escaramuça, disparando rapidamente as suas Kalashnikovs em terreno aberto. A oposição desfez-se, e, tanto quanto era possível determinar, não se verificou baixa alguma, de qualquer dos lados.
A própria Lomé encontrava-se indefesa. O aeroporto, o terminal dos caminhos-de-ferro e o palácio presidencial foram tomados sem grande resistência, embora houvesse muitos gritos, empurrões e armas brandidas pelos polícias e soldados togoleses, destacados para a capital.
Mas a visão dos enormes tanques de Nkomo teve o efeito desejado. Assim como os carros cheios de homens da infantaria achanti, belamente uniformizados e bem armados. A estação de caminho-de-ferro e o aeroporto ficaram temporariamente encerrados. A área do porto estava a ser patrulhada por guardas armados.
Tendo recebido ordens severas nesse sentido, os soldados achantis trataram a populaça curiosa (mas não receosa) com grave cortesia. Os sofisticados togoleses estavam habituados a golpes e assassinatos. Não acharam aquela invasão de soldados de outro país particularmente alarmante, tanto mais que os "estrangeiros" falavam francês, ewe, twi e hausa, tal como eles, e eram, na sua maior parte, animistas como eles. Por isso, o comércio de Lomé não foi interrompido, na sua maior parte; os restaurantes, cafés e lojas permaneceram abertos, os hotéis de turismo não foram afectados, e os vendedores na Rue du Commerce fizeram bom negócio com o Exército invasor. Aumentando os preços, naturalmente.
Foi estabelecido um posto de comando na Rue Pelletier, num edifício que abrigava a Embaixada do Achanti, onde tinha sido gradualmente acumulado material de comunicação durante a semana anterior à invasão. Depois de dar uma volta rápida pelos principais objectivos, certificando-se de que se encontravam firmemente em mãos achantis, o Presidente Obiri Anokye desejou boa sorte ao Coronel Sene Yeboa e a Sam Leiberman, e partiu para o Benim, chefiando uma vez mais o corpo de tanques, seguido pela 4.3 e pela 6.§ Brigadas.
Yeboa e Leiberman estabeleceram um amplo perímetro de defesa de Lomé e estabeleceram bloqueios nas duas principais autoestradas que saíam da cidade em direcção ao norte. Depois formaram companhias avançadas, com o fim de fornecer aviso antecipado de qualquer ataque em força das tropas do General Songo vindas do
214
Norte. Yeboa chefiou pessoalmente a surtida da 3ª Brigada e Leiberman comandou o reconhecimento da 5ª Brigada. O mercenário branco, comandando quarenta homens em dois camiões, avançou pela auto-estrada renovada. Sofreu um forte ataque de espingardas e metralhadoras perto da aldeia de Tsévié. Eram aproximadamente 10.45.
Eles estavam longe de ser a Wehrmacht, Leiberman sabia disso. E talvez não fossem tão bons quanto uma companhia de exploradores Ibo que tinha comandado no Biafra. Mas esses homens sabiam que estavam mortos e não se ralavam. No entanto, aqueles achantis eram bons soldados, e ainda haviam de ser melhores depois de algumas batalhas. De preferência vitórias. Leiberman tinha ajudado a treiná-los; sabia o que eles podiam fazer e o que seria absurdo esperar deles.
Quando as metralhadoras abriram fogo, não entraram em pânico. Mas não perderem tempo a saltar dos carros para uma vala malcheirosa ao longo da estrada. Depois correram para uns pequenos arbustos de oleandro, erva-do-elefante e espinheiros; Leiberman foi com eles. Os homens tinham tendência para se amontoar, como todos os soldados novos, de modo que teve de espalhá-los numa linha paralela à auto-estrada. O fogo do outro lado não tinha abrandado. Dirigia-se principalmente para os dois camiões abandonados. Um deles explodiu numa bola vermelha de gás e fumo negro. As granadas e munições extra que tinham ficado para trás continuaram a crepitar depois de as chamas diminuírem.
Leiberman teve a satisfação de ver o seu rádio-operador perto de si. O equipamento que ele trazia às costas parecia intacto. O mercenário rastejou pelo terreno e disse ao rádio-operador que ficasse a postos. Nomeou então duas equipas de dois homens e disse-lhes o que queria que fizessem: uma das equipas deslocar-se-ia para o flanco direito e o outro para o esquerdo. Iriam determinar o tamanho e posição da força inimiga. A única forma de fazer isto era dispararem as armas directamente para a frente e verem se havia retribuição do fogo. Se não houvesse, teriam de levantar-se ou pelo menos acocorar-se, para atrair o fogo inimigo. Eles não gostaram da missão. Leiberman não os censurou por isso.
Aguardou, pacientemente, avisando repetidas vezes os seus homens para não dispararem, visto que, da sua posição, não podiam ver os alvos. A estrada, mais elevada, escondia o inimigo. Tanto quando Leiberman conseguia determinar, as suas baixas, até àquele momento, eram dois homens mortos ao saltar dos camiões. Os seus corpos jaziam na estrada. Um rafeiro mosqueado veio cheirá-los. As equipas enviadas aos flancos acabaram por regressar e prestar as suas informações. Dando desconto ao exagero deles e adi-
215
cionando o que podia avaliar pelo volume do fogo, Leiberman calculou que estava preso no local por uma força de cinquenta a setenta homens armados com espingardas de ferrolho e duas metralhadoras ligeiras. Pareciam estar espalhados ao longo de uma linha de 100 metros, levemente curvada, com as duas extremidades mais próximas da estrada do que o meio. O mercenário não acreditava que eles tivesse morteiros, ou que já os tivessem usado.
Sabia que Sene Yeboa seguia pela estrada recuperada que seguia para noroeste. Quanto mais Yeboa avançasse, mais se afastava da posição de Leiberman. Consultando o mapa Michelin que levava consigo, Leiberman viu que havia um caminho de terra que ligava a estrada de Yeboa à sua.
Partindo do princípio de que o coronel não teria sido forçado a explorar o mato e que os seus camiões continuavam a rolar, poderia voltar para leste em Assahoun, passando por Gape até Agbélouve. Aí poderia entrar na auto-estrada onde Leiberman se encontrava. Voltando para sul, Yeboa podia aparecer por detrás da força togolesa que fizera cair o mercenário numa emboscada. Yeboa tinha cerca de cinquenta homens com ele e dois lança-mísseis de 87 mm. Se conseguissem juntar forças, Leiberman e Yeboa poderiam dominar os to-goleses, que ainda estavam a desperdiçar munições do outro lado da estrada. Segundo o mapa, Sene poderia chegar dentro de uma hora.
Fez sinal ao rádio-operador e tentou comunicar com o coronel, chamando-o a descoberto. Nada. Ou os rádios estavam avariados - coisa vulgar no clima africano - ou o rádio-operador de Yeboa tinha fugido. Ou estava morto. Montes de possibilidades. Leiberman tentou então o posto de comando em Lomé. Desta vez conseguiu ligação. Muita interferência, mas conseguiu explicar o seu problema e pedir-lhes que contactassem com o coronel. Eles disseram que iam fazê-lo. O operador de Lomé terminou gritando "Viva Achanti!", e Leiberman teve um sorriso amargo.
Disse aos seus homens que vinha ajuda a caminho. Sentia-se muito melhor, e instalou-se por detrás do tronco de árvore mais grosso que conseguiu encontrar. Estava prestes a acender um charuto italiano um pouco torto quando uma granada foi atirada do outro lado da estrada; a granada explodiu, matou um dos seus homens, feriu três e fê-lo partir o charuto ao meio com os dentes.
As granadas eram um elemento novo; puxou os seus homens mais para dentro do mato e mandou-os cobrir o rebordo da estrada. Se houvesse um ataque, teria que vir por ali e, durante um momento muito curto, os atacantes ficariam recortados em silhueta contra o céu. Se a força de Leiberman não conseguisse detê-los nessa altura, a única alternativa era fugir. O mais depressa que pudessem e para tão longe quanto possível.
216
O mercenário fez o que podia pelos feridos. Um dos seus cabos tinha sido destacado como auxiliar médico. Além da sua AR-15, transportava pensos esterilizados, sulfamidas em pó, pílulas de quinino e seringas de morfina. Leiberman deu uma injecção a cada um dos feridos. Ao fim de algum tempo, pararam de gritar.
Uma outra granada saltou da estrada, mas caiu longe deles e não fez estragos. Mas Leiberman fez dois dos seus homens soltarem gritos de terrível angústia. Não fazia mal e talvez tornasse os atacantes excessivamente confiantes e descuidados. Estavam a usar as suas granadas tão parcimoniosamente, atirando uma de cada vez, que Leiberman calculou que o seu número fosse limitado.
Também calculou que os togoleses do outro lado da estrada, ainda a disparar para nada, não faziam parte das disciplinadas forças de Songo, que desciam do norte, sendo apenas uma guarnição esfarrapada, talvez proveniente de Tsévié, que tinha ouvido falar da invasão e pretendia entrar na jogada. Esperava ter razão. Em África era difícil avaliar. Talvez naquele momento estivessem a fumar uma boa dose de cânhamo ou coisa mais forte e a ouvir um xamã dizer-lhes que eram impenetráveis às balas. Se isso sucedesse, atravessariam a estrada a flutuar, com uns sorrisos idiotas nos rostos, e, se fossem bastantes, avançariam directamente para as forças de Leiberman, matariam todos e roeriam as suas articulações assadas. Era possível.
Os disparos do outro lado da estrada cessaram subitamente. Leiberman ouviu exclamações agudas e exultantes, gritos de guerra, guinchos que subiam e desciam a escala. Não precisou de dizer aos seus homens o que aquilo significava. Eles apontaram as armas para a estrada, comprimindo mais os corpos contra a quente terra africana, e ficaram à espera. Nenhum se mexeu. Adorou-os a todos. Os togoleses avançaram pela estrada numa linha longa, aos saltos e aos gritos. Quando ergueu a sua Uzi, pensou que eles estavam a ser mal dirigidos; deviam ter atacado numa única cunha, em força. Tê-lo-iam ultrapassado. Mas assim os seus homens ganharam o dia. Detiveram os atacantes com rajadas curtas, como lhes tinham ensinado. Alguns achantis até se levantaram para perseguir os togoleses em fuga. Leiberman teve de os chamar, aos gritos.
Consultou novamente o relógio. Yeboa devia estar a chegar à auto-estrada pavimentada, prestes a voltar para sul. Tinha de estar. Depois Leiberman observou o que lhe restava. Mais quatro mortos, mais sete feridos. Mas três dos feridos ainda estavam em condições de lutar. Redistribuiu armas e munições. Ligou novamente para Lomé. Juraram-lhe que tinham transmitido a sua primeira mensagem a Yeboa e o coronel tinha acusado a recepção.
217
Devia ter havido qualquer coisa na voz de Leiberman; desta vez o operador não gritou "Viva Achanti!".
Aguardaram, movendo-se, inquietos. Mostrando os dentes uns aos outros. Leiberman observou-os cuidadosamente. Não podia deixar um único homem fugir. Os outros iriam a correr atrás dele. Com o mercenário na retaguarda, a gritar mas a correr tanto como os seus homens. Nenhum deles cedeu. Nenhum fugiu. Mas ele viu que os amuletos e os talismãs estavam à vista. Os seus homens preparavam-se para morrer.
O segundo ataque veio em silêncio. Uma súbita vaga de homens saltou da estrada para dentro da vala, subiu a relva, atravessou os arbustos espinhosos, disparando ao acaso. Os Achantis abateram-nos de novo. Mas não todos, não todos. Alguns homens punham-se de pé, com os gládios a flamejar. Leiberman com as costas contra uma árvore, meio charuto italiano já frio entalado entre os dentes, disparava sobre os alvos à medida que se aproximavam, voltando-se para a direita e para a esquerda, mas sempre sem a certeza de estar a obter resultados. Era tudo quente e próximo, grunhidos e gritos de fúria, cheiro a sangue e a suor, a coisas queimadas. E a merda. E a medo.
Alguns deles fugiram outra vez para a estrada. Desta vez, ninguém tentou persegui-los. Metade dos seus homens tinha-se ido, mortos ou olhando, de olhos muito abertos, para o céu vazio, agarrados aos braços, às pernas, aos ventres, aos rostos, enquanto o sangue borbulhava por entre os seus dedos. Havia moscas por toda a parte.
Uma vez mais, pensou ele. É quanto basta. Se eles decidirem atravessar a estrada uma vez mais, podem comer os nossos fígados.
Acendeu o toco do charuto. Começou a andar de um lado para o outro dos seus castigados soldados.
O Capitãozinho está convosco, disse-lhes. Explicou-lhes que deviam ficar e lutar até à morte pelo Capitãozinho. Ele há-de saber da vossa coragem, garantiu-lhes. Ele vos honrará como grandes soldados de Achanti. Tão grandes como os guerreiros achantis do passado. Não fujam agora, disse-lhes. Os vossos irmãos devem estar a chegar. O Capitãozinho tem uma grande magia, grandejuju. Lutem e morram corajosamente pelo Capitãozinho, pediu-lhes.
Falou-lhes em akan. Eles escutaram e acenaram afirmativamente com as cabeças, concordando, oferecendo o seu sangue. Não a ele, sabia-o bem, mas ao Capitãozinho. E ao Achanti. Filho da mãe, pensou subitamente. Com crianças fiéis e confiantes como estas, um homem pode ir a qualquer lado, fazer qualquer coisa. Conquistar o mundo.
Nunca perguntou a si próprio por que motivo ele próprio ficava.
218
Quando se era pago para fazer um trabalho, fazia-se o trabalho. Admitia que era uma estupidez. Mas todos os homens eram estúpidos - de maneiras diferentes. Ficar era a sua forma de estupidez. Voltou a carregar a arma e desejou ter sido melhor para Dele, a sua rapariga da Costa do Marfim.
Quando o terceiro ataque saiu da estrada, ele e todos os homens que lhe restavam puseram-se de pé. Até os feridos se conseguiram arrastar e ficar de pé, sempre que possível, e travou-se uma luta tensa, tão confusa que ele só tinha consciência de explosões, berros, gritos de terror, gritos de triunfo.
E, então, inconfundivelmente, ouviu o ruído de um míssil do outro lado da estrada, novos gritos de fúria. Tomou consciência de mais homens, muitos homens, com uniformes limpos do Achanti. Viu os clarões prateados dos gládios, ouviu o crepitar das armas automáticas, um cântico hausa de vitória que reconheceu, e perguntou a si mesmo - deles ou nosso?
Endireitou-se, voltou-se para a estrada, e algo o atingiu ao fundo das costas, o fez rodar, o atirou ao chão. A Uzi saltou-lhe dos dedos sem força. Sentiu na boca um gosto a terra e a bílis, rolou pelo chão e disse em voz alta:
- Adeus, adeus.
Ficou deitado de costas, absolutamente consciente, escutando os sons de batalha que se iam calando pouco a pouco. Sentia as calças cheias de sangue. Levantou a cabeça lentamente e viu a mancha escura que se espalhava em volta das virilhas. A sua primeira ideia foi que lhe tivessem arrancado os órgãos genitais. Abriu o cinto e a braguilha com dedos trémulos, sem força. O pénis e os testículos ainda lá estavam.
- Ora vivam! - disse-lhes.
Apalpou a parte de trás com dedos cautelosos, sondando por entre o sangue gorduroso. Começava a sentir dores, mas nada que não pudesse aguentar.
Descobriu o que tinha sucedido: tinha sido ferido em ambas as nádegas, da direita para a esquerda, tendo a bala, aparentemente, saído. Humilhante, mas reconfortante. Podia voltar a tocar violino - se as feridas fossem tratadas antes que o seu rabo ficasse verde.
Estava deitado sobre o ventre, com as calças e as cuecas baixadas, tentando estancar o sangue com tiras rasgadas da camisa, quando viu um par de botas de combate poeirentas mesmo junto dele. Ergueu o olhar. O Coronel Sene Yeboa.
- Seu macaco sorridente! - disse-lhe Leiberman. - Vai-me buscar sulfamidas e uma injecção de morfina.
Yeboa acenou afirmativamente com a cabeça, tentando não se rir, mas não o conseguindo.
219
- Sam - disse -, desconfio que vais comer de pé durante algum tempo.
- Ah, não faz mal - disse Leiberman. - Sinto-me outra vez como um bebé. Tenho covinhas no rabo.
Saindo de Lomé, a força invasora de Achanti rolou para leste ao longo da estrada costeira, com o Presidente Anokye à frente. Ba-guida e Anécho caíram sem resistência. A fronteira do Benim estava à vista. Anokye mandou parar. Os homens começaram a sacudir o pó dos uniformes, procuraram a sombra, beberam água, cerveja ou vinho de palma.
Ao largo, a La Liberte navegava lentamente ao longo da costa. Como a corveta não tinha sido necessária em Lomé, Anokye fizera sinal ao Capitão-de-Mar-e-Guerra Ojigi para que seguisse para leste e se colocasse ao largo de Cotonou. Escoltada por três lanchas a motor, a La Liberte passou à frente da coluna em repouso, com uma enorme bandeira de Achanti a adejar no mastro principal.
O Capitãozinho permaneceu no seu jipe, escutando o seu rádio de campanha. Desde que saíra de Baguida, tinha sabido da emboscada sofrida pela força de Sam Leiberman abaixo de Tsévié. Tinha ouvido o primeiro e lacónico pedido de ajuda do mercenário. A transmissão para Sene Yeboa, o segundo pedido de Leiberman, mais desesperado, e a garantia de Yeboa de que estava a caminho.
Depois tinha havido silêncio. Anokye seguia impassível, sem revelar a sua tensão ao motorista ou ao operador de rádio. Podia imaginar facilmente o que tinha acontecido, o que estava a acontecer. Acreditava na capacidade e na lealdade de Leiberman e Yeboa, mas era difícil resistir à tentação de dar meia volta, chefiar as suas forças num ataque de salvação, com as bandeiras a adejar, mergulhar no combate, lutar, vencer.
Mas, durante a breve paragem antes da fronteira do Benim, o rádio crepitou, voltando à vida. Anokye ficou a saber que Yeboa tinha chegado a tempo. Leiberman estava ferido, mas não gravemente. A oposição tinha sido aniquilada.
O Capitãozinho recostou-se no banco, mas não conseguia descontrair-se. Pensou que o seu próprio destino começava a depender cada vez mais da fidelidade e da coragem dos outros. Antes do golpe, tinha sido um jovem oficial do Exército que contava com a sua própria determinação e com a fé de alguns poucos. Hoje chefiava uma invasão de milhares, amanhã uma cruzada política de milhões. Não podia fazer tudo sozinho; necessitava das mentes, da força e do sangue dos outros.
O problema era a confiança. Na sua própria família podia confiar
220
sem limites. Em Sene Yeboa talvez. Nos Achantis, seus irmãos. Mas agora havia outros: Yvonne Meyer, Sam Leiberman, Peter Tangent. E em breve haveria a sua mulher, Beatriz, Benedicto da Silva, Kumayo Songo. E depois muitos, muitos mais que não seriam da sua família, do seu sangue, do seu povo.
Eles iriam apegar-se a ele porque desejavam partilhar o seu destino. Mas era suficientemente realista para saber que teria de dar a cada um deles aquilo que mais ninguém pudesse oferecer-lhe. Havia sempre o perigo de uma oferta mais alta. Obiri Anokye olhou para o pescoço rapado do condutor do jipe, à sua frente, e pensou que aquele homem poderia perfeitamente voltar-se, de súbito, e esvaziar a sua pistola na cara do presidente. Porque outro tinha comprado a sua lealdade com uma recompensa maior ou uma promessa mais aliciante.
Suspirou de tristeza, sabendo que nunca poderia estar seguro de pessoa alguma. Mas nunca deveria permitir que a dúvida fizesse vacilar a sua vontade. Teria de estar alerta, constantemente, e mandar secretamente uns vigiarem os outros. E assim, voltando os seus ajudantes e confederados uns contra os outros, poderia escapar às consequências da sua ganância, do seu veneno, da sua ambição ou da sua inveja. Não era uma coisa apetecível, mas não via outra alternativa.
Fez sinal para avançarem. Em poucos momentos, os homens regressaram aos seus veículos, a coluna prosseguiu o seu caminho. Era óbvio que já tinham corrido as notícias da invasão achanti; os guardas fronteiriços do Benim dispararam sobre eles com espingardas. Anokye mandou avançar um dos tanques de Nkomo. As metralhadoras cuspiram. Os guardas caíram mortos e Obiri Anokye penetrou no Benim.
Agora a velocidade aumentara, e o jipe de Anokye saiu do caminho para permitir que os gigantescos tanques AMX-30 tomassem a dianteira. Passaram por Come e Guézin, e, apesar de não haver resistência, Anokye ordenou aos seus homens que disparassem com as suas espingardas automáticas para as guaritas dos guardas e os escritórios da Polícia. Deixava esquadrões fortemente armados em cada aldeia capturada, e em Ouidah ficou um pelotão reforçado, um tanque e um carro blindado de transporte de pessoal. O aeroporto no exterior de Cotonou foi tomado após uma viva escaramuça com soldados e guardas. Anokye sofreu as suas primeiras baixas - dois homens da 4ª Brigada mortos, quatro feridos -, mas tomou o aeroporto e seguiu em frente.
O Capitãozinho ordenou a formação de um bloqueio na junção da estrada costeira com a auto-estrada norte-sul alcatroada. Depois, a 6.8 Brigada, reforçada com dois tanques, um míssil TOW e uma
221
companhia de morteiros, foi enviada numa ampla operação de limpeza para norte de Cotonou, para atacar Porto-Novo, a capital. Além dos edifícios do Governo, a sua missão consistia em ocupar o posto alfandegário junto da fronteira nigeriana.
Anokye e a 4ª Brigada avançaram sobre Cotonou, pesadamente e em força. Quando começaram a disparar sobre os invasores dos aquartelamentos da Polícia, do vistoso palácio presidencial, dos ministérios e dos edifícios na área de Akpakpa, o Capitãozinho deu ordens pela rádio ao La Liberte para que disparasse projécteis de 40 mm sobre a cidade.
Como a resistência prosseguisse, os tanques do Coronel Jim Nkomo puseram em funcionamento os seus canhões de 105 mm. Os tanques avançaram ruidosa e lentamente pelas ruas desertas, voltando as torres para um lado e para o outro, à procura, disparando. Alguns edifícios desmoronaram-se; outros estremeceram com os disparos a curta distância, mas aguentaram-se de pé, peri-clitantes, deixando ver o céu azul através dos buracos abertos nas paredes e nos telhados. Havia civis entre as baixas.
No espaço de uma hora, toda a resistência cessou; um oficial do Benim aproximou-se, a coberto de uma bandeira branca, e a cidade rendeu-se. Os Achantis tomaram o controlo das estações de rádio, e foram feitos apelos sucessivos - em francês, yoruba, dendi, fon e mina - pedindo à população que se mantivesse calma. As companhias dos telefones e da electricidade foram ocupadas. Os soldados achantis patrulhavam as ruas. Gradualmente, lentamente, os habitantes de Cotonou começaram a espreitar, a aventurar-se a sair, retomaram o movimento das suas vidas quotidianas.
Peter Tangent juntou-se ao Presidente Obiri Anokye seguindo a pé pelas ruas poeirentas depois de sair do Hotel de la Plage. Aproximou-se dos tanques estacionados diante do Palácio dos Congressos. Acenou vivamente. O Capitãozinho sorriu. Saiu ao encontro dele. Apertaram as mãos.
Momentos depois, Tangent estava sentado ao lado de Anokye no banco de trás do jipe do presidente. Chefiavam um comboio de tanques e camiões que regressavam à auto-estrada norte-sul. O Piper Aztec da Força Aérea Nacional de Achanti, patrulhando a área Abo-mey-Bohicon, tinha comunicado a presença de um grande número de tropas, em camiões e a pé, que se deslocava para sul, em direcção à costa.
- Deve ser o Coronel Sitobo - disse Anokye sombriamente. - Apercebeu-se do que está a suceder. Reagiu muito depressa. Um homem dos bons.
222
O ataque do Coronel Kwasi Sitobo tinha sido feito à hora marcada, às 06.00 daquele dia, e tinha enfrentado problemas quase imediatamente. A avançada para oeste, que o Presidente Anokye lhe garantira que seria feita contra áreas indefesas ou levemente armadas do Togo, deu de caras com fortes colunas de togoleses, aparentemente em marcha para leste.
Se Sitobo ficou surpreendido, a única coisa que o salvou foi o facto de as forças togolesas parecerem igualmente chocadas. Ambos os lados, depois de fortes escaramuças, recuaram cautelosamente. O coronel do Benim ordenou uma série de pequenas missões de reconhecimento. Por volta das llh00, tinha já sabido que três colunas togolesas tinham atravessado a fronteira, com ordens de tomar a auto-estrada norte-sul do Benim e avançar para a fronteira nigeriana. A maior parte destas informações foi obtida através de um tenente togolês capturado, cuja obstinação inicial desapareceu antes de lhe arrancarem do peito a primeira faixa de pele. Começou logo a falar pelos cotovelos. Dentro de minutos, Sitobo tinha todos os detalhes dos planos do Coronel Kumayo Songo.
Pouco depois disso, uma emissão de rádio de Cotonou comunicou a invasão do Togo pelo Achanti e a tomada de Lomé. Os boletins subsequentes informavam sobre a invasão achanti do Togo e a queda de Lomé, Ouidah tinha caído, o aeroporto estava tomado e os tanques do Achanti aproximavam-se de Cotonou. A estação de rádio foi então calada.
O Coronel Kwasi Sitobo era um homem dotado de um tão fervoroso nacionalismo, que a ideia de tropas estrangeiras no solo sagrado do Benim constituía, para ele, uma abominação tão grande como as mãos de outro homem no seu corpo. Não perdeu tempo a pensar se Benedicto da Silva estaria ou não incluído nesta conspiração; o seu único desejo era defender o seu país, expulsar os invasores e, se possível, beber o sangue de Obiri Anokye.
Avançou rapidamente. Deixou uma força perigosamente ligeira na área de Savalou para enfrentar os ataques togoleses, e depois dirigiu o grosso das suas tropas e veículos para a auto-estrada, para uma avançada para sul, a fim de defender Cotonou. Estavam a ser sobrevoados por um pequeno avião, identificado como um Piper Aztec pertencente à Força Aérea Nacional do Achanti. Sitobo não tinha dúvidas de que o Capitãozinho estaria ao corrente da sua posição e das suas forças. Não se importava. Quanto mais depressa a batalha fosse travada, mais depressa o Benim ficaria novamente livre.
A sua coluna dirigiu-se para sul, pela auto-estrada, passando por Bohicon. Recolheu tropas adicionais em Abomey, a poucos quilómetros de distância, e prosseguiu o seu avanço através dos grandes
223
palmares de Zogbodomé. Em Ouagbo, soube que Cotonou estava a ser atacada. Em Aliada soube que Cotonou tinha caído. Deteve a coluna e convocou os seus oficiais para uma conferência no seu jipe.
Na junção da estrada costeira com a auto-estrada norte-sul, Obiri Anokye deteve o seu jipe e convocou novamente os seus oficiais. Estendeu os seus mapas sobre o capot quente e vibrante, e eles aglomeraram-se à sua volta para ouvir as suas ordens.
A maior parte dos tanques do Coronel Jim Nkomo era necessária no Togo e em Ouidah e Porto-Novo. Mas podia dispensar dois AMX-30, um carro blindado de pessoal e camiões suficientes para transportar sessenta homens. Aquela força móvel dispunha de lança-mísseis e espingardas sem recuo, e foi designada como Grupo de Tarefa, sob o comando do Coronel Nkomo. Ele recebeu ordens para seguir para oeste até Ouidah, depois voltar para norte por uma estrada secundária recuperada, até Aliada. Com um pouco de sorte, o Grupo de Tarefa poderia apanhar a auto-estrada norte-sul alcatroada porde trás da força de Sitobo. Exactamente a mesma táctica que tinha resultado com Leiberman e Yeboa no Togo. Anokye estava disposto a experimentá-la de novo, mas duvidava de que Nkomo conseguisse chegar a tempo de influenciar uma renhida batalha de infantaria que agora considerava inevitável.
Quanto a ele, comandaria o que restava da 4ª Brigada, numa marcha para norte, a fim de deter Sitobo. Enviou um capitão da companhia especial de assalto e três soldados à frente, no jipe presidencial, para servirem de batedores. Depois chefiou as suas tropas a pé, fixando um passo rápido, guiando-as pela auto-estrada alcatroada. Peter Tangent caminhava ao lado dele, olhando curiosamente em volta, enquanto os homens pesadamente armados marchavam com firmeza, levantando poeira ao pisarem os rebordos dos campos de algodão, milho, café e um pomar de laranjas belamente aparado e plantado com a maior precisão.
- Provavelmente chinês - comentou Anokye, apontando para as fileiras de árvores que se curvavam ligeiramente. - Os Africanos nunca fariam uma coisa tão perfeita!
- É este o tipo de terreno em que pensa defrontar Sitobo, Sr. Presidente?
- Provavelmente será semelhante, Peter. Não conheço este terreno tão bem quanto gostaria. Sei que os palmares ficam mais para norte e os arrozais para leste. Esta zona é principalmente coberta por plantações. E alguns pomares. Tudo terreno liso.
- Não há grande cobertura - disse Tangent.
- Não - concordou Anokye -, não há grande cobertura. Mas nem sempre é possível escolher um local vantajoso. Temos de nos arranjar com o que há.
224
Continuaram a marchar, e Anokye conduziu os seus homens mais para oeste, saindo da estrada. Explicou a Tangent que, quando defrontassem Sitobo, o Sol estaria a pôr-se, e ele queria tê-lo pelas costas, de modo que os atiradores do Benim ficassem ofuscados e encandeados pelos seus raios fulgentes.
O fim da tarde estava quente, apanhado na calmaria de uma linha de descontinuidade dos ventos. A poeira levantada pelos homens em marcha ficava suspensa, quase imóvel, no ar, pintava-lhes os rostos de branco, entupia-lhes as gargantas. O céu sem nuvens era de um azul de sal, e, se se olhasse para cima, parecia salpicado por milhões de pontos cintilantes de luz branca, diamantes ou partículas em movimento.
- Sr. Presidente - disse Tangent, hesitante -, se Sitobo avança para sul, deve ter conhecimento da sua presença no Benim.
- É verdade. Provavelmente, através da rádio, antes de tomarmos Cotonou.
- Se tivesse sido transmitido que o Primeiro-Ministro Da Silva era o novo governante do Benim, pensa que Sitobo teria reagido da mesma forma?
- Provavelmente, não - disse Anokye animadamente. - Ele é um patriota fanático. E a ideia de tropas estrangeiras no seu país que o enfurece. Se eu tivesse transmitido a elevação de Da Silva ao poder, penso que Sitobo a teria aceitado como um fait accompli. Pensei nessa hipótese, mas rejeitei-a.
Tangent não respondeu; continuaram a marchar em silêncio.. Naquela hora do dia, com o sol a arrefecer, parecia que o maior calor provinha da própria terra aquecida, ascendendo em ondas transparentes. Nadavam nesse mar, com os uniformes encharcados, a pele nua queimada e inchada.
Talvez Anokye tivesse tomado o silêncio de Tangent por uma censura. Disse:
- Eu já lhe expliquei que a coragem pessoal em combate é a raiz do poder político em África. Tanto para os homens como para as nações. É necessário que Achanti trave uma batalha e a ganhe, para que sejamos respeitados e temidos. Como é a expressão oriental?... Um tigre de papel. Não podemos permitir que pensem que somos um tigre de papel. Uma vitória militar decisiva agora salvará vidas no futuro. Desencorajará os nossos inimigos, entusiasmará os nossos amigos. Dará coragem ao Exército do Achanti.
- E ajudará a espalhar a lenda da sua magia - disse Tangent, sem ironia.
- Sim - disse Anokye inexpressivamente. - Também. Tangent olhou em volta. Calculava que iriam ali 150 homens a
marchar. Parecia-lhe incrível que um comandante conduzisse
225
aqueles soldados para uma batalha desnecessária por motivos intangíveis. Observou a figura baixa a atarracada de Obiri Anokye, que marchava determinadamente ao seu lado, e perguntou a si mesmo se alguma vez saberia tudo acerca daquele homem.
O jipe presidencial saiu a sacolejar da auto-estrada, atravessando um campo de trigo colhido. Anokye ergueu um braço; a coluna deteve-se, os homens apoiaram-se nas coxas ou inclinaram-se sobre as suas armas. Alguns deles ficaram apenas sobre um pé, com o outro joelho flectido e a sola do pé comprimida contra o interior do joelho esticado. Como as garças. Podiam ficar assim durante horas sem esforço.
O capitão que comandava o grupo de batedores saltou do jipe e avançou a correr, fazendo continência a Anokye. Era um homem baixo e musculoso, que usava uma boina preta e mascava uma noz de cola. Transportava uma M-16 debaixo do braço com tanta facilidade como se fosse um bastão militar.
- Fiz contacto, meu Presidente - disse laconicamente. - Trocámos tiros. A situação é esta...
Acocorou-se, e Anokye acocorou-se ao lado dele. Os outros oficiais aproximaram-se e acocoraram-se igualmente, repousando confortavelmente sobre os calcanhares. Só Tangent permaneceu de pé. O capitão tirou uma faca de combate da bainha no interior da bota e utilizou a sua ponta para traçar um diagrama na terra.
- A estrada costeira fica aqui - disse. - A auto-estrada alcatroada vira levemente para nordeste e depois volta para noroeste até Aliada. Aqui. Esta é a vossa posição. Estão quase a chegar à aldeia de Abomey-Calavi. A notícia da vossa vinda já se espalhou. A aldeia está deserta.
- E o inimigo?
- A sul de Aliada, mesmo antes da curva da estrada. Mais ou menos aqui. Numa frente que se estende pela estrada toda e pelos campos de ambos os lados. Com o binóculo, não vi tanques nem artilharia. Mas pelo menos cinco metralhadoras. Talvez mais. Mais atrás, há camiões estacionados. Talvez haja homens nesses camiões. Uma reserva. Não sei. Os homens que vi parecem bem armados. Granadas. Armas automáticas.
- Morteiros?
- Não vi nenhum.
- Eles estão a avançar?
- Não, meu Presidente. Estão sentados ou deitados. A descansar. Há um piquete adiantado à força principal. Os homens do piquete estão de pé, a patrulhar.
- Quantos homens ao todo?
226
- Calculo uns duzentos, meu Presidente. Poderá haver mais nos camiões.
- Trabalhaste bem.
Anokye estudou o desenho simples traçado no chão. Ninguém falou. Depois, Anokye tirou a faca de combate da mão do capitão, e apontou.
- Aqui, onde a estrada volta para noroeste... É uma curva apertada ?
- Talvez quarenta e cinco graus, meu Presidente.
- Óptimo. Vamos apanhá-los nessa curva. Metade dos homens deste lado, abaixo da curva; metade do outro lado, acima da curva.
- Mas eles não estão a avançar para sul, meu Presidente.
- Foi o que disseste. Vou levar a companhia de assalto pela estrada e fazer um ataque frontal. Os flancos deles vão rodar e cercar-nos. Nessa altura, eu recuo pela estrada até à curva. Eles vêm atrás de nós, farejando a vitória. E nós fechamos a armadilha.
- Deixe-me comandar a companhia de assalto, meu Presidente.
- Não. Eu vou comandá-la. A que distância estamos da posição deles ?
- Talvez uns quinze quilómetros, se seguir pela estrada. Mas se seguir para norte a corta-mato a partir daqui, só metade.
- Então iremos a corta-mato. Depressa, agora, antes que escureça. Aqui estão as vossas ordens e a nossa coordenação.
Deu rapidamente as suas ordens, mostrando aos oficiais, no desenho feito na terra, onde as tropas ficariam colocadas, na curva, de modo a fazerem fogo de enfiada sobre a estrada.
- Dêem-me duas horas, exactamente - disse Anokye, - Se eu não tiver regressado dentro desse período, é porque estou morto. Se isso acontecer
esperem pela chegada do Grupo de Tarefa e esmaguem-nos entre ambos.
Os Oficiais assentiram com um gesto das cabeças e foram tomar os seus postos de comando. A companhia de assalto especialmente treinada, de trinta homens, pôs-se em sentido, empunhou as armas.
- Posso ir? - perguntou Peter Tangent
- Se quiser - disse Anokye, encolhendo os ombros. - Temos de andar depressa. Se não conseguir acompanhar-nos, teremos de o deixar.
- Compreendo.
- Tem uma arma?
- Tenho uma pistola - disse Tangent
- Infelizmente, não temos espingardas extra - disse Anokye. Depois acrescentou: - Mais tarde, haverá muitas espingardas extra.
O Capitãozinho lançou uma olhadela ao Sol, que se punha, e
227
partiu em passo rápido. Não a correr, mas afastando bem as pernas, num passo que cobria terreno, sobre os campos arados, os pomares, as fileiras de espigas de trigo, sobre caminhos, entrando e saindo em ravinas baixas, valas de drenagem, canais de irrigação. Tangent esforçava-se por o acompanhar, tropeçando, respirando pesadamente pelo nariz. O calor começava a derreter-lhe os joelhos, a esgotar as suas reservas. Atrás deles vinham os soldados achantis, pisando firmemente o terreno num ritmo próprio, com as espingardas e o equipamento a chocalhar, numa cadência de botas a bater sobre a terra.
Anokye não olhava para os homens que o seguiam e nunca parou. Tinha uma espingarda de assalto Kalashnikov atravessada sobre as costas. Agitava os braços enquanto caminhava, e esse movimento projectava-o para a frente. Tangent tinha a sensação de que o Capitãozinho estava inclinado para a frente, sempre em perigo de cair, firmando os pés no último momento para pisar a terra, endireitar-se, inclinar-se de novo, projectar-se para diante.
Marcharam sem parar durante quase uma hora, com a poeira a subir em volta das pernas fatigadas, sem nunca trocarem uma palavra. Pararam ao chegar à auto-estrada. Anokye fez sinal para que todos se deitassem. Os homens deixaram-se cair sem forças no chão, com os peitos a subir e a descer, as bocas abertas, as gargantas esticadas numa fome de absorver mais ar. Mas o Capitãozinho descansou de pé, agora com a arma nas mãos. Os seus olhos esquadrinhavam a estrada em frente, um conjunto de buganvílias, um pequeno bosque de eucaliptos poeirentos.
Lentamente, um a um, os soldados puseram-se de pé, inspeccionaram as suas armas. Anokye olhou para eles e depois para Tangent.
- Tudo bem? - perguntou.
Tangent acenou afirmativamente com a cabeça.
Subiram a estrada cautelosamente em duas filas, ao longo das bermas, com cinco metros de espaço entre ambas. Anokye chefiava-os, agachado, voltando a cabeça em várias direcções. Depois fez sinal aos homens para que parassem e se baixassem. Depois todos rastejaram, com os ventres e os joelhos a roçarem o cascalho solto. O Capitãozinho fez sinal de paragem. Tangent ergueu a cabeça lentamente, receosamente.
Na estrada em frente havia dois soldados do Benim, perto um do outro, com as espingardas ao ombro. Estavam a acender cigarros. Anokye ergueu-se sobre um joelho e olhou para trás. Por gestos, fez os seus homens deslocarem-se pelos campos de ambos os lados da estrada, e depois mandou-os avançar até formarem uma linha irregular.
228
As sentinelas do Benim tinham-se separado, estavam a dirigir-se para os campos. Anokye pôs-se de pé. Disparou uma rajada curta para a esquerda. Depois para a direita. Voltou o cano da arma para cima. Os seus homens começaram a gritar e a disparar, mergulhando para diante.
Correram para os piquetes e destroçaram-nos. A cem metros de distância, o grosso das tropas pôs-se de pé, gritando, agarrando nas armas. Tangent seguiu-os de perto, viu o Capitãozinho baixar-se, disparar uma rajada, rolar rapidamente para a direita, disparar outra rajada. Tentou fazer o mesmo, disparando com a sua pistola, e o som dos seus tiros perdeu-se no crepitar das armas à sua volta.
Então baixaram-se todos, carregando novamente as armas, preparando-se para a primeira carga sobre as tropas de Sitobo. Estas avançaram a uivar pelos campos fora, disparando as suas armas automáticas em longas rajadas não apontadas, saltando como dementes e emitindo gritos silvantes.
O fogo disciplinado dos achantis abrandou o seu avanço, fê-los parar, matou-os. Alguns fugiram. Alguns atiraram fora as armas. Mas atrás deles vieram mais, e mais, e mais ainda. Tangent ouviu o ruído de motores a arrancar; os camiões que estavam mais atrás punham-se em movimento. Anokye pôs-se de pé, curvado, voltou-se, fez sinal aos seus homens para recuarem. Tangent viu o seu rosto: tinha os lábios arrepanhados num sorriso de caveira. Os dentes húmidos. Os olhos a chamejar. Os homens começaram a recuar, voltaram-se, dispararam, recuaram, voltaram-se, dispararam.
Depois começaram a correr-os que ainda estavam vivos. Já não pelos campos, mas pela estrada, soluçando, carregando as armas enquanto corriam, voltando-se para disparar ao acaso, às cegas, e depois correndo de novo. Havia homens que caíam e começavam a gatinhar. Havia homens que caíam e ficavam imóveis. Mas ninguém parava para prestar ajuda ou conforto. Os camiões do Benim estavam agora à vista, paravam a guinchar, e os soldados inimigos estavam suficientemente perto para Tangent poder ver, de relance, os seus rostos, os seus olhos muito abertos, os peitos esforçados, as bocas abertas a gritar.
Tendo esvaziado a pistola, Tangent atirou-a insanamente contra os homens que queriam vê-lo morto e, sem se deter, baixou-se e apanhou uma arma de um achanti caído. Viu que Anokye continuava de pé, continuava a funcionar, o último a voltar para trás, o homem mais próximo do inimigo. Pensou que, se o Capitãozinho se salvasse, ele se salvaria também, e continuou a premir o gatilho da arma desconhecida, sem apontar, empunhando-a apenas e disparando, a praguejar e a carregar com uma selvajaria que nunca
229
conhecera, porque estava no seu limite, e sentia-o, e talvez estivesse a soluçar, mas não lhe interessava determinar se era de ardente alegria ou de medo gelado, ou de ambas as coisas.
Estavam a aproximar-se da curva pronunciada da auto-estrada e a dar a volta, com os camiões a aproximar-se mais, o inimigo em perseguição sentindo o cheiro a carniça e esforçando-se ainda mais. Depois deram a curva à estrada, sentindo-a mais macia por debaixo dos pés, e, enquanto Tangent soltava um grito de exaltação, as armas da 4.B Brigada abriram fogo, numa tempestade, e Tangent foi projectado para o chão, caiu, rolou, parou de rosto voltado para a terra, com as mãos cruzadas por cima da cabeça, sem conseguir parar de gemer.
A tempestade não cessava, antes crescia de intensidade, e agora ouviam-se fortes explosões, e gradualmente ergueu-se um rugido feroz quando a 4ª Brigada se levantou e avançou, com os gládios a brilhar à última luz avermelhada do Sol, e lá estava Peter A. Tangent, branco, executivo de uma companhia petrolífera, nascido em Crawfordshire, Indiana, novamente de pé, a avançar com eles, movendo os joelhos ossudos, agitando loucamente os braços magros, com um gládio na mão, desta vez sem ver nem ouvir nem saber o que fazia, mas atirando-se como os outros para o meio da loucura, com os seus gritos a perderem-se na gritaria geral, uma face a surgir diante de si, um golpe, e um rosto a abrir-se como um melão, os olhos a separar-se, e depois a 4ª Brigada tinha atravessado as forças inimigas e voltado para trás e batido o terreno uma vez e outra, até os inimigos não estarem apenas mortos, mas feitos em picado, retalhados, esquartejados, pontapeados, pisados e totalmente erradicados da face da Terra, incluindo o patriota, o Coronel Kwasi Sitobo, e, quando tudo terminou, o Capitãozinho teve de arrancar o gládio dos dedos gelados de Tangent, e deu-lhe uma palmadinha no rosto com uma mão suja de sangue.
Eram quase 21.00 quando Peter Tangent regressou a Cotonou. Tinha assistido, como um observador fascinado, à forma como Obiri Anokye se reunira com os seus oficiais e pessoal diplomático e emitira ordens para consolidar o seu poder no Togo e no Benim. Tinham sido enviadas unidades militares para as zonas mais setentrionais de ambos os países, para lá das montanhas Atacora, para garantir a lealdade de pequenas aldeias isoladas e postos avançados. Tinham sido marcadas reuniões com o General Kumayo Songo e com Benedicto da Silva. Tinham sido feitos comunicados à Reuter e à agência France-Presse afirmando que a "Guerra das Doze Horas" tinha terminado; Achanti, Togo e Benim estavam em paz, e Obiri
230
Anokye só desejava uma estreita amizade com todas as nações, "no verdadeiro espírito de igualdade e fraternidade".
Tangent conseguiu transporte para Cotonou num Citroen preto que pertencia à Embaixada de Achanti. Os seus companheiros eram funcionários da Embaixada que não paravam de soltar exclamações de espanto perante os acontecimentos do dia e de gabar a sabedoria e a bravura do Capitãozinho. Quando um deles se referiu ao povo Achanti como uma "potência mundial", os outros ficaram encantados com a expressão. Tangent escutava os jovens e elegantes achantis tagarelarem acerca de esferas de hegemonia, eixos de influência e interacções dicotonómicas. Aquilo entristecia-o, mas supunha que fosse inevitável. Ganhava-se uma coisa; perdia-se outra.
O hotel parecia intocado pela mudança de Governo. O hall com ar condicionado estava muito movimentado, o bar apinhado, havia uma fila de pessoas à espera de mesas na sala de jantar cheia de gente. Tangent não conseguia ver a multidão alegre, animada, bem vestida. A sua mente estava cheia de imagens mais densas: quentes, cor de terra, desprovidas de risos.
Ia abrir a porta da sua suite, mas deteve-se ao ouvir um ruído estranho. Encostou o ouvido à porta. Um cântico surdo, quase uma cantilena murmurada, numa língua que não conseguia entender. Yoruba, pensou, ou talvez Adj. Abriu a porta lentamente. A pequena entrada estava às escuras. Mas, da sala, provinha uma luz bruxu-leante e fraca. Fechou a porta devagar e entrou silenciosamente.
Amina Dunama, nua, com o corpo de basalto brilhante de óleo, estava acocorada diante de uma pequena lamparina de barro em que ardia um combustível perfumado com uma chama azulada. Tinha o colar de pérolas em volta da cintura estreita, em duas voltas. A testa, as faces e os seios apresentavam traços de algo que parecia cinzas. No tapete, à sua frente, encontravam-se diversos objectos: um pequeno conjunto de penas, uma pedra, um osso, um amuleto de latão...
Tinha a cabeça inclinada para trás, o rosto levantado. O seu corpo oscilava levemente enquanto entoava a litania infindável. Tangent compreendeu de que se tratava: um ritual para os mortos em combate. Sentiu os olhos a arder. Depois saiu, de novo silenciosamente. Abriu a porta, entrou e fechou-a ruidosamente. Quando voltou a entrar na sala, ela estava de pé, fitando-o com os olhos muito abertos.
Olhou para ela e depois para os objectos que estavam no chão. Ela inclinou-se rapidamente e apagou a pequena lamparina. A sala ficou mergulhada na escuridão; apenas uma débil luz que vinha da rua atravessava os cortinados corridos.
- Pensaste que eu estava morto? - perguntou ele.
231
- Tu não voltaste - respondeu ela. - Por isso...
Afligiu-o a súbita noção de que estavam a falar como estranhos,
encontrando-se como estranhos. Fosse o que fosse que tinham sido um para o outro no passado, isso desaparecera, tinha sido eliminado. Iam começar de novo, procurando às apalpadelas o caminho para um novo relacionamento. Melhor que o antigo ou pior que o antigo. Mas diferente.
Dirigiu-se, cambaleante, para um sofá e sentou-se pesadamente. Viu-a pôr-se de gatas diante dele. A luz brilhava nas suas costas oleadas, a espinha curvada esticava a pele.
Ela abriu-lhe as calças e introduziu a extremidade do seu pénis entre os lábios. Mais um gesto do que uma carícia. Depois aproximou-se mais dele e abraçou-se às suas pernas.
- Dizem que o Capitãozinho tem grande magia - disse ela. - É verdade?
- É verdade - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça. - Até no meu país isso seria reconhecido. Num só dia, conquistou duas nações.
- E mandou-te de novo para mim.
- Sim.
- Ele sabe de nós?
- Oh, sim.
- E aprova?
- Penso que sim. Acho que ele pensa que é mais um laço que... Não terminou a frase.
- Que te amarra a África? - disse ela.
- Era o que eu ia dizer, mas não é o que sinto. Posso acender a luz?
- Se quiseres.
Ele estendeu a mão para um candeeiro. A luz brilhante, viu algo mais no chão. Junto do osso, das penas, do amuleto, estava algo longo, seco, negro, enrugado e mumificado. Ela viu-o olhar para o objecto.
- É muito antigo - disse evasivamente. - Por que sorris dessa maneira estranha?
- Uma ideia curiosa. Esta cerimónia num hotel que aceita cartões de crédito American Express. Tinhas razão esta manhã: nunca hei-de entender a África.
Ela desafivelou-lhe as botas e descalçou-lhas. Arrancou-lhe as meias de lã.
- Tens os pés vermelhos e inchados - disse.
- Marchámos - disse ele.
- E lutaram?
- Sim.
232
- Queres falar disso? Desabafar?
- Não, agora não. Talvez depois. Agora quero tomar um duche para me sentir limpo.
Ela tirou as pérolas e foi com ele para o chuveiro. Ensaboou o corpo dele e o seu e esfregou ambos com uma esponja. Lavou-o ternamente, enxugou-o com a toalha, aplicou-lhe talco. Quando saíram da casa de banho, levou-o para o quarto pela mão.
Ele queria dizer-lhe que não lhe apetecia, que estava cansado, explicar-lhe sinceramente que, naquele momento, fazer amor não lhe interessava. Mas ela sabia mais do que ele, e o seu instinto era seguro. A mente dele estava cheia de imagens caleidoscópicas daquele dia sangrento, mas, quase contra vontade, sentiu chegar uma erecção. Ficou surpreendido, mas ela não.
Introduziu-o dentro de si delicadamente, com as pontas do polegar e do indicador. Estava quente, quente e tensa, e ele penetrou no seu corpo que o engolia, como se procurasse a protecção da terra quando a morte avançara a uivar pelos campos.
Ela prendeu-o dentro de si com músculos fortes. Agarrou-o pelas nádegas para o fazer penetrar mais profundamente. As suas ancas começaram a mover-se, a subir e a descer muito lentamente. As suas pernas longas e esbeltas envolveram-no pela cintura. Levantou a cabeça da almofada e, com os olhos fechados, os lábios túrgidos, murmurou obscenidades ao ouvido dele. Exactamente o que ele queria ouvir.
23
O nevoeiro estava baixo sobre o Tamisa. Rodava sobre os parques, descia pelas ruas estreitas em ondas de lã de carneiro cinzento, gorduroso e peganhento. O sol tinha desaparecido de vez; o ar abafava a garganta. O próprio céu parecia ter descido, um peso imenso que curvava as cabeças, as costas das pessoas.
Apesar do dia sombrio, os dois homens passeavam descuida-damente pelo Green Park, como se percorressem uma avenida. Estavam vestidos de forma idêntica: sobretudos Burberry cor de cimento, chapéus de coco pretos. Ambos levavam no braço chapéus de chuva apertadamente enrolados. Podiam ser gémeos - ou refugiados de um coro de exibicionistas.
- Ficaste surpreendido? - perguntou Tangent.
- Nem por isso - respondeu Tony Malcolm.
233
- Ah - fez Tangent, acenando com a cabeça com um ar entendido. - Ian Quigley informou-te sobre o que havia a esperar, hem?
Malcolm não respondeu. Continuaram a caminhar em silêncio. Finalmente, Malcolm disse:
- Suponho que Anokye se atirará à Nigéria, a seguir.
- Que te leva a dizer isso?
- É óbvio, não é? Togo e Benim não valiam a jogada, a menos que fosse para obter uma fronteira contígua à Nigéria. Essa já vale a jogada.
- Não sei - disse Tangent secamente. - Não sei mesmo, Tony. Não sei nada dos planos militares dele. Ian Quigley não te deu uma pista?
- Não - disse Malcolm. - A propósito, viste o relatório que a Fisk, Twiggs and Sidebottom apresentou ao Capitãozinho?
- Sim, vi.
- Qual foi a tua reacção?
- Algumas recomendações excelentes. Algumas idiotas. Mas, no conjunto, valeu a pena.
- Foi o que eu pensei. Bom, Quigley é um profissional.
- Tu é que deves saber - disse Tangent.
Tony Malcolm deteve-se abruptamente junto de um banco vazio.
- Vamos sentar-nos um pouco.
- Tony, tem cuidado; está todo molhado.
- Disparate - disse Malcolm. - Só um pouco húmido. - Tirou um lenço branco limpo da manga do casaco e limpou rapidamente o banco. - Pronto. Já está seco.
- És doido - disse Tangent, sentando-se cuidadosamente. - Parecemos um casal de malucos, sentados num banco do parque com este tempo.
Ofereceu um Players a Malcolm. Os dois homens ficaram sentados em silêncio, a fumar.
- Como é que ele vai organizar as coisas? - perguntou Malcolm. - Sabes?
- Bom... - disse Tangent, hesitante. - Não devia falar disso, mas não vai ficar em segredo durante muito tempo. Os Estados Africanos Unidos, uma federação de nações semi-soberanas. Cada uma com o seu chefe executivo nomeado por Anokye, mas com assembleias legislativas nacionais eleitas por voto popular. Um código legal para todos os EAU, mas suficientemente elástico para atender às tradições locais e aos costumes tribais. Um único sistema monetário. Uma bandeira. Um Exército.
- Comandado por Anokye, evidentemente? - Evidentemente.
234
Ele continua a ser presidente do Achanti? -Não, vai ser presidente dos Estados Africanos Unidos. O chefe executivo de cada nação membro é, na realidade, um governador. Zuni Anokye, o irmão mais velho de Obiri, vai tomar o seu lugar no Achanti.
- Interessante - disse Malcolm. - E quanto a impostos?
- Cada nação cobra os seus, com uma percentagem para os EAU. Willi Abraham está a ocupar-se disso, usando a sua equipa.
- Naturalmente. Penso que o Capitãozinho andou a ler a História persa.
- Por que dizes isso?
- Toda essa organização saiu directamente de Ciro. As satrapias.
- Pode ser. Ele lê muita História.
- Talvez ele seja capaz de evitar os erros dos Persas - disse Malcolm.
- Detectei uma nota de esperança? - perguntou Tangent sar-donicamente. - Estás realmente do lado dele?
- Toda a gente gosta dum vencedor - disse Malcolm.
- Meu Deus, como estamos sentenciosos hoje. Por acaso, tens razão. Ele já recebeu consultas confidenciais da Serra Leoa e do Níger, perguntando-lhe em que termos poderão unir-se aos Estados Africanos Unidos.
- Por que não? - disse Malcolm. - Com todo aquele dinheiro do petróleo que ele tem. Mais ainda, se tomar a Nigéria.
Tangent inclinou-se para pisar o cigarro no chão do parque. Falou, ainda inclinado, com a voz abafada.
- Vais apoiá-lo, então? - perguntou com naturalidade. Endireitou-se e olhou para Malcolm.
- Estou a pensar nisso - respondeu Malcom.
- Não leves muito tempo a pensar - aconselhou Tangent. - Gostaria que chegasses em primeiro lugar. Antes dos Franceses ou dos Ingleses. Ou de quaisquer outros. Ele seria um amigo precioso para os EUA em África. É isso que eu vou vender a Washington. Tu podes ajudar.
- Vou pensar nisso - repetiu Malcolm.
Ficaram sentados em silêncio, por um momento, inclinados para a frente, picando o chão com os chapéus de chuva. Depois, Tangent olhou para o relógio e pôs-se de pé.
- Tenho de voltar - disse. - Queres uma boleia?
- Não, obrigado - disse Malcolm. - Acho que vou ficar aqui mais um pouco, a gozar a humidade.
- Está bem - disse Tangent, rindo. - Jantamos no sábado? Às nove? No clube?
235
- Boa ideia.
- Então até lá - disse Tangent, acenando com a cabeça, e afas-
tou-se.
I Tony Malcolm ficou sentado, em silêncio, quase imóvel. Nem sequer se mexeu quando uma mulher que usava uma gabardina pregueada se sentou ao seu lado, no lugar que Tangent deixara vazio, ela trazia a cabeça descoberta; brilhavam gotas de humidade no seu
cabelo liso.
- Julguei que elenuncamais se ia embora - disse JoanLivesay.
- Pensei a mesma coisa - disse Malcolm. - Bom, está com óptimo aspecto. Belo bronzeado.
- Nunca fico mais escura do que isto. Àquele sol era esplêndido. - Imagino. O depósito foi feito na sua conta.
- Eu sei. Obrigada. Estava tudo em ordem?
- Estava tudo óptimo.
- Tive problemas com o raio da máquina fotográfica. Pensei que
tivesse estragado tudo.
- Não, não - tranquilizou-a ele. - Ficou tudo muito nítido.
- Os mapas?
- Especialmente os mapas.
- Óptimo. Que vai fazer com tudo aquilo?
- Oh... - disse Malcolm vagamente. -Arquivá-lo em qualquer sítio. Nunca se sabe...
- Anokye é um grande homem, não é, Tony?
- Oh, sim. Um grande homem.
- Recebi uma carta dele esta manhã. No escritório: Ele voltou-se lentamente para a olhar.
- Ai sim? Dizendo o quê?
- Adivinhe.
- Eu gosto de jogos de adivinhas - disse ele, sorrindo. - Quantas hipóteses posso apresentar?
- Uma - respondeu ela.
- O Capitãozinho quer que volte para Achanti para ser a sua secretária executiva.
Foi a vez de ela o fitar com surpresa.
- Filho da mãe - disse. Ele riu-se.
- Um pouco de respeito pelos mais velhos, minha querida.
- Que acha que eu devo fazer? - perguntou ela.
-A escolha é sua-disse ele. - Ir ou não ir. Trabalha como free-lancer, pode fazer o que lhe der na pinha.
- Que raio de linguagem - disse ela. - Mas não sei o que hei-de fazer. O salário que ele me oferece é excelente. Isso, mais aquilo que
236
o Malcolm me pagaria... Pagar-me-ia, não é verdade? Para continuar a fazer a mesma coisa?
- Oh, sim, pagar-lhe-ia para continuar a fazer a mesma coisa. Precisa assim tanto de dinheiro?
Ela acenou violentamente com a cabeça, mordendo o lábio superior.
- O seu pai? - perguntou ele brandamente.
- Contrataram um novo assistente no lar. O meu pai deu-lhe cinco libras para lhe arranjar uma garrafa. O Dr. Gaither diz que ia morrendo por causa disso. Voltou ao ponto em que estava há um ano.
- Sinto muito - disse ele suavemente.
Ela voltou-se subitamente para o olhar, com os olhos muito abertos.
- Por acaso, não meteu lá o tal assistente, pois não?
- Eu? Joan!
- Para levar a garrafa ao meu pai? Para eu ter de... Ele gemeu.
- Pensa realmente que eu ia fazer uma coisa dessas? Ela não estava totalmente convencida.
- Bom... às vezes é um autêntico sacana, sabe bem disso.
- Meu Deus - disse ele. - Filho da mãe e sacana num período de dez minutos. Este é o meu dia de sorte.
Ela ficou sentada, pensativa, e ele nada disse. Olhou para as suas mãos, que se retorciam, para a cabeça inclinada, para o cabelo molhado pelo nevoeiro.
- Bom - disse finalmente. - Que decidiu?
Ela ergueu a cabeça lentamente. Voltou o rosto para cima. Os seus olhos procuraram o sol de Achanti. Mas o céu parecia prestes a cair.
- Volto - disse.
- É o melhor que faz - disse Tony Malcolm.
Lawrence Sanders
O melhor da literatura para todos os gostos e idades