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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FAGULHAS DA PAIXÃO / Shannon Drake
FAGULHAS DA PAIXÃO / Shannon Drake

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Londres, século XIX
Entre o dever e o desejo...
Casar-se com o visconde Charles Langdon é a única maneira de Maggie pagar as dívidas de seu irmão irresponsável. Seria fácil amar um homem tão generoso e compreensivo... não fosse o fato de ele ter idade para ser seu avô.
James Langdon não aprova o casamento do tio com uma jovem, empenhada em desmascarar videntes vigaristas que se aproveitam dos crédulos e pobres. Porém, com as investigações policiais em andamento para capturar um perigoso bandido que aterroriza a população, James se sente no dever de acompanhar a futura tia em suas incursões ao submundo londrino. À medida que se conhecem melhor, uma forte atração nasce entre eles, levando-os a descobrir uma paixão tão intensa quanto indesejada. Maggie está decidida a cumprir seu dever e sua promessa de desposar Charles, embora saiba que seu coração pertencerá a James para sempre...

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo I
Londres, 1888
Ao se aproximar da Graham House, sua casa em Londres, Maggie Graham, filha do falecido barão Edward Graham, avistou a carruagem ostentando na porta o brasão da família e teve um estranho pressentimento. Tio Angus havia chegado e, uma vez que ele nunca deixava de enviar uma mensagem anunciando que pretendia visitá-los, sua vinda inesperada era sinal de problemas.
Maggie praguejou baixinho e imediatamente censurou-se. Esse linguajar era impróprio para uma lady. E ela, filha de um barão, era uma lady, mesmo tendo sido casada com um plebeu. Não que desse importância a títulos. Também não se importava de ser considerada pelo tio e pelos primos esnobes a ovelha-negra da família.
"Tio Angus, com certeza lamenta que o irmão mais velho, depois de um casamento de vários anos sem filhos, tivesse sido pai de um casal de gêmeos", ela pensou com humor.
Na Grã-Bretanha, de acordo com a lei, o nascimento dela, sendo mulher, pouco importava. Mas, segundos depois que viera ao mundo, Justin nascera. Isso destruíra a esperança de Angus de herdar o título do irmão. De fato, era espantoso que, apesar de Justin já ser homem feito, tio Angus continuava agindo como o chefe da família.
- O bicho-papão chegou! - disse Mireau baixinho.
- Não diga isso - aconselhou Maggie, sorrindo para o amigo.
Jacques Mireau havia entrado na vida de Maggie numa época muito feliz. Desde então decidira defendê-la. Ele também era escritor e precisava de apoio financeiro enquanto escrevia seus preciosos volumes. Havia entre Jacques e Maggie grande amizade e auxílio mútuo. No entanto, alguns viam naquele relacionamento muito mais do que na verdade existia. Maggie não se importava com a opinião dos outros. Também não fazia questão de luxo ou de aparências. Considerava-se afortunada por saber apreciar a magia da vida. Por reconhecer a beleza que havia na verdade. Por ver o sofrimento causado pela hipocrisia. Por ter consciência de que de nada adiantava esforçar-se na busca de uma vida que era, normalmente, não mais do que falsidade e miragem.
- Você também se refere a Angus como um ogro - Jacques lembrou-a.
- Somente quando estamos sozinhos.
- Ainda estamos aqui fora. Você está andando devagar, como se odiasse entrar em casa.
- Admito que tio Angus não é a pessoa de quem mais gosto.
- Devemos enfrentar o pelotão de fuzilamento o mais depressa possível. Quanto mais demorarmos maior será a agonia. - comentou Jacques passando o braço pelos ombros de Maggie.
- É isso mesmo. Vamos. Sei lidar com um ogro - Maggie retrucou, apressando o passo.
Parou ao alcançar os degraus de entrada da casa. Clayton, o mordomo, estava à porta e inclinou a cabeça.
- Lorde Angus está em casa, lady Maggie.
Maggie sorriu.
- Obrigada, Clayton - ela respondeu, desabotoando os botões da capa, tirando as luvas e entregando-as ao mordomo.
- Estávamos esperando pela senhora, milady, para servir o chá.
- É muita gentileza de tio Angus ter-me esperado - tomou Maggie. - Monsieur Mireau e eu iremos até a sala de estar.
Clayton adiantou-se, ficando na frente de Maggie, e falou-lhe baixinho:
- Apenas a família, milady. - Com um movimento dos olhos o mordomo indicou que monsieur devia ficar para trás.
- Esperarei por você no sótão - Jacques apressou-se em dizer.
- Covarde - Maggie murmurou com um sorriso provocativo.
- Você está certa. Mas seu tio pode estar aqui para informá-la que devo me manter longe desta casa.
- Ele não tem o direito de fazer isso.
Clayton pigarreou.
- Lady Maggie, permita-me dizer que não deve deixar lorde Angus esperando por mais tempo.
Maggie acenou com a mão para o amigo e dirigiu-se para a sala. Subitamente lembrou-se de sua aparência e desejou estar bem vestida. Mas estivera ocupada com seu trabalho de assistência aos necessitados, atividade que considerava gratificante, pois lhe fazia bem à alma e ao coração. Usava vestido preto de algodão, sem rendas ou enfeites de qualquer tipo. Maggie tinha duas grandes paixões na vida: melhorar as condições dos órfãos maltrapilhos e famintos que viviam nos bairros e distritos do chamado East End, não muito distante da opulência da região elegante de Londres, e desmascarar os charlatães que se intitulavam "videntes" e "espíritas" e enganavam tanto ricos como pobres, prometendo-lhes entrar em contato com os pranteados entes queridos que haviam deixado este mundo.
- Tio Angus! - Maggie exclamou entrando na sala, a voz modulada, seus movimentos os de uma verdadeira lady.
Sempre que entrava naquele aposento, antes tão luxuoso, ela sentia um aperto no coração ao notar o revestimento gasto dos móveis estofados e o estado lastimável do precioso tapete persa.
- Minha querida - saudou-a lorde Angus levantando-se da poltrona onde estivera sentado por mais de meia hora, esperando pela sobrinha.
Alto e imponente, de cabelos brancos, usando costeletas, pequeno bigode e barba perfeitamente aparados, lorde Angus foi ao encontro de Maggie. Trajava-se com apuro, e da algibeira pendia a corrente de ouro do relógio. Lorde Angus era um belo homem e muito elegante, Maggie teve de admitir. Fisicamente lembrava muito o pai dela. Angus segurou as duas mãos da sobrinha, em seguida beijou-lhe as faces, como se há muito não se vissem.
- Maggie - disse Justin suavemente, tendo também se erguido da poltrona.
Ele e Maggie eram gêmeos e muito parecidos. Da mãe haviam herdado cabelos de um raro tom loiro com reflexos ruivos que brilhavam como raios de sol. Nathan, o falecido marido de Maggie, costumava dizer que aqueles cabelos avermelhados eram parte do temperamento vibrante da esposa. Em homenagem a ele, Maggie nunca mais cortara os cabelos.
Justin também amava sua cabeleira e a mantinha um pouco mais longa do que ditava a moda. Era muito bonito e elegante, mas naquela tarde sua aparência não era das melhores. Estava pálido e parecia doente, mal conseguindo manter-se de pé. Por isso sentou-se novamente.
Nesse instante Clayton entrou na sala carregando a grande bandeja com o chá e colocou-a sobre a mesinha chinesa.
- Ah, o chá! - disse Maggie com entusiasmo. - Tio, para o senhor apenas um cubo de açúcar e um pouco de creme?
- Exatamente, minha querida.
- Tio, o senhor deve provar um dos deliciosos bolinhos de aveia feitos por Molly.
Lorde Angus aceitou apenas o chá e fez um aceno com a mão, rejeitando o bolinho.
- Sirva o chá a seu irmão, minha querida. E acomode-se, pois o assunto que me trouxe aqui é sério.
Imediatamente Maggie olhou para Justin que baixou a cabeça. Nem de longe ele lembrava lorde Graham, o importante barão das altas rodas. Parecia um inválido.
Ao entregar-lhe a xícara de chá, notou que as mãos dele tremiam. Fingindo ignorar o estado deplorável do irmão, Maggie manteve-se bem calma, serviu-se do chá com vagar, aumentando a impaciência do tio. Por fim, sentando-se muito ereta numa poltrona, na frente de lorde Angus, observou:
- Então, esta não é uma visita social, prezado tio.
- Não é.
- Nesse caso, eu lhe peço, diga do que se trata.
Lorde Angus colocou a xícara sobre a mesinha chinesa.
- Não posso mais tolerar o comportamento dessa parte da família!
Foi tão grande o espanto de Maggie ao ouvir a declaração veemente do tio que a xícara tremeu em sua mão.
- Querido tio, o senhor me ofende. Nós jamais deixaremos de respeitar sua sabedoria nem podemos esquecer de que o senhor é irmão do nosso amado e falecido pai, mas devo lembrá-lo de que foi meu irmão, Justin, quem herdou o título.
- Sim, Justin herdou o título de barão, e desperdiçou toda a fortuna da família! - Angus apontou, zangado.
Os olhos de Maggie voltaram-se para o irmão e sentiu o estômago doer.
- Justin só não jogou fora seu título. Até o momento pude manter as despesas desta casa e pagar as dívidas de jogo de seu irmão. Mas, de agora em diante, você e Justin serão responsáveis pelo próprio sustento. Não posso mais ajudá-los financeiramente.
- Como? Papai nos deixou em ótima situação financeira! - alegou Maggie.
- Sim, mas agora vocês estão atolados em dívidas. E não devem apenas a mim! Só Deus sabe quantos são os credores que ainda precisam ser pagos - acrescentou lorde Angus com desdém.
Subitamente, Justin reanimou-se e enfrentou o tio, o que fez com que a irmã se orgulhasse dele.
- Caro tio Angus! Foi o senhor mesmo quem me aconselhou a passar as noites acompanhando nosso querido príncipe Eddy. Segui seu conselho e agora me encontro nesta lamentável situação.
- Lamentável, realmente. Se você não mudar de vida e se não descobrir um modo de salvar-se, com certeza irá para Newgate.
- Para a prisão! - Maggie exclamou, horrorizada.
- Está sendo dramático, tio Angus - disse Justin calmamente. - E devedores, se não estou enganado, vão para Pentonville, uma prisão considerada modelo. Um belo exemplo da arquitetura vitoriana. É bem ventilada e ali os prisioneiros ficam durante horas e horas sozinhos refletindo sobre seus pecados.
Furioso, lorde Angus apontou o dedo para o sobrinho.
- Ouça bem, jovem mundano, você poderá ir para Newgate e ficará lá até seu julgamento.
- Parem com isso! - Maggie protestou. - Sei que éramos ricos, apesar de não termos grandes propriedades. E havia um fundo!
- Sim, havia. Não há mais.
Maggie olhou novamente para o irmão e ele encarou-a.
- Não é fácil acompanhar o príncipe e seus amigos - Justin alegou.
- É imperioso que Justin faça um bom casamento. Tenho investigado discretamente e creio ter encontrado a noiva certa para ele.
Com toda a certeza Angus estaria procurando para o sobrinho uma viúva com muitas propriedades e imensa fortuna. Entretanto, ela teria passado da idade de ser mãe. Nesse caso, Justin não teria herdeiros e o título iria para Angus e seus descendentes.
- Caros sobrinhos, nas atuais circunstâncias só posso sugerir um corte drástico das despesas. A começar com...
- Jacques Mireau - Maggie completou.
- Isso mesmo. O homem é um parasita.
- É um amigo, um poeta, jornalista, e será um escritor famoso - assegurou Maggie.
- Há comentários maldosos sobre você e seu amigo.
- A opinião dos outros não importa.
- Devia importar - Angus devolveu, cada vez mais exaltado. - Como se não bastasse o constrangimento que causou à família, casando-se com um policial!
- Nathan morreu jovem e não causa mais constrangimento a ninguém - Maggie retrucou, furiosa.
Era intolerável ouvir aquelas acusações. Quem perdera no jogo a fortuna da família não tinha sido ela. Em seguida, entendeu aonde Angus queria chegar.
- Como eu estava dizendo, a solução para vocês é um bom casamento.
- Diga-nos, querido tio, quem é a noiva escolhida para Justin?
- O casamento de seu irmão ainda está sendo negociado.
- Imagino que a noiva seja muito rica, agradável. Quanto à idade, estaria perto dos cinquenta? - Maggie provocou o tio. - Bem, deve haver um modo de sairmos desta situação sem obrigar Justin a fazer um casamento apressado e infeliz.
- Maggie! Não é meu casamento que traz esse brilho de prazer nos olhos de nosso tio - Justin falou com sarcasmo.
- Ingrato! - Angus exclamou.
- Lembre-se, prezado tio, Justin tem o título e é o chefe da família.
- Outros com títulos mais importantes apodreceram em Newgate.
- Querida irmã, tio Angus escolheu realmente uma pessoa rica, agradável e madura, mas para se casar com você.
- Comigo?! - Maggie quase gritou, atônita.
- Por que a surpresa, querida sobrinha? - Angus indagou, sério, mas apreciando discretamente o espanto e mal-estar de Maggie.
Ela estremeceu só de imaginar o tipo de homem que o tio havia escolhido como seu noivo.
Lorde Angus levantou-se e começou a andar de um lado para outro. Pouco depois, parou, voltou-se para a sobrinha e disse, abanando a cabeça:
- Você teve tudo que uma jovem podia desejar. Foi apresentada à corte com esplendor. Encantou a alta sociedade! Poderia fazer um casamento brilhante, mas, infelizmente escolheu para marido um plebeu, para vergonha da família!
- Casei-me com Nathan por amor, mas sei que isso foge à sua compreensão, tio Angus. - Na tentativa de controlar-se, Maggie cerrou os punhos com tanta força que as unhas feriram a palma das mãos. - No entanto, se está lembrado, o senhor foi hipócrita o bastante para exaltar as qualidades de Nathan por ocasião do funeral.
- Eu apenas disse a verdade. Seu marido tinha qualidades, mas era plebeu - tornou Angus calmamente. - O que importa, querida Maggie, é que você ainda é jovem e deve se casar novamente. Pois bem, eu estava no clube um dia desses e Charles, visconde de Langdon, perguntou por você. Ele ficou sabendo da morte de seu marido e mostrou-se disposto a cortejá-la. Langdon sempre a admirou. O que ele está disposto a oferecer pelo casamento será suficiente para pagar todas as dívidas de jogo, dará a Justin a oportunidade de se redimir e de limpar o nome da família. Dinheiro não é nada para lorde Charles. Ele tem propriedades aqui na Inglaterra, na Escócia, no continente e no Caribe. Graças a seu espírito empreendedor, multiplicou a fortuna herdada da família. E então, minha querida? Esta é uma oportunidade rara. A alta sociedade a aceitará de novo.
- Tio Angus, o senhor, certamente, não ignora que não dou a menor importância à "alta sociedade" e desprezo a opinião dos dândis. Quando Nathan morreu, prometi a mim mesma não casar novamente.
- Muitas viúvas fazem essa promessa. Mas isso é um sentimentalismo passageiro. Com o tempo, as pessoas mudam de idéia.
Justin pigarreou.
- Lorde Charles é um viúvo idoso. Acredito que esteja apenas procurando uma companheira.
Maggie voltou-se para o irmão, seus olhos dardejavam. Ele enrubesceu, desviou o olhar e levantou-se.
- Tio Angus, a idéia desse casamento é revoltante. Eu contraí as dívidas e devo pagar por elas. Se eu tiver de ir para Newgate, como ordena a Coroa, irei.
- Vocês dois são uns tolos! Que se danem! - Angus zangou-se. - Fiquei surpreso e muito aliviado ao receber a oferta de um homem como lorde Charles, especialmente não podendo oferecer-lhe a mão de uma jovem de boa reputação e de família digna.
- A família de que está falando também é a sua - Maggie retrucou. - E o senhor me desculpe, mas nunca flertei com homens casados da alta sociedade, o que muitos, inclusive o senhor, consideram elegante e de bom-tom. Até valorizam mulheres que agem assim.
- Você se casou com um homem de nível social muito inferior ao seu e não é mais uma jovenzinha. Queira ou não, minha querida, isso, sim, desvaloriza uma mulher no mercado matrimonial. E note que não mencionei o fato de você não ter fortuna. Portanto, encare a realidade. Você e Justin precisam de alguém para salvá-los da ruína e da prisão.
Maggie ficou em silêncio, refletindo. Havia alguma verdade no que o tio estava dizendo. Ela havia casado com um plebeu e nunca se arrependera disso. Os dois anos de felicidade que havia tido com Nathan valeram a pena e compensavam toda a solidão que suportara e teria de suportar no futuro. Jamais se importara com a vida modesta que Nathan lhe oferecera. Os conceitos de riqueza e elegância tinham morrido com seus pais. Depois de perder também o marido, passara a lutar pelos menos favorecidos e por justiça social, sem se preocupar com as finanças, certa de que o rendimento deixado pelo pai era suficiente para manter a casa e garantir sua sobrevivência e a do irmão.
Observando atentamente Justin, tão abatido, Maggie encheu-se de indignação. O pobre Justin, afinal, não era tão culpado como alegava o tio. Depois da morte do irmão, Angus aconselhara o sobrinho a fazer amizade com o príncipe, a frequentar o palácio e os mais altos círculos sociais. Justin, muito jovem, encantara-se com o esplendor da corte e dos palácios.
Ela amava o irmão e ambos sempre foram muito unidos. Só agora entendia que não tinham sido tão unidos como seria necessário, pois não fazia idéia de que ele contraíra tantas dívidas. Contudo, isso não devia surpreendê-la, uma vez que Justin acompanhava Eddy, duque de Clarence, neto da rainha Vitória. E Eddy, todos sabiam, tinha péssima reputação.
- A verdade é que vocês não podem pagar tantas dívidas. Receio que esta casa seja tomada imediatamente - sentenciou Angus.
- Podemos vender a fazenda que temos no norte - Maggie sugeriu.
Lorde Angus lançou a Justin um olhar acusador antes de dizer calmamente:
- A fazenda já foi entregue a credores há algum tempo.
Maggie sentou-se. Justin foi até ela, ajoelhou-se e segurou-lhe as mãos.
- Não se preocupe. Enfrentarei a prisão. Quem sabe uma velha desdentada, mas muito rica, irá me libertar! - Justin tentou falar com humor.
Passou pela mente de Maggie que devia mesmo deixar Justin ir para a prisão e casar-se com uma velha desdentada e rica. Porém, afastou o pensamento. Não. Angus nunca teria essa alegria. Justin iria casar-se com uma jovem que lhe daria muitos filhos e o tio jamais herdaria o título.
Dirigiu-se a lorde Angus.
- Meu tio, pode marcar um encontro com o visconde.
- Ótimo. Amanhã às dez. E, por Deus, não apareça vestida como uma bruxa. Nada de roupas pretas, velhas e sujas! - Ele curvou-se e, antes de sair, acrescentou: - Até amanhã, às dez.
Reinou um silêncio absoluto na sala. Pouco depois, Maggie e Justin ouviram a porta da frente se fechar.
- Não há necessidade de você fazer um casamento infeliz para salvar minha pele - disse Justin sem emoção. - Fui irresponsável, me afundei em dívidas e, embora a idéia não me agrade, mereço ir para a prisão.
- Não!
- Maggie, você não deve pagar pelos meus erros. E não pense que aceitarei a prisão calmamente. Conheço pessoas importantes, inclusive algumas viúvas...
- Não!
- Maggie, que droga! Não permitirei que se case com o visconde.
- Justin, não seja idiota! Tio Angus já consentiu esse casamento, pode ter certeza disso.
- Nosso tio não tem esse direito. Legalmente, o responsável por você sou eu.
- Justin, você me ama realmente? Está arrependido do que fez?
- Sim, eu a amo e daria tudo para reparar meus erros.
- Nesse caso, aceito o meu casamento com esse visconde.
- Por quê?
- Porque desejo muito ser tia de sobrinhos e sobrinhas. Se você se casar com uma mulher que não pode ter filhos, o título de nosso pai irá para tio Angus e seus herdeiros. Entende? Se você me ama, encontre uma boa jovem, seja ela rica ou pobre, plebéia ou nobre, e case com ela. Por amor. O mais depressa possível.
- Por Deus, Maggie, você não deve odiar tio Angus mais do que ama a si mesma.
Ela sorriu e procurou tranquilizar o irmão.
- Não se preocupe. Se esse tal visconde for horrível, conversaremos sobre o assunto amanhã. Porém, se ele for honrado e generoso, poderei ter o que mais quero no mundo: ajudar os necessitados. Você sabe como me sinto ao ver as condições assustadoras de certos orfanatos.
- Oh, Maggie, você vai se sacrificar por minha causa!
- Justin, lembra-se de quando eu me apaixonei por Nathan? Você era o grande barão, chefe da família e insistiu para que eu me casasse com o homem que eu escolhesse. Foi o que fiz e você me apoiou, quando quase todos foram contra mim. Bem, Nathan foi assassinado por um bandido e perdi o grande amor da minha vida. Sei que nunca mais amarei outro homem. Portanto, se esse nobre visconde que não conheço, mas que está interessado em mim, for amável e magnânimo, concordarei com o casamento. O amor para mim não importa. Seremos amigos. Já tive minha cota de felicidade com Nathan.
- Amigos, sim. Langdon é um dos homens mais decentes que já conheci.
- Você o conhece?
- Conheço. Ele não frequenta o círculo de Eddy, claro. É muito amigo da rainha e um dos poucos a quem ela faz confidencias. Ambos são viúvos há anos e um conforta o outro. Langdon também não é feio. É alto, digno e tem um porte altivo. Pensando bem, vocês dois farão um belo par.
Maggie sorriu.
- Eu o conhecerei amanhã.
- Não gosto disso.
- Nem eu. Mas também não gostamos de Newgate, não é mesmo? Além disso, começo a pensar que este casamento poderá resultar em inúmeras oportunidades. Você sabe do que eu sou capaz quando tenho o devido apoio.
- Maggie, não há compromisso nenhum entre você e o visconde, e só haverá se você quiser.
- Naturalmente. - Maggie levantou-se. Antes de deixar a sala, acrescentou: - Se você fizer esse tipo de dívidas novamente, não precisa se preocupar com Newgate. Eu mesma o jogarei do alto de um andaime, entendeu?
Sem esperar pela resposta, saiu para o hall, fechando a porta atrás de si.
- São nove e cinquenta e cinco - avisou Mireau.
Da mesma forma que Justin, ele havia tentado, inutilmente, dissuadir Maggie daquele encontro. Quando ela tomava uma decisão, nada a fazia voltar atrás.
- Justin já viu esse visconde? - Mireau perguntou.
- Já.
- E como ele é?
- Segundo Justin, ele é alto e digno.
Ouvindo um barulho, Mireau foi até a janela logo acima da porta de entrada da casa. Um coche luxuoso, puxado por dois soberbos cavalos negros acabava de estacionar junto da calçada.
- Os visitantes chegaram - ele informou.
Maggie aproximou-se da janela e olhou para baixo, tendo o cuidado de ficar atrás da cortina. Viu dois homens de pé, do lado do veículo, enquanto um terceiro abaixava os degraus revestidos de veludo.
Dois cavalheiros desembarcaram e um deles olhou para cima. Muito surpresa, Maggie constatou que não era velho, tinha cabelos castanhos, quase negros, era alto e forte e trajava-se com elegância.
- Ora, ali está um... belo homem! - exclamou Mireau.
- Tolice - Maggie murmurou, porém sentiu um agradável estremecimento.
Uma... excitação. Seria... desejo?
Por Deus, não! Ela repreendeu-se em seguida. Ainda assim...
- Será esse o visconde de Langdon? - Mireau questionou.
Interessada em ver melhor o recém-chegado, Maggie saiu de trás da cortina. O cavalheiro a viu e sorriu para ela. Havia naquele sorriso um toque de ironia e divertimento.
Outro homem desceu do coche. Também era alto, digno, elegante, tinha a cabeça toda branca e o rosto marcado por rugas profundas.
- Esse deve ser o visconde - Maggie sussurrou.
Iria se casar com um homem já bem perto da sepultura.
James Langdon analisou a casa detalhadamente. Nobres empobrecidos, concluiu. Tudo muito fino. No entanto, alguém seria vendido para emendar uma situação difícil. Isso o fez sentir desprezo por aquelas pessoas.
Conhecia o barão Justin Graham, já estivera com ele inúmeras vezes na corte, em bailes, chás e outras reuniões sociais. Também o tinha visto em outros estabelecimentos. Gostava de Justin, homem amável, simpático, tinha recebido excelente educação, era amigo de Eddy, duque de Clarence. O jovem barão tinha a habilidade de transferir seus conhecimentos para o amigo real, o que fazia com que Sua Alteza parecesse muito mais brilhante do que de fato era. Um homem decente.
Seu ponto fraco eram as mesas de jogo. Sentando-se a uma delas, perdia o controle.
Jamie sabia que Justin tinha uma irmã. Ouvira dizer que ela possuía uma beleza extraordinária e encantara a sociedade ao ser apresentada à corte. Por outro lado, havia comentários de que ela envergonhara a família, ignorando todos os aristocratas que tentaram cortejá-la e se apaixonando por um plebeu, simples policial, casando-se com ele. Isso, para muitos homens e mulheres com título, era imperdoável. O policial havia morrido e Margaret estava viúva.
Na época em que lady Maggie debutara e fora aclamada a bela da temporada, Jamie encontrava-se no continente, a serviço da rainha Vitória, por isso, nunca tinha visto a beldade. Bem, até agora. Vira, instantes atrás, lady Maggie à janela.
Realmente, era uma mulher de beleza impressionante.
Pena que Charles, subitamente, no último estágio de sua vida, decidira casar-se de novo e escolhera uma noiva com quase um terço da sua idade.
Na opinião de Jamie isso parecia absurdo. Mas amava o tio-avô e se ele pretendia casar-se para ter um filho e herdeiro do título, que Deus o abençoasse.
Durante anos Charles consultara o sobrinho-neto sobre as decisões mais importantes de sua vida e sobre todos os negócios. Porém, quando, de repente, decidira se casar, não lhe dissera uma palavra. Só depois de haver conversado com Angus Graham sobre a lady do seu interesse, marcara aquele encontro para se apresentar a ela e fazer o pedido.
- Homens da minha idade devem procurar uma companheira - Charles dissera ao sobrinho-neto. - Felizmente, tenho posição, um título e grande fortuna, o que me permite oferecer meu nome à mulher que meu coração deseja.
Então, lady Maggie era a mulher que o tio-avô desejava. Por sorte, ao que tudo indicava, estava livre e em má situação financeira.
O receio de Jamie era que o tio-avô não recebesse de lady Maggie o respeito e admiração que ele merecia. Afinal, o visconde sempre fora um homem digno e de grande valor.
- Meu coração está batendo forte, rapaz! - Charles falou com entusiasmo, segurando no braço do sobrinho. - Espere só para conhecê-la.
- Tio, o senhor conhece essa moça?
- Eu a vi algumas vezes.
- Ver não é conhecer.
- Sim, mas nos encontramos algumas vezes poucos anos atrás. Pode ser que ela não se lembre de mim. Lady Maggie era a bela de todos os bailes daquela temporada. Estava debutando, era muito jovem e todos os cavalheiros queriam dançar com ela, ou pelo menos gozar um pouco da sua companhia. Não podia haver jovem mais graciosa, mais gentil, culta e generosa. Jamais criticava alguém e não admitia comentários maldosos. Ah, rapaz, eu a conheço. E ela concordou em me receber... Como eu disse, meu coração está batendo forte.
- Não o deixe tão alvoroçado ou seu peito arrebentará - Jamie aconselhou o idoso tio.
Charles sorriu.
- Vamos entrar, rapaz. Parecemos dois colegiais aqui, parados na calçada.
- Sim, entremos.
Jamie estava curioso para conhecer esse modelo de virtude e beleza. Acompanhara o tio para protegê-lo, embora não soubesse ao certo como fazer isso. Charles podia despender sua fortuna como bem quisesse. De mais a mais, ele não encontraria uma mulher jovem e rica interessada em se casar com um velho, por mais distinto, bem-apessoado e importante que fosse. Casamentos, em geral, eram feitos por conveniência e no caso de lady Maggie, casar-se com o visconde era, definitivamente, mais do que conveniente. Com toda a certeza ela aceitaria o pedido para ter posição e riqueza. Como esposa de Charles, não haveria na Grã-Bretanha ou no continente, uma casa onde ela não fosse bem-vinda.
- Darby, se quiser, pode ir a um café ou banca de jornais - disse Charles a seu cocheiro. - Precisaremos de seus serviços dentro de uma hora.
- Ficarei esperando aqui mesmo pelo senhor e sir James. Não tenham pressa. Eu trouxe jornais comigo-respondeu o cocheiro.
Darby e todos os empregados do visconde o adoravam por ser gentil e generoso. Charles era religioso e acreditava que amar o próximo como a si mesmo era o maior dos Mandamentos.
Assim que Charles virou-se, Darby olhou para Jamie, a testa franzida. O rapaz entendeu a preocupação do cocheiro e assentiu com um movimento de cabeça.
Sim, ele protegeria o tio de um malfeitor, um inimigo da Câmara dos Lordes ou dos ardis de uma bela mulher.
Jamie sentiu a mão do tio sobre seu ombro e começaram a subir os degraus da casa.
- Eu gostaria que você fosse meu filho, mas orgulho-me de tê-lo como sobrinho. No caso de minha morte, caso eu não tenha um herdeiro deste novo casamento, você será...
- Sir, dançarei no seu casamento e rezarei para que tenha o tão sonhado herdeiro. Deve lembrar-se, tio, de que tem uma filha linda e jovem.
- Estou muito feliz com minha filha e a amo, mas nós dois sabemos como um filho é importante no mundo em que vivemos. Entretanto, se não houver fruto deste casamento, meu título e a maior parte de minha fortuna irão para você. - Charles franziu a testa. - Arianna me preocupa. Eu gostaria de vê-la casada com um bom homem, antes de minha morte. Ela precisa tanto de uma mãe. Há certas coisas que só a mãe pode ensinar a uma filha. Se lady Maggie aceitar meu pedido, Arianna aprenderá com ela o que é certo e errado. Há muito mais nesta vida do que riqueza e divertimento.
- Arianna é jovem, cheia de sonhos e fantasias. Com o tempo ela vai mudar - disse Jamie.
Charles parou no alto da escada.
A porta abriu-se e o mordomo, muito magro, usando um uniforme já gasto, mas impecável, revelando um homem empertigado, íntegro e cortês, saudou os visitantes:
- Bom dia, lorde Charles e sir James. Eu os acompanharei até a sala de visitas. Lorde Angus e o barão Graham os aguardam. Lady Maggie não tardará a descer.
- Obrigado - tornou Charles, apressado.
Entregando ao mordomo o sobretudo, o chapéu, as luvas e a bengala, encaminhou-se para a sala.
- O que faz o amor! - Jamie murmurou com um sorriso enquanto tirava o sobretudo.
Em seguida, apressou-se para juntar-se ao tio que já estava cumprimentando Angus e Justin.
- Por favor, sentem-se - convidou Angus. - Minha sobrinha não deve demorar. Parece que toda mulher considera uma prerrogativa feminina estar sempre atrasada. Receio que Maggie esteja um tanto nervosa, uma vez que este será o primeiro encontro de vocês.
- Ah, já nos vimos antes. É possível que lady Maggie não se lembre de mim, pois na ocasião estava cercada de admiradores, ansiosos por um instante de sua atenção.
Uma voz suave como seda, surpreendeu-os.
- Honestamente, sir, a ocasião à qual se refere foge-me da lembrança. Mas, agora que o vejo, sei que já nos encontramos antes. Alegra-me revê-lo.
Jamie, que se voltara ao ouvir a voz tão melodiosa, maravilhou-se com uma verdadeira visão de pé, à porta da sala. Achou incrível que uma mulher usando vestido de seda, com ampla saia armada, tivesse entrado ali no mais absoluto silêncio. Ela possuía uma beleza extraordinária, suas feições pareciam ter sido cinzeladas por um artista. A luz que se filtrava pela vidraça tornava seus cabelos brilhantes como chamas. Os olhos, do tom azul do cobalto, eram muito expressivos e pareciam ainda maiores naquele rosto delicado. Nos lábios cheios e rosados brincava um sorriso.
Maggie não notou Jamie. Tinha os olhos brilhantes fixos em Charles e caminhou na direção dele.
- Cara lady Maggie, os anos contribuíram para aumentar sua beleza - elogiou Charles, beijando as faces de Maggie.
- E tornaram-no ainda mais galante - ela devolveu alegremente. - Por favor, sentem-se, cavalheiros.
Só então ela voltou-se para Jamie.
- Tenho certeza de que não nos conhecemos, sir - disse, amável.
Jamie inclinou a cabeça e beijou-lhe a mão. Um calor irradiou-se pelo corpo de Maggie.
- Sir James Langdon - ele apresentou-se. - Lorde Charles é meu tio-avô.
- Muito prazer - disse Maggie com indiferença e voltou-se para lorde Charles.
"Interesseira. Você está atrás do dinheiro de meu tio", Jamie pensou, irritado, seguindo Maggie com o olhar.
- Aceita uma xícara de chá, lorde Charles? Ou prefere café? - ela indagou, amável.
- Café! Sim, aceito uma xícara.
Ela fez um gesto com a mão e Clayton apareceu.
- Traga café, por favor, Clayton - Maggie ordenou.
- Imediatamente, milady.
Não demorou muito, Clayton voltou com café, serviu-o e saiu, fechando a porta.
Charles olhou para Justin. Jamie sabia que o tio havia conversado inicialmente com Angus, mas Justin, era, afinal, o irmão de Maggie e quem detinha o título de barão. Esse fato, Jamie notou com humor, aborrecia Angus profundamente.
- Justin, lorde Angus, com certeza já o informou qual é a finalidade desta nossa visita.
- Sim, claro - Justin respondeu em tom grave. - E, embora eu o considere um cavalheiro excelente, um nobre íntegro, será minha irmã quem irá decidir se aceita ou não sua proposta. Afinal, ela estava determinada a não se casar novamente.
- Está certo - Charles concordou. - Sei que tem havido dificuldades na família e pretendo saná-las. - Ele voltou-se para Maggie. - Cara lady Maggie, você terá tudo o que desejar pelo resto da vida.
Jamie comprimiu os lábios. O tio mais parecia um colegial apaixonado e a jovem lady demonstrava ter domínio completo sobre si mesma. No momento ela estava sorrindo para Charles. Um sorriso bonito. Estaria ela sendo natural ou seria mestra na arte da sedução?
- Lorde Charles, admito que hesitei quando tio Angus colocou-me a par de sua proposta de casamento. Mas agora que nos encontramos novamente e me recordo de você, aceito sua proposta sem reservas.
Jamie rezou para o tio comportar-se com dignidade e não pular de alegria. Mas Charles ficou de pé e subitamente ágil para um homem já idoso, ajoelhou-se diante de Maggie e segurou-lhe a mão.
- Se depender de mim, você não irá arrepender-se de sua decisão, minha querida.
Ela fixou nele os grandes olhos azuis.
- Sei que jamais me arrependerei.
Charles ficou de pé, todo alvoroçado. Jamie observou lady Maggie atentamente esperando notar nela algo que a desmerecesse. Como se captasse a má intenção dele e suas desconfianças, ela dirigiu-lhe um olhar zangado e desafiador.
"Você pensa que sou uma qualquer. Acha que sou capaz de vender-me pelo ouro de seu tio. Pois pense o que quiser! Você não pode fazer nada para impedir que lorde Charles realize seu desejo."
- Estou perdido de amor por você - Charles exclamou.
"Tolo senil!", Jamie pensou.
No mesmo instante odiou-se por ter tido esse pensamento. Amava o tio e reconhecia que ele era um homem admirável e generoso. Disse em voz alta:
- Bem, devemos cuidar dos preparativos para o casamento. E quanto antes melhor, não tio? Como ambos já foram casados, os proclamas podem começar a ser lidos na igreja imediatamente. Em poucas semanas vocês serão marido e mulher.
- Sim, sim... Isto é... se Maggie concordar...
- O que você decidir, para mim está perfeito - Maggie respondeu docemente.
Ansioso para sair dali, Jamie levantou-se.
- Devemos ir, tio Charles. Temos muita coisa para fazer.
- Espere! - Charles disse, erguendo a mão. Seus olhos, porém, não se afastaram do rosto de Maggie. - Você não prefere uma grande festa de casamento? Talvez precise de mais tempo para comprar o enxoval. Minha filha está na França e pode encomendar lindos vestidos. E lorde Justin? O que tem a dizer?
A aparência de Justin não era das melhores.
"O que acha, amigo? Pensa que é fácil ficar aqui sentado, vendo a irmã se vender?", ele pensou e respondeu calmamente:
- Deixo a decisão por conta de Maggie.
- Prefiro um casamento simples - ela opinou. - Como bem lembrou seu sobrinho, somos viúvos.
- Mas não será de bom-tom fazermos um casamento apressado - observou Charles.
- Acho que lady Maggie está ansiosa. E ela tem razão. Por que esperar, meu tio? - questionou Jamie.
- Lorde Charles, aceitei sua proposta e deixo tudo mais a seus cuidados. Meu irmão e eu aceitaremos sua decisão, qualquer que seja ela. - Maggie olhou para Angus. - Sei que tio Angus está feliz e pensa como Justin e eu. Portanto, escolha a data que lhe for mais conveniente.
- Ótimo. Jamie e eu cuidaremos de tudo - afirmou Charles e, ainda exultante, beijou as faces de Maggie. - Minha querida, juro que a farei muito feliz.
Ele dirigiu-se para a porta e, antes de sair, voltou-se.
- Justin, Angus, muito obrigado! Mais tarde nos veremos.
Jamie curvou a cabeça e despediu-se dos dois cavalheiros. Em seguida segurou a mão de Maggie e beijou-a.
- Foi um grande prazer conhecê-la.
- O prazer foi meu - disse ela, porém sua voz não soou convincente. Controlando-se para não demonstrar que não simpatizara com o rapaz, acrescentou: - Estou feliz em saber que lorde Charles tem um sobrinho leal e afetuoso que defende seus interesses. Diga-me, você mora com seu tio?
- Oh, não! Tenho uma casa em Londres. Tio Charles mora em Moorhaven, uma grande propriedade à margem do Tâmisa, a pouca distância daqui. Também tem uma suíte no clube, mas quando quer, hospeda-se na minha casa.
Maggie puxou a mão que Jamie ainda segurava e olhou discretamente para o hall.
- Creio que seu tio está à sua espera.
- É verdade. Tenha um bom dia, milady. Até mais tarde, cavalheiros.
Ele afastou-se a passos largos sem olhar para trás.
- Que horror! - Maggie exclamou assim que se viu a sós com o irmão e Mireau.
- Tem razão - Justin concordou. - Ele não é apenas idoso. Está senil. Maggie, desista desse casamento.
- Desistir? Eu não estava me referindo a Charles, mas ao sobrinho, sir James.
Justin ficou surpreso.
- Jamie? Mas ele é um dos melhores sujeitos que eu conheço. Está sempre a serviço da rainha, seja na Inglaterra ou no continente. Jamie esteve no Exército durante alguns anos e no momento está trabalhando em um projeto especial para o império.
- Por que se importar com o sobrinho? - Mireau perguntou. - Lorde Charles está apaixonado e colocará o mundo aos seus pés.
- Sei disso. Ele é um homem decente e merece meu respeito.
- Digam o que quiserem, mas vendi minha irmã e sinto-me como se tivesse vendido minha alma - murmurou Justin deixando-se cair pesadamente numa poltrona.
- Pare com isso, Justin! Você não me vendeu nem vendeu sua alma. Gosto de lorde Charles. Tenho certeza de que nos daremos muito bem.
- De fato, ele tem inúmeras qualidades - afirmou Mireau.
- A idade dele vem a ser um ponto a meu favor. Sendo tão idoso, ele... bem, ele não espera que tenhamos um relacionamento... como casais jovens - Maggie apontou, enrubescendo.
- Será que a idade impede um homem de manter um relacionamento desse tipo? O que você acha, amigo? - Mireau perguntou a Justin.
- Acho que não. - Justin levantou-se, impaciente, e foi até a irmã. - Maggie, não se prenda a esse casamento por minha causa. Fui eu quem contraiu a dívida!
- Isso mesmo. É você quem deve se casar com o cadáver ambulante, Justin - tornou Mireau.
- Jacques! - Maggie e o irmão gritaram juntos.
- Desculpem. Eu só estava brincando.
- O assunto não é para brincadeiras - Maggie cortou. - Digo-lhes mais uma vez que me darei muito bem com lorde Charles. Ele é um homem decente, digno e está querendo apenas uma companhia. Serei sua amiga, uma boa amiga, leal e solidária, até o fim.
Mireau e Justin trocaram olhares em silêncio. Maggie suspirou.
- Vejo que não consegui convencê-los.
- Não mesmo - tornou Justin. - Maggie, não estrague sua vida. Desista dessa loucura.
- Está perdendo seu tempo, Justin. Vou me casar com lorde Charles, portanto, me ouça. É claro que será você quem irá tratar do acordo nupcial com meu futuro marido. Prometo ser uma esposa dedicada, mas faço questão de duas coisas: quero ter uma mesada generosa e não vou desistir de meus projetos sociais.
- Sir James, que zela pelos interesses do tio, certamente irá reprovar suas atividades sociais - lembrou Mireau.
- Por mim, sir James pode cair num lago e apodrecer no meio do lodo.
- Sei que você pretende alimentar todas as crianças pobres de Londres, Maggie, mas ponha-se no lugar da família do visconde - Mireau acrescentou.
- Eu não fui atrás de lorde Charles. Foi ele quem veio até aqui com uma proposta de casamento. Meu Deus, tudo isso, no fundo, não passa de um acordo financeiro. Pretendo ser uma esposa leal, bondosa e digna de confiança, mas quero ter alguma compensação.
Extremamente infeliz, Justin esmurrou a parede. Parecia ter envelhecido vários anos. Maggie correu até ele e abraçou-o.
- Justin, pare com isso. Afinal, esse casamento não é tão horrível nem é uma tragédia. Lorde Charles me proporcionará uma vida tranquila e terei tudo o que desejar. Ficarei muito contente se você parar de comportar-se como se tivesse assinado minha sentença de morte ou como se estivesse me condenando ao inferno. - Maggie virou-se, olhou para Mireau e finalizou: - Não haverá mais discussão, nem arrependimentos, culpa ou pena. O que está feito, está feito. Estou feliz. Vocês dois entenderam?
Justin endireitou as costas e saiu da sala.
Maggie ouviu-o murmurar:
- Droga!
Ela virou-se para Mireau.
- Não diga uma palavra!
Mireau, que já estava abrindo a boca, disparou:
- Eu só quero dizer: Parabéns!
Maggie virou-se e subiu a escada correndo.
Três dias depois, Jamie desembarcou em Caan, na costa da França. Alugou um cavalo e cavalgou durante duas horas até o colégio de Arianna.
Sendo uma jovem muito rica e pertencente à nobreza, recebia uma educação aprimorada. O traço marcante da personalidade de Arianna era seu espírito livre. A jovem sempre fora adorada pelo pai, que lhe fazia todas as vontades. Isso a tornara mimada e voluntariosa. Por outro lado, tinha um bom humor contagiante, era dotada de inteligência rara e mente inquisitiva.
O propósito da visita de Jamie era falar com a prima sobre o iminente casamento de lorde Charles.
Ao ser levada pela irmã Sara à presença de Jamie, que a aguardava no salão do elegante palácio que fora transformado em internato para moças, Arianna correu para abraçá-lo como se fosse ainda uma criança. Entretanto, ia completar dezoito anos e possuía uma beleza extraordinária. Era alta, magra, tinha olhos e cabelos castanhos, pele alva e perfeita. Arianna era tão delicada que chegava a parecer etérea.
Assim que a irmã Sara se afastou, Arianna disse sem rodeios:
- Sei que você veio até aqui para falar sobre o casamento de meu pai.
Jamie não escondeu sua surpresa.
- É incrível como as notícias correm. Não imaginei que estando do outro lado do canal da Mancha, você já estivesse a par do casamento de tio Charles.
- Por que meu pai não veio me dar a notícia pessoalmente?
- Ele queria vir, mas, vendo que ele não estava muito bem de saúde, consegui convencê-lo a desistir da viagem.
- Papai não estava bem? Ah, essa mulher com certeza pretende envenená-lo.
- Arianna! Que coisa horrível acaba de dizer! - Jamie repreendeu a prima, embora soubesse que essa atitude agressiva era uma forma de ela esconder sua mágoa. - Minha querida, você continua sendo a filha adorada de seu pai e ele virá buscá-la pouco antes do casamento. Ele e sua futura madrasta fazem questão da sua presença.
- Não deixe que meu pai se case, Jamie!
- Não posso fazer isso.
- Que idade tem essa noiva? Vinte e dois? Vinte e três? É claro que ela não gosta de meu pai. Deve ser uma rameira... uma meretriz!
Para sua surpresa, Jamie defendeu Maggie.
- Lady Maggie é filha de um barão, é muito correta e lhe asseguro que tem inúmeras qualidades, além de incrível beleza. A propósito, com quem você aprendeu esses termos vulgares? Com certeza não foi com as freiras.
- Ora, Jamie, não sou nenhuma ingênua. Este é um colégio religioso, as freiras são castas e puritanas, mas nós, internas, saímos destes muros de vez em quando.
- Aonde vocês vão?
- Fazemos compras, vamos a museus, cafés, restaurantes, vemos o trabalho de artistas novos, ouvimos os rapazes, principalmente os rebeldes, os de vanguarda... - Arianna suspirou. - Agora meu pai decidiu se casar com uma bruxa.
- Arianna, você não a conhece!
- Não a conheço, mas sei tudo sobre ela. Essa tal Maggie casou-se com um policial, ficou viúva e passa a maior parte do tempo na periferia de Londres, entre favelados. Também se julga no direito e no dever de acabar com os curandeiros, adivinhos e hipnotizadores. Quem ela pensa que é? Já vi homens e mulheres com dons especiais que operam maravilhas. Eles são capazes de falar com os mortos, de prever o futuro, de influenciar as pessoas.
- Mas há os vigaristas que exploram tanto os ricos como os pobres com mentiras e falsas promessas. Eu a aconselho a não julgar a mulher sem conhecê-la.
- Jamie, o que posso pensar a respeito de uma mulher jovem que decide se casar com um velho? Devo achar que ela está apaixonada? É evidente que não. Chamo a isso prostituição.
- Arianna, casamentos arranjados não são novidade, tampouco chocam a sociedade. Seu pai procurou o tio e o irmão de lady Maggie para tratar do casamento.
- A meu ver, isso é horrível! Imagine, meu velho pai, apaixonado por uma vadiazinha! Por favor, Jamie, não há nada que você possa fazer para impedir que ele cometa essa loucura?
- Nada. Nunca vi meu tio tão determinado. É o que ele mais deseja. Temos de respeitar sua vontade.
- Aha! Então você também desaprova esse casamento?
- Minha opinião não tem a menor importância.
- Engana-se. Papai costuma ouvi-lo, Jamie. Você é o filho que ele não teve.
- Tio Charles não me ouvirá. Ele quer se casar com essa mulher e ninguém o fará mudar de idéia.
- Homens! Como podem ser tão odiosos às vezes!
Jamie ficou em silêncio, embora concordasse com Arianna. Não podia esquecer aquele momento em que seus olhos e os de Maggie se encontraram. Lembrou-se também da agradável sensação provocada pelo contato da pele dela com a sua. Apesar de ser tão devotado ao tio, tinha de admitir que ela despertava nele pensamentos proibidos, sensuais.
"Uma mulher tão exuberante precisa de um homem jovem. Forte, cheio de desejo e paixão. Como eu", disse a si mesmo.
Que Deus o ajudasse. Por amor ao tio, devia enterrar tais pensamentos.
"Entretanto, como enterrá-los, se algo parece queimar dentro de mim sempre que vejo lady Maggie e toda vez que nos tocamos?", questionou-se. "Muito fácil. Não olhe para ela, não toque nela", concluiu secamente.
- Arianna, há casos de profunda afeição entre esposas jovens e maridos idosos. E vice-versa. Não é tão raro uma senhora idosa casar-se com um homem bem mais novo do que ela.
- Pode ter certeza de que um jovem só se casa com uma velha se estiver interessado no dinheiro dela - retrucou Arianna acidamente. - Tem de haver um jeito de impedirmos esse casamento.
- Você quer que eu convença seu pai de que ele é um idiota senil e não sabe o que está fazendo? Ou prefere que eu lhe diga para encarar sua união com a jovem lady como uma questão financeira e que a noiva não o ama? Arianna, seu pai é inteligente, quer ter uma esposa e escolheu lady Maggie. Eu sou a pessoa menos indicada para demovê-lo da idéia de se casar novamente. Acredito que tio Charles ainda acalenta a esperança de ter um filho para herdar o título e as propriedades. Como você sabe, no momento eu sou seu herdeiro. O que quer que eu faça para impedir que ele se case será visto como egoísmo de minha parte. Tio Charles irá pensar que não estou interessado na felicidade dele; que só quero garantir a minha herança.
- Creio que só eu poderei desmanchar esse noivado e acabar de vez com esse casamento absurdo.
- Arianna, você não irá fazer nenhuma bobagem. Ficará bem comportada neste colégio aguardando que eu venha buscá-la para a cerimônia. Trate de mostrar-se contente, pois isso aumentará a felicidade de seu pai.
- Não quero assistir à cerimônia.
- Seja razoável. Seu pai espera que você e lady Maggie sejam amigas.
- Nem pensar!
- Tenho certeza de que sua madrasta fará o possível para conquistar sua amizade.
- Duvido. Não a conheço pessoalmente, mas sei muito mais sobre ela do que você. Lady Maggie era lindíssima e na sua primeira temporada foi a debutante mais aplaudida e lisonjeada. Foi considerada a "Incomparável". Pois ela rejeitou todos os seus pretendentes e fugiu com um policial, imagine! Dizem que ele morreu no cumprimento do dever, porém eu não me surpreenderia se soubesse que ela havia planejado tudo. Talvez ela tenha caído em si e arrependida por estar casada com um plebeu, e, pior ainda, pobre, começou a sonhar alto. Com sua beleza poderia agarrar um nobre muito rico. Para mim essa mulher é má, é uma feiticeira, Jamie, e pode até matar meu pai.
- Arianna! - Jamie zangou-se. - O marido dela realmente morreu em serviço. Foi assassinado por um louco quando tentava prendê-lo. E de onde você tirou essa idéia absurda de que lady Maggie pode ser uma feiticeira? Quando seu pai me disse que estava interessado nela, fiz pesquisas sobre sua vida. Afirmo que ela é uma mulher correta e de grande valor. Mostrei o resultado de minhas pesquisas a seu pai e ele ficou ainda mais apaixonado por Maggie.
Jamie lembrou-se de que tinha encontrado nos jornais reportagens sobre as campanhas sociais lideradas por Maggie Graham, em distritos onde a miséria e o crime imperavam. Ele havia lido cartas que ela escrevera, denunciando falsos médiuns e charlatães que exploravam os ingênuos e crédulos. Não, essa mulher não era má, nem feiticeira. Era lutadora, determinada e corajosa. Sem dúvida também era imprudente para infiltrar-se no meio de bandidos, aproveitadores e inescrupulosos a fim de poder denunciá-los.
As palavras irritadas de Arianna interromperam os pensamentos de Jamie.
- Pois eu tenho ouvido coisas nada elogiosas sobre essa mulher correta e de grande valor, meu caro Jamie. Não irei ao casamento.
Jamie suspirou.
- Então não vá.
Impulsivamente, Arianna atirou-se nos braços do primo.
- Oh, Jamie, por que meu pai não está feliz comigo? Eu o amo tanto e posso fazer-lhe companhia, posso ajudá-lo, conheço os gostos dele, podemos conversar sobre os mais diversos assuntos e também viajar.
- Uma filha não substitui uma esposa, minha querida - Jamie falou suavemente. - Se você não quer assistir ao casamento, paciência. Seu pai ficará muito desapontado, mas conseguirei prepará-lo para receber o golpe.
Por um instante Arianna ficou pensativa. Depois disse:
- Mudei de idéia. Vou ao casamento, mas não quero fazer parte da cerimônia. Estou com saudade de casa. Será muito bom passar uns dias em Londres e na fazenda. Você voltará para me buscar?
- Naturalmente.
- Hoje não será possível fazer a travessia do canal da Mancha. Vou falar com a irmã Sara. Tenho certeza de que ela providenciará uma boa refeição para você e um quarto para esta noite.
- Muito obrigado. Estou faminto.
Arianna afastou-se, deixando Jamie entregue a suas divagações.
O fato de ver-se obrigado a permanecer na França o aborrecia. Gostaria de estar em Londres. Quem sabe teria a chance de acompanhar o tio a uma visita a lady Maggie...
O pensamento assustou-o. A mulher era noiva de Charles e em breve ambos estariam casados. Ela era tão encantadora. Havia nela algo maior do que sua beleza. Algo como fogo e tempestade, como desejo e fúria e... poder.
Ele flagrou-se imaginando a noiva depois da cerimônia nupcial, quando os convidados tivessem ido embora, quando as luzes estivessem bem suaves, as velas tinham sido apagadas. Ela havia trocado de roupa, soltara os cabelos que pareciam um halo vermelho e dourado emoldurando-lhe o rosto. A camisola de seda transparente revelava cada curva do corpo...
James cerrou os dentes, furioso consigo mesmo. Precisava acabar com aquelas imagens que insistiam em perturbar-lhe a mente.
Charles era um homem culto, educadíssimo, importante e milionário. Merecia ter a melhor das esposas. Lady Maggie que tratasse de ser leal e fiel. Senão...
Senão o quê?
Bem, a beldade teria de se haver com ele e não iria gostar nem um pouco do tratamento que iria receber.
Capítulo II
Com o passar dos dias, mais firme tornou-se a decisão de Maggie de casar-se com Charles. Ele era realmente um homem admirável, capaz e inteligente. Seu bom humor, suas atenções para com ela e, principalmente sua cultura e experiência de vida, deixavam-na cada vez mais encantada. As histórias que ele contava sobre o mundo, sobre suas viagens e seu trabalho na índia, a serviço da Coroa, eram fascinantes.
O visconde era modesto ao falar sobre si mesmo, eloquente ao discorrer sobre a grandeza do império e compreensivo quando Maggie se queixava, dizendo que o governo devia cuidar mais dos pobres e combater a violência.
Charles sempre concordava com ela e a deixara exultante ao expor que já estava com um projeto para acabar com as favelas do East End e construir ali moradias decentes para pessoas de baixa renda.
Da mesma forma que Maggie, o visconde amava os livros e ela se convenceu de que podiam passar horas muito agradáveis juntos.
Eles conversavam sobre as teorias de Darwin e dos novos pensadores do século XIX, falavam sobre hipnotismo, frenologia1, magnetismo e espiritualismo.
Charles levou Maggie a um concerto no Crystal Palace e ao teatro para assistir a uma impressionante versão da peça O Estranho Caso do Médico e o Monstro. Ambos foram também à Royal Opera House, onde o visconde tinha um camarote vizinho ao do príncipe de Gales e da esposa, a princesa Alexandra. Os dois passeavam pelo St. James Park e cavalgavam quando iam para o campo. Porém, Maggie tinha tempo suficiente para si própria. Noites dedicadas à leitura, tardes livres para reunir-se com seu pequeno círculo de amigos, dias reservados para o que ela chamava de "caridade".
Maggie havia conversado com o noivo sobre suas atividades, inclusive sobre suas visitas ao East End onde viviam miseráveis em condições subumanas, no meio de criminosos. Também não escondera que havia comparecido a sessões espíritas com a finalidade de desmascarar falsos médiuns e videntes que se mantinham explorando e enganando os que a eles recorriam, iludidos por suas falsas promessas e esperanças. Bem, mas isso os jornais tinham publicado e era do conhecimento de todos.
Charles lhe falara sobre sua única e amada filha, Arianna, que iria completar dezoito anos dentro de uns meses. No momento estudava num colégio de freiras, na França. Segundo o pai, a garota era rebelde e obstinada. Ele acrescentara:
- Arianna foi criada sem o carinho da mãe. Sei que ela terá em você uma boa amiga capaz de orientá-la e compreendê-la.
Ao ouvir isso, Maggie não ficara muito entusiasmada. Pressentira que não seria fácil conviver com uma jovem mimada e rebelde.
O outro membro da família do visconde era o sobrinho-neto, sir James, estimado como se fosse um filho. Jamie tinha sido militar, como o pai, já falecido, e ajudara a sufocar rebeliões ocorridas em vários pontos do império. Ele deixara o Exército, mas continuava a serviço da rainha, o que o obrigava a viajar pelo mundo. Charles preocupava-se com James. Achava que o sobrinho não temia o perigo e se arriscava demais. O tio só ficava aliviado e feliz quando o rapaz não estava levando mensagens de Sua Majestade pelo império ou não se encontrava em missão em algum porto estrangeiro.
Era James quem cuidava das numerosas propriedades da família. Charles amava a natureza, a vida saudável do campo, e queixava-se porque não podia mais supervisionar tudo, como sempre fizera. Para ele era triste ver os filhos de fazendeiros seus amigos e tendo perdido o interesse pelo cultivo da terra, partiam para as cidades em busca de diversão e emprego.
Naquela manhã, ao sair com Maggie para um passeio pelo parque, ele comentou:
- Temos, felizmente, no norte da Inglaterra e na Escócia, grandes fazendas de criação de gado bovino, suíno, ovino e com belos campos cultivados. Lembro-me da época em que houve uma fome gigantesca na Irlanda, mas que nos afetou. Tempos difíceis aqueles! Devemos estar alertas e não descuidar do campo. - Charles deu um suspiro. - Ah, mas o mundo está mudando. Não vai demorar muito as carruagens puxadas por cavalos serão substituídas por máquinas. Os tais automóveis estarão por toda a parte. A tecnologia tem nos dado muita coisa e também muito desassossego. Há radicais nas ruas, protestos aqui e ali, pobres invadindo casas, roubando e pilhando. Ah, bem... há ainda milhares de hectares de terra para serem cultivados. E Jamie tem feito um trabalho extraordinário. Paga salários justos, está sempre atento ao que há de melhor e mais moderno nos setores da agricultura e da pecuária. Mas tenho notado que meu sobrinho anda inquieto. Eu sei que Jamie não gosta de permanecer num lugar por muito tempo.
- Jamie está no continente, não?
- Sim, foi à França visitar Arianna para lhe dar a notícia do nosso casamento. Para Jamie essa viagem não é mais do que um pulinho. Sua paixão é viajar pelo mundo. Ele não vê a hora de voltar ao serviço de Sua Majestade.
Maggie sorriu, mas desejou de coração que sir James fosse mandado para a região mais remota da África tão logo voltasse da França.
Aqueles primeiros dias de noivado estavam sendo realmente maravilhosos. Maggie sentia-se como se tivesse encontrado um mentor. Um homem mais velho, mas ótimo amigo. Charles era extremamente gentil com Justin e apreciava demais a companhia de Jacques Mireau. Certo de que o escritor tinha talento, prometera ajudá-lo na sua carreira.
Tudo parecia tão tranquilo e confortável. Ainda que não estivesse exultante, Maggie considerava-se feliz.
Então, Jamie voltou. Infelizmente, a rainha não lhe atribuiu nenhum serviço e ele permaneceu na Inglaterra. Perto dele Maggie sentia-se "como uma mosca no mel". Não que ele dissesse ou fizesse alguma coisa inconveniente. O problema era a sua presença. Estava ali. Constantemente com o tio, perto dela. Observando-a. Analisando-a. Formando uma opinião a seu respeito. Uma opinião nada elogiosa, com toda a certeza.
Ah, o modo como ele a olhava! Como se ela fosse um cãozinho com pedigree. Ou um vira-lata fingindo ter um pedigree!
Era muito amável, educado ao extremo. Entretanto, toda vez que seus olhos se encontravam, a expressão de desprezo, que notava no semblante dele, deixava-a gelada. Mas a altivez de Maggie não permitia que ela demonstrasse o que sentia. Aprendeu bem depressa a aceitar a ajuda de Jamie quando descia de carruagens ou de escadas, mas crivava nele um olhar gélido, carregado de veneno.
Passadas duas semanas de noivado, Maggie foi até o East End, lugar horrível, fedorento, mal iluminado, sem água corrente e sem esgoto. Ali os moradores viviam como ratos. Quando tinham endereço certo, moravam várias pessoas em um único cômodo e dormiam sobre palha ou jornais velhos. Eram sujos, ignorantes e famintos. Alguns trabalhavam em fábricas, mas a maior parte deles fazia "bico" ou conseguia trabalho temporário. Havia mulheres que trabalhavam de dez a catorze horas por dia como lavadeira ou costureira para ganhar uns poucos xelins.
Como a região era praticamente esquecida pelas autoridades, acabara tornando-se também esconderijo de bandidos.
Maggie visitara o lugar pela primeira vez com Nathan. Apesar de plebeu, ele era filho de um militar consagrado cavaleiro, nascera e crescera na região de St. James. Seguira a carreira do pai e pertencia à Guarda Real. Certo dia fora chamado para dominar um tumulto e, a partir daí entendera que tinha vocação para ser policial e devia ajudar aqueles desafortunados do East End.
Sua dedicação àquela gente foi também o seu fim. Nathan fora ferido de morte ao tentar prender um homem enlouquecido. Maggie conseguira chegar ao local a tempo de encontrar o marido com vida. Antes de dar o último suspiro, ele lhe pedira para não odiar o criminoso. Então, em memória do amado marido, ela começara a lutar pelos pobres e desamparados.
Mireau, que tinha crescido com Nathan, tornara-se amigo de Justin e protetor de Maggie. Sempre a acompanhava nas suas visitas aos bairros da periferia.
Nessa tarde os dois chegaram à igreja de St. Mary, distrito de Whitechapel, numa carruagem de aluguel. Foram recebidos pelo padre Vickers que colaborava com Maggie no seu serviço de assistência social.
- Acabamos de receber uma generosa doação do visconde de Langdon, seu futuro marido - o sacerdote anunciou com um largo sorriso. - É suficiente para vestirmos todos os nossos órfãos.
- Isso é ótimo - disse Maggie. - As mulheres chegaram?
- Sim, estão todas no pátio. Ah, Senhor, se houvesse um meio de tirarmos essas mulheres das ruas! Em certos bairros a polícia conseguiu fechar alguns bordéis, mas isso não resolve o problema da prostituição. Agora há mais dessas infelizes nos becos. - Padre Vickers abaixou a voz para dizer: - Este bairro está cada vez mais perigoso. Há poucos dias houve um assassinato bem perto daqui.
Maggie tocou o ombro do padre.
- Isso não é novidade. Assassinatos são frequentes no East End.
- Não como este. O assassino cortou a garganta da mulher e arrancou suas vísceras.
- Que horror!
- Lembro-me de que meses atrás ocorreram assassinatos semelhantes e o assassino nunca foi encontrado. A polícia concluiu que os crimes eram cometidos por uma gangue de rua que assaltava as prostitutas e as matava - Mireau observou.
- O caso de agora é diferente. Acreditam que há um maníaco à solta. Preciso desesperadamente de sua ajuda, Maggie, e não quero que nenhum mal lhe aconteça. Por isso eu lhe peço, venha a este bairro só de dia e acompanhada.
- É o que eu faço, padre. E não se esqueça de que os policiais me protegem. Fique tranquilo. Agora vou para o pátio onde as mulheres me esperam.
A princípio, Maggie fazia suas palestras para um grupo bem pequeno de mulheres. Então começou a trazer de casa pão, queijo e leite para oferecer às suas ouvintes e seu público aumentou consideravelmente. Maggie descobriu que tinha o dom de se comunicar. Falava de modo simples e suas ouvintes a entendiam.
Nesse dia, seu propósito era falar sobre controle de natalidade. Depois da palestra, Maggie passou a falar sobre higiene e distribuiu pedaços de sabão que havia comprado com a generosa quantia que Charles lhe dera para ser usada com os carentes.
Terminada a reunião, as mulheres cercaram Maggie, abraçaram-na e lhe agradeceram pelos ensinamentos e os presentes. Por fim, o grupo se dispersou e Maggie foi ao encontro de Mireau e padre Vickers que costumavam esperá-la do lado da igreja. Ao se aproximar, viu que os dois não estavam sozinhos. Havia um terceiro homem com eles.
Seu coração sofreu um baque ao reconhecer sir James. Ele estava de braços cruzados e sua expressão era desaprovadora.
O quê? O insolente se julgava no direito de vigiá-la? Naturalmente ele pretendia contar a Charles tudo o que ela fazia. Sir James a estava espionando! De repente, seu rosto queimou de rubor. Ele devia ter ouvido sua conversa sobre controle de natalidade!
- Que surpresa, sir James. Eu não esperava vê-lo aqui - disse secamente.
Ele arqueou uma sobrancelha e parecia estar pensando: "Vejo que não foi uma surpresa agradável".
- Você é extraordinária, milady. Seus conhecimentos e suas atividades são ilimitados - ele observou.
- Lorde Charles e eu nos preocupamos com os problemas sociais.
- E eu me preocupo com sua segurança. Esta região é cheia de perigos. Como se não bastassem os ladrões, estupradores e assassinos que moram aqui, fiquei sabendo por padre Vickers que há um maníaco à solta.
- Há muitos policiais neste bairro.
- Os policiais têm especial cuidado com Maggie - Mireau explicou.
- Sim, mas só ficarei tranquilo quando levar vocês dois para Mayfair - James replicou.
Padre Vickers interveio, nervoso.
- Lady Maggie, é muito bom ter mais um protetor do seu lado.
- Sem dúvida - ela murmurou.
Jamie não perdeu tempo e perguntou:
- E então? Podemos ir? Isto é, se você tiver mais alguma coisa para fazer, posso esperar.
- Terminei por hoje. Obrigada, padre Vickers. Voltarei daqui a duas semanas.
- Daqui a duas semanas você estará em lua-de-mel - James lembrou-a.
- É verdade. Vou decidir sobre a data da próxima reunião e mandarei avisá-lo, padre -- Maggie falou suavemente.
Tendo Jamie segurando firme no seu cotovelo, ela atravessou a rua onde Darby os aguardava numa das carruagens Langdon. Mireau seguiu-os.
- Sua palestra foi muito interessante - Jamie observou quando todos se acomodaram na carruagem.
- Muito necessária, eu diria - ela devolveu.
- Que modo estranho de uma lady querer passar uma tarde de sexta-feira.
- Sinto muito se você não aprova o que eu faço.
- Eu não disse que não aprovo.
- Mas acha que não devo trabalhar aqui.
- Só acho arriscado uma lady vir a este distrito tão violento.
- Concordo - disse Mireau. - Por isso, faço questão de acompanhá-la. Conheço bem o bairro. Estive muitas vezes no East End com Nathan, o falecido marido de Maggie. Dickens também visitava o bairro com frequência. Isso está claro nos seus livros. No passado havia muito movimento no East End por causa das fábricas. Os tecelões flamengos que ali se estabeleceram fabricavam os tecidos mais finos do país. O mundo sofreu uma reviravolta com a indústria e a ciência. As coisas mudam... Às vezes para pior.
- Você trabalhava como voluntária quando seu marido era vivo? - Jamie perguntou a Maggie.
- Não.
- Ah... Suponho que seu marido a tenha proibido de fazer esse tipo de trabalho.
- Por que ele me proibiria? - Maggie indignou-se. - Nathan era um grande defensor dos pobres!
- Também era um policial e sabia melhor do que ninguém que uma lady como você poderia suscitar inveja, raiva e desejo daqueles miseráveis. Isso poria sua vida em perigo.
- Gosto do que faço, estou em paz com minha consciência e nunca tive problemas.
- Homens e mulheres, sejam eles nobres ou plebeus, devem escolher seu caminho. Maggie optou por ajudar os mesmos favorecidos, mesmo correndo riscos - Mireau apontou. - Mas além de trabalhar no East End ela se dedica a outras obras sociais. Maggie é uma mulher extraordinária.
- Jacques, pare com isso! - Maggie pediu.
- Oh, sim, ela é extraordinária - Jamie concordou.
Ela olhou pela janela e admirou as casas bonitas e as pessoas elegantes andando pelas ruas bem cuidadas. Que contraste com o East End! Como era possível haver numa distância pequena um mundo de diferença.
Os altos muros da Torre de Londres surgiram diante deles. Logo estariam em casa. Maggie continuou prestando atenção às ruas por onde passavam. Ficou aliviada quando a carruagem parou. Mireau saltou para a calçada antes de Darby descer da boléia. Maggie ia descer do veículo, mas Jamie lhe disse:
- Vamos dar uma volta. A sós.
Ela sentiu-se desconfortável.
- Uma volta? Para quê?
- Para conversarmos. - Nem bem acabou de falar, ele deu umas batidas no teto da carruagem e colocou a cabeça para fora. - Voltamos num instante, Mireau.
Darby tocou os cavalos.
- Aonde vamos? - Maggie perguntou.
- Não muito longe.
- Diga logo o que tem para dizer.
- Suponho que você queira se casar com tio Charles por causa de seu dinheiro.
- Você me insulta e insulta o homem a quem diz amar e a quem deve lealdade.
- Parece que este passeio vai ser mais longo do que imaginei.
- Afinal, o que você quer de mim?
- Quero a verdade. Vejamos: você estava determinada a não se casar novamente, mas quando Charles foi à sua casa, bastou um olhar e você se apaixonou por ele...
- Quando vi Charles lembrei-me dele. Na época eu era debutante. Seu tio era um homem muito gentil, inteligente, extremamente agradável. Eu já gostava dele.
- Sim, mas ele envelheceu. Não lhe ocorreu que restam a Charles poucos anos de vida?
- Por favor, sir James, está sendo grosseiro e desagradável.
- Estou sendo prático. Meu tio é um homem extraordinário e só quero o bem dele. Lamento, mas você terá de me ouvir.
- Não tenho alternativa. Estou presa nesta carruagem.
- Tem razão. Vou direto ao ponto. É óbvio que você aceitou se casar com Charles por causa de sua posição e seu dinheiro. Um casamento de conveniência. Sua conveniência.
Maggie sorriu.
- Sir, este casamento foi arranjado. Não me consultaram.
- Mas você podia não aceitar o pedido. Conheço seu irmão e sei que ele jamais a forçaria a fazer alguma coisa contra a vontade.
- Esta conversa já foi longe demais. Quero voltar para casa.
- Ainda não terminei. Como você disse, está presa nesta carruagem e não tem alternativa senão me ouvir.
Jamie virou-se e encarou Maggie, deixando-a tensa e com a sensação de que a carruagem, embora espaçosa, tornara-se pequena e apertada. Ele dominava todo o espaço. Seus ombros pareciam ter a largura do assento. Os olhos cinzentos brilhavam como prata. Maggie sentia que odiava aquele homem, ao mesmo tempo ele despertava nela uma emoção estranha e perturbadora. Ela baixou os olhos que pousaram nas mãos fortes, de dedos longos, apoiadas no castão de prata da bengala. Com perversa fascinação, viu-se imaginando sendo acariciada por aquelas mãos.
Alarmada com o rumo que haviam tomado seus pensamentos, virou depressa a cabeça e ficou olhando pela janela.
- Tem razão. Estou presa nesta carruagem. Mas posso gritar e jogar-me para fora deste veículo. Então a polícia virá e você terá de explicar o acidente a seu tio.
- Você não faria uma coisa dessas.
- Está duvidando?
Jamie deu um largo sorriso.
- Minha querida, antes de você encostar um dedo na porta para abri-la eu cairia sobre você. Mas vou terminar o que tenho para lhe dizer. Você vai se casar com lorde Charles por causa do seu dinheiro. Como tem vários compromissos, é obrigada a sair de casa. Mas deixe-me avisá-la, milady, nada de jovens amantes. E cuide bem de Charles para que ele viva muitos anos depois da cerimônia.
Foi tão grande o espanto de Maggie ao ouvir tamanha grosseria, que emudeceu. Seus olhos dardejaram. Ela ergueu as mãos, pronta para avançar naquele arrogante e arranhá-lo. Mas a carruagem deu um solavanco e ela foi jogada contra o peito dele. Ele amparou-a e por um momento ficaram abraçados. Maggie constatou, horrorizada, que estava achando delicioso aspirar o cheiro de loção pós-barba, sentir o calor daquele peito, ter aqueles braços musculosos envolvendo-a.
Afastou-se depressa, endireitou o corpo e, vermelha de vergonha ergueu a mão que havia apoiado nas coxas firmes. Por fim, conseguiu recostar-se no assento de couro. Esperou passar a torrente de emoções para dizer:
- Fique tranquilo. Não há nenhum amante em minha vida. Sei que você é o único herdeiro masculino de seu tio. Se tem medo de que eu gaste demais a ponto de comprometer sua herança, saiba que pedi a Charles apenas uma pequena quantia para gastos pessoais. Está tudo mencionado no contrato matrimonial que você deve ter lido.
- Milady, não dou a mínima importância a essa herança ou a esse contrato. Eu só quero avisá-la que não tolerarei que você engane meu tio ou o faça sofrer.
- Se já disse tudo o que tinha para dizer, por favor, deixe-me em casa.
- Imediatamente, milady. - Jamie bateu no teto da carruagem com a bengala.
Pouco depois, Maggie despedia-se dele.
- Você não vai pedir para eu não comentar com Charles que tivemos essa conversa? - ela indagou.
- Não. Faça o que você quiser. Desejo que você e Charles vivam felizes por muitos anos e que você lhe dê uma dúzia de filhos - Jamie respondeu, fixando em Maggie os olhos agora cinzentos como um céu tempestuoso.
- Passar bem, sir James. Não o convido para o chá porque entre nós deve haver franqueza e não quero que entre em minha casa. Também não lhe agradeço pelo passeio. Afinal, fui sequestrada. - Ela ia subir os degraus, mas virou-se e acrescentou: - Ah, peço-lhe que não me siga mais. Pare de me espionar!
Mireau, que ficara na calçada esperando-a, seguiu-a.
- Está tudo bem? - perguntou com um sorriso tímido.
- Sim. Tudo ótimo! Perfeito! - ela explodiu e subiu a escada correndo.
- Maggie! - Mireau chamou-a.
Ela parou e virou-se para ele.
- Está tudo bem, acredite.
- Ele não quer que você vá ao East End.
- Não é com ele que eu vou me casar.
- Talvez seja melhor diminuir suas atividades. Pelo menos até o casamento.
- Não seja ridículo! Não vou mudar nada do que planejei por causa daquele idiota! Nada! Entendeu?
- Entendi.
Ela virou-se e quando chegou ao segundo patamar correu para seu quarto, trancando a porta. Atirou-se na cama, fechou os olhos, mas não encontrou a paz esperada. Rezou para dormir e esquecer as lembranças que pareciam queimar em sua mente. Não eram as palavras ofensivas que a estavam perturbando, e, sim, as emoções que experimentara durante um breve e tentador momento.
E também o fato de estar prestes a se casar com lorde Charles. Um homem amável, um ser humano encantador.
Um velho com idade para ser seu avô.
Enterrou a cabeça no travesseiro e chorou como há muito não chorava.
Jamie estava no clube jogando tênis com sir Roger Sterling quando viu Darby do lado da rede tentando discretamente chamar sua atenção. Ele ergueu a raquete para o amigo e foi até o cocheiro.
- O que houve, Darby?
A expressão do fiel cocheiro era grave.
- Bem, sir, fiz o possível para seguir lady Maggie, mantive a carruagem a boa distância da dela e agora... não sei o que fazer.
Jamie franziu a testa. Afastara-se de lady Maggie, porém, para garantir sua segurança, mandara Darby segui-la toda vez que ela deixava sua casa e ia para os bairros perigosos da periferia. Tinha consciência de que se comportara de maneira abominável. Ofendera lady Maggie e imaginava que a havia deixado cheia de ódio dele. Com razão.
Estava ansioso para sair de Londres, mas só poderia viajar depois do casamento do tio. Iria para qualquer parte: Europa, Ásia ou América. Só não queria permanecer na Inglaterra.
- Ah, Darby, imagino que lady Maggie esteja planejando uma de suas incursões noturnas ao submundo. É isso?
- Exatamente, sir. Esta noite haverá uma sessão espírita e o médium diz ser o novo Messias. O senhor deve ter lido sobre ele nos jornais.
- Sim, li. Seu nome é Adrian Alexander.
- Esse mesmo. Várias pessoas já assistiram a sessões presididas por esse Alexander. A duquesa de Chesney jura ter entrado em contato com seu amado duque, falecido há alguns meses.
- Marian é encantadora, mas um pouco tola.
- Bem, sir, o que eu vim lhe dizer, é que fiquei sabendo por um dos criados do barão, que lady Maggie irá à sessão desta noite.
- É bem possível que ela não acredite nos prodígios desse Adrian Alexander e pretenda desmascará-lo. Li um artigo relatando que lady Maggie compareceu a uma dessas sessões ditas "espíritas" e descobriu que os "fenômenos sobrenaturais" não passavam de truques. Os "espectros" nada mais eram do que lençóis operados com barbantes amarrados sob a mesa.
Ele ficara sabendo que a falsa médium, madame Zenóbia, uma belga, ameaçara Maggie de morte, mas fora deportada.
Na opinião de Jamie, as novas "ciências" como frenologia, hipnotismo e espiritualismo, que floresciam em Londres desde a metade do século, eram tolices e, em geral, inofensivas. Mas havia homens e mulheres inteligentes e renomados que estudavam tais ciências ou pseudociências. Médicos começavam a estudar a frenologia. Tentavam descobrir pela estrutura do crânio de uma pessoa se esta possuía tendência para o crime ou se tinha algum desvio de comportamento.
Maggie, entretanto, não atacava os estudiosos da frenologia, nem mesmo os que se interessavam pelo hipnotismo e espiritismo com seriedade. Seu alvo eram os espertalhões que exploravam a boa-fé das pessoas para tomar-lhes dinheiro. Esses, ela estava determinada a desmascarar.
Daí a preocupação de Jamie.
- Lady Maggie marcou uma consulta com esse Adrian Alexander para esta noite, mas usou nome falso - disse Darby.
- Se não estou enganado, esta noite meu tio jantará na casa de lady Maggie - Jamie assinalou, pensativo. - Eles estão preparando a cerimônia do casamento e a viagem de lua-de-mel.
- É verdade, mas o senhor sabe que as visitas de lorde Charles terminam às oito horas. Ele se deita cedo. Quando eu levo lady Maggie para Moorhaven, a trago de volta a Mayfair antes das oito.
- A que horas é a tal sessão?
- Às nove.
- Onde?
- Perto de Whitechapel.
James enrugou a testa. A área era perigosa. Ali eram cometidos muitos crimes.
- Vamos, Darby. Não podemos ficar parados. Você tem o endereço correto?
- Tenho, sir.
- Ótimo. Então, contrate uma carruagem de aluguel para ir até esse Adrian Alexander, e diga que o sr. Richard Riley, irlandês muito rico, perdeu a querida esposa recentemente. A pobre Nellie afogou-se no lago da propriedade da família, perto de Cork. Conte uma história bem triste e, se preciso, implore para o médium me atender esta noite.
- Pode deixar. Contar uma boa história é comigo mesmo.
- Agora, vá. Irei para casa dentro de alguns minutos.
Darby afastou-se e Jamie foi ao encontro de Roger.
- Lamento, mas não posso continuar o jogo.
- Nos encontraremos mais tarde? Não se esqueça de que lorde Ainsworth planejou para esta noite algo especial, no lugar de costume.
- É uma pena, mas terá de ficar para uma outra vez - tornou Jamie, despedindo-se do amigo.
Voltou para casa sombrio. Embora achasse Percy Ainsworth muito engraçado, espirituoso e irreverente, não gostava de certos programas que ele fazia.
Também não estava nem um pouco animado para disfarçar-se ir a uma sessão espírita, fosse ela uma farsa ou coisa séria.
Já eram oito horas e lorde Charles parecia não ter pressa de voltar para casa. Maggie gostava de ouvi-lo contar suas histórias, mas naquela noite ele estava nostálgico e preferiu que ela falasse sobre suas atividades. Dez minutos depois ele bocejou, pediu desculpas e mandou chamar Darby.
Depois de Charles ter ido embora, foi Justin quem não fez menção de sair da sala. Aflita, Maggie não tirava os olhos do relógio.
- Você parece inquieta - o irmão observou. - Eu ia para o clube, mas desisti. Prefiro a sua companhia. E em breve você estará casada...
- Justin, que bobagem ficar em casa. Pode ir para o clube. Vou para meu quarto. Quero ler um pouco.
O irmão encarou-a, a testa franzida.
- Espero que você não tenha planejado sair agora à noite.
- Por que está dizendo isso?
- Outro dia James Langdon conversou comigo no clube e, muito delicadamente insinuou que eu não devia deixar você visitar as favelas da cidade.
Maggie suspirou.
- Quem ele pensa que é para fazer esse tipo de comentário?
- Ele se preocupa com a segurança da noiva do tio dele.
-Justin, nós dois temos vivido maravilhosamente respeitando a inteligência e a escolha um do outro.
- Reconheço que falhei como seu irmão.
- Não diga isso. Agora, vá para seu clube e fique tranquilo. Juro que não irei ao East End esta noite.
- Tem certeza de que ficará bem em casa, sozinha?
- Não ficarei sozinha. Clayton me fará companhia e Mireau está no sótão escrevendo.
- Nesse caso, boa noite. - Justin beijou a irmã e momentos depois saiu para a rua.
Assim que ouviu a porta se fechando, Mireau desceu a escada e foi à janela do segundo andar para certificar-se de que Justin tinha se afastado. Em seguida desceu para o andar térreo.
- Podemos ir?
- E Justin?
- Acabei de vê-lo tomando seu assento numa carruagem.
Maggie e Mireau saíram de casa pela porta dos fundos e foram até a outra rua onde tomaram uma carruagem de aluguel, fechada, e deram o endereço ao cocheiro.
Dentro do veículo, Mireau abriu uma maleta onde estavam os disfarces que iriam usar: para ele bigode, barba e uma capa preta de cetim; para Maggie peruca castanho-escura, chapéu e véu grosso, ambos pretos. Quanto ao vestido, ela usava um dos trajes de luto.
Quando acabaram de se arrumar Maggie olhou pela janela e viu os contornos da Torre de Londres. Havia dito ao irmão que não iria ao East End, mas já estavam quase lá. Não demorou muito, a carruagem parou. Eles desceram, Mireau pagou o cocheiro e por um momento ambos olharam ao redor.
Estavam na periferia, numa área mal-afamada, mas na frente de uma casa antiga, em estilo Tudor. Embora precisasse de consertos, era imponente e muito bonita, contrastando com a feiúra do lugar.
A porta abriu-se assim que eles se aproximaram do pórtico. Um homem muito alto, calvo, atendeu-os.
- Lady Walsing?
- Sim, sou Amy Walsing. Por favor, nada de títulos aqui, esta noite. Que importam honrarias terrenas e bens materiais, se não podem trazer meu querido Willie de volta?
- Ah, compreendo!
- O cavalheiro é seu irmão... Ben?
- Sim! Como o senhor sabe? - tornou ela, fingindo grande surpresa.
- Eu poderia dizer que foi minha intuição. Mas não estaria sendo honesto. Seu irmão, Ben, marcou a consulta, esta tarde.
- Naturalmente! Que tolice a minha!
- Tolice nenhuma, lady Walsing.
- Amy, por favor. Ou sra. Walsing, se preferir.
- Por favor, entrem.
Eles entraram em um hall muito grande onde havia uma escada larga de acesso ao andar superior.
- Estou tão ansiosa para conhecer o sr. Alexander - Maggie falou com entusiasmo.
- Adrian Alexander sou eu, sra. Walsing. É uma honra saber de seu desejo de me conhecer. - Adrian Alexander estendeu o braço indicando a escada. - Podemos subir. Os outros já chegaram. Primeira sala à esquerda.
Na sala estava uma senhora idosa, evidentemente de luto, muito elegante e sem véu.
Adrian Alexander apresentou-a.
- Sua Graça, lady Marian, duquesa de Chesney.
- Por favor, não seja tão formal - pediu a duquesa. - Aqui sou apenas Marian.
- Sou Amy - Maggie apresentou-se e apertou a mão da duquesa. - Este é meu irmão, Ben.
- Aquele cavalheiro é... Richard - disse a duquesa indicando um homem alto que estava de pé, do lado da lareira.
O homem, trajado de preto, com costeletas grisalhas, barba e bigode mal aparados, estendeu a mão enluvada para Maggie.
- Richard Riley - ele falou com sotaque de Dublin.
- Richard perdeu sua querida Nellie tragicamente. A pobre morreu afogada.
- Lamento, amigo - tornou Mireau.
- Bem, podemos iniciar a sessão. Jane é minha sobrinha e assistente. Ela me conduzirá a meu espírito-guia - disse Adrian Alexander apresentando aos quatro uma jovem usando túnica preta.
Jane tinha uma beleza exótica e seus olhos e cabelos escuros denunciavam que descendia de orientais.
- Boa noite - ela cumprimentou-os.
- Este é Oscar, o controlador - Alexander prosseguiu.
Um homem muito alto e forte, também calvo, com farto bigode negro, entrou na sala e ficou do lado de Alexander, de braços cruzados.
- Podemos iniciar a reunião? - indagou Jane com voz suave.
- Há lugares determinados? - quis saber a duquesa.
- Não. Os espíritos sabem a quem desejam se manifestar - Jane respondeu.
Maggie dirigiu a Mireau um olhar discreto. Os espertos médiuns com certeza queriam que tudo o que acontecesse ali tivesse aparência real.
Havia seis lugares ao redor da mesa coberta com uma toalha preta, sobre a qual havia apenas uma vela em um castiçal de estanho. Jane e Alexander sentaram-se de frente um para o outro. Maggie e a duquesa ficaram à direita e à esquerda de Alexander, respectivamente. Os cavalheiros sentaram-se um de cada lado de Jane.
- As luzes, Oscar, por favor - pediu Alexander.
Oscar apagou os lampiões e lâmpadas a gás. A sala ficou iluminada apenas pela vela.
- Por favor, vamos dar as mãos - continuou Alexander.
Todos obedeceram.
- Adrian, relaxe, tire todas as preocupações de sua mente e fixe o olhar na chama da vela. Observe-a, sinta seu calor. Esqueça este mundo e abra seu espírito para o outro - Jane orientou o médium.
A voz da jovem era agradável, clara e fluida como água corrente. Havia poder nessa voz. Mireau baixou as pálpebras. A duquesa parecia estar quase em transe. De repente, Alexander fechou os olhos e tombou para frente.
- Adrian, pode me ouvir? - Jane perguntou.
- Sim.
Ele ficou ereto na cadeira. Tinha os olhos virados, só a parte branca aparecia. Maggie sentiu um calafrio.
- Está sozinho, Adrian? - A voz de Jane era apenas um sussurro.
- Não.
- Quem está com você?
- Muitos... Estou andando em um túnel com outros... recém-falecidos.
- Para onde estão indo?
- Procuramos a luz. Está frio... queremos calor.
Maggie ficou atônita ao notar que começou a soprar um vento frio, embora as janelas estivessem fechadas. A sala tornou-se gelada, fantasmagórica e assustadora.
- Um dos presentes está disposto a ajudar esses sofredores? Se há alguém, diga.
- Pode ser eu? - Marian indagou, emocionada.
Mas Adrian continuou a falar.
- Alguém se aproximou de mim... está segurando meu braço. É jovem... bonita... tem cabelos loiros... suas roupas estão molhadas e ela está ansiosa. Seu nome... Nell...
- Será a minha Nell... Nellie? - o irlandês perguntou com voz embargada.
- Adrian? - Jane chamou-o.
- Sim... Nell quer se comunicar com o querido Richard. Está ansiosa... e me pede para dizer que ele não deve se culpar pela morte dela. Foi um acidente.
O irlandês sufocou um soluço.
- Há mais alguém? - a duquesa perguntou, aflita. - Meu marido também está aí? Por favor, se estiver, fale comigo.
- Toque - disse Alexander, sua voz agora grossa e retumbante.
- Toque? - Marian repetiu sem ter entendido o que devia fazer.
Alexander estendeu-lhe a mão.
- O duque, seu marido quer tocá-la... Está dizendo que sente sua falta e quer... despedir-se.
Nesse instante formou-se uma névoa branca entre eles.
- Oh, meu Deus! - A duquesa exclamou.
- Não interrompam o círculo - Jane avisou ao notar que a duquesa queria levantar-se. - Continuem de mãos dadas. Não assustem os espíritos.
A névoa condensou-se mais sobre a mesa e tomou forma de mão. Tinha até o anel ducal no dedo. Marian estava boquiaberta.
Para Maggie, aquilo foi demais. Soltou a mão que Mireau segurava, mas continuou com a outra presa na de Alexander. Com um movimento rápido agarrou a falsa mão que parecia flutuar sobre a mesa. Era feita de borracha e pendia do lustre, presa por um fio. Como tinha sido pintada com tinta fosforescente, brilhava no escuro.
- Tapeação! - ela gritou. - Duquesa, eles são farsantes como todos os outros. Só querem o seu dinheiro.
- Oh, não! Não! - Marian gemeu e levou a mão ao peito.
- A velha rameira vai ter um ataque! - Jane exclamou.
- E a outra vagabunda vai morrer! - Alexander gritou, enfurecido.
Richard, o irlandês, ficou de pé e protestou:
- Ora, ora, não há necessidade de chamar duas ladies refinadas de tais nomes! E para que se exaltar por causa de um pequeno truque?
Vendo que o gigante Oscar ia atacar o irlandês pelas costas,
Maggie gritou:
- Cuidado, sir!
Richard saltou para o lado e abaixou-se livrando-se do golpe a ele destinado. Em seguida ergueu-se e desferiu um murro no queixo do gigante, atirando-o sobre a mesa.
Maggie agarrou o castiçal com a vela, pronta para quebrar a vidraça, gritar chamando a polícia e em seguida desaparecer.
Porém, antes de chegar à janela, Jane agarrou-a pelo braço e falou em tom ameaçador:
- Haverá quatro cadáveres aqui esta noite!
- Você só pode estar louca! - Maggie acusou-a.
Logo percebeu que, louca ou não, Jane falava sério, pois segurava um punhal e estava disposta a matá-la. Maggie ergueu o castiçal e golpeou com ele a cabeça da mulher, deixando-a caída no chão, gemendo.
A duquesa só fazia gritar e chorar.
Subitamente um tiro ecoou na sala.
- Chega! - Alexander gritou.
O gigante ainda estava esparramado sobre a mesa, Jane continuava caída no chão, mas Alexander segurava uma pistola e detinha o poder.
- E então? Vai nos matar, Alexander? - Richard indagou. - É o que tem a fazer. Se um de nós escapar, você estará perdido.
- Tem razão, irlandês. Lamento, mas acho que vou começar com você. Não. Pensando bem, a vagabunda com o véu será a primeira.
Maggie susteve a respiração ao ver a pistola apontada para seu peito. Um punhal e uma pistola. Aqueles três não eram apenas farsantes. Eram assassinos! Olhou para Alexander, atônita demais para fazer alguma coisa. Só lhe restava esperar a morte com dignidade.
Passou-lhe pela mente que devia ter deixado um bilhete avisando Justin e Charles que estaria ali nesta noite. Também devia ter alertado a polícia. Agora ia pagar com a vida por sua determinação e orgulho.
De repente, o irlandês deu um grito e avançou em Alexander. Este disparou a pistola, mas a bala atingiu a parede. Maggie segurou na mão de Mireau e sussurrou:
- Temos de fugir. A polícia deve ter ouvido todo esse barulho e não tardará a chegar.
Sem esperar pela resposta, puxou o amigo na direção da porta e ambos correram para a escada. Quando chegaram ao primeiro patamar um outro homem careca como Alexander e Oscar, apareceu no hall e atirou neles, errando o alvo. Maggie ficou paralisada. Outro tiro explodiu, atingindo o homem careca. Ela gritou e olhou para trás, de onde viera o tiro. Viu o irlandês segurando um revólver ainda fumegante.
Nesse instante eles ouviram os apitos dos policiais.
- Venham! Depressa! Pela escada dos fundos! - Richard exclamou.
Maggie percebeu que ele tinha perdido o sotaque irlandês, o que achou estranho. Mas não podia cogitar isso no momento. Eles tinham de desaparecer dali o quanto antes.
- Vamos! Corram! - Richard continuou a dar ordens que foram prontamente obedecidas.
Quando chegaram à escada dos fundos ouviram o som de botas. Os policiais estavam entrando na casa.
Em poucos minutos os três viram-se em um beco fétido onde havia um cavalo negro amarrado a uma cerca.
- Montem! - ordenou o irlandês.
- Vamos montar os três em um cavalo? - Maggie indagou.
Impaciente, o irlandês ergueu-a e colocou-a na sela sem a menor cerimônia ou delicadeza e voltou-se para Mireau.
- Agora, você. Depressa. Sigam para a estação Aldgate. Eu os encontrarei lá.
Assim que Mireau montou atrás de Maggie, o irlandês deu um tapa na anca do animal que partiu, veloz.
Eles galoparam pela rua e desapareceram dentro da névoa e da escuridão.
Capítulo III
- O que é isto? - lorde Justin Graham gritou e puxou o príncipe Eddy para trás.
- Com os diabos! - praguejou lorde Percy Ainsworth ao ver passar bem rente a seu corpo um enorme cavalo negro.
A luz baça do lampião a gás e a neblina não lhe permitiram ver quem montava o animal. Ele só distinguiu um vulto trajado de preto.
Os três haviam bebido em excesso e acabavam de sair do pub, cambaleantes. O príncipe Eddy, duque de Clarence, filho mais velho do príncipe de Gales, sentia especial atração pelo East End. Era jovem, pródigo e generoso. Trajava-se com apuro e amava ser um dândi. Gostava de jogos de azar, de bebida, de mulheres e, segundo os mais íntimos, de homens também. Por não ser brilhante, era motivo de gracejos daqueles que o cercavam.
Cansado de ser bajulado pelas ladies da corte, sempre que podia, Eddy ia para o East End. Era cliente de um estabelecimento cujo proprietário, Luther Green, entendia que, mesmo os homens mais sérios e de posição elevada, precisavam de certo tipo de diversão.
O East End estava cheio do pior tipo de prostitutas: mulheres envelhecidas, sujas, desdentadas, feias e doentes. Muitas entravam nessa vida porque foram abandonadas pelos maridos, outras porque perderam o emprego ou ainda porque eram alcoólatras.
Havia também as jovens que chegavam em navios, vindas de outras terras, às vezes inocentes, sem conhecer o tipo de profissão que iria arruiná-las, torná-las velhas antes do tempo. Havia poucos empregos, o salário era miserável e essas jovens acabavam aceitando passar a noite com um cavalheiro, o que lhes rendia mais do que uma semana de trabalho árduo.
Eram essas moças, ainda bonitas, que Luther Green arranjava para seus clientes especiais. Os encontros aconteciam em cômodos privativos, nos fundos do pub. Para essa noite, ele e lorde Percy Ainsworth organizaram um espetáculo com dança do ventre e outras danças sensuais.
Justin não costumava ir ao East End e detestava o ambiente. Tinha uma amante, Louisa, uma das damas da princesa Alexandra, já viúva, perfeita para suas necessidades. O romance deles era discreto, nenhum dos dois pensava em casamento, tampouco exigiam um do outro fidelidade eterna.
Mas nesta noite...
Uma das dançarinas escolhidas por Luther Green era encantadora, tinha ar inocente, grandes olhos verdes, cabelos longos, negros, seios enormes e firmes. Depois do espetáculo a moça levara Justin para um dos quartos e ele não tardara a descobrir que de inocente ela não tinha nada. Induzira-o a beber demais e o levara à loucura. O resultado foi que ele deixou o estabelecimento cambaleante e sentindo-se mal por causa do uísque ordinário.
- Jesus! Você salvou minha vida, Graham! - Eddy exclamou. - Se não me puxasse, eu poderia estar morto.
- Que nada, Eddy, o cavalo se desviaria. Aquele é um animal de raça, muito bem treinado. Ele só nos deu um susto. - Justin levou a mão à testa. - Parece que minha cabeça vai estourar.
Sir Roger, outro amigo, conseguira manter-se sóbrio. Tendo observado o cavalo, comentou:
- Um belo animal, realmente. Bom demais para um lugar como este. O que teria trazido o cavaleiro ao East End?
Percy riu.
- Nós também somos gente fina demais para vir ao East End.
- O que eu quero dizer é que alguma coisa está acontecendo. Vocês não estão ouvindo os apitos dos policiais?
- Tem razão - Percy concordou. - E são muitos policiais, o que não é comum neste bairro, onde os crimes acontecem sem alarde. Vamos embora bem depressa. Meu coche está estacionado aqui perto.
- Lá está seu coche! - disse Roger.
De fato, a luxuosa carruagem com o brasão Ainsworth vinha se aproximando em grande velocidade. Porém, para surpresa de todos, quem pôs a cabeça para fora da janela foi sir James Langdon.
- Entrem logo! Está havendo um tumulto na outra rua.
Assim que os quatro subiram para a carruagem, o cocheiro tocou os cavalos a toda velocidade. As ruas começaram a se encher de policiais. Mais apitos cortaram o ar, homens corriam pelas ruas úmidas, nevoentas e mal iluminadas.
- Você chegou bem na hora, Langdon - Eddy aplaudiu. - Mas como apareceu por aqui e com o coche de Percy?
- Esta noite resolvi investigar a atuação de um médium que na verdade era um farsante. Saí da casa antes da chegada da polícia, pois não queria me envolver nessa história. Como a casa fica aqui perto e eu sabia que Roger, Percy e outros amigos estariam no pub de Luther Green, decidi vir buscá-los. Ainda bem que o cocheiro de Percy me conhece.
- Onde está sua carruagem? - Roger indagou.
- Mais adiante. Como eu estava dizendo, o tal médium era um charlatão e sua fraude foi descoberta. Houve a maior confusão. Eu não quis ser apanhado na minha própria carruagem - James respondeu. - E vocês, divertiram-se?
- As dançarinas eram incríveis, mas a bebida péssima. Estou com dor de cabeça - queixou-se Percy.
Justin, que não estava bem, manteve-se calado. Além da dor de cabeça, sentia-se desprezível. Divertira-se e gastara boa quantia, tudo por conta do que Charles lhe adiantara. Vendera a irmã...
E para quê? Para divertimentos como aquele.
Olhou para Jamie e perguntou a si mesmo o que um homem correto e bem-sucedido como Langdon poderia estar pensando a seu respeito. Nunca iria saber.
- Pare aqui - Jamie gritou para o cocheiro, tendo posto a cabeça para fora da janela. Recostou-se de novo no assento e explicou aos amigos: - Darby está com a carruagem na outra esquina.
Isso era mentira. Não havia carruagem nenhuma à espera dele. Viera à casa de Adrian Alexander a cavalo e cedera o animal a Maggie e Mireau. Agora iria caminhar até a estação Aldgate para encontrá-los.
Ele despediu-se, recebeu os agradecimentos e desceu do coche.
A noite tinha sido uma aventura, mas não um desastre.
Jamie chegou à estação Aldgate mais tarde do que esperava. O atraso não foi maior porque, ao passar pela rua, avistara a carruagem de Percy estacionada a duas quadras do pub de Luther Green e o cocheiro lhe dera uma carona antes da chegada dos policiais.
Seu receio era que Maggie e Mireau tivessem ido embora e abandonado Newton, o excepcional puro-sangue, presente de Edward, príncipe de Gales. Jamie pensou no herdeiro do trono com carinho. Conhecia-o bastante para saber que, além de entender de cavalos, ele era excelente estadista. A rainha Vitória, entretanto, não confiava no filho mais velho e lhe negava todo e qualquer papel oficial. Edward, em contrapartida, entregava-se aos prazeres da boa mesa, da bebida, do jogo, dedicava-se aos esportes, às viagens e mulheres. Apesar de casado, tinha seus romances, os quais a esposa, princesa Alexandra, tolerava, desde que fossem discretos.
Para seu alívio, avistou Newton. Do lado do animal estavam Maggie e Mireau. Ele aproximou-se e os dois não o reconheceram de imediato, embora estivesse sem o disfarce. Jamie desmontou e afagou o enorme garanhão negro.
- Ah, bom garoto, vejo que se comportou bem.
Mireau, que havia perdido o bigode, mas continuava com as costeletas, olhou bem para Jamie e falou, hesitante:
- Sir James...?
Maggie, com a cabeça ainda coberta com o véu, deu uma cotovelada no amigo.
- Temos de ir... Ben.
- Ora, Maggie, por favor, não subestime a minha inteligência. Eu os reconheci assim que entraram naquela sala.
- Diga a verdade. Você sabia que Mireau e eu íamos àquela sessão. Você continua me espionando! - Maggie acusou-o, erguendo o véu.
- Sabia.
- Sir James salvou nossa vida - Mireau lembrou-a.
Ela enrubesceu e baixou os olhos.
- Sim, você nos salvou. Obrigada por ter ido à sessão. - Havia um toque de humildade em sua voz. - A propósito, o que aconteceu a lady Marian? Será que está bem?
- Está. Pode ter certeza disso. Ela ficará maravilhada quando for alvo de tantas atenções. E contará inúmeras vezes a história incrível dos homens misteriosos e da mulher corajosa que a salvaram. Ela aparecerá em todos os jornais. Até nos da América. Marian irá adorar toda essa repercussão.
- Vou ver se encontro uma carruagem de aluguel. Sir James a levará para casa - disse Mireau afastando-se.
Não demorou muito, tomou um cabriolé que por ali passava e desapareceu dentro da noite.
- O que a leva a fazer essas loucuras? - Jamie indagou quando ficou a sós com Maggie.
- Loucuras? - Os olhos azuis arregalaram-se. - Alguém tem de desmascarar esses farsantes! Tem de fazê-los parar! Há charlatães enriquecendo às custas da tragédia e da dor alheia.
- Maggie, entenda que você se arrisca demais. Esses farsantes, cuja intenção é fazer fortuna explorando os ingênuos, especialmente se forem ricos, são perigosos. Eles não hesitam em matar quem tenta impedi-los de atingir seus objetivos. Esta noite você encontrou esse tipo de gente. Suponho que nunca lhe passou pela cabeça que iria ver-se frente a frente com verdadeiros bandidos.
Maggie estremeceu.
-Esta foi a primeira vez que me vi diante de gente tão perigosa e armada.
- Será que agora você compreende que não pode sair por aí, arriscando-se a levar um tiro ou uma facada? Também não deve continuar indo ao East End. Lembra-se do que padre Vickers nos contou? A pobre vítima foi degolada, teve o ventre dilacerado e órgãos extirpados.
- Conheço os perigos do East End. Meu marido foi morto lá. É em memória dele que procuro melhorar as condições de vida daqueles miseráveis. Não posso viver fechada e protegida, como se fosse uma flor de estufa.
- Pelo menos por algum tempo, tire umas férias. Nesses bairros miseráveis há também o perigo de se contrair doenças. Se você, por exemplo, pegar gripe, logo irá se recuperar. Mas para Charles uma gripe pode ser fatal.
- Tem razão - Maggie assentiu, sentindo-se desconfortável. Não havia pensado nisso. - Mas já é tarde. Continuaremos este assunto em outra ocasião. Vou ver se encontro uma carruagem de aluguel.
- Para que uma carruagem? Temos Newton.
- Montar escarranchada com estas saias não é lá muito decente - Maggie objetou.
- É tarde para pensar nisso, não acha? Já vi suas anáguas e babados.
Acabando de falar, Jamie ergueu-a e colocou-a na sela. Em seguida saltou para a garupa do animal. Por um momento se esqueceu de tudo, consciente apenas do delicioso contato do seu corpo com o de Maggie. Do calor dela... de sua vibração... seu perfume. Do véu no seu nariz.
- Você não precisa mais disto - disse ele arrancando a peruca, o chapéu e o véu da cabeça dela e atirando tudo ao vento.
- Espere! Preciso...
- Precisa de disfarce? Pensei que você tivesse aprendido a lição e não quisesse mais se envolver com farsantes - desferiu Jamie, tocando o cavalo.
Estava ansioso para deixar Maggie em casa, sã e salva, no entanto, cada fibra do seu ser desejava continuar cavalgando infinitamente abraçado a ela. Mais do que isso. Queria abraçá-la por inteiro, acariciá-la...
Ela o irritava, chegava a enfurecê-lo, ao mesmo tempo o deixava louco de desejo. Que homem não desejaria uma mulher tão fascinante? Além de beleza, ela possuía coragem, determinação, dignidade, paixão pelo que fazia.
Em dez minutos estavam em Mayfair. Quando chegaram em frente à Granam House, James desmontou e tirou Maggie da sela.
- Entre. Seu irmão em breve estará aqui.
- Como sabe? Você andou espionando Justin também?
- Não. Encontrei-o com Eddy e outros amigos.
- Ah. Obrigada, mais uma vez. Sua ida à reunião foi providencial.
Jamie ficou muito sério.
- Tivemos sorte desta vez. Se algo lhe acontecesse, meu tio morreria do coração. Pense na sua posição como esposa de um homem como ele.
- Admiro Charles, considero-o um homem excepcional, nobre, generoso e distinto. Serei uma esposa fiel e farei tudo ao meu alcance para que ele tenha uma vida longa e feliz.
- Muito bem. Boa noite, milady.
- Boa noite, sir James.
Por alguns segundos nenhum dos dois se moveu. Estavam tão perto um do outro que ele sentia o calor, a energia e a paixão que faziam parte de Maggie. Pensamentos loucos, proibidos, inundaram-lhe a mente. Ele imaginou um mundo em que seu tio não existia. Um mundo envolto em nuvens prateadas, no qual havia apenas duas pessoas que acabavam de se encontrar. Assim que seus olhares se cruzaram, sentiram uma força magnética atraindo-os um para o outro. Ele era livre e podia tomá-la nos braços, beijá-la com ardor, desnudá-la e mergulharem num oceano de sensualidade e paixão...
- Boa noite - Maggie repetiu com uma nota estranha na voz.
A nuvem prateada dissipou-se. Ela virou-se e começou a andar
- Eles me pagam! - murmurou Adrian Alexander, furioso.
Estava escondido em um beco escuro, agachado, com o ombro sangrando, esperando os policiais desaparecerem para sair dali e ir à procura de um lugar seguro.
Ele se considerava esperto, julgava-se conhecedor do caráter das pessoas e aqueles três o haviam arruinado numa noite. Dois de seus homens estavam mortos e Jane, sua amada Jane, fora levada para Newgate. Tudo por causa da lady com o véu. Mas ele iria vingar-se. Encontraria o falso irlandês, a lady e o irmão...
- Maggie!
Maggie ia entrar em sua casa, o lugar onde estaria segura, seu porto de salvação. Ela hesitou.
"Vá! Corra para dentro", o bom senso lhe dizia.
- Maggie! - Jamie tornou a chamá-la.
O tom imperioso na voz dele fez com que ela se virasse. Jamie não havia saído do lugar. O cavalo negro continuava do seu lado.
- Sim?
Ela odiou-se ao ver-se voltando para perto de Jamie. Que Deus a ajudasse. Não entendia todas aquelas emoções que a dominavam. Sentia raiva, arrependimento, anseio, admiração...
Mais do que isso.
Desejo. Um desejo ardente, como só havia sentido por um homem que já deixara este mundo. Um homem querido, mas morto. Ao passo que este...
Estava vivo. Muito vivo. Vibrante. Saudável. Sedutor. Ele não se movia, mas seus olhos a tocavam. E que olhar! Senhor, que fantasias esse olhar criava em sua mente.
Jamie continuou imóvel e em silêncio por mais um instante. Por fim, ergueu a mão e acariciou o rosto de Maggie, contornou-lhe o queixo e os lábios com o indicador. Subitamente eles ficaram colados um ao outro. Jamie tomou-a nos braços e beijou-a. Seus lábios apenas roçaram os dela, hesitantes, foi um beijo suave, mas assim mesmo, uma invasão devastadora. Num crescendo, o beijo tornou-se ardente, possessivo. Fogos de artifício explodiram dentro de Maggie, o coração disparou, todo o seu corpo vibrava de desejo e sensualidade.
Como queria aquilo! Como era maravilhoso estar no círculo daqueles braços, sentindo o corpo rijo, quente, palpitante, pressionado contra o seu. Ah, poderia ficar ali para sempre.
Ela julgava-se imune a tais sentimentos, acreditava que jamais voltaria a experimentar emoções tão incríveis. E agora, era como se tivesse renascido e se visse em um mundo mágico. James, esse homem, despertara nela um anseio, um desejo desesperado, abrasador, urgente.
De repente, ele soltou-a, deu um passo para trás e praguejou baixinho. Ela ficou olhando para ele, atônita, sentindo os lábios úmidos e quentes, o corpo trêmulo.
- Você é uma feiticeira! - ele murmurou.
O encanto desapareceu.
Maggie virou-se e caminhou até a casa, seu porto-seguro, sua salvação.
Durante vários segundos Jamie permaneceu imóvel, do lado de Newton, maxilares cerrados, os músculos tensos, tentando recuperar o equilíbrio emocional e mental. O que estava acontecendo com ele? Amava Charles e lhe era grato por tudo que fizera por ele.
Se acreditasse em sortilégios, diria que estava realmente enfeitiçado!
Entretanto, não podia negar que, naquela noite, algo na voz de Maggie e no seu olhar, no qual vislumbrara tormento e paixão, deixaram-no como que em transe.
Uma imprecação saiu de seus lábios.
Então ele a culpava? Não estava sendo justo nem digno. Ela lhe dera boa-noite e ia entrar em casa. Fora ele que a chamara de volta.
Bem, não podia negar que Maggie caíra facilmente em seus braços. Sem protestos. Com a agravante de que a comprometida era ela. O casamento aconteceria dentro de poucos dias. O que acontecera era uma prova de que uma mulher tão jovem não servia para Charles. Acabaria magoando-o, arranjando um amante.
Ou será que Maggie havia encontrado nele. Jamie, algo especial e único?
- Que presunçoso, hein, Newton? Que ego monumental! - disse ao cavalo. - Vamos para casa, amigo. Ainda tenho alguma coisa para fazer.
Montando o animal, afastou-se da Graham House e da mulher que o assombraria para sempre.
Havia tomado uma decisão. De início pretendera proteger lady Maggie, mas agora compreendia que o maior perigo que ela poderia encontrar no momento era ele. Até o casamento Darby teria de cuidar da segurança dela, sozinho.
Casamento.
Um gosto ácido na garganta quase o sufocou.
Felizmente, Maggie prometera ficar em casa, tranquila, até o casamento. Quanto a ele, só voltaria a vê-la na igreja e só chegaria perto dela para cumprimentá-la, depois da cerimônia.
- Finalmente, chegamos a Moorhaven! - disse Jamie a Arianna, forçando um sorriso.
Arianna não respondeu. Mantivera-se calada e distante durante toda a viagem de Caan a Londres. Quando desembarcaram, seguiram para Moorhaven numa carruagem de aluguel. Durante o trajeto ela animou-se e crivou o primo de perguntas. Quis saber sobre os últimos acontecimentos e o que estava causando sensação na cidade.
Assim que entraram na fazenda, ficou em silêncio novamente.
- Nunca vi seu pai tão feliz e bem-disposto. Por amor a ele, procure ser agradável e gentil - Jamie recomendou assim que desceu da carruagem com a prima.
- Jamais deixarei meu pai perceber como me sinto em relação à noiva que ele escolheu - ela retrucou.
- Você faz uma idéia completamente errada de lady Maggie. Pensará de outra forma quando a conhecer.
Arianna dirigiu a Jamie um sorriso glacial.
- Pois sim.
A sra. Whitley veio apressada receber os recém-chegados. Darby apareceu em seguida para cuidar da bagagem de lady Arianna.
- Ficará para o chá, sir James? - indagou a governanta. - Seu tio apreciará sua companhia.
- Hoje não posso, sra. Whitley. Por favor, avise tio Charles que estarei aqui amanhã cedo.
- Perfeitamente, sir.
Jamie despediu-se. Ia subir para a carruagem que ficara à sua espera quando Arianna chamou-o.
- Jamie!
- Sim?
A prima correu ao encontro dele e deu-lhe um abraço apertado.
- Muito obrigada! Eu não teria conseguido enfrentar tudo isso se você não tivesse ido à França me buscar.
- Agora você está aqui e dará grande alegria para seu pai. O casamento será amanhã. Comporte-se.
Jamie beijou a testa da prima e tomou seu assento na carruagem. Sentia uma urgência de sair da casa do tio. Estivera agitado durante toda a viagem da França à Inglaterra. Sentira-se desconfortável perto de Arianna de quem gostava e sempre cuidara como se fosse um irmão mais velho, divertido, paciente e tolerante.
Mas agora estava ansioso para ficar longe dela, para acabar logo com aquilo tudo! Talvez precisasse de um drinque. Inferno! Precisava de muitos, muitos drinques.
- Minha querida, esta é Arianna - Charles apresentou a filha a Maggie.
Era a véspera do casamento e o salão de Moorhaven estava todo enfeitado com festões, velas e flores. Maggie acabara de chegar no novo coche de Justin.
Clayton, com uniforme de gala, sentira-se orgulhoso de conduzir um veículo tão luxuoso, puxado por uma parelha de cavalos excelentes.
Finalmente, conhecia a futura enteada, Maggie pensou, desejando conquistar a simpatia da graciosa jovem. Mas não se sentia com a melhor das disposições.
O que mais a perturbava era o fato de não conseguir esquecer aquele estranho momento de intimidade que tivera com Jamie. Ele devia estar pensando o pior a respeito dela por ter consentido aquele beijo.
Um simples beijo.
Não, um beijo que havia sugerido tanta coisa. Um beijo que despertara nela sensações que há longo tempo se julgara incapaz de experimentar.
Mas o que acontecera não podia ser mudado e devia ser esquecido.
Havia, porém, outra questão atormentando-a. Todos os dias pegava os jornais rezando para não haver nenhuma especulação sobre quem seria a "mulher de preto" que estivera presente à sessão na qual um homem fora encontrado inconsciente, outro recebera um tiro no ombro e uma mulher tivera um corte na testa. Todos foram presos. Lady Marian, duquesa de Chesney, dera à polícia informações detalhadas sobre o ocorrido na falsa sessão espírita e dissera que não sabia quem eram as outras três pessoas que haviam estado presentes à sessão.
Adrian Alexander, o falso médium, não fora encontrado.
Maggie devia estar aliviada. Porém, continuava apreensiva, nervosa. Era nesse estado de espírito que se encontrava naquele salão luxuoso.
- Muito prazer, Arianna-disse, conseguindo dirigir à futura enteada um sorriso caloroso.
A moça olhou para ela de modo perscrutador. Na presença do pai não podia ser rude. Estendeu a mão com displicência e falou sem entusiasmo:
- Encantada.
De pé, com o braço ao redor dos ombros da filha, Charles estava radiante.
- Ela não é linda? - perguntou a Maggie, cheio de orgulho.
- Sua filha tem uma beleza extraordinária - Maggie respondeu com sinceridade.
De fato, Arianna era linda de chamar a atenção. Tinha cabelos negros; grandes olhos castanho-escuros, vivos, brilhantes; pele alva, perfeita.
- Vamos apreciar nosso chá? - Charles convidou e todos se sentaram.
- Seu pai me disse que você estuda em um colégio, na França - Maggie observou para iniciar uma conversa.
- Estudo.
- Quando fiz dezessete anos meu tio mandou-me para um colégio de aprimoramento social, em Paris, antes de ser apresentada à sociedade.
- Você gostou do colégio e de Paris? - Arianna indagou.
- Muito.
- A água para o chá esfriou - disse Charles, levantando-se. - Vou chamar a sra. Whitley.
- Sente-se, papai, eu irei.
- Não, querida. Você e Maggie precisam se conhecer melhor.
Ele saiu do salão e Arianna, inclinando-se para Maggie, indagou:
- O que estudou em Paris, lady Margaret? Bruxaria?
Maggie encarou a garota, perplexa.
- O quê?
Charles voltou e sentou-se de novo.
- A sra. Whitley é maravilhosa. Já vem vindo com chá fresco. E vocês, sobre o que conversavam?
- Eu estava perguntando a lady Margaret se ela estudou essas novas ciências quando esteve em Paris - Arianna respondeu com meiguice.
Maggie sorriu.
- Acabei de informar sua adorável filha que estudei essas ciências aqui em Londres. Também fui a algumas sessões na Itália quando meu pai era vivo.
- Ah, a Itália! - Charles inclinou-se sobre a mesa e segurou a mão de Maggie. - Na primavera faremos uma viagem pela Itália. Se até lá Arianna não estiver comprometida, poderá nos acompanhar. Minha filha, estou ansioso para que você se apaixone por um bom moço e se case.
- Sou muito jovem, papai. Casamento pode esperar. Eu adoraria viajar com o senhor... e lady Maggie.
A sra. Whitley entrou com o chá e avisou o visconde:
- Lorde Charles, padre Gaines acaba de chegar e deseja falar com o senhor. Ele lhe pede desculpas, mas tomará apenas uns minutos do seu tempo.
- Com licença, ladies. Há problemas de última hora que devem ser resolvidos. Por favor, tomem o chá. Não esperem por mim - disse Charles ficando de pé.
Assim que ele saiu, Maggie voltou-se para Arianna.
- Vamos conversar com franqueza. Não pretendo fazer o papel de sua mãe, se é isso que a preocupa.
- Minha mãe! Você deve ter quatro ou cinco anos mais do que eu.
- É verdade. Mas foram anos longos e difíceis.
- Ouvi dizer que você é muito ocupada.
Maggie franziu a testa. O que a garota sabia sobre ela?
- Não sei o que está insinuando.
- Diga-me, lady Margaret, você apaixonou-se por meu pai?
- Pretendo ser ótima esposa para seu pai.
- Até matá-lo, também?
Foi tão grande a indignação de Maggie que por pouco não esbofeteou aquela garota atrevida.
- Como você é desagradável! Não sei o que a pôde tornar tão amarga e maldosa. Pode me odiar até que seu veneno a sufoque, mas não ouse falar desse modo a meu respeito.
- O que pretende fazer? Bater em mim? Me envenenar? Vejamos, você mata meu pai, depois me mata e com certeza irá atrás de Jamie, que herdará o título e o dinheiro de meu pai.
Maggie não se dignou a responder. Levantou-se de cabeça erguida e falou com voz controlada:
- Por favor, informe seu pai que tive de voltar a Londres. Eu o verei amanhã, na cerimônia.
Saiu do solar enfurecida. Chegando ao pátio ficou desolada ao descobrir que Clayton não estava na carruagem. Naturalmente não poderia imaginar que ela quisesse voltar para casa tão depressa. Mas ele logo apareceu. Ajudou-a a entrar no veículo e observou:
- Tente entender, milady. A garota sente remorsos por não ter sido boa filha.
- Oh! É mesmo? - Maggie olhou para Clayton de um modo que o deixou vermelho.
- Perdão, milady. A senhora sabe, os criados comentam.
- Sei. Mas essa garota é... odiosa.
- É apenas uma criança assustada. Sente ciúme do pai. Tem medo de perdê-lo.
- Tentarei levar isso em consideração, Clayton.
A carruagem pôs-se em movimento. Maggie recostou-se no assento estofado e fechou os olhos. Não esperava ser recebida pela futura enteada de braços abertos. Mas nunca lhe passara pela cabeça que a garota fosse odiá-la daquele jeito.
Sentiu um calafrio e começou a tremer. Tinha sido comprada e o irmão recebera o pagamento. Era verdade que sentia afeição por Charles. Mas nem por isso deixara de reparar nas manchas senis que ele tinha nas mãos, nas rugas fundas que lhe marcavam o rosto, nos cabelos inteiramente brancos.
Também era verdade que não conseguia parar de pensar num homem mais jovem cujo toque, ainda que leve despertava nela um fogo que parecia queimar e consumir cada parte de seu corpo.
Não era de se admirar que Arianna a odiasse tanto.
Apaixonara-se por lorde Charles? Por certo que não.
Pretendia ser uma boa esposa? Sim. Lorde Charles dera novo rumo à sua vida e merecia dela todo o carinho.
Sonharia com sir James Langdon? Não, não permitiria que isso acontecesse.
Esqueça James, esqueça os sentimentos que ele desperta em você.
Pense em lorde Charles. Charles, Charles, lorde Charles.
Não importava que ela não estivesse apaixonada. Havia muitos casamentos de conveniência em que os cônjuges viviam bem. Outros sentimentos contribuíam para o sucesso de um casamento: respeito, fidelidade, carinho e desejo.
Desejo...
Maggie colocou a cabeça para fora da janela.
- Por favor, Clayton, pare. Quero caminhar um pouco. Depois vou tomar chá em uma confeitaria.
Chá. Que nada. Uma boa dose de xerez seria melhor. Talvez várias doses.
Clayton obedeceu. Eles estavam a pouca distância do Palácio de Buckingham e por ali havia diversas lojas, cafés e confeitarias.
- Devo esperá-la, milady? - Clayton indagou, não escondendo sua preocupação. - Posso ficar lendo o jornal.
- Não. Vá para casa. Preciso de algum tempo. - Ela tocou o rosto do velho. - Sentirei sua falta, Clayton.
- A senhora estará muito bem, milady. Terá a boa sra. Whitley para servi-la.
- Ela é muito severa. E formal.
- Como deve ser uma boa governanta.
- Prefiro o nosso querido mordomo com quem posso tomar chocolate na cozinha e fofocar. Agora, vá. Ficarei muito bem sozinha.
- Posso esperar, milady.
- Há anos ando em carruagens de aluguel. Conheço o caminho de casa.
Clayton suspirou. Sabia que não adiantava insistir. Subiu para a boléia e tocou os animais.
- Maggie! Querida lady Maggie Graham!
Maggie havia encontrado um lugar aconchegante, em uma área ajardinada, e tomava chá com bolinhos de aveia. Quando ouviu seu nome, virou-se. Cecília, uma amiga, acenava-lhe com a mão.
Cecília e Maggie eram da mesma idade e haviam debutado juntas. Na primeira temporada, Cecília conhecera o conde Eustace de Burgh, da Cornualha, com quem se casou poucos meses depois.
Cecília estava linda como sempre. Tinha olhos e cabelos castanhos. Usava um vestido lavanda de musselina e um chapeuzinho de tom mais escuro realçava o rico tom dos cachos que lhe emolduravam o rosto delicado.
- Cecília, que prazer! Como vai?-Maggie levantou-se, muito feliz de rever a amiga.
Cecília estava sempre alegre, era franca, honesta, gostava de aventuras, de se divertir, e não rompera com Maggie quando decidira se casar com Nathan. Fazia mais de um ano que ambas não se viam.
- Maravilhosamente bem! - Cecília respondeu e sentou-se à mesa, ficando de frente para a amiga. - Terminei de arrumar a casa de Londres para o outono. Depois do Natal iremos para o continente. Decidimos passar o inverno na Espanha. E você, hein? Li nos jornais que vai se casar com o visconde de Langdon! Posso imaginar a sua emoção.
- Charles é um bom homem.
- Ora, Maggie, "um bom homem"! Charles é um dos homens mais importantes do reino. Casamento é um contrato, uma conveniência, algo para a perpetuação dos herdeiros. Você acha que as pessoas se casam porque estão loucamente apaixonadas? Tolice. Ah, sim... Você se apaixonou por Nathan. Ele era, realmente, lindo, mas um homem lindo é uma coisa, casamento é outra, muito diferente. Você devia ter casado com um homem como Charles e mantido um romance com Nathan.
- Cecília! - Maggie protestou. - Eu amava Nathan.
- Sim. Tudo bem. A nossa querida rainha Vitória adorava seu marido, Albert. Por isso, temos de seguir o exemplo dela e sermos virtuosos. Mas ela engana a si mesma. O filho, Edward, é um libertino. O neto, Eddy, não é melhor do que o pai, além de não ser inteligente. Todos nós fingimos que essas coisas não acontecem, mas por baixo...
- Muito do que dizem é boato. Mas, diga-me, você e Eustace estão bem?
- Eu diria que nosso casamento é perfeito. Ou quase...
- Que bom. Você ama seu marido?
Cecília hesitou por um instante. Depois fez um movimento afirmativo com a cabeça.
- Maggie, é claro que o amo. Eustace é magnânimo, me enche de presentes. Nada me falta.
- Parabéns. Fico feliz por você.
- Temos dois filhos, você sabe. E chega. O mais velho, de três anos é o herdeiro, o caçula, de dois, é reserva.
- Cecília! Que modo de falar de seus filhos!
- Oh, eu os adoro! Mas você sabe que sempre fui muito prática. - Cecília inclinou-se sobre a mesa com um estranho sorriso nos lábios: - Eustace prefere outras companhias.
- Ele tem amantes?
Cecília deu uma risadinha.
- Não, boba. Ele prefere... a companhia de homens. Eu sempre soube disso, claro. Nosso casamento foi arranjado. Bem, fizemos a coisa certa, temos dois herdeiros legítimos. Agora Eustace se diverte como quer. Eu faço o mesmo. Nos damos muitíssimo bem. Nunca brigamos. - Cecília olhou para os lados e segredou: - Eustace me disse que os rumores sobre o príncipe Eddy são verdadeiros.
- O jovem príncipe também...?
- Está chocada?
- Bem, Justin está sempre com o príncipe. Eles são muito amigos.
Cecília riu e abanou a cabeça.
- Seu irmão e outros amigos de Eddy têm preferências, digamos, costumeiras.
- Estou aliviada.
- Você é preconceituosa?
- Não! Só espero que meu irmão encontre a mulher dos seus sonhos, se case e tenha herdeiros.
- Justin é belo como um príncipe de conto de fadas. Deve haver dezenas de moças suspirando por ele. Por falar em herdeiros, ocorreu-me que o visconde de Langdon tem só uma filha. Com certeza quer ter um filho. Dê-lhe esse herdeiro o mais depressa possível, Maggie. Depois, viva como quiser. Já pensou em ter um amante?
- Oh, Senhor! É claro que não!
- Ora, vamos, Maggie! Você é tão jovem! Quando debutamos encantou a sociedade. Foi a incomparável da temporada, não pode viver afastada de tudo. Tenho uma idéia. Saia comigo esta noite. Vou levá-la a um lugar especial.
- Não posso. Eu...
Maggie interrompeu o que ia dizer. Na mesa vizinha estava um homem lendo um jornal. Abaixou-o naquele instante e olhou para ela.
Era Jamie.
Ele ficou de pé.
- Lady Graham! Que prazer encontrá-la aqui! E sua amiga, claro.
- Sir James Langdon! O prazer é meu! - Cecília exclamou, olhando Jamie da cabeça aos pés, de modo ousado. Estendeu-lhe graciosamente a mão enluvada. - Já nos conhecemos, sir James
- Perdoe-me. Minha memória não é muito boa.
- Cecília, lady de Burgh. Nos conhecemos quando eu era solteira. Sou filha de sir Cavanaugh.
- É verdade. Perdoe-me. É um prazer revê-la.
- Que coincidência você e lady Maggie se encontrarem na véspera do casamento dela e lorde Charles. Você deve estar muito feliz por seu tio.
- Muito feliz, sem dúvida.
- Eu estava justamente tentando convencer Maggie a sair comigo esta noite.
- E lady Maggie está hesitante?
- Ela não quer saber de se divertir - Cecília queixou-se.
- Meu tio também prefere ficar em casa. Vai se deitar cedo para estar bem-disposto no dia do casamento.
Os olhos de Cecília ganharam um brilho de centelhas.
- Então, quem sabe você queira sair conosco.
- Cecília, eu não disse que ia aceitar seu convite - Maggie contrapôs, sentindo-se desconfortável.
Por outro lado, o modo como Cecília olhava para Jamie a estava deixando irritada. Com profundo mal-estar, percebeu que estava com ciúme.
- Aonde vocês pretendem ir?
- Não quero ser rude com sir James, mas você estava propondo um programa para ladies.
- É verdade. - Cecília sorriu para Jamie de modo tão ostensivo que deixou Maggie escandalizada. - Bem, certamente nos veremos outras vezes, sir James. A partir de amanhã minha amiga Maggie fará parte da sua família.
- E eu conheço seu marido, milady, o que torna ainda mais fácil e mais agradável a nossa reaproximação.
O sorriso de Cecília ampliou-se. Maggie teve vontade de esmurrar alguém. Ficou de pé.
- Cecília, se vamos sair à noite, devo me vestir para a ocasião. É melhor eu ir para casa.
- Ótimo - Cecília respondeu sem olhar para a amiga. Continuava de olhos fixos em Jamie.
- Não creio que você deva sair esta noite - Jamie observou.
- Será apenas um passatempo inocente - Cecília assinalou.
- Mas é a véspera do casamento de lady Maggie.
- Esta é mais uma razão para eu me divertir - Maggie alegou.
Nesta noite, o que ela queria mesmo, era ficar em casa descansando. Porém, depois de ouvir a observação de Jamie e ver o modo escandaloso como ele e Cecília se olhavam, decidiu aceitar a sugestão da amiga.
Despediu-se e deixou os dois se olhando como se estivessem hipnotizados.
Fazia algum tempo que Arianna andava em seu quarto de um lado para outro.
Adorava o pai e não aceitava aquele casamento insensato. Como um homem tão inteligente podia cometer tamanha tolice?
Ela não poderia viver com aquela mulher. Lady Margaret era má, Arianna percebera isso no olhar dela. E a oportunista nem procurava disfarçar. Era altiva, segura de si, dava-se ares de importância, como se fosse realmente uma grande dama.
Devia haver alguma coisa no passado dela capaz de comprometê-la. Havia o tal Mireau que ainda não conhecia. Seria amante de lady Margaret? O pai falava sobre o escritor com admiração. Mas o pai estava apaixonado e era ingênuo demais para enxergar certas coisas.
Arianna sentou-se na frente do espelho da penteadeira e ficou por um instante olhando para a própria imagem. Diziam que ela se parecia com a mãe, que era linda e falecera muitos anos atrás. Não se lembrava dela, mas vira seu retrato. Era essa imagem que guardaria para sempre no coração. Nenhuma outra mulher usurparia o lugar de sua mãe. Muito menos uma bruxa, uma vadia.
Levantou-se decidida a não assistir ao casamento. No dia seguinte, quando todos estivessem ocupados, fugiria de Moorhaven.
Clayton entrou na sala para avisar que lady de Burgh havia chegado. Maggie desistira de sair e foi falar com a amiga que a esperava no coche.
O cocheiro, um jovem alto de ombros largos, ajudou-a a subir no veículo. Ela sentou-se do lado da amiga e ambas se abraçaram.
- Cecília, lamento, mas não posso sair com você. Estou exausta - Maggie desculpou-se.
- Oh, por favor, não me desaponte! - Cecília protestou. - Vamos jantar apenas.
- Está bem, mas quero ir a um restaurante sossegado perto daqui.
O coche começou a andar.
- Já fiz reservas em um restaurante veneziano, exclusivo. Agora vamos nos arrumar.
Cecília abriu uma valise e foi entregando a Maggie alguns objetos: uma peruca ruiva, um chapéu com plumas, uma capa e uma máscara.
- Para que tudo isto?
- Vamos nos fantasiar.
- Temos de usar fantasia para jantar? Não gosto...
- Ora! Pelo menos uma vez na vida faça uma loucura. Você vai se casar com um velho e não terá oportunidade de se divertir
Cecília começou a arrumar a amiga sem lhe dar tempo de protestar. Maggie ficou boquiaberta ao ver que a máscara era cravejada de pedras preciosas. Só então se lembrou de que o conde de Burgh era riquíssimo.
Terminando sua tarefa, Cecília colocou na cabeça uma peruca preta e no rosto uma máscara com pingentes de pérolas.
O coche parou.
- Chegamos. Agora as capas. Confie em mim. Ninguém a reconhecerá - disse Cecília.
Ambas desceram do coche. Estavam muito longe de Mayfair. Diante delas erguia-se um prédio em estilo georgiano. Cecília entrou em um pórtico e Maggie seguiu-a. Foram recebidas por uma mulher ruiva, usando vestido de cetim cinzento, enfeitado com rendas.
- É a sra. Peabody? - A ruiva perguntou.
- Sim - Cecília respondeu. - Esta é a sra. Bird.
- Branson irá acompanhá-las até sua mesa, sra. Peabody.
Branson era um negro enorme e usava apenas uma saia de palha que ia da cintura até a metade das coxas. Ele levou-as a um salão. No palco uma mulher cantava.
- Cecília, que lugar é este? - Maggie indagou baixinho.
- Um clube noturno. Este é o salão de baile. Viva um pouco esta noite. Amanhã você estará entrando no reino da eternidade e da morte.
Maggie quis sair dali, mas Branson estava do lado dela. Ele conduziu-as para o outro lado do salão e chegaram a um corredor. Por uma porta entreaberta Maggie viu um homem corpulento e uma mulher com roupa de odalisca recostados em almofadas, fumando ópio.
- Uma casa de ópio! - Maggie murmurou, escandalizada.
- Só fuma quem quer. Você já experimentou?
- Não!
Eles continuaram a andar e chegaram a uma saleta onde havia uma estante de livros. Branson apertou um dispositivo e a estante afastou-se, revelando um hall com uma escada que levava a um porão.
- Francamente, Cecília! - Maggie protestou.
- Maggie, se você não está se sentindo bem, ficaremos apenas alguns minutos - Cecília prometeu. - Mas, por favor, dê a si mesma a chance de se divertir.
Apreensiva, mas também curiosa, Maggie desceu os degraus de acesso a um salão onde pessoas fantasiadas jantavam. No fundo havia um palco.
Branson levou-as até a mesa a elas reservada, puxou gentilmente as cadeiras para que elas se sentassem e afastou-se. Um homem branco, também usando saia de palha, apareceu e serviu-lhes champanhe. Maggie virou-se e quase gritou ao ver a mulher que servia a mesa vizinha. Tinha cabelos longos, pretos, usava saia de palha e mais nada! Os seios grandes tinham os mamilos pintados de vermelho.
- Não fique escandalizada - disse Cecília ao notar a reação da amiga. - Aproveite para admirar os rapazes. Todos têm corpo atlético. De amanhã em diante você não terá outra oportunidade como esta.
- Dispenso semelhante oportunidade!
- Tome o champanhe e relaxe. Daqui um pouco virá o jantar. Asseguro que a comida é deliciosa.
Maggie provou o champanhe. Era excelente. Cecília, que a observava, riu.
- Maggie, você fica encantadora com esse ar de garota escandalizada.
- Cecília, este lugar funciona ilegalmente.
- O salão de baile é perfeitamente legal. Acalme-se. Não haverá batida de polícia esta noite.
- Como pode ter certeza disso?
Com um estremecimento, imaginou as manchetes nos jornais:
Noiva do ilustre lorde Charles, visconde de Langdon, presa em casa suspeita.
- Olhe discretamente para a mesa do canto. Aquele é o príncipe de Gales - Cecília sussurrou.
- O príncipe herdeiro? - perguntou Maggie olhando para o homem de peruca negra, comprida e cacheada, estilo Charles II e máscara de couro preto, com nariz enorme.
- Não o encare. Aqui todos são discretos.
- Como você sabe que é o príncipe de Gales?
- Eu o conheço bem.
- Você teve um caso com ele?
Cecília sorriu.
- Eustace prefere o filho. Eu gosto do pai.
O garçom seminu colocou um prato de ostras sobre a mesa.
- Ostras! Alimento dos amantes. Garanto que lorde Charles vai querer uma boa porção de ostras amanhã - Cecília provocou a amiga.
- Cecília, você fala como se os momentos de intimidade de um casal fossem a coisa mais importante da vida.
- Shhh! O show vai começar.
O salão ficou na penumbra. A cortina do pequeno palco ergueu-se e no centro dele apareceu uma concha gigante que se abriu lentamente ao som de uma citara, revelando em seu interior uma mulher de cabelos ruivos, muito compridos. Um tambor começou a vibrar e dois dançarinos saltaram para o palco. Tinham o tórax nu e da cintura para baixo usavam malha justa. Seus movimentos eram sensuais. Eles tentavam seduzir e raptar a mulher. Brigavam para possuí-la. Era uma coreografia indecente.
Maggie tentou desviar o olhar. Não conseguiu. Continuou presa à sua cadeira, assistindo, boquiaberta, àquela total devassidão.
Ao final do espetáculo mais dançarinos e uma dançarina surgiram no palco aumentando a orgia. Os assistentes começaram a se levantar. Alguns desapareceram nas pequenas alcovas com cortina que havia dos lados do salão. Percebendo um movimento às suas costas, Maggie virou-se. O cavalheiro com a máscara negra de nariz enorme e com peruca à Charles II aproximara-se da mesa e estava oferecendo a mão a Cecília.
Ela sorriu, segurou a mão dele e levantou-se. Maggie teve vontade de gritar. Que Cecília não se atravesse a ir embora com o mascarado, quem quer que fosse ele, e deixá-la sozinha naquele salão.
Alguém roçou em seu ombro e antes de ela virar-se, um dos dançarinos apareceu do seu lado e com gestos convidou-a para acompanhá-lo.
- Não, obrigada... Não - ela murmurou.
Ele foi persistente. Ficou girando na frente dela.
- Não. Eu disse não!
Outro dançarino bem jovem aproximou-se.
- Não! - ela gritou.
Levantou-se e empurrou o rapaz. Ele puxou-a de encontro ao peito musculoso, suado. Maggie entrou em pânico. Certamente aqueles homens supunham que ela estava ali à procura de fantasias eróticas. Desejou esfolar Cecília viva. Mas a amiga havia desaparecido com seu parceiro atrás de uma das cortinas.
Apavorada, começou a gritar. O dançarino que a segurava, cobriu-lhe a boca com a mão. O que estava do lado ergueu-a e ia carregá-la dali, mas outro mascarado, também com peruca estilo Charles II, surgiu na frente deles.
- Sosseguem, amigos, a lady estava à minha espera.
Os dançarinos passaram-na para os braços do estranho. Ele tirou do bolso várias moedas e entregou-as a um dos homens.
- Repartam, bons rapazes. A lady vem comigo.
- Ei! Não vou com ninguém. Quero ir embora! Já! - Maggie explodiu.
Segurou os ombros do estranho e deu-lhe uma forte pancada com o joelho.
- Pare com isso, Maggie!
Ela reconheceu a voz e os olhos que a fitavam dardejantes atrás da máscara.
Jamie.
Louca para sair daquele lugar, correu para a porta. A escada estava escura, mesmo assim, conseguiu subir os degraus bem de pressa. Chegou a um patamar e tateou no escuro para encontrar a porta. Ficou semi-paralisada quando um homem alto e forte a agarrou pelos ombros e puxou-a para trás.
- Não! Não! - gritou aterrorizada, certa de que estava sendo arrastada de volta para aquele antro de perdição.
Capítulo IV
- Fique quieta! Eles estão vindo! - Jamie pediu em voz baixa.
Jamie.
Mais uma vez ele aparecera para socorrê-la. Ela ouviu o som pesado de passos. Outras pessoas subiam a escada, vindo em sua perseguição.
- Maggie, finja que está comigo e que a minha companhia lhe agrada, assim nos deixarão em paz - ele recomendou. - Neste lugar a regra do jogo é sentir a emoção da caçada e da força. Se a dama não aceita a companhia do cavalheiro e protesta, ou grita, eles supõem que ela quer ser perseguida e levada à força para ser, por fim, subjugada, conquistada. Está entendendo?
- Sim. - Maggie fez um leve movimento com a cabeça. Sua mente trabalhava febrilmente.
Como Jamie viera àquele lugar? Será que acabara aceitando o convite de Cecília?
O som de passos estava bem próximo. Jamie passou o braço ao redor dos ombros de Maggie e procurou na parede o dispositivo que fazia com que a porta secreta se abrisse. Encontrou-o. Entraram na saleta e seguiram pelo corredor mal iluminado. Evitaram entrar no salão de baile, de onde vinha o som de risadas e aplausos.
A mulher ruiva trajada de cinzento, continuava à porta.
Maggie passou por ela e quando saiu para a calçada e começa a correr.
- Pare, Maggie! Você pode ser assaltada. Estas ruas são perigosas. Minha carruagem está do outro lado.
Ela parou. Sentia-se gelada, trêmula e infeliz. Aceitou o braço que Jamie lhe ofereceu e caminhou apoiada nele até a carruagem dele.
No minuto seguinte eles seguiam para Mayfair. Jamie tirou à máscara, a pesada peruca e ajudou Maggie a livrar-se também da fantasia. Então recostou-se no assento de couro.
- Fiquei aliviado ao ver que você não estava gostando do tipo de diversão que madame Bridey proporciona a seus clientes. Por que apareceu por lá esta noite? Visitar esses antros é mais um de seus trabalhos? Parece que sua vida é cheia de segredos.
- Não seja ridículo! Fui àquele lugar enganada. Cecília me disse que íamos jantar em um restaurante veneziano exclusivo.
- Percebi que você estava ansiosa para sair dali.
- Estava mesmo! Quando entramos no prédio achei tudo muito estranho. Cecília explicou que ali era um clube.
- Sim, mas você viu que espécie de clube é aquele, não viu? Sabe o que os frequentadores buscam ali, não sabe?
- Não. Quem deve saber é você. Notei que estava familiarizado com o lugar.
- Sim, já estive lá algumas vezes. Afinal, sou homem.
- Vocês, homens, são criaturas desprezíveis. Acham que podem ser libertinos e infiéis. Querem ter total liberdade e esperam que a sociedade aceite e desculpe suas indecências. No entanto, não perdoam os deslizes de uma mulher.
- Parece que você está ressentida porque a tirei daquele antro. Mas sabe o que teria acontecido se eu não estivesse lá?
- Sei. Eu teria quebrado o nariz de um daqueles idiotas - Maggie falou com ímpeto, mas percebeu com horror que tinha os olhos rasos de lágrimas. Culpa do champanhe que havia tomado muito depressa.
Jamie abanou a cabeça.
- Você sabe que não seria tão fácil. Os dançarinos são fortes. E, como eu disse, para eles aquilo é um jogo. Quanto mais a dama resiste e luta, mais estimulante o jogo se torna.
- Tem razão - Maggie falou brandamente.
Compreendeu que não devia descarregar sua raiva em Jamie. O que acontecera naquela noite lhe servira de lição. Tinha de aprender a não ser tão obstinada.
- Você nos seguiu até o clube? - ela perguntou.
- Isso ficou bem evidente, não?
- Então você esteve no salão o tempo todo?
- Sim. Eu estava sentado à mesa do príncipe de Gales.
- E me deixou passar por tudo aquilo! Deixou que aqueles homens me agarrassem! Fiquei apavorada. Seu... rato... patife... bastardo! - Maggie avançou em Jamie, mas ele segurou a mão dela.
- Você não devia ter ido àquele lugar. Belo comportamento para quem pretende ser uma esposa dedicada e fiel.
- Ainda não me casei. Não sou esposa de ninguém, seu imbecil. E eu não teria saído com Cecília se você não tivesse falado para eu ficar em casa, como se fosse meu dono.
- Então a culpa é minha? Ora, você foi porque quis!
- Espere! Esta tarde, quando saí da confeitaria, deixei você e Cecília juntos. Então vocês combinaram um encontro no clube dessa madame Bridey. Com certeza sua intenção era levá-la para uma das alcovas, mas ela preferiu o príncipe. Acertei?
- O quê? - Jamie gritou, incrédulo e apertou os pulsos de Maggie com força.
- Não se faça de santo. Vi muito bem como vocês se olhavam na confeitaria. Enfim, não tenho nada com a sua vida.
Jamie inspirou fundo para acalmar-se.
- Não tenho o menor interesse por sua amiga, milady. Fui ao clube porque desconfiei que lady Cecília planejava levar você a algum lugar suspeito. Sua amiga é cautelosa, mesmo assim, não tem boa reputação. Você parece conhecer todos os perigos dos bairros miseráveis que visita e é cega para os males que a rodeiam. Se quer saber, cansei-me de salvá-la, sua devassa ingrata!
- Devassa? Como se atreve?
- Que termo devo usar? Você acabou de assistir a um show, erótico, do qual deve ter gostado, pois não afastou os olhos daqueles dançarinos.
- Oh!
A carruagem parou.
- Pronto. Está em casa.
Maggie ia descer da carruagem, mas hesitou ao ver a luz da sala acesa. Justin havia chegado. Não podia entrar em casa desarrumada e trêmula como estava.
Jamie olhou para ela e falou, amável:
- Vou levá-la para minha casa. Lá você terá o tempo que quiser para se recompor. Não se preocupe. Randolph é meu criado pessoal e estacionará a carruagem no pátio dos fundos do solar. Ninguém a verá entrando ou saindo.
Subitamente, Maggie escondeu o rosto entre as mãos e murmurou:
- Está bem.
Jamie voltou-se para Randolph que descera da boléia para abrir a porta.
- Randolph, lady Maggie teve uma péssima noite. Acho que ela precisa de uma dose de brandy antes de dormir.
- Perfeitamente, sir. Para casa, então - disse o criado.
Voltou para seu assento e tocou os cavalos.
A casa de Jamie estava localizada na área de St. James, não muito distante do Palácio de Buckingham. Era um solar antigo, datava da época Tudor e ficava no meio de um parque particular. A carruagem seguiu por um caminho ladeado de plantas viçosas e estacionou num pátio amplo. Eles entraram na casa pela porta da cozinha.
- Venha. Há um quarto de hóspedes no primeiro andar, onde você encontrará tudo de que precisa - disse Jamie.
Eles atravessaram uma sala elegante com poltronas e sofás revestidos de damasco e aquecida por uma lareira que tomava quase toda a extensão de uma das paredes. Saíram para o hall e subiram a escada curva com balaústres de carvalho ricamente entalhados.
-É este o quarto. - Jamie abriu uma porta. - Quando estiver pronta, avise-me e a levarei para casa. Meu quarto fica no fundo do corredor.
- Obrigada - Maggie agradeceu e entrou no quarto.
A cama era larga, com quatro colunas e cortinado de fina renda de Bruxelas. Completava o mobiliário um guarda-roupa, uma escrivaninha, uma mesa e duas cadeiras. Uma porta dava acesso ao quarto de vestir e este se comunicava com o banheiro com água encanada, quente e fria.
Maggie lavou o rosto e olhou-se no espelho sobre a pia. Ficou horrorizada com o estado em que estavam seus cabelos. Precisava de uma escova. Encontrou uma sobre a penteadeira e começou tirar os grampos. Desalentada, constatou que, para prender a peruca em sua cabeça, Cecília havia enrolado e prendido seus cabelos de tal modo que formara um nó, difícil de ser desfeito. Precisava de ajuda.
Depois de um instante de hesitação, foi até o quarto de Jamie. Bateu de leve na porta e ouviu-o dizer:
- Entre.
Ele havia tirado o sobretudo e tinha na mão um copo com brandy.
- Desculpe... Preciso de ajuda. - Ela indicou os cabelos.
- Aproxime-se. Deixe-me ver. - Jamie colocou o copo sobre a mesinha do seu lado. - Está embaraçado mesmo. É incrível como você arranja confusão. Se fosse minha noiva, provavelmente a deixaria trancada até a hora do casamento.
- Graças a Deus não vou ser sua esposa.
- Graças a Deus mesmo.
Pacientemente, ele começou a desfazer o emaranhado de fios e grampos. O contato dos longos dedos em sua nuca era tão agradável que Maggie fechou os olhos. Cenas do que presenciara no clube vieram-lhe à memória.
- Onde é que eles arranjam pessoas tão jovens para fazer um trabalho como aquele? - indagou.
- É de se admirar que você faça esse tipo de pergunta. Não está cansada de ver a miséria que aflige tanta gente? Não conhece o drama das mulheres que vendem o corpo em troca de pão? Ou de uma cama num albergue para passar a noite? Ou de um drinque? Quem é pobre considera um privilégio arranjar emprego num estabelecimento como o de madame Bridey. Saiba que os mais espertos conseguem um bom dinheiro toda noite.
Jamie terminou de desembaraçar os longos cabelos que caíra abaixo dos ombros de Maggie como uma cascata. Escovou-o ajeitou-os e ao colocá-los atrás da orelha, percebeu que ela tremia.
- Como você está trêmula! Um pouco de brandy lhe fará bem.
Ele foi até a mesinha que ficava perto da janela e voltou com o copo da bebida ambarina. Entregou-o a Maggie e ergueu o seu.
- Saúde!
Ela esboçou um sorriso e tomou um gole do destilado. Tossiu ao sentir o líquido queimando-lhe a garganta. Jamie abanou a cabeça.
- Não entendo como uma mulher tão sensível e com a sua formação tenha concordado em ir àquele clube.
- Esse assunto, de novo! Eu já expliquei por que fui até lá.
- Você não devia ter acompanhado Cecília, principalmente sendo hoje a véspera do seu casamento.
- Creio que eu estava ansiosa, inquieta... com vontade de fazer alguma coisa diferente. Dar um vôo mais alto antes de pronunciar os votos matrimoniais diante de Deus. - Ela olhou para Jamie de modo desafiador. - Lembre-se, milorde, de que sou livre. Não me casei ainda.
- Não se casou ainda. É verdade. - Jamie segurou as mãos de Maggie e puxou-a para junto dele. - Se precisar de alguma coisa, é só pedir. Estou aqui.
Era incrível, era estranho, mas no momento em que se viu junto de Jamie, soube que era aquilo que buscava. Queria experimentar de novo a emoção de estar nos braços dele; queria aspirar seu perfume único, sentir seu toque e a vibração que vinha de seu corpo. Ele segurou os cabelos que havia arrumado tão bem, fez com que ela inclinasse a cabeça para trás e o fitasse. Por uns segundos apenas se olharam. Então, seus lábios tocaram os dela. A princípio ele foi extremamente gentil. Depois, aquele desejo latejante que já os havia dominado uma vez, ganhou mais força, arrebatou-os. O beijo tornou-se ousado, a língua dele moveu-se de encontro à dela, saboreando o mel daquela boca.
As roupas representavam uma barreira para carícias mais íntimas. Jamie interrompeu o beijo. Desabotoou com agilidade os pequeninos botões do vestido e soltou os cadarços do espartilho. Talvez por causa do champanhe e do brandy, Maggie simplesmente saiu do meio das roupas que ficaram no chão, como se elas fossem uma pele velha, deixada para trás, e atirou-se nos braços de Jamie. O toque das mãos fortes no corpo nu despertou nela uma torrente de sensações. Ela entregou-se, lânguida, frouxa, como cordas de um instrumento tangidas por dedos mágicos. Deliciosos dardos de prazer percorreram-na por inteiro, indo culminar no vértice de suas coxas. Os lábios dele buscaram os dela, novamente, vorazes. Maggie sucumbiu a uma espécie de febre que a deixou em completo abandono, esquecida do que era certo ou errado e do que iria acontecer no dia seguinte.
Ela não era experiente como Jamie. Suas mãos tremiam. Subitamente, ele soltou-a. Livrou-se da gravata, do colete, da camisa e tomou-a nos braços novamente, pressionando os seios túmidos contra o tórax de músculos rijos, quentes e aconchegantes. Carregou-a para a cama e acariciou-a com as mãos, com a boca. Seus dedos iam formando uma trilha seguida pela língua, movendo-se pelos seios, contornando o umbigo, descendo pelos quadris. E mais para baixo. Era como um toque de fogo, de seda, despertando em Maggie sensações jamais experimentadas antes.
Ela também o acariciou, passou as mãos por suas costas, pelas nádegas, beijou-lhe os ombros, o abdome. Com um gesto rápido, Jamie virou-se e ela viu-se presa sob o corpo dele, perdida na névoa dos olhos cinzentos. Em segundos ele penetrou-a. Ela sentiu-se como se fosse uma concha frágil, quebrada por aquela invasão. Então se cristalizou e tornou-se uma coisa nova e receptiva. A união tornou-se íntima, completa. Ela julgou ouvir o clamor do vento, mas era sua respiração; o bramir de uma tempestade; era a cadência de seu coração.
Deitada na cama, na mais natural das necessidades humanas, sentindo-se envolta numa nuvem prateada, brilhante, foi, de repente, arrebatada por um turbilhão de emoções. Um súbito calor espalhou-se por todo o seu corpo e também pela mente e alma. Ouviu novamente sua respiração ruidosa e ofegante e sentiu o contato da pele nua com o bordado da colcha de damasco que não fora removida da cama, dada a urgência aflita, a vontade faminta que ambos sentiam de saciarem os sentidos.
As batidas do coração normalizaram-se. Jamie deslizou o corpo para o lado, mas continuou junto dela, ambos olhando para o teto fracamente iluminado por uma lâmpada a gás. Passados os momentos de paixão e loucura, Maggie refletiu que devia estar sentindo vergonha, remorso e precisava se confessar. Isso a consciência lhe ditava. Ainda assim, seus pensamentos estavam voltados para as sensações que acabara de experimentar. Jamie era magnífico. E ela havia pensado, depois da morte de Nathan, que jamais iria desejar outro homem.
O que acontecera ali, naquela noite, tinha sido uma paixão momentânea e passageira. Continuar a pensar em Jamie e a desejá-lo seria, não apenas algo horrível, mas também rematada tolice.
Fechou os olhos. Sentia frio, mas as cobertas estavam presas sob seu corpo e o de Jamie. Ele fitou-a e começou a acariciá-la devagar. Passou a mão pelos seios, pelo abdome, pelas coxas. Maggie abriu os olhos. Ele a admirava. Havia tal fascinação no seu olhar que ela ficou vermelha da cabeça aos pés. Mas não ficou vermelha por estar sendo submetida àquele exame, e, sim, porque o simples contato das mãos dele despertara nela nova onda de desejo. Tinha de se manter sob rígido controle para não se atirar nos braços dele outra vez.
Felizmente ele murmurou:
- Já é tarde.
- É.
- Droga! - Jamie desabafou e estreitou-a nos braços. - Podíamos ter um pouco mais de tempo!
Mas só tinham aquela noite para matar o desejo que os consumia... Não ficaram saciados. A fome aumentara. Não podiam perder um minuto. E começou tudo de novo. Entregaram-se a uma paixão vertiginosa, explosiva, incrível e linda. Tanta coisa ficou por ser dita. Não havia lugar para mais nada além de saborearem o gosto de cada um, de se deleitarem com as carícias, de viverem emoções maravilhosas.
A maravilha cedeu lugar à exaustão e aos sonhos. A próxima coisa de que Maggie teve consciência foi a voz de Jamie acordando-a.
- Nossa! Está quase amanhecendo! Preciso ir para casa.
Tudo terminara. Tinha de partir. Partir era morrer um pouco, diziam os poetas e era isso que estava experimentando naquele momento.
Viu Jamie de pé. Nu, esplêndido, magnífico. Ele curvou-se, passou os dedos pelos cabelos dela e foi para o banheiro.
Ela levantou-se, recolheu suas roupas e correu para o quarto de hóspedes, rezando para nenhum dos criados surpreendê-la nua. Pouco depois estava vestida. Penteou os cabelos que estavam novamente um horror, e desceu para o hall silencioso e deserto. Foi até a cozinha. Como esperava, Randolph estava lá.
- Poderia me levar para casa... agora?
- Certamente, milady. Como queira.
- Você não precisa se casar com Charles. Ele ficará muito triste, mas é um homem compreensível e entenderá... - disse Jamie entrando no quarto.
Não havia ninguém ali. Certo de que Maggie tinha voltado para o quarto de hóspedes, vestiu um robe e saiu para o corredor. Encontrou a governanta, sra. Angsley, mulher robusta, de faces coradas e cabelos grisalhos, que o cumprimentou alegremente.
- Bom dia, sir!
- Bom dia, sra. Angsley. Há uma lady no quarto de hóspedes, Poderia chamá-la para mim?
- Sua hóspede já foi, sir. Randolph levou-a há poucos minutos.
- Já foi? Está bem. Obrigado.
Ele voltou para o quarto, fechou a porta e encostou-se nela, pensativo.
Mentiras e fingimento. Não. Nem tudo. Maggie o desejava tão ardentemente quanto ele a desejava. Mas para ela isso não bastava. Queria posição social e riqueza. E teria tudo isso. A qualquer custo.
Maggie havia traído Charles. Bem, ainda não estava casada. Ele havia traído o homem que amava e admirava. Porém, a justificativa era a mesma: Charles também não se casara com Maggie.
Olhou para a cama onde, durante aquelas poucas horas, julgara ter encontrado o que vinha buscando durante toda a vida.
Uma miragem.
Comprimiu os lábios, determinado a endurecer o coração.
Sim, esqueceria essa noite. Suspeitara desde o início que ela era perigosa. Muito perigosa para o tio. Era uma feiticeira capaz de dominar os homens simplesmente com a força dos encantadores olhos azuis. Ele jamais imaginara que se deixaria seduzir por uma mulher. Que ficaria tão enredado. Quase apaixonado.
"Apaixonado? Nunca!", pensou, zangado.
Ela era uma mentira. Se um dia Maggie olhasse de novo para ele como havia olhado nessa noite, com aqueles olhos azuis tão honestos e cheios de desejo, a chamaria de falsa, mentirosa.
Que ela fosse para o inferno.
Ainda assim...
Imagens e lembranças atormentaram-no.
Não. Ele afastou as lembranças.
Uma dor intensa parecia rasgar-lhe os músculos, os membros, o coração.
Tinha sido um idiota. Havia traído o homem que amava.
Não. Não sucumbiria aos encantos e ardis daquela mulher.
Nunca.
Na véspera do casamento, Darby e Clayton levaram para Moorhaven tudo o que Maggie poderia precisar e também as roupas de Justin.
Maggie não havia dormido e sentia uma dor de cabeça lancinante. Tinha a impressão de que se movia no meio de forte neblina, mas quando Justin bateu na porta, ela ajeitou os cabelos e foi atender com um sorriso, fingindo estar bem.
- Bom dia, Justin.
- Não há necessidade de levar isto adiante.
Ela suspirou.
- Já discutimos este assunto. Não vou dar a Charles tamanho desgosto. Ele apoia os projetos que são muito importantes para mim. Não passa a vida indo do seu clube para a tabacaria mais próxima. Estou resignada e você deve resignar-se também.
- Reconheço que seria um golpe fatal para o visconde ser abandonado agora. Mas Deus sabe que não me conformo com o fato de você pagar pelos meus erros. Estou lhe dizendo isto porque conversei com alguns americanos no clube e eles me aconselharam a imigrar com você. Começaremos um negócio, ou arranjarei emprego em um país novo. É uma possibilidade, não acha?
- Nem pensar. Você quer deixar para tio Angus o título e a terra que nos restou?
- Podemos voltar ricos.
- Ou eu posso simplesmente me casar com Charles e fazer um homem bom muito feliz. Vamos, saia daqui para eu me vestir.
A viagem até Moorhaven foi feita em silêncio. Assim que chegaram, Maggie pediu a Darby para chamar lorde Charles, pois precisava falar com ele na capela. Darby voltou dizendo que lorde Charles conversaria com ela depois, caso não fosse urgente, pois acreditava que não dava sorte ver a noiva antes da cerimônia. Maggie insistiu. Mandou dizer que aquilo era superstição. O assunto que tinha a tratar era importante, não podia ficar para depois.
Charles apareceu, sua preocupação era bem visível na ruga funda que lhe marcava a testa.
- Minha querida, você desistiu de se casar com este velho bútio2?
- Não é isso. Antes do nosso casamento preciso saber se você me quer, realmente. Quero que você conheça a mulher que será sua esposa.
- Desde que a vi pela primeira vez, você tornou-se um sonho Que eu receava ser inalcançável. Mas este sonho está prestes a se realizar. Quanto a conhecê-la, não há necessidade de saber mais do que já sei.
- Mas você não me conhece totalmente.
- Sei que depois da morte de seu marido você sofreu muito, passou meses no mais profundo pesar. Sei que você ouviu falar de um médium que se comunicava com os mortos, foi a uma sessão e acabou descobrindo que ele era um farsante. Sei que você denunciou madame Zenóbia, outra vigarista. Sei de seu trabalho nos bairros pobres. Minha querida, eu a admiro por isso.
Maggie sorriu e tocou o rosto de Charles.
- Eu também o admiro. Sei que tem lutado no Parlamento para haver uma reforma social. Sei que você sempre acreditou que os privilégios geram responsabilidades. Sei de seu valoroso serviço na Índia. Estou convencida de que temos interesses em comum.
- Então, o que tem a me dizer de tão importante?
- Charles, amei meu marido de todo o coração, com toda a minha alma. Mas, e se eu não for exatamente um pilar de virtude? E se tivesse havido alguém na minha vida?
- Esse romance terminou?-Charles quis saber, tendo olhado para Maggie com atenção.
- Na verdade nem começou.
- Não estamos casados. Seremos marido e mulher só depois de pronunciarmos os votos nesta capela. Sua vida antes desse momento nada significa para mim. Naturalmente, o que acontecer depois... Saiba que não há nada que você possa ter feito que me fará desistir de unir minha vida à sua. Entretanto, se você achar que não suportará viver comigo, tem toda a liberdade de desistir do casamento.
- Não. - Maggie abanou a cabeça. - Sou eu que está tentando dar-lhe a oportunidade de desistir enquanto é tempo.
- Estou perdidamente amarrado nas correntes do meu coração, minha querida. Eu só me afastaria se você dissesse que não me quer. - Ele segurou as mãos dela e beijou-as.
Algo dentro de Maggie a fez estremecer. Mas outra parte encheu-se de calor. Ali estava um homem bom. Um cavalheiro excelente com quem ia se casar. Pelo brilho nos olhos dele, pela paixão na sua voz, soube que ele a amava muito. Não podia magoá-lo. Erguendo o braço, tocou os lindos cabelos brancos.
- Charles, obrigada. Se não se importa, eu gostaria de ficar na capela, a sós, orando.
- Pique tranquila. Quando nos encontrarmos novamente, você estará tornando meu sonho em realidade. Começaremos uma vida nova.
Quando Charles deixou a capela, Maggie ajoelhou-se e pediu perdão a Deus.
Odiou-se porque pensamentos pecaminosos continuaram a persegui-la.
Isso não era correto. Mas como esquecer Jamie e o que acontecera na noite anterior, se ele continuaria em sua vida? Afinal, ele fazia parte da família de Charles e era seu herdeiro. Isto é, a menos que ela tivesse um filho. A idéia a fez estremecer. Um filho era fruto de amor. Em vez de imaginar-se na cama com Charles, cenas da noite passada com Jamie vieram-lhe à lembrança, mais vividas do que nunca. Mas, o que isso representara?, pensou, tentando justificar-se. Momentos de prazer, nada mais.
Maggie olhou para o crucifixo acima do altar, entalhado centenas de anos atrás, e sentiu que Cristo a olhava com censura.
- Serei boa esposa para Charles, juro. - murmurou, contrita.
Continuou a rezar, pedindo a Deus que a perdoasse. Quando terminou, fez o sinal-da-cruz e levantou-se. Estava na hora de vestir-se para a cerimônia.
Além de nervoso, Justin estava atrasado. Ia entrar na capela com Maggie e não conseguia dar o laço na gravata. Ainda não se conformara com aquele casamento e tinha medo de, no meio da cerimônia não se conter e gritar. Protestar. Iria dizer que lorde Charles era um velho e Maggie era jovem, linda e aquele casamento era um erro.
Não, não. Lorde Charles teria um ataque cardíaco e Maggie morreria de vergonha. Quantas vezes ela afirmara que estava resignada e queria aquele casamento. Talvez fosse verdade que desejo e a paixão que sentira tinham morrido com Nathan. Lord Charles poderia ajudá-la naquilo que atualmente era mais importante para ela: seu trabalho social.
Ele saiu para o corredor, ainda lutando com a gravata. Murmurou uma praga, certo de que estava sozinho e ouviu uma risada
- Deixe que eu o ajude, sir.
Uma mocinha usando vestido simples e touca de criada apareceu diante dele.
- Sabe amarrar este tipo de gravata? - Justin indagou. - Q laço é tão intricado. E desculpe-me pelo linguajar.
- Se fosse só isso que eu tivesse de desculpar - ela murmurou.
- Perdão. O que disse?
A moça aproximou-se mais.
- Nada importante. Deixe-me ver esse laço.
Chegou até eles o som do órgão que tocava na capela.
- Estou desesperado! Eu já devia estar indo para a capela - disse Justin mantendo o olhar fixo na mocinha.
A moça estava tão perto que ele podia sentir sua respiração, seu hálito, seu perfume. Nunca vira pele tão delicada, alva e tão perfeita. E os cabelos! Negros e brilhavam como cetim. Ele inspirou fundo. A moça cheirava a lavanda, a pureza e frescor. Teve de resistir ao impulso de beijá-la. Beijar uma criada! Ah, imagine o escândalo! A irmã casando-se com um velho que podia ser seu avô. O irmão envolvendo-se com uma serviçal.
Por que se importar com isso? Lembrou-se de que Maggie lhe dissera certa vez que ele devia se casar para ter um herdeiro. Mas devia escolher para esposa uma jovem que lhe desse filhos. Não tinha importância se fosse nobre ou plebéia.
E essa incrível beldade à sua frente era jovem. Ele não resistiu e murmurou:
- Você é... linda.
Ela fingiu não ouvir. Levantou a cabeça e fitou Justin.
- O laço não ficou perfeito. Não tenho muita prática.
O olhar dele ficou preso ao dela. Foi um momento mágico, sentiu o coração pulsando como se cantasse. A moça parecia estar experimentando a mesma emoção. Subitamente, lembrou-se de que Maggie o esperava. Segurou os ombros da moça e pediu-lhe:
- Espere por mim, por favor. Quero falar com você depois da cerimônia. Eu voltarei!
Justin desceu a escada correndo. Encontrou Maggie em uma ante-sala, muito nervosa. A capela ficava a poucos metros do salão de festas.
- Justin! Por que demorou tanto?
- Pronto, estou aqui. - Ele deu um passo para trás para admirar a irmã. - Você está encantadora! Parece uma visão! Uma fada!
Como estava se casando pela segunda vez, Maggie não se vestiu de branco ou bege. Optou por azul de um tom bem suave. Deixara soltos os cabelos loiro-avermelhados que caíam em ondas até abaixo dos ombros, e usava uma tiara de pérolas, própria para a esposa de um visconde.
- Por favor, Justin, vamos. Todos estão à nossa espera.
- Não posso fazer isso.
- Justin! Vou entrar na capela com ou sem você!
- Maggie! - Ele abraçou-a, sentindo-se miserável.
Depois, inspirou fundo e ofereceu o braço à irmã.
Então, com a maior nobreza e dignidade, entraram na capela.
A noiva estava atrasada. De pé, ao lado de Charles, Jamie se questionou se Maggie estaria arrependida e iria desistir do casamento. Por vários minutos sua amargura misturou-se a alguma esperança, mesmo sabendo que não devia sentir-se assim por causa do tio.
Charles vibrava. Iria viver seu sonho. E por que não? O bom homem haveria de viver seus últimos anos mágicos.
Charles segredara ao sobrinho que antes da cerimônia tinha conversado com Maggie ali na capela e, quase em lágrimas, ela havia tentado fazer-lhe confissões.
Passou pela mente de Jamie que ele também devia abrir-se com ele. Afastou a idéia. Não tinha esse direito porque, ao que tudo indicava, o casamento seria realizado e ele não podia comprometer a noiva.
Novamente encheu-se de amargura. Maggie tinha sido apenas uma fantasia. Uma aventura. Pensou na noite anterior, quando a tivera nos braços. Lembrou-se de sua sensualidade, e sentiu sangue latejar. A gravata parecia comprimir-lhe a garganta.
Ocorreu-lhe que Maggie também devia estar sentindo a mesma coisa. Daí aquele atraso. Não, ela não entraria por aquela porta. Desistiria do casamento.
Mas soaram os acordes da Marcha Nupcial e lá estava ela, de braço com Justin. Era uma visão. Deus! Estava belíssima. Os cabelos brilhavam como um halo em torno do lindo rosto. Os olhos azuis tinham a profundidade do oceano. E ela caminhava com dignidade e leveza. Parecia etérea.
Ele quase gemeu alto. Olhou para o tio que parecia em estado de graça. Cerrou os punhos e procurou controlar-se. Que mais poderia fazer?
Maggie fizera sua escolha.
Havia pelo menos cinquenta pessoas na capela. A rainha Vitória não pudera assistir à cerimônia, mas enviara presentes e estava representada por Suas Altezas, o príncipe de Gales, Edward, a princesa Alexandra e o príncipe Eddy.
Maggie viu o padre Vickers e outras pessoas com quem trabalhava. Devia sorrir para eles ao passar pela nave, mas não pôde mudar a expressão de placidez que conseguira fixar no rosto.
Entre os assistentes também estavam tio Angus com os filhos e as noras. Estranho. O tio e os primos eram seus únicos parentes, no entanto, raramente se visitavam. Mas sendo Charles um homem tão importante, não poderiam deixar de comparecer ao casamento. No fundo, Maggie era grata ao tio por ter encontrado um marido para ela, e não uma esposa de meia-idade para Justin. Dessa forma, Justin tinha chances de se casar e ter um herdeiro.
A esposa de Angus falecera cerca de vinte anos atrás e lhe deixara três filhos: Sean, Stuart e Tristan, todos casados. Cada um tinha dois filhos.
Notando que o tio a observava com o costumeiro sorriso calculista. Maggie desviou o olhar. Nesse instante sentiu um leve cutucão de Justin. Ele indicou Sua Graça, a duquesa, lady Marian.
O olhar de Maggie passou pela duquesa, pelos membros da família real e deteve-se no cavalheiro alto e elegantíssimo, do lado de Charles. Seus cabelos pareciam ainda mais escuros, um conte com a cabeleira do noivo, branca como a neve.
Jamie.
O olhar dele, fixo nela, era de rancor e desprezo. Ela estremeceu. Como ele podia nutrir tais sentimentos, se na noite anterior tinha sido tão apaixonado, tão sensual e carinhoso?
Mas isso acontecera na noite anterior.
No momento devia estar pensando coisas horríveis sobre ela por ter caído tão facilmente nos seus braços, esquecida de que iria se casar com Charles no dia seguinte. Será que a odiava e a desprezava por isso? Ou será que também sentia raiva de si mesmo e se achava desprezível?
Olhando para o outro lado, Maggie viu Mireau que lhe dirigiu um sorriso encorajador. Ela também esboçou um sorriso.
Por fim, Justin entregou-a a Charles. A cerimônia teve início.
Para Maggie tudo parecia envolto em uma névoa. Era como se o corpo estivesse ali presente, mas o espírito distante. Ouviu as palavras do reverendíssimo padre Ethan Miller e pronunciou os votos mecanicamente, sentindo-se a maior mentirosa do mundo. Amava Charles? Sim, mas como um bom amigo. Prometia honrá-lo? Sim, ele merecia ser honrado e respeitado. Obedecer-lhe? Bem, receava não fazer parte de sua índole obedecer a alguém.
Por um instante considerou se devia interromper o padre anglicano para discutir a questão. Por que a noiva tinha de fazer tal promessa numa cerimônia de casamento? Eles não viviam mais na Idade Média! As mulheres estavam fazendo coisas incríveis, as leis estavam mudando...
- Pode beijar a noiva!
A voz do padre interrompeu os pensamentos de Maggie. Viu Charles voltar-se para ela sorrindo e beijá-la.
O contato dos lábios secos e enrugados com os seus não provocou nela nenhuma reação. Enfim, os votos estavam selados. Maggie lembrou-se de um outro toque, muito diferente, quer era glorioso, que despertara todas as fibras de seu ser.
Terminada a cerimônia, os recém-casados saíram da capela. Receberam uma chuva de arroz, os cumprimentos, depois posaram para o fotógrafo que Charles tinha contratado e ficara esperando por eles no pátio.
As sessões de fotos foram demoradas porque o visconde, nobre amável, mas autoritário, fez questão de organizar os grupos para que todos fossem retratados com os noivos. Os primeiros, naturalmente, foram os membros da realeza, depois a família de Maggie incluindo Justin e tio Angus, filhos e noras. A seguir a família do visconde. Mas Arianna não foi encontrada e só Jamie tirou a foto com os recém-casados. Nesses poucos minutos terríveis em que estavam diante da câmera, Jamie tocou em Maggie com repulsa, como se ela fosse algo sujo. Ela teve vontade de sumir e morrer.
- Minha vez! - Mireau exclamou alegremente.
A aproximação do amigo querido reanimou-a.
Por fim, todos foram para o salão de festas onde seria a recepção. À entrada dos convidados a orquestra começou a tocar uma marcha triunfal. Em seguida tocou a valsa dos noivos. Maggie surpreendeu-se ao ver que seu novo marido, apesar do ligeiro tremor ao tomá-la nos braços, dançava bem e com muita elegância.
Um magnífico jantar foi servido regado a muito champanhe, Maggie bebeu bastante, sabendo que precisava de coragem para o que teria de enfrentar nesta noite. O tio ofereceu-lhe o braço e andou com ela pelo salão para falar com seus amigos da elite. Fez questão de dizer que essas eram as pessoas certas para fazer parte da sua nova vida.
Os primos de Maggie e as respectivas esposas foram muito gentis e extremamente simpáticos. Tristan contou-lhe que estava pensando seriamente em entrar para a polícia. Quando confessou que ainda não havia falado com a esposa nem com o pai sobre o assunto, Maggie encorajou-o.
- Não há nada errado com o trabalho honesto, Tristan.
- Falar é fácil. Mas você conhece meu pai.
- Pode contar com o meu apoio e também com o de Justin... E de Charles!
Tristan sorriu.
- Vou precisar, não apenas do seu apoio, mas, talvez, de abrigo.
- Tristan, o mundo está mudando depressa. Sua família terá de entender isso.
- É verdade. Essas mudanças chegam a assustar. Muitas pessoas estão descontentes com a realeza e a aristocracia. Os que têm poder só pensam em seus próprios interesses. Há revolucionários nas ruas. Membros da realeza são vaiados com frequência. Não Sua Majestade, a rainha, claro... Mas há outros.
Maggie sabia que o primo estava fazendo alusão ao príncipe de Gales e ao filho, Eddy. Olhou para o grupo que naquele momento conversava com Angus, Charles, Justin e outro convidado. Pouco depois os príncipes vieram até ela para se despedirem.
Quando saíram, Maggie perguntou a si mesma como a princesa Alexandra tolerava o comportamento do marido e por que parecia ignorar o que comentavam a respeito dele. Com certeza isso lhe era conveniente, pois um dia seria a rainha do maior império do mundo.
Tudo era um negócio, um jogo de interesses...
Isso também se aplicava ao seu casamento, Maggie pensou com desagrado.
A conversa passou a ser sobre a Coroa, as deficiências do ministro do Interior, do primeiro-ministro e sobre a iminência de um desastre, uma vez que imigrantes de outros países da Europa chegavam em grandes grupos às praias inglesas.
Lady Marian aproveitou para falar que o governo não precisava se preocupar com as condições terríveis do East End se cuidasse de impedir o desembarque da ralé que vinha pelo canal da Mancha.
- Ora, essa gentalha acredita que pode chegar aqui e tirar o trabalho dos outros. Muitos querem apenas viver da caridade da nossa gente - ela prosseguiu. - Como se não bastasse, há os criminosos... E a polícia, o que faz?
- Não é bem assim, Marian - Charles discordou. - Deixamos para trás o tempo da Regência. Contamos agora com uma polícia moderna que tem feito um trabalho extraordinário, imagine a vida antes do Ato Policial de 1829...
O assunto interessou outros cavalheiros que entraram no grupo, Maggie não quis continuar ouvindo os argumentos. Precisava de outra taça de champanhe.
Quando se virou, foi de encontro a Jamie. Seus olhos estavam escuros como um dia tempestuoso de inverno. Ela tremeu ao vê-lo tão severo, altivo e incrivelmente encantador, trajado de preto com a camisa branca engomada.
- Dança comigo, tia Maggie? - ele perguntou secamente.
Ela ficou toda atrapalhada e ergueu a taça que tinha na mão
- Ah, quer mais champanhe? Parece que o vinho lhe dá bastante... energia. - Ele pegou a taça, colocou-a na bandeja de um garçom que ia passando e levou Maggie para o centro do salão. - Você saiu de casa intempestivamente.
- Fiz o que achei que seria correto fazer.
- Correto. E aqui está você, convenientemente casada.
- Que mais você queria que eu fizesse? - ela indagou, sentindo-se péssima.
- Devia desistir do casamento.
- Não entende que isso seria impossível?
- Hum. Você já tinha sido paga.
- Há necessidade de ser tão vulgar e rude?
- Na minha opinião estou sendo honesto. Vejamos... Você acha que não podia desistir do casamento. Mas depois do que aconteceu ontem à noite, foi correto querer casar com meu tio?
- O que aconteceu ontem à noite foi...
- Um terrível engano, claro.
Essas palavras foram para Maggie como uma bofetada. Mas o que esperava?
- Um terrível engano - concordou.
- Que não se repetirá
- É claro que não! Ontem eu não estava casada. Agora, estou. E você? Não sente um pouco de culpa por ter traído o homem que o ama e em quem confia?
- Não sou comprometido. Além disso, sou homem e os homens procuram divertimento onde está sendo oferecido,
Maggie ficou pasmada, louca de vontade de esbofetear aquele grosseirão. Mas reconheceu que, infelizmente, havia alguma verdade no que ele acabara de dizer. A sociedade perdoava a infidelidade masculina. Entretanto, o que mais doía era saber que não significava nada para Jamie.
- Admito que nunca senti por nenhuma mulher o que senti por você. Você me fascinou - ele prosseguiu. - Mas agora é a esposa de meu tio. Cumpriu o acordo. Exatamente como foi tratado.
- Eu tinha de me casar com Charles!
- Na verdade, não. Casou porque teve medo de desistir. Com certeza imaginou o que estaria perdendo.
Ele parou de dançar, levou Maggie para junto de Charles que continuava a discutir com os amigos sobre lei e ordem. Voltou-se para lady Marian.
- Duquesa! Ainda não me deu o prazer de conceder-me uma dança!
Os dois se afastaram. Pouco depois, Maggie olhou para o meio do salão e foi subjugada por um ciúme avassalador. Jamie estava dançando com a encantadora sobrinha de lady Marian. A jovem dirigia a seu par um sorriso glorioso.
Maggie virou-se. Tinha feito sua escolha. Pouco lhe importava o que sir James Langdon pensasse a seu respeito.
Dançou com Justin, depois com Percy, Roger e outros amigos do irmão. Charles estava distraído conversando com outros convidados. Quanto a Arianna, ainda não aparecera para abraçar o pai.
Mais tarde, os convidados começaram a sair. Maggie agradeceu a Deus por não ter voltado a ver Jamie. Não suportaria ter sobre ela aquele olhar cheio de acusação. Sentia-se envergonhada na Presença dele.
Com a festa chegando ao fim, sua preocupação passou a ser outra. O medo de ficar a sós com o marido aumentava a cada segundo. Mireau e Justin foram os últimos a deixar Moorhaven.
Ambos a abraçaram com força e lhe ofereceram todo o seu apoio.
Justin ficou de voltar no dia seguinte, antes de os noivos partirem para a lua-de-mel. Eles iriam a Bath em primeiro e depois, para o continente.
Quando ficou a sós com Maggie, Charles pediu-lhe para subir e esperar por ele na suíte. Percebeu que ele estava exausto e subiu a escada apreensiva. Quando chegou ao primeiro patamar, ouviu a voz dele, zangada.
- Arianna! Por onde andou?
- Papai! Me perdoe. Assisti à cerimônia, acredite. Depois, saí da capela depressa e fui dar uma volta a cavalo.
- Você foi cavalgar? No dia do meu casamento?
- Eu me senti mal, papai. Precisava de ar puro. O senhor ficaria triste se me visse tão indisposta. Desapareci para não estragar sua felicidade, papai - Arianna falou docemente.
"Que mentirosa! Fingida!", Maggie pensou. Não resistindo, desceu alguns degraus para ver a cena. Charles havia tomado a filha nos braços.
- Está melhor? - ele perguntou, ansioso, e beijou a testa dela.
- Muito melhor.
- Posso adiar a viagem de lua-de-mel. Maggie irá entender.
- Papai! Nem pense nisso! Viaje com sua jovem esposa e divirtam-se. Quero que o senhor seja feliz. Aproveite! Faça loucuras!
- Ah, minha filhinha, minha doce Arianna! Sempre pensando na felicidade do velho pai.
"Peste!", Maggie disse a si mesma.
-Vou dormir, papai. Amanhã passaremos bastante tempo juntos. Isto é, se eu conseguir afastá-lo da companhia de sua linda esposa.
- Podemos nos reunir os três. Você e Maggie precisam se conhecer melhor, minha querida.
- Naturalmente. Será um prazer passar algumas horas agradáveis com minha madrasta. Boa noite, papai.
Vendo que Arianna ia subir a escada, Maggie foi depressa para a suíte. Entrou esbaforida, fechou a porta e encostou-se nela para recuperar o fôlego. Quase deu um pulo de susto ao ver a sra. Whitley.
- Achei que iria precisar de ajuda... Para tirar o vestido, lady Maggie - a governanta explicou.
Maggie olhou para a mulher, depois para a cama enorme, de carvalho maciço. A colcha tinha sido afastada para os pés da cama e sobre os lençóis finíssimos estava a camisola branca, transparente. Maggie sentiu um súbito enjoo. O delicioso jantar e o champanhe subiram-lhe à garganta.
Por Deus, não podia vomitar quando o marido se aproximasse para tirar suas roupas íntimas.
- Obrigada, sra. Whitley. Só me ajude a soltar os colchetes de gancho e a desamarrar o corpete. Depois me arranjo sozinha.
- Como quiser, madame.
Apesar de sua expressão severa, a governanta demonstrou ser maravilhosamente habilidosa. Em segundos livrou Maggie das roupas e, quando ela deu por si, estava usando apenas a camisola branca e sentindo-se nua, coberta apenas com aquele tecido tão fino.
A sra. Whitley, serviçal perfeita que era, não demonstrou ter notado a nudez da patroa. Levou-a até o toucador, tirou os grampos dos cabelos e começou a escová-los. Maggie sentiu um arrepio. Lembrou-se da noite anterior, quando Jamie desembaraçara seus cabelos e os escovara.
- Obrigada, sra. Whitley - ela apressou-se em dizer e levantou-se. - Está bem. Já basta.
- Sim, milady. Sobre a mesa de mármore, do lado da porta, há champanhe, frutas, queijo e doces. Se precisar de mais alguma coisa...
- Tocarei a campainha.
Assim que a porta se fechou atrás da governanta, Maggie foi diretamente até a mesinha e tomou duas taças de champanhe. Certamente teria dor de cabeça na manhã seguinte, mas não imporia. A dor valeria a pena se conseguisse sobreviver àquela noite.
Tomava a quarta taça de champanhe quando lorde Charles entrou na suíte usando apenas um luxuoso robe castanho. Calçava chinelos dessa mesma cor. Ela forçou um sorriso.
- Bem, aqui estamos nós - murmurou.
- Querida! Minha querida... Queridíssima.
Nervosa, Maggie despejou champanhe em duas taças uma para Charles e a outra para si mesma. A quinta. Ele pegou a taça, mas colocou-a sobre a mesa. Tomou Maggie nos braços e carregou-a até a cama, onde a deixou sentada. Seu marido era bem mais forte do que ela poderia imaginar.
- Charles... Você não tomou o champanhe. Podemos beber juntos.
Ele chegou bem perto dela. Sua expressão havia mudado. Os olhos ganharam um brilho... lascivo.
- Não quero mais champanhe. Já bebi o suficiente.
Curvando-se, ele encostou a cabeça no peito de Maggie e passou a acariciar-lhe as coxas, os joelhos, as pernas. Ela cerrou os dentes ao sentir o contato desagradável das mãos secas na pele macia. Tinha plena consciência de que havia escolhido aquele destino, reconhecia que Charles era um bom homem, sabia perfeitamente o que um marido esperava de uma esposa, mas...
- Por que está nervosa, querida? Você sabe que eu a amo mais do que minha própria vida.
- Eu... acho que preciso de mais um pouco de champanhe. Uma taça apenas.
Charles ergueu a cabeça e interrompeu as carícias. Maggie foi até a mesa. Viu-se tentada a pegar a garrafa e beber no próprio gargalo todo o champanhe restante. Porém, encheu a taça e tomou calmamente, sob o olhar de Charles.
- Venha cá, meu amor - ele convidou-a assim que ela colocou a taça vazia sobre a mesa.
- Sim, mas antes vou apagar as lâmpadas e as velas.
- Não. Venha cá. Quero vê-la.
Ela voltou para junto do marido sentindo-se como um condenado caminhando para a execução.
- Tire a camisola - ele pediu.
- Como?
- Desamarre o laço do decote, afaste a camisola dos ombros, deixe-a cair no chão.
- Eu prefiro ficar assim. É mais confortável.
- Por favor. Sua extraordinária beleza me fascina. Deixe-me admirá-la. Você já foi casada, não deve ficar constrangida. Somos marido e mulher. - A voz dele soou um pouco alterada ao acrescentar: - Vamos, querida. A camisola... Devagar, por favor. E vire-se aos poucos...
Era um simples pedido. Estava casada com Charles. No entanto ela sentiu vergonha. Sentiu-se suja. Como uma... vadia.
Inspirou fundo e desamarrou o laço.
- Isso. Faça a camisola descer dos seus ombros e fique de costas. Perfeito. Agora... deixe-a deslizar por seu corpo. Vire-se para mim.
Mortificada, Maggie foi atendendo aos pedidos de Charles. Assustou-se ao ouvi-lo dizer:
- Ande pelo quarto, depois venha até a cama. Engatinhe... Volte a andar...
O som da voz dele tornou-se horrível. Maggie estava prestes a irromper em lágrimas. Havia imaginado que Charles era o homem mais bondoso e gentil do mundo, no entanto, começava a perceber que ele era... doente... devasso.
Ele tirou o robe. Maggie virou o rosto, mas viu de relance o corpo magro e enrugado, sua intimidade tesa por causa da excitação.
- Agora, Maggie querida, venha até mim - ele pediu e sentou-se na cama, ficando encostado nos travesseiros. - Caminhe devagar e vá fazendo o que eu lhe disser...
Aquilo era demais. Maggie pensou em pedir o divórcio, em anular o casamento, queria morrer. Não podia suportar aquela tortura. Se pelo menos ele a deixasse apagar as lâmpadas, as velas, e simplesmente se deitasse do seu lado...
Começou a rezar. Pediu a Deus, a Jesus e à Virgem Maria que a livrassem daquela tortura.
- Maggie! - Charles chamou-a e inclinou-se para frente com o braço estendido, como se quisesse alcançá-la. - Maggie!
Desta vez sua voz soou indistinta, estrangulada.
- Charles! - ela gritou.
Segurou a mão dele e viu que ele parecia asfixiado, os olhos estavam saltados, pontos arroxeados apareceram em seu rosto.
- Charles!
Ele caiu para trás. Fechou os olhos e ficou imóvel.
- Charles?
Maggie tocou o pescoço, o pulso para sentir a pulsação. Nada. Seu coração começou a bater forte. Ali estava seu marido, nu morto.
Morto? Não. Não podia ser!
Começou a gritar, histérica.
Havia pedido à Virgem Maria e a Deus que a salvassem. A salvação viera. Só não esperava que fosse tão repentina, tampouco daquele modo trágico.
Capítulo V
Naquela noite Jamie teria voltado para Londres, não fosse por Arianna. Ele deixara o salão discretamente, sem se despedir dos noivos e estava no coche, saindo de Moorhaven, quando vira a prima chegando numa carruagem de aluguel. Ela dispensara o veículo bem longe da casa e vinha andando pelo longo caminho de entrada da propriedade.
Jamie descera do coche, ordenara a Randolph que voltasse para a casa, e escondera-se entre uns arbustos de onde podia observar Arianna. Ficou atônito ao vê-la passar por ele. A jovem lady, sempre tão bem vestida, estava usando traje de criada.
Ele deu uns passos e ficou na frente dela. Arianna gritou, aterrorizada, e levou a mão à garganta.
- Sou eu, Jamie - disse depressa.
- Que susto! Você quase me mata do coração!
- Bem que você merecia ter um ataque - Jamie falou em tom severo. - Você desapontou seu pai não comparecendo à cerimônia. E agora a encontro assim... Só Deus sabe o que andou fazendo, trajada desse jeito.
- Não fiz nada de mais! Só fui a Londres. Eu precisava ver um pouquinho da cidade. Estou fora da Inglaterra há tanto tempo...
- Você sabe muito bem que as ruas de Londres são perigosas.
- Não seja ridículo. Sei aonde devo e não devo ir. Não corri nenhum perigo. Estive em Covent Garden. Entrei em algumas lojas. Muitas delas ficam abertas até tarde. Tomei chá em uma confeitaria.
- Seu pai vai ficar furioso.
- Ele não precisa saber de nada. Eu tenho o direito de sair de casa, não tenho?
- Sim, mas não devia ter saído sozinha, às escondidas e com essas roupas. Ainda mais no dia do casamento de seu pai. Também não podia ter ficado na rua até tarde.
- Ora, Jamie, pode dizer o que quiser, não me importo. O que meu pai fez é revoltante.
- Não vamos discutir. Entre em casa antes que descubram que você desapareceu. Conversaremos amanhã.
Moorhaven era o último lugar da terra onde Jamie gostaria de estar, mas acompanhou a prima até a casa. Randolph estava na cozinha com Darby, tomando gim. A casa estava silenciosa.
Jamie foi para o salão. Precisava de um drinque e de um charuto. Sentou-se numa poltrona e ficou olhando para o fogo mortiço da lareira. Tinha o coração amargurado, queria sair dali, mas achava que devia ficar por causa de Arianna. A rebeldia da garota acabaria fazendo mal para ela mesma. Contra sua vontade, viu-se pensando no tio e em Maggie que naquele momento estavam na suite-master.
Foi então que ouviu o grito. Teve a impressão de que viera do quarto de Arianna. O que a garota teria aprontado desta vez? Outro grito ecoou pela casa e ele correu para a escada. Chegando ao patamar, teve certeza de que alguma coisa estava acontecendo nos aposentos do tio. Correu até lá e abriu a porta. Viu Maggie perto da cama, nua, os cabelos como um mar de ouro ao redor do rosto e dos ombros. Parecia em estado de choque.
Charles, também nu, estava estendido, pálido, flácido e patético.
Ouvindo o som de passos apressados, Jamie pegou o robe que estava nos pés da cama, colocou-o sobre os ombros de Maggie e cobriu o corpo inerte de Charles com os lençóis.
Maggie continuou a gritar e ele deu-lhe um tapa no rosto. Ela arregalou os olhos, levou a mão ao rosto, encarou Jamie, mas não demonstrou reconhecê-lo.
- Maggie! - sacudiu-a. - Vista o robe!
Ela o obedeceu. Jamie correu para a cama, tocou o pescoço do tio com os dedos indicador e médio para sentir o ritmo cardíaco. Havia pulsação, embora muito fraca.
Darby e Randolph entraram voando no quarto.
- O que aconteceu, sir? - Darby indagou, angustiado.
Jamie voltou-se para Maggie que tremia violentamente.
- Maggie, o que houve com Charles?
- Ele... ele... de um minuto para... outro...
- Foi o coração - Randolph opinou.
- Randolph, vá buscar o dr. Mayer, depressa - Jamie ordenou.
A sra. Whitley que acabara de entrar no quarto usando um penhoar e com os cabelos grisalhos trançados, discordou:
- Chame sir William Gull, o médico da rainha.
- Sir William está com setenta anos e teve um derrame - Jamie assinalou, irritado. - Enfim, não custa chamá-lo. Randolph, vá buscar o dr. Mayer. E você, Darby, traga sir William Gull.
Os cocheiros saíram apressados. A sra. Whitley foi até a cama, ajeitou os lençóis, a colcha e murmurou, dirigindo a Maggie um olhar cheio de veneno:
- Cuidaremos muito bem do senhor, caro lorde Charles. O senhor terá a nossa proteção, fique descansado.
A mente de Maggie registrou as palavras da governanta e ela reagiu imediatamente.
- O que está insinuando, sra. Whitley?
- Nada, madame, nada. Com licença. Vou chamar lady Arianna.
- É melhor não deixarmos Arianna preocupada. Vamos esperar os médicos - disse Jamie. - Arranje água fria e pedaços de pano para colocar na testa de meu tio. E traga também um pouco de brandy.
- O senhor acha que lorde Charles pode tomar brandy? - indagou a sra. Whitley.
- O brandy é para lady Langdon.
A governanta empertigou-se, franziu os lábios e continuou parada.
- Sra. Whitley, quer fazer o favor...? - Jamie insistiu.
Ela deixou o quarto. Maggie sentou-se na beirada da cama.
- Ele estava tão bem. Mais do que isso. Eu diria que estava animado, feliz, brincalhão.
- Acredito que ele teve um ataque cardíaco.
- Você não pode fazer nada?
- Não sou médico. Sou capaz de remover uma bala, fazer um torniquete, dar alguns pontos num ferimento. Coisas que aprendi a fazer no campo de batalha. Nada como isto...
Jamie nunca tinha visto Maggie tão agitada, tão angustiada, tão perdida. A Maggie que ele conhecia era determinada, lutadora, persistente, senhora de si. Naquele momento ela lhe pareceu tão jovem... e assustada. Continuava linda. Os cabelos caiam-lhe às costas como uma cascata revolta. E aqueles olhos, tão familiares, diziam tanta coisa.
Queria odiá-la. O tio estava à beira da morte e era bem possível que Maggie tivesse, involuntariamente, causado aquele ataque. Ou seja, o desejo, a ansiedade e a emoção de Charles na sua noite de núpcias, tinham sido fortes demais e o deixaram naquele estado.
Maggie voltou a tremer.
- Ela... a sra. Whitley pensa que eu fiz alguma coisa para Charles! - ela exclamou, entre zangada e assustada.
- Foi o coração dele. É isso que os médicos irão atestar.
Maggie cobriu o rosto com as mãos.
- Talvez eu tenha feito isso... mas... mas... Oh, meu Deus!
Jamie amava o tio, sabia que esse casamento era a realização de um sonho. Ao mesmo tempo, compreendia que ter em seu leito uma mulher jovem, linda e ardente como Maggie, tinha sido demais para seu idoso coração.
A sra. Whitley voltou com dois copos de brandy. A mulher era boa governanta e tinha consciência de que não devia, de modo nenhum, demonstrar que desaprovava a nova lady Langdon. Porém, isso era evidente, mesmo que ela quisesse disfarçar.
Jamie ignorou-a. Segurou no braço de Maggie, levou-a até uma poltrona perto da lareira e entregou-lhe um dos copos de brandy.
- Beba.
A sra. Whitley foi novamente para o lado da cama e soluçou alto.
- Sra. Whitley, os médicos devem estar chegando. Por favor, traga os panos que lhe pedi.
- Ah, naturalmente! - Ela suspirou e saiu do quarto.
Maggie permanecia imóvel, com o copo na mão, olhando para Charles, mais parecendo uma estátua de cera. A governanta voltou com os panos molhados em água fria e passou a colocá-los na testa do patrão.
Por fim, Randolph chegou com o dr. Mayer. O médico, de trinta e cinco anos aproximadamente, havia estudado nas melhores escolas de Londres e dos Estados Unidos. Apesar de não ser o médico da rainha, era, na opinião de Jamie, muito melhor do que sir William Gull.
O dr. Mayer entrou no quarto, Jamie cumprimentou-o e o médico foi imediatamente examinar lorde Charles.
- Ele teve um ataque cardíaco - diagnosticou o médico depois de sentir a pulsação do paciente e de examinar-lhe os olhos.
- Poderia me dizer em que circunstâncias ocorreu o ataque?
- Ele casou-se hoje - Jamie respondeu.
- Claro. Fiquei sabendo de seu casamento.
- Perdoe-me, dr. Mayer, não lhe apresentei a esposa de lorde Charles. Esta é a nova lady Langdon.
- Lady Langdon - disse o médico gentilmente, curvando-se.
- Não quero ser indelicado, mas preciso saber o que aconteceu.
Maggie fechou os olhos por um momento, depois encarou o médico.
- Depois da recepção, viemos para o quarto. Charles estava bem, muito alegre, conversando. - O rosto de Maggie ficou rubro - Estávamos nos preparando para nos deitar... e ele... simplesmente... desfaleceu.
Antes de dr. Mayer fazer alguma observação, sir William Gull entrou no quarto.
- O que está acontecendo aqui? - ele perguntou, evidentemente ofendido por encontrar outro médico no quarto.
- Lorde Charles teve um ataque cardíaco - informou dr Mayer.
Dr. Gull voltou-se para Jamie.
- Vocês não podiam esperar que eu chegasse?
- Era um caso de urgência, sir. As condições de meu tio eram precárias. Por isso mandei um dos cocheiros buscá-lo e o outro foi chamar o dr. Mayer.
Gull virou-se para Maggie.
- O que, exatamente estava acontecendo quando lorde Charles sentiu-se mal?
- Nós nos casamos esta tarde, sir William.
- Está dizendo que...?
- Por Deus! - Jamie explodiu. - Sim, doutor, meu tio estava excitado sexualmente!
Mais uma vez Maggie enrubesceu. Porém, manteve-se em silêncio.
- Saiam! Todos vocês! - sir William ordenou. - Quero ficar sozinho para examinar o paciente.
Jamie não estava disposto a sair do quarto e perguntou ao dr. Mayer:
- O senhor poderia cuidar de lady Langdon? Ela precisa de um sedativo. Eu ficarei aqui, com meu tio.
Sir William indignou-se.
- Está insinuando, sir, que preciso de ajuda?
- Não, sir. Quero estar perto de meu tio, apenas isso. Ele é como um pai para mim e não vou abandoná-lo num momento como este.
- Não vou sair... sou a esposa de lorde Charles - Maggie murmurou.
Dr. Mayer foi até ela.
- Lady Langdon, vejo que a senhora não está bem. Lorde Charles vai precisar de seus cuidados nos próximos dias e a senhora não poderá dar-lhe assistência se estiver doente. Por favor, venha comigo.
As palavras do médico e seu modo gentil de falar, cativaram Maggie. Ela levantou-se da poltrona e seguiu-o. Jamie fechou a porta. Sir William começou a examinar Charles em silêncio. Quando terminou, virou-se para Jamie.
- Foi o coração.
"Isso era óbvio", Jamie pensou.
- Ele está em coma - o médico prosseguiu. - É difícil dizer se irá sobreviver ou não. Mas há uma chance. pequena, mas há. Passarei a noite aqui. Se ele não resistir e falecer, terá de ser feita a autópsia.
- Autópsia? Por quê?
- Ele pode ter sido envenenado.
- O que o faz ter essa suspeita?
- A resposta é óbvia. Lady Langdon é a herdeira, não é?
- Eu sou o maior herdeiro.
- Seja como for, será feita a autópsia.
- Está certo. A autópsia revelará a verdade. Ficarei aqui - disse Jamie calmamente.
Afastou-se da cama e sentou-se na poltrona, perto da lareira.
O dr. Mayer dera a Maggie uma dose de láudano e ela acordou atordoada, com dor de cabeça. O mundo parecia envolto em densa neblina. Mas os acontecimentos da noite anterior estavam bem claros em sua mente.
Ela havia dormido em um dos quartos de hóspede. Precisava levantar-se, vestir-se depressa e preparar-se para suportar o dia que seria longo e difícil. Ficou mais um pouco na cama, esperando ganhar coragem. De repente, a porta abriu-se e Arianna irrompeu no quarto, gritando.
- Sua... bruxa! Você o matou! Assassina!
Correu até a cama e atirou-se sobre Maggie, dando-lhe socos. Apesar de ter sido surpreendida, Maggie conseguiu segurar os braços da garota.
- Pare com isso! Eu não fiz nada a seu pai. Juro!
- Arianna!
Jamie apareceu à porta. Tinha os cabelos escuros desarrumados, caídos sobre a testa. O traje impecável que usara no casamento estava amassado. Arianna não deu atenção ao chamado dele e lutava, desesperada, para soltar os braços. Se Maggie vacilasse, a garota lhe arrancaria os olhos.
- Arianna! - Jamie repetiu, entrando no quarto. Segurou a prima e puxou-a para junto dele.
- Ela matou meu pai! Ela o matou! Assassinou-o por causa de sua fortuna.
- Não! - Maggie protestou.
- Acalme-se. Venha cá. - Jamie abraçou a garota que encostou a cabeça no peito dele e se debulhou em lágrimas.
Maggie levantou-se e deu-se conta de que adormecera usando o robe de Charles. Correu para o quarto de vestir, para onde uma criada tinha levado parte de suas roupas e de seus objetos pessoais. Anexo ao quarto havia o banheiro. Vendo-se sozinha, começou a tremer. Ocorreu-lhe que poderiam acusá-la de assassinato. Não. Ninguém acreditaria numa coisa dessas.
Ela olhou-se no espelho sobre a pia de mármore. Estava horrível, magra, com olheiras fundas, muito pálida e despenteada. Então Charles não resistira e falecera durante a noite. Ela não saberia dizer se estava sentindo tristeza, dor, pena ou alívio. Só tinha consciência daquele torpor, daquela prostração. Tinha de reagir, sabia disso.
Ficou ali parada durante vários minutos. Ou teriam sido horas? Chegou até ela o som de uma batida na porta que parecia vir de muito longe. Não podia ser Arianna. A garota rebelde e malcriada não teria a delicadeza de bater.
- Milady? - A porta abriu-se.
Uma criada jovem, de cabelos escuros e meigos olhos castanhos, pele rosada, com sardas, entrou no quarto de vestir e chegou até a porta do banheiro.
- Ah, minha pobre lady. Eu sinto muito... muito mesmo - ela murmurou com sotaque. Era irlandesa, Maggie deduziu.
- Meu nome é Fiona. Sou a criada que cuida deste andar. Vou prepara seu banho e pegar suas roupas. Deite-se e descanse mais pouco, milady. Venha... eu a ajudo.
- Obrigada - Maggie agradeceu, comovida.
Saiu do banheiro e sentou-se numa poltrona enquanto Fiona preparava o banho. Pouco depois, entrou na banheira e ficou por alguns minutos com o corpo submerso na água quente, esperando que o vapor curasse a dor de cabeça. A água esfriou e ela saiu da banheira.
Fiona já havia separado um vestido preto, de cetim, e ajudou Maggie a vesti-lo. Depois, com habilidade, desembaraçou-lhe os cabelos e prendeu-os formando um coque. Terminando, afastou-se um pouco para avaliar seu trabalho e deu um sorriso aprovador. Maggie agradeceu. Agora estava apresentável.
- Sir James... Lorde James, acredito que seja este o título dele agora, a aguarda no salão, milady. E o dr. Mayer deixou um vidro de láudano. Irá precisar do remédio nesses dias difíceis que estão por vir.
Maggie levantou-se.
- Obrigada por tudo, Fiona.
- Por nada. Se não precisa mais de mim, irei falar com a sra. Whitley. Ela quer saber como a senhora está.
- Espere, Fiona - disse Maggie, decidida a não se deixar intimidar por uma simples governanta. - Quero mudar sua posição nesta casa. Você será minha criada pessoal.
A expressão da criada tornou-se sombria.
- Acho que a sra. Whitley...
- A sra. Whitley não é a dona desta casa - Maggie cortou. - Falarei com ela.
- A senhora gostaria que eu levasse suas coisas de volta para a suíte-master?
- Não. Traga para estes aposentos tudo que deixei lá. Não pretendo ficar muito tempo aqui em Moorhaven.
A casa enorme estava triste e silenciosa. Maggie desceu a escada, atravessou o hall e entrou no grandioso salão. Viu Jamie de ao lado da lareira. Parecia solene e pensativo.
- Ah, que bom ver você. Precisamos conversar. Como sabe Charles não resistiu. Morreu poucas horas depois da chegada de sir William.
Maggie sentou-se, trêmula.
- Chegou uma mensagem da rainha. Sua Majestade apresenta à viúva seu mais profundo pesar e manda dizer que Charles deve ser enterrado na abadia de Westminster - Jamie prosseguiu. - Charles sempre preferiu a abadia, com suas velhas pedras cinzentas, à beleza da catedral de St. Paul. Naturalmente, a decisão será sua, Maggie. Você era a esposa dele.
- A rainha conhecia Charles melhor do que eu. O que Sua Majestade e você decidirem, estará ótimo para mim.
- O corpo será velado amanhã à noite.
Maggie assentiu com um movimento de cabeça. Tudo aquilo parecia tão... surreal.
- Arianna conseguiu dormir depois de uma boa dose de sedativo. Dr. Mayer concordou em permanecer em Moorhaven por mais alguns dias.
- É muita gentileza dele.
- Na próxima semana haverá uma reunião com os advogados, sobre o espólio. Acredito que você queira que Justin esteja presente.
Maggie acenou com a mão.
- Não quero parte nenhuma do espólio.
- Você tem direito a um terço da herança. Quanto ao título e propriedades, passarão para mim. A menos que haja um herdeiro póstumo.
- Não há a menor chance de haver um herdeiro póstumo - tornou Maggie baixando a cabeça.
- Devo alertá-la sobre Ariana. Ela está convencida de que você fez alguma coisa para o pai e pode ir aos tribunais para tentar anular o casamento.
- Que importância tem isso?
- As propriedades da sua família podem ser confiscadas sob a alegação de que foram adquiridas... ou readquiridas por meio de falsa promessa.
- O quê? - Maggie indagou, pasmada.
- As leis são complexas e cheias de detalhes. Não vamos falar sobre isso agora. Há muitas providências a ser tomadas para o funeral. Eu gostaria de saber se, na qualidade de esposa do falecido você gostaria de cuidar pessoalmente de algum detalhe.
"Cuidar de algum detalhe como esposa do falecido! Chegava a ser irônico, Maggie pensou.
- Prefiro não interferir. Você cuidará de tudo melhor do que ninguém.
- Muito bem. Já mandei chamar seu irmão. Logo ele estará aqui para lhe fazer companhia.
- Obrigada.
Eles estavam tão formais! E pensar que duas noites atrás... Era difícil acreditar que o mundo havia mudado totalmente, tão depressa. Ela prometera diante do crucifixo que seria uma boa esposa. Charles tinha sido gentil e tão querido... até a noite anterior. E agora estava morto. E Arianna a acusava de haver assassinado o pai!
Jamie hesitou antes de dizer:
- Sir William quer que seja feita uma autópsia.
Maggie franziu a testa.
- Por quê?
- Ele quer ter certeza de que Charles sofreu mesmo um ataque cardíaco.
- Por que a dúvida? Ele tem alguma suspeita?
- Sim. Envenenamento.
Um calafrio percorreu o corpo de Maggie.
- Você não acredita que eu...
- A minha opinião não importa. A rainha tem grande estima por sir William, da mesma forma que estimava Charles. Esteja certa de que haverá uma autópsia. Eu só queria que você soubesse de tudo isso.
Jamie saiu do salão. Maggie levantou-se e voltou para o quarto. Minutos depois Fiona chegou com uma grande bandeja com chá, torradas e geléia. Maggie aceitou o chá. Não conseguia comer nada sólido. Ao pegar o bule assustou-se com o tremor de suas mãos. Inspirou fundo e tomou o chá devagar.
Na bandeja Fiona colocara um arranjo de flores e o jornal da manhã. Maggie leu a manchete e voltou a tremer. Saltava aos olhos na primeira página do diário:
Outro assassinato em Whitechapel!
No estado em que se encontrava, uma notícia sobre assassinato só iria deixá-la pior. Maggie levantou-se e começou a andar pelo quarto, como se assim pudesse afastar da mente a idéia de morte Sentou-se novamente. Não resistindo, pegou o jornal.
Horrível assassinato de uma mulher. Outro mistério de Whitechapel.
Maggie continuou lendo a terrível descrição do crime.
...encontrada caída numa poça de sangue... a garganta cortada de uma orelha a outra... a parte inferior do abdome aberta e os intestinos saindo para fora...
Nauseada, deixou o jornal de lado. O nome da mulher assassinada era Annie Chapman. Seu corpo fora encontrado no dia anterior, ao amanhecer, no quintal de uma pensão da Hanbury Street, número 29. Annie era uma prostituta e sua morte fora noticiada por causa das mutilações feitas em seu corpo. E também porque essas mutilações eram semelhantes àquelas feitas no cadáver da mulher chamada Mary Ann, conhecida como Polly Nichols, na noite de 31 de agosto, nove dias antes da morte de Annie.
O artigo continuava descrevendo as mutilações com detalhes sangrentos, depois falava sobre a vida da vítima, uma das miseráveis prostitutas do East End. Tinha quarenta e sete anos. Pobre Annie.
O jornal aproveitava a oportunidade para criticar a polícia e a sociedade e até a rainha. Declarava que havia um louco cometendo crimes hediondos, já assassinara duas mulheres, isto se não tivessem outras vítimas, e continuava solto nas ruas, espalhando o terror.
A leitura causou mais tristeza ao coração de Maggie. Conhecia o East End, uma região miserável, violenta, abandonada, esquecida. Nunca havia merecido a atenção das autoridades. Precisou ser o cenário de assassinatos brutais, nos quais as vítimas eram dilaceradas, mutiladas, para que a polícia, a sociedade e a rainha voltassem o olhar para aquela gente desventurada.
Maggie levantou-se. Na manhã seguinte a notícia sobre a morte de lorde Charles, visconde de Langdon seria publicada em todos os jornais do país e até no exterior. O que diriam os artigos? Assassinado pela mulher que ele adorava, mas que o desposara por dinheiro. Uma mulher jovem, não muito diferente das prostitutas do East End. Por Deus, não! Que horror!
Ela devia estar doente para ter tais pensamentos. Não fizera nada a Charles. A autópsia atestaria isso.
Mas por que carregava aquele sentimento de culpa? Tinha de se livrar daquela paranóia. Afinal, Charles tinha morrido feliz, contemplando-a, sentindo que estava realizando um sonho. Morrera em sua cama, enquanto a pobre mulher de Whitechapel... Como devia ter sofrido. Que momentos de terror vivera até encontrar a paz na morte? E que animal poderia perpetrar tais crimes?
Maggie começou a chorar. Pela mulher. Por Charles. Ele era um bom homem.
Lascivo?
Não podia dizer que sim. E, se ficara chocada na noite anterior, era porque não esperava aquele comportamento do marido. Mas, apesar de idoso, ele era homem, como qualquer outro. Ela precisava rever seus valores. Considerava-se uma pessoa de mente aberta, mas talvez não passasse de uma hipócrita, uma puritana, presa ao rigor da época vitoriana, uma guardiã da moral e da castidade.
Justin e Mireau chegaram a Moorhaven poucas horas depois.
- Você quer ir para casa agora? - o irmão perguntou um tanto constrangido. - Moorhaven passará a pertencer a James. É claro que você tem o direito de morar aqui enquanto viver desde que não se case novamente. Mas, se a conheço bem, acredito que se sentirá desconfortável continuando aqui.
- Justin, não vejo a hora de ficar livre de tudo isto e voltar para casa. Infelizmente, terei de esperar pelo funeral. E a autópsia
Mireau pigarreou.
- O que foi? - Maggie quis saber.
- Nada, nada.
- Ora, o que lhe passou pela cabeça? Diga logo!
- Nada importante.
- Mireau!
- Está bem, Maggie. Se você insiste. - Mireau suspirou. - Charles teve o ataque do coração antes, durante ou depois?
- Jacques!
Justin levantou a mão.
- Por favor, o assunto é sério. O fato de o casamento ter sido ou não consumado, é importante.
- Não tenho a menor intenção de falar sobre minha vida pessoal com ninguém. Justin, suas dívidas foram pagas, não foram? E você recuperou as propriedades. Tudo isso foi um presente do noivo para a família e não se toma um presente de volta. Portanto, o que tiver de acontecer de agora em diante, acontecerá.
- Maggie, poderá haver uma investigação.
- Charles teve morte natural.
- Só estou querendo dizer que você poderá ser chamada para explicar exatamente o que aconteceu. - A voz de Justin tornou-se mais carinhosa quando ele acrescentou: - Maggie, sou seu irmão. Quantas vezes a ouvi conversando sobre assuntos considerados tabu.
Ela não encontrou palavras para explicar por que aquela conversa a fazia sentir-se tão desconfortável.
- Há pouca coisa a dizer. - Ela suspirou, impaciente. - Charles e eu estávamos sozinhos, nos preparando para deitar. Ele estava ansioso. Será que é tão difícil de entender? De repente ele ficou parado. Acho que ficou inconsciente. Foi isso. Ponto final.
- Certo, minha querida. Tudo terminará bem - Justin confortou-a.
- Naturalmente - Mireau completou.
Nem a presença dos dois, tampouco suas palavras serviram para aquietar a tempestade da mente e da alma de Maggie.
- Arianna! Deixe-me entrar.
A porta abriu-se e Jamie olhou penalizado para o rosto jovem molhado de lágrimas.
- Desculpe, Jamie. Pensei que fosse ela.
- Arianna, Maggie não matou seu pai - Jamie falou com brandura.
- Até a sra. Whitley pensa como eu. Essa mulher casou com meu pai e o matou. Tudo para ficar com seu dinheiro - Arianna insistiu.
- De onde tirou essa idéia? Sabe que herdei o título e as propriedades.
- Mesmo assim. Meu pai era muito rico. Ela vai herdar uma fortuna.
- E você herdará uma fortuna também. E isso não quer dizer que tenha matado seu pai.
- Jamie, como você é perverso. Isso é coisa que se diga para uma filha? Eu amava meu pai de verdade. Ela não o amava.
- Acredito que o amava. Ela o queria bem.
- Que absurdo! Que mentira!
- Por certo Maggie não amava Charles como havia amado o primeiro marido. Apaixonadamente. Mas desde o noivado ela e seu pai estavam sempre juntos, conversavam bastante e tinham muitos interesses em comum. Por favor, Arianna, a morte de seu pai foi uma perda irreparável, mas ele era idoso. Tinha quase setenta anos. Ninguém dura para sempre.
- Maggie sabia que meu pai tinha o coração fraco. Por isso concordou em se casar com ele.
- Arianna, por favor. Esses pensamentos, essa raiva não vai diminuir sua dor.
- Mas o ódio me ajuda, Jamie. Ele me dá forças para...
- Para quê?
A prima abanou a cabeça e respondeu:
- Nada.
Mentalmente completou: "...para planejar minha vingança!"
- Por que você não confia em mim?
- Porque ela também o enfeitiçou.
- Não sei do que você está falando - Jamie observou em tom severo.
Arianna não tinha como saber o que acontecera entre ele e Maggie. Mas as palavras da prima provocaram nele uma sensação desagradável. Uma sensação de culpa. Enfeitiçado. Que tolice. Admitia que Maggie o seduzira com sua beleza, induzindo-o ao pecado. Mas tudo não passara de atração física por ela. Nem ele nem Maggie desejaram a morte de Charles.
- Olhe para você! - Arianna continuou em tom acusador. - O seu tio morreu nas mãos dela e você insiste em defendê-la!
- Você é jovem demais e ingênua...
- Ingênua? Pois saiba que descobri que ela deu alguma coisa para ele beber. Colocou no champanhe. Alguma coisa para deixá-lo encantado e causar o ataque. Ingênuo é você!
Uma raiva surda tomou conta de Jamie.
- Arianna, não ouse repetir uma coisa dessas - ele falou por entre os dentes. - Acho melhor você procurar se entender com sua madrasta.
- Por que devo fazer isso?
- Seu pai estava ansioso para se casar. Assim você teria uma pessoa para orientá-la e para apresentá-la à sociedade, entre outras coisas. Posso estar enganado, mas Maggie será nomeada sua tutora durante alguns meses.
Arianna encarou o primo, atônita.
- Não é possível. Meu pai teve o cuidado de garantir a minha herança.
- Sim, você é uma jovem lady muito rica. Infelizmente, ainda não atingiu a maioridade. Você irá descobrir que sua madrasta é legalmente sua tutora.
- Não, Jamie. Quem herdou o título e as propriedades foi você. Portanto, deve ser meu tutor.
- Não é o que diz o testamento. É claro que não estou a par dos termos exatos. Isso é com os advogados. Só sei o que Charles me confidenciou. - Jamie mudou de expressão ao acrescentar:
- É triste estarmos aqui discutindo sobre o que seu pai deixou, e não faz nem um dia que ele faleceu.
Os olhos de Arianna encheram-se de lágrimas novamente.
Jamie abraçou-a.
- Estou bem - ela murmurou. - Mas preciso ficar sozinha.
- Tem certeza?
- Absoluta. Passei tanto tempo no colégio, longe de meu pai, e agora que poderíamos ficar juntos, ele se foi. Quero guardar luto à minha maneira.
- Se precisar de mim, é só chamar. E, por favor, controle-se. Não fique gritando aos quatro ventos que Maggie matou seu pai. Isso nos fará sofrer, além de trazer complicações.
- Por que diz isso? Está com medo de descobrir que tenho razão?
- Não. Seja como for, haverá uma autópsia.
- Ah! Que ótimo. Então os médicos também acreditam que ela pode tê-lo matado!
- A questão é que você deve conter-se para não causar escândalo.
- O casamento já escandalizou a sociedade.
- Não sei por quê. É muito comum um homem idoso se casar com uma mulher bem mais nova. - Jamie suspirou. - Arianna, não costumo me preocupar com o que dizem. Tampouco dou ouvidos a mexericos. Mas você é jovem, vai se casar um dia e pode perder um bom partido se não tiver boa reputação.
- Está bem. Aguardarei o resultado da autópsia. Mas o que você pretende fazer se ficar provado que ela, realmente é culpada?
- Tomarei providências para que seja processada - Jamie respondeu sem emoção.
- Ela será enforcada!
- Isso, o júri decidirá.
Quando Jamie saiu do quarto, Arianna trancou a porta. Grossas lágrimas lhe escorriam pelas faces. Entre um soluço e outro ela praguejava, ora em inglês, ora em francês. Se Jamie a ouvisse ficaria horrorizado.
O tolo a via como uma criança. Uma criança! Nem ele nem seu pai poderiam imaginar o que jovens da alta sociedade faziam bem debaixo do nariz das freiras.
Mas agora... Os dias de colégio haviam terminado.
Ela voltara para casa muito mais madura e experiente do que qualquer mocinha da sua idade. O pai estava morto e aquela bruxa má poderia ser sua tutora. Não. Isso, nunca! Faria o possível e o impossível para não ficar sob a guarda da mulher, um dia que fosse.
Bem, se a autópsia provasse que a bruxa fizera alguma coisa para provocar a morte do marido, ela seria condenada. E se a autópsia não mostrasse nada? Se ficasse provado que a morte do seu querido pai tinha sido natural?
A bruxa ficaria livre, claro.
Não. Ela teria de pagar!
Arianna parou de chorar e enxugou as lágrimas. De que adiantava se desgastar, fazer suposições? Acusações?
Vieram-lhe à mente as palavras de Jamie sobre a necessidade de uma jovem ter boa reputação. Que tolice. Nem namorado tinha. Ela hesitou. Lembrou-se do rapaz encantador que encontrara saindo de um dos quartos na noite anterior. Quem seria ele? Sabia apenas que era um dos convidados para o casamento. O rapaz havia pensado que ela era uma das criadas, mesmo assim fora muito gentil. Talvez pudesse até se apaixonar por um homem como aquele.
Não! Como podia estar pensando em futilidades, se o pai estava morto?
Sentou-se na cama. Tinha de pensar apenas no pai e em fazer justiça. E se nada ficasse provado contra a bruxa? O pai não sena vingado? De algum modo a pérfida criatura teria de ser punida.
Era urgente fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais. Entretanto, precisava de ajuda. Arianna parou para refletir. Minutos depois levantou-se, abriu a porta e saiu à procura da sra. Whitley-
Para Maggie os dias que se seguiram foram nebulosos. A princípio hesitou em tomar láudano, uma tintura de ópio, com receio de tornar-se dependente do medicamento.
Na tarde do primeiro dia depois do casamento, descobriu que o láudano a ajudaria a sobreviver ao trauma da noite de núpcias, aos preparativos para o funeral, àquele horrível sentimento de culpa e ao remorso.
Os dois dias que se seguiram foram mais suportáveis. Permaneceu em seus aposentos e deu ordem para não ser perturbada. Esperou tranquila o resultado da autópsia e quando este chegou, não ficou surpresa. Não havia nenhum sinal de veneno no corpo de Charles. Ele sofrerá, realmente, um ataque cardíaco.
- Você devia ficar radiante. Devia proclamar bem alto sua inocência - observou Justin, que lhe trouxera a informação.
- Para quê? Os que me acusaram ou suspeitaram de mim continuarão a duvidar de minha inocência - tornou Maggie, vazia de emoções.
Graças ao láudano.
- Está na hora de irmos ao velório. A casa está cheia. O corpo de Charles será levado para o grande salão.
- Eu sei.
- Maggie, o que há com você? Esqueceu as convenções sociais? Você deve estar presente. É a viúva.
- Justin, por favor, me deixe em paz. Seguirei à risca as convenções sociais. Prometo.
Durante o velório aconteceu o que ela esperava. Arianna, vestida de luto fechado, o rosto coberto com um véu preto, não lhe dirigiu a palavra. Ficou algum tempo no salão, depois deu um jeito de sair. Parecia sentir-se mal. Recusou-se a falar até mesmo com Jamie. Maggie permaneceu o tempo todo em vigília.
Chegou o dia solene do funeral.
Arianna, mais uma vez completamente coberta de preto, evitou conversar com quem quer que fosse. Levantava a mão enluvada recusando-se a receber pêsames ou qualquer manifestação de simpatia.
O silêncio e a frieza da enteada não surpreenderam Maggie. Graças ao láudano, pouco se importou com isso. Reconhecia que a garota, além de ser teimosa e malcriada, precisava de tempo para aceitar a situação.
Jamie, entretanto, parecia irritado com a prima.
Nem mesmo os cochichos que ouvia à sua passagem, perturbaram Maggie. Pelas poucas palavras murmuradas que conseguia captar, entendia o tipo de comentários que faziam a seu respeito.
A rainha, cercada por membros da família real e por nobres, entrou na abadia de Westminster ao toque do meio-dia, quando o arcebispo ia iniciar o serviço fúnebre. As lágrimas nos olhos da excelsa senhora, deixaram Maggie convencida de que Sua Majestade estimava o amigo de tantos anos.
Quando, depois da longa cerimônia, o caixão de Charles foi levado às catacumbas para seu descanso eterno, Justin aproximou-se da irmã. Abraçou-a e falou em voz baixa que a rainha Vitória, com sua presença, demonstrara não apenas seu pesar pelo falecimento de um velho e querido amigo, mas também seu apoio à viúva. Isso iria influenciar positivamente a sociedade londrina.
Maggie concordou com um movimento de cabeça. Estava ainda semi-entorpecida, graças ao láudano, mas perfeitamente consciente de que seu comportamento fora impecável. Agora que tudo terminara, queria ir para Moorhaven. Assim que fosse possível, voltaria para sua casa, em Mayfair. Não via a hora de afastar-se de Jamie, de Arianna e da sra. Whitley. Infelizmente, teria de esperar a reunião com os advogados.
Nessa noite, quando Fiona entrou no quarto carregando a bandeja com o jantar, Maggie pediu-lhe para trazer-lhe um bule de chá bem forte e uma garrafa de uísque. A criada prontamente atendeu ao pedido.
Maggie provou um pedaço da carne e empurrou o prato para o lado. Preferiu o chá. Tomou uma xícara do chá forte, ao qual adicionara generosa dose de uísque. Ia tomar a segunda xícara, quando bateram na porta.
- Por favor, não quero ser perturbada - ela falou bem alto.
Levou um susto ao ver Jamie entrando no quarto.
- Bom Deus, o que está fazendo?
- Apreciando meu jantar.
- Você mal tocou na comida. Hum... Isto aqui cheira a destilaria.
Maggie arqueou as sobrancelhas.
- Tento afogar minhas mágoas.
Dando uns passos, Jamie alcançou a bandeja, pegou a garrafa do excelente uísque escocês e atirou-a no fogo.
- Droga! O que está fazendo? - Maggie indagou, furiosa, levantando-se da poltrona que estava perto da lareira.
- Estou perdendo a paciência com você.
- Não se preocupe comigo. Ainda não fui embora porque tenho de esperar a reunião com os advogados.
- O quê? Pretende ir embora? Se fizer isso estará confirmando o que Arianna pensa a seu respeito. Ou seja: que você é uma desprezível... bruxa.
- Como você é gentil, lorde James! - disse Maggie com ironia.
- Dadas as circunstâncias, estou sendo mais do que gentil. Quanto a você, nunca pensei que pudesse ser tão covarde.
Maggie ia responder, zangada, mas sentiu-se vazia, oca. Ficou com o olhar perdido no fogo da lareira.
- Talvez eu seja covarde... e também uma bruxa desprezível.
- E, ao que parece, tem pena de si mesma.
Ela deu de ombros. Virou-se e encarou Jamie.
- E se Arianna tiver razão? Pode ser que eu tenha matado Charles.
- Você o envenenou?
- Não! A autópsia provou que ele não foi envenenado!
- Você atirou nele! Apunhalou-o?
- Ora, você sabe que não fiz nada disso!
- Então, como o matou?
- Eu... - Maggie começou a andar pelo quarto. O láudano lhe havia tomado devia deixá-la sonolenta, mas estava acontecendo o contrário. Cerrou os punhos e abriu-os nervosamente procurando por palavras. - Concordei em me casar com Charles achando que ele estivesse buscando companhia apenas. Nunca imaginei que ele quisesse... um relacionamento... íntimo. Meu Deus! Fiquei mortificada. Fiz o que ele queria, apesar de sentir-me aviltada.
- Hum. - Jamie murmurou olhando para Maggie com simpatia. - Charles era seu marido e esperava ter intimidade com a esposa. Se você fez o que ele pediu, não é responsável pelo que lhe aconteceu.
- Você não entende.
- Então procure ser mais clara.
- Jamie, não quero ser rude, mas eu gostaria que você saísse.
- Lamento, mas temos de terminar esta conversa. O que mais a está fazendo sentir-se culpada?
- Não me sinto culpada.
- Não mesmo? Vejo a angústia no seu rosto.
- Oh, Senhor! Está bem. Sinto-me culpada. - Maggie sentou-se novamente na poltrona.
Jamie puxou uma cadeira e sentou-se na frente dela.
- Explique.
- Eu estava tão desesperada... coberta de vergonha. Acho que... rezei para Charles morrer - ela falou num fio de voz.
- Você desejou a morte dele? - As sobrancelhas de Jamie ergueram-se.
- Não... - Maggie sentiu as faces queimando e virou o rosto. - Não sei o que eu pensei. Eu estava de pé e ele me olhava de um modo... Bem... as luzes estavam acesas e eu queria ficar no escuro... queria desaparecer. Mas ele queria... um show. Senti-me miserável, mortificada. Comecei a rezar. Pedi a Deus para não permitir que aquilo continuasse. E então...
Maggie parou de falar. Olhou para Jamie, esperando que a condenasse. Ficou perplexa ao vê-lo esboçar um sorriso.
- Maggie, não acredito que você tenha rezado para ele morrer...
- Mas rezei.
- Ah, então você disse: "Oh, meu Deus, por favor, faça esse homem cair morto!"
- É claro que não! Mas, veja bem, eu estava rezando para não ter de continuar com aquilo e, nesse exato momento Charles caiu para trás.
O sorriso de Jamie alargou-se.
- Eu não faria uma confissão dessas a ninguém.
- Eu não tinha a menor intenção de falar sobre isso com você. Mas, em vez de ir embora e me deixar em paz, ficou me fazendo perguntas, deixando-me constrangida.
- Perdoe-me. Mas entenda, Charles era meu tio e eu o amava.
- Eu também o amava. Amava o homem justo, honesto e caridoso que ele era. Mas eu não queria ser sua esposa no rigor da palavra. Imaginei que teríamos um casamento branco. Sem relacionamento íntimo.
- Maggie, fique tranquila. O fato de você querer evitar seus deveres de esposa não tem nada a ver com a morte de Charles. - Jamie levantou-se. - Os advogados estarão aqui amanhã. Esteja no escritório às dez.
- Não me atrasarei.
Jamie caminhou até a porta. Antes de sair voltou-se e falou em tom severo:
- Pare de tomar láudano. Esse medicamento talvez fosse necessário no início. Não é mais. Não adianta querer ficar dopada. Você é a viúva de Charles e tem responsabilidades. Assuma-as.
Por uns segundos ele olhou para Maggie de modo curioso, como se tivesse mais alguma coisa a dizer. Mas virou-se e saiu, fechando a porta.
Sentado numa poltrona, perto da lareira, no salão, Justin esperava por Mireau. Parecia incrível que Charles, visconde de Langdon, tinha morrido havia quase uma semana. Ele olhou para as chamas, pensativo. Como sua vida tinha mudado desde que, na qualidade de irmão de Maggie, colocara sua assinatura naquele contrato de casamento.
Suas dívidas foram pagas, ele ficara livre da prisão, havia recuperado suas propriedades e tinha agora condições de cuidar de suas finanças. Só lhe faltava dar um sentido à própria vida.
O que tinha feito de útil até o momento? Recebera treinamento militar e servira no Exército durante uns anos. Sua ação mais importante tinha sido o controle de um tumulto na Trafalgar Square, quando operários se revoltaram contra as péssimas condições das fábricas. Em seguida, deixara o Exército. Desde então passara a levar uma vida boêmia e perdera no jogo tudo que havia herdado do pai. Desperdiçara vários anos de sua vida.
Por sua causa, Maggie havia se sacrificado. Ela lhe pedira apenas para se casar, ter filhos e assim manter o título da família. Fácil. Simples. No entanto, ele ainda não havia encontrado a moça certa para ser a mãe de seus filhos. Na roda-viva dos chás, festas e bailes, não havia sentido atração por nenhuma das beldades que se insinuavam e lhe dirigiam olhares lânguidos.
Só uma jovem lhe parecera especial. Lembrou-se de que tinha visto a moça dos seus sonhos ali naquela casa. Cabelos negros e pele alva como a neve. Olhos escuros, lábios de mel e, ao mesmo tempo, sensuais, vermelhos. Era a criada que o ajudara a amarrar a gravata.
Não voltara a vê-la.
Justin ouviu a porta da frente abrir-se e se fechar. Levantou-se e saiu para o hall.
- Mireau?
Não. Quem havia chegado era a filha de lorde Charles e ia subir a escada. Continuava inteiramente vestida de preto e coberta com o véu, como no velório e no enterro do pai. Nem a rainha Vitória, que pranteava eternamente seu querido Albert, usava luto tão fechado.
- Boa noite, lady Arianna - ele cumprimentou-a.
Ela estendeu-lhe a mão enluvada.
- Você saiu sozinha? Devia ter mais cuidado. Os jornais estão cheios de notícias de assassinatos. Mas tenho certeza de que você não se arriscaria a ir ao East End.
A jovem apenas meneou a cabeça.
De repente, Justin suspeitou que Arianna e a moça que ele havia encontrado no corredor, no dia do casamento, eram a mesma pessoa. Provavelmente ela se disfarçara de criada e saíra de casa naquela tarde para não assistir à cerimônia, uma vez que não aprovava o casamento do pai. Maggie lhe dissera várias vezes que a garota a odiava.
Então seria ela a beldade que o ajudara a fazer o laço da gravata? Ele chegou um pouco mais perto da moça.
- Ah, lady Arianna, entendo seu pesar e esse desejo de usar luto fechado. Seu pai era um grande homem. Todos nós lamentamos sua morte. Sei que você o amava demais.
Não houve resposta. Determinado a esclarecer sua dúvida, Justin ficou na frente da moça, impedindo-a de subir a escada. Com um movimento rápido, ergueu o véu que lhe cobria o rosto.
Foi grande seu desapontamento. A moça não era feia. Mas não tinha a beleza estonteante que o deixara tão impressionado naquele dia fatídico do casamento. Tinha cabelos escuros, a pele sardenta estava longe de ser perfeita, os lábios eram finos e descorados. Ela não se parecia nem um pouco com lorde Charles.
- Perdoe-me. Eu não devia ter feito isso - Justin desculpou-se e saiu da frente da moça, meio sem graça.
Ela continuou naquele silêncio obstinado. Havia puxado o véu sobre o rosto e subiu a escada depressa, indo de encontro a Mireau que vinha descendo.
- Perdão, milady - disse ele. Também não ouviu uma palavra.
- Mulheres! - Mireau resmungou ao reunir-se a Justin. - Primeiro foi sua irmã. E agora essa aí.
- O que houve com Maggie?
- Está estranha. Nem parece a mesma. Não quis falar comigo. Me mandou sair e levar você para Mayfair. Mas você não tem de estar aqui amanhã cedo para a reunião com os advogados?
- Não necessariamente. Vamos. Estou ansioso para sair deste lugar de morte. Quando Maggie decidir voltar para casa, virei buscá-la.
Os dois dirigiram-se para a porta. Antes de deixar o solar, Justin olhou para trás. Seu desapontamento era grande.
Onde estava a garota? Quem era ela? Será que voltaria a encontrá-la?
Arianna andava pelo quarto, ansiosa, esperando pela criada. Minutos depois a porta abriu-se.
- Diga logo. O que descobriu?
A moça tirou o véu preto da cabeça.
- Nossa! Quase me pegaram! O moço que estava no hall é o irmão de sua madrasta. Ele levantou o véu e viu meu rosto!
- Irmão de Maggie?
- Temos de acabar com isto. Se lady Maggie descobrir o que tenho feito, vou para a rua e sem referências.
Arianna fez um gesto displicente com a mão.
- Não se preocupe. Fiona. O irmão de minha madrasta não me conhece. E você não será despedida, garanto. Minha madrasta não sabe o que a espera. Vou colocá-la na cadeia.
Fiona zangou-se.
- Arianna, você tem sido boa para mim, mas isto não está certo. E você não é a dona desta casa!
- Herdei um terço da fortuna de meu pai. Jamie é meu primo e está do meu lado.
- Você ainda não atingiu a maioridade. E, por falar em cadeia, quem pode ir para a cadeia sou eu por causa do que você me obriga a fazer.
- Não seja ridícula. Mesmo que descubram nossa farsa, direi que eu estava muito mal e não pude comparecer ao velório e ao enterro de meu pai. Então pedi para você me substituir.
- Bem, até agora lady Maggie tem tomado láudano e nem notou que por vezes desapareço. E se ela decidir não tomar mais o medicamento?
- Não se preocupe. Confie em mim. Agora me conte o que descobriu.
- Muito pouco. - Fiona sentou-se para Arianna desabotoar a pesada capa preta. - Maggie tem feito excelente trabalho na igreja St. Mary e em outras paróquias. É adorada. Além de contribuir financeiramente para as obras sociais, arregaça as mangas e trabalha arduamente em várias comunidades. Se você conhecer melhor sua madrasta...
- Conhecê-la? Ficou maluca? Ela planejou tudo. Isso é tão óbvio! Ela casou com meu pai. O contrato pré-nupcial garantiu ao irmão uma soma elevada com a qual ele pagou as dívidas e equilibrou as finanças. Descobri que, segundo o contrato, essa quantia não teria de ser devolvida, mesmo que a noiva desistisse do casamento. Das duas uma: ou os advogados dos Graham foram muito espertos ou meu pai estava completamente fora de si para concordar com um absurdo desses. Como se não bastasse, meu pai morre na noite de núpcias. Foi muito conveniente para ela! Agora, como viúva, vai herdar uma fortuna.
- Arianna, está sendo injusta. Seu pai morreu do coração - Fiona falou em tom de censura.
- Não sou tola nem uma criança. Foi tudo planejado. Maggie era viúva, portanto, tinha experiência. Ela soube como excitar meu pai ao extremo. Foi de propósito. Para mim, isso tem um nome: assassinato.
Fiona abanou a cabeça.
- Arianna, gosto muito de você e quero ajudá-la, mas lady Maggie não é nenhuma assassina. Vi como está sofrendo.
- É claro! Ela tem medo de ser descoberta... e enforcada.
Fiona suspirou.
- Vou trocar de roupa.
- Espere. O que mais você ouviu nas ruas?
- O East End está em pânico. Há um maníaco nas ruas cometendo assassinatos horríveis. Mulheres são mutiladas. Você deve ter lido sobre isso nos jornais.
- Esse maníaco só mata prostitutas. Gente que não presta.
- Como você é gentil! - Fiona observou, mordaz.
Arianna enrubesceu.
- Lamento. Eu não quis fazer julgamento nenhum. O que eu quis dizer é que você não precisa ter medo. É claro que estou Preocupada. São crimes hediondos. Mas, talvez, se essas mulheres não bebessem tanto e se não fossem umas idiotas à procura de homens, não correriam perigo.
- E, talvez, se a realeza e a sociedade em geral não gastassem tanto dinheiro em jubileus e extravagâncias, muita coisa poderia ser feita nas áreas onde os moradores não têm esperança nem escolha. Bebem para esquecer a miséria e recorrem à prostituição para sobreviver. Me diga o que você faria se não tivesse nada, nada além da roupa do corpo. Se não tivesse um quarto, nem uma cama... Como iria arranjar alguns centavos para matar a fome?
Arianna cobriu o rosto com as mãos.
- Sinto muito. Entenda, Fiona, eu amava meu pai. Ele era um homem bom e repartia sua riqueza com os pobres.
- Sei que você está sofrendo. Mas isso não é motivo para ser injusta. Fui à igreja St. Mary, como você pediu. Falei com padre Vickers e ele fez os maiores elogios a lady Maggie. Mas ele disse que está preocupado com ela.
- Preocupado? Por quê?
- Lady Maggie denunciou alguns farsantes que se diziam espíritas. Agora eles querem se vingar dela.
- Espíritas?
- Pessoas que podem entrar em contato com os mortos. Há pessoas que têm esse dom, mas muitos são charlatães que enriquecem enganando os ingênuos e tirando o dinheiro deles. Se você tivesse ido ao velório e ao funeral, teria ouvido lady Marian contar sobre sua mais terrível experiência. A duquesa está sempre tentando falar com o falecido duque. Por isso foi a uma sessão espírita. A certa altura a mão do duque se materializou no ar. O médium disse para lady Marian que seu marido queria tocá-la pela última vez. De repente, uma lady com um véu na cabeça, agarrou a mão. Era falsa, como o médium. Ele e seus assistentes estavam armados. Houve uma briga e alguns tiros. Parece que um homem morreu e outro fugiu. A polícia chegou e levou para a cadeia um homem e uma mulher, que eram assistentes do médium.
- Será que essa mulher que pegou a falsa mão, revelando o truque do médium era lady Maggie?
- Acho que não. Se fosse, lady Marian a teria reconhecido.
- Se a mulher estava com um véu, como você disse, a duquesa não tinha como reconhecê-la. Lady Marian é desligada. Ela lhe deu os pêsames pensando que você era eu! Não desconfiou de nada. Nem ela nem ninguém. Enganamos todos eles.
- Mas isso vai acabar. Lorde Graham viu meu rosto.
- Por que se importar com lorde Graham? Jamais nos vimos antes. Amanhã haverá uma reunião com os advogados de meu pai. Depois disso, lady Maggie irá embora e o irmão não aparecerá mais por aqui.
- Arianna, este seu jogo é perigoso.
- Jogo? Não se trata de jogo. Só quero fazer justiça - tornou Arianna com lágrimas nos olhos.
- Você é teimosa. - Fiona suspirou. - Lady Maggie nada fez de errado, ilegal ou imoral. Ela se casou com seu pai porque gostava dele.
- Está bem. Você me ajudou muito. Agora eu mesma sairei para fazer algumas investigações - Arianna decidiu.
- Por favor, não vá a esses bairros perigosos - Fiona aconselhou-a. - Preciso ir. A sra. Whitley deve estar à minha procura.
Quando Fiona saiu, Arianna foi até a lareira e estendeu as mãos na frente do fogo para aquecê-las. Assim mesmo sentiu um calafrio.
Espíritos...
Médiuns...
Talvez fosse conveniente ir a uma sessão. Hum. Nada mais natural do que procurar algum conforto espiritual. Perdera seu querido pai.
Capítulo VI
Eram dois os advogados dos Langdon: sr. Green, pai, e sr. Green, filho. Jamie reuniu-se com eles durante meia hora e saiu quando Maggie entrou no escritório. Ao constatar que estaria sozinha, ficou apreensiva.
Pelo menos a conversa que havia tido com Jamie na noite anterior a livrara daquele horrível sentimento de culpa. Também abolira o uso do láudano e estava perfeitamente senhora de si ao sentar-se diante dos advogados.
O sr. Green, pai, era um homem severo, careca e com costeletas grisalhas. O filho, uma cópia do pai, apenas mais jovem, tinha fartos cabelos castanhos. Maggie aguardou em silêncio que os advogados começassem a leitura dos documentos que tinham em mãos.
Em primeiro lugar foi lida uma carta de Charles, na qual declarava ter encontrado, na velhice, a felicidade junto de lady Margaret Graham. Eles continuaram lendo e explicando os pormenores do espólio de lorde Charles.
James Langdon, naturalmente, herdava o título, as terras e as propriedades, inclusive Moorhaven. A viúva, no entanto, tinha o direito de morar no solar enquanto vivesse, a não ser que se casasse novamente. Ela foi informada sobre todo o dinheiro depositado em seu nome, o total de um fundo do qual podia dispor conforme precisasse, respeitando um limite. Além disso, receberia generosa pensão.
O tópico seguinte foi o da enteada. Lady Margaret era a tutora legal de lady Arianna até que esta completasse dezoito anos. Charles sempre tivera grande preocupação com a filha que perdera a mãe muito cedo. Ele esperava que Maggie acompanhasse a enteada por ocasião de sua primeira temporada, que a orientasse e lhe desse amor.
Maggie sentiu-se atordoada. Não tinha condições de cumprir a vontade de Charles, uma vez que Arianna a odiava e nem se aproximava dela.
- Entendeu os termos, milady? - o sr. Green, pai, perguntou.
- Sim.
- A senhora não é obrigada a fazer nada disso, mas...
- Mas, meu marido sempre desejou que eu cuidasse de sua filha.
- Exatamente. A senhora também tem o controle total da herança de sua enteada até que ela atinja a maioridade.
- Compreendo. E quanto a Arianna? Ela está a par dos termos deste testamento?
- Ainda não. Falaremos com ela a seguir.
- Arianna me odeia e acredita que matei seu pai. Diante disso, talvez eu não seja uma boa tutora. Ela tem afeição por lorde James, seu primo em segundo grau.
- Lorde Charles pede especificamente para a senhora orientar a filha - observou o sr. Green, filho. - A senhora se recusa a fazer isso?
- Não. Só quis explicar que a garota me detesta.
- É uma criança, filha do seu falecido marido - apontou o sr. Green, pai. - Como tutora, a senhora tem poder sobre ela. E responsabilidade.
- Farei o melhor que eu puder. Espero que entendam a minha situação depois de falarem com lady Arianna. - Maggie levantou-se. - Obrigada, senhores.
- Estaremos ao seu dispor sempre que precisar de nós, milady - disse o mais velho.
- Obrigada. Arianna deve estar esperando no hall. Pedirei para ela entrar.
Quem esperava no hall era Fiona. Maggie pediu-lhe:
- Fiona, por favor, avise lady Arianna que os advogados esperam por ela no escritório.
Ansiosa para refugiar-se em seu quarto, Maggie subiu a escada. Encontrou James no corredor com uma pequena mala.
- É bom vê-la ativa, de volta ao normal, Maggie - ele comentou secamente.
Ela franziu a testa e olhou para a mala.
- Vai deixar Moorhaven?
- Tenho minha casa em Londres.
- Mas você herdou esta.
- Preciso resolver alguns negócios. Esta casa também é sua. E continuará sendo até que encontre outro marido.
- Não estou à procura de marido, lorde James - Maggie replicou. - Você poderia ficar mais alguns dias. Arianna precisará de você.
- Charles sempre acreditou que você seria a melhor pessoa para orientar a garota. Vocês precisam passar algum tempo juntas.
- Sabe que ela me detesta. Será até perigoso ficarmos só nós duas nesta casa.
- Arianna é jovem e está sofrendo muito. Vocês devem se reconciliar.
- Duvido que isso aconteça. Para que não haja problemas, será melhor eu sair desta casa e você ficar.
- É mesmo? Você acha certo pegar o dinheiro e fugir?
- Que jeito de falar! - Maggie zangou-se. - Receio que Arianna se revolte ainda mais. Como posso orientar uma garota que não me aceita?
- Cabe a você descobrir um modo de conquistá-la. Tenha um bom dia, milady.
Jamie passou por ela e alcançou a escada. Por um momento ficaram tão perto um do outro que Maggie lembrou-se de haver, certa noite, ficado nos braços dele. Lembrou-se dos olhares que então haviam trocado, dos beijos, da entrega de corpo e alma. Quando o que sentiam um pelo outro parecia tão grande, maior que o mundo. Acreditara que tinha representado alguma coisa para ele.
Tudo um engano. Uma ilusão.
Ele desceu um degrau. Voltou-se.
- Se precisar de mim, mande Darby me buscar. Continuarei em Londres por mais alguns meses.
Maggie não esperou que ele alcançasse o hall e saísse. Se ficasse ali mais um pouco irromperia em lágrimas. E havia prometido a si mesma que não iria mais chorar. Também não suportava continuar naquela casa.
Entrou apressada no quarto para pegar a capa e a bolsa.
Era surpreendente, Jamie pensou, que uma mulher tão frágil e simples como Vitória fosse a rainha de tão vasto e poderoso império.
Sua Majestade dirigiu ao recém-chegado seu olhar sábio e inteligente. Trajava-se de preto, como sempre, e tinha os cabelos grisalhos presos e puxados para trás. Albert se fora havia mais de vinte e cinco anos e a rainha Vitória não o esquecera. Vivia de suas lembranças, suas recordações de amor.
O chamado da rainha surpreendera Jamie. Ela o recebeu na sua sala de estar privativa, sem preâmbulos ou cerimônia. O serviço de chá colocado diante deles era finíssimo e elegante, mas a rainha era a simplicidade em pessoa.
- Perdoe-me por chamá-lo, sendo que perdeu seu querido tio há poucos dias - disse a rainha.
- Vossa Majestade sabe que pode chamar-me a qualquer hora. Sou-lhe muito grato pelo carinho que sempre teve por meu tio.
- Estamos vivendo momentos difíceis. Agora, mais do que nunca, o país precisa de homens como o querido lorde Charles. - A rainha serviu o chá.
- Vossa Majestade se refere aos agitadores e rebeldes. Mas estes são combatidos por ingleses de todas as classes, inteiramente leais à Coroa.
Os olhos da rainha flamejaram.
- Ah, você não ignora que é grande o número dos que visam destruir o que foi construído durante anos e anos. Nós não somos apenas um país, somos um império. Tantos lutaram e morreram pela nossa glória, nossa grandeza. E aqui... temos esses conflitos esses ataques.
Desde que se sentara no trono da Inglaterra, a rainha Vitória enfrentara caluniadores, difamadores. Agora estavam vivendo em um mundo novo. O primeiro-ministro e o Parlamento eram a verdadeira lei do país e muitos viam a monarquia como um anacronismo. Mas era igualmente verdade que, apesar do modo de vida dos membros da família real, a rainha era amada. Era uma grande figura.
- Há alguma coisa em particular à qual está se referindo Majestade?
Ela indicou a pilha de jornais sobre a mesa.
- O que está acontecendo é deplorável! Há um maníaco agindo livremente no East End, assassinando e mutilando suas vítimas. E muitos estão usando a situação para desmoralizar a Coroa. Derrubar a monarquia.
- Vossa Majestade acredita que a situação seja tão séria?
- Leia o que tem sido publicado!
Jamie pegou um dos jornais. Trazia um artigo sobre uma das mulheres assassinadas. Seu nome era Annie Chapman. Descrevia com detalhes horripilantes as mutilações feitas no corpo da vítima. No final, havia um parágrafo dando a entender que a causa dos homicídios eram as condições subumanas de vida nos cortiços do East End e a licenciosidade de membros da mais alta nobreza.
Jamie olhou para a rainha que o observava pacientemente, e pegou outro jornal. O artigo que leu era semelhante ao anterior. Havia diversos deles. Todos insinuavam que a nação era responsável.
- São jornais sensacionalistas e tendenciosos, Majestade - Jamie opinou.
- Seja como for, o caso é preocupante. A situação é grave. A polícia não tem pistas. Vários suspeitos foram presos, mas tinham álibi e foram liberados. Haverá revolta da população e violência se o assassino não for encontrado. A polícia tem recebido todo tipo de cartas, das quais me manda cópias. São de pessoas confessando ser o assassino ou dizendo que testemunhou algum crime. Há as que contêm ameaças... Esta, por exemplo, diz que a polícia ficará tão desmoralizada que causará a queda do governo, Lorde Salisbury será forçado a renunciar... Ouça mais esta: "É certa a ruína do maior império da terra. Teremos a república!"
- Compreendo a sua preocupação, Majestade. Pelo que eu li sobre os assassinatos, não acredito que estejam sendo cometidos por alguém com propósitos políticos.
- É o que eu penso. Só mesmo um louco, um lunático poderia cometer essas atrocidades. Mas tal situação não pode continuar. Por isso eu lhe peço, lorde James, faça algumas investigações discretamente. Empenhe-se para descobrir o que está acontecendo.
- Sim, Majestade, estou pronto para atender ao seu pedido. Mas todos os policiais estão esquadrinhando as ruas...
- Não lhe peço para encontrar esse louco. Quero que observe a polícia, o povo, faça perguntas, veja como estão as investigações. Enfim, por Deus, salve a monarquia. E quem sabe, o império. - A rainha fez uma pausa, depois finalizou: - Seja meus olhos e meus ouvidos.
Jamie saiu do Palácio de Buckingham muito preocupado. A rainha lhe atribuíra uma tarefa quase impossível de ser realizada. Entretanto, devia ficar grato a Sua Majestade. Com esse trabalho ele arrancaria da mente pensamentos e lembranças de coisas que tinha de esquecer.
Iria libertá-lo do desejo insaciável que permanecia dentro dele...
Da presença da mulher que agora, mais do que nunca, lhe perturbava o sono, surgia em seus sonhos, parecia sussurrar em seus ouvidos e assombrava seus dias e suas noites.
Randolph o esperava na carruagem, estacionada na frente do Palácio.
- Para onde, lorde James?
- East End.
- A viúva de seu tio voltou às suas atividades sociais novamente? - Randolph perguntou.
- É bom que não tenha voltado - Jamie respondeu, sisudo. Pensou por um instante e disse: - Vamos antes para casa. Acho melhor trocar de roupa.
Maggie admirou-se ao ver tantas mulheres no pátio da igreja Evidentemente não tinham vindo até ali para ouvi-la, nem para a distribuição de um lanche, pois não tinha avisado que estaria na igreja naquela tarde. A decisão de visitar o East End fora repentina. Estava desesperada, não suportava mais ficar em Moorhaven. Tinha de ocupar-se. Programar com padre Vickers alguma atividade futura pareceu-lhe a única esperança de manter seu equilíbrio mental e emocional. Havia procurado Mireau e rumaram ambos para a igreja de St. Mary.
Assim que os dois desceram da carruagem de aluguel, as mulheres correram ao encontro de Maggie.
- Oh, milady! Já sabe o que aconteceu? - perguntou uma mulher alta.
- Oh, o que fizeram com as pobrezinhas! - outra exclamou.
- Leu os jornais, milady? - indagou uma terceira.
As mulheres falavam ao mesmo tempo, alvoroçadas, o pavor impresso nas faces sofridas.
- Sobre os assassinatos? Sim, li nos jornais. Sinto muito.
Uma das mulheres deu uma cotovelada na mulher alta.
- Por Deus, Lizzie, você não sabe que a pobre lady também perdeu o segundo marido?
Houve um murmúrio de simpatia.
- Obrigada - disse Maggie.
- A senhora está bem? - indagou Lizzie.
- Estou. Obrigada. Mas é com vocês que me preocupo, amigas. Devem ter cuidado...
- O assassino vai atacar de novo - aparteou uma mulher baixinha e cheia de corpo. - Os policiais não conseguem pegar ele.
- Vocês conheciam as vítimas? - Maggie indagou.
Uma mulher ergueu a mão.
- Eu trabalhei com a Polly. Ela ficava insuportável quando bebia. Mas não merecia um destino daquele.
- Eu conheci a Annie - disse uma mulher chamada Amélia. - O que fizeram com ela... E esse monstro continua solto.
- Bem, o que eu posso dizer é que vocês devem arranjar outro tipo de trabalho - Maggie sugeriu.
- Não há outro tipo de trabalho para gente como nós. Essa é a triste verdade - Lizzie queixou-se.
- Sei que algumas de vocês já foram lavadeiras e faxineiras. Procurem esse tipo de trabalho.
As mulheres ficaram em desconfortável silêncio.
- É a vida de vocês que está em jogo - disse Mireau, impaciente.
- A senhora trouxe alguma coisa para nós, milady? - alguém perguntou.
- Não. Hoje eu não trouxe o lanche, mas temos um pouco de dinheiro, não é Mireau?
- Para mim basta o dinheiro do albergue - pediu uma mulher ainda jovem.
Mireau achou que Maggie estava maluca. Ao mesmo tempo, compreendeu que aquelas mulheres começavam a pressioná-la. Pegou a bolsa que ela lhe ofereceu e virou-se para as mulheres, mais parecendo um cão de guarda.
- Afastem-se e organizem-se. Uma de cada vez.
Em um minuto a bolsa estava vazia. As mulheres agradeceram e foram aos poucos se afastando. Mireau abanou a cabeça.
- Você sabe para onde vão, não é mesmo? Para o pub mais próximo.
- Algumas. Não todas.
- Não sei se teremos como pagar a condução de volta para casa. Agora que você tem um cocheiro como Darby, prefere uma carruagem de aluguel!
- Se for preciso, tomaremos o dinheiro emprestado da caixa dos pobres. Vamos ver o padre Vickers?
Eles entraram na igreja. O sacerdote estava acendendo as velas do altar e alegrou-se ao vê-los.
- Maggie, Jacques! Que agradável surpresa! - O padre deixou o que estava fazendo e foi ao encontro dos amigos. - O que fazem aqui? Oh, Maggie seu marido faleceu há poucos dias. Não devia se preocupar com seu trabalho. Deus compreende que você precisa de algum tempo...
- O que eu menos preciso é de tempo, padre Vickers. Não posso ficar em casa, olhando para as paredes. Quero ocupar-me de novo.
- Visite os amigos. Este não é o momento de andar por estes bairros. Falam em duas mulheres assassinadas, mas há outras duas que tiveram morte semelhante. E há as cartas que escrevem para a polícia. Os artigos nos jornais assustam a população. Há movimentos clamando por uma reforma social e atacando o governo e as classes altas. A anarquia pode se instaurar... - O sacerdote interrompeu o que estava dizendo e olhou ao redor. - Vamos até a casa paroquial.
- O que há? O senhor parece nervoso - Maggie observou.
- Na casa paroquial conversaremos mais sossegados.
A casa paroquial ficava ao lado da igreja e tinha apenas uma sala conjugada com a cozinha, ambas minúsculas, um quartinho e o banheiro. Padre Vickers pôs a chaleira no fogo. Continuou a conversa enquanto preparava o chá.
- Vocês não imaginam como está a situação por aqui. Testemunhas dão descrições diferentes de homens que viram pela última vez as mulheres mortas. Algumas dizem que estavam bem vestidas. Outras afirmam que usavam roupas surradas. Porém, os últimos comentários é que o assassino aparece nas ruas de Whitechapel numa luxuosa carruagem.
- Mas uma carruagem luxuosa chamaria a atenção. - Maggie assinalou.
O chá ficou pronto. O sacerdote serviu-o e voltou ao assunto.
- Isso não impediria o assassino de deixar o veículo longe do local onde pretende atacar e ir até lá a pé. E todos nós sabemos que os ricos e os aristocratas, ocasionalmente, gostam de se divertir entre os pobres.
- Se bem o conheço, padre Vickers, o senhor está falando de ricos e nobres em geral, mas está pensando em uma pessoa em particular.
Padre Vickers hesitou. Em seguida falou, abaixando a voz:
- O príncipe Eddy foi visto nestas ruas.
- Acredito que o príncipe possa querer uma aventura. Mas ele procuraria uma mulher jovem e graciosa, o que não há por aqui - Mireau comentou.
- A moça com quem Eddy se relacionava não era prostituta. Trabalhava em uma loja. E era católica irlandesa. Há rumores de que se casaram secretamente e ela teve uma filha.
- Não entendo. As mulheres assassinadas eram prostitutas, não empregadas de lojas. E, se houve mesmo esse casamento, ele não é legal. Eddy não poderia se casar sem a permissão da rainha e um herdeiro do trono não pode se casar com uma católica.
- A questão é que a moça não era prostituta, mas tinha amizade com essas mulheres. Sabiam do envolvimento dela com o príncipe. Por isso foram... silenciadas. Veja bem, tudo não passa de hipótese. Nem mesmo a polícia sabe o que pensar.
- Hipótese ridícula. Quem quer silenciar uma pessoa não a mata com requintes de crueldade. Não comete um assassinato tão horripilante, capaz de causar tanta repercussão. A imprensa parece enlouquecida, os jornais publicam detalhes repulsivos dos crimes.
- Só peço a Deus que o assassino seja encontrado e não haja mais vítimas.
- É o que todos desejamos - Maggie anuiu. - Bem, vim até aqui para avisá-lo que estou pronta para reiniciar meu trabalho.
- Suas reuniões têm sido muito úteis. Essas mulheres precisam de orientação.
- E de comida, padre Vickers - Mireau completou. - Hoje Maggie distribuiu entre elas o dinheiro que tinha na bolsa. Dinheiro que será usado para comprar gim.
- Infelizmente.
- Continuaremos a distribuir o lanche, padre Vickers. Não se preocupe - disse Maggie levantando-se.
Mireau tinha dinheiro para pagar o cabriolé que os levaria para Mayfair. Padre Vickers acompanhou-os até a rua. Quando Maggie acomodou-se na carruagem, ele segurou a mão dela.
- Deus a abençoe, minha filha. E não se preocupe. O Senhor sabe que você é inocente.
- Inocente? - ela repetiu, sentindo um frio percorrendo-lhe a espinha.
- Vejo que você não leu os jornais de hoje.
- Não.
O sacerdote tirou um recorte do bolso e entregou-o a Maggie. Ela correu os olhos pelo pequeno artigo que não estava assinado. Um trecho dizia:
Enquanto a polícia está enlouquecida, procurando um assassino que mata e mutila suas vítimas, parece que as autoridades se esqueceram de que um morto é um morto, tenha sido sua morte brutal ou rápida e silenciosa. Talvez as autoridades devam procurar o assassino ou assassina em um bairro elegante e não na periferia. A polícia procura um louco. Mas um rosto bonito pode esconder um coração perverso. Cuidado.
Perfeitamente controlada, Maggie agradeceu ao sacerdote.
- Obrigada por mostrar-me isso.
- A maioria dos leitores não sabe a quem o artigo se refere.
- Está tudo bem. Já escandalizei a sociedade uma vez. Imagino quem escreveu o artigo. E não há nada contra mim. Houve uma autópsia. Charles teve um ataque cardíaco. Até a semana que vem, padre. Não me esquecerei do lanche. Nada de dinheiro para ser gasto na compra de bebida.
- Deus os acompanhe.
O cabriolé pôs-se em movimento. Mireau perguntou, surpreso:
- Quem você acha que escreveu o artigo?
- Só pode ser uma pessoa.
- Quem? A doce, jovem e linda Arianna?
- Jovem e linda, sim. Mas doce? Acho que ela e eu teremos uma conversa de mãe para filha. Depois irei ao jornal e ameaçarei processá-los por calúnia e difamação.
- Ah! Esta é a velha Maggie! - De repente, Mireau indagou, pasmado: - Quem é aquela? Uma prostit...
- Ei! O que está resmungando?
- Vi uma mulher na calçada... Achei que a conhecia, mas o rosto estava meio escondido pelo chapéu e uma echarpe. Ela olhou para mim como se me conhecesse.
- E deve conhecer mesmo.
- Ora, Maggie, uma dessas mulheres! Eu nunca... Quero dizer, não neste bairro.
- Com certeza ela já o viu aqui, comigo. Você sempre me acompanha.
- Pode ser... - Mireau murmurou. - Olhou para trás, mas a mulher havia desaparecido.
Arianna e Fiona tomaram uma carruagem de aluguel e foram até Aldgate onde compraram roupas bem baratas. Depois caminharam até um prédio velho que ficava em uma ruazinha sem saída e alugaram um quarto mal ventilado e escuro. Trocaram as roupas que usavam pelas ordinárias que tinham acabado de comprar. Enrolaram-se num xale e deixaram o chapéu meio caído sobre o rosto.
Não tinham andado muitos metros quando Fiona virou o rosto, assustada.
- O sr. Mireau! Ele me viu!
- Fique quieta! - Arianna zangou-se. - Ele não sabe quem você é. Ali tem um pub. Vamos entrar.
- Que absurdo! Uma lady como você entrando num pub - Fiona observou.
- Vai dar tudo certo. Gosto de representar. Se eu não fosse filha de meu pai, poderia ser atriz - disse Arianna puxando Fiona para o interior do pub.
Ela pediu duas doses de gim e sentou-se com Fiona a uma mesa comprida, lotada. Uma mulher de cabelos vermelhos, cuja idade era difícil de precisar, puxou conversa.
- Hum, uma garota bonita por aqui. De onde você veio, queridinha?
- Eu tinha emprego na cidade, mas o velho bútio que me contratou se engraçou comigo-Arianna respondeu, com sotaque cockney3.
- Garanto que nestas ruas você vai encontrar tipos bem pior do que seu velho bútio.
- Bem, eu estava até disposta a aceitar os xelins do velho. Foi a mulher dele que me botou para fora!
- Ah! - A mulher riu.
- Agora estou sem emprego. Será que encontro outro tipo de trabalho? Tenho um dom especial. Tem gente que diz que sou médium.
- Você fala com os mortos? - A mulher arregalou os olhos. - Acho que eu posso te arranjar trabalho. O que eu levo nisso?
- Posso dar uma porcentagem.
- Certo. Meu nome é Hannah. - A mulher estendeu a mão áspera para Arianna.
- Sou Ann. Muitos me chamam de Annie.
- Outra Annie! - Hannah murmurou e estremeceu. - Conheço uma pessoa que está montando seu negócio. É um desses espíritas e andou por aqui procurando uma ajudante. Mas não gostou de nenhuma de nós. Se você me der mesmo uns trocados, posso levá-la até ele.
- Juro que dou.
- Então... apareça aqui na sexta. Neste mesmo horário.
- Certo. Até sexta, Hannah. - Arianna cutucou Fiona que estava distraída, com o pensamento longe dali. - Vamos, Jamie. Está escurecendo. Temos de arranjar um quartinho.
- Sim, sim, vamos. - Fiona levantou-se.
As duas acenaram para Hannah e saíram do pub.
- Que coisa mais maluca! - Fiona protestou.
- Que maluca, que nada! - Arianna discordou. - Tudo saiu perfeito! Agora temos que encontrar um cabriolé.
- Vamos para casa assim? Precisamos trocar de roupa.
- Já é tarde. Temos de entrar em casa pela árvore que há perto da sacada do meu quarto.
- Eu não consigo subir naquela árvore.
- É claro que consegue. Vai ser divertido!
Maggie caminhou decidida até o quarto da enteada. Bateu de leve na porta. Não houve resposta. Desceu e encontrou a governanta no hall.
- Sra. Whitley, lady Arianna saiu?
- Ela avisou que ia tomar um sedativo e não queria ser perturbada.
- Deve ter adormecido. Por favor, chame-a dentro de uma hora.
Maggie voltou para o quarto. Estava descansando quando bateram na porta. Era Arianna.
- Obrigada, por ter vindo tão depressa - Maggie falou calmamente. - Parece que vamos nos dar muito bem.
- Preciso de minha mesada.
- Amanhã estará em suas mãos. Mas... Está precisando de dinheiro? O jornal não lhe pagou?
- Cla... Que jornal?
- Arianna, você escreveu um artigo no mínimo sedicioso4. Eu poderia processar o jornal, mas não vou fazer isso. Se insistir na arte da escrita, cortarei sua mesada. Essa é uma das minhas atribuições como sua tutora.
Arianna ficou tensa.
- Sinto muito. Não haverá mais artigos nos jornais. Prometo. E, se era só isso, peço licença para voltar ao meu quarto.
- Fique à vontade. Darby lhe levará o dinheiro.
Maggie virou-se na cama de um lado para outro. Parecia haver um torvelinho em sua cabeça. Tantas coisas vieram-lhe à lembrança. As palavras de padre Vickers, o pavor que tinha visto no rosto das mulheres, Jamie indo embora, seu olhar estranho pousado nela.
Levantou-se para pegar o vidro de láudano. Precisava do sedativo para poder dormir. Não. Aquilo era tintura de ópio, não queria ficar dependente da droga. Voltou para a cama e procurou relaxar. Não saberia dizer por quanto tempo permaneceu desperta até mergulhar num sono agitado.
Acordou com o próprio grito. Estava suada e trêmula. Recorda seu sonho: uma figura sinistra espreita nas sombras a mulher que se aproxima. Salta sobre ela. Eles lutam. Maggie acompanha a cena aterrorizada, achando que vê a si mesma sendo assassinada.
Mas não é ela.
Caída no chão está Arianna, sangrando, com a garganta cortada.
Capítulo VII
Jamie andou pelas ruas de Whitechapel e admirou-se ao ver o movimento, apesar de ser tão tarde. Seu relógio marcava meia-noite. Em vários lugares os lampiões a gás tinham sido apagados. Nos pubs, homens e mulheres falavam principalmente sobre o assassino de Whitechapel, sobre as inúmeras cartas enviadas para a polícia e especulavam sobre quem seria o tal maníaco. Num dos estabelecimentos, Jamie estava junto do balcão, atento à conversa, e uma prostituta aproximou-se dele.
- O assassino pode ser um sujeito com a sua pinta, sir! - Ela riu. - O que acha da gente se divertir um pouco?
Jamie ergueu as mãos.
- Estou indo embora. Só vou terminar meu gim.
Ele deixou algumas moedas para a mulher e saiu do bar. Às duas da madrugada, as ruas estavam quietas, envoltas na neblina, só havia luz em algumas casas. Mas ainda se viam homens e mulheres andando no escuro e vendedores empurrando seus carrinhos, encerrando o trabalho.
Às três os operários começavam a se levantar. Homens que trabalhavam em matadouros, mulheres que adiantavam o serviço doméstico antes de ir para as fábricas. Às cinco o movimento nas ruas recomeçava.
Jamie havia notado que a polícia era eficiente. Vários policiais faziam rondas, davam batidas, revistavam indivíduos para ver se carregavam armas. Ele mesmo tinha sido revistado algumas vezes. Randolph também fizera sua parte. James o encarregara de ir a outra seção do distrito e manter olhos e ouvidos atentos. De volta a casa, ambos conversaram.
- Em um dos pubs um grupo exaltado pedia a cabeça do comissário, sir Charles Warren. Diziam que ele não se importava com o caso porque as mulheres assassinadas eram prostitutas. Se fossem ladies, o assassino já estaria preso - Randolph relatou - E as teorias! Uns afirmavam que a polícia está atrás de um norte-americano interessado em comprar os órgãos das vítimas.
- E quanto ao envolvimento de algum membro da realeza?
- Há comentários sobre Eddy e a tal moça, Annie Crook. Ouviu falar sobre ela, milorde?
- Sim. Dizem que o príncipe casou com ela secretamente, numa igreja católica, porque estava grávida - Jamie respondeu. - Bem, vamos dormir pelo menos algumas horas. Depois faremos uma visita a alguns dos policiais que fazem a ronda do bairro.
- Acorde!
Mireau esfregou os olhos, aborrecido com aquela intromissão no seu sono.
- Levante-se. Temos de voltar à igreja. - Era Maggie quem estava de pé, do lado da cama. - Providenciei muita comida para aquela pobre gente.
- Justin sabe aonde você vai?
- Ele não está em casa. Agora se interessou pela política. Você sabe que ele tem uma cadeira na Câmara dos Lordes.
Maggie saiu do quarto. Minutos depois, ela e Mireau tomavam uma carruagem de aluguel. Quando chegaram à igreja, padre Vickers os recebeu sorridente. Homens e mulheres esperavam no pátio e vários carrinhos com os mantimentos já tinham chegado. Policiais ajudavam a manter a ordem e a distribuir os alimentos.
Vendo que tudo estava tranquilo, Maggie foi descansar por um instante na casa paroquial. Surpreendeu-se quando uma mulher jovem e bonita, com uma criança nos braços, procurou-a, desesperada. Dizia ser a irmã de Annie Crook e explicou que Annie a deixara tomando conta da filha e fugira para o norte, a conselho do próprio Eddy. Ele temia a reação da família e do governo por causa de seu casamento. O medo da irmã de Annie era que a criança fosse encontrada. Por isso viera falar com Maggie.
- Não sei o que fazer - disse a mulher. - Não posso continuar com Ally... É assim que a chamamos.
- Está pensando em entregá-la a alguém? - Não há outro jeito. Já sabem que a menina está comigo, por
isso tenho de ficar escondida. Eddy jamais prejudicaria a filha e prometeu enviar um fundo. Mas há os que são cegamente leais à Coroa e farão mal à menina. Se ela ficar aqui, morrerá. Estou desesperada. Só posso contar com a senhora. O que me diz?
- Salvarei a criança.
Jamie procurou um velho amigo, Harry Bartley, chefe de polícia. Bartley tinha feito plantão e estava ansioso para sair da delegacia. Jamie levou-o a um pequeno café onde puderam conversar tranquilamente. Bartley falou sobre a rivalidade entre a polícia civil e a polícia metropolitana.
- Veja você, os assassinatos não ocorreram no território da polícia civil, mas o comissário está determinado a pegar o assassino. Atualmente, o encarregado das investigações é o inspetor Frederick Abberline. Você o conhece?
- Sim. Um bom profissional. Trabalhou em Whitechapel e Bethnal Green durante muitos anos. Depois o transferiram para a Scotland Yard. Agora foi mandado de volta por causa de sua experiência na área.
- Abberline é muito bom, realmente. Mas essa política! Sir Charles Warren está em choque com o chefe da Divisão de Investigação Criminal.
- É grande o descontentamento da população com sir Charles Warren - Jamie comentou.
- Não só com ele. Recebemos centenas de cartas contendo críticas, zombando da ineficiência da polícia. Mas há algumas escritas por pessoas bem-intencionadas oferecendo informações para a captura do criminoso. Uma das cartas, porém deixou o pessoal amedrontado. A pessoa começou dirigindo-se ao "Caro Chefe". Dizia ser Jack, o Estripador, atacava as prostitutas e só iria parar quando fosse apanhado. Acrescentara que pretendia escrever a carta com o sangue da última vítima, mas ele tinha secado muito depressa. Revelou que ia atacar outra prostituta, cortaria sua orelha e a enviaria aos policiais. Como "divertimento".
Bartley falou sobre as outras cartas, consideradas importantes por conterem informações úteis, graças às quais a polícia estava detendo suspeitos para inquérito. Ele continuou:
- Meu caro Jamie, os miseráveis do East End têm sido ignorados pelas autoridades e pelas classes privilegiadas. Mas esses crimes bárbaros estão forçosamente chamando a atenção para as condições em que aquelas pobres almas vivem. Sei de pessoas que lutam e clamam por uma reforma social. Acredito que, finalmente, elas começam a ser ouvidas.
- Meu tio era um dos que lutavam no Parlamento por uma reforma social.
- É verdade. Lady Maggie, a viúva de seu tio, também se preocupa com os moradores do East End. A propósito, lady Maggie foi casada com meu primo, Nathan Lane.
- Então você a conhece bem?
- Naturalmente. Ela é admirável. Um verdadeiro anjo! Todos a adoram.
"Um verdadeiro anjo e em breve estará no céu caso continue a arriscar a vida, indo ao East End", Jamie pensou.
Disse em voz alta:
- O que está acontecendo é que cidadãos se preocupam, fazem donativos, enquanto o governo se omite, não sabe como lidar com a fome, a superpopulação dos bairros pobres e a falta de higiene.
- Lady Maggie não faz apenas donativos. Ela vai aos bairros do East End, ensina aqueles miseráveis, anda entre eles, ignorando o mau cheiro, a sujeira, os riscos de doença. É isso que a torna um anjo.
A admiração de Bartley por Maggie deixou Jamie irritado e, ao mesmo tempo, envergonhado. Perdera o tio havia pouco tempo e sonhava com a linda viúva, queria estar a seu lado, sozinho, à noite, entre os lençóis desfeitos.
Bartley voltou a falar sobre a situação difícil que estavam atravessando. Sobre as manifestações nas ruas que podiam se tornar violentas. Jamie mal o ouviu. Levantou-se.
- Obrigado pelas informações. Se descobrir mais alguma coisa, avise-me.
- Sou eu que lhe agradeço por estes minutos de descanso e pelo café. Fique tranquilo, lorde James. O que quer que eu descubra nas ruas, levarei ao seu conhecimento.
- Isto é loucura! - Mireau exclamou. - Esta menina vai lhe causar problemas. Já não chega Arianna?
- Ah, ela é linda! - Maggie olhava para a criança, enlevada.
Ally tinha olhos e cabelos escuros, rostinho corado emoldurado por cachinhos. Devia ter um ano.
- Tenho o pressentimento de que salvar esta criança faz parte do meu destino.
- Casar-se com um homem jovem e ter um filho nos braços, isto, sim, seria destino.
O cabriolé parou de repente.
- O que foi? - Maggie indagou.
- Jamie. Lorde James Langdon, seu sobrinho-neto fez sinal para a carruagem parar - disse Mireau.
- A garotinha! Pegue-a. - Maggie passou Ally para os braços de Mireau, desceu da carruagem e esperou que Jamie se aproximasse.
- O que está fazendo em Whitechapel?
- Não é da sua conta.
- Não? Sou o chefe da família Langdon e devo proteger sua vida, milady. Portanto, pare imediatamente com suas visitas a estes bairros perigosos. Se não parar, posso até acusá-la de ter sido responsável pela morte de meu tio.
Maggie ficou boquiaberta.
- Você não se atreveria!
- Experimente.
Maggie raciocinou depressa. Estava furiosa e indignada, mas não tinha condições de discutir com Jamie.
- Está bem, lorde James. Vou voltar para casa e não sairei de lá. Mireau me espera no cabriolé.
- Você irá comigo. Vou tirá-la daqui. Agora.
Ele foi até o cabriolé, pagou o cocheiro e ordenou-lhe para seguir adiante.
Mireau pôs a cabeça para fora e olhou para Maggie, angustiado. O que ia fazer com aquela criança?
Ally agitou as mãozinhas e sorriu para ele. Mireau suspirou. Começava a se apaixonar pela encantadora garotinha.
Maggie não entendia a razão de Jamie estar tão zangado. Ele sabia de seu trabalho voluntário nos bairros pobres. Bem, talvez esperasse que ela permanecesse em casa durante o período de luto. Ou será que a julgava, realmente, responsável pela morte de Charles?
Na volta para Moorhaven ele não lhe dirigiu a palavra nem o olhar. Manteve os maxilares cerrados, as mãos fechadas sobre o colo. Maggie não resistiu.
- O que há com você? Está cansado de saber que venho sempre aos bairros do East End.
- Pois devia parar com essas visitas. Há um assassino cruel agindo em Whitechapel, desafiando a polícia.
- Sempre houve crimes na região. Acontece que só agora as autoridades começam a se preocupar com isso. Já era hora de voltarem os olhos para esses bairros miseráveis.
- Certo. Mas esse louco que diz chamar-se Jack, o Estripador, escreveu para a polícia, dizendo que irá atacar novamente, em breve.
- Esse maníaco tem atacado prostitutas.
- Quem pode garantir que não atacará qualquer pessoa? De mais a mais, seu dever é ficar em casa, de olho em Arianna. Conheço minha prima. Sei que ela está planejando alguma coisa.
Maggie ficou mais aflita. Jamie a estava levando para Moorhaven e iria fazer tudo para mantê-la em casa. Mas ela precisava ver Mireau que estava com Ally!
- Ouça Jamie, vou afastar-me de Whitechapel por um tempo. Mas agora tenho de ir à Graham House. Mais tarde Clayton me levará para Moorhaven.
- Não. Como eu já disse, você tem de estar atenta a Arianna.
De nada adiantava discutir com aquele homem obstinado, Maggie reconheceu. Tinha de ficar quieta. Depois daria um jeito de sair de casa para procurar Mireau. Onde teria ele escondido a criança?
Sua esperança de escapar de Moorhaven desvaneceu-se. Jamie seguiu-a até o quarto.
- O que há? - ela zangou-se. - Estou em casa, no meu quarto, não estou? Não vou sair.
- Está zangada por que me preocupo com você? Por que desejo protegê-la? Maggie, eu não me perdoaria se alguma coisa lhe acontecesse.
Jamie segurou-a pelos ombros. Olhou-a por um momento, depois a enlaçou nos braços e beijou-a. O impulso que Maggie sentiu de empurrá-lo durou um segundo. Intenso desejo percorreu-lhe o corpo como um raio. Entreabriu os lábios e correspondeu ao beijo com ardor. Vibrou quando ele a puxou, moldando seu corpo ao dele e sentiu a força da sua masculinidade retesada pulsando. Os joelhos fraquejaram, tal o violento anseio de eliminar as barreiras que havia entre eles. Chegava a ser afrontoso desejar alguém com tanta impetuosidade e não se importar nem um pouco com o decoro ou com a iminência de cometer um pecado.
Era tão bom sentir aquelas mãos acariciando-a. Mal podia respirar, estava arquejante, ansiosa para alcançar a gravata de Jamie e desamarrá-la, ajudá-lo a livrar-se das roupas, ao mesmo tempo em que a despia. As peças foram caindo no assoalho, uma a uma. Suas bocas se juntaram, suas línguas duelaram, aquelas mãos de tangos dedos tocaram lentamente em todo o corpo de Maggie. Deslizaram pelas coxas, nádegas, voltaram para os seios, acariciaram os mamilos. Ambos caíram na cama, nus, apaixonados, sedentos, sensuais. Jamie cobriu de beijos o corpo palpitante e perfumado. Ansioso para conhecer todos os seus recantos e segredos, explorou-o, saboreou-o. No auge da excitação, posicionou-se sobre Maggie.
Amaram-se com desespero febril. Não pensaram em mais nada, esqueceram-se de tudo, conscientes apenas daquelas sensações avassaladoras, daquela embriaguez, daquela vertigem, até que se viram transportados para um universo esplendoroso de luz e de cores. Eram apenas eles dois entre rútilas estrelas...
Durante algum tempo Maggie sentiu-se oscilando entre a fantasia e a realidade. O corpo vibrante de Jamie continuava dentro dela. Queria permanecer unida a ele, descansar naqueles braços protetores, seu abrigo seguro. Mas Jamie rolou para o lado da cama.
Maggie fechou os olhos, querendo evitar os dele. Abriu-os ao perceber que ele se afastara. Viu-o sentado na beirada da cama, correndo nervosamente os dedos entre os cabelos.
- Perdoe-me - ele disse apenas.
Reinou um silêncio pesado. Jamie levantou-se e começou a vestir-se. Por fim, voltou-se para Maggie.
- Sei que eu não tinha o direito... Tentarei não invadir sua privacidade novamente.
Antes de Maggie recuperar-se do espanto, Jamie deixou o quarto.
Mireau sentia-se perdido. Ally estava com fome e começava e choramingar. Ele tinha ido de cabriolé até Moorhaven, mas ao ver a carruagem de lorde James na frente da casa, ordenara ao cocheiro para levá-lo a Mayfair. Sabia que àquela hora Justin ainda estaria na Câmara dos Lordes.
Chegando à Graham House, enrolou Ally no xale e foi procurar Clayton, sempre perfeito em suas funções de mordomo, criado ou cocheiro.
- Um bebê, monsieur Mireau?
Mireau pensou rápido.
- Sim, Clayton. É minha filha - ele mentiu. - Que Deus perdoe meu pecado. A mãe morreu... Não sei o que fazer. Me ajude.
Rugas formaram-se na testa de Clayton. Ele olhou para Mireau como se o considerasse um réprobo5. Depois suspirou.
- Tenho três irmãs que moram em uma casinha, ao norte, fora da cidade. Elas cuidarão da garotinha. Mas a pobre está faminta. Vou arranjar-lhe alguma coisa para comer.
- Deus o abençoe, bom homem! Bem, não preciso lhe dizer para guardar segredo...
- Direi que a menina é órfã.
- Perfeito. Vou pegar o dinheiro para a condução e irei até a casa de suas irmãs. Escreva o endereço em um papel.
Maggie continuou deitada por mais uns minutos, extremamente infeliz. Então a lembrança de Ally superou a tempestade que lhe ia na alma e ela saltou da cama. Tomou banho, vestiu-se e saiu apressada do quarto. No corredor teve o desprazer de encontrar-se com Arianna.
- Vai sair, cara madrasta?
- Preciso falar com Justin. Vou até a Graham House.
- Imaginei que iríamos conversar esta noite.
- Tenho de ir a Mayfair, mas não pretendo me demorar. Conversaremos mais tarde, está bem?
- Ótimo.
- Madame, vejo que vai sair. Devo esperá-la para o jantar?
Lá estava a sra. Whitley, no hall. Maggie virou-se.
-Não se preocupe comigo, sra. Whitley. Fale com lady Arianna e veja o que ela quer para o jantar.
Maggie foi à varanda dos fundos à procura de Darby. Encontrou-o lendo o jornal.
- Darby, preciso ir à Graham House. Depressa, por favor.
- Pois não, milady. - Ele dobrou o jornal.
Maggie leu:
Jade, o Estripador à espreita no East End. Guerra a Warren!
- Tempos difíceis, milady. Conheço a sua bondade, mas convém afastar-se dos bairros do East End por uns tempos.
- Tem razão, Darby - Maggie concordou.
Estava nervosa e preocupada com Mireau e a pequena Ally, Quando a carruagem parou na frente da Graham House, abriu a porta já chamando o mordomo.
- Clayton!
- Milady!
- Meu irmão está em casa?
- Ainda não chegou do Parlamento.
- E Mireau?
- Chegou e saiu. Terá umas férias, acredito. - Clayton estreitou os olhos e baixou a voz ao perguntar: - A criança... Certamente não é sua...
- É claro que não! - Maggie negou com veemência. - Mas jurei protegê-la. Está sob minha responsabilidade.
- Perdoe-me, milady, mas esse Mireau apronta e a senhora é quem paga o preço.
- Não é o que você está pensando, Clayton. Agora, por favor, diga para onde Mireau levou a menina. Ela está bem?
- Muito bem. E em breve estará sendo cuidada pelas mulheres mais carinhosas que pode haver.
- Quem são?
- Minhas irmãs - Clayton falou com orgulho. - Mas agora, milady, acho que deve explicar a este velho mordomo o que está acontecendo.
Sentado a uma das mesas do pub, Jeremiah Heath mantinha os estranhos olhos escuros fixos em Arianna. Era um homem alto, corpulento, tinha cabelos pretos muito curtos e espetados.
- E então? Me fale sobre você. - Jeremiah pediu.
- Não tenho família. Minha mãe morreu anos atrás e perdi meu pai há pouco tempo. Ele trabalhava para um alfaiate, em Birmingham. Decidi vir a Londres à procura de emprego, mas as ladies do West Side não quiseram me contratar. Então vim para East End. Mas não quero trabalhar em um bordel.
- Nem eu estou procurando uma prostituta.
- Tenho um dom especial. Sou vidente.
- Um dom? Certo. Mas preciso de alguém que faça sua parte e feche os olhos se não gostar do que irá ver.
- Se entendi bem, o negócio é pegar alguns daqueles ricaços velhos e tolos?
- Exatamente.
Arianna inclinou-se sobre a mesa.
- E se alguém aparecer para estragar o negócio? Quero dizer... um policial disfarçado... ou coisa assim?
- Sou cauteloso. Aliás, estou ansioso para ver novamente uma certa pessoa. - Ao dizer isso os olhos de Jeremiah ganharam um brilho sinistro.
Arianna sentiu um calafrio.
- Onde é nosso local de trabalho?
- Não temos um local fixo. É uma ótima medida para não sermos descobertos. Terminada a sessão, desaparecemos.
Por um instante Arianna ficou em silêncio, pensativa. Assim que Maggie ouvisse falar de Jeremiah Heath, faria tudo para comparecer à sessão, disposta a desmascarar o falso médium... Então, ele a mataria.
O coração de Arianna bateu mais forte. Será que desejava realmente a morte da madrasta? Havia momentos em que desejava viver bem com Maggie, mas esta não lhe dava atenção. Vivia num mundo só dela. Na noite anterior haviam combinado que iriam conversar e Maggie não aparecera para falar com ela. Sempre que possível a evitava.
O coração de Arianna endureceu-se. Lady Maggie matara seu pai, mas não ficaria impune. Iria pagar pelo seu crime.
Jeremiah interrompeu-lhe os pensamentos.
- Mais uma coisa. Se você me trair, desejará morrer muito antes de encontrar o descanso eterno. Entendeu?
- É claro que entendi! - Arianna respondeu, indignada. - Pode confiar em mim. Mas não me tapeie!
Jeremiah ergueu a mão e seis homens altos e fortes que se achavam em pontos diferentes do pub, aproximaram-se do chefe.
- Estes são Matthew, Luke, John, Sebastian, Raul e Garrett.
- Olá - disse Arianna para os seis grandalhões.
- Esta é Ann. Vou treiná-la para ser minha assistente.
Os homens tiraram o boné e disseram em uníssono:
- Ann.
- Hannah me disse que você estava com uma amiga. O que ela sabe sobre este assunto?
- Nada. Sabe apenas que eu estava procurando emprego. Ah, eu lhe peço para não exigir que eu ande por estas ruas no meio da noite. Há um maníaco assassinando mulheres.
- Não se preocupe. Os rapazes cuidarão da sua segurança.
- Hum. Quando começamos?
- Esta noite. Antes da reunião explicarei o que você deve fazer. Agora, John e Sebastian irão acompanhá-la até onde você mora. Quero que pegue suas coisas e leve para o meu apartamento.
- Seu apartamento? - Arianna perguntou, nervosa. - Pensei que o nosso trabalho fosse na casa de clientes.
- É na casa de clientes, mas você ficará morando com a gente. Costumo ficar de olho no meu pessoal.
- Está bem. - Arianna olhou para John e Sebastian. - Vamos pegar minhas coisas.
Assim que se levantou sentiu as pernas trêmulas e o coração apertado. Estava se envolvendo com assassinos e ladrões. Se quisesse preservar sua vida, tinha de fazê-los acreditar que estava realmente do lado deles. Se desconfiassem dela, se descobrissem quem era ela, estaria perdida.
"Não, nada me acontecerá porque bem antes de descobrirem alguma coisa, terei desaparecido", pensou confiante.
Com isso em mente, caminhou para a porta, seguida pelos dois brutamontes. Antes de sair do pub olhou para Fiona que estava sentada a uma mesa de canto, usando uma capa preta, echarpe e chapéu. Piscou para ela e esboçou um sorriso para dizer que estava tudo bem.
Então...
Viu-se na rua. Começava sua perigosa aventura.
Durante dois dias Maggie não teve notícias de Jamie. Também não conseguiu falar com Arianna. Toda vez que batia na porta do quarto da enteada ouvia a mesma desculpa dita com voz abafada. Arianna não se sentia bem.
No terceiro dia Mireau apareceu em Moorhaven. Maggie o recebeu na biblioteca, onde teriam privacidade. O que menos queria era ter a sra. Whitley por perto. A mulher não perdia a chance de intrometer-se na vida dela e de espioná-la.
- E então? Como está a menina? - ela perguntou, assim que fechou a porta.
Mireau deu um largo sorriso.
- Ally não poderia estar em melhores mãos. As irmãs de Clayton são adoráveis. Moram em uma casinha linda, com jardim bem cuidado, junto de um bosque. Ficaram encantadas com a garotinha. Parecia até que tinham recebido uma bolsa cheia de ouro. A irmã mais velha é Violet, a do meio é Mary e a mais jovem, Edith, é professora. Todas são solteiras.
- Que maravilha, Mireau!
- Estive pensando que a história que lhe contaram pode ser falsa. A pequenina Ally pode ser filha de uma prostituta e de um estivador.
- Que importância tem isso? Pelo menos a menina está sendo bem cuidada. Vamos aguardar. Quem sabe a mãe aparece.
- Estive pensando que se alguém acreditar que Ally é mesmo filha de Eddy, pode querer que ela desapareça, não só para evitar um escândalo, como para impedir que seja herdeira do príncipe.
- Ninguém sabe que ficamos com a menina, muito menos quem ela é. Bem, contei a verdade a Clayton.
- O pobre homem estava pensando horrores a meu respeito. Mas será que guardará segredo?
- Mireau! Você mora naquela casa há tanto tempo e não conhece Clayton? Ele guardará segredo até morrer. Quanto às despesas com Ally, não se preocupe. Charles deixou-me bastante dinheiro. Enviarei uma boa quantia para as três irmãs. E é claro que poderemos visitá-las.
- Fiquei apavorado quando você me deixou com a menina nos braços. E acabei me apaixonando por ela. A propósito, Jamie chegou a ver a garotinha?
- Não. Nem desconfiou de nada. Ficou enfurecido ao me ver no East End. Fez-me prometer que me afastarei de Whitechapel por algum tempo.
Maggie tocou a sineta chamando a sra. Whitley para pedir-lhe que servisse o chá e também para chamar Arianna.
- Vou chamá-la, claro, mas lady Arianna não quer sair do quarto. Me avisou que não está bem.
- Se não melhorar, chamarei o médico - disse Maggie. Dispensou a governanta e voltou-se para Mireau. - Estou contente por ver Justin tão empolgado com a política. Não perde uma sessão do Parlamento.
- Creio que ele está apaixonado - Mireau opinou.
- Não diga! Quem é a moça?
- Ele a viu uma vez. Disse que tem o rosto mais lindo do mundo. Creio que é o amor dele pela beldade que o está motivando a mudar de vida.
- Hum. Meu irmão apaixonado por uma mulher misteriosa. Isso é muito bom. Espero que pelo menos encontre a verdadeira felicidade. - Maggie suspirou. - Mireau, não vejo a hora de sair daqui. Sou a tutora de uma garota que me odeia.
- Seu papel de tutora será por pouco tempo. O período de luto também vai passar e você receberá inúmeros convites para festas.
- Não quero receber convites nem ir a festas. Você sabe que eu gosto do meu trabalho voluntário.
A sra. Whitley bateu na porta e entrou na biblioteca com a bandeja com o chá e avisou:
- Lady Arianna pede desculpas e manda dizer que continua não se sentindo bem.
- Como eu disse, convém chamarmos o médico, sra. Whitley.
- Oh, não, milady! - a governanta apressou-se em dizer. - Estive com ela. Não é nada sério.
- Seja como for, irei vê-la depois do chá. Obrigada, sra. Whitley.
A governanta saiu e Maggie serviu o chá. Tomou apenas uma xícara, pediu licença a Mireau e foi até o quarto da enteada. Como esperava, a sra. Whitley seguiu-a. Maggie bateu na porta do quarto de Arianna. Não houve resposta.
- Mas ela estava aí ainda há pouco - a governanta afirmou.
Maggie franziu a testa, preocupada. E se a garota estivesse realmente mal? Talvez inconsciente? Abriu a porta. Encontrou Fiona juntando as roupas que estavam no assoalho.
- Fiona, onde está Arianna?
- Acho que saiu, milady.
- Mas ela falou comigo poucos minutos atrás - disse a sra. Whitley.
- Não sei... Entrei no quarto agora - Fiona declarou.
A criada parecia tensa. Com medo. Maggie já a conhecia o suficiente para saber que alguma coisa estava acontecendo.
- Sinto muito, milady - Fiona acrescentou.
- Como Arianna pode ter saído, se estava doente? - Maggie argumentou.
- Quem sabe foi dar uma volta para respirar o ar fresco - Fiona sugeriu.
- Estranho.
- Estranho o que, milady?
- Não ouvi ninguém descendo a escada. E tenho certeza de que ninguém abriu ou fechou a porta da frente. - Maggie chegou bem perto de Fiona que parecia pouco à vontade. - Sabe o que eu penso?
A criada arregalou os olhos.
- Diga, milady.
- Acho que Arianna não estava no quarto, coisa nenhuma. Durante todo esse tempo você esteve aqui e quando batiam na porta, respondia como se fosse ela.
Fiona não sabia mentir e seu rosto ficou vermelho.
- Não!
- Oh, sim!
- Fiona, está despedida! - gritou a sra. Whitley. - Saia imediatamente.
- Não. Você não está despedida - discordou Maggie dirigindo um olhar severo à governanta. Não iria permitir que uma serviçal tirasse sua autoridade. Além disso, suspeitava que a mulher sabia muito bem o que estava acontecendo e acobertava tanto Arianna quanto Fiona. - Onde está Arianna?
Fiona ficou paralisada.
- Fiona, ouça bem o que vou dizer. Arianna é impulsiva, está ressentida e pode facilmente envolver-se em apuros. Pode até correr risco de morte. Pelo bem dela, diga-me, onde ela está?
- Francamente, não sei, milady. Juro!
Maggie sentou-se calmamente na beirada da cama.
- Sra. Whitley, por favor, diga ao sr. Mireau que fique à vontade. Irei vê-lo dentro de alguns minutos.
- Perdão, milady! A senhora pode precisar de mim! - a governanta protestou. - Sou a governanta e, se há alguma coisa acontecendo...
- Não se preocupe. Sou a dona da casa e Arianna é minha enteada. Cuidarei disso à minha maneira. Se não estiver satisfeita... Bem, eu lhe darei excelentes referências.
A sra. Whitley franziu os lábios, depois comprimiu-os, virou-se e saiu do quarto.
- Agora, você, Fiona - disse Maggie com firmeza.
- Está me despedindo, milady? - Fiona baixou a cabeça. - É o que deve fazer. Mas saiba que eu sempre disse a Arianna que a senhora era muito boa e não tinha feito mal nenhum a lorde Charles.
- Obrigada pelo voto de confiança, mas isso não importa. E não vou despedi-la. Preciso de sua ajuda. Onde está Arianna?
- Não sei! Não sei!
- Então diga o que sabe.
- Arianna está fora há alguns dias. Queria vingar-se da senhora. Acompanhei-a a Whitechapel três vezes. Na última vez ela falou com um homem, em um pub.
Maggie ficou atônita e assustada.
- Whitechapel? Pub? E já faz dias que você tem respondido por ela?
- Perdão. A senhora tem todo o direito de ficar zangada comigo.
- Estou mais zangada comigo mesma do que com você. Que pub é esse?
- Posso levar a senhora até lá.
- Meu Deus! Fiona, uma moça tão bonita e bem vestida, pode ter sido vítima de ladrões ou, pior ainda...
- Não, milady, Arianna comprou roupas baratas. Alugamos um quartinho miserável.
- Vamos imediatamente a esse lugar. Se Arianna não estiver lá, iremos ao pub. - Maggie levantou-se, alarmada. - Fiona, você ainda não me disse o que ela foi fazer em Whitechapel.
- Ela queria arranjar emprego como... vidente. Um médium a contratou.
- Um médium? Por quê? Arianna quer entrar em contato com o pai?
O mal-estar de Fiona aumentou.
- Na verdade, queria atrair a senhora até esse médium... Não sei bem por quê.
Maggie ficou tensa. Podia imaginar perfeitamente qual era a intenção da enteada.
- Vista as roupas mais simples que tiver. Depressa. Temos de encontrar Arianna antes que seja tarde demais.
Maggie saiu do quarto e encontrou a sra. Whitley no corredor. Espionando.
- Sra. Whitley, por favor, saia da minha frente! - Maggie zangou-se. Desceu a escada correndo e entrou na biblioteca. - Mireau! Temos de voltar a Whitechapel. Agora!
- Mas... Jamie disse...
- Esqueça Jamie. Chame Darby e lhe peça para vestir as roupas mais velhas que tiver. Arianna está em algum lugar de Whitechapel há vários dias.
- O quê?
- Foi o que Fiona me disse. Ela está trabalhando com um médium, certa de que eu ficaria tentada a ir a uma sessão para desmascará-lo assim que soubesse de suas atividades.
- Maggie, isto é perigoso. É melhor chamarmos a polícia
- Em primeiro lugar temos de encontrar Arianna. Se chegarmos ao local com a polícia, poremos a vida dela em risco. Fiona sabe onde fica o quarto que alugaram.
- As duas alugaram um quarto no East End?
- Mireau, por favor, ande logo!
- Precisamos de um disfarce. Vou até a Graham House para pegar as perucas e...
- Não. Se esse falso médium for Adrian Alexander, nos reconhecerá. Temos de usar outro disfarce.
- Estamos com pressa. O que você sugere?
Maggie refletiu por um instante.
- Já sei. Cecília!
- Quem?
- Cecília, lady de Burgh. Ela está em Londres. Vá à casa dela, Mireau. Ela lhe arranjará os disfarces de que precisamos.
Até vir para o East End, Arianna achava que conhecia a tristeza e a infelicidade. Considerava a perda do pai a maior dor que poderia suportar. Agora entendia que havia coisas muito piores do que sofrer por ter perdido um ente amado.
Viver como estava vivendo naqueles poucos dias lhe ensinara uma triste e amarga lição. Não sofria apenas por causa da sujeira e das condições precárias do lugar. Não tinha privacidade. Fora obrigada a mudar-se do quartinho que havia alugado e passara a ocupar um cubículo no apartamento de dois cômodos de Jeremiah Heath. O medo era uma presença constante. Era obrigada a suportar os olhares lascivos dos homens. Constatara que era uma prisioneira e morreria se protestasse contra o que quer que fosse ou se descobrissem sua verdadeira identidade.
Jeremiah Heath queria alcançar as classes mais altas, mas no momento contentava-se em enganar os pobres com pequenos truques para convencê-los de que se comunicava realmente com os mortos.
Arianna fora treinada para desempenhar bem seu papel de "assistente" e duas noites atrás tinha sido realizada a primeira sessão.
O dono de uma fábrica convidara Jeremiah para ir à sua casa a fim de confortar a esposa que estava inconsolável, pois o casal perdera um filho. Os "rapazes" imediatamente se espalharam pela vizinhança para obter o maior número possível de informações sobre a criança. Também tinham de voltar com o dinheiro necessário para o evento.
Retornaram com as informações, com bolsas e carteiras. Uma delas estava manchada de sangue. Arianna ficara ainda mais amedrontada. Com que tipo de criminosos se envolvera.
- Problema? - Jeremiah perguntara simplesmente.
- Nada sério - Matthew dera de ombros. - O homem estava bêbado.
- Morto?
- Como pedra.
- Não foi grande a coleta - Jeremiah queixara-se. - Bem, isto é só o começo. Continuo dizendo que precisamos voar mais alto. Temos de chegar aos ricos. A sessão de hoje tem de ser um sucesso. Cada um sabe o que fazer. Ann, você não pode deixar que os presentes baixem as mãos. Nunca.
Tudo correra perfeitamente bem. Jeremiah demonstrara ser excelente ator. Parecia realmente estar em transe. Ele voltara para casa com um belo relógio de bolso e moedas de prata.
A segunda sessão tinha sido na véspera. Estava tudo calmo, Jeremiah entrara em "transe". Começara a falar com os mortos quando um marinheiro bêbado, amigo do dono da casa, zombou do médium. Jeremiah não se alterou. Com voz grave advertiu o marinheiro que ele sofreria um acidente naquela mesma noite.
Terminada a sessão, assim que o homem deixou a casa do amigo, foi atacado por um grupo a mando dos homens de Jeremiah e seu corpo foi jogado no Tâmisa.
Naquela noite haveria a terceira sessão e Arianna começou a ter medo de que Maggie comparecesse à mesma. Não queria mais que nenhum mal acontecesse à madrasta. Reconhecia que tinha sido infantil, patética, idiota por envolver-se com gente tão perigosa. E ali estava ela, por sua própria culpa, apavorada, sendo cúmplice de crimes e arriscando a própria vida.
No momento em que a mulher começou a gritar, Jamie atravessou o beco escuro, agarrou o homem que a atacara e deu-lhe um murro no queixo, arremessando-o contra o muro de pedra.
- Por que você fez isso? - A mulher ergueu o braço e arremessou a bolsa velha na cabeça de Jamie.
- Você estava gritando e vim socorrê-la. Tentei salvar-lhe a vida.
- Eu não ia fazer mal a ela - o homem defendeu-se.
- Então por que você gritou? - Jamie indagou.
- Ele queria me passar a perna. Não me pagou o combinado. Preciso do dinheiro do albergue.
- Pague a essa senhora o que deve - Jamie ordenou.
- Ela não vale o que está pedindo - reclamou o homem.
- Pague! - Jamie insistiu.
- Você é policial?
- Não.
- Então, o que você é?
- Sou do comitê de vigilância. Pague o que deve e deixe-a ir para o albergue. Há um assassino nas ruas.
- Eu também preciso do dinheiro para o albergue - o homem queixou-se. - Fui despejado do quarto onde eu dormia.
Jamie deu uma moeda para cada um e os dois desapareceram na escuridão.
Capítulo VIII
Cecília adorava fantasiar-se e tinha todo tipo de perucas e maquiagens. Quando Mireau lhe disse o que Maggie pretendia fazer, insistiu em acompanhá-los naquela aventura. Maggie tentou dissuadi-la.
- Vamos a Whitechapel e, se possível, a uma sessão espírita. Pode ser perigoso. Você tem dois filhos pequenos, não deve nos acompanhar.
- Ora, não devo ir nem à metade dos lugares aos quais eu vou - disse Cecília, rindo.
Os três acomodaram-se na carruagem onde já estava Fiona, encolhida a um canto. Durante o trajeto Cecília colocou em Maggie uma peruca grisalha e maquiou-a deixando sua aparência envelhecida.
- Ninguém a reconhecerá. Veja o resultado. - Ela apresentou um espelho a Maggie.
- Perfeito! - Maggie exclamou.
- E então? Não está contente por eu ter vindo?
- Estou, mas não me perdoarei se alguma coisa lhe acontecer.
- Vai dar tudo certo - Cecília falou com otimismo. - Agora, vamos cuidar de Mireau.
Em poucos minutos ele ganhou uma peruca, costeleta e bigode ruivos.
Não demorou muito a carruagem parou. Darby apareceu à porta.
- Estamos na Mile End Road, milady.
Maggie voltou-se para Fiona.
- Onde fica o quarto que vocês alugaram?
- Está tão escuro! - Fiona esticou bem a cabeça para fora - Acho que é naquela ruazinha. Logo depois da esquina.
Darby permaneceu na carruagem e os quatro caminharam pela rua estreita e mal iluminada. Pouco depois, Fiona indicou um prédio velho. Todos foram até lá. Maggie bateu numa porta. Ninguém atendeu.
- Vamos entrar - disse Fiona. - Quando alugamos o quarto falamos com uma mulher que mora num dos cômodos.
Eles entraram no prédio e encontraram uma mulher corpulenta.
- O que vocês querem?
- Estamos procurando a moça que alugou o segundo quarto do corredor - Maggie explicou.
- Ah, ela já mudou. - A mulher olhou para Fiona e reconheceu-a. - Você estava com a moça. Se é parente dela, pague o que me deve. O quarto continua vazio. Estou tendo prejuízo.
- Para onde ela foi? - Maggie perguntou, impaciente.
- Vou ter o meu dinheiro?
- Dê-lhe o dinheiro, Mireau - disse Maggie e voltou-se para a mulher. - Diga, senhora, para onde a moça foi?
- Saiu com uns homens - a mulher respondeu depois de conferir as moedas. - Para onde, eu não sei não.
- Talvez a senhora possa nos ajudar de outra forma. Ouviu falar de espíritas ou médiuns que trabalham nesta área?
- Ah... Ouvi falar de um médium novo por aqui. Seu nome é Jeremiah. Mas se quiser saber mais sobre ele...
- Mireau, dê-lhe mais algum dinheiro.
- Assim está melhor. - A mulher sorriu, feliz ao receber outra moeda. - O homem não trabalha mais aqui. Ganhou fama e vai cada vez para um lugar diferente.
- Sem informação não há dinheiro - disse Mireau. - Vou tomar de volta o que lhe dei.
A mulher assustou-se e deu um passo para trás.
- Vão até o pub chamado Blarney Stone. Os homens de Jeremiah estão sempre lá e o gim é baratinho.
Acabando de falar a mulher entrou no cômodo e bateu a porta na cara deles.
Era meia-noite.
Jamie entrou no segundo pub e encostou-se na parede para observar as pessoas que entravam e saíam. Mesmo sabendo que havia um assassino à solta, tanto homens como mulheres continuavam a frequentar os pubs e outras casas noturnas, e a andar pelas ruas.
A polícia estava atenta, guardas eram vistos em todos os lugares.
Olhando pela janela, surpreendeu-se ao ver, de relance, uma carruagem luxuosa passar pela rua. Imediatamente pensou em Maggie e seu sangue gelou. Será que lhe desobedecera e viera a Whitechapel à noite? Ele foi para a porta. Não havia brasão nenhum na carruagem. O veículo parou no quarteirão seguinte. Um homem usando capa preta e cartola saiu da carruagem. Uma mulher ia passando pela calçada e o homem fez com que ela parasse. Ambos conversaram.
Intrigado, Jamie saiu do pub, andou nas sombras, rente às casas, para não ser visto e parou atrás da carruagem. Constatou, surpreso, que o homem era Justin, barão de Graham. Era impossível ouvir o que ele e a mulher conversavam. Jamie ia apresentar-se, mas Justin entrou na carruagem que seguiu em frente.
A mulher viu Jamie e recuou, assustada.
- Não tenha medo. - Jamie levantou as mãos. - Não chegarei perto de você. Só preciso de uma informação. Pago bem.
- Que informação?
Jamie tirou uma moeda de prata do bolso e atirou-a para a mulher.
- O que o cavalheiro queria com você?
- Só queria uma informação. Como o senhor.
- Que informação?
- Me perguntou se eu tinha visto alguma pessoa suspeita e se eu conhecia uma certa casa... de má fama.
Jamie não entendeu nada. O que Justin, que pretendia mudar de vida, estava fazendo naquelas ruas?
- Obrigado - ele agradeceu. - Para onde você vai?
- Por quê? Tem alguma coisa em mente, queridinho?
- Estou pensando na sua segurança. Já é tarde. Deve ir para casa.
- Você é gentil, muito bonito e me deu uma moeda de valor.
- Guarde-a e vá para casa.
A mulher se afastou.
Ficar no pub de nada adiantava, Jamie pensou. Continuou a andar. De repente, um grito cortou a noite envolta na neblina.
- Assassinato! Meu Deus, outro assassinato! - um homem exclamou.
Jamie começou a correr na direção do grito.
No pub Blarney Stone, Mireau foi até o balcão, onde ficou mais tempo do que devia só para ouvir sobre o que as pessoas conversavam. Depois pediu as bebidas e voltou para junto de Maggie, Cecília e Fiona que estavam sentadas a uma pequena mesa.
- Qual é a conversa no bar? - Maggie quis saber.
- Estão falando sobre os assassinatos, sobre emprego, trabalho informal e criticam a polícia, dizendo que devia ser mais eficiente. A mulher com o xale estampado está pedindo para aquele cavalheiro acompanhá-la porque tem medo de andar sozinha nas ruas. E observem discretamente o homem de calça bege e casaco preto. Ele está olhando para nós.
- Eu já notei que não tira os olhos desta mesa - disse Maggie.
De repente, gemeu e sua cabeça tombou para frente.
- O que foi? - Mireau gritou, realmente assustado.
Cecília foi rápida.
- Você é bobo mesmo e insensível. Não vê que a pobre esta sofrendo? Desde a morte de seu querido Frank ela tem essa febre.
Maggie ergueu a cabeça e levou o lencinho ao nariz.
- Vocês não entendem. Já falamos sobre isso. Eu não me perdôo porque discutimos naquele dia e ele se foi... Não pude dizer que o amava demais.
Cecília passou o braço ao redor dos ombros de Maggie e confortou-a. Voltou-se para Mireau.
- Não fique aí sentado como um paspalho. Titia precisa de outro gim.
- Certo. Certo. - Mireau levantou-se e foi ao bar.
- Você viu aquele homem antes? - Maggie perguntou a Fiona.
- Não. Espere... Acho que ele estava no pub quando Arianna conversou com o tal Jeremiah.
O homem aproximou-se de Mireau que estava no bar pedindo o gim. Conversou com ele e voltaram juntos para a mesa.
- Este é John - Mireau apresentou-o.
Maggie fungou e apenas balançou a cabeça.
- Olá, John - disse Cecília. - Desculpe minha velha tia. Ela não está bem esta noite.
Velha tia?, Maggie pensou. Ah, Cecília divertia-se às suas custas.
- Prazer - tornou Fiona, estendendo a mão.
- Perdoe-me a intrusão, senhora, mas não pude deixar de ouvi-la. Posso avaliar sua dor. - John abaixou a voz ao acrescentar. - Vejo que vocês não moram nesta área.
- Não moramos, mas passaremos a morar. Tio Frank nos deixou sem nada - Cecília queixou-se. - Vamos entregar nossa casa. Pelo menos temos coisas para empenhar.
Cecília olhou para John como se suspeitasse dele. Ele apressou-se em dizer:
- Não precisam ter medo de mim. Não pretendo aproveitar-me do seu infortúnio. É que ouvi o lamento da pobre senhora e pensei que talvez possa fazer alguma coisa para que se sinta melhor.
- Acredito que não. O mal dela é espiritual. Nada a conforta. Sente saudade do marido.
- Ela nunca procurou entrar em contato com o falecido?
- Como? Ele está frio na sepultura.
- Você não entendeu! Há pessoas que podem romper as barreiras entre a vida e a morte - John observou.
- Tolice! - Cecília abanou a mão.
- Nunca ouviu falar em espíritas? Médiuns? Então você deve morar numa caverna.
- Eu já ouvi falar. São uns impostores! - disse Mireau com ar desdenhoso.
- Nem todos. Há os que têm o dom verdadeiro.
- Se existem, onde posso encontrar um com esse dom?
- Não em mansões! Pessoas com esses dons são modestas Não são como esses ricaços tolos que acendem uma vela e acham que podem falar com fantasmas. Mas há um homem... e sua filha, uma linda moça. Eles vão à casa da pessoa que está sofrendo.
- Seja como for, esse homem deve ser um farsante.
- Você não ouviu falar de Jeremiah Heath?
- Ah, ouvi esse nome, realmente. - Cecília voltou-se para Maggie. - Tia, você estava comigo, lembra? Ouvimos aquela mulher conversando com a amiga, ela jurava que esse Jeremiah Heath era mesmo fantástico.
Maggie olhou para Cecília, depois para Mireau.
- Talvez esse homem seja mesmo fantástico. Mas não temos onde recebê-lo.
- Isso não é problema - disse John mais do que depressa. - Sei onde Jeremiah Heath estará esta noite.
Mireau olhou para Cecília e resmungou:
- Nem pense em gastar o pouco que nos restou.
- Ah, vamos ter a pensão! - Cecília dirigiu a Mireau um olhar súplice. - É pelo bem de nossa tia. Ela está definhando, não vê?
Mireau encarou John, muito sério.
- Esse homem não é um impostor? Jura que ele é um médium? É honesto?
John levantou a mão direita.
- Juro pela alma de minha mãe!
- Como iremos até ele?
- A reunião será na casa de um fabricante de cigarros. Ele e a esposa perderam o único filho. Casal modesto. Os consultantes sempre contribuem com alguma coisa. Para a sobrevivência do médium e... obras de caridade.
Maggie perguntou a Mireau com voz débil:
- Quanto nos resta?
- Sete libras, mais ou menos.
- Sete libras esterlinas! - John empolgou-se. - Quase o preço que Burke e Hare cobravam pelos cadáveres que vendiam à escola de anatomia, para dissecação.
Os quatro o encararam estupefatos. Imediatamente ele desculpou-se.
- Perdoem-me. O que eu quis dizer é que essa quantia é suficiente. Agora devem ir. Está ficando tarde. A reunião será numa casa branca, grande, com muro de pedra meio desmoronado. Hanbury Street. Nos veremos lá.
- Sete libras esterlinas! - Cecília exclamou, assim que John se afastou. - Uma fortuna em bairros como este. - Podemos ser assaltados antes de chegarmos à tal casa.
- Nada nos acontecerá. Se Deus quiser, encontraremos Arianna.
Mireau terminou de tomar o gim e estremeceu.
- Passa da meia-noite! Os criminosos estão nas ruas para sua "caçada"!
O som alto da música misturava-se aos gritos que começavam a encher a noite. Os que se divertiam no clube operário não faziam idéia de que ali perto uma mulher tinha sido assassinada.
Na cena do crime havia uma confusão quando Jamie chegou. Um funileiro ambulante descobrira o corpo de uma mulher na Berner Street, e chamara a polícia. A pobre vítima tinha a garganta cortada. Vários policiais revistavam os arredores, interrogavam as pessoas à procura do assassino ou de pistas. Dr. Bagster Phillips, cirurgião, examinava o cadáver.
Jamie esperou um pouco entre os curiosos. Por fim, o médico concluiu que o assassino devia ser Jack, o Estripador, mas fora interrompido antes de fazer as mutilações.
- Esse Jeremiah Heath e Adrian Alexander devem ser a mesma pessoa. Acho melhor chamarmos a polícia - Mireau opinou.
- Nada de polícia. Temos de nos arriscar por causa de Arianna - Maggie observou.
- Se Arianna está com ele é porque deseja vê-la morta Maggie! - Mireau insistiu.
- Será impossível alguém me reconhecer.
- Eu não tenho disfarce. Ela vai me reconhecer e me odiar achando que sou uma traidora - Fiona queixou-se.
- Você ficará na carruagem.
- E eu? Arianna me viu no velório e no funeral de lorde Charles - Mireau alegou.
- Não. Arianna não esteve no velório nem foi ao enterro do pai - Fiona confessou, vermelha de vergonha. - Eu era a moça toda vestida de preto e com o véu. Fiz isso por Arianna. Crescemos juntas, somos amigas e sempre hei de servi-la.
- Deixemos esse assunto para depois. Temos de nos apressar. Mireau e Fiona ficam na carruagem. Quanto a você, Cecília, virá comigo se quiser.
- Nada me impedirá de assistir a esta sessão! - Cecília declarou.
- Você não entrará nessa casa sem mim! - Mireau protestou.
- Entrarei, sim. Tenho de encontrar Arianna. Devo isso a Charles. Você, Darby e Fiona podem ser mais úteis aqui fora, vigiando.
Maggie e Cecília abriram o portãozinho e iam subir os degraus à frente da casa quando um homem jovem como John, saiu das sombras.
- Olá.
- Nós... viemos para a sessão - Cecília começou. - Nos disseram que teríamos a chance de ver Jeremiah Heath aqui esta noite.
- E os outros dois, não vão entrar?
- Nossa criada sentiu-se mal e meu marido ficou cuidando dela. Ele estará conosco dentro de alguns minutos, se possível. Viemos na frente com medo de não poder entrar. Estamos atrasados.
- A sessão ainda não começou. Surgiu um pequeno imprevisto.
As duas entraram na casa e foram recebidas por uma mulher simples, abatida, usando vestido preto.
- Sou a sra. Hennesy. Sejam bem-vindas à minha humilde casa.
- Sou Mona. Esta é Sissy, minha sobrinha.
Houve apertos de mão e a sra. Hennesy levou as duas a uma sala. Maggie ficou perplexa ao ver Arianna sentada a uma mesa redonda colocada na frente da lareira. Estava muito magra, mortalmente pálida, usava uma túnica branca e tinha os cabelos soltos caídos às costas. Três "controladores", jovens e corpulentos estavam de pé, aguardando a chegada de Jeremiah.
A sra. Hennesy fez as apresentações:
- Esta jovem adorável é Ann. Ann, esta senhora é Mona e sua acompanhante é a sobrinha, Sissy.
- Boa noite, senhoras. Sejam bem-vindas - Arianna saudou-as.
Sua voz soou estranha, lânguida, mas agradável, com a entonação correta. Evidentemente ela havia sido submetida a um treino, como se fosse uma foca amestrada.
Um homem alto e forte entrou na sala e beijou o rosto da sra. Hennesy.
- Meu marido, George Hennesy.
- Houve mais uma vítima nas redondezas - ele anunciou.
- Outro assassinato - Arianna murmurou.
- A pobre mulher teve a garganta cortada, mas comentam nas ruas que o assassino talvez não seja esse tal Estripador. Ou então ele não teve tempo de continuar cortando a vítima.
- O assassino é o mesmo - Arianna afirmou.
- Meu Deus! - Cecília levou a mão à garganta.
- Creio que todos nós precisamos de um pouco de brandy. Tenho uma garrafa na cozinha - ofereceu a sra. Hennesy. - Venham! Vocês também, rapazes.
Cecília hesitou e Maggie empurrou-a.
- Vá!
Assim que todos deixaram a sala, Maggie foi até a mesa e sentou-se do lado de Arianna.
- Vou tirá-la daqui. Esta gente é perigosa.
Arianna olhou bem para Maggie e cobriu a boca com a mão. Em seguida falou em voz baixa:
- É você quem deve sair daqui, Maggie! Eles matam por prazer, para se divertir, por alguns xelins.
- Sim, vou sair e você irá comigo.
Os olhos de Arianna encheram-se de lágrimas.
- Não posso. Se você disser uma palavra ou se eu fizer um movimento, eles me matam. Se descobrirem quem sou... estarei perdida. Por favor, não faça nada. Salve-se você.
A sra. Hennesy voltou com um cálice numa bandeja.
- Beba, Mona. Este é especial, estava guardado há algum tempo, mas...
- Obrigada, sra. Hennesy. Fazemos questão de contribuir. Reservamos algumas libras para esse fim. - Maggie sorriu para John que havia voltado e estava atrás de Arianna. - A jovem me deixou tão esperançosa. Ela acredita que meu amado Frank está bem perto.
- Ann é uma preciosidade - declarou a sra. Hennesy.
A porta abriu-se e Maggie ficou gelada. Mireau entrou na sala.
- Perdoem-me pelo atraso. Nossa jovem criada estava passando mal. A pobre está sempre doente. - Ele voltou-se para George Hennesy e enfiou a mão no bolso. - O senhor é o dono da casa?
- George Hennesy, ao seu dispor.
- Aqui está, meu bom homem. Nossa contribuição.
George Hennesy contou as libras, satisfeito. Pediu para a esposa servir brandy ao recém-chegado e entregou as moedas a John que sorriu, mais contente ainda.
- Jeremiah os recompensará por sua generosidade.
- O sr. Jeremiah está demorando - queixou-se a sra. Hennesy. - Justamente hoje que tenho o forte pressentimento de que entraremos em contato com nosso filho.
- Ele virá - John assegurou.
- Com certeza ficou detido por causa do tumulto - Mireau opinou.
- Houve um assassinato - disse o sr. Hennesy.
- Um, não. Dois assassinatos - Mireau corrigiu-o. - É o que estão gritando nas ruas.
Os gritos de protestos, assobios e apitos vinham da Mitre Square. Jamie caminhou até lá. A praça estava cheia de policiais, tanto da polícia metropolitana, quanto da polícia civil. Eles precisavam investigar o local à procura de pistas e indícios que levassem ao assassinato e estavam tendo dificuldade de manter a multidão bem afastada do corpo da vítima. A segunda naquela noite.
Tudo indicava que a mulher, cujo corpo fora encontrado na Berner Street e essa, ali estendida, toda mutilada, tinham sido vítimas de Jack, o Estripador. Os peritos acreditavam que o assassino tinha atacado a primeira mulher e, não podendo continuar sua obra macabra, caminhara cerca de quatrocentos metros até a Mitre Square e fizera outra vítima.
Um tenente reconheceu Jamie entre a multidão e falou-lhe em voz baixa:
- Lorde Langdon! Alguns oficiais da polícia metropolitana não estão contente comigo, mas cumpro ordens. Meu chefe em breve estará aqui.
- Não quero atrapalhar, mas eu gostaria de dar uma olhada. Posso?
- Claro.
Jamie abaixou-se. Seu olhar estarreceu ao constatar as condições da pobre mulher.
O furor que o assassino sentira por não ter conseguido completar a mutilação do corpo da mulher da Berner Street, fora descarregado na vítima da Mitre Square, Jamie refletiu, levantando-se.
- Ele trabalhou depressa. O policial que fazia a ronda passou por aqui à uma e meia e a praça estava deserta. Quinze minutos depois encontrou o corpo - comentou o tenente.
- Percebe-se que ele tem grande habilidade com uma lâmina - Jamie murmurou.
Dois homens acabavam de chegar e conversavam com um oficial.
- Aqueles são o dr. Brown e dr. Sequira - informou o tenente.
Jamie mal o ouviu. Olhou mais uma vez para o corpo mutilado e pensou com tristeza se teria visto alguma vez a mulher em um dos pubs, ou andando nas ruas, ou, ainda numa das reuniões de Maggie... Mesmo que tivesse visto, seria impossível reconhecê-la, tão desfigurado e coberto de sangue estava seu rosto.
- Pobre de vocês, não têm muito sossego por aqui - Mireau observou, sufocando um bocejo.
Eram duas e meia da madrugada e o desconforto do grupo aumentava. Nada de Jeremiah Heath aparecer.
- Podemos voltar outro dia, em horário mais conveniente - Mireau acrescentou.
- O melhor horário para o contato com o além é depois das onze e meia - declarou John. - Quanto ao atraso do sr. Heath, é a primeira vez que isso acontece.
Nem bem ele acabou de falar, um dos rapazes abriu a porta e um homem com longa capa preta e cartola entrou na sala. Maggie o encarou.
Ele era alto, forte, tinha barba, bigode, cabelos pretos, bem curtos e era muito parecido com Eddy, o neto da rainha.
Para Maggie, não havia engano. O homem podia ter agora o nome de Jeremiah Heath, podia estar usando peruca, mas era Adrian Alexander. Ela percebeu que Mireau também havia reconhecido o farsante. Apesar de agitada, procurou não demonstrar o que sentia. Observou os "controladores". Três perto de Arianna, dois à porta e um lá fora. Seis. Com "Jeremiah", sete. Sete bandidos, armados. Ela, Cecília e Mireau podiam ir embora depois da sessão e ficariam de voltar uma outra vez. Deixariam Jeremiah e seus rapazes esperando-os ansiosos, contando com as libras esterlinas. Mas havia Arianna.
- Boa noite - o homem cumprimentou-os.
- Oh, sr. Jeremiah! - a sra. Hennesy falou, alvoroçada.
- Peço-lhes sinceras desculpas por meu atraso - disse ele. - Há grande agitação nas ruas. Vocês talvez não saibam, mas o monstro atacou de novo.
- Oh, sabemos, sim. Vi o tumulto nas ruas - tornou George e indicou Mireau. - Aquele senhor também viu.
- Sim. - Mireau concordou. - Uma coisa horrível.
Jeremiah Heath levou as mãos ao peito e olhou para o alto.
- Talvez, com o tempo, os espíritos dessas pobres vítimas entrarão em contato comigo e serei capaz de ajudar a polícia a descobrir o assassino.
Jeremiah olhou ao redor.
- A senhora é Mona. - Ele apertou a mão dela.
- E o senhor é Jeremiah Heath - disse ela, sentindo repulsa por causa daquele contato.
- Ao seu dispor. - Jeremiah curvou-se para Mireau e Cecília e acrescentou: - Vamos tomar nossos assentos.
Ele sentou-se na frente de Arianna e distribuiu os lugares à mesa. Um dos rapazes diminuiu a chama dos lampiões a gás. Arianna começou a falar, recomendou que todos ficassem de mãos dadas e Jeremiah não tardou a entrar em transe. Sua voz transformou-se. Passou a falar como criança e a sra. Hennesy, emocionada, com lágrimas nos olhos, murmurou o nome do filho, ouviu o que ele dizia, fez perguntas, acreditando piamente que conversava com seu Billy.
Minutos depois reinou o silêncio. Arianna disse com voz suave que lamentava, mas o médium não ouvia mais nenhum espírito. De repente, ele estremeceu, virou os olhos e voltou a falar. Agora com a voz enrouquecida, de um velho.
- Mona!
O homem sabia representar, Maggie pensou. Bem que poderia ganhar a vida como ator em vez de cometer crimes.
- Mona, querida Mona!
- Frank? - Maggie indagou.
Sem querer, Arianna estendeu a mão, rompendo o círculo.
Jeremiah tombou para frente. Arianna desculpou-se novamente.
- Sinto muito, Jeremiah está exausto e perdeu a conexão. Tenho certeza de que o sr. Frank poderá ser ouvido outra vez, mas não hoje.
- Por favor, quero ver o sr. Heath novamente. Preciso falar com meu marido. - O desespero de Maggie era autêntico.
Não podia tirar Arianna dali naquela noite e não teria paz se não pudesse voltar o mais depressa possível para salvá-la.
Jeremiah Heath levantou a cabeça e abriu os olhos. Parecia exausto, realmente.
- Água - ele pediu.
- Oh, claro! - A sra. Hennesy afastou-se apressada e voltou com um copo d'água.
Jeremiah matou a sede e desculpou-se.
- Lamento, cara Mona. Eu a desapontei.
- Não... Não... Fiquei muito feliz porque o sr. e a sra. Hennesy puderam falar com o pequeno Billy. Mas Frank... não tive tempo de lhe dizer que... sinto muito. Que o amava tanto. Por favor, preciso vir a outra sessão.
- Não fique tão aflita, cara senhora. Podemos marcar outra sessão. Eu a atenderei daqui a duas ou três semanas.
- Tanto tempo assim?
- Senhora, meus ajudantes e eu precisamos nos manter. Cuido de outros negócios.
- Não posso lhe pagar muito, mas temos o dinheiro da pensão. Estou desesperada. Não tenho paz. Durmo pouco à noite. Se marcar outra reunião para amanhã, irei ao banco e trarei o suficiente para vocês se manterem durante um mês. Eu sei que o senhor não exige esse tipo de pagamento, mas veja essa ajuda como uma forma de compensá-lo do prejuízo.
Jeremiah suspirou.
- Tenho um dom, senhora, e acho humilhante ter de receber pelo que faço.
- Todos nós precisamos de um rendimento - Cecília aparteou.
- Por favor, atenda minha tia - pediu Mireau.
- Está bem. - Jeremiah olhou para Arianna. - Filha, podemos atender a sra. Mona amanhã à noite?
- Amanhã? Segunda-feira... Se não houver problema para o senhor, tudo bem.
- Então está acertado. Iremos à sua casa.
- Como? Estamos nos mudando.
- Ora, por favor! Vocês são bem-vindos aqui novamente - ofereceu a sra. Hennesy. - Não é mesmo, George?
- Naturalmente, querida.
Maggie estava ansiosa para falar com Arianna. Quando todos se levantaram e foram para a porta, ela ficou para trás.
- Eu não lhe agradeci, querida criança. Muito obrigada, Deus a abençoe. - Maggie abraçou Arianna e sussurrou: - Voltaremos amanhã. Esteja preparada.
- Não posso ir com vocês. Eles matarão todos nós! Se tentarem me levar eu gritarei, assim não suspeitarão de mim. Darei um jeito de fugir por minha conta - Arianna também sussurrou. Acrescentou em voz alta: - Não pude fazer nada pela senhora, mas amanhã à noite a senhora terá, por intermédio de Jeremiah, o conforto que está buscando.
- Tenho certeza disso.
Maggie não pôde dizer mais nada. Jeremiah tinha voltado e colocara a mão enorme no seu ombro.
- Até amanhã - ela despediu-se.
Mireau segurou-a pelo braço e puxou-a para fora da casa. Maggie olhou para trás e viu a profunda tristeza nos olhos de Arianna. Tristeza... de morte.
A notícia de novos assassinatos circulou por toda a Grã-Bretanha e fora dela. Nos jornais as manchetes gritavam.
Jack, o Estripador atacara novamente.
A primeira vítima daquela madrugada tinha sido Elizabeth Stride, ou Long Liz, como era conhecida. O assassino, sem dúvida, fora interrompido e não concluíra seu "trabalho". A mulher perdera a vida, mas, não fora mutilada.
A segunda vítima, Catherine Eddowes, fora cruelmente retalhada, tivera o rosto desfigurado. Muitos jornais descreveram o crime com detalhes repulsivos.
As especulações corriam desenfreadas. Os assassinatos eram cometidos por gangues; havia um maníaco solto; o assassino era uma pessoa influente e rica, de um bairro elegante, que chegava de carruagem, cometia o crime e saía sem deixar pistas. Diziam que Jack, o Estripador, tinha conhecimento de anatomia, portanto, seria um médico, ou um açougueiro. Falava-se ainda que havia uma conspiração para atingir pessoas importantes do país. Havia até a versão de que os crimes eram praticados por uma parteira louca.
Era quase meio-dia quando Jamie, por fim, acordou. Tinha assistido à autópsia da segunda vítima, também conhecida como Kate Kelly, entre outros nomes, e deixara o necrotério exausto, com enjôo e chocado. Nem mesmo na Índia, quando enfrentara os tugues6, vira tanta selvageria perpetrada por um ser humano contra seu semelhante. A autópsia, porém, não tinha sido a única parte consternadora daquela noite a serviço da rainha.
Ocorrera outro fato.
A polícia acreditava estar na pista certa do assassino. Um agente encontrara um pedaço do avental ensanguentado de Catherine Eddowes perto de um sobrado da Goulston Street. Na parte inferior da parede havia uma mensagem, supostamente do assassino, escrita com giz, que dizia: "Os judeus não levam a culpa por nada". O superintendente de polícia chegou ao local e, vendo a mensagem, mandou apagá-la com medo de que os moradores da área a lessem e o sentimento anti-semita e contra estrangeiros em geral, bem como a tensão religiosa já existente, provocassem um tumulto.
Detetives insistiram para que a mensagem fosse deixada, para ser, pelo menos fotografada quando o dia clareasse, pois era uma parte da cena do crime. Mas sir Charles Warren, comissário da polícia metropolitana, concordou com o superintendente e a mensagem foi apagada. Os jornais exigiram a renúncia de Warren.
Na noite do duplo assassinato, os inspetores andaram pelos telhados, interrogaram inúmeras pessoas, revistaram toda a área procurando evidências, alguma pista que levassem ao criminoso. Mas Jack atacara duas vezes e, novamente, desaparecera deixando, em vez de pistas, confusão e acusações que repercutiam por todo o país e no exterior.
Muitos dos que moravam e trabalhavam em Whitechapel, Spitalfieds e nas áreas vizinhas, e que tinham ignorado os dois primeiros assassinatos, não puderam mais ficar indiferentes ao que acontecia.
O medo pairava no ar. Podia-se cheirá-lo, ouvi-lo, senti-lo. Mulher nenhuma se considerava segura. Havia muito horror e muita especulação.
Jamie levantou-se, ainda cansado, e vestiu um robe.
Esperava que a rainha o chamasse e essa expectativa o fazia sentir-se desconfortável. Sua Majestade iria ficar horrorizada ao ouvir o que ele tinha para relatar. De fato, era incompreensível que o caos estivesse se instaurando na cidade, sendo que os cargos de maior responsabilidade estavam nas mãos de pessoas qualificadas e de extrema competência.
Ele ia começar a se vestir quando bateram na porta. Era Randolph. Maggie o acompanhava.
- Desculpe, milorde, avisei lady Maggie que o senhor ainda estava deitado, mas ela insistiu. Disse que era importante - Randolph explicou.
- Bem, entre, Maggie. Mas desde já a aviso. Tive uma péssima noite.
- Péssima noite! Você não imagina como foi a minha!
Randolph deixou os dois sozinhos e fechou a porta.
- O que pode ter acontecido de tão ruim num lugar sossegado como Moorhaven? Isto é, espero que você não tenha ido a Whitechapel...
- É sobre Arianna.
- Arianna! Arianna! Madame, ela está sob sua guarda. Qual é seu problema com ela? Ciúme? - Jamie falou, irritado, entrou no banheiro e bateu a porta.
No mesmo instante arrependeu-se. Ninguém tinha culpa do seu mau humor. Ninguém era responsável por aquela sensação de fracasso, apesar de todo o seu empenho para encontrar alguma coisa, alguma pista que pudesse ajudar a descobrir quem era o assassino de Whitechapel.
Abriu a porta, pronto para pedir desculpas, para explicar o motivo de sua frustração.
Quando entrou no quarto, Maggie tinha ido embora.
Maggie andava de um lado para o outro da biblioteca.
- Que homem insuportável! Não consegui falar com ele - desabafou.
- Você foi impulsiva. Devia passar por cima de suas diferenças com lorde James. A situação é grave e acredito que só ele pode nos ajudar - Mireau ponderou.
- Jamie se recusou a falar comigo! Nem me ouviu. Bateu a porta na minha cara!
- A vida de Arianna está em jogo. Precisamos de lorde James. Posso chamá-lo, se você quiser.
- Nem pense em trazê-lo aqui. Acabei me convencendo de que é melhor não envolvermos Jamie nesta história.
- Você não está raciocinando bem.
- Ouça. Arianna está em pânico. Ela acredita que se alguém se aproximar dela, levará um tiro ou uma facada, na hora. Portanto, não será possível irmos à sessão com a polícia. Temos de ser espertos, discretos, engenhosos.
- Ah! Muito fácil. Lembre-se de que estaremos no meio de sete brutamontes assassinos.
- Tenho um plano. Vamos dar brandy com bastante láudano para Arianna e para os outros. Em poucos minutos todos estarão dormindo. Levaremos a garrafa já preparada. Então carregaremos Arianna para fora da casa. Justin estará à nossa espera com meu primo, Tristan. Ele me disse que deseja ser oficial da polícia.
- Maggie, isso não vai dar certo!
- Vai! Conheço o láudano muito bem. Vamos avisar Justin e Tristan que eles devem estar armados.
- Maggie, você me assusta. Mas... E se...
- Nada de "mas" e de "se". Vai dar certo.
- E se eles não aceitarem o brandy?
- Aceitarão. Todos aceitaram ontem à noite.
- Todos, menos Jeremiah.
- Não se preocupe. Pensarei em outra coisa.
Bateram na porta e Maggie assustou-se.
- Deve ser a adorável sra. Whitley - disse Mireau com um sorriso.
Não era. Sem esperar permissão, Jamie abriu a porta e entrou na biblioteca.
- Lorde James! - Mireau exclamou, sentindo-se desconfortável. - Boa tarde.
- Boa tarde, Jacques. Desculpe, mas eu gostaria de falar com Maggie. A sós.
- Estamos conversando, milorde. É um assunto muito sério - Maggie expôs, tensa.
- Continuaremos a conversa mais tarde, Maggie. Já estou saindo - tornou Mireau.
Ele levantou-se, sorridente. Maggie teve vontade de atirar alguma coisa nele, de chamá-lo de desertor. Ela ficou de pé, olhando para Jamie. Muito bem barbeado, alto, imponente, forte, cortês, não podia estar mais sedutor.
- Vim pedir desculpas.
- Está desculpado - ela respondeu com voz suave.
- Assim, tão facilmente? Fui grosseiro, bati a porta na sua cara. Não acredito que você não tenha guardado ressentimento e esteja aí, na minha frente, tão gentil.
Ela deu de ombros.
- Você estava certo. Arianna é assunto meu. Está sob minha guarda e minha responsabilidade. Quem tem de lidar com isso, sou eu.
- Não fui justo com você. Tenho um compromisso só daqui a uma hora. Posso falar com Arianna por uns minutos.
- Por que se preocupar? Conseguirei conviver com minha enteada durante os poucos meses que faltam para ela atingir a maioridade. Então será apresentada à corte, depois se casará. Era esse o desejo de Charles. Creio que ele pensava em você para marido de Arianna.
- Eu? Casar-me com Arianna? - Jamie encarou Maggie confuso.
- Não era o que seu tio queria?
- Não!
- Mas eu pensei que...
- Realmente, tio Charles pensava em alguém para marido de Arianna. Creio que era Justin. Ele admirava seu irmão. Gostava muito dele. Justin cometeu erros, mas tem grandes qualidades. E agora está levando a política a sério. Provará seu valor, tenho certeza disso. Bem, agora devo falar com minha prima.
- Ela não está em casa.
- Podemos conversar só nós dois. Tenho algum tempo. Sou esperado no palácio às quatro. A rainha está realmente preocupada com a monarquia. Também está horrorizada com o que tem acontecido. Ninguém pode ficar indiferente a esses terríveis assassinatos. Ontem estive lá.
- Em Whitechapel?
- Sim, vi as duas vítimas.
- Por que esteve lá?
- Para investigar. Tentar descobrir alguma pista que leve ao criminoso.
- Centenas de policiais tentam a mesma coisa. Conhecem bem a área. Conhecem aquelas pessoas, os bêbados e as prostitutas.
- Sabe que Catherine Eddowes tinha sido presa? Eles a soltaram e pouco depois a pobre encontrou o Estripador.
- Conheci Catherine. Ela compareceu a várias reuniões. Sei que aparecia por causa do lanche e não pelas palestras. Uma pobre criatura. Sempre tão triste!
- Pelo menos sua miséria acabou. - Jamie fechou os olhos por uns segundos, antes de dizer: - Bem, tenho de ir.
- Fique mais um pouco. Abrace-me. A vida é tão frágil e preciosa. Cada momento deve ser apreciado, vivido com intensidade.
Ele tomou-a nos braços, acariciou-lhe o rosto, os cabelos, e a manteve junto do peito, cada um sentindo as batidas do coração do outro.
- É tão bom abraçá-la. É pena que não me reste nem uma hora.
Os olhos azuis perderam-se nos cinzentos.
- Há tempo para bem mais do que um abraço.
Os lábios de Jamie alargaram-se num sorriso malicioso.
- Aqui na biblioteca? Não creio que você esteja sugerindo a leitura de um bom livro.
- Esta casa é enorme, com uma enormidade de quartos. O meu, por exemplo.
- O que dirão os criados?
- Não faço idéia, tampouco me interessa.
- Ah, os minutos passados com você serão momentos de ventura pelos quais tanto anseio.
- Irei na frente. Assim os criados não notarão nada.
- E a sempre presente sra. Whitley?
- Depois de uma conversa que tivemos, ela anda mais reservada.
Maggie soltou-se dos braços de Jamie e foi para seu quarto. O coração batia tão forte que parecia querer saltar do peito.
Seu comportamento estava sendo, no mínimo, escandaloso, pensou. Fazia pouco tempo que Charles tinha morrido. Mas... estava tão apaixonada! Nunca havia imaginado que voltaria a sentir por um homem o que sentia por Jamie. Isso estava acontecendo num momento em que as pessoas viviam inseguras, alarmadas, pressentindo que o país desmoronava ao seu redor. Seu mundo pessoal estava no meio de uma crise, mas ela não era pessoa de se deixar abater. Sabia o que queria, tinha seus sonhos e iria realizá-los. E realizá-los agora, quando a vida parecia infinitamente mais preciosa e também mais frágil.
Ah, iria entregar-se a Jamie como se aquela fosse a última vez. Viveria aqueles instantes mágicos com abandono. Os próximos momentos seriam como o alento final, o último suspiro, algo como o último prodígio, saboreado com volúpia antes que a noite chegasse.
Jamie entrou no quarto logo depois de Maggie. Caminhou até ela e ambos se fitaram por longo tempo, como se quisessem permanecer um no outro. Maggie sentiu o coração disparar. Jamie tinha tudo para fazê-la apaixonar-se por ele perdidamente: os olhos cinzentos, misteriosos, ora risonhos, ora graves. A voz, terna e suave quando a acariciava; profunda e enrouquecida nos momentos de paixão. As mãos... gentis quando se moviam sobre seu corpo; fortes quando oferecia ajuda. Seu coração e sua alma abrigavam os sentimentos mais nobres.
Abraçaram-se. Seus lábios úmidos falaram de seus desejos. Suas línguas se tocaram, cheias de apetite.
Agilmente Jamie desabotoou o vestido de Maggie, afastou-o dos ombros para beijá-los; beijou o pescoço, a nuca, mordeu os lóbulos da orelha.
O vestido deslizou para o chão. Maggie livrou-se das outras peças e Jamie também se despiu.
Logo eles estavam deitados, a paixão mais explosiva, o desejo mais intenso do que nunca. O tempo era precioso e fugia. Cada minuto era uma dádiva.
Perfeitamente unidos, um corpo noutro corpo entrelaçado, viveram uma paixão maravilhosa e transbordante, um momento de excesso e de magia que os levou ao êxtase...
Por fim, estendidos na cama, na desordem dos lençóis, foram voltando lenta e docemente para a realidade, cônscios de que tinham de se separar.
Permaneceram ainda algum tempo enlaçados e em paz. Jamie mexeu-se. Aconchegou Maggie junto do peito, deu-lhe um abraço apertado, beijou-a suavemente e levantou-se.
- Outra mulher está à minha espera. A rainha. - Ele juntou as peças de roupa espalhadas no assoalho e vestiu-se.
- Não tenho ciúme de Sua Majestade - disse Maggie, observando todos os movimentos dele.
Jamie foi até a porta. Virou-se e pediu antes de sair:
- Maggie, por favor, mantenha-se, por enquanto, fora de Whitechapel.
Ela ficou em silêncio.
- Maggie, você me ouviu?
- Sei o que está acontecendo lá, Jamie.
A resposta o satisfez. Considerou aquelas palavras, ditas em tom grave, como assentimento.
A preocupação da rainha era evidente.
- Duas, lorde Langdon! Duas mulheres brutalmente assassinadas numa só noite!
- Estive no bairro a noite toda, Majestade. Observei a atuação da polícia nas ruas. Tanto a polícia civil como a metropolitana, apesar de suas diferenças, colocaram seus homens trabalhando no distrito - Jamie informou.
- É inconcebível que a maior cidade do mundo seja refém de um maníaco. E o que dizer da mensagem escrita na parede? Sir Charles Warren teve medo de que houvesse tumulto. Se a mensagem fosse divulgada, a população poderia revoltar-se contra os judeus. Outros acreditam que o assassino seja maçom e está sendo protegido pela maçonaria. Dizem que deve haver uma conspiração e que os grandes e poderosos da Inglaterra protegem um terrível assassino.
Sua Majestade tremia de indignação.
- Apagar a mensagem foi um erro. Ela era uma evidência.
- Talvez nem tivesse sido escrita pelo assassino.
- Nunca saberemos, Majestade.
- Imagine que chegaram a dizer que Eddy é responsável por essas mortes. Que envolveu-se com uma moça do East End e os oficiais do governo estão matando essas mulheres que podem saber do caso e desmoralizar a família real. Se continuar assim, irão me acusar de ser a assassina! Jill, a Estripadora!
- Ninguém jamais diria uma coisa dessas, Majestade.
- Mas suspeitam de Eddy, de seus professores e de seus amigos. Procuram um bode expiratório.
- Infelizmente as pessoas comentam. Mas ninguém pode atacar Vossa Majestade que sempre teve uma conduta exemplar, e sempre se preocupou com os pobres. É isso que a torna uma grande rainha, querida por seus súditos.
- Não tente me acalmar! - Ela dirigiu a Jamie um olhar de censura. - Você sabia que Eddy nem está em Londres? Está caçando, na Escócia.
- Faça com que todos saibam disso, Majestade.
- Farei, claro. E você, continue com sua investigação. Esse lunático tem de ser apanhado.
- Certamente, Majestade.
- Não me desaponte, lorde Langdon. Seu tio nunca me desapontou.
Jamie baixou a cabeça por um momento. Não, Charles nunca desapontara sua querida rainha. Mas a tarefa que ela agora lhe atribuía, nem centenas de policiais treinados conseguiam realizar.
- Farei o possível, Majestade.
Começava escurecer quando Jamie deixou o esplendor do palácio. Nas ruas os jornaleiros gritavam:
"Assassinato! Bárbaro assassinato!"
"Jack, o Estripador ataca de novo!"
"Guerra a Warren!"
"A monarquia também está morta!"
Jamie comprou os jornais. Um exemplar de cada. Ocorreu-lhe que tinha um ótimo projeto para Mireau. O escritor poderia lutar com sua pena. Uma opinião podia ser combatida com palavras, com discussões e com punhos.
Randolph encostou a carruagem junto ao meio-fio.
- Para casa, milorde?
- Não. Para Whitechapel o quanto antes. Quero falar com o inspetor Abberline. Enquanto converso com ele, você volta para casa e pega algumas peças de roupa para eu trocar. Tenho o pressentimento de que alguma coisa vai acontecer. Sei que precisam de mim. E que é urgente.
- Precisam do senhor, onde, milorde?
- Não sei. É como se eu estivesse andando às cegas, no escuro.
- Bem, milorde...
- Vamos, Randolph. Leve-me para Whitechapel. Depois de falar com o inspetor, andarei pelas ruas até descobrir o que está me deixando tão... inquieto.
Capítulo IX
Maggie escreveu a última das quatro cartas. Uma era para a polícia e as outras para padre Vickers, Justin e Jamie, respectivamente. Selou os envelopes com cera e o anel de sinete e recomendou a Darby:
- Por favor, entregue-as aos respectivos destinatários, imediatamente.
- Pois não, milady.
Assim que o cocheiro saiu, ela perguntou a Mireau:
- Será que esqueci alguma coisa?
- Não. Só acho que deveria haver mais alguém para nos ajudar. Você decidiu não envolver Justin, nem Tristan e muito menos Jamie neste seu plano tão arriscado. E se alguma coisa der errado?
- Uma das cartas é para a polícia. Escrevi dizendo que terão a chance de pegar Jack, o Estripador, se aparecerem às duas da madrugada no endereço mencionado.
- E se Jeremiah se atrasar, como aconteceu ontem?
- Seja como for, às duas já teremos levado Arianna embora. Quanto a Jeremiah Heath, a polícia cuidará dele.
- A polícia não conseguiu prender o maníaco assassino.
- Se a polícia não conseguir pegá-lo, cuidaremos dele em outra ocasião. Mais alguma dúvida?
Bateram na porta da biblioteca. Maggie levantou-se.
- Lorde e lady de Burgh - a sra. Whitley anunciou.
- Lorde de Burgh? - Maggie murmurou.
Cecília entrou na biblioteca atrás do marido e fechou a porta.
- Eustace!... Como vai?
O conde sorriu para Maggie e deu-lhe um beijo no rosto. Era um homem encantador.
- Não fique tão assustada. Sei o que está acontecendo. Cecília teve o bom senso de me contar sobre o plano de vocês. Se alguma coisa não der certo, estarei na rua.
Maggie olhou para a amiga com expressão reprovadora.
- Sei que todos me consideram um boa-vida e amante de prazeres - o conde continuou. - Mas acredite, Maggie, atiro muito bem e sei manejar uma adaga. Servi no Exército da rainha.
- Perdoe-me, Eustace. É que eu não o esperava. Obrigada por ter vindo.
- Então vamos. Não podemos perder tempo - disse Cecília. - Fiona irá conosco?
- Não. Tenho medo de que alguém a reconheça. Ela já esteve com Arianna antes.
- E o brandy?
- Aqui, prontinho - Maggie indicou a garrafa - Podemos ir.
Os quatro saíram para a rua. Dentro da carruagem, Cecília virou-se para Maggie.
- Venha cá, titia! Está na hora de transformar-se numa velha.
Jamie notou que o inspetor Abberline, em um mês, parecia ter envelhecido dez anos. O homem andava tão exausto e arrasado que Jamie surpreendeu-se quando ele concordou em recebê-lo.
- O povo está impaciente, furioso. E com razão. Acreditam que o assassino do East End já atacou seis vezes. Mas, a meu ver, são quatro as vítimas do Estripador. Preciso de todos os homens, mas as forças foram chamadas para manter a ordem nos parques, onde os cidadãos fazem protestos. Gritam contra Warren, zombam da polícia, causam tumulto. Justamente agora que precisamos da ordem mais do que nunca.
- O que você acha da mensagem escrita na parede?
- Já ouvi inúmeras opiniões e hipóteses como: Alguém de alta posição está sendo protegido! O assassino é uma pessoa educada. Pode ser um médico, ou o príncipe Eddy, ou um dos que o cercam. Ou ainda um pintor. Há também a hipótese de ser um anarquista tentando fazer com que o mundo veja a degradação do East End e, assim, atingir a monarquia. - O inspetor suspirou. - A meu ver a mensagem não foi escrita pelo assassino. Foi mais um recurso para criar confusão. Pelo que presenciei, e com base nos depoimentos, o criminoso tem instrução e habilidade, mas isso não quer dizer que seja médico. Pode ser um caçador ou operário de um matadouro. Alguém que saiba destripar um animal. Ou talvez ele tenha uma cópia do livro de Gray, sobre anatomia. Quando pegarmos o assassino, podemos ter a surpresa de constatar que não era nenhum dos suspeitos e, sim, um estranho de quem nunca ouvimos falar. Um louco, um doente, tão triste e infeliz quanto suas vítimas. Por mais que nos esforcemos, não estamos nem perto de agarrar o criminoso. Sinto muito, não posso ajudá-lo, lorde James. E agora, com sua licença, vou andar pelas ruas.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer, conte comigo. Estarei por perto.
- Obrigado. E se eu tiver novidades, será informado.
James acompanhou com o olhar o triste e desconsolado inspetor. Então foi também para as ruas.
- Como estou? - Maggie perguntou, ansiosa.
- Incrível! Se eu não soubesse que era você, poderia afirmar que estava diante de uma senhora de sessenta anos - Mireau respondeu.
Cecília sorriu e verificou se a peruca e as costeletas ruivas de Mireau estavam seguras. Em seguida voltou-se para o marido.
- Eustace, estamos quase chegando. Depois que descermos, você deve ficar observando os brutamontes a uma distância segura.
- Não posso ficar muito longe. E se alguma coisa der errado?
- Nada pode dar errado - Maggie declarou.
- É bom termos confiança e pensamento positivo. - Eustace voltou-se para Mireau. - Está com a arma, amigo?
- Tenho o punhal que você me deu.
- Maggie?
- Eu trouxe uma pequena pistola e sei usá-la. Lembre-se de que fui casada com um policial.
- Acho melhor descermos aqui - observou Cecília. - A rua está vazia.
Eles estavam a algumas quadras da casa dos Hennesy e começaram a andar depressa. Tinham caminhado cerca de duzentos metros quando um policial os deteve.
- Ei! Aonde vão a esta hora da noite?
- Vamos visitar uns amigos - Mireau respondeu. - Primos de minha tia.
- A esta hora? Então não ouviram falar do duplo assassinato de ontem à noite?
- Estamos caminhando juntos. Esta é minha esposa e esta é a nossa tia. Bom amigo, agradeço o seu cuidado. Já estamos chegando.
O policial fez um movimento com a cabeça, como se achasse que os três não tinham juízo.
- Pois bem, sigam adiante.
Eles apressaram o passo ainda mais.
- Você devia ter pedido a Jamie para nos acompanhar - Mireau insistiu.
- Eu não podia fazer isso.
- Por que não? Por que ele estava zangado? Estranho. Depois que eu saí da biblioteca, vocês ficaram juntos durante muito tempo. No seu quarto, por sinal.
- Que maravilha! - Cecília exclamou.
Maggie teve vontade de avançar em Mireau.
- Vocês ficaram discutindo?
- Mireau, você sabe que se eu dissesse alguma coisa a Jamie, ele nos faria desistir do plano. Tentaria nos convencer de que haveria outra maneira de tirarmos Arianna do poder daqueles bandidos.
- E há outro meio. Vamos deixar que a polícia cerque a casa - sugeriu Cecília.
- Meu medo é que matem Arianna assim que perceberem alguma coisa fora do normal. A polícia só pode aparecer às duas, como escrevi na carta. A essa hora estaremos com Arianna fora da casa e os bandidos estarão dormindo.
- Eustace estará à nossa espera, pronto para nos ajudar - Cecília assegurou.
- E os rapazes que ficam do lado de fora, vigiando? - lembrou Mireau.
- Tentaremos convidá-los para tomar o brandy. Se não for possível, você, Mireau, carregará Arianna, que estará adormecida. Cecília e eu iremos do seu lado com nossas armas.
- Eles andam sempre armados.
- Sei disso. Cecília e eu estaremos prontas para atirar primeiro.
- Meu Deus, que loucura. Não acredito que estamos fazendo isso - Mireau reclamou.
- Acalme-se, Mireau. Assim que perceber o menor movimento, Eustace virá nos socorrer e ele é excelente atirador - Cecília falou com orgulho.
Eles chegaram à casa e Maggie pediu silêncio. Hesitou antes de abrir o portão. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Achou melhor deixar Cecília e Mireau fora daquilo.
- Esperem. Vou entrar sozinha.
- Nunca! - Mireau protestou. - Como você conseguirá carregar Arianna? Como conseguirá atirar se estiver ocupada com ela?
- Maggie, você não nos forçou a entrar nisso. Viemos porque quisemos. Vamos entrar antes que suspeitem de nós - disse Cecília e adiantou-se para abrir o portão.
John estava à porta.
- Ah! Boa noite. Entrem. Os Hennesy estão esperando vocês.
Eles cumprimentaram John cordialmente e entraram na sala.
A sra. Hennesy recebeu-os alegremente. George também estava em casa. Arianna, sentada à mesa, respondeu ao cumprimento e falou com voz sumida:
- Talvez Jeremiah consiga entrar em contato com Frank, esta noite.
- Não quero ser indelicado... mas vocês conseguiram ir até o banco? - George perguntou.
- Não duvidei que meu amigo, sr. Thayer, iria deixar de fazer um pequeno adiantamento da pensão - Maggie respondeu. - Por favor, Sissy, dê o dinheiro ao sr. Hennesy.
- Naturalmente!
Cecília passou dez libras esterlinas para as mãos de Hennesy que as entregou a John.
- Jeremiah ficará muito grato - expôs o rapaz.
- Está atrasado novamente? - Maggie indagou.
- Receio que sim - respondeu o grandalhão que estava atrás de Arianna.
Ali dentro havia quatro homens de Jeremiah. Dois deviam estar em algum lugar, lá fora, observando, Maggie pensou. Sorriu para os Hennesy.
- Ontem vocês foram tão amáveis! Então pensei em retribuir a gentileza e lhes trouxe isto. - Ela ergueu a garrafa de brandy. - Ano excelente. Um dos clientes de meu marido deu-lhe de presente. Guardei-a para uma ocasião especial.
- Ótimo! - George exclamou, com um brilho nos olhos.
- Ofereço o brandy a todos. É uma forma de lhes agradecer pelo conforto que estou recebendo.
- Pois não! Pois não! Vou pegar os copos. - A sra. Hennesy foi apressada para a cozinha.
Logo o brandy foi servido.
- Saúde! - Maggie ergueu o copo e fingiu que estava bebendo.
Os rapazes de Jeremiah sorveram o líquido rapidamente.
- Oh, por favor, bebam mais um pouco. Acabem com o que há na garrafa. Se eu conseguir falar com Frank esta noite, esta será uma ocasião memorável.
George foi o primeiro a aceitar a segunda rodada. E os rapazes logo estenderam seus copos. Só Arianna não tocou na bebida.
- Você não está apreciando este momento de cordialidade! Beba conosco - disse Maggie.
- Não sou beberrona, madame.
- Não insulte a senhora - John repreendeu-a e apertou-lhe o ombro com força.
Arianna pegou o copo e tomou o brandy de uma só vez. John rapidamente encheu-o de novo e comentou:
- Realmente, o gosto é especial.
Com certeza ele nunca havia provado um brandy de qualidade, Maggie pensou. Viu satisfeita Arianna virar a segunda dose da bebida. Provavelmente teve medo de ser tocada outra vez pelo brutamontes.
Entretanto, não foi Arianna quem adormeceu primeiro. A sra. Hennesy, que havia sentado fazia apenas um minuto, sem uma palavra ou um gemido, tombou para frente e encostou a cabeça na mesa.
Durante uma hora Jamie andou pelas ruas da periferia. Até o momento havia separado três casais que estavam agarrados num beco, recebera duas bolsadas na cabeça e dera a algumas prostitutas dinheiro para o albergue. Uma delas correra para um pub com a moeda, o que o deixara extremamente irritado. Sua tarefa não era fácil.
Era uma e meia da madrugada quando ele viu um homem usando uma capa bem ampla, preta, e cartola, andando na rua, rente à calçada. Procurava manter-se nas sombras e seus movimentos pareciam furtivos. Jamie seguiu-o a distância. Chegando a uma viela caminhou junto a um muro. Um gato saltou à frente dele e deu um miado horrível. No silêncio da noite envolta na neblina, o som pareceu um clarim de alarme. Jamie pulou uma cerca no fim da viela e ficou abaixado.
O homem parou como se estivesse desconfiado de que alguém o seguia. Jamie aguardou. O homem continuou a andar. Jamie teve certeza de que o homem sabia que ele estava do outro lado da cerca. Esperou que ele se aproximasse, preparado para agarrá-lo.
Mas foi o homem quem avançou na direção dele e ergueu a bengala em cuja ponta havia uma lâmina afiada. Jamie deu um salto e caiu sobre o homem. Os dois rolaram na terra. O homem deu-lhe um soco no queixo e ele ergueu-se para revidar.
- Jamie!
Ele hesitou. Apertou os olhos para enxergar com a pouca claridade, quem estava caído.
- Justin!
- O que está fazendo aqui? - Justin indagou, cheio de desconfiança.
- O que faz você, pergunto eu.
- Estou à espreita de Jack, o Estripador - Justin respondeu.
Os dois se ergueram do chão.
- Lugar estranho para você frequentar, Justin.
- Mais estranho ainda para você, lorde Langdon.
- Pediram-me para eu fazer umas investigações.
- Até pouco tempo eu frequentava alguns estabelecimentos deste bairro com amigos. Você sabe disso. Mas agora estou interessado em esclarecer algumas dúvidas, conseguir algumas informações... Por causa de Eddy.
O som de uma carruagem se aproximando em grande velocidade interrompeu-os. Jamie puxou Justin para perto do muro.
- Saia do caminho se não quiser ser atropelado.
- É Darby! - Justin exclamou ao reconhecer a carruagem.
O veículo parou e Darby saltou da boléia, aflito.
- Graças a Deus e à Maria Santíssima! Estou procurando vocês há duas horas!
- Por quê?
- Tenho cartas para os dois. De lady Maggie. Tentei ouvir o que ela e Mireau tanto conversavam, mas não foi possível. Saíram de casa com lorde e lady de Burgh. Achei tudo muito suspeito.
- Devem estar neste bairro. - Jamie abriu a carta. - Ah, mulher teimosa! Ela me prometeu que não viria a esta região.
Justin também tinha rasgado o envelope.
- Aqui está o endereço. Maggie diz que devemos estar no local às duas horas. É caso de vida ou morte.
Jamie consultou o relógio.
- Faltam três minutos! Vamos!
- O que houve com ela? - John gritou, alarmado.
Em seguida foi Arianna quem tombou sobre a mesa.
- Oh, pobrezinhas! - Maggie exclamou, levantando-se e indo para perto de Arianna.
John franziu a testa, tentou caminhar, mas cambaleou, apoiou-se na mesa e caiu no chão.
- O que você fez? - perguntou o homem chamado Matthew, sacando a pistola.
Um tiro explodiu no ar, mas atingiu a parede porque Matthew também caiu adormecido.
Mireau e Cecília correram para o lado de Maggie.
- Hum, todos adormecidos. George caiu por cima da esposa - murmurou Cecília olhando ao redor.
- Pegue Arianna, Mireau - Maggie pediu. - Depressa! Os que estão lá fora ouviram o tiro e logo estarão aqui.
Cecília ajudou Mireau a pegar Arianna e atravessou a sala na frente dele. Antes de saírem tiveram de pular sobre o corpo de um dos homens. Maggie seguiu-os. Nisso o homem se mexeu. Ele também tinha uma arma e apontou-a para o corpo de Arianna.
- Não! - Maggie gritou e deu um chute no braço do infeliz. A arma voou longe, mas o homem agarrou-a pelo tornozelo.
- Sigam em frente! Estou bem - falou, tentando nervosamente livrar-se daquela mão enorme e forte que a impedia de andar.
Ela deitou no chão. O homem ergueu-se um pouco e agarrou o pescoço de Maggie. Ela não teve como pegar a pistola que tinha na bolsa. Fechou o punho, balançou-o e acertou o rosto do bandido. Mesmo assim, ele não a soltou. Pouco depois, caiu para trás.
Maggie arrastou-se, conseguiu levantar-se, correu para a porta e saiu para a rua. Viu a carruagem de Eustace. Mireau estava quase chegando ao veículo com Arianna. Cecília, de costas para a carruagem, mantinha a pistola na mão, pronta para atirar.
Apitos da polícia ecoaram no ar. Bendito Darby! Entregara a carta a tempo. Uma carruagem vinha em disparada naquela direção. Quem seria? Não importava. Arianna estava salva. Jeremiah e seus homens acabariam nas mãos da polícia.
De repente, uma pancada violenta na nuca fez com que ela cambaleasse e seus olhos ficaram nublados.
- Vadia! Eu tinha certeza de que era você. Como é esperta! E muito bonita! Vamos nos divertir antes que você morra.
A carruagem, que desenvolvia grande velocidade, parou. A carruagem Langdon, Darby na boléia. Maggie teve a impressão de que Jamie estava saltando do veículo. A imagem pareceu rodar diante de seus olhos.
- Maggie!
Ela podia jurar que tinha ouvido seu nome. Jamie. Era a voz de Jamie. Ele estava desesperado... A névoa, a luz pálida do lampião a gás cedeu lugar à escuridão e ela mergulhou num universo de sombras e esquecimento.
Havia na rua grande confusão. Pessoas e policiais corriam. O som agudo dos apitos misturava-se ao estrondo dos tiros. A casa dos Hennesy estava cercada. Cecília e o marido ajudaram Mireau a acomodar Arianna na carruagem e esperavam por Maggie. Não havia sinal dela. Por fim os tiros cessaram.
- Que tumulto é este? Onde está minha irmã? - Justin perguntou.
- Não sei... Maggie estava atrás de nós... - disse Mireau.
- Para que esses policiais? O que vocês fazem aqui? O que está havendo? - Jamie quis saber, impaciente. - Há curiosos vindo para cá. Estão achando que pegaram Jack, o Estripador.
- Ia haver uma falsa sessão espírita. Arianna tinha fugido de casa e estava em poder deles. Trouxemos láudano e todos ficaram desacordados - Cecília respondeu.
James não esperou mais nada. Correu para a casa. Um tiro passou tão perto do seu ouvido que ele ficou surdo por um momento. O projétil alojou-se numa estaca, atrás dele. O homem que havia disparado a arma estava encostado no pórtico, tinha no ombro um ferimento à bala e segurava a pistola ainda fumegante. Sua mão tremia. Jamie calculou os riscos e avançou no homem, derrubando-o. A arma caiu no chão e Jamie chutou-a. Ergueu o homem e perguntou-lhe:
- Onde está a mulher?
O homem deu um sorriso sinistro e tombou para frente. Jamie viu que ele tinha as costas ensanguentadas, deixou-o no chão e entrou na casa. Olhou ao redor. Todos estavam drogados ou feridos.
Justin chegou correndo atrás dele.
- Onde está minha irmã?
- Devem tê-la levado. Vamos! Não há tempo a perder! - Jamie respondeu.
Os dois saíram da casa e foram até a carruagem do conde.
- Maggie não está na casa.
- Ele deve ter voltado e levou-a - Mireau deduziu.
- Ele? Quem?
- Adrian Alexander. Agora ele adotou o nome de Jeremiah Heath.
Justin agarrou Mireau pela lapela.
- Você deixou-a vir a este lugar! Eu devia matá-lo!
- Pare com isso! - Cecília gritou. - Maggie obrigou-o a não dizer nada a ninguém. Arianna estava em poder daqueles bandidos, não vê?
Jamie sentiu raiva de si mesmo. Maggie tinha ido procurá-lo, com certeza para pedir ajuda e ele se zangara com ela. Por isso, decidira agir sozinha. Ele virou-se para os quatro.
- Justin, siga na direção norte. Eu irei para o leste, Mireau, para o sul. Cecília vá com seu marido ao posto policial do bairro. Dê todas as informações possíveis ao inspetor e faça com que saiam imediatamente à procura desses bandidos. Depois, levem Arianna para Moorhaven e chamem o médico. Dr. Mayer, não sir William Gull! Passem a noite com ela.
- Está bem. - Cecília tocou na mão de Jamie. - Foi o único meio que Maggie encontrou de salvar Arianna.
- Isso agora não importa. Temos de salvá-la. Conheço Adrian Alexander e sei como age. O homem é capaz de tudo!
Maggie acordou ao sentir o jato de água fria no rosto. Por um momento teve consciência apenas de que sentia muito frio e medo. Abriu os olhos. Estava deitada num piso de pedra, tinham arrancado sua capa, a peruca, e alguém começava a esfregar-lhe o rosto com uma toalha, quase a sufocando, para tirar a maquiagem teatral feita por Cecília.
Instintivamente, ela ergueu o braço para afastar a toalha, mas sentiu uma faca encostada em sua garganta.
- Ora, ora! Eu sabia que você não cometeria a tolice de gritar, lady Langdon. É natural que goste de viver. E quem não gostaria, estando no seu lugar? Engraçado, não percebi de imediato quem era a garota. E ontem, honestamente, não suspeitei de você. Porém, depois que você saiu, alguma coisa me avisou para ter cuidado. Um espírito, talvez. Então, hoje, esperei, fiquei observando.
Estava escuro. Maggie supôs que a haviam trazido para uma casa vazia ou uma fábrica abandonada. O lugar era úmido e cheirava a mofo. Apenas uma tênue claridade vinha pelas frestas de uma janela.
- Então você achou que iria me derrubar esta noite, hein? O que há com você? Não tem medo de andar por estas ruas? Não ouviu dizer que há um louco atacando mulheres? Por que se preocupar com um espírita? Um simples médium?
Adrian Alexander começou a rir. Passou a mão na testa de Maggie e encostou ainda mais perto do rosto dela a lâmina da faca. Ela ficou imóvel. Mal respirava.
Aquela mão estava úmida... De sangue?
Ela entrou em pânico. Seria esse homem Jack, o Estripador? Bem, mesmo que não fosse, iria matá-la!
- Sabe, milady, você perde seu tempo com as mulheres desta área. Elas são prostitutas! Vagabundas! Se preocupam mais com o álcool do que com a própria vida. Se Jack não as matar elas morrerão mesmo. Morrerão podres. Ele está fazendo uma limpeza. Bem, mas há vagabundas como essas e há mulheres como você. Que alto preço tem de ser pago pela sua companhia! Para ter seus favores é preciso uma licença de casamento e muita, muita riqueza. Aí vocês têm um cocheiro, ou mais de um, podem comprar disfarces e sair por aí atacando pessoas que não lhe fizeram mal nenhum.
Subitamente o som de apitos e de passos acelerados perturbaram o silêncio da noite.
- Aí está! Veja o tumulto que causou! É uma pena, terei de me mandar. No momento não há jeito de lhe fazer justiça. Mas será você, novamente, quem me ajudará a fugir.
Maggie respirou aliviada. A faca já não estava mais encostada em sua garganta. Respirou fundo, mas sentiu um laço ao redor do pescoço.
- Você é minha refém e morrerá se tentarem me pegar - disse Alexander com entusiasmo e puxou Maggie, obrigando-a a levantar-se. - Vejamos, a porta, a janela ou o poste da rua? Ah, o poste. Depressa!
Enquanto estava sendo arrastada para a porta, Maggie tentou pegar a pistola que tinha dentro da bolsa de tecido, pendurada na cintura. Mas o homem tinha mãos de aço e a mantinha colada ao corpo dele.
- Dê um pio e eu a sangro como se fosse um porco!
Eles saíram para a rua. Tudo estava em silêncio. Não havia som de apitos nem de passos. Maggie conseguira enfiar a mão na bolsa e segurava o cabo da pistola. Sufocou um grito quando Alexander passou a corda pelo poste e começou a puxá-la para cima. Desesperada, atirou nele, jogou a pistola e levou as duas mãos à corda que lhe comprimia o pescoço.
Ouviu um grito. Apitos da polícia novamente. Mas quase não podia respirar. A corda a estrangulava. Estava morrendo...
- Maggie!
Ela ouviu a voz. A voz de Jamie. Talvez iria ouvi-la sempre, mesmo depois de morta. Quem sabe sentiria a presença dele na outra vida. Talvez fosse possível comunicar-se com o além...
- Maggie!
O grito de novo. E um tiro. Ela não estava mais sufocada e, sim, caindo... Sentiu as pedras da rua sob o corpo. Não houve mais neblina. Fogos de artifício pareciam explodir diante de seus olhos. Jamie tomou-a nos braços e aconchegou-a junto ao peito.
- Maggie, oh, Maggie! Meu Deus! Eu tive de atirar na corda. Você se machucou? Pode se mexer?
Jamie. Ali estava ele, a testa franzida, aflito, desesperado. Ela entreabriu os lábios.
- Estou... bem.
A voz soou como um grasnido.
- Leve-a - Jamie ordenou.
O som de passos apressados chegou até ela. Justin e Mireau se aproximaram.
- Eu a levo - disse Justin, abaixando-se para pegá-la.
- Desculpe, lorde Graham, temos de conversar com sua irmã por alguns minutos - disse um policial.
- Não creio que no momento Maggie tenha condições de conversar.
- Precisamos de ajuda. O depoimento dela será muito importante - alegou outro policial.
Maggie concordou em ir até a delegacia. Com a ajuda de Mireau relatou o que tinha acontecido e foram, finalmente, liberados. Na carruagem, Justin amparou-a, mas não deixou de censurá-la.
- Eu devia deixá-la trancada numa torre para não cometer loucuras como esta. Onde estava com a cabeça? - Ele abraçou-a com força. - Mas, graças a Deus você está bem! Graças a Deus!
Chegaram a Moorhaven e Maggie conseguiu andar apoiada no irmão, tendo Mireau do seu lado. Assim que entraram no salão a sra. Whitley, o dr. Mayer e Cecília vieram depressa encontrá-los.
- E Arianna? - Maggie indagou.
- Eu a examinei, ela vai ficar bem. Acordará dentro de alguns minutos - o médico informou.
Justin olhou para o sofá onde Arianna estava deitada, vestida com a túnica branca, tendo os cabelos negros caídos sobre os ombros, a pele de alva porcelana. Tinha uma beleza sublime.
- Aquela é Arianna? - ele exclamou, atônito.
- Sim, claro - Maggie afirmou.
- Arianna! - Justin murmurou. Deixou a irmã aos cuidados de Mireau, foi até o sofá e segurou reverentemente a mão da jovem adormecida. - Arianna!
Continuou olhando, ansioso, para o lindo rosto. Então, curvou-se e tocou levemente os lábios dela com os seus. Arianna mexeu-se e abriu os olhos.
- Você!
- Então eles já se conheciam? - Mireau indagou.
- Parece que acabam de se reencontrar - Cecília respondeu. - Que lindo!
- Adorável! - Maggie sorriu.
As emoções daquela noite tinham sido excessivas e ela caiu desmaiada nos braços de Mireau.
O dia amanheceu lindo. Maggie acordou com a claridade e o canto dos pássaros. Aquela beleza e aquela paz pareciam um milagre. Abriu os olhos devagar. A garganta doía muito. Na verdade, todo o corpo estava dolorido. Lembrou-se de que, por pouco não tinha sido enforcada. Depois caíra na rua.
- Maggie?
Jamie estava completamente desarrumado. Não tinha dormido a noite toda.
- Você merecia umas palmadas. Por que não me contou sobre seu plano?
- Eu ia lhe contar, mas...
- Fui um imbecil, um grosseirão.
- Esqueça. O importante é que estamos todos vivos e Arianna está em casa. E Alexander?
- Infelizmente não o pegamos. Mesmo ferido, ele conseguiu escapar. Ficamos a noite toda tentando encontrá-lo.
- Você acha que ele pode ser Jack, o Estripador? Na noite em que houve dois assassinatos ele chegou muito tarde para a sessão. Estava com as mãos molhadas como se as tivesse acabado de lavar. Na hora, a primeira coisa que me ocorreu foi que ele tinha lavado... o sangue.
- Isso não quer dizer nada. Seja como for, ele precisa ser apanhado. Agora descanse. Dr. Mayer disse que ficará ótima em poucos dias. Vou para casa trocar-me e dormir um pouco.
Assim que Jamie se afastou, Maggie fechou os olhos e adormeceu. Quando os abriu novamente, viu o rosto de Arianna. A enteada tinha lágrimas nos olhos.
- Oh, Maggie! Obrigada e perdoe-me!
Arianna abraçou-a com força e demoradamente. Apesar de sentir dor, Maggie não reclamou. Era um abraço precioso demais para ser recusado.
Três dias depois, Maggie não sentia mais dores e a voz tinha voltado ao normal. Nesse período não vira Jamie. Para fazer companhia à irmã, Justin deixara Mayfair e se transferira para Moorhaven. Mireau interrompera o trabalho com seu livro e andava muito ocupado, escrevendo, a conselho de Jamie, artigos para os jornais. Nesses artigos ele esclarecia a população, defendia a monarquia, elogiava o trabalho da polícia e incentivava os cidadãos a formarem seus próprios comitês de vigilância.
No fim da semana, Jamie aconselhou Maggie a deixar Moorhaven por algum tempo. Sugeriu-lhe que visitasse as irmãs de Clayton.
- Você sabe que Alexander é louco e quer vê-la morta. E, além de descansar, você terá a chance de ver o bebê - ele argumentou.
- O bebê? Como sabe a respeito do bebê? - Maggie olhou para Mireau, furiosa.
Ele ergueu as mãos e justificou-se:
- Você conhece Jamie. Ele tem um jeito de fazer com que lhe contem tudo o que quer saber.
Maggie não discutiu. Achou que precisava, realmente afastar-se de Moorhaven, de Mayfair, do East End.
Os dias na casinha perto do bosque foram maravilhosos. Maggie gostou demais das irmãs de Clayton e passou quase o tempo todo brincando com Ally.
Na primeira semana Arianna e Justin foram visitá-la. Estavam apaixonados. Arianna dizia que Justin era o seu príncipe de armadura reluzente e queria ficar com ele o tempo todo. Quanto ao casamento, teriam de esperar o término do período de luto que estava longe de acontecer.
Cecília também visitou-a. Trouxe a notícia de que sir Charles Warren, não resistindo à pressão, havia renunciado. Tristan, primo de Maggie, ingressara na polícia metropolitana. Informou também à amiga que havia feito algumas investigações sobre a pequena Ally.
- Realmente, existe uma mulher chamada Annie Crook que fugiu para o norte. Ela não era prostituta e teve alguns filhos. Uma das crianças tem o nome de Alice, mas está com a mãe, viva e saudável. Não sei se essa mulher é a mesma com quem Eddy teve um romance nem se a nossa Ally é filha dele.
- Agora isso não importa. Ally está sendo criada por três "tias" gentis que a adoram. Ninguém precisa saber que a criança está aqui ou de quem é filha. Espero que você guarde segredo.
Um mês se passou sem que o assassino agisse novamente. Então aconteceu o mais selvagem dos assassinatos. A vítima não foi morta nas ruas. Os jornais, cuja circulação crescia consideravelmente, publicavam as notícias com detalhes repugnantes e continuavam a atacar a polícia devido ao fracasso de efetuar a captura do maníaco.
Mary Jane Kelly, bonita, de apenas vinte e cinco anos, tinha sido a vítima. Estava em seu quarto de pensão, em Miller's Court, por isso o assassino teve tempo de deixar o corpo bem retalhado e o rosto irreconhecível.
Maggie continuava na casa do bosque. Naquela noite, estava lendo os jornais que Mary, uma das irmãs, havia trazido. Ally e as "tias" dormiam. Terminando de ler o artigo sobre a morte de Mary Jane Kelly, deixou o jornal de lado e refletia com pesar sobre o sofrimento que a pobre mulher tinha passado nas mãos de um louco, já conhecido como Jack, o Estripador. Nesse instante ela ouviu o barulho de um galho batendo na vidraça.
Reinava em Londres uma agitação nunca vista antes. O último assassinato deixara a cidade, à beira do caos. A população protestava contra a polícia, fazia acusações.
Todos os recursos tinham sido usados. Cães farejadores. Peritos em grafologia. Ocultistas interpretadores de sonhos. Psicólogos. Videntes e médiuns. Hipnotizadores.
Jamie decidira ajudar diretamente a polícia. Ouviu os suspeitos de serem Jack, o Estripador, conferiu seus álibis, tendo para isso de viajar para o continente.
Depois da morte de Mary Jane Kelly, conversou com Abberline.
- Um banho de sangue, meu Deus! Ainda que eu viva cem anos não esquecerei o que vi naquele quarto - o inspetor desabafou. - O que pode levar um homem a cometer tal barbaridade? Loucura completa?
- Gostaria de poder responder - Jamie murmurou.
No começo da noite, ao voltar para casa, viu uma carta deixada sob a porta. Dizia apenas:
Pegue-me, se puder.
A letra era a mesma que ele já tinha visto em outra carta enviada ao presidente do comitê de vigilância de Whitechapel.
"O assassino me conhece", Jamie pensou.
Seria Adrian Alexander? Podia ser. O homem desaparecera nas entranhas do East End.
Ele dobrou o papel. Foi tomado de súbito terror ao ver o que estava escrito na parte de trás da folha:
Amo o bosque.
Maggie agarrou o atiçador de fogo e ficou perto da janela, atenta. Tudo estava em silêncio. Minutos se passaram. Na sala ouvia-se apenas o crepitar do fogo na lareira. O nervosismo a estava fazendo ouvir coisas, pensou. Ali, distante de Londres, onde Jack mantinha seu reinado de terror, não corria perigo.
Foi à cozinha preparar um chá, mas levou o atiçador. Colocou a chaleira no fogo e ouviu novamente um barulho. Havia alguém ali. Como? Por onde havia entrado? Pela adega? Ou forçara o trinco?
Maggie virou-se.
O homem havia mudado bastante. Emagrecera, tinha as maçãs do rosto proeminentes, o queixo pontudo, estava barbudo, sujo. Os olhos tinham um brilho diabólico. Adrian Alexander deu um passo na direção de Maggie. Segurava uma faca de caçador e a movia de modo quase convulsivo.
- Foi muito fácil chegar até você. Encontrei sua casa, seus amigos e segui-os.
- O que você quer? - ela indagou, tentando demonstrar autoconfiança.
- Quero você. Morta. Mas antes, você vai gritar! Quero ouvir seus gritos.
- Pois eu não quero morrer. Nem gritar - Maggie retrucou, erguendo o atiçador.
Alexander deu um passo à frente e Maggie recuou, sempre com o atiçador erguido. Chegou perto do fogão. A água para o chá estava fervendo. Virou-se, agarrou a chaleira e jogou a água escaldante no bandido. Ele gritou, e Maggie deu dois passos para frente, balançou a chaleira de ferro, já vazia, e jogou-a na cabeça de Alexander. Ele deu outro urro e foi jogado contra a porta.
Maggie ia atacá-lo com o atiçador quando Mary apareceu na cozinha.
- Lady Maggie? O que foi? - perguntou, assustada.
Alexander avançou na direção dela que ficara paralisada ao vê-lo.
Maggie pensou depressa. Largou o atiçador no chão e desafiou Alexander.
- Aqui! Estou aqui! Venha me pegar!
Ele virou-se. Maggie correu na direção dele, deu-lhe um tapa no rosto queimado e correu para a sala, ao som do grito de dor e de fúria de Alexander. Abriu a porta e desapareceu na noite gelada.
Jamie selou Newton e partiu a galope para a casa do bosque. Encontrou Mary na varanda, chorando, usando penhoar e touca de dormir. Ele nem desmontou.
- Mary, Alexander esteve aqui, não?
- Um homem esteve aqui. Não sei o nome dele. Lady Maggie machucou-o e saiu correndo. Ele foi atrás dela. Tinha uma faca. Ah, meu Deus!
- Por onde foram?
- Por ali! - Mary indicou o caminho que levava à estrada.
- Faz tempo?
- Poucos minutos.
- Entre, Mary. Tranque a casa toda.
Jamie não esperou mais nada. Virou o cavalo e voltou para a estrada. Vendo pelas pegadas que Maggie tinha ido para o outro lado do bosque, desmontou e seguiu na mesma direção.
- Jogo de esconde-esconde, lady Maggie?
Abaixada atrás de uns arbustos, Maggie mal respirava. Tateou ao redor à procura de um pedaço de pau, uma pedra, algo que lhe servisse de arma. Não encontrou.
- Ah, milady, posso voltar para a casa...
As três irmãs e Ally! Não. Não iria deixar que algum mal lhes acontecesse, Maggie pensou. Para despistar Alexander, jogou uma pedrinha na direção oposta àquela onde se achava e correu até o riacho que cortava o bosque. Assim que alcançou a velha ponte, começou a atravessá-la, mas uma das tábuas cedeu porque a madeira estava podre. Maggie acabou de arrancar o pedaço que ficara preso e, com ele na mão, foi batendo nas velhas pranchas que ia deixando para trás, destruindo-as. Quando estava quase chegando à outra margem, viu que seu perseguidor se aproximava do riacho.
Ele começou a gritar:
- Maggie! Vou pegá-la como peguei as outras. Ah, é gratificante ver o pavor nos olhos da vadia quando a agarro e meus dedos se fecham ao redor da garganta. Ela fica sufocada, sem poder respirar. - Ele deu uma gargalhada. - Você não acredita em mim? Acha que eu não sou Jack, o Estripador?
A essa altura Alexander tinha chegado à ponte e estava calculando o tamanho do vão que havia para ele alcançar Maggie.
- Você é Jack, o Estripador? - Maggie perguntou.
Alexander começou a rir, virou-se e saiu correndo, determinado a ganhar impulso para saltar o vão.
Nesse instante, Jamie chegou ao riacho, viu o homem correndo e disparou atrás dele. Alexander saltou e caiu aos pés de Maggie. Com o peso, a ponte desabou. Maggie viu-se na água gelada e, para seu horror, sentiu que Alexander tinha agarrado seu tornozelo e a puxava para trás. Ela passou os braços ao redor de uma pedra e começou a dar chutes. Subitamente, ele surgiu diante dela com a faca na mão. Quando Alexander ergueu o braço ela gritou, mas viu-o cair para trás. Seu tornozelo estava livre. Desesperada e ofegante, nadou para a margem.
Nesse instante um homem saiu do riacho.
- Não!
- Maggie!
Essa voz...
- Jamie?
Ela ficou de pé e foi para os braços dele.
- E Alexander? - perguntou.
- Está morto.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Maggie olhou para o riacho. Um corpo estava preso entre duas rochas e o sangue que escorria do corte em sua garganta tingia a água de vermelho.
Os joelhos de Maggie se dobraram. Jamie amparou-a e ergueu o queixo dela para que o fitasse.
- Maggie, será que ele era Jack, o Estripador?
- Não sei. Creio que nunca saberemos.
Jamie carregou-a no colo e voltaram para a casa do bosque.
Nos dias que se seguiram Jamie esteve muito ocupado. Reuniu-se várias vezes com as autoridades e com a rainha. Mireau terminara seu livro e trabalhava febrilmente na revisão do mesmo.
Maggie tinha lido o manuscrito e ficara impressionada com o talento do amigo. Tratava-se de um romance policial, focalizando os assassinatos cometidos por um maníaco. Apesar de ser ficção, Mireau fazia um retrato da sociedade londrina, não deixando de mencionar o empenho dos que lutavam para uma reforma social, o árduo trabalho da polícia e o pulso forte da rainha Vitória conduzindo o império num período difícil e contestado, uma verdadeira líder.
Certa tarde um oficial da polícia apareceu em Moorhaven para informar lady Margaret que lorde James Langdon a esperava na sede da Scotland Yard.
Apesar de muito surpresa, Maggie acompanhou o oficial. Estava numa das salas quando Jamie apareceu muito elegante.
- Por que estou aqui? Devo prestar algum depoimento? - ela perguntou.
Ele sorriu.
- Maggie, vamos tomar chá com a rainha Vitória. Ela quer ver o livro de Mireau publicado o mais depressa possível.
- Que ótimo.
- Ah, Sua Majestade também lhe envia os parabéns.
- Parabéns? Por quê?
- Pelo nosso casamento.
Maggie conteve a respiração por alguns segundos.
- Como? Eu ainda estou de luto!
- Um casamento tão rápido, sem dúvida escandalizará a sociedade. Porém, o escândalo será maior se tivermos um filho antes de nos casarmos...
- Um filho?
- Você pode não estar grávida, mas não vou esperar o fim do luto para pensarmos no nosso herdeiro. Portanto, deixemos que falem...
- Hum. Acho que me acostumei a causar escândalos.
- Então venha comigo. - Os olhos de Jamie brilhavam, cheios de humor. Ele deu a mão a Maggie e levou-a para um salão onde havia muitos oficiais. Acrescentou: - Que tal darmos mais motivos para que falem de nós?
Tomando-a nos braços, beijou-a apaixonadamente.
E continuou a beijar.
Maggie não ouviu comentário nenhum.
Só os aplausos.

 

 

 

1 doutrina segundo a qual cada faculdade mental se localiza em uma parte do córtex cerebral e o tamanho de cada parte é diretamente proporcional ao desenvolvimento da faculdade correspondente, sendo este tamanho indicado pela configuração externa do crânio.
2 sentido figurado. indivíduo indolente, preguiçoso.
3 Daleto da classe baixa de Londres.
4 Aquele que incita à sedição ou toma parte nela; insubordinado insurgente, revoltoso.
5 Banido da sociedade; detestado, odiado.
6 Membro de uma antiga confraria de salteadores e assassinos da Índia, que, por fanatismo religioso, estrangulavam as suas vítimas e devotavam a terça parte dos despojos à deusa Kali, da qual eram adoradores.

 

 

                                                                  Shannon Drake

 

 

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