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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FALA SÉRIO AMOR! Thalita Rebouças
FALA SÉRIO AMOR! Thalita Rebouças

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Ah, o amor! Essa palavrinha tão cantada em verso e prosa é o tema deste livro, que reúne histórias de Malu e suas descobertas amorosas (e outras nem tanto) desde a infância até o fim da adolescência. Estão aqui o primeiro amor, o primeiro beijo, a relação dos namorados com sua família, sua mania de bancar o cupido para as amigas, os micos, os términos, o namorado grudento, o ciumento, os burros, os pais dos namorados, e, claro, as (várias) roubadas em que uma adolescente solteira pode se meter.

Encerrando a série Retratos de Malu, iniciada com Fala sério, mãe!, a escritora Thalita Rebouças, que atualmente vende quatro livros por hora e já bateu a marca de 70 mil exemplares vendidos, lança mais um livro sensível e divertido estrelado pela protagonista que virou queridinha de milhares de meninas de norte a sul do país.

Em Fala sério, amor!, Malu, ela mesma, a Maria de Lourdes, moradora da Tijuca, filha da Ângela Cristina, está de volta para contar suas descobertas amorosas desde a infância até o fim da adolescência. E a menina está afiada. Os "ficantes", os rolos passageiros, o namorado grudento, o ciumento, os doidos que aparecem pelo caminho, os fofos, os pais dos namorados, os seus pais e os namorados... ela sempre tem uma boa história para contar. Sorte das leitoras, que certamente vão se identificar com as muitas alegrias e furadas em que a Malu já se meteu e rir junto com ela.

 

 

 

 

Meu primeiro amor

Eu era tão apaixonada pelo Guilherme Almeida desde que tinha uns seis anos de idade. Todo mundo sabia da minha paixão: minha mãe sabia, meu pai sabia, meus irmãos sabiam, meus avós sabiam, até a minha professora sabia. Menos ele. Ele estava naquela fase de chegar do recreio suado depois de correr em campo atrás de uma bola idiota e de olhar para as garotas como se elas fossem os seres mais repulsivos do planeta. Guilherme Almeida ignorava minha presença, apesar dos meus olhares apaixonados e insinuantes.

Foi ele quem me ensinou a fazer o oito. Eu achei o máximo ele saber fazer o oito tão perfeitamente com seis anos de idade, em tão pouco tempo de aprendizado. Um número que eu achava difícil à beça. Eu fazia uma bolinha em cima da outra e ele já sabia fazer direitinho, com precisão cirúrgica.

Que menino inteligente!, eu suspirava.

E me ensinou com a maior paciência, pegou na minha mão para me ajudar a fazer as curvas do número, não se importou com meus erros infantis e não sossegou enquanto não viu meu 8 parecer um 8. Acho que foi nesse dia que me apaixonei e decidi namorar com ele. Ele, claro, continuava não sabendo de nada. Só eu namorava com ele. Guilherme Almeida nem tchum pra mim.

O meu namoro solitário durou mais ou menos um ano. Numa manhã, depois do recreio, suado, vermelho, cabelo desgrenhado, camiseta suja e meio rasgada, arranhão no queixo, o charme em forma de criança, ele se aproximou de mim e disse:

— Eu acho que gosto de você, Malu.

Meu coração pequenininho que pulou para a garganta.

— Eu também acho!

— Impossível! Eu descobri agora que acho que gosto de você, como você pode saber?

— Não, Guilherme! Eu acho que eu gosto de você também — minto. Se havia uma coisa de que eu tinha certeza absoluta, era de que o Guilherme Almeida era o homem da minha vida, meu príncipe encantado.

— Sério, desde quando? — quis saber, cabreiro.

— Ah... desde... desde ontem — menti de novo, aprendendo na prática, aos sete anos de idade, a jogar o xadrez da conquista.

— Quer namorar? — perguntou ele, na lata.

Como seria bom se os meninos mais velhos fossem assim, tão diretos!

— Quero — respondi, com a felicidade estampada em meu sorrisinho banguela.

— Então me mostra.

Ô-ou... Mostra o quê, cara-pálida?, eu tive vontade de perguntar. Guilherme Almeida, daquela idade, era um menino que já pensava em indecências?, imaginei, com o pé atrás que toda mulher deve ter em começos de relacionamento, mesmo com sete anos de existência.

— O que você quer que eu mostre?

— Seu pé.

— O quê?

— Anda, deixa eu ver seu pé, Malu.

Aquilo me pegou de surpresa. Guilherme Almeida tinha um brilho ansioso no olhar, uma curiosidade que beirava a esquisitice.

Eu sempre odiei meu pé. Magro, cheio de veias, quase chato, dedos compridos, calos por todos os lados.

— Pra quê?

— Porque eu quero ver, ué. Mostra? — pediu, como se precisasse do meu pé para viver.

— Por quê?

— Porque eu gosto de pé.

Puxa vida. Eu estava ferrada. Ele era um menino que gostava de pés, mas eu odiava meus pés. Morria de vergonha deles!

— O meu pé não tem nada de mais...

— Mas eu quero ver mesmo assim... Tira o tênis.

Putz! Pra tirar o tênis vou ter que tirar a meia e Guilherme Almeida vai sentir meu chulé. Chulé de pé suado depois do recreio!, gelei. Meu quase namoro estava por um fio. Droga! E eu era tão apaixonada por ele... Não queria que acabasse daquele jeito.

Não tive outra alternativa. Tirei o tênis, depois a meia, dei uma abanada no pé para tentar disfarçar o chulé e mostrei pra ele.

— É horrível, eu sei... — entristeci-me, já antevendo o primeiro pé na bunda que levaria na vida.

Ele olhou, olhou, olhou... Abriu um sorrisinho lindo e disse:

— É nada horrível. É lindo — elogiou, visivelmente encantado.

Feliz da vida, descobri que Guilherme Almeida estava realmente apaixonado por mim. E entendi o significado da frase "a paixão é cega".

Namoramos alguns meses, sem um beijinho sequer, apenas olhares apaixonados e mãozinhas dadas no recreio.

Guilherme Almeida, o primeiro amor da minha vida, gostou sinceramente de mim. Mas amor de verdade, mesmo, o meu pé.

 

                         8 anos

 

Um pato no meio do caminho

Meu segundo namorado foi o filho de uma vizinha, o Mateus. Toda vez que minha mãe ia para a casa dela falar da vida alheia, eu ia junto pra brincar com ele.

Era aquele namoro bobo, sabe? A gente dava um selinho muito do sem graça e molhadinho demais pro meu gosto e ficava por isso mesmo.

Eles moravam na cobertura, que tinha um terraço com muitas plantas, um campo de futebol, gato, cachorro e uma vista bem bacana. Um dia, ele me fez ir até o terraço para ver seu novo bichinho de estimação. Estava esperando mais um cachorrinho, um hamster (aquele rato metido a besta que todo mundo ama, mas eu odeio), um miquinho (que também me dá nervoso), ou algo do gênero. Eis que, para a minha surpresa, sai de um curralzinho Marcelino. Marcelino não era um bicho qualquer. Marcelino era um pato. Um pato!

— Pato, não! Marcelino é marreco, Malu, é diferente! — Mateus fez o favor de explicar.

Sempre fui avessa a bichos de penas. Galos, pintos, pombos, pavões, andorinhas, beija-flores... nunca gostei nem de chegar perto. De repente, eu vejo um pato na minha frente. Pato, aquele bicho idiota e sem iniciativa que não faz outra coisa a não ser qüé-qüé, é fanho, tem bico achatado, o pé horrendo (pé de pato, pô!), o andar esquisito de quem queria ser pingüim e uma cara mal-humorada que me dá frio na espinha.

— Vem cá, Malu! Ele é filhote!

— Não, eu tô bem aqui! — disse, colada aos degraus que separavam a escada do curralzinho.

— Vem, Malu, deixa de ser boba! Não vai me dizer que tem medo de marreco!

— Claro que não! É que pato fede! E eu odeio bicho fedorento. Só isso.

— Aí, que fresca! Meu marreco não fede, não, tá? É limpinho.

— Tô sentindo o cheiro dele daqui.

— Malu, você tem que trabalhar melhor essa sua relação com o mundo animal... A gente é animal, sabia?

— Animal racional, dâ-â! E eu não sou uma pessoa ligada a bichos, isso não tem nada de mais.

— Eu se fosse você perderia esse medo. Bichos são legais.

— Eu gosto de bichos. Só não amo bichos...

— Então por que fugiu do filhote do cocker spaniel da dona Zazá do segundo andar? Ela ficou magoada...

— Cachorro esquisito, veio pra cima de mim querendo me lamber! Nem me conhecia e já veio cheio de intimidade! E se ele me desse uma mordida?

— Ele é neném, Malu!

— Mas tem boca e dentes! Podia me morder. Eu gosto de bichos na floresta, nos filmes...

— Tá bom, deixa de ser medrosa, vai. Eu tô aqui, o Marcelino não vai fazer nada, você não confia em mim?

— Arrã... — disse, zero confiante.

— Então desce. Vem aqui fazer carinho nele.

Lutando contra todos os meus temores, desci a escada e, quando vi, estava no mesmo chão que o pato fedorento.

— Dá um beijinho no Marcelino.

— Fala sério, Mateus! Tá maluco?

O pato idiota começou a ficar agitado. A fazer qüé-qüés esquisitos, a bater as asas, parecia querer levantar vôo.

Assustada, comentei:

— O é que é isso? O que deu nesse bicho?

— Iihhhh... Agora que reparei... você tá de vermelho.

— E o que é que tem?

— Bicho de pena não pode ver vermelho que...

— Que o quê, Mateus?

Mateus não teve tempo de responder. O idiota do pato saiu correndo atrás de mim como se fosse um touro. Corri em círculos pelo campo de futebol com um pato imbecil atrás de mim fazendo qüé-qüé em looping, louco para me bicar e me matar sufocada com seu fedor e suas penas horrorosas e sujas.

Chorava como se estivesse no meio do pior dos pesadelos.

— Corre atrás dela, Marcelino. Pega ela! — gritou Danilo, irmão mais velho do Mateus, para o pato assassino.

— Pára, gente! Me tira daqui, Mateus! — berrei para ninguém, já que Mateus rolava de rir ao lado do irmão.

— Marreco não pode ver gente de vermelho que acha que tem que perseguir! — explicou Mateus, rindo como se estivesse vendo uma comédia pastelão.

— E por que você não me disse isso antes, seu demente?

Ouvindo a gritaria, nossas mães apareceram na janela.

— O que foi, filha?

— Esse bicho idiota quer me matar, mãe! Eu vou morrer assassinada por um bicho de dois palmos de altura! Que fim terrívelll! — expliquei quase sem fôlego e aos prantos, enquanto corria em velocidade de maratonista.

— Pega o pato, Mateus! — ordenou a mãe dos meninos.

— É marreco, mãe!

Cena grotesca: Mateus e Danilo correndo atrás do pato que corria atrás de mim.

Depois de algumas voltas, eu suando de tanto correr e temer uma tragédia, o pato foi pego e a paz voltou a reinar. Com o fôlego retomado e o choro suspenso, perguntei a mãe do Mateus, injuriada:

— Tia Cidinha, por que você deu um pato pros meninos? Que presente louco é esse?

Depois descobri pela minha mãe, que soube pela Cidinha, que Mateus não queria mais namorar comigo e, sabendo do meu medo de bichos de pena, achou que um pato seria um ótimo motivo para eu me separar dele. Podia ter dito que não queria mais, teria sido muito mais fácil. Até porque eu já não estava mais a fim de ficar com ele. Além de ele ter muitos bichos para o meu gosto, ele tinha, crueldade das crueldades, passarinhos coloridos numa gaiola. Deprimente!

Depois dessa experiência com o pato psicopata (praticamente um psicopato), passei a odiar o Mateus. E patos.

Odiar não é bem a palavra. Eu tenho medo de patos. Eu sei, essa frase soa ridícula, mas fazer o quê?

Pato pra mim, só o Pato Donald. E olhe lá.

 

                               12 anos

 

Beijo de lingua

— Quer bala?

U-hu!, urrei por dentro. O primo da Alice está dando muuuuito mole!, comemorei internamente.

O cara tinha acabado de fazer 15 anos, morava em Friburgo e estava aqui no Rio de passagem. Ou seja, perfeito para um primeiro beijo.

Toda vez que a gente se encontrava rolava aquele clima purpurina. Clima diferente. Clima bom à beça.

A Alice achava que o clima era só na minha cabeça e que eu continuaria BV (Boca Virgem) se dependesse do Nando.

— Ele não está a fim de você, Malu! Meu primo é bobão, nem pensa em namorar.

— Eu não quero namorar! Quero beijar!

A despeito da descrença da Alice, eu tinha certeza: estava vivendo meus últimos momentos de virgindade bucal. Dentro de pouco tempo, eu entraria pra o time dos que beijam. Eu, a mocinha da novela das oito, Madonna, Ronaldinho...

Saímos da bombonière do cinema rumo à sala de projeção. O filme escolhido por ele: O massacre das serras assassinas VIII.

— É para eu ficar com medo e agarrá-lo no cinema, assustada.

— Não é nada disso, Malu! É porque ele é um débil mental que só pensa em sangue, crimes violentos e terror.

— Tá com frio, Nando? — perguntei, fofa. — Eu não estou, se quiser meu casaco te empresto.

— Tô a fim não, Manu. Valeu.

Manu! O cara me chamou de Manu! A purpurina tinha visivelmente ficado em carnavais passados.

— Malu, Nando. Ma-lu! — corrigi, indignada.

— Claro, desculpa, Malu. É que tenho uma amiga em Resendo que se chama Manu. Ela é amiga da Ritinha, da Gabi...

— Tô nem aí pra essas meninas, nunca vi essas meninas. Eu sou Malu! Malu!

— Você... Você tem medo de filme de terror?

— Tenho! Tenho! Tenho! — foi o que consegui responder.

Virei-me na hora para Alice e comemorei baixinho a volta da purpurina.

— Caraca, ele está completamente apaixonado por mim! Você viu? Veio com papinho de querer me proteger do medo...

— Ele só te perguntou se você gosta de filme de terror.

— Se eu tenho medo de filme de terror! Para quê? Para eu ficar com medinho e ele me dar o ombro para me acolher dos horrores do filme.

— Viajou!

A Alice me irritava nessas horas.

Fiz questão de ignorá-la.

Sinistro! Meu poder de sedução é muuuito bom! Conquistei o garoto com meu charme e com a minha beleza interior em pouquíssimos segundos. Eu sou ótima!, pensei.

Na sala 12 do multiplex, sentamos lado a lado. Assim que apagaram as luzes, a Alice, a Joana e a Duca zarparam com o Homero e o Neco para umas filas na frente. Suuuper discretinhos.

Aí rolou aquele clima estranho. Aquele clima olha-não-olha, beija-não-beija, conversa-não-conversa.

O coração bateu numa velocidade que eu nem achei que ele poderia atingir. Parecia querer sair do meu corpo.

— Tem pipoca aí ainda?

Essa pergunta era claramente um suuuuuper primeiro passo. Que fofo o Nando! Afinal, dividir pipoca é sinal de carinho, amizade, de companheirismo, de energia boa. Definitivamente ele está muito a fim de me beijar, vibrei por dentro.

Como pensamos bobagens quando temos 12 anos...

Tinha pipoca. Ele comeu pipoca, eu comi pipoca, a gente encheu a cara de pipoca. Nunca comi tanta pipoca. No cinema, eu jurava que o som do nosso mastigar era mais alto que o das serras assassinas em ação.

Acabou a pipoca.

E começou aquela desconfortável sensação de milho no dente.

— Posso dar um gole na sua Coca?

Uau! Isso sim é um primeiro passo decente!, surtei. Afinal, beber no mesmo canudo é praticamente um beijo de língua, surtei mais ainda.

Ele deu um gole e eu dei um logo depois. Eu era charme puro.

E a cada minuto que passava ficava com mais vontade de jogar mais charme, só para dar um beijo na boca daquele friburguense. Friburguense meio devagar, vamos combinar! Meio não, totalmente devagar! Eu dando aquele mole descarado e ele nada! Depois aprendi que muitos meninos são devagar, independe da idade. Eles são simplesmente muito lerdos na arte de conquista.

Com medo de que Nando não tomasse atitude que eu esperava dele, resolvi meu futuro naquele instante.

— Nando... a gente já dividiu um canudo, comeu pipoca do mesmo saco... O que você quer esperar mais para me dar um beijo?

É! Eu falei isso! Eu virei Malu, a Cara-de-Pau! A que parte-pra-cima-mesmo-e-que-se-dane-o-que-outros-pensem.

E olha que eu nem era a fim do cara! Estava mesmo a fim de saber o gosto de um beijo e nada melhor do que com um garoto que eu conhecia desde pequena e que era um feinho (sempre gostei de garotos feios) bem charmosinho.

— Você quer que eu te... que eu te... que eu te dê...

— Um beijo, quero, mas eu posso dar um em você também.

Disse isso e, smack!, tasquei um beijo nele.

Eu estava impossível! E decididéssima!

Caraca!

Beijei.

Beijei. beijei, beijei.

Na boa, achei muito, muito melado. Uma baba só. Muito estranho. A língua dele rodava que nem uma manivela, parecia querer brigar com a minha!

Achei o beijo com gosto de tampa de caneta. Tampa de caneta ao molho de esmalte incolor.

É, não foi legal o nosso primeiro beijo. Foi bem desencaixado.

Mas pela cara do Nando ele tinha gostado bastante da beijação.

— Malu, menina! Você, hein? E pensar que eu nunca pensei em te beijar, nunca te olhei como uma garota.

Leso! pensei. E as nossas conversas na lanchonete, na fila, nossa divisão de pipoca e carinho, nosso beijo no canudo?, eu tive vontade de perguntar, muito injuriada.

Mas não perguntei. Se ele era um menino que demorava a entender a intensidade de um clima purpurina como o nosso, problema dele. Eu, pelo menos, não era mais BV, nem BVL (Boca Virgem de Língua), muito menos BVBL (Boca Virgem de Beijo Longo).

Meu pensamentos foram surpreendidos pelo segundo beijo daquela tarde promissora. O Nando me beijou! E agora eu já estava no meu segundo beijo. Segundo! U-hu! E este não tinha gosto de tampa de caneta. Só de fita crepe. Tinha melhorado.

Beijamos mais uma, mais duas, mais cinco, mais nove vezes...

Nossa, foi muito beijo. Beijei muito! E cada vez melhor.

Ficamos um tanto babadinhos, mas super valeu a pena.

— A gente... a gente... a gente tá...

— Namorando? — perguntei.

— É.

— Fala sério, Nando! Claro que não! A gente só ficou. Mesmo porque eu moro aqui, você lá longe, quase nunca a gente ia se ver... melhor assim. A gente continua amigo e se der vontade a gente fica quando se encontrar.

— Sério, Malu? Caraca, você é demais! Concordo com tudo!

E assim eu decretei, maduríssima, que não ia namorar.

Depois de fofocar com as meninas na casa da Alice e contar detalhinhos do episódio primeiro beijo, fui para casa flutuando. Se aquele sucesso Tribalista já existisse na época, com certeza eu ia cantarolar: "Já sei namorar, já sei beijar de língua, agora só me resta sonhar"...

Assim que cheguei, resolvi me abrir com a minha mãe. Ela quase surtou, embora tenha tentando fazer uma cara de que achou tudo muito normal. Por isso não contei nem a metade da história para ela.

Uma semana depois, a Alice me contou que o palhaço do Nando chegou a Friburgo contando para todo mundo que passou o rodo geral no Rio, que as cariocas são muito fáceis.

Garotos... humpf!

 

                           13 Anos

 

Mamãe e meus namorados

— Mãe esse é o Paulinho.

— Paulinho? — reagiu, com uma fisionomia que beirava o nojo.

— É, mãe, Paulinho.

— Paulinho de quê?

— Só Paulim, tia.

— PAULIM? Paulim tá fora de questão, Paulo. E tia também. Dona Angela Cristina, por favor.

— Desculpa.

— É Paulo puro?

— É Paulo Silva.

— Meu Deus do céu, Maria de Lourdes, o nome do menino é esse? Paulo Silva? Paulo Silva e ponto? Ai, tadinho! — exclamou, sinceramente com pena dele. — Não podia ser Paulo Emílio, Paulo Ernesto, Paulo Afonso ou Paulo Sérgio? Adooooooooro Paulo Sérgio.

   Mãe!.

— Eu gosto de nome duplo, Maria de Lourdes, você sabe disso. Passa seriedade, nobreza, comprometimento com a verdade e com o trabalho. Passa felicidade.

— Eu não gosto de nome duplo não, dona. Tô feliz com o meu.

— Ah, isso é porque você é bobo. Garoto é bobo, não tem jeito.

— Eu não sou bobo. Estou bobo é com a beleza da sua filha, a Malu.

Ela quase teve um ataque. Fechou os olhos, meditou por alguns segundos, tremelicou os lábios como se tivesse ouvido a maior ofensa do mundo.

— Eu não conheço nenhuma Malu, Paulo Silva. A minha filha se chama Maria de Lourdes.

Caraca, a minha mãe sabia ser antipática quando não ia com a cara de um garoto — o que acontecia dez entre dez vezes que eu apresentava um pra ela.

— Mãe, eu tô saindo com o Paulinho.. quer dizer, com o Paulo, há uma semana.

— Uma semana? Espero que não tenha acontecido nenhum tipo de saliência entre vocês dois.

— Que isso, dona Ângela? Eu sou muito respeitador.

— Tem quantos anos?

— Quinze.

— Quinze? Um homem praticamente, não é, Maria de Lourdes? Não podia ter 13, que é a sua idade?

— Mãe! Já, já faço 14. E o Paulinho tem uma cabeça ótima!

— De onde vocês se conhecem?

— Ele é da minha sala.

— É re.. é re .. é repetente?

— Arrã... — respondi.

— Mas o garoto ainda por cima é burro, Maria de Lourdes?

— Manhê!

— É virgem?

— Quê?! — Paulinho ficou roxo, roxo, roxo.

— Escuta bem uma coisa, Paulo Silva: Maria de Lourdes é virgem. Super virgem. E eu não acho nada bacana a minha filha perder a virgindade com um garoto de nome simples, repetente, que sai com ela há uma semana. Ok? Entendido?

— Ô, mãe! Você tá assustando o menino! — Estrilei — Ela tá brincando, Paulinho.

— Dona Ângela, antes de a gente se pegar a gente já era amigo, então não precisa se preocupar, eu gosto mesmo da Malu. De verdade.

Ela respirou fundo. Pareceu usar sua tática de contar até 36 quando ficava tremendamente irritada.

— Paulo Silva Repetente, quer dizer que você.. v-você.. você e a minha filha.. estão se pegando? Que palavreado é esse? — quis saber, absolutamente indignada.

— Mãe, todo mundo pega todo mundo hoje em dia!

— Eu não sou mãe de todo mundo. Eu sou sua mãe! E ninguém pega filha minha! As pessoas namoram filha minha!

— Pegar é modo de dizer.. A gente ficou.. — tentou corrigir, suando frio.

— Fala sério, amor! — Soltei, desesperadamente, antevendo a reação materna.

— Ah, então vocês estão 'ficando'? Quer dizer que nem namoro é?

— Não é isso, mãe...

— Quais as suas reais intenções com a minha filha, Paulo Silva?

— Eu gosto dela. Gosto muito.

— Gosta? Gostar eu também gosto. O pai dela gosta, os irmãos gostam, o jornaleiro gosta, até o açougueiro gosta dela. Você tem que Amar a Maria de Lourdes. Amá-la acima de todas as coisas, respeitá-la, fazê-la feliz, ensinar a ela matemática. Você é bom em matemática?

— Ótimo.

— Enfim uma coisa boa em você, Paulo Silva.

— Eu também jogo xadrez muito bem, modéstia à parte. Estou ensinando pra Malu.

— Ah, Paulo Silva é repetente, mas tem um lado inteligente. Pelo menos isso. Olha, mão no peito neeeeeeem pensar! Na bunda, só se for de passagem, e por cima da calça jeans.

— Beleza! — Empolgou-se Paulinho.

— É brincadeira, Paulo Silva! Eu estava te testando, Paulo Silva, pra ver se você é o que eu estava pensando: um malandrinho aproveitador de meninas indefesas!

— Eu não sou nada disso! — defendeu-se Paulo Silva.

— Menino não presta, é impressionante. Mão só no cabelo e no rosto, e olhe lá! Maria de Lourdes é uma criança!

— Tá certo.. Desculpa..

— E seus pais? Eles sabem do namoro?

— Sabem. A minha mãe, dona Augusta, que é a diretora da escola, adora a Mal.. a Maria de Lourdes.

Nesse momento, minha mãe, Ângela Cristina, mudou da água para o vinho e abriu seu melhor sorriso, já imaginando o desconto que teria na mensalidade da escola, certamente.

— Dona Augusta é sua mãe? Dona Augusta, diretora do colégio, é a sua mãe?

— É, sim senhora.

— E deixou você repetir de ano?

— Deixou sim, senhora.

— Que Profissional exemplar! Paulo Silva, porque você não me disse isso antes? A-do-ro dona Augusta! Ela é uma querida! Tá super aprovado esse namoro, viu?

— Oba! — Comemorei.

— Agora vou ter mais intimidade com a sua mãe e vou poder levá-la ao salão para conhecer a Célia, a melhor cabeleireira do mundo. Sua mãe precisa mudar urgentemente aquele corte de cabelo da década de 80, parece que ela saiu de Os embalos de sábado à noite.

— Manhê! — Bufei

— Eu também acho, mas nunca falei isso pra ela porque sou menino, e mulheres não dão muita bola pra nossa opinião,né?

— Muito bem. Tô gostando de Paulo Silva, Maria de Lourdes! — afirmou, dando tapinhas no ombro dele. — Quando eu for ao salão com sua mãe vou fazer muitos elogios a você, viu?

— É o mesmo salão da minha depiladora, Malu?

— É o quê? Repete isso, filhinho.

— Eu me depilo no mesmo salão da..

— Pára o mundo que eu quero descer!!!! — Deu escândalo minha mãe. — Você se depila? Você se de-pi-la? Por quê, Santo Cristo? Pra quê? Depilar é coisa de mulher, não de homem, Paulo Silva! Você é macho, Paulo Silva!.. Diz pra mim.. Você tem tendências homossexuais, é isso? Pode dizer, eu não sou preconceituosa!

— Não, dona Ângela. É que eu nado. Quero ser nadador profissional e é melhor depilar os pêlos, aumenta a velocidade da gente na água.

— Atleta.. Veja você.. Paulo Silva é atleta. Ou seja, pobre. Você gosta de um pobre, né, Maria de Lourdes? Mas tudo bem. O rapaz parece de boa família. Tá liberado o namoro. Mas existe uma coisa chamada lâmina de barbear. Pára de depilar e passa a se raspar. É mais masculino e não dói.

— Mas coça.

— Deixa coçar Paulo Silva! Que é que tem uma coceirinha aqui, outra ali?

Quando ele foi embora, minha mãe voltou, cheia de si :

— Essa juventude tem muito a aprender comigo, sabe, Maria de Lourdes? Você tinha que se orgulhar de ter uma mãe maravilhosa como eu. Aposto que o Paulo Silva saiu um menino melhor daqui de casa, depois da nossa conversa.

Não resisti, o momento urrava por um:

— Fala sério, mãe!

 

Papai e meus namorados

Sempre foi mais fácil apresentar meus namorados, ficantes e trelelês para o meu pai. Ele é bem menos implicante e bem mais simpático com eles do que a minha mãe. O problema é que às vezes meu pai é simpático demais, sorridente demais, amiguinho demais. E eu não suporto esse negócio de pai virar amiguinho de namorado/ficante/trelelê.

Eu estava com o Léo havia duas semanas, a gente estava naquela fase de paixão profunda, amorzinho total, beijinhos carinhosos sem ter fim e horas a fio ao telefone. Era chegada a hora de apresentá-lo para meu pai.

— Pai, esse aqui é o Léo.

— Léo de Leonardo ou de Leopoldo?

— De Leônidas, mas graças a Deus todo mundo me chama só de Léo.

— Mas, Léo, Leônidas foi um grande craque do nosso futebol. Passou pelo Botafogo, pelo Vasco, pelo Flamengo, jogou na seleção na década de 40, ele era chamado de Diamante Negro do futebol, você tinha que se orgulhar desse nome!

— Eu achei que o senhor era Fluminense, tio.

— Senhor tá no céu. E tio é horrível, Léo. Eu não tenho idade pra ser tio, pode me chamar de primo — fez gracinha.

Comecei a ficar com medo. Ele continuou:

— Eu sou tricolor, mas entendo de futebol modéstia à parte. Sou jornalista esportivo, trabalho com isso há anos. Infelizmente o Leônidas nunca passou pelo Flu, mas foi, sem dúvida, um dos maiores ídolos do futebol.

— Meu none é Leônidas por causa desse cara aí, mesmo. Eu odeio esse nome.

— Não diga bobagem! É uma honra ter o nome de um ídolo. Pior é o meu: Que é que cê tá armando, Armando? — gracejou e caiu na gargalhada. Sozinho.

Vendo que não estava agradando, partiu para o golpe baixo.

— A Malu já te contou dos campeonatos de pum que a gente fazia lá em casa? Ela sempre ganhava! O pum dela é um pum de categoria, desde pequena!

— Paiê! — protestei, os olhos arregalados.

— Que é que tem, Malu? Se você veio me apresentar o cara é porque o negócio é sério. E se é sério um pumzinho vai acabar escapulindo mais cedo ou mais tarde.

Agora o Léo ria com gosto. E meu pai, feliz por finalmente arrancar um sorriso do menino, continuou seu repertório flatulento:

— Que cara feia é essa, Malu? Todo mundo solta pum, minha filha!

— Paaaaaaaaai! — gritei, roxa de vergonha.

Léo ria mais ainda, parecia amigo de infância do meu pai.

— O que mais ela fazia quando era pequena?

— Ah!Ela adorava pintar a cara de vermelho e sair correndo pelada pela casa dizendo que era o Cacique Manda-chuva. Ela peladinha pulando com o rosto pintado de vermelho era a coisa mais linda do pai.

— Cacique Manda-chuva?! Rá, essa é boa!Tem foto?

— Claro! Te mando por e-mail.

— Tá maluco, pai? Manda nada!

— Manda-chuuuuuuva! Era esse o nome do seu Cacique! Ô, menina desmemoriada!

E os dois riram juntos como se fossem velhos amigos. Quá quá quá, pra cá, quá quá quá quá, pra lá.

— Mais podres, primo! Mais podres da Malu!

— Esse peito aqui não existe, cê sabe, né? É tudo enchimento! — avisou, enquanto apertava meu sutiã de enchimento — Por isso nem se empolga pra chegar perto dessa área. Não tem nada pra ver aqui. Confio em você, hein, moleque? Respeito com a minha mina! — Completou, dando soquinhos amigos no Léo, que retibuiu com os mesmos soquinhos amigos.

Odeio soquinhos amigos.

— Caraca, pai!' Minha ‘mina’ ninguém merece!

— É carinho, filhota. Eu me preocupo com a minha porquinha frufru!

— Porquinha frufru? Rá rá rá!!!

— Era assim que eu chamava a Malu quando ela era pequena, sabe Léo?

— Mas por que porquinha? Ela tinha cara de porquinha?

— Que nada! Ela nunca foi chegada num banho, né, filha? Até hoje é assim.

— Nunca mais apresento ninguém pra você, pai! — reagi, fora do sério!

— Ih, ó! Vai se preparando, a Malu é brava!

— Não sou NADA brava!

— Porquinha frufru é brava, é? — quis saber o debochado do Léo.

— É, sim, vai se acostumando! Teve um dia em que ela mordeu a minha perna na praia porque eu não tava dando atenção pra ela.

— Mordeu?

— Eu tinha 4 anos, isso você não conta, né?

— E a leitura da Malu? Só lê bobagem: revistas de fofocas, revistas de adolescente, gibi e livrinhos bobinhos. Mas no banheiro só entra Cara, né, Malu? Como diz a mãe dela, essa menina senta na privada e esquece da vida, né, filha?

— Fala sério, pai!

— E o gosto musical? Já sabe, né?

— Não! Conta, primo!

— É péssimo! Ela chora quando vê essas bandinhas de menininhos rebolando na tevê, guarda pôster de artista; se faz de moderna, mas é cafona toda vida!

— Quem diria, hein, Malu? — perguntou Léo, roxo de tanto rir.

— Não é nada disso, não guardo nada de ninguém há séculos! Que viagem, pai!

— Mas guardou daqueles mexicanos que vieram pro Brasil. Ou eram colombianos? Até pra porta do hotel você quis ir! Eu que não deixei.

— Você gostava daqueles mexicanos? Ecaaaaaaa! Fala sério, Malu!

— E pior: ela só é botafoguense porque acha a estrela bonitinha. É muito perua, né não?

Eu quase voei na jugular do meu pai. Só não fiz isso porque ele e Léo se adoravam. Foi amor à primeira vista.

O problema foi aturar o Léo me chamando de porquinha frufru pra cima e pra baixo e espalhando meu infame apelido de infância para todos nossos amigos.

Homens... Não importa a idade que tenham, são sempre umas crianças.

 

Presente para o amor

Eu estava com o Tadeu havia dois meses e cinco dias, mas a gente se conhecia há um tempão, ele morava na minha rua, brincávamos juntos no play quando éramos crianças, fazíamos guerra de pipoca, íamos ao cinema só pra fazer barulho e atrapalhar a sessão.. Enfim, éramos amigos antes de tudo.

Chegou o dia dos namorados. Adoro dia dos namorados. Ganhar presente só por estar namorando é tudo de bom. O que o comércio não inventa pra faturar? Estava ansiosa pra encontrar o Tadeu. Tinha comprado pra ele um presente que eu tinha certeza de que ele ia amar, uma bola, uma chuteira e a camisa do Ronaldinho Gaúcho no Barcelona, que era o sonho de consumo dele. Não era um presente, eram três presentes, presentaços! Eu estava tão orgulhosa de mim! Gastei toda a minha mesada e ainda tive que pedir adiantamento da próxima para meus pais, para poder caprichar, mas não me arrependi, sabia que iria agradar em cheio ao Tadeu.

— Tô passando aí pra gente sair.

— Tô descendo.

Botei tudo numa caixa estampada com corações que custou os olhos da cara, tasquei um laçarote branco e escrevi um cartão 'Nosso amor está só no começo, mas é lindo, é fofo, é bem fofinho mesmo.Vamos ficar juntos muitos e muitos anos, meu amor, minha vida, minha beleza, meu torpor'. Torpor peguei emprestado do meu pai, para rimar com 'amor'. Nem sabia bem o que era torpor, mas achei a palavra um espetáculo.

Estava ansiosa na portaria esperando por ele e o vi se aproximar.

Estava de mãos abanando.

Quase tive uma sincope nervosa em plena portaria, mas resisti.

Fui ao encontro dele.

Dei um selinho.

Mostrei a caixa, como se mostrasse um tesouro.

— É pra você. — Sorri, orgulhosa.

— Pra mim? Caraca, Malu! Não precisava!

— Claro que precisava..

— Mas a gente só tá junto há dois meses.

Tóin! Um martelo imaginário, porém pesado, martelou a minha cabeça. Quase tirei o laçarote do presente para enforcar o Tadeu, em virtude da frase odiosa, mas me controlei.

Insensível, palhaço, idiota!, tive vontade de gritar antes de dizer: — Mas você merece os melhores presentes.Só por me fazer tão feliz..

— Ah... Tá... Beleza...

— Abre!

— Agora?

— Agora!

Ele abriu. Seus olhinhos faiscaram de tanta felicidade. Foi um festival de uaus e caracas que me deixou extremamente empolgada e certa de que seria, de longe, a vencedora do prêmio de melhor namorada do mundo, se ele existisse.

Ainda embasbacado com a trinca de presentes perfeitíssimos, ele revelou:

— O seu presente eu... eu esqueci lá em casa. Achei que a gente ia se ver mais tarde também.

Ufa! Ele tinha comprado, só tinha esquecido.

— Não tem problema, vamos até lá buscar.

— Agora?

— É, ué.É aqui do lado.

— Ah, é?

— É, Tadeu! Você mora no prédio ao lado do meu desde que tem três anos.

— Tá.

Chegamos à casa dele.

— Oi, tia Sueli — cumprimentei a mãe do Tadeu.

— Oi Malu. Ganhou presente, é, filhote?

— Ganhei. Três presentes irados.

— Por quê?

— Porque hoje é dia dos namorados, tia.

— Ih, é mesmo, tinha até esquecido.

— Mãe, a Rafa tá ai?

— Não, sua irmã saiu com o Bodão.

— Ah, tá. Malu quer água, refri, alguma coisa? — perguntou, fofo.

— Não, tô bem assim. Quero só meu presente mesmo, tô curiosa.

— Ah, tá. Ah, tá. Arrã. Mãe, dá um pulinho aqui?

— Não, filho, vou ficar fazendo sala pra ela.

— Ela é de casa, pode ficar sozinha um pouco.

— De jeito nenhum, que desfei..

— Vem mãe! Por favor!! — insistiu.

— Com licença, Malu.

Os dois entraram e ficaram lá dentro por longos minutos. Deu tempo de ligar pra Alice e pra Duca, deu tempo de ler o horóscopo no jornal que a tia Sueli estava lendo e ainda fui dar uma vasculhada na geladeira, porque depois de tanto tempo fiquei com sede.

Eles reapareceram.

— Tchanãã.. — Fez Tadeu, com um saco marrom de supermercado, meio amassado, e uma fita de cetim um tanto amarrotada fazendo um laçarote, grampeada no saco.

— Pra mim? — perguntei, sem esconder a decepção.

— Pra você.

— Tá calor aqui, né? Vou lá dentro tomar uma chuveirada fria — avisou tia Sueli, antes de sumir corredor adentro.

— O pacote fui eu que improvisei, a loja estava sem embalagem pra presente. Não vai abrir?

— Vou, claro.. — Respondi, sem a menos vontade de abrir aquele pacote pobrinho.

Abri. E qual não foi a minha surpresa quando vi o presente.

— Uma meia? Noooossaaa.. ? Uma meia..

— Toda colorida, você não gosta de meias coloridas?

— Gosto, acho que gosto.. Nunca parei pra prestar atenção nas minhas meias.

Tentei disfarçar a minha cara de desânimo. Afinal, a situação não estava boa pra ninguém, ele podia estar sem grana.. Pelo menos ele não tinha esquecido de mim. Comprou uma meia colorida.

Observando mais atentamente, constatei o que não queria constatar.

— Uma meia cheia de patinhos, olha só..

— Não é linda?

— Eu odeio pato, Tadeu.

— Como assim?

— Eu tenho medo de pato.

— Fala sério, Malu!

— Tô falando. Se eu pudesse fazer um pedido para o gênio da lâmpada eu pediria que ele acabasse com os patos. O ideal de paraíso, para mim, é um mundo sem patos, Tadeu.

Silêncio constrangedor.

— Acho que você não me conhece muito bem.. — desabafei, as lágrimas começando a escorrer.

Enquanto enxugava as lágrimas com a horrorosa meia de pato, senti um cheirinho diferente. Não era cheiro de pato, não era cheiro de novo.

— Essa meia tá com xulé, Tadeu!

— Não é possível! É novinha!

— Não é novinha, Tadeu! Pode dizer, você pegou no quarto da sua irmã. Você esqueceu que hoje era dia dos namorados...

Ele ficou sem graça.

— Não, Malu, demorei horas na loja escolhendo..

— Pára de mentir, odeio mentira!

— Desculpa, Malu, desculpa! Eu não achei que a gente ia trocar presente de dia dos namorados! Você nem me falou que tinha comprado!

— Eu achei que você ia comprar também!

— Mas a gente tá junto há dois meses só.

— Que é que tem? Você acha que existe um tempo mínimo para as pessoas se darem presentes no dia dos namorados?

— Seis meses — ele respondeu, sincero.

— Beleza, Tadeu.Vou pra casa — despedi-me, pensando na minha querida mesadinha, que tinha ido embora com um monte de presentes idiotas.

Fiquei bem triste.

Enquanto chorava no meu quarto, tive de agüentar a minha mãe berrando do lado de fora:

— Gastou dinheiro à toa! Homem é tudo igual, Maria de Lourdes! Você precisa entender que homem não presta, filha! Não presta! Eles são péssimos de data! Não decoram nenhuma! É da raça, minha filha!

Chorei todas as lágrimas que existiam dentro de mim. Quando estava pensando em parar de chorar, bateram na porta.

— Não quero ver ninguém, mãe.

— Sou eu, Malu.

Era o Tadeu.

E eu estava horrorosa, com a cara de sapo, toda inchada.

— Ah.. Entra.

Ele entrou. E trazia um buquê lindo de flores numa mão e uma caixinha na outra.

— Sei que nada vai apagar o que eu te fiz, mas essas flores e esse presente são do fundo do meu coração. E eles são mais que um pedido de desculpa. São para você entender que gosto de verdade de você. Mas sou um garoto, e garotos são desligados..

Olhei pra ele meio chorosa ainda, desconfiada, mas com um sorrisinho nascente na boca.

— Vê se gosta.

Era um par de brincos.Lindo.

— Pra você sair hoje comigo mais bonita ainda. Posso botar?

Botou, me abraçou e me deu um beijo apaixonado.

— Eu te amo, Malu. Não só porque você é minha namorada, mas porque é minha melhor amiga.

Derreti.

Saímos para tomar um suco no começo da noite, olhamos nos olhos, rimos bobos um para o outro.

E eu entendi que datas são apenas datas. E que todo dia deve ser dia dos namorados. Dia 12 de junho, humpf! É só mais uma data para o comércio ganhar dinheiro. O que importa é o amor. E o amor não pode ser medido em cifras. Descobri isso naquele dia, o mesmo dia em que percebi que amava e era amada. Amada de verdade. Amor que não tinha sido comprado em nenhuma loja. Vinha do coração do Tadeu. Quer presente melhor que esse?

 

                           14 anos

 

É cada um que me aparece...

A surreal história abaixo aconteceu de verdade. Eu estava num show na Praça da Apoteose, no meio da galera, com os braços pra cima, os olhos fechados, cantando junto e viajando na música quando se aproxima de mim um indivíduo louro-Marylin e diz, sério:

— Oi.

Retribuo educadamente.

— Oi.

Volto a olhar para o palco.

— Eu surfo.

Olho pra ele com uma interrogação na testa esperando a frase seguinte, que foi...

— Eu sur-fo.

— Arrã...

Viro a cabeça novamente para a direção do palco, pensando em como tem maluco no mundo.

— Você surfa? — ele insistiu.

— Você surfa, eu não surfo — respondi.

Apontando um louro platinado ao lado, estufou o peito e preparou-se para fazer o que parecia uma grande revelação:

— Meu brother ali surfa. Eu surfo, ele surfa.

Nós surfamos, vós surfais, eles surfam, eu quase emendei.

Mas resisti.

— Legal pra vocês.

— Meu pai também surfa.

— Huum...

— Eu surfo na Prainha. E você?

— Eu não surfo! — irritei-me.

— Por quê?!

— Porque eu tenho medo de mar!

— Eu te ensino a surfar... — disse ele, sedutor.

E só então saquei o porquê da ridícula aproximação.

— Obrigada, mas prefiro ficar na beirinha.

— Fala sério, gata! Pô, aí, caidaço ficar na beirinha...

Ele foi embora, surfar em outras ondas, e eu fiquei parada, chocada, tentando entender de onde saem esses seres esquisitos que de vez enquanto se aproximam de mim querendo invadir minha praia.

 

Ajuda aqui!!!

Eu sempre fui metida a esteticista/cabeleireira/profissional da beleza e, por conta disso, me meti em várias roubadas com o intuito de ficar bonita (e também de economizar um dinheirinho). Já pintei o cabelo aos 12 anos e quase fiquei sem um olho depois que a tinta entrou em contato com a minha retina, já usei um autobronzeador que me deixou laranja e outras tragédias que não vêm ao caso trazer a tona. Infelizmente, demorei a aprender a lição.

Um dia resolvi experimentar uma cera recomendada pela amiga de uma amiga, de fácil preparo, para fazer minha depilação em casa. Era só misturar os ingredientes que vinham na caixinha, botar no microondas e, pimba!, adeus depiladora-que-acaba-com-a-minha-mesada.

Resolvi depilar o buço (bigode, para os não iniciados), axilas e pernas. Começaria, claro, pelo rosto, a menor parte a ser depilada. Comprei o produto numa farmácia meio obscura, numa rua mais obscura ainda na Tijuca. Na caixa, os dizeres: "Livre-se do salão. A solução para os seus pêlos nas suas próprias mãos!!!!". Assim mesmo, com várias exclamações. "É fácil, é rápido, é indolor. E é cheiroso!!!!", estava escrito no manual, com mais exclamações. Sinal de que seus fabricantes eram pessoas realmente orgulhosas de seu invento. Nada mais alegre e animado do que ponto de exclamação, sempre amei ponto de exclamação!

Só desconfiei do fato de ser indolor, nada mais sacrificante e cruel do que arrancar os pêlos pela raiz. Afinal, aquela cera não podia ser mágica. Mas o cheirinho... Nossa! Que cheirinho bom! Mel misturado com jasmim e ervas variadas, uma coisa linda, uma colméia num potinho, um jardim em forma de cera.

Tirei o potinho do microondas com o cuidado necessário, peguei a espátula e ela derreteu assim que entrou em contato com a cera. Espátula vagabunda, pensei. Veio com defeito, concluí. Resolvi, então, meter o dedo mesmo. Era com as mãos que eu ia fazer tudo, não podia ter nenhum mal nisso.

Tinha.

A cera estava quente e molenga quando eu meti o dedo. Além de sentir ferver cada célula do meu indicador, assim que tirei a mão do pote, a cera foi caindo gradativamente na minha roupa nova (nova!), até o momento em que minha mão encostou no meu bigode. Quando comecei a espalhar a cera, além de sentir o meu buço em chamas, não pude deixar de notar que o produto escorreu pela boca e para o queixo. E pingou na roupa mais uma vez. Com a boca aberta e uma certa baba pingando pelos lados, eca!, meti a mão de novo no pote e o caminho da mão até o buço foi tão desastroso quanto da primeira vez.

 

Briguinha de namorado

— Oi, Betoooo!!!

— Oi, pinxeja!

— Não fala com voz de neném comigo, "pinxeja" é ridículo.

— Tá bem, vem cá me dar um beijo, vem... ra-i-nha — chamou, dengoso.

— Rainha é péssimo, Beto. Me chama de Malu, mesmo ?

Eu estava na TPM, vale dizer.

— Agora olha pra mim — pedi, com meu rosto bem grudado no dele, meu nariz quase entrando no dele.

— Tá linda.

— O que é que tá linda ?

— Você tá linda, Malu.

— Por quê ?

— Porque você é linda todo dia...

— Óóó, que fofo, mas não é por isso — respondi, seca.

— Claro que é... — insistiu, romântico.

— Claro que não! — reagi, pau da vida. — Repara, Luiz Alberto! Repara de verdade! Larga essa revista idiota de surfe e olha pra mim! — exaltei-me.

Eu sei, estava bem chatinha, mas nada justificava a insensibilidade do meu namorado.

— O que você quer que eu repare? Já sei! Cortou o cabelo!

— Não, Luiz Alberto! Não acredito que você disse isso! Não acredito que você ACHA isso! Eu estou deixando o cabelo crescer já meses! Fala sério, amor! Olha direito! — pedi com veemência, arregalando os olhos.

Ele ficou mudo.

— Jura que você não nota nada de diferente em mim? — choquei-me.

— Você... você tá linda!

— E isso é diferente onde, posso saber? Eu sou feia nos outros dias, por acaso? A resposta não era essa, Luiz Alberto!

— Caraca, achei que "você tá linda" fosse a frase preferida das meninas...

— Não é, Luiz Alberto! Não agora, Luiz Alberto! Agora eu gostaria que você prestasse mais atenção em mim, Luiz Alberto!

— Pára de me chamar de Luiz Alberto!

— É que você tá me irritando!

— E você tá me assustando!

— Por quê?

— Porque você tá brava, esquisita, chata e mandona. Não gosto dessa Malu aí, essa Malu que quer puxar briga! Quero minha Malu de volta.

— Eu não quero puxar briga! Eu só quero te mostrar uma coisa! Não é possível que você não consiga ver esta obra-prima! — indignei-me apontando com as mãos o meu rosto.

— Eu não estou entendendo nada. Primeiro, eu digo que você tá linda e você diz que não tá. Agora, você se gaba dizendo que é uma obra-prima. Malu, na boa, o que você quer que eu diga?

— O que você tá vendo!

— Eu tô vendo você!

Um minuto de silêncio se fez necessário. Eu estava muito, muito irritada.

— Você não tem coração, sabe, Luiz Alberto? E também não tem o menor senso de estética — choraminguei, para logo depois desabafar: — Eu fiz a sobrancelha, tá? Com a deusa das sobrancelhas, a Kelly Slater das sobrancelhas, para falar a sua língua! A mulher mandou muito bem! Levantou o meu olhar, harmonizou meu rosto e me deixou muito mais bonita! Sobrancelha é tudo e a minha estava péssima, torta, despenteada e rebelde!

— Eu gosto de você com sobrancelha rebelde, sobrancelha caretinha...

— Sobrancelha perfeita agora — corrigi, jogando charme e me aninhando nos braços fortes do fofo do Beto, deixando a irritação de lado.

Até porque logo depois desse episódio descobri que não foi só o Beto que não notou a minha sobrancelha. A Alice não notou. A minha mãe não notou, o meu porteiro ignorou, o jornaleiro nem comentou e minha avó não viu nenhuma diferença, mesmo olhando com a lupa.

Ninguém repara na nossa sobrancelha. Só a gente.

Tanto sofrimento à toa com aquela pinça idiota.

Mundo cruel.

 

Cupido

Não tem jeito: num grupo de amigas, tem sempre uma que se acha cupido, que tem certeza de que conhece a pessoa certa pra você, sua alma gêmea, o cara perfeito. Eu era assim. O meu maior sonho era ver minhas amigas namorando os amigos dos meus namorados.

Perdi essa mania depois do episódio que contarei a seguir.

Era uma tarde de sábado, depois da praia fomos almojantar num restaurante natural e apresentar a Alice, minha melhor amiga desde sempre, ao Marcelinho, melhor amigo do Luciano, com quem eu estava saindo há poucas semanas.

— Já pensou que máximo, Alice, se você namorasse o Marcelinho? Eu e você namorando dois melhores amigos? Que sonho!

— Ai, Malu. Não gosto quando você vem cheia de idéia pra cima de mim... Você é péssima cupida!

— Por quê? Eu já apresentei você pra um monte de caras bacanas. Diz um, um que você não tenha gostado!

— O Léo da caspa, o Silva péssimo aprendiz de violinista, o Jurandir, que me trocava por um jogo idiota de peteca, o Maneco, pior poeta do mundo, o Fabiano nojentinho, o...

— Ai, tá bom, tá bom! Tinha esquecido. Mas o Marcelinho é diferente.

— Como é que você sabe? Nem conhece o cara!

— Mas conheço o Lu que é sincero, amorzinho, nunca ia meter uma amiga minha em roubada. Se ele diz que o Marcelinho é nota mil, pode acreditar.

— Sei não... — disse Alice, cabreira.

— Deixa de ser boba! Eu estou super animada! Já pensou a gente namorar dois amigos? Que sonho!

— Isso é. — Os olhinhos de Alice brilharam.

— Vamos fazer tudo juntos. Vamos ser os casais mais invejados do mundo.

— Ele é saradinho? — quis saber Alice.

— O Lu disse que ele não sai da academia. Olha eles aí! Oi, amor!

O garoto ao lado do Lu era a encarnação da feiúra, uma trombada de foguete com cometa, a tradução da palavra medonho: estrábico, óculos fundo de garrafa, pernas tortas, camiseta suada debaixo das axilas, cafona (do tipo que usa boné para o lado — para o lado!!! —, bermuda esportiva, sapato fino e meia branca), espinhas para dar e vender, um queixo maior que Marte, nariz de panela (o jeito que eu me refiro a pessoas com narizes que parecem ter levado uma panelada) e aparelho móvel nos dentes tortos.

Alice quase teve um treco. Eu quase tive um treco.

O Lu tinha dito que o Marcelinho era pintoso! Aquele não podia ser o Marcelinho... Eu queria matar o Lu! Quis desencalhar o amigo horrendo dele com a minha amiga tão bonitinha... tadinha...

— Carlos Evandro. Alice. Alice. Carlos Evandro.

— Carlos Evandro? — fez Alice, surpresa.

— Carlos Evandro? Cadê o Marcelinho? — quis saber, irritada, puxando o Lu pra perto de mim.

— Esquece o Marcelinho — Sussurrou Lu. — Marcelinho começou a namorar sério ontem, o último disponível era o Carlos Evandro.

— Como é que é? — indignou-se Alice.

— Fica quieta e aproveita, o cara é o máximo. Vai por mim.

Alice arregalou os olhos e armou uma tromba.

Eles fingiram não ver e sentaram-se à mesa.

— Carlinhos é campeão de xadrez. Né, não, Carlinhos?

— Eu faço o que posso, Lu... — gabou-se, dando uma cusparada no cedilha do "faço" e nos dois esses do "posso".

Foi quando descobrimos que Carlos Evandro, além de tudo, era fanho.

— Pô, cara, tira o aparelho pra falar! — brigou Lu.

Pensa que Carlos Evandro foi para o banheiro? Nananinanão! Presenciamos a belíssima cena: ele metendo a mão na boca, desencaixando o aparelho todo babado e fazendo a mais improvável das perguntas:

— Posso botar aqui em cima da mesa? Esqueci a caixinha... Diante das nossas caras boquiabertas, emendou:

— Eu enrolo no guardanapo, pronto. Eu sempre esqueço a caixinha...

Ainda perplexas e com muito, muito nojo, notamos que ele tinha a língua presa. Nos esses, sua língua enorme saía da boca com ou sem aparelho.

— O Carlos Evandro tem o cabelo lindo, super brilhoso, tira o boné e mostra para a Alice, Carlos Evandro — pediu meu namorado.

Nessa hora me lembrei que Lu já tinha comentado sobre esse amigo comigo. Contou que ele tinha a auto-estima no pé, era super inseguro, sentia-se rejeitado... Fiquei com peninha e resolvi ajudar, mesmo sabendo que a Alice ia me matar.

— A Alice adora garoto de cabelo bonito, né, Alice?

Ela me fuzilou com os olhos. Era uma vez uma amiga, pensei. Carlos Evandro tirou o boné. E não é que seu cabelo era realmente bonito? A única coisa bonita naquela pessoa.

— Aêêê! Isso é que é cabelo, né não? — empolgou-se Lu. — Agora cheira, Alice! Dá uma fungada no cabelo dele e me diz se algum dia você cheirou um cabelo tão cheiroso!

Diante da inércia de Alice, intervim:

— Cheira, Alice!

Ela me fuzilou de novo.

— Cheira, pode cheirar — pediu Carlos Evandro, com sua inacreditável voz fanha.

Muito a contragosto, Alice se aproximou para cheirar as madeixas do menino.

— Que tal? Não é um absurdo de cheiroso? — quis saber Lu, aproveitando para dar uma cheiradinha também. — Vem cá, Malu, sente isso.

Fui, senti. Era cheiroso mesmo.

— Fala alguma coisa, Alice! — estrilei.

— Parabéns, Carlos Evandro... — foi o máximo que Alice conseguiu dizer.

— E não é só brilhoso, não, né? É sedoso. Passa a mão, Alice — pediu Lu.

— Não precisa, tô sentindo daqui a maciez...

— Carlinhos sempre teve o cabelo lindão, né, Carlinhos? Sem contar com os pêlos do sovaco. Conta para a Alice o que você faz com o sovaco.

— Eu não quero saber... — murmurou Alice.

— Quer sim! Conta, Carlinhos! — incentivou Lu.

— Ah, pára! Assim vou ficar encabulado, cara...

— Conta! — pedi, curiosa de verdade para saber o que um garoto podia fazer com os pêlos do sovaco.

— Eu passo hidratante. Duas vezes por dia. Fica maciiiiooo...

— Olha que coisa linda, Alice. Presta atenção, Alicêêê! Você conhece alguém que hidrata, e diz que hidrata, os pêlos do sovaco? E é sovaco cheiroso, Alice.

— Não faz isso, Luciano, não me pede para chei...

— Acho muito bacana esse cuidado do Carlos Evandro com o corpo — mudei de assunto, para Alice não precisar dar uma fungada em sovaco alheio.

— Bacana, não. É lindo, Malu, lindo! — empolgou-se Lu, dando a impressão de que ELE queria ficar com o Carlos Evandro. — E o cara tá malhando, indo à academia todo dia... mostra o bíceps para a Alice.

— Tô vendo daqui, Carlos Evandro é super forte — disse Alice, a desanimação em forma de gente.

— E os dentes? Ri pra ela, Carlos Evandro!

— Que é isso, Lu? — berrei para tentar salvar Carlos Evandro do constrangimento.

Mas o menino não queria ser salvo.

— Tchanãããã! — fez ele, sorriso de comercial de pasta de dente no rosto.

E assim, Carlos Evandro virou uma estátua de sorriso escancarado. Ele estava achando que tinha chance com a Alice. Tadinho dele. Tadinha dela!!!

— Fala aí, Alice! Duvido que você tenha visto dentes mais brancos que esses! São meio tortinhos, mas o aparelho é pra isso. O que impressiona é a brancura, né não?

— Impressionante messssmo... — respondeu Alice, acho que já com peninha do menino. — Além de malhar e sorrir, você faz o quê?

— Eu leio. Machado, Graciliano, José de Alencar...

Sabendo que Alice não era muito de ler, Lu deu um cutucão nada discreto nele.

— Mas o Carlos Evandro também vê televisão. Diz pra ela a que você assiste.

— Discovery Channel, National Geogr...

— Não, Carlinhos! O que a gente veio conversando?

— Aaaah, tááá... Vejo Malhação, comédias de situação, tenho o DVD de Friends, de Sex and the City, de...

Enquanto ele enumerava suas séries "preferidas", eu me perguntava "como é que meti minha amiga numa roubada dessas?".

— Carlos Evandro é supersensível. Te falei, né, Malu?

— Arrã.

— E é difícil achar um cara sensível hoje em dia, Alice, tá pensando o quê?

— É... eu sei... — desabafou Alice, num fiapo de voz.

— Mas Carlos Evandro é um cara muito engraçado também. Conta uma piada, Carlos Evandro.

— Não pre-ci-sa — disse Alice, enfática.

— Alice gosta de dançar, não é, Malu?

— Adora.

— Carlinhos também adora dançar, dança super bem, Alice. Dança pra ela, Carlinhos.

— Pára com isso, Luciano! Vai constranger o menino. A gente ta numa lanchonete! Não tem música! — exasperou-se Alice.

— Pô, eu não ia ficar constrangido, não, eu danço bem à beça, mesmo em música — reagiu Carlos Evandro, já de pé, pronto para dançar.

Tentei ajudar de novo, para tentar melhorar a situação.

— Não é o Carlos Evandro que é super fofo com as namoradas?

— Super fofo e super mão-aberta! Dá presentes ótimos, caros, o pai dele é ricão. Dá um presente pra Alice, Carlinhos.

— PÔ, não tenho nada aqui... — fez ele, triste.

— Dá qualquer coisa, cara! — insistiu Lu.

— Alôoou! Gente! Vamos parar com isso?! — irritou-se Alice. — Vou ao banheiro, Malu. Vem comigo?

— Agora?

— A-GO-RA! — respondeu ela, enérgica.

Fiquei com medo e fui.

— Malu, eu quero matar você. Cadê o Marcelinho?

— Arrumou namorada, não ouviu?

— E por que o Luciano trouxe esse traste? Eu prefiro ficar só do que mal acompanhada. É esse o ditado, lembra?

— Ô, amiga... ele só tá querendo ajudar, ele também quer que você namore um amigo dele pra gente sair sempre junto.

— O Luciano é louco! Tá me deixando super constrangida na frente do garoto. E eu não tô encalhada, não! Tem muita gente por aí querendo ficar comigo, tá?

— Alice... O Carlos Evandro é feio, mas é tão gente boa... Não tem nenhuma chance?

— Fala sério, Malu! — reagiu Alice, brava.

Do lado de fora...

— Será que ela tá gostando de mim, Lu?

— Claro. Quem é que não gosta de você, Carlinhos? A Alice tá no papo. Quando elas voltarem eu peço para você cantar o hino nacional de trás pra frente e duvido que ela não caia apaixonada.

— Beleza! — exclamou Carlos Evandro, sorridente, esfregando as mãos.

Voltamos.

— A Alice vai embora.

— Já? — perguntou Carlos Evandro, mais fanho que nunca.

— Já. Olha, Carlos Evandro, você realmente é um menino de vários talentos, seus dentes brancos são um espetáculo e os pêlos hidratados do seu sovaco, nossa!, devem ser suuuuper macios, mas eu preciso ir, minha mãe está me esperando para ir ao supermercado com ela, eu já tinha prometido que ia... Tchau para você.

Fiquei péssima na mesa, mas os meninos não pareceram ligar muito para a decepção da Alice. Luciano, para piorar, ainda lançou a pérola:

— Mulher é um bicho complicado mesmo... Vai entender. Agora vem cá, Carlinhos, cá entre nós, me arruma o nome desse hidratante do sovaco?

O quê? Meu namorado queria hidratar os pêlos do sovaco? Ah, não!

— Fala sério, Lucianoooo!

 

Mala

O meu pai é jornalista esportivo desde que me entendo por gente e esse é o emprego perfeito pra ele. Nunca vi uma pessoa tão viciada em esportes! Assiste a tudo pela tevê, vibrando muito, sempre: futebol (partidas da primeira, da segunda e da terceira divisões), vôlei, tênis, campeonatos de xadrez, corrida de cachorro... Com a mesma empolgação. Mas seu vício, mesmo, é futebol. Tricolor roxo, ele nunca se conformou com minha opção pelo Botafogo e fez chantagem enquanto pôde.

— Se você virar Fluminense, o papai não conta pra mamãe que você comeu um pacote de biscoitos antes do almoço — dizia ele quando eu tinha uns cinco anos.

— O tricolor é tão melhor, filha, e você é tão inteligente... Se você virar casaca, papai te dá uma bicicleta — tentou quando eu tinha uns sete anos e meu maior sonho era andar sobre duas rodas.

É, às vezes ele jogava baixo.

Nunca deu certo. Sempre fui perdidamente apaixonada pela estrela solitária do alvinegro, pelo preto e branco da bandeira, pelo amor da torcida pelo time... Mas pára por aí a minha paixão futebolística. Não sei os nomes dos jogadores, nunca entendi o que é impedimento e não aprendi a diferença entre atacante e volante. Pô, pra mim volante é aquele treco que tem no carro, e só. Pra falar a verdade, gosto mesmo é de jogo da seleção brasileira. Com pipoca e conversa. Acho 90 minutos muuuuita coisa pra um jogo tão monótono e sem gente bonita em campo. Ah, se o Beckham jogasse aqui...

De repórter esportivo meu pai foi promovido a editor-chefe da revista em que trabalhava havia anos. E se deu uma tarefa: cobrir a final do campeonato argentino em Buenos Aires, com direito a perfil dos principais jogadores do Boca Juniors e do River Plate.

Na verdade, queria sair do Brasil para espairecer um pouco e se deu três dias de trabalho na capital argentina. O melhor da história: ele me chamou!

— Vamos fazer o tango tour, que dura umas cinco horas, conhecer a história do tango, dançar tango à noite e pagar muito mico hablando portunhol em Buenos Aires, pedindo Cueca-Cuela e água-de-cueco, tudo com sotaque carregado! Rá rá rá! Vai ser divertidíssimo! E vamos assistir a todos os jogos de futebol! A torcida de lá é super empolgada, parece final de Copa do Mundo, você vai amar! U-huu!

U-uuuiii!

Tango? E eu lá queria dançar tango? Odeio tango! E portunhol? E Cueca-Cuela? Que mico! Queria mesmo conhecer a noite argentina, os gatinhos (ou seria "gatitos"?) argentinos, a carne argentina. E achei que estaria livre do futebol argentino, já que não sou muito chegada nem no brasileiro...

Mas achei bacana ele me convidar e matei um dia de aula para pegar bons ares em Buenos Aires. (Ai, que péssima essa frase! Mas 11:10 resisti, foi mais forte que eu.)

Antes de ir, tive de avisar ao meu gatinho carioca do momento, o Leandro, que iria passar uns dias com meu pai fora do Brasil.

— Que irado, Malu! Vai ser tudo de bom viajar com seu pai! Posso te fazer um pedido?

— Pode fazer vááários — respondi, apaixonada e burra.

— Vários? — ele perguntou, feliz, feliz.

— Vá-ri-os — Fui burra de novo.

— Você pode trazer umas coisas pra mim?

— Claro, meu amor. O que você quiser — cometi uma sandice, como adorava dizer minha mãe.

— Sério? — empolgou-se como nunca.

— S-sério... — disse, temerosa.

— Beleza! Posso pedir, então?

— Manda!

— Eu amo alfajor. Sou louco por aquele doce. Será que dá pra trazer uns seis pra mim? Eu te dou o dinheiro.

Ufa!, respirei aliviada. Achei que ele ia pedir um elefante de porcelana super pesado e super frágil ou algo que o valha. Alfajor, imagina! Nem ia fazer peso na minha mala.

— Claro, meu amor!

— Também gosto de doce de leite.

— Ah, eu também amo!

— Então. Tem uma marca argentina que é simplesmente perfeita.

E tem no free shop de lá, tranqüilo de achar.

— Tá...

— Pode trazer 12 vidros?

— Doze? — engasguei.

— É que não estraga... eu te dou o dinheiro...

— Não é por isso... é que esses vidros costumam ser pesados...

Ele me ignorou completamente.

— Se der pra trazer também um dicionário de espanhol/português eu vou amar. Estou aprendendo, cê sabe, né? Mas Ó, não quero aqueles pequenos não, esses têm aqui. Quero um grande, completo, cheio de exemplos. Tenho o endereço de uma livraria com preços ótimos. Fica a uns 50 minutos de Buenos Aires, é pertinho de táxi...

— Arrã... — respondi, meio atônita com a idéia de trazer um dicionário, sinônimo de trambolho, na minha malinha de três dias.

— Beleza, Malu! PÔ, aê, brigadaço. Esse dicionário aqui é carão e lá vai ser menos da metade do preço.

Desligou.

Nossa, eu não poderia levar quase nada depois de tantos pedidos.

Para tudo isso caber na mala, duas roupas para os três dias e olhe lá!

Um minuto depois, toca o telefone. Ele de novo.

— Malu, dá pra trazer também um livro de mesa com fotos em preto e branco da Argentina no século XIX? Tem numa livraria na Recoletta, minha mãe que pediu.

Livro de mesa? Aquela coisa pesadíssima, de capa duríssima, enorme e lotaaaada de páginas? Como é que eu ia dizer não pra sogra? Não disse.

— Claro... — respondi, amedrontada.

— Maravilha. Meu pai também quer uma coisa. Pediu um vinho que só dá pra encontrar lá. Depois te passo o nome por e-mail. Vinho. Vinho! Além dos 12 vidros de doce de leite, 6 alfajores, um livro gigante e um dicionário-trambolho, mais uma coisa. E uma coisa quebrável com líquido vermelho dentro! Vermelho! E vinho mancha! A minha mala, a essa altura, teria apenas uma roupa para os três dias. Como é que eu ia dizer não para o pai do Leandro?

Devia, porque quando ele foi para a França trouxe pra mim um lenço muito do vagaba com os dizeres "J'aime Paris", que eu, obviamente, nunca usei, e uma camiseta de camelô que ficou pequena em mim e depois de lavar ainda encolheu.

— Trago, claro.

— Show! Ele falou que quatro garrafas tá beleza, mas se der pra trazer mais vou te agradecer pro resto da vida. Meu pai é louco por esse vinho.

— Não sei se quatro eu consigo traz...

— Traz três, então, três não tem o menor problema, Maluzinha.

Aliás, uma podia ser presente, né? O cara te adora.

Presente? Que cara-de-pau!

Estava em pânico. A minha mala seria a mais pesada do avião.

Não ia conseguir fazer nada em Buenos Aires, a não ser comprar as encomendas do sem noção do Leandro.

— Ah! Falei com a minha avó e ela pediu um negócio chamado chimichurri. É um molho meio apimentado que só tem lá. Você pode trazer dois vidros? Um verde e outro vermelho. O vermelho é com pimenta vermelha. Tem em qualquer supermercado.

Supermercado? Eu teria que entrar num supermercado, que eu odeio, para comprar dois potes de nome esquisito para a avó do Leandro? Fala sério!

Pelo menos só pediu dois.

— P-POSSO...

— U-hu! Ela já avisou que faz um almoço especial pra você na sua volta, com o tal do molho. Uma delícia a minha avó, né?

— Nossa, delícia... — respondi, achando a avó dele tudo, menos delícia. — Ela só quer isso e um cortador elétrico de salame. Disse que é ótimo. Você encontra numa delicatessen num shopping no centro da cidade, e lá é tudo pertinho, dizem.

— Cortador de salame? Deve ser enorme isso!

— Caramba, Malu! É pra minha avó, a única alegria que ela tem na vida é comer e cozinhar...

— Eu sei, mas...

— Nunca achei que você fosse se recusar a atender ao pedido de uma velhinha de quase 80 anos.

— Sua avó é super inteira! Mais inteira que eu, cheia de plástica! E tem 72 anos!

— Então, daqui a oito ela faz 80! Já, já! Que surpresa, Malu. Não imaginei que você era tão imprestável!

— Imprestável? Você me pediu Buenos Aires inteira e eu não reclamei de nada! Aliás, é muita cara-de-pau sair pedindo um monte de coisas sabendo que vou ficar tão poucos dias e que meu pai vai a trabalho!

— Caraca, é assim que a gente conhece as pessoas, sabe?

Fiquei irritadíssima com o comentário. Ele era sem noção, folgado e grosso, mas tinha os cílios tão grandes e o nariz tão perfeito... Sem contar que a Betina, a garota mais insuportável do colégio, era a fim dele. E eu amava matar de inveja a Betina, que eu chamava entre as minhas amigas de Betina Metidina.

— Tá bom, desculpa... eu compro o cortador de salame...

— Te amo, Malu!

Quase derreti.

— A minha irmã pediu uns cremes que só têm no free shop aqui do Brasil, não vão pesar na mala, você compra na volta. Três tá bom. Aqui custa cem reais, no free shop vinte, um absurdo, né? Dá pra rolar?

Melhor dizer sim do que ouvir outro ataque mal-humorado.

— Dá — aceitei, seríssima.

No dia seguinte ele foi lá em casa se despedir de mim.

Chegou carregado com duas sacolas. Achei que eram presentes pra mim, já que traria coisas para toda a sua família.

Não eram presentes. Eram enormes embalagens de... fraldas.

— É fralda de cachorro. Não tem isso na Argentina, acredita? Um amigo de infância do meu pai soube que você tava indo e pediu pra você levar quatro pacotes pro cachorrinho dele. E olha que eu nem sabia que cachorro precisava de fralda. Você pode dividir com o seu pai. Dois pacotes na dele, dois na sua, porque são meio pesados. E não precisa levar na casa dele, não! Ele pega no hotel!

— Nossa, que fofo! — debochei. — Era só o que faltava eu ter que levar fralda de cachorro na casa de um cara que eu nem conheço.

— Com certeza, Malu! Seria muita folga, né? — disse ele, enquanto tirava os enormes pacotes das sacolas. — Cada um deve ter umas 80 fraldas.

— Oitenta? Fala sério, Leandro! Pode ir embora, pra mim está tudo acabado.

Dias depois, conversando com um amigo que tínhamos em comum, Leandro lhe confidenciou:

— Não entendi até agora por que a Malu terminou comigo... Menina maluca! Acho que ela tava a fim de me dispensar pra pegar um argentino...

 

                                 15 anos

 

Tudo errado

Era a primeira vez que eu almoçava com a família do Fred. Ele já tinha passado pelo crivo do meu pai, da minha mãe e até da minha querida avozinha, que entupiu o coitado de comida quando eu o levei para jantar na casa dela. Agora era minha vez de conhecer os pais do fofo com quem eu estava saindo havia uns três meses.

Ao contrário de muitas amigas minhas, sempre adorei o momento de conhecer os pais dos meus namorados. Sou ótima com eles. Cativante, carismática, articulada, divertida, inteligente, irônica... E modesta, claro. Enfim, sou tudo o que os pais procuram em uma namorada de filho. Pais e mães sempre me amam. Sempre!

Quero dizer... Quase sempre.

A minha primeira vez com os pais do Fred não foi, assim, tão legal. Não sei o que aconteceu, acho que estava gostando muito dele e acabei ficando nervosa.. Ah sei lá!

Sei que toquei a campainha pontualmente ás 12h30 e fui recepcionada pela sorridente e simpática dona Atenas, a mãe do Fred.

— Nossa você é mais linda do que o Fred falou.

"Oba, começamos bem!”, vibrei por dentro."Eu sou incrível até de boca calada, impressionante. Imagina quando eu começar a fazer minhas observações inteligentes. Aí é que ela vai babar por mim".

— Linda? Aaah, são seus olhos, dona Atena... — fui fofa.

Nesse momento com a minha auto-estima lá em cima, batendo no teto, entrou o irmão mais novo de Fred. Abri meu melhor sorriso para o pirralho, que tinha oito anos, quando ele veio me perguntar.

— O que você acha de uma criança ter um colelho, mesmo morando num apartamento?

Nossa, a bola perfeita para eu cortar!, pensei. Ele deve estar enchendo o saco dos pais para ter um coelho e eles certamente estão detestando a idéia. É a minha chance de conquistar a família inteira para todo o sempre.

— Acho péssimo, coelho é um bicho idiota. Não interage, não reage e faz o número dois mais fedidos do mundo animal, o apartamento vai ficar uma fedentina! Sem contar com os pêlos que ele vai soltar pela casa inteira, um horror para limpar. Bicho é bom na floresta, né não, dona Atenas? — Concluí, sorrisão no rosto.

Após intermináveis segundos de silêncio, dona Atenas se manifestou, séria:

— Nós acabamos de dar um coelho para o Fernando.

Caraca! Como é que eu fui dar um furo desses? Como é que se conserta um furo desses?

— Ah, o bom é que coelho não vive muito tempo, a fedentina vai acabar rapidinho — disse o que não deveria ser dito.

— Buááá!! Meu colelho vai morrer! Morrer! — Berrou Fernando, antes de sair correndo para o quarto, provavelmente para se agarrar ao tal coelho.

O pai do Fred interveio para quebrar o gelo:

— Oi, muito prazer eu sou o pai do Fred.Você quer água, guaraná, suco, vodca ...

— Hã ?

— Brincadeirinha ... é pra você ficar menos nervosa — confessou, antes de se aproximar para sussurrar no meu ouvido: — Também acho coelho um bicho idiota, mas a Atenas faz tudo para esse menino. Uma vez ele pediu um caiaque pra remar na banheira e ela pensou em se mudar para uma casa com piscina, acredita?

— Caramba! E para ter um caiaque ? Logo caiaque. Eu acho remo um esporte tão idiota...

— Eu fui treinador da equipe de remo de Vasco da gama na década de 70, tenho muito orgulho disso — revidou na lata.

Fiquei muda.

Pasma.

Não era possível!

— Brincadeira, bobaaa! — ele caiu na gargalhada.

E eu cai nessa pegadinha ridícula. Tudo que eu queria era fazer um “dâ-â!" enorme pra ele, mas fiquei séria como uma múmia.

Não precisava de mais nada para chegar a conclusão de que o pai do Fred, assim como os coelhos e o remo, era meio idiota. Idiota tipo que faz piadinhas sem gracinha.

Sentamos a mesa.

Dona Atenas avisou?

— Olha, Malu, como o Fred disse que você é boa de garfo, que come de tudo, resolvi fazer a minha especialidade pra você. Tem gente que acha exótico, mas eu acho muito gostoso.

Glup!

Fiquei com medo e olhei para o Fred, que baixou os olhos.

Nunca fui muito chegada a comidas elaboradas. Gosto mesmo é de feijão, arroz, bife e batata frita.. O prato mais exótico que comi na minha vida foi batata sautée, que nada mais é do que uma batata frita cheia de si.

Ela continuou:

— Fiz língua, espero que você goste.

Tive ânsia de vomito.

Língua?

Quem é que come língua? Existe um prato chamado língua?

Quem é que faz língua para uma pessoa na primeira vez que a vê?

Língua de booi? Eu sei lá aonde é que o boi colocou a língua! Eeecaaaatiiii!!!

— Tá ótimo, dona Atenas. Adoooro língua. — Menti.

Na primeira garfada vi que não seria capaz de manter a mentira.

— Desculpe a indelicadeza, mas não dá pra comer isso. Onde é o banheiro? — Perguntei, a mão tapando a boca e já correndo para longe da sala de jantar.

Enquanto lavava as mãos, resolvi dar uma inspecionada básica no armário. Ah! Que é que tem? Todo mundo xereta o banheiro dos outros, não é nenhum crime fazer isso! O problema é que aquele não era o meu dia e o que era improvável de acontecer aconteceu.

De repente, do nada, um vasinho de porcelana se jogou de dentro do armário.Tenho certeza de que não esbarrei nele, ele é que quis se suicidar. Juro! Resultado: O barulho de vasinho quebrando no chão logo tomou conta do apartamento.

— Tá tudo bem ? — gritou Fred, do outro lado da porta.

— Tudo, mas quebrei sem querer um vasinho que ... estava em cima da pia ...

— Que vasinho em cima da pia? — perguntou o pai de Fred.

— Não tem vasinho em cima da pia! — Completou a mãe do Fred, com voz brava.

— O único vasinho que tem no banheiro é o vasinho que a mãe da minha vó deu pra minha mãe — gritou o irmão do Fred.

Droga! Era um vasinho do tipo relíquia!

— E só fica no armário porque dona Atenas tem medo que eu quebre — concluiu a empregada, dona Efigênia.

Fala serio! Era uma relíquia do tipo querida. Querida e intocável.

Quase meti minha cabeça na privada e dei descarga. Todo o mundo sabe naquela casa que eu tinha xeretado o armário, quebrado uma relíquia de família, falado mal de coelhinhos indefesos e de caiaques e ficado com nojo da comida deles. Nojo!

Que lástima!

Saí péssima do banheiro, as mãos no rosto escondendo a vermelhidão da vergonha.

— Desculpa! Eu compro outro vasinho para a senhora dona Atenas!

— Não vai conseguir achar. Esse vasinho é antigo e é da Índia. Mas não precisa se preocupar não, não — lamentou chorosa, mal conseguindo esconder as lágrimas.

Ai que clima péssimo! Aquilo não podia ficar pior!

Ficou.

— Vamos voltar pra mesa, daqui a pouco seu ovinho vai chegar Malu — Comentou Fred.

— Ovinho? Fala serio amor! Ovo me dá dor de barriga! — sussurrei no ouvido dele, muito injuriada.

— Jura?!

— Caraca! Você sabe alguma coisa ao meu respeito?

Terminei a tarde comendo macarrão instantâneo

Todos foram fofos comigo mesmo depois de tantas tragédias.

Mas eu nunca mais fui a casa do Fred. E olha que fiquei com ele mais uns cinco meses depois desse almoço.

 

Falando elado com o namolado

As coisas com o Fred iam de vento em polpa. Estávamos a cada dia mais apaixonados. Nosso namoro era de verdade, namoro lindo, paixão arrebatadora, pra vida toda, eu tinha certeza. E, por isso, mesmo eu precisava ter uma conversa importantíssima com ele. Importante e delicada.

Sempre odiei gente que fala com voz de neném. Acho idiota, ridículo, tenho vontade de enforcar maiores de sete anos que dizer 'voxê', 'ninguém melexe', 'namolado' e afins. E sou assim com todo mundo: pais, irmãos, amigas... Quem me conhece sabe: para me irritar é só fazer voz de neném pra mim.

Por muito tempo essa regra vale para todos que me cercam, menos para meus namorados. Não sei por que abri essa concessão. Talvez porque tenha me deixado contaminar pela bobeira da paixão, vai entender. O fato é que quando dava por mim, lá estava eu falando como o Cebolinha em diálogos insuportáveis, ridículos e zero românticos com meninos da minha idade que me beijavam na boca depois de pedir um 'bezo apassonadu'.

Fala sério!

Resultado: todos os meus namoros e rolos foram por água abaixo e eu, revirando a lista de ficantes e namorados mais sérios, percebi que a causa do fim podia ser essa chata, mil vezes chata!, voz de neném. Como eu estava gostando muito do Fred, e ele de mim, e como o diálogo infantil ainda não tinha invadido nossa relação, resolvi chamá-lo para uma conversa séria depois da aula.

— Eu preciso falar com você Fred.

—Quer discutir a relação? — Questionou, com indisfarçável cara de pânico.

— Claro que não, não sou desse tipo — menti descaradamente.

— O que é então? Tô com a unha grande?

— Grande e sujinha em baixo, tá meio nojentinha até, mas não é isso que quero falar.

— Tô com pelinho saindo do nariz?

— Um pouco pode cortar, mas também não é isso.

— É a minha letra? Pode dizer, ela é um garrancho e você não entende meus bilhetes apaixonados?

— Sua letra é péssima, Fred, mas eu entendo o que você escreve. Não é só sobre isso que eu quero conversar com você! Caraca! Posso falar?

— Pode.

— A gente ta há um tempo junto...

— Ai, não, você quer terminar! Malu, me dá mais uma chance!

— Menino deixa de ser bobo, é justamente por que eu não quero terminar com você que a gente precisa conversar.

— Ah, tá.Que alívio!

ÓÓÓ, que bonitinho!, vibrei por dentro.

— Eu quero fazer um pacto com você.

— Pacto? Do tipo furar o dedo e jurar fidelidade? Menina adora essas coisas, mas eu tô fora, morro de medo de agulha.

— Jura? Meio fresco isso hein? Mas tudo bem, não é esse tipo de pacto que eu quero fazer. Nada a ver esse negócio de furar o dedo pra jurar amizade eterna, amor eterno, fidelidade terna...

— Graças a Deus! O que é então?

— Eu quero que a gente prometa que nunca, NUNCA, mesmo que de vontade, vai falar com voz de neném um com o outro.

— Ai Malu! Que susto! E que notícia boa! Eu acho ridículo casal que fala assim!

— Eu também! Eu também! — comemorei, alegre e saltitante, me jogando pra cima dos braços dele.

— Tem gente que fala assim em publico, quer coisa mais absurda?

— Não! Não existe nada mais absurdo que isso! — Dei mais um abraço nele, seguindo de muitos beijos empolgados, com certeza de que finalmente tinha encontrado a outra metade da minha laranja. Aquele namoro tinha futuro!

Duas semanas depois dessa conversa, fizemos quatro meses de namoro — eu estava bem apaixonadinha. Fred me levou para uma casa de sucos que eu amo para comemorarmos. Enquanto ele devorava um açaí e eu comia um sanduíche de peito de peru com queijo-de-minas, olhos grudados um no outro, a paixão ocupando todo o espaço que havia entre nós naquela mesinha...

— Amoli di vida, plomete que nunca vai abandonar seu colelhinho losa?

Quase tive uma indigestão.

— Coelhinho losa? Fala sério, Fred! Que coisa mais gay!

— Mas é que você gosta das...

— Não é por que gosto das suas bochechas rosadas que você vai virar meu colehinho losa de repente! Que é que é isso? Surtou? A gente não tinha combinado que nunca ia falar assim?

— Mas hoje é nosso aniversálio de namolo... Achei que podia falar axim com minha plinxejinha... — Fez dengo. — Coelhinho losa, tlistinho, tlistinho.

— Ô,Fred, não fica assim vai ... — tentei melhorar a situação, me senti a pessoa mais vaca do mundo. Às vezes eu erro na mão e acabo sendo grossa com as pessoas que mais me adoram. Vaca, vacona.

— Dixculpa o namolado, Malu. Não vou magi falar axim com voxê, fica tlanquíla — chorou.

Droga! Eu fiz o menino chorar! Não precisava ter isso no meu currículo! Que péssimo!

É, não seria daquela vez que meu plano de abolir essa língua idiota da minha vida daria certo. O que a gente não faz enquanto tá apaixonada?

— Vem cá coelhinho losa, vem cá com a Malu, disculpa a Malu. Malu é glossa, xem alma e xem colação.

Beijinhos e mais beijinhos selaram nosso novo dialeto.

O Tempo passou e continuamos a fala assim um com o outro, mas sempre baixinho, nunca em público... Até que um dia, na fila do teatro, aos cinco meses de namoro, quanto eu via a vitrine de uma livraria, ouvi o que não queria ter ouvido jamais ...

— Xapinha! — Ele berrou (um parêntese se faz necessário para explicar o "xapinha" em questão. Xapinha foi a maneira simpática e diminutiva que ele encontrou para me chamar de sapa. Sa-pa. Apelido fofo, apelido lindo! Suuuuuuper romântico). — Voxe vai queler lugar na flente ou atlas do teatlo?

O que fazer uma hora dessas?

— No meio, colelhinho losa. Xapinha quer ficar no meio do teatlo — respondi, resignada, tentando esconder meu embaraço.

Fiquei com o coelhinho losa mais alguns meses. Falando elado, mas ainda completamente passonada por ele.

Um tempo depois, desisti. Fala xériu! Exa coija de falar axim, como clianxa, é lidícula. Li-dí-cu-la!

 

Diálogo com meninos

Meninos me irritam quando o assunto é diálogo. Tudo bem, eu sei que esse negócio de discutir a relação é meio tedioso, mas não é a esse tipo de diálogo que estou me referindo. Estou falando de diálogos corriqueiros, diálogos do dia-a-dia, conversas, bate-papos. O problema da maioria dos garotos é que eles não são chegados a uma conversa. Não é que eles não gostem de dialogar. Eles simplesmente não sabem dialogar. Lembro o meu namorico com o Estevão, morador do meu prédio, que era a versão mais nova e mais bronzeada do Tom Cruise. A gente estava saindo há uma semana e nossa relação começou a desgastar quando puxei uma conversa sobre papel de bala na fila do cinema.

Tudo bem, eu sei que papel de bala é um assunto meio nada a ver, mas, pô, o cara não falava nada! Eu pre-ci-sa-va conversar, tornar o clima agradável. Se eu não quebrasse a porcaria do silêncio, morreria sufocada. Meninos não são assim. Eles sempre preferem o silêncio. Sempre.

— Você reparou que mudaram o papel da bala Juquinha? Não acredito que fizeram isso com a bala Juquinha, logo com a bala Juquinha, eu adoro bala Juquinha, o papel da bala Juquinha não era assim, mesmo! Se tem uma coisa que eu conheço é a textura do papel da bala Juquinha. Eu como bala Juquinha desde pequenininha. Xi, até rimou. Que fofo! Se bem que eu não gosto de diminutivo... Você gosta?

— Não sei, nunca pensei no assunto.

Grosso!, berrei por dentro.

— Bem que podiam inventar uma substância que fizesse com que os papéis de bala parassem de fazer barulho. Barulho de papel de bala no cinema ninguém merece, né?

— É.

Mal-educado! Insensível! Monossilábico ridículo!, gritei em pensamento.

— Sabe quem veio ver esse filme? — tentei de novo puxar assunto. — A Suzana, já falei da Suzana? Uma menina do meu colégio que tem um cachorro chamado Cão, é feia, mas se acha linda, tem muito mais dente do que devia, é meio porquinha, fofoqueira, bigoduuuda... não acredito que não te falei da Suzana, ela é ótima, super amiga minha!

— Nunca ouvi falar dessa Suzana — disse ele, me lançando um olhar estranho, olhar de quem olha um extraterrestre.

— Tá calor, né?

— Tá muito quente. Espero que o ar-condicionado do cinema esteja funcionando direito.

Ufa! Até que enfim ele disse mais de uma frase!

— E cereal? Você come cereal de manhã? Cereal com leite? Ai, eu não consigo, olho praquilo e acho que é um monte de pedaços de cérebro de macaco flutuando em gosma.

— É tão esquisito...

— Cereal? Também acho! — empolguei-me, feliz por finalmente ter puxado um assunto pelo qual ele se interessava.

— Não, esse jeito de vocês, meninas... Vocês são muito esquisitas. Como falam, como são tagarelas. Você é a menina mais tagarela que eu conheço.

— Tagarela? Eu? Fala sério, Estevão! Estava falando só para que¬brar o silêncio!

— Quebrar o silêncio? Pra quê?! Deixa o silêncio quieto, coitado! Ele não faz mal pra ninguém...

— Tá bom, tá bom... desculpa... Eu falo um pouco demais às vezes, admito. Vamos ficar quietinhos.

Menos de sete segundos se passaram quando as palavras pularam para a minha boca. Eu precisava comentar o que tinha acabado de ver.

— Repara o cabelo dessa mulher! Repara o cabelo dessa mulher! Aposto que é chapinha. Chapinha malfeita, ainda por cima. Deve ter feito em casa, de qualquer maneira. A minha amiga Robertinha quer fazer escova progressiva no cabelo. É uma espécie de chapinha que dura três meses. É uma fortuna. O meu cabeleireiro Rômulo é totalmente contra. Acha uma agressão.

— Não é possível, Malu!

— É sim, agride o couro cabeludo e ainda...

— Não é isso! Não é possível que você fale tanto!

— Ai, foi só um comentário, que chato você tá!

— Eu? Eu tô chato? Você não parou de falar um segundo! Vocês, mulheres, falam porque têm necessidade de emitir sons. Só por isso. Para vocês é normal falar o que se passa na cabeça, é normal pensar em voz alta. Mas é humanamente impossível acompanhar cada palavra que sai da sua boca. Que eu me lembre, de casa até aqui você já falou de bala, de papel de bala, da Turma da Mônica, de castelos medievais e da qualidade das novelas do SBT. Ah! Você disse também que eu precisava passar vinagre de maçã no meu cabelo para tirar a oleosidade dele, depois emendou no novo namorado da sua amiga, Juca, que eu nunca vi na vida, e ficou indignada com a chapinha caríssima que uma tal de Robertinha quer fazer. Para quê, meu Deus? Quem são essas pessoas? Qual a importância de monologar sobre esses assuntos? Qual é a dificuldade de pensar em silêncio? E o que é chapinha? O que a gente perderia se não falasse da chapinha progressiva da sua amiga?

— Escova progressiva — corrigi.

— Caguei!

— Caraca, Estevão, você é péssimo, sabia?

— Engano seu. Eu sou ótimo. O que vocês, mulheres, nunca vão entender é que nós, homens, só falamos quando realmente temos algo a dizer. Não desperdiçamos palavras, não jogamos saliva fora.

Que cara grosso, viu? Terminei tudo ali mesmo, na fila do cinema. Mas nem fiquei triste. Poucos dias depois saí com uma amiga e ela me apresentou ao Vinicius, com quem conversei horas a fio. Falamos de vida, de música, de Chico, de Caetano, de Tom Zé, de Cinema Novo, de teatro, de livros, de cremes para cotovelos desidratados, do novo rímel que dava um volume sensacional aos cílios... Eu era a encarnação da felicidade. Tinha, enfim, encontrado um cara legal, o cara certo para mim. E ainda por cima era lindo e cheio de estilo.

No dia seguinte descobri que minha quase futura relação amorosa tinha um único empecilho: Vinicius já estava namorando. O Emílio. Isso mesmo, Vinicius era gay. Convicto e muito feliz.

Fiquei sozinha por um tempo depois desse episódio, mas nunca desisti de encontrar o cara dos meus sonhos: engraçado, sarado, nem tão bonito, nem tão feio, mais alto que eu, espirituoso, romântico, que não me troque por peladas com os amigos, que não goste de ver esportes pela tevê, que adore ver vitrine e que largue tudo por uma boa conversa. É pedir demais?

 

É cada um que me aparece... 2

Olhinhos pequenos, abdômen sarado, perna grossa, pele dourada, um Adônis em plena praia de Ipanema escolhe o espaço de areia ao meu lado para se estabelecer. Fica em pé, olha o mar, encolhe a barriga, empina o peito, dá uma alongada, exibe os músculos, olha o mar de novo, olha para os dois lados da praia... Olha pra mim.

— E aí? — fez ele, levantando as sobrancelhas.

— E aí? — Eu não tive alternativa.

— Beleza?

— Be... beleza...

Ele senta.

— Mora aqui perto?

— Na Tijuca.

— Eu moro em Copa.

— Ah, tá.

Silêncio se faz. Ele olha o mar de novo. Vira-se para mim, compenetrado, espremendo os olhinhos, e pergunta:

— Você acredita em fada, duende, ogro, essas paradas?

Mastigo a pergunta. Mastigo mais um pouco, tentando passar a idéia de que aquela é a pergunta mais normal do mundo e...

— N-não...

— Show! — comemorou. Acho que se eu acreditasse ele não seguiria conversa.

— Super-herói você não curte também não, né?

— Gosto de alguns.

— De quais?

— Do Homem-Aranha, do Batman...

— Do Batman? Batman?

— É, do Batman. O que é que tem de errado com o Batman? Eu gosto bem do Batman.

— Fala sério! Qual o superpoder do cara? Tem bat-caverna, bat¬móvel, bat-acessórios, bat-tudo! As bat-coisas que fazem tudo por ele, ele não faz nada. É um bat-bocó esse cara! E ainda é bat-boiola, na boa. Nada contra os boiolas, mas vai dizer que aquela amizade com o Robin não é meio esquisita?

— Arrã... — respondi, um tanto assustada. Preferi não contrariar a pessoa.

— Que superpoder você gostaria de ter?

— O de ficar invisível a qualquer hora — respondi, acreditando que tinha dado a entender que era exatamente isso o que eu queria naquele momento.

— Sério? Eu queria o superpoder de comer muito e não engordar. Eu só tenho esse corpo porque malho três vezes por dia, todo dia. Corro na areia, malho na academia, pego muito peso, sente meu bíceps — pediu, pegando minha mão e encostando-a em seu braço.

— Nossa... — Foi a única coisa que consegui verbalizar.

— Você malha?

— Não.

— Fala sério!

— Tô falando.

— Por quê?

— Não gosto.

— Por quê? Não quer ficar sarada, não?

— Não faço questão.

— Que é isso? Levanta aí, deixa eu ver seu corpo.

— Quê?

— Anda, levanta, se eu der uma analisada no seu material posso te dizer o que uma horinha diária de malhação pode fazer por você.

— Não... tô legal aqui, valeu. .

— Bunda mole?

— Garotooo!

— Se for tem remédio. É só começar agora.

— Deixa a minha bunda em paz! Não vou mostrar nada pra você.

— Beleza, eu vou olhar pra ela quando você for dar um mergulho, mesmo... Depois dou a nota.

Fico muda. E emburrada. Olho para o mar.

— Vou te dar nota baixa, não... Fica tranqs... Ó, olhando daqui, meio esparramadinha no chão, acho que pode rolar um cinco... cinco e meio com muito esforço. Não é nota vermelha, viu?

Faço cara de raiva.

— Tá com vergonha, né?

— Claro que não, cara!

— Se não quer mostrar, beleza, não vou insistir.

Ufa! Finalmente ele se tocou que estava sendo inconveniente, que estava me enchendo o saco, que eu queria ficar em silêncio.

— Deixa só eu pegar na sua bunda, então.

— Quê?!

— Rapidinho! Só pra sentir a consistência dela!

— Olha só, você tá me chateando. Se continuar vou chamar meu Irmão, que é dez vezes mais forte que você e tá na água com os amigos... — menti descaradamente. Eu estava sozinha esperando minhas amigas e o Mamá é pele e osso.

— Já entendi. Cê deve estar toda molenga, barriguda, cheia de celulite... Olha a lei da gravidade... Ela é cruel com a mulherada... Vai malhar enquanto é tempo, menina...

Levanto em busca de outro lugar na praia. Enquanto ando e me

afasto, ainda tenho o desprazer de ouvir o Adônis gritar:

— Seis e meio! Seis e meio, garota! Melhor do que eu pensava!

 

                                     16 ANOS

 

Aníbal do bálsamo ou Namorando pela net

Tenho pele clara, cabelo cor de mel muito brilhante e os olhos verdes puxados para o castanho.

 

Assim meu admirador secreto se descreveu.

Começamos bem!, pensei empolgada e já quase apaixonada. Sempre quis ter admiradores secretos, e agora tinha chegado o meu. E ele era lindo! Um Brad Pitt versão teenager, seguramente.

Aníbal (o nome era a única coisa que eu sabia dele) tinha pegado o meu e-mail com a irmã da amiga de uma amiga minha. No começo, fiquei injuriada por ver meu endereço eletrônico andando por aí. Mas a irmã da amiga da minha amiga disse que Aníbal insistiu tanto que sua paixão desesperada em mensagens insistentes era tão evidente que ela ficou com pena e deu. Afinal, Aníbal não era um desconhecido: era amigo do cunhado do vizinho da prima dela.

 

Conta mais? escrevi, curiosíssima.

 

Gosto de música, de livros, de cinema, de shows, de futebol (mas não sou do tipo que passa o dia vendo jogos pela tevê) e do Flamengo.

 

Flamenguista? Aníbal, o Admirador Secreto, não podia ser perfeito, pensei.

 

Eu sou botafoguense, de coração, digitei, quase emendando com "sou do time tantas vezes campeão", mas lembrei a tempo que esse hino era do Fluminense, time dos meus pais. Ainda bem, não podia pagar um mico futebolístico logo nos primeiros encontros virtuais.

 

Botafogo? Não podia ser perfeita, brincou ele.

 

Fala sério! Aníbal, o Admirador Secreto, tinha senso de humor! Que coisa rara hoje em dia! Que delícia ter um admirador secreto tudo de bom!

 

Eu estou encantado com a sua beleza, Malu. Você tem um cabelo lindo, cabelo de sonho, observo você desde que me mudei para a sua rua.

 

Cabelo de sonho? Óóóóó! Que lindo! Um menino que dá valor às horas que passo cuidando das minhas madeixas.

 

Trocamos vários e-mails, por vários dias, e estávamos cada vez mais entrosados, mais amigos, mais relaxados um com o outro. Ele qostava de Chico e Marisa Monte, Pitty e Leela, Mettalica e Aerosmith, Beatles e Rolling Stones, Jack Johnson e Ben Harper, Evanescence e Black Eyed Peas, U2 e Pink Floyd, Barão Vermelho e Legião Urbana.

Não suportava acordar cedo, adorava comer brigadeiro com colher, era paciente e não via programa melhor que passear no shopping. Não demorei muito para perceber que eu estava vivendo uma paixão internética com a minha alma gêmea virtual. Quem diria, eu, Malu, Maluzinha, encantada por um admirador que só conhecia por e-mail. Ai, que aventura!, vibrava por dentro.

— Esse cara pra mim é um pilantra. Onde já se viu ficar espionando você, saber onde você mora, onde você estuda e nunca ter se aproximado? Só pode ser um pilantra querendo se aproveitar da minha filhinha ingênua, que se acha adulta, mas é um bebê — surtou minha mãe.

— Claro que não, mãe! Ele só é tímido — parti em defesa do meu admirador.

— Uma ova! Ele é um safado virtual. Pilantra.com.br. Conheço o tipo. Olha lá, hein, Maria de Lourdes, cuidado com o que você está fazendo. Esse cara pode ser um seqüestrador, Um bandido de marca maior — preocupou-se ela sinceramente.

— Ele não é nada disso! Ele é fofo... — Suspirei.

— Como é que você pode ter tanta certeza disso?

Eu não podia ter tanta certeza disso. Eu apenas supunha que meu admirador secreto era o príncipe que eu estava esperando há tempos.

 

Você é uma deusa, te admiro tanto, tanto... Você é a menina mais perfeita do mundo. Quero te conhecer ao vivo. Vamos marcar?

 

O que você diz para um admirador secreto que te chama de deusa e de perfeita?

 

Claro! Onde?, teclei ansiosa.

 

Na casa de sucos da esquina da sua rua. Amanhã às cinco. Que tal?

 

Fechado! Como você vai estar vestido?

 

Jeans e camiseta preta.

Aníbal, não vejo a hora de conhecer você!, suspirei virtualmente.

 

Eu também! Mas preciso ser sincero... além de olhos castanhos puxados para o verde e brilhosíssimo cabelo marrom puxado para o mel, estou um pouco acima do peso, o que pode fazer com que você me ache qordo. Também tenho orelhas de abano, nariz de tomada e mãos do tipo almofadinha, mas sou muito gente boa. Beijo, tchau e até amanhã.

 

Gluuuup! Por essa eu não esperava! Tanta sinceridade, assim, aos 45 do segundo tempo! Nariz de tomada? Gordo? Mãos almofadinhas? O que é uma mão almofadinha, meu Deus? Meu príncipe era um sapo!

O pior é que eu não podia dizer que não queria mais ir. Ele certamente tinha um problema de auto-estima, e se eu furasse poderia causar um dano muito maior à cabecinha de Aníbal, o Mentiroso Descarado.

Cheguei às 17h15, atrasada, pra não ter que esperar pelo Shrek tijucano sozinha na lanchonete. Ao entrar, logo avistei uma figura trajando jeans e camiseta preta. E qual não foi minha surpresa quando vi que... ah!, ele não era tão feio assim. Tudo bem, seus olhos eram pretos como a noite, o cabelo de mel não tinha nada e o nariz parecia o de um porquinho, mas um porquinho simpático. Ele era gordinho, mas um gordinho fofo. E tinha um sorriso cativante, com covinhas nas bochechas gigantes. E eu sempre gostei de covinhas.

Enquanto andava na sua direção, pensei: "Como fui cruel. O que é que tem se ele não é lindo? O que importa é o que vem de dentro. Ele é culto, inteligente, se veste direitinho, é romântico, me chama de deusa, gosta de mim de verdade... O que é que tem ele estar um pouquinho acima do peso?"

Mas meus pensamentos foram por água abaixo quando cheguei perto e olhei atentamente para o cabelo de Aníbal, o Mentiroso Descarado.

Era realmente brilhosíssimo. Cheguei a me ver refletida na cabeleira quase preta de Aníbal, o Seboso.

Não conseguia olhar para outro lugar a não ser seu cabelo espesso, que brilhava de uma maneira assustadora, era armado, parecia uma peruca malfeita, um novelo de lã, um bombril alisado... sei lá. Pra mim aquilo estava mais pra atração de circo do que pra cabelo.

— Eu não menti, assumi que era meio gordinho — ele disse, sem noção de que seu peso nem tinha chamado a minha atenção. — E você é mais linda ainda de perto.

— E o seu... e o seu... E esse... O que é esse cabelo, Aníbal?! — descontrolei-me.

— É brilhoso. Não falei?

— Não é brilhoso. É oleoso. Oleoso, não. Ele não tem cara de sujo. Ele é esquisito, brilha de uma maneira diferente. E é armado. Você passou laquê? Diz que não, por favor! — descontrolei-me de novo.

Ele se aprumou na cadeira, orgulhoso.

— Laquê? E estragar essa formosura?

Ui! Ele usou a palavra "formosura"!

— Senta aí que eu te conto o segredo.

Fiquei com medo. Eu tenho medo de segredos.

— Eu moro numa casa com quintal. Lá, plantei umas flores que têm um líquido que cheira mal, mas que em contato com o couro cabeludo deixam o cabelo cheio de brilho e vivacidade. Pega, pode pegar! Sente a textura — explicou, pegando minha mão e levando-a rumo à sua cabeça.

Escapei a tempo.

— Não, valeu. Tô bem assim.

Eu estava absolutamente abobada. Aquilo estava com cara de pesadelo. Eu tinha certeza de que ia acordar a qualquer momento. Eu estava louca para acordar a qualquer momento. Aníbal continuou, mostrando que eu estava acordadíssima, infelizmente:

— Eu tenho um plano. Como agora tenho muitas flores, posso tes¬tar o bálsamo nos cabelos de mulheres, e eu acho seu cabelo perfeito, comprido, volumoso... Você ia ser a melhor garota-propaganda do mundo. Depois eu vendo a idéia para uma multinacional de cosméticos e fico rico e famoso. E você vem na minha aba, como a modelo exclusiva do Bálsamo do Aníbal, o bálsamo que embeleza. Depois é só correr para o sucesso e ir fazer pose no castelo de Caras. Que tal?

Béééééé!, uma sirene tocou na minha cabeça.

Aníbal, o Mentiroso Descarado, ex-Admirador Secreto, agora era Aníbal do Bálsamo que Embeleza. O que foi que eu fiz de errado? Sou tão boazinha, respeito os mais velhos... Mas quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.

— Você quer me usar de cobaia para esse invento maluco, é isso? Foi a única coisa que consegui dizer.

— Não, eu fui a cobaia. E meu bálsamo de maluco não tem nada, tá? Eu testei em mim e vi com meus próprios olhos o resultado maravilhoso!

— Arrã. Arrã. Sei... Quer dizer que... você não é apaixonado por mim? — Só então caiu a ficha. — Está apenas interessado em fazer experiência com meu couro cabeludo, é isso?

— É, mas eu posso me apaixonar, se você quiser. Você é realmente bonita. E imagina que linda você vai ficar com os cabelos macios, sedosos e brilhosíssimos. Não é gel, não é silicone, não é óleo. É o bálsamo do Aníbal. É floral. É natural. E não faz mal. Bálsamo do Aníbal, a beleza das flores no seu cabelo. Viu? Já tenho até slogan.

Naquele momento, entendi finalmente aquela frase: "de perto ninguém é normal".

— Aníbal, na boa, eu gosto do meu cabelo como está e, na boa de novo, seu cabelo é péssimo. Seu slogan é péssimo! Péssimo! Não sei que bálsamo é esse nem que flor assassina de cabelos é essa, mas como sou gente boa, posso te avisar: sai dessa enquanto é tempo! Seu cabelo é o cabelo mais esquisito que já vi na vida! — desabafei, antes de olhar para o cabelo dele pela última vez para dar uma ajeitadinha no meu.

Fui pra casa pensando em como fui louca de encontrar um cara que conheci na net e do qual não sabia absolutamente nada. É o que dizem, a net e seu anonimato podem gerar vários tipos de malucos.

Que podem até parecer normais e apaixonados à primeira vista, mas não passam de malucos.

Bom pra aprender: namoros, apenas no mundo real. E com gente que no cabelo só passa xampu e condicionador. Só.

 

Correndo com o amor

"I wanna rock and roll all night", do Kiss, no volume máximo do meu discman, era a primeira de uma série de músicas que embalavam meus cinqüenta minutos de corrida. Eu sempre gostei de correr com música aos berros nos meus ouvidos. E sempre gostei de correr pela manhã, o que eu só conseguia fazer aos sábados e domingos, porque estudava de manhã.

A manhã é o único momento do dia em que eu, tagarela nata e assumida, não estou nem um pouco a fim de falar. Sou assim desde pequena. Eu simplesmente não falo de manhã. Na verdade, sou uma vaca de manhã. Quem fala comigo leva patada, invariavelmente. Mas todo mundo lá em casa sabia disso e nunca puxava assunto comigo antes de meio-dia. A corrida representava os minutos que eu passava comigo, com a minha cabeça, com o meu corpo, com a minha companhia, em total silêncio.

Correr era assim até eu conhecer o Jaiminho, namorado que ficou comigo pouco mais de um mês. Um mês que pareceu um ano, vale frisar. Ele era namorado do tipo grudentinho. Sabe garoto grudentinho? Que liga sete mil vezes por dia e quer fazer tudo junto com você? Estudar com você, sair com você, ir à esquina com você e, crime dos crimes, sair com você e suas amigas. O Jaiminho era assim. Parecia um chiclete na sola do meu sapato. E, para piorar, inventou de correr comigo.

Não podia dar em boa coisa, né?

Jaiminho era um menino conversador. Muito conversador. Conversava pelo simples prazer de conversar, coisa raríssima em se tratando de seres do sexo masculino. Logo eu, que vivia reclamando que homens não conversam, peguei o único homem tagarela do planeta.

Era sábado, o sábado em que ele decidiu virar atleta de fim de semana. Desci pra correr na esteira do meu prédio e ele já estava lá, se alongando. Claro que ele escolheu a esteira ao lado da minha, para correr grudado comigo.

— Ai, môo Aqui, reservei essas duas esteiras. Casal que vive unido corre unido, né, Mojuco?

— É... — respondi, zero empolgação.

Na verdade, quase corri de volta pra casa Ninguém merece apelidinhos ridículos quando não está apaixonada! Ainda mais de manhã.

— Quer que eu te ajude a alongar, momô? Dá aqui sua perna que eu seguro — ofereceu-se ele, já levantando a batata da minha perna e me desequilibrando, cena bizarra

— Não, Jaiminho. Pára com isso! Eu me alongo sozinha! — reagi, pau da vida.

Não acreditei que eram 10 da manhã e eu já tinha dito mais de uma frase.

— Quer agüinha? Melhor beber pra refrescar — aconselhou, pegando meu queixo e botando a garrafinha na minha boca como se fosse uma mamadeira. Segunda cena bizarra da manhã.

Como não abri a boca, fiquei toda molhada. Molhada de água gelada, pingos gelados entrando narinas adentro e se espalhando pela minha pele sequinha e quentinha. De manhã. De manhã!!!

— Caraca, Jaiminho! Não quero água, só bebo depois de correr! — protestei, passando a mão pelos pingos e conferindo se meu discman não tinha sido atingido pela água.

— Que é isso, momojuco? Vai correr com discman? Achei que a gente ia correr e conversar!

Quase dei um piti.

— Conversar? Conversar, Jaiminho!? Correr e conversar não combina! Dá dor no canto da barriga! Correr é uma coisa pra gente fazer em silêncio, é meditação em movimento, sacou?

— Saquei... — conformou-se, a tristeza em pessoa. — T á bom, eu respeito isso. Tô feliz só por estar aqui com você.

E eu tô infeliz só por você estar aqui comigo, pensei em dizer. Mas não disse, ia ser muita grosseria, tadinho.

Comecei a correr. Os cinco minutos iniciais tinham se passado. De repente, com meu discman despejando som bom para dentro da minha cabeça, uma mãozinha nervosa começou a acenar na minha frente. Era Jaiminho, que mexia o braço freneticamente para chamar a minha atenção.

Mais alto que meu discman, ele perguntou:

— Você sabe?

— O quê?

— O nome da mulher do Banderas?

— Quê? — gritei, tendo que virar para o lado e olhar para ele, pra tentar fazer leitura labial. Quase caí da esteira.

— A mulher do Banderas! — berrou.

— Melannie Griffith — respondi pau da vida, depois de abaixar o som e reduzir o ritmo da corrida.

— Ah, tá. — Pareceu satisfeito.

Aumentei o volume do discman e acelerei o ritmo de novo.

A mãozinha nervosa logo voltou a acenar freneticamente na minha frente.

— Você sabe?

— Sei o quê, Jaiminho? — perguntei, bem irritada, tirando o fone do ouvido.

— O nome do filme com aquela menina que parece a mulher do Banderas e aquele cara de olho azul?

Mais uma vez, meu humor quase me tirou do sério. Que assunto era aquele? Às 10 da manhã! Da manhã! Todo mundo tem olho azul em Hollywood, santo Cristo!, tive vontade de berrar. Mas fui fofa.

— Que cara? Que mulher parecida com a Melannie Griffith?

— Uma loura! Vai falando o nome das louras que eu vou lembrar, tenho certeza.

Falar os nomes das louras? Que é que é isso? Uma gincana? Achei que tinha deixado claro que não gostava de conversar correndo!

Com o humor no pé e a má vontade grudada no meu rosto suado, comecei:

— Madonna.

— Não, mô, se fosse Madonna eu ia saber o nome, né?

— Gwyneth Paltrow.

— Não.

— Cate Blanchet.

— Nãããão!

A cada não dele a minha irritação aumentava. Pra onde ia aquela conversa platinada, Deus meu?

— Jennifer Aniston.

— Não! Ela não tem naaaada a ver com a mulher do Banderas!

— Então não sei, Jaiminho, vamos voltar a correr, é sinal de que esse assunto não vai pra frente.

— É um filme cheio de prédios! Se passa em Nova York!

— Ah, ajudou muito agora — debochei, mais irritada do que no meu dia mais irritado de TPM.

Botei meu fone no ouvido de novo e, bufando, continuei a correr.

Levei um cutucão que quase me derrubou da esteira. Era ele, todo felizinho, louco pra dizer que...

— Lembrei! É Meg Ryan! É da Meg Ryan que eu quero falar!

— Ah... tá... — respondi, louca, LOUCA pra saber que informação importantíssima ele tinha a dar sobre a Meg Ryan, uma atriz para a qual eu não ligo a mínima. Se ainda fosse a Julia Roberts!

Eu estava esperando uma fofoca, um escândalo, um babado fortíssimo que justificaria o fato de ele me interromper de cinco em cinco segundos. Meg Ryan presa com quilos de cocaína na mala do carro, Meg Ryan na capa da Time, nua, flagrada com dois sarados num motel barato de beira de estrada, Meg Ryan devorada por ursos durante piquenique, Meg Ryan mata amante a facadas e se mata depois.

— Como ela tá envelhecida, né? Vi ontem um filme dela com aquele de olho azul, o Russel Crowe, e fiquei impressionado. A minha mãe tem certeza de que ela botou botox, mas eu acho que ela aumentou a boca também.

Fechei os olhos por um segundo. Respirei fundo e contei um, dois, três, quatro, cinco...

— Era esse o assunto?.

— Era! — confirmou, empolgadíssimo. Interessadíssimo naquela

conversa zero interessante.

— Eu caguei pra Meg Ryan, Jaiminho! Tô nem aí se ela botocou a cara, problema dela! Cada um faz o que quer com a própria cara!

— Eu sei, mas além de botocada ela é cafona! Você viu o vestido pêssego que ela usou no Festival de Cannes? Não combinava nada com o tom de pele dela!

Vestido pêssego? Tom de pele? Que boiola!

— Jaiminhooo! Acho que você tá lendo muito essas revistas de fofoca, hein? Precisa ler mais a Placar e ver mais SporTV, sabe? Tá estranho isso. A gente tá aqui correndo e você puxa um assunto que...

Não deu tempo de terminar. Perdi o equilíbrio e caí da esteira. Um tombo memorável, do tipo videocassetada.

As pessoas que estavam malhando logo vieram ajudar.

Enquanto me socorria e, claro, falava, Jaiminho jogava em mim a água gelada da garrafinha, já que "gelo cura", segundo ele.

— Ô, Mojucôôô... Foi a Meg Ryan? Eu ia falar que você nunca vai precisar botar botox, que mesmo velhinha e enrugadinha você vai ficar a minha linducha de sempre. Era isso que eu queria dizer!

— Fala sério, Jaiminhoooo!!!

Sei que ele era suuuuperbem-intencionado. Mas o erro do Jaiminho foi puxar conversa de manhã.

Terminei com ele. Na manhã seguinte.

 

Mamá e meus namorados

Apresentar garotos ao Mário Márcio, Mamá para os íntimos (menos para minha mãe, que acha esse apelido o pior do mundo), sempre foi um problema. Super ativo, meu irmão, que é três anos mais novo que eu, é viciado em esportes e qualquer coisa que o faça ficar em movimento. Quando lhe apresentava um namorado novo, em vez de falar "Oi, tudo bem?", ele dizia:

— Gosta de pelada?

— Mulher pelada? Ô... — debochou Lucas, o gatinho da vez.

— Não, bobão. Futebol!

— Gosto, mas nunca joguei a sério.

— Sério? Quer entrar no meu time? A gente tá precisando de um ponta-direita.

— Vou adorar, cara! Quando é que vocês jogam?

— Agora. Bora?

— Bora!

— Como assim, "bora"? A gente não ia ao cinema? — indaguei, irritada

— PÔ, Malu, deixa de ser chata! É rapidinho, em uma hora a gente tá de volta — explicou Mamá.

— Vou adorar jogar com o seu irmão. Assim é bom que a gente fica se conhecendo melhor.

— Mas o cinema era às set..

— Vamos na última sessão, a das nove e 15. Fechado?

— Tá, né?

— Vambora, cunhado! — gritou Mamá.

E assim, meus namorados ficavam unha e cutícula com meu irmão. Impressionante o poder de uma partida de futebol. Basta uma para os jogadores em questão, depois de levarem tombos e caneladas desonestas, se tornarem os melhores amigos de infância, mesmo sem nunca terem se visto na vida

Mistérios do universo masculino.

Quase duas horas depois, chegaram os dois. Lama pelo uniforme,

terra pelo corpo, roupa encharcada de suor, cabelo inacreditavelmente sujo e uns roxos aqui e ali. Pareciam estar voltando de uma guerra.

— Oi, Maluzinhaaa! Foi demais o jogo! — contou Lucas.

— Ia ser perfeito se a gente tivesse ganhado — completou Mamá.

— É... 37 a 3 é piada. Quero revanche.

— Revanchêêê! — gritou Mamá, com cara de mau, narinas arreganhadas e testa franzida, como se estivesse num surto psicótico, dando soquinhos repetidos no ar.

— Revanchêêê! — repetiu Lucas, com direito a saquinhos idiotinhas no ar e alguns decibéis a mais que Mamá.

— Oi... desculpa atrapalhar a sede de vingança e revanche, mas... tudo bem? Lembra de mim?

— Ai, Malu, foi mal. Desculpa. Tudo bem? Como é que tá a novela? O mocinho brigou com a mocinha pela trigésima vez? — gargalhou Mamá.

— Não tô falando com você, Mamá. Tô falando com o Lu...

— Ah, Malu, dou toda a razão para o seu irmão. Pode crer... Novela é um saco. A gente vê o primeiro capítulo, um no meio e o último e fica sabendo de toda a história.

— Eu achei que você gostasse de novela. Você falou pra mim que não perdia um capítulo.

— Que nada. Falei pra te conquistar. Mas agora você já ta conquistada, posso dizer a verdade.

— Como assim?

— Vocês, meninas, se julgam tão espertas... não sabem que a gente diz qualquer coisa, QUALQUER COISA, para conquistar uma garota?

Eu me indignei. Mamá rolou de rir.

— Boa, Lucas! O que mais você disse pra ela?

— Que ela era muito mais bonita que todas as capas da Playboy juntas.

— Rá! E ela acreditou?

— Claro! — respondeu, vitorioso, sorrisão desnecessário no rosto. — E ainda disse que uma gatinha que faz televisão deu mole pra mim numa festa e que eu não quis ficar com ela porque só fico quando me sinto apaixonado. — Ele se matou de tanto gargalhar.

— Isso era mentira? — perguntei, pau da vida.

— Claro! E eu também não gosto dessas musiquinhas que você gosta. Falei só pra agradar.

— Irado, cara! — exclamou Mamá, dando um tapinha ridículo na mão do Lucas.

— Engraçado foi uma vez que eu disse para uma fã do Skank que meu pai era primo do Samuel Rosa. Na mesma hora ganhei um beijaço.

Mamá se acabava de tanto rir.

— Nossa, não achei que você era tão falso... — desabafei.

— Ah, não fica bravinha, vai! Só disse tudo isso porque eu tava muito a fim de ficar com você... Vem cá, deixa eu te dar um beijo...

— Que beijo? Tá maluco? Você tá fedendo mais que um gambá, Lucas! Vai pra casa tomar um banho!

— Banho? Fala sério, Malu! Assim a gente vai se atrasar pro cinema.

— Eu não vou para o cinema com uma pessoa no seu estado. Se olha no espelho, Lucas Teixeira Pinto. Você parece um homem das cavernas! Nojento! Nojébous!

Ele olhou para o meu irmão e riu com ele aquela risadinha de homem palhação, como se fosse muito, muito legal, a coisa mais legal do mundo, parecer um homem das cavernas, nojento, suado, com cara de mendigo.

— Nojébous! Rárrárrá! Mulher inventa cada bobagem! — ridicularizou-me Mamá.

— Nojébous vai ficar pra história! Pra história! — incentivou Lucas.

Diante da minha cara de nojo, depois do ataque de riso, Lucas foi tomar banho na casa dele. Meia hora depois sua mãe ligou dizendo que ele tinha apagado na cama. Estava morto de cansado depois da pelada.

 

No dia seguinte...

— Lucas! Tem aula experimental de capoeira na academia aqui da esquina. Quer ir?

— Tô dentro, Mamá! Quando é?

— Agora!

— Vambora!

— Sem nem um beijinho, Lucas?

— Depois, amor, já, já tô de volta.

E lá ficava eu sem namorado (e sem beijo) de novo.

— Vai ter campeonato de natação com a galera da vizinhança. Tá a fim de participar? — perguntou Mamá noutro dia.

— Demorou! Adoro nadar! Sempre nadei, parei há pouco tempo.

— Bora treinar?

— Bora!

— Como assim, "bora"? A gente não ia sair com os seus amigos?

— Eles esperam. Você tem uma sunga pra me emprestar, Mamá?

— Claro, brother, bora lá no meu quarto.

E eu ficava sem namorar o namorado da vez por dias e dias. Perdia os caras para o Mamá num piscar de olhos, e sempre para esportes. Tudo, menos eu: futebol, natação, capoeira, jogo de botão, pólo aquático, vôlei, basquete, peteca, pingue-pongue, totó, corrida, passeio de bicicleta noturno...

— Vamos, Malu! Vai ser maneiro pedalar à noite... — empolgou-me Lucas.

— E perder minha novela? Nem pensar! — desdenhei.

Quando dava por mim, parecia que o meu irmão tinha se apossado dos meus namorados. Quando o cara da vez tinha alguma queda por esportes, não tinha jeito, o Mamá me goleava de 10 a zero. E eu acabava tendo que botar um fim nos meus relacionamentos. Na maioria das vezes, por causa dele. Não dava para competir com o meu irmão.

— A gente precisa conversar.

— Ah, não... Não quero ouvir.

— Quer, sim. Eu sei que vai ser difícil pra você encarar isso, mas...

— Não, não me diz que...

— É isso mesmo que você tá pensando...

— Nããããão!!!.

— Sim. Eu quero terminar.

— Não fala uma coisa dessas, Malu! Por favor!

— Esse namoro tá me sufocando.

— Você diz isso pra todos.

— Não está mais dando certo.

— Por quê?

— Porque acabou o amor.

— Como assim? Ele é o cara mais legal que você já namorou — dizia Mamá, com lágrimas nos olhos. — Um cara que gosta de você, é seu amigo, é gente boa...

— Mamá, presta atenção, o Lucas adora você...

— Adora nada!

— Adora, sim.

— Mentira sua!

— Verdade.

— Se você disser que vai terminar com ele por minha causa ele vai correr pra você que nem um cachorrinho. É sempre assim! — irritou-se, fazendo bico de pirraça.

— Claro que não. Mesmo se ele quiser ficar comigo eu não vou querer. A gente não combina.

— Como não? Ele faz o melhor macarrão instantâneo que eu já comi na vida! E você ama macarrão instantâneo...

— Mamá, não dificulta as coisas... Vocês vão continuar a ser amigos...

— Que nada! Esse papo é ridículo, isso nunca acontece. Amigo a gente ia ficar quando a gente fosse pra aula de caratê... Caratê é tão a cara dele... Você é uma insensível, mesmo...

— Vocês podem continuar a praticar esporte juntos.

— Não podemos nada! Você e seu ego gigante cortaram mais uma amizade maneira que estava nascendo.

— Existem outros caras legais no mundo, Mamá...

— Não que nem o Lucas... O Lucas é especial, Malu... — chorava Mamá.

— Eu também sou... Eu mereço alguém que goste de mim de verdade.

— O Lucas gosta de mim de verdade.

— De mim, Mamá! De mim! — gritei.

—Ah, tá. Poxa, ele gosta de você...

— Mas gosta muito mais de você, vai... — disse, arrancando um sorrisinho orgulhoso do meu pirralho favorito.

— Vocês vão continuar se falando?

— Não sei, essas coisas não são fáceis de prever.

— Ele falou de mim pra você?

— Falou. Disse que adoraria ter um irmão como você. Com a irmã ele não tem assunto, ela é uma CDF que só pensa em matemática...

— A Sofia é fera, inteligentíssima aquela garota.

— Você sabe o nome da irmã dele? Tô boba...

— Você não sabe? Caraca, Malu, não sei como você arruma uns caras tão legais sendo tão metida. Você é uma metida! Metida! — irritou-se, antes de sair correndo para o quarto para fazer manha.

Quando fui conversar com o Lucas, foi bem mais fácil.

— Não dá mais...

— Beleza, já estava prevendo isso, mas...

— Nós podemos continuar a ser amigos, claro... — fui fofa.

— Tá, mas... eu posso continuar amigo do Mamá?

Sem mais palavras, respondi o que tinha de responder:

— Claro que pode. Fala sério, Lucas!

 

Malena e meus namorados

Quando mamãe achou que não engravidaria mais, a minha irmã Malena já dava os primeiros sinais de vida dentro da barriga dela. Ela é seis anos mais nova que eu e sou absolutamente apaixonada pela minha pirralhinha. Paixão incondicional mesmo. Às vezes ela me perturbava, sabe como é relacionamento entre irmãos. Mas na maioria das vezes era uma criança espirituosa, alegre e cheia de tiradas fantásticas.

Sempre gostei de apresentar meus namorados pra ela, eles normalmente ficavam fascinados com a espontaneidade da minha irmã caçula, e se um namoro estava pra engrenar, depois dela engrenava de vez. A Malena era meu pé de coelho, mas às vezes ela não ia com a cara dos caras! E eu sofria com a pirralha. Foi assim com o Cláudio, um ator que conheci no curso de teatro.

— Malena, esse aqui é o Cláudio.

— Oi, bonitinha.

— Oi, feião. Você é feio, feio, hein, menino? — decretou ela, do alto de seus dez anos, suuuuper fofa.

— Malena! — vociferei.

— Isso é um elogio, Malu! Você só gosta de menino feio, não é?

— Ufa! Que bom! — brincou ele.

— O Cláudio é ator — puxei papo.

— Faz novela? — indagou ela.

— Não.

— Então não é ator. É praticamente um desempregado. A mamãe vive dizendo que teatro não dá dinheiro e que ator é tudo morto de fome.

— Malena!

— É difícil mesmo ser ator neste país — concordou Cláudio.

— Fica famoso, vai! Vou adorar conhecer um famoso.

— Vou tentar.

— Aí você me leva nas festas e deixa eu te exibir pras minhas amigas?

— Deixo, claro.

— Você tem carro?

— Ainda não...

— Poxa. como é que vai me levar pras festas, então? Fica famoso logo! E rico. Não adianta ser famoso pobre.

— Pode deixar!

— O problema é que com esse nariz gigante e essa pele toda furada fica difícil você ir pra tevê. Mas tem maquiagem, né? E se você tiver talento...

— O Cláudio é talentoso, Malena.

— Você me disse ontem que ele não é talentoso. Ele é es-for-ça-do, é diferente.

Quase voei no seu pescoço.

Cláudio pareceu não se importar com o comentário.

— Atuar é um exercício diário, uma carreira que exige muito estudo, muita dedicação... Talento é uma coisa que a gente vai construindo aos poucos...

— Se você tem talento, chora, então, pra eu ver.

— Malena tem mania disso. Já encontramos na rua o Antonio Fagundes e a Gloria Pires, e nas duas vezes ela pediu pra eles chorarem.

— Sério? E eles?

— Não choraram. Apertaram a minha bochecha e falaram com voz de neném "ó, que fofiiiinha" — contou Malena, irritada. — Pra mim. Ator que não chora não tem talento nenhum. Chora!

— Ah, assim, sem concentração, não dá...

— Iiih, péssimo ator. Pra ser ator tem que saber chorar que nem eu... — ela decretou, enquanto seus olhos enchiam de lágrimas. A minha irmã sempre teve uma capacidade surpreendente de chorar à hora que bem entendesse. Choro falso, que fique claro.

— Uau! Você tem talento.

— É, mas não vou ser atriz, não. Os atores trabalham muito e ganham pouco. Só uns sortudos é que se dão bem. O que eu quero mesmo é ser top model internacional ou cantora de funk rebolativa. Sou ótima cantora e ótima dançarina, ao contrário da Malu.

— Nossa, que decidida!

— Eu sei, planejo minha carreira desde pequena. Se eu não virar uma pessoa magrela ou uma cantora bem-sucedida, vou pra academia malhar "bastante, ficar com a bunda dura e posar pelada pra alguma revista. Não vou ficar rica, mas vou ter meu apartamento. Todo mundo que posa diz que só posou pra comprar apartamento. E ter um apartamento só pra mim e pras minhas bonecas vai ser irado, né?

— Malena!

— Eu sei, eu sei o que você vai dizer. Se meu peito não crescer vai ter que rolar um silicone antes da Playboy, né?

— Claro que não! Eu ia dizer que é um absurdo você pensar essas coisas! — bronqueei.

— Malu! A Playboysó vai rolar se eu não der certo como top model Internacional. Alô-ou! Mas já pensou? Eu em todos os programas de auditório e revistas de celebridades contando que só fiz as fotos porque escolhi o fotógrafo, o lugar das fotos, o cachê... — Riu.

Malena sempre me surpreendia.

— Qual seu signo, menino?

— Leão.

— Sei. Metido, egoísta e temperamental. Chatiiiinho...

— Tão pequena e já ligada em horóscopo?

— Não, é que minha melhor amiga é leonina.

— Ah, tá... — fez, embasbacado.

— O bom é que você combina com a Malu. Leão é fresco e ela é super fresca.

— Ela é fofa.

— Fresca. Não come fruta-do-conde, tangerina e melancia só porque tem preguiça de cuspir os caroços. Fala sério!

— Então tá, né, Malena? Estão apresentados. Vamos, Cláudio?

— Espera aí! Tô gostando de conversar com a sua irmã. Ela é super autêntica Quantos anos você tem, bonitinha?

— Ai, pára de me chamar disso? Eu sou bo-ni-ta, sem esse "inha" Aí.

— Ah, claro, desculpe, bonita. E então, quantos aninhos você tem?

— Tenho dez anos, muito cabelo, lindas bochechas, sou ótima aluna e namoro o Pedro Mucks.

— Não era o João Paulo? — questionei.

— Não, o João Paulo não quis pagar meu lanche na cantina outro dia. Não suporto garoto pão-duro. Aliás, a Malu é a maior mão-de-vaca, não abre a mão nem pra dar tchau. Cuidado pra ela não te deixar mais pobre ainda. Ela sempre vem com um papinho de "ih, esqueci a carteira...". Abre o olho, Otávio.

— É Cláudio, Malena!

— Ah, é, desculpa. Otávio foi o da semana passada...

— Como é que é? Fala sério, Malu! Você estava com outro na semana passada?

— Claro que não.

— Claro que tava. E ele era muito melhor que você, viu? Bem mais legal também. Quer ser astronauta em vez de ator. Muito mais irado.

— Malenaaaa!!!

— Tchau, Malu.

— Cláudio, eu posso explicar melhor. O Otávio é meu amigo... —esclareci enquanto ele se levantava da mesa onde estávamos.

— Desde quando você beija amigo na boca? — irritou-me Malena. Foi a deixa pra ele sair em disparada da lanchonete, soltando fumaça pelo nariz.

— Posso saber por que você fez isso?

— Não gostei dele. Cabelo desgrenhado e barba por fazer. Ia me arranhar toda quando viesse me beijar.

— Caraca, Malena. Você é bem filha da mamãe, mesmo, hein?

— Eu sou sincera. O Otávio é bem mais legal.

— Por quê?

— Pô, o cara prometeu me levar pra Lua com ele! Já pensou eu num foguete, que máááximo?

Não consegui argumentar.

E confesso que depois do episódio Cláudio fiquei bem tentada com a idéia de ver a Malena num foguete, passando umas férias prolongadas no espaço.

 

                               17 ANOS

 

Mentiras sinceras me interessam

Todo fim de ano é a mesma coisa, já virou um ritual: entre as inúmeras promessas que faço, a que encabeça a lista é "Nunca mais vou beber refrigerante. Engorda e dá celulite". Repito isso três vezes enquanto pulo três copos de Coca-Cola dispostos no chão. Bato na madeira três vezes e, por fim, dou três golões de água, para me conscientizar de que isso, sim, é uma bebida saudável.

Essa promessa é a primeira que quebro. Sempre amei refrigerante. E como não gosto de nada diet e light, o jeito é engordar com aquelas deliciosas bolinhas gasosas que me enchem de prazer ao entrar em contato com meu estômago.

O que eu devia prometer é "nunca puxar assuntos como celulite com namorados", mas sempre esqueço. E acabo vivendo discussões infindáveis com os pobres dos meus namorados/rolos/ficantes.

Uma vez foi com o Sidney, na praia:

— Olha pra minha bunda, Sid!

Ele prontamente atendeu ao meu pedido. Homens!

— Linda!

— Arrã. Mas e aí?

— E aí o quê? Tá linda.

— Tá com menos celulite?

Ele gelou.

— Tava com muita?

— Não sei, Sidney. Você me diz: a minha bunda tá com muita ou

pouca celulite agora?

— Tá com... pouca?

— Pouca? Que é que é isso, Sidney? A resposta era "tá sem nenhuma celulite. Sua bunda tá lisa que nem asfalto novo"!

— Desculpa, eu nem sei o que é celulite.

— Como assim? Já te expliquei mil vezes!

— Desculpa, o meu cérebro às vezes não registra algumas coisas

importantíssimas como essa — debochou.

— Dãã!!!

— Diz, meu amor, o que é celulite?

— É uma espécie de depressão na pele da bunda e da coxa, parece

uma casca de laranja.

Ele se ajeitou na cadeira para observar melhor.

— Ah, então eu tô vendo sim. Uma aqui, duas, três... quatro! Quatro casquinhas! E tem umas menores, que não chegam a ser cascas de laranja, mas estão treinando pra chegar lá.

— Como é que é? Olha aqui, Sidney, eu nunca fui tão magoada em toda a minha vida.

— Por quê?

— Porque você tá dizendo na cara da minha bunda que eu estou

cheia de casca de laranja. Casca de laranja tem a sua avó!

— Não fala assim! Respeito com a vovó! E ela nunca teve esses

negócios esquisitos que você tá me mostrando.

— Ah, quer dizer que a bunda da sua avó, que tem 75 anos, é

melhor que a minha, que além de gorda é esquisita?

— Sua bunda não é gorda, eu não disse isso! Ela tem ce-lu-li-te, é

diferente! — ele retrucou, dando desnecessária ênfase à celulite.

— Isso, fala mais alto, a velhinha surda que tá tomando água-de-coco no quiosque do calçadão não escutou.

— Caramba, mas não era isso que você queria saber?

— Ô, Sidney, você não entende nada de mulher, viu? Nada!

— Mas você não perguntou?

— Era pra mentir, seu animal! Pra dizer que eu nunca estive tão linda e que a minha bunda dá de mil em qualquer bunda da Playboy! Mas eu achei que você gostaria que eu só dissesse a verdade.

— Nem sempre. Uma mentirinha branca de vez em quando não faz mal a ninguém. Agora vou achar que o creminho em que eu gastei toda a minha mesada não adiantou nada.

— Adiantou, sim. Sua bunda tá... tá linda! Lisa que nem asfalto novo!

— Agora não é hora de mentir, Sidney! Fala sério, Sidneeeey!

 

Um namorado e suas ex

O Serginho era daqueles meninos especiais. Gentil, cavalheiro, bem-humorado, bem vestido, bem cheiroso... Tinha certeza de que ele não seria só uma cosquinha no coração, mas sim um terremoto em todas as células do meu corpo. Pensava nele a todo minuto, falava com ele 37 vezes por dia e, quando estávamos juntos, irritávamos os outros, tamanha a nossa felicidade e a paixão que faiscava nos nossos olhos e nos beijos intermináveis. Estava com ele havia pouco mais de um mês, mas parecia que o conhecia há anos, décadas, milênios.

Um dia, ele quis ir comigo (atenção: quis ir comigo!) ao shopping (shopping!) no sábado (sábadoooo!) para comprar um presente de aniversário para o meu pai. Disse que mulheres não sabem escolher presentes para homens e que pais merecem presentes perfeitos, nada de meias ou pijamas. Por isso, ele quis me dar uma forcinha na escolha. Não era lindo o meu Serginho?

Pontualmente, como sempre, ele chegou lá em casa para me buscar.

— Nossa, como você está linda! — elogiou.

— Ah, pára! Peguei a primeira roupa que vi no armário — menti,

charmosa, para não entregar que fiquei três horas escolhendo a roupa, escovando o cabelo, fazendo a unha e me perfumando só pra ele.

A multidão de gente que anda em grupo e bem devagar nos shoppings normalmente me tira do sério, mas com o meu Serginho nada me deixava de mau humor. Antes de irmos às lojas, ele sugeriu que fôssemos à praça de alimentação. Eu odeio cheiro de praça de alimentação, ainda mais aos sábados, com aquela barulheira de gente comendo e falando, falando e comendo, crianças chorando, filas intermináveis. Mas com o Serginho eu não via ninguém à minha volta. Só tinha olhos para ele, que só tinha olhos pra mim.

Mas outras pessoas tinham olhos para ele.

— Oi, Serxinhuuu — cumprimentou-o uma ruiva simpática demais

para o meu gosto.

Serxinhuuu? Que é que é isso, minha gente? Que intimidade desnecessária!

Fiquei cabreira.

— Oi. Juju.

— Oi, quem? — retrucou ela.

— Oi... Xuxu... Tudo bem? — fez ele sem graça.

— Melhor agora, meu docinho...

— Essa aqui é a Malu.

— Arrã. Tô com saudade. Serxinhuuu. Me liga, tá? — pediu insinuante.

— Quem é? — quis saber eu.

— Uma ex. Acho que ela ainda gosta de mim.

Tadinho... É isso que dá ser lindo, gostoso e especial. As meninas

não desapaixonam nunca.

Depois da primeira mordida no meu cheeseburguer...

— Serginho, meu ursão! Há quanto tempo não te vejo!

Ursão? Que apelido ridículo!

— Oi, Clara...

— Como é que tá a vida?

— Tá ótima. Essa aqui é a Malu.

— Arrã. Me liga quando puder. Pra gente conversar e... ah... você

sabe...

Piscou o olho pra ele, ignorou minha presença e foi embora.

— Outra ex?

— É.

— Também apaixonada?

— Pois é... Fazer o quê, né?

Quase no fim do nosso lanche...

— Ora. ora, se não é o palhaço que nunca me dá carona?

Ufa! Até que enfim uma menina que não gostava dele. Já estava

achando esquisita essa história.

— Oi, Laura. Malu essa é a Laura minha prima — ele nos apresentou. — Desculpa. Laurinha, mas saí de casa mais cedo. Tive que fazer um monte de coisas antes de vir pra cá.

— Olha como ele é, um fofo com todas e um palhação com a prima.

— Cuidado, hein, Malu!? — avisou ela antes de sair.

Não consegui responder. Fiquei pensando no "todas".

Aquilo continuava muito estranho.

Entramos numa loja. A vendedora veio nos atender sorridente cheia de dentes na boca.

— Até que enfim você veio me fazer uma visita... Tava com saudade... — derreteu-se.

— Oi... ai. Dara — disse ele tentando se esquivar do abraço oferecido e dos beijos ainda mais oferecidos da menina.

Meu Deus, o Serginho pegou a Tijuca inteira! E todas as ex são loucas por ele. Por quê?

Serginho parecia não se abalar. Continuava me tratando como se

eu fosse a única mulher do mundo e me apresentando pra todas.

— Dara, essa é a Malu.

— Olha, uma nova amiga?

— É.

Amiga? Como assim amiga?, quase perguntei.

Saímos da loja o mais rápido possível e eu quis saber:

— Serginho, qual é o seu problema, hein? Eu achei que fosse mais que sua amiga.

— Ah... é isso? É que... é que eu não posso dizer pra elas que você é minha namorada...

— Por que não? — enfezei-me.

— Porque... como é que eu vou explicar... porque...

Enquanto ele caçava as melhores palavras, uma morena peituda agarrou sua cintura e lhe tascou um selinho. Selinho!

Fiquei chokita.

— Inho, seu safadinho! Tô esperando você me ligar! Quando vou te ver de novo?

— Nunca! Porque ele agora tá namorando comigo.

— Namorando?! Que é isso, Serginho, semana passada a gente tava namorando.

— Como é que é? — estrilei.

— Calma, meninas, eu posso explicar...

— Explica rápido, Serginho — ordenei, irritadíssima.

— Eu estava tentando dizer exatamente isso pra você, Malu... Eu,

eu... Eu não gosto de terminar.

— Eu também não, e daí?

— Eu não sei terminar.

— Ninguém sabe! Qual o problema?

— Nenhum problema. Justamente para não ter problema, quando

eu não quero mais namorar uma menina, eu simplesmente dou uma sumida.

— Odeio garoto que pára de ligar. Que covarde!

— Não é covardia.

— É fofura — completou a morena, toda derretida.

— Isso! É fofura! Obrigado, Lorena.

— Me diz o que é que tem de fofo em parar de ligar? Eu acho o cúmulo da covardia.

— Lorena, linda, mais tarde te ligo, agora preciso resolver um problema aqui.

— Tá bom, Inho. Mas liga mesmo, tá? — pediu, antes de dar nele um selinho de despedida.

— Quer me explicar direito essa história de parar de ligar?

— Eu paro de ligar para não dar um fim ao namoro.

— Ah, é? Então é como se você não terminasse com elas!

— Isso, Malu! Por isso, quando elas ligam querendo sair, eu saio.

Não gosto de fazer ninguém sofrer, entende?

Eu estava boquiaberta.

— Você sai com as suas ex?

— Saio.

— Por quê?

— Porque, na verdade, na verdade, elas não se sentem ex. Pra mim elas são, claro, mas na cabeça delas é como se nós continuássemos juntos.

— Sei...

— Então, pra não deixar nenhuma magoada, porque não é da minha natureza magoar ninguém, eu fico com elas de vez em quando.

— Você fica com elas? Com todas elas que a gente encontrou no

caminho? Fala sério, Serginho!

— É ficada sem importância, Malu. É ficada de amigo. É quase uma ficada por obrigação.

— Deixa eu ver se entendi... você fica com elas e comigo, é isso?

— Isso! Isso mesmo! Mas você é a oficial, as outras são meninas que às vezes eu chamo de amigas, outras de ex... Não na frente delas porque senão elas ficam...

— Magoadas. Entendi.

— Que bom que você entendeu, Maluzinha.

— Tô indo pra casa.

— Por quê?

— Porque tô magoada.

— Não! Não faz isso comigo, não agüento ver mulher magoada!

Malu! Maluuuu!

Saí do shopping e fui pra casa. Pensando em como a gente se engana com as pessoas.

 

Ciúme de você

Começo de namoro é sempre aquela maravilha: a paixão encobre todo e qualquer defeitinho do outro, o mundo fica mais bonito quando estamos com a pessoa amada, a gente fica mais bonita quando está amando... E chega ao cúmulo de achar ciúme, uma praga humana que não serve pra nada, bonito.

— Você vai sair com essa saia? Sua perna tá toda de fora — criticou-me Jorginho, meu novo namorado, na primeira noite em que saímos juntos.

Em vez de ficar irritada e mandar um "Se quiser namorar comigo vai se acostumando, porque eu gosto de saia curta e não vou deixar de usar por nada!", achei bonitinho ele se preocupar com as minhas pernas.

— Óóóó! Que fofo! Tá com ciúme, é? Peraí que vou trocar.

Burra. Mil vezes burra. Daí pra frente foi um festival de "Não vai

sair com esse decote messssmo, seu peito tá praticamente de fora!", "Esse umbigo precisa estar à mostra desse jeito?", "Mulher minha não vai pra rua de vestido transparente, não".

Em pouco tempo, meu guarda-roupa parecia o de uma freira.

— A burrice foi você não ter cortado logo da primeira vez — opinou Alice.

Certa, certíssima.

E a situação estava só começando a piorar. Quando marquei Uma

saída apenas com as meninas, quem apareceu de surpresa?

— Oi, Maluzinha! Seu amor chegou!

— Jorginho! Não disse que hoje era um dia só com as minhas amigas?

— Fiquei com saudade!

— Vai pra casa, depois a gente se fala.

— Vou não, quero ficar aqui com vocês. Atrapalho?

— Claro.

— Por quê? Estão falando mal de mim, é?

— Não, o mundo não gira em torno de você — irritei-me.

— Do que é que vocês estão falando, então? Responde. Se não responder logo é porque estavam falando de alguma coisa suspeita, de algum cara...

— A gente estava falando da infecção urinária da Nanda. Pronto. Está satisfeito?

— Malu! —-zangou-se Nanda, nada satisfeita comigo.

— Desculpa, também estamos falando da Duca, que acha que tá com hemorróida.

— Malu! — Foi a vez de Duca reclamar.

— Mulherada, não precisa ficar nervosa, meu tio é médico e tenho certeza de que vai poder indicar ótimos profissionais para vocês. Viram como é sempre bom ter um homem com vocês? A gente pensa mais rápido, é mais prático.

Ele se meteu na minha vida mais do que devia. Minhas amigas amarraram a cara e depois me deram um gelo de cinco dias. E com razão. Tadinhas, viram suas vidas devassadas para um quase estranho (já que eu estava com o Jorginho há pouco mais de duas semanas).

O problema é que o ciúme não se limitava às roupas nem às saídas com as amigas.

Num show, eu conheci o verdadeiro Jorginho.

— Qualé, cara? Que é que tá olhando? A garota tem dono, vaza! — gritou ele, estufando o peito, para um garoto franzino de uns 14 anos que me perguntou as horas.

— Jorginho, que é que é isso? Era só um menino.

— Pois é, esses são os piores, têm cara de bebê mas são os mais safados.

— Coitado, ele tava só perg...

— Que é, mermão? Nunca viu? Bunda, mermão, mermão, bunda. Bonita a bunda dela, né? É minha. Mi-nha!

— Jorginhoooo!

— Pô, cara idiota, olhando sem piscar pra sua bunda. Sua bunda é minha.

— Não é não. Minha bunda é minha.

— Enquanto você estiver comigo é minha e não se fala mais nisso.

Que é, boiolão? Nunca viu mulher bonita, não, é? Não é pro seu bico, não. É minha! Mi-nha!

— Pára de puxar briga com todo mundo, Jorginho, eu estou ficando constrangida.

— É que eu te amo, Malu!

— Fala sério, Jorginho! Amor não é isso, não. Quem ama confia.

— Confiança... Você acha que eu acredito mesmo nesse negócio de confiança? Mulher é tudo igual, é só a gente olhar pro lado que vocês créu!

— Créu?! — repeti, indignada com a hum... palavra usada, e com a constatação de que meu novo namorado era um troglodita.

— É créu, sim! Vocês metem um par de chifres na gente sem dó

nem piedade! E eu não nasci pra ser chifrudo. não, sacou?

— Mas eu confio em você. Você tem que confiar em mim.

— De jeito nenhum. Ô, cumpadi, dá pra tirar o olho da barriga da minha namorada? Barriguinha lisa, barriguinha gostosinha, né?

— Não tava olhando nad... — tentou se defender o cara.

— Qual é? Vai encarar? Vai encarar? Gostosinha é tua mãe! — exasperou-se Jorginho.

— Que é isso, eu não...

— Sou faixa preta de jiu-jítsu, quer porrada, vai ter porrada! Vem, vem! — desafiou ele, já partindo pra cima do coitado.

Que cena horrorosa: o troglodita do meu (que vergonha!) namorado se engalfinhando com o garoto, que nem sei se estava mesmo olhando para a minha barriga. Não fiquei pra ver o fim da briga, saí correndo para chamar os seguranças.

Violência? Que coisa mais caída! Eu não merecia isso, sou tão da paz! E acho deprimente briga, principalmente em lugares públicos. Ainda mais por um motivo besta como ciúme.

Não atendi mais aos insistentes telefonemas do Jorginho. Um dia ele parou de ligar e eu parei pra pensar que nunca, nunca mais eu mudaria meu jeito de ser para agradar a um namorado. Mudanças, só se eu quisesse, e olhe lá. E namorado ciumento, nunca mais!

 

É cada um que me aparece... 3

Na fila do cinema, estamos eu e minhas amigas prontas para assistir a uma comédia romântica e devorar um saco gigante de pipoca. Moreno magrelo de cabelo encaracolado se aproxima.

— Você é linda.

— Obrigada — agradeci fofa mente.

— Francisco. Prazer. Qual é a sua graça?

Uuuui!

— É Malu.

— E aí, Malu? Gosta de cinema?

Não, idiota. Estou aqui por obrigação, pensei em dizer.

— Gosto muito — preferi responder.

— Suspense, ação, tiroteio ou filme mulherzinha?

— Todos.

— Vem sempre ver movies nos fins de semana?

Quase vomitei com o "movies”.

— Não. Às vezes prefiro ficar em casa lendo um livro.

— Livro? Fala sério! Por quê?

— Porque sim — respondi, seca

— Nossa! Não conheço ninguém que goste de livro.

Cada um que me aparece! Por quê? Eu sou tão legal, tão fofinha,

tão gente boa, tão limpinha...

— Veja você...

— Mas beleza, cada um faz a sua opção, quem sou eu pra te recriminar?

Eu quero morrer! Morreeeer!!!, berrei por dentro.

— A gente pode trocar telefone pra se conhecer melhor. O que você vai fazer hoje à noite?

— Vou ao teatro com o meu pai.

— Ao teatro? — reagiu, surpreso. — Com o seu pai?! — indagou, mais surpreso ainda.

— É.

— Por quê?

— Porque eu gosto de teatro.

— Por quê?

— Porque têm peças ótimas em cartaz.

— E por que com o seu pai?

— Eu adoro sair com o meu pai.

Minuto de silêncio. Ele estava processando aquelas informações absolutamente incríveis e inverossímeis para uma pessoa do seu planeta.

— Essa é boa! Uma filha gostar de sair com o pai, gostar de ler e gostar de teatro. Você não existe, Malu.

— Nem você, Francisco. Tchau, tenho que ir.

A fila andou.

 

                           18 ANOS

 

É cada um que me aparece... 4

Ivete em cima do trio, gente por tudo que é canto, de todo canto do país, pulando e berrando, mãos pra cima, abadás molhados de suor, alegria ao cubo, músicas bobas e sem sentido cantadas com todas as cordas vocais e muitos, muitos beijos na boca em volta. Era meu primeiro carnaval na Bahia.

Folião bocudo se aproxima de mim. Era praticamente a versão masculina da Angelina Jolie. Ou seja, bocudo mesmo.

— Fala, gracinha!

Droga! Odeio diminutivo. E acho "gracinha" péééssimo! Mas fui fofa.

— E aí, graçona?

É, depois de duas cervejinhas eu sou capaz de falar qualquer

asneira, por isso sempre paro na segunda.

— Tá curtindo?

"Curtindo?" Que palavra medonha! Odeio essa palavra! Mas ele era tããão charmoso! Tão bocudo!

— Tô curtindo muito, muito! — respondi, aos berros, minha boca quase encostando no ouvido dele.

— Me dá um beijo?

Ufa! Até que enfim, pensei. Demorou pra pedir. Eu estava no carnaval da Bahia, afinal de contas! Não precisa de muito teretetê antes de um beijo.

Beijei. Beijo bom, beijo muuuuito bom. Bocudo beijava que era uma loucura!

“E vai rolar a festa, vai rolar, o povo do gueto mandou avisaaaaar!”

Ivete cantava e a gente beijava, beijava.

— Já volto — disse ele.

Eu me surpreendi. Normalmente, na Bahia, pelo que minhas amigas contavam, a galera beijava e ia embora beijar o próximo. Mas o cara gostou de mim, do meu beijo, pensei. Caramba! Vou ter um ficante fixo exclusivo no carná baiano!, concluí.

No momento seguinte à constatação, fiquei em dúvida se chorava ou se comemorava o fato de ter um ficante exclusivo. Não tive tempo de pensar muito no assunto, em poucos minutos o bocudo estava de volta.

— Quer um gole da minha caipirinha?

— Não, obrigada. Tomei cerveja, não posso misturar.

— Muito bem, menina. Muito bem. Eu sou nutricionista, e você?

— Nutricionista? Nossa, que máximo!

Oba! Nunca mais vou fazer dietas mirabolantes, vou apenas ligar

para meu ficante nordestino (pelo sotaque fofo deu pra ver que ele era daquelas bandas) e pedir uma dieta balanceada. Gordura nunca mais! Eu ganhei na loteria! Agora tenho um personal dieter! Minhas amigas vão morrer de inveja!, vibrei por dentro.

— Eu acabei de passar pra faculdade de jornalismo.

— Olha só, que carreira linda — bocudo disse antes de dar um

gole na sua bebida. — Droga, essa caipirinha tá horrível. Precisa de açúcar.

— Açúcar? Por que você não bota adoçante? Açúcar engorda...

— Gracinha... A açúcar não é a única vilã. As pessoas começaram a recriminar a açúcar de repente como se ela fosse a única coisa que engordasse no mundo, mas açúcar é muito melhor que adoçante. Café com adoçante é um nojo, a açúcar dá outro sabor ao café. Concorda?

Concordo que você é uma anta. Como é que um nutricionista diz "a" açúcar?, quase respondi. Deve falar também a café, a sal, a ketchup, a agrião, o tangerina, o pimenta... Preciso calar a boca do bocudo o mais rápido possível antes que me desinteresse completamente por ele, pensei.

— Vem cá — chamei bocudo na chincha. Puxando-o pela camiseta e tascando nele um beijo daqueles. Looongo, demorado, perfeito. Sou ótima de beijo.

— Gracinha, que é isso?

— Eu sei, muito bom! — gabei-me.

— Tô apaixonado por você. O que você vai fazer mais tarde?

Não tenho paciência pra esses que falam logo em paixão... Tive certeza de que ele estava com segundas intenções.

— Quero te apresentar pra mainha, ela faz o melhor acarajé de Salvador. Já comeu acarajé?

— Não — respondi, assustada com a idéia de conhecer a mãe do nutricionista bocudo.

— Então pronto. Vai comer hoje, depois do bloco, lá em casa.

Mainha vai adorar você. E painho também, ele é meio fechado, mas é só você falar de novela que o velho se abre todo, adora

uma novela...

— Mas... — tentei me esquivar do programa família em pânico.

— Sem "mas", tá combinado paixão, depois daqui você vai lá pra casa comigo, conhecer minha família — decretou, agarrando minha cintura como se eu fosse sua propriedade. E eu estava em pleno carnaval de Salvador! Eu queria beijar muuuuito! Não só um nutricionista bocudo. E ele falava errado, não tinha a menor chance comigo!

— Puxa, graçona, não vai dar, tô com umas amigas aí...

— Leva as amigas... Assim é bom que já vou conhecer as amigas da minha namorada.

Namorada? Sai pra lá, isso é carnaval!, eu quase berrei.

Meu querido Senhor do Bonfim, meus lindos orixás baianos... help me, please!!!!

— Graçona, a gente não tá namorando — esclareci.

— Como não. gracinha? E tudo que rolou entre a gente?

— Dois beijos?

— Dois beijos sensacionais, perfeitos! Eu quero casar com você, gracinha...

— Não tá muito cedo pra falar em casamento, graçona? — apavorei-me.

— Que nada! Nunca é cedo pra amar. Você é a mulher da minha vida.

— Tá louco?

— Louco por você. Nunca senti nada assim antes... Fica comigo pra sempre? Casa comigo? Diz que sim! Diz que sim! — Ajoelhou-se aos berros, aos prantos.

Cara doido, doido.

— Eu vou embora.

— Não, não me abandone, não me desespere, porque eu não posso ficar sem você...

— Isso é Daniela Mercury... Este bloco é da Ivete...

— Eu sei, mas esses versos magníficos são perfeitos pra essa ocasião. Não termina comigo, por favor.

— Terminar o quê? A gente nem começou!

— Eu nunca fui tão pisado em toda a minha vida! Que dor, que dor!!!

— Não fica assim...

— Como não, gracinha? Eu sei que não significo nada pra você! Já entendi! Nossa história e nada é a mesma coisa!

— Nossa história? Que história?

— Oxóssi, meu pai, tá vendo isso? Oxum, minha mainha, tá acompanhando meu martírio? Me dê força, Iemanjá, me ajude, Iansã! — suplicou, em baianês arretado, mãos pra cima,

lágrimas jorrando dos olhos, mostrando que conhecia todos os orixás. E terminou sua prece com um inacreditável: — Vem comigo, Olodum!

— Olodum?! O bloco dos meninos com tambor? Fala sério, graçona! — reagi, chocada.

Mas ele nem ouviu, a música estava alta.

“Quer andar de carro velho amor, que venha...”

Droga! Uma das poucas músicas que sei cantar, mas não vou

poder porque estou no meio de uma cena surreal.

— Você é carioca, né, gracinha?

— Sou.

— Eu sou baiano. Soteropolitano. E sei bem como é carioca. Carioca é fogo. São todas fáceis, mas quando a gente quer algo mais sério largam a gente e deixam a gente na pior, com o coração na mão. Sem mais nem menos, sem nem uma explicação, sem uma palavra de carinho, abandonam a gente na rua da amargura.

Rua da amargura? Ui!

— Olha,eu sou carioca e não sou nada fácil, te beijei porque isso aqui é carnaval.

— Beijo? Você chama isso de beijo, isso é amor, gracinha! Amor!!! Amor sincero, amor de verdade.

— Isso foi um beijo de carnaval!!!

— Não faz isso comigo, gracinhaaa! Já pisou demais!

— Desculpa! — desesperei-me.

— Desculpo, desculpo. É só me dar seu telefone. Vamos conversar, vamos discutir a relação, vamos falar da gente! Vem viver o verão, vem curtir Salvador, eu sou camaleão, hoje sou seu amor! — gritou ele, parafraseando Chiclete com Banana. — Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça! — tentou me conquistar mais uma vez, agora com outra música típica do carná baiano, enquanto eu sumia no meio da multidão, assustada, para escapar das garras do nutricionista bocudo.

Nutricionista que mais tarde, quando contei a história para as minhas amigas, virou "DBB (Doido Bocudo Baiano)".

— Volta aqui, carioca! Volta aqui! A praça Castro Alves é do povo, mas meu coração é todinho seu! — ele berrou com as vísceras.

Não adiantou, claro. Eu já estava longe, bem longe dele, botando a mão no joelho e dando uma abaixadinha no extremo oposto do bloco.

"Isso é com o seu pai"

"Isso é com sua mãe"

 

Quando estou namorando a pior coisa é conseguir sair á noite com o dito namorado. De dia,tudo bem, sempre pude ir para qualquer lugar, mas a noite... Meus pais devem ter feito o curso "Como infernizar a filha em poucos minutos", quando eu comecei a beijar na boca, com uns 12 anos.

Sair de casa nunca foi problema. Os dois se preocupavam, mas nada de mais. Depois de umas perguntas, liberavam e eu ia pra rua lépida e fagueira. Mas pensa que era assim quando a saída em questão era com um namorado? Nananina! Mesmo depois que se separaram, meus pais mantiveram uma espécie de ritual que se repetiu por muito tempo na minha vida. Mesmo quando eu já tinha 18 anos. Dezoito anos!!! Era o chatérrimo ritual do "deixamos-ou-não-deixamos?".

— Mãe, tenho uma festa pra ir hoje com o Digo, vou voltar tarde.

Beleza? — disse um dia, do alto dos meus 18 anos, idade que jurei que, quando completasse, decidiria minha vida e seria dona do meu nariz para sempre.

Tolinha.

— Com o tal do Digo?

— É, mãe, com o tal do Digo — respondia, desanimada, já antevendo o que estava por vir.

— Liga para o seu pai e pergunta pra ele, festa com namorado é

com o seu pai.

Quando eu perguntava a opinião paterna sobre a possibilidade de ir à.festa, a resposta era invariavelmente:

— Isso é com a sua mãe, fala com ela.

O diálogo que se seguia era o mesmo, sempre:

— Eu já falei com a mamãe e ela disse para eu falar com você.

— Mas isso de festa com namorado é com ela.

E lá ia eu falar de novo com a minha mãe.

— O papai disse que isso é com você.

Minutos de silêncio e reflexão diante da afirmativa que ela ouvia desde que eu tinha uns 12 anos, A seguir, o que escutei durante anos da minha vida foi:

— Quem vai a essa festa além desse Digo? — Era sempre isso que perguntava, mesmo sabendo que não conheceria metade dos nomes que eu citaria. Eu, claro, evitava dizer os apelidos mais esquisitos, ela podia achar que eu estava andando com uma quadrilha: Fumaça, Descalço, Tálouco, Sapo, Espirro... Todos eram gente boa, mas a minha mãe não ia achar isso não...

Depois de me ouvir com cara de séria, coçando o queixo, vinha a decisão final:

— Tá bom, Maria de Lourdes. Mas juízo, hein?

Eu disse decisão final? Enlouqueci.

Quando contava ao meu pai que ela tinha deixado, começava outra novela:

— Sua mãe deixou? Como assim? Preciso conversar com ela.

E não era por telefone, não! Ele ia lá para casa e os dois se trancavam por horas para discutir se eu poderia ou não sair com o meu namorado. Como é dura a vida de uma menina de 18 anos!

Saíam do quarto e, em vez de darem o veredicto, faziam mais perguntas utilíssimas:

— Muito bem, muito bem... Você vai com o Digo. Nós conhecemos bem esse Digo, Ângela?

— Mais ou menos, ele estuda com Maria de Lourdes desde a sétima série e agora tá de namorico com ela.

— Não é namorico, é namoro — corrigi.

— Por que eu não fui apresentado a ele?

— Porque a gente tá no começo.

— Então não é namoro. É namorico, mesmo. Eu não aprovei ainda.

— Até parece que você precisa aprovar meus namorados, pai!

— Você chama o garoto de amor?

— Chamo, pai.

— Então é namoro, Ângela, não tem jeito. Qual é o carro dele?

— Um Gol.

— Que cor?

— Preto.

— Que ano?

— Sei lá, pai!

— Como "sei lá"? Meu Deus do céu, você está ou não está namorando esse garoto, Maria de Lourdes? Não sabe nada dele! — exasperava-se minha mãe.

Eu ignorava. E o silêncio era a deixa para meu pai perguntar:

— Ele tem carteira de motorista?

— Claro.

— Calibra os pneus com freqüência? Pneu é muito importante.

— Acho que sim.

— Ele bebe?

— Não quando dirige, mãe.

— Então quando não dirige bebe.

— Bebe, pai.

— Muito ou pouco?

— Pouco.

— Cerveja, uísque ou vinho?

— Só cerveja.

— Vai ficar barrigudo já, já. Cerveja incha que é um horror — comentava mamãe. — Você tão bonitinha com namorado barrigudo. Que desgosto.

— Dirige rápido ou devagar?

— Não.

— Não o quê? Acorda. Maria de Lourdes! Rápido ou devagar? — aumentava papai o tom da voz.

— Devagar.

— Os pais,dele sabem que você vai com ele?

— Sei lá mãe, devem saber.

Eles se entreolhavam e vinha a parte que me matava por dentro:

— Me dá o telefone desse Digo, Maria de Lourdes. Quero falar com a mãe dele.

E então minha mãe telefonava para a mãe do namorado em questão e ficava séculos falando não sei o quê.

Que mico!

Uma hora depois...

— Conversei com ela, Armando. É menino direito, responsável, cabeça no lugar. Acho que tudo bem.

— Tudo bem? — dizia, empolgada. — Posso ir?

— Não. Ainda quero saber uma coisa. Vai mais alguém no carro

com vocês?

— A Alice, a Duca e o Fernandão, pai.

— Isso não é um carro, é uma lotação, não é, Maria de Lourdes? —

irritava-se minha mãe.

— Melhor assim, Ângela. Não vão fazer nada no carro com tanta

gente em volta. Se é que você me entende...

— Isso é. Bem pensado, Armando.

— Já rolou sexo, filha?

— Pai!!!

— Claro que não, Armando! Não, né, filha?

— Mãe!!!

— Bom, se rolar não vai fazer burrada, usa camisinha! Tenho uma aqui, toma...

— Paiêêê!

— Deixa de ser burra, menina, pega! Finge que eu nem tô vendo!

— Pai! Pára com isso! — berrava eu, roxa de vergonha.

— A que horas você pretende voltar?

— Tarde.

— Tarde que horas?

— Não sei, mãe! Tarde, tarde.

— Tarde o quê? Uma, duas horas da manhã?

— Claro que não, pai! Uma hora a gente deve estar chegando à festa.

— Sem cogitação — dizia minha mãe.

— Por que tão tarde? — inquiria meu pai.

— Porque tudo é tarde hoje em dia.

— Que tipo de festa é essa? — questionava minha mãe.

— É a festa de um amigo do Digo.

— Que amigo? — insistia meu pai.

— Um amigo de infância dele.

— Onde?

— Na Barra, pai.

— Na Barra? Do outro lado do mundo, meu Deus! — exclamava minha mãe. — Você não vai rachar a gasolina com ele, não, né?

— Não, mãe. Os pais dele pagam a gasolina...

— Melhor assim.

— E então. Posso ir?

— Pergunta pra sua mãe.

— Pra mim, não, pergunta para o seu pai!

E sempre, num momento dessa interminável discussão, tocava o

telefone. Dessa vez, claro, era o Digo.

— Oi, Malu, tá pronta? Tô passando aí daqui a uma meia horinha, tá?

— Não passa, não.

— Por que não?

— Porque ainda não sei se vou. Meus pais não decidiram se vão me deixar ir.

— Fala sério, amor!

— Tô falando. Eles estão há três horas e meia pensando.

— Quer que eu fale com eles?

— Tá doido?

— Eu não vou à festa sem você...

— Ô, lindo...

— Eu te amo.

— Eu também...

— "Eu também" o quê? — quis saber a enxerida da minha mãe, liga da na conversa.

— Ele deve ter dito que ama a Malu, Ângela.

— Ou que estava contando com ela para uma noite pervertida num motel, até as cinco da manhã. Nossa filhinha num motel, num daqueles quartos cheios de bactérias e cuspe, ai, que nojo! Não vai entrar em piscina, hein, Maria de Lourdes!

— E usa a camisinha, finge que você que comprou, não precisa dizer que eu te dei!

Caraca! Estava difícil conversar.

— Digo, eu tenho que desligar. Eles estão aqui do lado viajando na nossa conversa.

— Eles estão mais propensos a deixar ou a não deixar?

— Não tenho a menor idéia.

— Jura?

— Juro.

— O que será que ela jurou? — ficou curioso meu pai. — Espero que não tenha jurado que vai fugir com ele. Vocês não têm dinheiro. Lembre-se disso. Ninguém vive de amor sem dinheiro, não, minha filha! Amor embaixo da ponte não existe!

— Armando! E se ela tiver jurado que vai fazer tudo o que ele quiser da próxima vez que se encontrarem? E se ele quiser fazer "aquilo" sem proteção? Já pensou, Maria de Lourdes aparecendo grávida aqui em casa? Não estou preparada pra ser avó, não!

— Malu, seja qual for a decisão deles, eu apóio. São seus pais, eles querem o melhor pra você. A gente tem que ouvir os nossos pais.

— Eles deviam confiar mais em mim.

— Ih, não tô gostando desse Digo — murmurou minha mãe.

— Nem eu — concordou meu pai. — Deve estar metendo minhoca na cabeça dela.

Não acreditei no comentário surtado.

— Não se esquece que te amo, tá?

— Ô, mô, eu também.

— Eu também amo minha filha! Amo muito a minha filha! MUITO! Diz isso pra esse Digo, Maria de Lourdes!

— Ele ouviu, mãe. Eu não preciso repetir, você tá berrando.

— Daqui a pouco eu te ligo, Digo.

— Você que vai ligar? Fala sério, Maria de Lourdes! Vai gastar o

meu dinheiro com esse garoto? Telefone custa dinheiro, sabia?

Eu estava quase perdendo as esperanças de sair com o meu Digo. Exausta de tanto interrogatório, precisava dar um ultimato neles:

— E aí, gente? Eu tenho que me arrumar. Posso ou não posso ir?

Minha mãe pensou, pensou, pensou...

— Ele já disse que te ama?

— Várias vezes. Só nesse telefonema disse duas vezes.

— Só? — chocou-se minha mãe.

— Você merece mais, filha.

— Arrã.

Silêncio. Mais silêncio. Silêncio, silêncio, silêncio.

— E aí?

— E aí o quê?

— Como assim "e aí o quê", pai? Posso ou não posso ir?

Os dois se entreolharam. Meu pai coçou a barba malfeita. Minha

mãe estalou os dedos e fez uma sugestão.

— Você não prefere jogar baralho? A gente chama seus irmãos e

faz uma jogatina das boas.

— Nossa, suuuuuper tentadora essa proposta, mas eu continuo preferindo ir à festa — debochei.

Mais silêncio. Até que minha mãe disse de supetão:

— Pode ir.

— Pode? — indignou-se meu pai.

— Deixa a menina ir, Armando! Não vai acontecer nada de ruim

com ela. Vou rezar pra Santa Teresinha pedindo proteção...

— Tá maluca? Qual o time dele?

— Fluminense.

— É uma pessoa bacana, então! — exclamou meu pai e fez uma

longa pausa. — Faz o tipo briguento?

— Não.

— Isso é bom...

Novo silêncio.

— Quer café, Armando?

— Ótima idéia, Ângela. Se tem uma coisa que gosto em você é seu café.

— É uma delícia, mesmo. Açúcar ou adoçante?

— E aí, gente? Dá pra decidir?

— Não sei se você deve ir a essa festa... Muito longe... — insistiu meu pai.

Chato!

— Armando, isso é crueldade, o menino está vindo buscar a Maria de Lourdes, decide logo!

— Por que eu?

— Porque isso é com você!

— Comigo, não! Com você!

Meu pai quedava-se mudo. Minha mãe quedava-se muda.

Mas era ela quem sempre tomava uma atitude.

— Vai se arrumar, Maria de Lourdes.

— Oba!

— Ah,é? Bom, se acontecer alguma coisa com a nossa filha a culpa vai ser sua, você sabe.

— Armando!

— É isso, sim!A responsabilidade é toda sua...

— Mas...

Nesse dia narrado fui à festa com o Digo. Na maioria das vezes, eu saía e eles continuavam brigando em torno da decisão por horas a fio.

Algumas vezes eu chegava em casa e os dois estavam no sofá da sala, xícara de café na mesa, esperando por mim e balbuciando palavras, de olhos fechados, quase dormindo:

— Não devíamos ter deixado...

— Não, mas isso é com você.

— Comigo, não. Com você.

 

Terminar é difícil.

Terminar sempre foi uma das coisas mais difíceis pra mim.

Sou do tipo que fica inventando uma desculpa atrás da outra para não baixar a auto-estima do chutado da vez. "O problema não é com você, é comigo", "Você é ótimo, eu é que sou difícil", "Tá tudo perfeito, eu é que não estou num momento muito legal",

"Você é especial. Merece uma pessoa muito melhor que eu” e coisas ridículas do tipo.

Não dá pra ser sincera nessas horas. Jamais conseguiria dizer para alguém:

"Eu não estou mais a fim de você", "Você beija mal", "Você é chato pra caramba", "Não costumo gostar de quem não gosta de banho", "Você é cafona, mimado, repetitivo e chulezento" ou "Conheci uma pessoa muito mais interessante que você".

Com o João Alfredo foi assim: amanheci gostando dele, fui dormir meio cansadinha do nosso namoro, acordei no dia seguinte decidida a terminar tudo.

— Jura que você vai terminar agora? Perto do dia dos namorados? — alertou Alice.

— É... Muito cruel, né? Ele vai ficar mal... — admiti.

— Nada disso, sua anta! Vai deixar de ganhar presente. E ele é ótimo de presente!

— Ai, Alice! Tô nem aí pra presente! Quero é que ele não fique magoado comigo!

— Ele vai ficar. Já viu alguém que leva pé na bunda entender o pé na bunda? Malu, num término, sempre um fica bem e o outro péssimo.

Com esse super incentivo da minha melhor amiga, decidi terminar depois do dia dos namorados.

Uma semana passou e nada de criar coragem pra dizer: "Está tudo acabado entre nós."

Três semanas depois eu ainda estava com o João Alfredo, com zero coragem de dizer que não queria mais nada com ele.

Quatro semanas e eu, covarde até a raiz dos cabelos, não tinha botado o ponto final na relação e ficava me enganando:

— Eu estou dando mais uma chance a ele. Ele é tão fofo, gosta tanto de mim...

— Mas você não gosta dele. Eu, hein, Malu! Que perda de tempo!

Tantos gatinhos disponíveis e você grudada em um de quem só gosta como amigo.

Era verdade. A paixão pelo João Alfredo passara muito mais rápido do que eu gostaria. Comecei apaixonadíssima, os olhos brilhando, o coração batendo forte... Ele era bacana, gente boa, paciente, carinhoso, tinha o maxilar tão bem definido... Mas, quando vi, a relação estava mais fria que um iceberg. Do nada. Sem motivo nenhum, passei a olhar diferente para ele.

— Você enjoou dele, Malu, assume! — Alice foi sincera.

— Ai, Alice! Que grossa!!! — estrilei.

Mas era a mais pura verdade. Eu tinha enjoado do João Alfredo.

Como é que a gente consegue enjoar de uma pessoa?

— É porque ele não é O cara! Se fosse, você estaria ainda mais apaixonada por ele — opinou Alice. — Você tem que dar logo um fim nisso. Pra mim, você não está se enganando. Tá é enganando o pobre do garoto, enrolando o coitado.

Era verdade. Eu precisava tomar uma atitude.

— João Alfredo, não fica triste. Mas eu preciso ficar sozinha um tempo. Tô numa fase muito chata, um momento muito meu, e nem estou na TPM. Tô decidida a terminar com você, vai ser melhor pra nós dois, você merece uma pessoa muito melhor do que eu — ensaiei mil vezes com o espelho antes de ligar pra ele.

Liguei, com o texto na ponta da língua. Ele estava no hospital com o pai que tinha tido uma dor de cabeça fortíssima e estava internado para uma batelada de exames. Lá fui eu para o hospital encontrar com ele, que estava arrasado, tadinho.

Não terminei, claro.

Em duas semanas, o pai dele estava em casa firme e forte. A dor de cabeça era o princípio de uma virose, mas depois ficou tudo bem.

— Ai, Malu! Que crueldade você querer terminar agora. Agüenta mais um pouquinho! O menino deve estar assustado ainda com o negócio do pai, precisando de carinho... — opinou Alice.

Fiquei mais um mês com ele. Dois meses sem paixão — e sem coragem.

— Malu, quero levar você pra um lugar especial hoje — disse João

Alfredo.

Glup! Lugar especial? Caraca! Será que ele vai me pedir em casamento?, tremi. Era só o que faltava! Terminar namoro já era difícil, imagina noivado!

Fomos para um lugar na Barra cheio de barzinhos lotados de gente feia e barulhenta. Ele era péssimo de lugares especiais.

Sentamos em um que, tragédia das tragédias, era de música ao vivo. Realmente, aquele namoro precisava acabar, ele não tinha nada a ver comigo.

Nunca entendi bar de música ao vivo. O cara fica lá cantando musiquinhas chatinhas e todo mundo ignora e fica conversando como se o cara fosse invisível. Qual o propósito de bar com música ao vivo? Ouvir a música não é, porque não dá com tanto falatório em volta. Conversar também não, é impossível com uma música tão alta. Já saí de um lugar desses completamente sem voz de tanto berrar pra me fazer entender pelas pessoas. Resumindo: ODEIO bar com música ao vivo. Show é show, bar é bar.

Mas o João Alfredo gostava.

— Adoro esse cara — revelou, referindo-se ao péssimo cantor que

cantava péssimas músicas.

— Ah, tá — desanimei-me por completo.

— Eu quero conversar com você, Malu — começou, num tom acima do normal, pra que eu conseguisse escutá-lo.

Oba, é a minha deixa!, vibrei.

— Eu também, João Alfredo!

— Quê?

Falei bem alto:

— EU TAMBÉM QUERO CONVERSAAAR!!!

A hora era aquela.

— Eu gosto muito de você, João...

— Quê?

— EU GOSTO MUITO DE VOCÊÊÊ!

Ele não disse nada, apenas sorriu. Fofinhoooo!

— Você é um garoto maravilhoso...

— Meu cabelo é oleoso?

— NÃO! VOCÊ É UM MENINO MA-RA-VI-LHO-SO!

— Ah... que é isso...

— É verdade... Eu me sinto privilegiada por você gostar de mim... — Quer comprar um guaxinim? — Ele franziu a testa, tentando me ouvir melhor.

Nem consegui corrigi-lo. Chegou o garçom com nosso aipim frito e refrigerantes.

— Então, como eu estava dizendo... — tentei continuar.

— Pára! Adoro essa música — emocionou-se fortemente quando o cara começou a cantar uma canção com batida de axé que rimava "Ana" com "banana” e era o cúmulo da ruindade.

Pior é que não só ele sabia a letra. A galera do bar acompanhava tudo com palminhas empolgadas e vozes desafinadas.

Fiquei chocada. Que garoto cafona! Preciso terminar tudo, mesmo que eu fique com peninha dele. E é agora!. decidi.

— Você é tudo de bom — comecei.

— Você também — devolveu.

— Gosto de você de verdade, mas...

— Mas a gente não nasceu um pro outro.

— Quê?!

— A GENTE NÃO NASCEU UM PRO OUTRO! — repetiu bem alto.

— Sério? — assustei-me.

— Sério. Acho que não tem nada a ver a gente como casal.

— Sua gente te faz mal? Que gente é essa?

— A GENTE NÃO É UM CASAL LEGAAAAL — berrou ele.

— A gente é sim! — disse, sem pensar.

— Não é, não! A gente se gosta como amigo...

— Mas a gente é feliz junto... — reagi, de novo sem pensar.

— Eu sei, o problema não é com você! É comigo!

Não!!! Conheço essas frases! Essas frases são minhas!!!

— Você é uma menina especial, mas...

Droga! Ele veio com essa de especial... Eu ia levar um pé na bunda!

— Você também é especial! — gritei.

— Malu, quando as coisas não vão bem a gente tem que pular fora.

— Você quer ir embora? — fingi que não o tinha entendido.

Ah! Quem precisava botar o ponto final era eu! Eu estava esperando meses por aquela hora! Eu!!!

— Não! Quero que você vá embora! DA MINHA VIDA! — exaltou-se. Fiquei chokita. Chokitíssima. Isso não é uma frase nada legal de ouvir. Fiquei alguns segundos muda,com o queixo caído e os olhos arregalados, assimilando a grosseria...

— Como é que é?! — Foi tudo o que consegui verbalizar.

— TÔ DIZENDO QUE QUANDO O NAMORO ESTÁ UMA DIARRÉIA A GENTE TEM QUE TERMINAR! — gritou com todas as suas cordas vocais. Bem no intervalo entre uma música e outra.

Pronto. O bar inteiro sabia que meu namoro estava uma diarréia. E que palavra horrível! Que palavra mais descabida! Diarréia era

ele! Eu que devia estar dizendo tudo aquilo!

Só que com muito mais classe, com certeza. A diarréia ia passar

longe da nossa conversa.

Depois do constrangimento de ver toda a Barra da Tijuca olhando

pra mim ao mesmo tempo, resolvi me manifestar:

— Olha aqui, João Alfredo, fique sabendo que eu estava querendo

terminar com você há um tempão!

— Tá bem, Malu... — reagiu, sem acreditar em mim.

— É sério, há séculos eu não gosto de você!

— Arrã — debochou.

Ai, que raiva! Por que eu não terminei antes?

— Por que você não terminou antes?

— Pra não magoar você... Achei que você estava super apaixonado por mim.

— Apaixonado?! Nunca fui apaixonado por você, Malu. Você até que é gata e tal, mas nunca bateu nada mais forte, sacou?

— Que mentira...

— Malu, desculpa, mas eu cansei de você do dia pra noite.

Grosso!

— Eu também.

— Então beleza.

Ai, que odiooo!

— Beleza nada! Aturei você por tanto tempo só pra não te magoar e agora descubro que você é um cavalo em forma de gente.

— E você é uma fresca.

— E você, um idiota.

— A gente se odeia, é isso?

— É isso! Você é de última!

— Não sou boa coisa, mesmo. Todas as meninas dizem isso.

Chocada, com a raiva estampada no meu semblante, fiquei olhando para um lado e ele para o outro. A música de fundo? Aquela que o Roberto canta: "Você foi o maior dos meus casos, de todos os abraços o que eu nunca esqueci."

Quer música mais nada a ver que essa?

— Vamos pedir a conta? — finalmente ele quebrou o gelo.

— Por favor.

— Hoje eu pago tudo. Nada de dividir.

— Nossa, muito obrigada — ironizei.

— Não fica assim, Malu... Foi legal enquanto durou.

— Eu sei.

— A gente só não combina um com o outro.

— Eu sei disso também. Há mais tempo que você, aliás.

— Quero que você seja feliz e encontre um cara muito mais legal

do que eu.

— Não se preocupe, isso vai ser facílimo. Vamos?

— Vamos. Mas... assim, sem nem um beijinho de término?

Beijinho de término?

— Tá maluco, João Alfredo? Fala sério, João Alfredoooo!

 

                                              19 ANOS

 

Terminar é difícil 2

Como contei na história anterior, terminar nunca foi meu forte.

Quando queria encerrar uma relação, era sempre um martírio. Às vezes eu esfriava o namoro aos poucos, até o cara se tocar e me dar um pé na bunda. Mas com o Vlad, um fofito que conheci quando tinha 12 anos (e ele 19), era diferente, eu não podia ficar enrolando o menino. Meus pais eram amigos de longa data dos pais dele, ele me conheceu pirralhésima e, claro, não me dava a mínima. Quando eu era pequena, achava o cara tudo na vida: musculoso, boca grossa, furinho no queixo, sorriso sempre no rosto, olhos amendoados... Um petáculo!

Quando ele reparou em mim como mulher, nem acreditei.

Achei que para ele eu seria eternamente uma criança.

Nossa história começou linda. Primeiro ele me chamou para jantar num restaurante japonês, que eu amo. Jantamos, tomamos saquê, rimos muito, relembramos nossas histórias... Na hora de me deixar em Coisa, ele não me beijou. "Que fofooo! Faz o tipo romântico!", vibrei por dentro.

No segundo encontro, fomos a um restaurante super aconchegante e romântico, bebemos vinho, comemos massa, olhamos nos olhos, rimos, falamos e tal e coisa. Na despedida, nada de beijo. De novo. No terceiro dia que nos vimos, o ritual se seguiu: restaurante com tudo do bom e do melhor, mas nada de beijo.

Ele sequer demonstrou para mim que queria me beijar, não aumentou o ar-condicionado do carro para eu morrer de frio e ele dar a desculpa de que queria me esquentar, não inclinou o corpo pra frente, não puxou nenhum assunto mais apimentado. Nada.

Saí do carro com mil interrogações na cabeça: "O que é que eu

estou fazendo de errado? Será que tenho que aumentar o decote? Será que vou ter que tomar a iniciativa? Será que estou com mau hálito? Será que ele é gay?"

Poxa, logo agora, em pleno século XXI, quando homens e mulheres não se sentem culpados ou julgados por poder beijar tudo e todos, ele estava fazendo jogo duro? Justo comigo, que gosto tanto de beijar, sou tão beijoqueira! Que mundo injusto e cruel!

Na quarta vez, eu não agüentei e puxei o assunto no restaurante:

— Vlad, eu acho melhor a gente conversar sobre a gente... — disse

essa frase horrível e cafona, mas precisava entender o que passava

pela cabeça do cara! — Você é superfofo, romântico, rola um clima bacana, mas nada acontece. O que você quer comigo? Ser meu amigo é que não é, amigo não gasta tanto em restaurantes caros com outra amiga se não tiver segundas intenções... — fiz graça.

— Caramba! Não esperava por isso.

Ô-ou... Peguei pesado demais!, eu me recriminei.

— Mas é que...

— Não precisa explicar nada, você está certíssima. É que... Bom...

Eu estou muito balançado por você, Malu. Cada dia mais. E pra falar a verdade, tô achando tudo muito estranho, muito novo... Até outro dia você era uma menininha de olhos grandes e brilhantes e agora você é um mulherão que me deixa tonto, confuso, abobado...

Caraca! O Vlad me acha um mulherão?! Tô boba!, pensei. E o "muito balançado"? Que frase de novela! Nunca achei que alguém dissesse isso na vida real. Nunca achei que ouviria isso. Mas foi tããão lindo!

— Ó, Vlad... Confuso com o quê?

— Com meus sentimentos... Quero ter certeza deles, e dos seus,

para ninguém sair machucado. Afinal de contas, antes de tudo eu sou seu amigo, nossos pais são amigos, e quero continuar com essa amizade se a gente não der certo.

Dling-Dlong!, tocou a campainha da paixão na minha cabeça. Que menino maduro, centrado, com frases perfeitas e coerentes... Nunca tinha saído com alguém que se expressasse tão bem com palavras.

— Eu gosto muito, muito de você, Malu. Muito mais do que achei que pudesse gostar.

Meu Deus!!! Eu estava prestes a berrar: 'Tá bom, já entendi! Agora cala a boca e me beija!" Mas não berrei. Nem precisei.

Meus olhinhos encantados devem ter dado a entender que tudo o que eu queria era um beijo dele.

Beijamos. E foi um beijo tão gostoso!

Mas eu sou tão chata... Gostava de achá-lo impossível, inalcançável, de tê-lo como minha paixão platônica... Quando Vlad se tornou realidade, o calor que ele me dava virou uma banheira de água fria.

— Ó, garota chata! — exasperou-se minha mãe. — Eu não sei o que você quer da vida, sabe. Maria de Lourdes? Quando está solteira, reclama que está sozinha. Quando arruma um namorado perfeito, reclama do namorado. Ele é o par ideal, Maria de Lourdes. Todo mundo queria estar com ele. Vladimir José sabe pregar botão, minha filha! Sabe lá o que é isso?

— Vlad, mãe, Vlad, por favor. É por isso que o menino tem apelido.

— Apelido medonho. Vladimir José é tão imponen...

— Mais um Vladimir José e eu termino AGORA com ele!

Minha mãe calou-se. Meu pai veio em casa intervir.

— Por que deu tanto mole pro cara se ia dispensá-lo um mês depois? Mulher é tudo igual, viu? — irritou-se meu pai.

— Você dizia quando era pequena que queria casar com o cara, agora que ele está derretido por você, você vira uma bruxa e quer terminar sem motivo aparente, só porque ele agora gosta de você? Francamente, Malu!

— Caraca, pai!

— Seu pai está certo. A gente tem que gostar de quem gosta da gente, depois vai ficar uma velha encalhada e rabugenta.

— Menos, Ângela. Menos. A menina tem só 19 anos, falta muito para ser uma velha encalhada.

Não teve jeito. Nada reacendeu a chama da paixão dos primeiros dias. Eu achei que fosse durar mais, sempre acho que vai ser pra sempre, mas não foi. E eu não ia ficar com ele só porque meus pais queriam.

Chamei-o para sair, criei coragem e disse num só fôlego:

— Vlad, eu te adoro, mas não posso mais continuar com você.

— Por quê?

— Acho que sou muito criança pra você, você precisa de uma mulher mais madura, que não pense tanto em shows e festas e não faça os testes das revistas femininas.

— Mas...

— Você está noutra fase da vida... Trabalhando, não mora mais com os pais, paga suas próprias contas. Eu sou um bebê perto de você... Quem sabe a gente não dá certo mais pra frente, hein?

— Tá bom. Você tá certa — respondeu, com a cabeça baixa e um fiapo de voz. — Concordo com tudo o que você disse. Estamos em fases diferentes... — completou, meio choroso.

— Ô, Vlad... Não fica assim...

— Ô, Malu... Desculpa... É que eu gosto tanto de você. tanto, tanto... — declarou-se enquanto beijava minha mão. — Vou demorar a me recuperar desse baque, mas prometo que vou continuar seu amigo. você vai ver... Da sua amizade eu não abro mão.

Óóóh! Essa última frase partiu meu coração.

Antes de ir embora, ele me abraçou apertado e eu comemorei internamente o melhor término de toda a minha vida. Como são civilizados os homens acima dos 21!

Civilizado, mas tristinho. Vlad saiu bem borocoxô lá de casa e me bateu a maior dor na consciência. Tadinho. podia ter ficado com ele mais um pouco. Ele era tão fofo comigo, tão romântico... Dormi pensando em ligar pra ele no dia seguinte e. quem sabe, reatar aquele namoro perfeito. Lindo. Especial. Minha mãe devia estar certa. Eu sou uma chata mesmo, nunca estou satisfeita com nada.

No dia seguinte, saí com as minhas amigas para debater o término. Fomos ao cinema, compramos o ingresso e fomos tagarelar na lanchonete enquanto esperávamos o começo da sessão.

— Vocês acham que eu ligo? Ele ficou tão arrasado...

— Chorou?

— Chorou! Eu vi gotinhas caírem dos olhos dele.

— Óóóó! Que lindooo! — berrou Alice. — Nunca nenhum garoto chorou por mim. É meu sonho!

— Eu amo menino que chora! — acrescentou Duca.

— Eu também. Isso é sinal de que ele te ama de verdade — disse Nanda.

— Eu sei, eu sei. Ele me ama, me ama muito. Tadinho, e eu fui uma vaca terminando com ele sem nenhum motivo... Deixei o Vlad tão triste, tão cabisbaixo... Vai demorar para ele se recuperar.

— É tão bom ter alguém que goste da gente, Malu.

— E o Vlad te ama. Acho que você era a mulher da vida dele.

— Será? — empolguei-me com a idéia de ser a mulher da vida de

alguém. Que coisa mais adulta!

— Vou sair daqui e ligar pra ele. Vou dar mais uma chance pro menino, né?

— Malu... talvez você não precise ligar...

— Você acha melhor falar essas coisas ao vivo, olhando no olho, né, Alice?

— Hum... Não exatamente... É que você pode falar com ele aqui,

mesmo... Discretamente... dá uma olhada para aquele casal se amassando em frente à vitrine da loja de jóias. Não é o Vlad?

Era. Era o Vlad, o insensível, desumano, idiota e nada apaixonado

Vlad. Aos beijos com uma loura de cabelo de palha com uma saia que mais parecia um cinto de tão curta.

— Piranha. Piranhuda! — exclamei.

— Ele tá entrando com ela na loja de jóias! — alertou-me Nanda.

— Vai dar pra ela a aliança que queria ter dado pra você — irritou-me Duca.

Num ímpeto imbecil, levantei-me e fui lá falar com ele.

— Aí, Vlad.

— Malu! Que surpresa!

— Surpresa estou eu! Você não disse que ia demorar para se recuperar do nosso término, que gostava muito de mim e blablablá? Cadê?

— Cadê quem?

— Aquele cara que saiu da minha casa ontem triste e com lágrimas nos olhos?

— Ué, não foi você que disse que estávamos em fases diferentes?

Concordei com você e segui seu conselho: procurei uma mulher mais madura. Essa aqui é a Cibele. Tem 29 anos.

— Vinte e oito, amor — corrigiu a vaca loura.

— Pois é, é mais velha que eu, não mora mais com os pais, paga as próprias contas...

Deixei o estúpido falando sozinho. Homens... argh!

 

             É cada um que me aparece... 5

Estou na praça de alimentação devorando sem culpa um sanduíche engordativo enquanto espero minha mãe e Malena voltarem do banheiro. Sujeito bonitinho se aproxima.

— Sozinha?

— Tô esperando minha mãe e minha irmã que foram ao banheiro.

— Opa, vou conhecer a sogrinha, então? — engraçou-se o sujeito

bonitinho.

— Rããrrããã-rãã-rãã... — ri um riso forçado. Podia não ter rido, mas ri, era um sujeito bonitinho e sujeitos bonitinhos, mesmo não sendo meu tipo preferido, contam pontos no currículo.

— Que é que tu faz? — perguntou, me irritando profundamente.

Nada me irrita mais do que "tu" mal empregado.

— Jornalismo. E você?

— Biologia marinha. Adoro o fundo do mar.

Comecei a olhar com outros olhos para ele. Além de bonitinho o

sujeito estudava o mar e suas criaturas, era uma pessoa da natureza, o que é praticamente sinônimo de pessoa do bem...

— Que máximo!

— Máximo é você. Tu é linda demais, sabia?

Ui, o "tu" de novo me irritando. Deixei passar mais uma vez.

— Obrigada. .

— Eu também não faço feio, não, né? O povo da faculdade me chama de Clark Kent.

Fiquei chocada com o comentário narcisista e emudeci.

— A identidade secreta do Super-Homem! — fez questão de explicar.

— Eu sei...

— PÔ, aí, tô apaixonado. Tu é linda demais...

Ô-ou. Mesmo elogio, mesmo tu... Comecei a desconfiar que sujeito bonitinho era um sujeito sem assunto.

— Não dá pra se apaixonar tão rápido. Você nem me conhece...

— E preciso conhecer melhor? Tu é linda. Linda, linda, linda.

Definitivamente, sujeito bonitinho era um sujeito completamente sem assunto.

— Gosta de baleia? — quis saber ele.

— Nunca parei pra pensar nisso, mas acho que gosto...

— Acha que gosta? Acha? Fala sério! Baleia é demais! Aquele bicho gordo, de nado manso, mamífe dos mar. Meus amigo tudo são louco por baleia.

Pára! Pára tudo! Mamife? Ele disse mamife dos mar em vez de mamífero dos mares! Meu Deus do céu! Sujeito bonitinho era um sujeito burrinho! Meus amigo tudo? Que é que é isso? E o cara estava na faculdade! Como essa pessoa passou pra faculdade? Pra onde caminha a humanidade?

— Ih, olha aí, coisa linda. Olha quem tá chegano! É a minha sogrinha. E tá com a minha cunhadinha — disse, assim que viu mamãe e Malena se aproximarem da mesa. E falou chegano, mesmo. Não é erro de digitação!

— Já sei de quem tu puxou tanta beleza...

— Mãe, esse é o... Nossa, não sei o seu nome.

— É Odilavi.

— Odilavi? — assustou-se Malena.

— Por quê?! — assustou-se mais ainda minha mãe.

— Eu ia me chamar Osvaldo em homenagem a um tio. Mas esse tio morreu pouco antes de eu nascer. Aí minha mãe não quis deixar de fazer a homenagem, mas ficou com medo de o nome trazer o fantasma da morte para um recém-nascido. Então, como o contrário de morte é vida. Nascimento. Nada melhor para saudar uma vida nova que o nome do homenageado... ao contrário. Por isso, em vez de Osvaldo, ela me batizou de Odlav. O ‘D’ e o ‘V’ são mudos, mas se diz Odilavi.

— Não deveria se chamar Odlavso? — quis saber minha mãe.

— É. Mas ela resolveu tirar o outro ‘O’ e o ‘S’ para garantir que nenhuma energia ruim ia se aproximar de mim. E também pra não ficar esquisito — explicou.

Diante das nossas caras boquiabertas, ele acrescentou:

— A galera acha estranho, mas eu acho maneiro, só conheço eu com esse nome, sogrinha.

— Sogrinha é qualquer uma, menos eu, Od... Odvaldo, Odiemo, Od... Odseilá — brigou minha mãe. — Vira pra cá, Maria de Lourdes, shopping não é lugar pra ficar de conversinha com estranhos.

Assim que virei as costas para o sujeito bonitinho de nome esquisitinho, sussurrei:

— Valeu, mãe! Você me salvou!

— Imagina se eu ia deixar você ficar de conversê com uma pessoa com esse nome? Era só o que me faltava. "Maria de Lourdes, você aceita Odlav como seu legítimo esposo?" Nossa, acho que eu ia desmaiar no altar.

Não acreditei no comentário. E também não resisti:

— Fala sério, mãe!

Rolamos de rir juntas do episódio, e eu continuei solteira por um bom tempo depois dele.

 

Viva a empada!

— Diz pra sua mãe que ela não precisa se preocupar. O meu pai busca a gente e te leva em casa depois.

— Sério? Ele não se importa de acordar no meio da noite só para pegar a gente?

— Que nada, ele adora.

O diálogo acima aconteceu com o Gustavo. Namorado com quem

eu estava saindo havia pouco mais de um mês.

A minha mãe urrou de felicidade quando contei que agora eu tinha um namorado cujo pai adorava, com ênfase na palavra adorava, buscar os filhos nas baladas. Os filhos e as namoradas dos filhos.

— Deus abençoe esse doido! Agora vou conseguir fazer o que eu sempre quis à noite: dormir — disse minha mãe.

Até parece. Ela nunca conseguiu dormir antes que eu chegasse em casa.

A gente ia para uma rave em Vargem Grande, longe à beça da Tijuca. A minha mãe levou a gente e reclamou da lonjura, das roupas das pessoas, da cara das pessoas, do som bate-estaca ensurdecedor que dava pra ouvir a alguns quilômetros do local da festa, do preço do convite...

— Veja você se isso lá é hora de chegar em festa. Meia-noite e meia! Meia-noite e meia! Isso é hora de criança dormir.

— Mãe, onde é que tem criança aqui?

— Agora é assim, tia, tudo começa tarde.

— Olha lá onde você está se metendo, hein, Maria de Lourdes? Isso aí tá parecendo um antro de perdição.

— Um o quê?

— Relaxa, tia. Eu tomo conta dela — disse o fofo do Gus.

— Isso é que me preocupa — respondeu ela, irritada. — Não beba nada que te oferecerem, não fume nada, não cheire nada, não coma nenhuma balinha bonitinha... enfim, acho que você já é grandinha o suficiente para saber o que as drogas podem fazer com uma pessoa.

— Caraca, mãe! Acho droga caído! Já te disse mil vezes! Minha única droga é mate, cê sabe! Não precisa se preocupar, tá?

— Ah, tá, agora que você pediu pode deixar que eu não me preocupo — debochou. — Juízo, hein?

Entramos na rave. Música boa, gente bonita, bebida gelada. Dançamos, encontramos vários amigos, conversamos, beijamos muuuuito, nos divertimos horrores.

Às quatro horas da manhã fomos esperar o pai do Gus na porta do sítio onde estava rolando a festa.

— Olha a empada do Manel! Empada quentinha! Empada fresquinha! Empada gostosinha! Empada do Manel, a preferida das bonitinhas e dos bonitinhos! — berrava a voz impostada que saía do altofalante de um carro amarelo estampado com empadinhas e com uma empada gigante presa ao capô.

— O povo não perde a chance de faturar um extra, né?? — comentei com Gus. — Brasileiro é um povo interessante. É só ver festa, público, que logo arruma um jeito de vender alguma coisa.

— Ele não veio vender empada, não. Tá só avisando pra gente que chegou.

— Você conhece o empadeiro?

— O Manel das empadas? Claro!

— Desde quando você conhece esse cara? Por que você conhece esse cara?

— Conheço o Manel desde que nasci. Ele é meu pai.

— Fala sério, Gus! — disse eu, ainda não acreditando que meu sogro tinha (e usava!!!) um carro-empada.

— Não te contei que meu pai é o Manel das empadas?

— Não! Contou só que ele era comerciante.

— Empadas fresquinhas! Empadas quentinhas! — continuava a berrar a voz que saía do alto-falante daquele carro amarelo-ovo, que andava a dois quilômetros por hora.

Eu estava roxa de vergonha. Uma empada-gigante tinha ido me pegar na porta de uma rave movimentadíssima! Na frente de todos os meus amigos. Que mico!

— Nunca imaginei que o negócio do seu pai fosse empada. Achei que ele tinha uma loja.

— Nada. Ele é engenheiro e foi demitido sem muita explicação da empresa onde trabalhou por mais de 15 anos. Sem grana, resolveu começar um negócio novo pra poder sustentar a mim e aos meus irmãos.

— Nossa... Que história... E que humildade, que força de vontade! É preciso ter muita coragem pra começar do zero... Ainda mais fazendo empada pra vender na rua...

— Pois é. Muitos amigos dele, orgulhosos, continuam batendo nas portas das empresas em busca de um emprego. O meu pai, não. Ele sempre foi um cozinheiro de mão cheia e, junto com a minha mãe, resolveu preparar empadas e vendê-las na porta de escolas, faculdades, cursinhos... Tem dado muito certo.

— Caramba... E... Você não fica envergonhado de andar nesse carro? — perguntei, meio sem graça.

— No começo eu morria de vergonha. Quase me joguei embaixo de um ônibus quando ele foi me pegar na escola com esse carro pela primeira vez. Todo mundo me zoou.

— Tadinho de você, Gus...

— É, mas hoje tenho o maior orgulho do meu pai — logo apressou-se em dizer. — Foram as empadas que fizeram com que ele voltasse a sorrir e a ganhar dinheiro. Depois delas meu pai se sentiu mais pai, sabe?

Fiquei emocionada.

Ele continuou:

— E o melhor é que ele não tem chefe. Ele mesmo é seu patrão, não tem que puxar o saco de ninguém, ele é que decide os horários em que vai trabalhar, com quem vai trabalhar, como vai trabalhar, que sabores vai preparar... Meu pai é outra pessoa desde que começou o negócio das empadas. Desculpa não ter te avisado, Malu. Não achei que você ia ficar com vergonha...

Fiquei com vergonha.

De mim.

— Relaxa. Foi só o susto. Já virei fã do seu pai — admiti, sincera.

— Vai uma empada aí? — perguntou Manel das empadas, quero

dizer, tio Manel, sorrisão no rosto, ao estacionar perto da gente, às quatro da manhã.

— Fala, paizinho! — disse Gus, deixando-me totalmente derretida por seu carinho com o pai.

— Qualé, moleque? E aí? Dançaram muito?

Não conseguimos responder. Dois caras meio bêbados se aproximaram da janela. Achei que iam falar alguma besteira, zoar da nossa cara, mas em vez disso:

— Tem de palmito?

— Claro — respondeu, feliz, tio Manel das empadas.

— Vê duas, por favor?

— Só se for agora! — respondeu ele. Já saindo do carro para pegar as empadas na mala.

Depois chegou mais um casal, depois mais um grupo, e mais outro e, quando vi estava, às 4h30 da manhã, vendendo empadas em Vargem Grande para "bonitinhos" e "bonitinhas" esfomeados. Eu, o Gus e o tio Manel. E ainda comi muitas empadas de comissão.

Ao contrário do que eu podia pensar, não fiquei com nenhuma vergonha. Essa coisa de mico é ridícula. Às vezes a gente acha mico uma coisa que de mico não tem nada. Tio Manel era um vencedor, como tantos brasileiros criativos que têm por aí. E eu fiquei muito orgulhosa de poder ajudá-lo junto com o meu gatinho naquela noite. Como diz minha mãe, vergonha é roubar. E a gente, além de vender e ganhar dinheiro honestamente, se divertiu à beça. Ô, noite bacana!

 

O primeiro a gente nunca esquece

Eu estava, havia oito meses com o Gus, totalmente amorzinho, totalmente grudadinhos, passávamos os dias juntos, depois da faculdade ou eu ia para a casa dele ou ele para a minha, uma paixão infinita. E ficávamos juntos a tarde inteira falando bobagem. Namorando, vendo filmes, namorando, comendo pipoca, namorando, comendo empada, namorando... Um dia, ele me pediu uma massagem nas costas. Comecei a massageá-lo, ele ficou relaxado, relaxado, bem relaxado e... o inesperado aconteceu.

— Depois de oito meses de namoro, ele soltou o primeiro pum na minha frente! — contei para Duca, Alice e Nanda, que reuni na minha casa no mesmo dia do episódio flatulento.

— Oba!!! — Alice bateu palminhas, toda alegrinha. — Agora isso virou um namoro sério!

— Você soltou um logo depois?

— Claro que não, Duca!

— Devia. Nessas horas é legal um pum amigo, um pum solidário...

— Pra quê? — perguntei.

— Para o pum do outro não ficar tímido, ué. — respondeu, séria.

— Ai, eu acho que não quero fazer parte dessa conversa... — reclamou Nanda, devidamente ignorada por nós.

— Foi barulhento ou silencioso? — quis saber a troglodita da Alice.

— Ai, tomara que tenha sido barulhento, o silencioso ninguém merece! São os piores! — disse Nanda, nojinho puro.

— Foi barulhento, gente.

— Longo ou rapidinho?

— O primeiro foi rápido...

— Teve mais de um?

— Foram dois, Nanda — revelei um tanto constrangida, ajudando as meninas a devorar um brownie de chocolate. Sim, nós estávamos comendo enquanto tínhamos esse diálogo.

— Dois?! Isso que é intimidade! Sinal que ele se sente suuuper à vontade com você! Viva o peido do casal! — comemorou Alice.

— Eca, Alice! – recriminou Nanda. — Tomara que meu namorado nunca fique tão à vontade comigo.

— Por quê, sai chata? Sinal de que o Gus estava de bem com a vida, totalmente apaixonado, relaxado...

— Relaxou tanto que soltou punzo duas vezes — disse Nanda, enjoada.

— Punzo? — reagiu Duca.

— Eu me recuso a dizer aquela outra palavra.

— Peido? Ah, fala sério, Nanda! — riu Alice.

— Vamos mudar de assunto, gente? — tentou Nanda.

— Não! — respondemos em uma só voz.

— E a reação dele? Como foi? Como foram os segundos seguintes? — indagou Duca.

— Foi estranho, mas também foi muito engraçado.

— Engraçado como?

— Ah, a única coisa que eu consegui dizer foi: “Até que enfim, amor!”

— Jura que você disse isso?

— O que é que você ia dizer, Alice?

— Que nojo, amor! — sugeriu Nanda.

— Que fofo, amor! — disse Alice.

— Fala sério, amor! — opinou Duca.

Rimos juntas do rumo que a conversa estava tomando.

— O que foi que ele disse depois do “até que enfim”? — perguntou Alice.

— Ele fez piada: “Mô, não sabia que você estava esperando ansiosamente por esse dia. Posso fazer isso todo dia pra você.”

— Ele estava de frente ou de costas pra você? — questionou Duca.

— De costas, eu estava massageando os ombros dele.

— Jura? Ele estava com o punzador voltado para você? Eceeeca! — exclamou Nanda.

— Punzador? Pára, Nanda! Bunda não é uma palavra feia, é até bonitinha. — bronqueou Duca.

— Conta, Malu! Depois que ele fez a brincadeira, como ficou o clima?

— Ele riu, todo vermelhinho de vergonha. Eu ri com ele. Ele pediu desculpas, eu dei um monte de beijinhos nele e a gente ficou abraçadinhos um tempão.

— Fedeu? — quis saber Nanda.

— Não. Ele é tão iluminado que até o pum dele tem cheiro de luz. Ou seja, não tem cheiro. É... O pum do meu namorado não fede nem cheira.

— Pára! — divertiu-se Duca.

— Que mentira! — riu Alice.

— É sério! Tá, pra não dizer que não teve cheiro, posso contar pra vocês que o pum do Gus deixou o quarto com aroma de... jasmim.

— Jasmim?! — indignou-se Duca.

— Eu sabia que a paixão era cega, mas que ela não tinha olfato... isso é novidade! — Nanda encerrou o assunto.

 

                               20 ANOS

 

Gente intrometida

A minha mãe e a minha avó sempre gostaram de buraco. Uma vez por semana elas se reuniam com as amigas chegadas a um carteado para jogar e botar conversa fora. Encaravam aquilo como um jogo sério, mas também um momento para beber vinho e tagarelar como se não houvesse amanhã. Em alguns dias a casa ficava lotada, com uma mesa da Terceira Idade (que minha avó preferia chamar de Melhor Idade) e outra da Gostosa Idade (como minha mãe se referia aos 40 e uns dela e das amigas). Eu, claro, tentava arrumar algo pra fazer na rua e não ser abduzida para o mundo do baralho. Quando não conseguia, ficava no quarto com meus irmãos navegando na web ou jogando algum videogame.

Num desses dias de carteado eu estava bem tristinha. O palhaço do Cadu, meu namorado de uns quatro meses, tinha saído com os amigos na noite anterior e eu só soube no dia seguinte. E ele não foi para um programinha masculino, tipo Maraca ou jogo de sinuca, não! Foi para um barzinho cheio de gente bonita no Leblon, não me levou sei lá por quê. Disse que ia ficar em casa estudando. Palhaço! Mil vezes palhaço! Ele só não esperava que uma amiga minha estivesse no mesmo lugar. Ela me disse que ele estava todo animadinho, todo sorrisos, alegre, feliz como nunca, cercado de amiguinhos idiotinhas.

Poxa, ele podia ter me dito que ia sair com os amigos, né? Eu não ia ficar chateada, nunca fiz o tipo ciumenta, ciúme não é a minha praia, sempre achei que ambos os lados merecem ter momentos únicos com os amigos. Mas como ele não contou, pior!, mentiu!, eu estava pau da vida.

O meu celular tocou. Era o palhaço. A Malena estava ao telefone

há horas com uma amiga, então saí do quarto pra falar no corredor.

— Custava ter me dito a verdade? — fui logo dizendo.

— Que verdade? — o palhaço cínico se fez de palhaço desentendido. — Que em vez de ver um filme comigo você preferia sair com seus amigos?

— Como é que é? — indagou o palhaço, bancando o indignado.

— Eu sei de tudo, Cadu. Sei que você estava ontem à noite no Leblon com aquela camiseta com uma prancha estampada que eu te dei, com o Zé, o João, o Thiago e o Lucas.

— Fala sério, amor! De onde você tirou essa idéia? — dissimulou o palhaço.

— Não vem com fala sério, amor pra cima de mim, não, Cadu! E pára de mentir porque eu odeio mentira! A Clarisse me contou tudo!

Nesse momento, senti que o burburinho da sala, onde estavam minha mãe, minha avó e amigas, havia parado por completo. A sala agora parecia uma biblioteca, silêncio total.

— Que fofoqueira! — entregou-se o palhaço.

— Fofoqueira nada! — indignei-me.

— Ela é sua amiga, isso sim! — gritou minha avó da sala.

Levei um susto.

— Homem é tudo igual, não presta desde novinho — concordou Zélia, amiga da família há anos.

Resolvi aproveitar a deixa.

— A Clarisse é minha amiga! Ela só quer o meu bem!

— Ela quer separar a gente, isso sim! Invejosa! Barangona!

Encalhada! — enfureceu-se o palhaço.

— Eu vou virar sapatão e namorar a Clarisse! Fala isso que assim esse idiota pára de atormentar você, Maria de Lourdes! Não enche o saco, garotão de meia-tigela! — gritou dona Amelinha, uma velhinha empinada, ex-bailarina, que sempre pareceu ser a mais recatada e elegante de todas, num surto que me surpreendeu e me deixou de olhos arregalados.

— Nada disso! Volta pra camiseta! Que audácia! Onde já se viu? Uma tremenda falta de respeito ele ir pra gandaia com os amigos fanfarrões com uma camiseta que você deu com tanto amor! — opinou dona Ruth, de uns 75 anos, que eu nunca tinha visto na vida.

— E pede ela de volta! Se estiver em bom estado eu dou pro meu afilhado — berrou Odete, amiga de anos da minha mãe. .

Achei ótima a sugestão das senhoras que estavam completamente envolvidas na minha discussão amorosa.

— Precisava ter ido com a camiseta que eu te dei? Se você tivesse ficado com alguém a minha camiseta agora estaria com o cheiro da mocréia. Uma camiseta tão linda, que eu te dei só porque você gosta de pegar onda.

— Mas é péssimo surfista! Péssimo surfista! Fala isso, Maria de Lourdes! — gritou minha mãe.

— Mesmo sendo péssimo surfista! Péssimo surfista! — disse eu, feliz por espezinhar o palhaço após o conselho materno.

— Não peguei ninguém, Malu — assegurou o palhaço. — Nem ia pegar, não fui com essa intenção.

— Então por que foi com a camiseta? Você sabe que fica bem gatinho com ela.

— Só peguei porque era a primeira da pilha na gaveta — respondeu o palhaço insensível.

— E por que não me chamou pra ir com vocês? — quis saber eu.

— Por que esses pastéis estão tão murchos, hein? São de ontem, Ângela Cristina? — quis saber minha avó.

— Claro que não, mamãe, fiz hoje à tarde.

— Estão uma porcaria. Uma por-ca-ri-a! — estrilou Zélia.

— Não é de admirar que com uma mãe relaxada dessas a Maria de Lourdes seja relaxada nos relacionamentos.

— Dona Amelinha! Que absurdo! Eu não sou nada relaxada!

— É, sim, senhora, não discuta comigo! Relaxada, relaxada, relaxada! Olha aí, sua filha também é e por isso o cara meteu um par de chifres na testa dela — concluiu dona Amelinha.

— Dona Amelinha! Eu não sei se ele me chifrou! — reagi, exaltada, tapando o telefone para que o Cadu não ouvisse.

— Tadinha, Maria de Lourdes é do tipo que vai sofrer com homem pro resto da vida — decretou Zélia.

— Ah, isso vai — concordou Odete.

— Droga! Não devia ter jogado fora o ás de copas! Podia ter feito uma trinca.

— Cala a boca, Zélia! Pára de entregar o jogo! — manifestou-se Odete. — Dá pra ouvir a conversa da Maria de Lourdes e jogar ao mesmo tempo! Atenção nas cartas!

Precisei intervir de novo, dessa vez, apareci na sala para acalmar a mulherada exaltada que metia a colher no meu relacionamento.

— Gente! Eu tô falando! Silêncio, por favor! — pedi, irritada. — E então, posso saber por que você não me chamou, Cadu?

— Porque eu estava com o Thiago. E você não gosta do Thiago. Ele queria conversar e...

— Quem disse que eu não gosto do Thiago? — perguntei.

— Caguei pro Thiago! Caguei baldes pro Thiago! — berrou dona Amelinha, inflamada, do alto dos seus quase 100 anos.

Ignorei essa parte.

— Thiago é um libertino! Um libertino! — opinou minha avó, com as vísceras.

Ignorei essa parte também. Até porque não tinha idéia do que era libertino. E a minha avó não conhecia o Thiago.

— A base de uma relação é a sinceridade, Cadu — desabafei.

— Boa, Maria de Lourdes! — apoiou-me Suzana, amiga de poucos dias da minha mãe, quietinha até então. — Esse vinho tá com gosto de vinagre, hein?

— Tá, é? Comprei na promoção...

— Eu te avisei, Ângela Cristina, eu te avisei, vinho em promoção é uma porcaria! Vai dar dor de cabeça em todo mundo! — enfatizou minha avó.

— A gente sempre contou a verdade um pro outro — disse eu, já meio zonza com tanto bafafá. — E agora? Como é que eu vou fazer pra confiar em você novamente, hein?

— Hein? — exaltou-se Zélia. — Repete, Maria de Lourdes!

— E meus sentimentos, como é que ficam? Você acha que eu sou um capacho que você pisa, pisa e eu continuo te amando? Não mesmo! Eu sou uma menina de respeito, muito direitinha! Vai cantar em outro galinheiro, seu safadinho! — disse dona Amelinha.

— Vai catar coquinho! - gritou dona Ruth.

— Fecha a canastra, Ruth! Ô, gente, presta atenção no jogo! — exasperou-se Odete.

Aquela discussão com tantas participações especiais estava me enlouquecendo. Fui para a sala novamente e pedi silêncio para a mulherada.

— Shhhh!!!! — fiz, enérgica.

Voltei para o corredor.

— Então, Cadu, como eu estava dizendo...

— Está tudo acabado entre nós! — gritou minha mãe, ignorando meu apelo de silêncio.

— E não me procura mais! Seu delinqüentezinho sem caráter, devasso e mentiroso! — acrescentou minha avó. — Minha filha, essa samambaia está horrorosa, você não tem mão pra planta, impressionante. Tsc, tsc, tsc... E pensar que eu sou ótima com tudo o que é verde, que desgosto...

— Eu sou péssima dona de casa, mamãe.

— Ah, isso é mesmo. Não foi à toa que Armando te largou. Maria de Lourdes vai pelo mesmo caminho. Não vai ter homem que agüente essa menina — rogou minha avó.

Ainda sem acreditar que estava naquela situação nonsense, tentei ignorar as vozes da sala e continuar com o Cadu:

— Acho que a gente precisa conversar ao vivo...

— Pra quê? Ô, garota burra! — gritou dona Amelinha.

— Vai voltar pra ele que nem um cachorrinho. Mulher é tudo igual, viu? — completou Odete.

— Pára, gente! Ele é meu namorado! E tem que se explicar direito — eu pedi a compreensão das senhoras, que a essa altura tinham esquecido a jogatina. O meu diálogo estava muito melhor do que o marasmo das cartas.

— Quem é que tá aí? — perguntou o palhaço.

— As amigas da minha mãe e da minha avó.

— E suas amigas! Só queremos o seu bem! Vimos você nascer, te pegamos no colo e trocamos muita fralda sua suja de cocô. Diz isso pra esse traidor, Malu! — acrescentou Zélia.

— Malu, não, Zélia. Maria de Lourdes, por favor — corrigiu minha mãe.

Ignorei as duas.

— A gente pode se ver amanhã?

— Pode — respondeu o palhaço, mais calminho.

— E leva todos os presentes que eu, idiota, comprei pra você com a minha mesada. Quero tudo de volta — gritou minha mãe.

— Eu te amo — declarou-se o palhaço, meloso.

— Eu não sei se te amo mais.

— Claro que eu não te amo mais! Eu não te amo maaaaaiiisss!!! Ó, garota buuurra! — xingou-me de novo dona Amelinha. Suuuuper fofa. Continuei com o Cadu:

— Preciso olhar no seu olho e entender o porquê dessa mentira. Eu não tolero mentira.

— Eu não perdôo mentira! Perdôo tudo, menos mentira, seu bostinha! — meteu-se dona Amelinha de novo na minha conversa. — Perdoar é muito mais forte que tolerar! Maria de Lourdes é péssima nos argumentos. Ó, garota sem iniciativa! Sem vocabulário! Não acredito, Zélia, você deixou passar o quatro de paus!

— Você tá muito brava comigo? — quis saber o palhaço, fazendo voz de criança carente.

— Brava, triste e magoada.

— E me sentindo traída! Traída, seu filho-d...!

— Dona Amelinhaaa! Olha a boca! A Maria de Lourdes não fala palavrão! — irritou-se minha mãe. — As discussões dela são no salto alto! — orgulhou-se.

Taí uma verdade. Nunca baixei o nível nas minhas discussões. Sou uma barraqueira muito chique.

Desliguei o telefone e voltei para a sala, exausta. As vozes femininas e suas opiniões exacerbadas ainda ecoavam na minha cabeça.

As mulheres estavam paradas, olhando para mim, em silêncio, esperando uma frase, uma atitude, um sorriso.

— Vocês, hein? Não perdoam, mesmo!

Elas riram orgulhosas.

— Obrigada pela ajuda. Vocês foram nota mil. Um pouco intrometidas demais, mas nota mil.

— E vê se segue nossos conselhos, hein, Maria de Lourdes? Odeio dar conselho pra uma pessoa e vê-la fazer exatamente o contrário. Nada me irrita mais do que isso — disse dona Ruth, aquela que eu nunca tinha visto na vida.

No dia seguinte, continuei sem entender por que o Cadu não me disse que ia sair com os amigos e terminei com ele.

E ainda pedi a camiseta de surfista pro afilhado da Odete, que (pasme!) ligou pra cobrar.

 

                                   21 ANOS

 

Frases que eu adoraria ter dito, mas nunca disse

Conversando com a Duca, a Alice e a Nanda chegamos à conclusão de que sempre engolimos frases que adoraríamos ter dito para os garotos ao longo da vida.

— "Você beija mal." Nossa! Adoraria ter falado isso para o Ricardo — confessou Nanda.

— Ah, eu não. Eu adoraria ter dito para o Maurício, aquele mauricinho de cabelo penteadinho que só falava e pensava nas qualidades, na comida e no amor de sua querida mamãe, duas frases. As duas perfeitas: "Sua mãe é chata pra caramba! E tem um bafo que Deus me livre!" — revelou Alice.

— E o Afonso? Que só depois de duas semanas com ele descobri que ele nunca tinha lavado a calça jeans que usava todo dia? Adoraria ter dito: "Lavar a calça jeans é bom de vez em quando, sabia?"

— Pô, Malu, o apelido do cara era Uma Calça, só você não sabia! — riu Alice.

— E pro Heitor? O que você gostaria de ter dito, Duca?

— "Você é bem burrinho, hein?"

— E eu ia emendar com "é supérfluo, não supérfulo!” — impliquei. Rimos juntas do namorado anta da Duca.

— "Hoje estou a fim de brigar sem motivo nenhum! Caramba, por que é tão difícil entender isso?" — disse Alice.

— Ah, isso eu gostaria de ter dito pra todos — admiti.

— Pra mim, a melhor coisa não dita é: "Outro ursinho de pelúcia? Fala sério! Eu não gosto de bicho de pelúcia desde que tinha 12 anos! Só serve pra acumular poeira!"

— Pra quem é essa, Nanda?

— Pro João, que me deu 18 bichos de pelúcia em duas semanas. — Também, o pai dele era dono de loja de brinquedos, você queria o quê?

— Pois é, nem gastava dinheiro comigo o palhaço.

— E para o Olavo, que vivia me pedindo para espremer as espinhas dele? Adoraria ter dito: "Meu queridinho, eu não preciso ver aquelas coisas brancas e nojentinhas saírem de você. Existe um profissional chamado dermatologista. Quer o telefone do meu?"

— Putz, falou tudo! Ninguém merece espremer espinha de namorado! — concordei plenamente.

— Para o Diogo eu queria ter dito na hora de terminar: "Tô a fim de beijar outro." Ia ser muito mais sincera — comentou Duca.

— E para o Zé, que tinha aquela pança medonha e cabeluda? Quem me dera ter dito: Lamento, fofito, mas você não passou no teste da praia... fica péssimo de sunga. Vaza" — divertiu-se Alice.

— Já pensou se a gente sempre dissesse a verdade? Quantas vezes não íamos ter dito “Vou dar meu telefone errado; não estou nem um pouco a fim de ver você de novo".

— Milhõõões de vezes, Malu! — concordou Nanda.

— Tem outras frases maravilhosas! — opinou Duca. — Por exemplo...

— "Você tem um chulé pavoroso." Essa era perfeita para o Felipinho.

— E eu adoraria ter dito para o mala do Sampaio, que era viciado em rock: "Eu gosto de algumas músicas sertanejas, sim, e daí? Vai encarar?" — disse eu.

Rimos juntas. Como é bom falar bobagem com as melhores amigas.

— Eu tenho uma frase ótima pra Malu — disse Alice.

— Qual? — perguntei.

— "Sou meio vaca às vezes."

— "E solto pum de manhã. E não é cheiroso, não" — completou Nanda.

Fiz cara de brava, mas não resisti e caí na gargalhada. As duas frases retratavam a mais pura verdade.

— Para quantos caras vocês não gostariam de ter dito: "Hoje não vai rolar nada porque eu tô fazendo charminho e bancando a difícil. Amanhã ou depois rola, tá?" — perguntou Duca.

— Pra vários! — respondi.

— Sabe o que eu queria ter dito para o Dedé?

— Sei: "Você parece um esquilo desorientado quando dança; fica sentado, por favor?" — falei pela Nanda. .

— Mas a sua frase preferida, a que você mais disse na vida, é: "Fala sério, amor!"

— Que é isso, Duca? Nunca disse isso!

Elas se entreolharam, engoliram o riso e disseram em coro:

— Fala sério, Malu!

 

                                                                                Thalita Rebouças 

 

 

                      

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