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No instante em que me sentei à máquina de escrever para iniciar às primeiras páginas de FALENCIA DAS ELITES, eu sabia a responsabilidade que assumia perante o enorme público que acompanhou, no meio de imensa e até às vezes desconcertante polêmica, meu primeiro livro, intitulado "EU E O GOVERNADOR".
Quando este não menos despretensioso trabalho chegar às livrarias do meu pais, o livro "EU E O GOVERNADOR" terá sido adquirido por cerca de cem mil pessoas. Dai a responsabilidade que agora me perturba. E o ônus do sucesso.
"FALENCIA DAS ELITES" causará um destes resultados em minha vida: serei relegada totalmente ao ostracismo ou me consagrarei perante o público que devorou, durante meses, minha primeira obra.
Meu editor me disse que este livro, agora posto à venda, tem sido procurado diariamente pelo grande público. . .
Sei que há expectativa em torno dele.
Sei também que não posso decepcionar àqueles que acreditam na minha pessoa como escritora moderna, que foge da ficção e prefere retratar personagens reais, e histórias verídicas, episódios que ainda estão bem vivos na memória dessas figuras.
Talvez, por isto, não tivesse sido compreendida por grande parte dos críticos literários.
Os que esperam encontrar, igualmente, neste livro, uma obra literária de grandes méritos vão ficar decepcionados.
E preciso que todos compreendam, sobretudo -os críticos, que a mentalidade moderna não mais se adapta àqueles padrões literários que consagraram os grandes e inesquecíveis escritores do passado.
Afinal, o que transforma um livro num "bes-seller?
Algo, de urna forma ou de outra, deve necessariamente prender o leitor, fazê-lo discutir a obra, recomendá-la ou não, mas de certo modo despertar a curiosidade.
E impossível um livro ser por demais procurado durante meses nas livrarias, esgotando edições sobre edições, manter-se durante quase um ano no primeiro posto na preferência dos leitores, vencer todas as pesquisas de mercado, e seu conteúdo ser vazio, não encerrar alguma mensagem, algo que agrade sobremaneira ao público ávido de emoções diferentes.
Dirá o crítico — como, aliás, vários afirmaram — que a pornografia, no Brasil, atrai o leitor, e por este motivo volumes desse gênero agradam às massas. Nosso público seria então inculto. Não saberia apreciar as grandes obras literárias.
Por que, então, o sucesso estrondoso de "Os Insaciáveis", de Harold Robbins, nos Estados Unidos? Seis milhões de norte-americanos adquiriram esse livro, o que significa que pelo menos trinta milhões de norte-americanos devoraram aquela discutida obra.
Alguma coisa deve existir no livro, além das cenas fortes. E evidente.
E minha pergunta tem, obviamente, sua justificativa; seria o público leitor norte-americano inculto?
É lógico que o argumento válido para justificar o sucesso de "EU E O GOVERNADOR", pelos críticos brasileiros, deverá valer para justificar o sucesso de "Os Insaciáveis", nos Estados Unidos da América do Norte.
Já houve, aliás, quem afirmasse que não há livros pornográficos e sim leitores pornográficos. Pegue a carapuça quem o desejar. . .
Fui muito combatida.
"FALENCIA DAS ELITES" irá redobrar esse combate.
No primeiro livro toquei na chaga chamada política. Neste livro mexerei num tumor muito mais sensível e que, através dos tempos, sempre julgaram intocável: as elites privilegiadas.
O médico negro desta obra, assim como a maioria de seus personagens, é autêntico, de carne e osso. Vive em São Paulo e o que relato de sua vida realmente aconteceu.
As moças milionárias, internadas nos sanatórios para tuberculose, também existem. Conheço-as pessoalmente e foi nosso convívio que permitiu narrar esta história.
Por outro lado, o tom livre que procurei imprimir nas páginas deste livro, não esconde uma verdade: as elites têm nojo da miséria e dos pobres. Espezinham as classes menos favorecidas e evitam o seu contato, como se pertencessem a uma raça superior.
Denuncio, ainda, esta mentira que é apregoada por todos os jornais brasileiros: "Não há racismo em nosso país" .
Sem dúvida, não há racismo nos termos expressos da lei, mas na realidade o negro é evitado, humilhado e relegado, sob todos os aspectos. Esse sentimento é muito mais acentuado no seio das elites.
O que relato, envolvendo personagens negros e brancos, tem sido conservado em sigilo no âmago da nossa sociedade. De certa união nasceu um filho que foi colocado num asilo. Essa criança ignorará, para sempre quem são seus pais. . . Estes são os gestos generosos, fraternais, das elites. . .
Dos críticos literários não espero compreensão, nem imparcialidade. Não posso pedir algo que, de antemão, sei me será negado.
A compreensão eu somente a peço ao grande público, o mesmo público humano e esclarecido que consagrou minha primeira obra. e de tal maneira que hoje já percorre o mundo, traduzida na Inglaterra, enquanto que entendimentos estão sendo feitos com vários outros países do velho continente.
Em face desses não perdoarei, a mim mesma, se os decepcionar com a "FALÊNCIA DAS ELITES".
No asfalto escaldante das ruas de Pindamonhangaba, meus pés queimam dentro das botas de meio-cano de pelica preta. Sinto um calor bravio percorrer todo o meu corpo. Não posso compreender como, em pleno inverno, o sol possa estar tão ardente. Fiz mal em vestir o conjunto de napa. As calças de couro preto, bem justas, mal facilitam o meu andar. Acho que estou bem extravagante. Os olhares indiscretos que me analisam me dão conta de que estou realmente chamando a atenção. No meu íntimo, porém, sei que fiz uma enorme besteira: a Madre não vai receber-me com essa roupa. O pior, mesmo, é esse calor. Meu pescoço está todo molhado e gotas de suor brotam na minha testa. Como esse bondinho está demorando, meu Deus! Lá em cima sei que o clima vai ficando mais ameno e quando entrar mesmo em Campos do Jordão, o frio me fará esquecer esse suplício do asfalto de Pindamonhangaba.
Com que alegria entrei no velho bondinho! Novecentos metros de altura e meio caminho vencido... Subindo mais novecentos metros estarei vendo tudo o que deixei há mais de dez anos. Já não sinto mais aquele calor sufocante. O vento frio passa pelas frestas de madeira e me envolve. Sinto um arrepio sacudir todo o meu ser. As penedias das montanhas se aproximam. Mais além já posso divisar os maciços alcan-tilados, azulecentes, que formam com os "stratus", o céu privilegiado de Campos do Jordão. Nas curvas tem-se a impressão de que se pode até tocar nas montanhas, se os braços fossem esticados pelas janelinhas do pequeno bonde aéreo. À direita, outro panorama: cadeia após cadeia, até que estas se percam na infinidade de matizes verdes, dourados, prateados, azulados e cinzentos, juntando-se, lá no horizonte, ao anil do céu. À esquerda, lá embaixo, pode-se ver o prado morrer de encontro às águas profundas do Paraiba. Como adoro tudo isto! Que saudade imensa sentia dessas paisagens inesquecíveis e imorredouras!
Meus olhos se perderam, no infinito. Por momentos esqueci a beleza que me cercava. Voltei a atenção, inesperadamente, para mim mesma. Como me receberá a Madre? Vou buscar em Campos do Jordão o repouso que meu corpo reclama. Hoje volto com outro aspecto físico, embora magra. Não irei para os porões de indigentes do Sanatório S. Pedro. Será que o livro que escrevi e no qual contei tantas particularidades de minha vida, vai exercer influencia na solicitação que fiz à Madre? Ela me comprenderá ou, no seu íntimo, meu moral caiu muitos pontos? Bem, de qualquer forma tenho uma bela arma nas mãos: as cartas que recebi, na minha casa, em São Paulo, do frei Nelson Brunn, de São João do Meriti. Ele leu o livro e me enviou várias missivas de profundo conteúdo cristão. É o meu maior tesouro.
Os pensamentos foram cortados pela paisagem de Campos do Jordão. Há duas horas que viajava. Lá se acham os pinheirais, suas grimpas e rochedos, suas cascatas, suas frondosas pereiras, seus lagos, a orgia de suas cores. Avisto a Pedra do Baú, o Palácio Bela Vista. Passo pelo Hotel Toriba, pelo Sanatório São Cristóvão. E desço na parada dos " Sanatorinhos D. Leonor Mendes de Barros".
Incrustado num canto, à sombra da muralha esmeraldina das montanhas que se erguem imponentes, sobranceiras, escondendo-se dos olhos dos turistas, lá estava o Sanatório S. Pedro, onde consegui curar-me da tuberculose, e que agora me esperava para um estágio de alguns meses de repouso e recuperação.
O edifício de três pavimentos tem ao centro ampla escadaria de mármore. Cerca de duzentos apartamentos para doentes ricas e sessenta leitos para indigentes, nos porões. Fora, pouco distante do prédio central, havia uma espécie de motel para parentes das internadas ricas.
Os pinheirais que circundam o prédio gotejam orvalho, dobrando-se às fustigadas do vento. Um nevoeiro frio, sorrateiro, branco-acinzentado, eleva-se do solo. Acaricia-me como roçagante manto de pelúcia. O ar de Campos do Jordão penetra em meus pulmões e eu o aspiro às golfadas, num sentimento terno de alegria e agradecimento a Deus, por me conceder ver tudo isto de novo. Esgueiro-me entre pereiras e pessegueiros floridos, a fim de encurtar o caminho. Nas clareiras piso o musgo e as violetas que formam um jardim natural encantador. Penetro na pequena avenida fronteira à entrada do prédio. Fragmentos de pedras fazem com que o barulho de meus passos seja percebido pelo jardineiro Benedito, jovem preto, alto, forte, mas sempre cheirando a cachaça. Sempre tive medo do Benedito. Seus olhos são baços e seus dentes, os poucos que restam, apodrecidos. No canto da boca, o indefectível cigarrinho de palha apagado. Ele me reconheceu. Cumprimentei-o com um sorriso tímido. Fujo do seu contato. Busquei a estradinha e piso os degraus. Giro suavemente a maçaneta da grande porta de vidro e penetro na ante-sala. Envolvem-me, então, quatro braços, e meus ouvidos estalam com os gritos de Inês e Belinha: — Salve a escritora! Vimos da janela que você chegava. Há dias que estamos esperando S. Exa. A Madre nos contou seu pedido para repousar aqui em S. Pedro. Xiii! Como você está molhada, menina! Veio pelo mato, cortando essa neblina horrível?
Olhei-as, rindo. Deixei-as perder o fôlego. Já sabia que se achavam em S. Pedro. Tinham sofrido uma recaída. Eu as conhecera no tempo em que estivera internada. Depois ficamos juntas em São Paulo, e agora, entristecida, via que estavam novamente atacadas dos pulmões. Inês pertencia à família tradicional. Tinha recursos. Belinha já era de outro padrão. Mas eram as mesmas de sempre, alegres, esfuziantes, maliciosas. Em meio a um turbilhão de perguntas, ainda me foi possível explicar: — Vim mesmo para descansar. E se querem saber, encurtei o caminho passando pelo pereiral. Não quis saltar em Abernéssia. Preferi a estaçãozinha próximo do sanatório. Mas dei ordens para que a bagagem fosse descarregada na Vila. Amanhã vou buscá-la e darei uma olhada pela velha terra.
O dr. Walter não estava mais no Sanatório. Tinha ido para São Paulo. Agora as coisas ali haviam mudado radicalmente.
— Até "negligé" de rendas podemos usar, menina! — exclamava, Inês.
O sanatório estava com falta de médico. Nos casos de emergência, o atendimento vinha sendo feito pelo facultativo do S-3, um pronto-socorro do Governo, até que chegasse o novo tisiologista.
A direção do Sanatório havia conseguido, do Governo, a promessa de que transferiria, temporariamente, um médico da Secretaria da Saúde para o Pronto-Socorro. Esse médico ficaria à disposição, noite e dia, das enfermas de S. Pedro. Quando fosse feita a admissão do médico definitivo, o da Secretaria seria recambiado para a Capital. Em verdade, não era fácil conseguir-se um especialista que se sujeitasse a permanecer noite e dia na solidão do Sanatório S. Pedro, de Campos do Jordão, ainda que com polpudos salários.
— Há um clima de grande expectativa, querida. Todas desejam que o novo médico tenha olhos verdes, seja alto, moreno, com ou sem bigodes, não importa, — informava Belinha, exibindo um riso malicioso.
Como sempre, a chegada de novo médico era um acontecimento que assanhava as moças, especialmente depois que o doutor Walter se casou com uma das internadas.
Não sei quanto tempo ficamos, ali, na ante-sala, conversando. Nem percebemos a aproximação da Irmã Francisca. Era a secretária do Sanatório. Gorda, velha, mas simpática. Sempre severamente vestida de preto. Tinha, porém, para todas nós, um defeito que nos ener-vava: proibia tudo e só sabia dizer "não" aos nossos pedidos.
E, quando chegou, foi demonstrando que continuava a mesma de dez anos atrás: — D. Adelaide, a senhora conhece bem o nosso regulamento. . .
— "Não use calça comprida, não pinte o rosto, não use "base", não use "laque", não risque os olhos, não ande com "negligé" transparente — fui acrescentando, ao mesmo tempo que ria e contava as proibições nos dedos.
Irmã Francisca sorriu:
— ótimo. A senhora tem excelente memória. Vá, então, já, já, tirar essa roupa escandalosa. Onde já se viu? Que falta de respeito! Seu apartamento é o número 1 da ala "B". A Madre irá atendê-la somente amanhã.
E se retirou com a mesma solenidade com que entrara.
Olhamo-nos. Rimos baixinho.
— Virgem! Continua com a dignidade de tia-avó da Rainha da Inglaterra! — acrescentei — olhando para Inês e Belinha.
— E solteirona! — gritaram as duas em coro, debaixo de uma risada escandalosa.
Juntas saímos da ante-sala e penetramos num longo corredor. A esmerada limpeza chamava a atenção. Imensos "vitraux" coloridos completavam a estética daquela ala do sanatório.
No caminho para meu apartamento fui informada, pela Belinha, que a minha vizinha de quarto era uma sofisticada menina, eleita, no ano passado, "miss Guarujá".
— Carrega comitiva, Adelaide. Trouxe babá, governanta, enfermeira especial e até um noivo a tiracolo...
Cedo, pela manhã, a badalada fortíssima de um sino, manejado pela servente, envolveu todo o sanatório, penetrando com violência nos corredores de ladrilhos vermelhos. Pulei, assustada, da cama.
Já me esquecera do sino que precedia à comunhão de todos os dias às seis horas da manhã. Agora ouvia o padre rezando, ao mesmo tempo que levava a hóstia a todos os apartamentos dos doentes católicos. No meu tempo não gozávamos desse direito. Era considerada indigente, e, nos porões, o padre não ia. As doentes tinham que freqüentar a capela. Só os ricos podiam receber o sacerdote no quarto...
Iria receber Jesus como das outras vezes em que estive no sanatório? A voz do padre se fez alta, atravessou a porta do meu apartamento e extinguiu-se aos poucos. Cristo passou pela minha porta, mas sem entrar. Senti uma estranha angústia oprimir o meu coração. Quando haveria de recebê-lo novamente? Desde que saí do sanatório, nunca mais o vira.
Envolvi-me no cobertor. Estava sem roupas. Somente naquele dia iria buscar, na Vila, minhas bagagens. Abri as persianas do grande quarto de meu apartamento e saí para o terraço. Tudo como há dez ou doze anos... Campos do Jordão amanhecendo frio-renta, invernosa, a zero grau. Embora já fossem seis horas ainda estava escuro. Era sempre assim naquela cidade gélida. Quedei-me na amurada do pequeno terraço e esperei clarear totalmente o dia. Da treva já começava a repontar o branco da geada. De quando em quando o silencio era quebrado por uma tosse seca. Tosses secas de tuberculosas ricas... As sonolentas estrelas começaram a empalidecer, quando a lua agonizava no firmamento. O nítido contorno das árvores, os roseirais sem flores, as ondulações da serrania, tudo se foi tornando visível. Lá em cima, no cume da montanha mais alta, os raios pálidos e indecisos de sol tentavam atravessar a névoa plúmbea.
Não consegui ficar muito tempo mergulhada nos meus pensamentos. A porta do meu quarto se abriu e Belinha e Inês entraram, agasalhadas em. grossas mantas.
— Viemos aqui para tomar café juntas, Adelaide. Vamos também conversar um pouco. Ontem o cansaço a prendeu muito no quarto. Você chegou a vê-lo depois que lançou o livro?
— Inês, vim aqui para descansar e esquecer todos os acontecimentos que me afligiram depois que lancei aquele maldito livro. Às vezes sinto profundo arrependimento de tê-lo feito. Recebi os piores insultos do mundo. Muita gente não me compreendeu. Não, não quero falar de livros. Quero viver, tá bom?
— Mas, viu ou não viu o governador depois do livro?
Pensei um pouco. Olhei-a bem, com fixidez, e fui lacônica: — Não, nunca. Nem por fotografias em jornais.
— Você não acha que ele foi um covarde, renunciando?
Não. Não acho. Foi um ato de coragem. Ele sempre foi corajoso.
— Mas também ficou rico...
— Também é mentira. E para encerrar o assunto, vou relatar uma passagem ocorrida comigo na volta do Rio de Janeiro, no interior do avião, logo após o lançamento de meu livro na Guanabara. Viajava em com-painha de uma amiga e de um jornalista, que me ajudou muito no lançamento da obra. E foi ele quem me apontou um passageiro, sentado mais à frente: — Adelaide, aquele é o Giacomo Franco, das Indústrias Vigorelli. É amigo íntimo do seu decantado governador.
Meu amigo jornalista nunca apreciou o personagem do meu livro, mas era amigo de muitos amigos do governador. Fiz questão de conhecer o industrial. Feitas as apresentações, ele trocou de lugar com minha amiga e fizemos toda a viagem conversando sobre o governador de meu livro.
— Discordo de três coisas fundamentais na sua obra, Adelaide — disseme, de repente. — O governador não fica de cuecas perto de ninguém, pois tem um sinal muito feio na altura do fígado. Não é tão fogoso assim como você o descreve e depois ele não sabe nadar. .. Como é isso?
— Talvez tenha floreado um pouco. Nem sempre é possível relatar-se tudo como acontece. É preciso dar um certo sabor. .. Mas de uma coisa esteja certo, eu o conheço mais intimamente do que o senhor. ..
Ele riu alto chamando a atenção dos passageiros vizinhos.
— Você o viu depois da renúncia? — perguntou-me interessado.
— Não pessoalmente. Fiz chegar às suas mãos um pedido para que arranjasse um colégio para duas crianças pobres. Decepcionou-me, pois me mandou procurar dois deputados na Assembléia Legislativa... Parece que a experiência do passado não me serviu de lição... Um deles, me recordo bem, chamava-se José Sabiá. Disseme não, porque já tinha toda a sua verba pessoal comprometida com seus eleitores do bairro do Ipiranga. De outro nem sei o nome. É simplesmente um deputado. ... Bem que o Governador poderia ter pago o colégio. Afinal ele está milionário...
Giacomo Franco espantou-se com esta minha última afirmativa: — Adelaide, vou lhe contar algo. Você jura que não diz a ninguém? Jura, mesmo? Jura pela alma de seu pai?
E ato contínuo tirou do bolso um talão de cheques. Abriu-o e me apontou um canhoto.
— Está vendo esta importância de cinqüenta mil cruzeiros? Pois é a que dou todos os meses ao presidente. Há muitos amigos dele que fazem o mesmo. Faz parte de uma combinação que ajustamos à revelia dele. Quem lhe disse que ele está rico? É uma injustiça!
Olhei demoradamente o industrial. Gostei da sua sinceridade. Achei-o mesmo bastante simpático. Recordei, naquele instante, que toda a honestidade do Governador não servira para nada. Vi, com meus próprios olhos, como o Hotel Serrador estava repleto de deputados federais, quando lá estive hospedada durante os dias que precederam a minha Tarde de Autógrafos, na Guanabara. O Rio parecia Brasília. Lembrei-me, ainda, da visita que fizera ao diretor do jornal "O Globo" e na sala estava o deputado Armando Falcão. Ele me olhava com curiosidade.
— Gostei do seu livro. Li-o de um só fôlego. Varei uma madrugada inteira lendo — disseme o parlamentar.
Agradeci com um sorriso.
— Como é Adelaide, está gostando do Rio?
— É uma cidade maravilhosamente acolhedora, deputado. Mas às vezes chego a ficar tonta. Vejo tanto deputado que chego a pensar que estou em Brasília... Acho que os parlamentares deveriam trabalhar mais...
— Fazemos o que nos é possivel, moça. Brasília, para mim, é como o Hospital do Mandaqui do seu livro "Eu e o Governador". É horrível trabalhar naquela cidade. Você também não agüentava o Mandaqui, lembra-se?
— Mas eu pedi demissão, deputado. Deixei meu lugar para outro que queria trabalhar e não se importava com o ambiente.
Ele não gostou de minha resposta. Fechou o cenho. O dr. Roberto Marinho, que acompanhava em silencio nosso diálogo, quebrou seu mutismo, rindo alto ante minha afirmativa.
Tudo isto me passou pela cabeça no instante em que Giacomo Franco me afirmava que ele era um dos vários industriais de São Paulo que ajudava o ex-governador, mensalmente, com uma importância em dinheiro para que pudesse viver. Para que, afinal, tanto sacrifício?
— Eis, aí, Belinha, o que me ocorreu lembrar no momento em que você me falou que ele ficou milionário. Vamos agora encerrar o assunto?
Uma servente interrompeu definitivamente nosso bate-papo. A Madre me chamava.
Minha conversa com ela não foi longa. Pedi-lhe desculpas pelos trajes e esclareci que minha bagagem não viera comigo.
A Madre não mudara quase nada. Apenas mais algumas rugas sulcavam o seu rosto, mesmo assim, só no canto dos olhos. A mesma pele branca, a mesma voz pausada, carinhosa. O mesmo olhar meigo.
No princípio falou demoradamente sobre o meu livro. Não a interrompi, em sinal de respeito. Recriminou-me, em parte, e nossa conversa terminou com uma notícia que me revoltou: — Adelaide, acho-me no dever de lhe contar a insistência do pedido das famílias das doentes para que não a recebesse no Sanatório. Você sabe, todas as moças daqui são filhas daquilo que podemos qualificar de elites. Famílias católicas, de grande respeito. Sei que é digna de ficar entre nós. Por isso fingi ignorar tudo e você está aqui. Mas evite um contato muito prolongado com as doentes. Por qualquer deslise dessas maluquinhas as famílias podem culpá-la. Principalmente Inês e Belinha, as mais levadas, porém moças inocentes.
Tive vontade de explodir ali mesmo. A Madre, contudo, não era culpada. Com calma aparente retornei ao meu apartamento.
Inês ainda me esperava. Contei-lhe o pedido da Madre.
A explosão, veio, então, da própria Inês: — Sou uma revoltada contra mim mesma, Adelaide. O falso pudor dos meus pais gerou esse ódio que hoje sinto de mim própria. Todos sabem da depravação dos meus pais no Guarujá. É um dos casais que participa do "Jogo da Chave" com vários outros. Hoje sou uma semidepravada, tendo apenas 23 anos de idade. Os exemplos, eu os colhi na minha própria casa.
Olhei-a espantada. Aquele destempero me pegou desprevenida: — O que é o "Jogo da Chave", Inês? Você está ficando maluca? Odeia seus pais?
— Odeio-os, sim, Adelaide. Eles me largaram. Pensaram que o conforto, o dinheiro, o luxo exagerado, seriam suficientes para me proteger. Fui criada com babás e governantas. Fiz o que quis na infância e na adolescência. Os resultados são horríveis. Jogo da Chave, sim. Então não sabe? Pois vários casais se reúnem com suas esposas em luxuosos apartamentos no Guarujá. Cada casal coloca a chave do seu respectivo quarto num vaso. Cada homem tira uma chave. O fulano vai dormir com a mulher cuja chave corresponde ao quarto. Há briga quando a coincidência faz com que o esposo tire a chave do próprio aposento. Ele será, então, obrigado a se deitar com a própria consorte, em vez de ter a esposa do amigo! É uma vergonha. Meus pais adoram, no fim de semana, participar desse jogo. Meu pai se julga com muita sorte... nunca retirou a própria chave.. .
Nos olhos de Inês não havia uma lágrima, mas um ódio frio, tenaz.
Eu tremia, atônita, com a confissão escandalosa. Ela acrescentou: — Adelaide, vamos sair e catar turistas por aí. Quero beijá-los bastante, transformá-los todos em tuberculosos! Adoro fingir-me de conquistada e andar com esses palhaços que vem aqui com ares de sedutores.
Íamos chamar Belinha para sair juntas quando esta entrou em companhia de Diana, minha vizinha de quarto, e que fora, no ano passado, "miss Guarujá".
Era uma morena linda, cabelos longos, emoldurando o rosto harmonioso, profundamente branco. Seus olhos negros tinham pestanas longas. Os lábios carnudos e o nariz levemente afilado ccmpletavam-lhe a beleza. Alta, porém, magra, muito magra. A doença fizera seus estragos naquela corpo que deveria ter sido perfeito. Era bem jovem. Filha de sírios, nutria aversão por negros, preconceito que herdou da família. Seu pai, presidente de conhecido clube da Paulicéia, já fizera até um escândalo pelos jornais, quando proibira a entrada de pessoa de cor numa festa beneficíente do próprio clube.
Apertou minhas mãos e senti que estava gelada. Seu olhar vago e dúbio me causou apreensão.
Transferimos nosso passeio para o período da tarde, quando seria mais fácil sairmos juntas sem a Madre perceber.
Em Abernéssia dei umas voltas para rever conhecidos. Tomei mais tarde um táxi e fui à Vila Jaguaribe visitar uma amiga casada e que já tinha dois filhos. Despedi-me, na Vila, de Inês e Belinha.
Só à noite voltei ao Sanatório. Belinha já estava deitada. Soube que Inês ainda não regressara. Certamente passaria a noite fora.
Sentei-me e depois recostei-me nos travesseiros da cama. Cerrei os olhos e comecei a pensar em Inês.
Conhecera-a, havia dez anos, mais ou menos. Nessa época eu ocupava um quartinho, lá no porão, e Inês, curiosa, fora dar umas voltinhas para conhecer as indigentes. Foi assim que me viu e ficamos amigas. Uma atração tão normal quanto espontânea.
Trajava maravilhoso "negligé" azul. Nunca vira, então, coisa igual. Eu me sentia extasiada.
Inês riu e perguntou:
— De onde você veio, menina?
— Do "Asilo Casa da Criança e do Trabalho". Fica na rua Humaitá, 107, em São Paulo — respondi timidamente.
— Não tenha receio, Adelaide. È esse o seu nome, não é?
Com um aceno de cabeça, confirmei.
— Sou tão doente quanto você. Não é só nos asilos do governo que a tuberculose ataca. Em palacetes também. Ve? Você veste flanela e eu me cubro com peles caríssimas. Você é órfã e eu tenho pais milionários. Você não é culta, não tem nada, e está aqui porque alguém se apiedou de sua pessoa e lhe manda mensalmente algum dinheiro. Eu estudei nos melhores colégios, chegando mesmo a fazer curso na França. Nasci e vivo dentro da riqueza, fato que causaria inveja a muita gente. Nunca me preocupei com dinheiro. Trato apenas de gastá-lo. Tenho tudo isto, mas... mas ambas possuímos algo em comum, agora... Somos tuberculosas. Sou dona de tudo, mas dentro de mim não carrego nada.
Foi assim, que nasceu nossa amizade. Aos poucos fui sabendo tudo a seu respeito e, principalmente, a sua grande desdita: o noivo.
Inês morava num soberbo palacete da rua Peixoto Gomide. Tinha mais duas irmãs. Seus encontros com os pais eram esporádicos. A mãe cultivava a mania das festas beneficentes e nos fins de semana arranjava sempre um local para descansar com amigos, onde nunca faltavam os jogos. O pai era do tipo que fazia questão de fornecer cheques para as casas de caridade e instituições sociais, contanto que essas notícias fossem publicadas nas colunas sociais dos jornais e que a instituição lhe desse um recibo várias vezes superior à importância doada. É que desse modo obtinha um benefício pessoal junto ao Imposto de Renda...
Inês buscou, no noivo, a válvula de escape para a solidão em que se via aprisionada.
O sintoma da tuberculose foi uma quentura salgada, ácida, na garganta, que se espalhou pela boca. Quando sentiu a saliva grossa, cuspiu. Horrorizada, enxergou um sangue preto, espêsso, que se espalhou lento, como se fora azeite. Apavorada desceu as escadarias que davam para o andar térreo. Gritou pela mãe, cheia de ansiedade. Cruzou às tontas com uma dezena de criados. Seus pais, como sempre, não estavam em casa.
Foi à garagem e saiu depressa no seu carro, em direção à moradia do noivo. Tinha esperanças de encontrá-lo. Eram. apenas onze horas da manha. Supunha que ele não teria saído de casa.
Luís residia numa bela mansão de dois pavimentos, no aristocrático bairro do Jardim Europa. Inês nem chegou a desligar a chave do carro. Largou-o à porta da residência de Luís e entrou no prédio gritando pelo seu nome. Subiu as escadas, quando o avistou no alto da escadaria do pavimento superior. Atingiu estabana-damente o topo, percorrendo os degraus em lances duplos, chorando de modo convulsivo e lançou-se nos seus braços, sufocada por soluços: — Luís, estou perdida! Estou sendo devorada por dentro! Chamas me queimam a saem pela boca em forma de sangue! Luís, fiquei tuberculosa! Socorra-me! Pelo amor de Deus, socorra-me!
A princípio Luís se espantou. Depois, mais calmo, procurou consolá-la, não acreditando nas suspeitas da noiva: — Tolinha, você ainda é muito moça para se desesperar tanto. Vamos até o meu quarto. Vai repousar um pouco e verá como tudo passa. Vamos.
— Luís, eu vou morrer! Sei que vou morrer!
O jovem não respondeu. Enlaçando-a, fê-la caminhar em direção ao seu aposento. Ao mesmo tempo, com olhar frio, observava o seu aspecto. Ela estava pálida, mostrando grandes olheiras, respiração ofegante. Um suor estranho porejava de sua testa.
— Deve ser o calor, Inês. Vou ajudá-la a tirar o vestido e os sapatos. Logo, logo, você há de melhorar. Vai ver. . . Eu ficarei com você, não se preocupe.. .
Inês deitou-se apenas de combinação. Luís recos-tou-se ao seu lado, aproximando-se bem do seu corpo. Segurou-lhe fortemente as mãos. Acariciou-a, depois, com meiguice.
Um silêncio pesado envolvia o ambiente.
Gotículas de suor continuavam a deslizar por todo o corpo de Inês e sua respiração era cada vez mais ofegante.
— Talvez seja apenas um sintoma sem maiores conseqüências, meu amor. Vamos tirar também essa combinação... Talvez assim o seu calor passe...
Inês abriu os olhos e o encarou, compreendendo o que ele queria. Não se defendeu. Permitiu que Luís, devagarinho, lhe tirasse a combinação, deixando-a somente com as peças mais íntimas.
Sua mão morna, ávida, a acariciava por inteiro. Os olhos ardentes percorriam as curvas voluptuosas de Inês, nos seus belos e aparentemente viçosos dezesseis anos de idade. Dedos ágeis, inquietos, sôfregos, retiraram o seu "soutien" e viu, então, uns seios nédios, arredondados, perturbadores. Beijou-os, luxurioso. Acariciou as linhas macias dos seus quadris, a cintura torneada, as coxas esbeltas e alvinitentes.
Luís, aos poucos, foi também se despindo e, num êxtase erótico, procurou puxá-la para perto de si.
Inês sentiu o coração bater descompassado. Fitou-o com os olhos desmesuradamente abertos.
— Não, — protestou Luís — não tenha medo, sou sincero, cuidarei mesmo de você!
Ela sentiu sua intenção. Virou-se e o abraçou desesperadamente, para pedir que não a desrespeitasse. Tossiu na angústia do mal que por dentro minava seu corpo. A negativa morreu-lhe nos lábios. O sangue esguichou mais uma vez, encharcando todo o peito do rapaz.
Ele, como alucinado, deitou-se em cima de Inês. Suas narinas afiavam, dilatadas, e seus olhos esbra-seados tinham uma fixidez estranha. Uma dor aguda, dilacerante, fez com que ela gritasse. Nova golfada de sangue inundou sua boca e, afogada na hemoptise, Inês foi vigorosamente possuída pelo noivo. Ela choramingava, indefesa.
— Você agora será minha mulher, querida!
Inês não respondia. Limitou-se, com os olhos semicerrados, a sacudir devagarinho a cabeça, num gesto de abandono.
A cama era uma chaga monstruosa, de um vermelho escuro, quase preto.
— Inês, eu a amo desesperadamente... Quero que seja a minha esposa!
Sua voz era rouca, pastosa, tremula. Inclinou-se e beijou-a. Percorreu com seus lábios molhados o pescoço fino, os seios erectos, com bicos túmidos, róseos, da menina-moça.
Inês fechou os olhos, pensando.
— Ele será meu marido.
Uma semana depois ela estava internada no sanatório, à espera, diariamente, da visita do noivo.
Esta visita aconteceu numa tarde de sol flamejante.
O sorriso desapareceu dos lábios de Inês quando Luís chegou ao seu apartamento, no Sanatório S. Pedro.
— Por que me chamou? Não leu minha carta?
— Mas Luís, você enlouqueceu?
— Ora, Inês, para que fazer cenas? Já deixei bem esclarecido, na carta que lhe enviei, por que não posso me casar com você.
— Luís, agora há um filho no meu ventre! Você será o pai. Você sabe disso!
O jovem empalideceu e replicou mais violento: — Pai? Sei lá se o filho é meu?
Ela vacilou, recuando e encostando-se à porta do enorme armário embutido do apartamento.
— Você ficou louco mesmo, Luis. Desde que aconteceu aquilo conosco, eu vim diretamente para o Sanatório. Nunca mais saí. Como pode cometer uma ofensa torpe como esta?
— Sinto muito, Inês, mas não posso me casar com você. O melhor que você tem a fazer é tirar essa criança.
— Oh! Luís, pense nos meus pais, na minha família, em mim, na minha idade! Tenho apenas dezesseis anos!
A resposta de Luís demonstrou haver, no seu íntimo, intensa irritação: — Ora, vá pro inferno! Você se entregou porque quis, porque era uma garota fácil! Estava, na realidade, morrendo de vontade de ser possuída e, assim, se você se entregou a mim, poderá se entregar a outros homens que não conheço?
A resposta de Inês foi um desabafo cheio de ódio. Tirou a aliança do dedo e jogou-a desabridamente no resto de Luís. Nunca mais o viu.
O filho não nasceu. Foi para São Paulo e, numa maternidade da av. Paulista, abortou. Os pais souberam esconder todo o escândalo. Não houve sequer comentários.
Hoje o seu ódio aos homens é tão violento que se faz fácil, com o objetivo de contaminar todos os rapazes que dela se aproximam. É bonita, jovem, e se esforça para não se curar. Não quer nem saber dos pais: — Eles me transformaram na mulher devassa em que me converti, nos meus 23 anos de idade!
As internadas foram avisadas de que o novo médico chegaria domingo. Na véspera, já havia um movimento febricitante, aquele mesmo que caracterizava a ansiedade das moças que disputariam mais tarde o médico, num prélio amoroso cheio de lances pérfidos.
As jovens haviam combinado que esperariam o facultativo na escadaria de entrada do edifício, cada uma com um "bouquet" de flores de pereira nas mãos.
E foi realmente no domingo, cerca de dezesseis horas, que o médico chegou.
Naquele dia fui à Vila novamente, a fim de visitar minha amiga Mercedes. Pedira o carro emprestado à Belinha. Não sei por que, mas não desejava participar da recepção ao novo médico. Achava deslealdade. Não estava doente. Apenas buscara o sanatório para repouso. Procuraria chegar à tarde, assim já estaria terminada a homenagem ao novo doutor do Sanatório.
Um vento gélido, naquela tarde de domingo, açoitava Campos do Jordão. A neblina, adensando-se, já começara a cobrir os picos das montanhas. Campos do Jordão era assim mesmo. Uma tarde ensolarada, de repente, se transformava num dia farrusquento, e logo o russo(1) descia sobre a cordilheira, envolvendo tudo.
Resolvi voltar ao sanatório. Nunca é agradável dirigir automóvel no meio do nevoeiro. Já na vereda de cascalhos, que demanda ao edifício, divisei um vulto que fazia sinal, solicitando "carona". Parei o carro e vi que era um preto alto, moço ainda, e que me pedia confirmação sobre o endereço do Sanatório S. Pedro.
A princípio fiquei indecisa. Encarei-o mais de perto. Estava bem vestido. Notei algo de extraordinário nele: irradiava simpatia. Apresentava olhos bondosos mas tristes, epiderme bem negra. Sua boca era formada por traços delicados, quase idênticos ao contorno das criaturas brancas. Nela se desenhava um. rictus amargo. O homem parecia, no íntimo, sofrer.
Nas suas mãos estava uma pequena mala.
Ao perguntar-lhe o que pretendia obter no Sanatório, afirmou-me, para espanto meu, que iria trabaíhar.
— Servente? — perguntei-lhe, curiosa.
— Não...
— Atendente?. . . Enfermeiro?. . .
— Não... não... eu...
— O senhor é... é...
— Exatamente, moça, sou o médico, o novo médico que irá substituir, temporariamente, o doutor Walter.
— Médico?!!!
Não consegui esconder minha surpresa, misto de estupor e medo. Parece que ele compreendeu o meu estado. A tristeza acentuou-se ainda mais nos seus olhos.
— Doutor, — disse, quase num murmúrio — por favor, desculpe-me, mas... mas... eu pensei... que o senhor fosse...
Ele me interrompeu: — Branco?
Fiquei em silêncio. Estava realmente desapontada. Para mim aquilo era um episódio inaudito. Nunca virá um médico negro em sanatório de tuberculosas, principalmente num hospital para milionárias. Isto iria causar um rebuliço infernal. Já antevia os problemas terríveis que iriam ser criados, dali a minutos. Tentei remediar a situação. Mas ele apenas se limitou a indagar se no final da vereda já se avistaria o sanatório. Balancei a cabeça, em sinal afirmativo. Insisti para levá-lo. Agradeceu-me.
— Seu desapontamento também me desconcertou, senhorita. Prefiro andar a pé. Vou meditando. Até chegar ao edifício formarei algum plano. Talvez o melhor. Tenho acertado mais do que errado, quando penso bastante antes de tomar a decisão derradeira. Desculpe-me, sim?
Afastou-se do meu automóvel e seguiu em frente.
Demorei muito para dar partida no meu carro. Fiquei a olhar o médico negro, alto, elegantemente vestido com um terno moderno.
Liguei c motor e passei por ele a toda a velocidade.
Estava meio desnorteada.
Pelo espelhinho retrovisor vi que o médico negro parou e ficou olhando o meu automóvel, até o veículo desaparecer na primeira curva.
Na sua cabeça, decerto, ia um turbilhão de pensamentos tumultuosos, que se entrechocavam. Estava vergado ao peso de terrível indecisão. Olhou seu relógio.
Eram quase quatro horas da tarde. Foi subindo a ve reda cercada de pinheirais e pereiras. Parou de súbito.
Divisara dois meninos, pretos como ele, jogando bolinhas de gude. Deixou sua maleta no chao e aproximou-se das crianças. Cumprimentou-as com um leve aceno de mãos. Agachou-se e ficou a olhar o jogo. Seus olhos pareciam perdidos. Pediu uma das bolinhas. Segurou-a, como faziam os meninos, tentando atingir um dos buracos abertos na terra. Viu a bolinha rolar. Ela foi crescendo ante seus olhos e, no seu íntimo, ele reviu o passado. De repente foi transportado para a sua infância. Encontrou-se no terreno baldio, vizinho ao casebre onde morava, naquela favela horrível!
— Tião é a sua vez. Vê se dá a "esteca" agora e nois ganha u jogu.
Tião, com sua calcinha rota, cor de terra, acertou na bolinha de gude do companheiro e ganhou mais uma pequenina bola de vidro. Pegou-a, correndo, e fugiu para o interior do seu casebre. Mergulhou direto debaixo da cama e puxou um saquinho, virando-o sobre a cama. Dezenas de bolinhas multicoloridas surgiram. Eram toda a sua alegria, o seu maior divertimento, seu mais precioso brinquedo. De mãos espalmadas, segurava-as, sorrindo, e as deixava cair umas sobre as outras.
Um sol abrasador caía sobre toda a favela, gerando sombras negras na terra escaldante. Eram centenas, quase um milhar de casebres de tábuas, todas rústicas, desconjuntadas, salpicando o morro, perdendo-se nas encostas.
Lá embaixo, a cidade-grande, colorida, luminosa, sonho de todos os habitantes da favela.
Tião nasceu no dia de São Sebastião, daí a origem do seu nome. Sua mãe, lavadeira de roupa de gente da cidade, era devota do santo. Não poderia ter outro nome: ficou sendo mesmo Sebastião: Este dia está mar cado para sempre na memória de D. Malvina, sua mãe. Dito, seu esposo, foi assassinado, justamente no dia do nascimento de Tião. Tinha ido à venda para comprar bebidas e festejar o acontecimento. Deparou uma briga. Foi separar os contendores e levou uma facada na barriga. Morreu antes de chegar ao hospital.
— Ô! Mininu, vai entrega a ropa. Já é quatru hora.
— Pêra um poco, mãe. Tô guardandu as bolinha de gude.
Era sempre assim. Na hora de descer para a cidade Tião inventava mil e uma desculpas, a fim de não parar de brincar com suas bolinhas de vidro. Só à noite sossegava, porque a mãe lhe contava as tais esto-rinhas de fada que ele tanto adorava. Tinha cinco anos e sempre que ia à cidade. Ao ver alguma moça loura, afirmava, ao voltar para casa, que enxergara uma fada.
E foi nessas andanças, levando a trouxa de roupa na cabeça, que conheceu o Chiquinho, que morava numa das mais belas casas que já vira. Sua mãe lavava roupa para uma vizinha da casa de Chiquinho.
O garoto era filho de uma familia de origem síria. Tinha uma irmã de nome Diana, dois anos mais nova. Chico contava sete anos e Diana cinco aninhos.
Tião já havia entregue a roupa e passou pelas grades que cercavam o vasto jardim da fidalga mansão.
Chiquinho jogava bola sozinho. Viu Tião, aproximou-se dele. Convidou-o para entrar no jardim e com ele jogar bola.
— Tenhu que ir prá casa. Já entreguei a ropa da mãe e ela não gosta que eu demore — explicou o pretinho.
— Sua mãe lava roupa? — perguntou Chico, meio admirado.
— A mãe lava. E a sua, também lava?
— Não, minha mãe tem muitos empregados. Ela não faz nada.
— Nem varre o quintal, nem arruma a cama? Intão qui é qui ela faiz?
— Bem, ela joga baralho, penteia o cabelo, pinta as unhas, compra presente prá mim, faz muita coisa.
— E seu pai, ele trabaia?
— Papai é industrial.
— Meu pai é morridu. . . qui é industrial?
— Não sei. Papai tem fábrica. É fábrica muito grande. Eu já estive lá.
Foi quando surgiu a babá de Chiquinho e foi um alvoroço.
Um preto no jardim, conversando com o filho da patroa, era algo que dava mesmo para criar a maior balbúrdia possível. Tião sentiu-se em perigo e saiu correndo. Chiquinho correu atrás dele.
— Volte, Tião! Volte! Nós somos amigos, volte!
Chiquinho avançou sobre o jardineiro que tentava alcançar Tião. Este conseguiu passar pelo portão e desaparecer na rua asfaltada.
Mas a amizade dos dois ficou selada para sempre.
Todas as semanas eles se viam. Na favela já sabiam que Tião tinha um amigo rico.
Um dia Tião voltou radiante. Fora convidado pelo Chiquinho para ir à sua festa de aniversário, uma reunião com muito bolo e doces à vontade.
Ele esperava o sábado como se fosse o maior dia da sua vida. Na véspera desse dia, às duas horas da madrugada, Tião acordou assustado e correu para a sua mãe: — Acorda, mãe! Acorda! Tá na hora da festa!
D. Malvina olhou para o relógio impressionada, pensando ter perdido mesmo a hora. Zangou-se: — Qui festa, qui nada, mininu! Ainda num tá na hora, não. A festa é só à tarde, diabinhu. Ainda farta muitu tempu.
— Qui tempu, mãe, diz! Qui tempu!
— óia, diabu, só vai prá festa quandu o punteiru grandi du rilogiu tive num doze e u piquenu no quatru. Agora dormi diabu, si não tu apanha!
Tião deitou-se segurando o relógio. Ele só pensava na festa, mas não sabia que sua mãe sentia profundas dores no peito o que não tinha dinheiro para ir ao médico. Algo a queimava por dentro, sem que ela soubesse o que fosse.
Durante o dia brincou com o relógio perto. Não via o instante de os ponteiros formarem a figura que a mãe lhe ensinara. Nesse dia ele não iria entregar roupa. A mãe o deixara preparar-se para a festa do Chiquinho, da qual ele falava há mais de uma semana, numa ansiedade crescente, como se o aniversário fosse o dele. Todos seus amiguinhos sabiam que ele ia à casa do amigo rico e sentiam-se invejosos.
— Mãe, vesti eu. O ponteiro grandi já chego lá oncu a senhora falo que tava na hora de ir na festa.
D. Malvina estava recostada na cama. Levantou-se cem dificuldade, mas sorrindo, devido a alegria do filho. Não notou que seus sapatinhos estavam rotos e que um dos dedos aparecia. Nem viu que a calcinha, embora limpa, tinha um remendo de cor diferente. Pos uma gravatinha na camisa limpa e seu filho partiu, descendo o morro com a satisfação estampada no rosto.
Lá embaixo, porém, os amigos gritaram, em tem galhofeiro: — E o presenti, Tião? Quem num leva presenti em festa de aniversariu num comi doce!
Tião parou, embaraçado. Era verdade. Nem pensara que deveria dar um presente ao seu amigo. Mas o que? Voltou cabisbaixo para sua casa. Foi matutando pelo caminho e de repente saiu correndo. Lembrara-se, enfim. Rumou direto até debaixo da cama onde pegou o saquinho contendo suas adoradas bolinhas multicoloridas. Parou, em pé, como que meditando. Soltou-as de novo na cama e acariciou-as demoradamente. Seus olhos denotavam indeciso. Parecia não ter coragem para tomar a atitude definitiva. Suspirou profundamente: — Apostu qui o Chiquinho vai gosta.
Embrulhou-as. a princípio devagar, num oedaço de jornal velho. Depois meditou, enquanto resmungava: — Num faiz mal, também eu vô come uma purção di doci.. .
Desceu correndo o morro, na maior velocidade, tropeçando nas pedras. Estava atrasado.
A casa de Chiquinho achava-se toda ornamentada. Os jardins ostentavam arames esticados de árvore em árvore e neles se viam centenas de bolas de gás penduradas. No salão de festas, a mesa farta, comprida, coberta de doces. Ao centro, o grande bolo de aniversário. Oito velinhas o enfeitavam. Tinha formato de moinho. Os salgadinhos e doces estavam espalhados com arte por toda a mesa juncada de flores. Havia algazarra, provocada por um sem número de crianças correndo por todos os cantos. De instante, a instante, automóveis de classe atravessavam o portão, trazendo parentes e amigos da família de Chiquinho.
Foi em meio a esse burburinho que Tião chegou junto ao portão de ferro do rico palacete de Chiquinho. Fez menção de entrar. Foi barrado pelo porteiro carrancudo.
— Onde pensa que vai, moleque? Saia! Olhe o carro!
Outra fina limousine estava chegando à residência dos Hadads.
— Mais, moçu, eu fui convidadu pelu Chiquinho! Trouxe até o presenti dele... — E Tião levantou o pequeno embrulho, exibindo-o orgulhosamente.
— Você está maluco, garoto! Então o "seu" Jorge iria deixá-lo entrar na casa dele como convidado do filho? Vá embora, vá, antes que eu chame um guarda! Vá!
Tião se afasta com as mãozinhas postas atrás, apertando nervosamente o presente que iria dar ao companheiro.
Vai assistindo à chegada dos amigos e parentes, do amiguinho. Uma angústia seca sua garganta. Tenta ainda entrar, mas o porteiro quase lhe bateu. Fugiu para longe e foi-se aproximando lentamente. Postou-se na grade de ferro. De repente, avistou Chiquinho perto da janela do grande salão.
— Chiquinho! Chiquinho, vem cá! Chiquinho, sou eu, c Tião! Vem cá, Chiquinho!
Naquele instante, as dezenas de crianças e adultos cantavam a letra do "Parabéns". A voz do Tião não chegou até a janela. Ficou encostado na grade até quase dez horas da noite.
Viu, um por um, os convidados sairem. Depois as luzes se apagaram. A festa terminara. Dos seus olhos algumas lágrimas quentes, grossas, deslizavam pelas faces. Sua idade jamais lhe permitiria compreender a mentalidade das elites.
Só quando chegou ao pé do morro é que começou a correr, gritando, soluçando alto, chamando a mãe: — Mãe! Mãe! Num deixaram eu entra na casa du Chiquinho!
Mas D. Malvina nunca iria saber do infortúnio de seu filhinho. Ela estava morta e muita gente apertava-se dentro do único compartimento do casebre. Um enfarte vitimara-a, logo após a saída do Tião para a festa do menino rico.
Quatro círios iluminavam o interior do tôsco barraco. Foi a última lembrança que Tião teve de sua mãe.
Durante alguns dias ele ficou num casebre vizinho. Queriam providenciar o internamento do menino no Juizado de Menores.
Certa manhã Tião saiu em direção à casa de Chiquinho.
Foi encontrá-lo no mesmo jardim, brincando com enorme bola de borracha.
Ao vê-lo, Chiquinho correu ao seu encontro. Recriminou-o porque não fora à festa do seu aniversário.
— Ganhei uma porção de presentes e até um navio grande, que anda na água como se fosse de verdade. Eu ainda vou lhe mostrar.
Tião chorava:
— Mamãe morreu, Chiquinho. Eles querem mi leva prô Juiz. Num deixa Chiquinho. Deixa eu morá com ocê, Chiquinho.
Havia ternura nos olhos de Chiquinho: — Tião, agora não dá prá você entrar. Vem de noite, bem tarde, e eu escondo você aqui dentro.
Na hora do jantar, Chiquinho já estava profundamente nervoso. Queria, a todo o instante, saber se sua mãe ia sair. Ela chegou a rir da insistência, sem, contudo, atinar com o que o menino desejava.
Às nove horas da noite a pajem foi levá-lo à cama. Ele pediu-lhe para apagar a luz, pois iria dormir logo. Não queria saber de estórias...
Só quando o silêncio cobriu toda a residência é que Chiquinho se levantou e foi, cautelosamente, até o jardim. Lá estava Tião, com sua trouxinha de roupas, bem escondido entre as árvores.
Foram diretos para o interior do palacete. Passaram, antes pela cozinha, onde Tião matou a fome que castigava seu estômago.
Só havia um lugar onde Tião podia ficar sem ser descoberto: o porão. E foi para onde Chiquinho o levou, recomendando-lhe que não saísse dali até ele arranjar uma solução para o problema. Todos os dias lhe levaria comida.
— Mas Chiquinho como é qui vou nu banheiro?
O garoto pensou durante algum tempo: — Eu lhe levo um penico. Pronto, tá resolvido.
Os dias iam passando. Cada vez tornava-se mais difícil, para o menino, atingir o porão com o prato de comida. Tião, por sua vez, já estava enjoado de ficar tranficado naquele antro. Tinha vontade de brincar nos jardins. Sem tomar banho, por vários dias, sentia terrível coceira no corpo. Sua roupinha estava muita suja. O penico cheio de coco era outro grande problema. Nem todos os dias Chiquinho conseguia atravessar a casa até o banheiro para limpá-lo. O remédio era ficar sentindo aquele cheiro danado. Era o que mais enjoava a Tião.
E, um dia, quando Chiquinho teve de sair, em companhia da pajem, Tião resolveu dar um giro pelo palacete.
Visitou primeiro os salões do andar térreo. Deslumbrou-se com as estátuas, os quadros, a lareira, o grande relógio de parede, os tapetes magníficos. Subiu as escadas, seguindo pelo corredor, quando deparou uma porta entreaberta. Abriu-a um pouco mais e divisou a mãe de Chiquinho penteando os longos cabelos loiros, que tanto impressionaram a Tião: — Uma fada!... — exclamou, pondo as mãozinhas nos lábios.
A mãe de Chiquinho, porém, viu Tião pelo espelho. Virou-se com os olhos pregados no pretinho. Levantou-se, rápida, e escancarou a porta. Tião ficou paralisado, com os olhos esbugalhados. Quis falar, mas a balbúrdia estava feita. Aos gritos da mulher todos os criados acudiram. Foi um corre-corre que só terminou com a chegada do comissário de menores, que levou Tião sob intenso choro, gritando por Chiquinho.
Na hora do jantar, quando Chiquinho logrou alcançar o porão com o prato de comida, descobriu o que acontecera ao seu amiguinho: — Por que você fez isto, mamãe? Ele é meu amigo. Deixa ele morar aqui. A mãe dele morreu.
— Meu filho, preto não presta. Todos eles crescem ladrões, matam gente. Esqueça esse moleque nojento. Nunca permitiria que você crescesse ao lado de um negrinho. É uma raça maldita. Papai do Céu não abençoa os pretos, meu filho.
O destino, contudo, contrariou a vontade da mãe de Chiquinho. O menino ficou dominado profundamente por uma nostalgia que lhe tirava, inclusive, a vontade de se alimentar. Médicos foram chamados. Mas Chiquinho só queria ver Tião.
Na visita que os pais fizeram ao Juizado de Menores ficou patente que ele não permitiria "alugar" o pretinho apenas para salvar o filho.
— Adotem, é a única solução — asseverou o magistrado.
Foi um escândalo. O sr. Jorge alimentava idêntica aversão por negros e havia ainda a sua filhinha Diana, que tinha pavor de pretos.
Os conselhos médicos dobraram e a adoção, após uma série de dificuldades, foi feita, mas ficou totalmente proibida a entrada de Tião em qualquer dependência do palacete. Moraria no porão, onde, inclusive, teria que se alimentar.
Chiquinho, porém, podia vê-lo sempre.
A bela Diana cresceu odiando Tião. Nunca cruzou com ele e fazia questão de obrigá-lo a ver que tinha nojo dele.
Mas o órfão dedicou-se com. afinco aos estudos. Quando Tião fez dezoito anos, embora soubesse que Chiquinho e ele eram amigos inseparáveis, autênticos irmãos de criação, o sr. Jorge expulsou-o de casa, a pedido de sua filha Diana e da esposa.
Alegaram que ele já era maior de idade e que poderia trabalhar para o seu sustento. Houve violenta briga entre Chiquinho e seus pais, por motivo dessa decisão impiedosa.
Tião compreendera que se transformara no pômo de discórdia da família milionária, cuja maioria de integrantes jamais o reconheceria como ser humano. Era negro. Tinha que sair daquele ambiente.
Tião foi para a Faculdade de Medicina e, aos 24 anos, tirava o diploma, no exato dia em que recebeu uma notícia que quase o prostrou: Chiquinho, seu irmão de criação, a quem devia tudo o que possuía em cultura, perecera num desastre aéreo entre Rio e São Paulo.
Nunca mais voltou ao Palacete da rua Honduras. Nunca mais vira a família Hadad, com seus preconceitos e seu racismo intransigente.
Era médico do Governo do Estado e, agora, fora designado para trabalhar no Pronto-Socorro da Secretaria da Saúde, em Campos do Jordão, mas prestando serviços no Sanatório S. Pedro, até a admissão definitiva de um facultativo. Seria difícil encontrar um médico, mesmo com a oferta de polpudo ordenado, que se sujeitasse a morar no sanatório e transformá-lo no seu lar. Essa dificuldade fizera com que o Governo corresse em socorro do sanatório de milionárias tuberculosas, porque o único médico existente no Pronto-Socorro não dava conta do serviço.
Tião — hoje doutor Sebastião de Oliveira — voltou à realidade. Aquelas minúsculas bolinhas de vidro, momentaneamente, o fizera recordar-se de um passado marcado por humilhações e dores indeléveis. Acariciou levemente a cabeça dos dois negrinhos que ainda brincavam com as bolinhas de gude e rumou, decidido, para o majestoso edifício do Sanatório S. Pedro. Ia digla-diar-se, ele o sabia, com o que havia de mais representativo nas elites brasileiras: as filhas dos milionários que haviam, mercê de suas vidas repletas de noitadas, adquirido a devastadora peste branca.
Cheguei ao pé da escadaria, anunciei às moças que o médico já vinha. Demorava porque resolvera fazer o trajeto da estaçãozinha do Sanatório D. Leonor Mendes de Barros, até o sanatório, a pé.
Algumas me perguntaram como ele era. Esquivei-me de tecer qualquer comentário. Esperava a pior das reações. Fui para a ante-sala. Não queria, de forma alguma, assistir às cenas que daí a alguns minutos, sabia, iriam se desenrolar. Fui à janela. Não consegui, por mais que dissesse "não" a mim mesma, evitar ver a chegada do dr. Sebastião. E, lá na última curva, ele apareceu. Na escada, pelo menos uma dezena de moças o esperava. Tinham às mãos ramos de flores de pereira. Algumas estavam vestidas como se estivesse prontas para irem a uma festa. A maioria, pelo menos, era constituída de moças bonitas.
A Madre também estava na escada.
Houve decepção à chegada do homem preto.
Esperavam um médico elegante, simpático, e por isso o nervosismo aumentava...
Tião, contudo, foi até o pé da escada: — Boa tarde, moças. Eu sou o novo médico do Sanatório. Meu nome é Sebastião de Oliveira.
Um murmúrio teve início. No rosto de cada uma estava estampado o misto de descrença e nojo.
— Negro sujo, em meu corpo suas mãos nunca tocarão! — exclamou uma das internadas, violentamente.
— Estas flores eram destinadas a um homem, a um médico de verdade! Tome. preto fedido! — E, ato contínuo, a internada atirou-as no rosto do dr. Sebastião.
Foi imitada pelas demais moças que, num frenesi histério, inesperado, ao mesmo tempo que vomitavam impropérios em cima de impropérios, atiravam os ramos de flores sobre o médico negro.
Ele não disse uma palavra. Não fez um gesto de defesa. Olhava-as, estarrecido. Via-se o leve tremor de seus lábios. Houve rebuliço, a Madre tentando impedir o destempero das moças. Voltaram-se para o prédio e entraram aos tropeções. Uma, porém, ficou: era uma das mais lindas internadas, "miss Guarujá".
O dr. Sebastião fitou-a e só teve tempo de balbuciar: — Diana...!
Sim, era Diana, a irmã de Chiquinho, que ali estava!
Diana, a menina que o odiou durante quase toda a sua infância e exigiu, quando moça, a expulsão de Tião de sua casa. Ali estava, enferma, e seria sua paciente! Diana, sua irmã de criação!
Enquanto seus pensamentos corriam, assim, céleres, buscando imagens e soluções, não notou que Diana descia lentamente as escadas. Chegou a alguns centímetros do doutor Sebastião: — Porco! Prefiro morrer a vê-lo entrar sequer no meu quarto!
E após fitá-lo, com rancor visível estampado nos olhos, Diana cuspiu-lhe em pleno rosto!
Eu me achava estática atrás do vidro da janela da ante-sala. Abri a porta e apareci no topo da escada. O doutor Sebastião olhou-me e vi que seus olhos estavam marejados de lágrimas. A Madre, nervosa, esfregava as mãos e não conseguia articular uma só palavra.
Desci, bem devagar, a escada. Estendi-lhe as mães.
— Venha doutor. Serei sua amiga. Nem todas são como Diana. As outras foram levadas a fazer o que na realidade não tinham intenção de praticar.
— Obrigado, moça. Enfrentarei essa oposição até onde for possível. — E voltando-se para a Madre, pediu-lhe a mão, beijando-a respeitosamente. — Seremos amigos também Madre? Sei o que a minha cor representa para as elites. Terei o seu apoio?
— Deus é testemunha de quanto reprovo o que aqui ocorreu, doutor. Tentarei facilitar, o máximo possível, a sua tarefa e sua presença neste sanatório — respondeu, quase num murmúrio.
Pedindo-lhe licença, saiu com o médico, levando-o para os aposentos que lhe foram designados.
Um furor, de repente, apossou-se de mim. Voltei-me rápida e subi correndo as escadas, em. direção à ala dos apartamentos. Encontrei ainda algumas moças reunidas no corredor, comentando o ocorrido. A mais exaltada era Diana: — Conheço há muito esse negro, É petulante. Tudo o que tem deve a meu pai, inclusive os estudos. Morava nos porões de minha casa. Minha mãe o expulsou. Tenho ódio dele: Interrompi, enérgica:
— O que é que vocês pensam que são. E você Diana? Não tem. o mínimo pudor? Seu dinheiro compraria tudo o que você quisesse na vida?
Portas se abriram e várias outras doentes correram para o local onde estávamos discutindo.
Diana, foi mordaz:
— Olhe aqui, sua cadelinha, você que se prostituiu como contou num livro, não tem moral para chegar perto de mim!
Senti o sangue invadir-me a cabeça. Minhas têmporas começaram a latejar e a resposta se resumiu na violenta bofetada que lhe desferi!
— Desgraçada — acrescentei, perdendo totalmente a compostura — Conheço a sua história, vagabundinha! O dinheiro que você tem não consegue cobrir a lama em que sua família se chafurda. Você, Diana, pertence a essa elite pustulenta, falida, que vive num fausto aviltante, espezinhando todos que estão em situação financeira inferior. Esquece seu tio, aquele deputado federal sírio-libanês, que para tentar conseguir ser embaixador no Líbano foi oferecer sua distinta e bela esposa ao presidente da República? Não tenho medo de suas ameaças, nem de sua família e, particularmente, de seu tio, que nunca me fará nada... O negro que aí está é um médico. Venceu pelos seus méritos. Tem um passado do qual você jamais poderá se igualar, nem você nem essas prostitutazinhas da sociedade, que não vendem o corpo mas praticam atos mais abjetos que a mais sórdita rameira! Sociedade que instituiu o amante como norma, como conduta oficial da vida! Sociedades cujos membros freqüentam as boates e clubes noturnos ao lado de esposas e amantes, num trio infamante, numa exibição desputadora de chifres como se fossem um ornamento necessário, imprescindível para se ter livre trânsito nessa sociedade purulenta! O fato já é público, Diana. Você é "miss Guarujá", sim, pois é miss da terra onde, segundo o cronista Flávio Porto, o famoso "Dona Y aY á" , se desenvolve a mais vergonhosa das indústrias: a do "cornolux"! "Cornolux"! Entendeu. Diana? "Cornolux"! E isto ele escreveu em letra de imprensa nos jornais para os quais trabalha! Você, Diana, não é "miss Guarujá", é "miss Corno"! Veja agora a diferença que há entre o homem negro, porém decente, probo, humano, que você acaba de espezinhar, e a sua personalidade má, falsa, despudorada, embora coberta pela tez branca...
Com os olhos desmedidamente abertos, Diana me fitava vomitando ódio, trêmula.
As demais doentes não quiseram participar do brutal diálogo. Encarei-as acintosamente, como se todas fossem culpadas. Virei as costas e entrei no meu apartamento.
A porta de meus aposentos ainda não se fechara, permitindo-me ouvir a breve e ameaçadora explosão de Diana que, de dedo em riste, vociferou: — Juro por tudo que seja sagrado neste mundo que ela e esse negro pestilento me pagarão bem caro esses minutos amargos que acabo de passar!
Vagarosamente, quase sem nenhum comentário, as enfermas foram também se retirando, buscando, cada uma, seus apartamentos.
Diana, a princípio lerda, apressou seus passos. Abriu e fechou violentamente a porta, provocando um estrondo no longo e amplo corredor do Sanatório S. Pedro.
— Tenho que arquitetar algo para destruir esse preto indecente! — murmurou entre dentes, sem cerrar os olhos, despendendo chispas de rancor das belas e negras pupilas..
Eram sete horas de uma manhã bem fria, em Campos do Jordão. O médico negro estava na sala de consultas, que lhe fora designada para atender às doentes. Não houve consulta. As enfermas se negavam a ser examinadas pelo dr. Sebastião. Algumas, mais radicais que outras, se postaram nas imediações da sala e impediam que alguém se aproximasse. O livro de consultas sobre a pequena mesa do salão também estava em branco.
As doentes do pulmão do Sanatório S. Pedro haviam decretado a "greve do Kock".
— O que diz de tudo isso a nossa Madre? — perguntei à Belinha, que não tinha sentimentos racistas.
— Sei lá. Confesso que não me agrada muito ser examinada por um negro. Mas se não há outro jeito, que me examine, que me ausculte. Quero é ficar curada. Não tenho essas teimas ridículas. Mas parece-me que a Madre está em apuros. Não sabe que decisão tomar. Há moças que estão precisando quase que diariamente de assistência médico. Soube que ela já apelou para o médico do Pronto-Socorro do Estado, mandou chamá-lo.
Revoltei-me: — Mas a Madre não devia proceder assim! Ela deve insistir. Isto é confessar-se derrotada!
— E ela poderia enfrentar as nossas famílias?
Calcule o escândalo que isto vai produzir quando nossos pais souberem que estamos sendo examinadas por um negro! O sanatório vai se esvaziar da noite para o dia. A Madre sabe disso. Ela não quer abalar a tradição de S. Pedro e quando for interpelada, vai precisar provar que está tomando "enérgicas" providências para afastar o doutor negro do nosso convívio.
Quanto ao médico, este alheou-se, voluntariamente, das enfermas das elites. Passou a dedicar-se, com esmero, às indigentes, que em número de sessenta não criaram muitos problemas. Mas, mesmo entre elas, existiam algumas que demonstravam nojo, sentimento de repulsa. Solidarizaram-se com as doentes ricas que ao tomarem conhecimento, passaram a freqüentar mais assiduamente os porões, demonstrando uma falsa amizade àquelas que também se negavam a ser atendidas pelo médico negro. Diana, por seu turno, fez o possível para que as sessenta indigentes cerrassem fileiras com as duzentas enfermas milionárias. Não logrou êxito, mas conseguiu muita adesão.
Somente consegui avistar-me com o doutor Sebastião na tarde do outro domingo, quando o localizei sentado no banco dos jardins internos do Sanatório. Estava cabisbaixo. Sentiu minha aproximação e olhou-m? ternamente: — Vai acabar criando uma situação insustentável para você mesma aqui dentro, Adelaide.
— Enfrento o risco, doutor. Sinto uma revolta apertar o meu coração. Será lícito que só porque essas jovens foram protegidas pela fortuna, possuindo uma situação privilegiada, devam ser consideradas a encarnação da própria grandeza? Não haverá um resquício de sentimento no recanto mais oculto do espírito dessas moças? Por que toda a elite é assim, podre, estúpida, desumana, insensível, doutor?
— Discordo, minha amiga. Felizmente isto que aí está representa a minoria das elites. A grande parte é composta de criaturas de caráter. Pode estar certa de que a maioria das moças deste sanatório não compartilha das ambições e das posições radicais de algumas poucas jovens, capitaneadas pela minha irmã de criação, que é Diana. Estão influenciadas. Os bons, Adelaide, ainda sobrepujam, em número e ações, os maus. Que seria do mundo se apenas existissem criaturas insensatas como Diana?
— Como explica, então, essa solidariedade que o impediu de examinar uma só doente dos quartos e apartamentos?
— Um falso pudor, despertado pelos exemplos das criaturas más. Às vezes fazemos aquilo que contraria o nosso íntimo. É evidente que no seio das classes mais favorecidas esse falso pudor é mais acentuado, mas nem por isso deixa de existir também nas classes necessitadas. Veja os exemplos que pode colher em meio às indigentes. Cerca de 20 moças, das mais pobres, solidarizaram-se com as colegas ricas. As outras 40, contudo, aliaram-se a mim e tentam convencer as demais do erro que cometem. Algumas cederão. Outras permanecerão nas posições iniciais, mais por ambição. Pensam que terão alguma recompensa... Muito poucas aderiram por convicção... Minha cara Adelaide, você precisa conhecer melhor o ser humano.
— Tentarei adquirir maior compreensão e vou ajudá-lo no que puder. Está bem assim?
O médico sorriu. Foi a última vez que o vi com esse sorriso que revelava confiança.
E, nessa mesma noite, teve início o grande pesadelo que iria tornar insuportável a vida do dr. Sebastião dentro do Sanatório S. Pedro, em Campos do Jordão.
Na saleta de plantão do Sanatório, a campainha tocou repetidas vezes, revelando o nervosismo de quem chamava. O quadro indicava que no apartamento n.° 2, da Ala "B", alguém pedia auxílio. A enfermeira olhou o relógio. Eram duas horas da manhã. Sonolenta, levantou-se lentamente para atender ao chamado.
— Se não for suco de laranja, é um fingimento-qualquer, tenho certeza, — foi resmungando, enquanto caminhava pelo longo corredor atapetado.
A enferma era Diana.
— Quero que você chame o doutor — ordenou, mal-humorada, à enfermeira.
— Dona Diana, talvez eu possa atendê-la. O médico do Pronto-Socorro ficará aborrecido se o chamarmos para algo que não seja realmente importante. Além disso, tenho de ir até à cidade.
— Não quero o doutor Pedro. Mande vir até aqui o doutor Sebastião.
A enfermeira, surpresa, arregalou os olhos: — O médico negro?
— Sim, o doutor Sebastião. Entendeu bem?
Diana encarou-a, com ar feroz.
Um som indistinto de vozes havia me acordado. Diana sempre me causava desusado interesse. Levantei-me e, a despeito do frio que caía sobre o Sanatório, abri a porta de vidro que dava para o terraço. Bem agasalhada, pulei o pequeno muro que separava a varanda de meu apartamento do de Diana. Espreitei pela vidraça. Chegara a tempo de ouvir a estranha solicitação.
Meu coração pulsava rápido. Estaria realmente passando mal a pretensiosa Diana? Meus pensamentos foram interrompidos pela entrada do doutor Sebastião no apartamento da jovem.
Ele ficou encostado na porta que se fechará atrás de si. Seus lábios, um pouco trêmulos, demonstravam um nervosismo que sua voz em vão tentava esconder.
— Às ordens, senhorita — disse, então, respeitosamente.
Suas mãos seguravam, inquietas, o estetoscópio pendurado de seu pescoço. Os olhos estavam fixos nos de Diana.
— Eu estou realmente me sentindo mal. Uma dor aguda me queima todo o peito. Talvez pudesse esperar até amanhã. Preferi, contudo, chamá-lo. Quero falar com você.
O doutor se aproximou lentamente da cama.
— Precisa falar neste instante?
— Sim, já, agora, aqui, no meu apartamento!
A voz era imperativa. Seu tom, incisivo, parecia não admitir réplicas.
— Examine-me primeiro e depois conversaremos.
E, da palavra ao ato, arrancou com ligeireza as cobertas de cima do seu corpo. Um "negligé" leve, transparente, vaporoso, deixava ver quase todas as suas formas. Os seios empinados, arfantes, quase à mostra, num decote atrevido, eram uma tentação.
— A dor é aqui, reflete aqui — disse ela, colocando a ponta do seu dedo indicador sobre o seio direito, ao mesmo tempo que olhava o médico com certo desdém, conservando um sorriso maroto no canto dos lábios.
O tremer das mãos do dr. Sebastião acentuou-se visivelmente. Na sua testa larga o suor afluía, demonstrando a forte emotividade que o acometera.
— Acho melhor a senhorita cobrir-se. Seu estado não deve ser bom. O organismo pode estar predisposto a uma pneumonia — tartamudeou o dr. Sebastião, como que buscando uma saída para a situação em que, de repente se, via envolvido.
Diana fingiu não ouvir a ponderação. Suspirou demonstrando contrariedade.
O estetoscópio foi colocado sobre o seio palpitante da bela enferma. Sua mão segurou o pulso do médico e o apertou. Os dentes de Diana mordiscaram seus próprios lábios, comprimindo-os como se estivesse possessa. Levantou uma perna e o "negligé" abriu-se, exibindo uma coxa amorenada, roliça, tentadora.
O dr. Sebastião recolheu-se, rápido, e se afastou, espantado. Diana sentou-se na cama e apoiada nos braços esticados, ficou semi-inclinada, com um sorriso cínico aflorando aos lábios. Os olhos brilhantes fitavam-no interrogativamente. Os seios estavam quase à mostra. Continuou com a perna encolhida, deixando, de propósito, seu ventre aparecer.
— Desde que você chegou aqui, tenho me mortificado para encontrar uma justificativa para esse ódio que me corrói as entranhas. Relembro, de segundo a segundo, a minha infância. Cheguei à conclusão de que o amava. Há mais de uma semana venho lutando contra o absurdo desse meu raciocinio. Hoje, finalmente, deduzi que não é amor: é desejo! Sim, Tião, eu o desejo carnalmente, tanto quanto o odeio por ser negro! E, você Tião, vai ser meu, inteirinho meu, hoje, aqui, neste apartamento, nesta cama!
O dr. Sebastião recuou atônito: — Menina, você enlouqueceu? O que está querendo?
Diana aumentou o seu sorriso despudorado, perturbador, e finalmente disse alto: — Tião, eu sei que a você é difícil acreditar. Mas concluí que é uma experiência à qual me devo submeter. Talvez o ódio, o asco que sempre demonstrei nutrir por você, terminem com esse acontecimento. Outro dia uma vaquinha, que se hospeda aqui ao lado, procurou definir a sociedade em que vivo como a que endeusa o amante como um elemento necessário, de absoluta importância, para todas as mulheres que desejam pertencer à elite. Amanhã serei esposa de alguém. Terei, assim, meu marido, e logo precisarei do adorno. . . por que já não posso adquirir, agora, o meu amante? Será mais um argumento para ela, aí do lado, nos combater, quando souber desse fato. Ela logo iria comentar: também as noivas traem seus noivos e têm seus "amantezinhos". E no meu caso o prazer daquela cadela seria todo especial, porque eu teria como amante um negro.. .
O dr. Sebastião levou sua mão, nervosamente, à garganta. Um calor lhe queimava todo por dentro e um gosto acre assomou à sua boca. O suor aumentou bastante em seu rosto. Sentia-se que lutava contra o desejo que já o atormentava delirantemente.
Diana, que fizera uma pequena pausa para ironizar, com olhar buliçoso, o pobre médico, continuou, calma, indiferente, ao estado do facultativo preto: — Não será uma experiência inédita para mim. Já fui possuída por meu noivo.. .
Diana levantou-se. quase totalmente nua: — Venha, Tião. . .
— Não... Não... Diana... nos vamos... vamos fazer uma loucura que talvez nunca mais tenha conserto .. .
Diana continuou com seu sorriso cínico e aproximou-se vagarosamente do médico negro. Seus braços longos envolveram-no pelo pescoço e se colou ao corpo do jovem e apavorado médico.
Num último esforço ele a empurrou, desvenci-lhando-se: — Você é minha irmã de criação, Diana! Não posso! Não posso! Não seja louca, Diana!
— Eu o quero, Tião, nem. que seja a última coisa que faça na vida!
Houve um princípio de luta entre os dois. O médico, mais assustado ainda, apertou os pulsos de Diana e, com a mão direita, deu-lhe ruidosa bofetada.
Chorando, convulsivamente, ela atirou-se sobre a cama: — Porco! Porco! Negro imundo! Saia daqui! Vai embora, Tião, porque eu acabo com a sua vida! Eu o mato, Tião!
Os olhos do Dr. Sebastião bruxulearam. Virou-se e saiu apressado do apartamento. Com um lenço as màos enxugava nervosamente o pescoço molhado de suor. Seus pensamentos estavam de tal modo torturando sua cabeça que não sentiu que várias portas, à sua passagem, se fechavam devagarinho.
Muitas enfermas souberam do encontro daquela noite.
No terraço mal me podia manter em pé. Um tremor estranho tomara conta de todo o meu ser. Não podia compreender aquilo a que acabara de assistir. Algo ali estava errado. Lentamente retornei ao meu apartamento e durante muito tempo fiquei com os olhos abertos, recostada em minha cama, buscando uma resposta para a interrogação que martelava minha cabeça.
* * *
Levantei-me bem tarde e o meu rosto refletia a noite mal dormida. Fui direto ao corredor, onde se encontrava o grande livro-consulta. Nenhuma assinatura. Ninguém ainda se aventurara a pedir oficialmente uma entrevista ao médico negro. Chegara a acreditar que Diana finalmente resolvera render-se e sua assinatura, certamente, acabaria com a onda racista que infestava o Sanatório. Sua posição intransigente é que dava margem ao recuo geral. Nas suas mãos, todas sabiam, estava a liderança do repúdio ao médico negro. Tudo, em verdade, não passava mesmo de influência. Enganara-me mais uma vez. A "greve do Kock" continuava a todo vapor no Sanatório S. Pedro.
Voltei para o apartamento. O dia amanhecerá chovendo torrencialmente. Não consegui esconder meu aborrecimento e preferi evitar qualquer encontro. Tomara café no quarto. A leitura seria a fuga ideal para o estado de alma em que me encontrava.
Minha solidão não me acompanhou muito tempo.
A figura de Inês ocupava toda a porta de entrada do meu apartamento.
Velha amiga, de certa forma, a recebi com alegria. E foi nela que extravasei meu desapontamento pelo que assistira na véspera. Contei-lhe tudo, com todos os pormenores que a minha memória permitiu. Precisava desse diálogo. Queria saber as conclusões que Inês teria ante o estranho sucedido pela madrugada no Sanatório S. Pedro.
— Virgem, Adelaide! Já pensou que "bomba" vai ser quando isso correr entre as meninas? Diana amante do médico negro! Não é uma delícia?
— Não me interessa a repercussão, Inês. Quero saber o que você pensa do fato. Não é estranho que justamente ela, que manifestou tanta aversão pelo dr. Sebastião, vá, agora, tentar transformá-lo em amante?
— Com que não me conformo. Adelaide, é o doutor ter fugido e não atender ao desejo da maluquinha. Não sei, não, mas será que ele vai ter outra oportunidade?
E Inês caiu em gostosa e leviana gargalhada.
Nosso bate-papo durou até a hora do almoço. Saímos juntas. E, no grande salão, vi que a ocorrência da madrugada já não era segredo. Houvera coincidência: Diana entrara no refeitório juntamente comigo e Inês. Um murmúrio seguiu-se ao olhar coletivo que era dirigido à ex-miss Guarujá.
Ela me fitou demoradamente. Seu olhar asqueroso parecia que ia me fulminar. Diana nunca mais falara comigo. Os acontecimentos que marcaram a chegada ao Sanatório do doutor Sebastião nos transformaram definitivamente em inimigas irreconciliáveis.
O caso Diana-Dr. Sebastião estava criado. Só o futuro iria demonstrar o que essa aliança produziria na vida do Sanatório.
De uma coisa eu estava certa: daquele dia em diante Diana seria alvo da mais indiscreta das espionagens, da parte da maioria das moças internadas no Sanatório S. Pedro.
Após o almoço resolvi visitar as indigentes. Havia algum tempo, travara amizade com uma das enfermas pobres e, aos poucos fui conhecendo sua história revoltante. Desse dia em diante passei a visitá-la assiduamente, procurando dar-lhe o conforto moral de que necessitava.
Ana Maria era o seu nome. Tinha traços belos. Seus cabelos, bem negros, eram compridos, sedosos. Os olhos, grandes, revelavam amargura, decepção. Não raras vezes, lampejos de ódio mal conseguiam esconder a revolta de que seu íntimo estava tomado. Inegavelmente Ana Maria fora, antes de a tuberculose destruir-lhe a saúde, uma jovem atraente. Ganhara a terrível moléstia na prostituição.
Passava horas conversando com Ana Maria. Às vezes não falávamos. Permanecíamos com o olhar perdido, abatidas pelos pensamentos que vez por outra nos envolviam.
Naquela tarde, ali, sentada na cama, ao lado de Aninha, eu, mentalmente, revivia todos os lances de sua vida passada, que colimaram na tuberculose e na sua internação, como indigente, nos porões do Sanatório S. Pedro.
Aninha nunca prestara atenção aos seios que possuía, volumosos, rijos, para a sua cintura delgada, aos seus quadris largos. Foi preciso um temporal fus-tigador que a pegou no meio de uma corrida para a casa da fazenda. Só assim percebeu que era uma mulher já feita, em plena posse dos seus atributos físicos, que produzia apetites nos homens.
O terreiro em frente à sede da fazenda São Manuel era largo. Na varanda, calmamente, "seo" Tôzinho fumava seu cachimbo, observando a corrida de Ana Maria.
Chegou com o vestido de chita pregado no corpo. Pobre, sem nenhum recurso, não usava "soutiens". Ao ver o patrão, sorriu inocentemente: — Puxa, que chuvarada, "seo" Tòzinho!
— Venha cá, menina.
Ana Maria aproximou-se, rindo, mas respeitosa.
— Nunca tinha notado como você é bonita. E como já está moça! Quer ir para São Paulo? Posso lhe conseguir um bom emprego..
— Acho que a mamãe não deixa, "seo" Tòzinho. Gostaria, sim.
Fez uma pausa, fugiu do seu olhar e pediu humilde: — O senhor dá licença? Tô muito moiada e tenho medo de me resfriar...
O patrão acenou afirmativamente com. a cabeça e foi acompanhando a menina com os olhos babosos de sensualidade.
O destino de Ana Maria já estava traçado. Daquele dia em diante, de modo melífluo, foi conquistando a confiança da jovem. Ardilosamente foi criando, em sua cabecinha ingênua, os desejos miríficos da cidade-grande. O abstáculo sempre crescente, criado pela mãe de Ana Maria, impedia, contudo, que o "seo" Tòzinho concretizasse os sonhos que acalentava em relação à moça.
Numa sexta-feira o patrão se despediu dos empregados. Ia retornar a São Paulo e todos viram seu carro de luxo desaparecer na curva da estrada de terra batida. Tudo, porém, fazia parte de um plano astuto, concatenado por Tòzinho, em conluio com a própria Ana Maria: uma fuga da jovem seria simulada e assim ele a levaria para São Paulo. Quando sua mãe buscasse o auxílio do patrão, este prometeria logo localizá-la e, assim, iria levando a velha senhora, até que ela mesma desistisse da busca para localizar a filha fujona...
O plano funcionou sem qualquer senão e Aninha foi conhecer as atrações da cidade-grande, cheia de colorido, tão decantada pelo patrão. Este parecia gostar da moça...
A viagem fora feita no próprio automóvel de Tòzinho, que a ficara esperando na Vila que antecede a cidade de Garça.
Ana Maria foi levada para uma pequena ilha situada na represa de Santo Amaro, na altura da cidade de Santo André, bem próxima à Capital do Estado.
Aninha chegara com Tòzinho, ao anoitecer. Ladridos de cães constituíram uma recepção que apavorou a incauta jovem.
Palavras de carinho, atenção esmerada, sorrisos reconfortantes, foram suficientes para criar mais confiança no espírito imaturo de Aninha.
Tòzinho a deixou naquilo que ele chamava "chácara", aos cuidados de uma empregada de pouca idade, mas que se mostrava atenciosa ao extremo.
— Fique tranqüila. Logo voltarei. O emprego demora um pouco ainda. Você ficará hospedada aqui. Concorda? — foram as blandiciosas palavras de Tòzinho ao se despedir da moça.
Os dias foram correndo e Tòzinho aparecia uma vez por semana na ilha. Os cuidados e as atenções para a ex-empregada foram, despertando um sentimento de ternura no coração da mocinha. Embora não saísse da ilha, tinha a liberdade de andar pelo terreno. Os cães, na parte do dia, ficavam presos, e às seis horas da tarde eram soltos. Ana, assustada, trancava-se na casa, uma autêntica mansão, onde não faltavam conforto, luxo e boa comida, que lhe era servida pela jovem empregada.
Algumas vezes Ana Maria recebia ordens da serviçal para ficar no quarto e lá era trancada. Estranhava a determinação, quanto mais que nesses dias ouvia grande algazarra nos salões térreos da mansão. Não raras vezes reconhecia a voz do patrão, principalmente a sua gargalhada escandalosa. Tudo era muito singular e Ana Maria não compreendia porque não podia assistir, embora não participando, a essas ruidosas festas que Tòzinho, quase todas as semanas, organizava na ilha.
Ana Maria tem verdadeiro horror de lembrar os acontecimentos daquela tarde que acabou, para ela, nos porões do Sanatório S. Pedro, de Campos do Jordão.
A empregada esquecera de fechar a porta à chave.
Os risos, as gargalhadas, os gritos, o vozerio de homens e mulheres atingiam o quarto de Ana Maria e despertavam a sua curiosidade. Abriu lentamente a porta e percorreu o corredor semi-escuro. Do topo da escada ela pôde ver as cenas que a surpreenderam. Formando um semicírculo no amplo salão, várias meninas estavam totalmente nuas. Ao lado de cada uma, via-se um homem, alguns já idosos, numa promiscuidade que nunca a sua origem rústica poderia imaginar. O "seo" Tòzinho estava sentado numa poltrona, vestido apenas de cuecas, rindo desbragadamente. Nas suas mãos uma seringa de injeção. Só mais tarde soube ela que aquilo era uma das modalidades de que viciados em tóxicos se valiam para saciar os seus desejos. Outros aspiravam, nas unhas ou em pequenos canudos, um pó que lhe parecia talco. Havia mais mulheres que homens, quase numa proporção de três para um.
Com. o "seu" Tòzinho não havia nenhuma mulher. Algumas pareciam meninas de quatorze ou no máximo quinze anos: a sua idade!
Num canto, uma radiovitrola trazia para o ambiente as melodias mais violentas e estranhas, ritmos modernos que Ana Maria ainda não conhecia. Com o coração batendo aceleradamente, olhos esbugalhados, lábios entreabertos, tentando balbuciar algo sem o conseguir, com as mãos trêmulas encostadas nos lábios, Ana Maria contemplava, estarrecida, um dos casais dançando no meio do círculo, enquanto os demais batiam freneticamente as mãos, num acompanhamento alucinante da melodia moderna que invadia toda a mansão da ilha. Era uma bacanal grotesca, imunda, e que assustava a caipirinha de Garça que nem chegara a conhecer a cidade-grande.
Alguns casais, depois, passaram a procurar os quartos cujas portas davam para o amplo salão. A maioria, contudo, ficou na promiscuidade. Foi quando um deles divisou Ana Maria no topo da escada. Ao grito do primeiro somou-se uma infinidade de outros: todos apontando para Aninha.
Aterrorizada, Ana Maria gritou e correu estabana-damente pelo corredor, procurando alcançar o seu quarto. Teve ainda tempo de ouvir a voz do "seo" Tòzinho, gritando: — Não toquem nessa menina! Ainda não pode participar das brincadeiras! Voltem, canalhas! Voltem!
Sua voz desapareceu em meio da tropelia de pés subindo precipitadamente, como se um bando de loucos buscasse alguma vítima. Era a mais horrenda matilha de lobos atrás de uma presa. O "seo" Tòzinho não conseguiu impedir a avalancha de bestas esfaimadas e Aninha ficou entregue à sanha dos toxicômanos que a atacaram.
Em poucos minutos o vestido foi feito em frangalhos. Seus seios duros, empinados, morenos, saltaram num convite à voracidade dos cocainómanos, morfinómanos e até maconheiros que a cercaram. Dois, três, quatro. Não soube até hoje quantos dela se serviram. Recorda-se, apenas, que gritava muito, pedia socorro, chamava por sua mãe, num desespero mórbido. Foi levada e atada a uma mesa de parto que não soube como apareceu, e lá tornou-se pasto de toda a degradação sexual que se possa imaginar.
Nisto divisou, na porta do quarto onde era violentada, o corpo alto e robusto de um policial.
— Polícia, socorro! Socorro! — foi o apelo que morreu na sua garganta. Perdeu os sentidos para apenas recobrá-los, palidamente, num hospital público.
A menina inexperiente e ingênua de Garça dera o primeiro passo para a prostituição.
Na época, o fato foi um escândalo. Bem mais tarde, Ana Maria veio a saber, com pormenores, o que ocorrera. Houvera denúncia e a polícia acompanhada de comissários de menores, enfrentando a matilha de cães ferozes, invadira a ilha, prendendo todos. Descobriu-se, então, que as bacanais eram a característica daquele logradouro. O dono, "seu" Tòzinho — era um anormal, um tarado, impotente, não participava diretamente do contato com as jovens: comprazia-se, deliciava-se, apenas assistindo aos atos que os outros praticavam. Era tão sádico que não permitia a entrada, na ilha, de homem desacompanhado de mulher. Para os que traziam moças havia uma taxa: com uma apenas o homem pagava um preço alto para ingressar na ilha, cerca de dez mil cruzeiros. Com duas, o preço caía para a metade e com quatro só pagava mil cruzeiros. Durante a bacanal os cães ficavam soltos para impedir a entrada de qualquer curioso. No andar superior da mansão havia um quarto imenso, que pertencia ao "seo" Tòzinho. No assoalho existiam vários pequenos furos que davam para os quartos térreos, disfarçados, no teto, em respiradores. Era uma das diversões prediletas do "seu" Tòzinho: contemplava pelos buracos as cenas que os casais praticavam nos quartos.
A prisão, porém, foi efêmera. Todos pertenciam, à elite. Ninguém ficou realmente preso. O escândalo foi abafado. O processo na polícia está até hoje engavetado, pois "seu" Tòzinho, em face da imensa fortuna, tinha muita influência, embora a maioria das meninas detidas na ocasião fossem menores.
E foi assim, exatamente assim, que a Ilha do Sabiá, em São Paulo, durante algum tempo, foi assunto das páginas policiais dos jornais. Mas até à imprensa o financeiro poder oculto do "seu" Tòzinho fez calar.
Voltei a mim e deparei Ana Maria me fitando com olhos molhados de lágrimas.
— O que você estava pensando, Adelaide? Chamei-a várias vezes e não me atendeu!
— Na sua história, Aninha. Recapitulei-a todinha nestes minutos em que minha mente fugiu deste Sanatório. Sua vida passada me causa profunda revolta.
— As camadas mais abastadas são assim mesmo, Adelaide. Corrompem, porque acreditam na impunidade. Não há lei, não há polícia, não há justiça. Nada os alcança. São os "todo poderosos" que se tornam inatingíveis.
— É verdade sim, minha querida Aninha. As elites se livram do crime mais abominável porque pagam um preço bem alto pela liberdade, pelo acomodamento de seus processos. As elites estão falidas, Aninha. Possuem nome, prestígio, tudo o que as torna inalcansáveis pelo Poder Público, que se inclina ante o dinheiro vil com que compram seu sossego, ainda que isto custe o desespero de toda uma comunidade. Quando matam as suas amantes, dentro de suas próprias mansões, conseguem "provar" até que foi "suicídio" e a Justiça dos homens acredita, absolvendo esses assassinos! Se as elites trabalhassem pelos seus semelhantes, como trabalham para si próprias, não teríamos a vergonha das estatísticas, a atestarem que o índice de mortalidade infantil, em nosso Brasil, é o mais elevado do mundo. A elite, Ana Maria, é barbaramente egoísta, cruel. Causa-me profundo ódio vê-la atirada nessa cama, vítima inocente, pura, da elite desbragada. Vítima de um homem de quarenta anos de idade, que usou do poder de seu dinheiro para não pagar o crime que cometeu. Do estupro você foi para a máxima degradação da criatura humana: a prostituição. Esta lhe deu a tuberculose, que aos poucos suga a sua vida. Ele foi tirar você da ilusão, do brinquedo de roda, da ciranda, do pregador, do jogo de amarelinha, a cabra-cega. Vai ver que a Ilha do Sabiá continua até hoje palco de cenas tão degradantes quanto aquela que a vitimou. E a policia não vai mais lá. Já tem o preço do seu silêncio...
— Não adianta bater nessa tecla. Adelaide. Sei que vou morrer brevemente. Em qualquer desses folguedos de criança, a que você se refere, ficou a minha ilusão de menina-moça, minha alma de boneca, o meu amor a Deus, ao próximo. Minha mãe morreu e nem sei quando nem de que maneira. Foi o próprio Tòzinho quem me notificou o fato. Não somos a palmatória do mundo, Adelaide.
Não lhe respondi. Levantei-me, silenciosa. Saí do Sanatório sem sentir e caminhei pela chuva, que caía torrencialmente. Fui subindo e descendo morros. Passei pelas pereiras e pessegueiros em flor. Meus pés afundavam na relva molhada. Não sentia a chuva, os trovões, cada vez mais fortes. Não via os relâmpagos estremecendo o céu sombrio, caliginoso. Vi-me, de repente, no Morro do Elefante. A cruz cinzenta, de braços abertos, parecia abençoar Capivari, a bela e privilegiada Vila das elites. Os braços abertos da cruz significaram a generosidade de Jesus, e Jesus no Madeiro para salvar o mundo. Mas não salvou Aninha, não salvou aquelas crianças que estavam sendo estupradas, massacradas, por um representante das elites. E Jesus, mesmo assim, ainda abria seus braços para Capivari, a Vila mais linda de Campos do Jordão. Algo, repentinamente, invadiu a minha alma. Uma coisa morna, aos poucos, foi-se tornando quente dentro de mim. Mais quente, mais quente, foi fervendo até explodir, e, com. meus punhos cerrados, socava, desvairadamente, a cruz de Cristo!
— Jesus! Jesus, você está aí pregado! Eu estou vendo! O sangue corre do seu rosto e de suas mãos, dos seus flancos, de seus pés! Eles crucificaram você, Jesus! Bateram no seu corpo, massacraram seus ideais! Foram eles, os donos das elites, Jesus! E, agora, eles sangram, massacram, espezinham também as crianças! Jesus, não olhe para Capivari! Não! Não! Não olhe! Não olhe para eles, olhe para nós, que somos pobres e o amamos verdadeiramente!
Meus apelos, em forma de gritos estridentes, eram acompanhados de repetidos murros que dava na cruz! Meus punhos sangravam e, na minha-mente, eu continuava a imaginar, a ver Jesus, ali pregado, como se estivesse abençoando a linda Capivari!
Sem o saber, andara quase oito quilômetros. Minhas lágrimas, a dor que sentia nos braços, nas mãos, foram me trazendo, lentamente, à realidade. Caí em mim. Senti, mentalizei a minha heresia. Abracei-me à cruz, num pranto copioso, sincopado de soluços. Grudei-me à cruz como buscando uma salvação e fui escorregando, vagarosamente, até minha cabeça encostar aos pés do Santo Lenho: — Perdão, Senhor! Mil vezes perdão! Eu não sabia o que estava fazendo!
As camadas de nuvens iam desaparecendo do céu e pedaços de azul, entremeados de fogo, iam surgindo, anunciando o fim da borrasca, que durante horas desabara sobre Campos do Jordão. Parecia que a Suíça brasileira ia se tornando toda amarelada. No verde lavado pela enxurrada, refletia-se a cor dourada que se espraiava por todo o firmamento.
Estava exausta. O vestido molhado grudava em meu corpo. Extenuada, física e espiritualmente, deitei-me de costas na relva dourada. Não sentia coragem para fazer o longo caminho de volta até o Sanatório. Quando percorrera os oito quilômetros até o Morro do Elefante, não os sentira. Estava fora de mim, com meus raciocínios num frenético jogo de acontecimentos misturados com o ódio que, de repente de mim se apossara pelas ingratidões desse mundo materializado em que vivemos; a vida que uns poucos privilegiados gozam, que somente sobrevivem espezinhando o próximo, sufocando as possibilidades dos menos favorecidos.
Não sei quanto tempo fiquei, assim, mergulhada em seus próprios pensamentos, num turbilhão casca-teante, sem ritmo, sem concatenação. Quando me levantei novamente, já tinha deliberado não dormir aquela noite no Sanatório. Iria para a casa de Mercedes, na Vila Jaguaribe.
Nosso encontro foi coberto de perguntas, principalmente pelo estado em que me encontrava. Depois de um chá quente e reconfortante fui me deitar.
No dia seguinte saí com Gracinha, filha de Mercedes, de apenas cinco anos de idade. Fui ajudá-la a catar ovinhos de pedregulho: a Prefeitura de Campos do Jordão costuma cobrir as ruas da cidade desses seixos para substituir o asfalto. Dei um longo passeio com Gracinha, passando pelo PS-3, onde conversei demoradamente com o dr. Pedro, responsável pelo Pronto-Socorro. O tema do nosso bate-papo, como não podia deixar de ser, fora o médico negro.
O dr. Pedro era uma figura simpática. Alto, moço ainda, apesar dos poucos cabelos brancos que lhe despontavam nas têmporas. Tinha um sorriso contagiante e seu olhar infundia confiança. Eu não gostava muito das espessura exagerada de suas sobrancelhas, que se cruzavam na altura do nariz.
Ele já sabia da minha presença em Campos do Jordão e não escondeu a satisfação que teve em. me conhecer pessoalmente.
Era sabedor dos problemas que afligiam a Madre, no Sanatório. Marcamos um encontro para a noite, onde juntos deliberaríamos sobre a maneira pela qual devíamos ajudar a Madre a resolver o impasse em que se via envolvida.
Gracinha, apesar de seus cinco aninhos, estivera o tempo todo com os olhos pregados em mim e no doutor Pedro. Foi difícil convencê-la de que o médico não era meu namorado. Fez junto a Mercedes a mesma fofoca, que logo foi imitada por minha amiga, que passou a fazer insinuações irônicas.
Respondi com piadas picantes, mas a zombaria de Mercedes ficou funcionando em minha mente como pequenas cutiladas. Quando procurara o doutor Pedro, não me passara sequer pela cabeça qualquer coisa, a não ser pedir o seu auxílio em favor do dr. Sebastião. Achava graça estar, naquele instante, a pensar na possibilidade de ocorrer qualquer coisa intima com o médico do PS-3.
Gradualmente a noite ia se anunciando. Da claridade, sombras apareciam e cobriam tudo, magicamente. As estrelas brilhavam e a lua espargia uma pálida e esverdeada luz por toda Campos do Jordão. O complexo dessa beleza, que só Campos do Jordão possui, eu o ia absorvendo com a minha alma, meus olhos, minha mente. Logo mais, meus olhos estavam pregados na agulha do velocímetros, sorrindo por poder sentir aquele vento gelado batendo em meu rosto, fustigando meu olhos até as lágrimas escorrerem. Eu ia pensando nas brincadeiras ocorridas entre Mercedes, eu e Gracinha, envolvendo o simpático dr. Pedro.
E o facultativo interrompeu o belo silêncio que nos embevecia.
— Foi gentil em aceitar o convite para passearmos à noite. Sinto-me feliz em poder dispor de algumas horas para sentir, de perto, a beleza de Campos do Jordão e ainda desfrutar sua companhia.
(1)Russo — palavra popular com que os moradores da cidade de Campos do Jordão chamam o forte nevoeiro que. de repente, baixa sobre todo o município.
— Aonde iremos? — perguntei, lacônica, mas suavemente.
— Ao "Véu da Noiva".
— A essa hora? Não seria imprudência?
— Para mim é o lugar mais belo desta cidade. Ver o que é lindo, inesquecível, nunca é imprudente. Adoro a presença da natureza. E como Deus foi pró-digo em Campos do Jordão! Aqui existe um pedaço de cada país...
Sorri, sem resposta. O carro disparava pela pequena estrada até a cascata, que era o nosso destino. Pelo caminho de cerca cobertas de flores, de árvores ainda úmidas, copadas, projetando sua sombra convidativa, apesar do frio que cobria Campos, depois a Colônia de Férias dos Funcionários Públicos, Refúgio Alpino. Mais embaixo toda a Vila Inglêsa onde os raios da lua, sobre os ciprestes molhados refulgiam numa visão fantástica, acolhedora. O luar, os silvos dos grilos, o coaxar de rãs e o borbulhar da cascata, demonstravam que o "Véu da Noiva" estava próximo.
— Você teria medo de sentar-se, ali, na borda da cascata?
Ele caminhou na minha frente e parou bem perto da queda d'água. Sentamo-nos sobre as pedras e ficamos com os pés balançando sobre o precipício. As águas branquinhas, espumosas, pareciam desprender-se de uma grande grinalda de plantas mescladas de um verde cor de esmeralda e do negro da noite. As árvores, apesar de esguias, não impediam a lua de cobrir toda a cascata. Acariciado pelo luar e pelo veludo da noite, o "Véu' corria, borbulhante, impetuoso, para se desfazer, barulhento, lá embaixo, de encontro aos grandes rochedos, para mais adiante formar o diminuto, romântico, quase insignificante riozinho que encontráramos na subida, e que ia sumir, sabe Deus onde...
— O que mais tem me irritado, dr. Pedro, é a fraqueza da Madre que, atendendo à pressão das internadas, aconselhou o doutor Sebastião a solicitar transferência novamente para São Paulo. E ele, segundo me disse, parece que até já escreveu o pedido. Isto não deixa de ser uma derrota fragorosa ante a prepotência de algumas poucas jovens petulantes, desabridas, e que mereciam, na verdade, um sério corretivo.
— Não é tanto assim, Adelaide. Nem acredito no fanatismo racial dessas jovens. Até o momento, na realidade, elas não precisaram de sérios cuidados médicos, desde que o dr. Sebastião chegou. Assim que um caso mais grave aparecer, tenho certeza, não pensarão na cor da pele do médico. Desejarão obter a cura ou minorar o sofrimento. Tudo, para mim, não passa de irritação momentânea, criada com a decepção de quem esperava um médico bonitão, agradável, a fim de amenizar as agruras naturais de um sanatório de tuberculosos e deparam com um negro...
— Discordo. Acho que não conhece o que é a vida de cada uma dessas moças acostumadas à "dolce vita", misturando num cadinho espúrio, a liberdade cem a licenciosidade. É uma elite sexo-maníaca, devotada, preocupada, absorvida, pelo dinheiro, contaminada pelo álcool, jogo, egoísmo, e querendo dar a tudo isto um aspecto, uma aparência normal. Os ricos dr. Pedro, não compreenderam ainda que Deus, ao dar às criaturas humanas dois ouvidos e uma boca, quis, implicitamente, recomendar-lhes ouvir mais do que falar. Os ricos agem ao contrário, falam muito mais do que ouvem. Nós, menos favorecidos pelo bafejo da fortuna, ouvimos mais, muito mais do que comumente se imagina. Espreitamos sempre... e... guardamos em nosso âmago essas injustiças, essas diferenças aviltantes, esses abusos covardes dos poderosos sobre os desprovidos...
— Mas eles têm algo que você parece não possuir, Adelaide: confiança numa filosofia que lhes falta. Eles crêem em Deus.
— Não basta, doutor Pedro. Li, em certa obra, a afirmação ae que a "sociedade que encoraja o amor livre e a homossexualidade não permanecerá, por muito tempo, a morada dos homens livres". Quer verdade mais chocante do que essa? A exploração dos menos afortunados pelas elites chega a ser uma abjeção. Para mim a elite é um facho de luz cercado de escuridão por todos os lados. A luz não se preocupa com o que há na escuridão. Ao contrário, explora-a como pode. Mas quando alguém, na treva, tenta aparecer nesse foco de luz, sobre as conseqüências de sua petulância. Não seria o que está acontecendo com o dr. Sebastião? Se não é, por que, então, essa despudorada mentira de que no Brasil não se cultua o racismo? É uma burla desprezível, porque o negro sofre todos os horrores, todas as restrições, da parte das elites. Qual o grande clube de elite que aceita o negro? Pode me apontar um oficial de Marinha de Guerra que seja de cor?
— Concordo, Adelaide, que a sociedade moderna está confundindo liberdade com licenciosidade. Para mim, porém, isto é a minoria. E...
— Desculpe-me interrompê-lo, dr. Pedro. É a minoria, porque os ricos realmente são a minoria no mundo, ora! As classes menos favorecidas representam a maioria absoluta, sim. São poucos, dr. Pedro, muito poucos, os ricos que entendem os pobres. A Bíblia já nos ensinou que ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Sim, não podemos servir a Deus e às riquezas. A juventude, hoje, entrega-se às libações de toda a espécie. De quem é a culpa? Dos pais, sem dúvida, que propiciam aos filhos os exemplos mais torpes de libertinagem. Na sociedade é chique a mulher casada ter um amante. A boate Oásis, em São Paulo, recebe, quase toda a semana, famosa dama da sociedade paulista que janta, passa várias horas naquele local, assiste aos "shows", tendo como acompanhantes o esposo e o amante. Todos sabem disso e o marido também... Ao tempo em que existia em São Paulo aquele cabaret "O. K.", na avenida Ipiranga, essa mesma dama se comprazia em ir àquela casa noturna em companhia de três ou quatro pederastas passivos, fazendo ela e os anormais, um espetáculo extra no interior do cabaret... E a hipocrisia é de tal ordem, que toda a sociedade cumprimenta a dama, o esposo e o amante. A mulher é citada com todo o respeito pelas colunas sociais dos jornais. Quase sempre ela está liderando movimentos filantrópicos e a Imprensa cita seu nome, exibe sua fotografia com orgulho...
— Há profunda verdade no que você afirma, minha cara Adelaide, mas quero lhe dizer que sou contrário àquele dogma de que a "criatura é um animal a quem foi dado um verniz de civilização". Entendo haver exagero nesse ódio que você nutre pelas elites. Acredito na existência de maus progenitores, péssimos patrões, violências sexuais bem mais acentuadas no círculo dos ricos do que entre os pobres. Mas, mesmo nas elites, é a minoria que age assim. Há muito mais compreensão, muito mais seres identificados com Deus do que aqueles que, agindo como você afirma, são profundamente materializados.
— Doutor Pedro, ninguém é forçado a fazer aquilo que não quer. Veja a política, por exemplo. O homem público brasileiro não deseja compreender que se foi eleito deve servir o povo, a sua vida particular deixa de ser, também, assunto exclusivamente seu. Tudo nele tem de ser público. E eu, dr. Pedro, tenho uma amarga experiência com os políticos da minha terra.. . Eles gastam tanto tempo a fazer promessas que, depois, lhes íalta o tempo para as cumprirem... Vou lhe contar o que ocorreu, na semana passada, no Sanatório, assim terá uma idéia mais clara do despotismo das elites. Eu estava no meu apartamento quando recebi a visita de unia indigente. Sabe Deus lá o que fez aquela menina para atingir a ala dos milionários do Sanatório S. Pedro, pois não ignorava que é expressamente proibido, aos pobres, sair dos porões e entrar na "ala das privilegiadas"... Lúcia é o nome desta criatura e seu pedido humilde era em favor do pai. Desejava que eu intercedesse, como pudesse, junto aos políticos, para que seu pai fosse nomeado funcionário público. Ele era motorista de uma das empresas que exploram o serviço de transporte de passageiros, em automóveis, entre São Paulo e Santos. São os famosos "expressinhos". No meu quarto se encontrava Patricia, uma sobrinha do patrão de Lúcia, que ficou em silêncio, rindo ironicamente das queixas que a indigente me fazia. Sentada, envolvida num "peignoir" de nylon acolchoado, com os pés protegidos por chinelinhas de pelica forrada de lã, ela formava um grande contraste com o leve vestido de chita da modesta Lúcia.
— Os empregados, jovem Lúcia — disse Patrícia, interrompendo suas lamúrias — são insaciáveis. Não compreendem que, sem a existência dos patrões, não existiriam os empregos... Os pobres, menina, existem, porque os ricos repartem o muito que têm... É o céu de quem o ganha e a terra, de quem a apanha. .. As leis trabalhistas nos dias de hoje, no Brasil, é que criam esses problemas para os operários. Cada vez exigem mais. E se os empregadores fossem atender a todas as exigências de seus empregados, iriam logo à falência. É o que ocorre com os motoristas que trabalham na empresa de titio. Estão sempre se queixando da vida. Nunca estão satisfeitos. Um filósofo já disse que atrás da porta do pobre, toda a vileza se esconde e que muitos miseráveis que pedem, são miseráveis unicamente por pedirem.
— Seria muito bom se tudo o que a senhora está dizendo fosse verdade. Os ricos, d. Patrícia, não repartem o que têm com os pobres. Não, mil vezes não. E o que seria da empresa de seu tio, se não fossem os motoristas? Respondo para a senhora que, sem a existência de operários, não existiriam também as fábricas. Portanto, um depende do outro. Sozinhos não sobrevivem. Isto é lógico, tão evidente, que não deve nem prevalecer como argumento. O que a senhora não quer reconhecer é que os patrões, do tipo do seu tio, roubam o suor de seu semelhante para enriquecerem. Meu pai, d. Patrícia, ganha o salário mínimo da empresa de seu tio. Trabalha das 7,00 h. da manhã às 21,00 h., sem direito a extraordinário. Quando os carros encrecam em Santos, meu pai dorme na própria garagem da empresa. O empregado que mora em Santos ao ter o seu veículo um defeito qualquer em S. Paulo, também é obrigado a dormir na garagem, na Capital. Não tem pausa para se alimentar e embora trabalhando na hora de almoço e de janta não recebe diária de alimentação. No fim do ano o seu tio fornece o envelope de pagamento referente ao 13.° salário como sendo salário total, mas contém apenas a metade. Todos são obrigados, contudo, a assinar recibos de importâncias equivalentes ao salário integral. Foi assim, D. Patrícia, que seu tio se tornou rico, riquíssimo, escravizando, explorando, roubando seus empregados!
— Se é verdade tudo o que diz, por que seu pai e os demais motoristas não procuram a Justiça do Trabalho? Meu tio, certamente, seria chamado à atenção por esses abusos...
Havia uma ironia ofensiva nessas palavras de Patrícia. Mas Lúcia não se amedrontou: — Porque seu tio, contrariando as leis, também não registra seus empregados.
— E por que estes não vão reclamar, então, onde há leis para eles?
— Porque seu tio afirma que tem dinheiro suficiente para comprar a Justiça, além de ameaçar demitir imediatamente o reclamante. E há mais, d. Patrícia: os patrões se entendem entre si. Todas as portas das demais empresas de transporte se fecharão para aquele motorista que reclamar na Justiça do Trabalho. É uma autêntica maçonaria. E, depois, a Justiça demora anos para decidir um processo desse gênero. Do que viverá o empregado enquanto espera?
— Ora, então, não é meu tio quem não presta. Ele não tem culpa se a Justiça, além de venal, é morosa...
— Ninguém seria culpado, se bastasse negar, e ninguém seria inocente, se bastasse acusar. Eu sei disto. Mas também sei que se a consciência às vezes fala, o interesse sempre grita. O patrão injusto comete dois crimes: pela ação e pelo exemplo, esquecendo-se de que o homem não é propriedade do homem.
Quando cheguei ao Sanatório, passava das dez horas da noite. O desabafo que tivera junto ao dr. Pedro, de certa forma me fizera bem e já me sentia com mais coragem para enfrentar as dissensões que marcavam a vida hodierna daquele sanatório de falsas puritanas.
Meu sossego, contudo, não durou mais do que alguns minutos. Todo o sanatório estava em polvorosa. Havia um corre-corre, murmúrios. As Irmãs mal se entendiam ante a situação aflitiva em que estavam enredadas.
No corredor de acesso ao meu apartamento havia um tropel incessante de doentes, enfermeiras e Irmãs.
Nair, uma jovem filha de fazendeiros de Mogi-Mirim, estava acometida de hemoptise. Três ataques seguidos já se transformavam num prenúncio de morte. Todas as enfermeiras, bem como a Madre e as Irmãs, tentaram localizar o dr. Pedro e ninguém soubera informar onde ele se encontrava. Nair, moça de racismo arraigado, negava-se a ser assistida pelo dr. Sebastião. Duas enfermeiras no interior do apartamento da doente aten-diam-na como era possível, sem obterem êxito.
Dirigi-me, apressada, até o quarto de Nair, e abri lentamente a porta. Recostada em diversos travesseiros, com os olhos semicerrados, numa atitude impressionante de total prostração física, Nair se assemelhava a um cadáver. Olheiras profundas, uma tez lívida, acinzentada, e o horrível espetáculo do sangue esborrifado por todos os cantos do apartamento. Os alvos lençóis de linho estavam completamente tisnados. O mesmo ocorria com os aventais brancos das duas enfermeiras, que não escondiam o pavor de que estavam acometidas.
Num relance compreendi toda a extensão do drama que envolvia Nair, o Sanatório e seus responsáveis. Ninguém poderia ter encontrado o dr. Pedro. No instante em que a hemoptise atacava aquela infeliz, o médico do PS-3 se encontrava ao meu lado, na cascata "Véu da Noiva".
A procura do dr. Pedro continuou ininterrupta.
Quando ele chegasse, talvez já fosse tarde e por isso saí às pressas do apartamento de Nair e me dirigi aos aposentos do dr. Sebastião. Alguma coisa, efetivamente, deveria ser feita antes que fosse tarde.
— Dr. Sebastião, o senhor não se pode dar assim por vencido. Uma vida está em perigo. Algo tem de ser providenciado, custe o que custar. Um médico não deve sujeitar-se aos caprichos do doente...
— Jovem, eu fiz tudo para entrar naquele apartamento. Não logrei êxito nas minhas tentativas. Não posso forçar uma situação que contribuirá para a morte daquela infeliz. Os nervos dessa mocinha ficam de tal forma excitados quando entro no seu quarto, que a hemoptise volta imediatamente. Retirei-me no terceiro ataque, deixando algumas instruções com as enfermeiras, enquanto se tenta localizar o dr. Pedro.
— Será mesmo imprescindível a presença ao lado de Nair, para os remédios serem ministrados? O senhor não poderia das instruções aos enfermeiros, no corredor? E se não localizarem o dr. Pedro, ela vai morrer assim, sem nenhum tratamento, sem nenhuma assistência médica?
A energia e a decisão de minha voz fizeram com que o dr. Sebastião se levantasse. Não notara a minha rudeza. Apenas achara minha idéia plenamente exeqüível e puxando-me bruscamente pelo braço, ordenou, peremptório: — Vamos, Adelaide. Vamos salvar aquela delinqüente social! Vamos! Apresse-se!
A entrada do médico negro no corredor foi recebida com um gelado silêncio que de repente envolveu tudo.
O dr. Sebastião ficou no corredor, ao lado da porta do apartamento de Nair, enquanto eu entrava, estabanada, no interior do quarto, chamando apressadamente uma das enfermeiras.
No instante em que a assistente saia para conversar com o dr. Sebastião, procurei acalmar Nair: — Fique tranqüila. O dr. Pedro já vem correndo até aqui. Ele deu instruções à Madre para que fossem transmitidas às enfermeiras. Fique imóvel, sossegada, que tudo vai dar certo.
Minha mentira causara algum efeito. Os olhos de Nair apresentaram um brilho de esperança, enquanto as lágrimas escorriam pelas faces. De fato, a esperança é o sonho dos que estão acordados, o único bem comum a todas as criaturas humanas. Nunca Deus fecha unia porta sem abrir outra.
Pouco depois a enfermeira entrava apressada no apartamento. Uma injeção de coaguleno, de imediato, foi aplicada. Com o auxílio da outra enfermeira, os braços de Nair foram colocados em posição vertical e sobre seu peito puseram uma bolsa com grande quantidade de gelo. Alguns pedaços, bem pequenos, foram postos em sua boca e, a pedido da enfermeira, Nair foi deglutindo a água solidificada. A operação repetiu-se durante meia hora, até a enferma cair em profundo sono. O médico negro entrou, então, no quarto de Nair: — Daqui a uma hora tirem o gelo de cima do peito. Fiquem a noite toda ao seu lado, mantendo-a sempre nessa posição. A hemoptise foi detida. Esta moça salvou-se.
Olhou depois, demoradamente, para mim, e quase num murmúrio me disse: — Obrigado, Adelaide. Essa moça deve-lhe a vida.
Virou-se, inopinadamente, fechou a porta atrás de si e caminhou pelo corredor, fitado por mais de um dezena de moças que aguardavam os resultados da intervenção do médico e procuravam ler em suas feições se os remedios por ele ministrados surtiam efeito.
O médico negro, ao entrar no apartamento de Nair, pisara, sem. perceber, numa poça de sangue. Ele passou firme, distante, entre as enfermas das elites. No tapete claro foi ficando a marca rubra de seus sapatos. Não houve um murmúrio, antes ou depois de sua passagem. No fim do corredor, ele se voltou. Parou durante algum tempo. Olhou uma por uma e, depois, levantando lentamente um braço, ordenou categórico, violento, fora de si: — A ópera terminou, jovens! Voltem para seus quartos! Vamos, voltem, já! Já! É uma ordem! Voltem!
Não houve réplica. O silêncio foi total. Aos poucos cada uma ia abrindo a porta de seu apartamento e desaparecendo. Elas sentiram, naquele instante, que o médico negro as derrotara.
O dr. Sebastião ficou, não sei quanto tempo, de pé, no fim do corredor. Olhava o caminho totalmente vazio, com aqueles rastros de sangue marcando o tapete.
Voltou-se e lentamente se dirigiu aos seus aposentos. Abriu a porta, fechando-a logo em seguida e atirou-se à cama. vestido. De bruços, apertando a cabeça no travesseiro, chorou, de modo convulsivo, aos arrancos.
O médico negro parecia que estivera participando de uma batalha, cuja vitória se lhe assemelhava a uma derrota íntima, a qual acabou de prostrá-lo, profundamente abalado. Chegara à conclusão de que quem padeceu, venceu, e que a coragem é a força de resistir e de sofrer, e que os olhos que não choram, não sabem ver a beleza e fealdade do mundo.
— Adelaide, creio que já solucionei meu problema. Um político, que está passando umas férias aqui em Campos do Jordão, fez uma carta de apresentação a uma pessoa que está passando uns dias na Guanabara. Vou até ao Rio e, se tudo der certo, sairei para sempre de São Paulo. Pedirei, inclusive, demissão do cargo que exerço na Secretaria da Saúde.
Conversávamos nos jardins internos do Sanatório. Era uma tarde ensolarada de domingo. Havia, porém, um arzinho frio que o sol não conseguia esquentar.
Olhei o Dr. Sebastião admirada e ao mesmo tempo decepcionada: — Não acredito nessas interferências políticas, Dr.
Sebastião. Permita-me, mais uma vez, discordar da sua decisão, mas o senhor não pode e não se deve dar por vencido. Mais vale esperança boa, que ruim posse. Nós devemos lutar pelo que é certo quando lobrigamos possibilidades de vencer sem crescimento das dissensões. Desistir agora é uma estulticia. Quando se convencer que errou em não se defender na hora mais fácil, vai verificar que as dificuldades contra seus anseios dobraram a tal ponto que só há uma mínima parcela para se alcançar a vitória.
— Mas a pessoa com quem vou falar na Guanabara é a ex-Primeira Dama do Estado de Pernambuco. É criatura realmente influente. Tenho que aproveitar o momento porque ela se encontra no Rio a passeio e logo retornará para o norte. Será mais difícil para mim viajar até o Recife. Por que haveria de continuar a pisar em espinhos, se há a possibilidade de transformá-los em pétalas? Não, Adelaide, não sou palmatória do mundo. Todo o tempo que tenho disponível dedico-o aos estudos. A medicina é um progresso incessante. Você ficou admirada por saber que me utilizo de gelo para estancar uma hemoptise. É o método moderno. E acredito, não aprendi nos bancos da Faculdade. Não posso desperdiçar meu tempo com essas tolinhas e seus preconceitos radicalizados. Os líderes negros do Brasil — se é que eles existem — que tratem de fazê-lo. Por mim, confesso-me derrotado. Essas jovens milionárias me venceram mesmo. O que ocorreu a semana passada, com aquela moça, Nair, foi a gota dágua que entornou o meu copo cheio de esperanças.
— Pois bem, Dr. Sebastião. O senhor vai falar com a ex-Primeira Dama do Estado de Pernambuco. Vai perder o seu tempo. Conheço aquela senhora e muita coisa a seu respeito. Nada lhe direi, por hora. Dê-me o prazo necessário para pedir a vinda, aqui, a Campos do Jordão, de um amigo que foi amante dessa senhora, por imposição dela mesma. Telefonarei, ainda hoje, < só depois de ouvi-lo, o senhor tomará a decisão fina.. Combinados?
O Dr. Sebastião suspirou, olhou-me longamente, sorriu e depois de dar um tapinha em meu ombro, murmurou: — Combinados.
Aurélio era um velho amigo que nunca deixou do atender aos meus apelos. Quatro dias após o meu telefonema, ele chegava sorridente, alegre como sempre, ao Sanatório São Pedro.
Sem protocolos exagerados, foram feitas as apresentações e nosso longo bate-papo foi levado em meu próprio apartamento, no periodo da noite, quando o silencio dominava as dependências do Sanatório.
— Meu primeiro contato com a então Primeira Dama de Pernambuco — falou Aurélio — não foi dos mais felizes. Era mulher difícil. Seu nome infundia respeito e também medo. Ligada à velha oligarquia que, havia anos, dominava a politica pernambucana e ate mesmo brasileira, tinha prestígio suficiente para tomar posições, ainda que estas fossem as mais duvidosas. Seu esposo viveu a vida inteira, em todo o nordeste, valendo-se do prestígio da própria esposa e talvez isso, ou somente isso, lhe teria permitido galgar a posição de governador do Estado. Causa-me, na verdade, até náuseas falar tanto dessa mulher como de seu esposo que até hoje fazem os jogos políticos mais sórdidos. Seu partido, aliás, é o de espinha mais flexível de todas as greis políticas do Brasil. Faz qualquer negócio, por mais espúrio que seja, desde que represente isto posição e até sobrevivência. O Partido negocia a cabeça de companheiros como quem escolhe gado num curral...
— Seria essa espécie de gente que iria ligar-me se aceitasse a apresentação de meu amigo à ex-Primeira Dama do Estado de Pernambuco? — perguntou, meio assombrado, o Dr. Sebastião.
— Indubitavelmente, meu caro doutor. A Adelaide conhece particularidades dessa senhora por que eu lhas contei. E não guardo segredo mesmo. Acho que o despudor dessa cambada é de tal ordem, que deve contar todas as suas sujeiras a todo o mundo. Só assim o povo ficará sabendo e em tempo haverá de repudiá-los, quando pleitearem novamente posições do mando. Resta-lhes sempre, contudo, o prestígio dinheiro, que no Brasil continua sendo a honra, a palavra, a decisão dos negocistas e políticos, numa corrupção moral que chega a causar asco. Aproveitando a frase de um literato francês, podemos dizer que "por dinheiro eles são capazes de tudo, até mesmo de cometer uma boa ação..." Na época em que a conheci, eu estava ligado ao governo Juscelino, através de um general do Exército de quem eu era uma espécie de secretário particular.
— Quem era o general? — quis saber, curiosa.
— Não vem ao caso nomes, Adelaide. Mas muita devassidão aprendi com esse general. Havia noites, em Brasília, que eu ia buscar candidatas a emprego para passar a noite com esse militar. Bacanais vergonhosos tinham lugar nos apartamentos da Capital Federal. A maneira como o general era correspondido no amor que pleiteava dessa ou daquela jovem candidata ao serviço público, significaria a admissão ou o disfarce da parte dele durante meses a fio, até que a moça, desiludida, acabasse desistindo. São incontáveis as reuniões desse tipo que levávamos a efeito nos apartamentos da SuperQuadra 208, de Brasília. Muitos ministros de Estado que aí estão, gritando pela moralização administrativa, pelo bons costumes no serviço público, revelaram-se exímios participantes desses bacanais, onde não faltou sequer o condimento mais necessário: barbitúricos e tóxicos de toda a natureza. Às vezes esses encontros ocorriam nos apartamentos do Brasília Palace Hotel, que no princípio era o hotel "kar", da Capital Federal. Nesse caso o governo era quem pagava as farras, as orgias sexuais de seus ministros. ..
— Mas que nojeira, sr. Aurélio! — interrompeu o Dr. Sebastião, demonstrando mal acreditar no que ouvia.
— Era muito pequeno em posição, doutor, para saber toda a podridão sexual que corria pelos bastidores do governo federal, e às custas dos cofres públicos. Mas o pouco que sei dá para escandalizar o pais inteiro. Ka no Rio, inclusive, um local que os "grandes" conhecem pela denominação de "apartamento presidencial". Fica num dos mais famosos hotéis do Brasil. Tudo o que ali é gasto, é pago pelo Instituto Brasileiro do Café. Era um. dos poucos lugares aonde o próprio Presidente da República comparecia. Aliás, diga-se de passagem, que o presidente tinha um famoso pianista das noites cariocas, cuja única função junto ao Chefe da Nação, era o de conseguir determinados tipos de mulheres. Às vezes esse pianista cedia a própria residência para o Presidente ter encontros amorosos com as pequenas que lhe eram conseguidas por esta espécie de "secretário sexual" do Presidente da República. O "apartamento presidencial" é famoso nas hostes políticas. Nesse local, em meio a um ambiente carregado de sexo, tramavam-se as mais grossas safadezas. As mulheres, ali, funcionavam assim como uma espécie de auxílio para a obtenção de favores junto ao Banco do Brasil e cargos altamente remunerados no Exterior. Eram autênticas espiãs, a serviço de desígnios torpes e interesses inconfessáveis. Dificilmente um homem nega alguma coisa à mulher quando está com esta na cama, recebendo suas carícias. . Conheço muita gente boa que anda por aí, arrotando autoridade, mas que conseguiu chegar a essa posição fazendo com que a própria esposa freqüentasse o "apartamento presidencial" e pleiteasse esse ou aquele favor visando benefício pessoal... E a ex-Primeira Dama de Pernambuco foi, nas poucas vezes que esteve no Rio, uma grande freqüentadora do "apartamento presidencial". Histérica ao extremo, só atendia aos pedidos depois de satisfeita no sexo. Para isso bastava o homem lhe agradar... Foi o que ocorreu comigo. Minha missão junto à então Primeira Dama de Pernambuco, era a de entregar-lhe, pessoalmente, uma correspondência do general de quem eu era secretário particular. Não poderia haver testemunhas na entrega dessa missiva. Fui recebido em sua sala, no Palácio das Princesas, umas três vezes, e a presença de estranhos me impedia de fazer-lhe a entrega. Ela já me esperava como enviado do general. Não entendia, então, por que me fazia entrar em seu gabinete de trabalho sabendo da reserva que o assunto exigia. Quando, finalmente, ficamos a sós na sala, o carinho com que me tratou, causou-me certo espanto.
Leu a carta na minha frente. Às vezes interrompia a leitura e me olhava demoradamente, sorrindo de maneira significativa.
Sentado à sua frente, junto da mesa de trabalho, havia entre nós um silêncio desconcertante. Eu estalava os dedos nervosamente e procurava perder o olhar pela janela a fora. ..
Terminada a leitura da carta, ela a guardou no próprio seio e me olhando fixamente, cruzou os braços sobre a mesa. Quebrou o silêncio que dominava toda a ampla sala: — Pois bem Aurélio. O caso me interessa sim. Tu, naturalmente, sabes o conteúdo dessa correspondência, pois não?
Fiz um aceno afirmativo com a cabeça, sem, contudo, articular uma só palavra.
— ótimo, isto revela que o general tem plena confiança em ti, meu caro Aurélio. Porém não te darei nenhuma resposta agora. Espero ver-te em determinado local hoje à noite, quando conversaremos melhor. Onde tu estás hospedado0
— Hotel Boa Viagem, madame — respondi lacónicamente.
— Meu chofer irá buscar-te à noite. Não saias de teu apartamento até chegar meu enviado. Está certo,, simpático?
Procurei sorrir, agradecendo a intimidade do termo. Na verdade eu estava apavorado, não só pelo que via de insinuação nos olhos da Primeira Dama, como principalmente, pelo conteúdo daquela missiva que envolvia um negócio por demais espúrio. Sabia, pela experiência, que se o escândalo contido naquela carta estourasse, o atingido seria eu, o lado mais fraco. Estava sendo o intermediário de uma transação que, em principio, me enojava e por fim me atirava na senda do crime!
Assim, ao me despedir daquela senhora, meu coração estava amargurado e a preocupação dominava todos os meus pensamentos. Cheguei a ter ímpetos de deixar Recife às pressas e nunca mais pisar no Palácio das Princesas. Arrependo-me até hoje, de não o ter feito naquela tarde...
Somente cheguei ao hotel às nove horas e, lá. já estava uma limousine preta do governo do Estado à minha espera.
Fiquei com raiva. Era uma perseguição a que não me resignava. Fi-lo esperar quase uma hora. Aleguei que ia tomar banho e depois jantar. O motorista não se mostrou aborrecido. Respondeu-me simplesmente que não tinha muita pressa, pois só às dez da noite é que eu seria levado à presença da Primeira Dama. O carro estava ali apenas à minha disposição, inclusive para me levar aos restaurante que escolhesse.
Era precisamente dez horas quando entrei, macam-búzio, no automóvel negro da Primeira Dama do Estado.
Na minha cabeça um torvelinho de pensamentos fervilhava. Não notei muito o percurso seguido pelo carro. Verifiquei, apenas, que caminhávamos quase sempre paralelo às praias e nosso destino parecia ser mesmo Boa Viagem., onde paramos na altura de imponente prédio de apartamentos.
Na entrada do edifício um porteiro recebeu-me amistoso, o que me causou certa estranheza. Acompanhou-me até o apartamento, onde, logo após entrar, senti que trancavam a porta por fora. O fato não me causou surpresa. Esperava isto. Mas a consumação da medida me irritou mais ainda, pois era inegável que eu estava praticamente prisioneiro no apartamento da Primeira Dama do Estado de Pernambuco!
A luxuosa residência estava vazia. Também não me surpreendi. Faria, com toda certeza, parte dos planos traçados pela impudica senhora.
Na ampla sala-living vi, sobre a mesa, garrafas de uísque, caçamba atopetada de gelo, umas garrafas de soda e guaraná.
Nunca a bebida viera tão a propósito. Estava com a garganta seca, devido ao nervosismo que se apossara de mim.
Preparei uma dose dupla, um pouco de soda e, após colocar três pedras grandes de gelo, fui conhecer as dependências da luxuosa moradia da Primeira Dama de Pernambuco.
Deslumbrei-me com o bom gosto. Além da sala-living, ostentando custosas tapeçarias e belos quadros, lustres ricamente adornados, móveis funcionais e finos, o apartamento tinha uma sala de jantar de dimensões regulares, mobiliado a gosto, uma salinha de música onde havia até uma pequena harpa. Três maravilhosos e estonteantes quartos de dormir. Um deles — o principal e maior — possuia móveis antiquissimos e a cama de casal, ao centro, lembrava aqueles móveis franceses da Idade Média, com aquela cobertura de madeira e as rendas em forma de cortina, protegendo a pessoa dos insetos. Havia um discreto e fino perfume pairando na alcova que meu curioso olhar devassava.
Ao abrir uma porta que dava para o interior desse dormitório, deparei com o banheiro privativo, todo formado de azulejos cor de rosa. A banheira, em forma de piscina, era um convite ao banho. Também todo o ambiente estava perfumado.
Voltei ao grande salão e abri as imensas janelas que davam para uma das mais belas e selvagens praia do Brasil: Boa Viagem, com sua areia branca-averme-lhada e leve como talco. A noite estava com uma lua maravilhosa e seus raios tornavam mais alva a areia macia daquele aprazível recanto.
Não recordava, bem, o número do andar em que me encontrava, mas, dali, via perfeitamente os pares amorosos passeando pela praia e ainda alguns casais afoitos sentados na areia, quase junto da água. Senti inveja e vontade de descer para andar descalço naquela areia suave, aveludada, convidativa. Fugi com meu olhar da praia e avancei pelo mar onde o mar colidia, violento na longa paredes de recifes e quebrando toda a força das águas impedia que a ressaca atingisse a avenida asfaltada. Olhei pelo mato que permanece entre a praia e o asfalto, como num desafio permanente a desídia dos governos municipais. Acho que todos os prefeitos do Brasil deveriam visitar as praias de Santos para que observassem como o homem pode aprimorar a beleza natural das praias construindo os mais belos jardins, completando, como num retoque ousado, a moldura que têm o privilégio de terem o mar como atração turística.
Não havia jantado. Fiquei pensando no "Maxim's", o restaurante existente na praia de Boa Viagem, e onde se come a melhor e mais gostosa lagosta do mundo.
Voltei-me para uma poltrona. Sentia uma terrível sensação de solidão, que me irritava a cada minuto. Volta e meia olhava, com raiva, o imenso relógio de pé, que embelezava um canto da grande sala. Seu imperturbável tique-taque entrava pelos meus ouvidos e funcionava como verdadeiro martelo. Já passavam das 11,30 da noite e me sentia perdido naquele enorme apartamento.
Fiquei pensando naquele fausto em que me encontrava e me recordava das condições de miséria total em que viviam os colonos da Primeira Dama nos seus canaviais. Era através do suor daqueles infelizes, da exploração vil de seu trabalho que a Primeira Dama conquistara prestígio político e financeiro. O suor dos camponeses pernambucanos também serviam para mo-biliar belas e riquíssimas "garçonières" como aquela em que me encontrava.
Procurei uma rádio-vitrola, que logo encontrei. Vasculhei algumas estantes e apanhei alguns discos.
A música suave que logo invadiu o ambiente me trouxe um conforto espiritual.
Estava preparando outra dose de uísque, quando ouvi a fechadura da porta mexer-se. Finalmente o singular episódio ia ter começo. A espera se prolongara por longas horas: já atingíramos a meia-noite.
— Cansaste de esperar, meu Aurélio? Sinto. Tive que participar de uma recepção que não estava no programa. O governador foi à Brasilia e nessas condições meus compromissos sempre dobram. É uma chateação, sem limites e tudo sempre envolvendo esses malditos açudes que dão margem a toda sorte de exploração política. Estou exausta!
Quis ser simpático:
— Em absoluto, minha senhora. Eu vim à Recife para servi-la e esperá-la, será sempre um prazer imenso...
— Ah! És também galanteador? Melhor, gosto mais assim... Tu esperas um pouco que vou trocar de roupas.
E ainda de dentro do quarto, gritou para mim: — Aurélio, adoro uísque. Prepara uma dose para mim. Gosto puro, com muito gelo. Vou já, já.
Ao retornar vi que vestia um "pegnoir" azulado, todo almofadado. Entre os dedos um cigarro de filtro. Dirigiu-e direto para a vitrola.
— Que música chata que tu escolheste, Aurélio. Não se coaduna com o momento... Não achas? Tenho uns magníficos discos de Ray Connif. São americanos autênticos. É o grande sucesso do momento nos Estados Unidos, mas totalmente desconhecidos aqui no Brasil. São quatro apenas: tudo o que ele gravou. Escuta, vê que inesquecível orquestra-coro! Quando isto for lançado aqui vai ser um sucessão... Ganhei-os de um amigo que veio recentemente da América.
Vejamos... é... isso mesmo... a quinta faixa do lado "A"...
Quedei-me à escuta e logo as primeiras notas de "Sentimental Journey", invadiram, em ritmo crescente, o salão em que nos encontrávamos.
— O nome do "long-play" é 'S Wonderful... não é mesmo interessante, diferente? Esta é a primeira gravação dele. . .
Ela sentou-se ao meu lado de tal maneira que compreendi, finalmente, o que ela realmente desejava e confesso que essa possibilidade me fez gelar o sangue nas veias. Certamente eu não teria coragem... não teria mesmo! Era a Primeira Dama do Estado! Sabia, sim, os horrores que diziam dela, à boca pequena, nos bastidores da alta política. Mas daí ser eu um deles... não, positivamente isto não estava no meu programa!
Quis levar a conversa para outro rumo: — A senhora vai afinal me dar a resposta para o general ainda hoje? Programei retornar a Brasília amanhã cedo. Ele deseja que sua carta seja também no mesmo estilo da dele: tudo por metáforas, mas não esquecendo o número que é o principal. O avião da FAB vai partir ainda esta semana...
— Não te preocupes com o general. Amanhã telefonarei para ele e, conforme for, darei a resposta que ele deseja pelo próprio telefone. Quanto a ti, Aurélio, não tenhas pressa de retornar à Brasília. O general, tenho certeza, te dispensará por mais alguns dias... É só eu pedir...
— Sei... sei... mas é que... eu tenho outros compromissos particulares e eu já estou há muitos dias em Recife. Estava previsto que eu voltaria no dia seguinte. A senhora compreende...
— Nenhum compromisso pode ser mais importante do que eu, pelo menos neste instante. Concordas?
Sorri um tanto sorumbático e argumentei, buscando uma saída para a situação incomoda: — É. .. mas a senhora nem calcula como estou cansado...
— ótimo, meu filho. Temos aqui a mais macia das camas do Estado de Pernambuco... Tu poderás dormir tranqüilo... num ambiente aromatizado... Que tal?
Pulei, assustado:
— Dormir? Aqui?
— Ora! O que há de anormal nisso, homem? Tu tens alguém que te está esperando lá no hotel? Tu achas aquela imundícia de hotel melhor que este apartamento?
— Mas, minha senhora, e o governador? Ele pode chegar a qualquer momento!
— Deixa de bobagens. Em primeiro lugar o gover nador está em Brasília, muito preocupado em conseguir verbas federais para os açudes e só retornará no fim da semana. Em segundo, o governador não mora aqui.
Reside no Palácio. Ele não sabe da existência deste local. Entendeste, seu bobinho?
Quando nos levantamos em direção ao quarto, vi que todo o esforço que fizesse seria inútil. Estava nervoso demais para fazer ou receber carinhos de qualquer mulher, e principalmente da Primeira Dama do Estado...
E foi realmente o que ocorreu para desespero total da madame, que estava num histerismo animalesco.
De nada, contudo, serviu minha impotência da primeira noite. Ela usou seu prestígio, que não era mesmo pequeno: o general, atendendo ao pedido da Primeira Dama, me obrigou a permanecer em Recife cerca de quinze dias, tempo exato em que fiquei seu amante, satisfazendo-a em todos os caprichos.. .
O dr. Sebastião ouvira o relato de Aurélio com uma expressão de desanimo estampada nos olhos. Não conseguia compreender como a devassidão minava assim os bastidores políticos e sociais deste país. Limitou-se a perguntar: — E o senhor voltou a vê-la, depois de tudo isso?
— Algumas vezes sem, porém, falar-lhe. Foi em algumas solenidades políticas importantes ocorridas em Brasília ou no Rio. É uma figura bem apagada hoje. Seu esposo continua na política e praticamente é ele quem manobra todo o Partido do qual é um dos dirigentes máximos e membro dos mais influentes em toda aquela região. Ela deve continuar, presentemente a dirigir os canaviais que possui por todo o interior de Pernambuco. Eu nunca mais a esqueci, pois só eu mesmo sei o que passei naquela noite e nos dias seguintes, ao lado dessa madame. Ela, porém, já deve ter me esquecido. É lógico...
Interrompi a conversa entre o dr. Sebastião e Aurélio, para perguntar: — Aurélio, todas as vezes que ouço essa história, você sempre se nega a dizer o conteúdo daquela famosa carta do general à Primeira Dama de Pernambuco. Por que? Poderia dizê-lo agora? Faz tanto tempo, acho que não tem mais importância.
— De fato, faz muito tempo. Contudo, não deixa de ser uma revelação perigosa...
— Gostaria também de saber, senhor Aurélio — aparteou o dr. Sebastião.
— Todas as semanas — informou, então, Aurélio — partia para a Bolívia um avião da FAB, em serviço normal do Ministério da Aeronáutica. O percurso fazia parte da linha do COMTA. Às vezes a viagem era feita quinzenalmente. O fato é que, numa dessas viagens, seguia, a bordo, um alto funcionário do Governo, com passaporte diplomático, que permanecia alguns dias em La Paz e retornava ao Brasil. Sua missão era buscar cocaína!
Ante nossa expressão de espanto, Aurélio esclareceu: — A Primeira Dama não era viciada, não. Mas tinha amigos muito bem postos na sociedade pernambucana, assim como o general os tinha em Brasília e Rio, que o eram.. Seria por demais arriscado adquirir o pó das mãos de traficantes. Avião militar nunca é revistado. E ainda que o fosse, as malas de quem possuir passaporte vermelho tem imunidades. Não podem ser abertas. Daí a facilidade. O que o general, também viciado, perguntava à madame, naquela carta, era a quantidade de que necessitava, porque estava para ir até a Bolívia no avião da Força Aérea, o alto funcionário do Itamarati.
— Mas, Aurélio, você acredita que a FAB fizesse tráfico de entorpecentes? — perguntei, abismada.
— É lógico que não, Adelaide. Os militares eram, no caso, autênticos inocentes-úteis. Um funcionário com passaporte diplomático sempre foi recebido com o maior respeito pelos oficiais aviadores que supunham, como era natural, que o mesmo fosse a La Paz com alguma alta missão do Governo Federal. Não tinham a menor participação nesse tráfico vergonhoso, e, se ainda ocorre o presente fato, posso assegurar que ignoram completamente.
— A FAB, no Exterior, só faz linha para a Bolívia?
— inquiriu o dr. Sebastião.
— Não, tem linhas para outros países, entre eles o Paraguai, por exemplo. Mas isto não vem ao caso. O interesse na Bolívia não era a cocaína boliviana. Rico viciado não aceita esse tipo de pó. Só se utiliza, só se satisfaz com a alemã, cuja marca é "Merck". Há facilidades de se obter esse tipo na Bolívia. Olhe, doutor, muita gente boa da Guanabara e de São Paulo recebia esse pó, que vinha da Bolívia, através dos aviões da Força Aérea Brasileira. O general se encarregava de distribuir algumas partes em Brasília. Eu, às vezes, entregava no Rio e até em São Paulo. Porém, quase sempre, os interessados buscavam diretamente no apartamento do general, na Capital Federal.
Nossa conversa se prolongou ainda durante muito tempo. Quando Aurélio saiu do Sanatório, o dr. Sebastião decidiu: não iria procurar a ex-Primeira Dama de Pernambuco sob argumento algum. Desistira da apresentação do amigo político. E, quando ainda estávamos na sala-de-espera do Sanatório, logo após Aurélio sair, na minha frente, rasgou em vários pedaços a missiva que lhe serviria, na Guanabara, de trampolim para um excelente cargo público.
— O que vai fazer, então, doutor? — perguntei.
— Não sei, Adelaide. Mas de uma forma ou de outra preciso sair deste Sanatório. Algo está ocorrendo comigo que me faz tomar essa decisão. É tão grave que não posso lhe dizer. Nem tenho mesmo coragem...
Olhei-o, querendo obter uma confirmação para a duvida que logo me veio à mente: Diana! Sim, o médico negro teria se amasiado com a ex-miss Guarujá, sua irmã de criação, a lider da "greve do Kock", que há quase um mes assolava o Sanatório São Pedro, de Campos do Jordão?
Minha estada em S. Pedro estava quase no fim e logo retornaria a São Paulo. Havia recebido uma carta de uma amiga do Rio, que me pleiteava interferência na sentido de conseguir o internamento de uma jovem de nome Cláudia. Seu estado era grave e requeria imediato tratamento. Conversei longamente com a Madre e consegui a vaga existente, devido à uma alta que o dr. Sebastião havia dado logo no começo da semana. Eu teria que ir ao Rio para ajudar o transporte da moça até o Sanatório S. Pedro.
Belinha também havia obtido licença de uma semana e estava prestes a embarcar para o Rio.
Quando lhe perguntei o que ia fazer na ex-Capital, mostrou-se misteriosa, pondo o dedo indicador sobre os lábios: — Psiu... não fale alto. Nós vamos viajar juntas e no caminho lhe conto. Tapeei a Madre e disse que meus pais se encontram no Rio e ela me deixou ir. O dr. Pedro afiançou à Madre que estou quase curada e que uma semana no Rio não irá alterar meu estado de saúde. Agora, caluda! No ônibus conversaremos, o. k?
Achei graça naquele mistério todo, mas me conformei, apesar da curiosidade natural que se apossara de mim.
Dois dias depois vi-me confortavelmente sentada numa das poltronas do ônibus da Viação Cometa, percorrendo, ao lado de Belinha, a sempre perigosa Via Dutra, em demanda do Rio de Janeiro.
Belinha preferiu utilizar-se do ônibus por ter ficado com receio de enfrentar a estrada com seu automóvel.
— Pois é isso mesmo, Adelaide — dizia-me maliciosa, Belinha. — Todos os anos se celebra, ali uma festa especial. É difícil eu perdê-la. Sempre há a novidade da presença de alguém de fama internacional. Desta feita é o dono da boate quem vem vindo com uma bela artista de Hollywood pendurada no seu Draço...
— O que acho esquisito, Belinha, é o nome dessa boate. É uma imoralidade chocante!
— Belinha riu e repetiu o nome da casa noturna: — "Bocetinha de Ouro", quer nome mais apropriado?
Olhei, assustada, pelos lados, chamando sua atenção: — Fale baixo, menina! Quer que os outros ouçam, sua maluca?
Mas a verdade era essa mesma. Um milionário carioca, que não raras vezes é manchete de jornais pelos seus "casos" amorosos internacionais, montou uma boate particular num dos andares de um edifício de apartamento na rua Domingos Ferreira, em Copacabana. A entrada do prédio é realmente pela Domingos Ferreira, mas há uma passagem subterrânea que dá acesso para avenida Atlântica, permitindo, assim, que seus moradores tenham fácil meio à praia. Nesse prédio, que tem apenas dois apartamentos por andar, o milionário carioca comprou o último andar. Ligou os dois apartamentos internamente e ali instalou uma boate particular, cujo ingresso é dos mais difíceis, pois só quem é de suas estreitas relações pode desfrutar dos grotescos bacanais que vez por outra, são levadas a efeito naquele antro.
A inauguração foi das mais comentadas na sociedade carioca. A maior parte por ouvir dizer, pois poucos são os "privilegiados" que a freqüentam... Nessa festa resolveu-se denominar a boate "Bocetinha de Ouro". Há um famoso cronista social do Rio que conhece todos os pormenores das festas que são realizadas no famoso edifício da Rua Domingos Ferreira.
Agora, anualmente, há a festa de aniversário que sempre é coroada com a presença de alguém de fama internacional.
Era para essa festa que Belinha se dirigia, após ter ludibriado a boa fé da Madre.
O entusiasmo de Belinha era até imoral: — O local é bacanérrimo, Adelaide. Você precisa conhecer para poder acreditar. A entrada é uma só e o nome da boate, lá está, em gás neon, formando um desenho convidativo, no interior da saleta de acesso às demais dependências. No interior, porém, há uma divisão especial. O lado ímpar é destinado à boate onde se brinca, se dança e se faz algumas libertinagens sem maiores conseqüências. O lado par é especial. Chama-se "compartimento dos sem alma". Quando ali se entra, se pendura a alma, simbolicamente, num cabide dourado, Despe-se de toda e qualquer vestimenta e se participa de todas as exigências sexuais que o ambiente devasso impõe.
— Você é uma maluquinha. Esquece-se do seu estado? Você vai piorar, Belinha. Olhe o que estou lhe dizendo!
— O que se leva dessa vida é o que se goza e não o que se deixa, Adelaide.
— Se há tanta exigência para se entrar lá, como é que você o conseguiu?
— Papai é muito amigo do nosso caro miliardário. Ele também freqüentava a boate. E, quando meus pais foram à Europa, fui em companhia de um dos freqüentadores. A primeira vez cheguei a perder o rebolado...
O "compartimento dos sem alma" é escuro, iluminado parcamente pela luz de duas velas. E, nua como Deus me mandou ao mundo, entrei numa sala que só quando minha vista se acostumou bem, notei que era ampla, finamente decorada, com móveis dourados, e um ar perfumado e acolhedor. Aparelhos de ar condicionado eliminavam com rapidez a fumaça dos cigarros. O local se assemelhava, pela aparência e posição dos vários casais, a autêntica bacanal romana dos tempos de Nero. O número de homens idosos é o que decepcionou. Assisti, nesse primeiro dia, uma cena que nunca mais me esqueci, quando um senhor de idade talvez superior a sessenta anos, gritava, em meio a ruidosas gargalhadas, que dava toda sua fortuna e o resto de sua vida, por dez 'minutos de potência... O homem parecia um desvairado. Nesse dia, também houve um acontecimento que teve repercussão internacional. O milionário carioca, dono da boate, trouxe da América uma famosa atriz de cinema. Em meio a festa ela se engraçou com um dos amigos do milionário e acabou a noite com ele, desprezando o rico amiguinho que a trouxera dos Estados Unidos. Dois dias depois ela partiu para Buenos Ayres e o nosso "play-boy" internacional ficou a ver navios... Quando ela voltou para os Estados Unidos, quis passar ainda alguns dias no Rio, mas o milionário traído, que a havia trazido ao Brasil, organizou uma passeata onde várias faixas e cartazes a convidavam a deixar o Brasil, qualificando-a de reles rameira. Foi um escândalo que teve repercussão fora das fronteiras do Brasil. Você não se recorda?
— Agora estou ligando um fato ao outro — respondi, com ar pensativo, como quem perscruta o passado, procurando lembrar-se de um fato que na época foi notório.
— E agora você também sabe a razão pela qual houve a passeata. A origem de tudo está na famosa boate do milionário carioca, que é um dos mais famosos "play-boys" internacionais. Tão famoso quanto o Porfírio Rubirosa...
Fiz o que me era possível para convencer Belinha a não participar do bacanal de aniversário daquela boate infame. Foram baldados meus esforços e inoperante meus argumentos. Belinha estava mesmo entregue à devassidão total e o seu maior prazer se resumia na palavra sexo.
Despedi-me dela na Estação Rodoviária, na praça Mauá.
Só fui vê-la uma semana depois, cadavérica, com profundas olheiras, a demonstrar que seu organismo tivera profunda recaída pelos excessos cometidos no apartamento da rua Domingos Ferreira, em Copacabana.
Da praça Mauá fui direto ao prédio do Ministério da Educação, onde localizei minha amiga e combinamos o encontro para a noite, quando me seria apresentada a jovem Cláudia, que iria para S. Pedro ocupar a vaga que havia nos porões de seu edifício.
Olhando através do vidro da janela do trem que emoldurava o negror da noite, sentia uma terrível sensação e experimentava uma dor aguda em meu peito, ao saber que naquele instante, na longinqua Copacabana, Belinha se entregava aos excessos de uma noite de orgia sexual, na mais torpe das depravações. Procurei esquecer aqueles fatos que causavam revolta à alma, palestrando com a doente que me fazia companhia naquela cabine confortável do "Santa Cruz." Este corria veloz sobre os trilhos, rumo a Pindamonhangaba. O estado de Cláudia era deveras grave. Escolhera aquele meio de locomoção como o melhor para a sua saúde. O trem de aço não pára, normalmente, em Pindamonhangaba. A única parada é em Cruzeiro, depois direto para São Paulo. Porém consegui, da alta direção da Central do Brasil, aquela parada especial, por causa da doente que eles conduziam. Foi uma luta de dois dias para buscar essa autorização, mas no final lograra êxito. Levara ao diretor da Central uma carta do Ministro da Saúde e aquele resolvera, então, atender meu pedido.
Cláudia olhava-me interrogativa. Sua história era sórdida como o procedimento da maioria dos homens públicos do Brasil.
Foi ela quem quebrou o silêncio da cabine-dormitório do "Santa Cruz:"
— Adelaide, você já pensou quantos quilômetros pode correr uma pessoa desesperada dentro de um quarto de oito metros quadrados? Acho que mil, Adelaide. Creio que corri mil quilômetros, com medo daqueles homens desvairados...
Olhei-a e pedi:
— Conte-me o que se passou com você Cláudia. Estou vivamente interessada em conhecer a suas história.
— Eu, mais do que ninguém, Adelaide, precisava da ajuda de pessoas influentes para obter minha internação num sanatório de tuberculosos. A chapa radiográfica acusara a existência de pequenina mancha cinzenta no pulmão esquerdo. Ela poderia agravar-se, se não tentasse a cura. E essa cura, naquela maldita tarde ensolarada, na avenida Atlântica, veio na forma de um alto funcionário do IBC, que ocupava, como responsável, a "suite presidencial" de famoso hotel carioca. Ia atravessar a avenida Atlântica, quando o carro preto, chapa oficial, e o emblema verde-amarelo no parabrisa, parou bem na minha frente.
No seu interior vi um moço, simpático, até bonito mesmo. Usava óculos com aros de tartaruga, mas via que seus olhos eram azuis, de um azul celeste provocante. Era o que necessitava: a pessoa influente que obteria a vaga que tanto almejava nos sanatórios do governo.
Tivemos, de início, uma conversa tola, sem nexo, e pouco depois estava no seu lado, percorrendo toda a extensão da bela avenida Atlântica, rumo ao Leblon.
Tinha um sorriso tranqüilizador, uma voz cheia de meiguice: — Você tem. um corpo provocante, sabe menina?
Ele tinha razão mesmo. Naquele dia a primavera cobria de suave perfume meus vinte anos, dentro de um corpo atraente, com formas bem distribuídas pelos meus sessenta quilos de peso. Eu tinha aparência saudável. Meus dentes eram alvos e perfeitos, bem bran-quinhos, e brilhavam quando ele se apresentou a mim. A doença, efetivamente, ainda não tinha feito qualquer estrago de maior monta em meu organismo.
— Meu nome é Oswalco. .. e o seu?
— Cláudia.
— Bonito nome... é até sugestivo. Carioca?
— Sou, e o senhor?
— Do Paraná, mais precisamente de Londrina. Sou casado e tenho cinco filhos, um dos quais estuda num colégio de Jacarèzinho. Atualmente trabalho no IBC. Você conhece o Paraná?
— Não, nunca estive lá, mas gostaria imensamente de conhecê-lo. Ainda não fui a São Paulo, que é tão pertinho do Rio!
Rio. Não conheço ninguém aqui no Rio. Não só eu como meus amigos gostaríamos de fazer amizades aqui... Desejamos ter companhia para jantar em bons lugares, ir a teatros, boates... Você não teria umas amiguinhas?... Hoje à noite, por exemplo, poderíamos todos jantar lá no apartamento...
Entendera bem o que ele desejara. Mas pouco me importava. Para mim o fim justificava os meios. Julgo que uma gota de mel apanha mais moscas que um tonel de vinagre, precisava de um sanatório. Era questão de vida ou de morte. Oswaldo, naquele instante, representava o sol, a primavera, o verão, a flor desabrochando, porque na verdade, nunca me sentira tão feliz. Depois, veio a decepção e tudo se transformou. Tudo passou a ser borrasca, espinho, tristeza, numa vertigem inesperada, tenebrosa. A noite espêssa, cheia de morcegos, sem esperanças, abateu-se sobre mim e me reduziu ab estado em que me encontro: 24 anos de idade e 32 quilos de peso, com dois pulmões perfurados de cavernas, reduzidos à cinqüenta por cento do seu volume, e exíguas esperanças de sobrevivência...
Grossas lágrimas começaram, a molhar o rosto de Cláudia. Quis confortá-la com palavras e gestos carinhosos. Obriguei-a a descansar um pouco, quando a tosse seca voltou a atacá-la, num acesso que bem revelava como seu organismo se encontrava.
— Éramos quatro jovens. Todas buscando, como eu, um favor dos poderosos que íamos visitar e com eles passar umas horas, — prosseguiu Cláudia.
Uma dela sabia vários idiomas e ambicionava alcançar uma colocação no Exterior, através do próprio IBC. A outra buscava auxilio político para internar um irmãozinho retardado mental e a terceira, funcionária do DCT, queria ser transferida para São Paulo.
Oswaldo achava-se no amplo salão de recepção, à nossa espera. Confesso que me senti mal ante o luxo exagerado que se via no famoso hotel de Copacabana. Tão logo ele me reconheceu, foi ao meu encontro, sorridente. Fomos para o andar superior, onde se fizeram as apresentações. Assustamo-nos: eram nove homens, alguns já idosos. Senti que havia decepção nos olhos da maioria pelo número de moças: quatro para nove homens! Mas que fazer! Não pudera conseguir nove coleguinhas. Mesmo essas quatro moças fora um tra-balhão para convencê-las.
Tomamos alguns drinks, e era pouco mais de nove horas da noite, quando fomos convidadas a ir até o "apartamento-presidencial'. Subimos em quatro casais e os demais cinco homens ficaram no bar do hotel, tomando alguma bebida.
Ficamos bebendo e comendo alguns salgadinhos que o garçon trouxera, durante mais de uma hora. Todas nos estávamos altas. Os homens não escondiam a alegria artificial provocada pelo excesso do álcool. Na mesinha de cabeceira de uma das camas havia um rádio embutido. Ligado, fez penetrar no ambiente sensual melodia. Juntos, os quatros pares ensaiaram os primeiros passos de dança que envolvia o apartamento presidencial do mais famoso hotel do Rio de Janeiro. E nesse enleio próprio do ambiente em que vivíamos àquela hora, nem notamos quando os cinco companheiros de Oswaldo chegaram também no apartamento. Sentimos a presença deles quando a voz enrolada de um anunciou: — Também queremos brincar. . .
Houve, de início, uma euforia. Os olhos dos cinco homens estavam vítreos, indicando alta dosagem alcóolicas. Os novos indivíduos nos cercaram numa roda viva e aos gritos alegres iam forçando a retirada de nossas roupas. A resistência que poderíamos oferecer era mínima e em poucos as quatro estavam completamente nuas no apartamento presidencial.
Começamos a ser jogadas uma a uma contra os homens. Um tal de Carlos gritou que ia começar o futebol e nunca imagináramos que nós seríamos a bola com que os nove tarado se iam divertir. O primeiro pontapé que senti nas costas, violento, aterrorizante, jogou-me na direção de Oswaldo que, sorrindo, me recebeu e com um esforço hercúleo atirou-me para o ar, fazendo-me estatelar no chão atapetado, de pernas abertas, numa atitude lasciva que levou todo mundo ao riso bestial, escancarado. Sem ainda ter-me refeito do susto inicial, senti, de repente, um deles sobre mim, na tentativa de possuir-me violentamente. Rolamos pelo chão, ante a resistência que passei a oferecer. Enquanto isso, as demais companheiras sofriam as mesmas brutalidades no chamado jogo de futebol em que involuntariamente nos transformáramos. Divertimento sádico, no qual nossas lamúrias, nossas queixas, nossos pequenos gritos de dor, contribuíam para maior alegria dos perversos que nos atacavam.
Já estava extenuada quando uma dor aguda oprimiu o meu peito. Uma onde de calor invadiu-me e senti um borbulhar estranho na boca. Um sabor acre, no início, e profundamente salgado logo em seguida, causou-me náuseas e cuspi no tapete. Uma grossa mancha de sangue negro, pastoso, surgiu no belo tapete aveludado do apartamento-presidencial. Gritei desesperada que tivessem piedade: — Estou tuberculosa! Tuberculosa! O dr. Oswaldo disse que era amigo do presidente Juscelino e que ia me ajudar! Pelo amor de Deus! Deixem-me! Parem!
E caí de joelhos, ao lado da mancha púrpura que havia expelido, agitada por um choro convulsivo.
Quatro anos se passaram, após esses acontecimentos marcantes de minha vida. A declaração de que estava tuberculosa criou ambiente de pânico entre os nove homens. Fomos quase enxotadas do apartamento presidencial. A lesão do meu pulmão, pelas sevícias de que havia sido alvo, aumentou consideravelmente. Minha "via crucis" continuou durante três anos e somente hoje consegui, muito tarde, o repouso de um hospital.
A narrativa de Cláudia terminou em choro excitado, violento, trêmulo.
Soube mais tarde, pela própria Cláudia, que o dr. Oswaldo, com a mudança de governo, ainda conseguira ser nomeado procurador da República, em Brasília, cargo que ocupa até hoje.
Acalmei-a como pude e pedindo licença saí da cabine. Precisava respirar. Minha alma, torturada, buscava ar, muito ar. Fui até a interseção dos vagões e abri a porta para receber o vento em pleno rosto.
Segurando o gradil de ferro ia vendo a procissão de vultos escuros que iam correndo com a gente. Vultos negros a inundar-me os olhos. Penetrante, açoitante, o vento fustigava meu rosto, levantando meus cabelos e fazendo com que de meus olhos saltassem lágrimas. Tentei limpar o rosto e notei, então, que as lágrimas que deslizavam de meus olhos não eram provocadas pelo vento. Arrepiei-me toda quando a boca monstruosa de um túnel nos engoliu, mergulhando-nos na total escuridão. Apertei a cabeça entre minhas mãos, fechando fortemente os olhos, tomada pelo desespero que me angustiava. E nessa escuridão, de súbito, vi uma luminosidade que veio lentamente avançando para mim. Abri meus olhos e enxerguei a figura fulgurante, simpática, do presidente Juscelino, com aquele sorriso envolvente. Nas suas mãos a chave do apartamento presidencial...
* * *
O dr. Sebastião, levantando a chapa radiográfica contra a luz da janela, sacudia negativamente. Virou-se, depois, para mim, e o meneio do corpo, o silêncio que impôs ao ambiente e a tristeza de seus olhos, fizeram-me compreender que Cláudia era um caso sem esperanças.
— Quanto tempo de vida, doutor? — perguntei quase num murmúrio.
— É difícil de prognosticar. É certo, porém que no primeiro ataque de hemoptise ela não resistirá. Veio muito tarde para o hospital. ..
Cláudia não resistiu uma semana, falecendo durante um terrível ataque de hemoptise. Fora o presente que o alto funcionário do IBC, e hoje Procurador da República, dera à jovem que o fora procurar, para obter uma vaga num sanatório. Aos vinte anos, a desilusão, seguidos de três anos de descrença. Só alcançou a felicidade aos 24 anos, com a morte que, finalmente, lhe deu o descanço merecido.
As farras do apartamento presidencial são até hoje pagas pelos cofres públicos...
— O Tião ama a Diana, sim Adelaide!
— Isto é um absurdo, Inês. Não acredito. Tudo não passa de um plano dessa sórdida visando destruir o coitado. Tenho certeza...
— Olhe, sua tola. Eu posso provar o que estou dizendo. Digo mais: sou a única que sei dos encontros que têm havido entre os dois na Casa de Hóspedes! Eu os vi pelo menos uma vez entrando lá! Chega isso?
Fiz-me de incrédula: — Todo o sanatório saberia disso se fosse verdade, Inês.
— Não tenho a língua solta, ora! Recorda-se quan do você me contou o que ocorrera entre os dois naquela noite, no interior do apartamento dela? Nada disse a ninguém, mas o fato é que todo mundo sabia, no dia seguinte. A discussão em voz alta despertou as vizinhas e todas viram quando o Tião saiu do apartamento de Diana. Acho que o fato serviu de lição e agora eles se encontram fora do prédio, na Casa de Hóspedes. Não acredito que uma mulher branca se vá submeter a um negro por um simples capricho. Ou ele é gostoso mesmo. .. ou ela gosta dele. Acabou-se, pronto. É isso sim, queira ou não queira, sua palhaça!
— Pois vou investigar e porei tudo em pratos limpos. ..
— Bem, mas o que quero combinar com você é outra coisa. Hoje é o baile de abertura da temporada no Grande Hote. ..
— Que tipo de traje? — interrompi.
— A rigor, mas...
— ótimo, então já sabe que não posso ir. Não trouxe roupa apropriada. Vamos ficar aqui mesmo...
— ... mas... mas... eu me informei e descobri que com um jeitinho a gente entra com qualquer traje... Muita gente vai com traje sem ser a rigor... Tá?
— Muito bem. E o atestado médico? Você sabe que sem o papelzinho do doutor dizendo que você está boazinha de saúde, etc, etc, etc, não entra mesmo. Nada feito, Inês. Nada de bailes, hoje à noite.
Inês rodopiou pelo quarto, rindo, e dos seios puxou dois papéis, exibindo-os vitoriosa: — Aqui os tem, madame. Os dois. Um para mim e outro para você. Ambos assinados pelo dr. Sebastião, o mais simpáticos dos médicos negros do mundo...
Levantei-me, ligeira, e arranquei os papéis das mãos de Inês. Ela apressou-se em retificar: — Mentira, bobinha. Apenas o seu está assinado pelo dr. Sebastião. O meu é de um médico lá da cidade, meu conhecido, e que gosta muito de dinheiro. .. Foi fácil conseguir o atestado desse médico...
— Você pediu para o dr. Sebastião assinar o seu também?
— Pedi, sim. Mas você sabe que ele é um preto metido a puro e falou uma hora para justificar a sua negativa. Quis saber para que era o atestado. Disse-lhe a verdade a aí, então piorou. Não deu mesmo. Para você ele disse que não havia inconveniente algum porque sabia que estava aqui apenas para repouso. É um chato, tá?
Sorri satisfeita pela decisão do dr. Sebastião em ter-se negado a falsificar um atestado.
— Afinal, vai ou não vai ao baile, palhaça?
Ampliei meu sorriso, antes de responder: — Vou sim, sua chata!
No vistoso salão do Grande Hotel, vizinho à boate na qual a música de ritmos modernos gritava e os pares dançavam numa fúria louca, Inês e eu permanecíamos sentadas em cima da mesa verde de bilhar, balançando nossas pernas no vazio. Eu trajava uma calça rancheira com blusa azul. Nos pés, botas que causavam um contraste com a beleza do ambiente. Inês, no seu conjunto fino de calça e blusa e botinha de camurça, chamava a atenção. Era uma bela garota. Na porta houvera um princípio de discussão que foi resolvido com a interferência de um rapaz elegantemente vestido e que, ao se apresentar, ficamos sabendo pertencer à clã dos Ma-tarazzos, uma das mais ricas e tradicionais famílias de São Paulo.
O jovem ficou impressionado pelos cabelos dourados de Inês, que faziam sobressair, ainda mais, a cor verde de seus olhos. Quando ele quis saber onde morávamos, Inês foi rápida na mentira: — Numa casa de campo, na Vila, perto do Tenis Clube.
Resolvemos entrar no salão de danças. Sentei-me numa poltrona macia de couro marrón e fiquei apreciando os pares desusarem pela pista. Inês, quando nossos olhares se cruzavam, me piscava maliciosamente. Estava colada ao rapaz. Logo mais senti fome. Fui até ao bar onde ingeri um refrigerante e comi alguma coisa. Voltando ao salão, Inês tinha sumido com seu par. Fui informada, pelo porteiro, que os dois haviam saído. Voltei' um pouco desanimada e me sentindo só.
Eram duas horas da manhã. O salão quase vazio, sem animação. Positivamente o baile de abertura de temporada fora mesmo um fracasso. E o que mais me irritava era a demorada ausência de Inês, que já me preocupava. Estava num impasse: não podia pedir carona a ninguém do Hotel, nem me utilizar de um táxi. Logo, todo mundo saberia, no baile, que uma moça do Sanatório S. Pedro participara da festa. Seria um escândalo danado. Só o fato de Inês ter saído com aquele rapaz, causava-me arrepios no corpo. Se e'e descobrisse que ela era tísica, o "caso" estaria criado. A família, pelo menos, era bastante poderosa para levar o fato até as últimas conseqüências.
Quando o relógio marcava cerca de duas e meia da manhã, a doidinha chegou, meia descabelada, com a botinha suja de limbo, a calça manchada de verde. Não entrou no hotel. Pediu ao porteiro para me chamar. E ela não precisou me dizer o que fizera com o jovem, até aquela hora. Em seus lábios bailava um sorriso cínico.
Dirigi o carro de Inês até o Sanatório. Na entrada da avenida apedregulhada, porém, o motor do automóvel enguiçou e parou, em definitivo. Inês soltou uma praga: — Vai ver que este desgraçado também está tuberculoso!
Tentamos colocar o veículo em movimento, sem êxito.
— Que fazer, Inês?
— Deixa esta merda aí. Amanhã telefono para a oficina, lá na cidade, para vir buscá-lo. Vamos a pé mesmo.
Saímos do carro e Inês soltou nova imprecação: — Xiii! Que bosta! Olha o frio que está fazendo!
Subimos, em silêncio, a alameda. Nossos pés calca vam os pequenos seixos, fazendo um barulho enervante. Inês avançava toda encolhida, rogando pragas contra o carro. De vez em quando, dizia alto: — Quem gosta de velho é reumatismo mesmo. Já havia dito pro "Velho" que este carro não agüenta o repuxo... Assim que voltar para São Paulo vou jogar esta merda no lixo. Quero um automóvel novo, pronto! Imagine se estivesse chovendo, que titica ia ser...
— Psiu! Silêncio, Inês! Você está falando muito alto e andando muito depressa. O Dito pode acordar e ele é danado pra fazer fuxico.
— Dito, o jardineiro? Ora, você, não sabe que ele foi embora? Arranjou uni emprego em São Jose dos Campos e...
— Psssiiiu! Silêncio! Olhe!
— Upa! Quem será?
Dois vultos acabavam de deixar a Casa de Hóspedes e se dirigiam para o edifício do Sanatório. Voltaram-se quando ouviram o barulho de nossos pés nos pedregulhos. Correram rápidos até o barracão-depósito de lenhas e desapareceram no escuro.
Tudo aconteceu numa fração de minutos. Inês e eu ficamos imóveis. Não sabíamos se retrocedíamos ou continuávamos.
— É o Tião com a miss Guarujá, Adelaide! Juro que é!
— Eu vi também, Inês! Eu acho que são eles, sim! Vamos continuar. Passaremos fingindo que nada vimos.
Fechei os olhos e mordisquei os lábios, tomada pelo ódio, quando passei em frente ao barracão de lenhas. Tião fora mesmo vencido pela insinuante e mordaz Diana!
Mas só muitos meses depois é que vim saber de toda a verdade. As minúcias dos fatos que passo a relatar me foram, após mil e umas peripécias, contadas pelo dr. Sebastião. Juntei-as com pedaços de fatos contados por Inês.
* * *
Eram dez horas da noite. No amplo corredor que dava acesso aos apartamentos da ala "b", o silêncio era apenas interrompido, vez por outra, pela tosse seca das enfermas. Uma porta se abriu, vagarosamente, e o rosto de Diana apareceu, vasculhou o ambiente. Quase um minuto, que pareceu uma eternidade, ela ficou nessa posição. Seus olhos passavam de porta em porta. E, quando se certificou de que ninguém ouvira o barulho que fizera para abrir a porta, saiu decidida. Vestia uma capa de chuva que cobria seu "peignoir" de nylon estofado. Calçava umas sapatilhas silenciosas. Foi indo lentamente pelo corredor, voltando-se a todo instante, para ver se a observavam. Ao certificar-se de que podia andar tranqüila, não mais voltou a cabeça.
Seguiu, resoluta, até o grande salão, e de lá rumou até a ala dos curativos, plantão de enfermagem e residência médica. Foi direto aos aposentos do dr. Sebastião. Não bateu para entrar. Firme, torceu a maçaneta, penetrando no quarto do médico negro.
Na mesinha de cabeceira, um "abajour" estava aceso, iluminando, pálidamente, o recinto.
Diana fechou a porta quase que de modo instantâneo. Recostou-se ofegante, patenteando intenso nervosismo. Pos uma de suas mãos na sua garganta e engoliu em seco. Depois, trêmulo, baixinho, chamou pelo médico: — Tião...
Este, recostado na cama, quase sentado, com um livro às mãos, caído sobre o peito, cochilava.
Abriu desmesuradamente os olhos, assustado. Viu Diana e o pavor se estampou no seu rosto. Puxou rápido, as cobertas até o pescoço e encolheu ligeiro as pernas, sentando-se, mais ainda, na cama.
— Diana! Diana! O que aconteceu! O que a fez vir aqui, em meu quarto?
— Vim vê-lo, ora! Mas fale bem baixinho! A enfermeira pode nos ouvir! Já pensou no escândalo?
— E riu pondo as mãos sobre a boca.
Nos seus olhos, porém, havia um brilho esquisito, assemelhando-se a desdém. Efetivamente, não infundiam confiança.
Diana sentou-se na cama, ao lado do médico negro.
— Não adianta você fugir de mim, Tião. Eu virei procurá-lo, de qualquer forma. Serei sua amante, a qualquer preço. Estou decidida. Não vou terminar a "onda" contra você porque já andam desconfiadas de nós dois. Este meu gesto seria a confirmação do que pensam a nosso respeito. .. Certo?
— Está brincando com fogo, menina! Desde que ocorreu aquele incidente entre nós, você não me saiu mais da cabeça. Mas quanto mais penso em você, tanto mais fujo da sua presença. É uma união impossível de se concretizar. Não sente isto?
— A discrição é a alma de uma boa união. . . Em casa do enforcado não devemos falar em corda. . . Talvez nosso mutismo seja até o sucesso e, sobretudo, a continuidade...
— Não pode haver discrição no interior de um hospital, Diana. Mais cedo ou mais tarde seremos descobertos. É um risco que não podemos e não devemos correr. Viu o resultado de minha ida ao seu apartamento, naquela noite? E depois, mesmo que ninguém visse ou soubesse, não quero mesmo que haja qualquer coisa entre nós. Minha amizade por você poderá crescer, a cada instante, mas sempre espiritualmente, dentro do máximo respeito...
— Fui afoita e errei, pensando que o venceria prontamente. Nossa discussão redundou naquilo. As paredes têm ouvido, sim. Não fomos muito prudentes. Mas, agora, tenho um plano que não pode falhar...
Tião inquiriu-a com os olhos.
— A Casa de Hóspedes, Tião! Quer refúgio mais seguro, discreto, formidável?
E explicou, com pormenores: — Meu noivo não está aqui. Já dispensei as minhas acompanhantes, mas apenas por uns dias, a fim de manter a residência em minhas mãos. Vamos para lá de madrugada. Saímos daqui à meia-noite, no máximo uma hora, e voltamos às duas ou três horas da manhã. Ninguém poderá desconfiar de minha saída. Quase todas as enfermas praticam fugas à noite, para irem amar na cidade. .. Que tal o plano?
— Não sei, loucura, pura loucura... — tartamu-deou o dr. Sebastião.
— Aqui está a chave, seu tolo! Olhe!
E Diana exibia, como se fosse um troféu, a chave da residência de hóspedes do Sanatório S. Pedro.
— Diana, por favor, deixe de loucuras! Isto tudo ainda vai acabar muito mal! Seja compreensiva!
— Não me deixe esperando muito tempo, Tião. Hoje, a uma da manhã, estarei no interior da Casa de Hóspedes, esperando você. Até lá.
Diana se retirou, lesta, sem se voltar. No corredor tomou as mesmas precauções e, pouco depois, deitada de costas olhava fixamente o teto branco de seu quarto, ao mesmo tempo que, nervosa, esfregava as mãos.
No apartamento fronteiro ao seu Inês andava de um canto para outro, não menos inquieta. De quando em quando parava no centro do quarto. Meditava e logo vinha um desabafo: — "Não, não pode ser. Ela não teria coragem! Mas o que terá ido fazer no quarto dele? Os minutos em que lá ficou não davam para nada..."
Na verdade, a ida de Diana aos aposentos do dr. Sebastião tivera uma testemunha: Inês! E tudo correra por mera causalidade. Inês chamara a serviçal e esta não atendera. Fora, então pessoalmente à copa, para tomar um copo de leite. Nesse Ínterim, Diana saiu de seu apartamento e se dirigiu ao quarto do médico negro. Inês viu-a entrando nos aposentos do dr. Sebastião. Viu Diana ainda pelas costas, rapidamente, como ocorrera à entrada da moça. Ficou à espreita e a seguiu, quando esta se retirou. Agora estava matutando para ver se descobria a razão dessa "visita" àquela hora, às escondidas, sem qualquer testemunha visível.
— "Bem, vou me manter à espreita, diariamente. Guardarei segredo absoluto, até descobrir o que está havendo entre ambos. Depois, somente depois, conversarei com Adelaide" — pensou, encerrando a bisbilhotice e se dirigindo ao leito, onde tentou, sem sucesso, mais uma hora conciliar o sono.
Enquanto isto, em seu quarto, o doutor Sebastião, sentado na cama, com os pés para fora, balouçando, meditava profundamente no que acabara de ocorrer.
— "O pior é que pressinto desgraça em tudo! Oh! meu Deus, por que vim parar neste Sanatório?" — e com as mãos apertava freneticamente a cabeça, fechando os olhos como quem deseja fugir dos próprios pensamentos.
A indecisão mortificava-o e, volta e meia, vigiava o relógio. Era um verdadeiro suplício. Os ponteiros pareciam apostar, célebres, uma corrida com as horas.
Ele que desejava ver o tempo paralisado, sentia que o relógio corria mais do que o normal. Logo seria uma hora da manhã e não sentia coragem suficiente para atravessar a porta do edifício e entrar na Casa de Hóspedes.
Levantou-se e foi à janela. Abriu-a. Lá estava a alcova que ela lhe preparara, esperando-o! Dali, do seu quarto, podia perfeitamente enxergar a Casa de Hóspedes, o local do crime! Sim, o crime que ia cometer, possuindo a sua irmã de criação! Não teria senso crítico para compreender a sua ignomínia? E a ética, os seus deveres? Lembrava-se, agora, da afirmativa de um sacerdote: "muitas vezes a honra acaba quando a miséria começa e o olho, que vê tudo, não se ve a si mesmo".
— "Mas aquele demônio é quem veio aqui me tentar! Eu não a procurei, Senhor! Ela é quem está me forçando a fazer o que não quero, o que a minha consciência repudia!
E seus pensamentos se volatilizavam, queimavam-lhe o cérebro, numa tortura desumana.
Voltou-se para o relógio da mesinha de cabeceira: faltavam quinze minutos para uma hora!
Retornou à janela. A neblina naquela noite estava fraca. Chovia miúdo, à semelhança de um choro longo. Fazia frio lá fora, mas o consistente dr. Sebastião estava suando. Um calor invadia-lhe todo o corpo. Suas mãos, trêmulas, alisavam a cada instante o cabelo. Fincou os cotovelos no parapeito da janela e pousou o olhar, fixando-o na Casa de Hóspedes. Alimentava uma esperança, ainda que remota: ela estaria brincando com ele, não iria ao encontro. Seu único objetivo era este: ridicularizá-lo.
Mas, de repente, ele se encolheu todo, como que procurando se ocultar. Seus olhos abriram-se, exageradamente. Lá estava ela, dirigindo-se para a Casa de Hóspedes! Sim, Diana não iria faltar ao encontro! Agora, a decisão dependia dele: ir ou não ir, eis a dúvida que o martirizava.
A carne, contudo, falava mais alto. O coração pareceu dominá-lo e o médico negro vestiu-se às pressas. Lépido, saiu do quarto, dirigindo-se diretamente até a porta de saida.
Lá fora a chuvinha miúda aumentara. Um vento frio gelava os ossos. O dr. Sebastião esfregou as mãos espalmadas, buscando aquecer-se. Sondou, demoradamente, todo o pátio que se limitava com o Sanatório. Deslocou-se rápido até uma das árvores e olhou o prédio, pesquisando-o cautelosamente. Quando se certificou de que ninguém o havia visto, é que se dirigiu, resoluto, para a Casa de Hóspedes.
Suas mãos tremeram, visivelmente, ao girar a maçaneta.
Abriu a porta e entrou rápido, mergulhando em total escuridão. O nervosismo aumentou. Passou a língua pelos lábios ressequidos.
— Venha, Tião, sem receio...
A voz que quebrou o terrível silêncio, repercutiu meiga, do fundo da escuridão, amedrontando ainda mais o médico negro.
— Onde está você, Diana?!... Onde... eu... eu.. .
— Aqui.
E uma luz de lanterna de mão se acendeu, iluminando apenas a passagem para o dr. Sebastião caminhar. Diana prosseguiu: — Nossos encontros vão ser assim Tião, no escuro. Não podemos acender as luzes da casa. Despertaria a atenção. Você concorda apenas com a claridade do "flash-light"?
— É que não a vejo. Espero que minha vista se acostume logo com essa escuridão.
O médico negro foi caminhando em direção ao facho de luz, até chegar bem perto de Diana. Logo sentiu o calor de suas mãos em seu braço, puxando-o para perto de si, obrigando-o a segui-la. O dr. Sebastião senti-a e viu-a contra a luz. Assustou-se mais: Diana estava completamente nua! Ele via, perfeitamente, todas as suas formas!
Cínica, ela levantou o foco de luz que brotava da lanterna e iluminou, veladamente, a cama. E perguntou, irônica: — Gosta?...
Depois, atirando o "flas-light" aceso sobre o leito, voltou-se, tentando enlaçar o dr. Sebastião. Ela era toda lascívia, luxúria, assemelhava-se a uma insaciável cadela em pleno cio!
O médico negro afastou-se, evitando o contato direto.
— Diana... não adianta. Eu sou o médico do Sanatório! O médico do Sanatório, compreende?
Diana estava parada no meio do quarto, como a estátua de carne de uma deusa. Seus olhos refulgiam na semi-escuridão que se fizera no aposento com o pequeno facho de luz oriundo da cama.
Ela pareceu ficar impaciente: — Ora, Tião, se você veio até aqui, tem que completar sua visita! Vamos deixar de besteira! você acaba me enervando!
— Diana, eu vim até aqui querendo lhe mostrar que sou bastante forte para resistir aos seus encantos. Possuí-la não seria problema. Mas eu sou dono daquilo que você não acredita que nós, os negros, temos: moral, consciência, respeito. Vim até aqui para lhe dizer que deixe de ser louquinha. Agora, neste minuto, você vai se vestir e retornar ao seu apartamento!
— Tião, não brinque comigo, estou lhe advertindo!
— ... ou ameaçando?
— Interprete como quiser, mas você vai tirar essa roupa, de qualquer maneira! Será que é insensível? Não está me vendo? Não tenho aquelas formas que atraem um homem? Será que você...
O dr. Sebastião interrompeu-a: — Pare, menina! Seus argumentos não podem, modificar minha posição de respeito, aquele respeito que devo ter, não só por você, como pelas outras doentes que se acham sob os meus cuidados profissionais!
— Cuidados profissionais! — disse a moça cerrando os dentes, num desdém afrontoso, o qual já demonstrava estar se tornando possessa.
— Diana...
— Onde já viu negro ser médico? Como você é pretensioso! Você vai agora decidir: ou me possui ou compra uma inimiga irreconciliável para sempre!
O dr. Sebastião olhou-a, por longo tempo. Seus lábios tremiam e seu rosto, afogueado, assemelhava-se ao de um enfermo muito febril.
— Neste instante, jovem, eu vejo como sou mais elevado que você! Sou negro, sim, mas tenho pelo meu semelhante aquele respeito que lhe falta desde tenra idade. Não sinto medo de suas ameaças!
Virou-se, enraivecido, e tomou o rumo da porta de saída da Casa de Hóspedes.
Diana pareceu ficar endemoninhada. Correu ao seu encontro e tentou atingir-lhe a cabeça com os punhos cerrados: — Desgraçado! Desgraçado! Mil vezes desgraçado! Você me pagará caro por isto!
O dr. Sebastião defendeu-se como pôde, livrando-se do seu ataque histérico. E ao abrir a porta repentinamente, uma lufada de vendo frio fustigou toda a sala, fazendo com que, nua, totalmente nua, Diana recuasse, buscando o calor do dormitório.
O médico negro deixou a porta aberta e dirigiu-se, apressado, para o edifício do Sanatório. Nos seus olhos, grossas lágrimas indicavam o estado de epírito que o martirizava.
Sofria. E em silêncio, sem confidente. Devia padecer, carregava um estigma. Bem feito!... Que sofra calado, quem a mais se atreve do que as suas forças lhe permitem.
O que ele não sabia, entretanto, é que aquele encontro com Diana, na Casa de Hóspedes, tivera uma testemunha: Inês!
Ela vira quando Diana saíra, pouco depois, soltando imprecações, batendo, com violência, os pés nos pedregulhos.
Ela ouvira, acordada, na cama, o barulho da porta do apartamento de Diana, quando esta saíra em direção à Casa de Hóspedes. E também a seguira...
Os dias se passaram com Diana cada vez mais irascível. Seus olhos expeliam o ódio que tomara conta de sua alma. Afastou-se das demais colegas de infortúnio e continuou a arquitetar seus planos em relação ao dr. Sebastião.
Diana tentou, um sem número de vezes, levá-lo novamente à Casa de Hóspedes. O médico negro estava irredutível e se mostrava insensível aos apelos da ardilosa moça.
E ele, por seu turno, longe das visitas de Diana, cuidando tão-somente das enfermas indigentes, permanecia, pelo menos na aparência, calmo. Seu semblante, entretanto, não conseguia esconder uma certa tristeza.
Naquele dia, tudo dava a impressão de correr normalmente no Sanatório.
Às dez horas da noite, quando o médico se recolheu, deparou um envelope sobre sua mesinha de cabeceira. Era de Diana.
Em pequeno, porém incisivo bilhete, dizia que naquela noite, a urna hora da manhã, esperava-o na Casa de Hóspedes: Tião, Por aqueie amor que, sei, nutres por mim, e por todo o bem que te quero, preciso ver-te, hoje, im-preterivelmente, na Casa de Hóspedes. Nada receies. Podes estar tranqüiilo, mas vem, porque tenho algo a falar contigo, que é muito importante.
Vem, sim? Não esqueças que é a uma hora da manha.
Da tua DIANA.”
O dr. Sebastião ficou com a carta em suas mãos durante muito tempo, de pé, olhando, vagamente, pela janela.
— "Oh! Meu Deus, que fiz para suportar esta provação? Ela não desiste de me tentar! Não desiste!"
— murmurava, meneando a cabeça. — "Bem, irei. Não devo demonstrar fraqueza, nem tampouco medo de sua pessoa. Afinal pode ser realmente algo importante. Mas juro, a mim mesmo, que é a última vez que vou àquela maldita Casa!" — e atirou, com revolta, a carta de Diana na cama.
A discussão que houve entre os dois, mais uma vez foi violenta. Por todas maneiras, Diana queria uma atitude do médico, em relação à sua posse. Parecia Guarujá, uma obsessão da linda ex-miss Na verdade, não queria nada. O bilhete fora mais um ardil para atrair o médico negro àquele local e tentar seduzi-lo.
Eram mais de duas e meia da manhã quando ambos saíram, amuados um com o outro. Lentos, silenciosos, caminhavam em direção ao prédio do Sanatório, próximo às árvores frondosas. Nisto ouviram um murmúrio de vozes e o ruído de pisadas nos pedregulhos.
Diana, voltou-se, ligeira, apavorada: — Tião, vem gente! Tião, nos descobriram!
Viraram-se, rápidos, e distinguiram dois vultos que caminhavam em direção ao edifício do Sanatório, lá na curva da alameda! Olharam para os lados. Titubeante, e ao mesmo tempo exaltado, o médico murmurou: — O barracão de lenha! Vamos, escondamos-nos ali! Corra, Diana!
Os dois desaparecem no interior do depósito e aga-charam-se atrás de enorme pilha de madeira.
— Será que nos viram Tião?
— Psiu! Silêncio, menina! Não fale nada! Vamos saber, já já, se nos viram!
As duas pessoas passaram rentes ao barracão. Olharam, displicentemente, para o seu interior. Não pararam e seguiram para o prédio do Sanatório.
O dr. Sebastião respirou, aliviado, e passando o lenço na testa murmurou: — Está vendo no que dão suas loucuras? Eu não tinha nada que estar fazendo aqui. Vim só para saber o que você queria. Calculou se nos vissem? Seria difícil convencer essas testemunhas que estávamos apenas conversando, às três horas da manhã, na porta da Casa de Hóspedes!
— Além de negro, é covarde! — respondeu, com rancor, a bela Diana. — Vamos, vamos embora negro!
— Fique ainda aqui, moça! Temos que dar algum tempo para que as duas se acomodem. Não saia!
Mas, passando um bom lapso de tempo, quando se levantaram e iam sair, voltaram mais rápidos ainda para o interior do barracão: um automóvel em alta velocidade aproximava-se do Sanatório, com seus faróis altos iluminando todo o pátio!
Ouviram uma freada brusca e um abrir e fechar, não menos repentino, de porta. Alguém corria pelos pedregulhos e subia, célere, as escadas, batendo, possesso, na imensa porta de vidro, fazendo enorme barulho!
— Santo Deus! Todo o Sanatório vai acordar! — exclamou, quase fora de si, o doutor Sebastião.
O dia amanhecera ruim para Lilia, uma jovem riograndense que estava há mais de seis meses internada no Sanatório. Os acessos de tosse se sucediam desde as seis horas da manhã. Ninguém pôde continuar dormindo, apesar da madrugada anormal que houvera no Sanatório. O dr. Pedro já fora chamado e lhe ministrava remédios, no afã de combater a tosse e evitar que a mesma se transformasse na sempre temida hemoptise. O apartamento de Lilia situava-se também na ala "b". Esta moça era uma das boas amizades que formei durante a hospedagem no Sanatório São Pedro. Gostava mesmo dela. Conversamos bastante, durante vários dias, e não me lembro de ter tido conhecimento de história mais escabrosa envolvendo membros de uma sociedade, principalmente em se tratando das elites riograndenses, geralmente notável pela discrição. É mesmo uma das mais fechadas sociedades do país, além de ser carregada de um provincianismo marcante. E quando presenciava os sucessivos ataques de Lília, ia me recordando daquela tarde quando, no lago, Lília e sua bela amiga Margareth se banhavam nuas, na inocência de seus quatorze anos. Duas amigas inseparáveis, unidas também nas peraltices. A inocência de ambas nascia de suas vidas pacatas, pobres, da calma cidade do interior onde viviam. Mas, naquela tarde tudo fora diferente.
Longe dos olhos curiosos, entre tinham-se nadando, diversão predileta a que sempre se entregavam.
Passo Fundo é uma cidade situada na região do Vale do Rio Jacuí. Embora o município tenha um território plano, é servido, também, por inúmeros rios e ribeirões. Belos e mansos lagos são formados por esses rios, em locais ermos, agradáveis, convidativos. Lília sabia de um desses lugares e lá ia sempre com sua amiga nas tardes mais quentes e ensolaradas. No verão o município de Passo Fundo chega a ter uma temperatura de 40 graus à sombra.
O susto que sentiram, no instante em que, displicentes, olharam para uma das margens do lago, causou-lhes pavor. Sim, lá estava, na margem, de pé, um homem elegantemente vestido, quebrando de modo metódico, entre os dedos, um pequeno talo de mato verde.
— Olá! A água está boa? Posso ir até aí também?
Mudas, espantadas, numa situação praticamente sem saída, ambas não responderam. Ele insistiu: — Como é que uma loira tão linda assim nasceu sem língua? O problema de vocês é isto.
E, cínico, com ar vitorioso, exibia as roupas das duas jovens, soltando uma gargalhada sonora.
— Moço, por favor, vá embora, o senhor não poderia escolher outra hora para falar com a gente? — implorou, quase chorosa, Margareth.
— Uai! Qual a diferença em conversarmos agora,, aqui, ou em outro lugar?
— Será que o senhor não compreende?...
O moço tinha requintes mesmo perversos. Riu mais alto. Fez um montinho das roupas das duas moças e sentou-se sobre o mesmo. No dedo indicador da mão direita começou a rodar uma das peças íntimas de uma delas, perguntando, desaforado: — De quem é esta?
— Saia daí, saia! Vá embora! Vá! — gritaram as duas moças, já revelando nervosismo na voz.
— Só se prometerem se encontrar comigo hoje à noite.
Lília adiantou-se, rápida, feliz pela proposta que talvez fizesse com que o homem fosse embora: — Aceitamos, sim. Agora vá embora. Puxa, como o senhor é teimoso!
-— E você loira, concorda?
Ela virou-lhe o rosto, enraivecida.
— Bem, então fico aqui, até você decidir.
Voltou-se ligeira, com ódio estampado nos olhos e gritando: — Encontro sim, ordinário!
— Não, não! Assim com raiva não quero. E olhem, não tentem me enganar. Vejam nas minhas mãos.
E, imprudente, exibiu como troféu ganho na batalha, uma máquina fotográfica. — Tenho ótimas poses de vocês aqui dentro! — explicou, vitorioso.
— O senhor é um desavergonhado! — desabafou, Lília.
Ele se levantou, rindo, e acenando lembrou: — Até a noite, no Largo.
* * *
Na suntuosidade do gabinete de trabalho do presidente da grande indústria siderúrgica, os dois homens conversavam, traçando planos financeiros, indiferentes ao calor que reinava lá fora, na bela avenida que cortava a capital de norte a sul. O ar condicionado dava ao ambiente aquele frescor convidativo, até mesmo acariciante.
— É um golpe fabuloso, presidente. Aplica-se relativamente pouco e os lucros surgirão quase sem trabalho nenhum, nos bastidores... ganha-se fábulas!
Quem assim falava era um homem de estatura média, de aparência simpática, trajando vistoso terno de cambraia de linho. Seus olhos miúdos, que se abriam e se fechavam nervosamente, diziam que estava excitado pelo negócio que tratava com o dirigente da grande indústria.
O homem de estatura mediana era uma espécie de diretor-secretário executivo da presidência de uma das maiores siderúrgicas do país. Eram amigos íntimos, inclusive colegas de farras, e nessa amizade, evidentemente, entrava o dinheiro da empresa, dinheiro que cada vez mais fortalecia a fortuna do secretariozinho.
— Esses negócios de títulos às vezes falham — argumentava o presidente.
— Que nada, homem! Hoje, em São Paulo e Rio, há uma verdadeira febre de venda de títulos, letras de câmbio no mercado. Os otários acham o melhor negócio do mundo! Os juros despertam a cupidez dos que têm dinheiro guardado e não sabem o que dele fazer! Grandes indústrias paulistas e até estrangeiras estão vendendo o que querem no mercado de títulos!
— Não, não é verdade. Somente algumas estão se arriscando e às vezes há correrias. Há até rumores de grossa picaretagem nesse negócio e não podemos nos entregar nas mãos de quem pode, amanhã, sem o menor escrúpulo, nos denunciar. Isto, velho, dá cadeia! Lembra-se do "estouro" daquela firma estrangeira, lá em São Paulo? Caiu até na concordata.
— Natural, lógico! Eles foram longe demais. A ganância, somente a ganância é que leva uma empresa, nesse negócio, para o vinagre. Podemos ganhar r.isso mais de um bilhão cada um, homem!
— Não sei, não sei... E se fracassar?
— Nossa firma tem um nome respeitável em todo o país, até no Exterior. Quem vai ter receio de comprar um título de nossa responsabilidade? E outras siderúrgicas, até estrangeiras aqui de Porto Alegre, também não fazem isso? Ligando-se o nome da indústria ao papel, o negócio inspirará tanta confiança nos riograndenses, que estes, apesar de não gastarem muito dinheiro, vão gastar com muita facilidade...
— Estou um pouco receioso... Eu...
— Escuta, "velhinho", você não vai assinar nada. Os títulos serão lançados com a minha assinatura. Quando começarem a vencer pagamos alguns e renovamos outros. Há uns escritórios em São Paulo, Rio e até aqui no Rio Grande do Sul que nos fornecerão os documentos "frios" que justificarão perante os acionistas e o imposto de renda, a duplicata dos títulos. Duplicaremos somente três bilhões de cruzeiros! Conheço ainda dois bancos que fazem uma "triangular" no mercado de títulos e os documentos provenientes dessa manobra são uma beleza para justificar despesas...
— Bem, prepare os planos de lançamento. Quero sentir a aceitação e depois darei a palavra final — sentenciou o presidente.
E depois, saboreando um cafezinho, passaram a conversar sobre o assunto predileto dos dois: a Ilha das Pombas.
Era uma ilha um pouco afastada do tumulto da Capital e onde os milionários de Pôrto Alegre adoravam passar os fins de semana, local quase sagrado dos ricos e onde a classe média e os pobres, em geral, não tinham menor possibilidade de acesso.
A Ilha das Pombas situava-se a quase vinte quilômetros da Capital, no rio Guiabá perto de Sains-Souci.
Depois de percorrer por via fluvial, o rio Guiabá, esplendidamente calmo, exatamente na altura do quilômetro 18, encontra-se o maravilhoso recanto. No início, uma pequena entrada, com pavimentação de pedra, nos conduz ao centro residencial, onde o espírito criador de Niemayer concebeu um prédio de dois andares, colocado sobre duas colunas. As paredes parecem ser inteiramente de vidro. No andar superior, cercado de luxo prodigioso, fica o amplo restaurante que nas noites de festa funciona também como opulento e ornamentado salão de baile.
No térreo, existe o bar, ponto em. que se reúne a elite riograndina, as figuras mais representativas da sociedade e da política de Pôrto Alegre.
Perto do arejado e moderníssimo prédio há a mais original das piscinas do mundo: foi cavada numa enorme pedra, assemelhando-se a um tanque natural. Ao redor da piscina vemos algumas centenas de pedras brancas, semiponteagudas. É curioso observar-se a posição dessas pedras. Nenhuma delas foi ali colocada pela mão do homem, mas todas se acham inclinadas na direção norte. Comenta-se que o vento fortíssimo, que constantemente sopra na Ilha das Pombas, teria feito com que as pedras, depois de certo tempo, se inclinassem naquela direção.
Há ainda uma pequena capela, também toda formada de pedra, possuindo um ar lírico, romântico.
As pedras, quase todas de cor clara, quase branca, é que fornecem o aspecto atraente da Ilha, devendo ser esta a origem do seu nome.
Do alto do grande prédio construído pelo gênio Niemayer, tem-se uma visão panorâmica da Ilha das Pombas. É algo indescritível pela beleza que apresenta: um vale imenso, de mais de cem quilômetros, estendendo-se através das paredes de vidro, num espetáculo de imponência que nos enche de admiração e poesia.
Uma empresa imobiliária encarregou-se de dar o toque moderno à Ilha das Pombas. Ruas e avenidas foram abertas e começaram a erguer vivendas, mansões, palácios e palacetes, ao redor do grande e luxuoso prédio-clube.
A arquitetura riograndense na Ilha das Pombas deu a sua maior demonstração de pujança, bom gosto, arte, beleza! É difícil dizer-se qual a residência mais bela, mais atraente, mais confortável. Todas são admiráveis, além de luxuosíssimas.
No meio de residências e ruas, despontam jardins artisticamente elaborados por algum mestre floricultor do país. Os bancos, situados quase no centro dos canteiros, são convidativos.
Nessa Ilha das Pombas não há lugar para meio termo, no que diz respeito ao dinheiro. É rara a mansão que ali tenha custado menos de 100 milhões de cruzeiros, havendo algumas que ultrapassaram 250 milhões!
É em tal lugar que se reúnem os banqueiros, os industriais, os altos comerciantes, os políticos de situação financeira invejável!
A Ilha das Pombas em tudo se assemelha a um paraíso terrestre, exclusivamente criado por Deus para os ricos, para os multimilionários, e totalmente vedado aos pobres.
É um dos mais famosos lugares do Rio Grande do Sul, e o orgulho dos riograndenses.
E, ali, na Ilha, o presidente da grande siderúrgica e seu amigo íntimo, levavam a efeito os, bacanais mais famosos do "high-society".
Essas farras dos dois amigos eram marcadas por um divertimento especial, predileto: a máquina fotográfica que documentava as facetas mais grotescas desses encontros lúbricos, pecaminosos. E depois, no gabinete de trabalho do presidente, se deliciavam vendo o resultado de suas incursões no mundo da fotografia. Riam a bandeiras despregadas. .. Eles tinham milhares dessas fotos...
Quanto às meninas, estas eram recrutadas, a maior parte das vezes, do interior do Estado. Preparadas psicologicamente, com a oferta sempre inebriante de dinheiros fáceis, o industrial e seu amigo proporcionavam, realmente, uma farra inesquecível às jovens incautas. Havia, contudo, um aspecto grotesco nesse "recrutamento" que se fazia, ora no interior do Estado, ora na própria Capital.
O industrial era um homem riquíssimo. Dominando uma das maiores siderúrgicas do país, possuía ainda, na região de Bagé, no sul-leste do Rio Grande do Sul, grandes fazendas onde algumas centenas de operários trabalhavam. O dinheiro lhe vinha fácil. Dedicava-se também à pecuária possuindo cerca de 20 mil cabeças de gado. Era, porém, de uma ganância sem limites em se tratando de dinheiro. Participava de qualquer negociata desde que esta lhe rendesse mais alguns milhões extras. Procura, entretanto, sempre fugir da responsabilidade: o diretor-secretário, geralmente, era quem assumia o ônus dos problemas mais graves, principalmente quando estes ameaçavam vir a público.
Esse grande poder financeiro do industrial lhe permitia a obtenção das meninas que ambicionava. Seu secretário fazia as viagens pelo interior, visitando, demoradamente, Passo Fundo, Pelotas, Caxias do Sul, Guaporé. As vezes ia até Santana do Livramente, lá em baixo, quase na divisa com o Uruguai. Utilizava-se de seu avião particular, o que sempre impressionava muito...
A escolha era efetivamente meticulosa. Ele, como grande conhecedor de gado, ia inspecionar o rebanho e apontar a novilha mais cara... No caso de encontrar carne mais saborosa, que delícia!...
Passo Fundo, porém, era a cidade que mais fornecia carne humana, fresca, saudável, jovem, à fome incontrolável da dupla de libertinos.
O que havia de revoltante nessa escolha era o tipo de moça atacada pelo secretário, nas suas andanças pelo interior do Estado: procurava sempre as famílias mais miseráveis e que viviam na periferia das cidades. Aos poucos ia se insinuando junto às meninas aparecendo na casa, geralmente de madeira, da moça. Exibia seu poderio econômico, aguçava a cupidez da mãe (quase sempre as meninas não tinha pai) e acabava levando a menina para Pôrto Alegre. Para alcançar esse objetivo fazia uma autêntica compra: deixava largas importâncias financeiras junto a familia e levava a garota prometendo uma vida de fausto para a mesma. Na maioria dos casos as mocinhas não tinham mais do que quinze anos de idade! O canalha "comprava" a "carne branca" que mais lhe apetecia, transformava a inexperiente menina em sua amante durante alguns meses e depois a encaminhava a alguma amiga que se encarregava de colocá-la em casas de prostituição da própria Capital!
Às vezes tornava-se difícil desvencilhar-se da menina. Ela ameaçava ir a polícia, denunciar a atividade dos dois pastranos. O dinheiro, no caso, acaba por silenciar os arroubos das mais afoitas...
Já era impossível contar-se nos dedos o número de garotas compradas pelo industrial sem víceras e que hoje estão entregues à prostituição nos grandes centros urbanos de Minas, Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul.
A última viagem do diretor-secretário tinha sido a Passo Fundo e presentemente estava saciando-se em duas jovens, por uma das quais se apaixonara e o obrigava a ir semanalmente àquela cidade que ficava mais de 300 quilômetros de Pôrto Alegre.
Era a luta de sempre, mas com a qual já estava muito familiarizado: no princípio sempre havia uma forte resistência, não só de parte da moça como da mãe.
Apaixonado por Margareth, irritava-se por sentir que não era correspondido. Tinha, contudo, um forte aliado: a mãe da moça, que olhava sua fortuna como a solução dos problemas econômicos, num futuro não muito remoto. A jovem se encontrava com o namorado rico quase forçada pela ambiciosa genitora.
A outra era uma menina de nome Lília, bonita também, e que estava sendo psicologicamente preparada para pertencer ao famoso e libidinoso industrial.
A ida das duas para a Capital, entretanto, foi demorada, em face da notável antipatia de Margareth pelo namorado rico. E quando a mãe insistia para ser mais compreensiva, ela desabafava, demonstrando uma irritação quase incontrolável: — Eu não o suporto, mamãe. É antipático, cínico, sem moral, e depois é bem mais baixo do que eu!
— Mas sua mãe a acalmava, cobiçosa: — Que tem isso, filhinha? Ele é rico, muito rico! Não deve perder este partido! Lembre-se que o amor é coisa secundária. Falo com experiência própria. O casamento é o túmulo do amor! "Casa e verás que bem dormirás", diz o ditado.
E as discussões eram. intermináveis entre mãe e filha.
Por outro lado, a formosura da mocinha enlouquecia o namorado que, a par do ciúme doentio que o dominava, queria transferi-la para Porto Alegre, onde seus intentos seriam mais facilmente alcançados.
As várias arremetidas, nesse sentido, surtiam os efeitos desejados, e a filha, com a mãe cheia de avidez, foi morar na Capital do Estado, indo residir, inicialmente, num pequeno mas confortável apartamento, situado no centro da cidade.
Lília também foi convenientemente conquistada e depois de sua mãe receber trezentos mil cruzeiros, deixou sua cidade natal, sua vida pacata e ingressou no falso fausto que o miliardário industrial lhe propiciava. Com o tempo se acostumou com as grandes bacanais da Ilha das Pombas, onde ela passou a conhecer o mais luxuoso lupanas de Porto Alegre.
Margareth, entretanto, era o segredo mantido para seu amigo íntimo.
Ela também conheceu o famoso logradouro num dia de semana, sem testemunhas indiscretas, e lá foi possuída pelo noivo num ambiente lascivo, preparado habilmente por ele.
A posse despertou maior amor pela moça, que então, já era conhecida da sociedade mineira.
O secretário alimentava algo mais sério por Margareth e passou a acompanhá-la nos locais mais conhecidos e freqüentados pelo que havia de mais selecionado do ambiente social riograndino. Margareth ficou co nhecida de toda a cidade. Sua fotografia foi estampada, a peso de ouro, na maioria dos jornais, nas revistas e até na televisão. Mas ninguém sabia a origem da moça. O amor, os encontros fortuitos de ambos, eram mantidos no mais absoluto sigilo. Em verdade, o diretor-secretário estava preparando um grande golpe financeiro em cima do seu amigo presidente e companheiro de diretoria.
Mas o inevitável aconteceu: Margareth ficou grávida!
O milionário recorreu às suas posses, a fim de escondê-la. Adquiriu o custoso "Palácio da Encosta", nome como passou a ser conhecida a luxuosa residência do diretor-secretário do grande industrial do Rio Grande.
O parto ocorreu na própria mansão, tendo o auxílio de médicos e parteiras vindos especialmente do Rio.
Margareth era mãe com apenas 16 anos de idade!
O casamento entre ambos não se realizava por dois motivos principais: o diretor-secretário desejava que esse casamento fosse o maior acontecimento social do ano na Capital e segundo, desejava conquistar a amante que sabia ainda o repudiava. Seu ciúme, com isso, aumentava gradativamente. Sabia que a moça não sendo virgem., por vingança, se entregaria a alguém, pagando assim, tudo o que ele lhe fizera com o auxílio da própria mãe.
Finalmente, não foi mais possível esconder do grande público e do amigo a existência do amor entre ambos. Teve que ficar então, oficialmente, noivo, numa festa que foi comentadíssima em Pôrto Alegre.
Margareth aos poucos ficou sabendo das atividades dos dois amigos. Lília, que já estava sendo desprezada pelo amante, numa tarde, no interior de uma leiteria, contou tudo a sua amiga.
— Não serei jogada às traças, assim, não! — desabafava Lília.
— Mas o que você vai fazer?
— Eu o denuncio à polícia e conto tudo, inclusive o nome de todas as meninas que ele "comprou" no interior do Estado! Será um escândalo! Ainda sou menor, é fácil lhe dar uma dor de cabeça que ele nunca mais esquecerá...
Enquanto as duas infelizes confessavam entre si suas desditas, o noivo de Margareth começava a ter os primeiros grandes tropeços financeiros. O negócio da venda dos títulos estava começando a criar embaraços para a empresa. Havia falta de dinheiro e os vencimentos estavam sendo protelados, diariamente. Nos meios econômicos já haviam rumores de "concordata" da grande siderúrgica. Os bancos iniciavam uma série de restrições creditícias.
A incompatibilidade entre o industrial e seu amigo íntimo era cada vez mais acentuada. A situação financeira da indústria era a causa desse amuo, desses desentendimentos. E a insinuação, contida num tópico de um matutino de Pôrto Alegre, foi a gôta d'água que os colocou definitivamente em profunda divergência: — Você está ficando louco! Se impedir a venda de novos títulos não teremos possibilidade de cobrir o "buraco" da caixa e tudo vai por água abaixo! A paralização de numerário tem sido porque você anda gastando muito ultimamente e tem faltado numerário para pagar os títulos mais importantes! Há uma desconfiança que poderemos eliminar com novos lançamentos e conseqüente pagamento das promissórias já vencidas.
— No princípio você falou em um bilhão para cada um. Não vi a cor desse dinheiro e os títulos reclamados atingem a mais de três bilhões de cruzeiros! Aonde você quer que eu vá buscar essa importância? Pensa que tenho alguma máquina de fabricar dinheiro? Na verdade, oficialmente, não tenho nenhuma responsabilidade na emissão dessas letras. Estão assinadas por você. Posso transformar isso num desfalque e colocá-lo na cadeia. O que acha disso?
— Quer dizer que. . .
— Exatamente, você tem que repor os três bilhões de cruzeiros, o mais rapidamente, na caixa da empresa!
— Mas eu vou ficar na miséria se fizer isso! Vou ficar arruinado!
— No fim quem vai ficar arruinado serei eu. A continuidade dessas emissões poderá nos levar à falência. Ficarei desacreditado. E que direi aos acionistas?
— Há possibilidades de recuperação disso numa outra jogada financeira. Acho que...
— Chega! Chega! — gritou o presidente, cerrando os punhos e batendo-os brutalmente no tampo de vidro da mesa. — Não adianta vir com argumentos chulos! Não me convence. Nem mais um título, eu disse e está decidido! Quero, ainda esta semana, os três bilhões nos cofres da companhia!
A violência da discussão fez com que o secretário se levantasse, inopinado, e vociferasse: — Posso lhe assegurar que isto não ficará assim. Você vai reconsiderar esta decisão!
Ficou uma semana sem aparecer no gabinete do Presidente e, quando retornou, o seu destino já estava determinado pelo amigo: não podia passar da ante-sala! O presidente não mais o receberia!
Renovadas tentativas foram levadas a efeito, mas o presidente estava irredutível.
E, quanto essa luta entre os dois ex-amigos se travava, outra batalha de bastidores recrudescia: a luta da grande siderúrgica para sobreviver e o escândalo não vir a público. Todas as manobras eram feitas junto aos veículos de divulgação. Cada centímetro de silêncio era comprado a peso de ouro, tanto pelo industrial como pelo próprio diretor-secretário que temia um escândalo em torno de seu nome.
Foi quando aconteceu o que nenhum dos dois esperava: Lília compareceu à polícia e denunciou o presidente da grande indústria como corruptor de menores. Ela era apenas uma das inúmeras vítimas!
O escândalo tomou proporções gigantescas. Era assunto obrigatório de todas as rodas. Os reflexos na indústria eram terríveis. Os jornais, rádio e televisões se dividiram na defesa do industrial. As outras meninas que tinha sido seduzidas pelo industrial se apresentaram à polícia. Alguns afirmavam que era uma chantagem que se estava preparando contra a empresa desmoralizando-se o seu dirigente máximo. Muitas das depoentes eram prostitutas fichadas. Não havia, na realidade, nenhuma prova palpável. As moças foram apontadas à opinião pública como freqüentadoras de bordéis e o rumoroso escândalo ia ganhando âmbito nacional.
Ao todo foram instaurados 19 processos contra o libidinoso industrial!
Do lado do diretor-secretário a situação estava não menos terrível. Atravessando uma fase financeira das mais difíceis, com seu ex-amigo fazendo ameaças espantosas, foi obrigado a repor parte da quantia: mais da metade.
A sua amante estava novamente grávida e ele precisava casar rapidamente. Tudo acontecera tão de repente que ele estava quase louco.
Naquela noite estava acabrunhado, quando chegou à rica mansão onde morava, em companhia da amante e da genitora desta: Perdi milhões em um negócio mal conduzido! — murmurou, quando interpelado pela amante.
A mãe da jovem levantou-se, nervosa. Queria saber dos pormenores e quando ele aventou a possibilidade de ter que vender a luxuosa mansão e mudar-se para o interior, a fim de recomeçar a vida, a velha e inte-resseira senhora explodiu: — Você está maluco? E a repercussão desse gesto? Esquece-se que temos agitada vida social? Você não tem amigos? Tem, sim! Eu sei que tem! Peça dinheiro emprestado a eles!
— Ora, deixem-me em paz! Vocês não viviam num casebre, com parcos recursos, no interior? Pior que agora não podemos viver todos juntos? Eu caso com sua filha e pronto, tudo fica legal...
— Nunca! Você tem que remediar esta situação!
— exclamou, decidida, a mãe de Margareth, que por sua vez, não parecia muito preocupada com a perspectiva do seu futuro.
— Não ligue para isto, mamãe. Todos os meus sonhos foram desfeitos mesmo. Tenho uma filha de quase um ano, um outro de quase mês e meio no ventre, e nem sequer sou casada! Tenho uma vida falsa, mentirosa, às escondidas de todo o mundo. Quer escândalo maior se descobrissem que eu tenho um filho ilegítimo? Que a noiva do diretor da maior siderúrgica do país está grávida pela segunda vez? Que sou mãe solteira? Sinceramente, mamãe, ando tão desiludida que seria maravilhoso se voltássemos mesmo para o interior, longe desse bulício, dessa elite corrompida, falida, imunda!
A dicussão entre os três se prolongou durante muito tempo ainda, quando o ex-secretário, de repente, parou de falar para abrir os olhos, imprimindo-lhes um brilho maquiavélico. Estalou os dedos e exclamou, eufórico: Deixou as duas quase perplexa no meio do amplo salão e subiu aos saltos a escadaria que dava acesso aos pavimentos superiores da mansão.
Numa caixa que mantinha cuidadosamente guardada no interior de um dos armários de seu quarto, tirou vários envelopes, e gritou, vitorioso: — Os negativos! Ah! Os negativos! Agora ele me paga!
Alguns dias depois o presidente da siderúrgica, ao abrir a sua correspondência reservada, encontrou algo que o estarreceu: a primeira prova de uma pequena revista integralmente formada por fotografias. Em todas elas estava ele, presidente da grande empresa, nas posições mais escabrosas possíveis, participando de bacanais, no interior de sua mansão, na Ilha das Pombas! Lá estava Lília e grande parte das mocinhas que o haviam denunciado na polícia! A prova! A prova que o levaria para a cadeia! A prova que levaria sua empresa para a falência pela desmoralização total!-
Num papel, escrito à máquina, um aviso: "Estarei hoje, às 15,00 h, na sua ante-sala, e espero ser recebido". Não tinha assinatura, mas não era necessário. A origem estava muito bem identificada!
— "Chantagem! Chantagem, é o que ele vem me propor"! — murmurava, raivoso, vomitando pragas, tomado de visível rancor E eram realmente quinze horas quando, para espanto da maioria dos funcionários do gabinete, o presidente mandou entrar o seu ex-secretário, o homem que dera um desfalque de mais de três bilhões de cruzeiros, quase, levara a empresa à falência!
— Qual é o seu preço, canalha? — vociferou o presidente, tão logo seu ex-secretário entrou na Sala.
— Calma, homem! O que é isto? Deixa-me olhar essa sala de tão gratas recordações! Confesso que estava com saudade disso tudo! Pensei que nunca mais entraria aqui. ..
Havia uma ironia enervante na voz e nos gestos do ex-secretário.
O ambiente estava pesado.
— Quanto? perguntou, com rancor na voz, e lacónicamente, o presidente.
— Xiii! Como você está chato, hoje!
— Quanto? Quanto? Não quero muita conversa!
— Afinal você deveria tratar com mais carinho, com mais atenção, quem foi o seu mais autêntico secretário para os negócios sexuais, não acha? Você sabe qual é o preço. Tive que repor mais de um bilhão na caixa da empresa. Tenho um "rombo" ai que ainda não foi coberto. Quero um documento seu, assinado, com firma reconhecida — temos um tabelião em que podemos confiar — e através do qual você assume toda a responsabilidade pelo "buraco" e vai repor centavo por centavo. O que fiz foi só cumprir ordens suas. É o que dirá nesse documento. Tenho ainda algumas dívidas grandinhas que a sua insensatez contribuiu para que eu adquirisse.
— Quanto? — insistia, cada vez mais nervoso, o presidente.
— Trezentos milhões!
— Você está ficando louco! É muito!
— Trezentos milhões de cruzeiros! Quer que eu repita, mais uma vez? Quero trezentos milhões de cruzeiros!
Houve um silêncio sepulcral na ampla sala da presidência.
O presidente olhou-o, rancoroso. Seus dedos tremiam, demonstrando a profunda tensão nervosa de que estava acometido. Finalmente declarou: — Dou a metade!
— Então, até logo. Mandarei fazer as revistas e as distribuirei por toda Pôrto Alegre, além de entregá-las à Lília para que ela anexe ao processo que já está no fórum. Há ainda um texto que não foi composto e que tornará a Ilha das Pombas o lugar mais famoso do Brasil!
Sorriu e deu um sinal de adeus com as mãos.
Não chegou a virar-se. O presidente quase gritou: — Espere, canalha! Eu dou o dinheiro! Não é possível, contudo, dar de uma só vez. Darei em três parcelas.
— ótimo, vejo que já começou a tomar juízo. Mas os negativos, só os terá, na totalidade, quando efetuar o último pagamento. O.K.?
— Daqui a uma semana darei a primeira parcela de 100 milhões... e . ..
— Está ótimo! ótimo! ótimo! — interrompeu o ex-secretário. — Mas há algo mais que desejo: aparentemente fizemos as pazes...
— Sem pazes! Sem retorno a qualquer vislumbre de amizade! — gritou, mais nervoso ainda, o presidente, tentando impedir que o moço continuasse.
— Calma! Calma, homem! Deixe -me concluir, depois você responde, ora!
— Você é um verme! O verme mais podre que Deus jogou sobre a face da terra! Descobri que você deu uma pequena fortuna para cada uma dessas puti-nhas para que elas me acusassem na policia! Não quero vê-lo na minha frente! Você é o autor intelectual de toda essa podridão que está explodindo por todo Pôrto Alegre.
— Você tem que me ouvir, homem!
O presidente ficou em silêncio como que esperando a segunda parte da proposta. E ele continuou: — Nossa amizade somente findará por ocasião do último pagamento. Daqui a um mês vou me casar. Quero seu apoio para transformar isto num acontecimento social sem precedentes em Pôrto Alegre.
— Impossível! Todo Pôrto Alegre sabe o que você fez comigo!
— Eu exijo que assim seja! E lembre-se, eu estou em condições de exigir. Você não.
E encaminhou-se para a porta, como que encerrando a discussão. De súbito voltou-se, sorrindo: — Até o dia 15, irmão!
Quando o ex-secretário chegou à mansão da encosta, estava eufórico.
O casamento foi logo discutido e marcado para daí a um mês. Não seria possível esperar mais, em virtude do estado da noiva: dois meses quase de gravidez!
* * *
— Não me casarei vestida de noiva, mamãe! Isto é uma afronta a Deus! Não sou virgem e já tenho quase dois filhos! Não, mamãe, tenho até vergonha de pensar nisto!
— Você ficou doida, minha filha? E o escândalo? Precisamos manter as aparências! Onde já se viu? Você vai casar com um dos homens mais ricos do Rio Grande do Sul! Toda a sociedade vai prestigiar o grande acontecimento social e não quer se casar vestida de noiva? Não pensa na coitada de sua mãe? Não pensa na sociedade que você freqüenta?
— Mamãe, não posso!
— Pode, sim, e vai casar-se como toda moça normal se casa!
— Só no civil, mamãe! E lembre-se, vou me casar com um homem que detesto!
* * *
A igreja estava maravilhosamente ornamentada de rosas brancas. O órgão derramava no recinto os acordes da marcha nupcial, enquanto o coro, bem ao fundo, tornava mais suave ainda o interior do templo superlotado, repleto de amigos e curiosos que desejavam ver a íouríssima e linda noiva do ano!
Lá estava o Governador do Estado, em pessoa, prestigiando a solenidade religiosa. Todo o secretariado do governo achava-se presente e as figuras mais representativas da sociedade exibiam os custosíssimos trajes. Era o grande acontecimento social da cidade!
Um longo murmurio correu por toda a nave da igreja quando a bela Margareth entrou no templo e desfilou, meiga, corada, pelo corredor, em direção ao altar.
Diante do altar, os olhos tristes da moça encararam a imagem de Jesus e duas lágrimas principiaram a se formar no canto dos olhos.
Eia estava toda de branco, com um enorme véu e a grinalda onde não faltavam os. pequenos ramos de laranjeiras, indicando pureza!
Ali estava ela, representando a castidade perante o altar de Cristo, tendo um filho no ventre de quase três meses!
Seus olhos estavam tristes, porém ela conseguiu sorrir para a multidão de fotógrafos que se acotovelava, atrás do sacerdote que abençoava o casal. E foi com esse sorriso luminoso que ela saiu na capa de várias revistas importantes do país!
Quando a siderúrgica, lá está ela, imponente, representando o poder econômico imbatível! Ela se recuperou totalmente. Todas as moças retiraram a queixa contra o grande industrial e Lilia teve um tratamento especial. Continuou a freqüentar a sociedade, mas a sua vida de devassidão lhe afetou os pulmões e hoje se encontrava internada num rico sanatório para tuberculosas, em Campos do Jordão.
Mas quem quiser conhecer maiores detalhes desse escândalo que abalou a sociedade riograndina pode encontrar no Fórum de Pôrto Alegre o volumoso processo, arquivado, é verdade, mas como documento da grande devassidão que há nos bastidores das elites, que teima em se apresentar com uma capa de austeridade que é a pior prova de sua falsidade.
Tenho até hoje marcados, indelevelmente em meu espírito, os horrores das cenas a que assisti e que jamais olvidei. Parece-me, até agora, que fui, naquelas horas, atraída espiritualmente para aquele local, e Deus me deu a infelicidade de ver aqueles acontecimentos para que fosse testemunha do crime!
Naquela noite saíra com o dr. Pedro para dar umas voltas e esquecer, momentaneamente, os problemas que, nas últimas horas, haviam surgido no Sanatório.
A Madre tinha conversado seriamente comigo e tudo indicava que ela estava bastante aborrecida com os fatos ocorridos na última madrugada, envolvendo o turista de Campos do Jordão e Inês. Por mais que argumentasse, foi-me de todo impossível convencer a responsável pelo Sanatório que eu nada tivera com a saída da jovem tuberculosa. Ela, pelo menos no seu íntimo, entendia que eu havia persuadido Inês a passear comigo e o resultado fora aquele escândalo que acordara todo o hospital, às três horas da manhã!
Prometera à Madre que nos próximos dias, então, deixaria S. Pedro, a fim de que não me fossem atribuídas as peraltices das enfermas.
Foi uma das últimas vezes que me avistei com a Madre. E, desde aquele instante em que conversáramos, entrei em grande mutismo, tristeza que nem as malu-quices de Belinha e Inês conseguiram modificar.
Saíra às escondidas do Sanatório. Não queria que a Madre tomasse conhecimento de que me encontrava fora. Se houvesse a coincidência com a saída de alguma enferma, certamente as discussões recrudesceriam.
Estivemos no Pico do Itapeva, visitamos a "Cabana do Tarzan", quando, de repente, os primeiros relâmpagos começaram a riscar o céu negro, anunciando uma borrasca inesperada: — Dr. Pedro, vamos embora, são quase dez horas. A chuva vem vindo aí, feia como ela só. Não quero que a Madre perceba a minha saída.
O carro do dr. Pedro cortava veloz as estradas, na direção do Sanatório. Nuvens pardacentas, sombrias, pairavam à baixa altura, correndo sobre as colinas como monstros vagando pela noite escura. Os trovões eram contínuos, estrondosos, e um vento sibilante vergava as árvores mais copadas.
Nas imediações do Sanatório desci do automóvel do médico. Não queria que ele fosse até a porta do prédio, a fim de que não ouvissem o barulho do motor e chamasse a atenção da Irmã Francisca, descobrindo-se, assim, que eu havia saído.
Preferi fazer aqueles quase mil metros a pé, muito embora a noite estivesse negra como a consciência de um criminoso nato.
Mal o carro do dr. Pedro desapareceu na primeira curva da estrada, os primeiros pingos grossos d'água começaram a cair. Foi uma tempestade rápida, violenta, que em poucos minutos me tirou totalmente a visão. Corri como louca, conseguindo alcançar o depósito de lenhas, onde busquei abrigo contra a borrasca que caía impiedosa, sincopada de trovões assustadores e relâmpagos mais terríveis ainda.
Subi numa pilha de lenha, bem alta, e me deitei ali, ofegante, com o vestido quase todo molhado. No telhado de zingo, os pingos d'água se assemelhavam, ao som de um metralhar contínuo. A cada minuto me assustava mais.
Rebentava uma dessas tempestades curtas que, volta e meia, assolam Campos de Jordão. E, nem. passados dez minutos, o ritmo violento arrefeceu e logo se transformou numa chuva miúda, fina, gelada.
Apressava-me para sair de cima da pilha de madeiras, quando ouvi uma corrida de pés sobre os seixos molhados da alameda. Vi dois vultos, de mãos dadas, entrarem rápidos no depósito de lenhas!
Reconheci logo um deles: era Diana, com seus pretos cabelos esvoaçantes, em rebuliço, de vestido molhado colado ao corpo.
Seu acompanhante vinha com um capuz na cabeça, formado por um saco de estôpa, caído pelas costas, protegendo-se da chuva. Não dava para reconhecer o par de Diana.
Aquela entrada brusca, no interior do depósito, tornara-me muda, estática. Nem respirava, com receio de ser descoberta!
— Fique aqui, escondido, junto dessas madeiras. Não fale nada. Eli O trarei até este ponto. Espere que logo voltarei.
A voz de Diana era imperativa, mas denotava grande nervosismo.
A pessoa com quem ela falava puxou um Cigarro e juntando as duas mãos em forma de concha, para evitar o vento, riscou o fósforo.
— Dr. Sebastião! — exclamei, apavorada e sobr-tudo, decepcionada.
A luz do fósforo iluminou o suficiente para que lhe visse as mãos negras, brilhantes, as faces escuras, muito embora o capuz escondesse quase toda a sua fisionomia. A luz contribuiu, ainda, para eu constatar o tremor violento que tomava conta das mãos do negro, Ali, encostado atrás de uma pilha de madeira, com olhos esbugalhados, eu via, de modo instantâneo, fugaz, o rosto do médico negro se iluminar quando ele levava o cigarro à boca e absorvia a fumaça.
A chuva começou a apertar novamente e o barulho ensurdecedor dos pingos d'água, tamborilando sobre o telhado de zinco, voltou a invadir todo o depósito de lenha. Relâmpagos zebraram o céu negro, num espetáculo apavorante.
Foi neste instante que Diana entrou na casa de lenhas, acompanhada do noivo.
— Vamos esperar aqui — disse, ofegante, a jovem.
— Você tem certeza, querida, que ele virá?
— Eu lhe disse que provaria, não disse? Vamos mais para o fundo porque os respingos de chuva estão aumentando muito.
Eu assistia a tudo sem. nada compreender. O que notara era a profunda tensão nervosa de Diana, cuja voz estava rouca, gaguejante, misteriosa. A friagem da noite e da roupa molhada lhe dera repetidos ataques de tosse, que eram abafados pelo barulho da chuva caindo no telhado do depósito de lenhas.
O vulto do dr. Sebastião havia apagado, rápido, o cigarro, à entrada dos dois. Pisara a ponta, esfregando-a, a fim de que nada fosse percebido. Encolhera-se mais, atrás das madeiras. Seus olhos luziam no escuro.
O noivo de Diana foi se aproximando do lugar onde o médico negro se encontrava e ficaram ali, conversando baixinho.
De repente, a sombra do dr. Sebastião pulou como um gato sobre o noivo de Diana! Numa das mãos trazia uma acha de lenha que desceu sobre a cabeça do rapaz!
Praticamente, não houve tempo de reação! Tudo fora inesperado, apavorante, terrível!
— Bata mais! Mais! Mais! — gritava Diana, como que tomada de intenso histerismo.
Os relâmpagos iluminavam repetidamente aquela cena tétrica e eu me sentia desfalecer de pavor.
— Mata! Mata!
E Diana parecia louca, com os cabelos molhados, caídos sobre os ombros, e enorme quantidade grudada na face e na testa! Seus olhos, imensamente abertos, completavam-lhe a demência!
o terror apossou-se de mim. Perdi os sentidos.
Quando acordei, o depósito estava vazio. A chuva, bem mais fraca, continuava a cair. Olhei, lentamente, para o local, onde pouco antes assistira ao terrível crime. Tinha receio de abrir os olhos. Quisera que tudo não tivesse passado de angustiante pesadelo. Fui-me arrastando pelas pilhas e emergi na beirada com os olhos fixos no chão, para logo em seguida dar um grito de . desespero!
Lá estava o corpo do noivo de Diana, com a cabeça toda esfacelada, os olhos esbugalhados, parados, como que me fitando, implorando o meu testemunho!
Despenquei-me da pilha de madeiras e corri, aterrorizada, para o edifício do Sanatório.
Não sei como atingi o meu apartamento. Caí na cama vestida e encharcada como estava, tomada de um choro convulsivo. Era um alívio tonificante para os meus nervos que, durante tanto tempo, estivera à flor da pele!
— "Ele é um assassino! Um assassino! E tudo por causa daquela cadela! Oh! Meu Deus! Toda a minha luta, os meus ideais, destroçados perante essa cambada que amanhã estará comentando o crime!" — E uma seqüência de pensamentos, ia me martirizando. A cena do crime se repetia, a todo o instante, na minha mente. Via a chegada, pela primeira vez, do dr. Sebastião ao Sanatório, o nosso encontro, e as cenas deprimentes, logo à entrada do edifício, com todas as enfermas milionárias lhe atirando em pleno rosto os pequenos buquês de flores de pereiras, que antes haviam preparado com tanto carinho para a recepção do novo médico. Em minha cabeça louca, repetia-se, a cada momento, tudo a que assistira naquele Sanatório maldito! As cenas de Diana tentando seduzir o dr. Sebastião e o violento tapa que ele lhe dera! Era um rodamoinho incessante, num turbilhão que me atirava, a cada minuto, às torturas da insónia!
Abri os olhos pela manhã, com Inês me sacudindo: — Acorde, mulher! Acorde!
Levantei-me, em sobressalto, com os olhos desmesuradamente abertos.
— Upa! O que há com você? Parece que a farra de ontem à noite foi das boas! Dormiu vestida!
Eu, hein!
— Ora, Inês, deixa de brincadeiras. Estou ainda zonza!
— Menina! Houve um crime pavoroso esta noite no Sanatório! Mataram o noivo de Diana a porretada, lá dentro do depósito de lenhas! Há um rebuliço danado aí! Vamos, levante, porque a coisa está feia mesmo!
— Prenderam o criminoso? — quis saber, quase fora de mim.
— Sim, querida, e não podia ser mesmo outro.
Prenderam o dr. Sebastião! A Diana fez um banze dos diabos! Ela está inconsolável, coitadinha!
— Desgraçada! Aquela desgraçada! Assassina, desgraçada! — gritei, levantando os punhos cerrados.
— Ué! Está ficando louca? O que está havendo com você?
— Nem sei, Inês. Estou ainda sob o impacto daquilo que vi. Mais tarde eu lhe conto. Juro que estou completamente tonta.
Levantei-me e me dirigi para a pia. Molhei, demoradamente, o rosto na água fria. umedeci a nuca, tentando com isto eliminar a terrível dor de cabeça que me atormentava.
Fui até o terraço, atraída pelos murmurios que vinham do pátio central, em frente do Sanatório.
Lá estava o jeep preto-branco da polícia de Campos do Jordão. Varios policiais se encontravam espalhados pela pequena praça fronteira do prédio.
Olhei mais para baixo, lá na curva da alameda, perto da Casa de Hóspedes. O depósito de lenhas também estava guarnecido por policiais.
Não se avistavam enfermas no pátio. Somente funcionárias em. grande número, a maior parte constituída de curiosos. A Irmã Francisca estava no alto da escada e dali mesmo dava para perceber o intenso nervosismo que a dominava.
Notei, então, que em quase todas as sacadas do edifício, as doentes se acotovelavam, interessadas em assistir ao desenrolar dos acontecimentos fora do Sanatório. A Madre determinara, logo, o recolhimento das mesmas aos seus apartamentos, a fim de que a polícia pudesse trabalhar tranqüila. Os terraços foram a "escapulida" de cada doente curiosa.
Virei-me para a minha vizinha de quarto. As janelas achavam-se hermeticamente fechadas. Ninguém no terracinho de Diana!
Fiquei cismada. Deixei, inopinadamente, Inês sozinha no meu terraço e corri para a porta de meu apartamento. Abri-a, rápida, e entrei no corredor, procurando alcançar o apartamento de Diana. Parei de chofre! Quase dera de encontro com um guarda-civil, que estava de pé, na porta, ali, como se fora uma sentinela! Diana estava presa, como suspeita do crime!
Olhei demoradamente o guarda-civil. Um sorriso miúdo despontou no canto de meus lábios. Retornei aos meus aposentos e perguntei, com ar ingênuo, a Inês: — O que estará aquele polícia fazendo na porta do apartamento de Diana?
— Ora, todo mundo sabe que o dr. Sebastião é o assassino. Aliás, foi ela quem deu o alarme, mais de qualquer maneira está sob suspeita. E enquanto não fizer declarações, não pode sair do seu apartamento.
— Presa? — Interrompi.
— ...n... n... não. Sob custódia policial, digamos. É melhor, soa melhor... Afinal quem matou foi um preto nojento. Ou você acha que Diana iria matar o próprio noivo? Além do mais aonde iria buscar força para levantar aquele porrete e descer na cabeça do coitado? Dizem que a madeira utilizada é deste tamanho... — e, com as mãos, Inês procurava mostrar as dimensões da arma do crime.
— Bem... ela poderia se valer do auxílio de alguém... — insinuei, procurando demonstrar uma calma que na realidade não possuía.
— Ora! E quem iria auxiliá-la? Qual o interesse?
— Não sei, não. Talvez tudo isto seja besteira. Nem atino o porquê de nossa conversa...
— Espere! Você despertou algo que talvez tenha fundamento. Veja bem: Diana não vinha ultimamente saindo com o médico negro?
Fiz-lhe um gesto sem sentido, nada respondendo efetivamente.
— Muito bem. Que eles estavam se encontrando na Casa de Hóspedes, nem você tem dúvidas. Nós duas vimos naquela noite em que fomos ao baile de abertura da temporada, no Grande Hotel. E, olhe, eles conheciam, também o depósito de lenhas, porque, quando nos viram, correram para lá. Lembra-se?
— Mas a que vem tudo isto, Inês?
— Ora, eles se amavam mesmo e o noivo era um empecilho. O dr. Sebastião certamente atraiu o noivo de Diana para uma cilada e, ali, deu cabo dele. Simples, não acha?
— sim, tudo muito simples "dr. Watson." Mas responda, porque, então, Diana acusou o dr. Sebastião, se tudo era um plano arquitetado por ambos?
— Bem... bem... ora, não encha! Não sei por que. Isto é lá com a polícia. Eu estava apenas deduzindo, madame...
— Afinal, o que Diana alegou, para a polícia acusar o dr. Sebastião? Qual a prova que apresentou?
— Tudo ainda é fofoca. Ninguém sabe de nada. Só depois que a polícia for embora e que vamos saber de alguma coisa. Olhe! Veja! Lá vai o assassino preso!
Virei-me, rápida, para a porta central de entrada do Sanatório. Com efeito, lá estava o dr. Sebastião, algemado conduzido por dois policiais e sendo forçado a entrar na viatura policial.
O médico demonstrava profunda prostração física.
Com sangue a gelar minhas veias e a garganta queimando, estremeci quando encontrei seu olhar de desespero. Parecia despido de alma. Olhava meio boquiaberto para todos os lados e dir-se-ia não saber o que fazer com as mãos algemadas. Fiquei profundamente chocada com o seu aspecto. As costas estavam arqueadas, como sob a carga de tremendo peso.
Um murmúrio foi crescendo de todas as sacadas, quando o médico negro descia as escadas em direção ao carro da polícia. Era a desaprovação quase total de todas as enfermas, pelo crime hediondo que o médico cometera.
A Madre superiora não se conteve e desceu as escadas quase correndo. Voltou-se para as sacadas, gritando em tom imperativo, lá do pátio: — As senhoras todas! Todas, ouviram? Recolham-se aos seus aposentos! Vamos, já!
Houve um início de grande alvoroço e pouco depois uma dezena de portas de vidro batiam ruidosamente, em sinal de protesto pela ordem da Madre.
Retirei-me, lentamente, do pequeno terraço, em tempo de ver ainda a viatura policial seguindo, já em velocidade, pela alameda, para logo desaparecer na primeira curva.
No seu interior seguia o médico negro sobre quem pesava a acusação de ter assassinado, com requintes de perversidade, o noivo de uma das enfermas! O noivo de sua irmã de criação!
As provas contra o dr. Sebastião se acumulavam cada dia que passava. Uma camisa e um terno seu foram encontrados cobertos de sangue, já ressecado, embrulhados, escondidos numa touceira quase fora do terreno do Sanatório. Um serviçal descobrira o embrulho em pleno trabalho rotineiro.
— Reconhece esta camisa? — vociferava o policial exibindo a vestimenta ao médico desconsolado.
— Sim, é minha, sim! Mas juro que não sei como ela foi parar naquele lugar. Não matei ninguém! Juro que estou inocente! Juro!
A negativa, os protestos de inocência do médico negro, só serviam para irritar mais ainda a autoridade policial. Para o delegado de Campos do Jordão aquilo era um crime esclarecido e cujas provas não davam margem a qualquer dúvida. A peça policial, contudo, não tinha o documento básico, decisivo; a confissão do réu!
Este, ao contrário, obstinava-se, numa negativa que durava dias. Não tinha o menor álibi para provar sua inocência. Nada sabia esclarecer sobre a existência de suas roupas sujas de sangue. O laudo da polícia técnica de São Paulo não deixara dúvida: o sangue da vítima era o mesmo que manchava a camisa e o terno do dr. Sebastião.
A prisão preventiva do médico assassino já fora solicitada e a Justiça, nas próximas horas, deveria se pronunciar.
O delegado comparecera pessoalmente ao Sanatório e fizera o interrogatório de Diana, peça fundamental da acusação.
Diana aparecia no inquérito como uma testemunha quase ocular do crime!
Relatara à autoridade policial que, cerca de dez horas da noite, chamara repetidas vezes a copeira. Queria um copo de leite. Além do mais estava atacada de uma insónia terrível. A chuva forte que caía contribuíra muito para a sua falta de sono.
Sem resposta da copeira, resolvera levantar-se e ela mesma, pessoalmente, dirigir-se à copa e tomar o leite.
— O quarto do dr. Sebastião — acusou a moça — ficava quase ao lado da copa. No caminho para aquela dependência do Sanatório, deparei com o dr. Sebastião visivelmente conturbado. Suas vestes estavam totalmente encharcadas e vi que sua camisa tinha grandes manchas de sangue! Recuei apavorada. Ele não me viu. Corri para a copa e me escondi no seu interior. Pouco depois, vi quando o médico saía novamente, com outra roupa, capa e galochas. Sobraçava enorme embrulho. Partiu apressado pela porta central e desapareceu em pleno temporal, penetrando nas matas que ladeiam a alameda que dá acesso ao Sanatório. Esperei seu retorno e o encarei no saguão de entrada. Ele ficou perplexo ao me ver. Não soube explicar, quando lhe inquiri, onde estivera e o que fora fazer lá fora, debaixo daquele aguaceiro. Uma frase que soltara, ao passar por mim rapidamente, despertou-me o sexto sentido e pensei no meu noivo. Ele me dissera, expelindo ódio pelos olhos: "Juro que me vinguei de você!".
Corri, mesmo sem proteção alguma, e atravessei o pátio até a Casa de Hóspedes, gritando pelo meu noivo. Bati desesperadamente na porta e quem abriu foi a serviçal, que trouxera de casa para me atender especialmente aqui no Sanatório. Ela não soube me dizer onde estava meu noivo. Não acreditei na sua informação. Entrei na Casa de Hóspedes e a vasculhei inteirinha. E aquele desaparecimento quase repentino do meu noivo fizera com que crescessem, mais ainda, minhas suspeitas de que algo de terrível lhe havia acontecido! Não sei quantas voltas dei pelo Sanatório, e lá pelas duas horas da manhã, suspeitei, nem sei porque, do depósito de lenhas. Fui até lá e deparei com meu noivo morto, com a cabeça esfacelada! Ao seu lado estava a arma do crime, uma enorme acha de madeira!
Diana ao ser submetida a interrogatório pelo delegado, que queria saber qual a razão que a levava a desconfiar do médico negro, após vê-lo sujo de sangue, molhado pela chuva e que relação poderia existir entre ela e seu noivo, foi mais explícita no seu depoimento: — O dr. Sebastião me amava. Queria me possuir a qualquer preço. Foi meu irmão de criação e desde tenra idade alimenta essa pretensão absurda. Devoto-lhe ódio total, até que uma noite ele me convenceu a recebê-lo na Casa de Hóspedes, onde trataria comigo sobre um assunto de vida ou de morte. Assustei-me, e às escondidas das demais enfermas, fui ter com. o médico naquele local, único que não permitia testemunhas que pudessem me desmoralizar. Pois bem, neste local, sr. delegado, fui atacada e violentada pelo médico, que me possuiu à força. Não podia dizer isso a ninguém do Sanatório, mesmo porque não me acreditariam. Pensariam logo que eu fora normalmente até à Casa de Hóspedes e me entregara àquele imundo! Esperei então meu noivo chegar para lhe relatar o ocorrido e para que ele, às escondidas, sem escândalo, tomasse as providências necessárias, pois o Sanatório S. Pedro, além de ter um. médico preto, este era tarado, atacando as enfermas como um débil mental! Ele é um sexo-maníaco, doutor! No dia do crime, à tarde, houve violenta alteração entre meu noivo e o dr. Sebastião, no interior da Casa de Hóspedes. Eu estava presente. Eles ficaram de se encontrar à noite quando, decidiriam as posições. Em princípio ficara acertado que o dr. Sebastião, no dia seguinte mesmo, iria embora do Sanatório. A posição de antagonismo da maioria absoluta das enfermas era uma justificativa que não despertaria qualquer suspeita, mesmo diante da sua decisão precipitada. Daí a minha certeza de que algo acontecera entre os dois quando vi as vestes ensangüentadas do dr. Sebastião. O resto o senhor já sabe. Corri para o prédio, acordei a Madre, e às quatro e pouco da manhã os senhores chegaram ao Sanatório. Fui prêsa logo de início como suspeita, por estarem minhas vestes sujas de sangue. O que era natural. Eu descobrira o cadáver de meu noivo. Abraçara-o, desesperada, não acreditando que o mesmo estivesse morto.
Este depoimento foi decisivo para as conclusões do delegado de Campos do Jordão, e por isto pediu a prisão preventiva do médico negro.
O crime ocorrido no Sanatório S. Pedro explodiu na imprensa como um escândalo sem precedentes. O depoimento de Diana foi lido por uma infinidade de repórteres que se encarregaram de apresentar o facultativo como o monstro, a besta, a fera que atacara a inocente e bela jovem tuberculosa! As fotografias de Diana estavam estampadas nas primeiras páginas de quase todos os jornais do Rio e de São Paulo. Um jornalista mais curioso descobriu que ele fora "Miss Guarujá" e logo as fotos da linda morena começaram a surgir nos jornais, trajando apenas roupas de banho, o caso tornou-se assunto das revistas. Ela foi capa de uma das mais famosas revistas brasileiras.
E no meio daquele escândalo, fui ficando entediada. Com a chuva caindo quase todos os dias e esfriando cada vez mais, Campos do Jordão começou a me irritar. Perdera o apetite e quase não conciliava o sono à noite. As saudades de minha filha e de minha cachorrinha começaram a me atormentar. Não tinha mais paz de espírito. Já havia combinado com a Madre que iria mesmo embora. O crime é que me segurou mais tempo. Comecei a alimentar a idéia de sair imediatamente do Sanatório e ir a São Paulo. Ficaria alguns dias na Paulicéia e depois detornaria a Campos do Jordão para visitar o dr. Sebastião. Ainda não adquirira coragem para fazê-lo. Não sabia como encará-lo. Aquelas mãos acendendo o cigarro na escuridão do depósito de lenhas, e o barulho ensurdecedor da chuva caindo no teto de zinco do depósito, queimavam-me o cérebro.
As idéias foram crescendo em minha cabeça e logo resolvi concretizá-las. Despedi-me quase de repente de Belinha e Inês e parti para S. Paulo, onde procurei me refazer dos aborrecimentos, entregando-me à faina diária do lar.
Os jornais aos poucos foram esquecendo o crime e os cinco dias que pretendia passar na Capital, na realidade se prolongaram pelo espaço de quatro meses.
A decepção que sofrera com o dr. Sebastião, porém, não saía nunca de minha cabeça. Vez por outra, quedava-me introspectiva, lembrando-me de sua infância, de todo o sofrimento por que passara antes de atingir a faculdade e colar grau. Fora toda uma existência de sacrifícios que de repente se desmoronava. Um moço, cheio de vida, ficaria mais de anos atirado ao fundo de um cárcere. No íntimo, eu entendia, tudo tinha como origem o racismo que dominava as castas privilegiadas. Não fora aquelas posições antagônicas das incompreensível Diana, e certamente a tragédia não teria marcado, assim, indelevelmente, a vida do médico negro.
Estava, por outro lado, abalada por tremenda dor de consciência. Assistira, afinal, ao crime. Diana havia participado do mesmo. Se pelo menos não utilizara a arma assassina, sem dúvida ela encorajara o criminoso. Era, portanto, co-autora! Por mais que fugisse dessa decisão, meus pensamentos sempre me traziam para essa situação de fato: fora testemunha ocular do crime!
A tortura mental a que estava me submetendo, nos últimos dias, me tirava totalmente o sossego. E, por fim, não resisti mais. Recorri ao grande amigo advogado, famoso criminalista, de espírito investigador, e rumei para Campos do Jordão. Iria depor no inquérito, única maneira de ficar em paz com minha própria consciência.
Em Campos do Jordão hospedei-me no Grande Hotel. Visitara antes as meninas do Sanatório. Inês já enfrentava o período de estágio de cura e Belinha em vésperas de deixar o hospital. Ficara curada!
Já fazia quatro meses que me achava ausente de Campos e sem ver o dr. Sebastião.
Nosso encontro foi terrível para mim.
Ele apresentava sintomas de profunda fraqueza orgânica. Emagrecera muito.
Seu sorriso suave, triste, foi seguido de uma frase que me comoveu: — Você acredita na minha inocência? Acredita?
Desconcertada, abaixei a cabeça. Não consegui articular qualquer resposta.
Ele se voltou para a parede, levantando os braços: — Oh! Deus! Como poderei fazer para provar a todos que sou inocente?
Virou-se para mim. Seus olhos estavam injetados, terríveis: — Você acredita em Deus, não acredita? Pois juro! Juro, por Deus! Estou inocente! Não entrei no maldito barracão naquela noite! Acredita, agora?
Senti um nó apertando minha garganta. Uma profunda piedade por mim mesma tomou conta de todo o meu ser quando, com meus olhos marejados de lágrimas, o encarei meneei a cabeça em sinal negativo. Não, eu não acreditava mesmo na inocência do dr. Sebastião. Não podia acreditar. E simplesmente pelo fato de tê-lo visto no instante em que assassinava o noivo de Diana! Eu assistira ao crime!
Ele, ante meu gesto mudo, recuou vagarosamente, até o fundo da sua cela. Deixou-se cair sentado no catre imundo. Um condenável peso parecia esmagá-lo quando, sem articular uma só palavra, fitava o solo do cárcere.
Virei-me rápida, chocada com a cena, e saí ligeira da cadeia de Campos do Jordão.
Fizera mal em visitar o dr. Sebastião. A sua imagem derrotada, durante muito tempo não iria sair mais dos meus pensamentos.
E foi com ela de corpo inteiro em minha mente, assistida por meu advogado, que fiz meu longo depoimento, incriminando Diana, tornando-a aliada do dr. Sebastião no assassínio de seu noivo!
Foi uma reviravolta no processo com nova e terrível repercussão!
Interferi para que meu advogado fizesse a defesa do dr. Sebastião. Até aquela data ele nem sequer cuidara deste setor. O processo ainda se arrastava na fase policiai e certamente só na Justiça seria nomeado um causídico "ad hoc".
Inês foi chamada também para depor. Ela confirmou aquela cena que assistíramos na noite do baile de reabertura da temporada, no Grande Hotel, quando víramos os dois saindo da Casa de Hóspedes e depois se refugiarem no depósito de lenha.
Várias enfermas foram ouvidas sobre a discussão havida certa noite no interior do apartamento de Diana com o médico negro. Toda a tor.peza sexual foi sendo posta à tona, num inquérito que desmascarava, lenta e inexoravelmente, uma elite que cada dia apresentava seus bastidores apodrecidos.
Um emaranhado de fatos foi, aos poucos, tomando corpo dentro da peça policial. Diana parecia irremediavelmente enredada no inquérito.
Várias contradições iam sendo anotadas pela autoridade policial, naquele famoso depoimento, e que antes era peça basilar do processo.
Os contatos de meu advogado com o dr. Sebastião foram sendo mais íntimos e finalmente o médico exibiu o famoso bilhete que Diana lhe dirigira certa noite, rogando a sua ida à Casa de Hóspedes.
Aquele documento modificou toda a posição da polícia que se viu obrigada, apesar da pressão dos advogados da família de Diana a ouvi-la novamente. Um infindável número de pontos obscuros precisariam, afinal, ser esclarecidos pela moça. Tudo, na peça policial, indicava que Diana havia faltado à verdade e passara, de repente, também, à condição de ré, naquele rumoroso processo criminal!
E foi tomado por esses pensamentos que o delegado de Campos do Jordão, tendo ao seu lado o escrivão, chegou ao Sanatório S. Pedro, para tomar novas declarações de Diana.
Contudo, não foi naquela tarde que a polícia conseguiu ouvir a jovem.
Um fato inesperado voltava, novamente, a modificar a feição do inquérito: Diana estava grávida! Grávida do médico negro do Sanatório! Médico que assassinara seu noivo e já estava preso há quatro meses na cadeia da cidade, aguardando a conclusão do inquérito policial para ser julgado pela Justiça e purgar seu hediondo crime na Penitenciária do Estado!
Quando a autoridade policial chegou ao Sanatório, o dr. Pedro assistia Diana, que estava tomada de tremenda crise nervosa.
Preocupada com o andamento do inquérito e vivendo horas dramáticas, não notara a falta de suas regras. Mais de três meses já se haviam ecoado quando ela consultou o doutor Pedro. Exames imediatos foram feitos e os resultados positivos, naquele exato momento, estavam sendo transmitidos à moça.
Sentada na cama, com os olhos esbugalhados, ela repetia a pergunta ao médico: — Mas, doutor, esta criança não pode nascer. Ela é filha de um negro assassino! O senhor tem que tirá-la! Tem que tirá-la!
Impossível, d. Diana! Não posso fazê-lo, nem nenhum médico se arriscará a essa tremenda aventura. A sua gravidez é de quarto meses! É um risco que pode levá-la à sepultura e o médico que fizer esse aborto, irá para a cadeia!
— Que se faça uma operação! Há uma justificativa! Sou tuberculosa, doutor! Tuberculosa! Meu estado de saúde não agüentaria um parto! O senhor sabe disso!
— Não posso, d. Diana — repetiu o doutor Pedro.
E Diana entrou em violenta crise de choro, debatendo-se, gritando, como que atacada de total demência. De repente, como alucinada, com os dedos entre os dentes, tentando roer as unhas, lábios trêmulos, começou a murmurar: — É filho do Tião, dr. Pedro! O escândalo! Sim, o escândalo que isso vai dar! Meus pais preferirão ver-me morta a me ver dar à luz um filho preto! Não! Não! Não quero esse filho maldito! Não quero! Não quero!
Atacada de fúria incontrolável, começou a socar seu estômago, seu ventre, repetindo a heresia monstruosa: — Morre, filho desgraçado. Morre! Você há de nascer morto! Morre, maldito! Morre!
E, contorcendo-se em dores, num choro convulsivo, virou-se pela cama, desfalecendo com um pequeno filete de sangue aflorando no canto dos lábios.
— Amaldiçôo-o até o fim de sua existência, negro malagradecido! Eu o recebi na minha casa quando você era um pretinho maltrapilho, abandonado, sem pai nem mãe! Eu lhe dei um lar, roupa, remédio, saúde e cultura para que, como paga, você levasse a desgraça para dentro da mesma casa que o acolheu: maldito seja, Tião, até o seu último segundo de vida!
— "Seu" Jorge, juro-lhe que jamais toquei num fio de cabelo de sua filha! Tudo não passa de mentira!
— Sim, é mentira, sim! E aquele ser maldito que está sendo gerado no ventre de minha filha?
— Não sei "seu Jorge, mas posso lhe assegurar que aquilo não é meu! Preferiria morrer!
— Deus é testemunha que só permiti a sua entrada em minha casa para salvar meu filho que definhava! Agora, do outro lado, ele deve estar assistindo, contrariado, revoltado, ao resultado de seu carinho, de seu coração magnânimo!
O pai de Diana, exteriorizado profundo ódio nos olhos, acabrunhado, arqueado sob o peso da desgraça que se abatera sobre seu lar, não permitiu que o dr. Sebastião falasse mais uma só palavra. Virou-se, áspero, e deixou a cela onde o médico negro estava encarcerado.
O facultativo engolia em seco, de pé, sem nenhum movimento. Os olhos parados não seguravam, as grossas lágrimas que a evidência dos fatos que o condenavam.
— "Não adianta mais argumentar, meu Deus! Tudo foi mesmo cuidadosamente preparado para me incriminar. Vou ser condenado por essa hidra de mil cabeças que é a elite!"
O pai de Diana, ao deixar a cadeia pública de Campos do Jordão, dirigiu-se diretamente para o Sanatório, a fim de manter uma entrevista com sua filha.
A reunião havida, antes, entre o pai da jovem, o doutor Pedro e a Madre, foi entrecortada de lances violentos, de frases chocantes.
— . .. e, não é possível fazer-se uma operação, agora ainda que haja risco de vida para minha filha? — perguntava o desesperado e inconformado pai, dirigindo-se ao médico.
Foi a Madre quem respondeu pelo dr. Pedro: — Dr. Jorge, o que é isto? Quer arriscar a vida de sua própria filha? E por que o aborto? Isto é um crime que Deus, Nosso Senhor, jamais perdoa!
A resposta do pai de Diana foi cortante, mordaz: — A senhora, Madre, não esá em condição de pon derar coisa alguma! Não cumpriu o seu dever de zelar por minha filha. Foi na casa que a senhora dirige que ela foi possuída por um negro! O filho que está no ventre de Diana, se nascer vivo, é para mim um ente morto, desde já! Não quero saber da sua existência, do seu nome, nem do seu destino! Prefiro ver, sim, a minha filha morta a ser mãe de um negro! A senhora é culpada por tudo o que está acontecendo!
A Madre levantou-se. Ficou erecta. Suas bondosas feições demonstravam dor pelas palavras ferinas que recebera em pleno rosto. Seus olhos, porém, não tinham ódio, ao contrário, emanavam piedade. E foi com a voz embargada pelo sentimento de ternura, compaixão, e, sobretudo, religiosidade, que murmurou: — Deus, Nosso Pai, senhor Jorge que perdoe tanta heresia. O senhor dr,. Jorge, certamente, não sabe a dívida espiritual que está adquirindo ao anunciar um propósito tão desalmado. Com sua licença, preciso tratar de meus afazeres.
Com postura, respeito, inclinou-se, E saiu, aparentando a calma que o momento exigia, Ele voltou o olhar interrogativo para o dr. Pedro, buscando uma resposta à pergunta que fizera.
— Não, sr. Jorge. Nenhum médico aceitaria tal incumbência. Isto é um crime que o nosso Código Penal pune com merecida prisão.
E o que o preto indecente fez com a minha filha, não merece uma punição rigorosa?
— Ele já está pagando, na cadeia, o seu crime, sr. Jorge.
E o dr. Pedro levantou-se, dando a entender que desejava encerrar a conversa. Pediu licença e se retirou.
O sr. Jorge ficou sozinho no gabinete da Madre diretora do Sanatório.
Com os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça entre as mãos, o cabelo desgrenhado, aquele pai buscava o que não podia encontrar naquele instante: um bom conselho.
Levantou o rosto, lentamente, para a parede, e deu com Jesus pregado na cruz. Sentiu um longo arrepio correr-lhe o corpo.
— Perdoai-me, Senhor, mas não está em mim tomar outra decisão. Meu espírito é assim mesmo, intolerável, doentio! Não poderei agir de outra maneira, Jesus!"
E com essa fixidez de pensamento, levantou-se rápido, dirigindo-se para o apartamento onde a filha estava internada.
Na porta do quarto de Diana, parou por algum tempo. Suas mãos várias vezes fizeram menção de girar a maçaneta, recuando, sempre trêmulas. Nos seus olhos haviam um brilho estranho. Finalmente decidiu-se e avançou escancarando a porta.
A moça assustou-se com a entrada repentina do seu pai. Ela, na verdade, estava havia muito esperando esse encontro. Sempre que nele pensava, um tremor a percorria por inteiro. Sentia-se apavorada ante a possibilidade de ter que enfrentar o pai.
O sr. Jorge fechou, devagarinho, a porta atrás de si. Olhou sua filha demoradamente. Ele parecia que ia fraquejar ante os propósitos que o trouxeram até ali. Mas, de repente, enrijeceu o olhar e falou áspero e decidido com a jovem: — Tudo o que me era possível fazer para que nossa família não fosse enlameada pelo seu gesto indigno foi tentado. Nada mais se pode fazer! Essa desgraça que você está gerando vai mesmo nascer! Hoje é a última vez que a vejo em minha vida! Seu nome está riscado do seio de nossa família! Você não é mais minha filha! Nós a repudiamos e a amaldiçoamos! É indigna de levar o nome honrado que lhe dei! Você está para todo c sempre proscrita de nossa família! Maldita! Maldita! Mil vezes maldita!
O sr. Jorge voltou-se tão rápido quanto entrara e saiu, agitado, batendo violentamente a porta, desaparecendo em poucos segundos pelo imenso corredor da ala "b", do Sanatório S. Pedro.
Aquela fora, realmente, a última vez que vira sua filha Diana.
O delegado de polícia de Campos do Jordão chegou a tornar-se impertinente. Queria, a qualquer custo, ouvir Diana. O processo estava parado, sofrendo solução de continuidade. As ordens médicas, porém, eram taxativas. A moça estava profundamente debilitada, entregue a uma prostração geral, sem ânimo para nada. O choque da decisão do pai acabara por arrastá-la à obsessão do suicídio! Uma polícia feminina foi posta no interior do apartamento de Diana, num contínuo revezamento, por determinação do delegado e total exigência médica.
Diana não fazia um só movimento no interior do seu apartamento sem. ter ao seu lado a vigilância constante de sua guarda. As próprias necessidades fisiológicas eram feitas na presença da policial feminina e uma enfermeira.
Não raras vezes aquelas severidade causava explosões terríveis em Diana, ocasião em que precisava ser acalmada a poder de injeções, que a muito custo lhe eram ministradas.
O advogado do dr. Sebastião conseguira deferimento numa petição que fizera ao delegado: esperar-se-ia o nascimento do filho de Diana. Em seguida seria feito o exame de sangue para se provar, afinal, se era ou não filho do médico negro. Esse resultado, certamente, poria um ponto final na peça policial e Diana seria, ou não, arrolada como co-autora.
Nesse ínterim, o advogado continuava suas investigações para levantar os passos de Diana nos dias que precederam ao crime, na vã esperança de encontrar algo que pudesse inocentar o dr. Sebastião.
Na realidade, nem eu nem o causídico estávamos convencidos totalmente dessa inocência. As provas eram por demais robustas contra o dr. Sebastião. Meu depoimento, também incisivo, não o ajudara em nada.
Com a possibilidade de espera de cinco meses para dar continuidade ao processo policial, retornei a S. Paulo.
* * *
O parto de Diana efetuou-se na sala de operação do próprio Sanatório S. Pedro. Foi uma delivrance coberta de lances dramáticos pela obstinação da parturiente em não querer que o filho nascesse vivo. Precisou ser amarrada na mesa de parto e o médico auxiliava-a a expelir a criança. Só quandos as dores começaram a ser lancinantes é que houve uma pequena colaboração da jovem.
Eram 10,00 horas de uma manhã friorenta e chuvosa, quando o filho de Diana nasceu: um menino pesando pouco menos de três quilos e com a pele totalmente pretinha!
Ela foi levada para seu apartamento e imediatamente colocada num. balão de oxigênio. A dispnéia ameaçava-lhe a vida!
Visitei Diana naquela tarde.
Apesar do imenso balão de oxigênio, respirava com grande dificuldade. Seu peito arfava de maneira constante, 0s Olhos quase sempre semicerrados, às vezes abriam-se desmesuradamente. Os pulmões pareciam não receber o oxigênio suficiente.
O dr. Pedro estava constantemente ao seu lado, dando-lhe a assistência médica que lhe era possível.
Em todo o Sanatório havia um ambiente pesado de expectativa.
Nos dias que se seguiram, a dispnéia aumentara assustadoramente. A morfina, que vez por outra lhe era ministrada pelo dr. Pedro, já não mais lhe trazia sossego, e naquela noite terrível assisti quando Diana, atacada de desespero pela falta de ar, arrancou desastrosamente a borrachinha que lhe levava um pouco de oxigênio para o interior dos pulmões!
Mãos crispadas, olhos esbugalhados, desesperada, levantou-se como uma quase afogada que procura a salvação que não vem! Grudava-se nas paredes, enfiava as unhas na garganta, gritando como um animal enraivecido! Nas paredes deixou lascas de unhas e pedaços de carne das pontas dos dedos que sangravam abundantemente! Foi ficando arroxeada e rolou pelo chão do quarto, envolta nos lençóis de linho tisnados do seu sangue! Diana morreu de boca bem aberta, mostrando uma expressão de pasmo.
Cena que jamais se apagará do meu cérebro!
A profecia de seu pai se cumprira: Ela nunca "mais voltaria para o seio de sua familia. Nunca mais veria os pais!
E ela jamais soube que, no dia da sua morte, chegara a Campos do Jordão, nas mãos do delegado de polícia, o resultado do exame de sangue: o menino preto que dera à luz não era filho do dr. Sebastião!
— É o remorso, doutor, é o remorso que me traz até aqui! Quero pagar, sim, pelo crime que cometi, doutor! Vim aqui para contar tudo prô senhor!
E Dito, o ex-jardineiro do Sanatório S. Pedro, fez a completa confissão do crime que praticara, naquela chuvosa noite, dentro do depósito de lenha!
Tudo fora lentamente preparado pela própria Diana. No princípio conseguiu-lhe um bom emprego em São José dos Campos, a fim de afastá-lo do Sanatório e jamais despertar suspeitas sobre sua pessoa. Aos poucos ela foi convencendo Dito que este devia praticar o crime porque o dr. Sebastião sempre a maltratava dentro do Sanatório. Convenceu o ingênuo jardineiro que ela o estava amando e a ele se entregou, no interior da Casa de Hóspedes, várias vezes. Foi a prova de confiança máxima que ela poderia dar para que ele lhe obedecesse cegamente.
Dito foi adquirindo uma paixão alucinante, doentia, por Diana. Quando ela programou o crime, ele subiu a Campos, passando todo o dia escondido no meio das matas que circundam o Sanatório. Ninguém o viu e, tão logo praticou o assassinato, retornou a São José dos Campos, de onde acompanhou a repercussão do crime pelo rádio e pelos jornais.
O remorso, entretanto, aos poucos, foi minando seu cérebro e, quando soube da morte de Diana, anunciada por uma emissora local, resolvera entregar-se à justiça.
O jardineiro Dito quis ver o filho e a polícia atendeu ao seu pedido. Ele chorou copiosamente no berçário e apenas quis saber quanto tempo ficaria preso.
— No mínimo 25 anos! — foi a resposta simples do delegado de polícia.
Naquela mesma noite Dito enforcou-se com a própria cinta, pendurando-se numa trave de madeira que passava pelo teto da cela. Não se conformara em ficar longe do filho e da mulher que tanto amara, por quem chegara à senda do crime!
Diana foi enterrada no cemitério de Campos do Jordão. Ninguém apareceu no Sanatório para reclamar o seu corpo. Ficou na morgue do necrotério vários dias, enquanto a direção do hospital esperava resposta aos sucessivos avisos, endereçados à família. Não houve qualquer resposta.
Ao seu sepultamento compareceram apenas quatro pessoas: a Madre, a Irmã Francisca, eu e o dr. Sebastião.
Havia um mutismo chocante enquanto o ataúde descia à sepultura.
— Tenho que lhe entregar algo, aqui, aos pés desta sepultura, dr. Sebastião — disse a Madre, ao mesmo tempo que lhe colocava nas mãos um envelope azul com a sobrecarta contendo apenas um. nome: Tião.
A Madre explicou:
— Dias antes do nascimento da criança, Diana me chamou e me deu esta carta que somente deveria parar nas suas mãos no dia de seu sepultamento, aos pés de sua sepultura! Pediu que o senhor a lesse aqui. Era um pedido simples a que atendi, sem jamais pensar que ele se concretizaria. Hoje entendi ser um dever entregar-lhes esta missiva.
O dr. Sebastião ficou longo tempo olhando o envelope, sem coragem para abri-lo.
Quando o fez, sem sentir, leu-a alto, e todas nós ouvimos: "Meu Tião, Na minha infância entendia que o odiava. Quando você partiu de casa, por minha interferência pessoal, senti que tinha sido injusta. Voltar de minha indecisão seria uma fraqueza que a sociedade onde vivi jamais admitiria. Quando o vi novamente, já agora em condições tão especiais, quis revoltar-me contra o desejo que me envergonhava: amar um negro! E era na realidade o que tinha por você: amor! A nossa união era impossível pela posição de nossa família. Quis fazê-lo meu amante e você se recusou. Rebaixei-me, enquanto você, cada vez, crescia mais e nobremente.
Tião, você tem um caráter que causa inveja a muita gente branca da falsa elite em que sempre vivi. Sei que é muito tarde para eu reconhecer os erros que pratiquei na vida. Mas que estas minhas últimas palavras sirvam para você me perdoar agora que estou morta.
De quem lhe quis muito e por isto, inexplicavelmente, o feriu tanto, DIANA."
O silêncio que dominava a todos nós era doloroso, contagiante. Os coveiros, chocados, tiraram seus chepéus enquanto se cumpria o último desejo da morta. O ambiente tornou-se profundamente melancólico.
O dr. Sebastião não chorou, mas sua frase até hoje martela meus ouvidos: — Diana, querida, que na morte encontre a paz que em vida jamais conseguiu possuir.
Diana fora além nas suas cartas. Uma outra, achada entre seus pertences, estava dirigida ao delegado de polícia na qual fazia completa confissão do seu crime e inclusive esclarecia o caso das roupas ensangüentadas do dr. Sebastião; escondê-las em local que não ignorava, seriam encon tradas por um dos funcionários do Sanatório.
Para fazer com que o noivo fosse ao depósito de lenhas, na noite fatídica, Diana mentiu-lhe sobre o assédio que sofria da parte do dr. Sebastião. E para provar que estava sendo perseguida, afirmou ao noivo que marcara um encontro no depósito com o facultativo de cor. O noivo assistiria, teria a prova, e com isto ambos conseguiriam expulsar o dr. Sebastião do Sanatório. Foi o ardil do qual se valeu para atrair o noivo para a terrível cilada.
Diana escrevera todas aquelas cartas porque contava matar-se na primeira oportunidade. O que nunca passara por sua cabeça é que sua morte seria tão horripilante.
E a ausência de seus pais no seu sepultamento provou que eles não a haviam perdoado, nem depois de morta!
O dr. Sebastião fora, concomitantemente, com a sua libertação, transferiu para São Paulo, e um outro médico — branco — lotado no seu lugar.
Despedi-me de todos no Sanatório. Voltaria para a Capital em companhia do médico negro, aproveitando o automóvel do meu advogado.
Ao percorrer, pela última vez, o corredor da ala "b" do Sanatório S. Pedro, encontrei o dr. Sebastião que olhava tristonho para aquele ambiente.
Dei-lhe o braço e passamos pela mesinha onde ficava o livro de pedido de consultas das enfermas ricas do Sanatório S. Pedro. Ele nunca fora preenchido durante todo o período em que o dr. Sebastião ficara como médico naquele hospital. A "greve de Kock" foi até o final, vencendo o médico negro.
Ele resolveu parar naquela pequena mesa. Abriu o livro como que recordando as passagens mais tristes de sua vida no Sanatório.
Parou, inopinadamente, com seu coração acelerado. Seus olhos cobriram-se de lágrimas.
Lá estava a primeira e única assinatura que fora posta no livro de consultas. Lá estava, escondida, dentro do livro fechado, a assinatura de Diana!
O dr. Sebastião fechou-o lentamente, murmurando: — Ela preparou sua morte com todas as minúcias...
Pegou o livro, colocou-o debaixo do braço: — Pelo menos isto eu guardarei como lembrança dela...
Puxou-me ligeiro e a passos largos nos dirigimos para o automóvel.
Meu coração confrangeu-se, quando, sentada ao seu lado, divisei-o mergulhado naquela modorra introspectiva.
Procurei interromper-lhe OS pensamentos: — O Governador não deveria ter assinado a sua transferência porque o Sanatório S. Pedro está em. Campos do Jordão, que está dentro de São Paulo e São Paulo está dentro do Brasil. O Brasil dr. Sebastião, também é dos negros.
Ele me olhou com ternura. Apertou minhas mãos e disse: — Eu também a amava...
Pus minha cabeça no encosto do banco e cerrei as pálpebras. Comecei a sentir a velocidade do automóvel descendo a serra de Campos e imaginava os vales floridos e maravilhosos que se poderiam descortinar dali. Não consegui admirar a paisagem. A frase do dr. Sebastião bailava na minha cabeça. Não pude conter as lágrimas que, teimosas, afloraram nos meus olhos.
Adelaide Carraro
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