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Coisas incríveis podem acontecer em uma cama.
Ninguém ignorava que o repórter Ashville Coye estava no rastro de um assassino psicopata. Mas só Josephine Bradshaw sabia que ele seria a próxima vítima! E quando Ash, após um grave acidente de carro, perdeu a memória, ela teve uma ideia brilhante...
Ash pensava ter passado por tudo na vida, até que uma estranha apareceu dizendo-se sua esposa. Claro que a certidão de casamento que ela mostrou era tão falsa quanto a amnésia de Ash. Mesmo assim, deixou que a mulher levasse a farsa adiante. Seria fantástico representar o papel de recém-casado com uma linda e sexy suspeita de assassinato. Pelo menos, era o que Ash esperava...
Ele era a pista. Josephine moveu-se, pouco à vontade, na cadeira de vinil, e estudou-o. Era a primeira vez que o via... Com os olhos. Mas ele era exatamente como ela imaginara: o maxilar quadrado, másculo, os cílios longos e espessos que, não de todo, lhe amenizavam as feições severas, a cicatriz visível entre os pelos escuros, no pulso; o cabelo preto contrastava com a brancura da roupa de cama. A única diferença era que, agora, ele respirava. Até o perfume dele era como Josephine imaginara: um misto de virilidade latente e um aromático creme de barbear. Esta potente combinação era uma interrupção agradável do cheiro de desinfetante e éter, do hospital.
Ashville abriu os olhos, pestanejou para focalizar a visão, e estreitou-os, ao observar Josephine. Além de curiosidade, Josephine não conseguia detectar mais nada. Eram vazios os olhos castanhos, profundos; inexpressivos, exatamente como os médicos a haviam prevenido.
Era cruel o que Josephine tinha que fazer. E ainda assim, não havia qualquer garantia de que desse certo. Ela fora advertida para não tentar alterar as instruções que recebera. Mas, pensando bem, que escolha tinha? Prenunciara o assassinato da própria irmã. Aconteceria logo depois do assassinato do homem deitado na cama, à sua frente.
— Eu conheço você?
Ashville ergueu a parte superior do corpo, ao falar, e o lençol deslizou-lhe até a cintura. Ele estava sem a bata do hospital. A visão do peito nu, recoberto de pelos, abalou Josephine. Ela assentiu, em resposta.
Ash balançou a cabeça e o sentimento de frustração era evidente nos olhos castanhos.
— Como se já não fosse bastante ruim esquecer meu próprio nome! Não acredito que uma pancada na cabeça me fizesse esquecer você, garota!
Josephine sentiu uma onda de calor subir-lhe para o pescoço e novamente a dúvida a assolou. Não tinha certeza se o fato de ele achá-la atraente facilitaria ou dificultaria as coisas; principalmente quando o sentimento era recíproco. Ela se preparara para o magnetismo sexual que aquele homem emanava; pressentira-o antes de chegar ao hospital, mas decidira que manteria controle da situação. Entretanto, numa via de mão dupla era sempre mais perigoso trafegar.
Por um momento, Josephine considerou seriamente a hipótese de levantar-se, sair dali e nunca mais voltar. Então olhou novamente para o peito bronzeado e, num vislumbre rápido, que fez sua cabeça rodar, viu-o sangrar; viu a pele lívida entre os esguichos de líquido vermelho, viu a paralisação de pulmões saudáveis e a aquietação de um coração vigoroso.
— Ei! Tudo bem?
Josephine forçou-se a desviar os olhos do peito forte para os olhos castanhos. Assentiu com a cabeça, em silêncio, e mexeu-se novamente na cadeira de vinil, que rangeu sob seu peso.
— Vai me dizer quem é, ou devo adivinhar? — A ruga na testa de Ashville denotava preocupação e curiosidade.
— Receio que não adivinharia... — retrucou Josephine docemente para o homem que não conhecia, antes daquele dia. — Sou sua esposa.
— Minha... o quê?!
— Sua esposa.
Ashville balançou a cabeça vagarosamente e Josephine percebeu, pela careta que ele fez, que a cabeça lhe doía. Reparou na atadura, na base do crânio. Fora o único ferimento causado pelo acidente de carro que o colocara naquela cama de hospital. Apenas uma pancada na cabeça e a consequente perda de memória. Para os propósitos de Josephine, fora a oportunidade perfeita para intervir em uma situação de vida ou morte.
— Minha esposa — repetiu Ashville, recostando-se outra vez. Fechou os olhos, tornou a abri-los e estudou-a por mais alguns segundos, com mal disfarçado ceticismo.
— Você não acredita em mim.
Ashville sacudiu os ombros enquanto a fitava com olhos zombeteiros. O que acontecera com a expressão vaga, opaca? Josephine não conseguia mais ter controle sobre o que captava e o que não captava. As imagens, as sensações, eram soltas, desconexas. Algumas delas Josephine preferia não sentir; eram pavorosas demais.
— Não costumo acreditar em tudo que me dizem, a menos que me deem uma prova. Esse é o meu jeito de ser.
Josephine franziu a testa.
— E como sabe qual é o seu jeito de ser?
O sorriso irônico esmoreceu e a expressão sombria retornou aos olhos castanhos.
— Não sei. Falei sem pensar... escapou, foi isso.
Ashville balançou mais uma vez a cabeça, lentamente. Josephine sentiu uma onda de simpatia por ele, seguida de um súbito remorso. Sua presença ali não tornaria as coisas mais fáceis.
— Deve ser terrível esquecer sua vida inteira... — comentou, acrescentando para si mesma que era pior ainda o que estava fazendo com ele.
Ashville estudou-a com atenção.
— Conversei com as pessoas com quem trabalho...
— Do Chronicle — Josephine fez um movimento afirmativo com a cabeça, apenas para mostrar que sabia.
Ashville assentiu, sem desviar o olhar do rosto dela.
— Eles me esclareceram várias coisas. Mas ninguém falou em esposa. Como explica isto?
Josephine não estava preparada para aquela pergunta. Tinha as informações mais importantes, como por exemplo, que Ashville não possuía uma família, ou, pelo menos, nenhuma que ela pudesse encontrar, o que, de certa forma, facilitava as coisas. Josephine rememorou as frases que decorara e engoliu em seco, antes de perguntar:
— Eles lhe falaram sobre o fim-de-semana em Las Vegas?
Ashville assentiu, a expressão séria.
— Fui até lá para seguir as pistas da matéria na qual eu estava trabalhando.
— Sobre a Fera de Syracuse — interpôs Josephine.
Ashville arregalou os olhos por um segundo, porém logo disfarçou a surpresa. Josephine prosseguiu.
— E entrou num beco sem saída. Mas a armadilha não foi inteiramente desperdiçada. — Ela umedeceu os lábios e esticou o braço para trás, para abrir a sacola que estava no chão, junto ao pé da cadeira. Retirou de dentro um documento enrolado, amarrado com uma fita estreita e entregou-o ao homem deitado da cama, apressando-se a dizer, enquanto ele o desenrolava: — Quando você me pediu para ir em frente, eu não tinha ideia do que estava planejando, Ash.
Com uma ruga na testa, ele examinou o certificado que proclamava que Ashville Allan Coye e Josephine Belinda Bradshaw eram marido e mulher. Josephine tinha certeza que ele não encontraria uma única falha; a pessoa que forjara o documento era especialista na atividade.
Finalmente, Ashville balançou a cabeça.
— Quer dizer que sou casado. Que estranho... Não tenho a menor impressão de conhecer você. Me desculpe! Não quero magoá-la.
— Eu já estava preparada — Josephine engoliu em seco, mas não conseguiu desfazer o nó que lhe apertava a garganta.
— Nós... somos recém-casados! — exclamou Ashville, examinando com mais atenção o certificado. — Nos casamos há poucos dias, pelo que...
— Sim, no sábado — confirmou Josephine, interrompendo-o. — Voltamos no domingo à noite. Fui para minha casa e você foi para seu apartamento, para pegar algumas de suas coisas. Quando você não voltou, eu não sabia o que pensar.
— E agora, que sabe o que aconteceu?
Josephine respirou fundo e procurou acalmar-se. Precisava acalmar-se, repetia para si mesma. Não podia perder Ashville de vista, nem por um segundo, e aquela era a única maneira de conseguir isto. Era inútil ir à polícia; eles ririam dela e a botariam para fora da delegacia. Jamais acreditariam. Poucas pessoas acreditavam. Era cansativo, e irônico também, que ela normalmente conseguisse fazer-se acreditar mais quando contava mentiras do que quando dizia a verdade. O zelador do edifício onde Ash morava, por exemplo; acreditara piamente na história e abrira o apartamento para ela. Se ela tivesse contado a verdade, provavelmente o homem teria pensado que não estava boa da cabeça. Sempre fora assim.
Com exceção de seu pai. Este nunca duvidara dela; nunca a acusara de ter uma imaginação fértil. Por outro lado, sempre sabia quando ela estava mentindo. Mas ele era nada para Josephine, agora; menos que nada.
— E agora? — insistiu Ash, interrompendo o devaneio de Josephine. ,
Ela se empertigou na cadeira e enfrentou o olhar castanho aveludado.
— Bem, eu... Imagino que vamos continuar do ponto onde paramos — Josephine permitiu-se estudar demoradamente o rosto de Ash, tentando exprimir desejo. Descobriu que era mais fácil do que deveria ser. — Pelo menos, eu espero.
Ashville arqueou as sobrancelhas. A atitude dela levava-o a refletir seriamente. Estudou-a mais uma vez. Os cabelos longos e ondulados eram um misto de castanho claro, mel e loiro dourado; lembravam o pelo macio de uma gatinha, com todas aquelas cores mescladas. A imagem felina era acentuada pelos olhos verdes ligeiramente amendoados e pelos cílios escuros e longos. Ela era miúda, não devia ter mais que um metro e sessenta de altura, e suas pernas eram incrivelmente bem torneadas. A calça justa de couro que ela usava não lhes escondia os contornos, embora as demais formas de seu corpo estivessem invisíveis sob a jaqueta preta de couro, que combinava com a calça. Ela tinha uma aparência brejeira, de viço e frescor, e olhava para Ash como se quisesse enxergar através dele. — Podemos fazer isso, Ash?
Ele umedeceu os lábios.
— Estou pensando.
Quem era ela, afinal? Qual era o seu jogo?
Josephine levantou-se e colocou a sacola que estava no chão sobre a cadeira. Virou-se de costas para Ash e debruçou-se para a frente. Ash ouviu o ruído do zíper e viu que ela inspecionava o interior da sacola. Observando os movimentos graciosos do corpo esguio, sentiu-se inclinado a levar adiante aquela farsa, fosse o que fosse.
Quando Josephine se virou, tinha nas mãos um par de calças jeans... Os jeans dele... E uma camisa cinza. Então, a gatinha estivera em seu apartamento!
— Isto é para você vestir quando receber alta — explicou Josephine, abrindo o armário estreito ao lado da porta do banheiro e começando a pendurar as roupas. Ela trouxera meias, também, roupa de baixo e um par de tênis, e Ash notou que suas mãos tremiam ligeiramente, enquanto tirava as roupas da sacola e guardava-as no armário. — Não sei em que estado ficou a roupa que você estava usando no dia do acidente.
Ash limitava-se a observar os movimentos nervosos de Josephine, com a impressão de que ela se esforçava para tagarelar sem parar; reparou, também, que ela evitava olhar para ele.
— Está precisando de alguma coisa? — perguntou Josephine. — Quer que eu lhe traga algum jornal, revistas, ou...
— Não. Escute, hum... — Ash olhou para a certidão de casamento em suas mãos. — Josephine...
Ela torceu o nariz numa careta e Ash refletiu que, além de sensual, ela era uma gracinha.
— Josephine—corrigiu. — E só perdoarei essa falha uma vez, com amnésia ou sem amnésia.
Ash não pôde deixar de sorrir enquanto dava um piparote no papel.
— Não é o que diz aqui — observou. — Josephine Belinda Bradshaw.
— Não importa o que esteja escrito aí, meu nome é Josephine — insistiu ela.— É como todos me chamam, inclusive você. Josephine... Coye.
Ash balançou a cabeça. Teria de resistir aos apelos de seu corpo, que lhe diziam para prosseguir com aquela farsa, pelo menos até o ponto em que pudesse exercer algumas prerrogativas, como marido. Disse para si mesmo que mulheres como aquela eram perigosas. Aquilo não era uma brincadeira. Alguma coisa ela tinha em mente.
— Está bem, então... Josephine. Posso lhe fazer uma pergunta? Como conseguiu entrar em meu apartamento?
Ela o fitou com o olhar mais inocente do mundo.
— Você me deu uma chave, Ash.
— Oh!
O repórter policial dentro dele estava inquieto, indócil de curiosidade, ao mesmo tempo em que a tentação ameaçava superar a cautela. No final, entretanto, a voz da autopreservação falou mais alto. Porque, afinal, o acidente não fora um acidente. Alguém estava, de fato, empenhado em matá-lo. E um homem prevenido, claro, valia por dois.
— Ash... não está se sentindo bem? — indagou, apreensiva.
— Hum? — Ele suspirou. — Oh, não é nada. Estou ótimo. Aliás, você não podia ter chegado em melhor hora. Vou sair hoje do hospital.
Os olhos de Josephine dobraram de tamanho.
— Ho... Hoje?
— Sim. Portanto, se me der essas roupas estarei pronto para ir embora em um minuto.
— Ir embora?
— Vai me levar para casa, não vai? — Ash estava se divertindo com o pânico de Josephine, mas teve o cuidado de não demonstrar. Adotou mais uma vez a expressão vazia, de fragilidade.
— Para casa? Bem, eu...
Josephine calou-se e Ash mordeu o lábio inferior, para reprimir um sorriso.
— Se não quiser, não tem importância — murmurou. — Eu compreendo. É que quando você disse que queria continuar do ponto onde paramos, eu pensei que...
Ele engoliu em seco, simulando embaraço. Era óbvio que qualquer que fosse o esquema de Josephine, ela não pretendia estendê-lo além daquele quarto de hospital. Mas ele investigaria, mais tarde, e descobriria do que se tratava todo aquele fiasco.
Mas... não... Ela estava retirando as roupas dos cabides e as estava colocando sobre a cama. Em seguida, aproximou-se dele e segurou-o pelos ombros.
— Ash, eu fiquei surpresa, só isso. Não imaginei que você recebesse alta tão cedo. Com um ferimento tão grave na cabeça, pensei que... — Ela sacudiu a cabeça e os cachos dourados balançaram graciosamente. — É claro que vou levar você para casa. Ash franziu a testa e estudou o rosto de Josephine com atenção.
— Tem certeza?
Ela se empertigou e um brilho de determinação iluminou os olhos verdes.
— Vista-se, Ash. Vou pegar o formulário de alta, enquanto isso. Depois, podemos ir.
Ele assentiu e observou os movimentos dos quadris de Josephine, como que hipnotizado, conforme ela se virava para sair. Quando a porta fechou ele se sacudiu. Saiu da cama, foi até a porta e entreabriu-a, apenas para ter certeza de que Josephine não estava parada do lado de fora. Em seguida pegou no telefone. Ao ouvir a voz do editor-chefe do outro lado da linha, Ash não perdeu tempo com preâmbulos.
— Tem uma gatinha aqui, que é a coisa mais linda, dizendo que é minha esposa, Radley. Ela quer me levar para casa. Eu vou.
Radley Ketchum riu, divertido.
— Ash, acorde! Ainda está sonhando? Compreendo que sonhe em ir para casa com ela, mas que tenha se casado?! O que está acontecendo?
— Escute, Radley, o negócio não é brincadeira — Ash lançou um olhar para a porta e continuou, apressado: — Ela tem uma certidão de casamento, perfeita, segundo a qual me casei com ela em Las Vegas, no último sábado.
— E ela espera que você acredite? Logo você? O solteirão mais convicto do estado de Nova York?
— Bem, provavelmente ela imagina que não sei disso, você não acha?
Radley ficou em silêncio, por um momento.
— Olhe, é melhor você não ir. Essa história toda foi armada para salvar sua vida, não para fazê-lo cair como um pato nas mãos do assassino. Ou assassina.
Ash lembrou-se da expressão de Josephine quando ele fingira estar emocionalmente perturbado.
— Não acho que seja ela.
— Ah, não? Como pode ter tanta certeza?
— Eu não sei. É uma espécie de intuição.
— Ela fuma?
— Como vou saber se ela fuma? Escute, eu o avisarei quando chegar lá.
— Se ela acender um cigarro, meu amigo, bata em retirada imediatamente. Se se sentir tentado a ficar, pense naqueles tocos de cigarros com marcas de batom coral cintilante que os policiais encontraram nos locais dos três crimes.
— Não se preocupe, Radley. Não quero morrer, ainda.
— Mais uma coisa. Dê um jeito de deixar o endereço dela anotado aí no hospital, antes de sair, apenas como precaução. O número do telefone, também. Agora, diga-me o nome dela e vou ver o que consigo descobrir.
— Bem, ela diz que se chama sra. Ashville Coye.
— Muito engraçado.
— O nome que consta na certidão de casamento é Josephine Belinda Bradshaw. O apelido é Josephine.
— Ótimo. Cuide-se, ouviu bem, rapaz?
— Pode deixar.
— E, apenas para o caso de ela ser a assassina, não a deixe perceber que a amnésia é fictícia.
Ash desligou o telefone e vestiu-se rapidamente. Estava amarrando os tênis quando Josephine voltou. Pouco depois os dois caminhavam pelo corredor do hospital. Ash notou que ela parecia nervosa; olhava para os lados, como se desconfiasse de todos; segurava o braço de Ash com força, embora ele suspeitasse que não fosse um gesto consciente. Ash desviou-se para o balcão, levando Josephine consigo. Pediu à enfermeira de plantão uma folha de papel e caneta e virou-se para Josephine.
— Qual é o seu endereço?
— Rua Gaskin, 829, em Clay. Por quê?
Ash rabiscou no bloco que a enfermeira lhe dera.
— Só para o caso de alguém vir me procurar aqui.
Os olhos de Josephine se arregalaram. Ela deu um passo à frente e arrancou a folha do bloco, amassando-a na palma da mão.
— Não acho que seja boa ideia.
— Por que não?
— Não gosto que meu endereço fique à disposição de qualquer um, só isso. — Josephine arrancou a caneta da mão dele, debruçou-se e escreveu um número no bloco, antes de devolvê-lo à enfermeira, por sobre o balcão. — Se alguém perguntar por... Meu marido, este é o nosso telefone.
— E então, tenho permissão para receber visitas, durante minha sentença?
Josephine olhou para Ash com evidente irritação e ele sorriu para mostrar que estava brincando; embora não estivesse, de fato. Ela retribuiu com um sorriso amarelo e virou-se na direção dos elevadores, sem largar a sacola, vasculhando os corredores com os olhos.
— O que tem aí dentro? — quis saber Ash.
— Onde?
— Na sacola... amor.
Josephine arqueou as sobrancelhas, por um momento, surpresa, depois entregou a sacola a Ash.
— Seus pertences — explicou. — Tudo que tiraram de você quando chegou ao hospital. Carteira, aliança...
Então, a gatinha de cabelos longos pensara em tudo...
— Ah... ainda bem —murmurou ele. — Sinto-me nu, sem aliança.
— Está sendo sarcástico, ou está brincando?
Josephine olhou para ele, quase apreensiva. Ash limitou-se a sorrir. As portas do elevador se abriram e Josephine lançou um olhar nervoso para as pessoas que ali se encontravam. Ficou imóvel, como se observasse cada um dos rostos, antes de decidir-se, Ash não tinha ideia pelo quê. Segurou as portas no instante em que começaram a fechar.
— O que foi, Josephine? Algum problema?
Ela pestanejou, olhou para Ash e sacudiu a cabeça. Entrou no elevador e praticamente colou-se a ele. As atitudes de Josephine eram estranhas, refletiu Ash. Não eram as atitudes de uma mulher que estivesse simplesmente querendo seduzir. Nem seria necessário. Ash teria concordado imediatamente, à primeira insinuação. Uma vez só, claro. Mulheres como ela não faziam seu gênero; apenas para uma única finalidade, nada mais. Ele conhecia bem o tipo; encontrara várias, em sua busca pela "pessoa certa". No começo, pareciam encantadoras, recatadas, mas quando ele as levava para casa, no final da noite, prontamente concordavam em ir para a cama com ele. E isto era o fim. A qualificação número um para a futura sra. Ashville Coye era que não fosse promíscua a ponto de ir para a cama no primeiro encontro. Aliás, ele preferia que ela não fosse nem um pouco promíscua.
E era por esta razão que ele acreditava que teria certeza que Josephine não era sua esposa, mesmo que a amnésia fosse real. Ela tinha "fácil" escrito na testa, nos olhos grandes e lânguidos, nos lábios tentadores, quase sempre entreabertos.
As portas do elevador se abriram, interrompendo o curso dos pensamentos de Ash. Josephine foi a primeira a sair. Lançou um rápido olhar ao redor do hall, seguido por outro, por sobre o ombro, para certificar-se de que Ash estava atrás dela. Encaminhou-se, então, para a saída, movendo sedutoramente os quadris. Ash reparou que nada menos de sete homens viraram-se para trás, ao passar por ela. Mas Josephine não pareceu notar.
Ah, era esperta aquela garota! Aparentar indiferença fazia parte do jogo feminino; despertava o interesse; transformava a conquista num desafio. Ash conteve-se para não rir. Ainda estava para nascer o homem que encararia aquela garota como um desafio.
Ela atravessou o pátio de estacionamento com passo firme, com Ash em seus calcanhares. O sol quente de julho arrancava vapor do solo, fazendo o asfalto parecer um forno; o ar estava parado, abafado. Para surpresa de Ash, Josephine parou ao lado de uma motocicleta gigantesca, preta e lustrosa. Pegou um capacete também preto, com visor escuro, e colocou-o na cabeça. Em seguida, entregou um capacete igual a Ash.
— Está brincando? — perguntou ele.
Josephine levantou o visor e inclinou a cabeça para o lado, embaraçada.
— Tem razão. Se eu soubesse que você ia ter alta, teria trazido o carro.
— Não é isso que...
— Escute, por que não espera ali na lanchonete, enquanto vou buscar o carro? — Ela olhou para Ash com uma ruga na testa. — Ah, mas não posso deixar você sozinho... Já sei! Vou chamar um táxi! Depois volto para pegar a moto...
— Você fala demais, sabia?—Ash pegou o capacete e enfiou-o na cabeça, encolhendo-se quando sua base tocou na atadura. A amnésia podia ser fictícia, mas a concussão era real. — Eu estou bem, posso ir de moto. O que eu estava pensando era como uma coisinha como você consegue dirigir esse monstro. Se quiser, posso dirigir.
— Na última vez em que você dirigiu, acabou dentro de uma ambulância.
Josephine puxou o visor e passou uma perna sobre o assento da motocicleta. Ash notou que os pés dela mal tocavam o chão. Ela deu partida e o motor roncou, exalando um cheiro forte de gasolina. Ash suspirou, resignado, e sentou-se atrás dela, na garupa. Enlaçou-a pela cintura, refletindo que a viagem até que não seria má. Josephine, porém, segurou as mãos dele e empurrou-as para trás, sobre seus quadris. Virou a cabeça e ergueu mais uma vez o visor.
— Devagar... querido.
Ash também levantou o visor de seu capacete e simulou uma expressão consternada.
— Desculpe.
O olhar de Josephine se suavizou.
— É que assim consigo me concentrar melhor, só isso.
Ash assentiu, levemente surpreso ao descobrir a facilidade com que conseguia domesticar Josephine quando se fingia magoado. Uma artista, sem moral, e com bom coração. Ele não cabia em si de curiosidade para saber o que ela estava pretendendo... e se toda aquela loucura tinha alguma coisa a ver com os assassinatos. Ash puxou o visor para baixo. Josephine fez o mesmo. Um segundo depois, estavam no meio do tráfego louco da cidade.
Josephine pesquisara sobre Ash. Na verdade, não fizera outra coisa nos últimos três dias, desde que ouvira a notícia do acidente. Conhecia-o bastante bem para levar aquilo adiante. Repetia isto para si mesma conforme devorava as curvas em cima da motocicleta, sem diminuir a velocidade. Finalmente, virou à direita e entrou no estacionamento do hotel Três Rios. Seu estômago foi parar na garganta quando a moto desceu a rampa... Josephine adorava aquela sensação! Atravessou o pátio e saiu do outro lado, na rua Gaskin.
Ela sentiu a pressão das mãos de Ash em sua cintura, porém ignorou a sensação de calor que o toque dele provocava. Ash devia estar bastante contrariado com aquela história. Além de ser um solteirão convicto e um playboy notório, era um machista consumado; provavelmente considerava humilhante andar na garupa de uma motocicleta guiada por uma mulher.
Mas Josephine não se rejubilava com o mal-estar de Ash. A situação dele era terrível.
Ela virou à direita novamente, subiu na calçada e parou em frente à casa. Desligou o motor e empurrou o descanso para baixo com o tornozelo, para apoiar a moto. Em seguida removeu ò capacete e balançou a cabeça, deixando os cabelos caírem soltos sobre os ombros. Olhou para trás e viu que Ash também tirara o capacete. Ele contemplava, surpreso, a casa branca construída em vários níveis.
— Você mora nesta mansão?—perguntou, enquanto Josephine descia da motocicleta.
— Mansão? — Ela franziu a testa e sorriu. — Está enganado. Não é uma mansão. É uma casa espaçosa e confortável, só isso.
Ash seguiu Josephine ao redor da casa, percorrendo um bem cuidado caminho de pedra e grama, em direção à porta dos fundos.
— Nossa, o quintal de sua casa é do tamanho de um campo de futebol... e fica à beira do rio! — Ele levou a mão em concha aos olhos para protegê-los do sol e contemplou o gramado que se estendia por cerca de sessenta metros até o rio estreito que corria embaixo.
— Metade de um campo de futebol, no máximo — Josephine abriu a porta e entrou.
— O que você está escondendo de mim, Josephine?
Ela o fitou e viu a suspeita nos olhos castanhos. Sentiu um calafrio percorrer lhe a espinha. Não tinha certeza se ele se referia à propriedade ou às mentiras.
Mentiras necessárias. Necessárias para mantê-lo vivo. E Caroline.
— Não estou escondendo nada de você. O que quer saber?
— Como uma mulher da sua idade pode morar sozinha numa casa como esta?
Josephine balançou a cabeça. O homem era persistente. E ela não tinha certeza se estava preparada para contar a ele sobre sua profissão. Se falasse só uma parte ele seria capaz de investigar e descobrir mais. E com toda a certeza publicaria um artigo, taxando-a de lunática e considerando-se felizardo por ter conseguido escapar.
— Que idade acha que eu tenho, Ash? Tenho trinta anos! Não sou mais nenhuma adolescente. Além do que, fui criada nesta casa — disse ela, sem mentir. — Quando meus pais decidiram se mudar para um condomínio de aposentados em Miami, resolvi não me desfazer da casa.
Ela tirou a jaqueta e pendurou-a em um gancho, ao lado da porta.
— Qual é o seu trabalho, Josephine? — insistiu Ash.
— Sou consultora autônoma.
— De quem?
Josephine suspirou, inquieta.
— De várias companhias — Para mudar de assunto, ela fez um gesto com a mão abrangendo o aposento onde se encontravam, uma área ampla com piso de cerâmica e paredes pintadas de branco, revestidas de equipamentos de ginástica.
— Esta é a minha câmara de tortura, como vê. Ali tem um banheiro e a outra porta é da escada que leva ao porão.
O olhar de Ash se estreitou ao deter-se em um pequeno par de halteres.
— Você faz levantamento de peso?
— Por quê, você desaprova?
— Não acho muito feminino.
— Pois os resultados são.
Os olhos de Ash percorreram o corpo de Josephine de cima a baixo e, pela primeira vez na vida, ela se sentiu pouco à vontade na calça justa e miniblusa.
Ash suspirou, antes de perguntar:
— Por que entramos por aqui e não pela porta da frente?
— Hábito. Desde pequenas, mamãe nos acostumou a usar esta porta. Venha, vou lhe mostrar o resto da casa.
Ash subiu atrás de Josephine pelo estreito lance de escada e viu-se numa ampla cozinha. Através da porta aberta teve um vislumbre da sala da jantar, com uma lustrosa mesa retangular de madeira e cadeiras de espaldar alto. Josephine conduziu-o por uma outra porta, que dava para a sala de estar. Ele observava tudo atentamente, como se quisesse absorver cada detalhe.
Ocorreu a Josephine que talvez ele estivesse à procura de algo familiar, de alguma coisa que lhe ativasse a memória. Sentiu a consciência pesada pelo que estava fazendo.
— Ash, na verdade você passou muito pouco tempo nesta casa. Com certeza, seu apartamento vai lhe trazer mais recordações. Podemos ir para lá, depois, se você quiser. Quem sabe, um ambiente familiar contribua para revolver as lembranças do passado.
Ash franziu a testa.
— Por que deseja isso?
— Por que eu não desejaria?
— Não sei. Essa é uma pergunta interessante — murmurou ele, afastando-se.
Josephine refletiu que talvez Ash suspeitasse que ela não estava sendo sincera sobre o relacionamento de ambos. Não podia descuidar-se.
Ele olhou para o curto lance de escada que conduzia ao andar superior.
— Tem três dormitórios e dois banheiros, lá em cima — informou ela. — Suba para dar uma olhada. Quero que se sinta à vontade, aqui.
Josephine sentia-se bem por poder dizer pelo menos uma verdade em meio a tantas mentiras. Queria que Ash se sentisse o melhor possível. Ele estava passando por uma das piores experiências que podia passar um ser humano: a perda da própria identidade. E ela lhe dava uma identidade falsa!
Ash começou a subir, porém o som de uma buzina do lado de fora o deteve. Espiou, ao lado de Josephine, pela porta de vidro, cuja maçaneta estava travada por um cabo de vassoura escorado no chão. Ash examinou mais de perto, depois lançou um olhar intrigado a Josephine.
— Outro hábito. Esse mesmo cabo de vassoura é usado há anos. E raramente sai daqui.
Ash sorriu e Josephine espiou novamente para fora. Na entrada de carros, Caroline e as meninas desciam da caminhonete e dirigiam-se para os fundos da casa, acenando alegremente.
Josephine teve a sensação de que seu estômago desaparecera, ao dar-se conta das implicações daquela inesperada visita de sua irmã. Não estava preparada para começar tão cedo. Imaginara que teria tempo para pensar numa forma de falar com Caroline.
— O que foi? — indagou Ash, zombeteiro, como seja soubesse o que era. — Você ficou pálida, de repente. Quem é?
— É... Minha irmã, Caroline. Eu... hã... Ash, ela não sabe... sobre nós — Josephine sentiu uma onda de náusea.
— Não contou à sua irmã que nos casamos? — Ele arqueou as sobrancelhas exageradamente, depois balançou a cabeça, com ar desaprovador. — Que vergonha, Josephine!
Josephine não teve tempo de pedir a ele que calasse a boca. No segundo seguinte, duas meninas loiras e risonhas subiam a escada e se atiravam nos braços de Josephine.
— Tia Josephine, viemos fazer um piquenique!
— Podemos pescar?
— Jogamos os peixinhos novamente na água!
— Sim, prometemos!
— Por favor, tia!
— Calma, vocês duas! Calma. —Josephine abraçou as sobrinhas carinhosamente. Adorava aquelas meninas e sabia que esta afeição se devia, em parte, à improbabilidade de um dia vir a ter seus próprios filhos. — Vão para a cozinha. Tem balas no pote de vidro.
As duas garotas voltaram correndo para a cozinha. A mãe delas, vestida, como sempre, numa calça baggy e numa camiseta pelo menos duas vezes maior que seu manequim, entrou na sala. Seu cabelo, muito parecido com o de Josephine na cor e no comprimento, estava amarrado num rabo-de-cavalo e seu sorriso era franco e jovial.
— Olá, Josephine — Ela manteve o sorriso ao deparar-se com Ash. — Desculpe não ter ligado, avisando. Não pensei que você tivesse visita. Posso voltar depois...
— Oh, eu não sou visita — Ash deu um passo à frente e estendeu a mão. — Meu nome é Ashville Coye. Você deve ser Caroline. É mais bonita do que sua irmã disse.
A amnésia de Ash não prejudicara sua arte de esbanjar charme. Caroline apertou a mão dele, entre surpresa e embaraçada, olhou de Josephine para Ash e para Josephine, de novo, depois franziu a testa e seu olhar se iluminou.
— Ashville Coye... Você é o jornalista que está fazendo as reportagens sobre os assassinatos da Fera, não é?
Ele lançou um olhar de soslaio para Josephine.
— É, parece que sim.
— Oh, mas que coincidência! É um prazer conhecê-lo — Caroline parecia ligeiramente confusa. — Eu ouvi falar de seu acidente. Espero que... Esteja bem, agora.
— Sua irmã está me ajudando.
Caroline sorriu e olhou para Josephine, num pedido silencioso de desculpas.
— Bem, vou levar as meninas para dar uma volta no parque...
— É melhor você ficar — interrompeu Ash, com voz grave e firme, a expressão séria. — Josephine e eu temos uma coisa para lhe contar.
Josephine engoliu em seco com dificuldade, com a sensação de ter levado um soco no estômago.
— Uma... coisa? O que é, Josephine? — O tom de voz de Caroline se elevou, com a ansiedade. — O que aconteceu? Você está doente?
Ela deu um passo à frente e levou a mão à testa da irmã, depois examinou lhe os olhos, num padrão maternal universal.
Josephine balançou a cabeça.
— Não tem nada de errado comigo, Carol.
— É alguma coisa a ver com aqueles assassinatos? — Os olhos de Caroline se arregalaram. — Você... Vocês...
— Não, Caroline — Josephine levantou o rosto para Ash, que era pelo menos trinta centímetros mais alto que ela, e percebeu que não havia escapatória. Depois fitou os olhos azuis da irmã e sentiu uma pontada no coração. Caroline talvez nunca a perdoasse quando descobrisse a verdade, mas teria valido a pena salvar-lhe a vida. Não havia ninguém no mundo mais ligado a ela do que sua irmã Caroline.
— É que... Ash e eu... nós...
Josephine não conseguiu continuar. Sua boca estava seca, a voz estrangulada. Além do mais, Caroline não acreditaria! Ash segurou a mão de Josephine e ergueu-a.
— Acho que isto diz tudo — declarou.
Com uma ruga na testa, Caroline olhou para a aliança de ouro que Josephine comprara e colocara na mão esquerda. Seus olhos se arregalaram ainda mais.
— O que é isto, alguma brincadeira? — Ela olhou de um para outro. — É uma brincadeira, não é? Sr. Coye... Não pode estar falando sério...
Quando nenhum dos dois sorriu, ela levou as mãos ao rosto.
— Oh... não! Vocês não estão brincando...
Ao ver os olhos de Josephine marejados de lágrimas, Ash deu-se conta de que levara longe demais o desafio. Não tinha a menor ideia do motivo pelo qual Josephine queria fazê-lo acreditar que eram casados. Imaginara que a desarmaria, se a forçasse. Enganara-se. O que quer que ela tivesse em mente, era alguma coisa séria; se não fosse, ela não teria mantido a farsa diante da irmã. Era evidente que as duas eram muito unidas.
Era, também, cada vez mais desconfortavelmente óbvio que Josephine estava, de alguma forma, envolvida nos assassinatos. Ash suspeitara disto desde o início e o comentário de Caroline viera confirmar esta suspeita. Por outro lado, era doloroso olhar para Josephine e pensar que podia ser uma assassina fria e brutal. No instante seguinte, ele se viu envolvido em um abraço hesitante, porém sincero. Depois Caroline abraçou Josephine, com mais força. Demoradamente. Ash notou que ela também chorava.
— Nunca imaginei uma coisa dessas — Ela afastou-se para olhar a irmã. — Josephine, mas assim, sem vestido, nem flores, nem música?...
— É que... Foi decidido de repente.
Caroline ficou pensativa por um momento, depois olhou para Ash.
— Por acaso você... — Ela se virou novamente para Josephine. — Está grávida, Josephine?
— Caroline! — protestou ela, impaciente. — Durante anos você disse que queria me ver encaminhada, casada, enfim. Devia estar feliz, agora.
— Desculpe, querida. É que foi tão repentino... Fiquei surpresa, só isso. Você está feliz, Josephine? Porque é isso que importa.
— Sim, Carol — respondeu Josephine, enxugando uma lágrima. — Estou muito feliz.
Sem soltar as mãos de Josephine, nem mesmo virar a cabeça, Caroline elevou o tom de voz.
— Meninas, venham até aqui! Quero que conheçam seu novo tio!
As vozinhas incessantes na cozinha se calaram abruptamente. Dois rostinhos loiros e angelicais espiaram em silêncio para dentro da sala.
— Ashville, estas são minhas filhas, Bethany, de sete anos, e Brittany, de seis. Meninas, este é seu tio Ashville... Marido de tia Josephine.
Quatro olhos azuis se arregalaram.
— Marido?
— Tio?
A mais velha das duas deu um passo à frente e Ash, com a consciência cada vez mais pesada, abaixou-se. Sua revolta contra a esposa de faz-de-conta redobrou; já era bastante ruim enganá-lo, quanto mais a duas crianças indefesas e, ainda por cima, forçá-lo a participar daquele fingimento.
— Você vai fazer tia Josephine ser uma "Maria-lava-passa-cozinha-e-troca-fraldas"?
A pergunta, proferida por uma criatura daquele tamanho, quase fez Ash explodir numa gargalhada.
— Uma o quê?
A outra menina, Brittany apoiou a irmã.
— É o que acontece quando você se casa — explicou, séria.
— Você nunca mais se diverte. Tem que ficar em casa, lavar roupa e ter um bebê atrás do outro.
— E o marido anda atrás de você o tempo inteiro, dando ordens e reclamando de tudo.
— Nós nunca vamos nos casar.
— Isso mesmo. Nunca!
As duas meninas estavam diante dele, os braços cruzados, os olhos hostis, as expressões furiosas. Pareciam gêmeas.
— Quem disse isso tudo para vocês? — perguntou Ash, divertido.
— Tia Josephine — responderam ambas, em uníssono. Todos os olhos se voltaram para Josephine, que sacudiu os ombros, desamparada.
— Bem, acontece que quando sua tia Josephine me conheceu, ela decidiu que não seria tão horrível assim lavar roupa e ter bebês.
Josephine cerrou os punhos e os dentes, no esforço para manter-se calada.
As meninas inclinaram as cabecinhas douradas para o lado para observar Ash, desconfiadas.
— Bem, agora vamos — Caroline segurou as mãos das filhas. — Quero que venham jantar comigo, qualquer dia. Eu telefonarei, Josephine.
Ela abraçou mais uma vez a irmã e inclinou a cabeça para Ash, antes de sair pela cozinha.
— Ele é bonito, não é, mamãe?
Ash não tinha certeza qual das duas falara. Ambas estavam vestidas igual, com jardineira jeans e camiseta branca. A única diferença que ele detectara era que Brittany era cerca de dois centímetros menor que Bethany. E usavam tiaras de cores diferentes, no cabelo.
— Será que ele vai mandar tia Josephine parar de andar de moto? — lembrou uma delas.
— Ela vai continuar a levar a gente para fazer explorações?
Foi tudo o que Ash ouviu, pois a porta se fechou e as meninas correram para fora. Ele se virou para Josephine, com uma ruga na testa.
— Explorações?
— De cavernas.
Se olhar matasse, Ash tinha certeza de que seria um cadáver estirado no chão.
— Cavernas? — repetiu.
O olhar de Josephine era feroz.
— Como teve coragem? — acusou, indignada. — Dizer assim, sem mais nem menos, que nos casamos?!
— E o que você queria que eu fizesse? Nós somos casados. Não somos?
— Mas eu queria contar a Caroline do meu jeito! Ela deve estar pensando que enlouqueci!
— Sem dúvida, dada a sua opinião sobre o casamento. "Maria-lava-passa-troca-fraldas"?
— Exatamente — Ela o fuzilou com os olhos. — Veja Caroline! Era uma jovem alegre, cheia de vida, engraçada, confiante. Agora, Ted a transformou em...
— Sim? Continue... em quê? — incentivou Ash, quando ela se calou.
— Oh, deixe para lá! É uma situação completamente diferente. Você não tem nada a ver com Ted.
— Tem certeza? — insistiu Ash, determinado a saber mais a respeito dos conceitos feministas de Josephine sobre o domínio masculino.
Caroline parecera-lhe uma pessoa perfeitamente normal e feliz. Amava as filhas, era evidente. E como poderia não amar? Eram umas gracinhas, as duas. E muitas mulheres gostavam de ser "Maria-lava-passa". Ash tinha certeza disto... Embora ainda não tivesse encontrado uma delas.
— Que você não tem nada a ver com Ted? — perguntou Josephine. — Espero que não tenha, caso contrário irá imediatamente para o olho da rua.
Ash deu de ombros.
— Bem, o que vamos jantar? — quis saber.
Josephine fitou-o por mais alguns instantes, séria, depois riu. Era um riso amarelo, mas não deixava de ser um riso. Por um momento, Ash ficou contente por ter conseguido abrandar lhe a irritação e fazê-la sorrir. Ela podia não ser o tipo de mulher que ele procurava, mas nem por isto precisava ser sua inimiga. A menos que estivesse planejando sua morte...
— Não sou muito boa cozinheira. Nem faço questão de ser. Existem maneiras mais interessantes de passar o tempo.
Ash engoliu em seco. Josephine não só se vestia de maneira quase tão provocante como sua mãe costumava fazer, como também não gostava de cozinhar. A suspeita o envolveu como um manto sufocante, agravado pelas lembranças. Talvez por este motivo ela não quisesse falar sobre seu trabalho. Se Josephine era consultora, ele era neurocirurgião.
Ash estudou pela centésima vez as feições de Josephine, tentando decifrar o enigma que se escondia por trás daquilo tudo. Olhou à sua volta, para a sala bem decorada e aconchegante. Não parecia o tipo de lugar onde entrassem e saíssem homens a todas as horas do dia e da noite; o tipo de lugar onde um garoto se esconderia, na escuridão, com medo dos sons que vinham do quarto de sua mãe, com medo das vozes e risadas de estranhos.
— O que foi, Ash?
Ele balançou a cabeça, afastando as memórias indesejáveis com uma força de vontade suprema e bem treinada.
— Se você não cozinha, o que é que você come?
— Tem alguma coisa contra pizza?
— Não.
Josephine franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado.
— Qual é o problema, Ash-? — insistiu, dando um passo à frente. — Você se lembrou de alguma coisa, não foi?
Ele balançou a cabeça.
— Não. Estava tentando me lembrar, mas é inútil. — De fato, a infância era algo que ele gostaria de apagar completamente da memória. — E então, vai pedir essa pizza, ou peço eu? Estou morto de fome.
Alguma coisa o incomodava, Josephine tinha certeza. Mas se ele não queria falar, ela não o pressionaria. Não tinha este direito. Afinal, não era esposa dele.
No entanto, o ar preocupado nos olhos sombrios perdurou ao longo do jantar, até terminar o último noticiário na televisão.
— Nosso namoro não foi muito longo, foi? — perguntou Ash, abruptamente.
Josephine engoliu em seco e olhou para ele. Estava sentado na poltrona reclinável e ela, no sofá, com as pernas dobradas sob o corpo.
— Por quê, Ash?
— Sua irmã não me conhecia.
Ele a observava atentamente e Josephine não pôde deixar de desviar o olhar. Detestava mentir. Se existisse uma outra maneira, teria agido diferente.
— É, foi uma coisa meio rápida.
— Paixão à primeira vista?
— Mais ou menos.
— Eu lhe mandei flores e a convidei para jantar, até que você não resistiu?
— Oh, não! Flores e jantares teriam me matado de tédio! — respondeu ela, com espontaneidade e franqueza.
Ash inclinou o corpo para frente, na poltrona.
— Então, o que fazíamos, juntos?
Josephine apertou os lábios. Preferia não dizer nada do que mentir. O melhor era ficar o mais próximo possível da verdade. Podia dizer a Ash as coisas que gostava de fazer, embora nunca as tivesse feito com ele.
— As vezes pulávamos em cima da moto e íamos para o sul, até encontrar mais vacas e cavalos do que pessoas. Depois andávamos por algum bosque, subíamos e descíamos um ou outro morro... Outras vezes simplesmente ficávamos em casa, no quintal dos fundos, escutando as cigarras e olhando as estrelas. Você sabe como gosto da vida ao ar livre e da natureza.
— Não, não sei.
Josephine encolheu -se mais no sofá, sentindo-se pouco à vontade.
— É verdade, você... não poderia saber.
Ash também mudou de posição, apoiando os cotovelos sobre os joelhos.
— Nada de festas, boates?
— Tenho jeito de quem gosta de vida noturna?
Ash assentiu e Josephine não escondeu a surpresa.
— É mesmo? Mas não gosto.
— Do que você gosta? De explorar cavernas?
Ela assentiu e perguntou:
— Já foi alguma vez?
— Eu não sei. Já fui?
Josephine sentiu vontade de esbofetear a si mesma, por aquele deslize.
— Como eu disse, não nos conhecemos há muito tempo. Nunca fomos juntos, mas isto não significa... Oh, vivo me esquecendo que você não consegue se lembrar!
Ash deu de ombros.
— Não acho que seja algo que me entusiasmaria. Entrar numa caverna, dar trombadas com morcegos e andar dentro de água suja. Não me parece das coisas mais interessantes.
Josephine riu.
— É muito mais que isso, Ash. Já andei milhas dentro de uma caverna, no subsolo, em lugares onde ninguém pôs os pés, antes. Percorri, de rastros, passagens estreitas e desci abismos de dez mil metros pendurada em uma corda.
— Não é perigoso?
— Arriscado, talvez... Claro que quanto mais experiência você tem, e quanto mais precauções você toma, menor o risco.
— E você tem experiência?
— Hum, hum.
— E toma todas as precauções?
— Claro.
— Hum. Interessante.
O olhar de Ash parecia distante e Josephine perguntou-se o que ele estaria pensando. Logo, entretanto, ele olhou para o decote de sua blusa e voltou ao presente.
— Pronta para ir para a cama?
Ela prendeu o fôlego, involuntariamente, deixando o ar escapar aos poucos para que Ash não percebesse sua inquietação.
— Eu estava querendo falar com você sobre isso.
— Eu imaginei.
Josephine umedeceu os lábios e engoliu em seco.
— Para todos os fins, Ash, somos estranhos. Quero dizer, depois do que aconteceu... Para você, é como se tivéssemos nos conhecido hoje, não é?
— Tem razão.
— Por isto acho melhor dormirmos em quartos separados.
Ash arqueou as sobrancelhas.
— Por quê? Não é a favor de dormir com estranhos?
Josephine franziu a testa.
— Não entendi a pergunta.
— É uma pergunta simples. Eu só queria saber se é com todos os estranhos que você não quer dormir, ou só com aqueles com quem é casada.
Josephine arregalou os olhos e quase engasgou.
— Você é um brutamontes, sabia?
— Já fui chamado de coisas piores — Ele fez uma pausa. — Não acha que uma boa noite na cama ativaria minha memória?
— Não me interessa se ativaria ou não! — esbravejou Josephine, indignada. Nem mesmo uma amnésia justificava aquele tipo de grosseria. Ela se levantou, sentindo o sangue fervilhar. — Seu quarto é o primeiro à esquerda, subindo a escada,
Ash também se levantou.
— Sabe que para uma esposa recém-casada, você não está sendo amorosa?
— Não me sinto uma esposa amorosa!
Ash aproximou-se e segurou-a pelos ombros, puxando-a para si.
— Eu poderia dar um jeito nisso — murmurou.
Josephine sentia cada músculo do corpo de Ash colado ao seu e uma onda de calor a invadiu. Levantou um braço e esbofeteou-o. Ash soltou-a e deu um passo para trás, atônito.
— Por que fez isso?
— Por você tentar me forçar a fazer uma coisa que não quero.
— Mas você é minha mulher!
— E como a maioria dos homens, você acha que isso lhe dá o direito de fazer exigências. E se eu recusar, você vai procurar satisfação em outro lugar. Não é assim? — explodiu Josephine, dizendo o que lhe vinha à mente, sem se preocupar com o que Ash poderia pensar.
— Você tem uma visão deturpada, garota.
— Já vi o suficiente para confirmar minha opinião. Boa noite, sr. Coye — Ela girou nos calcanhares e marchou escada acima.
— Boa noite... senhora Coye.
Josephine parou no quinto degrau, tensa; depois, sem olhar para trás, continuou a subir.
A cabeça de Ash latejava, não o deixando esquecer do ferimento real atrás da fictícia falta de memória. Ele sofrera uma forte concussão na cabeça. Tivera sorte por não ter se machucado com mais gravidade, considerando que alguém sabotara o breque de seu carro e que o veículo ficara totalmente destruído depois de chocar-se contra um caminhão de lixo.
A dor de cabeça roubava-lhe as forças. Ainda assim, ele não conseguia deixar de refletir. Por que Josephine não quisera ir para a cama com ele, a fim de dar mais credibilidade à mentira? Seria mais uma parte da farsa? Estaria ela querendo fazer o papel de moça direita? Ash não queria uma mulher como sua mãe fora. Queria uma como...
A imagem que durante tanto tempo ele acalentara dançou diante de seus olhos: uma mulher doce, inteligente, tímida e sensível; uma mulher que ficasse em casa e criasse os filhos dele como uma criança devia ser criada... Não como ele fora criado; uma mulher que fizesse bolo nas tardes de domingo; uma mulher que não pulasse para a cama com ele no primeiro encontro.
Ash não queria uma mulher fácil, oferecida. Tampouco queria uma aventureira doida, que se lançava de motocicleta por bosques e morros e se embrenhava dentro de cavernas. Josephine Bradshaw não chegava nem perto do modelo de esposa que ele procurava. Por isto era uma ironia que ela fosse a primeira mulher, depois de um longo tempo, a dizer não para ele.
Entretanto, o fato de ela tê-lo rejeitado naquele momento não significava que fosse santa. Podia ser tudo representação, parte do ato. Até mesmo aquela história de contemplar as estrelas no céu... Só faltava ela querer convencê-lo de que gostava de colher florzinhas silvestres e de cuidar de filhotes abandonados.
Estava na hora de fazer uma investigação séria. Ash sabia muito bem que não se casara em Las Vegas, naquele fim-de-semana; Fora até lá para averiguar os detalhes de uma série de assassinatos cometidos cinco anos antes, assassinatos semelhantes aos que ocorriam agora, na área de Syracuse.
No passado, as vítimas haviam sido quatro homens e uma mulher, todos mortos por um corte único e fatal na jugular. Todos haviam sido atacados entre meia-noite e três horas da madrugada. Não houvera testemunhas, ninguém declarara ter ouvido nada, nenhum grito, nenhum ruído diferente, vozes alteradas, nada, embora os corpos tivessem sido encontrados em locais movimentados. E, aparentemente, as vítimas não tinham nada em comum entre si, além da causa da morte.
Até então, três corpos já haviam sido encontrados em Syracuse. Todos do sexo masculino. O procedimento era o mesmo, desde a natureza dos ferimentos até a hora calculada das mortes. A única diferença era que, desta vez, havia uma pista a mais: foram encontrados tocos de cigarro nas cenas dos três crimes, todos eles com marcas de batom. E, pela primeira vez, a polícia estava admitindo a hipótese de o assassino ser uma mulher. Teria de ser uma mulher forte, embora não excepcionalmente. Bastava ter a habilidade de agarrar um homem pelas costas e passar uma navalha por seu pescoço. Seriam necessários apenas alguns segundos.
Ash lembrou-se outra vez dos equipamentos de ginástica e levantamento de peso, no andar inferior da casa. Achava difícil acreditar que Josephine fosse uma assassina. Mas, então, por que estaria mentindo, fingindo ser sua esposa? E por que Caroline fizera aquele comentário sobre os crimes?
Ash balançou a cabeça. Não fazia sentido. Então, lembrou-se da opinião de Josephine sobre os homens. Até que ponto ela os desprezava, ou até, odiava?
Ele começou pela sala de estar, já que ali se encontrava. Abriu cada armário, cada gaveta, porém não encontrou nada que pudesse interessar. No closet ao lado da porta do lavabo, achou dois pares de botas de cano alto, um capacete, duas lanternas e vários rolos de corda. Aparentemente, Josephine não estava brincando quando falara de explorar cavernas. No entanto, ao passar a mão pela prateleira superior, Ash sentiu um objeto metálico. Um calafrio percorreu lhe a espinha conforme seus dedos o apalpavam. Ele o trouxe para baixo; era uma pistola Ruger nove milímetros... armada.
— Droga!
Ele olhou para a escada. Era provável que encontrasse mais alguma coisa no quarto de Josephine, mas como poderia olhar, com ela lá, dormindo? Talvez surgisse uma oportunidade, depois. Entrou pé ante pé na cozinha e pegou no telefone. Digitou rapidamente o número de Radley. Uma voz sonolenta respondeu.
— Rad, sou eu, Ash. Descobriu alguma coisa?
— Ainda não. Terei um relatório completo para você, amanhã. Tenho gente trabalhando no caso. Como estão as coisas, por aí?
— Sei lá, cara. Ela não é exatamente do tipo ingênuo.
— Como assim?
— Ela tem uma pistola e anda de moto, só para você ter uma ideia.
— Ela anda de... Por todos os santos! Escute, Ash, estive dando uma olhada nos relatórios da polícia, hoje. Eles fazem referência a uma motociclista nas cenas de dois dos três crimes. Em ambas as ocasiões ela estava lá quando os corpos foram descobertos. Mas eles só se deram conta na segunda vez.
— Qual é a descrição? — quis saber Ash, perguntando-se por que sentia uma espécie de peso no coração.
— Mulher pequena, moto avantajada, capacete preto com visor escuro. Não viram o rosto.
Ash praguejou em alto e bom som.
— Escute, amigo, acho melhor você sair daí, já.
— Não, eu vou ficar — declarou ele, decidido.
— Tem certeza que...
— Tenho. Me avise quando tiver mais informações, Rad.
Ele colocou o telefone no gancho. Antes de subir a escada, removeu o pente da arma e recolocou-a no armário.
Josephine tinha consciência de que dormia. Não era um sonho normal, era um sonho lúcido. E ela sabia que não queria sonhar aquilo, mas também sabia que precisava continuar sonhando. Poderia descobrir alguma coisa, ver algo que não vira antes. Por isso ela não o combateu. Ao contrário, procurou concentrar-se, mergulhar cada vez mais fundo...
Era Ash. Ele caía, em câmera lenta. As costas dele bateram no chão acarpetado e em seguida, a cabeça. Os olhos estavam fechados. Ele permaneceu deitado, imóvel. Então, uma mão apareceu, bloqueando a visão de Josephine... uma mão enluvada... Uma luva preta, de couro, com dois botões no punho. A mão segurava uma adaga com uma mancha escura na ponta... Josephine sabia que a mancha era de sangue.
A imagem ficou nebulosa e a seguir ela viu o vulto caído no chão, o rosto virado para baixo. As costas da camiseta estavam cobertas de manchas de sangue. Os cabelos loiros, esparramados, as pontas também manchadas de sangue... E, perto da cabeça, a adaga ensanguentada, caída no chão.
— Caroline!
Josephine se sentou na cama, trêmula, o coração disparado. Não podia continuar vivendo daquela maneira! Recusava-se a continuar! As lágrimas inundaram lhe os olhos e um soluço lhe escapou da garganta. O que Josephine mais desejava era evitar aquilo que as pessoas chamavam de "dom". Era uma maldição, isso sim, da qual ela queria poder livrar-se. Por que tinha que ser justamente ela a única a saber o que ia acontecer? Por que tinha que ser a única pessoa no mundo que podia evitar o assassinato da irmã? E se falhasse?
A porta do quarto se abriu e Ash bloqueou a passagem.
— Josephine?
Ela esticou o braço e acendeu o abajur. Ali estava ele, usando nada além de um short branco, a expressão ansiosa.
— Não foi nada. Tive um pesadelo.
Ash entrou, caminhou até a cama e sentou-se na beirada do colchão. Movia-se lentamente, como que à espera de alguma objeção. Josephine, porém, não protestou.
— Você não me parece bem — Ele levou uma mão ao rosto dela e enxugou lhe as lágrimas com a ponta do dedo. — Está tremendo.
Foi então que Josephine se deu conta de que não podia impedir que Ash fosse morto, enquanto ela dormia. Precisava ficar ao lado dele o tempo inteiro. A vida de Caroline estava em jogo. Ela precisava romper a corrente do assassino... e começaria a fazer isto com Ash.
— Você gritou o nome de sua irmã. Estava sonhando com ela?
Josephine mordeu o lábio, Era tão difícil mentir o tempo todo, esconder as coisas que mais a perturbavam.
— Não me lembro... Mas foi um sonho horrível — Ela não conseguiu reprimir um soluço e ouviu Ash praguejar baixinho, antes de envolvê-la nos braços e aninhá-la em seu peito.
— Está tudo bem, Josephine. Foi só um pesadelo. Já passou.
O rosto de Josephine estava colado ao peito de Ash e ela sentia os pelos macios sob seus lábios. O perfume da pele dele penetrava-lhe os sentidos, anuviando a impressão desagradável do sonho. Os braços fortes e protetores eram como uma barreira contra o perigo. Ela se aconchegou a ele, num gesto espontâneo, dando vazão à atração que sentira mesmo antes de conhecê-lo.
— Quer que eu fique com você?
Um soluço sacudiu o corpo de Josephine delicadamente. Sentia-se grata por ele oferecer-se, pois assim não precisava pedir. Não podia mais sair do lado de Ash; fora uma falha sua não ter se dado conta disto mais cedo. E se o assassino tivesse resolvido atacar naquela noite? Ash já poderia estar morto, e a Fera a caminho de sua próxima vítima.
Josephine levantou o rosto e seu olhar encontrou o de Ash,
— Não vou fazer sexo com você, Ash.
— Eu pedi para você fazer? O que você acha, que eu não penso em outra coisa?
Josephine suspirou e enfiou-se outra vez debaixo do lençol, e Ash fez o mesmo. Ambos estavam deitados de costas, olhando para o teto, em silêncio. O corpo de Josephine estava paralisado de tensão; ela mal ousava respirar. Tinha consciência de que Ash também estava imóvel. Alguns segundos depois ele se virou e olhou para ela.
— Relaxe, Josephine — murmurou, com um olhar que não condizia com as palavras tranquilizantes. — Não vou fazer nada. Prometo.
Ela se virou de costas para Ash e puxou o lençol até o pescoço, sentindo-se incrivelmente aquecida e protegida pela presença dele em sua cama. Era uma pena que tivesse de ficar acordada e esperar que ele adormecesse.
Meia hora mais tarde, quando a respiração rítmica e ressonante de Ash indicava que ele dormia, Josephine afastou o lençol e sentou-se na cama, cautelosamente. Ficou imóvel durante alguns segundos, alerta. A respiração de Ash continuava igual. Ela se levantou e saiu do quarto, pé ante pé. Fechou a porta silenciosamente e desceu a escada. Abriu a porta do closet e esticou o braço para pegar a pistola. Mesmo sem examinar a arma, podia dizer que estava descarregada. Ela abriu o cilindro. Vazio. Um calafrio percorreu lhe a espinha. Seria capaz de jurar que deixara a arma carregada. Tivera o cuidado de guardá-la longe do alcance das sobrinhas. Quem retirara as balas?
As pernas de Josephine tremiam quando ela puxou um banquinho para perto do armário e subiu para alcançar a caixa de sapatos no fundo da prateleira. Abriu uma caixa de cartuchos e pegou o pente extra. Sem descer do banco ela o carregou e encaixou-o na pistola. Depois desceu e foi examinar a porta da frente. Continuava trancada, o cabo de vassoura intocado; correu, então, até o andar inferior para verificar se a porta dos fundos também estava trancada. Estava. Então, quem retirara as balas da pistola? Só havia uma resposta possível: Ash. E se ele encontrara a arma era porque andara xeretando. E se andara xeretando era porque não confiava nela; suspeitava de alguma coisa.
Josephine precisava ser mais convincente. Não podia meter os pés pelas mãos, naquela história. Não quando a vida de sua irmã, e a de Ash, dependiam de sua capacidade de agir.
Com os nervos à flor da pele, ela acabou se dirigindo para a cozinha e abriu o armário onde guardava os cigarros. Raramente fumava, nos últimos tempos, só mesmo em ocasiões de estresse. Cada vez que apagava um cigarro prometia para si mesma que nunca mais fumaria; mas invariavelmente corria para o armário, quando acontecia alguma coisa.
Acendeu um cigarro e continuou caminhando de um lado para outro, enquanto fumava. Alguma coisa estava errada. Não era só a mente suspeita do homem que dormia em sua cama naquele momento, no andar superior. Algum tipo de ameaça pairava no ar e ela estremeceu, dando uma última tragada no cigarro e apagando-o dentro da lata de lixo.
Em seguida subiu sem fazer ruído, levando a pistola consigo. Parou ao lado da cama e contemplou Ash por um instante. Ele mudara de posição. Os cílios escuros repousavam sobre os olhos fechados e a sombra da barba lhe escurecia o maxilar. Josephine sentiu o impulso de acariciar lhe o rosto. O braço dele estava sobre o lençol e Josephine precisou se conter para não tocá-lo e sentir os músculos firmes e os pelos macios sob seus dedos.
Ela balançou levemente a cabeça. Era ridículo, aquilo, ficar contemplando Ash enquanto ele dormia. Era uma mulher feita, não uma adolescente embevecida com o primeiro amor. Entretanto, mesmo com a alma dominada, pelo pavor, sentia-se atraída. E era uma atração impossível de esquecer, por um minuto sequer. Josephine pensou em esconder a pistola debaixo do travesseiro, porém teve medo que Ash a descobrisse. Se não fora ele quem retirar as balas, não estava a par da existência da arma. O que pensaria, se encontrasse uma pistola na cama, debaixo do travesseiro? Josephine decidiu, então, guardá-la na gaveta do criado-mudo, onde também ficaria à mão.
Ash se moveu quando Josephine fechou a gaveta. Ela olhou para trás abruptamente, mas os olhos dele permaneciam fechados, a respiração regular. Ele se virará de costas, expondo o peito recoberto de pelos. Os olhos de Josephine desceram até o ventre firme e continuaram a percorrer o corpo de Ash, cujos contornos masculinos o lençol não conseguia esconder. Por um instante, ela vislumbrou uma imagem absurda; viu-se tocando Ash, sentindo entre os dedos as formas do corpo dele, os músculos rijos... Por pouco conseguiu reprimir um gemido.
Josephine virou-se de costas e voltou para debaixo do lençol. No segundo seguinte, viu-se aprisionada pelo braço de Ash em sua cintura e por uma perna em cima da sua. Em vez de desvencilhar-se, optou por relaxar e dormir. Disse para si mesma que, se tentasse soltar-se dele o acordaria. Na verdade, o peso do braço e da perna de Ash eram mais um conforto do que uma sobrecarga, mesmo quando todas as chances eram de que aquela proximidade a mantivesse desperta, em vez de embalá-la no sono.
Ash não conseguiu ficar tranquilo depois que Josephine saiu do quarto e voltou com a pistola. Ele descarregara a arma, mas que garantia tinha de que ela não a recarregara? Tampouco tinha qualquer garantia de que Josephine não era uma psicopata, determinada a matá-lo. Imaginou que, pelo menos abraçado a ela, sentiria se ela se movesse para pegar a arma.
Infelizmente, aquela proximidade deixava-o sentir o cheiro de cigarro impregnado no cabelo de Josephine. As palavras de Radley ecoaram em seus ouvidos como uivos fantasmagóricos em um filme de terror. "Se ela acender um cigarro, meu amigo, bata em retirada imediatamente... Pense naqueles tocos de cigarros com marcas de batom coral que os policiais encontraram nos locais dos crimes..."
Ash tentou não pensar nos tocos de cigarros, nem na tonalidade de batom que Josephine usava, perguntando-se se seria ele quem estava ficando louco. Embora tivesse todos os motivos para acreditar que Josephine podia virar-se a qualquer momento e explodir lhe os miolos, seu corpo começava á responder de forma bastante primitiva ao contato com o dela. Através do tecido fino do lençol, ele sentia a textura sedosa da camisola que ela usava; a pele da perna de Josephine, sob a sua, era acetinada sobre os músculos femininamente firmes e sensuais. Ele precisou se conter para não acariciá-la.
As sensações que Josephine lhe provocava tornaram-se tão fortes que ele precisou afastar-se para que ela não sentisse o músculo rígido que lhe pressionava os quadris. Como podia desejar uma mulher que podia estar planejando matá-lo?! Talvez o ferimento na cabeça tivesse sido mais grave do que ele imaginava. Depois de horas de inquietação e várias mudanças de posição que em nada contribuíram para aliviar-lhe o desconforto, Ash adormeceu. Quando acordou, Josephine não estava na cama. Os raios de sol filtravam-se pelas venezianas da janela, derramando-se sobre o travesseiro onde ela se deitara. Ele se sentou de um pulo e olhou ao redor do quarto vazio. Esticou o braço e abriu a gaveta do criado-mudo. A pistola estava lá. Uma rápida inspeção foi suficiente para indicar que fora recarregada. Ash fechou a gaveta, praguejando baixinho, empurrou o lençol e saiu da cama no momento, em que Josephine saía de uma porta que, aparentemente, ligava o quarto diretamente a um banheiro.
Ela usava uma calça jeans justa e uma camiseta regata colada ao corpo. O cabelo era um halo de cachos molhados, pingando água no decote da blusa, que deixava entrever a curva dos seios. Um desejo selvagem explodiu dentro de Ash, que se amaldiçoou pela própria imbecilidade. Mesmo assim, deixou que seu olhar percorresse as adoráveis pernas de Josephine, detendo-se nos delicados pés descalços.
— Desculpe —murmurou ela. — Tentei não fazer barulho.
— Você não fez — Ele se forçou a encarar os olhos verdes misteriosos. — Sobrou alguma água quente?
Josephine sorriu, sentindo uma renovada convicção de que tudo o que estava fazendo era por uma boa causa.
— Sobrou bastante. E enquanto você toma seu banho, vou preparar alguma coisa para o café-da-manhã.
— Pensei que você não cozinhasse.
— Bem, eu sei fazer ovos mexidos com bacon.
— Ah, que sorte! E eu sei espremer laranjas e colocar pão na torradeira. Ótimo, vamos sobreviver — Ash olhou para baixo, para o short que estava usando. — Tenho alguma muda de roupa aqui, por acaso?
— Infelizmente, não. Mas depois do café podemos ir ao seu apartamento. Quem sabe, lá, você consegue se livrar das teias de aranha e recordar-se de alguma coisa?
Foi neste momento que Ash reparou que Josephine segurava um par de tênis nas mãos.
— Vai sair?
— Saí e já voltei — disse ela, abrindo a porta do armário e guardando os tênis.
Ash franziu a testa, furioso consigo mesmo. Como pudera dormir tão profundamente a ponto de não senti-la sair de casa, nem mesmo levantar-se da cama? Não ouvira o carro, nem a moto... Tivera sorte por ter acordado vivo.
— Onde você foi?
— Eu corro todas as manhãs.
Ash olhou para o rádio relógio, no criado-mudo. Ainda não eram sete horas.
— A que horas você acordou?
— Às cinco — Ela sorriu e Ash perguntou-se que crueldades aquele sorriso doce poderia esconder. — Você dormia como um anjo. Acho que seu corpo ainda precisa de repouso.
Era verdade. Na última vez que Ash se lembrava de ter olhado para o relógio, era meia-noite e alguma coisa. Josephine podia ter ficado fora a noite inteira, que ele não teria percebido.
O tempo todo que ficou debaixo do chuveiro, Ash não conseguia parar de pensar na famosa cena do filme Psicose. Nada, contudo, aconteceu. Ele saiu da banheira, enrolou-se na toalha e sentiu o aroma de ovos mexidos e bacon vindo do andar inferior.
Vestiu a calça jeans, porém não fechou o zíper, conforme se deparava com as roupas de Josephine, amontoadas no chão. Abaixou-se para examiná-las: uma calça de moletom preta com duas listras laterais cor-de-rosa; um suéter cor-de-rosa e meias de lã grossa. A toalha que ela usara estava em cima da pilha de roupa, úmida. De fato, Josephine não ganharia um prêmio como dona-de-casa exemplar. Ash pendurou as roupas e a toalha atrás da porta e abriu o armário de parede, esfregando o rosto. Ao ouvir uma batida na porta esticou o braço e abriu-a.
Josephine não disse uma palavra. Abriu a boca, como se fosse falar, mas nenhum som lhe saiu da garganta. Nem mesmo ar, Ash teve a impressão. Os olhos verdes arregalados percorreram lhe o peito nu e se detiveram por um momento no zíper aberto, antes de voltarem abruptamente para o rosto dele. Ela enrubesceu.
Ash sentiu uma sensação agradável subir em espiral dentro de si, partindo de algum lugar dentro do estômago. Cruzou os braços e encostou-se ao batente da porta.
— Queria alguma coisa?
Josephine umedeceu os lábios e balançou a cabeça.
— Sim, eu... queria lhe dizer que... tem um aparelho de barbear na... prateleira... Infelizmente, não tenho creme... Se não se importar de usar sabonete... Ah, e tem desodorante, também... se quiser.
Ash não tinha a menor ideia por que o simples fato de saber que uma mulher, possivelmente uma assassina, o desejava fazia-o vibrar daquela maneira.
— Obrigado. Eu estava justamente querendo fazer a barba — Ele voltou para o armário e pegou o tubo azul-claro de desodorante. — Hum, perfume de talco de alfazema!
Ash olhou novamente para Josephine, tão feminina e sensual, o rosto afogueado, os cabelos ainda úmidos, os olhos de gata fixos nele. Ela sorriu.
— É o melhor que posso lhe oferecer, por enquanto.
— Oh, até que não é tão mau. Eu gosto do seu perfume.
Josephine baixou o olhar.
— E o café, está pronto? — perguntou ele, jovialmente. — O cheiro também não está nada mau.
Josephine levantou o rosto, alarmada.
— Os ovos! — Ela correu para fora do quarto e disparou escada abaixo.
Ash riu e virou-se para o espelho, começando a ensaboar o rosto.
Pouco depois ouviu o telefone tocar e em seguida a voz de Josephine, praguejando. Ele espiou para fora do banheiro.
— Quer que eu atenda?
— Sim, por favor! — gritou ela.
Ash enxugou o rosto com a toalha e atravessou o quarto a passos largos, para tirar o fone do gancho.
— Ash? — A voz de Radley soou carregada de tensão. Ash sentiu uma forte contração no estômago.
— Aconteceu — anunciou Radley, quando Ash não respondeu.
— Quando?
— Foi encontrado meia hora atrás. O médico legista está estimando a hora da morte entre duas e três da manhã de hoje. Até agora, é tudo o que sabemos.
Ash engoliu com dificuldade. Não podia ter certeza absoluta do paradeiro de Josephine entre duas e três horas da manhã. Só tinha a palavra dela de que saíra de casa por volta das cinco. Ash não queria fazer a pergunta seguinte, mas sabia que tinha de fazer.
— Onde?
— Em Fenix, Ash. A três quilômetros daí.
A cabeça de Ash começou a latejar.
— Ash, ela saiu de casa? Estava fora, entre duas e três da madrugada?
— Eu não sei.
— Ora, Ash, o que...
— Eu adormeci.
— Você... adormeceu?
— Eu sei, Rad, pode me chamar de idiota. Pode me dar um tiro. Poupe a ela o trabalho.
— Acha mesmo...
— Não, Rad, estou brincando. Embora a ocasião não seja própria para isso — No fundo, Ash não acreditava que Josephine quisesse matá-lo. A ele ou a qualquer outra pessoa. A ideia era absurda. — Escute, não diga nada, por enquanto, está bem? Vamos aguardar um pouco mais.
Ash não tinha a menor ideia por que estava tentando proteger Josephine. Devia ser o primeiro a querer chamar a polícia.
— Tarde demais, Ash. Eles têm o número da placa da moto. Anotaram, na última vez. E agora, com este crime praticamente nos fundos da casa dela, pode ter certeza que será o primeiro lugar onde vão investigar.
Ash fechou os olhos. Sua cabeça começou a rodar. Simplesmente, não aceitava que a mulher que ele segurara nos braços na noite anterior, a mulher cujas lágrimas ele enxugara e que consolara de um pesadelo que a deixara mortalmente apavorada, pudesse ser uma assassina de sangue-frio.
— Obrigado por avisar, Radley.
— Quer que eu esteja aí quando a polícia chegar?
Ash mordiscou o lábio. Levantou o rosto ao ouvir os passos de Josephine na escada. Ela parou na porta do quarto, os olhos enormes e inocentes como os de um anjo.
— Os ovos queimaram.
Parecia tão desolada que Ash não pôde deixar de sorrir. Tapou o bocal do telefone com a mão.
— Tudo bem. Detesto ovos.
A expressão dela se iluminou.
— Quer sucrilhos?
Ash levantou o polegar, num gesto aprovador. Josephine sorriu e voltou correndo para a cozinha. Ash ficou olhando para a porta até que a voz de Radley o tirou do transe.
— Quer que eu vá para aí, ou não?
Ash empertigou-se.
— Só se você não desmentir uma única palavra do que eu disser. Nenhuma.
Houve uma longa pausa.
— O que você vai fazer? — indagou Radley, finalmente. — Confiar em minha intuição. Até hoje, ela nunca falhou, concorda?
Os músculos do rosto de Ash estavam tensos. Uma ruga profunda marcava lhe a testa enquanto ele olhava para Josephine, em silêncio, da outra extremidade da mesa.
Josephine, por sua vez, sentia-se pouco à vontade. Tinha a sensação de que Ash tentava enxergar dentro dela, ler-lhe os pensamentos. Ele terminou de comer os sucrilhos, levantou-se, enxaguou o prato e colocou-o na lava-louça.
—Vai me dizer o que está acontecendo, ou vai ficar me olhando com essa cara a manhã inteira?
Mas Josephine já sabia. Sentira-se inquieta a noite inteira, andara de um lado para outro pela casa toda e até fumara um cigarro. Sentira-se envolta por aquele manto escuro, pressentira a ameaça.
Ash virou-se para ela com um meio sorriso.
— Não percebi que estava com "essa cara".
— Foi o telefonema. Você ficou assim depois do telefonema —Josephine se levantou, também, deixando o prato de cereal com a colher sobre a mesa. — Quem era?
Ela sentiu o estômago embrulhado. O pavor da noite retornara, mais forte que antes.
— Rad Ketchum — respondeu Ash, sem rodeios.
— O editor-chefe do jornal?
O manto escuro começava a sufocá-la. Alguma coisa acontecera, durante a noite. Ela sentira... talvez no momento exato em que acontecia... algo que ela poderia, e deveria, ter tentado evitar. De que adiantava ter poderes se tinha medo de usá-los? Quando a sensação fria e escura a engolfava, ela fazia o possível para afastá-la, para ignorar, em vez de tentar descobrir do que se tratava. E estava se aproximando outra vez, aquela mão gelada, com garras pontiagudas que lhe apertavam o coração. Ela começou a sentir falta de ar; a garganta começou a arder.
Josephine deixou escapar um gemido e apoiou as duas mãos sobre a mesa, para não cair. Seu rosto estava pálido, os joelhos tremiam e lágrimas de angústia a sufocavam. Ash correu para ela, assustado, e segurou-a pelos ombros, perguntando-lhe se estava bem. Josephine levantou o rosto e olhou para ele, sentindo um medo pavoroso.
— F... Foi ela? — sussurrou, num fio de voz. — Diga que não foi... Carol... Por favor, diga que não foi!
A ruga na testa de Ash se aprofundou, uma ruga de espanto... ou seria de preocupação?... e Josephine fechou os olhos, num esforço inútil para reprimir as lágrimas.
— O que você está pensando, Josephine? Caroline está bem. Isto não tem nada a ver com sua irmã. — Ele a sacudiu com delicadeza. — Está me ouvindo?
Josephine suspirou entrecortadamente. Forçou-se a abrir os olhos, enquanto o pânico se desvanecia.
— Então, quem?...
Os olhos de Ash se estreitaram e, através de uma névoa de medo, Josephine teve consciência de que estava deixando transparecer demais. Ash não compreendia como ela sabia. Se dissesse, ele pensaria que ela era, no mínimo, maluca.
Josephine mordeu o lábio e tentou raciocinar com lógica e coerência, mesmo com aquela sombra escura e ameaçadora pairando no limite de sua visão. Estava se aproximando, aumentando... cada vez mais difícil de ignorar.
— Alguma coisa aconteceu... com alguém. Posso ver em seus olhos. O editor telefonou para avisar e... — Ela mordeu o lábio inferior e viu a sombra da suspeita desvanecer-se nos olhos castanhos. — O que foi, Ash?
— Está bem — Ele suspirou. — Houve mais um assassinato, esta noite. De madrugada, para ser exato.
— Foi a Fera?
Ash assentiu.
— A vítima foi encontrada cerca de uma hora atrás... em Fênix.
Os olhos de Josephine se arregalaram tanto que ela sentiu a cabeça doer. Fênix! Bem que ela sentira a escuridão se aproximar, mas nunca imaginara que...
— Ash, Carol mora em Fênix! — gritou, agarrando-o pela camisa.
— Não se preocupe, Josephine, ela está bem...
— E as meninas?!
— Foi um homem, Josephine. Ainda não foi identificado.
Josephine suspirou, à medida que os músculos de seu corpo pouco a pouco relaxavam. Suas mãos afrouxaram na camisa de Ash e ela deixou-se cair para frente. Ele a abraçou ao mesmo tempo em que ela o enlaçava pela cintura e aninhava a cabeça em seu peito, num gesto instintivo.
A sensação era agradável. Nos braços de Ash Josephine se sentia protegida do frio e da escuridão. Era como se estivesse recuperando a calma e a energia. Nunca imaginara sentir-se assim nos braços de um homem.
Finalmente se afastaram e se entreolharam e a expressão que Josephine contemplou no rosto de Ash era de tanta surpresa quanto a sua. Mas havia algo mais, uma espécie de decisão, de determinação.
— Josephine, talvez a polícia venha aqui, hoje. Eles vão querer lhe fazer algumas perguntas.
Ela franziu a testa.
— Por quê?
Ash abriu a boca para falar quando o toque da campainha o fez estremecer.
— Josephine, se te perguntarem se você fuma, diga que não. Você nunca fumou, na vida. Entendeu?
Ela assentiu, perplexa.
— Confie em mim.
Josephine sentia que podia confiar em Ash. Era uma pena que fosse ele a pessoa que ela tinha de enganar para salvar a vida de Caroline... e a dele própria.
Ash apertou os ombros de Josephine pela última vez e largou-a. Ela atravessou a sala de estar e espiou pela porta de vidro para ver três oficiais do lado de fora. Um deles era uma mulher alta e loira, com curvas voluptuosas, o tipo com que a maioria dos homens se encantava. Os olhos azuis pareciam lançar faíscas, como se ela quisesse intimidar Josephine logo ao primeiro olhar.
Josephine recuou e removeu o cabo de vassoura para abrir a porta. Ash postou-se ao lado dela enquanto a sargento Beverly Issacs e seus companheiros entravam na sala. Ela era mais alta que os dois homens que, por sua vez, não eram baixos, e Josephine sentiu-se minúscula no meio daqueles quatro.
— Olá, Bev — cumprimentou Ash.
— Muito bem, Ash... Parece que toda vez que encontro uma pista neste caso, descubro que você chegou primeiro. Pode me explicar por quê? — O tom de voz dela era frio, mas o brilho nos olhos azuis indicava que não estava de fato zangada, ou desconfiada, apenas impaciente.
— Oh, não estou aqui atrás de nenhuma pista. Eu me casei. Não sabia?
O sorriso de Beverly foi largo e instantâneo.
— Ah, sei. E eu sou candidata a presidente do país.
Ash virou-se ao sentir o olhar fixo de Josephine.
— Você se lembra dela?
Ash olhou para Beverly.
— Bev e eu nos conhecemos há muito tempo, Josephine — apressou-se ele a dizer. — Mas só me lembro porque ela me interrogou demoradamente, logo depois do acidente.
Ele fechou os olhos por um segundo. Quase!
Nem mesmo a polícia sabia que a amnésia não era real. Precisava ser mais cauteloso. Beverly era muito esperta. Olhou novamente para ela.
— Bev, esta é minha esposa, Josephine Bradshaw... Coye — acrescentou rapidamente, torcendo para que Beverly não tivesse percebido a breve hesitação.
Os olhos azuis e frios de Beverly dardejavam de um para o outro.
— Então, é sério.
Ash assentiu e Beverly deu de ombros.
— Bem, casado ou não, Ash, tenho algumas perguntas para fazer à sua esposa, aqui — Ela olhou para Josephine. — Importa-se de respondê-las, sra. Coye?
— Absolutamente — respondeu Josephine, erguendo o queixo.
Beverly assentiu e cutucou um dos oficiais, que a obedeciam como se fossem servos de uma poderosa rainha. O oficial retirou um bloco e uma caneta do bolso e ficou de prontidão.
— Sra. Coye, a senhora possui uma motocicleta, certo?
— Certo — confirmou Josephine, sem pestanejar.
— Uma Harley-Davidson preta, placa de Nova York 352H4?
— É uma Harley preta. Não tenho certeza do número da placa, mas podemos ir verificar.
— Não será necessário. O veículo está registrado em seu nome.
— Se já sabem, por que perguntam?
Ash passou um braço ao redor de Josephine e apertou-lhe levemente a cintura. Era melhor não ser hostil com a polícia. Eles poderiam desconfiar.
— Sua motocicleta foi vista recentemente, nas cenas de dois dos crimes, sra. Coye. Quer me dizer por quê?
— Curiosidade. É contra a lei ser curiosa?
Beverly fuzilou Josephine com os olhos azuis e Ash sentia-se cada vez mais inquieto. Beverly era a última pessoa que gostava de ser provocada.
— Que marca de cigarro a senhora fuma, sra. Coye?
— Eu não fumo, srta. Issacs.
— Sargento Issacs — corrigiu Beverly, entre os dentes.
— Que seja.
Beverly olhou para Ash e ele quase podia ver-lhe o sangue fervilhar.
— Você se casou com esta criatura?
— Calma, Bev. Ela está nervosa. Você também ficaria, se alguém insinuasse que você era suspeita de ter cometido um crime.
Beverly não respondeu. Virou-se novamente para Josephine.
— Onde esteve a noite passada e durante a madrugada?
Josephine abriu a boca para falar, porém Ash adiantou-se.
— Ela estava na cama, comigo.
— A noite toda? — perguntou Beverly, descrente.
— A noite toda — afirmou Ash.
— Mas ela pode ter saído, enquanto você dormia.
— Somos recém-casados, Bev. Mal pudemos passar dois dias juntos antes do acidente, e saí ontem do hospital. Acha que eu dormiria esta noite? — Conforme falava, Ash puxava Josephine para mais perto de si.
Beverly não parava de olhar de Ash para Josephine e Ash manteve-se firme, esperando parecer convincente.
— Você perdeu a memória, Ash.
— Mas não perdi a cabeça.
— Se eu descobrir que está mentindo...
— Não estou.
Beverly assentiu e lançou um olhar cético para Josephine, de seu um metro e oitenta de altura. Balançou a cabeça, girou nos calcanhares e saiu da casa. Os dois oficiais a seguiram e Ash fechou a porta. Por um longo momento ele não se virou para Josephine, consciente da pergunta que leria nos olhos dela.
— Você mentiu para a sargento.
— Sim.
— Por quê?
— Porque um marido protege a esposa. Faz parte da natureza humana.
— Ou você achou que eu precisava de um álibi?
— Se eu pensasse que você era uma assassina, não estaria aqui.
Josephine pestanejou três vezes, a cada vez derramando uma lágrima dos olhos.
— Você conhece essa Beverly muito bem.
Ash assentiu, depois apressou-se a acrescentar:
— Pelo menos, é o que me dizem todos.
— Você dormiu com ela.
Era verdade, mas como Josephine sabia, Ash não tinha a menor ideia. Seria ele assim tão transparente? Por um segundo ele vacilou, depois lembrou-se que não precisava dar uma resposta direta.
— Não sei. Não me lembro.
Por um segundo, também, Josephine pareceu ficar furiosa, porém conseguiu disfarçar. Ash perguntou-se se ela estaria realmente com ciúmes.
— Mas ela se lembra. E gostaria de repetir.
Ash deu um tapinha na cabeça e balançou-a, incrédulo.
— Mas o que é isto, Josephine? Houve algum processo telepático entre você e Bev, ou eu tive alguma espécie de ausência enquanto vocês faziam confidências uma à outra? De onde você tirou essa ideia? O que foi que ela disse para fazer você pensar que...
— Nada. Nem precisava dizer, Ash. É óbvio.
Josephine deu meia volta e afastou-se, porém Ash segurou-lhe o braço antes que ela chegasse à escada.
— Óbvio, como? — exigiu, obrigando-a a virar-se.
— O que eu sei, eu sei, Ash.
Sim, ela sabia. E não gostara de saber. E, por algum motivo que Ash não conseguia definir, ele gostava da ideia de que ela não gostasse.
Seguiu-a escada acima, apertando os lábios para não sorrir. Josephine estava mais preocupada com a única noite que ele passara ao lado de Beverly Issacs do que com as suspeitas da polícia de que fosse a assassina. E a reação que ela tivera, pouco antes... A dúvida, o medo de que a irmã tivesse sido morta... Tudo levava a crer que Josephine não era a Fera, afinal.
Chegando à sala de estar, Josephine pôs-se a andar de um lado para outro e Ash sentou-se na poltrona reclinável, observando-a. Observava-lhe o movimento gracioso dos quadris, das pernas. Não, ela não era o tipo de mulher que ele imaginara, a princípio. Ash não sabia por que tinha tanta certeza disto, agora, mas o fato era que tinha certeza. Também tinha certeza que ela não era uma criminosa. Restava agora descobrir o que ela era. De uma coisa ele sabia: Josephine estava preocupada. Mais que isto, estava apavorada, transtornada de medo. E era por este motivo que mentia. Mas ele desvendaria todo aquele mistério?
Ele se levantou e segurou-a pelos ombros, interrompendo lhe o nervoso caminhar.
— Josephine...
Ela levantou os olhos, aqueles olhos tão angelicais e vulneráveis que Ash acreditaria em qualquer coisa que ela dissesse.
— Seja lá o que for, Josephine, estou do seu lado, ouviu bem?
Ash teve um vislumbre do misto de culpa e surpresa que perpassou pelo rosto dela.
— Você não me conhece... como pode...
— Eu quero conhecer você.
Os olhos de Josephine se arregalaram e ela entreabriu os lábios.
— Eu poderia ajudar, se você dissesse o que é.
Josephine umedeceu os lábios e engoliu em seco, incapaz de desviar os olhos dos de Ash.
— Eu... não posso.
Ele sacudiu os ombros.
— Não faz mal. Eu espero. Um dia você vai falar.
Olhando os lábios de Josephine, Ash sentiu uma forte compulsão de beijá-los. Inclinou a cabeça, porém ela virou o rosto e afastou-se dele rapidamente.
— Se vamos para o seu apartamento para você pegar suas coisas, precisamos nos apressar — lembrou, com a voz carregada de tensão.
Ash mordiscou o interior da própria boca.
— Sim, claro.
O peso que Josephine sentia sobre os ombros era imenso.
Mais uma vez ela caminhava de um lado para outro, desta vez, na sala do apartamento de Ash, enquanto ele tirava suas roupas do armário, no quarto, e jogava-as dentro de uma mala. Josephine não conseguia dominar a atração que sentia por ele. Era uma atração monstruosa que crescia a cada momento. E Ash sentia o mesmo, o que só vinha complicar as coisas. E o cúmulo da ironia era que ele queria protegê-la, enquanto ela estava fazendo aquilo tudo para protegê-lo. Provavelmente considerava seu dever, como marido. Mentira para a polícia, arriscando-se a prejudicar a própria carreira, por uma mulher que não passava de uma estranha. Como se sentiria quando descobrisse a verdade, que ela não lhe era nada, que arriscara o futuro por uma mulher que não conhecia? Josephine não conseguia conviver com a culpa.
E o relacionamento dele com Beverly? Talvez eles tivessem tido um caso e Ash não se lembrasse. Que Beverly ainda desejava Ash, estava escrito em letras garrafais, na testa da sargento. Mas, e Ash? Como se sentia a respeito dela? E se a mentira de Josephine viesse a destruir o que existia entre os dois?
Josephine apertou o passo. Mais uma pessoa morrera. Ela pressentira e nada fizera para evitar. Precisava empenhar-se mais se quisesse que Ash e Caroline continuassem a viver.
Ash saiu do quarto, segurando a mala em uma mão e uma maleta na outra.
— Meu material de trabalho — explicou, antecipando a pergunta de Josephine. — Ainda estou de licença, mas quero continuar trabalhando em casa.
Josephine notou como Ash ainda estava abatido. Subitamente, sua cabeça latejou.
— Você precisa fazer repouso, Ash. Ainda está com dor de cabeça.
Ele olhou para ela, surpreso. Em seguida, respondeu, vagarosamente:
— Não posso, Josephine. Não posso.
Com ou sem dor de cabeça, Ash tinha muito que fazer. Embora acreditasse que Josephine era inocente dos crimes, tinha plena consciência de que ela o estava enganando. Por outro lado, tinha quase certeza de que ela tinha um bom motivo para isto, ou pelo menos, na concepção dela era um bom motivo. Mas ele não poderia ajudá-la enquanto não soubesse do que se tratava. O que o incomodava, de fato, não eram as mentiras em si, mas a sensação de que tinham algo a ver com os assassinatos. Josephine adivinhara que alguma coisa acontecera, na noite anterior; sabia antes que ele lhe contasse. Era muito estranho...
Ele se sentou na cama de Josephine, onde ela o obrigara a deitar-se quando voltaram para casa, e olhou para a mala no meio do quarto. Josephine deixara-a ali, no quarto dela. Era óbvio que pretendia que ele ficasse dormindo lá. Ash gostaria de acreditar que era única e simplesmente por atração e desejo, mas sabia que não era só isto. Precisava descobrir o que havia por trás daquilo tudo. Tirou o fone do gancho e digitou o número de Radley. Quando o editor respondeu, ele quase sussurrou, no telefone.
— Descobriu alguma coisa sobre minha esposa?
— Esposa, hum? — caçoou Radley. — Está gostando da frase, Ash?
— Pare com as gracinhas e me responda.
— Bem, é estranho, Ash.
— Estranho?
— Ela presta serviços como autônoma a algumas companhias e empresas de grande porte.
— Foi o que ela me disse, mas não acreditei.
— Sim, também achei difícil acreditar.
— Por quê? — perguntou Ash, perplexo.
— Ela é paranormal, Ash.
Ash ficou emudecido.
— Alô, Ash? Você ainda está aí? — indagou Radley depois de alguns segundos.
— Sim.
— Pois bem, a coisa funciona da seguinte maneira: suponha que uma empresa esteja em negociações para associar-se com outra, ou que esteja para tomar uma decisão importante, ou mesmo que haja uma suspeita de desfalque, mas que não se saiba quem é, ou não se tenha certeza. Eles entram em contato com Josephine B. Bradshaw. Ela entra na firma como secretária, ou coisa assim, investiga disfarçadamente, conversa com as pessoas, sente o clima e finalmente dá uma resposta.
— Sei. Quer fazer o favor de falar sério, Rad?
— É verdade, Ash! Conversei com os diretores de três companhias.
— E ela consegue algum resultado?
— Geralmente, sim. Eu soube que ela não cobra quando não consegue chegar a uma conclusão. Parece que já aconteceu. Mas ela nunca se enganou. Ou dá a solução certa, ou não dá nenhuma.
— Ah! — Ash não acreditava em uma única palavra. — E é disso que ela vive?
— Ela cobra bem, pelo que me disseram. Mas já trabalhou de graça para algumas firmas pequenas, que não tinham condições de...
— Você tem alguma coisa séria para me dizer, Rad, ou só contos de fadas?
Radley deixou escapar um murmúrio de impaciência, ao telefone.
—Você é cético demais, Ash! Tudo bem, ela não tem passagem pela polícia. Teve uma multa de trânsito, até hoje. Tem porte de arma e nos registros consta apenas uma Ruger nove milímetros.
— Mais alguma coisa?
— O que você quer, uma biografia? O resto você já sabe. Tem uma irmã, Caroline Dryer, casada com Theodore Dryer, de Clark County, Nevada. Duas sobrinhas, de seis e...
— Clark County, Nevada? — Ash pôs-se de pé de um pulo. Las Vegas fica em Clark County!
— Calma, já mandei investigar. Dryer mora no estado de Nova York desde 84.
— Isso não significa que ele não tenha voltado lá... no verão de 89, quando a Fera atuou em Las Vegas.
— É verdade, não significa.
Ash engoliu em seco. Não queria acreditar que Josephine estivesse, de alguma maneira, envolvida com aqueles crimes hediondos. Mas talvez estivesse. Talvez estivesse protegendo o cunhado. Ou até mesmo a irmã. Se bem que imaginar Caroline cortando a garganta de alguém era ainda mais difícil. Ele balançou a cabeça, desalentado. Nada era impossível.
— Obrigado pela ajuda, Rad.
— Você mentiu para a polícia, não foi?
— E o que você queria que eu fizesse?
— Cuidado, amigo, você está omitindo fatos.
— Eu sei.
Rad não disse mais nada e Ash ouviu o clique do telefone ao ser desligado. Colocou o receptor no gancho e recostou-se na cama, com um suspiro. Depois levantou-se, abriu a porta e escutou por um minuto. Nenhum som.
Desceu a escada e olhou à sua volta. Josephine estava sentada no sofá, as pernas encolhidas. Seu rosto exprimia inquietação conforme ela folheava as páginas de um espesso livro. Ash leu o título e quase praguejou em voz alta: Dentro da Mente de Um Psicopata.
Ele subiu novamente a escada, apressado. Estava cada vez mais convencido que Josephine não era a assassina, bem como não acreditava que ela tivesse poderes paranormais. Era evidente, entretanto, que ela tinha uma espécie de obsessão em relação aos crimes da Fera; por quê, ele não fazia a menor ideia. Talvez ela soubesse de alguma coisa, ou talvez fosse uma curiosidade mórbida.
Bem, pelo menos ela estaria ocupada durante algum tempo.
Ash foi até o armário embutido e abriu a gaveta de baixo para examinar o conteúdo. Em seguida, abriu outra.
O telefone tocou e ele parou, a respiração suspensa. Depois relaxou, quando o aparelho não tocou uma segunda vez e Josephine não o chamou. Devia ser para ela. Melhor, assim ele teria mais tempo. Abriu a gaveta de cima e olhou abruptamente para baixo ao sentir a mão mergulhar num mar de sedas e cetins de roupas íntimas. Por um momento, ficou imóvel. Depois viu-se retirando da gaveta um corpete vermelho rendado, quase transparente. Examinou-o por um instante; era cavado nas pernas e parecia novo. Ash visualizou Josephine dentro do corpete; devia servir com perfeição... a cintura fina, os quadris curvos, os seios arredondados...
Num gesto brusco ele enfiou a peça de volta dentro da gaveta. O que estava acontecendo? Parecia um pervertido, remexendo nas roupas íntimas de Josephine! Subitamente, uma sensação desagradável o invadiu quando se perguntou em que ocasiões Josephine usaria aquelas coisas, e para quem. Pela quantidade de peças, ela devia ter grande necessidade delas. E com frequência.
Decepção e raiva o dominaram, juntamente com as lembranças que ele não conseguia afastar.
Ela chamava a si mesma de Lila e tingia os cabelos de ruivo. Estava sempre tão bonita, à noite, antes de trancá-lo no closet! Ele se sentava em um canto do armário escuro e ouvia os sons que vinham do quarto dela; sons que o faziam pensar que alguém a estava machucando. Ele tinha medo que eles a matassem e ninguém viesse lhe abrir a porta. As vezes ela vinha várias horas depois, no final da manhã. Isto acontecia quando ela estava bêbada demais para lembrar-se dele. E fora nestas ocasiões que ele vira a feiura atrás da máscara.
O nome dela não era Lila, era Liz. E ela não era bonita; não, com os cabelos desgrenhados, a maquiagem borrada sob os olhos e o hálito de bebida. Quando a porta do closet se abria, naquelas manhãs, o pequeno Ashville não queria olhar para a mãe. Nem sempre tinha tempo, aliás, porque geralmente estava apertado para ir ao banheiro. E, no caminho, ele passava por garrafas vazias, copos usados, cinzeiros cheios, a cama desarrumada e sempre, sempre, havia uma camisola de seda no chão.
Sua primeira hipótese talvez fosse certa, afinal. Josephine Bradshaw devia ser profissional. Nenhuma mulher compraria todas aquelas coisas, se não... Ele olhou para o corpete vermelho e, incapaz de resistir, segurou-o novamente entre os dedos. Depois remexeu na gaveta e encontrou um outro, preto, e mais um, roxo, e... havia vários!
— Ashville, o que pensa que está fazendo?!
Ele estremeceu violentamente e seus dedos agarraram o corpete com força. Josephine estava parada na porta do quarto, o rosto tão vermelho quanto o cetim que ele acariciava.
— Eu... hã... eu só estava... procurando um lugar para guardar minhas roupas — Ash enfiou o corpete dentro da gaveta e fechou-a. — Desculpe.
A expressão de Josephine não se suavizou. Seu rosto queimava e seus olhos brilhavam de fúria, com aquela invasão de privacidade.
— Por que não perguntou?
Ash limitou-se a fitá-la, balançando a cabeça.
— Vou arrumar espaço para suas roupas. Aliás, você devia estar deitado — Josephine mostrou a ele duas toalhinhas dobradas. — Eu trouxe compressas quentes para você. Achei que fariam bem.
Ash voltou para a cama, sem protestar. Josephine sentou-se ao lado dele, inclinou-se para frente e colocou-lhe uma das compressas úmidas na testa.
Os seios dela estavam tão próximos do rosto de Ash que ele podia sentir lhe o calor da pele, o perfume. Um desejo intenso o avassalou, indicando que ele ainda a queria; boa ou má, recatada ou promíscua, ele a queria; e ficava furioso consigo mesmo, por isto. Incapaz de se conter, encheu os pulmões de ar e soprou nos seios de Josephine.
Ela recuou no mesmo instante, arregalando os olhos.
— Quando vai concordar em dormir comigo, Josephine? — perguntou ele, num impulso.
Josephine vacilou, antes de responder.
— Quando você recuperar sua memória.
— E se eu lhe disser que já estou recuperando? Se eu lhe disser que me lembro de cada momento... de nossa noite de núpcias?
Josephine engoliu em Seco.
— Eu diria que você está mentindo.
Ash deu de ombros.
— Bem... pelo menos, eu tentei — Ele olhou para a gaveta onde a alça do corpete ficara do lado de fora. — E se eu nunca me lembrar?
— Você vai lembrar, Ash. Vou ajudar você.
— Acho que se você vestisse aquele negócio vermelho, me ajudaria bastante.
— Eu gostaria que você não falasse assim comigo.
Ele sorriu, lentamente.
— Faz você ficar excitada?
— Me faz ficar irritada! Você é detestável, sabia? — Josephine olhou para a toalhinha quente em sua mão e espalmou-a com força no peito de Ash. — Aí está. Esta é para a nuca. Coloque você mesmo.
Ela se levantou e virou-se para sair. Impulsionado por uma força malévola, Ash ergueu o corpo, na cama.
— Você nunca usou aquilo, não é, Josephine? Não usou nenhuma daquelas peças que estão na gaveta...
Josephine olhou para ele, em silêncio. Ele lhe segurou o braço e forçou-a a virar-se.
— Responda, Josephine. Você nunca usou aquelas coisas?
— Não, nunca usei. Por que está tão preocupado? O que pensou, que eu as vestisse e saísse desfilando pela rua? Ou que saísse da cartola de algum mágico?
Por que aquela sensação de alívio? perguntava-se Ash. Até onde ele sabia, podia ser mentira... Mais uma, entre tantas outras.
E por que ele se importava com o que Josephine usava ou deixava de usar?
Ash se recostou, com um suspiro. Baixou a cabeça e, pela primeira vez, perguntou-se por que ela comprava aquelas coisas se não as usava.
— Está fazendo estoque de sedas e cetins, Josephine? Com que planos? Está à espera do príncipe encantado?
Josephine permaneceu imóvel, observando-o, magoada, em parte, mas mais que isto. Analisando, tentando descobrir o que se passava na mente dele.
— Príncipes se transformam em sapos, Ash. Acontece o tempo todo. Mas eu quase me esqueci disto por um momento, hoje. Obrigada por lembrar-me.
Ash detectou a sinceridade, o ressentimento na voz de Josephine, e desejou poder voltar atrás. Mas a ideia de que ela pudesse usar aquelas coisas com outro homem deixava-o enfurecido. A ideia de que ela pudesse ser, mesmo que de longe, parecida com Liz... Ele só quisera ouvi-la negar.
— Mas esse perigo não existe com você, não é? — continuou Josephine. — Você sempre foi um sapo, desde o início.
Ela puxou o braço com força e virou-se, encaminhando-se para a porta. Parou com a mão na maçaneta e olhou para Ash.
— Vamos jantar com Caroline e Ted, esta noite. Espero que você se esforce para pelo menos parecer um príncipe, enquanto estamos lá.
O jantar consistiu de carne assada com ervilhas e cenouras e um cremoso purê de batatas, que Ash achou divino. Havia também pãezinhos caseiros e manteiga de verdade, não margarina.
Era uma pena que Caroline já fosse comprometida. Ela era o tipo de mulher que Ash sempre procurara; o tipo que ganhava um bebê e não se desesperava só porque estava com alguns quilos a mais; o tipo que adorava a vida que levava e que não procuraria diversão em outra parte,
Havia, no entanto, alguma coisa errada naquela cena. Porque, por mais que ele tentasse associar Caroline à sua imagem de mulher perfeita, via-se, em vez disso, olhando para Josephine.
Pois bem, ele desejava Josephine, fisicamente. Mas o desejo não era tudo. Só porque o golpeara no meio da testa como nunca acontecera antes, não significava que ele tivesse de reconsiderar suas prioridades. E, para ser honesto consigo mesmo, ele provavelmente não a desejaria tanto se ela não fosse tão firme em mantê-lo à distância.
— Eu nem sabia que vocês se conheciam — dizia Caroline. — E de repente vocês vêm me dizer que estão casados!
O riso de Ted foi baixo e contido.
— Eu gostaria de ter visto você, na hora.
Ash franziu a testa. Não conseguia se lembrar da expressão do rosto de Caroline; somente do pânico e devastação no de Josephine.
— Eu teria me casado com ela antes, se soubesse que você cozinhava tão bem, Caroline — Ele se esforçava para participar da conversa, para ser amável, o cunhado simpático tentando se entrosar com a família da esposa.
— O que me deixa intrigado... — continuou Ted —... É que vocês dois tenham conseguido superar tão bem, juntos, o acidente e tudo mais.
Ash olhou para ele. Os cabelos castanhos começavam a ficar grisalhos e ele tinha o rosto magro e comprido, como o de uma doninha.
— Ted, talvez Ash prefira não falar sobre esse assunto — interveio Caroline.
— Não, tudo bem — Ash esticou o braço e segurou o copo de refrigerante que Bethany acabara de apoiar na beirada da mesa, no instante em que ia cair sobre ela. Deu-lhe uma piscadela e virou-se para Ted. — A verdade é que não me lembro de nada sobre Josephine e eu. Para mim, é como se a tivesse conhecido no dia em que a vi no hospital.
Os olhos de Ted se estreitaram e ele virou o rosto lentamente para Josephine, que o ignorou.
— E como vocês se conheceram, Josephine? — quis saber Carol.
Ash serviu-se de um suculento pedaço de carne assada e relaxou, na cadeira, curioso para ouvir a resposta.
— Deve ter alguma coisa a ver com esse caso da Fera — sugeriu Ted.
Ash ficou imediatamente alerta.
— Por que acha isso, Ted?
Ted deu de ombros.
— Ora, você está investigando o caso. Josephine está obcecada com essa história, desde o primeiro...
— Você está exagerando, Ted — interrompeu ela. — Não estou obcecada.
— Interessada, talvez seja o termo — apressou-se Carol a dizer, em defesa da irmã. — Não mais do que qualquer um de nós.
— Bem, agora compreendo o interesse de minha cunhada nos assassinatos. Era por sua causa, Ash.
Ash assentiu, porém sem desgrudar os olhos do rosto de Josephine. Ela parecia tão pouco à vontade como se estivesse sentada em cima de um formigueiro.
— Houve mais um, na noite passada, vocês sabiam? — informou Ted, também observando Josephine.
— Mais um o que, papai?
— Mais um grande roubo de sorvete — respondeu Ash. — Três galões da Celestial. Alguém vai ter uma grande dor de barriga, hoje.
Brittany riu e Caroline lançou um olhar de gratidão a Ash. Neste momento ele sentiu algo morno e macio na perna e espiou debaixo da mesa. Um gato malhado, preto e branco, do tamanho de um bezerro, retribuiu o olhar e ronronou alto.
— Ora, ora, quem é este? — Ash acariciou a cabeça do gato e ofereceu-lhe um pedaço de carne.
— Félix — gritaram as meninas.
— Ele gostou de você, tio Ash!
— Acho que ele gosta de qualquer pessoa que lhe dê de comer.
O gato continuou a passear debaixo da mesa, esfregando-se em todas as pernas, e Ted retomou o assunto.
— E então, como foi mesmo que vocês se conheceram?
Josephine moveu-se, na cadeira.
— Foi na fila do cinema... no Carousel Shopping.
Até que ela se saíra bem, pensou Ash.
— E depois eu a levei para Las Vegas e nos casamos. Não foi, Josephine?
Ela assentiu, em silêncio, e continuou a comer.
— Já esteve em Las Vegas? — perguntou Ash a Ted, casualmente.
Ele não simpatizava com o marido de Caroline, embora não soubesse dizer por quê. Talvez fosse o modo como ele não parava de olhar para Josephine, como se soubesse de alguma coisa... ou suspeitasse de alguma coisa.
— Eu morei lá — confessou Ted, pela primeira vez desviando o olhar da cunhada.
— Gostava de lá?
— Não, muito,
— Oh, você gostava, sim, Ted — Carol sorriu para Ash. — Precisa ver como ele se queixa, no inverno!
— Bem, quem não tem saudades do sol quando abre a porta e se depara com um metro de neve? — Ele riu.
— Você volta lá, com frequência? —Ash procurava falar com naturalidade.
Ted vacilou e Carol respondeu por ele.
— Costumávamos passar as férias lá, mas na verdade não tem muita diversão para as meninas. Elas ainda eram pequeninas quando fomos da última vez, lembra-se, Josephine? Que trabalho elas deram, para nós três!
— Josephine também foi? — Ash olhou para Josephine, mas foi Carol quem assentiu.
— Para ajudar com as meninas. Agora não fazemos mais isso, procuramos ir para lugares interessantes para elas, com praia, parques de diversões...
Ash queria perguntar se aquela viagem fora no verão de 89, mas não podia fazer isto assim, diretamente. Ninguém ali era tolo. Logo saberiam que ele suspeitava de alguma coisa.
— Mamãe, e a sobremesa? — pediu Bethany.
— É a preferida de tia Josephine — cantarolou Brittany.
— Oh, Carol, não acredito que...
Caroline sorriu para a irmã.
— Fiz, sim, senhora, e não comece a reclamar das calorias e outras coisas, ou ficarei ofendida.
Enquanto falava, Caroline se levantou e começou a recolher os pratos. Josephine ajudou e pouco depois todos se deliciavam com um saboroso pudim de ricota e um café divino, cada qual se lamentando por não aguentar comer mais um pedaço.
— Você joga bilhar, Ash?
Ash quase respondeu que sim, porém lembrou-se a tempo.
— Eu não sei — Ele olhou para Josephine. — Eu jogo?
Ted riu.
— Comprei uma mesa nova. Quer tentar?
Ted Dryer era eletricista. Trabalhava em uma oficina construída por ele mesmo, ao lada da casa, totalmente equipada, com uma placa na frente e um furgão estacionado ao lado, os vidros repletos de adesivos. Ele conduziu Ash para fora da casa, para mostrar-lhe o quintal e a oficina.
Ao que tudo indicava, os negócios iam bem. O furgão era novo e o barracão da oficina estava recém-pintado. Ted abriu a porta e fez sinal para que Ash entrasse. O escritório consistia de uma mesa com telefone, duas cadeiras e um arquivo. Na parede, um porta-chaves ostentava o chaveiro do furgão, uma placa enorme com os dizeres: "Meu outro carro é um Mercedes."
Pouco depois, eles arremessavam as bolas sobre a mesa de feltro verde. Ted parecia bastante amigável, embora curioso, também.
— Mas então, fale-me sobre Josephine — disse ele, enquanto jogavam. — Não consigo imaginá-la como uma esposa pacata, dentro de casa.
— Nem eu — Ash olhou para Ted e ambos riram. — Acho que você pode falar mais sobre ela do que eu, Ted. Devo tê-la conhecido muito bem, mas...
Ele se calou propositalmente, com a esperança que Ted mordesse a isca.
— Josephine é uma pessoa sem artifícios — começou Ted. — Quero dizer, é franca, direta, diz o que pensa... Na maior parte das vezes.
— Na maior parte das vezes?
Ted curvou-se sobre a mesa para mirar a bola branca.
— Bem, todos nós temos nossos segredos — Ele acertou a bola, que empurrou outras duas, uma das quais rolou para dentro da caçapa. Em seguida, contornou a mesa e pegou o giz. — Eu pensei que a conhecia bem. Pensei que ela tivesse aversão aos homens e que nunca se casaria.
Ted balançou a cabeça e sorriu. Ash, no entanto, não se sentia inclinado a sorrir.
— Por que você pensava assim?
— Eu sempre achei que fosse por causa do pai dela — Ted olhou para Ash, com uma ruga na testa, enquanto esfregava giz no taco. — Ela não lhe falou sobre o pai?
Ash balançou a cabeça.
— Bem, talvez tenha falado — observou Ted. — Eu não tenho o direito de...
— Ted, telefone! — A voz de Caroline soou da porta dos fundos.
Ted suspirou, largou o taco e subiu o lance de degraus que levava à casa, seguido por Ash. Assim que entrou na sala, este olhou para Josephine. A expressão dela era de apreensão, enquanto Ted falava em voz baixa ao telefone.
— Infelizmente, preciso sair — anunciou ele, ao desligar.
— Mas, Ted...
— É uma emergência, Carol. A sra. Peterson está sem energia elétrica e diz que a caixa de força está cheirando a queimado. Preciso ir — Ele segurou os ombros de Carol e beijou-lhe o rosto. Em seguida virou-se para apertar a mão de Ash. — Foi um prazer conhecê-lo, Ash.
— Igualmente.
Depois de despedir-se, Ted saiu e Carol deixou-se afundar no sofá, sem disfarçar a tensão que a dominava. Josephine aproximou-se das duas crianças estiradas no chão, diante da televisão.
— Ei, meus anjinhos — Ela acariciou as cabecinhas loiras. — Não está na hora de ir dormir, não?
— Ainda não! — protestou Bethany.
— Deixe-nos ficar, mamãe!— pediu Brittany.
— Bem — Ash deu um passo à frente. — Eu estava pensando em contar uma história para duas menininhas. Mas se elas preferem ficar assistindo à televisão...
As duas puseram-se de pé de um pulo e Ash viu-se puxado pelas mãos ao longo do corredor, em direção aos dormitórios. Olhou para Josephine por sobre o ombro, recebeu um sorriso de gratidão e piscou um olho.
Ela estava preocupada, Ash tinha certeza. Estava preocupada com Caroline, mas não era só isto. Ela não relaxara a noite inteira e, ao mesmo tempo em que era óbvio que estava mentindo, para ele e para a irmã, também era óbvio que não sentia nenhum prazer em fazer isto. Ash diria que ela estava abominando cada segundo daquela situação. Mas nem mesmo o fato de saber que estava sendo enganado contribuía para aplacar o desejo que sentia, cada vez que olhava para ela. .
Josephine abriu silenciosamente a porta do quarto e espiou para dentro. Ash estava sentado no pé da cama de Brittany, com um livro aberto sobre os joelhos. Félix se instalara na outra cama, aos pés de Bethany.
— E quando a princesa beijou o sapo, uma coisa mágica aconteceu. O feitiço foi quebrado e ele se transformou no belo príncipe que era de verdade. Ajoelhou-se, segurou a mão da princesa e disse que estava apaixonado por ela. Os dois se casaram e viveram felizes para sempre.
Ash fechou o livro.
— Elas adormeceram — sussurrou Josephine, com um sorriso e uma agradável sensação de calor dentro de si. Ficara furiosa com Ash, antes, mas depois raciocinara com calma e o compreendera. Ele pensava que eram casados. Com certeza, sentia-se frustrado e magoado porque ela o rejeitava. A reação dele nada mais era que o resultado de tudo o que ele estava passando. Josephine precisava perdoá-lo.
Ash olhou para as cabecinhas loiras e Josephine atravessou o quarto para cobrir Bethany.
— Sabe, Ash... Estas meninas são a coisa mais preciosa que tenho na vida.
— Não é de admirar — concordou ele, falando baixinho. — Eu mesmo estou encantado com as duas.
— Você tem jeito com elas.
— Gosto de crianças.
Josephine leu o título do livro que Ash colocara sobre o criado-mudo:
— O Sapo e o Príncipe?
— Me pareceu apropriado — observou Ash, gentilmente. — É uma teoria fascinante, não acha? Sei que agi como um sapo, Josephine. Me perdoe, eu não queria fazer isso.
— Eu sei.
Ash enlaçou-a pela cintura e puxou-a para si. Josephine enrijeceu, mas ele balançou a cabeça.
— Um beijo, Josephine... É muito para um marido pedir à esposa? Além do mais, como vai saber se existe um príncipe escondido dentro desta pele de sapo, se não me beijar?
Josephine umedeceu os lábios. O olhar penetrante de Ash aqueceu lhe o sangue e mais uma vez ela se viu avassalada pela atração que não conseguia dominar. Queria beijá-lo, não para convencê-lo de que eram marido e mulher, mas sim para sentir o contato dos lábios dele nos seus, a pressão dos braços fortes, do peito musculoso.
Semiconsciente do que estava fazendo, inclinou-se para a frente, com o rosto erguido para Ash. Ele lhe capturou os lábios e abraçou-a com mais força, colando o corpo dela aos seus. Josephine entreabriu os lábios, num excitante misto de curiosidade e ansiedade. A língua de Ash dançava no interior de sua boca, explorando, acariciando, e ela começou a tremer.
Josephine sabia, entretanto, que não era de frio ou de medo que tremia, e sim de emoção, uma emoção que nunca pensara que pudesse sentir. Apertou os braços ao redor do pescoço de Ash, pressionou o corpo contra o dele e acariciou lhe os cabelos com os dedos. A sensação era deliciosa, algo que nunca experimentara antes. Ela correspondia ao beijo com ardor, sentindo o corpo de Ash vibrar, em resposta.
O corpo de Josephine reagia de forma primitiva à proximidade, ao contato íntimo com o de Ash. Sua respiração estava entrecortada, seus sentidos aguçados. Havia um envolvimento naquele beijo, uma união forte, intensa. Josephine sentia o coração de Ash acelerado, a respiração ofegante, as mãos firmes e quentes em suas costas...
Ela começava a refletir que precisavam parar, quando o som da voz de Caroline os fez estremecer e se afastarem. Para Josephine, fora como um balde de água fria e ela recuou, com expressão culpada no rosto. O brilho nos olhos de Ash, no entanto, ainda era intenso.
— Carol... desculpe... eu... nós...
— Tudo bem, Josephine. Eu me lembro de quando era assim. Vocês não querem ir para casa? As meninas já estão dormindo...
— Não acha melhor ficarmos com você até Ted voltar? — sugeriu Ash, ainda abalado pela interrupção.
A dor nos olhos de Carol era visível, porém ela limitou-se a balançar a cabeça.
— Não, ele... Talvez demore. Eu vou dormir. Boa noite.
Josephine suspirou quando a irmã se virou e foi para o quarto.
Ash passou um braço sobre os ombros de Josephine e os dois caminharam juntos até a porta, que trancava automaticamente ao ser fechada. Josephine puxou-a e seguiu Ash até o carro, a mente funcionando a mil por hora. Ash se sentia atraído por ela; desejava-a tanto quanto ela o desejava. Era possível ler isto nos olhos dele. Mas não podia deixar que aquele envolvimento evoluísse; não podia permitir-se sentir algo mais profundo por Ash. Não, não queria passar pelo que Carol estava passando, pelo que sua mãe passara...
Ash abriu a porta do motorista e afastou-se para Josephine entrar. Ela, porém, balançou a cabeça.
— Prefiro que você dirija, Ash. Não estou com cabeça.
Ele se sentou ao volante, enquanto Josephine contornava o carro para entrar do outro lado.
— O que está preocupando você, Josephine?
Ela suspirou, aliviada, em parte, por poder desabafar.
— Carol acha que Ted a está traindo — Ela balançou a cabeça, engolindo em seco para não chorar. — Que droga, Ash, por que ele faz isso? Coitada da Carol, já tem tão pouca autoestima...
— Mas ela tem certeza?
— Carol não tiraria essa ideia do nada. Ela não quer pensar a respeito, mas está ficando cada vez mais difícil.
— Por quê?
Josephine olhou para ele, para o modo como os faróis dos outros carros lhe iluminavam o rosto, para as feições másculas e atraentes. Sentiu-se fortemente tentada a acariciá-lo.
— Ted está gastando muito dinheiro e não explica em quê. Tem aquelas conversas sussurradas ao telefone e desliga sempre que Carol entra na sala. Ele anda quieto, estranho. Carol tem certeza que ele está escondendo alguma coisa. E esta foi a segunda emergência da sra. Peterson, esta semana.
— Ora, mas a sra. Peterson não é uma senhora de idade?
— O nome dela é Verônica, tem trinta e cinco anos, é viúva e não pode ver um homem.
— Será que Carol não está sendo um pouco preconceituosa?
— Carol não é assim. Por que os homens fazem isso, Ash?
— O quê? Trair?
Josephine assentiu, sem olhar para ele.
— Não são todos que traem.
— A maioria trai — afirmou ela, com amargura na voz.
— Seu pai também traiu sua mãe?
Josephine virou-se para ele, surpresa.
— Como sabe?...
— Ted mencionou que você tinha um problema com seu pai. O resto eu deduzi. Você já falou várias vezes sobre sua mãe, mas nunca sobre seu pai. Vocês duas devem ser muito ligadas.
— Éramos — Josephine engoliu em seco, dolorosamente.
— Oh, Josephine, me desculpe. Eu... não sabia. Faz... Muito tempo?
— Foi no ano passado. Derrame — Ela respirou fundo e forçou-se a continuar. — Meu pai estava com a amante, na noite em que minha mãe morreu. A mulher foi morar com ele dois meses depois.
— E você não consegue perdoá-lo?
— Eu o odeio.
— Não diga isso, Josephine. O ódio tira muita energia das pessoas.
— Estou acostumada a odiar meu pai. Já não faz mais diferença.
— O que mais ele fez, para você odiá-lo tanto?
— Eu tinha doze anos quando o vi com outra mulher. Só não entendo como minha mãe aguentou. Ela sabia. Se eu, que era criança, sabia, ela também sabia. Por que continuou com ele?
— Isto é uma coisa que só mesmo ela poderia responder.
Josephine ficou em silêncio.
— Sabe, Josephine, crescer assim, como você e Carol, pode marcar muito uma mulher, deixá-la desconfiada, sempre de pé atrás.
— Acha que é o que está acontecendo com Carol? — Josephine não havia pensado nisso.
— Não é impossível. Eu também tive a impressão de que Ted estava escondendo alguma coisa, mas não me pareceu que tivesse algo a ver com outra mulher.
— Mas, então, o que pode ser? — murmurou Josephine, confusa.
— Não sei. Mas seja lá o que for, ele devia ser honesto com Carol. Talvez a verdade não seja tão ruim quanto ela imagina.
Josephine perguntou-se, pela primeira vez, se poderia haver outra explicação para o comportamento do cunhado.
— Eu acho que a sinceridade é a coisa mais importante, num relacionamento — prosseguiu Ash, subindo na entrada de cascalho, na frente da casa, e desligando os faróis e o motor.
Josephine olhou para fora, sentindo o olhar de Ash sobre si. Ele sabia que ela não fora sincera; Josephine podia sentir isto. E não podia negar.
—Tem razão — murmurou, com voz fraca. — Mas há ocasiões em que é necessário mentir, quando coisas mais importantes estão em jogo.
Josephine pensou nas sobrinhas, crescendo sem a mãe, e no belo homem a seu lado, perdendo a vida em plena flor da idade.
— Bem, eu concordo — Ash fez uma pausa. — Será que você me responderia uma pergunta?
— Se eu puder — Josephine olhou para ele.
Ash levou a mão ao teto do carro e acendeu a luz interna. Olhou para Josephine e esfregou o queixo, onde a sombra da barba começava a surgir.
— Consegue ver algum sinal de príncipe aparecendo aqui?
— Nenhum.
Ash pareceu ficar desconsolado e Josephine riu, baixinho.
— Mas vou lhe dizer uma coisa... Estou começando a achar que o sapo não é tão mau quanto quer parecer.
Ash dormiu outra vez na cama de Josephine. Ela não pedira, nem ele perguntara, mas era uma conclusão tácita que ele deveria dormir lá. Ele não tinha certeza por que Josephine o queria em sua cama, uma vez que não o queria. Ou melhor, ela o queria, mas recusava-se a deixar acontecer. Então, por quê?
Mas ele é que não se recusaria. Sempre restava uma chance que Josephine mudasse de ideia.
Ash tomou uma chuveirada, enxugou-se e foi para o quarto para encontrar Josephine já adormecida, de costas para ele. Suspirou, frustrado, mas enfiou-se debaixo do lençol, ao lado dela.
Em algum momento, naquela noite, ele teve o sonho. Tentou acordar, mas, como sempre, não conseguiu. Só conseguia ficar ali deitado, os membros paralisados, o coração disparado, a pele transpirando, revivendo o suplício. Já devia ter se acostumado.
De repente, contudo, acabou. O quartinho frio e escuro ficou aquecido, claro. Alguém estava ali com ele e tudo estava bem.
Ao abrir os olhos, pela manhã, Ash quase engasgou. Josephine estava aninhada em seus braços, a cabeça em seu ombro, uma perna entrelaçada com a sua, a coxa pressionando-lhe o músculo rígido.
Sim, fora isto que o acordara. E como poderia ser diferente, com Josephine perto dele, daquela maneira? Ela vestira uma camiseta enorme para dormir, que, durante a noite, lhe rolara até a cintura; a tanga minúscula não constituía nenhuma barreira; tampouco o short de pijama que ele usava oferecia obstáculo; podia sentir o calor da pele dela e, movido por um impulso que sua mente não conseguiu controlar, pressionou-a com mais força.
Josephine suspirou baixinho e aconchegou-se ainda mais, colando os lábios ao pescoço de Ash.
Que tormento! Como se não bastasse ter morrido durante a noite, ainda tinha de suportar aquela tortura. Não podia se mexer sem acordá-la. E se Josephine acordasse e percebesse o estado em que ele se encontrava e o rumo que seus pensamentos haviam tomado, com certeza ficaria furiosa, pelo resto do dia. Como se ele tivesse opção! Não fora ele quem se enrascara inteiro nela, durante a noite!
Neste momento, Josephine moveu-se e o atrito do corpo dela com o de Ash fez com que ele mordesse o lábio, cada vez com mais força, com a esperança de que a dor anulasse as reações involuntárias de seu corpo. Tentou afastar-se, porém Josephine esticou ainda mais a perna, aprisionando-o.
Ash gemeu, inconformado. Josephine abriu os olhos, sonolenta, e ele apressou-se a fechar os seus. Talvez conseguisse fingir que estava dormindo.
Josephine não acreditou quando abriu os olhos e viu como se enrascara com Ash, enquanto dormia. Depois lembrou-se do sonho e compreendeu por que fizera aquilo.
Fora um pesadelo vívido... mas não fora seu, fora de Ash. E ela vivenciara cada parte do sonho, junto com ele. Não havia imagens, apenas a escuridão e a sensação de sufocamento. Ash sentira medo e seu coração disparara; ele respirava com dificuldade à medida que o pesadelo o engolfava... Sentia-se sozinho, abandonado, no escuro, durante um longo tempo. E, de repente, tomara consciência de que não estava sozinho.
Josephine não estava com Ash, dentro da prisão apertada e escura. Ele estava lá... Era Ash quem sonhava, mas, durante o sono, Josephine o acalentara; entrelaçara-se com ele, na ânsia de protegê-lo da escuridão, da crueldade, do medo. Ash se agarrara a ela e o sonho perdera a força.
Josephine levantou a cabeça e afastou-se cautelosamente, para não acordá-lo. Depois contemplou-o ali deitado, na claridade fraca da manhã. Tão alto, forte, as pernas longas esticadas até a ponta do colchão; os ombros largos, o peito nu, os braços recobertos de pelos curtos, macios...
No entanto, ele não fora sempre assim; fora pequeno, um dia, fora uma criança; sentira-se sozinho, amedrontado; tivera pesadelos.
E em algum lugar, naquele instante, debaixo da força do homem, o menino ainda existia, e era tão vulnerável quanto antes. Ash controlava a criança dentro de si, mas não conseguia controlá-la em seus sonhos.
Oh, por que aquela visão do íntimo de Ash fazia-a desejá-lo ainda mais?
Josephine ergueu uma mão e tocou-lhe delicadamente o rosto, sentindo os olhos se marejarem de lágrimas ao pensar no menino que ele fora. Enlaçou-o pela cintura e aninhou-se de novo, querendo que Ash sentisse sua proximidade, querendo apagar as memórias do sonho mau. Incapaz de reprimir por mais tempo as lágrimas, soluçou baixinho, abraçada a Ash. Ele levou uma mão à cabeça de Josephine e afagou lhe os cabelos.
— Está chorando?
Ela se encolheu e Ash franziu a testa.
— Por quê, Josephine? O que aconteceu?
Josephine levantou o rosto e fitou-o nos olhos, enxergando mais do que enxergara até então. Havia tanta coisa em Ash que ela não conhecia... Tanta coisa, ainda, para aprender...
— Foi um pesadelo.
A ruga na testa de Ash só se acentuou.
Josephine era um enigma. Por mais que tentasse, Ash não conseguia desvendar o mistério. E estava começando a ficar mais desesperado para compreender o que se passava na mente de Josephine Bradshaw do que para identificar a Fera de Syracuse. Porque a desejava... Mais do que desejara qualquer uma das "garotas de programa" que levara para a cama, em sua incessante busca pela mulher certa. Do outro lado da mesa, Ash observava Josephine enquanto ela cortava a omelete que ele preparara, mais cedo. Josephine fechou os olhos amendoados cor de esmeralda, aquelas pedras preciosas que pareciam guardar os segredos do universo quando ela estava séria e que eram mais fulgurantes que o sol quando sorria. Ela umedeceu os lábios, saboreando a omelete, e Ash sentiu alguma coisa se contorcer em seu baixo ventre.
— Hum, que delícia! Onde você aprendeu a cozinhar assim?
— Por tentativa e erro — admitiu Ash. Aquela omelete não estava maravilhosa. Já fizera melhores. Estava com pouco sal.
— Não, está perfeita — disse Josephine, passando o saleiro para ele.
Ash o aceitou, sacudiu-o sobre o prato e parou de repente, com a mão no ar, uma ruga na testa.
— Eu não pedi o sal.
— Não? — Josephine fingiu que a observação não significava nada, mas teve dificuldade para engolir o último pedaço. — Devo ter visto você procurando o saleiro e deduzi.
— Eu não estava procurando o saleiro — Ash olhou fixamente para Josephine, recordando as palavras de Radley. "Ela é paranormal..." Seria possível?
- Você sempre faz esse tipo de coisa.
— O quê? — Josephine fez-se de inocente.
— Responder uma pergunta antes que seja formulada. Entregar me alguma coisa que eu quero, sem que eu tenha pedido — Ele se lembrou do dia em que ela aparecera no banheiro no momento em que ele procurava pelo aparelho de barbear.
— Deve ser porque eu conheço você melhor que ninguém, Ash.
Ash, entretanto, sabia que ela não o conhecia. Talvez tivesse um instinto aguçado, uma espécie de sexto sentido, só isso. Sim, com certeza, não passava disso.
— Sabe o que eu estava pensando? — perguntou Josephine.
Ash tomou um gole de café.
— Não. Não leio pensamentos — acrescentou, apenas para ver a reação dela.
Josephine ficou visivelmente tensa e lançou-lhe um olhar alarmado. Com que então, ela não queria que ele soubesse de seus "poderes". Sorriu para tranquilizá-la e foi recompensado com um sorriso que quase o derrubou da cadeira.
— Eu estava pensando que podíamos passar uma noite em seu apartamento.
— Por quê?
— Sua memória não parece estar progredindo e isso me preocupa. Quem sabe, um ambiente familiar consiga surtir algum efeito.
Ash perguntou-se se haveria outro motivo por trás daquela sugestão; para alguém que seria desmascarado quando ele "recuperasse a memória", Josephine estava empenhada demais em ajudá-lo; concluiu que a única maneira de descobrir era concordar c continuar a observá-la atentamente.
— Está bem... Podemos ir hoje, se você quiser. — Ele suspirou. — Não vejo a hora de voltar a trabalhar.
— Ash... o que lhe disse a polícia, a respeito de seu acidente?
Ele deu de ombros.
— Não disseram muita coisa. O breque falhou...
— Num carro novo?
Ash tomou outro gole de café, dando a si mesmo tempo para pensar. Não fora mencionado à imprensa que o breque fora sabotado. A polícia estava guardando este fato como um trunfo.
— Um carro novo também pode ter problemas, Josephine. Acidentes acontecem.
— E se não tiver sido acidente?
Ash colocou a xícara na mesa e olhou para Josephine. Ela estaria levantando hipóteses, ou sabia de alguma coisa? E se sabia, seria por causa dos poderes paranormais, ou porque tinha alguma ligação com o assassino?
— Como assim?
— Você estava na pista de um maníaco, um psicopata. E se ele... quis tirar você do caminho?
Ash suspirou. Fora exatamente o que acontecera. Mas como Josephine sabia? Ele forçou-se a sorrir e beliscou lhe o queixo.
— Sabe de uma coisa, acho que vou perseguir todas as pistas perigosas que surgirem daqui por diante, só para você se preocupar comigo.
Josephine fitou-o com ansiedade.
— Ash, por favor, isto não é brincadeira. Eu preferiria que você abandonasse esse caso. Pelo menos até... — A voz morreu-lhe nos lábios.
— Até o assassino ser apanhado? — Ele esticou o braço sobre a mesa e segurou a mão de Josephine. — Você está mesmo preocupada, não está?
Josephine assentiu e, de alguma forma, Ash sabia que era verdade. E a sensação de saber que alguém se preocupava com ele era agradável; podia até acabar se acostumando.
— Não vamos nos preocupar por enquanto, tudo bem? — falou, com ternura. — Ainda tenho uma semana de licença.
Josephine suspirou, resignada.
— Você é que não tem trabalhado, ultimamente — observou ele.
— Sou autônoma. Não tenho nada importante, no momento.
— Está recusando serviços, Josephine?
— Alguns. Mas não tem importância. Posso me dar ao luxo de fazer isso.
— Por quê?
— Por quê, o quê?
— Por que não está trabalhando?
Ela hesitou, antes de responder.
— É que... meu trabalho exige uma certa... concentração — explicou, por fim. — E instinto. Ultimamente, não tenho tido muito, de nenhum dos dois.
— Sou eu que estou te atrapalhando?
— Não! Eu não sei o que é. Mas não se preocupe, vai passar. Mais uma vez, ela estava mentindo. Ash tinha certeza disto. O modo como evitava olhar para ele, o rosto tenso. Era impressionante como ele já aprendera a detectar os sinais. Por outro lado, estava claro, mais uma vez, que ela não gostava de mentir.
— Sabe, estou cansada de ficar dentro de casa. Vamos fazer alguma coisa?
— O quê, por exemplo?
— Qualquer coisa que implique em exercício físico. Ash arqueou uma sobrancelha.
— Não está pensando em me arrastar para dentro de uma caverna, está?
Josephine riu.
— Não, enquanto você estiver convalescente. Também esqueça os aparelhos de ginástica, porque quero sair, quero ar livre! — Ela fez uma pausa e apoiou os cotovelos sobre a mesa, segurando o queixo com as mãos. — Que tal uma partida de basquete?
— Você não teria a mínima chance, baixinha.
— Pois considere-se desafiado.
Uma hora mais tarde Josephine pulava e corria na quadra de esportes do colégio do bairro, usando uma camisa desabotoada e amarrada na cintura, sobre um top de malha cinza-claro, short preto, meias soquete e tênis brancos. Como era época de férias, eles tinham a quadra só para si. A grama fora cortada naquela manhã e exalava um aroma fresco e agradável; o sol brilhava, tórrido, num céu azul sem nuvens.
Josephine batia a bola com força no chão, driblando Ash com habilidade. A bola era nova e o toque de sua textura áspera era agradável, na palma da mão; mais agradável ainda era o sol em seus ombros e costas. Ash abria os braços à volta dela, tentando atrapalhá-la. Ela fingiu que ia para a direita, depois foi para a esquerda, passou sob o braço de Ash e correu para a cesta, efetuando um lance digno de uma jogadora da seleção, pensou consigo mesma.
A bola desceu pela cesta e bateu duas vezes no chão, antes de rolar e parar perto dos pés de Ash. Ele, entretanto, não olhou para a bola; com as mãos apoiadas nos quadris, olhava para Josephine com expressão divertida.
— Nunca imaginei.
— Não fique aí parado, grandalhão. Estamos aqui para fazer exercício, esqueceu?
Ash pegou a bola e começou a driblar, afastando-se da cesta à medida que Josephine se aproximava para marcá-lo. Em seguida, num piscar de olhos, deu meia volta, mirou a cesta a distância e executou um lance perfeito.
Em pouco tempo, ambos estavam ensopados de suor, sob o sol de verão.
— Que tal uma pausa? — Josephine jogou a bola no peito de Ash, que a segurou num gesto automático.
— Admitindo derrota? — provocou ele, sorridente.
— Jamais. Só não quero ter de carregar você para o carro.
— Ah! Você está com medo que eu tenha de carregar você para o carro.
Josephine fez uma careta zombeteira.
— Duvido que você conseguisse, exaurido como está!
— Garota, você não devia ter dito isso!
Ash largou a bola e deu um passo à frente, agarrando Josephine tão inesperadamente que ela não teve tempo de impedi-lo. Tentou debater-se, mas ria tanto que suas forças a abandonaram. Ash levantou-a nos braços, até a altura do peito.
— E a bola?
— Oh! — Ele se curvou para Josephine pegar a bola, depois marchou com ela nos braços em direção ao carro, aumentando a velocidade conforme caminhava pela calçada, chegando quase a correr.
— Vamos ver quem está exaurido.
— Cuidado com o gato!
Ash parou subitamente, com uma ruga na testa.
— Que gato?
Mal ele falara, um gato cinzento atravessou a calçada, diante deles. Ele olhou para Josephine, atônito.
— Como você sabia?
— Ora, não seja bobo. Eu vi.
— Só se você tiver olhos atrás da cabeça.
— Eu tenho. Bem escondidos pelo cabelo.
A expressão de Ash se modificou ligeiramente. Ele estudou o rosto de Josephine, os olhos, e um brilho diferente cintilou nos dele. Josephine abraçou-o com mais força, quando ele inclinou a cabeça. Ele beijou-lhe delicadamente os lábios, depois pressionou-os e possuiu-os com voracidade. Josephine inclinou a cabeça para trás, conforme a língua de Ash lhe explorava o interior da boca; agarrou-se a ele com força, sentindo o coração disparar.
Nada daquilo devia estar acontecendo, pensava ela. Não podia sentir-se assim em relação a Ash. Era uma representação... uma representação necessária, para salvar a vida dele e a de Caroline. E, no entanto, Josephine não tinha defesas. Como esposa de Ash, como podia recusar-lhe um beijo? Devia considerar-se felizarda por ele não ter insistido em ir além disso. Não precisava ser dotada de poderes extrassensoriais para saber que Ash se sentia atraído por ela. E se continuasse a resistir, ele desconfiaria. Beijá-lo fazia parte da representação.
Sabia, entretanto, que estava beijando Ash porque queria. A verdade era que ele estava derrubando a barreira que Josephine erguera e ela sentia uma compulsão inexplicável de colaborar com isto. No fundo, no fundo, sabia que queria muito mais que um beijo. Muito mais.
Ash e Josephine pararam numa loja de conveniência, no caminho de volta, para comprar queijo e massa para pastel. Quando chegaram à casa de Josephine o carro de Caroline estava estacionado na frente. Depois de trancar o carro, contornaram a casa para se depararem com Caroline recostada em uma espreguiçadeira, observando Brittany e Bethany, que corriam no gramado. O cabelo de Caroline, como sempre, estava amarrado num rabo-de-cavalo e ela estava com o mesmo tipo de roupa que usava quando Ash a conhecera: calça jeans e uma camiseta larga e comprida. Ash notou como as duas irmãs se pareciam. Se Carol perdesse alguns quilos e fosse mais vaidosa, seria uma mulher de tirar o fôlego. De repente, deu-se conta de que estava comparando Carol com Josephine, e não o contrário; estaria modificando seu conceito de mulher ideal?
Caroline se levantou e foi ao encontro de Josephine, e Ash notou que ela havia chorado. Ela abraçou a irmã e deixou escapar um soluço.
— Eu... vou me separar.
Por sobre o ombro de Caroline, Josephine e Ash se entreolharam.
— Tudo bem, Carol. Vai ficar tudo bem, você vai ver. Você é forte, vai superar — murmurou Josephine, lançando um olhar de desculpas a Ash. — Vocês podem ficar aqui, conosco.
Ela afastou-se de Caroline e virou-se para abrir a porta, enquanto Bethany e Brittany vinham correndo para abraçá-la. Caroline desviou o rosto marcado pelas lágrimas enquanto as meninas se atropelavam para entrar.
— Você devia ter entrado, Carol. Não precisava esperar por mim.
— Não quis ser intrometida.
— Se eu achasse que você era intrometida, não teria lhe dado uma chave.
— Vou buscar as compras, no carro — anunciou Ash, sentindo-se pouco à vontade. — Assim, vocês ficarão a sós.
— Que bobagem — Caroline virou-se para ele. — Você é da família, agora, Ashville. E não se preocupe, porque não virei morar com vocês. Passarei algumas semanas em Miami, com papai e Rhonda.
— Prefiro que você fique aqui — insistiu Josephine.
— Vocês são recém-casados...
— Papai e Rhonda, também — lembrou Josephine, com amargura. Ela passou um braço sobre os ombros de Caroline enquanto seguiam Ash ao redor da casa. — Vamos conversar com calma. Por que não almoça conosco? Ash vai fazer pastéis de queijo.
— Não quero impor minha presença...
Ash virou-se e parou para esperar por elas.
— Carol, você não sabe o que é comer um pastel antes de experimentar um "Ash Coye Especial". Vai transformá-la em uma nova mulher — Ele sorriu para Caroline e sentiu-se banhado pela gratidão de Josephine, conforme caminhavam, os três, para a frente da casa. Debruçou-se dentro do carro e pegou a sacola no banco traseiro, vagamente consciente do bater da porta de tela, nos fundos.
Caroline suspirou.
— Ah, Josephine, o que vou fazer de minha vida? — lamentou-se.
Josephine abraçou a irmã e em seguida ficou paralisada. Empalideceu e seus olhos se arregalaram.
— Brittany — exclamou, num fio de voz que quase a fez engasgar. — Brittany!
Foi um grito, desta vez, e no mesmo instante ela desatou a correr para os fundos da casa.
Ash não parou para pensar o que podia ser. Largou a sacola no carro e correu atrás dela, com Caroline em seus calcanhares.
Josephine atravessou o gramado quase voando, em direção ao rio. O estômago de Ash se contraiu quando ele avistou uma cabecinha loira, apenas uma, perigosamente perto do barranco, na margem. Bethany estava perto do deque de madeira pintado de vermelho, soluçando. Ash começou a correr mais rápido. Chegou ao deque no instante em que Josephine pulava para dentro do rio e se deixava levar pela correnteza.
Ele vasculhou a superfície da água com os olhos, mas não viu nada. Depois viu a figura de Josephine, se afastando, e não pensou uma segunda vez; mergulhou fundo, porém não enxergava um palmo diante do nariz, na água lodosa. Ao levantar a cabeça, avistou Josephine, à frente, mergulhando para debaixo d'água. Começou a nadar na direção dela o mais velozmente que pôde, o coração disparado, o rosto tenso.
Assustou-se quando Josephine emergiu na superfície, poucos centímetros à frente. O rosto dela estava pálido, contorcido, os olhos opacos e angustiados. Foi então que Ash viu a cabecinha loira de Brittany, conforme Josephine pelejava para mantê-la em cima da água. Josephine avistou-o.
— Ash...
Ele deu mais algumas braçadas, porém não conseguia vencer a força da correnteza. Josephine empurrou Brittany para os braços dele e, finalmente, com um esforço sobre-humano, ele conseguiu segurar a mão da garota e puxá-la para si. Josephine estava com uma aparência horrível e Ash teve a sensação de que havia alguma coisa errada, além do cansaço de nadar na água suja e fria. Segurou Brittany com firmeza em um braço, conforme ela se debatia e choramingava, e tentou alcançar Josephine com o outro.
— Deixe, Ash... Eu estou bem... Tire Brit da água...
— Você se machucou, Josephine? — perguntou ele, aflito.
— Não foi nada... Tire-a da, água... Eu vou... atrás...
Ash recusava-se a deixar Josephine para trás. Ela estava quase perdendo os sentidos; mais alguns segundos e se afogaria. Ele puxou-a e enlaçou-lhe os braços ao redor de Brittany, murmurando palavras tranquilizadoras para acalmar a menina. Em seguida abraçou as duas.
— Segure-a firme, Josephine. Não a solte.
Ash nadou com um braço até a margem, a vários metros de distância do deque, uma vez que a correnteza os levava cada vez mais para longe. Sua cabeça permanecia mais tempo dentro d'água do que fora, mas ele conseguiu manter os rostos de Brittany e de Josephine acima da superfície.
Minutos depois, estavam na parte rasa do rio, onde Caroline vinha ao encontro dos três, soluçando, histérica, a água pela cintura. Bethany corria ao longo da margem, os olhos arregalados.
Assim que Caroline segurou Brittany e carregou-a para a margem, Ash envolveu Josephine e suspendeu-a nos braços. A cabeça dela pendeu para trás e Ash notou que seus olhos estavam vitrificados. Praguejou em voz alta e cortou as ondas, marchando em direção à margem.
O sangue jorrava a uma velocidade assustadora de um enorme corte na coxa de Josephine. Ele a deitou de costas, no chão, puxou-lhe a camisa pelo pescoço e amarrou-a sobre o ferimento, com um nó apertado. Os olhos dela se fecharam.
— Josephine? — Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos.
— Tudo bem... — balbuciou ela. — Só um pouco estonteada. E Brit?
Ash levantou o rosto para ver Brittany soluçando e tossindo, nos braços da mãe.
— Caroline, você precisa chamar uma ambulância.
— Eu já chamei — soou uma vozinha trêmula atrás de Caroline. — Eu... corri até a casa e disquei 911. A moça disse que logo estarão aqui. Mamãe... Brit vai morrer?
Caroline passou um braço sobre os ombros de Bethany.
— Não, querida. Ela vai ficar boa — Caroline olhou para Ash. — Josephine... oh, Josephine...
— Calma, Carol. Ela sofreu um corte na perna e perdeu bastante sangue, mas já parou. Ela vai ficar bem — Ash inclinou-se sobre o rosto sem cor de Josephine. — Você vai ficar bem.
Era quase uma prece. Alguma coisa no íntimo de Ash se movia, contorcia, doía. Como Josephine pudera passar a ter tanta importância para ele, em tão pouco tempo? O que ele faria se ela não ficasse bem?
— Mamãe, estou com medo!
Josephine tentou tranquilizar Brittany enquanto acomodavam a menina em uma maça ao lado da sua, junto à margem do rio. Pensou no que diria sua mãe se visse uma ambulância daquele tamanho rodando em cima do gramado; com certeza, teria um ataque. O pensamento dançava em seu cérebro, entrava e saía, como uma brisa sem rumo.
A cabeça de Josephine rodava e ela tinha dificuldade em manter os olhos abertos; sua voz, quando falava, soava baixa e entrecortada; sentia-se fraca e com frio, e o ar que respirava parecia impregnado do cheiro da água do rio.
Caroline estava desnorteada, Brittany não parava de choramingar e Bethany, amedrontada, não se soltava da mãe.
— Eu pensei que elas estivessem dentro de casa. Eu devia ter tomado mais cuidado. Não pensei que saíssem — Caroline não parava de repetir estas três frases, até que Josephine começou a recear que ela estivesse em estado de choque.
— Não quero ir na ambulância — gemeu Brittany. — Eu tenho medo...
— E se eu for com vocês, hum? — sugeriu Ash, ao lado dela, enquanto acariciava a cabecinha de Bethany. Ele era tão forte, tão calmo, que Josephine não conseguia imaginar outra pessoa que desejasse mais ter ali consigo, naquele momento. — Sua mãe e sua irmã podem nos seguir, de carro. Se você quiser, seguro você na janela para ver se elas estão vindo atrás de nós.
— Não temos muito espaço na ambulância. É melhor o senhor também ir de carro.
Josephine viu o olhar severo que Ash lançou ao paramédico.
— Eu vou na ambulância.
— Eu quero o tio Ash! — exclamou Brittany, com voz trêmula, enquanto era instalada dentro do veículo.
Em seguida, foi a vez de Josephine. Ash subiu e acomodou-se entre as duas. Josephine não cabia em si de contentamento por ele estar ali.
Caroline debruçou-se para dentro.
— Vou pegar algumas roupas e já alcanço vocês — Ela inclinou-se mais, enlaçou o pescoço de Ash e abraçou-o com força, murmurando, chorosa: — Obrigada.
No instante seguinte o motorista manobrava a ambulância sobre o gramado e saía para a rua, piscando as luzes. Brittany contorceu-se até conseguir tirar a cabeça da maça e apoiá-la no joelho de Ash. Josephine viu-o sorrir; viu-o acariciar o cabelo molhado de Brittany, afastando-o do rostinho miúdo e pálido, e depois puxar a manta até os ombros da menina.
Quando o motorista acionou a sirene, Brittany estremeceu e começou a chorar.
— Ei, o que é isso? — murmurou Ash. — Não vá me dizer que está com medo do barulho.
Ela tapou os olhos com a mão.
— E se eu contar uma história?
Sem destapar os olhos, Brittany assentiu, com a cabeça,
— Bem, deixe-me ver... Não conheço muitas histórias... além de "O Sapo e o Príncipe" — Ele e Josephine se entreolharam e Josephine sorriu fracamente, sentindo-se aquecer por dentro. — Tem alguma favorita, Brittany?
— "Chapeuzinho Vermelho" — disse a garota, finalmente retirando a mão dos olhos e levantando o rosto para ele.
— Ah, sim! Bem, deixe-me pensar... — Ash fingiu que se concentrava. — Certo. Era uma vez uma menininha. Ela se chamava Chapeuzinho Vermelho porque... tinha cabelos ruivos e gostava de usar chapéu.
Brittany riu.
— Não, tio Ash...
— Hum... Ah, já sei! Porque tinha um carro vermelho e nunca tirava o chapéu.
— Não — Brit riu outra vez, relaxando a cabeça sobre o travesseiro. — Porque ela usava um chapéu vermelho.
— Ah, é isso mesmo. Era o que eu ia dizer. Bem, um dia, ela estava andando na floresta... e encontrou uma coruja má.
Brit deu uma gargalhada.
— Não? Não foi uma coruja? — perguntou Ash, preocupado. — Ah, sim, que tolo eu sou! Foi um esquilo mau.
— Hum, hum — Brit balançou a cabeça.
— Espere... Foi um elefante, então. Tenho certeza que foi um elefante... Ou então, uma girafa má.
Josephine fechou os olhos, deixando-se embalar pelo som da voz calma de Ash e da vozinha confiante de Brittany.
— Eu adoro você, tio Ash!
— Eu também te adoro, Brit. Promete que não vai mais nadar no rio?
— Eu não ia nadar. Eu caí.
— Foi o que imaginei.
— Eu peguei um sapo, mas ele escapou e aí, quando fui tentar pegar de novo, escorreguei.
— Bem, nada de pegar sapos, outra vez, perto do rio, então. Pelo menos, não sem o tio Ash. Sou especialista em pegar sapos, sabia?
Uma sensação opressiva e angustiante começou a envolver Josephine. O que ela fizera?! Como ficariam Brittany e Bethany quando descobrissem que o tio a quem já haviam se afeiçoado não era, realmente, tio? E Ash? Como reagiria, quando descobrisse a Verdade?
Ash saiu da sala de atendimento quando Caroline chegou. Brittany estava bem e ficou feliz em ver a mãe e a irmã. Ash caminhou apressado ao longo do corredor, em direção à sala para onde haviam levado Josephine, apenas para ser barrado do lado de fora por uma enfermeira com jeito de brava.
— Não pode entrar, senhor.
Ele gesticulou, impaciente.
— Como não...
— Senhor, a paciente está...
Ele tentou afastar a mulher do caminho.
— A paciente é minha esposa!
Ash parou e pestanejou, perplexo, olhando para a enfermeira, sem enxergar. Por um instante, acreditara que era verdade; por um breve momento, parara de representar; não estava fingindo; sentia-se, de fato, como um homem seriamente preocupado com a esposa. Deixou escapar um longo suspiro.
— Por favor, pelo menos me diga o que está acontecendo — pediu, mais calmo.
— Sua esposa está bem, senhor. O médico está suturando o corte. Por que não se senta? Eu o avisarei quando puder vê-la.
A enfermeira entrou na sala e Ash enfiou as mãos nos bolsos do short, caminhando de um lado para outro, indócil, no corredor. De instante em instante olhava para a porta fechada. Depois de alguns minutos, que para ele pareceram horas, o médico saiu. Logo em seguida a enfermeira apareceu e fez-lhe sinal para que entrasse.
Ele marchou para dentro da sala e suspirou, aliviado, ao ver Josephine sentada na beirada da cama, usando uma bata branca de hospital. Ela sorriu, ao vê-lo.
— Você está parecendo um rato afogado.
Ash não se deu ao trabalho de olhar para o short molhado e para a camiseta grudada à pele. Sorriu e atravessou a sala, para levantar-lhe a bata, que cobria o curativo. Fechou os olhos por um momento, ao lembrar-se da aparência anterior do ferimento, e sentiu-se nauseado.
— Pronto, já passou! — exclamou Josephine. — Eu estou bem.
Ash olhou para ela e viu que os olhos verdes haviam recuperado o brilho. Estudou lhe o rosto com atenção, para certificar-se de que ela estava realmente bem, ao mesmo tempo em que tentava determinar qual fora o momento exato em que ela tomara conta de seu coração.
— Brittany também está bem — informou ele, mais para dizer alguma coisa, para encobrir suas emoções tumultuadas.
— Sim, eu sei. O médico me disse.
Ash podia ver que Josephine estava bem e, afastada a preocupação inicial, uma outra, secundária, subiu à tona. Ele precisava saber.
— O que aconteceu, Josephine?
— Acho que foi uma tábua com um prego enferrujado. Senti cortar assim que mergulhei. Mas não vi, por isso não tenho certeza. A enfermeira me aplicou uma injeção para não...
— Não é disso que estou falando — interrompeu Ash, segurando-lhe as mãos para que ela parasse de gesticular. — Como você sabia, Josephine?
Josephine franziu a testa.
— Como eu sabia o quê?
Ela entendera a pergunta, estava evidente em seus olhos.
— Que Brittany tinha caído — insistiu Ash, pacientemente. — Estávamos os três na frente da casa. De repente você ficou pálida, gritou o nome dela e saiu correndo para o rio. Por isso eu lhe pergunto, Josephine, como você sabia?
Ela engoliu em seco, antes de responder.
— Eu... ouvi o barulho da água.
— Daquela distância? Nenhum de nós ouviu nada, Josephine.
— Eu ouvi.
— E como você sabia que era Brittany, e não Bethany?
Josephine vacilou, por um segundo;
— Porque Bethany tem medo de água. Brittany é mais atirada.
Os dois se entreolharam, Josephine com a expressão ligeiramente curiosa, Ash, intrigado, dividido entre a irritação por ela estar lhe escondendo a verdade e o alívio por vê-la fora de perigo.
Pela primeira vez, admitiu que talvez ela tivesse algum poder estranho, afinal.
— Você salvou minha vida e a de Brit, Ash. Você podia ter se afogado, tentando nos salvar.
A gratidão de Josephine era sincera, Ash podia ler isto em seus olhos. Sabia quando ela estava mentindo, quando estava magoada, quando estava com medo; sabia quando ela o desejava e lutava contra este desejo.
— Sem chance, princesa. Os sapos nadam muito bem.
Ele enrijeceu quando Josephine o envolveu entre os braços e apoiou a cabeça em seu peito.
— Nunca poderei retribuir o que fez. Não tenho palavras para agradecer. Se eu tivesse perdido Brittany... Como vou lhe agradecer, Ash?
— Por que não experimenta, começando a confiar em mim, Josephine?
Ela levantou o rosto para fitá-lo.
— Nem todos os sapos são iguais, sabia? Alguns têm bom caráter, dada a oportunidade.
Os olhos de Josephine se marejaram de lágrimas.
— Eu... tenho medo...
— De quê?
— De fazer papel de boba, como tantas outras, antes de mim — Uma lágrima escorreu lhe pela face.
— Você pode ser tudo, Josephine, menos boba. Por que não confia em seus instintos?
— Minha mãe dizia isso, Carol, também. Veja o resultado.
— Mas não tem de ser sempre assim.
Josephine olhou para Ash, desamparada. Ele se inclinou para frente, para beijá-la, para provar que...
Mas foi interrompido quando a porta abriu e a enfermeira entrou.
— Sua irmã me pediu para lhe entregar isto — A mulher colocou uma sacola de papel no chão. — Roupas secas.
Ela tornou a sair e a fechar a porta, deixando-os novamente a sós, mas Ash amaldiçoou-a; o clima fora rompido. Josephine baixou os braços e desviou o olhar. Com um suspiro, Ash pegou a sacola, retirou de dentro uma bermuda e uma camiseta e entregou-as a Josephine. Ela deslizou para fora da cama com uma careta.
— Está sentindo dor?
— Um pouquinho.
— Pode se vestir sozinha, ou precisa de ajuda? — prontificou-se Ash, torcendo para que ela dissesse que precisava.
— Obrigada — respondeu ela, sem levantar o rosto. — Mas meus braços felizmente estão funcionando bem. Importa-se de esperar lá fora?
Ash levantou as mãos, desamparado, e saiu para o corredor, fechando a porta atrás de si. Poucos minutos depois Josephine abriu a porta a saiu, pulando em uma perna. Ash apressou-se ao encontro dela.
— Vamos lá, suba em minhas costas — ordenou, agachando-se.
— Que bobagem, Ash, posso...
— Não discuta com seu marido, moça — Ele olhou-a por sobre o ombro. — Upa, upa, cavalinho.
Josephine agarrou o pescoço de Ash e enlaçou-lhe a cintura com as pernas. Ash segurou-a e impulsionou-a para cima, antes de sair ziguezagueando pelo corredor, imitando baixinho o som de uma sirene.
Josephine riu.
— Você é maluco, sabia? Não é de admirar que tenha sido tão jeitoso com Brit, na ambulância. Você também não passa de uma criança!
Ash lembrou-se da expressão assustada nos enormes olhos azuis de Brittany.
— Não aguento ver uma criança com medo — explicou. — A coitadinha estava quase subindo pelas paredes.
— Você sentiu muito medo, quando era pequeno, não sentiu? — perguntou Josephine gentilmente, tocando no ponto fraco de Ash.
— Sim — confessou ele, sem hesitar, somente algum tempo depois dando-se conta de que mais uma vez ela "adivinhara".
Josephine inclinou-se para frente e beijou-lhe o rosto.
— Seja lá o que tenha sido, não impediu você de tornar-se um homem incrível, Ashville Coye. Um herói... meu herói.
Ash balançou a cabeça.
— Pobre princesa... Esperava um príncipe montado num cavalo branco e tudo que conseguiu foi um sapo numa almofada.
Josephine ia dizer alguma coisa, mas chegaram à sala de espera, e Caroline foi ao encontro de ambos. Brittany estava com uma aparência bem melhor e Bethany estava radiante de felicidade, depois de passado o susto. As duas garotas correram para Ash e cada uma lhe abraçou uma perna.
— Depois você me leva também, tio Ash? — pediu Bethany.
— Primeiro, eu — gritou Brittany. — Fui eu quem quase se afogou!
— Bem, sua tia Josephine machucou a perna e não pode andar, por isso ela tem preferência. Quando chegarmos em casa, levarei as duas para dar uma volta, certo?
As meninas concordaram imediatamente, enquanto entravam no elevador. No estacionamento, Ash acomodou Josephine no porta-malas da caminhonete, para que se sentasse com a perna esticada. Ao chegar em casa, pegou-a de novo no colo e carregou-a para dentro. Viu três malas na sala de ginástica, perto da porta, e olhou para Carol.
— São minhas. Tirei-as do carro, antes de ir para o hospital.
Josephine fez uma careta quando Ash a acomodou no sofá.
— Você devia ter trancado a porta, Carol.
— Desculpe, Josephine, eu estava transtornada... O que foi? — acrescentou Caroline, ao reparar na expressão da irmã.
— Não sei...— Josephine balançou a cabeça. — Alguma coisa...
— Leve a gente agora, tio Ash!
Ash apoiou a perna de Josephine sobre uma almofada.
— Não acham melhor almoçar, primeiro? — sugeriu ele. — Vou fazer meus pastéis "Ash-Coye-Superdeluxe".
— Vá trocar de roupa, Ash. Deixe que eu preparo os pastéis — ofereceu-se Caroline.
— Eu posso ajudar...
— Você vai ficar aí quietinha, descansando — ordenou Ash.
— Volto em um minuto.
Ele correu para o quarto e reapareceu pouco depois, usando short e camiseta limpa, e com o cabelo úmido penteado.
Chegou perto das meninas e pôs uma mão no ombro da mais velha.
— Bethany, por sua coragem e dedicação, por ter se lembrado do que aprendeu na escola e ter chamado Emergência 911 para socorrer sua irmã, eu lhe concedo a primeira volta — Ele se agachou e uma Bethany embevecida subiu-lhe nas costas, rindo a valer, enlaçando-o pelo pescoço.
— Ei, cuidado para não enforcar seu tio querido!
Ash levantou-se e começou a galopar pela sala e pela cozinha. O tempo todo, entretanto, conforme dava uma volta com cada uma das meninas, via crescer a apreensão no rosto de Josephine. Ele próprio estava ficando cada vez mais preocupado.
Os pastéis foram devorados em tempo recorde. Quando terminaram, Caroline levantou-se.
— Precisamos ir.
— Para onde? — Josephine ergueu o corpo, no sofá.
— Para o aeroporto. Eu disse a você, Josephine, vou com as meninas para Miami, para ver papai.
— Mas você não disse que ia hoje!
— Bem, eu ia dizer, mas... — Carol não concluiu a frase. Um carro parou do lado de fora e segundos depois a porta dos fundos bateu. Ouviram-se passos na escada.
Ted surgiu na porta da cozinha e seu olhar pulava de Carol para as meninas e de volta para Carol. Em seguida ele suspirou, caminhou até Brittany e ajoelhou-se para abraçá-la.
— Você está bem, filhinha? Hum?
A menina assentiu.
— Eu caí no rio, papai, mas tia Josephine e tio Ash nadaram e me pegaram.
Ted abraçou-a com mais força. Beijou-lhe o rosto e em seguida pôs-se de pé.
— E eu chamei 911 — acrescentou Bethany, orgulhosa. Ted afagou lhe a cabeça.
— Boa menina, Beth — Ele olhou para Carol. — Você ia, pelo menos, me contar?
— Eu ia telefonar...
— Você devia ter me avisado, Caroline. Sou o pai dela.
— Você trouxe sua mala, papai?
— Claro que ele trouxe — respondeu Bethany à irmã. — Está vendo, mamãe, eu não disse que papai também ia conosco para a casa do vovô?
Os olhos de Ted se arregalaram e Carol mordeu o lábio, sem jeito.
— Será que entendi direito, Carol?
Ela limitou-se a assentir com a cabeça, os olhos marejados de lágrimas.
— Mas Carol... que loucura é essa? Sei o que está pensando, mas está equivocada.
— Estou? — Caroline fulminou-o com os olhos e ele ficou imóvel, por um instante, como se tivesse sido apunhalado. Seu olhar também endureceu; ele girou nos calcanhares e desceu a escada, apressado.
Sem saber por que, Ash foi atrás dele; a dor nos olhos de Ted de alguma forma o comovera e ele o seguiu, no impulso do momento. Deteve-o na porta.
— Vai deixá-la ir?
Ted segurou a maçaneta com força.
— Por enquanto, sim — A voz dele estava embargada, os olhos fixos nas malas, no chão. — Pelo jeito, ela não me deu muita escolha, não acha?
— Converse com ela, Ted... Diga que...
— Escute, Coye, este assunto não é da sua conta. E com você e Josephine enterrados até o pescoço nessa história dos crimes, estou começando a achar que não é má ideia Caroline afastar-se daqui por uns tempos. Aqui, ela não consegue desgrudar de Josephine. Em Miami, pelo menos, estará a salvo.
— Não quero me intrometer em sua vida...
— Não existe outra mulher — interrompeu Ted, como se não tivesse escutado Ash falar. — Mas Carol não acredita. A culpa é do pai dela... Às vezes tenho vontade de cortar a garganta daquele miserável, pelo que fez com a cabeça das filhas.
Ele saiu furioso, deixando Ash com os olhos fixos na porta, sem enxergar. As últimas palavras de Ted ecoavam sinistramente em seus ouvidos. "Cortar a garganta do miserável..." Não quebrar o nariz, ou torcer o pescoço, e sim, cortar a garganta. Isto significaria alguma coisa?
Ash voltou para a sala para encontrar Carol e as meninas prontas para partir.
— Caroline, você tem certeza do que está fazendo? — Ele não sabia por que estava tão ansioso para solucionar aquele problema. Estava tão envolvido como se fosse realmente membro da família. — Porque veja, vocês podem ficar aqui conosco. Não quero que vão para o sul apenas por minha causa...
— É melhor elas irem — interveio Josephine, para surpresa de Ash.
Ela mudara radicalmente de ideia durante os poucos minutos em que ele descera para falar com Ted; antes, mostrara-se contra a viagem de Carol, agora aconselhava-a a ir. O que estava acontecendo?
— É melhor se apressar, Carol, se não quiser perder o avião.
— Josephine tem razão, Ash. Mas eu lhe agradeço, de qualquer forma — Carol abraçou a irmã e as meninas se penduraram nas pernas de Ash.
Ele as pegou no colo, uma em cada braço.
— Muito bem, então, que tal uma última cavalgada até o carro? — Ele rodou com as meninas nos braços, o que as fez gritar, alvoroçadas. — Acho bom vocês me mandarem um cartão-postal, ouviram bem, senhoritas?
A Fera estivera ali.
A sensação nauseante se instalara na boca de seu estômago desde o momento em que chegaram em casa, mas Josephine não conseguira detectar a causa. De repente, ela tomara consciência. O que sentia era uma presença. Alguém estava na casa, ou estivera, recentemente; alguém com um coração repleto de maldade.
E em algum lugar, no fundo de sua alma, ela sabia quem era; por isto precisava afastar Carol e as meninas dali, o quanto antes.
Assim que Ash saiu com elas, Josephine levantou-se e tirou a pistola de seu novo esconderijo, no armário de cima, na cozinha; examinou-a para certificar-se de que estava carregada e começou a subir a escada, encolhendo-se de dor a cada passo. A sensação tornava-se mais forte a cada degrau que subia. Antes de chegar ao topo da escada, ela já estava sem fôlego e sua testa estava salpicada de gotículas de suor. Encostou o dedo no gatilho da pistola e olhou à sua volta, para quatro portas fechadas.
A sua frente estava o quarto que ela reservara para as meninas, quando vinham dormir, cheio de brinquedos, livros de colorir e quadrinhos nas paredes; à esquerda ficava o quarto de hóspedes, onde Ash dormira na primeira noite; à direita, mais duas portas: a da suíte e a do outro banheiro.
Josephine ficou paralisada, no topo da escada, concentrando-se em cada uma das portas, enviando detectores invisíveis; se escolhesse a porta errada, e o assassino ainda estivesse lá, ela poderia ser atacada pelas costas.
— Josephine?
Ela virou-se com um sobressalto, empunhando a pistola. Ash estava parado, no pé da escada. Ela levou um dedo aos lábios e estendeu uma mão, indicando que ele permanecesse onde estava. Ash, no entanto, ignorou a ordem e começou a subir, embora falasse em voz baixa.
— O que foi?
— Alguém... esteve aqui. Talvez ainda esteja, não sei.
— Onde? — Ele franziu a testa.
— Está mais forte perto do nosso quarto — Josephine levantou a arma e aproximou-se da porta.
Ash deteve-a com uma mão no ombro. Tirou-lhe a pistola da mão e afastou-a para a parede.
— Espere aqui.
— Não, Ash! Você não devia estar aqui. Você pode ser morto! — O pânico tomou conta de Josephine.
Ele, porém, continuou a ignorá-la. Deu mais um passo à frente e escancarou a porta do dormitório. Ninguém. Josephine entrou atrás dele e abriu a porta do banheiro. Vazio.
Ash saiu do quarto, apressado, e abriu as outras portas, com igual resultado. Não havia viva alma, em nenhum dos aposentos.
Ele voltou para a suíte, onde Josephine estava parada na porta do banheiro, trêmula.
— Você deve estar pensando que sou louca.
Ash negou com um movimento da cabeça.
— Nada disso. Acho que você está com os nervos à flor da pele, fugindo da própria sombra, preocupada com sua irmã e comigo, também. Só não entendo por quê.
Ela permaneceu em silêncio.
— Josephine, fale comigo, diga o que está acontecendo... Por que pensou que havia alguém aqui?
— Não pensei, eu sei. Alguém esteve nesta casa enquanto saímos.
Ash acariciou a cabeça de Josephine e sua voz se enterneceu.
— Minha querida, você teve um dia difícil. Não há ninguém aqui, como pode ver, nada está faltando. Veja, está tudo como deixamos...
Ele se calou abruptamente. Os olhos de Josephine seguiram a direção dos dele e se arregalaram. A maleta de Ash estava aberta, sobre a cômoda. O estojo de disquetes estava com o zíper aberto, e vazio. Josephine prendeu a respiração, com a nítida sensação de que uma lâmina gelada lhe rasgava as costas.
Ash segurou-lhe a mão e puxou-a para si.
— Venha, não vamos tocar em nada. Pode haver impressões digitais.
— Não... tinha luvas... pretas, de couro... com dois botões... nos punhos.
— O quê?
Os olhos de Josephine se arregalaram.
— Onde está Carol?!
— A caminho do aeroporto. Carol está bem, Josephine, agora, de uma vez por todas, me diga o que está havendo! Quem tinha luvas? Quem você acha que esteve aqui?
Josephine reprimiu um soluço, tentando controlar o violento tremor que lhe sacudia o corpo. Não podia dizer... Não podia contar a Ash que seu assassino estava cada vez mais perto... Oh, não queria perdê-lo! Era diferente, agora, era muito mais importante; mais do que simplesmente um meio de impedir que a Fera chegasse a Carol.
Ela atirou-se nos braços de Ash.
— Precisamos sair daqui!
A sala de Radley Ketchum, no escritório do Chronicle, nada mais era que quatro sólidas paredes ao redor de uma explosão de papéis. Radley marchou até a porta fechada, voltou e entregou o batom coral a Ash. Ash pegou-o e afastou um cinzeiro abarrotado antes de sentar-se na beirada da mesa.
— Você podia estar atrás das grades por sonegar evidência, Coye — sussurrou Radley, olhando para Ash por sobre o ombro. — Você sabe de coisas que não quer dizer, e isto chama-se obstruir a justiça.
Ash guardou o batom no bolso, repetindo para si mesmo que a presença de um batom no estojo de maquiagem de uma mulher era o mínimo que se podia esperar. Olhou para além de Radley, pelo vidro da porta do escritório, e avistou Josephine, do outro lado. Ela estava sentada na beirada da cadeira, diante da mesa de Ash, e tinha nas mãos uma caneca fumegante. A apreensão era evidente em seu rosto.
— Olhe para ela, Rad!
Radley virou a cabeça lentamente e contemplou Josephine, por um momento.
— Concordo que não parece uma assassina, mas...
— Não é isso. Olhe para o rosto dela, para os olhos. Radley, é uma mulher apavorada que está ali, sentada! Ela não quer voltar para casa, não quer nem mesmo esperar pela polícia, lá.
— Mas de que ela tem medo?
— Da Fera, suponho.
— Ou de ser apanhada? Provavelmente, está com medo que você descubra que ela é a Fera.
Ash balançou a cabeça e suspirou, impaciente.
— Use a cabeça, Ash — continuou Rad. — Por que ela estaria com medo do assassino? As cinco vítimas, até agora, foram homens.
— Quatro.
— Está bem, quatro, cinco, que diferença faz? Haverá mais. Está sendo um caso difícil para a polícia e você ainda esconde o que poderia ser de alguma valia. Eles estão ficando desesperados.
— Esse é o meu medo — Ash levantou-se da mesa. — Eles precisam de um suspeito, nem que seja para ser bode expiatório, e não vou deixar que façam isso com Josephine. Eles não podem arruinar a vida dela, Rad, com base em um simples batom!
— Acontece que é da mesma marca e tonalidade do que foi encontrado nos tocos de cigarro, nos locais dos crimes.
— Coincidência, Rad. Olhe aqui, eu não vou ficar de braços cruzados, enquanto vocês acusam Josephine.
— Calma, Ash! Se ela for inocente, não tem o que temer. Mas se não for, terá de pagar. Por que todo esse alvoroço, agora, em torno de uma mulher que até poucos dias atrás você nem conhecia? Ou foram as tanguinhas dela que fizeram você mudar de id...
Ash segurou Radley pelo colarinho antes que ele tivesse chance de terminar a frase.
— Está vendo como tenho razão? — ponderou Radley, o rosto vermelho, enquanto Ash o fulminava com os olhos, contendo-se para não esbofeteá-lo. — Você não consegue mais ser objetivo. Está escondendo evidência, protegendo uma suspeita, arriscando seu emprego...
Ash soltou-o bruscamente.
— Está enganado, Rad — Ele se virou e se afastou lentamente. — Não que seja da sua conta, mas eu não dormi com ela. Sou o principal interessado em descobrir a identidade do assassino e minha objetividade continua intacta.
— Não concordo, Ash. Vou passar o caso da Fera para Harris.
Ash girou nos calcanhares.
— O quê?!
— Você não é mais o mesmo. Está...
— Pedindo demissão!
O queixo de Radley quase caiu e o restante da frase ficou pendente no ar, silenciada por duas simples palavras.
— Isso mesmo, Rad. A escolha foi sua. Passe o caso para Harris e eu saio por aquela porta no mesmo instante. E se eu sair, com certeza você irá atrás de mim, pois será demitido por ser responsável pela perda do repórter-estrela do Chronicle. E então, Rad, como ficamos?
Radley apertou os dentes, furioso. Não gostava de ser desafiado, mas reconhecia que Ash tinha razão.
— O que pretende fazer, Ash, além de ficar abanando o rabo atrás da boneca feito um cachorrinho, esperando que ela se digne a lhe atirar algumas migalhas?
— Vá para o inferno, Rad.
— Que droga, Coye, você...
— Chega! — Ash ergueu uma mão. — Chega. Esta discussão não vai levar a nada.
Radley enfiou as mãos nos bolsos, resignado.
— O que pretende fazer?
— Vou conversar com um psiquiatra especialista em psicopatas e tentar delinear o perfil do assassino. Quero falar, também, com os executivos para quem Josephine trabalhou, para saber o que acham desses poderes que ela tem.
Radley lançou um rápido olhar na direção de Josephine.
— Acha que ela é uma vigarista?
Ash hesitou, antes de responder.
— Estou começando a achar o contrário.
Radley ficou surpreso.
— Você, o maior cético da face da Terra? O que ela fez, leu seu pensamento, ou o quê?
— Ou o quê.
A expressão de Radley relaxou de um momento para o outro e ele olhou novamente para fora da sala, pensativo.
— Ora, ora... isto é muito interessante.
Ash levou a mão à maçaneta.
— Não comente nada com Josephine, Rad. Ela pensa que eu não sei. E trate-a bem. Não se esqueça que ela é minha esposa.
— Tudo bem, desde que você não se esqueça que ela não é.
Josephine empertigou-se ao vê-los caminhando em sua direção. Tentara concentrar-se no diálogo que se travava na sala de Radley Ketchum, porém, como sempre, quanto mais tentava focalizar a mente, menos conseguia captar. Em um escritório de imprensa, com um movimento constante de gente passando, o som, de vozes, telefones e computadores, era difícil concentrar-se no próprio pensamento, quanto mais no de outras pessoas. Uma coisa, no entanto, Josephine sentira; durante quase o tempo inteiro eles falaram sobre ela. E não saber o que diziam fazia-a sentir-se pouco à vontade.
— Sra. Coye — Radley inclinou-se para Josephine. — Sente-se melhor?
Ela assentiu, com a cabeça.
— Sim. Obrigada pelo café.
Ash estava atrás dela, com as mãos em seus ombros.
— Bev telefonou, enquanto eu estava na sala de Rad. Bev. A loira curvilínea e voluptuosa.
— Eles terminaram de inspecionar a casa.
— Encontraram alguma coisa?
— Algumas impressões digitais. Estão analisando, mas...
— São nossas, Ash, tenho certeza. Eu lhe disse, a pessoa estava usando luvas...—Josephine calou-se e olhou para os dois homens. Precisava de insistir na questão das luvas, eles nunca entenderiam.
— Bem, já podemos voltar para casa.
— Não.
— Josephine, não tem ninguém lá...
— Não!
Ele suspirou.
— Está bem, então podemos ir para o meu apartamento, se você preferir. Mas precisamos passar em casa, pelo menos para você pegar suas coisas. Escova de dentes e...
— Eu não vou voltar lá. Nem você.
Ash suspirou de novo e Josephine sabia o que ele estava pensando; que ela ainda estava abalada por causa do intruso, estressada por tudo que acontecera naquele dia. Mas a verdade era que ela estava calma e raciocinava com a máxima lucidez. Simplesmente, não queria Ash naquela casa. Uma sensação de perigo pairava em sua mente, só de pensar.
— Está certo, então, se é isso que você quer — Ash virou-se para Radley. — Manterei contato.
— Ótimo — Radley sorriu para Josephine. — Espero vê-la novamente em breve, sra. Coye.
O apartamento de Ash ficava a poucos quarteirões de distância dos escritórios do jornal. Ele abriu a porta e Josephine entrou, mancando, os sentidos em estado de alerta. Assim que Ash acendeu a luz do hall, ela deu um passo à frente, apreensiva, cautelosa. Espiou dentro da cozinha e do lavabo. Sabia que Ash estava parado no hall, observando-a, mas não se importava. Depois de certificar-se de que não havia ninguém, ela suspirou, aliviada.
— Relaxe, Josephine. Você está com medo da própria sombra.
— É sempre melhor prevenir que remediar — retrucou ela. — Não custa nada.
Uma passagem em arco ligava o hall à sala. Na parede oposta ficavam as portas de vidro da varanda. A noite caía, lá fora, salpicada pelas luzes da cidade de Syracuse, visíveis somente através das frestas das persianas verticais. A suíte de Ash ficava à direita. Josephine inspecionou-a, também, antes de retornar à sala e deixar-se afundar no sofá branco com almofadas pretas e verde-musgo.
— Sente-se segura, agora? — indagou Ash, entre preocupado e divertido.
Josephine sorriu.
— Não sou eu que... — Ela interrompeu-se. — Sim, sinto-me segura, aqui.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Ótimo. Vou sair para fazer umas compras.
— Q... Que compras? — gaguejou Josephine, inclinando-se para frente, no sofá, sentindo a tensão retomar.
— Mantimentos, principalmente. Faz quase uma semana que estou fora daqui. A geladeira está vazia.
Josephine lançou a Ash um olhar suplicante, desejando pedir que não se afastasse dela, nem por um instante, mas consciente de como pareceria absurdo fazer isto.
— Não estou com fome.
— Mas eu estou. Escute, você ainda está chocada com tudo que aconteceu. Por que não toma um banho, liga a televisão, bebe um vinho e relaxa? Em meia hora, no máximo, estarei de volta, prometo.
— Podíamos pedir alguma coisa pelo telefone.
— Josephine...
— Não saia, Ash.
Ele franziu a testa, perplexo.
— Por favor, não saia daqui.
— Josephine, qual é o problema? — perguntou ele, com uma ponta de impaciência. — De que você tem medo?
— Eu... Não tenho medo, é que...
Ash deu um passo à frente e segurou o rosto dela entre as mãos, forçando-a a encará-lo.
— Josephine. Chega de mistério. Você precisa confiar em mim. Quero ajudar você, mas não posso fazer isso se você não me disser o que está acontecendo.
Ela permaneceu em silêncio e depois de um momento Ash suspirou e afastou-se,
— Que droga, Josephine, não sou seu pai, nem Ted! Não vou trair você. Será que é pedir demais que acredite em mim?
Ele atravessou o hall e Josephine pôs-se de pé de um pulo, apesar da dor na perna. Agarrou o braço de Ash no momento em que ele levou a mão à maçaneta, e puxou-o para trás.
— Não, Ash! Você não pode sair...
— Dê-me uma boa razão para eu não sair, Josephine.
— A Fera vai matar você.
Ash daria risada, Josephine tinha certeza. Chamá-la-ia de louca. Mas era melhor isto do que deixá-lo sair e ser assassinado.
— Como você sabe? — perguntou ele, pausadamente, com uma ruga na testa.
Josephine soltou-o e deu um passo para trás.
— Eu sei...
— Mas como? — exigiu Ash. — Você conhece a Fera, Josephine? É isso?
Ela balançou a cabeça com veemência e sacudiu os ombros.
— Eu simplesmente sei, Ash. Não me pergunte como.
Ash colocou dois travesseiros sob a cabeça de Josephine e cobriu-a com o acolchoado. Contemplou-a deitada em sua cama, encolhida, apavorada; deteve o olhar nos lábios cheios e sensuais, recordando-lhes o sabor, a doçura, a maciez. O pensamento levou a outros, até o ponto em que ele recriminou a si mesmo. No fundo, Rad tinha razão. Ele precisava parar de se envolver com aquela mulher e dedicar-se à investigação de uma série de assassinatos... Mas também precisava desvendar o mistério que era Josephine Bradshaw.
Passou uma mão pelo cabelo e levantou-se, porém foi imediatamente detido pela voz ansiosa de Josephine.
— Não vou sair — prometeu. — Fique tranquila.
Ele marchou até a cozinha e abriu a geladeira. Por um minuto ficou parado, contemplando a garrafa de vinho que ali se encontrava à espera que o notório Ashville Coye a oferecesse à sua mais recente conquista.
Ash balançou a cabeça, aborrecido consigo mesmo e com sua infindável busca pela mulher perfeita. Quem ele pensava que era, para supor que a mulher perfeita se interessaria por ele? E onde ele pensava que chegaria, enumerando as qualidades que ela deveria ter? Que cargas d'água ele sabia a respeito de coisa alguma?
Nada. Não sabia nada. Josephine Bradshaw era a prova disto. Ash a rechaçara desde o primeiro momento em que a vira e agora via-se inclinado a admitir que ela estava mais próxima da perfeição do que qualquer outra mulher que conhecera.
Ele fechou a geladeira e remexeu numa gaveta, à procura do saca-rolhas. Sentia por Josephine algo que preferiria não sentir. Em todos os planos que envolviam a esposa de seus sonhos e a família ideal, nunca dera muita atenção à parte emocional; simplesmente presumira que gostaria da pessoa, e pronto.
Agora encontrava uma mulher que estava longe de ser o modelo que imaginara, e via-se desejando-a, querendo ficar com ela, sempre. E tinha de ser justamente uma mulher que dizia uma mentira atrás de outra; uma mulher que não confiava nele; uma mulher que, ao que tudo indicava, estava envolvida com uma série de crimes.
Ash puxou a rolha e abriu o armário para pegar dois copos.
— E ainda pensa que pode ler pensamentos! Que loucura! — Ele falou em voz alta, sem perceber, balançando a cabeça enquanto enchia os copos. Em seguida colocou a garrafa na pia e pôs-se a contemplar o líquido rosado, rememorando todas as coisas estranhas que, bem ou mal, Josephine havia pressentido. O pensamento deixava-o apreensivo. Pegou um dos copos, levou-o aos lábios e tomou o conteúdo de um só gole. — Ou serei eu que estou ficando louco?
— Ash?
— Já vou!
Ash tinha a impressão que Josephine tinha medo de deixá-lo sozinho. Se pelo menos ela dissesse a verdade de uma vez por todas... Se explicasse por que iniciara aquela farsa, por que fingia ser sua esposa e o que sabia a respeito dos assassinatos...
Ele encheu novamente o copo vazio e voltou para o quarto; sentou-se na beirada da cama e ofereceu um copo a Josephine, que aceitou e bebeu um gole.
— Hum... gostoso!
— Fale comigo, Josephine. Diga o que está acontecendo.
— Você não acreditaria.
— Por que não tenta me convencer?
Ela suspirou longamente.
— É que... eu tenho visões.
— Que tipo de visões?
— Não sei explicar. Não vejo com os olhos, e sim com a mente. Como quando Brit caiu na água, por exemplo.
— Você disse que a ouviu cair.
— Não foi verdade. Não ouvi coisa alguma. Eu simplesmente senti. Em minha mente, vi Brit cair e sabia que era real. É assim que auxilio as empresas que me contratam como consultora. Quando fico perto das pessoas, geralmente consigo sentir se são desonestas e... — Josephine engoliu em seco e calou-se.
— Então, você é paranormal.
— Não deboche, Ash.
Ele tirou o copo de vinho da mão dela e colocou-o sobre o criado-mudo, ao lado do seu.
— Eu não faria isso.
— Eu não tenho culpa. Não é uma coisa sobre a qual eu tenha controle.
Ash ainda não estava plenamente convencido.
— Foi por isso que você sabia que alguém havia estado na casa? Você sentiu?
Josephine inclinou a cabeça, em assentimento.
— Então, o que você disse a respeito das luvas...
— Eu vi as mãos... enluvadas.
Ash fitou-a intensamente, a expressão séria.
— O que mais você viu?
Os olhos de Josephine assumiram uma expressão que Ash não testemunhara, até então.
— Ash, você está correndo perigo. Precisa acreditar em mim. A Fera quer matar você e não posso deixar que isto aconteça.
— Porque sou seu marido?
— Não — Ela balançou a cabeça e seus olhos se marejaram de lágrimas. — Porque gosto de você. Não quero perdê-lo, e não estou mentindo.
Uma espécie de espasmo contorceu as entranhas de Ash, um espasmo ao mesmo tempo doloroso e extasiante. Josephine estava dizendo a verdade, pelo menos parte dela; ou o que acreditava ser a verdade. Mas era tão difícil acreditar naquela história de poderes paranormais...
— Você não acredita, não é? — adivinhou ela, mais uma vez.
Ash estendeu o braço e enxugou lhe uma lágrima com o polegar.
— Acredito que você gosta de mim. Não posso imaginar por que, mas sei que gosta. E acho que você está convencida que possui esse dom de... Ler a mente das pessoas. Só que... — Ele afastou a mão do rosto de Josephine, levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro, no quarto, com o copo de vinho na mão. — Não sou inclinado á acreditar nesse tipo de coisa, Josephine. Se você pudesse me provar...
— Não sou mágica, Ash. As visões que tenho independem de minha vontade, não são truques de salão, que efetuo à hora que bem entendo.
Ele virou-se abruptamente. — Desculpe, Josephine, não tive intenção...
— Teve, sim. Você ia me pedir para ler sua mente, enquanto você evocava alguma imagem estrambótica. Não é assim que a coisa funciona. Eu já lhe expliquei, não é algo que eu possa controlar. Não consigo enxergar dentro de você e ler seus pensamentos como se fossem páginas de um livro. Bem que eu tentei.
Ash fitou-a, sério.
— Você... tentou?
Ela assentiu, com expressão infeliz.
— E não conseguiu, não foi?
— Não — Ela balançou a cabeça. — Isto é, com exceção daquela noite... Quando você teve o pesadelo. Um pesadelo que você tem com frequência.
Ash ficou imóvel, tenso, com a sensação de que seu inferno mais íntimo estava sendo invadido. Depois refletiu que era bobagem; com certeza ele se debatera na cama, transpirara, gemera. Qualquer pessoa teria deduzido que ele estava sonhando.
— Ah, é? — murmurou, fingindo indiferença. — Não me lembro.
— Você estava sozinho, num lugar apertado, escuro. Você se sentia sufocado, não conseguia respirar direito e...
— Está bem — interrompeu Ash, involuntariamente. — Está bem, eu acredito.
— Desculpe — Josephine inclinou o corpo para frente, na cama. — É alguma coisa que magoa você...
— Não é — mentiu ele, com frieza na voz. — Seus poderes falharam, porque não é.
— Não quer falar a respeito? — sugeriu Josephine, carinhosamente.
— Não — Ash esvaziou o copo de vinho de um só gole.
— Talvez seja esse o problema.
— Meu único problema é que minha esposa não me deixa sair do apartamento para comprar comida, e meu estômago está vazio.
— Eu já disse, você pode encomendar por telefone.
— Ei, já sei — Ash sentou-se novamente na cama, a expressão bem humorada. — Por que não envia uma mensagem telepática à pizzaria? Deixe-me ver, eu quero de...
Josephine sorriu, mais relaxada, e agarrou o travesseiro atrás de si, atirando-o em Ash.
— Já vi que vou ter de escutar piadinhas sobre poderes extra-sensoriais, pelo resto da noite.
— Você lê meu pensamento.
Josephine mal tocou na pizza. Ash, por sua vez, não parecia ter nenhum problema com seu apetite; tampouco apresentava distúrbios de sono. Ressonava profundamente quando Josephine saiu da cama.
Ele sabia que ela estava mentindo, omitindo fatos; Josephine tinha certeza, estava ali, nos olhos escuros, cada vez que se fixavam no rosto dela. Mas Josephine contara o que pudera. Se Ash soubesse que ela não era sua esposa, com certeza a mandaria para o olho da rua; e se isto acontecesse, ela não teria como continuar a protegê-lo. Não podia sair do lado dele.
Josephine debruçou-se na mureta da varanda e contemplou as luzes que cintilavam na cidade, a seus pés. A brisa agradável de verão fazia esvoaçar a camisa que ela usava. A camisa de Ash. O perfume dele a envolvia, numa sensação gostosa... gostosa demais, na opinião dela.
Ela bebeu um gole de vinho e disse para si mesma que era uma tola por sentir-se tão ligada a Ash. Aquilo não duraria; principalmente porque a memória dele estava voltando.
Josephine não se dera conta disto logo no início. Fora somente quando estava deitada na cama, ao lado dele, observando-o dormir, desejando ter coragem para tocá-lo, para beijá-lo, que a suspeita começara a tomar forma. Ele se lembrara do sonho, lembrara-se da fonte de seus pesadelos; e parecera reconhecer cada detalhe de seu apartamento; em nenhum momento se mostrara confuso, ou indeciso. Ash estava recuperando a memória e quando a recuperasse totalmente, saberia que ela estava mentindo em relação ao casamento.
E então ela o perderia. Mesmo que conseguisse sustentar a farsa por tempo suficiente para salvá-lo do assassino, acabaria por perdê-lo para suas próprias mentiras.
Por que era tão penosa a consciência deste fato? Por que ela estava de pé em uma varanda, no escuro, bebendo vinho e chorando feito uma criança?
— Não conseguiu dormir?
Josephine se empertigou, porém não se virou. Não queria que Ash a visse chorar.
— Não.
— Nem eu — Ele se aproximou da mureta e passou um braço sobre os ombros de Josephine. Usava um robe curto, desamarrado, sobre o short que vestira para dormir.
— Mentiroso. Você estava roncando, quando saí do quarto.
— Até você sair... Ei, o que é isso? — Ash olhou para ela e enxugou lhe uma lágrima com a ponta do dedo. — Está chorando?
— Acho que é estresse.
Josephine levou uma mão ao copo de vinho e Ash fez o mesmo, pousando a mão sobre a dela. Josephine retirou a mão bruscamente, derramando parte do vinho sobre a camisa, porém Ash recapturou-a e levou-a aos lábios. Acariciou o próprio rosto com a mão de Josephine e beijou-a repetidas vezes, movendo os lábios lentamente para o pulso e para o braço. Josephine começou a tremer.
— Está com frio? — perguntou Ash. .
Ela balançou a cabeça, emudecida. Como queria aquele homem, como gostaria que aquele casamento de faz-de-conta fosse real... Ainda que só por aquela noite. E sabia que Ash queria a mesma coisa. Os olhos dele brilhavam na escuridão, de desejo... por ela.
Josephine desviou o olhar. Aquilo tudo era uma grande loucura.
— A... camisa vai ficar manchada... — murmurou, numa tentativa de aliviar a tensão. — É melhor limpar antes que...
No instante seguinte os dedos de Ash estavam em seu pescoço e ela percebeu que ele estava lhe desabotoando a camisa. Ficou imóvel, paralisada, desprovida de qualquer força de vontade ou desejo de impedi-lo de continuar. A única coisa que parecia mover-se dentro dela era seu coração, que batia loucamente.
Ash chegou ao último botão e parou. Fitou Josephine intensamente, dentro dos olhos, sem tocá-la, preparado para ouvi-la dizer não. Mas ela não disse. Em vez disto, abriu a camisa com as mãos trêmulas e deixou-a deslizar sobre os ombros, até os pés.
E ali, sob o luar, Ash olhou para ela... Da cabeça aos pés, com admiração, adoração e desejo. Ele pestanejou e voltou a fitá-la nos olhos, enquanto levantava uma mão para acariciar lhe o rosto.
— Josephine... — sussurrou, com voz rouca, quase angustiada, como se um grande sofrimento o afligisse. A mão dele deslizou para o queixo de Josephine; para o pescoço e para o ombro. Ele tocou-lhe um seio com as pontas dos dedos, antes de segurá-lo com firmeza.
Josephine fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, em reação ao toque. Ash continuou a percorrer lhe o corpo com a mão, acariciando a cintura e as costas e puxando-a para si. Enterrou a outra mão nos cabelos de Josephine e trouxe-lhe o rosto para frente, para beijá-la.
Foi um beijo lento, carinhoso, quase reverente, como se fosse o primeiro, como se ele quisesse descobrir a forma e o sabor da boca de Josephine, explorá-la, memorizá-la. Josephine sentiu em sua pele a aspereza da barba crescida de Ash; sentiu lhe o perfume másculo, a força dos braços musculosos que a envolviam; sentiu o movimento dos dedos dele em seu cabelo e em suas costas, compassados, hipnóticos.
Ela espalmou as mãos no peito de Ash e afastou o robe, querendo mais, querendo sentir os pelos do peito dele em seus seios, o contato da pele dele sob suas mãos. Ele a soltou com uma mão por vez, para livrar-se do robe, sem interromper o ritmo sensual do beijo.
Em seguida, Ash inclinou a cabeça e deslizou os lábios pelo rosto de Josephine, para beijar-lhe a orelha e o pescoço. O coração de Josephine batia, enlouquecido, abafando o ruído do tráfego, embaixo, na rua, seus sentidos estavam embriagados de desejo por Ash.
Ele inclinou o corpo de Josephine para trás e beijou-lhe um seio, arrancando-lhe o fôlego.
— Ash... vamos... entrar — balbuciou ela, com voz fraca e trêmula.
Ele traçou uma linha de beijos até os lábios dela, falando pausadamente, sem levantar o rosto, de forma que suas palavras eram como carícias na pele de Josephine.
— Não, Josephine... houve outras... naquela cama... Agora é diferente... você é diferente... Quero ter você aqui, onde não houve mais ninguém.
As lágrimas arderam nos olhos de Josephine e ela assentiu, com a cabeça, envolvendo o pescoço de Ash com os braços e oferecendo-lhe os lábios. Ele a inclinou até o chão, sobre uma cama improvisada com a camisa e o robe. Ajoelhou-se ao lado de Josephine e tirou o short, expondo aos olhos dela sua magnífica nudez masculina. Segurou uma mão de Josephine e levou-a para si, fechando os olhos e deixando escapar um gemido quando ela começou a acariciá-lo.
Depois de se entreolharem e se acariciarem mutuamente durante um longo tempo, Ash deitou-se sobre Josephine, usando um braço como travesseiro para a cabeça dela, enquanto movia os lábios por seu corpo, beijando-lhe o pescoço, os seios e o ventre. Com a mão livre ele lhe acariciava as pernas, até finalmente separá-las para explorar com os dedos o recanto macio escondido entre elas. Josephine arqueou o corpo involuntariamente, dominada por um desejo que lhe tomava conta também da mente e da alma.
Ash entrelaçou as pernas com as de Josephine e entreabriu-as ainda mais com o joelho, alojando-se entre elas. Ao sentir a rigidez de Ash, Josephine fechou os olhos e agarrou-lhe os quadris, pressionando-o contra si. Ele a envolveu nos braços e a penetrou suavemente, saindo e entrando no corpo de Josephine, num ritmo torturante, enquanto ela gemia e se contorcia de desejo, debaixo dele.
Assim Ash permaneceu por um longo tempo, fazendo crescer a cada segundo o desejo de Josephine, levando-a a um êxtase frenético, a implorar pela realização, na linguagem de seu corpo.
Para Josephine, o tempo e o espaço deixaram de existir, enquanto ela se movia ao ritmo do corpo de Ash, abraçada a ele, avassalada por uma sensação de prazer tão intensa que fazia seu corpo inteiro vibrar.
Ela gemeu baixinho quando ele finalmente aprofundou a invasão e acelerou o ritmo, numa necessidade crescente de atingir a realização total.
Josephine explodiu antes de Ash. Ela o envolveu com os braços e com as pernas e gritou o nome dele, no auge da paixão, à medida que violentos espasmos lhe sacudiam o corpo. Quando seus músculos contorcidos começaram a relaxar, Ash deixou escapar um gemido rouco e moveu-se dentro dela, desesperadamente, abraçando-a com força, enquanto ela o sentia latejar dentro de si.
Josephine não saberia dizer quanto tempo permaneceram na mesma posição, mãos e pernas entrelaçadas, enquanto os batimentos de seus corações retornava ao normal, bem como a respiração ofegante de ambos se acalmava.
Finalmente, Ash rolou para o lado de Josephine e aninhou-a em seu peito, mantendo-a aprisionada. Não que ela, em qualquer momento, tentasse se afastar; enlaçou a cintura de Ash com o braço e apertou-o contra si, enterrando ainda mais o rosto em seu peito.
O que era ótimo, refletiu Ash, porque ele ainda não conseguira dominar as lágrimas que teimavam em lhe umedecer os olhos, e a última coisa que queria era que Josephine percebesse. Esperava que o dom de Josephine fosse, de fato, tão incerto quanto ela garantira. Seus pensamentos, seus sentimentos, naquele instante, eram algo que ele não desejava compartilhar com Josephine; nem mesmo tinha certeza de que compreendia a si mesmo. Nunca se emocionara às lágrimas ao fazer amor com uma mulher, antes. Por outro lado, nunca pensara em termos de fazer amor, antes. Agora, no entanto, não existia outra expressão para descrever o que acabara de acontecer entre ele e Josephine. Até aquela noite, Ash não tivera noção da diferença, não imaginara que pudesse existir mais do que um prazer físico intenso, uma satisfação mútua às vezes gratificante, dois adultos compartilhando alguns minutos de paixão, onde o envolvimento se desfazia tão logo o ato terminasse. Ash nunca esperara sentir alguma coisa além disto.
Ele quase riu da própria ingenuidade. A seguir, procurou justificar sua ignorância. Como poderia saber que poderia ser assim? Ele nunca presenciara um relacionamento afetivo entre um homem e uma mulher, nunca conhecera um casal onde os dois sentissem algo mais profundo um pelo outro. Sua mãe, certamente, não fora um exemplo. Pelo menos, suas próprias experiências haviam sido por prazer, não por dinheiro.
Ash olhou para Josephine, aconchegada em seus braços, e desejou ser ele o possuidor do dom de ler a mente. Daria tudo para saber se o sentimento dela era semelhante ao seu; era como se Josephine lhe pertencesse, e ele a ela; como se não existisse outra pessoa no mundo com quem ele se sentisse daquela maneira; como se ele nunca fosse deixá-la partir... não agora, não! Ash sentia-se disposto a enfrentar um exército inteiro, se necessário fosse, para manter Josephine a seu lado.
A força de seus sentimentos o assustava. Principalmente, estando consciente de que Josephine mentia sem parar, e ele ainda nem sabia por quê. Mas descobriria. Iria até o fundo daquela questão, até conseguir saber tudo a respeito de Josephine, e encontraria um meio de fazê-la confiar nele e contar-lhe a verdade. Ash levantou-se e sorriu, quando Josephine olhou para ele, com as sobrancelhas arqueadas. Curvou-se sobre ela e levantou-a nos braços, carregando-a para o quarto e deitando-a na cama. Em seguida, deitou-se também e abraçou-a. E, de alguma forma, ele sabia que, enquanto estivesse abraçado a Josephine, os pesadelos de sua infância hão teriam o poder de assombrar lhe o sono.
Josephine estava tomando banho quando o telefone tocou, na manhã seguinte, e Ash atendeu, resmungando uma saudação. Ficara furioso com aquela interrupção, uma vez que estava a caminho do banheiro para entrar debaixo do chuveiro, com Josephine.
— Coye, você não me deve uma cerveja, mas duas, pela notícia que vou lhe dar.
A voz de Radley soou carregada de presunção e a declaração despertou o interesse de Ash.
— O que aconteceu?
— Poupei a você umas boas pernadas, meu amigo. Você planejava obter todas as informações possíveis sobre os crimes que ocorreram em Las Vegas, certo? Mas eu fiz isto para você, e dois aspectos muito interessantes surgiram na história. Achei que você gostaria de saber.
— O que deu em você, Rad, saudade dos tempos de repórter? Pensei que a matéria fosse minha.
— E é, Ash. Mas sua vida está em jogo, neste caso, concorda?
— E você não confia em minha análise imparcial dos fatos.
— Ora, Ash, para que servem os amigos?
Ash suspirou.
— Está certo, Rad, quais são as boas novas?
Rad deu uma risadinha.
— A primeira talvez não seja tão boa, meu amigo. Está sentado? Se não estiver, sente-se, por favor. Sua mulherzinha esteve em Las Vegas no verão de 89, quando ocorreram os crimes.
Ash sentiu a espinha retesar-se, como se fosse se partir ao meio na base do pescoço.
— Como você sabe?
— Registros de hotel. Ainda tenho meus contatos, dos tempos de repórter, como você bem sabe.
Ash não se deu ao trabalho de perguntar como Rad soubera e, que hotéis procurar. Ou ele checara todos eles, ou arriscara um palpite e acertara em cheio. Fosse como fosse, devia ser verdade. Seria fácil demais Ash verificar e Rad sabia disto. Além do que, ele não brincaria com um assunto tão sério.
— E o que mais?
— Bem, este é o seu presente de Natal, meu amigo. Estou sabendo que você quer ver sua bruxinha fora desta história. Existe outro suspeito.
Ash ficou imediatamente alerta.
— Quem?
— Uma policial. Esteve envolvida na investigação de Las Vegas e está chefiando a atual investigação. As sobrancelhas de Ash se arquearam.
— Bev Issacs?
— A própria. Ela trabalhava na polícia de Las Vegas quando foram cometidos os assassinatos. E fuma a mesma marca de cigarros.
Ash praguejou, pensativo.
— Não é possível.
— Nada é impossível, Ash.
— Não posso acreditar que Bev seja uma maníaca assassina.
— É sempre assim, meu amigo. Quem você menos imagina. Bem, estou lhe expondo os fatos, só isso.
— A polícia já sabe?
— Aparentemente, não. Pelo menos, ninguém se manifestou, até agora.
— Precisamos obter amostras do DNA de Bev, para que a perícia possa comparar com a saliva nos tocos de cigarros encontrados nos locais dos crimes. É a única maneira de termos certeza.
Radley ficou em silêncio por um longo momento. Ash ouviu o clique do isqueiro e em seguida o som de uma baforada.
— Escute, Ash, se vamos seguir essa conduta, não acha que devemos obter uma amostra do DNA de Josephine Bradshaw, também?
— Não.
— Com medo de comprovar a culpa dabruxinha?
— Ela é inocente.
— Se tem tanta certeza, obtenha as amostras. Vou entregá-las a um laboratório idôneo, para fazer as análises, e pedir ao Departamento de Polícia de Syracuse uma cópia do dossiê do assassino.
Ash mordiscou o lábio, hesitante.
— Escute, Coye, não vamos dizer nada à polícia, enquanto não tivermos os resultados.
— Está bem; Quanto tempo acha que vão demorar as análises?
— Duas semanas, no mínimo.
— É muito tempo.
— Não podemos fazer nada, quanto a isso. Pode conseguir uma amostra de Josephine?
Ash olhou ao redor do quarto e deteve-se na atadura que Josephine tirara da perna, antes de entrar no banheiro. Havia vestígios de sangue na gaze branca.
— Sim. E quanto a Bev?
— Eu me arranjo.
Radley não entrou em detalhes e Ash não perguntou.
— Acho que você devia dar uma pausa, enquanto aguardamos a resposta — sugeriu Radley.
— Não, Rad. Já marquei hora com um psiquiatra e vou falar com ele.
— Está perdendo seu tempo.
— É o meu tempo, Rad. Ainda estou de licença, esqueceu?
— Você é mais teimoso que uma mula, Coye!
— Não tenho nada a perder, Rad, ao contrário! Quanto mais aprendermos sobre com quem estamos lidando, melhor.
— Esses psiquiatras só sabem levar as coisas para o lado complicado — protestou Radley. — O que ele pode lhe dizer que você já não saiba?
— Ben Kramer estuda o comportamento de assassinos psicopatas há vários anos. Eu estou nesse negócio há apenas algumas semanas. Vamos lá, Rad, acalme-se.
— Kramer? Nunca ouvi falar.
— Ele é de Ithaca. Vou ao consultório dele esta tarde. — E sua esposa vai com você?
— Bem, não pretendo deixá-la sozinha enquanto esta questão não estiver resolvida. Não que ela me deixe sozinho por um minuto.
— Como assim, ela não deixa você sozinho?
— São essas visões que ela tem... Josephine acha que meu nome está na lista do assassino.
Houve uma breve pausa, antes de Rad responder.
— Quer dizer que ela conseguiu fazer você acreditar.
— Sim. Ah, e por falar nisso, enquanto estiver investigando Bev Issacs, fique de olho num par de luvas pretas, de couro, com dois botões nos punhos. Josephine garante que o assassino usa essas luvas.
Rad ficou em silêncio por um longo momento, antes de finalmente explodir:
— Ora, Ash, por que não pergunta a ela, de uma vez por todas, quem é o assassino? Se ela é tão eficiente, deve saber quem é. Poupe-nos tempo, e esforço.
— Ela não sabe. Josephine não tem controle sobre as visões, entende? As imagens simplesmente aparecem em sua mente. Mas é muito possível que ela ainda venha a saber a identidade da Fera. Rad, é impressionante, Josephine não vê o que quer, mas quando vê alguma coisa, você pode ter certeza que é verdade.
— Nunca pensei que um dia eu ouviria você falar assim de uma pessoa supostamente paranormal.
— Nem eu — Ash ouviu a água do chuveiro parar de correr. — Mais tarde, Rad.
— Certo...
Ele desligou no momento em que Josephine saía do banheiro, enrolada numa toalha. Levantou-se, nu em pelo, e atravessou o quarto ao encontro dela, puxando-lhe a toalha. Josephine deu um gritinho de surpresa, porém Ash silenciou-a com um beijo. Ergueu-a nos braços, levou-a de volta para o banheiro e abriu a torneira do chuveiro.
O consultório do dr. Benjamin Kramer mais parecia uma sala de estar e Josephine agradeceu intimamente por poder se sentar na confortável poltrona, depois da viagem de duas horas e meia, de Syracuse até Ithaca. Haviam parado na casa de Josephine e Ash fizera café e enchera uma garrafa térmica, enquanto ela arrumara algumas roupas dentro da mala. Ele não a vira guardar dois capacetes numa mochila, e Josephine ficara contente por isto; não tinha certeza de que suas tentativas de levá-lo para uma caverna seriam bem sucedidas, mas tinha certeza de que não seriam se ele tivesse tempo para pensar a respeito.
Calafrios de medo percorreram lhe a espinha quando ela entrara no quarto, porém a sensação de ameaça já não era tão forte. Mesmo assim, ela arrumara a mala rapidamente, ansiosa para sair da casa o quanto antes.
Agora, estava reclinada numa poltrona, com a perna dolorida esticada para frente. Kramer franziu as sobrancelhas espessas, atrás dos óculos de aro de tartaruga, e empurrou um banquinho para perto da poltrona. Josephine sorriu, agradecida por poder apoiar a perna.
— O ferimento é recente? — quis saber o médico, sentando-se numa cadeira de balanço.
— Sim, bem recente — respondeu Josephine.
— Quer tomar um analgésico?
— Não, obrigada. Eu estou bem, agora.
Ben Kramer assentiu e voltou a atenção para Ash.
— Muito bem, então... vamos ao motivo de sua visita, sr. Coye. Está interessado em assassinos psicopatas. Sem dúvida, em virtude da série de crimes que está investigando.
Ash assentiu.
— Espero que o senhor possa me dar uma ideia do tipo de pessoa que devemos procurar.
— Talvez — concordou Kramer. — Os jornais não têm fornecido muitos detalhes. É difícil julgar sem saber... Existe muita crueldade nos crimes?
Ash olhou para Josephine.
— Um único corte na garganta, doutor. As vítimas sangram até a morte. E havia... — Ele fez uma pausa, antes de acrescentar: — Bem, conto com sua discrição, doutor. O que vou dizer aqui não é do conhecimento do público.
— Claro, sr. Coye. Tem minha palavra. Acredite, eu não faria nada para prejudicar a investigação da polícia, ou dos jornalistas. Por favor, continue.
— Bem, foram encontrados tocos de cigarros, nas cenas de três crimes.
Josephine olhou para ele bruscamente. Ash não lhe contara aquele detalhe.
— Havia sangue nos cigarros?
— Não. Pode significar alguma coisa?
— Sim — Kramer inclinou-se para frente, na cadeira. — Se a pessoa estava fumando no momento em que executava o crime, a probabilidade era de que houvesse marcas de sangue no cigarro. Da mesma forma, se o assassino fumou antes, digamos, enquanto esperava pela vítima, e jogou o cigarro no chão, também haveria marcas de sangue. A quantidade e a força do sangue expelido de uma jugular cortada é algo impressionante. Minha hipótese é a seguinte: temos um homem que mata, depois se afasta e calmamente acende um cigarro, enquanto a vítima jaz no chão, esvaindo-se em sangue. — Ele balançou a cabeça. — É um predador.
— Uma predadora, doutor.
Kramer franziu a testa,
— Por que pensa que seja uma mulher, sr. Coye?
— Porque os tocos de cigarro apresentam marcas de batom.
Kramer sorriu e balançou a cabeça.
—Agora eu entendo por que a polícia está tão intrigada em encontrando tantas dificuldades, neste caso. Estão presumindo, concluindo coisas que não são necessariamente certas.
— Quer dizer que pode não ser uma mulher? — perguntou Josephine.
— É altamente improvável que seja, sra. Coye. Altamente improvável. Assassinos psicopatas do sexo feminino são tão raros como neve no verão.
— Mas não é impossível? — insistiu Ash, indócil.
— Não, não é impossível. Embora, sr. Coye, nos raros casos que estudei, eu tenha me deparado com métodos extremamente violentos. Facadas múltiplas, esquartejamento... — O olhar do médico transferiu-se para Josephine. — Desculpe, senhora. Vejo que este assunto lhe faz mal. Está pálida.
— Não, eu estou bem.
Ash olhou para Josephine, apreensivo, porém ela o tranquilizou com um movimento da cabeça. Ele se virou para o psiquiatra.
— E o fato de todas as vítimas serem homens? Significa alguma coisa?
— Talvez. Todas foram homens, sr. Coye?
Ash olhou novamente para Josephine, e dela para Kramer.
—Bem... Na realidade existe uma suspeita de que a Fera de Syracuse seja a mesma pessoa que cometeu uma série de assassinatos semelhantes em Las Vegas, cinco anos atrás. Uma das vítimas, nessa ocasião, foi uma mulher.
— Ah, sim... Junho e julho de 1989. Lembro-me do caso.
— Oh... minha nossa! — exclamou Josephine, virando-se para Ash, com olhos arregalados.
O dr. Kramer levantou-se e caminhou até a janela; afastou as cortinas e espiou para fora.
— Estamos lidando com um predador, sem dúvida, sr. Coye. Um predador que não quer, de jeito nenhum, ser apanhado. Ele não mata no calor do momento, e sim calmamente... Como um executor. Com certeza, está à procura de um homem, de um homem em particular, que, na opinião dele, merece morrer, e é por isto que ele permanece no local, para ter certeza de que o objetivo foi alcançado. Ele pode estar agindo por vingança contra alguém que existiu em sua vida no passado e que possivelmente não está mais presente. E não acredito que ele pare enquanto esta determinada pessoa não morrer por suas mãos — Ele se virou para Ash e Josephine. — Se este homem já estiver morto, o assassino poderá nunca parar. Não tenho certeza do significado da única vítima do sexo feminino. Existem várias possibilidades, mas eu não me arriscaria a apostar numa delas, por enquanto. Temos muito pouco conhecimento do caso.
— Então, acredita, realmente, que o assassino seja um homem? Poderia ser um travesti? — sugeriu Ash.
— A grande probabilidade é de que seja um homem, embora, como eu disse, não é impossível que seja uma mulher. A hipótese de um travesti é discutível. As marcas de batom nos cigarros não provam nada. Podem ser uma manobra deliberada para confundir a polícia. Talvez o assassino se vista como mulher somente para matar. Talvez, não.
— O senhor não está esclarecendo muita coisa.
Ben Kramer sorriu.
— Não sou adivinho, sr. Coye. Mas posso lhe dar mais uma informação, importante, talvez. Este tipo de revolta provavelmente se originou na infância. Acredito que a pessoa que procura foi horrivelmente ferida por um homem, quando criança.
— Fisicamente ferido, quer dizer?
— Não necessariamente, mas é possível que sim. O assassino acredita que este homem merece morrer pelo que fez.
Ash olhou para Josephine e ela se encolheu, consciente de que ele estava pensando no ressentimento que ela nutria pelo pai. Será que ele suspeitava que ela era a assassina?
Ash não deu nenhum indício do que estava pensando quando deixaram o consultório, e permaneceu em silêncio quando se sentou ao volante do carro dela.
Josephine entrou, ajustou o cinto de segurança e virou-se para ele.
— Você pensa que fui eu, não pensa, Ash?
Ash olhou para Josephine. Olhou com tanta intensidade, que ela sentiu como se ele a tocasse.
— Não, Josephine. Eu não penso que foi você — Ele deu partida e manobrou o carro para o meio do tráfego.
— Eu desprezo meu pai, você sabe disso. Eu o culpo pela morte de minha mãe.
Ash assentiu.
— Sim, eu sei.
Josephine fechou os olhos, pensando em como desejava poder contar tudo a Ash, como desejava acreditar que ele confiava nela, mesmo sabendo que mentira.
— Ash, eu estava em Las Vegas, em 89, quando aqueles crimes foram cometidos. Estava lá, com Carol e Ted.
— Também sei disso.
Josephine inclinou-se para frente, angustiada.
— Você me disse para não confessar à polícia que fumo. E foram encontrados cigarros...
— Da mesma marca que os seus — interrompeu Ash. — E, antes que você pergunte, o batom também. Mesma marca e mesma tonalidade. Coral, cintilante.
Josephine massageou as têmporas com as pontas dos dedos.
— Oh, não — exclamou, sentindo-se subitamente nauseada. — Oh, não!
Ash desviou para o acostamento e parou o carro; segurou os ombros de Josephine e virou-a para si, obrigando-a a encará-lo.
— Há quanto tempo você fuma essa marca de cigarros, Josephine?
Ela não respondeu e Ash sacudiu-a gentilmente.
— Há quanto tempo, Josephine? — insistiu. — Diga!
Ela mordeu o lábio e seus olhos se marejaram de lágrimas.
— Não sei, direito... um mês... acho... Nunca gostei de cigarros mentolados. Parei de fumar, por algum tempo, mas um dia não resisti e voltei e... comprei desses... eu... não sei por quê — Josephine estava em prantos, com uma sensação de náusea cada vez mais forte, certa de que Ash acreditava que fosse ela a assassina. — Eu não matei aquelas pessoas, Ash. Eu juro...
— Eu sei que não — murmurou ele. — Acredito em você.
Josephine pestanejou e enxugou as lágrimas, antes de levantar o rosto para ele.
— Eu acredito em você — repetiu Ash.
— Por quê?
Ele se inclinou para frente e beijou-a demoradamente. Quando se afastou, Josephine não só viu paixão nos olhos escuros, mas também preocupação e solidariedade.
— Por isto.
Ele a soltou, recostou-se no banco e voltou para a estrada, dirigindo por alguns minutos em silêncio, antes de perguntar:
— O batom é novo, não é?
Josephine assentiu.
— Foi o que imaginei. Você nunca tinha comprado aquela cor, não é, Josephine?
Ela olhou para Ash, perplexa.
— Não... Na verdade, só usei esse batom uma ou duas vezes, no máximo. É uma cor que não tem nada a ver comigo. Nunca gostei de cores fortes, muito menos cintilantes. Não sei o que me deu, vi na prateleira e comprei, por mero impulso. Mas... como você sabia?
— Você comprou esse batom porque o assassino também comprou.
Josephine franziu a testa, estarrecida.
— Como assim?
— Escute, eu tenho uma teoria. Talvez seja uma idiotice, mas por favor me escute antes de dizer que estou errado. Faz sentido, se levarmos em conta essa sua... sensibilidade. Eu acho que você está mais ligada do que imagina à pessoa que comete os crimes.
— Mas, Ash, eu não tenho a menor ideia de quem...
— Eu sei — interrompeu ele, impaciente. — Mas tem alguma coisa a ver com seus poderes extrassensoriais. Você capta coisas dele... Ou dela, quem quer que seja... Mesmo sem ter consciência disso.
Josephine refletiu por um momento.
— Ash, veja bem o que está falando... Você nem acredita nesse tipo de coisa! — Ela balançou a cabeça, desamparada. — Nem eu mesma tenho certeza se acredito, ou não. Pelo menos, eu não acreditava, antes disto tudo começar a acontecer.
Ash lançou-lhe um rápido olhar de soslaio e voltou em seguida a atenção para a estrada. O asfalto era novo e as linhas amarelas passavam debaixo do carro como flechas brilhantes, na escuridão.
— Como não acredita? Você transformou isso em sua profissão!
— Mas eu nunca me considerei uma... paranormal. Eu pensava que fosse intuição. Achava que tinha uma sensibilidade aguçada, maior que a das outras pessoas, só isso. Nunca tive visões, nem sonhos, ou nada parecido, antes de começarem esses assassinatos,
— Talvez haja uma razão para isso — ponderou Ash. — Talvez você tenha alguma ligação com o assassino, da qual você não tenha consciência. Pode ser alguém que você conheça.
Josephine balançou a cabeça, incrédula.
— Como quem, por exemplo?
— Por exemplo, Ted — Ash olhou rapidamente para ela, curioso para observar-lhe a reação. — Você mesma disse que ele esteve em Las Vegas, na época dos assassinatos. Ele tem agido de forma estranha, ultimamente. Tão estranha, que sua irmã chegou a pensar que ele tivesse outra mulher.
Josephine fechou os olhos e tentou visualizar Ted matando uma pessoa; cortando a garganta de um homem, vestido de mulher, usando um batom coral cintilante...
Ela arregalou os olhos.
— Ash... Carol tem o mesmo batom! Estávamos juntas quando comprei o meu e ela resolveu comprar, também!
— Mais uma cartada positiva! Ted tem acesso ao batom. Ele fuma?
Josephine balançou a cabeça, reprimindo um suspiro de alívio.
— Não. Há vários anos ele não fuma. Parou logo depois que Brit nasceu, porque ela tinha bronquite.
— Lembra-se da marca de cigarros que ele fumava?
— Não. Para falar a verdade, nunca prestei atenção. — Ela se concentrou, tentando encontrar as respostas dentro de sua mente, mas não havia nada, ali. E sabia muito bem que existiam outros motivos para sentir-se ligada ao assassino, para sentir que o miserável lhe invadira a mente. Motivos bastante sérios, de vida ou morte. Sua própria irmã estava na lista das vítimas; bem como Ash. Isto, por si só, podia ser motivo suficiente para que ela captasse ondas de pensamento do assassino. Não tinha de ser, necessariamente, alguém que ela conhecesse.
Josephine não podia, entretanto, contar a Ash que sabia que Caroline estava na mira do criminoso, porque muito em breve ele recuperaria a memória. E se soubesse a verdade, que ela armara tudo aquilo apenas para proteger a irmã, que o enganara deliberadamente, que brincara com sua mente já perturbada, ele a odiaria. E Josephine não poderia suportar isto.
— Como foi a vida de Ted? — quis saber Ash. — Ele era muito ligado à família?
Josephine tentou livrar-se da angústia e do pânico que ameaçavam dominá-la e concentrar-se nas perguntas de Ash.
— A mãe e o padrasto moram em Nevada, até hoje. Ele não tem muito contato com eles, mas não que tenha havido alguma briga. É simplesmente por causa da distância. Nas poucas ocasiões em que os vi juntos, tive a impressão de que todos se davam muito bem.
— E o pai dele? Onde está? Ainda é vivo?
Josephine sacudiu os ombros.
— Não sei. Nunca ouvi Ted falar do pai — As imagens começaram a dançar no limite da consciência de Josephine... Imagens que ela já vira em sonho, em pesadelo... Sua irmã, Caroline, deitada no chão, com o rosto virado para baixo, a calça jeans e a camiseta com enormes manchas de sangue, os cabelos mechados sujos de sangue, poças de sangue no chão. E as mãos, aquelas mãos enluvadas, luvas de couro preto, aproximando-se do pescoço de Carol...
Ela baixou a cabeça e pressionou novamente as têmporas, respirando com dificuldade.
— Oh, Senhor, será que este inferno nunca vai terminar?!
— Josephine?
Ela olhou para Ash, com expressão aflita no rosto.
— Você tem razão, Ash. Existe algum tipo de ligação, mas não acho que tenha nada a ver com Ted. E seja lá o que for, está ficando mais forte. Não consigo mais me livrar desta impressão horrível... Mesmo com os olhos fechados, eu vejo a escuridão. Não é uma escuridão normal, de quando se fecha os olhos, é uma coisa pesada, opressiva, que se aproxima, sufoca... Oh, Ash, não aguento mais! Não aguento! — Ela enterrou o rosto nas mãos.
Ash afagou lhe o cabelo delicadamente.
— Não vamos mais falar sobre isso, hoje, está bem? Vamos...
Ele se calou e Josephine levantou o rosto para olhar para ele.
— O quê?
— Vamos fazer o que você quiser. Jantar no restaurante mais elegante da cidade, ir ao teatro, dançar... Você escolhe.
A preocupação de Ash com ela era genuína; a ternura com que falava era sincera. Ele pousou uma mão sobre a de Josephine, no assento do carro, e uma intensa sensação de calor e conforto a invadiu.
Ash não conseguia tirar os olhos de Josephine, deitada de costas, com a cabeça apoiada numa mochila. Ela usava uma calça jeans desbotada, grande demais para o seu tamanho, com a barra enrolada para cima e um par de botas pretas de exército, amarradas até os tornozelos; a camisa de flanela que ela vestira sobre a camiseta era velha e surrada, as cores já desbotadas; o cabelo loiro comprido estava solto, caindo-lhe sobre os ombros, debaixo do chapéu mais ridículo que Ash já vira, na vida; o chapéu de pescaria de Josephine, conforme ela o denominava, um chapéu velho, onde a palha já começava a desfiar, em várias partes; a luz esbranquiçada de uma lanterna iluminava o rosto dela, lançando reflexos nos cabelos dourados, e os olhos verdes não se desviavam da vara de pesca apoiada em um galho em forma de forquilha, que ela enterrara no chão.
Apesar de tudo, das roupas largas e velhas, do chapéu ridículo e tudo mais, Josephine era a mulher mais irresistível que Ash já conhecera. Podia não fazer sentido, mas ela era mais bonita para Ash do que qualquer modelo de capa de revista, ou estrela de cinema, ou garota de calendário.
E ela estava começando a relaxar. A tensão em seu rosto estava desaparecendo e a apreensão que lhe anuviara os olhos começava a se desvanecer. Ash seria capaz de passar a noite inteira ali sentado, sendo devorado pelos mosquitos, se isto ajudasse a tranquilizar o coração de Josephine.
Subitamente ela se retesou, num movimento quase imperceptível, o olhar fixo na água.
— Ash! — sussurrou.
— Hum?
— Você fisgou alguma coisa.
Ele olhou para a vara de pesca e viu a extremidade mover-se. Por sua vontade, continuaria a contemplar Josephine, mas inclinou-se para frente, segurou cautelosamente a vara e esperou. Quando ela estremeceu em suas mãos, ele puxou, sentiu a pressão e começou a enrolar a carretilha.
Josephine pôs-se de pé, equilibrando-se precariamente em uma perna, e puxou a linha, quando esta chegou à parte rasa.
— Oh, que lindo! — exclamou, agarrando um enorme peixe negro e escorregadio, e retirando o anzol.
Ash balançou a cabeça, sorridente. Além de tudo, ela não era fricoteira. Deixou o peixe deslizar para dentro de uma bacia, com um largo sorriso no rosto.
— Você gosta mesmo disto, não é, Josephine?
Ela entregou a Ash uma lata de iscas e voltou para o seu lugar, ao lado dele.
— Quem não gosta?
Ela esticou cuidadosamente a perna machucada e dobrou a outra, abraçando-a e apoiando o queixo no joelho, para contemplar a água tranquila e escura. Os grilos faziam um ruído ensurdecedor, pontilhado pelo coaxar ocasional de uma rã. A brisa suave da noite agitava os cabelos de Josephine.
Ash colocou uma isca no anzol e arremessou a linha para dentro do pequeno lago.
— Como você descobriu este lugar? — Ele equilibrou a vara na forquilha e sentou-se, mais perto de Josephine do que antes. Ao olhar para o rosto dela, contudo, notou que a expressão dela se modificara.
Josephine suspirou longamente.
— Meu pai costumava nos trazer aqui, quando éramos pequenas.
Ash permaneceu em silêncio, incentivando-a a continuar.
— Minha mãe preparava uma cesta de lanche para um batalhão e nós acendíamos uma fogueira e fazíamos churrasco—Josephine deu um risinho. — Carol nunca colocava a isca no anzol. Ela tinha horror a minhocas e nunca conseguia fisgar um peixe, porque insistia em ficar segurando a vara, e balançava-a tanto que afugentava todos eles. Mas quando papai fisgava um, sempre deixava Carol puxar. Mas ela também não tinha coragem de pegar no peixe.
Josephine riu, novamente, e Ash sentiu inveja da infância que nunca tivera. Depois sentiu melancolia e remorso, quando o sorriso de Josephine morreu-lhe nos lábios.
— Isso foi antes de eu saber quem meu pai realmente era. Para mim, ele era um herói, nessa época, o super-homem.
— Pelo menos, você tinha pai, Josephine — consolou Ash, afetuosamente. — Ninguém é perfeito.
Josephine não respondeu, limitando-se a desviar o olhar para o céu estrelado. Seus olhos brilharam e ela pestanejou.
— Josephine, alguma vez você tentou conversar com seu pai, ouvir o ponto-de-vista dele?
— Não tem justificativa para o que ele fez minha mãe passar. Por que perder tempo, ouvindo explicações? — Ela balançou a cabeça. — Não, Ash, não tenho nada para falar com meu pai.
— Mas se você...
— Nem para falar sobre ele — interrompeu Josephine. — Ele me magoou muito.
— Se você ainda se sente assim, é porque gosta de seu pai.
Se não gostasse, não sofreria.
Josephine refletiu por um longo momento, antes de olhar para Ash, com ar brincalhão.
— Parece que falou a voz da experiência.
Ash mordiscou o lábio. Sabia que estava com a razão, no caso de Josephine. No seu caso, não; era completamente diferente.
— Você era muito ligado a seu pai, Ash?
— Não conheci meu pai — Ele se levantou. — Sabe de uma coisa? A ideia da fogueira até que não é má.
Ele olhou ao redor e começou a recolher gravetos e folhas secas.
— E sua mãe? — insistiu Josephine.
Ash abaixou-se para amontoar os gravetos.
— Que pena que não nos lembramos de trazer alguns espetinhos.
Ele sentiu o olhar de Josephine sobre si, durante um longo período de tempo. Finalmente, ela suspirou.
— É... é uma pena.
Ash olhou para ela e viu a consciência nos olhos verdes. Sabia que Josephine estava sentindo as mesmas emoções que ele, naquele momento, vivenciando seu tormento, junto com ele. E, inexplicavelmente, ele não se sentia invadido; parecia mais uma telepatia, uma sintonia mental, espiritual, quase. Quando os olhares de ambos se encontraram, as garras do horror do passado afrouxaram na mente de Ash e uma sensação de luz e calor as substituiu.
Josephine levantou-se e aproximou-se de Ash, parando diante dele. Ele interrompeu a tarefa de preparar a fogueira e pôs-se de pé. Josephine espalmou as mãos em seu peito, envolveu lhe o pescoço e ficou na ponta dos pés para beijar-lhe os lábios. Ele a enlaçou pela cintura e apertou-a contra si, antes de abrir a boca sobre a dela e devorar lhe os lábios num beijo profundo, lento, saboreando-a por inteiro, sentindo lhe o perfume, a doçura.
Que sentimento era aquele, que o invadia cada vez que estava com Josephine? Não era somente atração, embora ele a desejasse mais a cada vez que olhava para ela. Era mais que isto, era algo maior, mais profundo, mais completo; parecia escoar por todos os poros de sua pele e ao mesmo tempo envolvê-lo, com uma pressão surpreendente. E envolvia Josephine, também, refletiu Ash, como se fosse uma força determinada a fundi-los em um único ser.
Ela enterrou os dedos nos cabelos de Ash e colou o corpo ao dele. Ele levantou o rosto e fitou intensamente os olhos verdes brilhantes, sentindo-se envolver pela brisa fresca e úmida, impregnada dos aromas do pântano. Josephine pestanejou e seus olhos expressavam puro fascínio.
— Eu tenho tanto medo... — murmurou, com voz rouca.
— De quê, Josephine? — Ash enfiou as mãos sob a camisa de flanela e acariciou as costas de Josephine. — De me desejar?
— De... precisar tanto de você.
Ele fechou os olhos, diante do impacto das palavras dela.
— Eu sei — sussurrou.
— É... tão forte! E está ficando cada vez pior... e eu não consigo... — A voz de Josephine embargou.
— Não consegue fazer nada para impedir — Ash terminou a frase por ela. — Eu também não. E não tenho certeza se quero impedir.
Ele tirou o chapéu da cabeça de Josephine e jogou-o para um lado. Em seguida, beijou-lhe a testa, o nariz, a face, o queixo. Ela inclinou a cabeça para trás e os lábios de Ash deslizaram para seu pescoço.
— Foge ao meu controle — continuou ela, baixinho, a voz tão suave quanto a brisa que ondulava a superfície do lago.
— Então, deixe, Josephine...
Ash trouxe as mãos para frente e puxou a camisa macia por sobre os ombros dela, deixando-a cair ao chão. Em seguida tirou-lhe a camiseta pelo pescoço, atirando-a para cima do chapéu. Puxou vagarosamente as alças do sutiã para baixo, até expor os seios perfeitos, deleitando-se primeiro em contemplá-los, antes de tocá-los e finalmente beijá-los vorazmente, arrancando gemidos dos lábios de Josephine, que arqueou o corpo para trás, numa súplica silenciosa. Ash abriu o zíper da calça jeans de Josephine e baixou-a, segurando-lhe os quadris e pressionando-os contra si.
Num gesto impulsivo, quase involuntário, Josephine ajoelhou-se lentamente e abriu o zíper da bermuda de Ash, libertando o músculo rígido e ereto; segurando-o com ambas as mãos, beijou-o delicadamente, estarrecida consigo mesma. Nunca imaginara que teria, em sua vida inteira, a ousadia de fazer coisa semelhante; mas era como se agisse como um autômato, como se seu cérebro tivesse perdido o comando sobre suas ações. Entreabriu os lábios e tomou-o dentro de sua boca.
Ash enterrou os dedos nos cabelos de Josephine, vibrando, trêmulo. Ela levou as mãos à parte de trás do corpo de Ash e pressionou-o contra si, aprofundando a posse exótica, incrédula com as sensações e a emoção que aquela experiência proporcionava.
Ash sentia os movimentos da língua de Josephine, o suave roçar de seus dentes, a forte pressão de seus lábios. Finalmente, incapaz de continuar a resistir, deixou escapar um longo gemido. Segurou-a pelos ombros e suspendeu-a, consciente da fragilidade de Josephine, tanto física quanto emocional. Amparou-a para que ela não se apoiasse na perna machucada e beijou-a freneticamente enquanto ela lhe desabotoava a camisa e acabava de despi-lo.
Depois de se livrarem de todas as roupas, abraçaram-se outra vez, acariciando-se, explorando-se, deliciando-se mutuamente com o contato da pele nua.
Por fim, Ash segurou Josephine nos braços e abaixou-se devagar, até deitar-se na relva e trazê-la para si. O interior do corpo de Josephine era como uma mão quente, ao mesmo tempo firme e macia, que agarrava, apertava. Ash segurou-lhe os quadris e moveu-os em cima de si, enquanto Josephine lhe devorava os lábios, nutrindo-se deles como se estivesse faminta.
Os seios dela roçavam no peito de Ash, enlouquecendo-o, e ele a abraçou com força, virando-se e rolando sobre ela, invertendo as posições. Josephine entrelaçou as pernas ao redor do corpo de Ash, apertando-o, pressionando-o, retorcendo-se conforme ele a penetrava repetidamente.
Ash sentia o corpo de Josephine contrair-se, vibrar, estremecer, sentia lhe a respiração entrecortada, o coração batendo num ritmo alucinante. Seus próprios músculos estavam retesados, a tensão crescendo a cada instante, a cada gemido que ela deixava escapar dentro de sua boca, a cada golfada de ar que quase a sufocava de paixão e emoção.
A língua de Ash se movia no interior da boca de Josephine no mesmo ritmo de seu corpo, até que ela gritou, soluçando o nome dele. As convulsões de Josephine levaram Ash ao êxtase final e ele a penetrou profundamente, estremecendo com a força da liberação total de seu desejo.
Depois de um momento mágico e esplendoroso, que enquanto durou pareceu infinito, Ash fechou os olhos e relaxou sobre Josephine, apoiando a maior parte de seu peso nos joelhos, para não asfixiá-la. As mãos dela acariciavam lhe as costas e os lábios se moviam em seu rosto e seu pescoço. Ele sorriu e levantou o rosto para fitá-la, com olhos brilhantes.
— Nunca um homem me fez sentir assim Ash, como você faz.
O ego de Ash subiu como um foguete até as estrelas que cintilavam no céu escuro. Josephine, de fato, tinha este tipo de efeito sobre ele.
— Eu estava pensando a mesma coisa de você.
— Bem, não é um grande elogio, partindo de um homem sem memória — Ela riu e Ash imitou-a, porém o sorriso de Josephine se desvaneceu segundos depois. — Mas não será assim por muito tempo mais, não é mesmo?
Ash franziu a testa, imediatamente alerta.
— Como assim? — indagou, cauteloso.
— Sua memória. Está começando a voltar — Ela desviou os olhos.
— Por que pensa assim?
— O pesadelo. Você se lembra de alguma coisa sobre sua infância.
Ele umedeceu os lábios. Josephine era perspicaz. Ash não contara com a possibilidade de ela analisá-lo com tanta eficácia.
— Mais ou menos.
Josephine passou uma mão pelos cabelos dele.
— Foi terrível, não foi?
Ash assentiu, relutante em falar sobre o inferno que fora o seu passado.
— E seu apartamento — continuou Josephine, percebendo o conflito que se travava no íntimo de Ash. — Você sabia onde estava tudo. Em nenhum momento pareceu ficar desorientado.
— Ah... — Ele ficou em silêncio por um momento, amaldiçoando a si mesmo. — Acho que foi uma coisa automática.
Josephine sorriu, porém seus olhos revelavam tristeza.
— Você está melhorando e não se dá conta disso. Logo se lembrará de tudo.
— Você não me parece muito feliz com a ideia.
— Eu quero que você melhore, Ash. Não tenha a menor dúvida quanto a isso.
— Então, o que é? Josephine desviou o olhar.
— Deixe para lá. Não tem importância.
— Eu acho que tem importância.
— Não vamos falar sobre isso, Ash.
Ele suspirou e rolou para o lado de Josephine, esticando o braço para pegar suas roupas. Por um segundo, pensara que ela fosse jogar limpo, contar-lhe tudo, explicar por que mentira. Mas ela o decepcionara.
Beverly Issacs caminhava de um lado para outro, no hall, diante da porta do apartamento, só faltando roer as unhas até a metade, quando Ash e Josephine saíram do elevador. A sargento olhou para Josephine como se esta fosse uma lata de lixo fora do lugar, depois deteve-se em Ash.
— Estou à sua procura há horas — declarou ela, em tom de acusação.
O braço de Ash deslizou dos ombros de Josephine, que desejaria que ele tivesse continuado a abraçá-la. Não gostava daquela mulher, sentia por ela uma antipatia instintiva, que fazia com que os pelos em sua nuca se arrepiassem.
— Por quê? — perguntou Ash, apreensivo, dando um passo à frente.
As feições pálidas de Bev não conseguiam disfarçar a tensão.
— Encontramos mais um.
O sangue de Josephine gelou, nas veias. Seu corpo inteiro ficou gelado. Mais um. Mais uma vítima da Fera. Ela suspirou, baixinho. Quando aquilo chegaria ao fim?
— Quando? — Ash passou por Beverly para destrancar a porta. Abriu-a e afastou-se para dar passagem ao sargento.
— Três horas atrás, numa casa de fundos, em Central Square — informou ela, marchando para dentro do apartamento.
Ash e Josephine se entreolharam. Josephine levantou o queixo e forçou-se a entrar atrás da policial. Preferiria não estar ali, não ouvir aquela conversa, mas sabia que precisava ficar. Pelo menos, desta vez, ninguém poderia suspeitar dela; passara o dia inteiro com Ash, e a noite também. Nem por um segundo se afastara do lado dele.
— Vítima número cinco — declarou Ash, fechando a porta atrás de Josephine e convidando Beverly, que estava parada como uma sentinela, no hall, a descer o degrau para a sala.
— Dois — corrigiu a sargento.
Ash olhou para ela, com uma ruga na testa.
— Vítima número dois — Ela repetiu. — Estava morto há várias semanas. É um homem idoso, vivia sozinho e não se dava com os vizinhos. Morava nos fundos de uma casa desabitada e provavelmente não teria sido encontrado se um vendedor de assinaturas de uma revista não tivesse sentido o cheiro.
Os dedos de Josephine apertaram a alça da sacola plástica que continha meia dúzia de peixes embrulhados em jornal. Esquecera-se que ainda a estava segurando. Sem dirigir uma palavra a Beverly, que lhe lançou um olhar de menosprezo, foi para a cozinha, despejou os peixes dentro da pia e abriu a torneira. Enquanto lavava os peixes podia ouvir as vozes dos dois, conversando, na sala.
— E então, por que estava tão aflita para me encontrar? — quis saber Ash.
— Eu não estava, até procurar por você e não encontrá-lo em parte alguma. Comecei a pensar que talvez nosso amigo tivesse decidido fazer de você o entretenimento da noite.
— Não acha que está exagerando, Bev?
— Não, não acho — respondeu ela, com determinação. — São quase duas horas da madrugada, Ash! O que queria que eu pensasse? E depois, tem essa sua esposa, que gosta de visitar as cenas dos crimes. Acrescente a isto todas as informações que você conhece a respeito do caso... você sabe, aquelas que você não quer contar à polícia... se pensar bem, não é nem um pouco absurdo.
— Você sabe de tudo que eu sei — afirmou Ash, embora até mesmo Josephine reconhecesse, pelo tom de voz levemente presunçoso, que ele estava mentindo.
Josephine esfregou sal nos peixes, embrulhou-os em filme plástico e guardou-os na geladeira, antes de lavar as mãos.
— Ah, é? Então, por que será que um tal de Harris, do jornal, foi me entrevistar a respeito de uma investigação de rotina sobre um roubo, somente para recolher tocos de cigarro de meu cinzeiro e guardá-las no bolso, com ares de Columbo? Pode me explicar, Ashville Coye?
Josephine visualizou o gesto de Ash, sacudindo os ombros, com a expressão mais inocente do mundo.
— Não tenho a menor ideia. Dependência de nicotina, será?
Beverly retorceu os lábios, numa careta irônica.
— Quer dizer que se recusa a falar?
— Bev, quer fazer o favor de relaxar? Se eu souber de alguma informação importante você será a primeira a saber. Acha que quero que esse crápula continue à solta?
— Se eu descobrir que você está escondendo alguma coisa...
— Não estou, Bev. Você me conhece... bem demais, para saber que eu não faria isso.
— Ora, seu... cabeça-dura de uma figa! — explodiu Beverly, fuzilando Josephine com os olhos, no momento em que esta voltava para a sala. Em seguida, marchou para a porta, furiosa. — Droga, eu detesto os homens! Detesto!
Ela saiu, batendo a porta com estrondo. Josephine engoliu em seco e olhou para Ash, que permanecia imperturbável.
— Tudo bem com você? — indagou ele, bem humorado.
Josephine assentiu.
— Beverly Issacs também é suspeita? — perguntou ela, surpresa. — Só porque detesta os homens?
Josephine sabia que ele estava sendo evasivo.
— O que vocês pretendem fazer com os tocos de cigarro? — insistiu.
Ash suspirou, resignado.
— Rad vai mandar analisar o DNA de Bev... só para desencargo de consciência. Ele descobriu que Bev trabalhava na polícia de Las Vegas, quando aconteceram aqueles crimes. Eu, pessoalmente, não acredito que ela esteja envolvida, mas...
— Você pegou alguma coisa minha, também, para mandar analisar?
Ash não respondeu. Nem precisava. A resposta estava nos olhos escuros que a fitavam.
— Você realmente pensa que fui eu — disse ela, com amargura.
— Josephine, você sabe que não é verdade. Minha esperança é que a análise inocente você.
— Esperança. Não, certeza.
Ash abriu a boca para falar, porém ela ergueu uma mão para silenciá-lo.
— Não, Ash, não diga nada. Já existem mentiras demais entre nós.
— Eu concordo, Josephine — murmurou ele, sério, fitando-a intensamente. — E acho que está na hora de parar de mentir.
Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros.
— Josephine... fale comigo.
Ela sentiu os olhos arderem, com as lágrimas que tentava reprimir. Falar significaria perder Ash e talvez, até, empurrá-lo para a morte.
— Eu não posso — sussurrou, num fio de voz. Desvencilhou-se de Ash e atravessou a sala, em direção ao lavabo. Ele nada fez para detê-la.
Josephine acordou ao meio-dia, com o cheiro de fritura e o telefone tocando. Sentou-se no sofá, sonolenta, invadida por uma dolorosa sensação de vazio, causada, ela sabia, pelo fato de ter dormido sozinha. Não se dera conta de como era reconfortante passar a noite toda nos braços de Ash até passar uma noite sem ele.
Não conseguira, porém dormir com Ash, sabendo que ele suspeitava que ela fosse capaz de algo tão hediondo. Fez com que refletisse quão pouco se conheciam, de fato, levando-a a sentir-se fácil e oferecida. Por isto, garantira a ele que teria mais conforto no sofá, onde não haveria o risco dele rolar sobre sua perna, durante o sono, e machucá-la ainda mais. Ash concordara, plenamente consciente de que não passava de uma desculpa.
Ele enfiou a cabeça no vão da porta da cozinha, interrompendo o devaneio de Josephine.
— Oh, está acordada!
Pelos ruídos que vinham da cozinha, Ash devia estar em plena atividade, lá dentro.
— O telefone não tocou? — perguntou ela, ainda estonteada.
— Tocou uma vez e parou — respondeu Ash. — Acho que...
Neste momento, o telefone voltou a tocar.
— Pode atender para mim, Josephine? — pediu ele. — Estou com as mãos ocupadas.
Josephine esticou o braço e pegou no receptor. Houve um longo silêncio depois que ela disse "alô" e ela repetiu duas vezes, antes de obter uma resposta.
— Desculpe, sra. Coye... Chego a achar estranho telefonar para Ash e ouvir uma voz de mulher. Como vai?
Ela reconheceu o timbre de voz de Radley.
— Estou bem — disse, sentindo-se pouco à vontade, sabendo que aquele homem compartilhava as dúvidas que Ash tinha a respeito dela, ou talvez até estivesse convencido de sua culpa. — E o senhor?
— Vamos indo.
— Vou chamar Ash. Um momento...
— Espere! — apressou-se ele a dizer. — Eu gostaria de lhe falar por um instante, se me permitir.
Josephine ficou imediatamente tensa. Engoliu em seco, com dificuldade, preparando-se para ouvir uma acusação direta.
— P... Pois não...
— Bem... é que... estou a par de seus... poderes.
Josephine sentiu-se gelar por dentro.
— Ash lhe contou?
— Não. Fiquei sabendo por outras fontes. A questão é a seguinte: quero lhe pedir que me avise se sentir alguma coisa... qualquer coisa... sobre este caso.
— Ah... sim.
— Sei que vai contar a Ash sobre qualquer coisa que aconteça, ou que venha, digamos, a pressentir. Mas, como já deve saber, receamos que Ash seja um dos alvos do assassino. Nem sempre ele sabe o que é melhor para ele, sra. Coye, e mesmo quando sabe, nem sempre quer agir como deve. Ele é bem capaz de se arriscar para dar prosseguimento à matéria, principalmente neste caso. Portanto, se souber de alguma coisa, por mínima que seja, é melhor me avisar primeiro.
Josephine lançou um rápido olhar na direção da cozinha.
— Acha mesmo que Ash está correndo perigo? — perguntou, em voz baixa.
— Sim. Trabalho com Ash há três anos, e vou lhe dizer uma coisa com toda a sinceridade, sra. Coye... gosto desse garoto. Não quero que nada lhe aconteça.
— Nem eu.
— Posso contar com a senhora? Promete manter-me informado?
Josephine hesitou e deixou escapar um suspiro. Quanto mais gente protegesse Ash, melhor.
— Sim — murmurou, finalmente.
— Obrigado — respondeu Radley, com alívio na voz. — Posso falar com ele, agora?
— Um segundo, só.
Josephine colocou o receptor na mesinha de canto, afastou o lençol e a colcha que Ash lhe emprestara para cobrir-se e caminhou, descalça, até a cozinha, mancando menos que no dia anterior. Ash estava tirando o ultimo peixe da frigideira e arrumando-o na travessa. Ela viu um outro prato, com batatas cozidas, e um jarro de suco de frutas.
— Nossa, que banquete! — exclamou, surpresa.
— Proposta de paz — murmurou ele, com ternura. — Me perdoa?
Perdoá-lo? Era ela quem o estava enganando, dizendo mentiras, escondendo-lhe coisas. Mas sorriu, aliviada. Detestava aquele clima tenso entre ambos, queria que terminasse logo, mesmo sabendo que não seria possível. Não, inteiramente, pelo menos. Não, enquanto não lhe contasse toda a verdade.
— Seu chefe está no telefone.
— Senti sua falta, a noite passada, Josephine — Ash se aproximou e passou uma mão no cabelo de Josephine.
Ela baixou os olhos.
— Radley está esperando, Ash — Ela levantou novamente o rosto e viu o olhar ansioso de Ash. — Eu também senti sua falta.
Ele assentiu, satisfeito, e foi para a sala, falando por sobre o ombro:
— Não comece sem mim!
— Posso saber onde o senhor se encontrava, ontem à noite?
Ash afastou o receptor e contemplou-o, com uma ruga na testa, antes de levá-lo de volta ao ouvido.
— Um bom dia para você também, Rad!
— Não vou mencionar os cinco telefonemas de sua amiga policial, nem as incontáveis mensagens que deixei nessa sua secretária eletrônica inútil, nem os cabelos brancos que ganhei, imaginando se a Fera finalmente havia posto as mãos em cima de você!
— Bem, eu tenho a impressão que você acabou de mencionar.
— Escute uma coisa, Coye. Daqui por diante, nunca deixe de me avisar onde está, a que horas vai voltar, e o que está fazendo!
— E se eu esquecer?
— Estará fora do caso, de uma vez por todas.
Ash praguejou em alto e bom som, ao telefone.
— Que droga, Ash, quero tanto quanto você, pegar esse furo, mas não vale a pena perder meu melhor repórter! Mantenha-me informado. E isto é uma ordem! Compreendeu, Ash Coye?
— Sim — respondeu Ash, contrafeito.
— Ótimo. Assim, na próxima vez em que eu não conseguir encontrar você, concluirei o pior e avisarei a polícia.
— Certo.
— Muito bem. E então, conseguiu alguma coisa com o tal doutor?
— Na opinião dele, o assassino é um homem. Disse que assassinas psicopatas são raras.
— Que bobagem!
— Ele insistiu neste ponto.
— E o que mais?
— Ele acha que se trata de um homem que sofreu abusos na infância, provavelmente de um homem mais velho em quem confiava. Pode ser um travesti, mas também pode não ser. As marcas de batom nos cigarros não significam nada. Podem ser apenas um meio para despistar a polícia.
Radley praguejou baixinho.
— Olhe, acho que é mais fácil você descobrir, alguma coisa com a bruxinha do que com esse charlatão.
Ash olhou na direção da cozinha, ao ouvir o ruído de louça e talheres. Josephine devia estar arrumando a mesa.
— É bem possível.
— Ela falou mais alguma coisa?
— Não, mas tenho a impressão de que ela está chegando perto. Está apavorada.
Radley fez uma pausa.
— Acha que ela já pode saber quem é e não está dizendo?
— Por que ela esconderia de mim?
— E existe explicação para o que as mulheres fazem?! Ah, deixe para lá!
— Ela me diria, se soubesse.
— Assim como só tem dito a verdade para você, até hoje, não é, Ash?
— Vá para o inferno, Rad!
— Tudo bem, tudo bem — Radley suspirou. — Só estou tentando cobrir todas as bases.
— Ah, outra coisa — lembrou Ash. — Não mande mais Harris xeretar por aí — O sujeito é tão sutil quanto um rinoceronte.
— Bev percebeu alguma coisa?
— Simplesmente, viu-o recolher os tocos de cigarro do cinzeiro e guardá-los no bolso! É bom você ir pensando numa explicação plausível antes de encontrar-se com ela. Bom... mais alguma coisa? Meu almoço está esfriando.
— Pode ir. Mas não se esqueça...
— Já sei, Rad, Vou mandar um fax com um roteiro completo de meus movimentos, toda vez que sair do apartamento. Quer que seja autenticado? — Ele desligou enquanto Radley exclamava uma série de impropérios.
Quando Ash voltou para a cozinha, Josephine estava coando café. Ele ficou parado, na porta, porque a visão daquela mulher era como um soco no peito; por um segundo, simplesmente a contemplou. Ela usava uma camisola, dela própria, nem um pouco glamourosa, apenas uma camisola branca, lisa, com mangas curtas bufantes e uma barra recortada em semicírculos que mal lhe cobria os tornozelos. Os cabelos estavam soltos, caindo-lhe sobre os ombros como uma suave cascata de mechas douradas.
Ash gostava de olhar para Josephine logo depois que ela acordava, com os olhos ainda levemente inchados, o cabelo despenteado, os pés descalços no chão da cozinha, coando café para ele. Gostaria de poder ficar ali eternamente, contemplando-a.
Josephine colocou o bule na mesa e sentou-se.
— Como está o chefe?
Ash arqueou as sobrancelhas e deixou escapar um suspiro, enquanto se sentava do lado oposto da mesa e se servia de peixe.
— Preocupado comigo, por causa do assassino.
— Beverly Issacs, também.
Os dois se entreolharam por sobre a mesa.
— Ela só está preocupada que eu deixe de contar alguma coisa que eu esteja sabendo.
— Não, ela está preocupada com você. Acho que... ela gosta de você.
Ela estava com ciúmes; os olhos verdes estavam transparentes. Ash teria ficado radiante, se não soubesse de sua desconfiança dos homens em geral, graças ao pai.
— Josephine, não estou interessado em Bev.
Josephine serviu-se, também.
— Você me disse, certa vez, que nem todos os homens traem.
— É verdade..
— Mas... e se nós não fôssemos casados? Neste caso, acha que também não estaria interessado?
— Se não fôssemos casados, a única coisa em que eu estaria interessado seria em fazer com que ficássemos casados!
Ash pestanejou por um momento, deixando o garfo cair sobre o prato. De onde fora tirar aquele absurdo? Balançou a cabeça e pegou novamente o garfo, abocanhando um avantajado pedaço de peixe para evitar que outras bobagens saíssem de sua boca.
A campainha da porta tocou.
— Mas será possível? — protestou ele. — Parece que o mundo inteiro está conspirando, hoje, para que eu não almoce!
Ele olhou para Josephine, porém ela não disse nada; fitava-o com os olhos verdes enormes, como se ele tivesse acabado de informá-la que um disco voador havia aterrissado no telhado.
Ash levantou-se e abriu a porta. Ted Dryer estava parado no hall, parecendo um farrapo humano; tinha os ombros inclinados para frente, como se carregasse um imenso peso nas costas; a camisa estava amarrotada, a barba crescida, e duas olheiras enormes e escuras afundavam-lhe os olhos.
— Preciso falar com Josephine — disse ele sem preâmbulos, sem um cumprimento.
Ash afastou-se e gesticulou para que ele entrasse.
— Ela está na cozinha. Almoça conosco?
Ted não respondeu, simplesmente entrou, sem tirar as mãos dos bolsos. Ash seguiu-o, a tempo de vê-lo puxar uma cadeira, virá-la e sentar-se ao contrário, apoiando os braços no encosto. Ash voltou para o seu lugar e continuou a comer, embora seu apetite estivesse desaparecendo rapidamente.
— Você falou com Carol? — perguntou ele, com pouca ansiedade na voz para quem parecia tão desesperado.
— Claro que sim. Você, não? — Josephine terminou de comer a porção mínima de que se servira e levantou-se para colocar o prato dentro da pia. Pegou uma xícara, encheu-a de café e ofereceu-a a Ted.
— Não — respondeu ele, sem expressão.
— Por que não telefona você?
Ele segurou a xícara com as duas mãos e levou-a aos lábios.
— Eu telefonei. Ela se recusa a falar comigo.
Josephine olhou para o cunhado e Ash percebeu que ela sentia pena dele, mesmo compartilhando as dúvidas da irmã.
— Ela está abalada, Ted. Dê-lhe um tempo.
Ted assentiu e tomou um longo gole de café.
— Está tudo bem com ela?
— Sim. Com as meninas, também. Elas não sabem de nada, Carol não contou. Pensam que estão de férias, passando algumas semanas na casa do avô.
Ted olhou para Josephine e sorriu, o sorriso mais triste que Ash já vira.
— Obrigado, Josephine — murmurou ele, olhando em seguida para Ash. — Está terminando?
Ash balançou a cabeça e empurrou o prato, refletindo que estava destinado a não almoçar, naquele dia.
— Bem, eu sempre tomo banho depois de não comer — declarou, levantando-se. — Fiquem à vontade.
Ele foi até o banheiro e abriu o chuveiro, porém voltou pé ante pé para a sala, onde podia ouvi-los. Não que não confiasse em Josephine; confiava, apesar de tudo. Era Ted que o preocupava.
— Vocês voltaram tarde, ontem — observou ele.
— Fomos até o lago.
— Ah... então, este peixe é de lá.
— Sim. Eu gostaria de voltar, hoje, mas...
— Diga-me a verdade, Josephine.
Houve um silêncio e Ash esperou, tenso.
— Não sei do que está falando...
— Vamos, Josephine... Esse casamento com Coye... é um embuste, não é? Não existe nenhum registro em Las Vegas, nem aqui, nem em qualquer outro lugar.
Outra vez, o silêncio.
— Como você percebeu? — perguntou Josephine, finalmente.
— Eu investiguei, só isso. Desde o princípio, essa história me pareceu estranha. Ele sabe, ou você está se aproveitando da amnésia do pobre infeliz?
Ash ouviu Josephine suspirar.
— Ele não sabe. E você não vai dizer nada.
— E tudo por causa desse negócio da Fera, não é? Que coisa, Josephine, você está obcecada com esses crimes, desde que foi publicada a primeira notícia no jornal! O que está acontecendo com você?
— Ted, calma, vou explicar. Prometo. Mas não agora. Não posso, ainda.
— Você sabe quem é o assassino, não sabe?
— Não, ainda não. Mas... acho que vou acabar sabendo. E não vai demorar muito. Quando eu souber, este pesadelo vai terminar.
— Ou vai começar? Josephine, se você continuar metendo o nariz em assuntos que não são da sua conta, você vai acabar sendo morta.
Ash retesou-se. O que era aquilo na voz de Ted? Ameaça? Ou preocupação? Fosse o que fosse, bastava. Ele tirou a camisa, jogou-a sobre o sofá e marchou para dentro da cozinha. Dois pares de olhos viraram-se para ele, num misto de surpresa e culpa. Josephine parecia um animal acuado.
— Desculpem por interromper. Esqueci meu café.
Ted lançou-lhe um olhar crítico.
— Você sempre toma café debaixo do chuveiro?
— É difícil superar velhos hábitos.
— É... — Ted lançou um olhar de advertência para Josephine e pôs-se de pé, limitando-se a inclinar a cabeça para Ash, antes de sair.
— Ele parece bastante abalado.
— Como Radley Ketchum, está preocupado.
— Com você?
Josephine assentiu.
— Ele sempre teve uma atitude paternal para comigo, desde que se casou com Carol. Não sei por quê — Ela suspirou e começou a tirar a mesa. — Eu sempre achei enternecedor, pelo menos até ele fazer com Carol o que está fazendo.
— Ted caiu do pedestal, então? Assim como seu pai?
Josephine pegou a travessa com o peixe que havia sobrado.
— Você devia ter um gato.
Ash, entretanto, notara a tensão no rosto de Josephine e a irritação em seu olhar. Por um segundo ocorreu-lhe que Ted também podia estar correndo perigo com Josephine, assim como a recíproca era verdadeira.
A sensação esmagava Josephine, sufocando-a. Perigo. Deixara de ser uma simples impressão para transformar-se numa mão enorme e asfixiante, fechando-se sobre ela. Agarrava-a, pressionava-a, até que ela teve a sensação de que seu cérebro estava num torno e que alguém apertava os parafusos. Ela sabia que a ameaça se aproximava cada vez mais e que o alvo era Ash.
A Fera estava por perto, à espreita.
Ash passou quase uma hora no telefone, falando com todos os envolvidos nos crimes de Las Vegas. Não testemunhas, pois nunca alguém vira a Fera atacar, mas pessoas que haviam conhecido as vítimas, ou que haviam tido a infelicidade de descobrir um dos cadáveres. Ash queria obter todas as informações possíveis, encaixá-las, encontrar uma pista para a identidade do assassino. Pelo que Josephine pôde ouvir das conversas, todavia, ele não estava alcançando êxito.
Finalmente ele desligou o telefone e pôs-se a contemplar as folhas de anotações que tinha nas mãos, como se esperasse que uma das linhas pulasse do papel e o agarrasse.
— Precisamos sair daqui.
Ash levantou o rosto e franziu a testa, aturdido.
— Por quê?
— Porque sim. Ash, alguma coisa vai acontecer, eu sinto. Vamos embora.
Ele atravessou a sala, abraçou Josephine e apertou-a contra si.
— Relaxe, Josephine... Nada vai acontecer conosco, eu prometo.
— Eu devia ter trazido a pistola! Oh, por que fui esquecer?! Onde estou com a cabeça? — Ela abraçou Ash, com força, — Por favor, Ash, vamos sair!
— Para onde, Josephine?
— Para qualquer lugar. Para o lago. Estava tudo bem, lá. Não senti nada.
Ash afastou-se e olhou para Josephine, antes de dar um passo à frente para pegar no telefone.
— Tudo bem — concordou ele, resignado. — Vamos fazer um piquenique no lago.
Josephine suspirou, aliviada, e segurou a mão dele, puxando-o para a porta.
— Espere, vamos preparar uns sanduíches...
— Compraremos no caminho — Ela puxou-o, porém ele não saiu do lugar.
— Preciso avisar Rad, se não perco o emprego.
— Rápido — insistiu Josephine, largando a mão dele.
O telefonema não demorou mais que um minuto, mas pareceu a Josephine que levaram uma eternidade para chegar até o carro. Durante todo o percurso para sair da cidade ela não tirava os olhos dos carros que os rodeavam, dos pedestres, até dos guardas de trânsito.
Foi somente quando a cidade ficou para trás e eles saíram da via expressa para serpentear por estradinhas estreitas, sombreadas por árvores frondosas, que Josephine começou a relaxar. Ash sorriu e apertou-lhe a mão.
— Está melhor?
— Sim — Ela recostou a cabeça no banco e fechou os olhos.
— Gostaria de não precisar voltar, nunca mais.
— É por aqui? — perguntou Ash, saindo da sinuosa estrada de asfalto para um trecho de terra.
Dirigiu por mais alguns metros e desembocou num matagal de madressilvas. Ele parou, desligou o motor e ambos saíram do carro. Ash foi ao encontro de Josephine, passou um braço sobre os ombros dela e os dois começaram a percorrer a trilha quase invisível entre as árvores. Alguns metros adiante emergiram no tapete de relva que descia numa ribanceira suave até a praia do Lago Oshiaki.
— Esquecemos de trazer as varas de pesca! — exclamou Ash.
— O que vamos fazer para passar o tempo?
Josephine inclinou a cabeça para trás e inspirou o ar impregnado da fragrância dos pinheiros, das flores silvestres, da água do lago.
— Podíamos nadar — sugeriu.
— Não era bem o que eu tinha em mente.
— Eu sei — Josephine sorriu, relaxada, aliviada por ver-se livre da sensação opressiva de ameaça. — Mas podíamos nadar, assim mesmo.
— Não trouxemos... trajes de banho — Ash proferiu a segunda parte da frase com um sorriso malicioso. — Mas acho que isso não vai ser problema, não é mesmo?
Josephine arqueou as sobrancelhas e olhou para o lago.
— E se tiver piranhas?
— Tarde demais para voltar atrás, Josephine Belinda! — Ele pegou Josephine no colo e começou a correr na direção do lago, como se fosse jogá-la na água, com roupa e tudo. Josephine começou a rir e a debater-se, e os dois acabaram deitados no chão, entrelaçados e ofegantes. Josephine estava em cima de Ash e ele segurou-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a intensamente. Em seguida, rolou sobre ela e pôs-se de pé, estendendo uma mão para ajudá-la a levantar-se.
— Vamos fazer alguma coisa — disse ele. — Antes que eu perca a cabeça.
— Eu gosto quando você perde a cabeça.
Ash puxou-a para si e afagou lhe o queixo.
— Estamos em plena luz do dia, princesa, e eu jamais me perdoaria se aparecesse algum caçador ou outra pessoa, para nos espionar — Ele levantou-lhe o queixo e sorriu. — Ninguém pode ver minha mulherzinha nua, só eu. Entendeu?
Josephine arqueou as sobrancelhas.
— Oh, então terei de começar a vestir alguma coisa, para ir ao supermercado!
Ash riu e Josephine enlaçou-o pela cintura.
— Que tal andar um pouco?
— Não vai forçar sua perna?
— Uma caminhada curta não vai me matar. Está doendo bem menos, hoje. E depois, se começar a doer demais, você terá de ser cavalheiro e me carregar no colo.
Ash riu, passou um braço sobre os ombros dela e começou a caminhar ao longo da praia estreita e curva.
— O que pretende usar para ir ao mercado? Calça e jaqueta de couro?
— Claro que não. Estou reservando essa roupa para as reuniões de escola de nossos filhos.
Ash parou de andar e virou Josephine para si, fitando-a intensamente, com uma emoção indefinível nos olhos. Josephine viu-o engolir em seco, porém ele não disse nada e recomeçou a caminhar. Ela mordiscou o lábio, refletindo sobre o que dissera. "Nossos filhos..." Até quando ia continuar se esquecendo que aquele casamento não era de verdade? Por que era tão fácil pensar que era?
— Venha — disse ela, mudando de assunto. — Vou lhe mostrar uns lugares que você nem imagina que existem.
— Ah, é? — Ash arqueou as sobrancelhas. — E quem os mostrou para você?
— Já ouviu falar em Lewis e Clark? Pois bem, esta floresta foi explorada e mapeada pela dupla Bradshaw e Bradshaw. Carol e eu não deixamos de virar uma única pedra, de entrar em uma única moita, de subir em uma única árvore.
Ash deixou que Josephine o conduzisse, contente em estar com ela, observando-lhe o movimento dos cabelos conforme ela andava, mancando de leve, o passo lento, relaxado. Quando ela mencionara ter filhos com ele, alguma coisa muito frágil se enraizara dentro dele, algo que fizera seu estômago contrair-se, que o fizera balançar por dentro. Ele tentou ignorar o efeito perturbador e prestar atenção nas coisas que Josephine lhe apontava, à medida que abriam caminho silenciosamente através da mata: a trilha de um veadinho, um par de esquilos perseguindo um ao outro e chilreando loucamente, um falcão voando em círculos acima deles, uma marca verde no tronco de uma arvorezinha, onde um veado esfregara os chifres, arranhando a casca.
Mas Ash estava mais interessado em olhar para Josephine; mais intrigado pelo perfume dela do que pelo dos pinheiros, mais impressionado com sua graciosidade ao quase dançar entre as árvores do que com a do pomposo falcão que descrevia círculos perfeitos, lá em cima.
Ash sentia-se bem consigo mesmo, naquele dia, sentia-se satisfeito, realizado: E tudo porque Josephine estava relaxada. Ele conseguira acalmá-la, trazendo-a para aquele lugar; conseguira aliviar-lhe o tumulto interior e era incapaz de pensar numa causa maior pela qual lutar...
...Até o momento em que Josephine estacou, de repente; seus olhos se arregalaram e seu rosto ficou tenso; seus lábios tremiam ligeiramente. Ela virou-se e olhou para trás, para o caminho que haviam acabado de percorrer.
— Não!... — A voz dela não passou de um sopro.
— Josephine? — Ash segurou-a pelos ombros e virou-a, forçando-a a encará-lo. O terror nos olhos verdes fez o coração dele pular. — O que foi?
— A Fera... está aqui! — Ela se desvencilhou de Ash, agarrou-lhe a mão e desviou-se da trilha, puxando-o atrás de si. — Venha... Corra!
Josephine desatou numa corrida desenfreada. A palma de sua mão na de Ash estava quente e úmida de pavor. Ela puxou-o para fora da trilha demarcada, correndo como uma lebre assustada para dentro da densa vegetação. Ash sabia que cada passo era uma tortura para Josephine, devido ao ferimento na perna; seu rosto estava desfigurado pela dor, porém o instinto de sobrevivência era mais forte. Ele tinha pouca escolha além de correr junto com ela, embora ainda tivesse dúvidas de que ela não sucumbira finalmente ao esgotamento nervoso e que tudo aquilo não passasse de uma criação de sua mente. Ele não ouvira coisa alguma e tinha certeza de que ninguém os seguira.
Com um esforço sobre-humano, Josephine subiu correndo uma inclinação íngreme, arrastando Ash consigo, até puxá-lo para detrás de um agrupamento de arbustos, empurrando-o para o chão e agachando-se, também.
Ash observava, com crescente apreensão, a expressão de pânico no rosto de Josephine, os olhos arregalados, a respiração ofegante.
— Calma, Josephine — sussurrou ele, falando baixinho mais por instinto do que por precaução. — Não tem ninguém aqui. Você está estressada e sob forte...
Josephine levou uma mão à boca de Ash, para calá-lo. Com a outra mão, apontou para o declive que haviam acabado de escalar.
Ash franziu a testa ao afastar a mão dela e olhar na direção que ela apontava. Foi então que ele ouviu... o ruído de folhas secas e gravetos estalando sob passos apressados. Apertou os olhos, tentando enxergar através das folhagens. Uma sombra surgiu entre os galhos, moveu-se e depois parou; ficou imóvel por alguns segundos antes de recomeçar a andar.
Finalmente o vulto emergiu numa pequena clareira e Ash sentiu Josephine gelar.
A Fera era uma mulher, alta, corpulenta; não gorda, mas grande, atlética. Usava meias pretas de náilon e embora Ash não conseguisse lhe ver os pés, avistou uma saia preta justa e parte de uma blusa vermelha de linha. Inclinou-se para ver-lhe o rosto, mas não conseguiu; ela estava parada, imóvel, parcialmente escondida pelas folhagens de um arbusto. Foi então que ela segurou um dos galhos e Ash viu a mão enluvada, segurando uma faca cuja lâmina cintilou, sob o reflexo do sol.
Ele sentiu a mão de Josephine apertar-lhe o braço com força e virou-se para ela. Ela o puxava, sem desviar os olhos arregalados da figura sinistra, alguns metros abaixo. Ash seguiu-a, com passos lentos e cautelosos, evitando fazer ruído. Josephine afastou um emaranhado de galhos e olhou para Ash, em silêncio. Ele olhou além dos galhos e avistou o buraco negro que escondiam. Em seguida, fitou Josephine com ar de repreensão.
— Precisamos, Ash — sussurrou ela, com uma ansiedade assustadora na voz.
Ele ouviu o farfalhar de passos e olhou mais uma vez para trás. Viu as pernas e a saia preta da assassina, subindo em sua direção; por um momento, considerou a possibilidade de enfrentar a criatura, com faca e tudo, mas não podia arriscar Josephine daquela maneira. Ela poderia ser ferida, ou até morta. Olhou novamente para a escuridão da caverna e engoliu em seco.
— Não se preocupe, já entrei aí pelo menos uma dezena de vezes — garantiu Josephine, baixinho.
Ash tinha a sensação de que sua espinha estava prestes a partir-se ao meio. Empertigou-se e assentiu, com um movimento da cabeça. Josephine agachou-se e engatinhou para dentro da gruta, por sob os galhos, desaparecendo na escuridão. Ash imitou-a e seguiu-a.
— Puxe os galhos de volta para esconder a entrada — soou a voz de Josephine à frente dele.
Ash virou-se e fez o que ela ordenava. Em seguida sentiu a mão de Josephine em seu braço.
— Vamos. Segure em minha camisa.
Ela recomeçou a engatinhar e Ash a segui-la, repetindo para si mesmo que era necessário, que o perigo estava do lado de fora, no meio das árvores, sob o sol, e não naquele poço escuro como breu. Ele não precisava esticar o braço para sentir as paredes estreitas de pedra que o cercavam, ou o teto gelado poucos centímetros acima de sua cabeça. Detestava aquela sensação de aperto, de falta de ventilação, o som da própria respiração, o ritmo lento e irregular com que avançavam cada vez mais, na escuridão.
Ele prosseguia, agarrado a Josephine, tentando concentrar-se nela em vez de em si mesmo. Apesar da perna machucada, ela subira aquela colina correndo; ele precisava pensar num meio de aliviar o sofrimento de Josephine, para que ela não notasse o seu. Não deixaria que Josephine percebesse o efeito que aquele lugar tinha sobre ele; não deixaria que ela sentisse sua mão tremer, ou transpirar. Era a maldita escuridão! Se pelo menos houvesse alguma claridade, mínima que fosse... Mas não havia nada e a memória começou a se agitar no fundo de sua mente.
Lá também era escuro... e havia a sensação de quatro paredes se fechando ao seu redor, esmagando-o, asfixiando-o, enquanto ele se encolhia no chão, os joelhos dobrados junto ao peito... Só que não havia silêncio. As paredes de sua pequena cela eram finas e ele podia ouvir sons através delas... os sons de sua mãe... sons animalescos, grunhidos, uivos... como se ela estivesse agonizando, morrendo. E se ela morresse, ele ficaria trancafiado para sempre ali dentro, atrás daquela porta fechada, prisioneiro da escuridão.
Ash parou de engatinhar. Sentiu a mão de Josephine na sua, porém seu corpo paralisado recusava-se a prosseguir. Ele lutava contra o desespero, contra a súbita certeza de que Josephine, a Fera e a caverna não passavam de um sonho, e que ele ainda era o menino pequeno cujo choro era nítido e audível em sua mente. Virou-se para um lado e para outro, sem enxergar um palmo diante dos olhos. Recuou para fugir daquele tormento, apenas para esbarrar numa fria parede de pedra. Fechou os olhos e deixou-se afundar até o chão.
- Ash?
— Não... — Ele não queria que Josephine o visse assim, não queria que ela o tocasse, não a queria por perto naquele momento.
Ela ajoelhou-se diante dele e acariciou lhe o rosto úmido de suor e, se Ash fosse honesto consigo mesmo, de algumas lágrimas, também.
— Está tudo bem — sussurrou ela, com voz tranquilizadora, perto do rosto dele, aquecendo-o, enxugando-o. Envolveu Ash nos braços e apertou-o.
"Saia daqui, droga, me deixe..."
Ele não resistiu, entretanto, quando Josephine o puxou para si; obedientemente, apoiou a cabeça no ombro dela, rendendo-se ao calor de seu corpo, sentindo seus dedos movendo-se com delicadeza em seu cabelo, tranquilizando-o, embalando-o. Oh, não queria que Josephine soubesse...
— Eu já sei — Ela mudou de posição, levando-o consigo, segurando-o com uma força que o surpreendeu. — Não tem nenhuma porta trancada aqui, Ash. E você não está mais sozinho.
Ele levantou o rosto, porém não via Josephine, apenas a sentia. Afagou lhe o braço e o ombro, apertando-a contra si.
— Desculpe.
Ela beijou-lhe o rosto.
— Você não queria me deixar entrar, mas eu entrei.
A respiração de Ash começou a se normalizar. Nos braços de Josephine, o horror evaporara. O menininho dentro dele ainda chorava, só que desta vez havia alguém que o escutava. Pouco a pouco ele relaxou, encostado à parede da gruta, abraçado a Josephine.
— Era sua mãe que trancava você no quartinho.
Ash assentiu com a cabeça.
— Ela... recebia homens. E eu atrapalhava.
— Você tinha medo do que pudesse acontecer com ela.
— Eu a odiava.
— Quantos anos você tinha?
Ele fez uma pausa, antes de responder.
— Quatro, na primeira vez.
Josephine acariciou lhe o rosto.
— Uma criança de quatro anos não sabe odiar.
— Eu sabia — afirmou Ash, tentando desesperadamente apagar a imagem do menino que chorava dentro de si.
— Não acredito.
Ash apertou os olhos e aconchegou-se mais a Josephine. De algum lugar no fundo de seu ser, o choro se transformou em palavras, em súplicas. "Eu só queria que ela me amasse... Por que ela não me amava?..."
— Acho melhor... continuarmos — balbuciou ele. Josephine segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o delicadamente os lábios.
— Você não está mais sozinho — Ela lhe beijou o rosto, o pescoço, a orelha. — Eu não o deixarei só... nunca mais!
Ash enlaçou Josephine pela cintura e beijou-a com uma paixão que surpreendeu a si mesmo. Depois aninhou-a em seu peito, junto ao coração acelerado. Como queria poder acreditar nela! Seria tão fácil entregar-se, deixar que ela lhe curasse as velhas feridas...
Ash sabia, no entanto, que nada daquilo era verdade. Não havia amor entre eles, Era tudo uma farsa, que ele ainda não compreendera. Por um momento, desejou que sua amnésia fosse real, que pudesse vivenciar aquele momento, acreditar nele. Era tão fácil... parecia tão real...
Ele não devia ter se exposto a Josephine daquela maneira. Agora sentia-se fraco, vulnerável. Dali por diante, resolveria seus problemas a seu modo, sozinho. Desvendaria o mistério de Josephine Bradshaw e cuidaria para que a Fera pagasse o que merecia. Depois seguiria seu caminho, encontraria uma mulher em quem pudesse confiar, com quem pudesse construir alguma coisa, formar uma família; teria filhos e daria a eles tudo que desejara ter, quando criança, e não tivera.
Mas nunca haveria amor. Somente agora Ash se dava conta de que não havia lugar para o amor, em sua vida. Havia apenas um grande vazio dentro de si, onde o amor deveria estar. Mas este vazio nunca fora preenchido, portanto ele não tinha amor para dar.
Ash desencostou-se da parede e segurou a cintura de Josephine com as duas mãos.
— Vamos voltar — sugeriu. — Ela já deve ter desistido e ido embora.
— Ash, eu...
— Não, Josephine. Não vamos mais falar sobre isso. Já passou: Eu estou bem, agora.
Josephine ficou em silêncio e Ash agradeceu intimamente por não poder ver-lhe o rosto, por não poder ler em seus olhos o que gostaria de ler e saber que não passava de uma grande mentira. Virou-se na direção da entrada da caverna, porém Josephine segurou-lhe a mão.
— Não, venha por aqui. Conheço outra saída.
Era como se Ash tivesse batido uma porta no rosto de Josephine. Ela gostaria de compreender por que, mas não conseguia. Sentira os pensamentos dele com tanta clareza, minutos antes, a angústia, a torrente de memórias que o engolfara... Mas agora, não havia mais nada.
Ela se consolou com o pensamento de que fora melhor Ash tê-la detido naquele ponto. Por pouco não dissera a ele que o amava, apenas para confortá-lo. De onde viera aquele impulso, Josephine não tinha a menor ideia. Simplesmente se sentira avassalada pela necessidade de aliviar a dor de Ash e as palavras haviam lhe borbulhado na garganta, como uma coisa viva dentro dela, desesperada para escapar. Vira-se tão empenhada em querer ajudá-lo que se esquecera de proteger a si mesma. Se dissesse um absurdo como aquele, Ash teria percebido, ou descobriria assim que sua memória retornasse. E então ele teria todos os motivos para odiá-la.
Josephine reprimiu o impulso de abraçá-lo de novo e concentrou-se em encontrar o caminho certo. Conhecia a caverna, mas nunca entrara ali antes sem uma lanterna para guiar-se. Desta vez, teria de confiar na memória, e já fazia muito tempo. Evitara aquele lugar e as lembranças felizes que lhe trazia, depois da decepção que tivera com o pai. Pensara que nunca mais voltaria à caverna... até ver-se forçada a fazê-lo, para proteger Ash e a si mesma de um maníaco, ou maníaca.
Ash não disse mais nada, enquanto se esgueiravam pelas passagens escuras. Seguia-a com uma determinação, agora. Talvez ela o tivesse ajudado um pouco, afinal.
Depois de longos minutos, Josephine finalmente avistou a luz do dia filtrando-se por uma pequena abertura na rocha, alguns metros adiante. Começou a mover-se mais devagar, tomando cuidado para não provocar nenhum ruído. Ash fez o mesmo, para o caso de a Fera saber da existência da caverna e estar esperando do lado de fora. Josephine concentrou-se, aguçando Os sentidos, abrindo a mente, preparando-se para a sensação de perigo. Entretanto, a única coisa que sentiu foi o ar fresco banhar lhe o rosto e o sol brilhante aquecê-la, à medida que se aproximavam da saída.
Eles emergiram numa encosta gramada, a poucos metros de uma casa de fazenda, um celeiro e um rebanho de ovelhas. Josephine começou a descer, porém Ash a deteve com uma mão em seu ombro.
— Chega — disse ele, suspendendo-a nos braços. — Dentro da caverna não foi possível, mas não me chamo Ashville Coye se você der mais um passo com essa perna, hoje.
Josephine inclinou-se para frente e beijou-o. Ele a contemplou por um segundo e ela viu seus próprios sentimentos confusos refletidos nos olhos escuros. Em seguida Ash desceu a colina, em direção à casa.
Enquanto Josephine explicava à esposa do fazendeiro o que acontecera, Ash usava o telefone para avisar a polícia.
— Isto vem provar que Josephine não é a assassina — repetiu Ash pela terceira vez, enquanto andava de um lado para outro, no escritório de Radley.
— Só se tivermos certeza de que a mulher que você viu era.
— E quem mais seria, esgueirando-se na mata com uma faca na mão? E usando luvas pretas de couro?
Radley levantou as mãos, num gesto de defesa.
— Eu não disse que duvido de você, só estou perguntando se tem certeza.
— Tenho certeza absoluta — Ele parou de andar e olhou para o chefe e amigo. — O que não tenho certeza é de como ela sabia que estávamos lá. Você foi a única pessoa para quem falei aonde ia, Rad. Tem certeza que não comentou com ninguém?
— Claro que tenho! — Radley franziu a testa, indignado. — Acha que sou maluco? Não falei com...
A voz dele morreu lentamente nos lábios. Ele passou uma mão pelos cabelos grisalhos e praguejou baixinho.
— O que foi?
— Bev Issacs. Ela estava aqui quando você telefonou, me perturbando por causa do maldito toco de cigarro que Harris surrupiou: — Radley fez uma careta. — Oh, não, Ash, eu anotei a localização do lago em uma folha de papel, para o caso de precisar entrar em contato com você!
Ele começou a remexer nos papéis, sobre a mesa, atirando várias folhas para o chão.
— Não está aqui! Ela pode ter pegado, Ash!
Neste instante, Josephine entrou no escritório. Ash ordenara que ela esperasse do lado de fora, sentada, mas ela não parecia capaz de ficar quieta. Fitou Ash com os olhos verdes enormes e ele respondeu à pergunta não formulada, enquanto ela lhe oferecia uma xícara de café.
— Existe uma chance de que Bev Issacs soubesse onde estávamos.
Josephine fez menção de falar, mas parou, hesitante.
— O que foi, Josephine? Diga.
— Eu acho que... bem, não que eu pense que seja ele, mas sinto-me no dever de dizer que Ted também sabia. Eu disse a ele, esta manhã, que talvez voltássemos ao lago, à tarde. Ela atravessou a sala e caminhou até a janela, onde parou para contemplar a rua através das persianas entreabertas. — Mas não acredito que seja ele. Não, mesmo. Não pode ser.
— Pensei que vocês tivessem dito que era uma mulher? — interveio Radley, confuso.
— Bem, a pessoa estava usando uma saia. Em nenhum momento consegui ver o rosto. Poderia ser um homem, vestido de mulher — Ash aproximou-se de Josephine e colocou as mãos em seus ombros. — Explicaria muitas coisas, Josephine. Os telefonemas de Ted, tarde da noite, as coisas que ele tem escondido de sua irmã. E ele estava em Las Vegas, durante aquela outra série de crimes.
Josephine virou-se para ele, com determinação.
— Não foi Ted. E pode ser um erro suspeitar apenas das pessoas que sabiam onde estávamos. Existe uma possibilidade de que a pessoa tenha nos seguido até lá.
— Isso é verdade — concordou Radley.
Ash ouviu a voz de Radley, sem desviar os olhos do rosto de Josephine. Subitamente ele compreendia o que acontecera na caverna, quando ela dissera que sentia a mesma agonia que ele, porque podia sentir a dela, agora. Josephine ficaria arrasada se Ted fosse o assassino, E Ash ficaria arrasado simplesmente por vê-la sofrer. Sentia-se próximo de Josephine, ligado a ela. Era como se fossem um par de trepadeiras ao redor da mesma árvore, entrelaçando-se à medida que cresciam. Separá-las significaria matá-las.
Ele pestanejou, atordoado com aquele pensamento inesperado, e disse para si mesmo que a analogia das trepadeiras era um exagero. Claro que sentia afeição por Josephine, mas sabia que cada um seguiria seu próprio caminho, no final, e que ele não morreria por causa disto. Mesmo que quisesse morrer, não morreria. Pronto, lá estava ele, de novo, dramatizando seus sentimentos. O que estava acontecendo?!
— Quero ir para casa — A voz de Josephine interrompeu lhe o devaneio. — Estou cansada, quero dormir.
Ash assentiu e conduziu-a para a porta, com um braço em seus ombros. Fora um longo dia e ele também estava exausto. Eles haviam voltado para o lago com a polícia, respondido a incontáveis perguntas, esperado exaustivamente enquanto a área era vasculhada. Tudo, por nada. Nem uma única pista fora encontrada. Fosse quem fosse, o assassino, ou assassina, era esperto. Era cauteloso, astuto. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, ele escorregaria. E iria para detrás das grades, E então...
Ash observou Josephine por um momento e, como que atraída por seu olhar, ela levantou o rosto. "E então?...", perguntou-se ele, novamente.
Quanto mais perto chegavam de casa, melhor Josephine se sentia. Ela precisava tirar aquilo tudo da cabeça, pelo menos por uma noite. Queria relaxar num banho de imersão, beber um copo de vinho e dormir nos braços de Ash, sentindo-se segura, protegida do mundo.
A tensão retornou, entretanto, quando Ash virou para a entrada de carros. As janelas da casa estavam iluminadas e sombras moviam-se lá dentro. Por um segundo o medo fez o sangue de Josephine gelar e ela lançou um olhar apavorado a Ash, contemplando o alarme também no rosto dele. Logo, porém, ele apontou, com evidente alívio:
— Veja. O carro de Caroline. Ela voltou.
Josephine viu a caminhonete estacionada na rua e só então raciocinou que o assassino não acenderia todas as luzes da casa, se estivesse lá dentro. Em vez de alívio, contudo, sentiu um medo ainda maior. Carol não devia estar ali, não podia! Estava correndo perigo! Fazia apenas dois dias que fora para a Flórida, por que tivera de voltar tão rápido?
Ash desligou o motor e saiu do carro, amparando Josephine ao redor da casa.
— Carol? Caroline! —chamou ela, ao abrir a porta dos fundos. — Onde...
Suas palavras foram interrompidas por duas figurinhas que se atiraram para ela e quase a estrangularam pela força com que a abraçaram. Josephine retribuiu o abraço das sobrinhas, porém não escutou suas vozinhas e risinhos; sua atenção estava voltada para o pé da escada, aliviada por ver Carol.
Deixou escapar um longo suspiro e sorriu, porém o sorriso se desvaneceu rapidamente quando um vulto alto surgiu no topo da escada. Seus braços penderam ao longo do corpo e ela engoliu em seco.
— Olá, Josephine.
— Viu só, tia Josephine, que legal? Novo veio conosco! Ele vai nos levar ao jardim zoológico e...
A torrente de vozinhas estridentes foi abafada por um forte zumbido nos ouvidos de Josephine. Ela forçou-se a responder.
— Olá... pai.
— Josephine! — Ele desceu a escada, com um largo sorriso no rosto, estendendo uma mão para Ash. — Você deve ser meu genro.
A visão de Josephine englobou a mão grande de Ash apertando a de seu pai, com firmeza.
— Ash Coye. É um prazer conhecê-lo, sr. Bradshaw — murmurou ele, olhando em seguida para Josephine.
— Matthew, por favor — corrigiu o homem mais velho. — Eu precisava vir. Precisava conhecer o homem que conseguiu arrastar minha Josephine para o altar.
—Não sou sua Josephine. Não sou sua nada!
Carol enfiou-se entre eles, afastando as meninas de Josephine e tagarelando jovialmente, num esforço para a aliviar a tensão que ameaçava fazer o ar explodir.
— Vamos subir, pessoal! Eu preparei o jantar e se não comermos logo, vai esfriar. Venham!
Josephine abriu a boca para dizer que não ficaria para jantar, porém fechou-a em seguida. Não podia deixar Carol sozinha, não com a Fera ali por perto, à espreita, sempre a par de seus movimentos.
— Andem, meninas, terminem de pôr a mesa — ordenou Carol.
As duas correram para cima, entusiasmadas, e Josephine olhou para a irmã.
— O que ele está fazendo aqui?
— Você pode falar diretamente comigo, Josephine. Estou de pé bem aqui, na sua frente.
Josephine virou o rosto lentamente para o pai. Ele estava envelhecido, o cabelo mais branco que da última vez em que o vira.
— Não tenho nada para lhe dizer.
— Ótimo, porque eu tenho muita coisa para dizer a você. Será que, pelo menos uma vez na vida, pode me escutar?
Ela desviou o olhar, sem responder, e Ash segurou-lhe o braço, apertando-o levemente, num gesto de advertência.
— Venha, papai — chamou Carol. — Vamos subir. Espere Josephine acabar de chegar.
Ela colocou uma mão nas costas do pai, que se virou, relutante, e subiu a escada.
Assim que desapareceram de vista, Josephine atirou-se nos braços de Ash e enterrou o rosto em seu peito. Ele a apertou com força, afagando lhe a cabeça.
— Eu não queria que ele viesse — soluçou ela.
— Você não pode impedi-lo, Josephine. Ele é seu...
— Mande-o embora, Ash! Diga a ele que não...
— Josephine! — Ash segurou o rosto dela entre as mãos. — Eu não posso fazer isso. Fale com ele! Desabafe, diga tudo o que pensa, e escute o que ele tem para lhe dizer!
Ela balançou a cabeça com veemência, num pranto convulsivo.
— Eu não quero! Não consigo!
— É claro que você consegue — murmurou Ash, afastando-lhe uma mecha de cabelo do rosto. — Eu estou aqui, com você, para ajudá-la.
Josephine fitou os olhos escuros de Ash e viu neles refletida a sua própria dor. Viu força, também. Se ele ficasse a seu lado, talvez ela conseguisse sobreviver àquela noite. Perto de Ash, ela seria capaz de enfrentar qualquer coisa. Oh, como fora se deixar apaixonar tão desesperadamente por ele?!
Ash inclinou o rosto e capturou lhe os lábios, num beijo lento, profundo, terno, carregado de emoção. Depois de um longo momento, ele se afastou e fitou-a intensamente.
— Eu preciso tanto de você, Ash... — balbuciou Josephine, num impulso, a voz estrangulada.
— Você me tem, Josephine.
Ela fechou os olhos, plenamente consciente de que não tinha Ash. Não, de verdade, nem por muito tempo, mais. Mas, pelo menos naquela noite... sim.
As portas estavam trancadas. A pistola estava carregada e ao alcance de Ash. Brittany e Bethany finalmente dormiam, no andar superior, depois de Ash ter lhes contado várias histórias e contos-de-fadas fragmentados. Ash fizera Beverly Issacs prometer, jurar, que um carro-patrulha faria a ronda na vizinhança, a noite toda.
Josephine observava-o, séria e em silêncio: Caroline sentou-se na cadeira de balanço e Matthew Bradshaw na poltrona reclinável. Ash optou pelo sofá e Josephine apressou-se a sentar-se a seu lado, quase aninhando-se a ele. Ele apoiou um braço no encosto do sofá, atrás dos ombros de Josephine. Gostaria de poder livrá-la de todo sofrimento, nem que para isto tivesse de absorvê-lo para si. Mas como isto não era possível, ajudaria como pudesse, conforme prometera; Josephine parecera captar força de sua promessa e ele faria qualquer coisa para cumpri-la.
— Ted já sabe que você voltou? — perguntou Josephine a Caroline, com voz tensa.
Caroline balançou a cabeça.
— Telefonarei para ele, mais tarde, antes de dormir.
Josephine olhou para Ash, com evidente apreensão, e virou-se outra vez para a irmã.
— Por que não espera até amanhã, Carol?
— Por quê? — Caroline parou de balançar e inclinou-se para frente, os olhos muito abertos. — Você sabe de alguma coisa, Josephine? Ele foi se encontrar com alguém?
— Claro que não! — apressou-se Josephine a negar, surpresa. — Acha que eu esconderia uma coisa como essa de você? Só achei que você podia aproveitar para pensar, durante a noite, refrescar a cabeça. Só isso.
Carol voltou a recostar-se, ainda parecendo desconfiada.
— Minha nossa — exclamou Matthew Bradshaw, com voz amarga. — Veja só o que fiz com minhas filhas!
Ele falava com Ash e seus olhos estavam marejados de lágrimas.
— A culpa disso tudo é minha, sabia? Elas não confiam em homem nenhum, porque o pai que acreditavam ser perfeito cometeu um deslize.
— Deslize? Deslize? — Josephine retesou-se, ao lado de Ash, e lançou ao pai um olhar tão fulminante que ele se encolheu na poltrona. — Você acabou com a vida de mamãe e diz que foi um deslize? Ela morreu sozinha, em casa, enquanto você fazia sabe-se lá o que, com sabe-se lá quem, e você ainda tem coragem de dizer que foi apenas um deslize?!
Ash apertou o ombro de Josephine, porém ela pôs-se de pé de um pulo, cambaleando por um segundo por causa da perna e virando-se para sair da sala.
Matthew também se levantou, segurou-a pelos ombros e forçou-a a encará-lo.
— Sua mãe não morreu sozinha, Josephine! Morreu ao lado do amante, na cama!
Josephine levantou um braço e esbofeteou-o com tanta força que ele recuou, quase perdendo o equilíbrio.
— Como se atreve?! — esbravejou ela, fora de si.
Matthew levou uma mão ao rosto, sobre a marca vermelha que os dedos de Josephine haviam deixado.
— Você vai ouvir algumas verdades, hoje, Josephine — Ele olhou para Caroline, que parara novamente de balançar e estava pálida como um fantasma. — Vocês duas vão me ouvir. Vão se sentar aqui e escutar cada palavra. Depois disso, não precisam mais me ver, nunca mais, se for o que preferirem. Mas ninguém vai sair desta sala enquanto eu não disser tudo o que vim até aqui para dizer!
— Não! Não vou ficar escutando você dizer mentiras sobre minha mãe!
Josephine deu meia volta, porém mais uma vez Matthew agarrou-a pelos ombros, bruscamente. Ash pôs-se de pé e os dois homens se entreolharam por um segundo. Em seguida, Matthew virou-se, passou uma mão pelo cabelo e começou a andar em círculos.
— Escutem, eu não quero denegrir a memória de sua mãe. Não estou dizendo que ela não era uma pessoa maravilhosa, porque era. Mas Josephine... Caroline, ela nunca me amou. E eu nunca a amei. Nos casamos porque ela estava grávida. Éramos jovens demais para saber qualquer coisa sobre o amor.
Josephine aproximou-se lentamente de Ash e apoiou-se nele, de costas, segurando-lhe as mãos e enlaçando-lhe os braços ao redor de sua cintura.
— Não quero saber por que se casou com ela. Ela era sua esposa! Dedicou a vida a você, a Carol e a mim! Não merecia...
— Nós dois sabíamos, Josephine — interrompeu Matthew. — Sempre fomos sinceros um com o outro em relação aos nossos sentimentos. Decidimos ficar juntos, oferecer um lar às nossas filhas, criar vocês em um ambiente estável. Planejamos seguir nossos caminhos depois que vocês crescessem. Com o passar do tempo ela se apaixonou por uma pessoa, e eu também. Nunca escondemos nada um do outro, nunca houve traição. Sempre jogamos limpo, com todas as cartas na mesa. Quando nos mudamos para a Flórida, passamos a viver vidas separadas. Só mantínhamos as aparências por causa de vocês duas. Sua mãe não tinha coragem de contar a verdade.
— Porque não é a verdade! — explodiu Josephine. — Não é...
— Era George Prentiss, não era? — falou Caroline pela primeira vez, com uma calma resignada, que contrastava com a agitação e revolta de Josephine. — Ele estava sempre aqui, trazia presentes para mamãe, e para nós. Quantas vezes ele estava aqui, quando voltávamos da escola...
— Tio George era um amigo! — protestou Josephine, indignada. — Cruzes, Carol, não me diga que você acredita nessa história absurda!
— Calma, Josephine — Ash segurou-lhe os pulsos cerrados. — Calma.
Ela abriu as mãos e entrelaçou-as fortemente com as de Ash.
— Sim, era George — admitiu Matthew.
— Mentiroso! — rosnou Josephine.
— Você tem o direito de não acreditar em mim — Matthew olhou para ela, ressentido. — Eu trouxe o diário de sua mãe. Está tudo lá, escrito pelo punho dela. Tenho certeza que ela gostaria que vocês soubessem a verdade, agora.
Ele balançou a cabeça e seus ombros e curvaram. Parecia um homem derrotado.
— Vocês são mulheres adultas, agora, têm suas próprias famílias. Está na hora de compreenderem... E de perdoarem. Se puderem.
— Chega, papai! — vociferou Josephine, inconformada. — Vá embora, chega! Não quero ouvir mais nada!
Matthew inclinou a cabeça, em assentimento. Marchou para fora da sala e desceu a escada da cozinha. Carol levantou-se e correu atrás dele.
— Papai, espere!
Os passos dela tamborilaram na escada e as vozes abafadas de ambos soaram no andar inferior. Pouco depois a porta dos fundos bateu. Em seguida, o motor de um carro roncou e os faróis da caminhonete de Caroline se afastaram lentamente ao longo da rua.
Josephine desvencilhou-se dos braços de Ash e mancou até o topo da escada.
— Carol?
Caroline subiu vagarosamente, os olhos-vermelhos e úmidos.
— Ele vai para um hotel — Ela segurava nas mãos um livro encadernado em cetim cor de vinho. Contemplou-o por um instante e estendeu-o para Josephine.
Josephine não fez um movimento para pegar o livro, limitando-se a balançar a cabeça de um lado para outro.
— Não é verdade... É tudo mentira...
Carol colocou o livro nas mãos dela.
— Não sei mais em que acreditar — murmurou, com voz exausta. — Será que nossa infância inteira foi uma grande mentira? Leia você, Josephine. Eu não tenho mais forças.
— Eu não vou ler.
— Você sempre foi a mais forte, lá em casa, Josephine. Você precisa ler — Carol virou-se e subiu a escada com esforço, antes de entrar no quarto de hóspedes e fechar a porta.
Ash ainda estava parado no meio da sala, observando. Josephine contemplou o diário. Alisou a capa de cetim com dedos trêmulos e Ash sabia que ela estava tentando reunir coragem para abri-lo. Por fim, no entanto, acabou se decidindo pelo contrário. Atravessou a sala e colocou-o sobre o carrinho de chá. Em seguida olhou para Ash, engolindo em seco para reprimir as lágrimas que faziam seus olhos brilhar.
Ash deu um passo à frente e estendeu os braços para ela.
— Oh, Ash! — exclamou ela, atirando-se para ele. — Parece que de uns tempos para cá só consigo me sentir normal quando você me abraça!
Ash embalou-a afetuosamente por alguns segundos e depois conduziu-a para a escada, amparando-a. Ela não estava simulando as emoções que lhe curvavam o corpo; não estava simulando as lágrimas que lhe rolavam pelo rosto, não estava simulando a expressão transtornada, os tremores, o desespero que ele sentia nos braços. Ela se agarrava a Ash como se ele fosse sua última tábua de salvação.
Ash chegou ao hall do andar superior e abriu a porta do quarto, carregando Josephine para dentro. Não, ela não estava fingindo; então... ela estava, realmente, voltando-se para ele, em busca de apoio e de consolo em um dos momentos mais confusos de sua vida? Por quê?! Era quase como se ela estivesse começando a acreditar que aquele casamento era real.
Ash fechou a porta, atravessou o aposento e deitou Josephine na cama, gentilmente. Afastou-lhe o cabelo do rosto e enxugou lhe as lágrimas. E, mesmo sabendo que era tudo uma farsa, que os sentimentos de um pelo outro não eram verdadeiros, debruçou-se e beijou-lhe os lábios. Depois afastou-se e contemplou-a por um momento, balançando lentamente a cabeça. Se Josephine estava se iludindo, o mesmo estava acontecendo com ele: o modo como sua garganta se apertava em um nó doloroso, como seus olhos ardiam, como seu estômago se contraía... Estava reagindo ao sofrimento de Josephine como se fosse de fato seu marido, como se estivesse, de verdade... apaixonado por ela.
Ash afastou aquele pensamento ridículo e foi para o banheiro. Abriu as duas torneiras da banheira para temperar a água e examinou os frascos de sais de banho, na prateleira. Cheirou um por um, antes de fazer sua escolha. Salpicou a água com a fragrância que aprovara como a mais suave e relaxante e pendurou uma toalha no porta-toalhas, na parede, tomando o cuidado de não deixá-la tocar a água. O efeito foi uma tonalidade levemente rosada, mais suave que o branco cru e brilhante. Pegou duas toalhas limpas na prateleira e colocou-as ao lado da banheira. Sem perguntar-se por que um homem que simplesmente sentia certa estima por uma mulher se dava a todo aquele trabalho, ele saiu do banheiro, atravessou novamente o quarto e desceu a escada para pegar uma garrafa de vinho e dois copos. Retornou em seguida, colocou a garrafa e os copos no peitoril da banheira e voltou para o quarto.
Josephine estava na posição em que ele a deixara, os olhos inchados de chorar abertos, fixos no teto, parecendo abalada è vulnerável, A emoção que invadiu Ash naquele momento foi ridícula, tola e inexplicável. Apesar de tudo, estava ali, presente em seu íntimo, e ele a sentia com toda a intensidade. Decidiu, então, parar de tentar analisar a si mesmo e deixar-se levar pela maré, para ver o que acontecia.
— Josephine?
Ela pestanejou, mas não se moveu.
— Tudo bem — murmurou, depois de alguns segundos. — Eu vou superar.
— Eu nunca duvidei disso — Ele contornou a cama e sentou-se perto dela.
— Carol está certa, sabe? — continuou ela, com a voz mais calma e firme. — Eu sou mais forte. Era comigo que minha mãe contava sempre que as coisas se complicavam. E agora Carol está fazendo a mesma coisa, procurando apoio em mim quando não pode contar com Ted.
— Tem razão — Ash começou a desabotoar lhe a camisa. — Mas sabe de uma coisa, Josephine? Você tem alguém, agora, em quem se apoiar.
Os lábios dela se curvaram num sorriso triste.
— Se eu me apoiar mais em você, vou quebrar suas costas — Ela suspirou e voltou a fitar o teto. — Eu não costumo ser assim, sabe?
— Assim, como?
— Fraca, dependente, chorosa. Critico as mulheres que agem dessa forma e estou fazendo exatamente a mesma coisa.
Ash inclinou a cabeça para o lado, pensativo.
— Veja por este prisma: um homem gosta que sua mulher busque apoio nele, de vez em quando. É um meio dele saber que ela ainda precisa dele.
— E eu preciso de você, Ash, muito — Josephine suspirou.
— E isso me deixa apavorada. Eu não pretendia...
Ela virou o rosto e fechou os olhos, o que não impediu Ash de ver as lágrimas que teimavam em brotar-lhe dos olhos.
— Não sei o que vou fazer sem você...
— Querida... — Ash debruçou-se sobre ela e abraçou-a, acarinhando lhe os cabelos. As primeiras palavras que comicharam em sua garganta eram palavras tranquilizadoras, promessas de que ela nunca ficaria sem ele. Conteve-se a tempo, no entanto, de dizer aquelas mentiras. Era óbvio que Josephine teria de prosseguir sem ele. Não eram casados. Ela mentira, armara aquela situação, Ash ainda não sabia por quê. E não importava que fosse tudo muito bom, que ele gostasse, que muitas vezes parecesse verdade. Tudo não passava de um jogo. Eram dois adultos brincando de casinha.
Josephine fingia que eram casados, Ash fingia que acreditava. Ele não podia contar a ela sobre a sua farsa, contar que nunca tivera amnésia, por mais forte que fosse o impulso de fazer isto, antes que ela se abrisse, primeiro. Precisava saber a causa de todas aquelas mentiras; fora Josephine quem começara, somente ela poderia terminar.
Ash ergueu o corpo, sem soltar Josephine, trazendo-a consigo. Em seguida, pôs-se de pé e levantou-a nos braços, carregando-a para o banheiro. Colocou-a de pé, perto da banheira, e tirou-lhe a camisa, deslizando-a por sobre os ombros. Josephine não ofereceu resistência quando ele lhe desabotoou o sutiã.
— Vamos tirar a roupa, princesa. Seu príncipe adivinhou que você estaria precisando de um banho quente e de um bom vinho, para relaxar.
Ele ignorou o calor que emanava da pele lisa e macia, a curva sensual dos seios sob o sutiã afrouxado, a cintura fina, o ventre firme. Teria de ser muito insensível para querer fazer amor com Josephine naquele momento, em que ela se encontrava tão abalada, emocionalmente. Em vez disso, virou-se, com o pretexto de encher os copos. Na verdade, não acreditava que seu cavalheirismo durasse muito tempo se ficasse ali, observando-a despir-se.
Ele ouviu o zíper da calça jeans correr, ouviu o roçar do tecido grosso nas pernas de Josephine, os pulinhos que ela dava para equilibrar-se. Fechou os olhos, agoniado, e esperou ouvir o som da água, para ter certeza de que ela estava dentro da banheira, antes de virar-se para olhá-la.
Josephine estava mergulhada na água até o queixo, a cabeça recostada para trás, na banheira, os olhos fechados.
— Hum... que delícia!
Ash tocou-lhe o rosto com o copo de vinho. Ela abriu os olhos e ergueu um braço para pegá-lo e beber um gole. Ash não conseguia desviar o olhar dos lábios dela, que tocavam delicadamente a borda do copo e o líquido rosado. Ela colocou o copo no peitoril da banheira e passou a língua pelos lábios, saboreando o vinho. Ash praguejou, em voz baixa.
— O que foi? — Josephine franziu a testa. Ele balançou a cabeça.
— Sou um cabeça-dura, desumano, movido por uma libido atroz, lamentavelmente desprovido de cavalheirismo e nobreza, não importa quanto eu me empenhe em simular.
A ruga na testa de Josephine se acentuou.
— Queira, por gentileza, falar em um idioma que eu entenda, Alteza?
— Está certo — Ash suspirou. — Eu quero você, Josephine. Aqui estou eu, sentindo-me gratificado que você tenha procurado meu apoio num momento difícil, que tenha confiado em mim para ajudá-la nesta crise. E tudo que consigo pensar é em tirar minha roupa e entrar dentro dessa banheira com você.
Josephine arqueou as sobrancelhas, porém Ash ergueu as duas mãos, antes que ela falasse.
— Não precisa dizer! Sou um canalha, eu sei... um sapo!
Por um momento, Josephine pareceu meditar. Tomou outro gole de vinho, e mais um, vagarosamente, enquanto Ash esperava uma recriminação. Em seguida pôs-se de pé, na banheira, estendeu os braços e começou a desabotoar lhe a camisa. Acariciou lhe o peito, deliciando-se com o contato dos pelos macios e deixou que suas mãos deslizassem até o zíper da calça jeans; abriu-o e introduziu os polegares dentro da calça, puxando-a para baixo.
— Me faz um favor, Ash?
— Diga — murmurou ele, com voz rouca, acariciando lhe os braços molhados, encontrando dificuldade para respirar.
— Deixe para mim a tarefa de ler a mente. Você não é bom nisso.
— Não?
Ela balançou a cabeça.
— Não. Eu também quero você. Quero que me abrace e que faça esse mundo louco desaparecer, nem que seja por algum tempo.
Ash acabou de livrar-se da roupa e entrou na banheira, com Josephine. Ela o enlaçou pela cintura e colou o corpo ao dele. Com um gemido, Ash inclinou-se para ela e capturou lhe os lábios num beijo lento e sensual. As mãos dele percorriam lhe as costas, traçando os contornos do corpo dela, para depois deslizarem até os quadris perfeitos e a parte posterior das coxas. Ele levantou as duas pernas de Josephine, entrelaçou-as ao redor de sua cintura, apoiando-as em seus quadris, e depois agachou-se lentamente para dentro da água, sem descolar os lábios dos dela, por um minuto sequer. Ash devorava a boca de Josephine e ela retribuía cada movimento de: sua língua com ardor. Depois de sentar-se dentro da água, Ash segurou a cintura de Josephine, suspendeu-a ligeiramente e posicionou-a sobre seu desejo pulsante, penetrando-a em seguida, arrancando-lhe o fôlego. Josephine moveu-se sobre ele, lânguida e vagarosamente, enquanto ele lhe beijava o queixo, a orelha, o pescoço.
Ela inclinou a cabeça para trás e arqueou o corpo para que Ash lhe beijasse os seios. Ele os tomou dentro da boca, circulando os mamilos com a língua, um depois do outro, como um homem possuído. O corpo de Josephine se movia com uma rapidez e intensidade cada vez maiores, aprofundando a penetração. Ash sugava-lhe os seios impiedosamente, até que ela gritou. Os dedos dela enterrados em seu cabelo incentivavam-no a continuar e ele lhe fez a vontade, deliciando-se com os tremores que lhe sacudiam o corpo a cada toque de seus lábios, de sua língua. O prazer de Josephine intensificava o de Ash e vice-versa; quando ele gemia ela se movia mais rápido, quando ele estremecia ela vibrava, em seus braços.
Em pouco tempo Ash viu-se imerso num mar de sensações, cada uma mais intensa que a outra, cada qual envolta pela essência de Josephine, por seu toque, seu perfume, seu sabor. Ele começava a perder o controle, à medida que lhe devorava mais uma vez os lábios, asfixiando-a com sua língua, que se movia no interior da boca de Josephine no mesmo ritmo que seu corpo e o dela.
Ash estava fora de si; teve apenas um segundo para perguntar-se se Josephine também teria atingido o auge, junto com ele. Logo em seguida ela deixou escapar um grito rouco e abafado e apertou-o com mais força, uma força ao mesmo tempo firme, sedosa e macia.
Abraçado a Josephine, Ash recostou-se na banheira, levando-a consigo. Por um longo tempo, massageou lhe os ombros e as costas.
— Hum... bom...
Ele sorriu, feliz por poder proporcionar a ela algo "bom", para contrabalançar as coisas não tão boas que estavam acontecendo em sua vida, naquele momento.
— Sente-se melhor?
— Sim — respondeu ela, sonolenta.
— Acha que vai dormir, agora?
— Hum, hum.
— Aqui mesmo, na banheira?
— O quê? — Ela levantou o rosto, surpresa.
— A água está esfriando, princesa.
— Pensei que os sapos gostassem de água fria.
— Este não gosta.
Josephine apoiou novamente a cabeça no peito de Ash.
— Bem... acho que aí está a prova final. Você não é um sapo.
— Não? — Ele amparou Josephine e levantou-se com ela.
Esticou o braço, pegou uma das toalhas e colocou-a sobre os ombros dela.
— Não. Você se transformou.
Ash deu um risinho quando ela apoiou a cabeça em seu ombro e fechou os olhos. Pingando água, ele a carregou de volta para o quarto. Enxugou-a ligeiramente com a toalha, depois afastou o acolchoado e ordenou-lhe que se deitasse.
— Como está a perna? — indagou, cobrindo-a até o pescoço.
— Está doendo só um pouquinho — Josephine se encolheu debaixo do acolchoado macio e fechou os olhos, deixando escapar um suspiro. — Acho que você foi príncipe o tempo inteiro, era eu que não conseguia ver.
— Eu não sou príncipe, Josephine.
Ela sacudiu os ombros, sem abrir os olhos. Ash enxugou-se com a mesma toalha e voltou para o banheiro, para esvaziar a banheira e enxugar o chão. Serviu-se de um pouco de vinho e levou o copo de Josephine para o quarto.
— O que vou fazer com o diário, Ash? — perguntou ela, inesperadamente, quando ele já começava a pensar que ela adormecera, de tão imóvel que estava.
— Por que não o lê? — sugeriu ele, sentando-se na cama.
— Acha que devo?
— Eu leria.
— Está bem — Ela assentiu.— Vou ler. Só que... não já. Tenho muita coisa com que me preocupar, no momento. A Fera, a separação de Carol e Ted, esta coisa, agora, com você...
— Que coisa comigo? — Ash franziu a testa.
Josephine virou o rosto para o outro lado.
— Não, tenho muito que fazer. Lerei em outra ocasião. Depois que tudo estiver resolvido.
Ash queria perguntar o que ela quisera dizer com aquela observação, porém logo se deu conta de que não precisava perguntar. Ele sabia. Não estivera, ele próprio, refletindo sobre aquela "coisa com ela"? Aquela sensação de proximidade, de afeto? Deveria supor, então, que Josephine se sentia da mesma forma em relação a ele? Talvez tivesse sido a convivência... talvez Josephine tivesse começado a gostar dele depois de planejar toda a trama, assim como acontecera com ele.
Ash olhou para Josephine e viu que ela finalmente adormecera; sua expressão estava relaxada, inocente. Linda.
Ele se levantou, foi até o armário e abriu a gaveta que Josephine esvaziara para ele. Pegou uma calça jeans limpa e uma camiseta e vestiu-se. Precisava sair. Sozinho. Precisava chegar ao fundo daquela questão. Não conseguiria definir seus sentimentos por Josephine enquanto não soubesse por que ela estava mentindo. E sabia, instintivamente, que não saberia enquanto o assassino não fosse detido, de uma vez por todas; porque uma coisa era óbvia: a farsa de Josephine estava diretamente relacionada com os crimes da Fera; que relação era esta, Ash não conseguia imaginar, mas descobriria.
Estava na hora de começar a agir seriamente e ele não podia se arriscar a levar Josephine consigo. Ela ficaria mais segura, em casa. Ash tomaria providências, neste sentido.
Josephine sabia que Ash saíra do quarto. Não que estivesse fingindo que dormia. Não, ela estava dormindo. Mas adormecera embalada pelo conforto e segurança que ele lhe transmitia. Acordou com um sobressalto, assim que estas sensações a abandonaram.
O que era aquilo?... Josephine afastou a sensação de embriaguez do sono e fez um esforço para concentrar-se no que estava sentindo. Escuridão. Uma sombra repelente, manchada de sangue, que sufocava, asfixiava. Frio. Violência. Morte. Ela levou uma mão à nuca e sentiu o suor frio que ameaçava descer-lhe pela espinha.
— Não... Não!
Sentou-se abruptamente na cama e levantou-se, quase perdendo o equilíbrio, ao fazê-lo. Correu para o armário, pegou a primeira roupa que encontrou e vestiu-se, apressada. Calçou um par de sapatos, sem meias, e quase voou para fora do quarto, retraindo-se cada vez que apoiava o peso do corpo sobre a perna machucada, porém recusando-se a mover-se mais devagar. Ash saíra. Não se encontrava em lugar nenhum, na casa; Josephine tinha certeza, mesmo sem procurar por ele. Começou a descer a escada, mancando, e parou, de repente. Virou o corpo para trás e olhou para a porta do quarto de hóspedes.
— Caro! — sussurrou, antes de olhar novamente para baixo, para o pé da escada. Proteger um significava deixar o outro sozinho, vulnerável.
O som de um carro parando na frente da casa atraiu lhe a atenção. Josephine desceu os degraus restantes e afastou a cortina. Era o carro de Caroline. Seu pai desceu e ficou de pé, imóvel, olhando para ela através da vidraça. Josephine afastou o cabo da vassoura, girou o trinco e abriu a porta.
— Pai! O que...
— Ashville me telefonou, pedindo que viesse.
Uma ruga de espanto surgiu na testa de Josephine.
— Ele disse que você pode estar correndo perigo. Por que não me disse nada, Josephine? O que está acontecendo, para você estar correndo perigo?
— Depois eu explico, papai. Agora, preciso encontrar Ash. É ele quem está correndo perigo, não eu. Ele lhe disse para onde...
— Ashville está em perigo?
— Onde ele está, papai?
Matthew deu um passo à frente e afagou a cabeça da filha.
— Você viu, Josephine, que ele está em perigo?
Ela assentiu, com veemência. Seu pai nunca duvidara que ela fosse sensitiva... paranormal. Era a única pessoa que nunca duvidara..
— Mas, e você? Tem certeza que está tudo bem? — insistiu ele.
— Sim, papai. Mas não tenho certeza quanto a Carol. Quero que fique aqui, com ela. Vigie a casa. Não deixe ninguém entrar, ninguém mesmo, nem a polícia! Minha pistola está em cima do criado-mudo, em meu quarto. Pegue-a e fique por aqui, tomando conta de Carol e das meninas.
— Você vai atrás de Ashville?
Ela assentiu.
— Eu preciso ir.
— Você gosta muito dele, não é, filha?
— Sim, papai. Muito.
— Ele disse que precisava fazer algumas perguntas a uma pessoa — lembrou Matthew, intrigado. — Tive a impressão de que ele suspeita que alguém esteja fazendo alguma coisa muito grave.
A pessoa de quem Ash suspeitava era o assassino, refletiu Josephine. Ted, ou Beverly Issacs?
Ela precisaria checar ambos. Segurou o braço do pai e fitou-o nos olhos.
— Isto não é brincadeira, papai. Não se descuide de Carol. Não me decepcione... outra vez — Ela o conduziu para dentro e virou-se para pegar a jaqueta de couro no encosto da cadeira onde a deixara. Em seguida saiu pela porta por onde o pai acabara de entrar. — Tranque a porta, papai.
Ele obedeceu e acendeu a luz do alpendre. Josephine marchou até a garagem, passou uma perna sobre a imensa motocicleta e deu partida. Felizmente, sua Harley sempre pegava na primeira tentativa. Empurrou o descanso com o pé, manobrou para trás e virou-se em direção à rua. Em seguida acelerou e desapareceu, dentro da noite.
A mensagem foi simples. "Encontre-se comigo para conversar a respeito da Fera." Ash só precisou proferir estas palavras na secretária eletrônica para que Beverly pegasse no receptor.
— Ash, que história é essa?
— Sou eu que pergunto. O que está fazendo ao lado do telefone, com a secretária ligada?
— O que você descobriu, sobre a Fera?
— Vamos conversar pessoalmente.
— Onde?
— Em algum lugar tranquilo. Que tal o local do último crime?
— Ora, seu... seu mórbido, miserável...
— Com medo que eu seja o assassino, Bev? Com medo de perder esse belo pescoço?
— Experimente e eu farei de você picadinho para os simpáticos habitantes do lago Onondaga, Ash Coye!
— Muito engraçado.
Ele desligou e depois tirou o carro de Josephine da entrada da casa o mais silenciosamente possível. Já telefonara para Matthew Bradshaw, explicando por alto o que estava acontecendo e pedindo que viesse tomar conta das quatro enquanto ele saía para fazer algumas averiguações. Se Beverly fosse culpada, uma hipótese na qual Ash acreditava cada vez menos, ela acabaria deixando transparecer alguma coisa. O gênio da mulher parecia uma bomba de nitrogênio e não demoraria muito para que explodisse. Então, Ash lhe arrancaria uma revelação e teria certeza.
Pelo menos, era o que Ash esperava. Valia a pena tentar.
Em todo caso, lá estava ele, na casa do homem idoso, em Central Square. Era uma casa pequena e simples e estava vazia, com aspecto fantasmagórico, o ar ainda impregnado com o odor enjoativo de mofo, deterioração e tabaco velho.
Ash passeou pela sala, de um lado para outro, observando o sofá marrom surrado, a poltrona com o estofamento rasgado e a cadeira de balanço. Um porta-revistas transbordava de jornais velhos e envelopes de correspondência antiga. Os cinzeiros estavam abarrotados de cinzas e tocos de cigarro, e meia dúzia de garrafas de vinho barato aguardavam, intocadas, sobre o aparador.
A porta não estava trancada. Ash olhou à sua volta e refletiu que havia poucas coisas de valor ali, para atrair um ladrão. O aparelho de televisão era antigo e pesado...
Ash se retesou ao ouvir um ruído atrás de si. Virou-se e vasculhou o aposento com os olhos. A luz era fraca, uma única lâmpada amarelada pendente do teto por um fio tortuoso. A porta da frente estava à sua esquerda, porém não fora dali que viera o som, e sim dos fundos da casa; Ash só não tinha certeza se viera de fora... ou de dentro.
Apertou os olhos na direção da cozinha, porém o batente da porta emoldurava um breu profundo; uma escada estreita levava ao andar superior, onde a escuridão também era total. Olhou novamente na direção da cozinha; não sabia se a casa tinha porão. A porta da frente ficara aberta... Alguém podia ter entrado e estar na casa, esperando...
Os pelos na nuca de Ash se arrepiaram quando ele deu um tímido passo à frente, na direção de onde viera o som. Parou e seu coração deu um salto violento ao ouvir uma batida na porta de madeira, atrás de si. Virou-se abruptamente, porém não teve tempo de perguntar quem era. Beverly abriu a porta e entrou, passando uma mão pelos cabelos curtos e espetados, antes de sacudir levemente a cabeça, como que preocupada que o vento da noite os tivesse despenteado. Como se tivesse muito que despentear!
— Obrigado por ter vindo — murmurou Ash, sentindo o coração bater fora de lugar, dentro do peito.
— É bom que seja de algum proveito, desta vez. Minha última experiência neste sentido foi deplorável.
Ash sacudiu os ombros e atravessou a sala, na direção de Beverly, esquecendo momentaneamente o ruído na cozinha.
— Não quer se sentar? — Ele gesticulou na direção do sofá.
— Não, obrigada.
Por um momento, Ash perguntou-se se teria sido indelicado.
— Não foi aqui que encontraram o corpo, foi?
— Claro que não. Você já teve oportunidade de contemplar a obra da Fera.
Beverly tinha razão, refletiu Ash. Não havia sinais de sangue na sala. Sua curiosidade aumentou. Aquela era a única cena de um crime que ele não examinara meticulosamente.
— Foi na cozinha — acrescentou Beverly. — Já esteve lá?
Ash balançou a cabeça, lembrando-se do ruído que ouvira pouco antes. Beverly olhou na direção da porta escura com expressão tensa.
— Um lago de sangue.
— Pior que os anteriores?
O olhar da sargento encontrou o de Ash, porém estava desfocado, como se ela estivesse vendo o crime, em vez dele.
— Ele lutou.
Ash engoliu em seco, tentando bloquear a imagem que aquelas duas palavras evocavam em sua mente. Não conseguiu.
— E então, o que você queria falar comigo?
Ash pestanejou, sentindo dificuldade em pular de um assunto para outro com a mesma rapidez de Beverly.
— Las Vegas — murmurou, com voz arrastada.
— O que tem Las Vegas?
— Ora, Bev, vamos! Você sabe do que estou falando. De uma série de assassinatos, semelhante à que está acontecendo por aqui. Você trabalhava lá, na época.
Beverly desviou o olhar e sacudiu os ombros.
— Quatro crimes. Eu não diria que foi uma série. E não foram como os de agora. Uma das vítimas foi mulher.
— Vejo que você andou dedicando alguma reflexão ao caso.
— É claro que sim, Ash! — retrucou ela, num misto de impaciência e indignação. — Você, não? Existem semelhanças, mas também existem diferenças. Cheguei à conclusão de que estamos lidando com dois assassinos diferentes.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Ash assentiu, esfregando o queixo.
— Porque a única outra resposta é de que se trata do mesmo lunático. E se for este o caso, precisamos começar a estabelecer os elos entre os crimes de Las Vegas e os daqui. Até agora, você é o único elo, Bev.
Ela se inclinou para frente, fuzilando Ash com os olhos.
— Aonde está querendo chegar, Ash? Por acaso está insinuando que tive alguma coisa a ver com os crimes?
— Só estou perguntando, Bev.
Ela estava de pé antes que Ash concluísse a frase.
— Vá para o inferno, Ashville Coye! Se você se atrever a fazer a mínima referência a mim como suspeita naquele seu jornaleco, vai se ver com tantos processos nas costas que...
— Calma, Bev. Você sabe que eu não divulgaria qualquer coisa sem fundamento. E o Chronicle não é um jornaleco. Rad não deixa escapar nada que...
— Você pode pegar Rad Ketchum e seu jornal e... — Ela se calou no meio da frase. — Ash! Então foi isso?! Sim, senhor... Aquele estúpido que você chama de repórter, revolvendo meus cinzeiros...
— Trata-se de mera precaução, Bev. Estou planejando usar amostras de DNA para eliminar as pessoas envolvidas.
— Por que não me pediu, simplesmente? Já mandamos analisar o DNA nos cigarros encontrados nos locais dos crimes.
Ash permaneceu em silêncio.
— Pensou que eu teria acesso aos resultados, não foi, Ash? Minha nossa, você realmente pensa que sou culpada. Não acredito!
— Escute, Bev, só estou tentando cobrir todas as bases.
— Você está tentando cobrir qualquer base que desvie a atenção de sua bela esposinha!
— Josephine não é suspeita. Ela estava comigo, na última vez em que a Fera tentou atacar.
— Isso não significa que ela não saiba de mais coisas do que quer confessar. Ela estava nas cenas dos crimes, não esqueça. Você devia estar atormentando sua esposa, não eu!
Ash suspirou e balançou a cabeça.
— Não pense que não sei que você a vem encobrindo, Ash. As vezes que você fez questão de afirmar que estava com ela quando os crimes foram cometidos, e sabe-se lá mais o quê! Se eu provar que você mentiu para a polícia, Ash, você vai se arrepender de ter nascido.
— Acalme-se, Bev! Não adianta nada exaltar-se. A única coisa que eu quero é esclarecer este caso, de uma vez por todas.
Ela se virou e começou a andar de um lado para outro, na sala, a passos largos.
— E então, tem algo útil para me dizer, ou planejou este encontro com a única intenção de me infernizar?
— Eu esperava que você tivesse algo útil para me dizer.
— Como o que, por exemplo?
— Como detalhes dos crimes de Las Vegas. Os fatos que foram omitidos nos relatórios oficiais. As peças que estão faltando para montar o quebra-cabeça.
Beverly parou de andar e olhou para Ash com a expressão mais fria que uma pedra de gelo.
— Não existe elo entre os crimes de Las Vegas e os de Syracuse. Nenhum. Se quiser perder seu tempo, perca sozinho. O meu é precioso demais, para isso.
Beverly encaminhou-se para a porta, porém Ash deu um passo à frente e a deteve, segurando-lhe o braço. Ela parou, mas não olhou para ele.
— Existe um elo e você sabe disso. Se não é você, preciso descobrir qual é, ou esse lunático vai continuar matando. É isso o que você quer?
Beverly empertigou-se, puxando o braço para desvencilhar-se de Ash.
— Estou decepcionada com você, Ash. Pensei que me conhecesse melhor. Éramos amigos! Estivemos... juntos! — exclamou ela, ressentida. — Sabe de uma coisa? Você está obcecado com essa história. Antes, você era objetivo... antes dela aparecer. Agora, é como se nada mais existisse, para você. Ela está envolvida até a raiz dos cabelos e você rastejando para ajudá-la a safar-se. Mas não vai adiantar.
— Josephine não está envolvida em nada.
— Vá dizer isso para alguém mais ingênuo, colega. Ela está escondendo alguma coisa e vou descobrir o que é antes que você me acuse só para livrá-la.
Ash abriu a boca para falar, porém Beverly interrompeu-o.
— Não negue que você a está protegendo.
— Não nego — admitiu Ash. — Você não pode me culpar por querer proteger minha esposa.
— Posso, se ela for culpada.
— Eu sei que ela não teve nada a ver com os crimes! Tenho tanta certeza disso como de que meu nome é Ashville Coye. Eu não a encobriria se soubesse que...
— Ora, Ash, você está tão embevecido com ela que perdeu a noção do que está fazendo! Mas vou lhe dizer o que você não vai fazer. Você não vai me atirar para os crocodilos, só para inocentar sua mulher — Ela balançou a cabeça, enquanto se virava novamente para sair. — Deve ser bom ter alguém que goste da gente a ponto de arriscar-se como você está fazendo. Sua esposa sabe como você tem se arriscado por ela, Ash? Sua carreira pode estar por um fio. Ela sabe disso?
Beverly girou a maçaneta e abriu a porta.
— Me avise quando tiver os resultados de seu precioso teste. Então você vai saber que não ando por aí na calada da noite, feito um lobisomem, rasgando gargantas.
Ela saiu para a noite escura, batendo a porta atrás de si. Ash ouviu o motor do carro roncar e afastar-se, um segundo depois. Recomeçou a caminhar pela sala, esfregando a nuca numa tentativa inútil de aliviar a tensão ali acumulada. Aquilo era como bater com a cabeça numa parede de tijolo e ele estava começando a achar que o tijolo era mais forte. Havia um fundo de verdade no que Beverly dissera. Se Josephine acabasse se revelando culpada e viesse à tona que ele mentira para protegê-la, sua carreira estaria liquidada.
Mas ela não era culpada! Ash passou uma mão pelo cabelo, exasperado. Estava andando em círculos, literal e figuradamente.
Forçou-se a parar de andar e olhou novamente para a cozinha escura. Já que estava ali, o melhor que tinha a fazer era dar uma boa olhada na cena do crime, por mais que não se sentisse predisposto a isto.
Aproximou-se da porta cautelosamente e esticou um braço, à procura do interruptor.
Josephine encontrou Ted sozinho, assistindo à televisão. Não se deu ao trabalho de bater à porta. Assim que o avistou pela janela, montou de novo na motocicleta e dirigiu-se para a cabine telefônica mais próxima. Colocou uma ficha e discou o número da casa de Rad Ketchum. Fora uma sorte ele ter lhe dado o número, quando lhe pedira que o mantivesse informado dos movimentos de Ash.
Radley atendeu com voz sonolenta, porém logo ficou alerta quando Josephine explicou a situação e pediu o endereço de Beverly Issacs. Rad ditou-o e ela desligou com um rápido murmúrio de agradecimento, interrompendo a torrente de perguntas que ele lhe fazia.
A casa de Beverly ficava a cinco minutos dali, porém Josephine cobriu a distância em três minutos e meio, com a motocicleta.
Apesar das luzes acesas, a casa estava mergulhada em silêncio. Josephine espiou pelas janelas, à procura de algum sinal de Ash ou de Beverly. Seu coração martelava com força dentro do peito... e então uma luzinha vermelha, piscando intermitentemente, atraiu lhe a atenção.
A secretária eletrônica estava ligada! Valia a pena arriscar... Josephine continuou a contornar a casa, até encontrar uma janela destrancada. Empurrou-a e pulou para dentro. Encaminhou-se diretamente para o aparelho e apertou o botão de playback. Escutou a mensagem gravada de Beverly, a voz de Ash, e a de Beverly, de novo, atendendo o telefone para falar com ele. A fita continuara a rodar e gravara a conversa inteira.
Vinte minutos mais tarde, Josephine se esgueirava do lado de fora da casinha de fundos, em Central Square. Deixara a moto estacionada atrás de um enorme carvalho, mergulhado nas sombras, alguns metros abaixo, na rua. Ninguém prestaria atenção nela, ali. Josephine viu Beverly entrar e aproximou-se, para escutar melhor. Alguma coisa pulsou em seu peito ao ouvir Ash defendê-la, ao ouvir Beverly dizer que ele estava embevecido com ela. Como gostaria que fosse verdade! Sabia muito bem, entretanto, que não era. Se Ash a protegia era porque pensava que ela fosse sua esposa e julgava ser sua obrigação. Quando soubesse a verdade... Pelo menos ela sabia que Ash não estava realmente arriscando, a carreira, uma vez que ela não era culpada; e ela faria tudo para evitar que ele dissesse mais uma única mentira para protegê-la. Beverly saiu pela porta da frente e Josephine abaixou-se atrás dos arbustos, para esconder-se. Esperou, na calada da noite, até ouvir o carro afastar-se. Depois pôs-se de pé, à espera de ver Ash sair, também; sua apreensão, porém, retornou quando ele não apareceu.
Josephine saiu de trás dos arbustos e espiou pela janela da sala. Ash não estava lá, mas o aposento anexo estava iluminado e... uma sombra se movia lá dentro. A mão escura, com garras, parecia apertar Josephine cada vez mais. Ela sentiu um pânico instintivo, que ameaçava fazê-la perder o controle. Esforçou-se para manter a calma e o bom senso, embora sempre de prontidão para agir. Mas seu coração estava disparado, a respiração ruidosa.
Ash estava parado no meio da cozinha, as feições contorcidas numa careta. Com uma mão ele cobria o nariz e a boca, enquanto examinava o aposento. Josephine correu silenciosamente até a janela da cozinha e espiou para dentro. O fôlego ficou preso em sua garganta. Havia várias manchas escuras no chão e nas paredes, com formas grotescas, quase como se se movessem.
O sangue de Josephine gelou repentinamente. Uma das manchas estava se movendo. Não, não era uma mancha, era uma sombra! Um braço, que se levantava, com uma lâmina afiada na mão...
Josephine deu um passo à frente e escancarou a porta dos fundos, gritando o nome de Ash. A porta atingiu um corpo volumoso uma fração de segundo antes da lâmina afundar na garganta de Ash. Josephine ouviu um baque quando o corpo caiu ao chão. Atirou-se sobre Ash e arremessou-se com ele para fora daquela câmara da morte, pela porta de ligação entre a cozinha e a sala. Ambos cambalearam para o chão, Josephine caindo em cima dele. Aterrorizada, ela pôs-se de pé desajeitadamente e virou-se na direção da porta, no instante em que a luz se apagava. Não viu nada, apenas um vulto indefinido na escuridão. Posicionou-se valentemente entre Ash e a porta.
— A polícia está a caminho, Ash. Você se machucou?
Josephine ouviu-o levantar-se, atrás dela. Sentiu as mãos dele em seus ombros, mas permaneceu onde estava, resoluta, recusando-se a afastar-se um centímetro. Com os olhos apertados, procurava focalizar a forma escura que se movia na direção deles.
— Venha — Ela abriu os braços para proteger Ash. Sua respiração estava ofegante e seu coração batia com tanta violência que parecia sacudir-lhe o corpo inteiro. — Venha! Se você quer Ash, terá de passar por mim, primeiro. E é bom você fazer a coisa direito, porque no momento em que me tocar, eu saberei. Saberei quem você é, ouviu bem?! Não estou muito longe. Encoste em mim e tudo ficará completo. Eu sinto! É por isso que somos tão ligados, você e eu. Você é cruel, é doente, e sou eu quem vai deter você. Sou a única pessoa que pode fazer isso. Portanto, venha, venha logo, se acha que tem tempo. Venha!
O vulto congelou no centro da cozinha escura. Em seguida uma voz rouca, obviamente disfarçada, sibilou:
— De uma outra vez, vagabunda. Em breve — O vulto moveu-se e desapareceu na noite, pela porta dos fundos.
Ash deu um salto para frente, para segui-lo, porém Josephine segurou-lhe o braço, impedindo-o de fazer aquela loucura. Seus joelhos tremiam; seu corpo inteiro tremia, em reação ao que acabara de acontecer, e toda aquela inesperada coragem esvaiu-se rapidamente.
Ash puxou-a para si e abraçou-a.
— Sua doida — murmurou, antes de segurá-la pelos ombros e afastar o rosto para estudá-la. — Está tudo bem?
Josephine assentiu e abraçou Ash, apoiando a cabeça em seu peito, os olhos fechados. Abriu-os, porém, alarmada, ao sentir algo quente e úmido no pescoço de Ash. Virou o rosto abruptamente e contemplou a própria mão, antes de olhar para o pescoço dele.
— Ash! Você está ferido! — exclamou, sentindo o pânico retornar.
Ash levou os dedos ao pescoço e balançou a cabeça.
— É um corte superficial. Você bateu a porta no miserável na hora certa — Os olhos dele escureceram e uma ruga franziu lhe a testa. — Você podia ter morrido, Josephine.
— Você, também. Está maluco, para vir aqui sozinho, no meio da noite, encontrar-se com uma suspeita?
Os faróis de um carro iluminaram a janela da sala e os freios chiaram. Um segundo depois Radley irrompeu pela porta adentro.
— O que... — Ele praguejou ao ver o sangue no pescoço de Ash e, num gesto instintivo, correu para ampará-lo.
— Não foi nada, Rad.
— Eu a vi, Ash, eu a vi! Correndo pela rua, uma mulher grande, alta. Estava segurando uma faca. Pensei que o encontraria morto.
— Encontraria, se não fosse Josephine — Ash passou um braço sobre os ombros dela. — Em que direção a Fera fugiu?
— Para leste, mas correu para dentro de um beco, e pode ter mudado de direção, depois disso. Chamei a polícia pelo celular.
Ash olhou para Josephine, com uma ruga na testa.
— Pensei que você tivesse chamado.
— Eu só falei aquilo para assustar a Fera.
Ash assentiu, enquanto Radley corria para a cozinha, acendia a luz e tirava um lenço branco limpo do bolso para molhá-lo na pia. Voltou para a sala e Ash encolheu-se quando ele pressionou o lenço em seu pescoço. Arrancou-o das mãos do editor e segurou-o, ele próprio, sobre o corte.
— O que está fazendo aqui, Rad? Como sabia que...
— Eu telefonei para ele — declarou Josephine. — Eu sabia que você tinha ido se encontrar com alguém de quem suspeitava. Fui até a casa de Ted e encontrei-o sozinho, então telefonei para Radley e pedi o endereço de Beverly Issacs.
— E? — incentivou Ash.
— Você não vai gostar, mas eu também não gostei que você saísse de casa, deixando meu pai para tomar conta de nós — Ela fez uma pausa para recuperar o fôlego. — Eu entrei na casa de Beverly e escutei a conversa gravada na...
— Você entrou na casa de Bev? — interrompeu Ash, perplexo.
— Uma das janelas estava aberta. Entrei e escutei a conversa gravada na secretária eletrônica. Foi assim que eu soube que você estava aqui.
Ash balançou a cabeça, contrafeito.
— E como você sabia, Rad?
— Josephine parecia tão aflita, no telefone, que decidi ir ao encontro dela, na casa de Bev, e ver se podia ajudar em alguma coisa. Mas quando cheguei lá, ela estava arrancando como um foguete, na moto.
— E se você a seguiu, por que demorou tanto para chegar?
Josephine surpreendeu-se com o tom acusador na voz de Ash.
— Calma, Ash! Sua esposa é um furacão, em cima de duas rodas: Eu a perdi de vista e rodei cerca de três quilômetros por aí, tentando encontrá-la. Foi quando me dei conta de que estava perto daqui. Acho que foi meu subconsciente que me atraiu para cá. Quando vi a moto estacionada debaixo de uma árvore, aqui perto, resolvi entrar para dar uma olhada.
Josephine levou uma mão à compressa que Ash segurava e afastou-a. O corte era pequeno e superficial, pouco mais que um arranhão, logo acima da jugular. Se a lâmina tivesse penetrado um pouco mais fundo...
— Vamos para casa? — sugeriu ela, ansiosa. — Não gosto da ideia de Carol, sozinha com as meninas e meu pai...
Josephine foi interrompida pelo som estridente de sirenes, cada vez mais alto, do lado de fora da casa.
— Vá na frente, Josephine — Ash afagou-lhe a cabeça. — Vou ficar por aqui mais algum tempo, para responder às perguntas da polícia.
Josephine segurou a mão dele, imobilizando-a.
— Ash, será possível que você não entende? O assassino quer pegar você! Não quero que se afaste do meu lado, nem por mais um segundo.
Ash sorriu, bem humorado.
— Está certo, guarda-costas.
— Não brinque.
— Quem está brincando? Você acabou de salvar minha vida — Ash ficou sério e seus olhos brilharam intensamente. — Mas olhe... se alguma coisa tivesse acontecido com você, eu jamais a perdoaria.
Ele a puxou para si e a abraçou.
— Por favor, Josephine, pare de se arriscar dessa maneira, por minha causa. Não sei o que eu faria, se algo ruim lhe acontecesse.
Os policiais entraram, liderados por Beverly Issacs.
— O que está acontecendo? — exigiu ela, olhando para Ash.
— Mal acabei de sair daqui, recebi a mensagem, pelo rádio, que a Fera foi vista aqui por perto.
Josephine e Ash se entreolharam e Josephine sabia que ele estava pensando a mesma coisa que ela. Beverly Issacs realmente saíra dali?
Josephine sentia-se lamentavelmente patética. Um assassino esgueirava-se dentro dela. Ela sentia a invasão, a maldade, a escuridão, a fúria. Sentia o ódio dele por Ash e combatia-o com o amor que sentia pelo mesmo homem.
Ela ia se sentar em um canto, em algum lugar, e enlouquecer lentamente.
Ash podia ter morrido, na noite anterior, nas mãos da Fera. E se ele tivesse morrido? O que ela iria fazer, se isto tivesse acontecido?
Sossego. Paz. Era o que Josephine precisava naquele momento, em superdoses. Ainda estremecia quando se lembrava da noite anterior. O vulto sinistro, a lâmina... quando ficara frente a frente com a personificação da sombra da morte; quando finalmente compreendera por que seu destino estava tão interligado com o de um assassino. Ela tinha de deter a Fera; talvez fosse este o único propósito de seu "dom"; talvez fosse esta a missão que o destino lhe reservara. A perspectiva era assustadora e Josephine não tinha certeza de ser capaz de cumpri-la.
— Você ainda está tensa.
Ash massageava o pescoço e os ombros de Josephine, transmitindo-lhe calor e segurança. Ela contemplou o feixe de luz dourada que o sol nascente lançava sobre a água escura do rio.
— Estou tentando, mas não consigo relaxar.
— Você não dormiu, à noite.
— Ao contrário de você, que dormiu feito uma pedra. Não sei como conseguiu, depois de estar a um passo de...
— Não pense mais nisso, Josephine.
Ela levantou a cabeça e virou-se para Ash..
— Como posso não pensar? Eu quase perdi você!
— Mas não perdeu. E nem vai perder.
— Vou, sim, Ash — Os olhos dela se marejaram de lágrimas. — Vou perder, e é isso que está me deixando desesperada. Quando você se lembrar... quando souber...
— Sim? Continue — incentivou Ash, fitando-a nos olhos, quando ela se calou. — Quando eu souber o quê?
Josephine virou novamente o rosto para baixo, apoiando o queixo nas mãos sobrepostas, tentando reunir coragem para ser honesta com ele de uma vez por todas, ao mesmo tempo em que sabia que não podia fazer isto. Não podia deixar Ash sair de sua vida. Ainda não. Não, antes que ele estivesse livre da ira do assassino. Talvez ele a odiasse, depois, mas teria valido a pena salvar-lhe a vida.
Oh, o destino estava lhe pedindo demais!
— Eu sei que você está escondendo alguma coisa de mim, Josephine. Alguma coisa séria, importante.
Josephine permaneceu imóvel e em silêncio.
— Diga, Josephine. Confie em mim.
Ela virou-se lentamente e sentou-se, para olhar Ash de frente. Os olhos dele pareciam ainda mais escuros e Josephine sentiu-se aprisionada por eles, cada vez mais fundo, como se estivesse num poço de areia movediça. Não se importaria de afogar-se naqueles olhos. Oh, como o amava! E ia contra tudo o que ela acreditava, amar um homem com tamanha paixão e, ainda assim, mentir para ele. Talvez ele compreendesse... Talvez a perdoasse.
— Ash, eu não... nós não...
Josephine foi interrompida por uma voz que chamava seu nome. Pestanejando, surpresa, mal acreditando que por pouco não pusera tudo a perder, ela se virou para ver Ted atravessando o gramado em direção ao rio. Ouviu o suspiro de frustração de Ash, mas não desviou o olhar de Ted, conforme este se aproximava e parava na entrada do deque, diante dela. O humor dele não estava dos melhores.
— Carol ainda não acordou?
Josephine franziu a testa, perplexa. Como ele sabia que Carol estava lá? O carro não estava na frente da casa, seu pai o levara de volta para o hotel...
— Carol? — repetiu ela, tentando pensar numa desculpa.
— Não perca seu tempo, Josephine, porque você não sabe mentir. Seu pai me telefonou, ontem à noite. Sei que Carol e as meninas estão aqui.
— Ela ainda dormia, quando vim para cá, Ted — Ash estendeu uma mão para ajudar Josephine a levantar-se e desceu do deque com um braço nos ombros dela. — Vamos entrar e tomar um café.
Josephine, entretanto, recusou-se a andar. Lançou um rápido olhar para Ash e depois enfrentou o de Ted.
— Olhe, se Carol quiser falar com você, ela vai procurá-lo.
Ted balançou a cabeça.
— Desta vez, não, Josephine. Preciso vê-la. Precisamos conversar — Ele fez uma pausa, antes de perguntar: — Como ela está? Já leu o diário?
Josephine arregalou os olhos, atônita.
— Não acredito que meu pai lhe contou...
— O que, Josephine? O precioso segredo de família? Eu também sou da família, esqueceu?
Ash apertou levemente o ombro de Josephine.
— Ted tinha o direito de saber, meu bem. O que está acontecendo entre Carol e seu pai tem influência direta no casamento deles.
— O único problema no casamento deles é Ted — retrucou Josephine, irritada, sem desviar os olhos de Ted. — As saídas misteriosas à noite, as explicações mentirosas, as quantias de dinheiro que desaparecem, os telefonemas e encontros a toda hora. Pensa que minha irmã é idiota? Pensa que ela não sabe o que anda fazendo?
— A única coisa que ando fazendo é tomar conta da maluca de minha cunhada! Quer parar de me acusar, e...
— Tomar conta de mim? — interrompeu Josephine, incrédula.
— Que história é essa? Por favor, Ted, não me diga que espera que eu acredite! Eu confiei em você! Amei você como se fosse meu irmão, e você me decepcionou. Decepcionou Carol! Você partiu o coração dela, e o meu, também, com sua infidelidade!
Ted olhava para Josephine, atônito, emudecido. Foi Ash quem rompeu o silêncio opressivo que se seguiu.
— Assim como seu pai, Josephine?
Josephine olhou para ele, a expressão transtornada. Abriu a boca para falar, porém Ted finalmente recuperou a voz e adiantou-se a ela.
— Josephine! Eu estava preocupado com você! E não podia dizer nada a Carol. Se ela não acreditasse em mim, me odiaria por ser capaz de desconfiar de você, e se acreditasse, teria morrido. E eu não podia ir à polícia... Precisava proteger você, ajudar...
— Ajudar? — Josephine balançou a cabeça, confusa. — Do que está falando, Ted?
— Dos crimes, Josephine. Você está obcecada com os crimes, desde que ocorreu o primeiro. Ficou diferente, estranha... preocupada. E eu sabia como você se sentia em relação a seu pai.
Josephine arregalou os olhos, horrorizada.
— Você pensou que eu fosse a assassina?
— A princípio, não. A princípio eu só queria saber por que você estava tão interessada nos assassinatos. Então contratei um detetive particular. Os relatórios dele eram cada vez mais comprometedores! Você estava sempre presente nos locais dos crimes, e havia os tocos de cigarro e... depois, sua ligação com Ash. O que você queria que eu pensasse, Josephine?
— Você contratou um detetive para me espionar? — explodiu Josephine, cada vez mais inconformada.
Ted assentiu.
— Foi onde gastei o dinheiro. Os encontros e telefonemas, também. Eu não podia contar a Carol.
Josephine sentia-se como se tivessem lhe acertado a cabeça com um martelo. Apesar de tudo, reconhecia que não podia se zangar com Ted por ter suspeitado dela. Ela, também, não suspeitara dele? Baixou a cabeça e deixou escapar um longo suspiro.
— Ted, Ted... você é um idiota — Ela fez uma pausa, antes de perguntar: — Ainda acha que sou uma assassina lunática?
— O detetive disse que o assassino tentou atacar Ash duas vezes, e que em ambas as ocasiões você estava com ele. Eu diria que isto prova a sua inocência.
— Sua confiança em mim é espantosa — observou Josephine, enquanto os três começavam a caminhar em direção à porta dos fundos. — E se seu detetive lhe dissesse que eu era a assassina, Ted? O que você faria?
— Tenho várias listas de informações sobre sanatórios.
— Oh...
Assim que entraram, Ted foi abordado pelas filhas, ambas usando camisolas idênticas, cor-de-rosa, com a figura de um conhecido dinossauro, na frente. Pularam nos braços do pai, que as segurou, com a prática que possuía, uma de cada lado. Beijou-as e em seguida seu olhar foi atraído para Caroline. Ela estava parada no topo da escada, usando um conjunto de moletom, o cabelo preso num rabo-de-cavalo.
— Senti sua falta, Carol.
— Eu, também.
— Precisamos conversar.
Ash suspirou, aliviado, quando os quatro se despediram e saíram. Ele se sentira mais leve ao contemplar a expressão de felicidade no rosto de Caroline, depois que esta passara uma hora conversando a sós com Ted. Tinha certeza, agora, que Ted não tinha nada a ver com os assassinatos. Em parte, por instinto, mas principalmente porque tinha provas. Enquanto Caroline e Josephine arrumavam as malas das meninas, no andar superior, ele tivera uma conversa franca com Ted. Este não só lhe fornecera o nome do detetive particular que contratara, como também mostrara a Ash alguns dos relatórios que recebera. Era evidente que o detetive investigara os crimes com o propósito de encontrar evidências contra, ou a favor, de Josephine. Ted não contrataria alguém para descobrir se Josephine era a assassina se ele próprio fosse a Fera de Syracuse.
Mais um suspeito era eliminado da lista. Ash não queria acreditar que Beverly Issacs fosse uma assassina desalmada, mas, infelizmente, tudo levava a crer que era.
Pelo menos, Caroline e as meninas estariam fora de perigo, naquela noite e no dia seguinte. Passariam o fim-de-semana em um hotel, no complexo de um famoso parque de diversões, onde as meninas teriam distração e Ted, oportunidade de namorar a esposa.
O sortudo de uma figa!
Ash invejava Ted. Olhou para o sofá, onde Josephine se deixara afundar, exausta. Ela lançava repetidos olhares para o diário, no carrinho de chá.
— Por que não o lê agora? — sugeriu Ash.
Ela balançou a cabeça.
— Não vou conseguir.
— Deixarei você sozinha para...
— Não! Sem você, não terei coragem.
— Então...
— Leia comigo, Ash.
Ash inclinou a cabeça para um lado, sorridente.
— Sente-se aqui, me abrace e leia o diário comigo, por favor.
As emoções nos olhos de Josephine, a dor, o medo, e uma outra, indefinível, atraíam Ash como um ímã. Era como se existisse uma substância invisível, que quisesse fundi-lo a ela, alma com alma, cor com dor. Era algo tão íntimo que Josephine lhe pedia para compartilhar... Ele não podia recusar, mesmo que quisesse.
Sentou-se ao lado dela e passou um braço sobre seus ombros. Ela recostou a cabeça no ombro de Ash e esticou um braço para pegar o livro. Contemplou-o por alguns segundos, antes de finalmente abri-lo, com mãos trêmulas.
Nuvens escuras se acumulavam no céu, bloqueando o sol, e os trovões reverberavam a distância. Josephine chorava como há muito tempo não fazia. Soluços violentos e incontroláveis ameaçavam parti-la ao meio, por dentro. Ash abraçou-a, em silêncio. Depois beijou-a e fez amor com ela, com ternura, com toques e carícias suaves que pareciam absorver o sofrimento, de Josephine para si. Ao final, ele lhe refrescou o rosto com uma toalha úmida.
A vida de Josephine fora uma mentira. Tudo em que ela sempre acreditara sobre os pais, sobre a família, fora um grande faz-de-conta. Seus pais nunca haviam se amado; ambos tinham outra pessoa. Haviam ficado juntos apenas por causa das filhas e nenhum dos dois fora capaz de contar a verdade, até a noite anterior, quando seu pai não suportara mais.
Josephine não acreditara. Ainda não queria acreditar, mas era inevitável, agora. Todas as provas que ela precisava estavam em suas mãos, escritas pelo punho de sua própria mãe.
— Tudo bem, Josephine? — Ash passava-lhe uma escova macia nos cabelos, com movimentos relaxantes.
O empenho que ele tinha em fazê-la sentir-se melhor!... Josephine idolatrara os pais, quando criança. Depois sofrera pela mãe e desprezara o pai. E agora... agora...
— Não sei o que pensar sobre meu pai, Ash.
— Dê tempo ao tempo. Você vai acabar aceitando. Afinal, ele sempre foi um bom pai para você e sua irmã, e agora que você sabe que ele não fez sua mãe sofrer...
Josephine balançou a cabeça.
— Não sei se vou conseguir.
— Claro que vai. Foi um choque, mas com o passar do tempo, isso não vai mais lhe causar sofrimento.
Ela fechou os olhos quando Ash deixou a escova de lado e substituiu-a pelos dedos.
— Eu não teria enfrentado isto sem você. Você me tirou a dor, Ash, e eu gostaria de...
Ash pôs-se diante de Josephine, ajoelhou-se e olhou para ela.
— Você gostaria?...
— De fazer o mesmo por você. De tirar de você a dor que sua mãe causou — Ela viu os músculos do rosto de Ash enrijecerem. Segurou-o entre as mãos e inclinou-se para frente, para beijá-lo. — Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria. Ficaria com você, todas as vezes, dentro do quartinho. E abraçaria você, até que a porta se abrisse de novo.
Ash arregalou os olhos, estarrecido, porém antes que dissesse alguma coisa o telefone tocou, rompendo o frágil elo que Josephine sentira começar a formar-se entre ambos. Ele se levantou e desviou o olhar. Pegou no telefone, enquanto Josephine procurava, no fundo de sua mente, um meio de aliviar aquela ferida profunda no coração dele.
Ash falou calmamente e depois desligou.
— Ted — disse a Josephine, evitando olhar para ela de frente. — Algum problema?
— Estão preocupados com Félix. Ele estava fora de casa quando saíram, e vai cair um temporal. Fomos eleitos para ir até lá, encontrar o gato e levá-lo para dentro. Ted disse que você tem uma chave.
Josephine assentiu, olhando para a escuridão do lado de fora.
— É bom nos apressarmos. Vai começar a chover a qualquer instante.
A previsão de Josephine estava correta. Ash dirigiu o carro dela através do dilúvio, com os limpadores do para-brisa na velocidade máxima. Josephine esperava que a chuva tivesse diminuído quando chegassem à casa de Carol, mas chovia ainda mais torrencialmente quando pararam na entrada de carros, pingos enormes ricocheteando na capota do carro como pequenas explosões.
Depois de trocarem um longo olhar do tipo "agora ou nunca", ambos saltaram para fora do carro, em direções opostas, chamando "Gatinho, gatinho", com toda a força de seus pulmões, elevando suas vozes acima do ruído ensurdecedor do temporal.
Finalmente, Josephine ouviu um uivo lamentoso e seguiu a direção do som. Félix estava em cima de uma árvore, no jardim dos fundos, olhando para baixo e miando, inconsolável.
— Ash, ele está aqui!
Ash correu para junto de Josephine e ela o contemplou, por um instante. Seu cabelo estava colado à cabeça e os pingos de água lhe escorriam pelo rosto abaixo. Ela riu e Ash levantou-os braços, desamparado.
— Não caçoe, princesa, porque você não está menos ensopada que eu — Ele a abraçou, deu-lhe um beijo longo e molhado, e em seguida marchou até a árvore e começou a subir agilmente. — Se isto não me elevar a príncipe, nada mais o fará.
Ash escalou a árvore, pegou Félix e depois enfrentou a descida, carregando um gato pesado e assustado em um braço enquanto com o outro segurava-se nos galhos.
Correram para casa e Josephine abriu a porta. Ash colocou Félix no chão da cozinha e olhou para suas roupas encharcadas, que formavam rapidamente uma poça a seus pés.
— E agora?
Félix levantou a cabeça e choramingou longamente.
— Teremos de pegar emprestado algumas roupas de Carol e de Ted. Eles não vão se importar. Afinal, salvamos Félix de um destino pior que a morte.
— Tem certeza?
— Claro! — Josephine se abaixou para pegar o gato e dirigiu-se para a escada, com Ash em seus calcanhares. No andar superior, mostrou a ele onde ficava o quarto e levou Félix para o banheiro, para esfregá-lo com uma toalha. Pouco depois Ash entrou, usando um agasalho de moletom de Ted. Pegou outra toalha e começou a enxugar o cabelo.
— Vá se trocar logo, Josephine.
— Preciso secar Félix, primeiro. Ele pode pegar uma pneumonia.
— Você, também.
Eles se entreolharam e as mãos de Josephine ficaram paralisadas, no dorso do gato, que se contorceu e pulou graciosamente das pernas dela para o chão, o pelo malhado despenteado formando estranhos padrões em seu corpo.
Ash pigarreou discretamente.
— Podíamos ficar por aqui e esperar a chuva passar, não acha?
Josephine concordou.
— Parece que ainda vai continuar por algum tempo.
— Sim. É melhor eu avisar Rad, para o caso dele me procurar.
—Tem um telefone na cozinha. Por que não aproveita e prepara um chocolate quente para nós, no microondas?
— Boa ideia — Ash virou-se para descer. Depois parou e olhou para Josephine. Havia uma espécie de ansiedade em seus olhos, um brilho que ela não soube definir.
— Josephine, eu... — Ele hesitou. — Nada... Vá se secar, sua boca está ficando roxa.
Eu te amo. Era isto que Josephine achava que ele ia dizer.
Josephine, eu te amo. Ela só não tinha certeza se fora sua mente sensitiva que captara a mensagem, ou se era simplesmente a frase que ela queria ouvir. Viu-o afastar-se, estremeceu e correu para o quarto de Carol para procurar roupas secas.
Seguindo o exemplo de Ash, escolheu uma calça de moletom, porém preferiu vestir uma camiseta em vez do agasalho; completou o traje com um par de meias grossas e tênis. Secou os cabelos com uma toalha e penteou-os, dando-se conta, de repente, que não estava sofrendo com as revelações do diário. Ash tinha razão ao dizer que o pior fora o choque; agora, o conhecimento dos fatos parecia penetrar pouco a pouco sua mente e seu coração, acalmando-os em vez de consumi-los.
Josephine olhou para o telefone e pensou em ligar para o pai, no hotel. Pelo menos, para dizer que lera o diário. Lembrava-se da dor estampada no rosto dele quando discutiram, quando o chamara de mentiroso. Rotulara-o de mau caráter, mas estava enganada. Ainda estava zangada, ou melhor, magoada, por seus pais terem mentido para ela e para Carol. Mas condenara um homem inocente pelo crime errado. Será que ele não merecia um telefonema? Sim, pelo menos isso.
Ash já devia ter terminado de falar com Radley. Josephine pegou no receptor, ainda hesitante, porém quando o levou ao ouvido escutou o som de vozes. Ash ainda estava falando com Rad. Balançou a. cabeça e baixou o receptor para recolocá-lo no gancho, quando estacou, repentinamente.
— Então ela ainda está mentindo para você — resmungou a voz de Rad.
Josephine olhou para o receptor com uma ruga na testa e lentamente levou-o de volta ao ouvido.
— Ela quase disse a verdade hoje, Rad. Eu sei que ela vai acabar dizendo. É só uma questão de tempo.
— Você não tem tempo, meu amigo. Acho melhor dizer logo a ela que sabe de tudo. Diga que você nunca teve amnésia, que sabe que vocês não são casados. Force-a a abrir o jogo.
— Rad, eu não posso fazer isso.
— Precisamos saber o que ela pretende, Ash! Por que ela inventou essa história de casamento, o que ela sabe sobre o assassino...
O receptor caiu da mão subitamente entorpecida de Josephine e bateu no chão.
— O que foi isso?
Ela ouviu uma voz masculina perguntar, porém ignorou. Virou-se e deixou-se cair sentada na cama, fitando o vazio, sem enxergar coisa alguma, sentindo o coração despedaçado: Ouviu Ash murmurar alguma coisa ininteligível e, a seguir, o silêncio.
Logo depois, passos apressados soaram na escada. Ash parou na porta do quarto e Josephine sabia que ele estava olhando para ela, para o receptor do telefone no chão, para ela, de novo.
— Josephine?
Ela não se moveu. Não podia olhar para Ash. Desmontaria, se fizesse isto.
— Você sabia. Sabia o tempo inteiro.
— Josephine, não é...
— Não sabia?
Ele ficou em silêncio, por um momento.
— Sim.
— E ainda assim me enganou. Você nunca teve amnésia.
— Eu enganei você?! Josephine, você me disse que éramos casados!
— E você fingiu acreditar. Por quê?
Ash aproximou-se da cama e levou uma mão ao rosto de Josephine, porém ela se afastou. Ele não insistiu.
— Porque eu precisava descobrir por que você estava fazendo aquilo. Achei que tinha alguma coisa a ver com os crimes, e precisava ter certeza.
Josephine meneou a cabeça, vagarosamente.
— Para ter uma história. Você me enganou por causa de uma história para o jornal.
— Josephine, você está distorcendo as coisas! Foi você quem começou a farsa, não eu! Vai me dizer que tinha um motivo melhor que eu?
Depois de um longo tempo Josephine virou-se para Ash e fitou-o, com os olhos marejados de lágrimas.
— Eu sabia que o assassino ia matar Carol. Eu vi. Ela estava caída no chão, com o rosto para baixo, a camiseta ensopada de sangue, as pontas do cabelo também. E tinha uma faca no chão, perto dela. E o assassino, chegando perto — Josephine fechou os olhos e esfregou-os, com as pontas dos dedos. — E vi você, também, Ash. Você é a vítima, antes de Carol. A Fera quer matar você, e depois Carol. Eu precisava fazer alguma coisa. Precisava romper a corrente e senti que tinha de rompê-la com você.
Os olhos de Ash se arregalaram, conforme estudavam o rosto de Josephine.
— Você teve uma visão? Você armou tudo isso, achando que salvaria a vida de sua irmã?
— No princípio, foi por causa dela. Mas mal eu conheci você, tornou-se tão importante para mim salvar você quanto Carol. Você me fez sentir assim. Me fez pensar... o tempo todo... Oh, Ash, eu fiz amor com você! Como pôde permitir, sabendo da verdade, quando estava só fingindo?
— Josephine, eu não estava...
— Você deixou que eu me apaixonasse por você! Droga! Droga, Ash!— Ela se levantou e correu para a porta.
— Josephine, espere!
Ela parou, mas não se virou para trás.
— Você está... apaixonada por mim?
Josephine respirou fundo. Ele representava bem, o canalha, fingindo que se importava, quando na verdade... As lágrimas lhe rolaram pelo rosto, mas ela não deixaria que Ash as visse.
— Estava, Ash. Tempo passado.
Ela arrancou a aliança do dedo e atirou-a para o chão, antes de disparar escada abaixo e sair pela porta da frente, sem olhar para trás. Correu debaixo da chuva, entrou no carro, deu partida e acelerou, cantando os pneus no asfalto molhado e derrapando, antes de desaparecer dentro do dilúvio.
Ash abaixou-se para pegar o aro dourado no chão, contemplou-o por um segundo e passou uma mão pelo cabelo, num gesto de frustração. Josephine não estava boa da cabeça! Estava zangada com ele por tê-la enganado, quando ela o enganara da mesma forma, ou mais! Culpava-o por tê-la deixado apaixonar-se!
Apaixonar-se.
Josephine gostava dele!
Ash ficou paralisado por algum tempo, no meio do quarto, enquanto aquela revelação penetrava-lhe os ossos, chegando-lhe ao fundo do coração. Ele sentiu algo dentro de si... a antiga ansiedade, o menino de quem tentara livrar-se; o menino que precisava de amor, mais do que de luz, calor, ou mesmo de ar. O abismo profundo dentro dele já não estava tão vazio. Só então Ash se deu conta, perplexo, que não estava vazio fazia algum tempo. Porque, embora Josephine não tivesse verbalizado antes seus sentimentos, ela o vinha preenchendo com suas palavras, com seus gestos, com sua presença. Seus beijos, seu corpo, seu fôlego haviam preenchido o poço dentro de Ash. Não existia mais vazio; aquele espaço estava repleto, transbordava. Ash transbordava, de amor por Josephine. Não era de admirar que suas emoções andassem tão confusas. Ele a amava... estava apaixonado, também.
Ash ouviu o carro afastar-se. Não podia perdê-la. Não, agora! Precisava fazê-la entender seus motivos. Mas como?
Ele correu para a escada, para ir atrás dela, e só então se deu conta que não podia fazer isto. Ela o deixara a pé! Oh, não podia permitir que Josephine continuasse acreditando no que acabara de acusá-lo... que nada daquilo tivera importância para ele, que ele estivera simplesmente representando, o tempo todo. Se ele representara, Josephine fizera o mesmo!
Ash voltou para o quarto e encaminhou-se para o telefone ainda caído no chão. Isso mesmo, ligaria para Josephine. Pediria a ela que voltasse, ou então diria tudo o que tinha para dizer, no telefone, mesmo. Obrigaria Josephine a escutá-lo. Só agora ele começava a compreender por que Josephine significava tanto para ele. Ela fizera o que Ash não acreditava ser possível: curara a criança dentro dele; concedera-lhe a capacidade de amar. E ele precisava dizer-lhe isto, com urgência.
O telefone tocou infinitamente, porém ninguém atendia. Por fim, Ash desligou, frustrado. Talvez ela ainda não tivesse chegado em casa. Esperaria mais cinco minutos. Apenas cinco; não mais que isto. Então, ligaria de novo. E se ainda assim ela não atendesse, iria até lá, nem que tivesse de engatinhar. Enquanto isto, refletiria um pouco mais, pensaria no que dizer, decidiria qual a melhor maneira de explicar a Josephine.
Não seria fácil. Ela estava furiosa.
Ash começou a andar de um lado para outro, inquieto, ensaiando frases, enquanto guardava a aliança no bolso. Quando ouviu um carro aproximar-se e parar diante da casa, ele ficou imóvel. Josephine voltara. Seu coração quase parou quando ele tomou consciência de que seria agora ou nunca. Tinha de fazê-la compreender...
No entanto, seu coração afundou novamente quando ele abriu a porta para deparar-se com outra pessoa, em vez de Josephine.
— Ah... você. O que está fazendo aqui?
— Foi recebido um telefonema anônimo, avisando que a Fera vai atacar esta noite. Eu só queria ver se estava tudo bem com você.
— Não, não está tudo bem. Está tudo péssimo!
A pessoa arqueou as sobrancelhas, perplexa.
— Onde está sua esposinha?
— Na casa dela — Ash enfiou as mãos nos bolsos e virou-se, lentamente. — Ela está...
Sua voz calou-se quando um objeto duro e pesado o atingiu na cabeça. Ele caiu ao chão e, apenas um segundo antes de mergulhar na escuridão, deu-se conta de algo que devia ter notado imediatamente. A pessoa estava usando luvas pretas de couro, com dois botões nos punhos...
Josephine caminhava de um lado para outro. Depois sentava-se no sofá e chorava. Depois levantava-se e continuava a caminhar. Ash não sentia nada por ela. Era um cabeça-dura, teimoso, preocupado apenas com o prestígio, disposto a fazer qualquer coisa para conseguir uma boa história para o jornal. Usara-a o tempo todo. Usara a própria mentirá de Josephine contra ela, dormira com ela! O tempo inteiro, enquanto ela se entregava a Ash, de corpo e alma, ele provavelmente dava risadas atrás de suas costas, ria do ponto onde ela era capaz de chegar para manter a farsa. Mas ela não fizera amor com Ash para convencê-lo de que o casamento era real; fizera, porque o amava. Amava-o muito... ainda.
Josephine gemeu baixinho, consciente de que a dor que sentia se prolongaria por muito tempo. No momento seguinte ficou paralisada, conforme um riso sinistro lhe invadia a mente. Mas o riso não era seu. Ela não seria capaz de tamanha maldade.
A Fera.
A visão! O assassino perambulava em algum lugar, dentro da noite, envolto pela escuridão, abrigado, de certa forma, pelo temporal.
Oh, como fora capaz de deixar Ash sozinho, quando sabia que ele seria o próximo? E se fosse tarde demais? E se aquela lâmina medonha já tivesse lhe cortado a garganta?
Josephine correu para o telefone e pegou no receptor. Ligaria para Ash, apenas para certificar-se de que ele estava bem. Depois voltaria para buscá-lo.
Não havia linha. O telefone estava mudo.
Não haveria de ser nada, refletiu, procurando controlar o pânico crescente. Precisava pensar, concentrar-se na visão que tivera de Ash; tentar reconhecer o local onde o vira caído no chão. Poderia ser a casa de Carol?
Josephine tentou visualizar a imagem, porém em vez do corpo de Ash ela viu o de Carol. Estava com o rosto virado para baixo, sobre um carpete marrom, em relevo... Um carpete igual ao da sua sala de estar! Os longos cabelos em vários tons de dourado estavam soltos, esparramados desordenadamente sobre suas costas; as pontas estavam ensanguentadas e as costas da camiseta cinza...
Josephine apoiou-se no encosto do sofá e baixou a cabeça, sentindo o coração quase parar. A camiseta de Carol, em suas visões... ela olhou para si mesma... era a camiseta que estava usando! Mais uma vez procurou lembrar-se dos detalhes da imagem que previra. Podia ser ela mesma, não Carol! O cabelo de ambas era igual; Josephine só deduzira que era Carol porque não lhe ocorrera a possibilidade de estar vendo a si própria, como se fosse outra pessoa. Mas o rosto, de fato, nunca aparecera. Ela estava usando a roupa de Carol e...
...E o telefone estava mudo.
O coração de Josephine começou a bater com uma violência assustadora. Seu corpo inteiro tremia. Precisava falar com Ash! O assassino o atacaria, antes dela, Josephine tinha certeza. E já poderia ser tarde demais.
Ela olhou na direção da porta de vidro. O estrondo dos trovões era incessante e um relâmpago rasgou o céu, iluminando por um instante a frente da casa e a silhueta escura que se delineava do lado de fora da porta, através da cortina transparente. Não era Ash... Era uma mulher, alta e forte, de saia.
A Fera já chegara. Já liquidara Ash. Era a vez de Josephine, agora.
— Oh, não, por favor, não — sussurrou ela, mancando cautelosamente, com pernas trêmulas, na direção da escada. — Por favor, não deixe Ash morrer, por favor!
Talvez ele ainda estivesse vivo. Se ela pudesse chegar a tempo, talvez ele sobrevivesse. Em sua visão, Ash estava deitado no chão, imóvel, mas isto não significava, necessariamente, que estivesse morto. Pelo menos, Josephine procurava convencer-se disto.
Ela alcançou o corrimão e começou a subir, devagar, procurando não fazer ruído, Foi até o quarto e abriu a gaveta do criado-mudo.
Pegou a pistola e examinou-a, para certificar-se de que estava carregada. Estremeceu ao ouvir o ruído de vidro estilhaçado, no andar inferior. Levou uma mão à boca para não gritar e correu nas pontas dos pés até a porta, fechando-a e girando a chave. Em seguida, recuou até a outra extremidade do quarto e encolheu-se no canto, pistola em punho.
Passos soaram na escada, passos pesados. Um momento depois soaram no hall e pararam. Josephine tremia da cabeça aos pés enquanto esperava ver a maçaneta girar ou a porta ser arrombada. Mas nada aconteceu.
Ela esperou mais algum tempo, e nada. Nenhum som, nenhum movimento, nada. O que estava acontecendo? Ou o assassino desistira, ou estava à sua procura em outro lugar. Ela precisava dar um jeito de chegar até Ash. Não podia ficar encolhida naquele canto a noite inteira enquanto ele talvez estivesse se esvaindo em sangue na casa de sua irmã. Precisava ajudá-lo.
Lenta e silenciosamente, Josephine aproximou-se da porta, ainda empunhando a pistola. Chegava cada vez mais perto, alerta ao menor som, ou movimento. Concentrou a mente, tentando entrar em sintonia com a presença malévola que invadia sua casa, seu próprio ser. Porém não encontrou nada. Abaixou-se e colou o ouvido à porta. . .
Esta escancarou-se repentinamente, golpeando a cabeça de Josephine e arremessando-a para o chão, antes de bater com estrondo contra a parede. A pistola escapou das mãos de Josephine e deslizou pelo chão, parando debaixo da cama. Josephine esfregou a cabeça dolorida e pôs-se de pé, cambaleante.
A Fera estava parada na porta, as feições masculinas grotescamente maquiadas com blush, sombra e rímel, borrado em consequência da chuva. Também usava batom, um batom coral cintilante... A peruca loira, molhada, estava ligeiramente torta para um lado. O vestido ensopado não disfarçava os ombros largos e o peito liso. Uma fina camada de pelos escuros cobria os braços musculosos, que terminavam em luvas pretas de couro, com aqueles dois botões nos punhos que Josephine tão bem conhecia. E uma das mãos enluvadas empunhava uma adaga afiada, cujo cabo lustroso brilhava na penumbra do quarto. O rosto atrás de todo aquele disfarce era um rosto que Josephine conhecia, embora demorasse alguns segundos para assimilar. Radley. Radley Ketchum.
Ash batalhou para recobrar a consciência, enquanto uma única, arrepiante e sangrenta frase ecoava em sua mente. "Onde está sua esposinha?"
Josephine. O desgraçado estava atrás de Josephine e ele dissera onde ela estava. Em casa. Sozinha.
Rad. Ash não conseguia acreditar que era Rad. Com um esforço imenso, rolou para o lado e sentou-se. Sua cabeça doía e girava. Ele engatinhou até a cozinha, pegou no telefone e levou o receptor ao ouvido. Digitou rapidamente um número e pediu ao policial que atendeu, na delegacia, que transferisse a ligação para Beverly Issacs. Esperou, impaciente, até ouvir a voz da sargento.
— Bev... é Ash.
— Que voz é essa? Você andou bebendo?
Ash sentiu ímpetos de gritar, porém conteve-se.
— O assassino... é Radley.
Silêncio.
— Está me ouvindo, Bev? A Fera de Syracuse é Rad Ketchum. Neste momento, ele está a caminho da casa de Josephine e ela está lá, sozinha. Rápido, Bev!
Ash desligou o telefone, interrompendo a voz agitada da sargento, e digitou o número de Josephine. Ouviu tocar insistentemente, porém ninguém atendia. Procurou controlar o pânico, preferindo acreditar que Josephine mudara de ideia e estava voltando para a casa de Carol. Porque só havia outras duas possibilidades: ou o temporal derrubara as linhas telefônicas... ou já era tarde demais.
Ele se pôs de pé, apoiando-se no balcão da cozinha, e cambaleou até a sala; abriu a porta e saiu para a chuva. A pick-up de Ted estava estacionada diante da oficina, ao lado da casa. Ash aproximou-se e colou o rosto ao vidro, para espiar para dentro. Conforme antecipara, a chave não estava na ignição. Correu até a porta da oficina e espiou pelo vidro. Sim. Havia um único chaveiro pendurado no porta-chaves. Ash cerrou o punho e quebrou o vidro.
— Por quê? — Josephine tremia de pavor ao contemplar a insanidade no olhar de Radley Ketchum. Aquele não era o homem que ela conhecera, que conhecia. Era outra pessoa. — Por todos os santos, Radley, por quê?!
— Eu preciso — respondeu ele, calmamente, quase com delicadeza. — Você não me deixa em paz. Eu sinto você dentro de mim, de minha mente. Você mesma disse que é a pessoa que vai me destruir, Mas não vou deixar que faça isto. Não, antes de matá-lo.
Ele deu um passo à frente e Josephine recuou.
— Matar quem? Ash?
— Eu não quero machucá-lo — choramingou Radley.
— Mas você o machucou, não foi? Você o matou? Ash está morto, Radley?! — As pernas de Josephine encostaram na cama e ela começou a se inclinar para o lado, para afastar-se dele.
— É ele. Martin. Meu pai de criação. Ele me odeia, você sabe.
— Não, eu não sabia.
Josephine não sabia e tampouco queria saber. Tudo que queria saber naquele momento era que Ash não estava morto, ou morrendo. Mas Radley continuou falando.
— Havia meninas, também, minha irmã menor... Mas Martin não fazia nada com elas. Só comigo — Ele olhou para a faca em sua mão e pareceu lembrar-se de sua missão. Olhou novamente para Josephine. — Não posso deixar você me deter antes que ele esteja morto.
Josephine lembrou-se da explicação do psiquiatra, de que o assassino poderia executar várias vezes a mesma pessoa, matando diversos homens. Mas uma das vítimas fora uma mulher, em Las Vegas. Ela viu Radley aproximar-se e, instintivamente, sabia que tinha de continuar incentivando-o a falar.
— Você não está matando apenas Martin. Matou uma mulher, em Las Vegas. E quer me matar.
Radley pareceu ficar surpreso.
— Eu tive de matá-la. Ela me viu. E você... você não me deixa em paz!
— Eu estou tentando! — Josephine olhou para ele com ar de súplica.
— Não! Cada vez que você olha para mim eu sinto esses olhos como se fossem perfuradoras, entrando no meu cérebro, tentando descobrir todos os meus segredos. Você é uma bruxa!
Josephine estava quase chegando à porta do quarto, outra vez. Precisava distrair Rad... distrai-lo e depois correr.
— Por que usa essas roupas, Radley? Para que a polícia pense que o assassino é uma mulher?
Os olhos dele se estreitaram, acusadores.
— Eu já lhe disse, sua estúpida! Martin não faz nada com as meninas! Assim, estou seguro. Quando ele me reconhecer, será tarde demais.
As últimas três palavras foram acompanhadas por um sorriso lento, maldoso. O olhar de Radley estava distante e Josephine imaginou que ele talvez estivesse visualizando algum dos crimes que cometera e que esta lembrança, de alguma forma, lhe causasse prazer.
— Então eu passo a faca na garganta do desgraçado... e vejo-o morrer... — sussurrou ele.
Um forte calafrio percorreu a espinha de Josephine, da cintura até a nuca. Ela pousou uma mão sobre a maçaneta da porta.
Radley deu mais um passo em sua direção. Subitamente, ele percebeu o movimento da mão de Josephine e avançou para ela, erguendo a faca. Josephine pulou para trás e bateu a porta, atingindo Radley, ao fazê-lo. Ouviu-o gritar e praguejar, porém não esperou nem um segundo para disparar escada abaixo, descendo de dois em dois degraus, o pavor superando a dor na perna. Atravessou a sala e correu para a porta, tremendo violentamente, as batidas de seu coração ecoando lhe nos ouvidos, ensurdecendo-a.
Radley entrara pela fenda na vidraça quebrada, sem se dar ao trabalho de abrir a porta. Josephine arrancou o cabo de vassoura, puxou o trinco e girou a maçaneta.
Um braço agarrou-a por detrás e virou-a com tanta brusquidão que sua cabeça pendeu para trás, como se seu pescoço fosse de borracha. Uma mão agarrou-a impiedosamente pelos cabelos e manteve-a nesta posição, expondo-lhe o pescoço. A outra ergueu-se, segurando a adaga.
Sem pensar duas vezes, Josephine levantou o joelho e atingiu Radley com toda força; ouviu o ar escapar-lhe dos pulmões e o baque da adaga, caindo no carpete. Ele se curvou, gemendo de dor. Sem desviar os olhos de Radley, Josephine engatinhou desesperadamente até o local onde a adaga estava caída, no chão.
O contato com o cabo gelado da arma provocou a aparição de uma miríade de rostos na mente de Josephine e logo ela compreendeu que eram os rostos das vítimas. Rostos inocentes, assustados, tristes.
Ela levou uma mão para trás e procurou a maçaneta da porta, porém Radley levantou-se e começou a avançar em sua direção. Ela apontou a faca para ele, com a esperança de intimidá-lo. Ele, porém, não parecia enxergar; continuava se aproximando, lentamente, as mãos estendidas para frente, como se quisesse estrangulá-la. Ela descreveu um arco com a faca, da direita para a esquerda, sentindo a resistência da pele do peito de Rad ao descrever o círculo em sentido contrário. Um grito agudo e involuntário acompanhou o gesto.
Radley caiu de joelhos diante de Josephine, o sangue se espalhando na parte da frente do vestido. Estava, todavia, consciente, ainda, e Josephine viu-se encurralada entre ele e a porta; não podia virar-se de costas e não havia espaço para abrir a porta. Disparou, então, para frente, passando por ele, na direção da escada, com a esperança de conseguir fugir pela porta dos fundos. Antes, porém, de alcançar a porta da cozinha, foi enlaçada pelas costas num abraço brutal e esmagador. Agarrado a Josephine, Radley caiu no chão, esmagando-a com seu peso, arrancando-lhe todo o ar dos pulmões.
Josephine sentia o sangue dele ensopar lhe as costas. Virou o corpo, então, abruptamente, torcendo o braço para golpeá-lo com a adaga, A lâmina penetrou à carne de Radley, entre as costelas. Um uivo pavoroso escapou-lhe da garganta, seguido pelo grito histérico de Josephine. Ele rolou para um lado e ela rastejou para o outro, levantando-se em seguida, tentando recuperar o equilíbrio.
Um horror como Josephine nunca sentira tomou conta de seu ser, entorpecendo lhe os sentidos. A histeria ameaçava dominá-la por completo. Ela deu um passo para trás, respirando com dificuldade, lutando para controlar-se. Seu estômago deu uma reviravolta quando Radley, com visível esforço, apoiou-se nos joelhos e segurou o cabo da adaga ensanguentada, ainda enfiada em seu corpo. Com as feições contorcidas, ele a puxou e a contemplou por um instante, antes de revirar os olhos e cair para frente.
Josephine gritou e recuou mais uma vez, indo de encontro à parede. Tremia tanto que seus dentes batiam; o coração parecia querer lhe saltar pela boca; sua nuca estava gelada de pavor e os joelhos ameaçavam dobrar.
Radley, no entanto, não se moveu. Jazia no chão, com os olhos entreabertos, o sangue se espalhando rapidamente à sua volta sobre o carpete. Tremendo incontrolavelmente, Josephine se agachou e deslizou uma mão até a faca ensanguentada, caída no chão a poucos centímetros da mão grotesca de Radley, coberta de sangue. Com as pontas dos dedos, ela segurou a lâmina e levantou-a.
Rad não se moveu. Estava morto. Ela o matara!
Durante alguns segundos, Josephine ficou paralisada, contemplando com olhos arregalados a figura inerte de Radley, tentando, em vão, engolir em seco. Sua garganta estava bloqueada.
Ela levantou uma perna e deu um passo por cima de Radley, em direção à porta. Depois, deu outro; mais um passo e estaria fora do alcance dele; ao mesmo tempo perguntava-se por que estava com tanto medo, se ele já estava morto. Suas pernas obedeciam ao comando de seu cérebro com relutância; Radley estava atrás dela, agora, e a porta a poucos metros de distância.
Dedos quentes e pegajosos fecharam-se subitamente ao redor do tornozelo de Josephine, com uma força esmagadora. Ela perdeu o equilíbrio e caiu para frente, batendo a cabeça na quina de uma mesinha antes de se estatelar no chão, com o rosto para baixo. Sentiu a faca voar de sua mão e cair no carpete, manchando-o de sangue.
Radley procurava equilibrar-se sobre as mãos e os joelhos. Arrastava-se para frente, para cima de Josephine... Ela precisava se mexer, sair dali! Levantou a cabeça e avistou a adaga, logo adiante; esticou um braço, porém não conseguiu alcançá-la. E então, sua mente mergulhou nas profundezas de um pântano escuro.
Através da porta de vidro, Ash testemunhou um pesadelo. Josephine estava deitada no chão, o rosto virado para baixo. Suas costas estavam ensopadas de sangue. Uma adaga, também ensanguentada, estava caída no carpete, a poucos centímetros da mão esticada e imóvel de Josephine. Radley levantou-se, com o corpo curvado para frente, uma imagem grotesca, a maquiagem borrada, os braços e as mãos ensanguentados, o vestido horroroso amarrotado e sujo de sangue. Quando ele se curvou para a frente, a peruca loira escorregou-lhe da cabeça e caiu no chão. Ele olhou para Josephine e deu um passo à frente.
Ash arremessou-se contra a porta, imaginando que estivesse trancada. Ao girar a maçaneta, no entanto, ela se abriu. Atirou-se em cima de Radley, socou lhe o rosto duas vezes e viu-o cambalear para trás antes de espatifar-se pesadamente no chão, como um tronco de árvore.
Ash ajoelhou-se ao lado dele, só então reparando no sangue que lhe jorrava do corpo, logo abaixo do braço, e perguntando-se se teriam sido seus socos ou o ferimento, que o haviam derrubado. Pousou uma mão no pescoço de Rad; não havia pulso.
Agoniado, ele virou-se para Josephine e deu-se conta de que estava contemplando a imagem que ela lhe descrevera. A única diferença era que ela pensara que a mulher caída no chão, com as costas ensanguentadas, fosse Carol. Não... a verdade era cruel demais, para suportar. Josephine previra a própria morte, não a da irmã!
— Não, Josephine... não morra... por favor, Josephine, por mim! — implorou ele, debruçando-se sobre ela e levantando-lhe a camiseta, com a esperança de ainda conseguir estancar o sangramento e mantê-la viva até que chegasse ajuda.
Já podia ouvir as sirenes, à distância. Examinou as costas de Josephine, à procura do ferimento, porém a única coisa que encontrou foi uma camada de sangue; nenhum corte, nenhuma perfuração, nem mesmo um arranhão.
Com uma ruga na testa, ele a segurou pelos ombros e virou-a, deitando-a de costas.
— Josephine? Josephine, meu amor, está me ouvindo? — Ele passou os dedos pelo pescoço, dela e encontrou-o intacto. Apenas a testa apresentava um corte, de onde o sangue escorria pelo rosto abaixo. Não era, entretanto, um ferimento mortal.
As sirenes soavam cada vez mais alto e os faróis dos carros iluminaram a sala, através da porta e da janela, lançando uma forte claridade sobre Josephine.
— Josephine — chamou Ash, mais uma vez.
Ela abriu os olhos e pestanejou.
— Ash...
— Você está bem...
— Ele não matou você... — balbuciou ela. — Não matou...
As lágrimas inundaram os olhos de Josephine quando Ash a abraçou. Ela o enlaçou pelo pescoço, soluçando, murmurando palavras confusas, desordenadas.
— Eu morreria se você tivesse morrido. Eu te amo, Ash. Muito. Nada mais importa para mim, nem as mentiras de meus pais. É só você que importa. Nunca mais vou mentir para você. Eu não queria enganar você... fiquei arrasada... Mas você está vivo. Está vivo e eu te amo. Te amo.
Os soluços dificultavam a compreensão das palavras, mas Ash sabia exatamente o que Josephine dizia. Ele também pensara que ela estava morta, quando a vira estirada no chão, imóvel. Ainda não conseguia acreditar que ela estivesse bem. Pôs-se de pé, erguendo-a nos braços, enquanto a sala era invadida por policiais e uma ambulância subia na rampa de entrada. Ignorou o tiroteio de perguntas e as mãos que tentavam detê-lo, e levou Josephine para fora, na direção do veículo e dos paramédicos que dele desciam apressados.
Debruçou-se sobre ela, beijando-a repetidamente enquanto a carregava, e deitou-a na maca que os homens retiravam da parte traseira da ambulância.
— Com licença, senhor — pediu um dos paramédicos, querendo assumir o comando da situação.
Ash, porém, ajoelhou-se ao lado da maca, ignorando-o por completo.
— Senhor, precisa afastar-se para...
— Não vou a lugar algum sem minha esposa— Ele viu Josephine arregalar os olhos e enfiou a mão no bolso, retirando a aliança que ela jogara no chão do quarto de Carol. Segurou-lhe a mão esquerda e introduziu a aliança no dedo anular — Quero que continue usando isto, Josephine.
Ela olhou para Ash, alheia às mãos que lhe amarravam um cinto de segurança ao redor da cintura, testavam-lhe o pulso e examinavam lhe a testa ferida.
— Ash?
— Até eu comprar uma de verdade — Ele lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e beijou-lhe os lábios. — Eu te amo e não a deixarei ir embora. Você disse que era minha esposa, agora vai ter de continuar a ser.
Um outro veículo se aproximou e parou abruptamente atrás da ambulância. Matthew Bradshaw abriu a porta e saiu do carro, o rosto transtornado.
— O que aconteceu? Onde está Josephine? Como... Oh! — Ele a reconheceu, sobre a maça, e correu para ela, parando do lado oposto a Ash. Ash nunca vira alguém tão pálido e aterrorizado.
— Ela está bem — garantiu. — Foi só uma pancada na cabeça. Ela vai ficar ótima.
Matthew debruçou-se sobre Josephine.
— Vai, filha?
Ela ergueu uma mão e pousou-a sobre a do pai.
— Vou — assentiu, com determinação. Com a outra mão ela apertou a de Ash e lançou-lhe um olhar transbordante de amor. — Nós todos vamos.
Maggie Shayne
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